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Ficha Técnica

Título: O Jogo das Contas de Vidro


Título original: Das Glasperlenspiel
Autor: Hermann Hesse
Tradução de Carlos Leite
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Joana Vitorino
Capa: Rui Garrido
ISBN: 9789722061865

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Aos
Peregrinos do Oriente
O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO

Introdução à Sua História


num Estudo ao Alcance de Todos
... non entia enim licet quodammodo levibusque hominibus
facilius atque incuriosius verbis reddere quam entia,
verumtamen pio diligentique rerum scriptori plane aliter res se
habet: nihil tantum repugnat ne verbis illustretur, at nihil adeo
necesse est ante hominum oculos proponere ut certas quasdam
res, quas esse neque demonstrari neque probari potest, quae
contra eo ipso, quod pii diligentesque viri illas quasi ut entia
tractant, enti nascendique facultati paululum appropinquant.
ALBERTUS SECUNDUS
(tract. de cristall. spirit. ed. Clangor et Collof. lib. I cap. 28)

Na tradução manuscrita de Josef Knecht:


... pois de certo modo é mais fácil e irresponsável à gente
frívola descrever por meio de palavras as coisas não existentes
do que as existentes, mas para o historiador piedoso e
consciencioso é completamente diferente: nada se furta tanto à
descrição por meio de palavras e nada é tão necessário pôr à
frente dos olhos dos homens do que certas coisas cuja
existência nem se pode provar nem demonstrar, mas que,
justamente porque homens piedosos e conscienciosos as tratam
como existentes, dão mais um passo para o ser e a
possibilidade de nascer.
É nossa intenção fixar neste livro o pouco material biográfico que
conseguimos encontrar sobre Josef Knecht1, o Magister Ludi
Josephus III, como figura nos Arquivos do Jogo das Contas de Vidro.
Não somos cegos ao facto de que este estudo está, ou parece estar,
em contradição com as leis e os costumes que regem a vida
espiritual. Não são o apagamento do individual, a integração tão
completa quanto possível da personalidade de cada um na
hierarquia do sistema de ensino e na das ciências precisamente um
dos princípios supremos da nossa vida intelectual? E este princípio
tem vindo a tornar-se tão perfeitamente uma realidade devido a
uma longa tradição que hoje é extraordinariamente difícil, e em
muitos casos mesmo completamente impossível, encontrar
pormenores biográficos e psicológicos sobre indivíduos que serviram
de modo eminente essa hierarquia; em muitos casos já nem os
nomes das pessoas podem ser comprovados. De facto, uma das
características da vida espiritual da nossa Província é que a sua
organização hierárquica tenha o anonimato como ideal, ideal este
que está perto de se tornar uma realidade.
Se, não obstante, insistimos na nossa tentativa de registar alguns
factos da vida do Magister Ludi Josephus III e de esboçar um retrato
da sua personalidade, não o fizemos pelo culto da pessoa nem,
assim o cremos, por desobediência aos costumes, mas, antes pelo
contrário, apenas com a intenção de servir a Verdade e a Ciência. Há
um velho aforismo que diz: quanto mais agudamente e
intransigentemente formulamos uma tese, mais irresistivelmente ela
clama pela sua antítese. Aceitamos a ideia que está na base do
anonimato dos nossos dirigentes e da nossa vida espiritual, e
respeitamo-la. Mas um olhar sobre a pré-história dessa mesma vida
espiritual, nomeadamente sobre o desenvolvimento do Jogo das
Contas de Vidro, mostra-nos irresistivelmente que todas as fases do
seu desenvolvimento, todas as extensões do Jogo, todas as
alterações, todas as viragens decisivas, fossem de significado
progressista, fossem de significado conservador, se não revelam
forçosamente o seu único e verdadeiro autor, espelham contudo o
seu rosto mais nítido na pessoa que introduziu a alteração, que foi o
instrumento dessa reformulação e desse aperfeiçoamento.
O que hoje entendemos por personalidade é na verdade bem
diferente do que os biógrafos e os historiadores de antigamente
queriam dizer com esse termo. Para eles, e nomeadamente para os
autores das épocas que tinham uma inclinação muito marcada pela
biografia, o essencial duma personalidade parecia residir,
gostaríamos de o dizer, na excentricidade, na anomalia, no
excecional e, com frequência, no patológico, enquanto nós,
atualmente, regra geral só falamos de personalidades significativas
quando se nos deparam pessoas que, superando todas as suas
originalidades e particularidades, conseguiram integrar-se perfeita e
completamente na ordem geral e servir com a máxima perfeição
uma causa superior às suas pessoas. Se observarmos mais de perto,
veremos que também já os antigos conheciam este ideal: a figura do
«sábio» ou do «homem perfeito» dos chineses antigos por exemplo,
ou o ideal socrático da virtude quase não se distinguem do nosso
ideal atual, e muitas grandes organizações espirituais, como de certo
modo a Igreja Romana nas suas épocas de maior poder, conheceram
princípios semelhantes; muitos dos seus maiores vultos como, de
certo modo, São Tomás de Aquino aparecem-nos, quais estátuas
gregas primitivas, mais como protótipos clássicos do que como
indivíduos particulares. Todavia, nos tempos anteriores à reforma da
vida espiritual, reforma essa que começou no século XX e de que
somos os herdeiros, foi notório que esse ideal genuíno dos tempos
antigos se perdeu quase por completo. Espantamo-nos quando
vemos, nas biografias dessas épocas, narrar extensamente quantos
irmãos e irmãs o herói teve ou que cicatrizes, que marcas lhe
deixaram a saída da infância, a puberdade, a luta pela afirmação ou
a busca do amor. A nós, homens de hoje, não é a patologia nem a
história da família que interessam, nem a vida instintiva, nem a
digestão, nem o sono dum herói; tão-pouco a pré-história do seu
intelecto, o papel desempenhado pelos estudos, pelas leituras
preferidas na sua educação, etc., nos são especialmente
importantes. Para nós só é herói e digno dum interesse especial
aquele que, por natureza e educação, foi colocado na posição de
deixar absorver quase completamente a sua pessoa pela sua função
hierárquica, sem que com isso se perdesse a força, a frescura desse
impulso, que merece ser admirado e que constitui o sal e o valor do
indivíduo. E quando surgem conflitos entre o indivíduo e a
hierarquia, consideramo-los precisamente como a pedra de toque da
grandeza duma personalidade. Quanto menos aceitamos o rebelde
cujos desejos e paixões o levam a romper com a ordem
estabelecida, tanto mais respeito sentimos pela memória das
vítimas, pelos destinos verdadeiramente trágicos.
Apenas aí, nos heróis, nesses seres realmente exemplares, nos
parece legítimo e natural o interesse pela pessoa, pelo nome, pelo
rosto e pelos gestos, pois de modo nenhum vemos na hierarquia
mais perfeita, na organização mais livre de atritos, um mecanismo
constituído por elementos mortos e em si próprios indiferentes, mas
antes um corpo vivo, constituído por partes e animado por órgãos,
cada um com a sua maneira de ser e a sua liberdade e participando
do milagre da vida. Neste sentido, esforçámo-nos por recolher
informações sobre a vida do Mestre do Jogo das Contas de Vidro
Josef Knecht, e particularmente todos os seus escritos; foi assim que
conseguimos diversos manuscritos que consideramos dignos de
leitura.
O que temos a dizer sobre a pessoa e a vida de Josef Knecht é já
relativamente conhecido, no todo ou em parte, entre os membros da
Ordem e principalmente entre os jogadores de Contas de Vidro, e
assim sendo, por esta razão, o nosso livro não se dirige
simplesmente a esse círculo, mas espera também leitores
compreensivos fora dele.
Para esse círculo restrito o nosso livro não precisaria duma
introdução nem de comentários. Mas como desejamos que a vida e
os escritos do nosso herói encontrem leitores fora da Ordem, cabe-
nos a tarefa algo difícil de antes de mais apresentar uma pequena
introdução vulgar sobre o sentido e a história do Jogo das Contas de
Vidro, para os leitores menos bem informados. Frisamos que esta
introdução é um trabalho de vulgarização que se quer como tal, sem
a mínima pretensão a formular problemas do Jogo e da sua história,
que só dentro da Ordem são discutidos. Para uma apresentação
objetiva desse tema ainda haverá que esperar muito tempo.
Não se espere de nós, por conseguinte, uma história e uma teoria
completas do Jogo das Contas de Vidro, para as quais autores com
mais mérito e mais habilidade também não estariam, hoje, em
condições de levar por diante. Essa tarefa continua reservada aos
tempos futuros, na condição de que tanto as fontes como as
condições espirituais não se tenham perdido entretanto. Este nosso
estudo pretende ainda menos ser um compêndio do Jogo das
Contas de Vidro; de resto, esse compêndio nunca será escrito. As
regras deste Jogo dos jogos não se aprendem doutra maneira que
não seja a prescrita e habitual, o que exige muitos anos, além de
que nenhum iniciado jamais estaria interessado em tornar mais fácil
o seu processo de aquisição.
Essas regras, os sinais da linguagem e a gramática do Jogo,
representam uma espécie de língua secreta extremamente
aperfeiçoada, em que participam várias ciências e artes,
principalmente a Matemática e a Música (ou Musicologia), e que é
capaz de exprimir os conteúdos e os resultados de quase todas as
ciências e de os relacionar entre si. O Jogo das Contas de Vidro é,
por conseguinte, um jogo que joga com todos os conteúdos e
valores da nossa cultura, um pouco como nos tempos áureos das
artes um pintor terá brincado com as cores da sua paleta. Tudo
quanto a Humanidade produziu durante as suas eras criadoras no
domínio do conhecimento, das grandes ideias e das obras de arte,
tudo quanto os períodos de reflexão erudita seguintes reduziram a
conceitos e transformaram em património intelectual, todo esse
imenso material de valores espirituais é manipulado pelo jogador de
Contas de Vidro como um órgão o é pelo organista, mas este órgão
é duma perfeição quase inconcebível, o seu teclado e os seus pedais
tateiam o cosmo espiritual inteiro, os seus registos são, por assim
dizer, incontáveis, só teoricamente se poderia reproduzir no jogo,
com este instrumento, todo o conteúdo espiritual do universo. Ora
este teclado, estes pedais e estes registos têm uma forma definitiva,
só em teoria são possíveis modificações e tentativas de
aperfeiçoamento no seu número e disposição: o enriquecimento da
linguagem do Jogo pela introdução de novos conteúdos está sujeito
ao controlo mais rigoroso da Direção Suprema do Jogo. Em
contrapartida, no interior desta estrutura fixa, ou para continuar com
a nossa imagem, no interior da complicada mecânica desse órgão
gigantesco, é dado a cada jogador todo um mundo de possibilidades
e combinações, sendo quase impossível que, entre milhares de
partidas conduzidas com rigor, haja duas que se assemelhem mais
do que superficialmente. Mesmo que acontecesse que dois
jogadores fizessem por acaso exatamente a mesma escolha de
temas restritos para conteúdo do jogo, esses dois jogos poderiam
diferir completamente, quer pelo modo de pensar, quer pelo
carácter, quer pela disposição e o virtuosismo do jogador, e terem
desenvolvimentos diferentes.
Em última instância o historiador pode fazer recuar a origem e a
pré-história do Jogo das Contas de Vidro tão atrás quanto quiser.
Pois, como todas as grandes ideias, o Jogo não tem propriamente
um começo, existiu sempre, precisamente como ideia. Encontramo-
lo já prefigurado como ideia, como pressentimento e ideal em várias
épocas anteriores, por exemplo em Pitágoras, em seguida nos
últimos tempos da cultura antiga, nos círculos gnóstico-helenísticos,
igualmente entre os chineses antigos, de novo no apogeu da vida
espiritual árabe-mourisca, e, mais à frente, a pista da sua pré-
história atravessa a escolástica e o humanismo, passa pelas
academias de matemáticos dos séculos XVII e XVIII e chega às
filosofias românticas e às runas dos sonhos mágicos de Novalis.
Todos os movimentos espirituais orientados para o objetivo ideal
duma Universitas Litterarum, todas as academias platónicas, todos
os esforços de socialidade empreendidos pelas elites espirituais,
todas as tentativas de aproximação entre as ciências exatas e as
menos exatas, todas as tentativas de conciliação entre a Ciência e a
Arte ou entre a Ciência e a Religião assentaram nessa mesma ideia
eterna que, para nós, ganhou forma com o Jogo das Contas de
Vidro. Espíritos como Abelardo, Leibniz e Hegel conheceram sem
dúvida o sonho de abarcar o universo espiritual em sistemas
concêntricos e unir a beleza viva do espiritual e da arte à força
mágica das fórmulas das disciplinas exatas. Nesta época, em que a
Música e a Matemática conheceram quase simultaneamente uma
espécie de classicismo, estas duas disciplinas simpatizavam e
fecundavam-se com frequência. E dois séculos antes encontramos
em Nicolau de Cusa frases com a mesma inspiração, como, por
exemplo, esta: «O espírito molda-se ao virtual para tudo medir
segundo o modo do virtual, e também à necessidade absoluta, a fim
de tudo medir segundo o modo da unidade e da simplicidade, como
faz Deus, e também à necessidade causal, para desse modo tudo
medir em função da sua singularidade, e finalmente molda-se à
determinação do virtual para tudo medir em função da sua própria
existência. Mas, além disso, o espírito mede também
simbolicamente, por meio da comparação, como quando se serve do
número e das figuras geométricas e a elas se refere como
símbolos.» Aliás, não é só esta a única ideia de Nicolau de Cusa que
quase parece apontar para o nosso Jogo das Contas de Vidro, que
responda a ou provenha duma orientação semelhante da
imaginação, análoga à dos jogos intelectuais; poderíamos indicar
diversos outros sinais precursores em Nicolau de Cusa, muitos
mesmo. O seu prazer na Matemática, a sua capacidade e o seu
prazer em aplicar figuras e axiomas da geometria euclidiana a
conceitos teológico-filosóficos, como símbolos explicativos, parecem
muito próximos do espírito do Jogo, e de vez em quando o seu latim
(cujos vocábulos não raro são de sua livre invenção, sem que no
entanto possam ser mal compreendidos por algum latinista) lembra
a leveza plástica da linguagem do Jogo.
Tal como já a epígrafe do nosso tratado indica, Albertus Secundus
pertence, não menos justificadamente, aos antepassados do Jogo
das Contas de Vidro. E presumimos, sem que de facto o possamos
provar com citações, que a ideia do Jogo dominava também aqueles
músicos eruditos dos séculos XVI, XVII e XVIII que fundavam as
suas composições musicais em especulações matemáticas. Aqui e
ali, nas literaturas antigas, deparam-se-nos lendas sobre jogos
sábios e mágicos, ideados e praticados por letrados, monges, ou nas
cortes de príncipes iluminados, por exemplo na forma do jogo do
xadrez, cujas figuras e casas, para além do seu significado habitual,
tinham também outro, oculto. E são evidentemente do
conhecimento geral as narrativas, os contos e as sagas que datam
da juventude de todas as culturas e que atribuem à Música um
poder bem superior ao simplesmente estético, um poder sobre as
almas e os povos, que faz dela um governante secreto ou um código
dos homens e dos seus Estados. Da mais alta antiguidade chinesa às
sagas dos gregos, a ideia duma vida ideal e celeste que os homens
viveriam sob a hegemonia da Música desempenhou um papel. A este
culto da Música («em eternas metamorfoses acolhe-nos aqui em
baixo o poder secreto do canto», Novalis) está igualmente ligado da
maneira mais íntima o Jogo das Contas de Vidro.
Se bem que reconheçamos que a ideia do Jogo é eterna e que,
portanto, sempre existiu e se manifestou muito antes de se realizar,
a sua concretização na forma que lhe conhecemos tem a sua história
própria, cujas etapas mais importantes iremos tentar descrever
sucintamente.

O movimento espiritual cujos frutos, entre muitos outros, são a


instituição da Ordem e o Jogo das Contas de Vidro, teve o seu início
num período da História que, desde os trabalhos fundamentais do
historiador de literatura Plinius Ziegenhalß2, tem o nome com que
ele o cunhou: a Idade do Folhetim. Nomes como este são bonitos,
mas perigosos, e induzem-nos sempre em considerações injustas
sobre qualquer estado passado da vida humana, tanto mais que a
Idade do Folhetim de modo nenhum era desprovida de espírito nem
muito menos pobre de espírito. Mas pouco soube fazer com ele –
assim parece, segundo Ziegenhalß ou melhor, não soube dar-lhe a
posição e a função devidas na economia da vida e do Estado.
Com franqueza, conhecemos muito mal essa época, embora ela
seja o solo onde cresceu quase tudo quanto caracteriza hoje a nossa
vida espiritual. Foi, segundo Ziegenhalß, uma época particularmente
«burguesa» e que sacrificava a um individualismo extremo. E se,
para evocarmos a sua atmosfera, citamos algumas passagens
retiradas da descrição de Ziegenhalß, sabemos pelo menos, com
toda a certeza, que não foram inventadas nem são substancialmente
exageradas ou desfiguradas, pois o grande investigador apoiou-as
em inúmeros documentos literários e outros. Juntamo-nos ao erudito
autor, que até ao presente foi o único a considerar digna duma
investigação séria a Idade do Folhetim, não querendo, com isto,
esquecer que é fácil e pouco sensato torcer o nariz aos erros ou
vícios dos tempos antigos.
O desenvolvimento da vida espiritual na Europa, depois da Idade
Média, parece ter tido duas grandes tendências: a de libertar o
pensamento e a fé de todas e quaisquer influências autoritárias, ou
seja, a luta da razão, que se sentia senhora de si e maior de idade,
contra o domínio da Igreja Romana e, por outro lado, a procura
secreta mas apaixonada duma legitimidade desta sua liberdade,
numa nova autoridade que emanasse dela própria e lhe fosse
adequada. Dum modo geral, pode perfeitamente dizer-se que, no
conjunto, o espírito ganhou esta luta, com frequência cheia de
contradições singulares, cujo cerne era constituído por dois objetivos
opostos em princípio. A vitória pesa mais do que as incontáveis
vítimas? A ordem atual da nossa vida espiritual é bastante perfeita e
durará o suficiente para que todos os sofrimentos, convulsões e
monstruosidades, desde os processos e as fogueiras por heresia até
ao destino de muitos «génios» que acabaram na loucura ou no
suicídio, nos apareçam como um sacrifício cheio de sentido? Tal não
nos é permitido perguntar. A História aconteceu – se foi boa, se teria
sido melhor que não tivesse acontecido, se lhe reconhecemos o
«sentido» ou não, isso não tem sentido. As lutas pela «liberdade» do
espírito tiveram, por conseguinte, lugar, e tiveram como
consequência que, precisamente nos últimos tempos da Idade do
Folhetim, o espírito gozasse de facto duma liberdade inaudita e já
não mais suportável, na medida em que, tendo-se libertado por
completo da tutela da Igreja e em especial da do Estado, ainda não
encontrara uma lei verdadeira que ele próprio formulasse e
respeitasse, uma autoridade e uma legitimidade novas e autênticas.
Parte dos exemplos dados pelo espírito dessa época, de degradação,
de venalidade, de abandono, de que nos fala Ziegenhalß, são de
facto realmente espantosos.
Temos de reconhecer que não estamos em posição de dar uma
definição rigorosa das produções que estão na origem do nome
dessa época, ou seja, os «folhetins». Ao que parece, os «folhetins»
eram produzidos aos milhões como elemento especialmente
apreciado da matéria da imprensa diária, constituíam o alimento
principal dos leitores desejosos de se instruírem, informavam, ou
melhor, «conversavam» sobre mil objetos, do saber, e, ao que
parece, os mais inteligentes dos folhetinistas ironizavam com
frequência sobre o seu próprio trabalho, pelo menos Ziegenhalß
confessa ter encontrado muitos artigos desse género, nos quais ele
se inclina a ver uma ridicularização do autor por si próprio, pois
doutra maneira seriam absolutamente incompreensíveis. É
perfeitamente possível que nesses artigos produzidos em série
estivesse contida uma boa dose de ironia e autoironia cuja
compreensão exigiria que o leitor possuísse a chave da sua leitura.
Os produtores destas frivolidades pertenciam em parte às redações
dos jornais, em parte escreviam «por conta própria», sendo com
frequência qualificados de escritores, mas parece também que
muitos deles terão pertencido à condição dos letrados,
inclusivamente seriam professores universitários famosos. Artigos de
muito agrado eram as anedotas sobre a vida de homens e mulheres
célebres e suas trocas de correspondência.
Tinham títulos como «Friedrich Nietzsche e a moda feminina em
1870» ou «Os pratos favoritos do compositor Rossini» ou «O papel
do cão de regaço na vida das grandes cortesãs» e assim por diante.
Além disso gostava-se de considerações historicizantes sobre os
assuntos de atualidade entre os ricos, por exemplo «O sonho do
fabrico sintético do ouro ao longo dos séculos» ou «As tentativas
físico-químicas de influenciar as condições meteorológicas» e
centenas de outros temas do género. Quando lemos os títulos de
semelhantes verborreias mencionados por Ziegenhalß, surpreende-
nos menos a circunstância de haver pessoas que as devoravam
como leitura diária do que o facto de autores de prestígio, com
classe e de boa formação, ajudarem a «alimentar» este gigantesco
consumo de curiosidades sem valor, como significativamente o verbo
«alimentar» postulava: esta expressão caracteriza aliás o
comportamento que então o homem tinha perante a máquina. Havia
alturas em que eram particularmente apreciadas as perguntas feitas
a personalidades conhecidas sobre assuntos da ordem do dia, às
quais Ziegenhalß dedica um capítulo especial, e em que se punha
por exemplo químicos famosos ou virtuoses do piano a falar sobre
política, enquanto atores em voga, bailarinos, ginastas, aviadores e
até mesmo poetas eram postos a dar a sua opinião sobre as
vantagens ou os inconvenientes do celibato, sobre as causas
presumidas de crises financeiras, etc. O que importava, apenas, era
associar um nome conhecido a um tema realmente atual: leiam-se
os exemplos, por vezes surpreendentes, de Ziegenhalß, ele cita
centenas. Como dissemos, a toda esta atividade industriosa
misturava-se provavelmente uma boa dose de ironia, uma ironia
talvez mesmo desesperada, demoníaca, que dificilmente nos é
acessível; contudo, a grande massa, que por essa altura parece ter
sido espantosamente sedenta de leitura, aceitava sem duvidar, com
crédula sinceridade, todas estas coisas grotescas. Mudasse de dono
um quadro famoso, fosse leiloado um manuscrito valioso, ardesse
um castelo antigo, envolvesse-se num escândalo o possuidor dum
nome aristocrático antigo, e os leitores encontrariam em milhares de
folhetins não só os factos como também receberiam, no próprio dia
ou no seguinte, uma quantidade de material anedótico, histórico,
psicológico, erótico e outro sobre o assunto; sobre cada
acontecimento da atualidade derramava-se uma torrente de frases
diligentes, e a apresentação, a triagem e a formulação de todas
essas informações trazia inconfundivelmente a marca do feito à
pressa e irresponsável do fabrico em série. Por outro lado, ao que
parece, constituíam também o folhetim certos jogos a que os
leitores eram incitados e através dos quais era ativada a sua
saturação de conhecimentos, de que nos fala Ziegenhalß sobre o
extraordinário tema das «palavras cruzadas». Nesse tempo milhares
e milhares de pessoas, na sua maioria forçadas a um trabalho
pesado e a uma vida difícil, debruçavam-se, nos seus tempos livres,
sobre quadrados e cruzes compostos por letras, cujos espaços vazios
preenchiam segundo determinadas regras. Guardemo-nos de ver
apenas o aspeto ridículo ou absurdo deste jogo e de fazer troça.
Essas pessoas, com as suas charadas infantis e os seus exercícios
culturais, não eram de modo nenhum crianças inofensivas ou feácios
brincalhões; pelo contrário, viviam cheias de angústia, no meio das
fermentações e dos sismos da política, da economia e da moral,
conheceram um sem-número de guerras e guerras civis horríveis e
os seus joguinhos educativos não eram meramente encantadoras
infantilidades desprovidas de sentido, mas correspondiam antes a
uma necessidade profunda de fechar os olhos e fugir aos problemas
não resolvidos e a um pressentimento angustiante de decadência,
refugiando-se num mundo irreal o mais inofensivo possível.
Aprendiam com aplicação a conduzir automóveis, a jogar difíceis
jogos de cartas e dedicavam-se sonhadoramente à resolução de
problemas de palavras cruzadas – pois estavam quase indefesas
perante a morte, o medo, a dor, a fome, já não encontravam consolo
nas igrejas, nem conselho no espírito. Eles, que liam tantos artigos e
ouviam tantas conferências, não se concediam nem o tempo nem o
esforço de se fortalecerem contra o medo, de combaterem neles
mesmos o medo da morte, viviam a tremer e não acreditavam em
amanhã nenhum.
Realizavam-se também conferências e devemos falar também
brevemente desta espécie, algo distinta, de folhetins. Além dos
artigos, era imposto, tanto por especialistas como por aventureiros
intelectuais, aos cidadãos desse tempo, ainda muito apegados ao
conceito de cultura mas desprovido do seu antigo significado, um
grande número de conferências, que não tinham só o significado de
discursos solenes proferidos em ocasiões especiais, mas eram
também objeto da concorrência mais selvagem e em quantidades
quase inconcebíveis. O habitante duma cidade de tamanho médio ou
a sua mulher podiam ouvir, mais ou menos uma vez por semana
(nas grandes cidades, quase todas as noites), conferências em que
os instruíam teoricamente sobre qualquer tema – sobre obras de
arte, poetas, sábios, investigadores, viagens –, conferências essas
onde o ouvinte permanecia puramente passivo e que pressupunham
tacitamente uma relação qualquer do ouvinte com o conteúdo, uma
formação anterior e uma certa preparação e recetividade, o que na
maior parte dos casos não era satisfeito. Havia conferências
divertidas, apaixonadas ou espirituosas, por exemplo sobre Goethe,
nas quais ele, de fraque azul, descia da diligência e seduzia
raparigas em Estrasburgo ou Wetzlar, ou sobre a cultura árabe, nas
quais se chocalhavam, como dados num copo, uma quantidade de
expressões intelectuais em voga; toda a gente ficava contente
quando reconhecia, melhor ou pior, uma delas. Ouviam-se
conferências sobre poetas cujas obras nunca ninguém lera ou tivera
intenção de ler, assistia-se, ainda por cima, a projeções de
reproduções; e tal como nos folhetins dos jornais, as pessoas
debatiam-se no meio dum dilúvio de valores culturais e
conhecimentos fragmentários, isolados e privados de sentido. Em
resumo, estava-se já perante aquela medonha desvalorização do
verbo que, ao princípio muito clandestinamente e nos círculos mais
restritos, provocou aquele contramovimento heroico e ascético que
pouco depois surgiria, visível e poderoso, e foi o início duma nova
disciplina e duma nova dignidade do espírito.
A insegurança e a inautenticidade da vida intelectual dessa época,
que em muitos aspetos mostrava energia e grandeza, explicamo-la
nós, homens de hoje, como um sintoma do horror que se apoderou
do espírito quando, no fim duma época de triunfo e prosperidade
aparentes, ele se encontrou de repente face a face com o nada, com
uma grande necessidade material, com um período de tempestades
políticas e de guerras e, surgida da noite para o dia, uma
desconfiança em relação a si próprio, à sua própria força e
dignidade, ou mesmo até à sua própria existência. Neste período de
pressentimentos de decadência produziram-se no entanto ainda
muitas altas realizações intelectuais, entre as quais o início duma
ciência da música de que somos os herdeiros reconhecidos.
Mas por mais fácil que seja situar harmoniosamente e
judiciosamente na História universal quaisquer posições do passado,
o presente, seja ele qual for, é incapaz de situar-se a si mesmo, de
modo que, com o abaixamento até a um nível modestíssimo das
exigências e das realizações intelectuais, grassaram nessa época
uma insegurança e um desespero terríveis, precisamente entre os
intelectuais. De facto, acabava-se de descobrir (uma descoberta já
pressentida aqui e ali desde Nietzsche) que, com o fim da juventude
e do período criador da nossa cultura, esta entrava na velhice e no
crepúsculo e, com esta realidade por todos sentida e que muitos
formulavam energicamente, esclareciam-se todos aqueles sinais
angustiantes da época: a sinistra mecanização da vida, o profundo
abaixamento da moral, a falta de fé dos povos, a falta de
autenticidade da arte. Como naquele maravilhoso conto chinês, a
«música da decadência» tinha-se feito ouvir, ressoava já há décadas
como o baixo prolongado dum órgão, corria como corrupção nas
escolas, nas revistas, nas academias, como melancolia e neurastenia
na maioria dos artistas e dos críticos do seu tempo que ainda
mereciam ser levados a sério, para amainar em excessos selvagens
e diletantes em todas as artes. Perante este inimigo infiltrado e já
impossível de desalojar havia diferentes atitudes. Podia-se
reconhecer em silêncio a amarga verdade e suportá-la estoicamente,
que era o que faziam muitos dos melhores. Podia-se tentar afastá-la
com mentiras e a isso davam os arautos literários da doutrina da
decadência da cultura muitos flancos fáceis; além disso, quem
terçava armas contra esses profetas ameaçadores, encontrava
influência e crédito junto do cidadão, pois que a cultura, que ele
ontem ainda acreditava possuir e na qual tinha tanto orgulho,
estivesse morta, que a educação e a arte, que tão cara lhe eram, já
não fossem a verdadeira educação e a verdadeira arte, isso parecia-
lhe não menos impertinente e insuportável do que as repentinas
inflações monetárias e as revoluções que ameaçavam os seus
capitais. Contra o grande clima de decadência havia também a
atitude cínica, ia-se dançar e qualificava-se a preocupação com o
futuro como uma estupidez dos antigos; cantavam-se expressivos
folhetins sobre o fim próximo da arte, da ciência, da língua; no
mundo do folhetim, esse mundo de papel que o próprio homem
construíra, observava-se com uma certa volúpia de suicida uma
desmoralização total do espírito, uma inflação das ideias; adotava-se
uma pose de calma cínica ou de entusiasmo de bacante, como se se
assistisse não somente ao desmoronar da arte, do espírito, dos
costumes, da probidade, mas também ao da Europa e do «mundo».
Entre os bons reinava um pessimismo sombrio e taciturno e entre os
maus um pessimismo raivoso, e seria necessário haver
primeiramente uma demolição dos remanescentes do passado e
uma certa reformulação da ordem do mundo e da moral por meio da
política e da guerra antes que a cultura fosse capaz duma verdadeira
reflexão sobre si própria e duma nova ordem.
Entretanto, durante estas décadas de decadência, a cultura não
estivera a dormir. Antes pelo contrário, no momento preciso em que
declinava e em que nos artistas, nos professores e nos folhetinistas
parecia renunciar a ela mesma, atingia na consciência de alguns
indivíduos um extremo grau de vigilância e de autocrítica. No
período de esplendor do folhetim tinha já havido, por todo o lado,
pequenos grupos isolados, decididos a permanecer fiéis ao espírito e
a usar de todas as suas forças, para salvar e conservar um núcleo de
boas tradições, de disciplina, de método e de consciência intelectual.
Na medida em que hoje temos conhecimento desses movimentos,
parece que o processo de autocrítica, de reflexão e de resistência
consciente à decadência se desenvolveu principalmente em dois
grupos. A consciência cultural dos intelectuais refugiou-se nas
pesquisas e nos métodos de ensino da história da música, pois esta
ciência atingia então o seu apogeu e, no mundo do folhetim, dois
institutos que se tornaram célebres afinavam um método de trabalho
duma correção e dum escrúpulo exemplares. E, como se o destino
quisesse fazer um sinal de consolo aos esforços desta coorte
minúscula de homens corajosos, produziu-se no momento mais
sombrio desses tempos um milagre propício, um acaso em si
mesmo, mas que teve a força duma confirmação divina: a
redescoberta dos onze manuscritos de Johann Sebastian Bach entre
os bens deixados pelo seu filho Friedemann! Um segundo foco de
resistência contra a degenerescência era a Liga dos Peregrinos do
Oriente, cujos irmãos praticavam uma disciplina mais da alma do
que do intelecto, um culto da religiosidade e do respeito – foi daqui
que a nossa forma atual do culto do espírito e do Jogo das Contas
de Vidro recebeu importantes impulsos, nomeadamente para a via
da contemplação. Os Peregrinos do Oriente deram igualmente a sua
contribuição às nossas conceções da cultura e suas possibilidades de
sobrevivência, não tanto através dos seus trabalhos científico-
analíticos do que através da sua faculdade, devida a práticas ocultas
antigas, de viajarem, por magia, até épocas e civilizações recuadas.
Havia entre eles, por exemplo, músicos e cantores sobre os quais se
garante que possuíam a capacidade de interpretar, com toda a
precisão, peças musicais de épocas antigas em toda a sua pureza
original, por exemplo, tocar e cantar uma melodia de 1600 ou 1650
exatamente como se todos os modos, aperfeiçoamentos e
virtuosismos posteriores ainda fossem desconhecidos. Isto, num
tempo em que a procura da dinâmica e da gradação dominava a
música e em que a execução e a «interpretação» do maestro quase
faziam esquecer a própria música, era quase inaudito; conta-se que
parte dos ouvintes não compreendia absolutamente nada, mas que
outros se puseram a escutar e julgavam ouvir música pela primeira
vez nas suas vidas quando uma orquestra dos Peregrinos do Oriente
tocou em público pela primeira vez uma suite anterior a Haendel
absolutamente sem crescendos nem diminuendos, com a
ingenuidade e o pudor dum outro tempo e dum outro mundo. Um
membro da Liga construiu no salão da Liga, entre Bremgarten e
Morbio, um órgão de Bach tão perfeito como se o próprio Johann
Sebastian Bach o tivesse mandado construir se possuísse os meios e
possibilidade para isso. O construtor do órgão, de acordo com uma
regra já então em vigor na Liga, ocultou o seu nome e adotou o de
Silbermann, como o seu predecessor do século XVIII.
Aproximámo-nos, deste modo, das fontes donde nasceu a nossa
conceção atual de cultura. Uma das mais importantes foi a mais
nova das ciências, a História da Música e a Estética Musical; logo
seguida, pouco depois, por um desenvolvimento frutuoso da
Matemática; sobre isto caiu uma gota de óleo da sabedoria dos
Peregrinos do Oriente e, na mais íntima relação com a nova
conceção e a nova interpretação da música, a corajosa tomada de
posição, tão serena quanto resignada, sobre o problema do tempo
de vida das culturas. Seria vão alongarmo-nos aqui, estas coisas são
do conhecimento geral. O resultado mais importante desta nova
atitude, ou melhor, desta nova integração no processo cultural, foi
uma renúncia muito generalizada à produção de obras de arte, o
afastamento generalizado dos intelectuais em relação ao século e,
não menos importante e a flor deste conjunto: o Jogo das Contas de
Vidro.
Sobre os começos do Jogo exerceu a maior influência o
aprofundamento da Musicologia iniciado já logo a seguir a 1900,
quando ainda o folhetim estava no seu maior esplendor. Nós, os
herdeiros desta ciência, acreditamos que conhecemos melhor e, em
certo sentido, que compreendemos melhor a música dos grandes
séculos criadores, e em particular a dos séculos XVII e XVIII, do que o
fizeram todas as épocas anteriores (inclusive a da própria música
clássica). Naturalmente, nós, vindouros, temos com a música
clássica uma relação completamente diferente da dos homens das
épocas criadoras; o nosso respeito pela verdadeira música,
espiritualizado e nem sempre isento duma melancolia resignada, é
algo completamente diferente da graça ingénua e da alegria de fazer
música dessas épocas, que estamos prontos a invejar e a julgar mais
felizes, sempre que precisamente essa sua música nos faz esquecer
as circunstâncias e o destino que presidiram ao seu nascimento. Há
gerações que deixámos de considerar, como ainda quase todo o
século XX o fez, a Filosofia ou mesmo até a Poesia, como as maiores
realizações vivas do período da cultura que se situa entre o fim da
Idade Média e o nosso tempo, para, no seu lugar, considerarmos
como tal a Matemática e a Música. Desde que renunciámos – em
termos muito gerais, pelo menos – a rivalizar com essas gerações no
domínio da criação, desde que renunciámos ao culto do primado da
harmonia e da dinâmica puramente sensual na maneira de fazer
música, o qual mais ou menos desde Beethoven e dos primeiros
românticos e durante dois séculos dominou a prática musical,
julgamos ter – à nossa maneira, evidentemente, à nossa maneira
estéril, epígona mas respeitosa! – uma visão mais pura e mais exata
da imagem dessa cultura de que somos os herdeiros. Já não
possuímos nada do prazer excessivo de criar dessas épocas e para
nós é quase um espetáculo incompreensível ver como, no século XV
e no século XVI, os estilos musicais se puderam conservar durante
tanto tempo e com uma pureza inalterada, como na massa
gigantesca de música então escrita não se encontra nada de mau, e
como ainda o século XVIII, século onde começa a degenerescência,
produz um fogo de artifício de estilos, modos e escolas de vida
efémera, brilhante, consciente de si mesma – mas nós acreditamos
no que hoje designamos por música clássica, julgamos ter
compreendido o segredo, o espírito, a virtude e a religiosidade
dessas gerações e julgamos tê-los tomado como modelos. Hoje, por
exemplo, damos pouco ou nenhum valor à teologia e à cultura
eclesiástica do século XVIII ou à filosofia da época das Luzes, mas
vemos nas cantatas, nas paixões e nos prelúdios de Bach a máxima
sublimação da cultura cristã.
De resto, a relação da nossa cultura com a música tem ainda mais
outro modelo antiquíssimo e infinitamente digno de respeito, que o
Jogo das Contas de Vidro tem em alta veneração. Na China lendária
dos «antigos reis», não o esqueçamos, concedia-se à música um
papel determinante na vida do Estado e da corte; identificava-se
diretamente a riqueza da música com a da cultura e da moral, ou
até com a do Império, e os mestres de música tinham de velar
estritamente pela preservação e pela pureza das «tonalidades
antigas». O declínio da música era um sinal seguro da queda do
príncipe e do Estado. E os poetas contavam histórias terríveis sobre
as tonalidades proibidas, diabólicas e estranhas ao Céu, por exemplo
a tonalidade Tsing Chang e Tsing Tse, a «música da queda», que,
quando foi entoada criminosamente no castelo do rei,
imediatamente o céu se obscureceu, as muralhas tremeram e
desmoronaram-se e o trono e o Império caíram. Em vez de muitas
outras palavras dos chineses antigos citamos algumas passagens do
capítulo consagrado à música por Liu Bu We em Primavera e
Outono:
«As origens da música são muito remotas. A música nasce da
medida e tem as suas raízes no grande Um. O grande Um engendra
os dois polos; os dois polos engendram a força da treva e da luz.
«Quando o mundo está em paz, quando todas as coisas estão em
repouso e seguem as suas superiores nas suas metamorfoses, então
pode-se fazer bem música. Quando os desejos e as paixões não vão
por falsos caminhos, então pode aperfeiçoar-se a música. A música
perfeita tem a sua causa. Nasce do equilíbrio. O equilíbrio nasce do
que é justo, o que é justo nasce do sentido do mundo. Por isso só se
pode falar de música com um homem que compreendeu o sentido
do mundo.
«A música repousa sobre a harmonia entre o Céu e a Terra, sobre
a conformidade entre o que é obscuro e a luz.
«Os Estados decadentes e os homens maduros para a queda não
passam, sem dúvida, sem música, mas a sua música não é serena.
Por conseguinte: quanto mais ruidosa for a música, mais
melancólicos se tornam os homens, mais o país periga, mais fundo
cai o príncipe. Desta maneira também a essência da música se
perde.
«O que todos os príncipes sagrados apreciavam na música era a
sua serenidade. Os tiranos Chieh e Chu Sin faziam música ruidosa.
Achavam que as sonoridades fortes eram belas e os efeitos massivos
interessantes. Ambicionavam efeitos sonoros novos e raros, sons
que homem algum jamais tivesse ouvido; tentavam ultrapassar-se
um ao outro e excederam toda a medida e propósito.
«A causa da queda do Estado Chu foi terem inventado a música
mágica. Bastante ruído faz ela com efeito, mas na verdade afasta-se
da essência da música. E porque se afastou da assência da música,
falta-lhe serenidade. Não sendo serena a música, o povo murmura e
a vida deperece. Tudo isto decorre de se desprezar a essência da
música e de se pretender apenas efeitos sonoros.
«Por isso a música duma época harmoniosa é calma e serena e o
governo equilibrado. A música duma época inquieta é agitada e
furiosa e o seu governo está voltado do avesso. A música dum
Estado decadente é sentimental e triste e o seu governo corre
perigo.»
As frases deste chinês apontam com bastante clareza para as
origens e o sentido próprio, quase perdido, de toda a música. Tal
como a dança e qualquer outra prática artística, a música foi de
facto em épocas pré-históricas um instrumento de magia, um dos
antigos e legítimos instrumentos da magia. Começando com o ritmo
(batimento de palmas, batimento dos pés no chão, entrechocar de
pauzinhos, a arte primitiva do tambor), foi um meio poderoso e
provado de «afinar» uma pluralidade, uma multidão de homens, de
pôr em concordância a sua respiração, o seu coração e os seus
sentimentos, de instigar os homens à invocação e à conjuração das
potências eternas, à dança, à luta, à senda da guerra, aos atos
sagrados. E esta essência original, pura, de poder primitivo, a
essência dum encantamento, a música conservou-se durante muito
mais tempo do que as outras artes, lembremo-nos apenas das
afirmações dos cronistas e dos poetas sobre a música, desde os
gregos até à Novelle de Goethe. Na prática, a marcha e a dança
nunca perderam o seu significado. Mas voltemos ao nosso
verdadeiro assunto!
Referiremos agora brevemente o que é essencial conhecer sobre
as origens do Jogo das Contas de Vidro. Nasceu, ao que parece,
simultaneamente na Alemanha e na Inglaterra, e nestes dois países,
sob a forma de divertimento, dum jogo, naqueles pequenos círculos
de músicos e musicólogos que trabalhavam e estudavam nos novos
institutos de teoria musical. E se compararmos o estado primitivo do
Jogo com os estados seguintes e o atual, é o mesmo que
compararmos um texto musical anterior a 1500 e a sua notação
primitiva, ainda sem barras a dividir os compassos, com uma
partitura do século XVIII ou até do século XIX, com a sua profusão
enlouquecedora de designações abreviadas de dinâmica, compasso,
fraseados, etc., que com frequência tornavam a impressão dessas
partituras num difícil problema técnico.
Ao princípio o Jogo não era mais do que uma espécie de exercício
engraçado de memória e de combinações praticado entre estudantes
e músicos, e, como dissemos, era jogado tanto na Inglaterra como
na Alemanha, antes mesmo de ter sido oficialmente «inventado» na
Escola Superior de Música de Colónia e recebido o nome que ainda
hoje tem, passadas tantas gerações, embora há já muito tempo
nada tenha a ver com contas de vidro. Destas contas de vidro
servia-se o seu inventor, Bastian Perrot de Calw, um teórico da arte
musical um tanto original mas inteligente e de trato agradável, em
vez de letras, números, notas de música ou outros sinais gráficos.
Perrot, que além disso nos deixou um tratado sobre O Apogeu e a
Queda do Contraponto, encontrou no Instituto de Colónia um hábito
do jogo já bastante desenvolvido entre os alunos: eles gritavam uns
para os outros, nas fórmulas abreviadas que tinham aprendido, os
seus motivos preferidos ou o começo de composições clássicas a
que o interpelado devia responder com o desenvolvimento da peça
ou, melhor ainda, com uma voz superior ou inferior, com um tema
contrastante, e assim por diante. Era um exercício de memória e
improvisação, muito semelhante (se não teoricamente nas fórmulas,
pelo menos na prática, ao cravo com acompanhamento de alaúde,
flauta ou voz) aos que possivelmente estiveram em voga outrora, no
tempo de Schütz, Pachelbel e Bach, entre os alunos aplicados de
música e contraponto. Bastian Perrot, um apaixonado pelas
atividades oficinais, que construíra com as próprias mãos diversos
pianos e clavicórdios à moda antiga, que muito possivelmente
pertenceu aos Peregrinos do Oriente e sobre quem corre a lenda de
que sabia tocar violino à maneira antiga, esquecida já em 1800, com
o arco fortemente curvo e as crinas reguladas à mão – Perrot
construiu, segundo o modelo dos ábacos simples para as crianças,
um quadro com algumas dúzias de fios metálicos nos quais se
podiam enfiar contas de vidro de diferentes tamanhos, formas e
cores. Os fios correspondiam às linhas da pauta e assim
sucessivamente, e deste modo, com contas de vidro, compunha
citações musicais ou temas da sua invenção, modificava-os,
transpunha-os, desenvolvia-os, variava-os ou opunha-lhes outros. No
que respeita à técnica, tratava-se apenas duma mera brincadeira,
porém os alunos gostaram, foi imitado e tornou-se moda, também
em Inglaterra, e durante algum tempo praticaram-se exercícios
musicais com este divertimento ingénuo e encantador. E, como
muitas vezes acontece, também neste caso uma instituição
duradoura e importante recebeu o seu nome dum acidente
passageiro. Aquilo que mais tarde derivou daquele brinquedo de
estudantes e dos fios de vidrilhos de Perrot, tem ainda hoje o seu
nome popular de Jogo das Contas de Vidro.
Duas ou três décadas mais tarde o Jogo parece ter perdido o favor
dos estudantes de música, mas, em contrapartida, ter sido adotado
pelos matemáticos e, durante muito tempo, um dos traços
característicos da história do Jogo foi o de ser sempre preferido,
utilizado e aperfeiçoado por aquela ciência que estivesse a passar
por uma pujança especial ou um renascimento. Com os matemáticos
o Jogo atingiu uma grande agilidade e um elevado poder de
abstração e adquiriu já algo como que uma consciência de si e das
suas possibilidades, o que acontecia em paralelo com o
desenvolvimento geral da consciência da cultura de então, a qual
tinha vencido a grande crise e, tal como expresso por Plinius
Ziegenhalß, «se encontrava, com modesto orgulho, no papel duma
cultura tardia e numa situação algo análoga à era helenístico-
alexandrina».
Esta a opinião de Ziegenhalß. Quanto a nós, esforçar-nos-emos
agora por terminar o nosso resumo da história do Jogo das Contas
de Vidro observando o seguinte: tendo passado dos institutos
musicais para os institutos matemáticos (uma passagem que se
processou na verdade ainda mais rapidamente na França e na
Inglaterra do que na Alemanha), o Jogo desenvolveu-se tão
amplamente que permitia formular processos matemáticos por meio
de símbolos e abreviaturas matemáticas especiais; os jogadores
propunham-se mutuamente essas fórmulas abstratas, desenvolviam-
nas, contrapunham derivações em série e as possibilidades do seu
saber. Este jogo de fórmulas matemático-astronómicas exigia uma
grande atenção, vigilância e concentração; nos meios matemáticos a
fama de bom jogador de Contas de Vidro tinha, já nessa altura,
muito valor e equivalia à de excelente matemático.
O Jogo foi adotado em épocas diferentes por quase todas as
ciências e imitado, isto é, cada uma aplicou-o ao seu próprio
domínio, como se pode confirmar nos domínios da Filologia Clássica
e da Lógica. O estudo analítico das obras musicais tinha conduzido a
condensar sequências musicais em fórmulas físico-matemáticas.
Pouco depois a Filologia começou a trabalhar com este método e a
medir as formas linguísticas da mesma maneira que a Física media
os fenómenos naturais; veio juntar-se-lhe a investigação das artes
plásticas, sendo que, no respeitante à Arquitetura, a referência à
Matemática datava já de há muito. E agora descobriam-se
constantemente novas relações, novas analogias e novas
correspondências entre as fórmulas abstratas assim obtidas. Cada
ciência que se apoderou do Jogo criou para as suas necessidades
uma linguagem de fórmulas, abreviaturas e possibilidades de
combinações e, entre a elite da juventude intelectual, em todo o
lado, eram apreciados os jogos de séries e diálogos de fórmulas. O
Jogo não era meramente um exercício ou uma distração, mas antes
a vivência consciente e concentrada de disciplina intelectual, em
particular entre os matemáticos, que o praticavam com um rigor
formal e um virtuosismo ao mesmo tempo ascético e desportivo e
encontravam nele um prazer que os ajudava a tornar mais leve a
renúncia, já então consequentemente assumida, dos intelectuais aos
prazeres e ambições do mundo. Foi enorme a contribuição do Jogo
das Contas de Vidro para a vitória sobre o folhetim e para o novo
despertar do gosto pelas especulações mais exatas, a que devemos
o nascimento duma nova disciplina espiritual dotada dum vigor
monacal. O mundo tinha mudado. Poder-se-ia comparar a vida
espiritual da Idade do Folhetim a uma planta degenerada que se
perde em excrescências hipertróficas, e as correções subsequentes a
uma poda total da planta até às raízes. Os jovens que queriam agora
dedicar-se ao estudo das ciências do espírito já não entendiam por
tal um tempo passado a mascar papel nas universidades onde lhes
eram servidos os restos duma cultura superior doutras eras por
professores famosos, de verbo fácil e sem autoridade: agora tinham
de aprender com tanto ou mais zelo e método, como outrora os
engenheiros nas escolas politécnicas. Tinham um caminho íngreme a
percorrer, tinham de depurar e fortificar a sua capacidade de
raciocínio com a Matemática e com exercícios escolástico-
aristotélicos e, além disso, tinham de aprender a renunciar
completamente a todos os bens que anteriormente toda uma série
de gerações de intelectuais considerava como desejáveis: à fortuna
rápida e fácil, à fama e às honras públicas, ao elogio dos jornais, ao
casamento com as filhas dos banqueiros e dos industriais, ao
conforto e ao luxo. Os escritores de grandes tiragens, Prémios Nobel
e lindas casas de campo, os grandes médicos com condecoração e
criados de libré, os professores de esposa rica e salões
resplandecentes, os químicos com assento nos conselhos de
administração da indústria, os filósofos das fábricas de folhetins e
conferências para salas à cunha com aplauso e ramo de flores –
todas essas figuras tinham desaparecido e não voltaram a aparecer
até hoje. Certamente, ainda havia muitos jovens dotados para quem
essas figuras eram modelos invejáveis, mas o acesso às honrarias, à
riqueza, à fama e ao luxo já não passavam pelos anfiteatros, pelos
institutos e pelas teses de doutoramento; as profissões intelectuais,
profundamente desvalorizadas, tinham entrado em bancarrota aos
olhos do mundo e, em compensação, voltado a ganhar uma entrega
fanática e penitente pelas coisas do espírito. Os talentos atraídos
mais pelo brilho e o desafogo material deveriam voltar as costas ao
espírito caído em desgraça e procurar aquelas profissões a que
estavam reservadas a prosperidade e o dinheiro.
Descrever pormenorizadamente de que modo o espírito, depois de
se ter purificado, se impôs igualmente no Estado, levar-nos-ia longe.
Não demorou a verificar-se que tinham bastado algumas gerações
dotadas duma disciplina intelectual frouxa e sem princípios para
causar sérios danos, inclusivamente à vida prática, que a capacidade
e a responsabilidade em todas as profissões superiores, incluindo
nas técnicas, se tornaram cada vez mais raras e desse modo a
cultura do espírito pelo Estado e pelo povo, em particular todo o
sistema de ensino, caiu cada vez mais no monopólio dos intelectuais,
tal como ainda hoje, em quase todos os países da Europa, a escola,
na medida em que não permaneceu sob o controlo da Igreja
Romana, está nas mãos dessas ordens anónimas que se recrutam
entre a elite dos intelectuais. Por mais incómodas que às vezes
sejam para a opinião pública a severidade e a pretensa soberba
desta casta, por mais frequentes que tenham sido as revoltas
individuais contra ela, esta direção continua, apesar de tudo,
inabalada, aguenta-se e protegem-na não só a sua integridade, a
sua renúncia a outros bens e a outras vantagens que não as do
espírito, como também a protege o conhecimento ou o
pressentimento há muito generalizado de que esta escola de
severidade é necessária à manutenção da civilização. Sabe-se, ou
pressente-se que, se o pensamento não for vigilante e o respeito
pelo espírito não tiver valor, então os navios e os automóveis não
tardam a andar aos ziguezagues, perdem todo o valor e autoridade
a régua de cálculo do engenheiro mas também a matemática dos
bancos ou da bolsa, é o caos. Contudo, foi preciso muito tempo até
se reconhecer que os aspetos exteriores da civilização, a técnica, a
indústria, o comércio, etc., necessitavam, também eles, da base
comum duma moral e probidade intelectuais.
O que, nessa época, ainda faltava ao Jogo das Contas de Vidro era
a aptidão à universalidade, o predomínio sobre as faculdades. Os
astrónomos, os helenistas, os latinistas, os escolásticos, os
estudantes de música praticavam os seus jogos engenhosamente
regulados, mas cada faculdade, cada disciplina e suas ramificações
possuíam a sua linguagem própria e regras particulares do Jogo. Foi
preciso meio século para se dar o primeiro passo que abrisse estas
fronteiras. A causa desta lentidão foi sem dúvida mais de ordem
moral do que formal e técnica: os meios necessários a essa abertura
seriam já possíveis, mas com toda a moral estrita desta nova
intelectualidade contendia um horror puritano pela «allotria»3, pela
confusão de disciplinas e categorias, um profundo e perfeitamente
justificado horror a uma recaída no pecado da facilidade e do
folhetim.
Foi a ação de um indivíduo que levou o Jogo das Contas de Vidro
a ganhar consciência, quase duma vez só, das suas possibilidades e
assim atingir o limiar do seu desenvolvimento universal, e mais uma
vez foi a sua ligação com a música que fez dar ao Jogo este passo
em frente. Um erudito suíço da arte musical e ao mesmo tempo
amante fanático da Matemática imprimiu ao Jogo uma nova direção,
e desse modo a possibilidade de atingir o seu desenvolvimento
máximo. O nome civil deste grande homem é já impossível de
determinar, a sua época já não conhecia o culto da pessoa no
domínio do espírito. Na História continua a viver como Lusor (ou
Joculator) Basiliensis. A sua invenção, como todas as invenções,
deveu-se certa e inteiramente ao trabalho e ao talento da sua
pessoa, porém não era de modo nenhum apenas fruto de
necessidades e ambições pessoais, antes, o resultado dum móbil
mais poderoso. Entre os intelectuais do seu tempo era vivo em todo
o lado o desejo apaixonado de poder dispor dum meio de exprimir
os novos conteúdos do pensamento, ansiava-se por uma filosofia,
por uma síntese, a felicidade até aí sentida no recolhimento de cada
um na sua disciplina era insuficiente, aqui e ali um sábio forçava as
barreiras da sua especialidade e tentava penetrar no geral, sonhava-
se com um novo alfabeto, com uma nova linguagem simbólica na
qual fosse possível registar e permutar as novas experiências do
espírito. Testemunho disso dá-o o penetrante artigo dum erudito
parisiense com o título «Exortação Chinesa». O autor deste artigo,
ridicularizado por muitos dos seus contemporâneos como uma
espécie de D. Quixote, mas apesar disso sábio conceituado no seu
ramo, a Filologia chinesa, explica a que perigos a ciência e toda a
vida intelectual, apesar da dignidade da sua atitude, se exporiam se
renunciassem a criar uma linguagem simbólica internacional que
permitisse, à semelhança da escrita chinesa antiga, exprimir
graficamente e duma maneira inteligível por todos os sábios do
mundo as coisas mais complicadas, sem exclusão da fantasia
pessoal e do poder de invenção. Ora o passo mais importante para a
realização desta exigência foi o Joculator Basiliensis quem o deu.
Inventou para o Jogo das Contas de Vidro os fundamentos duma
nova linguagem, duma linguagem de símbolos e fórmulas, onde a
Matemática e a Música entravam em partes iguais, na qual se tornou
possível ligar fórmulas astronómicas com fórmulas musicais, ou seja,
reduzir a um mesmo denominador comum a Matemática e a Música.
Ainda que desta maneira o desenvolvimento de modo nenhum
estivesse concluído, as bases de toda a história ulterior do nosso
querido Jogo foram assentes por este desconhecido de Basileia.
O Jogo das Contas de Vidro, outrora distração particular quer de
matemáticos, quer de filólogos ou músicos, atraía agora cada vez
mais fortemente todos os intelectuais dignos desse nome. Muitas
academias antigas, muitas lojas e em particular a antiquíssima Liga
dos Peregrinos do Oriente voltaram-se para ele. Algumas ordens
católicas sentiram também aqui uma aragem espiritual nova e
deixaram-se encantar por ele, nomeadamente em algumas abadias
beneditinas, onde a adesão ao Jogo foi tão grande que, já nessa
época, como de modo intermitente mais tarde, era uma questão
aguda saber-se realmente se a Igreja e a Cúria deviam tolerar,
recomendar ou proibir este Jogo.
Depois do feito memorável do basiliense, o Jogo desenvolveu-se
com rapidez e completamente até ser o que é hoje: súmula do
espírito e das artes, culto sublime, Unio Mystica de todos os
membros separados da Universitas Litterarum. Assumiu na nossa
vida em parte o papel da arte, em parte o da filosofia especulativa, e
por exemplo no tempo de Plinius Ziegenhalß, não era raro que o
designassem com uma expressão que data ainda dos escritos da
Idade do Folhetim e que para essa época significava a meta ansiada
por muitos espíritos proféticos: Teatro Mágico.
Embora desde os seus começos a técnica e a amplitude das
matérias do Jogo das Contas de Vidro se tenham desenvolvido até
ao infinito e, no que se refere às exigências feitas aos jogadores, se
tenha tornado duma arte e duma ciência superiores, faltava-lhe, no
entanto, no tempo do basiliense, um elemento essencial. Até aí, de
facto, o Jogo consistira em pôr lado a lado, ordenar, agrupar e opor
representações concentradas de ideias provenientes de diversos
domínios do pensamento e do belo, na evocação pronta de valores e
formas intemporais, no voo rápido e virtuosístico através do reino do
espírito. Só sensivelmente mais tarde é que o conceito de
contemplação saiu gradualmente do inventário intelectual do mundo
do ensino e nomeadamente dos usos e costumes dos Peregrinos de
Oriente e entrou no Jogo. Tinha-se tornado notado o facto
deplorável de que os possuidores duma memória excecional mas
sem outras virtudes eram capazes de disputar partidas
deslumbrantes, com virtuosismo, e confundir e enganar os
participantes com a sucessão vertiginosa das ideias que
apresentavam. Este virtuosismo foi alvo, aos poucos, de rigorosa
proibição e a contemplação passou a ser um elemento muito
importante do Jogo, tornando-se, para os espectadores e os
ouvintes, o essencial. A viragem para o religioso deu-se aqui. Deixou
de ser importante seguir unicamente com o intelecto, com uma
atenção ágil e uma memória experiente, a sequência das ideias e
todo o mosaico intelectual duma partida e passou a exigir-se uma
entrega anímica mais profunda. Ou seja, depois de cada símbolo ser
evocado pelo Diretor do Jogo, os jogadores meditavam arduamente,
em silêncio, no símbolo, na sua substância, na sua origem, no seu
significado, forçando-se a apreendê-lo intensiva e organicamente. A
técnica e a prática da contemplação traziam-na consigo todos os
membros da Ordem e das federações de jogadores à saída das
escolas de elite, onde era dedicado um cuidado extremo à arte da
contemplação e da meditação, evitando-se desse modo que os
hieróglifos do Jogo degenerassem num mero alfabeto.
Além disso, apesar da popularidade que gozava entre os
intelectuais, o Jogo das Contas de Vidro tinha permanecido, até
então, um exercício puramente privado. Podia-se jogá-lo sozinho,
com um parceiro ou com vários, e certamente partidas havia, por
vezes, que, por serem particularmente elevadas, bem concebidas e
bem-sucedidas, eram referenciadas, conhecidas, admiradas ou
criticadas duma cidade para outra e dum país para outro. Mas o
Jogo só começou, lentamente, a enriquecer-se com uma nova
função quando passou a ser uma festa pública. Nos nossos dias
cada um ainda é livre de o praticar em privado e são em especial os
jovens que nele se exercitam desse modo. Contudo, com a
expressão «Jogo das Contas de Vidro» pensa-se em primeiro lugar
nos Jogos solenes e públicos. Estes realizam-se sob a direção dum
número reduzido de Mestres eminentes, são presididos em cada país
por um Magister Ludi ou Mestre do Jogo, com convidados a assistir
respeitosamente e a atenção interessada de ouvintes de todas as
partes do mundo; muitos destes Jogos duram dias e semanas e
durante a sua celebração os participantes e os assistentes vivem,
segundo regras precisas que se aplicam mesmo à duração do seu
sono, uma vida de abstinência e desprendimento, num recolhimento
absoluto, comparável à vida estritamente regrada de penitentes a
que estavam sujeitos os participantes dos exercícios de Santo
Inácio.
Pouco mais haveria a acrescentar. O Jogo dos jogos tinha-se
transformado, com a hegemonia alternada duma das artes ou das
ciências, numa espécie de linguagem universal, com a qual os
jogadores se tinham tornado capazes de exprimir e pôr em relação
valores por meio de símbolos ricos de significado. O Jogo esteve
sempre, em todos os tempos, em íntima relação com a música e
decorria geralmente segundo regras musicais ou matemáticas.
Estabeleciam-se um, dois, três temas, executavam-se os temas,
faziam-se variações sobre eles e submetiam-se a um tratamento
inteiramente semelhante ao tema duma fuga ou duma frase de
concerto. Uma partida podia, por exemplo, partir duma dada
configuração astronómica, ou do tema duma fuga de Bach, ou duma
frase de Leibniz ou dos Upanishads e, segundo a intenção ou o
talento do jogador, prosseguir e desenvolver a ideia condutora por
ela evocada ou enriquecer a expressão dessa mesma ideia com a
evocação de ideias próximas. Se o principiante era capaz de
estabelecer um paralelo, por meio dos símbolos do Jogo, entre uma
melodia clássica e a fórmula duma lei da Natureza, o conhecedor e o
mestre conduziam a partida desde o tema inicial até combinações
ilimitadas. Muito preferidas durante bastante tempo por uma certa
escola de jogadores foram especialmente a justaposição, a oposição
e finalmente a conciliação harmónica de dois temas ou ideias
inimigas, como por exemplo a lei e a liberdade, o indivíduo e a
comunidade, e era dado um valor imenso, numa partida destas, ao
desenvolvimento imparcial, com uma equidade absoluta, de ambos
os assuntos ou teses, à formulação no estilo mais puro possível
duma síntese a partir da tese e da antítese. Abstraindo das exceções
geniais, não eram absolutamente nada apreciadas as partidas com
desfecho negativo, ou cético, ou pouco harmonioso, tendo sido
proibidas por diversas vezes, o que tinha profundamente a ver com
o significado de que o Jogo, no seu apogeu, se tinha revestido para
os jogadores. O Jogo representava uma forma eminente, simbólica,
da busca da perfeição, uma alquimia sublime, uma aproximação ao
espírito que, para lá de todas as imagens e pluralidades, é Um em si
mesmo, ou seja, Deus. Assim como os pios pensadores de épocas
anteriores representavam por exemplo a vida, as criaturas, como um
caminhar para Deus e não viam a completude e o termo conceptual
da multiplicidade do mundo fenoménico senão na unidade divina,
também as figuras e as fórmulas do Jogo das Contas de Vidro
construíam, musicavam e filosofavam, numa linguagem universal
alimentada por todas as ciências e todas as artes, num jogo livre e
num anseio de perfeição, do ser puro, da realidade plena. «Realizar»
era um termo de que gostavam os jogadores, que sentiam a sua
atividade como um caminhar do devir para o ser, do possível para o
real. Seja-nos aqui permitido lembrar mais uma vez as frases de
Nicolau de Cusa acima citadas.
Aliás, as expressões da teologia cristã, na medida em que a sua
formulação era clássica e desse modo pareciam ser um elemento da
cultura geral, tinham sido naturalmente aceites na linguagem
simbólica do Jogo, e tal dogma da fé, ou o texto duma passagem da
Bíblia, uma frase dum patriarca da Igreja ou do missal latino podiam
ser expressos e introduzidos no Jogo tão facilmente e tão
exatamente como um axioma de geometria ou uma melodia de
Mozart. Pouco exageramos ao ousarmos dizer o seguinte: para o
diminuto círculo dos verdadeiros jogadores de Contas de Vidro o
Jogo era quase sinónimo de serviço divino, embora ele se abstivesse
de toda e qualquer teologia própria.
Na luta pela existência num mundo de potências alheias ao
espiritual, os jogadores de Contas de Vidro e a Igreja Romana
dependiam demasiado um do outro para poder haver uma decisão a
favor dum ou doutro, embora não faltassem ocasiões, pois nos dois
campos a probidade intelectual e uma tendência sincera a formular
as ideias claramente e sem ambiguidades propendiam para um
divórcio. Contudo, este nunca se consumou. Roma contentou-se em
manifestar em relação ao Jogo ora mais benevolência ora mais
reservas, já que nas congregações e no alto e altíssimo clero se
contavam muitos dos mais talentosos jogadores. E o próprio Jogo,
desde que existiam Jogos públicos e um Magister Ludi, estava sob a
proteção da Ordem e das autoridades do ensino, as quais
observavam em relação a Roma uma atitude de cortesia
perfeitamente cavalheiresca. O papa Pio XV, que ainda nos seus
tempos de cardeal fora um excelente e apaixonado jogador de
Contas de Vidro, quando se tornou papa, não só abandonou para
sempre o Jogo como os seus predecessores, como também tentou
fazer-lhe o processo; pouco faltou, nessa altura, para que o Jogo
fosse proibido aos católicos. Mas o papa morreu antes que tal
acontecesse e uma biografia deste homem não insignificante de
todo, muito divulgada, apresentou a sua atitude para com o Jogo
das Contas de Vidro como uma profunda paixão que ele, como papa,
só soube dominar tornando-se seu inimigo.
O Jogo, que anteriormente fora praticado livremente por
particulares e em associações de convívio, mas que no entanto
gozava havia muito da amigável proteção das autoridades do ensino,
conheceu a sua organização pública em França e na Inglaterra,
rapidamente seguidas pelos outros países. Em cada país foram
designados uma comissão e um diretor-geral do Jogo com o título de
Magister Ludi, e as partidas realizadas oficialmente sob a direção
pessoal do Magister foram elevadas a festividades espirituais. O
Magister conservava-se naturalmente anónimo, como todos os
funcionários superiores e dirigentes da cultura intelectual; fora o seu
círculo mais íntimo, ninguém o conhecia pelo seu nome. Só os
grandes Jogos oficiais, da responsabilidade do Magister Ludi,
dispunham dos meios oficiais e internacionais de difusão como a
rádio e outros. Além da direção dos Jogos públicos, fazia parte dos
deveres do Magister o fomento de jogadores e de escolas de
jogadores, tendo primeiramente o Magister que zelar de muito perto
pelo aperfeiçoamento do Jogo. Só a Comissão Mundial de todos os
países decidia da admissão (caso raríssimo atualmente) de novos
símbolos e fórmulas, do eventual alargamento das regras, da
oportunidade ou inutilidade de alargamento a novos domínios. Se
considerarmos o Jogo como uma espécie de linguagem mundial dos
intelectuais, o conjunto das comissões de Jogo dos países sob a
direção dos respetivos Magister constitui a academia que vela pela
conservação, desenvolvimento e pureza dessa linguagem. Cada
Comissão Nacional possui os Arquivos do Jogo, ou seja, todos os
símbolos e todas as chaves controladas e autorizadas até esse dia e
cujo número há muito ultrapassou de longe o dos antigos caracteres
chineses. Regra geral, é considerada como preparação suficiente
para se ser jogador de Contas de Vidro o exame final das escolas
superiores de estudos clássicos, especialmente das escolas de elite,
o que porém pressupunha e pressupõe ainda implicitamente o
domínio acima da média duma das ciências dominantes ou da
música. Vir a ser um dia membro da Comissão de Jogo ou até
mesmo Magister Ludi era o sonho de quase todos os adolescentes
de quinze anos das escolas de elite. Mas entre os candidatos ao
doutoramento já só restava um pequeno número que ainda persistia
seriamente na ambição de consagrar a sua atividade ao Jogo e ao
seu aperfeiçoamento. Para lá chegarem, todos estes amantes do
Jogo exercitavam-se assiduamente na ciência do Jogo e na
meditação e eram eles que nos «grandes» Jogos formavam aquele
círculo íntimo de participantes devotados e apaixonados que dão aos
Jogos públicos o seu carácter solene e os impede de degenerar em
atos meramente decorativos. Para estes verdadeiros jogadores, para
estes autênticos amadores, o Magister Ludi é um príncipe ou um
grande sacerdote, quase uma divindade.
Mas para o jogador independente, e evidentemente para o
Magister, o Jogo das Contas de Vidro é em primeiro lugar um
exercício musical, mais ou menos no sentido das palavras que uma
vez Josef Knecht disse sobre a essência da música clássica:
«Consideramos a música clássica como o produto e a súmula da
nossa cultura, pois é o seu gesto e a sua manifestação mais
evidente e mais verdadeira. Possuímos nessa música a herança da
Antiguidade e do cristianismo, um espírito de piedade serena e
corajosa, uma moral cavalheiresca inultrapassável. Pois uma moral
de última instância significa toda a manifestação clássica de cultura,
a condensação num gesto dum ideal do comportamento humano.
Entre 1500 e 1800 compôs-se certamente muito tipo de música, os
estilos e os meios de expressão eram os mais diversos, mas o
espírito, ou antes, a moral é a mesma em todo o lado. A atitude
humana expressa pela música é sempre a mesma, baseia-se sempre
no mesmo tipo de conhecimento da vida e luta pelo mesmo género
de domínio sobre o acaso. O gesto da música clássica significa:
conhecimento da tragédia da Humanidade, afirmação do destino
humano, coragem, serenidade! Quer seja a graça dum minuete de
Haendel ou de Couperin, quer a sensualidade sublimada num gesto
de ternura como em muitos italianos ou em Mozart, quer a calma e
serena aceitação da morte como em Bach, está sempre ali uma
resistência, uma coragem de morte, uma fidalguia, um coro de risos
sobre-humanos, uma alegria imortal. É isso que deve vibrar nos
nossos Jogos das Contas de Vidro e em toda a nossa vida, nos
nossos atos e nos nossos sofrimentos.»
Estas palavras foram recolhidas por um aluno de Knecht. Com elas
terminamos as nossas considerações sobre o Jogo.
1 Knecht quer dizer Servo, assim Josef Knecht é José Servo. Em notas de rodapé daremos, ao longo
da obra, a tradução de alguns nomes, sempre que tal se torne necessário ou o acharmos conveniente,
dados os aspetos alegóricos, parabólicos e, dum modo geral, apologéticos, da obra, tendo em vista
uma melhor leitura da mesma. (N. do T.)

2 Ziegenhalß: Pescoço-de-Cabra. Poder-se-ia traduzir, mais literariamente, por Colocaprino, Capricolo...


(N. do T.)

3 Allotria: vulgaridade. (N. do T.)


BIOGRAFIA
DO
MAGISTER LUDI JOSEF KNECHT
A VOCAÇÃO

Sobre as origens de Josef Knecht não se sabe nada. Tal como


muitos outros alunos das escolas de elite, ou perdeu cedo os pais ou
foi adotado pela administração do ensino e por ela subtraído a
condições desfavoráveis. Em qualquer dos casos foi-lhe poupado o
conflito entre a escola de elite e a casa paterna, que sobrecarregou
os anos da juventude de muitos como ele, dificultando-lhes a
entrada na Ordem, e que, em muitos casos, fez de jovens
extremamente dotados caracteres difíceis e cheios de problemas.
Knecht pertence aos felizes que parecem verdadeiramente nascidos
e predestinados para Castália, para a Ordem e para servirem no
ensino; e se bem que certamente os problemas da vida espiritual de
modo nenhum tenham dele permanecido desconhecidos, foi-lhe pelo
menos dado experimentar sem amargura pessoal a tragédia inerente
a todas as vidas votadas ao espírito. De resto, não foi tanto esta
tragédia que nos levou a dedicar à personalidade de Josef Knecht
este nosso pormenorizado estudo, mas antes mais o modo calmo,
alegre e até brilhante com que ele realizou o seu destino, o seu
talento, a sua missão. Como toda a pessoa de valor, ele tem o seu
daimonion e o seu amor fati, mas este mostra-se-nos livre de
sombras e fanatismo. Evidentemente não conhecemos o que nos
está escondido e não desejaríamos esquecer-nos de que escrever
História, mesmo quando feito de cabeça fria e com a melhor
predisposição à objetividade, é sempre literatura o que se faz e que
a terceira dimensão da literatura é a ficção. De modo nenhum
sabemos, para escolher grandes exemplos, se, entre outras coisas,
Johann Sebastian Bach ou Wolfgang Amadeus Mozart viveram as
suas vidas de ânimo leve ou pesado. Mozart tem, para nós, a graça
singularmente comovente e sedutora dos seres precoces, Bach
aquela resignação reconfortante e edificante perante o sofrimento e
a morte, nas quais ele vê a vontade dum Deus paternal, mas isto de
modo nenhum o lemos realmente nas suas biografias e nos factos
das suas vidas que chegaram até nós, antes o encontraremos na sua
obra, na sua música. Além disso, ao Bach cuja biografia conhecemos
e cujo retrato imaginamos pela sua música, acrescentamos ainda
involuntariamente o seu destino póstumo: nas nossas fantasias
pomo-lo de certo modo a saber, ainda em vida e com um sorriso
mudo, que toda a sua obra seria esquecida logo após a sua morte e
os seus manuscritos desapareceriam como papéis velhos, que um
dos seus próprios filhos haveria de ser, em vez dele, o «Grande
Bach» cheio de êxitos, que a sua obra, depois de ter sido arrancada
ao esquecimento, caiu no mar dos contrassensos e barbaridades da
Idade do Folhetim, etc. E igualmente tendemos a atribuir ao Mozart
vivo, no pleno e são florescimento do seu trabalho, ou a acrescentar
à sua lenda, a consciência de que estava nas mãos da morte e o
conhecimento antecipado dessa prisão onde a morte o manteve.
Quando existe uma obra, o historiador não pode fazer outra coisa
que não seja juntá-la à vida do seu criador, como as metades
inseparáveis duma mesma unidade viva. É o que fazemos com
Mozart ou Bach, e o que igualmente fazemos com Knecht, embora
este pertença à nossa época, por essência estéril, e não tenha
deixado uma «obra» no sentido em que o fizeram aqueles grandes
mestres.
A tentativa de escrevermos a vida de Knecht é também uma
tentativa de a interpretarmos, e ao sermos forçados a lamentar
profundamente, como historiador, a ausência quase total de
informações realmente controladas sobre a parte final da sua vida,
encontrámos coragem para a nossa empresa precisamente na
circunstância de esta parte final da vida de Knecht se ter tornado
lenda. Pegamos nesta lenda e estamos de acordo com ela, quer ela
seja ou não seja apenas uma piedosa ficção. Tal como não sabemos
nada sobre o nascimento e as origens de Knecht, também nada
sabemos sobre o seu fim. Porém, nada nos autoriza a supor que
este tenha sido obra do acaso. Vemos a vida de Knecht, tanto
quanto é conhecida, como um edifício de andares claramente
construídos, e se, nas nossas hipóteses sobre o seu fim aderimos
livremente à lenda e a retomamos piamente, fazemo-lo porque o
que a lenda narra como sendo o último andar da sua vida parece
corresponder totalmente aos anteriores. Confessamos mesmo que a
dissolução desta vida na lenda nos parece orgânica e correta, tal
como a permanência dum astro que deixámos de ver e para nós
«desapareceu» é um facto que não temos escrúpulos em aceitar.
Neste mundo em que o autor e o leitor destes apontamentos
vivemos, Josef Knecht atingiu com as suas ações os mais altos
cumes que se podem imaginar, na medida em que, como Magister
Ludi, foi chefe e modelo dos que cultivam o espírito e têm ambições
espirituais, geriu e aumentou exemplarmente o património espiritual
que recebeu, foi grande sacerdote dum templo que para nós é
sagrado. Porém, as funções de Mestre, o lugar máximo da nossa
hierarquia, não as atingiu e ocupou simplesmente; atravessou-as,
superou-as numa dimensão que só com deferência podemos
imaginar, pelo que nos parece perfeitamente à escala e corresponder
à sua vida que também a sua biografia tenha ultrapassado as
dimensões habituais e tenha no fim atingido a lenda. Aceitamos o
que há de maravilhoso neste facto e alegramo-nos com ele, sem
pretendermos esclarecê-lo demasiado. Mas na medida em que a
vida de Knecht pertence à História e é histórica até um dia bem
determinado, queremos tratá-la como tal e esforçámo-nos por seguir
exatamente a tradição, tal como se nos revelou às nossas
pesquisas.
Da sua infância, isto é, do tempo anterior à admissão nas escolas
da elite, conhecemos apenas um facto, mas é um facto importante e
de significado simbólico, pois marca o primeiro apelo que lhe fez o
espírito, o primeiro ato da sua vocação e é característico que este
primeiro apelo não tenha vindo do lado da Ciência mas do da
Música. Devemos este fragmento de biografia, como quase todas as
recordações da vida pessoal de Knecht, às notas dum aluno do Jogo
das Contas de Vidro, um fiel admirador que recolheu um grande
número de declarações e histórias do seu grande professor.
Knecht devia ter então doze ou treze anos e era aluno de latim na
cidadezinha de Berolfingen, na orla da floresta de Zaber, que deve
também ter sido o seu local de nascimento. A verdade é que o
rapazinho era já há muito bolseiro da escola de latim e tinha sido
proposto, por duas ou três vezes, às autoridades superiores para as
escolas de elite pelo conselho de professores e, com o maior
empenho, pelo professor de música, mas ele não sabia nada disso e
não tinha tido o mínimo contacto com a elite ou sequer com os
professores do ensino superior. Como lhe fosse participado pelo seu
professor de música (na altura ele aprendia violino e alaúde) que
talvez o Mestre da Música viesse dentro de pouco tempo a
Berolfingen para inspecionar o ensino da música na escola, Josef
deveria praticar com afinco para não deixar o seu professor, e ele
também, mal colocado. Esta notícia deixou o rapazinho
extremamente excitado, pois, naturalmente, sabia perfeitamente
quem era o Mestre da Música: este não só pertencia, como os
inspetores escolares, que vinham duas vezes por ano, a um dos
altos escalões da administração do ensino, como também era um
dos doze semideuses, um dos doze dirigentes máximos desse
Diretório mais do que venerável, e representava a instância suprema
em matéria de música em todo o país. O próprio Mestre da Música,
o Magister Musicae, em pessoa viria pois a Berolfingen! Havia
apenas uma única pessoa em todo o mundo que talvez fosse mais
rodeada de lenda e de mistério para o rapazinho: o Mestre do Jogo
das Contas de Vidro. Em relação ao anunciado Mestre da Música
sentia antecipadamente um imenso temor respeitoso, imaginava
este homem ora como um rei, ora como um feiticeiro, ora como um
dos doze apóstolos ou um dos grandes artistas lendários da época
clássica, um Michael Praetorius, um Claudio Monteverdi, um J. J.
Froberger ou Johann Sebastian Bach – e esperava com tanta alegria
como temor pelo momento em que este astro apareceria. Que um
dos semideuses e arcanjos, que um dos misteriosos e mais
poderosos governantes do mundo espiritual aparecesse em carne e
osso aqui na cidadezinha e na escola de latim, que ele o visse, que o
Mestre talvez lhe dirigisse a palavra, o examinasse, o repreendesse
ou o elogiasse, isso era um grande acontecimento, uma espécie de
milagre, de fenómeno celeste raro e excecional; por outro lado,
garantiram os professores, era a primeira vez em várias décadas que
um Magister Musicae visitava pessoalmente a cidade e a escolinha
de latim. O rapazinho viu em imaginação tudo quanto se anunciava,
antes de mais uma grande festa pública e uma receção como aquela
a que uma vez assistira aquando da tomada de posse do novo
burgomestre, com fanfarras e ruas engalanadas, talvez até mesmo
com fogo de artifício, e também os camaradas de Knecht tinham
idênticas fantasias e esperanças. Esta alegria antecipada só era
turvada pelo pensamento de que talvez ele próprio tivesse de
comparecer perante esse grande homem e, à frente desse
conhecedor, cobrir-se duma vergonha insuportável com a sua música
e as suas respostas. Mas este receio não era só um tormento, era
também doce, e, lá muito no seu íntimo, sem o admitir, achava que
a festa esperada, com bandeiras e fogo de artifício, não seria de
longe tão bonita, tão importante e, apesar de tudo, tão
maravilhosamente alegre como a circunstância de ele precisamente,
Josef Knecht, ir ver de muito perto aquele homem, que visitava
Berolfingen um pouco por sua, dele, Josef, causa, pois que vinha
inspecionar os cursos de música e o professor de música achava que
era possível que também o pusesse à prova.
Mas talvez, oh!, provavelmente nada disso acontecesse, era muito
pouco possível, o mais certo seria o Mestre ter mais que fazer do
que mandar que um rapazinho tocasse violino para ele; antes
haveria de querer certamente ver e ouvir apenas os alunos mais
velhos e mais adiantados. Foi com semelhantes pensamentos que o
rapazinho esperou pelo dia, e o dia chegou e começou com uma
deceção: não se ouvia música nas ruas, não havia bandeiras nem
flores entrançadas penduradas nas casas, e tinha de se pegar como
todos os dias nos livros e nos cadernos e ir para as aulas do
costume, e na própria sala de aula não se via o mínimo vestígio de
decoração e cerimonial, estava tudo como todos os dias. A aula
começou, o professor trazia a mesma roupa de sempre e não fez
nenhuma alocução, não disse nenhuma palavra que evocasse o
ilustre visitante.
Mas na segunda ou terceira hora de aulas aconteceu; bateram à
porta, o contínuo entrou, saudou o professor e comunicou-lhe que o
aluno Josef Knecht deveria comparecer perante o Mestre da Música
dentro dum quarto de hora e que devia ter o cuidado de se pentear
como devia ser, de unhas e mãos lavadas. Knecht ficou pálido de
medo, saiu da escola a vacilar, subiu a correr para o dormitório,
pousou os livros, lavou-se e penteou-se, pegou a tremer no estojo
do violino e no caderno de exercícios e dirigiu-se, com um aperto na
garganta, para as salas de música no anexo. Nas escadas recebeu-o
um condiscípulo, todo excitado, que lhe indicou uma sala de estudo
e lhe comunicou: – Deves esperar aqui que te chamem.
A espera não foi longa mas a ele pareceu-lhe que se tinha
passado uma eternidade. Ninguém o chamou, mas um homem
entrou, um homem muito velho como ao princípio lhe pareceu, um
homem não muito alto, de cabelos brancos, com um bonito rosto
harmonioso e uns olhos azul-claros e penetrantes que
pestanejavam. O olhar do homem poderia inspirar medo se além de
penetrante não fosse também alegre, se além da serenidade risonha
ou sorridente não irradiassem de brilho calmo. Estendeu a mão ao
rapazinho e saudou-o baixando a cabeça, sentou-se pensativamente
no banco do velho piano de estudo e disse: – Chamas-te Josef
Knecht? O teu professor parece estar contente contigo, creio que
gosta muito de ti. Anda, vamos tocar um pouco os dois. – Knecht já
tinha tirado o violino do estojo, o velho deu-lhe o fá, ele afinou o
instrumento e depois olhou para o Mestre da Música com uma
expressão ao mesmo tempo interrogativa e ansiosa.
– Que gostavas mais de tocar? – perguntou o Mestre. O aluno não
teve nenhuma resposta, o ancião tornava-o tímido, além de que
nunca tinha visto ninguém assim. Hesitando, pegou no seu caderno
de partituras e estendeu-o ao homem.
– Não – disse o Mestre. – Eu gostava que tocássemos uma coisa
de cor e não uma peça de estudo, uma coisa fácil que conheças de
cor, talvez uma canção de que gostes.
Knecht, confundido e seduzido por aquele rosto e por aqueles
olhos, não conseguiu responder nada, a perturbação enchia-o de
vergonha e não conseguiu dizer nada. O Mestre não insistiu.
Começou a tocar, com um dedo, as primeiras notas duma melodia e
olhou interrogativamente para o rapazinho, que fez que sim e se pôs
a tocar alegremente a melodia ao mesmo tempo que ele: era uma
das velhas canções muitas vezes cantada na escola.
– Outra vez! – disse o Mestre. Knecht repetiu a melodia e o ancião
tocou então uma segunda voz. A duas vozes, a velha canção
ressoava agora por toda a salinha de estudo.
– Outra vez!
Knecht tocou e o Mestre tocou a segunda e uma terceira vozes. A
três vozes a velha e bonita canção ressoou por toda a sala.
– Mais uma vez! – E o Mestre atacou as três vozes.
– Que linda canção! – disse o Mestre em voz baixa. – Toca-a outra
vez, mas agora no contralto!
Knecht obedeceu e tocou, o Mestre dera-lhe a primeira nota e
tocava agora as outras três vozes. E, a cada vez, o velho dizia: –
Outra vez! –, e, a cada vez, a canção parecia mais alegre. Knecht
tocava a voz de tenor, sempre acompanhada por duas ou três vozes.
Tocaram a canção muitas vezes, já não precisavam de falar e a cada
repetição a canção enriquecia-se por si própria de ornamentos e
acompanhamentos. A pequena sala de paredes nuas, que uma
alegre luz matinal iluminava, ressoava de notas festivas.
Ao fim de algum tempo o ancião parou. – Chega? – perguntou.
Knecht fez que não e recomeçou, e o outro juntou-se-lhe com as
suas três vozes e as quatro vozes traçavam as suas linhas claras e
finas, interpelavam-se, apoiavam-se mutuamente, cruzavam-se,
contornavam-se em curvas e figuras alegres, e o rapazinho e o
ancião não pensavam em mais nada, entregues às belas linhas
fraternas e às figuras que elas traçavam ao encontrarem-se, faziam
música presos nos seus laços, suavemente embalados e obedecendo
a um invisível maestro. Até que o Mestre, quando a melodia chegou
mais uma vez ao fim, se voltou para trás e disse: – Gostaste, Josef?
Knecht olhou para ele com os olhos brilhantes de reconhecimento.
Estava radiante mas não conseguiu dizer uma palavra.
– Sabes já por acaso – perguntou agora o Mestre – o que é uma
fuga?
Knecht fez uma expressão de dúvida. Já tinha ouvido fugas, mas
na escola ainda não tinham chegado lá.
– Bom – disse o Mestre. – Então vou mostrar-te como é.
Compreenderás mais rapidamente se nós próprios compusermos
uma. Portanto, uma fuga é composta em primeiro lugar por um
tema, e o nosso tema não vamos demorar-nos a procurá-lo,
tomaremos o da nossa canção.
Tocou alguns compassos, um breve fragmento da canção. Aquilo
assim isoladamente, sem o princípio nem o fim, soava
maravilhosamente. Tocou outra vez o tema e iniciou imediatamente
a primeira entrada; a segunda transformou o intervalo de quinta
num de quarta; a terceira repetiu a primeira uma oitava acima; a
quarta fez o mesmo à segunda; a exposição terminou com uma
coda no tom da dominante. A segunda execução teve modulações
mais livres, de passagem para outros tons; a terceira, tendendo para
subdominante, terminou com uma cadência no tom principal. O
rapazinho olhava para os dedos brancos e ágeis do executante, via
na concentração do seu rosto refletir-se levemente o
desenvolvimento do tema enquanto os olhos repousavam por baixo
das pálpebras semicerradas. O coração do rapazinho palpitava de
veneração, de amor pelo Mestre, e o seu ouvido registava a fuga,
parecia-lhe que ouvia música pela primeira vez; adivinhava, por
detrás da obra musical que nascia à sua frente, o espírito, a feliz
harmonia da lei com a liberdade, da submissão com a autoridade;
rendeu-se e apaixonou-se por aquele espírito e aquele Mestre, viu-se
a si próprio e à sua vida e o mundo inteiro naquele minuto, guiados,
ordenados e significados pelo espírito da música, e, quando a
execução chegou ao fim, viu o Mestre venerado, o Mestre mágico, o
Mestre rei ficar ainda alguns instantes levemente iluminado por uma
luz interior, e não soube se devia jubilar com a felicidade daqueles
momentos ou se chorar por vê-los terminados. Então o velho
ergueu-se lentamente do banco do piano, olhou para ele com os
olhos azul-claros alegres e penetrantes e ao mesmo tempo
indizivelmente amáveis e disse: – De nenhuma outra maneira podem
duas pessoas tornar-se amigas mais facilmente do que a fazer
música. É uma coisa bonita fazer música. Espero que tu e eu nos
tenhamos tornado amigos. Talvez também tu venhas a aprender a
compor fugas, Josef. – Com isto estendeu-lhe a mão e retirou-se. À
porta, voltou-se outra vez para trás e fez-lhe um cumprimento de
despedida com um olhar e uma ligeira inclinação da cabeça.
Muitos anos mais tarde Knecht contou ao seu discípulo: quando
saiu daquela casa achou a cidade e o mundo muito mais
modificados e mágicos do que se tivessem sido ornamentados com
bandeiras e grinaldas, fitas e fogos de artifício. Tinha feito uma
experiência da vocação a que se pode perfeitamente chamar um
sacramento: a revelação e o aliciante abrir-se do mundo ideal que
até aí fora conhecido do seu jovem coração apenas por ouvir dizer e
em sonhos ardentes. Esse mundo não existia apenas algures no
passado ou no futuro distantes, não, estava ali e era um mundo
ativo, irradiava, enviava emissários, apóstolos, embaixadores,
homens como aquele velho Magister que, de resto, como afirmava
Josef, não era assim tão idoso como isso. E desse mundo, por
intermédio dum desses respeitáveis emissários, era-lhe feito, a ele, o
pequeno aluno de latim, um chamamento e uma exortação! Esta
vivência teve para Josef este significado, e foram precisas semanas
para que ele soubesse realmente e se convencesse de que ao
decurso mágico daquelas horas sagradas correspondia também um
percurso exato no mundo real, que a vocação não era meramente
uma alegria e uma exortação para a sua alma e a sua consciência,
mas também um dom e uma advertência que os poderes terrenos
lhe faziam. Pois com o passar do tempo não podia permanecer
secreto que a visita do Mestre da Música não tinha sido nem um
acaso nem uma verdadeira inspeção escolar. É que o nome de
Knecht figurava já desde há bastante tempo, com base nos
relatórios dos seus professores, nas listas dos alunos que pareciam
dignos de serem educados nas escolas de elite, ou pelo menos que
para tal eram recomendados às autoridades superiores. Porque este
Knecht era não só louvado como latinista e excelente carácter, mas
além disso também especialmente recomendado e gabado pelo seu
professor de música, decidiu o Mestre da Música, por ocasião duma
viagem de serviço, reservar algumas horas a Berolfingen e ir
observar esse aluno. Importava-lhe não tanto o latim ou a
dedilhação (quanto a isto confiava nos boletins dos professores, a
cujo estudo de resto dedicou uma hora) como saber se este
rapazinho tinha em todo o seu ser o estofo dum músico, no sentido
superior da palavra, se era capaz de entusiasmo, de disciplina, de
respeito, de servir um culto. Geralmente, os professores das escolas
públicas eram, bem-intencionadamente, nada menos do que
generosos com a recomendação de alunos para a elite, mas ainda
assim às vezes surgiam casos de favoritismo, de intenções mais ou
menos claras, e não era raro que um professor teimasse em
recomendar um dos seus preferidos que, fora o zelo, a ambição e a
esperteza da maneira de se relacionar com os professores, poucas
qualidades possuía. Era precisamente contra esse tipo de pessoas
que o Mestre da Música era, percebia imediatamente se um
examinando tinha consciência de que o que estava nesse momento
em jogo era o seu futuro e a sua carreira, e pobre daquele que se
lhe apresentasse como demasiado dotado, demasiado sabedor,
demasiado inteligente ou que tentasse mesmo adulá-lo: era, em
muitos casos, rejeitado antes mesmo que um exame a sério
começasse.
Mas o aluno Knecht agradara ao velho Mestre da Música,
agradara-lhe mesmo muito, durante a sua digressão ainda pensava
nele com prazer; não tomara notas sobre ele nem proferira nenhum
resultado do exame, mas levava consigo a recordação do rapazinho
espontâneo e modesto e escreveu pelo seu próprio punho o seu
nome na lista de alunos a examinar pessoalmente por um membro
do Diretório supremo e que eram dignos de serem admitidos.
Sobre esta lista – conhecida entre os alunos de latim como «o
livro de ouro», mas às vezes também pelo pouco respeitoso nome
de «rol dos ursos» – tinha Josef ouvido falar ocasionalmente na
escola, e nos tons mais diversos. Quando um professor a evocava,
nem que fosse apenas para mostrar a um rapaz que um aluno como
ele naturalmente nunca poderia pensar ir tão longe, fazia-o num tom
solene, de respeito e também duma certa jactância. Mas quando os
alunos falavam do «rol dos ursos», faziam-no, a maior parte das
vezes, duma maneira impertinente e com uma certa dose de
exagerada indiferença. Uma vez Josef ouviu um aluno dizer: «Ora,
ora! Cuspo nesse maldito “rol dos ursos”! Não está lá o nome de
nenhum tipo decente, tenho a certeza. Os professores só mandam
para lá os maiores oportunistas e lambe-botas.»
Um período singular seguiu-se a esta bela aventura. Ao princípio
ele ignorava que pertencesse agora aos electi, à flos juventutis,
como na Ordem são designados os alunos de escol; de modo
nenhum pensava nas consequências práticas e sensíveis do que
acontecera tanto ao seu destino como à sua vida quotidiana, e
enquanto para os professores era já um escolhido em vias de os
deixar, para ele a sua vocação não era ainda senão uma
transformação no seu íntimo. Mesmo assim representava um corte
claro na sua existência. Se bem que o tempo passado com o mágico
homem trouxesse ao seu coração a satisfação já pressentida, ou lha
tornasse mais próxima, não era menos verdade que o ontem estava
separado do hoje, o que fora do era e viria a ser, assim como o
sonhador que acorda não pode, ainda que acorde no mesmo
ambiente que viu no sonho, duvidar que está acordado. Existem
muitas espécies e formas de vocação, porém, a essência e o sentido
da experiência é sempre o mesmo: o que acorda a alma, a
transforma ou exalta, é sempre que, em vez de sonhos e
pressentimentos íntimos, de repente um apelo do exterior, um
fragmento da realidade se impõe e age. Aqui, esse fragmento de
realidade fora a figura do Mestre: o Mestre da Música, apenas
conhecido como uma figura distante, um semideus venerável, um
arcanjo das esferas supremas, apareceu-lhe em carne e osso, tinha
olhos azuis omniscientes, sentara-se ao piano de estudo, tinha feito
música com Josef, uma música maravilhosa, mostrara-lhe quase sem
palavras o que era a verdadeira música, benzera-o e desaparecera.
Knecht ao princípio foi incapaz de refletir sobre tudo quanto daí
poderia resultar, pois estava demasiado cheio e demasiado ocupado
com os ecos imediatos do acontecimento. Tal a planta nova que se
desenvolveu tranquilamente, com hesitação, e que de repente
começa a respirar e a crescer vigorosamente, como se num instante
miraculoso a lei da sua forma se lhe tivesse revelado e ela aspirasse
agora à sua realização plena, também este rapazinho, quando a mão
do mágico lhe tocou, começou a juntar e a tender as suas forças,
rapidamente, avidamente: sentiu-se transformado, sentiu-se crescer,
sentiu novas tensões, novas harmonias entre si e o mundo. Era
capaz, em certos momentos, de se haver com problemas de música,
de latim, de matemática, que não eram para a sua idade nem para
os seus camaradas, sentindo-se então capaz de tudo, e noutros
momentos era capaz de se esquecer de tudo e sonhar, com uma
doçura e uma entrega de si novas para ele, de ficar a ouvir o vento
ou a chuva, de contemplar fixamente uma flor ou a corrente dum
riacho, sem nada compreender, pressentindo tudo, num transporte
de simpatia, de curiosidade, de vontade de compreender, levado
pelo seu próprio eu até um eu alheio, até ao mundo, até ao mistério
e o sacramento, até à dolorosa beleza do jogo do mundo dos
fenómenos.
Começando assim, a partir de dentro, e crescendo até ao
momento em que o seu íntimo e o mundo exterior se confrontaram
e se confirmaram mutuamente, a vocação de Josef Knecht realizou-
se numa pureza perfeita; ele subiu todos os seus degraus, provou
todas as felicidades e todas as angústias. Sem que fosse perturbada
por repentinas revelações e indiscrições, realizou-se essa nobre
transformação, típica história da juventude, pré-história de todo o
espírito nobre; harmonicamente, em equilíbrio, o interior e o exterior
elaboraram e amadureceram reciprocamente. Quando, no fim desta
evolução, o aluno ganhou consciência da sua situação e do seu
destino social, quando viu que os professores o tratavam como
colega, e mesmo até como hóspede de honra cuja partida é
esperada a todo o instante, que os colegas em parte o admiravam
ou invejavam, mas também em parte o evitavam ou o olhavam com
suspeição e alguns adversários o denegriam e odiavam, que alguns
dos seus amigos de longa data se separavam e o abandonavam, há
muito já que no seu íntimo o mesmo processo de afastamento e de
afirmação da individualidade se tinha efetuado, há muito que, por si
mesmo, por instinto, sentira os professores passarem de superiores
a camaradas, os amigos antigos tornarem-se companheiros de
estrada que ficavam para trás, na escola e na cidade já não se sentia
entre os seus pares nem no seu lugar, mas antes tudo isso estava
agora impregnado duma morte secreta, dum fluido de irrealidade,
dum odor de coisa passada, transformara-se em algo de provisório,
num fato gasto e já impossível de usar em nenhuma circunstância. E
este desenraizamento duma pátria até ali harmónica e amada, este
arrancamento a uma forma de vida que já não era sua nem à sua
medida, esta vida de viajante que se despede em nome dum
chamamento, pontuada de momentos de suprema alegria e
confiança irradiante em si próprio, tudo isso se tornou para ele, por
fim, um grande tormento, um peso e um sofrimento quase
intoleráveis, pois tudo o abandonava, sem que tivesse a certeza de
que era ele quem abandonava tudo, nem que este desfalecimento e
este afastamento progressivos daquele mundo que lhe era familiar e
querido se deviam ao seu erro, à sua ambição, às suas pretensões,
ao seu orgulho, a uma falta de fidelidade e de amor. Das dores que
acompanham uma vocação verdadeira, estas são as mais amargas.
Quem recebe o apelo da vocação, não recebe apenas uma dádiva e
um comando, mas também uma espécie de culpa, tal como o
soldado que mandam sair das fileiras e nomeiam general é tão mais
digno da promoção quanto a paga sentindo-se em dívida e mesmo
até com má consciência para com os seus camaradas.
Contudo, foi dado a Knecht percorrer as etapas desta evolução
sem que nada o perturbasse e em perfeita inocência: quando, por
fim, o conselho dos professores o informou da distinção de que era
alvo e da sua próxima admissão nas escolas de elite, a sua surpresa
foi, nesse mesmo momento, total, se bem que, passado um
instante, lhe parecesse já que havia muito que o sabia e o esperava.
Foi só então que lhe veio ao espírito que havia já semanas que lhe
chamavam pelas costas, de vez em quando, electus ou «menino de
elite» para troçarem dele. Tinha ouvido chamarem-lhe isso mas de
modo pouco claro, e interpretou-o apenas como um simples
escárnio. A impressão que tinha era de que não era electus que lhe
queriam chamar, mas antes «tu, que no teu orgulho te julgas
electus!». Estas erupções do sentimento de afastamento entre si e
os seus camaradas tinham-no, por vezes, feito sofrer muito, mas
nunca na realidade se teria tomado por um electus: a vocação não
se lhe tinha tornado consciente como promoção, antes apenas como
advertência e encorajamento íntimos. E no entanto: não a soubera
apesar de tudo, não a pressentira, não a detetara cem vezes? Agora
estava seguro, os seus transportes de alegria eram confirmados e
legitimados, os seus sofrimentos tiveram um sentido, o velho fato
agora acanhado podia ser deitado fora, havia um novo e pronto para
ele.

Com a admissão na elite, a vida de Knecht viu-se transplantada


para outro nível, o primeiro passo decisivo da sua evolução fora
dado. Não é com todos os alunos de elite, de modo nenhum, que a
admissão oficial na elite coincide com a experiência íntima da
revelação. Isso é uma graça, ou, se preferirmos, uma expressão
banal: é uma questão de sorte. Aquele sobre quem recai fica com a
vida afetada com um sinal mais, tal como possui um sinal mais
aquele que a sorte dotou de qualidades excecionais de corpo e
espírito. A maioria dos alunos de elite, se não quase todos, sente
que o facto de serem escolhidos é uma grande felicidade, uma
distinção que os orgulha, e que de resto, muitos deles, tinham
desejado ardentemente. Mas a passagem da simples escola da terra
natal para as escolas de Castália custa, no entanto, à maior parte
dos escolhidos, mais do que pensavam e a muitos traz desilusões
inesperadas. É sobretudo para os alunos que se sentiam felizes e
amados em casa dos pais que esta passagem representa uma
separação e uma renúncia muito duras e que tem como
consequência que, nomeadamente durante os dois primeiros anos
de escola de elite, haja um número não desprezável de reprovações,
cuja causa não é a falta de dotes nem de aplicação mas a
incapacidade de o aluno se adaptar à vida de internato e
principalmente à ideia de futuramente abrandar cada vez mais os
laços com a família e a terra natal até, finalmente, não conhecer e
não respeitar outra filiação que não seja a da Ordem. De quando em
quando aparecem alunos para quem a admissão na elite representa,
pelo contrário, sobretudo a libertação da casa paterna e duma
escola de que estavam fartos; estes, desembaraçados dum pai
severo ou dum professor desagradável, respiram aliviados durante
algum tempo, mas esperavam da mudança tantas e tamanhas
transformações nas suas vidas que a desilusão não tarda a
manifestar-se. Também os arrivistas propriamente ditos, os alunos-
modelo, os pedantes, não eram capazes de permanecer em Castália,
não por falta de capacidade para aguentar os estudos, mas porque
na elite não eram simplesmente o estudo e as matérias de ensino
que contavam, antes eram perseguidos também objetivos educativos
e artísticos, perante os quais alguns depunham as armas. No
entanto, no sistema de quatro grandes escolas de elite com as suas
numerosas secções e estabelecimentos anexos, havia espaço para
talentos múltiplos, e um matemático ou um filólogo ambicioso, se
possuísse verdadeiramente estofo de sábio, não precisava de ter
medo por uma eventual fraqueza em música ou filosofia. Em certas
épocas houve mesmo em Castália uma forte tendência para o
tratamento das ciências puras e sóbrias e os promotores desta
tendência não eram apenas contra os «fantásticos», ou seja, contra
os músicos e os artistas, assim designados por troça amigável, como
por vezes chegaram ao ponto de renegar e banir do seu círculo tudo
quanto fosse artístico, e nomeadamente o Jogo das Contas de
Vidro.
Como a vida de Knecht, na medida em que a conhecemos, se
passou inteiramente em Castália, nessa região que é a mais pacífica
e alegre do nosso montanhoso país e que também tanta vez foi
designada outrora pela expressão do poeta Goethe – a «província
pedagógica» – faremos aqui uma vez mais, brevemente e com o
risco de aborrecer o leitor ao recordar-lhe o que há muito sabe, o
esboço desta famosa Castália e da estrutura das suas escolas. Estas
escolas, chamadas simplesmente escolas de elite, constituem um
sistema de seleção sábio e elástico, através do qual a Direção
(designada por Conselho de Estudos, formado por vinte
conselheiros, dos quais dez pertencem ao Diretório do Ensino e os
outros dez à Ordem) escolhe os melhores talentos de todas as
partes e escolas do país para prover todas as funções importantes
do sistema de ensino e educação. As inúmeras escolas gerais, liceus
clássicos, etc., do país, quer sejam consagradas às humanidades ou
à técnica e ciências da Natureza, constituem, para mais de noventa
por cento da nossa juventude estudantil, escolas preparatórias para
as profissões ditas liberais, concluindo-se os estudos a este nível
com um exame final de aptidão à universidade; seguidamente, na
universidade, a frequência faz-se por ciclos de estudos por cada
especialidade. Esta é a carreira escolar normal dos nossos
estudantes, que todos conhecem. As exigências destes
estabelecimentos são bastante severas e eliminam, na medida do
possível, os não dotados. Porém, à margem ou acima destas
escolas, desenvolve-se o sistema das escolas de elite, nas quais são
admitidos à experiência apenas os alunos que mais se distinguiram
pelo talento e o carácter. A entrada nelas não se faz por meio de
exames: os alunos de elite são escolhidos, com toda a liberdade,
pelos seus professores e recomendados às autoridades de Castália.
A um rapaz de onze ou doze anos é dado a entender, um dia, pelo
seu professor, que poderá, dali a meio ano, entrar para uma das
escolas de Castália, devendo examinar-se se se sente vocacionado e
apto para isso. Se, ao expirar o prazo de reflexão, disser sim, o que
supõe também que os pais estão totalmente de acordo, uma das
escolas de elite recebe-o à experiência. Os diretores e os professores
do grau mais elevado (não são os professores universitários) destas
escolas constituem a «administração do ensino», a quem incumbe a
direção de todo o ensino e de todas as organizações intelectuais do
país. Uma vez admitido numa escola de elite, o aluno, se não
reprovar num dos cursos e não for recambiado para as escolas
gerais, não terá de se preocupar com o estudo duma especialidade
nem de procurar um ganha-pão: entre os alunos de elite é recrutada
a «Ordem» e a hierarquia intelectual da administração, do mestre-
escola aos mais altos funcionários: os doze Diretores de Estudos ou
«Mestres» e o Magister Ludi, diretor do Jogo das Contas de Vidro.
Dum modo geral, o último ciclo de estudos dos alunos de elite
conclui-se entre os vinte e dois e os vinte e cinco anos e
precisamente com a admissão na Ordem. A partir daí, os antigos
alunos de elite têm à sua disposição todos os estabelecimentos
educacionais e todos os institutos de investigação da Ordem e da
administração do ensino: as Grandes Escolas de Elite, a eles
reservadas, as bibliotecas, os arquivos, os laboratórios, etc.,
juntamente com um enorme colégio de professores, bem como as
instituições do Jogo das Contas de Vidro. O aluno que manifeste,
durante a escolaridade, dons particulares para uma disciplina, para
as línguas, para a Filosofia, para a Matemática ou seja o que for, é, a
partir dos graus superiores das escolas de elite, selecionado para os
estudos que ofereçam aos seus dons o melhor alimento; na maior
parte estes alunos acabam como professores especializados nas
escolas públicas e nas universidades e continuam, mesmo depois de
terem abandonado Castália, membros vitalícios da Ordem, isto é,
guardam as suas distâncias em relação aos professores «ordinários»
(os não formados pelas escolas de elite) e – a menos que saiam da
Ordem – em caso nenhum podem exercer uma profissão liberal,
como a de médico, advogado, técnico, etc., devendo continuar
submetidos às regras da Ordem, que exigem, entre outras coisas, a
renúncia à propriedade e o celibato; o povo, ou por troça ou com
respeito, chama-lhes «mandarins». Este é o destino definitivo da
grande maioria dos antigos alunos de elite. Porém, o pequeno
número dos restantes, o último e o mais fino escol, fica de reserva,
destinado ao estudo livre de duração ilimitada, a uma vida espiritual
de estudo e contemplação. Muitos grandes talentos que, no entanto,
por causa de irregularidades de carácter ou por outros motivos, por
exemplo por deficiências físicas, são inaptos para o professorado e
para as funções de responsabilidade na administração superior ou
subalterna do ensino, continuam, durante toda a vida, a estudar, a
investigar ou a fazer coleções. Pensionistas da administração, a sua
contribuição para o todo consiste, na maioria dos casos, em
trabalhos de pura erudição. Alguns são afetados como conselheiros
às comissões lexicais, aos arquivos, às bibliotecas, etc.; outros
exercem a sua erudição segundo a divisa l’art pour l’art; muitos
dedicaram já a vida a trabalhos muito remotos e com frequência
maravilhosos, como aquele Ludovicus Crudelis, que em trinta anos
de trabalho traduziu todos os textos egípcios antigos disponíveis
tanto para grego como para sânscrito, ou como aquele curioso
Chattus Calvensis II, que deixou uma obra em quatro enormes in-
fólios manuscritos sobre «A Pronúncia do Latim nas Universidades
do Sul da Itália em Fins do Século XII». Esta obra deveria ser a
primeira parte duma «História da Pronúncia do Latim do Século XII
ao Século XVI», mas, a despeito das suas mil folhas manuscritas,
ficou no estado de fragmento e não foi continuada por ninguém.
Compreende-se perfeitamente que este género de trabalhos de pura
erudição seja motivo de muita paródia, já que o seu real valor para a
ciência dos tempos futuros e para a coletividade escapa a toda a
apreciação. Apesar disso, a ciência, como outrora a arte, às vezes
tem necessidade duma vasta pastagem, e acontece que o
explorador dum assunto que não interessa mais ninguém a não ser
o próprio reúna um saber que presta eminentes serviços aos colegas
com quem vive, tal como um dicionário ou um arquivo. Na medida
do possível, os trabalhos eruditos como os mencionados foram
também impressos. Aos verdadeiros eruditos foi permitido
entregarem-se com uma liberdade quase total aos seus estudos e
aos seus jogos, sem que houvesse escândalo no facto de certos
desses trabalhos não serem, visivelmente, de utilidade imediata para
o povo e a comunidade, ou aos não-eruditos parecerem brincadeiras
de luxo. Muitos destes sábios foram motivo de riso dada a natureza
dos seus trabalhos, mas nunca foram criticados ou privados dos seus
privilégios. O facto de também o povo os respeitar e não apenas
tolerar, ainda que circulassem muitas anedotas sobre eles, devia-se
aos sacrifícios com que todos os membros da intelectualidade
pagavam a sua liberdade. Gozavam de muitas comodidades,
usufruíam, numa modesta proporção, de alimentação, vestuário e
habitação, dispunham de magníficas bibliotecas, coleções,
laboratórios, mas para isso renunciavam não só a uma vida
confortável, ao casamento e à família, como, sendo uma
comunidade monástica, estavam excluídos da concorrência da vida
profana, não conheciam propriedade nem títulos nem distinções e,
no plano material, deviam contentar-se com uma existência muito
simples. Se um deles quisesse desperdiçar os seus anos de vida a
decifrar uma única inscrição antiga, era livre de o fazer e ainda
recebia ajuda; mas se pretendesse levar uma boa vida, vestir-se
com elegância, ter dinheiro ou títulos, deparavam-se-lhe proibições
terminantes e se esses aspetos fossem importantes para ele, em
geral voltava, logo nos anos de juventude, para o «século», tornava-
se professor especializado remunerado, ou professor particular, ou
jornalista, ou casava-se, ou procurava de qualquer modo um tipo de
vida a seu gosto.

Quando o pequeno Josef Knecht teve de se despedir de


Berolfingen, foi o seu professor de música quem o acompanhou à
estação. Doeu-lhe despedir-se dele e o coração encheu-se-lhe um
pouco com o sentimento de solidão e incerteza quando, ao afastar-
se, o torreão caiado de branco do velho castelo desapareceu no
horizonte para nunca mais se ver. Muitos outros alunos começaram
esta primeira viagem com sentimentos bem mais violentos, desfeitos
e lavados em lágrimas. Mas o coração de Josef já não estava ali, ele
suportou isto facilmente. E a viagem não era longa.
Tinha sido mandado para a Escola Eschholz4. Tinha visto já
imagens desta escola no gabinete do seu reitor. Eschholz era a maior
e a mais recente das cidades escolares de Castália, todos os edifícios
eram de construção recente, não havia nenhuma cidade nas
proximidades, apenas um povoado semelhante a uma aldeia e
rodeado por um arvoredo cerrado; depois deste, o estabelecimento
estendia-se, vasto e alegre, em terreno plano, à volta dum grande
espaço retangular, no meio do qual, dispostas como os cinco pontos
dum dado, cinco sequoias imponentes erguiam os seus cones
escuros. O pátio imenso estava em parte coberto por relva, em parte
por areia, sendo apenas cortado por duas grandes piscinas de água
corrente, para as quais desciam largos degraus lisos. À entrada
desta praça soalheira erguia-se a escola, o único edifício alto do
estabelecimento, com duas alas e um átrio de cinco colunas em cada
ala. Todas as restantes construções que, de três lados, rodeavam o
pátio sem deixar nenhuma abertura, eram muito baixas, sem
ornamentos, distribuídas por blocos iguais, cada um abrindo para o
pátio através dum pórtico com uma escadaria de poucos degraus; a
maior parte das arcadas destes pórticos estava ornamentada com
vasos de flores.
À chegada, conforme o costume de Castália, o rapazinho não foi
recebido por um bedel nem apresentado a um reitor ou a um
conselho de professores, mas sim acolhido por um camarada, um
belo rapaz alto, trajando de linho azul, alguns anos mais velho, que
estendeu a mão a Josef e lhe disse: «Sou Oskar, o mais velho da
Casa Hellas, onde vais ficar; estou encarregado de te dar as boas-
vindas e introduzir-te na escola. Só és esperado na escola amanhã
de manhã, de modo que temos muito tempo para dar uma volta por
aqui, vais habituar-te rapidamente. Peço-te também que, nos
primeiros tempos, até te habituares, me consideres teu amigo e teu
mentor e também como teu protetor se alguma vez os nossos
camaradas te importunarem; há os que se julgam sempre obrigados
a atormentar um pouco os novos. Não há de ser nada de grave,
prometo-te. Agora vou levar-te, para começar, a Hellas, o nosso
dormitório, para veres onde vais morar.»
Foi nestes termos, conformes com os costumes, que Oskar,
designado pela direção como mentor de Josef, acolheu o novo e, de
facto, esforçou-se por desempenhar bem o seu papel; este papel
agrada sempre aos antigos e quando um rapaz de quinze anos se dá
ao trabalho de conquistar um de treze, falando-lhe com uma
camaradagem um pouco protetora e cheia de amabilidade, quase
sempre o consegue. Nos primeiros dias Josef foi tratado pelo seu
mentor absolutamente como um convidado que se pretende que
fique, se tivesse de partir logo no dia seguinte, com uma boa
impressão da casa e do seu anfitrião. Conduziu-o ao quarto que
deveria partilhar com dois outros rapazes, ofereceu-lhe biscoitos e
uma caneca de sumo de frutas, mostrou-lhe a Casa Hellas, um dos
setores do grande retângulo reservado à habitação, indicou-lhe em
que sítio do banho a vapor podia pendurar a toalha, e em que canto
poderia cultivar flores em vasos, se lhe apetecesse, e, sem mesmo
esperar pela noite, levou-o ao chefe da rouparia, onde lhe
escolheram um fato de linho azul e o acertaram ao seu corpo. Josef
sentiu-se, desde o primeiro momento, perfeitamente à vontade e
adotou com alegria o tom de Oskar; quase não se lhe notava um
ligeiro embaraço, se bem que o mais velho, que estava já há mais
tempo do que ele em Castália, fosse para ele um semideus.
Agradaram-lhe igualmente as pequenas gabarolices e exibições de
Oskar quando este, por exemplo, introduzia no seu discurso uma
citação grega complicada, para logo se lembrar cortesmente que o
novo ainda não podia, evidentemente, compreendê-la, era
perfeitamente natural, e quem exigiria dele uma coisa dessas!
De resto, a vida de internato não era nada de novo para Knecht;
adaptou-se-lhe sem custo. Aliás, poucos acontecimentos importantes
da sua vida em Eschholz nos foram transmitidos; é impossível que
ainda tenha assistido ao terrível incêndio da escola. Segundo os seus
boletins de notas, na medida em que puderam ser encontrados,
obteve por vezes as notas máximas em Música e Latim, teve um
pouco mais do que uma honesta média em Matemática e Grego, no
«Livro da Casa» encontram-se de longe a longe referências a ele,
tais como «ingenium valde capex, studia non augusta, mores
probantur» ou «ingenium felix et profectuum avidissimum, moribus
placet officiosis». Que punições teve em Eschholz, é impossível de
estabelecer, o livro dos castigos foi pasto das chamas, como muitas
outras coisas. Um condiscípulo de Knecht garantiu, ao que parece
mais tarde, que durante os seus quatro anos em Eschholz, foi
punido apenas uma vez (privado da saída de fim de semana), a
saber, por obstinadamente se ter recusado a dar o nome dum
camarada que infligira uma proibição qualquer. Esta anedota parece
digna de fé. Knecht foi sempre, sem qualquer dúvida, um bom
camarada e nunca mostrou servilismo para com os seus superiores;
mas que esta punição tenha sido realmente a única em quatro anos,
é pouco verosímil.
Como a nossa documentação sobre os primeiros tempos de escola
de elite de Knecht é tão pobre, recorreremos a uma passagem das
suas conferências ulteriores sobre o Jogo das Contas de Vidro. Não
existem, é verdade, manuscritos autógrafos dessas palestras para
principiantes, um aluno é que as estenografou a partir da sua
própria redação. Knecht, nelas, fala das analogias e das associações
de ideias no Jogo das Contas de Vidro e distingue, entre estas
últimas, as que são «legítimas», isto é, compreensíveis por todos, e
as que são «particulares» ou associações subjetivas. Diz ele: «Para
vos dar um exemplo destas associações de ideias particulares, que
de modo nenhum perdem o seu valor intrínseco pelo facto de serem
proibidas no Jogo das Contas de Vidro, evocarei uma que data do
tempo em que andava na escola. Devia ter uns catorze anos e era
antes da primavera, fevereiro ou março: um camarada convidou-me
a sair com ele, à tarde, para irmos cortar caules de sabugueiro, com
que ele queria fazer canos para construir um moinho de água.
Partimos então e esse dia deve ter sido muito bonito para o mundo
ou para o meu coração, pois me ficou na memória e valeu-me uma
pequena experiência. Os campos estavam húmidos mas já sem
neve, junto aos regatos a terra cobria-se dum verde-forte, nos
arbustos nus os rebentos e os primeiros amentilhos que acabavam
de rebentar apresentavam já um primeiro sinal de cor e o ar estava
cheio de perfume, dum perfume carregado de vida e contradições,
cheirava a terra húmida, a folhas que apodreciam e a germes novos,
a cada momento esperava-se já cheirar as primeiras violetas, se bem
que ainda não as houvesse. Chegámos aos sabugueiros. Tinham
rebentos minúsculos mas ainda estavam desprovidos de folhas e,
quando cortei um ramo, senti um perfume violento, agridoce, que
parecia reunir, totalizar e sublimar todos os outros perfumes da
primavera. Apoderou-se completamente de mim: cheirei a faca, a
mão, cheirei o ramo de sabugueiro; era a sua seiva que ressumava
aquele odor penetrante e irresistível. Não falámos disto, mas o meu
camarada cheirou também demoradamente, pensativo, o tubo que
tinha feito, também aquele perfume lhe falava. Ora, cada
acontecimento da nossa vida possui precisamente a sua magia e o
acontecimento, para mim, foi que, desde a travessia dos prados
saturados de água, senti fortemente a aproximação da primavera,
com embriaguez, ao respirar aquele cheiro a terra e aos rebentos,
que se concentrava e se exalava neste fortíssimo perfume dos
sabugueiros, até se tornar um símbolo físico e um encantamento
mágico. Talvez que, mesmo que este pequeno acontecimento tivesse
permanecido isolado, não pudesse mais esquecer este odor; e de
cada vez que, depois disso e provavelmente até na minha velhice, o
tivesse encontrado novamente, ter-me-ia despertado a recordação
do primeiro instante em que tive consciência desse perfume. Mas a
isto acrescenta-se um segundo elemento. Tinha encontrado então,
em casa do meu professor de piano, um velho volume de partituras
que exerceu sobre mim uma atração poderosa, uma recolha de
canções de Franz Schubert. Tinha-o folheado uma vez em que tive
de esperar durante bastante tempo pelo professor e, a meu pedido,
ele tinha-mo emprestado por alguns dias. Durante as minhas horas
livres vivi completamente nas delícias da descoberta. Até ali não
conhecera nada de Schubert e estava inteiramente enfeitiçado por
ele. Ora, no dia da ida aos sabugueiros, ou no seguinte, descobri a
canção da primavera de Schubert “Die linden Lüfte sind erwacht”5 e
os primeiros acordes do acompanhamento do piano atingiram-me
com a violência dum reconhecimento: aqueles acordes tinham um
perfume que era exatamente o do sabugueiro novo, igualmente
amargo e doce, igualmente forte, igualmente concentrado,
igualmente cheio das promessas da primavera! A partir desse
momento, a associação – promessas da primavera, perfume do
sabugueiro, acordes de Schubert – é para mim estável e de valor
absoluto; ao tocar o acorde sinto imediatamente e em todas as
circunstâncias o cheiro acre da planta e a conjunção de ambos é
para mim a promessa da primavera. Com esta associação de ideias
possuo algo de muito belo, algo que por nada trocaria. Mas esta
associação, este flamejar, de cada vez, de duas impressões
sensíveis, quando penso no princípio da primavera, é uma questão
pessoal. Evidentemente, é comunicável, tal como vo-la contei agora.
Mas não é transmissível. Posso dar-vos a compreender as minhas
associações de ideias, mas não posso fazer de maneira a que, nem
que fosse apenas em um de vós, se tornem igualmente um sinal
válido, um mecanismo que reaja infalivelmente ao apelo e que se
passe sempre da mesma maneira.»
Um dos condiscípulos de Knecht, que mais tarde atingiria o grau
de Primeiro Arquivista do Jogo das Contas de Vidro pôde contar que
Knecht fora, dum modo geral, um rapaz cheio duma alegria
tranquila, que, às vezes, quando fazia música, ganhava uma
maravilhosa expressão de concentração ou de espiritualidade,
apenas raramente se mostrando violento e apaixonado,
particularmente no jogo da bola rítmica, de que gostava muito. Mas
por várias vezes este rapaz amável e equilibrado chamou a atenção
sobre si, provocou ralhos e também preocupações, especialmente
aquando de casos de expulsão de alunos, o que muitas vezes é
necessário, sobretudo nos primeiros anos das escolas de elite. A
primeira vez que aconteceu que um dos seus camaradas de ano
faltou às aulas e aos jogos e não apareceu no dia seguinte e se
soube que não estava doente mas que o haviam excluído e tinha
partido para não mais voltar, Knecht não só ficara triste como
durante vários dias se mostrou perturbado. Mais tarde, passados
anos, ter-se-ia exprimido sobre este assunto nestes termos:
«Quando um aluno era excluído de Eschholz e nos deixava, sentia
sempre esse acontecimento como uma morte. Se me tivessem
perguntado qual era a razão de ser da minha tristeza, teria dito que
sentia pena do infeliz que tinha comprometido o seu futuro com a
sua leviandade e a sua preguiça, e que sentia também medo, medo
de que a mim pudesse igualmente acontecer o mesmo. Foi só depois
de ter assistido a isso bastantes vezes e deixado, no fundo, de
acreditar na possibilidade de também eu sofrer a mesma sorte, que
comecei a ver um pouco mais longe. A partir daí a exclusão dum
electus deixou de me parecer uma infelicidade e um castigo, pois
sabia que os alunos excluídos, em certos casos, ficavam muito
contentes por voltarem para casa. Apercebia-me agora de que não
havia só julgamento e castigo para o leviano, mas que lá fora o
“século” donde todos nós, os electi, tínhamos vindo, não deixara de
existir tal como eu julgara, que, pelo contrário, constituía para
muitos espíritos uma grande realidade cheia de sedução que os
atraía e acabava por chamá-los a si. E talvez não fosse assim apenas
com indivíduos isolados mas com todos, talvez tão-pouco fosse certo
que esse mundo distante exercesse uma atração assim tão forte
sobre os mais fracos e os medíocres: talvez a aparente recaída que
sofriam não fosse de modo nenhum uma queda e um sofrimento,
mas um salto, um ato, e talvez fôssemos nós, os que
sossegadamente continuavam em Eschholz, os fracos e os
cobardes.» Veremos que um pouco mais tarde estas ideias voltaram
a preocupá-lo profundamente.
Todas as vezes que voltava a ver o Mestre da Música eram para
ele uma grande alegria. Ele vinha a Eschholz todos os dois ou três
meses, assistia às aulas de música e fazia inspeções. Era também
amigo dum dos professores da escola e não raramente passava
alguns dias em casa dele. Uma vez dirigiu pessoalmente os últimos
ensaios duma execução duma das Vésperas de Monteverdi.
Contudo, não perdia de vista os alunos mais dotados desses cursos
de música e Knecht era dos que ele honrava com a sua afeição
paternal. De vez em quando passava uma hora ao piano com ele
numa das salas de exercícios, a estudar as obras dos seus músicos
preferidos ou os modelos dados nos velhos métodos de composição.
«Construir um cânone com o Mestre da Música, ou ouvi-lo
desenvolver um mal construído até ao absurdo, era uma solenidade
ou uma alegria sem igual, às vezes custava-nos reter as lágrimas e
outras nunca mais acabávamos de rir. Saía-se duma aula de música
particular dele como dum banho ou duma sessão de massagens.»
Quando os estudos de Knecht em Eschholz se aproximaram do fim
– devia, juntamente com cerca duma dúzia doutros alunos do seu
ano, passar para uma escola do nível seguinte –, o reitor fez um dia
a estes candidatos o discurso da praxe, no qual evocava uma vez
mais o significado e as leis das escolas de Castália, e lhes traçava,
de certo modo, em nome da Ordem, o caminho a seguir, no fim do
qual teriam direito de aceder à Ordem. Este discurso solene faz
parte do programa dum dia de festa que a escola oferece aos
promovidos e durante o qual estes são os convidados dos seus
professores e dos seus colegas. Nesse dia têm sempre lugar
concertos cuidadosamente preparados – desta vez era uma grande
cantata do século XVII – e o próprio Mestre da Música tinha vindo
assistir. Depois do discurso do reitor, enquanto se dirigiam para a
sala de jantar ornamentada, Knecht aproximou-se do Mestre e
perguntou-lhe: – O reitor contou-nos o que se passa fora de
Castália, nas escolas e nas universidades ordinárias. Disse que lá os
estudantes se preparam nas faculdades para as «profissões
liberais». São, se compreendi bem, na sua grande parte, profissões
que ignoramos completamente em Castália. Como devo entender
isto? Porque é que se lhes chama «profissões liberais»? E porque é
que devemos nós, os de Castália, estar excluídos delas?
O Magister Musicae tomou o adolescente à parte e parou debaixo
duma das sequoias. Um sorriso quase manhoso fez surgir pequenas
rugas à volta dos seus olhos quando respondeu: – Chamas-te
Knecht6, meu caro, talvez seja por isso que a palavra «livre» tem
tanto encanto para ti. Porém, nesse caso, não a leves demasiado a
sério! Quando os não-castalianos falam de profissões liberais, este
termo tem talvez um som muito sério e até mesmo patético. Mas
nós damos-lhe uma intenção irónica. Há com certeza uma certa
liberdade nessas profissões: é a que o estudante tem de ser ele
próprio a escolhê-las. Isso dá uma aparência de liberdade, se bem
que, na maior parte dos casos, a escolha seja feita menos pelo
estudante do que pela sua família e mais do que um pai preferiria
cortar a língua a deixar verdadeiramente ao filho a liberdade da
escolha. Mas talvez isto seja uma calúnia; rejeitemos esta objeção!
Admitamos que haja liberdade numa profissão liberal, só que se
limita unicamente ao ato da escolha da profissão. Depois disso
acaba-se a liberdade. Mesmo logo nos seus estudos na universidade,
o médico, o jurista, o técnico estão prisioneiros dum ciclo de estudos
rígido que desemboca numa série de exames. Depois dos exames, o
aluno recebe o seu diploma e goza então novamente da liberdade
aparente de se dedicar à profissão. Mas desse modo torna-se
escravo de potências inferiores, cai na dependência do êxito, do
dinheiro, da sua ambição, da sua vaidade, do encanto que as
pessoas veem ou não veem nele. Tem de se submeter a escolhas,
ganhar dinheiro, participar das rivalidades impiedosas das castas,
das famílias, dos partidos, dos jornais. Para isso tem toda a
liberdade de se tornar um indivíduo de sucesso e rico e de se tornar
odiado dos que tiveram pouca sorte, ou o contrário. Com o aluno de
elite e futuro membro da Ordem passa-se em todos os aspetos o
contrário. Não «escolhe» uma profissão. Não se julga capaz de
ajuizar melhor dos seus talentos do que os seus professores. Deixa-
se sempre colocar no degrau da hierarquia e afetar à função que os
seus superiores escolhem para ele – na medida, nomeadamente, em
que não é o contrário que se passa e as qualidades, os dotes e os
defeitos do aluno não venham obrigar os professores a colocá-lo em
tal ou tal lugar. Mas no interior desta aparente falta de liberdade,
cada electus goza, depois dos seus primeiros estudos, da maior
liberdade que se possa imaginar. Enquanto o homem das profissões
«liberais» deve restringir-se, para adquirir uma formação
profissional, a um ciclo de estudos estrito e rígido, concluído por
exames rigorosos, o electus goza, a partir do momento em que
começa a estudar por sua conta, duma liberdade tão grande que
muitos deles praticam, por escolha sua, durante toda a vida, os
estudos mais remotos e muitas vezes os mais loucos, sem que
ninguém se lhe oponha, pelo menos enquanto os seus costumes não
degenerarem. Aquele que é apto para ser professor é utilizado como
tal, aquele que tem aptidões para educador ou para tradutor é
empregado como educador ou como tradutor, cada um encontra
quase imediatamente o lugar onde pode servir e ao mesmo tempo
ser livre. E, além disso, está agora livre, para toda a vida, dessa
«liberdade» profissional que representa uma tão terrível escravidão.
Ignora a corrida ao ouro, à glória, à posição social, não conhece
nem partidos, nem divergências entre a pessoa e a função, entre o
privado e o público, nem a dependência do êxito. Como vês, meu
filho, quando se fala de profissões liberais, este «livre» tem um
sentido bastante irónico.

A despedida de Eschholz representou um corte nítido na vida de


Knecht. Até aí vivera uma infância feliz, dobrara-se de bom grado e
quase sem problemas a uma disciplina harmoniosa, mas agora
começava um período de luta, de evolução e de incerteza. Tinha
cerca de dezassete anos quando lhe anunciaram, bem como a toda
uma série de camaradas, que em breve seriam transferidos para
uma escola de nível superior, e durante algum tempo deixou de
haver para estes eleitos outra questão mais importante ou mais
discutida do que a do lugar para onde cada um ia ser mandado. De
acordo com a tradição, foram informados apenas alguns dias antes
da partida e, durante o período que decorreu entre a festa de
despedida e esse, foram-lhes dadas férias. Estas férias foram para
Knecht ocasião duma aventura bela e rica de sentido: o Mestre da
Música convidou-o a ir visitá-lo, a pé, e a ser seu hóspede durante
alguns dias. Era uma honra grande e rara. Na companhia dum
camarada igualmente promovido – pois Knecht dependia ainda de
Eschholz e os alunos desse nível não podiam viajar sozinhos –
meteu-se uma manhã ao caminho, em direção à floresta e às
montanhas, e quando, ao fim de três horas de subida por entre as
sombras da floresta, chegaram a uma clareira num cume, avistaram,
lá em baixo, já minúscula e muito nítida, a paisagem da sua
Eschholz, reconhecível de longe pela massa das suas cinco árvores
gigantes, pelo seu retângulo cortado por uma linha de relvado com
os seus espelhos de água, o alto edifício da escola, o economato, a
aldeiazinha, o famoso bosque dos freixos. Os dois jovens pararam e
ficaram a olhar; muitos de nós ainda se recordam dessa linda vista,
que não era diferente nessa altura do que é hoje, pois, a seguir ao
grande incêndio, os edifícios foram reconstruídos quase sem
alteração e três das grandes árvores sobreviveram ao fogo. Como os
dois jovens olhavam para a escola que era há anos a sua pátria, de
que em breve iam despedir-se, sentiram-se ambos intimamente
comovidos.
– Creio que nunca tinha visto como isto é bonito – disse o
companheiro de Josef. – Sim, deve ser porque, pela primeira vez, a
vejo como uma coisa que tenho de deixar e à qual devo dizer
adeus.
– É isso – disse Knecht. – Tens razão, é o que também sinto. Mas
se nos vamos embora daqui, a verdade é que não deixamos
realmente Eschholz. Deixaram-na realmente apenas aqueles que se
foram embora para sempre, como por exemplo aquele Otto que
sabia fazer versos burlescos em latim tão maravilhosos, ou como o
nosso Charlemagne, que era capaz de nadar tanto tempo debaixo de
água, e os outros. Esses disseram realmente adeus à escola e
separaram-se dela para sempre. Há muito tempo que não pensava
neles, vieram-me ao espírito agora. Podes rir-te de mim, mas a
queda deles tem, apesar de tudo, qualquer coisa que se impõe, tal
como Lúcifer, o anjo renegado, tem, também ele, grandeza. Eles
cometeram talvez um erro, ou melhor, cometeram um erro sem
sombra de dúvida, mas mesmo assim fizeram qualquer coisa,
realizaram qualquer coisa, arriscaram um salto, e para isso é preciso
coragem. Os outros, nós, fomos trabalhadores, pacientes, razoáveis,
mas não fizemos nada, não demos salto nenhum!
– Não sei – replicou o outro. – Muitos deles não fizeram nada, não
arriscaram nada, limitaram-se a andar na pândega até serem
expulsos. Mas talvez não esteja a compreender-te bem. Que queres
dizer com dar o salto?
– Quero dizer o poder de largar tudo, a sério, de dar o salto
precisamente! Não desejo regressar, dum salto, ao meu antigo país
nem à minha antiga vida, isso não me atrai, quase que já os
esqueci. Mas o que desejo é saber, um dia, quando chegar a hora e
se for necessário, se sou capaz de largar tudo e arriscar o salto,
desde que não seja para cair num nível mais medíocre, mas para ir
em frente e mais alto.
– Ora, é para aí que estamos a ir. Eschholz era um patamar, o
próximo será mais alto e no fim espera-nos a Ordem.
– Sim, mas não era isso que queria dizer. Prossigamos a nossa
caminhada, amice, é tão bom, caminhar vai devolver-me a minha
alegria. Mas que melancólicos estamos!
Neste estado de espírito e nestas palavras que aquele camarada
nos transmitiu anuncia-se já o período tempestuoso da juventude de
Knecht.
Caminhavam havia dois dias quando chegaram ao sítio onde vivia
então o Mestre da Música, ao alto Monteport, onde, num antigo
convento, dava precisamente um curso para maestros. O camarada
de Knecht foi alojado na casa dos hóspedes, enquanto Knecht ficou
numa cela pequena na casa do Mestre. Mal tinha acabado de
desfazer a mochila e de se lavar quando o seu anfitrião entrou. O
homem venerável estendeu a mão ao adolescente, sentou-se numa
cadeira com um suspiro, fechou os olhos durante um momento,
como fazia quando estava cansado, depois disse amigavelmente,
erguendo os olhos para ele: – Desculpa, não sou muito bom
anfitrião. Acabas de fazer uma viagem a pé e deves estar cansado e,
para ser franco, eu também estou, tive um dia um tanto
sobrecarregado. Mas se ainda não estás com sono, gostaria que
viesses ao meu quarto por uma hora. Podes ficar aqui dois dias e
amanhã podes convidar também o teu companheiro para vir almoçar
comigo, mas infelizmente não tenho muito tempo para te dedicar,
por conseguinte temos de ver como vamos arranjar as poucas horas
de que preciso para ti. Começamos imediatamente, está bem?
Conduziu Knecht a uma grande cela abobadada, onde, como
mobiliário, não havia mais do que um velho piano e duas cadeiras.
Sentaram-se.
– Vais ascender dentro de pouco tempo a outro nível – disse o
Mestre. – Aí aprenderás todo o tipo de coisas novas, coisas bonitas,
começarás sem dúvida a fazer tentativas com o Jogo das Contas de
Vidro. Tudo isso é muito bonito e importante, mas há uma coisa
mais importante do que o resto: aprenderás a meditar.
Aparentemente, todos aprendem a meditar, mas nem sempre há a
possibilidade de o verificar. De ti desejo que aprendas bem, como
deve ser, assim como a música; então, o resto virá por si. Assim,
gostaria de eu próprio te dar as duas ou três primeiras lições, por
isso é que te convidei. Vamos, pois, hoje, amanhã e depois de
amanhã tentar meditar uma hora por dia sobre música. Vão dar-te
agora um copo de leite, para que a fome e a sede não te
incomodem. Só mais logo nos será servida a refeição da noite.
Bateram à porta e trouxeram um copo de leite.
– Bebe devagar, devagar – exortou o Mestre. – Toma o teu tempo
e não fales enquanto bebes. – Knecht bebeu lentamente o leite
fresco, com o homem venerando sentado à sua frente, outra vez de
olhos fechados, o rosto parecendo muito velho, mas amável, cheio
de paz, sorrindo-se para si mesmo, como se mergulhado em
pensamentos, tal um viajante cansado que lava os pés. Da sua
pessoa emanava quietude. Knecht sentia-a e ficou também calmo.
Então, o Mestre voltou-se na cadeira e pousou as mãos no piano.
Tocou um tema e desenvolveu-o com variações; parecia ser uma
peça dum mestre italiano. Disse ao hóspede que imaginasse a
continuação desta melodia como uma dança, uma série ininterrupta
de exercícios de equilíbrio, uma sucessão de passos mais ou menos
longos a partir do meio dum eixo de simetria e que concentrasse a
sua atenção na figura que esses passos traçavam. Tocou outra vez
os compassos, refletiu sobre eles em silêncio, tocou-os outra vez e
ficou sentado, sem falar, de mãos nos joelhos, os olhos
semicerrados, sem se mexer, repetindo interiormente a melodia,
contemplando-a. Também o aluno ficou a ouvi-la interiormente: via
à sua frente fragmentos de partituras, via qualquer coisa mover-se,
andar, dançar, planar e tentava reconhecer o movimento e lê-lo
como as curvas da linha traçada pelo voo dum pássaro. Mas as
linhas confundiam-se e voltavam a perder-se, era obrigado a voltar
ao princípio, por um momento a concentração abandonou-o, sentiu-
se no vazio, lançou um olhar atrapalhado à volta e viu pairar na
meia luz o rosto do Mestre, imóvel e absorto. Reencontrou então o
caminho daquele lugar espiritual donde escorregara, ouviu ressoar
novamente a música, viu-a caminhar, viu descrever-se a linha do seu
movimento, viu e contemplou os pés dançantes do invisível...
Pareceu-lhe que se tinha passado muito tempo quando deslizou
para fora desse espaço e voltou a sentir a cadeira debaixo de si, as
lajes do chão cobertas de esteiras e reparou na claridade cada vez
mais fraca do fim da tarde por trás das janelas. Teve a sensação de
que alguém olhava para si, ergueu os olhos e encontrou os do
Mestre da Música, que o observava atentamente. O Mestre da
Música fez-lhe um sinal de aprovação apenas percetível, tocou
apenas com um dedo, pianíssimo, a última variação daquela peça
italiana e ergueu-se.
– Fica aqui sentado – disse – até eu voltar. Procura outra vez em ti
a música, atenta na figura! Mas não te forces, é só uma brincadeira.
Se adormeceres, não faz mal.
Retirou-se; esperava-o ainda um trabalho daquele dia
sobrecarregado, de modo nenhum um trabalho fácil nem agradável.
Entre os alunos do curso de maestros havia um homem de talento,
mas vaidoso e pretensioso, com o qual ainda tinha que falar, para
lhe tirar as más maneiras, demonstrar-lhe os seus erros, manifestar-
lhe tanto a sua preocupação como a sua superioridade, a sua
afeição e a sua autoridade. Suspirou. Nunca haveria uma ordem
definitiva, nunca se eliminariam os erros cometidos? Ter-se-ia de
lutar sempre contra os mesmos erros, de estar sempre a arrancar as
mesmas ervas daninhas? O talento sem carácter, o virtuosismo sem
hierarquia que na Idade do Folhetim dominaram a vida musical e
foram eliminados e repudiados durante o renascimento da música,
estavam outra vez verdejantes e a florir.
Quando voltou dos seus afazeres para partilhar do jantar com
Josef, encontrou-o silencioso, mas alegre e de modo nenhum
cansado. – Que coisa tão bonita! – disse sonhadoramente o rapaz. –
Durante este tempo a música desvaneceu-se-me totalmente do
espírito, transformou-se.
– Deixa-a continuar a vibrar dentro de ti – replicou o Mestre e
conduziu-o a uma sala pequena onde estava posta uma mesa com
pão e fruta. Comeram e o Mestre convidou-o a assistir, no dia
seguinte, durante um bocado, ao curso de maestros. Antes de se
retirar e conduzir o hóspede à cela, disse-lhe: – Ao meditares viste a
música aparecer-te como uma figura. Se isso te der prazer, tenta
descrevê-la.
Na cela dos hóspedes Josef encontrou em cima da mesa uma
folha de papel e lápis, e antes de ir repousar tentou desenhar a
figura em que, para si, se tinha metamorfoseado aquela música.
Traçou uma linha donde partiam, obliquamente, em intervalos
harmoniosos, curtas barras laterais; isto lembrava um pouco a
disposição das folhas dum ramo de uma árvore. O resultado não o
satisfez, mas apeteceu-lhe tentar outra e outra vez e, por fim, como
que a brincar, dobrou a linha num círculo donde as barras laterais
irradiavam como as flores duma coroa. Então deitou-se e adormeceu
rapidamente. A sonhar voltou àquela elevação acima dos bosques
onde no dia anterior tinha parado com o seu camarada, e viu aos
seus pés a sua querida Eschholz, e, enquanto olhava lá para baixo, o
retângulo dos edifícios da escola transformou-se numa oval, depois
num círculo, numa coroa, e esta começou a rodar lentamente,
depois com uma rapidez crescente e acabou por girar com uma
velocidade doida, explodiu e dispersou-se em estrelas cintilantes.
Ao acordar, não se lembrava de nada, mas quando, mais tarde,
durante um passeio matinal, o Mestre lhe perguntou se havia
sonhado, pareceu-lhe que o sonho que tivera devia ter sido sinistro
ou inquietante. Pôs-se a pensar e encontrou-o novamente, contou-
lho e ficou surpreendido por ser inofensivo. Atentamente, o Mestre
escutava-o.
– Deve dar-se atenção aos sonhos? – perguntou Josef. – É
possível interpretá-los?
O Mestre olhou-o nos olhos e disse concisamente: – Deve dar-se
atenção a tudo, pois tudo é possível de interpretação. – Porém,
alguns passos mais à frente, perguntou paternalmente: – Para que
escola gostarias mais de ir? – Josef corou. Sem hesitar e em voz
baixa respondeu: – Creio que para Waldzell7. – O Mestre fez que
sim. – É o que eu pensava. Conheces certamente a velha máxima:
Gignit autem artificiosam...
Ainda com o rosto corado, Knecht concluiu a fórmula que todos os
alunos conheciam perfeitamente: – Gignit autem artificiosam
lusorum gentem Cella Silvestris. Traduzindo: Ora Cela Silvestre é a
mãe da engenhosa tribo dos jogadores de Contas de Vidro.
O ancião fitou-o com carinho. – Esse parece ser o teu caminho,
Josef. Como sabes, nem toda a gente está de acordo com o Jogo
das Contas de Vidro. Dizem que é um sucedâneo das artes e que os
jogadores são simplesmente amantes das belles-lettres, que já não
podem ser considerados verdadeiros intelectuais, que não passam
de artistas fantasistas e diletantes. Verás até que ponto isso é
verdade. Sobre o Jogo das Contas de Vidro é possível que a ideia
que dele fazes seja melhor do que o que ele é na realidade, ou o
contrário. É certo que o Jogo tem os seus perigos. Por isso
precisamente é que gostamos dele, para os caminhos sem perigos
mandamos só os fracos. Mas nunca deverás esquecer o que tantas
vezes te disse: o nosso propósito é reconhecer corretamente as
antinomias, em primeiro lugar na sua qualidade de antinomias, mas
seguidamente como polos duma unidade. O mesmo se passa com o
Jogo das Contas de Vidro. As naturezas artísticas enamoram-se dele
porque com ele é possível fantasiar; os espíritos rigorosamente
científicos e especializados desprezam-no – e também muitos
músicos – porque lhe falta aquele grau de rigor na disciplina onde só
podem chegar as ciências isoladas. Muito bem, aprenderás a
conhecer estas antinomias e com o tempo descobrirás que não se
trata de antinomias entre objetos mas sim entre sujeitos, que por
exemplo um artista com imaginação evita a Matemática ou a Lógica,
não porque tenha visto nelas mais alguma coisa ou tenha algo a
dizer delas, mas porque, por instinto, as suas inclinações vão noutra
direção. Poderás, por este género de inclinações e repugnâncias
instintivas e violentas, reconhecer as almas mesquinhas. Na
realidade, isto é, nas almas grandes e nos espíritos superiores, essas
paixões não existem. Cada um de nós não é senão um homem, uma
tentativa, uma etapa. Mas esta etapa deve conduzir-nos até onde se
situa a perfeição, devemos tender para o centro e não para a
periferia. Nota bem: pode-se ser um lógico ou um gramático
rigoroso e, ao mesmo tempo, ser-se cheio de fantasia e música.
Pode-se ser instrumentista e jogador de Contas de Vidro e ao
mesmo tempo ser-se dedicado à lei e à ordem. O homem que
ideamos e queremos, que nos propomos devir, trocaria em todos os
momentos a sua ciência ou a sua arte por outras quaisquer, faria
resplandecer no Jogo das Contas de Vidro a lógica mais cristalina e,
na gramática, a imaginação mais fecunda. Assim deveríamos nós ser.
Deveríamos poder, em cada momento, ocupar outro posto, sem que
por isso nos insurgíssemos e nos deixássemos perturbar.
– Julgo compreender – disse Knecht. – Mas aqueles que têm
preferências e aversões tão fortes não são muito simplesmente as
naturezas mais apaixonadas, enquanto os outros possuem
temperamentos mais calmos e mais doces?
– Parece ser verdade mas no entanto não é – respondeu o Mestre,
rindo-se. – Para se ser bom em tudo e estar à altura de todas as
tarefas, não se pode ter, de certeza, falta de força de alma, nem de
dinamismo e calor, antes pelo contrário: tem de se ter de mais.
Aquilo a que chamas paixão, não é força de alma, mas fricção entre
a alma e o mundo exterior. Onde reina o sentimento apaixonado, a
força do desejo e da aspiração nada tem de transbordante: a sua
direção é um alvo individual e falso e daí a atmosfera de tensão e
peso. Quem dirije as forças mais elevadas do seu desejo para o
centro, para o ser verdadeiro, para a perfeição, parece mais calmo
do que o apaixonado, pois a chama do seu ardor nem sempre será
visível. Por exemplo, numa discussão, ele não grita nem gesticula.
Mas digo-te: esse homem deverá arder, e queimar!
– Ah! Se ao menos pudéssemos saber como! – exclamou Knecht.
– Se ao menos houvesse uma doutrina, uma coisa em que se
pudesse acreditar! Tudo se contradiz, tudo se furta a tudo, em parte
nenhuma existe a certeza. Pode-se interpretar tudo tanto num
sentido como no outro. Pode-se apresentar toda a História Universal
como desenvolvimento e progresso e também vê-la como
decadência e absurdo. A verdade, portanto, não existe? Não existe,
portanto, uma doutrina autêntica e válida?
O Mestre nunca o ouvira falar com tanta violência. Continuou a
andar durante um bocado e então disse: – A verdade existe, meu
caro! Mas a «doutrina» que desejas, o ensinamento absoluto que
confere a sabedoria perfeita e única, não existe. Tão-pouco deves
ansiar por um ensinamento perfeito, meu amigo, mas antes pelo
aperfeiçoamento de ti próprio. A divindade está em ti e não nas
ideias e nos livros. A verdade vive-se, não se ensina de cátedra.
Prepara-te para a luta, Josef Knecht, vejo claramente que já
começou.
Durante esses dias Josef pôde ver pela primeira vez o seu
Magister bem amado na sua existência e no seu trabalho diários e
admirou-o muito, embora só pudesse ver uma pequena parte das
suas realizações quotidianas. Mas o que o conquistou foi sobretudo
que o Mestre se tivesse ocupado dele logo que o convidou a vir
visitá-lo, e que, em pleno trabalho, este homem sobrecarregado e
com frequência tão cansado, lhe reservasse ainda algumas horas, e
não as horas apenas! Se esta iniciação na meditação produziu nele
um efeito tão profundo, tão duradouro, não foi, tal como mais tarde
aprenderia a avaliá-lo, graças a uma técnica especialmente subtil ou
original, mas unicamente devido à pessoa e ao exemplo do Mestre.
Os professores que posteriormente iria ter e com os quais, no ano
seguinte, aprendeu a meditação, deram-lhe uma maior quantidade
de indicações, um ensino mais preciso, praticaram um controlo mais
penetrante, puseram-lhe mais questões e souberam corrigir melhor.
O Mestre da Música, com um poder mais seguro sobre o
adolescente, não falava e não ensinava praticamente nada,
contentava-se, no fundo, em indicar-lhe assuntos e dar-lhe o
exemplo. Knecht observou que o seu mestre, que muitas vezes tinha
um ar tão velho e tão cansado, se concentrava então nele próprio,
de olhos semicerrados, e que logo a seguir estava em condições de
lhe lançar um olhar calmo, cheio de rigor, de serenidade e
cordialidade: nada teria podido convencê-lo mais intimamente de
que essa era a via que conduzia da inquietação à calma. O que o
Mestre podia ter a dizer explicitamente sobre este assunto, Knecht
ouviu-o acidentalmente aqui ou ali, durante um curto passeio ou
uma refeição.
Sabemos que Knecht recebeu nesta altura algumas primeiras
indicações e diretivas relativas ao Jogo das Contas de Vidro, mas as
palavras perderam-se. Knecht ficou impressionado com o facto de o
seu anfitrião se preocupar com o seu acompanhante, para que este
não ficasse com a sensação de ser um simples comparsa. Aquele
homem parecia pensar em tudo.
Esta breve estada em Monteport, as três sessões de meditação, a
assistência às aulas dos maestros, as poucas conversas com o
Mestre tiveram, para Knecht, muita importância; com segurança,
este tinha escolhido o instante mais eficaz para a sua breve
intervenção. O principal objeto do seu convite fora o de inculcar no
adolescente a meditação, mas, em si, este convite não teve menos
importância: era uma distinção, o sinal de que se interessavam por
ele, que esperavam dele alguma coisa. Era o segundo grau da
vocação. Tinham-no autorizado a mergulhar um olhar nos arcanos;
quando um dos doze Mestres chamava para junto de si, desta
maneira, um dos alunos daquele grau, isso não era apenas o sinal
duma benevolência pessoal. O que um Mestre fazia, ultrapassava
sempre o âmbito do pessoal.
À despedida, os dois estudantes receberam pequenos presentes:
Josef, um caderno que continha os prelúdios de dois corais de Bach
e o seu camarada uma elegante edição de bolso de Horácio. A
Knecht o Mestre disse no momento da partida: – Dentro de alguns
dias saberás para que escola foste. Irei lá com menos frequência do
que a Eschholz, mas ver-nos-emos lá com certeza, se eu continuar
de boa saúde. Poderás, se quiseres, escrever-me uma carta uma vez
por ano, especialmente sobre o andamento dos teus estudos
musicais. Não te será proibido criticares nelas os teus professores,
mas dou-lhe menos valor. Esperam-te muitas coisas: espero que
passes. A nossa Castália não deve ser apenas uma seleção, deve
antes de mais ser uma hierarquia, um edifício no qual cada pedra
apenas ao todo deva o seu significado. Deste todo não parte
nenhum caminho de saída e quem sobe mais alto e recebe tarefas
mais elevadas, não se torna mais livre, mas antes apenas mais
responsável. Adeus, meu jovem amigo, foi para mim uma alegria
ter-te tido aqui.
Os dois rapazes fizeram a viagem de regresso a pé, mais alegres e
mais faladores do que à ida. Esta mudança de ares durante alguns
dias, a vista de imagens novas, o contacto com um meio diferente
tinham-nos estimulado, tinham-nos libertado de Eschholz, da
atmosfera de despedida que aí reinava, tinham-nos tornado duas
vezes mais ávidos de mudança e de futuro. Por várias vezes, durante
uma paragem na floresta ou no alto duma das gargantas abruptas
da região de Monteport, tiraram dos bolsos as suas flautas de
madeira e tocaram a duas vozes algumas canções. E quando
chegaram àquela elevação que dominava Eschholz e donde se viam
a escola e as suas árvores, pareceu a ambos que a conversa tida
naquele local se perdia já no passado. Todas as coisas tinham ganho
um novo aspeto; não trocaram nenhuma palavra entre si, tinham
alguma vergonha dos seus sentimentos e dos seus discursos de
então, tão depressa foram ultrapassados e tornados sem conteúdo.
Em Eschholz souberam, logo no dia seguinte, o destino de cada
um. Knecht era mandado para Waldzell.
4 Eschholz: freixo (madeira de freixo); Escola dos Freixos. (N. do T.)

5 «As doces brisas acordaram». (N. do T.)

6 Knecht: servo, criado. (N. do T.)

7 Waldzell: Cela da Floresta ou Cela do Bosque, e por conseguinte Cela Silvestre. (N. do T.)
WALDZELL

«Mas Waldzell é a mãe da industriosa tribo dos Jogadores de


Contas de Vidro», diz desta célebre escola uma velha divisa. Das
escolas de Castália do segundo e do terceiro graus era a que
sacrificava mais às musas, isto é, enquanto em outras dominava
muito claramente uma determinada ciência, por exemplo em
Keuperheim a filologia das línguas antigas, em Porta a filosofia
aristotélica e escolástica, em Planvaste a matemática, em Waldzell,
pelo contrário, cultivava-se por tradição uma certa tendência para a
universalização e a fraternização das ciências e das artes; o supremo
símbolo das tendências era o Jogo das Contas de Vidro. Na verdade,
do mesmo modo que em qualquer outra escola, o Jogo não era
matéria de ensino oficial e obrigatória, mas era ao Jogo que os
alunos de Waldzell consagravam quase exclusivamente os seus
estudos pessoais e, por outro lado, a cidadezinha de Waldzell era a
sede do Jogo das Contas de Vidro oficial e das suas instituições: lá
se encontravam a célebre sala destinada aos Jogos solenes, os
gigantescos arquivos do Jogo com os seus funcionários e bibliotecas,
lá residia o Magister Ludi. E, se bem que se tratasse de instituições
absolutamente autónomas e não houvesse nenhuma ligação entre a
escola e elas, não deixava de ser o seu espírito que nela reinava e
algo da solenidade dos grandes jogos públicos pairava no ar do
lugar. A própria cidadezinha retirava muito orgulho do facto de
albergar não só uma escola mas também o Jogo. Os habitantes
chamavam aos alunos «estudantes», mas aos estudantes e ouvintes
da Escola do Jogo chamavam «luzeiros», forma corrupta de lusores.
A propósito, a Escola de Waldzell era a mais pequena de todas as de
Castália, os seus efetivos escolares nunca ultrapassaram os
sessenta, e era também certamente esta particularidade que lhe
dava um carácter aristocrático e à parte, a aparência duma distinção
e duma elite restrita entre as elites; é preciso acrescentar que nas
últimas décadas muitos Magisters e todos os mestres do Jogo das
Contas de Vidro saíram desta conceituada escola. É verdade que
esta brilhante fama de Waldzell era de certo modo contestada: dum
modo disperso, havia também opiniões que diziam que os de
Waldzell eram uns estetas pretensiosos e uns príncipes mimados
que, fora do Jogo das Contas de Vidro, não serviam para nada;
esporadicamente, estiveram na moda em muitíssimas outras escolas
ditos maldosos e bastante amargos sobre os de Waldzell, mas a
própria causticidade dos ditos e das críticas mostra bem que havia
motivos para serem invejosos e ciumentos. Tudo somado, ser
designado para Waldzell representava de certo modo uma distinção;
Josef Knecht também o sabia, e embora não fosse ambicioso no
sentido vulgar da palavra, acolheu esta distinção com algum
orgulho.
Chegou a Waldzell a pé, na companhia de vários camaradas,
transpôs a porta do Sul na maior expectativa e disponibilidade e
sentiu-se imediatamente conquistado e encantado por esta
cidadezinha antiga de cor ocre e pela imponente implantação do
antigo convento de Cister que albergava a escola. Antes mesmo de
receber o trajo de estudante, logo após a colação de receção na
portaria da escola, saiu sozinho à descoberta da sua nova pátria,
descobriu o carreiro ao longo das ruínas das antigas muralhas e
atravessou o rio, parou a meio do arco da ponte, ficou a ouvir o
murmúrio da água no dique do moinho, desceu a alameda das tílias
ao longo do cemitério, viu e reconheceu por detrás das altas sebes o
Vicus Lusorum, a pequena cidadela reservada aos Jogadores de
Contas de Vidro: o salão nobre, o arquivo, as salas de aulas, as
casas dos professores e dos convidados. Duma destas casas viu sair
um homem trajado de Jogador de Contas de Vidro e pensou que
devia ser um dos lendários Lusores, talvez o próprio Magister Ludi. A
magia desta atmosfera impressionou-o fortemente, tudo aqui
parecia antigo, venerável, santificado, carregado de tradição, em
Waldzell estava-se um pouco mais perto do centro do que em
Eschholz. E ao regressar do bairro dos Jogadores de Contas de Vidro
foi sensível a outros encantos, porventura menos veneráveis, mas
igualmente excitantes. Foi a cidadezinha, aquele bocadinho de
mundo profano, com a sua azáfama, crianças e cães, cheiros de
lojas e oficinas, cidadãos barbudos e mulheres gordas por detrás das
portas das lojas, crianças a brincar e a gritar, raparigas de olhares
trocistas. Muita coisa recordou-lhe mundos anteriores e distantes,
Berolfingen. Julgava ter esquecido completamente tudo isso.
Camadas profundas da sua alma respondiam às imagens, aos sons,
aos cheiros. Um mundo um pouco menos tranquilo, mas mais
colorido e mais rico que o de Eschholz parecia esperá-lo aqui.
A escola era sem dúvida, à primeira vista, a exata continuação da
anterior, ainda que algumas disciplinas novas viessem acrescentar-
se-lhe. Realmente, novos eram apenas os exercícios de meditação, e
destes também o Mestre da Música lhe tinha já dado um antegosto.
Entrou de bom grado na meditação, sem de início ver nela outra
coisa que não um jogo agradável e repousante. Só mais tarde –
voltaremos a isto – deveria reconhecer, por experiência pessoal, o
autêntico valor da meditação. À frente de Waldzell estava um
homem original e um tanto tímido, Otto Zbinden, na altura já com
perto de sessenta anos; um bom número das anotações sobre o
aluno Josef Knecht que examinámos está escrito com a sua bela e
apaixonada caligrafia. Contudo, foram menos os professores do que
os condiscípulos que despertaram inicialmente a curiosidade do
nosso adolescente. Knecht teve, principalmente com dois deles,
relações e um intercâmbio de ideias bastante animados, sobre os
quais possuímos testemunhos múltiplos. Um deles, com quem se
ligou logo desde os primeiros meses, Carlo Ferromonte (que mais
tarde, na qualidade de adjunto do Mestre da Música, atingiu o
segundo lugar na hierarquia administrativa), era da mesma idade de
Knecht; devemos-lhe, entre outras coisas, uma história do estilo da
música de alaúde no século XVI. Na escola chamavam-lhe o
«arrozeiro», era apreciado como camarada de trato agradável; a sua
amizade com Josef começou com conversas sobre música e
desembocou em estudos e exercícios em comum que se
desenvolveram durante vários anos e sobre os quais nos informam
em parte as raras mas substanciais cartas que Knecht dirigiu ao
Mestre da Música. Na primeira dessas cartas, Knecht qualifica
Ferromonte como «músico conhecedor, especialista da riqueza
ornamental, arabescos, trinados, etc.»; com ele tocava Couperin,
Purcell e outros mestres do ínicio do século XVIII. Numa dessas
cartas Knecht fala demoradamente sobre os exercícios e sobre esse
tipo de música, «em que, em muitas peças, há quase sempre um
ornamento por cima de cada nota». «Quando se toca assim durante
horas», prossegue ele, «apenas com apogiaturas e mordentes, os
dedos ficam como que carregados de eletricidade.»
Em música fez realmente grandes progressos; no segundo ou no
terceiro ano de Waldzell lia e tocava bastante corretamente as notas
nas diferentes claves, com as abreviaturas e o baixo cifrado, nas
partituras de todos os séculos e de todos os estilos, familiarizando-se
com o mundo da música ocidental, na medida em que nos foi
transmitida, naquela maneira particular que é fruto do trabalho e
não desdenha observar e cultivar com cuidado o elemento sensível e
técnico para penetrar o espírito. Foi precisamente a vontade de
aprender o elemento sensível, o esforço para ler no sensorial o
sonoro e nas impressões do ouvido o espírito dos diferentes estilos
musicais, que o impediram, surpreendentemente, durante muito
tempo, de se consagrar, em simultâneo com as primeiras aulas da
escola, ao Jogo das Contas de Vidro. Mais tarde, nas suas
conferências, pronunciaria estas palavras: «Quem sabe música
apenas pelas essências nela destiladas pelo Jogo das Contas de
Vidro pode ser um bom jogador de Contas de Vidro, mas ainda não
é um músico e possivelmente não é um historiador. A música não
consiste somente naquelas vibrações e naquelas combinações de
linhas puramente espirituais que dela abstraímos. Ao longo dos
séculos a música consistiu, em primeiro lugar, na alegria sensual, no
exalar do fôlego, no bater do compasso, nas coloraturas, fricções e
excitações que resultam do misturar das vozes, da conjugação dos
instrumentos. É certo que o espírito é o essencial, é certo que a
invenção de novos instrumentos e a modificação dos antigos, a
introdução de novos modos e de regras ou de proibições novas na
composição e na harmonia são apenas manifestações exteriores,
como os costumes nacionais e as modas dos diferentes povos; mas
é preciso aprender e saborear intensa e sensualmente estes
caracteres exteriores e sensíveis para compreender, a partir deles, as
épocas e os estilos. A música faz-se com as mãos e os dedos, com a
boca, com os pulmões e não apenas com o cérebro, e quem sabe ler
notas de música sem saber tocar perfeitamente nenhum
instrumento, nunca deveria pronunciar-se. Tão-pouco a história da
música poderia compreender-se a partir unicamente da história
abstrata dos estilos; por exemplo, as épocas de decadência musical
ser-nos-iam totalmente incompreensíveis se não reconhecêssemos
nelas, em cada caso, a preponderância do elemento sensual e
quantitativo sobre o espiritual.»
Durante algum tempo pareceu que Knecht decidira ser apenas
músico; desleixou todas as disciplinas facultativas, entre outras a
primeira iniciação no Jogo das Contas de Vidro, para se consagrar à
música, e a tal ponto que, no fim do primeiro semestre, o reitor lhe
fez uma observação sobre esse facto. O aluno Knecht não se deixou
intimidar e defendeu acaloradamente o ponto de vista dos direitos
dos alunos. Teria dito ao reitor o seguinte: «Se tenho deficiências
em algumas disciplinas oficiais do programa, o senhor está no seu
direito de me censurar; mas não lhe dei nenhum motivo para isso.
Estou, pelo contrário, no meu direito se consagrar à música três ou
mesmo quatro quartos do tempo livre de que disponho. Refiro-me
aos estatutos.» O reitor Zbinden teve a inteligência de não insistir,
mas não perdeu naturalmente de vista este aluno e é de crer que
durante muito tempo o tenha tratado com frio rigor.
Este período singular da vida escolar de Knecht durou mais dum
ano, talvez mesmo quase dezoito meses: notas normais, mas sem
brilho, uma reserva silenciosa e – como este incidente com o reitor o
parece mostrar – um pouco arrogante, nenhuma amizade digna de
nota, mas, em contrapartida, aquele entusiasmo
extraordinariamente apaixonado em fazer música, abstenção de
quase todas as matérias facultativas e mesmo do Jogo das Contas
de Vidro. Alguns traços deste retrato de adolescente têm
seguramente a marca da puberdade; é provavel que durante este
período apenas tenha tido contactos fortuitos e cheios de
desconfiança com o outro sexo. Devia ser muito tímido, como muitos
alunos de Waldzell, quando não tinham irmãs. Leu muito,
especialmente os filósofos alemães: Leibniz, Kant e os românticos,
dos quais Hegel foi, de longe, o que exerceu sobre ele a atração
mais forte.
Devemos agora alongar-nos um pouco mais demoradamente
sobre o condiscípulo que teve um papel determinante na vida de
Knecht em Waldzell, o aluno ouvinte Plínio Designori. Este era aluno
voluntário, isto é, seguia como convidado o ciclo de estudos da
escola de elite, sem ter por consequência intenção de se demorar
muito na Província pedagógica nem de aceder à Ordem. De tempos
a tempos havia ouvintes deste género, mas muito raramente, é
verdade, pois que nunca foi do interesse da administração do ensino
formar alunos que, depois de terem cumprido os seus estudos nas
escolas de elite, se propunham voltar para casa dos pais e para o
século. Contudo, havia no país algumas famílias patrícias que tinham
alcançado grandes méritos no tempo da fundação de Castália e nas
quais se mantivera o costume, que ainda hoje sobrevive em parte,
de às vezes mandarem educar um filho como ouvinte nas escolas da
elite, quando fosse suficientemente dotado; este direito tornara-se
uma tradição em algumas dessas famílias. Ora estes ouvintes, se
bem que submetidos em todos os aspetos às mesmas regras que
qualquer outro aluno de elite, constituíam uma exceção na
população escolar: em vez de, como os outros, se separarem um
pouco mais, de ano para ano, da terra natal e da família, iam lá
passar com ela todas as férias e faziam sempre figura de convidados
e de estrangeiros entre os condiscípulos, pois conservavam as
maneiras e a mentalidade do lugar de origem. Tinham à espera a
casa paterna, uma carreira secular, uma profissão, uma esposa. E
conhecem-se somente muitos poucos casos de ouvintes deste
género que, apanhados pelo espírito da Província, tinham acabado
por ficar em Castália com consentimento da família e tenham
entrado para a Ordem. Contrariamente, vários homens de Estado
que deixaram nome na História do nosso país foram na sua
juventude ouvintes e intervieram em defesa das escolas de leite e da
Ordem, em épocas em que a opinião pública, por uma ou outra
razão, era crítica em relação a elas.
Plínio Designori, que Josef Knecht conheceu em Waldzell e que era
um pouco mais velho que ele, era por conseguinte um desses
ouvintes. Muito dotado, orador e polemista particularmente
brilhante, era um jovem fogoso e um pouco inquieto que causava
não poucas preocupações ao reitor Zbinden, pois, comportando-se
sempre como um bom aluno, sem dar azo a críticas, não fazia
nenhum esforço para esquecer a sua situação excecional de ouvinte
e alinhar-se pelos outros o mais discretamente possível: pelo
contrário, exibia deliberada e agressivamente a sua mentalidade de
não-castaliano e laico. Era inevitável que entre os dois alunos se
estabelecessem relações especiais: ambos possuíam dons
eminentes, além da vocação; isto tornava-os irmãos, enquanto que
em tudo o resto estavam nos antípodas um do outro. Teria sido
necessário um professor com uma elevação de vistas e uma arte
excecionais para extrair a quinta-essência da tarefa que daí resultava
e tornar possível uma síntese que unisse e ultrapassasse estas
antinomias segundo as regras da dialética. Ao reitor Zbinden não
faltariam nem os dotes nem a vontade necessários, ele não era
desses professores para quem os génios são um estorvo mas, neste
caso particular, o ponto de partida essencial faltava-lhe: a confiança
dos seus dois alunos. Plínio, que se comprazia no seu papel de
outsider e de revolucionário, na sua presença mantinha-se sempre
em guarda; e com Josef Knecht tinha tido infelizmente aquele
diferendo sobre os estudos pessoais e este nunca se dirigiria ao
reitor para lhe pedir conselho. Mas felizmente havia o Mestre da
Música. A este Knecht pediu conselho e assistência e disso se
ocupou seriamente o velho e sábio músico, conduzindo
magistralmente o jogo, como veremos. Nas mãos deste Mestre, o
perigo e a tentação maiores da vida do jovem Knecht
transformaram-se numa tarefa insigne, e ele mostrou-se à altura
desta. O fundo da história das relações de irmãos inimigos entre
Josef e Plínio – desta música com dois temas, do jogo dialético
destes dois espíritos – foi mais ou menos o seguinte:
Designori foi naturalmente o primeiro a chamar a atenção do seu
adversário e a atraí-lo. Era não só mais velho que Knecht, um belo
adolescente cheio de fogo e verve, como também, antes de mais,
um rapaz «de fora», um não-castaliano, do mundo, com pai e mãe,
tios, tias, irmãos e irmãs, um rapaz para quem Castália, com todas
as suas leis, tradições e ideais, representava apenas uma etapa, um
troço de caminho, uma estada limitada. Para este corvo branco
Castália não era o universo, Waldzell era uma escola como outra
qualquer e o regresso ao «século» não era nem uma vergonha nem
um castigo. Esperavam-no não a Ordem mas a carreira, o
casamento, a política, ou seja, em resumo, aquela «vida real» de
que todo o castaliano secretamente desejava saber mais, pois o
«século» era para ele o que outrora fora para o penitente e o
monge: a coisa inferior e proibida, é certo, mas também, pelo
menos em igual medida, o desconhecido, a sedução, o fascínio. Ora
Plínio não fazia verdadeiramente mistério da sua pertença a esse
século, não tinha nenhuma vergonha dele, mas antes orgulho. Com
um zelo em parte ainda arrapazado e teatral mas também em parte
já consciente e com a forma dum programa, sublinhava o que, na
sua maneira de ser, era diferente e aproveitava todas as ocasiões
para opor as suas conceções e as suas normas de laico às dos
castalianos, para proclamar as suas melhores, mais justas, mais
naturais, mais humanas. Invocava muito a «natureza», o «bom
senso», aos quais opunha o espírito da escola, deformado pela
cultura e ignorante da vida, e não era parco em chavões nem em
grandes gestos, mas tinha bastante inteligência e gosto para não se
contentar com provocações grosseiras, aceitando em certa medida
as formas de discussão utilizadas em Waldzell. Queria defender o
«século» e a vida ingénua contra «o arrogante intelectualismo
escolástico» de Castália, mas de forma a mostrar que era capaz de o
fazer servindo-se das armas dos adversários; de modo nenhum
pretendia passar por um indivíduo sem cultura, o cego que pisa as
flores do jardim da educação espiritual.
Josef Knecht tinha-se já ficado, por diversas vezes, a escutar, sem
falar mas com atenção, ao fundo dum ou doutro grupinho de alunos,
cujo centro e orador era Designori. Com curiosidade, com espanto e
temor, ouvira-o pronunciar frases duma crítica destrutiva sobre tudo
o que em Castália constituía autoridade e objeto de culto, frases que
punham em dúvida e que ridicularizavam tudo em que acreditava.
Reparou além disso que havia muito que os ouvintes não levavam a
sério aqueles discursos, muitas vezes ouviam-no visivelmente
apenas para se divertirem, como quem escuta um vendedor de
banha da cobra numa feira, e também ele ouvia muitas vezes
réplicas nas quais os ataques de Plínio eram tratados com ironia ou
seriamente refutados. Porém, havia sempre camaradas à volta
daquele Plínio, ele era sempre o centro e, tivesse ou não oposição,
exercia constantemente uma atração, uma espécie de sedução. E
com Josef acontecia como com os outros que se agrupavam à volta
daquele orador cheio de verve e escutavam as suas tiradas com
espanto ou hilaridade; apesar do sentimento de receio ou mesmo de
temor que tais discursos lhe inspiravam, sentia-se singularmente
atraído, não apenas porque eram divertidos, mas porque pareciam
tocá-lo algo seriamente. Não que intimamente desse razão às
ousadias do orador, mas havia dúvidas das quais bastava saber que
existiam ou eram possíveis para com elas sofrer. À primeira vista não
era um sofrimento cruel, antes apenas uma inquietação e um
desassossego, um sentimento misto de apelo veemente e má
consciência.
Deveria chegar o momento, e chegou, em que Designori reparou
que no meio dos seus ouvintes havia um para quem as suas
palavras eram mais do que o prazer de discutir ou um
entretenimento sugestivo, ou mesmo chocante, um rapaz louro e
calado, belo e fino, mas que tinha um ar um pouco tímido, que
corava e dava respostas lacónicas e embaraçadas quando
amavelmente lhe dirigia a palavra. É visível que este rapaz há muito
que me segue, pensou Plínio, e resolveu recompensá-lo por isso e
conquistá-lo completamente com um gesto amistoso: convidou-o a ir
ao seu quarto, à tarde. Mas este rapaz tímido e arisco não era assim
tão fácil de conquistar. Plínio teve a surpresa de verificar que ele o
evitava, sem querer dar explicações, além de que não aceitou o
convite, o que espicaçou o interesse do mais velho e, a partir desse
dia, impôs-se a si próprio conquistar o taciturno Josef, em primeiro
lugar sem dúvida por amor-próprio, e depois seriamente, pois
adivinhava nele um parceiro de jogo, talvez um futuro amigo, talvez
também o contrário. Todas as vezes que via Josef aparecer, sentia
que ele o escutava intensamente e, de todas as vezes, via-o furtar-
se mal o via aproximar-se.
Este comportamento tinha as suas razões. Havia já tempo que
Josef sentira que naquele rapaz algo de importante, de belo talvez, o
esperava, um alargamento do seu horizonte, uma descoberta, uma
iluminação, talvez também uma tentação e um perigo, mas fosse
como fosse era qualquer coisa que valia a pena que lhe
oferecessem. Ele tinha comunicado ao seu amigo Ferromonte as
primeiras reações de dúvida e espírito crítico que os discursos de
Plínio lhe tinham despertado, mas Ferromonte não lhe dera ouvidos,
declarara que Plínio era um pretensioso, que se armava em
importante e não valia a pena ouvi-lo, e ele voltara a mergulhar-se
nos seus exercícios de música. Qualquer coisa dizia a Josef que era
ao reitor que deveria expor as suas dúvidas e as suas inquietações;
mas, depois do pequeno diferendo entre ambos, faltavam
cordialidade e franqueza às suas relações: Josef temia que ele o não
compreendesse e acabasse por tomar o que dissesse sobre as
rebeliões de Plínio como uma espécie de denúncia. Nesta confusão,
que as tentativas de aproximação amistosa feitas por Plínio
tornavam cada vez mais penosa, dirige-se então ao seu protetor e
espírito bom, o Mestre da Música, numa longa carta, que chegou até
nós. Nesta, entre outras coisas, escreve o seguinte: «Ainda não é
claro para mim se Plínio espera encontrar em mim um adepto das
suas ideias ou apenas um interlocutor. Espero que a última hipótese
seja a boa, pois converter-me às suas conceções seria levar-me a
romper com a minha fé e destruir a minha vida, que doravante
tomou definitivamente raiz em Castália; lá fora não tenho nem pais
nem amigos para junto de quem voltar, no caso de alguma vez o
desejar verdadeiramente. No entanto, ainda que os discursos
impudentes de Plínio não visem converter-me ou influenciar-me, não
deixam de me confundir. Pois, para ser absolutamente sincero com o
senhor, meu venerado Mestre, encontro nas conceções de Plínio
qualquer coisa a que não posso opor um simples não: ele faz apelo
em mim a uma voz que às vezes se inclina a dar-lhe razão.
Possivelmente, é a voz da Natureza e ela contradiz de maneira
gritante a educação que recebi e o nosso modo habitual de ver as
coisas. Quando Plínio qualifica os nossos professores e os nossos
mestres de casta sacerdotal, e a nós, alunos, de rebanho de
castrados levados pela trela, trata-se evidentemente de grosserias e
exageros, mas há, no entanto, alguma verdade nisso, se não tal não
poderia preocupar-me tanto. Plínio tem o talento de dizer coisas que
espantam e desencorajam. Por exemplo: declara que o Jogo das
Contas de Vidro é um retorno à Idade do Folhetim, uma combinação
inconsequente de caracteres nos quais dissolvemos as linguagens
das diferentes artes e ciências, e que consiste apenas em
associações de ideias e somente junta analogias. Ou ainda: que a
nossa esterilidade resignada é a prova de que toda a nossa
formação e atitude espirituais não valem nada. Nós analisamos, por
exemplo, diz ele, as leis e as técnicas de todos os estilos e de todas
as épocas da música, mas não criamos, nós próprios, música nova.
Lemos e explicamos Píndaro ou Goethe e envergonhamo-nos de
fazer versos. São críticas de que não posso rir-me. E ainda não são
estas as mais graves, não são estas as que mais me ferem. É grave
que ele diga que nós, castalianos, levamos uma vida de aves
canoras, sem ganhar o pão que comemos, sem afrontar a
necessidade e a luta pela vida, sem conhecer nada nem nada querer
conhecer dessa parte da Humanidade cujo trabalho e cuja pobreza
constituem a base da nossa existência de luxo.» E esta carta
terminava com estas palavras: «Abusei talvez, Reverendíssimo, da
sua amizade e da sua bondade e espero a sua repreensão.
Repreenda-me e aplique-me uma penitência, e ficar-lhe-ei grato.
Mas tenho a maior necessidade dum conselho. Ainda serei capaz de
suportar esta situação durante um curto período. Sou incapaz de
provocar a sua evolução real e fecunda, sou demasiado fraco e
demasiado inexperiente para tanto, e o pior é, talvez, que não posso
confiar-me ao senhor reitor, a não ser que o senhor mo ordene
expressamente. Esta é a razão por que o importunei com este caso,
que começa a angustiar-me profundamente.»
Seria extremamente precioso possuirmos igualmente, preto no
branco, a resposta que o Mestre deu a este pedido de socorro. Mas
ele respondeu-lhe verbalmente. Pouco depois desta carta de Knecht,
o Magister Musicae em pessoa chegou a Waldzell para presidir a um
exame de música e, durante os dias que aí passou, ocupou-se
admiravelmente do seu jovem amigo. Soubemo-lo pelos relatos que
mais tarde disso fez Knecht. O Mestre não lhe fez a vida fácil.
Começou por examinar atentamente as suas notas escolares e
particularmente as dos seus estudos pessoais, achou estes últimos
demasiado especializados, dando nisso razão ao reitor de Waldzell, e
fez questão em que Knecht o reconhecesse perante o reitor. Deixou
igualmente diretrizes precisas sobre a atitude que Knecht devia
observar para com Designori e não partiu sem antes ter discutido
esta questão com o reitor Zbinden. Isto teve como consequência
não só o torneio sensacional, inesquecível para todos os que a ele
assistiram, entre Designori e Knecht, mas também o
estabelecimento de relações inteiramente novas entre este e o reitor.
Estas relações, tal como anteriormente, não foram cordiais e cheias
de mistério como, por exemplo, as que tinha com o Mestre da
Música, mas a sua atmosfera desanuviou-se e tornou-se menos
tensa.
O papel que então foi atribuído a Knecht determinou a sua
existência por um período bastante longo. Foi-lhe permitido aceitar a
amizade de Designori, expor-se a sofrer a sua influência e os seus
ataques sem intervenção nem controlo dos professores. Mas a tarefa
que lhe propunha o seu mentor era defender Castália contra os seus
detratores e elevar ao máximo a discussão dos pontos de vista. Isso
significava, entre outras coisas, que Josef devia apropriar-se
ativamente dos princípios das instituições de Castália e da Ordem e
tê-los sempre presentes. As justas oratórias dos dois adversários
amigos não tardaram a ser célebres, todos se apertavam para os
ouvir. O tom agressivo e irónico de Designori tornou-se mais subtil,
as suas fórmulas mais rigorosas e mais sérias, a sua crítica mais
realista. Até ali, tinha sido Plínio quem levara a melhor; vinha do
«século», tinha a experiência, os métodos, as formas de ataque do
«século» e também algo da sua irreflexão, conhecia, das conversas
dos adultos tidas em sua casa, tudo quanto o «século» tinha a opor
a Castália. As réplicas de Knecht obrigaram-no então a dar-se conta
de que, se conhecia bem o «século», melhor do que todos os
castalianos, estava longe de conhecer Castália e o seu espírito como
aqueles que nela estavam em casa, para quem Castália era a pátria
e o destino. Aprendeu a ver, a pouco e pouco também a confessar,
que era um convidado de passagem e não um autóctone, que
existiam experiências e evidências velhas de muitos séculos, não
somente lá fora mas igualmente dentro da Província pedagógica,
que havia aqui também uma tradição e até mesmo uma «natureza»
que só em parte conhecia e que, através do seu porta-voz, Josef
Knecht, proclamava o seu direito ao respeito. Knecht, em
contrapartida, para satisfazer o seu papel de apologista, era
obrigado a apropriar-se incessantemente, e cada vez mais
profundamente, e de adquirir por meio do estudo, da meditação e
da disciplina uma consciência cada vez mais clara do que tinha de
defender. No plano da retórica Designori era superior; para lá do
fogo e da ambição naturais, vinham em seu auxílio um certo treino
mundano, uma certa astúcia; sabia nomeadamente, mesmo quando
estava a perder, não esquecer o auditório e arranjar uma saída cheia
de dignidade ou espirituosa, ao passo que Knecht, quando
encurralado pelo adversário, era capaz de lhe dizer: «Ainda tenho de
refletir, Plínio. Espera alguns dias, que eu volto a falar-te sobre
isto.»
Mas se bem que este estado de coisas revestisse esta forma de
dignidade e se tornasse então para os protagonistas e os ouvintes
dos seus discursos um elemento indispensável da vida escolar de
Waldzell, Knecht não sofria menos com este drama e este conflito. A
alta confiança que nele depositavam e a importância da
responsabilidade com que o carregavam permitiram-lhe assim
desincumbir-se da sua tarefa, e uma prova do seu vigor e da sua
boa constituição naturais é o facto de ter podido levá-la a cabo, sem
parecer comprometer a sua saúde. Mas teve de sofrer muito em
silêncio. A amizade que sentia por Plínio não ia somente para o
camarada sedutor e espiritual, mas para aquele Plínio mundano e
bem-falante, ia em igual medida para o mundo estranho cujo
representante era o seu amigo e adversário, para o mundo que
aprendia a conhecer ou a adivinhar na sua figura, nas suas falas e
nos seus gestos, para esse mundo dito «real», onde havia mães
ternas e crianças, esfomeados e asilos de pobres, jornais e lutas
eleitorais, para esse mundo ao mesmo tempo primitivo e refinado ao
qual Plínio voltava todas as férias, para visitar os pais, os irmãos e as
irmãs, para fazer a corte às raparigas, assistir a reuniões de
operários ou ser hóspede de clubes seletos, enquanto Knecht ficava
em Castália, a dar passeios a pé ou a nadar com os camaradas, a
exercitar-se a tocar os Ricercari de Froberger ou a ler Hegel.
Para Knecht não havia dúvida de que pertencia a Castália e que
tinha razão em viver a vida castaliana, sem família, sem distrações
fabulosas de espécie nenhuma, sem jornais, mas onde ignorava a
fome e a miséria – é verdade, de resto, que Plínio, que sabia criticar
com tanta insistência aos alunos de elite a sua vida de parasitas,
nunca até então sofrera fome nem ganhara ele próprio o seu pão.
Não, o mundo de Plínio não era um mundo melhor, nem mais bem
concebido. Mas existia, estava ali, tinha sempre estado ali, e esse
universo tinha sido sempre semelhante ao que era outrora, inúmeros
povos não tinham conhecido outro e ignoravam as escolas de elite, a
Província pedagógica, a Ordem, os Mestres e o Jogo das Contas de
Vidro. A grande maioria dos homens de todo o Mundo vivia de um
modo diferente de Castália, com uma existência mais simples, mais
primitiva, mais perigosa, menos protegida e menos ordenada. E esse
mundo primitivo era inato em todos os homens, sentiam-se-lhe os
vestígios no coração, sentia-se curiosidade por esse mundo,
saudade, compaixão. Fazer-lhe justiça, guardar-lhe no coração um
certo direito de cidade, sem no entanto cair até esse nível, esse era
o problema. Pois ao lado desse universo e acima dele havia o
segundo mundo, castálico, do espírito, um mundo artificial, mais
bem ordenado e protegido, mas que exigia uma vigilância e um
trabalho constantes: a hierarquia. Servi-lo sem no entanto infligir ao
outro a injustiça nem o deprezo, sem tão-pouco sucumbir ao poder
dum desejo ou duma nostalgia pouco claros, a boa solução devia ser
essa. Pois o pequeno mundo de Castália estava, no fundo, ao serviço
desse outro vasto universo, dava-lhe professores, livros, métodos,
velava para nele manter a pureza das funções espirituais e da moral,
e abria a sua escola e o seu asilo ao pequeno número de homens
cujo destino parecia ser o de consagrarem a vida ao espírito e à
verdade. Por que razão esses dois mundos que viviam lado a lado e
um no outro pareciam ignorar a harmonia e a fraternidade? Por que
razão não se podia uni-los e guardá-los a ambos no coração?
Aconteceu que uma das raras visitas do Mestre da Música teve
lugar numa altura em que Josef, fatigado e desmoralizado pela sua
tarefa, tinha grande dificuldade em manter o equilíbrio. O Mestre
podia concluí-lo a partir de algumas alusões do adolescente, mas
leu-o bem mais claramente na sua expressão de cansaço, nos seus
olhos inquietos, em todo o seu aspeto um pouco descuidado. Fez-lhe
algumas perguntas para o sondar, encontrou falta de vontade e
reticências, renunciou a interrogá-lo e, seriamente preocupado,
levou-o para uma sala de exercícios, com o pretexto de lhe participar
uma pequena descoberta dos musicólogos. Mandou-o trazer-lhe um
clavicórdio e que o afinasse, e submeteu-o a uma tão longa
conferência sobre a génese da sonata, que o seu aluno acabou por
esquecer um pouco as suas misérias, entregou-se e seguiu,
descontraído e grato, as suas palavras e o seu jogo. O Mestre gastou
pacientemente o seu tempo para o trazer ao estado de
disponibilidade e recetividade que lamentava não ver nele. E quando
o conseguiu, quando terminou a sua exposição e tocou, para
concluir, uma sonata de Gabrieli, ergueu-se, pôs-se a andar
lentamente de um lado para o outro da sala e contou-lhe:
– Esta sonata, uma vez há muitos anos, ocupou-me muito. Foi
ainda nos meus anos de estudos livres, antes de me nomearem
professor e depois Mestre da Música. Na altura tinha a ambição de
fazer uma história da sonata segundo ideias novas, mas veio um
momento em que não só não avancei mais como comecei a duvidar
cada vez mais que essas investigações musicais e históricas tivessem
qualquer valor, que não fossem mais do que um passatempo fútil
para pessoas ociosas e uma mistificação intelectual e artística, um
substituto da verdadeira vida. Resumindo, tive de atravessar uma
dessas crises durante as quais todos os estudos, todos os esforços
intelectuais, tudo o que é do espírito em geral se torna contestável e
sem valor, e em que somos levados a invejar cada camponês com a
sua charrua, cada par de namorados ao entardecer e até o pássaro
que chilreia num ramo, até a cigarra que canta no verão tão bem de
acordo com a Natureza, com tanta plenitude e felicidade, e nós
ignoramos tudo das misérias e das dificuldades, dos perigos e das
dores das suas vidas... Resumindo, tinha mais ou menos perdido o
equilíbrio, o que não era um lindo estado de alma e era mesmo até
bastante penoso de suportar. Procurava em mim as possibilidades de
fuga e de libertação as mais singulares, sonhava ir-me embora pelo
mundo como músico ambulante, tocar em casamentos, e se, como
nos romances antigos, um sargento estrangeiro aparecesse e me
convidasse a vestir uma farda e ir com umas tropas quaisquer para a
primeira guerra que viesse, teria ido com ele. E aconteceu o que
costuma acontecer com frequência nestes estados de espírito: senti-
me a tal ponto perdido que não fui capaz de me salvar sozinho e
precisei de ajuda.
Parou um instante, a rir-se. Depois continuou: – Tinha
naturalmente um conselheiro de estudos, como é do regulamento, e
naturalmente ele seria sensato e conveniente, o meu dever era
pedir-lhe conselho. Mas a vida é assim, Josef: é precisamente
quando estamos em dificuldades e nos desviamos do bom caminho,
quando teríamos a maior necessidade que nos corrijam, que mais
nos repugna precisamente voltar ao bom caminho e ir procurar a
boa correção. O meu conselheiro de estudos não tinha ficado
satisfeito com o meu último boletim trimestral, tinha-me feito sérias
observações, mas eu julgava estar no caminho de descobertas ou de
ideias novas e aceitei bastante mal as suas críticas. Em resumo, não
tinha vontade de ir procurá-lo, não tinha vontade de ajoelhar e
reconhecer que ele tinha razão. Tão-pouco queria confiar-me aos
meus camaradas, mas havia por ali um original, que só conhevia de
vista e de reputação, um especialista em sânscrito, a quem
chamavam o «yogin». A um dado momento, em que o meu estado
me parecia ter-se tornado bastante intolerável, fui a casa desse
homem, cuja atitude um pouco solitária e singular me provocava
muitas vezes tanto um sorriso como uma secreta admiração. Fui
encontrá-lo na sua cela, preparei-me para lhe dirigir a palavra, mas
encontrei-o mergulhado em recolhimento: ele observava, para o
fazer, a posição indiana ritual e estava inacessível, flutuava com um
leve sorriso, num êxtase perfeito. Não me restou senão esperar, à
porta, que saísse da sua contemplação. Durou muito tempo, uma
hora, duas, acabei por me cansar e deixei-me escorregar para o
chão; fiquei sentado, encostado à parede e continuei à espera. Por
fim, viu-o despertar lentamente, mexeu um pouco a cabeça,
endireitou os ombros, descruzou lentamente as pernas e, quando se
preparava para se levantar, o seu olhar caiu sobre mim. «Que
queres?», perguntou. Ergui-me e declarei-lhe, sem a menor reflexão
e sem saber bem o que dizia: «São as sonatas de Andrea Gabrieli.»
Ele acabou por se pôr em pé, sentou-me na sua única cadeira,
arranjou para ele espaço na borda da mesa e disse: «Gabrieli? Então
que te fez ele com as suas sonatas?» Comecei a contar-lhe o que
me tinha acontecido, a confessar-lhe em que estado me encontrava.
Ele informou-se com uma minúcia que me pareceu pedante sobre a
minha história, os meus estudos sobre Gabrieli e sobre a sonata,
quis saber a que horas me tinha levantado, quanto tempo tinha lido,
quanto tempo tinha praticado música, a que horas havia tomado as
minhas refeições e a que horas me deitara. Eu confiara-me,
impusera-me mesmo a ele, por conseguinte devia suportar este
interrogatório e responder-lhe, mas isso envergonhava-me, ele
entrava cada vez mais inexoravelmente nos pormenores, analisou a
minha vida intelectual e moral das semanas e dos meses
precedentes. Então, de repente, calou-se, encolheu os ombros e
disse-me: «Pois não vês onde está o erro?» Não, não conseguia vê-
lo. Então ele recapitulou com uma precisão espantosa tudo o que
me extorquira com as suas perguntas, recuou até aos primeiros
sinais de fadiga, de repugnância e de intoxicação intelectual e
demonstrou-me que esses aborrecimentos só podiam acontecer a
um rapaz que se lançava sem freio no estudo e que era mais do que
tempo de voltar a encontrar, com a ajuda de outros, o controlo que
perdera sobre mim próprio e as minhas próprias forças. Mesmo que
tivesse tido a liberdade de renunciar aos meus exercícios regulares
de meditação, prosseguiu ele, devia lembrar-me pelo menos dessa
negligência logo aquando dos primeiros efeitos do mal e repará-la. E
tinha absolutamente razão. Não somente eu havia desleixado a
meditação durante todo um período, não tinha tido tempo livre para
isso, faltara-me sempre a vontade para tal, estava demasiado
distraído ou demasiado absorvido e excitado pelos meus estudos,
mas, com o tempo, perdera mesmo totalmente a consciência desse
pecado permanente de omissão, e tinha-se tornado necessário,
quando me vi à beira de falhar e do desespero, que alguém mo
lembrasse. E, de facto, então tive a maior dificuldade para me
arrancar a essa inércia, tive de retomar os exercícios escolares de
meditação dos principiantes, para recuperar, pouco a pouco, ao
menos a capacidade de concentração e recolhimento.
O Magister terminou o seu passeio pela salinha de estudos com
um breve suspiro e com as palavras: – Isto foi o que há muito
tempo me aconteceu e ainda hoje tenho vergonha de falar disso.
Mas é assim, Josef: quanto mais exigimos de nós ou quanto mais a
nossa tarefa do momento exige de nós, tanto mais temos
necessidade dessa fonte de vigor que é a meditação, dessa
reconciliação continuamente renovada do espírito e da alma. E...
poderia citar ainda muitos exemplos... quanto mais um trabalho nos
absorve profundamente e, ora nos excita e nos estimula, ora nos
cansa e abate, tanto mais pode acontecer facilmente que nos
esqueçamos dessa fonte, assim propendemos a esquecer os
cuidados com o corpo quando estamos mergulhados num trabalho
intelectual. Os homens verdadeiramente grandes da história
universal, ou souberam meditar, ou encontraram, sem se dar conta,
a via que leva aonde nos conduz a meditação. Os outros, mesmo os
mais dotados e vigorosos, acabaram por soçobrar e ser vencidos
porque a sua tarefa ou os seus sonhos ambiciosos se apoderaram
deles e os possuíram a tal ponto que perderam a capacidade de se
desprenderem da atualidade e dela se distanciarem. Mas tu sabes
isto, aprende-se logo nos primeiros exercícios. É uma verdade
impiedosa. Quão impiedosa é esta verdade, só o vemos quando nos
transviamos.
Esta história teve tanta influência em Josef que o fez suspeitar do
perigo em que se encontrava e levou-o a submeter-se aos exercícios
com renovada dedicação. Causou-lhe uma impressão tão forte que o
Mestre tenha evocado, em sua intenção, um episódio estritamente
pessoal da sua vida, da sua juventude e dos seus anos de estudo;
pela primeira vez compreendeu claramente que um semideus, um
Mestre, tivesse podido, também ele, ser jovem e andar por maus
caminhos. Ficou reconhecido a esse homem venerado pelo grau de
confiança que lhe manifestava com essa confissão. Era possível sair
do bom caminho, cansar-se, cometer erros, infringir regulamentos e
mesmo assim acabar por voltar ao bom caminho, ser finalmente um
Mestre. Venceu esta crise.
Nos dois a três anos de Waldzell que durou a amizade entre Plínio
e Josef, a escola, do reitor ao mais novo dos alunos, assistiu ao
espetáculo do seu conflito amistoso. Os dois mundos, os dois
princípios, tinham-se encarnado em Knecht e em Designori, um
estimulava o outro, cada discurso tornava-se um duelo solene e
representativo que a todos dizia respeito. E assim como Plínio ficava
com novas forças de cada vez que nas férias ia ver os seus e
abraçava o solo natal, também Josef aspirava em cada reflexão, em
cada nova entrevista com o Magister Musicae, um vigor novo e
tornava-se mais apto a representar e defender Castália. Conhecera
outrora, quando criança, o primeiro apelo da vocação. Conhecia
agora o segundo, e esses anos foram a forja e o molde que lhe
deram a figura do perfeito castaliano. Havia também muito tempo
que passara pelo ensino elementar do Jogo das Contas de Vidro e
começara já nessa época a esboçar algumas partidas durante as
férias e debaixo do controlo dum dos monitores do Jogo. Nele
descobriu uma das mais generosas fontes de alegria e
apaziguamento interior. Desde os exercícios de cravo e de
clavicórdio, que não se cansara de fazer com Ferromonte, nada lhe
fizera tanto bem, nada fora para ele dum tão grande
apaziguamento, duma tão grande confirmação e duma tão grande
felicidade como estas primeiras investidas no firmamento do Jogo
das Contas de Vidro.
É precisamente desses anos que datam os poemas do jovem Josef
Knecht que chegaram até nós na cópia de Ferromonte. É muito
possível que existissem mais do que estes, e pode-se admitir que
esses poemas, de que os mais antigos foram compostos antes
mesmo de Knecht ter sido iniciado no Jogo das Contas de Vidro,
contribuíram para lhe permitir aguentar até ao fim o seu papel e
superar esses anos críticos. Nesses versos, em parte cheios de arte,
em parte lançados à pressa ao papel, todos os leitores descobrirão
aqui e ali vestígios do grande abalo e da crise que Knecht então
sofreu por influência de Plínio. Em mais do que um verso se
encontra uma inquietação profunda, duma dúvida sistemática de si e
do sentido da sua existência, até que no poema Jogo de Contas de
Vidro parece alcançar uma entrega fervente. De resto, era já uma
concessão ao mundo de Plínio e um ato de rebelião contra
determinadas leis internas de Castália escrever esses poemas e, o
que é mais importante, mostrá-los, nessa altura, a vários
camaradas. Pois se, regra geral, Castália renunciou a produzir obras
de arte (lá não se conhece e não se tolera a produção musical senão
na forma de exercícios de composição, de estilo rigorosamente
determinado), fazer versos passava pela mais impensável, a mais
ridícula, a mais vergonhosa das atividades. Esses poemas não são,
por conseguinte, uma simples brincadeira, um trabalho de escultor
amador; foi necessária uma pressão poderosa para abrir as
comportas a esta produtividade, e uma certa coragem e um espírito
de desafio para escrever esses versos e neles se reconhecer.
Não devemos esquecer-nos de dizer que Plínio Designori sofreu,
também ele, uma mudança e uma evolução notáveis por influência
do seu antagonista; ele não se limitou a aprender métodos de
combate mais nobres. Durante esta polémica amistosa, viu o seu
parceiro tornar-se, numa progressão constante, um castaliano
exemplar; o espírito da Província pedagógica tornou-se-lhe cada vez
mais sensível e mais vivo na figura do amigo e, tal como, até um
certo grau de fermentação, infetara Josef com a atmosfera do seu
universo, ele próprio respirava o ar de Castália e sucumbiu ao seu
encanto e à sua influência. Durante o seu último ano de escola,
depois de ter discutido duas horas sobre os ideais da condição de
monge e os seus perigos perante a classe superior do Jogo das
Contas de Vidro, levou Josef a dar um passeio. Durante este fez-lhe
esta confissão que citamos a partir duma carta de Ferromonte: «Sei
naturalmente, Josef, que não és o beato Jogador de Contas de Vidro
nem o santo da Província cujo papel tão admiravelmente
desempenhas. Encontramo-nos, cada um de nós, no lugar mais
exposto dum combate e cada um sabe perfeitamente que o que
combate tem razão de ser e representa valores indiscutidos. Tu estás
do lado duma alta disciplina espiritual e eu no campo da vida
segundo a Natureza. O nosso duelo ensinou-te a descobrir os
perigos desse combate e a enfrentá-los. Tu tens por função mostrar
que a vida natural e ingénua pode, sem a disciplina do espírito,
tornar-se estúpida e levar-nos ao estádio do animal ou mais baixo
ainda. E a mim, pelo meu lado, é-me necessário lembrar até que
ponto uma existência centrada unicamente no espírito pode ser
arriscada, perigosa e, no fundo, estéril. Seja! Cada um defende o
que julga ser um primado, tu o Espírito, eu a Natureza. Mas não
deves querer-me mal por isso, às vezes parece-me quase que vês
efetivamente e ingenuamente em mim uma espécie de inimigo da
vossa Castália, um homem para quem os vossos estudos, os vossos
exercícios e os vossos jogos são, no fundo, apenas disparates, ainda
que, por um motivo ou por outro, esse homem perca algum tempo a
jogá-los convosco. Ah! meu caro, que erro não seria o teu se
acreditasses nisso verdadeiramente! Vou confessar-te que tenho um
amor louco pela vossa hierarquia: muitas vezes encanta-me e seduz-
me, parece-me a própria felicidade. Vou também confessar-te que,
há alguns meses, durante uma estada em casa, discuti com o meu
pai e consegui que ele me deixasse ser castaliano e entrasse para a
Ordem, caso tais fossem, no termo dos meus estudos, o meu desejo
e a minha decisão, e fiquei feliz por no fim ter o seu consentimento.
Pois bem, não farei uso dele, só há pouco tempo o sei. Oh! não que
tenha perdido a vontade de o ser! Mas vejo cada vez melhor: ficar
convosco seria da minha parte uma fuga, correta e nobre talvez,
mas apesar de tudo uma fuga. Vou voltar para casa e ser um
homem do mundo, mas um homem que permanecerá grato à vossa
Castália, que continuará a praticar muitos dos vossos exercícios e a
celebrar todos os anos convosco o grande Jogo das Contas de
Vidro.»
Com profunda emoção, Knecht contou esta confissão de Plínio a
Ferromonte. E, precisamente nessa carta, este acrescenta a esse
relato as palavras seguintes: «Para mim, músico, esta conversão de
Plínio, a quem eu nem sempre prestara justiça, foi como uma
emoção musical. A oposição espírito-mundo ou a oposição Plínio-
Josef, a luta dos dois princípios inconciliáveis, tinha-se sublimado,
perante os meus olhos, num concerto.»
Quando Plínio concluiu os seus quatro anos de escola e teve de
voltar para casa, levou ao reitor uma carta do seu pai, na qual Josef
Knecht era convidado para as férias. Era uma proposta fora do
habitual. Não era raro, é verdade, que se concedessem licenças de
viagem e autorizações de estada fora da Província pedagógica,
especialmente por motivos de estudos, mas era apesar de tudo
excecional: só os estudantes duma certa idade e que tinham feito os
seus exames, as obtinham, nunca os alunos. Mesmo assim, este
convite, que emanava duma casa e dum homem tidos em alta
estima, foi julgado pelo reitor Zbinden como sendo bastante
importante para o rejeitar com a sua própria autoridade; submeteu-
o à comissão da administração do ensino, que lhe respondeu
imediatamente com uma decisão lacónica. Os nossos amigos tiveram
de se despedir um do outro.
– Tentaremos convidar-te novamente mais tarde – disse Plínio. –
Um dia ou outro havemos de o conseguir. Tens de conhecer a casa
onde nasci e os meus. Tens de ver que também nós somos seres
humanos e não uma simples mistura de homens de negócios e
mundanos. Vais faltar-me muito. Procura subir, Josef, rapidamente
os degraus desta Castália complicada; claro, tu és bem constituído
para te integrares numa hierarquia, mas, em minha opinião, mais
como bonzo do que como fâmulo, apesar do teu nome8. Predigo-te
um grande futuro, um dia serás Magister e uma das Eminências.
Josef olhou para ele com tristeza.
– Troça – disse-lhe, lutando com a emoção das despedidas. – A
minha emoção não é tão grande como a tua, e, se um dia me derem
uma função, tu há muito que serás presidente ou burgomestre,
professor universitário ou conselheiro federal. Pensa em nós, Plínio,
e em Castália, não te afastes completamente de nós! É preciso que
haja entre vós, lá fora, pessoas que conheçam de Castália um pouco
mais do que as piadas que dizem sobre nós.
Apertaram-se as mãos e Plínio partiu. O último ano que Josef
passou em Waldzell foi muito calmo, as fatigantes funções de
primeiro plano que nela ocupava na qualidade de personagem quase
oficial acabaram repentinamente. Castália não precisava mais dum
defensor. Nesse ano consagrou sobretudo as suas horas de liberdade
ao Jogo das Contas de Vidro, que o atraía cada vez mais. Um seu
caderno de notas dessa época, sobre o significado e a teoria do
Jogo, começa com esta frase: «A totalidade da vida, tanto física
como intelectual, é um fenómeno dinâmico, do qual o Jogo das
Contas de Vidro, no fundo, não abarca senão o aspeto estético, e
sobretudo sob a forma de processos rítmicos.»
8 Knecht: servo. (N. do T.)
OS ANOS DE ESTUDO

Josef Knecht tinha então cerca de vinte e quatro anos. A partida


de Waldzell marcava o fim da escolaridade, era o começo da vida de
estudante livre. Com exceção dos anos inocentes da infância que
passou em Eschholz, estes foram sem dúvida os mais serenos e os
mais felizes da sua existência. É uma maravilha sempre nova e duma
comovente beleza a sede de descoberta e de conquista dum jovem
que erra à aventura, livre pela primeira vez dos condicionalismos da
escola, e se orienta para os horizontes sem fim do espírito; ainda
não viu murchar nenhuma ilusão, ainda não sentiu aflorá-lo
nenhuma dúvida sobre a sua inesgotável capacidade de entusiasmo
nem o infinito do mundo espiritual. Para naturezas tão dotadas como
as de seres como Josef Knecht, que nenhum talento cedo levou a
concentrarem-se numa especialidade, mas que, por temperamento,
visam a totalidade, a síntese, a universalidade, a primavera dos
estudos livres, é muitas vezes um período de felicidade intensa,
quase de embriaguez. Se esse período não tivesse sido precedido
pela formação rigorosa da escola de elite, acompanhada pela higiene
mental dos exercícios de meditação e o controlo indulgente das
autoridades do ensino, essa liberdade seria um grande perigo para
as naturezas assim dotadas; seria fatal a muitos, como aconteceu
com inúmeros e eminentes talentos antes da nossa atual
organização, durante os séculos pré-castalianos. As universidades
dessas épocas fervilhavam às vezes literalmente de jovens naturezas
fáusticas que vogavam, de velas desfraldadas, para o mar alto das
ciências e das liberdades universitárias, para sofrerem todos os
naufrágios dum diletantismo sem freio; o próprio Fausto é bem o
protótipo do diletante genial, cuja tragédia encarna. Ora, em
Castália, a liberdade intelectual dos estudantes é ainda infinitamente
maior do que nas universidades das épocas precedentes, pois as
possibilidades de estudo que se lhes oferecem são muito mais ricas
e ignora-se totalmente, por outro lado, a influência e a limitação
impostas pelas condições materiais, a ambição, as apreensões, a
pobreza dos pais, as perspetivas de ganha-pão e de carreira, etc.
Nas academias, nos institutos, nas bibliotecas, nos arquivos, nos
laboratórios da Província pedagógica, todos os estudantes, seja qual
for a sua origem e o seu futuro, são postos exatamente no mesmo
plano; a hierarquia tem o seu fundamento exclusivamente nas
disposições e nas qualidades de espírito e de carácter dos alunos.
Em contrapartida, no plano material e espiritual, a maior parte das
liberdades, das tentações e dos perigos de que são vítimas muitos
bons estudantes nas universidades do século, não existe em
Castália. Subsistem ainda bastantes perigos, demónios e miragens –
em alguma parte poderia a existência humana ser isenta deles? –,
mas pelo menos o estudante de Castália é subtraído a muitas
possibilidades de desvio, de desilusão e de naufrágio. Não é possível
acontecer-lhe sucumbir à bebida, nem sacrificar os seus anos de
juventude às tradições de bravata ou às das sociedades secretas,
caras a certas gerações de estudantes doutras épocas. Tão-pouco se
arrisca a descobrir um dia que os seus diplomas não provavam nada,
nem somente descobrir, já nos seus estudos livres, lacunas
irremediáveis na sua formação de base. A organização de Castália
preserva-o dessas imperfeições. O perigo de se dissipar com
mulheres ou de cometer excessos desportivos também não é em
Castália muito grande. No que respeita às mulheres, o estudante
castaliano não conhece o casamento, com as suas tentações e os
seus perigos, nem o falso pudor de inúmeras épocas passadas, que
forçavam o estudante a um ascetismo sexual ou o obrigavam a
frequentar mulheres mais ou menos venais e prostitutas. Como para
os castalianos o casamento não existe, tão-pouco existe uma moral
do amor concebida em função do casamento. Como o dinheiro, e,
em suma, também a propriedade, não existem para ele, tão-pouco
existe a venalidade do amor. O costume da Província quer que as
mulheres dos cidadãos laicos não se casem muito cedo e, nos anos
que precedem o casamento, o estudante e o letrado aparecem-lhes
como amantes especialmente desejados, já que não se inquietam
nem com a família nem com a fortuna delas, estão habituados a
conceder tanto valor às capacidades intelectuais como às
capacidades vitais, possuem geralmente imaginação e humor e, não
tendo dinheiro, pagam mais do que os outros com a sua própria
pessoa. Para a amiga dum estudante de Castália a pergunta «casará
comigo?» não se põe. Não, ele não casa com ela. Na realidade,
também isso já aconteceu: é raro, mas aconteceu por vezes que um
estudante de elite regressasse ao mundo burguês pelo casamento,
renunciando a Castália e à Ordem. Mas esses poucos renegados têm
na história da escola e da Ordem apenas interesse como
curiosidade.
O grau de liberdade e o direito de decidir por si próprio de que
usufrui o aluno de elite em todos os domínios da investigação e da
ciência, uma vez saído das escolas preparatórias, é de facto muito
grande. A única limitação imposta a essa liberdade, a menos que as
suas capacidades e os seus gostos a limitem desde o início, é a
obrigação feita a todo o estudante livre de apresentar todos os
semestres um plano de estudos, cuja execução é controlada com
indulgência pela administração. Para aqueles cujos talentos e cujas
curiosidades são múltiplos – era o caso de Knecht – esta liberdade
confere a esses poucos primeiros anos de estudos uma sedução e
um encanto maravilhosos. É precisamente a esses espíritos curiosos
que a administração dá uma liberdade quase paradisíaca, salvo
quando degenera em vagabundagem. O estudante tem licença para
provar todos os saberes, para misturar as disciplinas mais diferentes,
para se apaixonar ao mesmo tempo por seis ou oito ciências ou
quedar-se desde o início por uma escolha mais restrita. Fora da
observação dos princípios gerais de moral em vigor na Província e na
Ordem, exige-se apenas que forneça a prova, uma vez por ano, das
conferências a que assistiu, das leituras e dos trabalhos a que se
entregou nos institutos. Só se começa a controlar e a examinar de
mais perto o seu trabalho nos cursos e nos trabalhos práticos de
especialidades que ele frequenta e dos quais também fazem parte
os do Jogo das Contas de Vidro e dos Altos Estudos Musicais. Aí,
cada estudante deve evidentemente submeter-se aos exames
oficiais e entregar os trabalhos exigidos pelo diretor do instituto, o
que é evidente. Mas ninguém o obriga a frequentar esses cursos,
pode muito bem contentar-se, durante semestres e anos, em passar
o seu tempo nas bibliotecas e assistir a conferências. Os estudantes
que escolhem um prazo longo antes de se ligarem a um estudo
especializado, atrasam dessa maneira, é verdade, a admissão na
Ordem, mas suportam-se com muita tolerância, encorajam-se
mesmo as suas vagabundagens por todas as ciências e ramos de
estudos possíveis. Fora da correção moral, nada lhes é exigido,
nenhum trabalho, a não ser a redação dum curriculum vitae anual. A
esta velha tradição, que muitas vezes é objeto de gracejos, devemos
os três curricula escritos por Knecht durante os seus anos de
estudos. Não se trata, no que a eles diz respeito, como era o caso
dos poemas escritos em Waldzell, duma espécie de atividade
puramente espontânea e pessoal, clandestina mesmo, e mais ou
menos proibida, mas dum género normal e oficial. Desde os
primeiros tempos da Província pedagógica instaurou-se o costume
de exigir sempre dos estudantes mais jovens, isto é, daqueles que
ainda não tinham sido admitidos na Ordem, um género especial de
dissertação ou exercício de estilo a que se chamou curriculum vitae:
uma autobiografia fictícia, situada em qualquer época passada. A
tarefa do estudante consistia em situar-se num meio e numa cultura,
e em imaginar uma vida que lhes correspondesse. Conforme os anos
e a moda, a preferência ia para a Roma imperial, a França do século
XVII ou a Itália do século XV, para a Atenas de Péricles ou a Áustria
de Mozart e, entre os linguistas, tornara-se de uso redigir esses
romances biográficos na língua e no estilo do país e da época em
que se passavam. Houve por vezes biografias de grande virtuosismo,
no estilo da Cúria pontifical romana de 1200, no latim dos monges,
no italiano das Cem Novelas, no francês de Montaigne, no alemão
barroco do Cisne de Von Boberfeld. Nesta forma de jogo livre havia
uma sobrevivência da antiga crença asiática na ressurreição e na
metempsicose; era corrente, para todos os professores e alunos,
imaginarem que as suas existências atuais podiam ter sido
precedidas por outras em outros corpos, em épocas e em condições
diferentes. Não era evidentemente uma fé, no sentido estrito do
termo, e ainda menos uma doutrina; era um exercício, um jogo de
forças imaginativas, imaginar o próprio eu em situações e meios
diferentes. Treinavam-se desta maneira, como no decurso de muitos
trabalhos práticos de crítica de estilo e muitas vezes também no
Jogo das Contas de Vidro, a penetrar cautelosamente em culturas,
épocas e países do passado, aprendiam a considerar a sua própria
pessoa como uma máscara, como a veste precária duma enteléquia.
O costume de escrever curricula deste género tinha o seu encanto e
apresentava inúmeras vantagens; caso contrário, também não teria
sido sem dúvida mantido durante tanto tempo. Aliás, o número de
estudantes que acreditavam relativamente não apenas na ideia da
reencarnação mas também na verdade dos curricula da sua própria
invenção, não é pequeno. Pois, evidentemente, a maior parte dessas
existências anteriores imaginárias não eram unicamente exercícios
de estilo e estudos históricos, mas também quadros dos seus ideais
e retratos idealizados das suas pessoas. Os autores da maior parte
desses curricula descreviam-se com as roupas e o carácter com que
era seu desejo e ideal parecerem-se e realizarem-se. Por outro lado,
pedagogicamente falando, a ideia do curriculum vitae não era má,
era um exutório legítimo para as necessidades de criação literária da
juventude. Se, gerações antes, a criação literária verdadeira e séria
estava no índex e fora substituída parcialmente pelas ciências e pelo
Jogo das Contas de Vidro, o instinto artístico e criador da juventude
não fora suprimido; encontrava um campo de ação lícita nesses
curricula, que atingiam por vezes as dimensões de pequenos
romances. Mais dum autor deu desse modo os primeiros passos no
domínio do conhecimento de si próprio. Aliás, também com bastante
frequência e geralmente, os professores acolhiam isso com
benevolência compreensiva, os estudantes aproveitavam os curricula
para se entregarem a críticas e a declarações revolucionárias sobre o
mundo de então e sobre Castália. Mas, por outro lado, essas
dissertações constituíam para os professores, precisamente durante
o período em que os estudantes gozavam duma extrema liberdade e
estavam subtraídos a todo o controlo preciso, uma fonte preciosa de
informação; com frequência forneciam informações espantosamente
reveladoras sobre a vida e a saúde intelectual e moral dos seus
autores.
Três curricula, escritos por Josef Knecht, chegaram até nós.
Reproduzi-los-emos palavra por palavra e considerá-los-emos como
a parte quiçá a mais preciosa do nosso livro. Ele redigiu apenas
esses três curricula, não se perdeu mais nenhum? Sobre isso podem
fazer-se diversas conjeturas. A única coisa que sabemos com certeza
é que a secretaria da administração do ensino, depois de Knecht lhe
ter entregue o terceiro, o curriculum vitae «indiano», convidou-o, no
caso de escrever mais um depois deste, a situá-lo numa época
menos recuada, sobre a qual se estivesse mais bem documentado, e
a pôr mais cuidado nos pormenores históricos. Sabemos, por relatos
e por cartas, que ele iniciou, a seguir a isto, estudos preparatórios
duma biografia do século XVIII. Nela, queria figurar com as feições
dum teólogo suabo que seguidamente abandonava a Igreja para se
consagrar à música e que era aluno de Johann Albrecht Bengel,
amigo de Oetinger e, durante algum tempo, hóspede da comunidade
de Zinzendorf. Sabemos que Knecht leu nessa altura uma
quantidade de obras antigas, em parte esotéricas, sobre o direito
eclesiástico, o pietismo, Zinzendorf, a liturgia e a música sacra dessa
época e que escreveu notas com base nelas. Sabemos também que
se apaixonou verdadeiramente pela personagem de Oetinger, o
prelado mágico, que sentia um verdadeiro amor e um profundo
respeito pelo Magister Bengel: mandou fazer uma fotografia do seu
retrato e teve-o durante algum tempo na sua mesa de trabalho.
Sabemos também que se esforçou com toda a honestidade em fazer
justiça a Zinzendorf, por quem sentia tanto interesse como aversão.
Finalmente, deixou esse trabalho em plano, satisfeito com o que lhe
permitira aprender, mas declarou-se incapaz de escrever uma
biografia com ele, pois tinha feito demasiados estudos particulares e
acumulado demasiados pormenores. Esta justificação demonstra
plenamente o nosso ponto de vista: os três curricula que citamos
devem ser considerados mais como criações e confissões dum
espírito literário e dum carácter nobre do que como trabalhos de
sábio, do que não desmerecem, em nosso entender.
Knecht viu acrescentar-se então à liberdade do estudante,
entregue aos estudos da sua escolha, uma liberdade e uma calma
suplementares. Não tinha sido simplesmente um pensionista como
todos os outros, não tinha tido somente de suportar a ordem duma
educação severa, dum horário rigoroso, o controlo e a vigilância
atenta dos professores, e dedicar-se a todos os esforços dum aluno
de elite. Ao lado e muito para lá de tudo isso, tinha sido, devido às
suas relações com Plínio, encarregado dum papel e duma
responsabilidade que representavam para o seu espírito e a sua
alma um aguilhão e um fardo que confinavam com os limites do
possível. Era um papel tanto ativo como representativo, e uma
responsabilidade verdadeiramente superior à sua idade e às suas
forças. Muitas vezes posto à prova, só cumprira a sua tarefa
recorrendo a um acréscimo de vontade e talento, e, sem o poderoso
apoio que tinha ao longe, sem o Mestre da Música, não teria de
modo nenhum chegado ao fim. No fim desses anos excecionais de
Waldzell encontramo-lo com cerca de vinte e quatro anos de idade,
mais maduro que a sua idade e um pouco esgotado na verdade,
mas, coisa espantosa, parece não ter sofrido sensivelmente com
isso. Até que profundidade esse papel e esse fardo deixaram marcas
em todo o seu ser, o colocaram num estado próximo do
esgotamento? Certamente, faltam-nos sobre este ponto
testemunhos diretos, mas, para disso nos darmos conta, basta-nos
considerar a maneira como, ao sair da escola, fez uso, nos primeiros
anos, dessa liberdade que conquistara e, sem dúvida nenhuma,
havia muito tempo desejava profundamente. Knecht, que durante os
últimos anos de escola ocupara uma posição de tal modo
proeminente e pertencera já, de algum modo, ao mundo público,
retirou-se imediata e completamente. Quando se segue pelo rasto a
sua vida nessa altura, tem-se mesmo a impressão de que teria
desejado tornar-se invisível; nenhum meio, nenhuma sociedade
podiam ter sido para ele bastante apagados, nenhuma forma de
existência bastante privada. Assim é que a algumas longas cartas
entusiastas de Designori respondeu ao princípio brevemente e sem
entusiasmo, para em seguida deixar mesmo de escrever
completamente. Knecht, o aluno célebre, desapareceu e tornou-se
inencontrável; mas em Waldzell a sua fama continuou a florir e, com
o tempo, tornou-se quase lendária.
No início dos seus anos de estudos evitou por conseguinte
Waldzell pelas razões que indicámos. Isso levou-o a renunciar
também temporariamente aos cursos médio e superior do Jogo das
Contas de Vidro. Contudo, isto é, se bem que um observador
superficial pudesse verificar então em Knecht um desleixo
surpreendente pelo Jogo das Contas de Vidro, sabemos que, em
contrapartida, a progressão, na aparência fantástica, sem nexo e em
todo o caso bastante fora do habitual dos seus estudos livres era
influenciada pelo Jogo: era para o jogo, para o seu serviço que o
conduziam. Alargar-nos-emos mais sobre este ponto, pois este traço
é característico; com um génio juvenil espantoso, Josef Knecht tirou
da sua liberdade de estudante o partido mais singular e o mais
original. Durante a sua estada em Waldzell, tinha sido, conforme o
costume, iniciado oficialmente no Jogo das Contas de Vidro e
seguido o curso de aperfeiçoamento. Seguidamente, aluno do último
ano e já reputado como bom jogador entre os seus amigos,
ressentira tão violentamente a atração do Jogo dos jogos que depois
de ter concluído um curso complementar, este rapaz, que ainda era
apenas um aluno de elite, tinha sido admitido à categoria de jogador
do segundo grau, uma distinção extremamente rara.
Alguns anos mais tarde contou a um dos seus camaradas do curso
oficial de aperfeiçoamento, que foi seu amigo e tempo depois seu
colaborador, Fritz Tegularius, uma aventura que não somente decidiu
o seu destino de Jogador de Contas de Vidro mas que exerceu
igualmente a maior influência na marcha dos seus estudos. A carta
foi conservada, e essa passagem está assim concebida: «Deixa-me
lembrar-te um dia e uma partida bem precisos dessa época
longínqua em que ambos, afetados ao mesmo grupo, trabalhávamos
com tanto afinco em tomar as nossas disposições para o Jogo das
Contas de Vidro. O nosso chefe de grupo sugerira-nos algumas
ideias e dera-nos a possibilidade de escolha entre uma variedade de
temas. Tínhamos chegado precisamente à delicada transição da
astronomia, da matemática e da física para a linguística e a história.
O nosso monitor era um virtuose na arte de construir armadilhas à
nossa avidez de principiantes e de nos atrair à pista escorregadia
das abstrações e das analogias proibidas; fazia surgir nas nossas
mãos um chamariz capitoso de etimologias e aproximações
linguísticas e ficava encantado quando um de nós caía na esparrela.
Nós calculávamos até ao esgotamento o comprimento das sílabas
gregas, para sentirmos de repente faltar-nos o chão debaixo dos
pés, pois estávamos colocados perante a eventualidade, ou, antes
mesmo, a necessidade, de escandir em função dos acentos e não
dos metros, etc. Ele desincumbia-se tecnicamente da sua tarefa com
brio e bastante corretamente, se bem que o fizesse com um espírito
que não me agradava; mostrava-nos erros e atraía-nos para a via
das especulações erradas, com a excelente intenção, é verdade, de
nos dar a conhecer os perigos, mas também para gozar um pouco
os ingénuos que nós éramos e diluir com a mais forte dose possível
de ceticismo o entusiasmo daqueles que mostrassem precisamente
ser os mais entusiasmados. E foi no entanto sob a sua direção e
durante uma das suas complexas experiências de logros que de
repente, ao tentarmos receosamente, às apalpadelas, esboçar um
problema de jogo semiválido, que fui apanhado e perturbado até ao
mais fundo do ser pelo sentido e a grandeza do nosso Jogo.
Estávamos a dissecar um problema de história da linguagem,
examinávamos em suma de muito perto o ponto culminante e a
época de esplendor duma língua, percorríamos com ela, em alguns
minutos, um caminho que exigira vários séculos, e esse espetáculo
da precariedade impressionou-me como uma força poderosa: via ali,
sob os nossos olhos, um organismo muito complexo, antigo,
venerável, que precisara de várias gerações para se edificar
lentamente, atingir o seu desenvolvimento pleno, e já a sua floração
continha o germe da sua degenerescência, toda essa construção
sabiamente composta começava a abater-se, a degenerar, a
balançar, o seu fim não estava longe, e, ao mesmo tempo, como um
raio e um arrepio de alegria, uma ideia atravessou-me: a decadência
e a morte desta língua não tinham apesar de tudo desembocado no
vazio, a sua juventude, a sua flor, o seu declínio tinham-se
conservado na nossa memória, no conhecimento que dela tínhamos
e da sua história, e continuava a viver nos signos e nas fórmulas
científicas, bem como nas definições herméticas do Jogo das Contas
de Vidro; em cada momento podia ser reconstruída. Compreendi de
repente que, na língua, ou pelo menos no espírito do Jogo das
Contas de Vidro, tudo tinha efetivamente um sentido total, cada
símbolo e cada combinação de símbolos não desembocavam em tal
ou tal ponto, em exemplos, experiências ou demonstrações isoladas,
mas no centro, no segredo e no mais fundo do mundo, na ciência
fundamental. Cada modulação de maior para menor numa sonata,
cada evolução dum mito ou dum culto, cada fórmula de arte
clássica, reconheci-a no relâmpago desse instante, à luz duma
meditação autêntica, era apenas uma via direta conduzindo ao
coração do segredo do universo, onde o intercâmbio da inspiração e
da expiração, do céu e da terra, do Yin e do Yang, o santo mistério
se cumpre. Certamente, já então, tinha sido com frequência
espectador de jogos bem concebidos e bem conduzidos, e isso dera-
me por várias vezes um sentimento elevado e exaltante, mais do
que uma descoberta embriagadora; mas até aí eu propendera a pôr
sempre em dúvida o verdadeiro valor e a verdadeira grandeza do
Jogo enquanto tal. Afinal, a solução conveniente de todos os
problemas de matemática era capaz de dar satisfação intelectual;
toda a boa música, ao ouvi-la e, mais ainda, ao tocá-la, era capaz de
elevar a alma e aumentá-la, toda a meditação fervorosa era capaz
de sossegar o coração e pô-lo em uníssono com o Todo; por esta
razão precisamente as minhas dúvidas diziam-me que o Jogo das
Contas de Vidro talvez fosse uma arte formal, um virtuosismo
ingénuo, uma combinação divertida e que era melhor para o futuro
não o jogar e ocupar-me com a matemática sem manchas e a boa
música. Mas acabava então de ver pela primeira vez a voz profunda
do Jogo, o seu sentido; tocara-me e penetrara-me e, a partir desse
instante, uma fé disse-me que o nosso jogo real é verdadeiramente
uma lingua sacra. Lembrar-te-ás, pois também tu próprio o notaste
então, que uma metamorfose se realizara em mim e que eu tinha
ouvido um chamamento. Só o posso comparar com aquele,
inesquecível, que transformou e enobreceu outrora o meu coração e
a minha vida, quando, rapazinho, fui examinado pelo Magister
Musicae e convocado para Castália. Tu notaste-o, nessa altura dei-
me perfeitamente conta disso, se bem que nada tivesses dito;
também não falaremos mais disso agora. Mas agora tenho um
pedido a fazer-te, e para to explicar é necessário que te diga o que
mais nenhuma pessoa sabe nem deve saber: o dédalo atual dos
meus estudos não é fruto dum capricho, preside-lhe pelo contrário
um plano muito preciso. Deves recordar-te, pelo menos nas suas
linhas gerais, daquele exercício de Contas de Vidro que então
elaborámos ambos, no terceiro curso, com a ajuda do monitor e
durante o qual ouvi aquela voz e tomei consciência da minha
vocação de Lusor. Pois bem, esse exercício que começava com a
análise rítmica dum tema destinado a uma fuga e no meio do qual
se encontrava uma frase atribuída a Confúcio, todo esse jogo,
estudo-o agora do princípio ao fim, isto é, familiarizo-me, à força de
trabalho, com cada uma das suas frases, traduzo-o da língua do
Jogo para a sua língua original, a da matemática, da ornamentação,
em chinês, grego, etc. Quero, nem que seja só esta vez na minha
vida, rever e construir tecnicamente todo o conteúdo dum Jogo das
Contas de Vidro; resolvi já a primeira parte, e foram-me precisos
dois anos. Mas, como em Castália gozamos duma liberdade de
estudo que é célebre, quero precisamente empregá-la desta
maneira. Sei o que poderiam opor-me. A maior parte dos nossos
professores diria: Precisámos de séculos para inventar e desenvolver
o Jogo das Contas de Vidro, para fazer dele uma língua e um
método universais, capazes de exprimir e reduzir a uma medida
comum todos os valores e os conceitos do espírito e da arte. E tu
agora queres verificar se isso é exato! Levarás a vida toda e
lamentá-lo-ás. Pois bem, não levarei a vida toda e espero também
não ter de o lamentar. Eis agora o que te peço: como trabalhas
atualmente nos arquivos do Jogo e como, por motivos particulares,
eu desejava evitar Waldzell durante ainda mais algum tempo,
preciso que respondas de vez em quando a um certo número de
perguntas que te farei, isto é, que me comuniques, de cada vez, na
sua forma não abreviada, a chave e o signo oficiais de toda a
espécie de temas tais como estão contidos nos arquivos. Conto
contigo e conto também que disponhas de mim sempre que possa
prestar-te algum serviço em troca.»
Talvez seja aqui o lugar para citar essa outra passagem da
correspondência de Knecht que se refere ao Jogo das Contas de
Vidro, se bem que a carta em questão, e que é dirigida ao Mestre da
Música, tenha sido escrita pelo menos um ano ou dois mais tarde.
«Penso que se pode ser um bom Jogador de Contas de Vidro, um
virtuose, ou até um excelente Magister Ludi, sem ter dúvidas quanto
ao verdadeiro segredo do Jogo e do seu significado último. Poderia
mesmo acontecer que um homem que tivesse dele a intuição e o
conhecimento acabasse por ser para o Jogo mais perigoso do que se
se tornasse especialista do Jogo ou fosse seu dirigente. Pois os
arcanos, o esoterismo do Jogo, têm por objeto, como todo o
esoterismo, o Um e o Todo, os abismos onde já só reina o sopro
eterno que, numa inspiração e numa expiração eternas, se basta a si
mesmo. Quem tivesse tomado plena consciência do Jogo não seria
mais um verdadeiro Jogador, deixaria de pertencer ao mundo da
pluralidade, não mais seria capaz de gostar de inventar, construir e
combinar, pois conheceria desejos e alegrias completamente
diferentes. Como creio não estar longe de apreender o sentido do
Jogo das Contas de Vidro, será melhor para mim e para todos os
outros que não faça do Jogo a minha profissão mas que volte à
música.»
O Mestre da Música, geralmente bastante parco em cartas, ficou
aparentemente inquieto com esta declaração e respondeu-lhe com
uma informação que continha uma advertência amistosa: «Está
muito bem que não exijas do Mestre do Jogo que seja “esotérico” no
sentido que entendes, pois espero que o tenhas dito sem ironia. Um
Mestre do Jogo ou um professor cuja primeira preocupação fosse a
de saber, também ele, se se aproxima suficientemente do “sentido
mais profundo”, seria um muito mau professor. Quanto a mim,
confesso francamente que, em toda a minha vida, nunca disse aos
meus alunos uma única palavra sobre o “sentido” da música; se um
tal sentido existe, não tem necessidade de mim. Pelo contrário, dei
sempre muita importância a que os meus alunos contassem com
toda a exatidão as suas colcheias e semicolcheias. Se vieres a ser
professor, sábio ou músico, respeita o “sentido”, mas não penses que
o sentido se ensina. Foi ao quererem ensinar o “sentido” que os
filósofos da História estragaram metade da História Universal,
abriram a porta à Idade do Folhetim e contribuíram para o
derramamento de muito sangue. Mesmo que, por exemplo, tivesse
de iniciar os alunos em Homero e nos trágicos gregos, não tentaria
sugerir-lhes que a poesia é uma das formas fenomenais do divino,
esforçar-me-ia, antes pelo contrário, em torná-la acessível através
do conhecimento exato dos processos de linguagem e da métrica
que emprega. A tarefa do professor e do sábio é descobrir os meios
utilizados, cultivar a tradição, manter a pureza dos métodos e não a
de provocar e acelerar essas emoções, para as quais não temos mais
palavras e que são reservadas aos eleitos – eleitos que muitas vezes
são também vencidos e vítimas.»
Por outro lado, a correspondência de Knecht durante estes anos,
que de resto parece ter sido pouco considerável ou que desapareceu
parcialmente, não evoca em parte nenhuma o Jogo das Contas de
Vidro e a sua conceção «esotérica». A maior parte dessas cartas,
que é também a que foi mais bem conservada, as cartas que são
dirigidas a Ferromonte, trata aliás quase exclusivamente de
problemas de música e de análise de estilos musicais.
Vemos, por conseguinte, nos singulares ziguezagues descritos
pelos estudos de Knecht, que consistiram unicamente em reproduzir
exatamente e elaborar, no decurso de longos anos, o esquema duma
única partida, a afirmação dum espírito e duma vontade muito
nítidas. Para se apropriar do conteúdo desse esquema único que
outrora ambos compuseram em alguns dias como divertimento
quando eram alunos e que na língua do Jogo das Contas de Vidro
fora possível num quarto de hora, ele levou anos e anos, passou o
tempo nas salas de cursos e nas bibliotecas, estudou Froberger e
Alessandro Scarlatti, as fugas e a composição da sonata, teve lições
de matemática, aprendeu chinês, trabalhou a fundo um sistema de
figuras sonoras, bem como a teoria feusteliana das correspondências
entre a gama das cores e as tonalidades musicais. Pergunta-se
porque é que escolheu essa via difícil, singular e sobretudo solitária,
já que o seu objetivo final (fora de Castália dir-se-ia: a profissão que
escolhera) era, sem dúvida nenhuma, o Jogo das Contas de Vidro.
Se tivesse começado por entrar, como ouvinte livre e sem
compromisso, num dos institutos do Vicus Lusorum, essa colónia dos
Jogadores de Contas de Vidro, em Waldzell, ter-lhe-iam facilitado
todos os estudos especiais relativos ao Jogo; teria tido em todos os
momentos à sua disposição indicações e informações sobre todas as
questões particulares; teria podido, além disso, entregar-se aos seus
estudos no meio de camaradas que faziam investigações análogas,
em vez de se torturar sozinho, e certamente com frequência, como
num exílio voluntário. Mas ele seguiu o seu caminho. Em nossa
opinião, evitou Waldzell, não apenas para fazer esquecer o mais
possível, tanto nos outros como nele próprio, o papel que aí
desempenhara como aluno e as recordações que a Waldzell o
prendiam, mas igualmente para não correr o risco de assumir um
novo papel do mesmo género na comunidade dos Jogadores de
Contas de Vidro. Pois devia sentir dentro de si, já nessa época, uma
espécie de predestinação para a função de chefe e de personalidade
representativa, e fez os possíveis para jogar o melhor que podia com
esse destino que se lhe impunha. Já então pressentia o peso das
suas responsabilidades para com os seus condiscípulos de Waldzell,
seus entusiastas, e aos quais se furtava, e pressentia-o
especialmente na presença de Tegularius, de quem o instinto lhe
dizia que se lançaria ao fogo por ele. Procurou portanto o retiro, a
vida contemplativa, quando o destino queria empurrá-lo para a
frente e para a vida pública. Eis, mais ou menos, como imaginamos
o seu estado de espírito nessa época. Mas havia ainda um motivo ou
um móbil suplementar importante que o fazia recear seguir os
cursos habituais das escolas superiores do Jogo das Contas de Vidro
e que fazia dele um outsider: era um instinto insaciável de
pesquisador, fundado nas dúvidas que alimentava então sobre o
Jogo das Contas de Vidro. Tinha de certeza verificado com satisfação
que o jogo podia ser praticado no espírito mais nobre como um
exercício sagrado, mas vira também que, na maioria, os jogadores e
os alunos, e também uma parte mesmo dos monitores e dos
professores, estavam longe de ser animados por essa mentalidade
superior e sagrada; não viam na língua do jogo uma lingua sacra,
mas apenas uma espécie de estenografia inteligente; praticavam-no
como uma especialidade interessante ou divertida, como um
desporto intelectual ou um desafio ambicioso. Knecht tinha mesmo
já, a sua carta ao Mestre da Música prova-o, o pressentimento de
que talvez não fosse a pesquisa do significado último que fazia
sempre a qualidade dum jogador, sentia que o Jogo também tinha
necessidade de ser esotérico, que era também uma técnica, uma
ciência e uma instituição social. Em resumo, surgiam dúvidas,
divergências; o Jogo era um problema vital, tinha sido até aí o
grande problema essencial da sua vida, e não estava de modo
nenhum disposto a deixar que benevolentes pastores de almas lhe
aliviassem o conflito ou o tratassem como uma bagatela, com um
sorriso professoral amavelmente evasivo.
Teria podido tomar, naturalmente, como base dos seus estudos
uma qualquer das dezenas de milhares de partidas já jogadas ou um
dos milhões de jogos possíveis. Sabia-o e tomou como ponto de
partida aquele plano de partida fortuito combinado num curso pelos
seus camaradas e por ele. Era a partida durante a qual, pela
primeira vez, o sentido de todos os Jogos das Contas de Vidro o
penetrara, em que sentira a vocação de jogador. Durante esses anos
trouxe constantemente consigo um esquema dessa partida inscrito
no sistema de abreviaturas habitual. Nele figuravam, anotadas com
as definições, as chaves, as assinaturas e as abreviaturas da língua
do Jogo, uma fórmula de matemática astronómica, o princípio de
composição duma sonata antiga, um aforismo de Confúcio, etc. Um
leitor que não conhecesse o Jogo das Contas de Vidro poderia julgar
que se tratava do esquema duma partida dum jogo mais ou menos
parecido com o xadrez, com a diferença de que os significados das
figuras e as possibilidades de relações mútuas e efeitos recíprocos
são multiplicados pelo pensamento, e que a cada uma das figuras, a
cada agrupamento de figuras, a cada jogada de xadrez, é preciso
atribuir um conteúdo efetivo designado simbolicamente
precisamente por essa jogada, por esse conjunto de figuras, etc. Os
anos de estudos de Josef Knecht não foram somente consagrados a
conhecer com a mais extrema minúcia os elementos, os princípios,
as obras e os sistemas que continha esse plano, assim como
percorrer, instruindo-se, um dado caminho através das culturas, das
ciências, das linguagens, das artes e dos séculos diferentes; ele
tinha-se proposto igualmente uma tarefa de que nenhum dos seus
mestres tinha conhecimento: submeter dessa maneira à prova mais
rigorosa o sistema e as possibilidades de expressão da arte do Jogo.
Indiquemos desde já qual foi o resultado: Knecht encontrou aqui e
ali uma lacuna, uma insuficiência, mas no conjunto o nosso Jogo das
Contas de Vidro deve ter resistido à sua verificação obstinada, caso
contrário não teria acabado por voltar para ele.
Se escrevêssemos aqui um estudo histórico da civilização, mais do
que um teatro, mais do que uma cena da vida estudantil de Knecht
mereceriam ser descritos. Ele preferia, por pouco que isso fosse
possível, os sítios onde pudesse trabalhar sozinho ou com muito
poucas pessoas, e guardou a alguns desses lugares uma ligação
reconhecida. Muitas vezes fazia estadas em Monteport, onde às
vezes era hóspede do Mestre da Música e onde por vezes participava
em trabalhos práticos de história da música. Encontramo-lo por duas
vezes em Hirsland, sede da direção da Ordem, onde toma parte no
«grande exercício», no jejum e na meditação de doze dias. É com
uma alegria particular, mesmo com ternura, que mais tarde falou aos
seus próximos do Bosque dos Bambus, esse encantador eremitério
que foi o teatro dos seus estudos do I Ching. O que lá aprendeu, os
instantes que lá viveu não foram apenas decisivos, aí ele encontrou
também, guiado por uma intuição ou por um determinismo
maravilhoso, um ambiente único no seu género e um homem
excecional, aquele a quem chamavam o «Irmão Mais Velho», criador
e habitante do eremitério chinês do Bosque dos Bambus. Achamos
melhor descrever um pouco mais demoradamente esse episódio
muito curioso da sua vida de estudante.
Knecht tinha começado a estudar a língua e os clássicos chineses
no célebre Instituto do Extremo Oriente, anexo há gerações à
Cidade da Filologia Antiga de Santo Urbano. Tinha feito rápidos
progressos na leitura e na escrita. Tornara-se igualmente amigo de
alguns dos chineses que lá trabalhavam, e aprendera de cor um
certo número de cantos do Shih Ching, quando, no segundo ano da
sua estada, começou a interessar-se cada vez mais vivamente pelo I
Ching, o Livro das Mutações. Por sua insistência, os chineses deram-
lhe, é verdade, todo o tipo de informações, mas não se tratava
duma iniciação; o estabelecimento não possuía professor para isso, e
de cada vez que Knecht voltou à carga e pediu alguém com quem
tratasse a fundo a questão do I Ching, falaram-lhe do Irmão Mais
Velho e do seu eremitério. Knecht notara perfeitamente, há algum
tempo já, que o seu interesse no Livro das Mutações o arrastava
para um domínio de que não queriam ouvir falar no
estabelecimento. Informou-se com mais prudência e, como ainda se
esforçasse por recolher informações sobre esse lendário Irmão Mais
Velho, não lhe esconderam que esse eremita, embora certamente
gozasse dum certo crédito, e mesmo de alguma fama, era antes
considerado mais como outsider maníaco do que um sábio. Deu-se
conta de que, neste ponto, só podia contar consigo próprio; acabou
logo que pôde um dos trabalhos práticos que tinha começado e
despediu-se. Partiu a pé para a região onde essa misteriosa
personagem plantara outrora o seu bosque de bambus. Era um
conselheiro e um mestre? Seria talvez um louco? O que ficara a
saber a seu respeito limitava-se mais ou menos ao seguinte: esse
homem tinha sido, vinte e cinco anos antes, o estudante da secção
chinesa em que haviam depositado as maiores esperanças: parecia
destinado a esses estudos e que tinha nascido para eles; vencia os
melhores professores, quer fossem chineses de nascimento ou
ocidentais, na técnica da escrita com o pincel ou da decifração de
textos antigos, mas surpreendia no entanto um pouco com o seu
empenhamento em querer desempenhar também exteriormente o
papel de chinês. Por exemplo, evitava obstinadamente tratar pelo
título todos os seus superiores, desde o diretor do Instituto aos
Grandes Mestres, e falar-lhes na terceira pessoa, conforme o
regulamento, como faziam todos os estudantes; tratava-os por «meu
irmão mais velho» e esta fórmula acabou por se tornar a sua
alcunha. Consagrava um cuidado especial ao jogo dos oráculos do I
Ching de que se desempenhava magistralmente com os tradicionais
pauzinhos de mil-folhas. Tirando os comentários antigos do Livro dos
Oráculos, a sua obra preferida era a de Chuang-Tzu. É provável que
na secção chinesa do instituto o espírito racionalista e mais
antimístico, que se dizia estritamente confucionista e que Knecht
conhecera, já então se fizesse sentir, pois um belo dia o Irmão Mais
Velho deixou o estabelecimento, onde o teriam de bom grado
conservado como professor especialista, e partiu a pé pelos
caminhos, armado de pincel, tinteiro e dois ou três livros. Dirigiu-se
para o Sul do país, foi, ora aqui ora ali, hóspede dos Irmãos da
Ordem; procurou e encontrou o sítio conveniente para o eremitério
que pretendia. À força de pedidos e defesas obstinadas obteve das
autoridades seculares, como também da Ordem, o direito de fazer
uma plantação nesse sítio, e aí viveu depois disso uma existência
idílica, conforme com a estrita ortodoxia da China antiga, ora motivo
de sorriso como velho original ora venerado como uma espécie de
santo, em paz consigo mesmo e com o mundo, passando os dias a
meditar e a copiar antigos rolos de manuscritos, quando a
manutenção do seu bosque de bambus, que protegia do vento do
norte um jardim miniatura cuidadosamente arranjado à chinesa, não
absorvia a sua atividade.
Foi então para aí que Josef Knecht se dirigiu a pé, fazendo
paragens frequentes, encantado com a paisagem, que, depois de ter
passado as gargantas das montanhas do Sul, se lhe apresentou,
cheia de azul e de perfumes, com vinhedos ensolarados em
socalcos, muros castanhos cheios de lagartixas, soutos imponentes,
uma mistura saborosa de terra do Sul e alta montanha. A tarde
aproximava-se do fim quando chegou ao Bosque dos Bambus;
entrou e viu com espanto um pavilhão chinês no meio dum jardim
maravilhoso: a água duma fonte caía com um murmúrio duma
conduta de madeira, corria por um leito de seixos e enchia quase
completamente um tanque de pedra, em cujas fendas crescia toda a
espécie de plantas e onde nadavam, numa água límpida e calma,
algumas carpas douradas. As palmas dos bambus inclinavam-se,
pacíficas e tenras, sobre robustos troncos esguios, a relva estava
semeada de lajes de pedra onde podiam ler-se inscrições de estilo
clássico. Um homem pequenino, vestido de linho cinzento-
amarelado, de olhos azuis expectantes protegidos por óculos,
ergueu-se dum canteiro de flores sobre que estava acocorado e
aproximou-se lentamente do visitante; não tinha nada de inamistoso
mas aquela espécie de acanhamento feroz que às vezes é o dos
solitários e dos seres que vivem recolhidos em si mesmos; lançou
um olhar interrogativo a Knecht e esperou pelo que este tivesse a
dizer-lhe. Com algum acanhamento Knecht pronunciou as palavras
chinesas que preparara como saudação: – O jovem aluno permite-se
apresentar os seus respeitos ao seu Irmão Mais Velho.
– O hóspede bem-educado é bem-vindo – respondeu o Irmão
Mais Velho. – Que um jovem colega seja sempre bem-vindo a minha
casa para beber uma chávena de chá e participar numa pequena
conversa agradável. Encontrará aqui também um leito para a noite,
se tal é o seu desejo.
Knecht fez o kotao9 e agradeceu-lhe. Foi conduzido à casinha e
foi-lhe servido chá; em seguida foi-lhe mostrado o jardim, as pedras
cobertas de inscrições, cuja idade lhe foi revelada. Até ao jantar
ficaram sentados debaixo dos bambus móveis, a trocar
amabilidades, versos de canções e aforismos de autores clássicos, a
contemplar as flores e a gozar o pôr do Sol, que se extinguia
colorindo de rosa os picos das montanhas. Depois voltaram para
dentro; o Irmão Mais Velho serviu pão e fruta, fez num forno
minúsculo dois crepes excelentes para o seu hóspede e para si e,
depois de comerem, perguntou em alemão ao estudante o objeto da
sua visita. Em alemão, este contou-lhe como viera ter com ele e
expôs-lhe o seu pedido: desejava ficar com ele pelo tempo que o
Irmão Mais Velho consentisse e ser seu aluno.
– Falaremos disso amanhã – disse o eremita, e ofereceu uma
cama ao hóspede.
No dia seguinte de manhã Knecht sentou-se junto ao tanque das
carpas douradas. Os seus olhos mergulhavam naquele universo
pequeno e fresco feito de claro e escuro, na magia dos seus jogos
de cores, onde no azul-verde-escuro balançavam os corpos dessas
criaturas de ouro que, às vezes, no momento preciso em que todo
aquele mundo parecia enfeitiçado, para sempre adormecido e
prisioneiro do feitiço dos seus sonhos, com um movimento suave,
elástico e no entanto assustador, lançava através daquela noite
sonolenta, relâmpagos de ouro e cristal. Knecht olhava para o fundo,
cada vez mais absorto, mais sonhador do que contemplativo, e não
se deu conta de que o Irmão Mais Velho saía de casa com passos
ágeis, parava e observava demoradamente o seu hóspede perdido
no seu sonho. Quando por fim Knecht se levantou e sacudiu o peso
dos seus pensamentos, o outro já não estava ali, mas logo, do
interior, a sua voz convidou-o a vir tomar chá. Trocaram uma breve
saudação, beberam chá e ficaram sentados a ouvir cantar, no
silêncio da manhã, o delgado jato de água da fonte, melodia da
eternidade. Em seguida, o eremita pôs-se de pé, ocupou-se com
qualquer coisa na pequena sala de construção irregular, lançando de
vez em quando um olhar a Knecht, e de repente perguntou-lhe:
– Estás pronto a calçar os teus sapatos e a continuar o teu
caminho?
Knecht hesitou e então disse:
– Se tiver de ser, sim, estou pronto.
– E se puder ser que fiques algum tempo aqui, estás pronto a
obedecer e a ficar tão calado como um peixe dourado?
Novamente o estudante respondeu afirmativamente.
– Muito bem – disse o Irmão Mais Velho. – Então, vou lançar os
pauzinhos e interrogar os oráculos.
Enquanto Knecht, sentado, calado «como um peixe dourado» e
com tanto respeito como curiosidade ficava a ver o que ele fazia, ele
tirou duma taça de madeira, ou antes, duma aljava, um punhado de
pauzinhos. Eram caules de mil-folhas. Contou-os atentamente,
guardou um molho deles outra vez no recipiente, pôs um pauzinho
de lado, dividiu os outros em dois molhos iguais, guardou um deles
na mão esquerda; do segundo tirou delicadamente com a ponta dos
dedos da mão direita pequenos molhos de pauzinhos, contou-os, pô-
los de lado até já só restar um pequeno número, que apertou entre
os dedos da mão direita. Depois de, deste modo, por meio duma
eliminação ritual, ter reduzido o monte a alguns pauzinhos, procedeu
com o outro à mesma operação. Pousou os pauzinhos que acabara
de contar, passou novamente revista aos dois montes, contou,
segurou entre os dedos pequenas porções dos montes. As suas
mãos faziam tudo isto com gestos lestos e harmoniosos, sem
barulho; parecia um jogo de destreza secreto, regido por regras
rigorosas, mil vezes praticado e tendo alcançado uma execução dum
virtuosismo perfeito. Depois de se ter entregue várias vezes a todo
este exercício, restavam três molhos pequenos: no número de
pauzinhos que os compunham leu um signo que pintou com um
pincel pontiagudo numa folha pequena. Em seguida toda esta
operação recomeçou, os pauzinhos foram divididos em dois montes
iguais, eliminados, alguns foram afastados, outros apertados entre
os dedos, até que, por fim, voltaram a ficar três montinhos
minúsculos, cuja conta constituía um segundo signo. Tomados num
movimento de dança, os pauzinhos chocavam-se com um leve
estalido seco, mudavam de lugar, formavam montes, separavam-se,
eram novamente contados e deslocavam-se ritmicamente com uma
segurança de fantasmas. Ao fim de cada operação o seu dedo
inscrevia um signo, e finalmente os signos positivos e negativos
ocuparam seis linhas sobrepostas. Os pauzinhos foram juntados e
cuidadosamente guardados no seu recipiente. O mago, acocorado
por terra numa esteira de juncos, tinha debaixo dos olhos, numa
folha de papel, o resultado da consulta do oráculo e contemplou-o
longamente em silêncio.
– É o símbolo Mong – disse. – Este símbolo chama-se: loucura da
juventude. Em cima a montanha, em baixo a água, em cima Gen,
em baixo Kan. Por baixo da montanha jorra a fonte, símbolo da
juventude. Mas a sentença diz:

A loucura da juventude prevaleceu.


Não sou eu que procuro o jovem louco,
é o jovem louco que me procura.
Ao primeiro oráculo, dou informação.
Se ele repetir as suas perguntas, importuna-me.
Se me importunar, não dou informação.
A perseverança resulta.

A atenção de Knecht estava tão tensa que ele retivera a


respiração. No silêncio que se seguiu, involuntariamente, soltou um
profundo suspiro. Não ousou perguntar nada. Mas julgava ter
compreendido: o jovem louco era aceite, podia ficar. Ainda estava
debaixo do poder e do encanto daquele jogo sublime de marionetas
executado pelos dedos e pelos pauzinhos, que observara tão
longamente e que parecia carregado com um sentido tão
convincente, se bem que este não pudesse adivinhar-se, quando
esse resultado se lhe impôs. O oráculo tinha falado, tinha decidido a
seu favor.
Não nos teríamos demorado tanto com este episódio se Knecht
não o tivesse contado muitas vezes aos seus amigos e aos seus
alunos com certa complacência. Voltemos agora ao nosso relato.
Knecht ficou alguns meses no Bosque dos Bambus e aprendeu a
manejar os pauzinhos de mil-folhas quase tão perfeitamente como o
seu mestre. Todos os dias este fazia com ele, durante uma hora, um
exercício de escolha dos pauzinhos, iniciava-o na gramática e no
simbolismo da língua dos oráculos, treinava-o a escrever e a
aprender de cor os sessenta e quatro símbolos, lia-lhe passagens
dos comentários antigos e às vezes, em dias muito bons, calhava
contar-lhe uma história de Chuang-Tzu. Por outro lado, o discípulo
aprendia a tratar do jardim, a lavar os pincéis, a esfregar os
tinteiros; aprendeu também a fazer a sopa e o chá, a ir à lenha, a
observar o estado do tempo e a manejar o calendário chinês. Mas as
raras tentativas que fez, durante as suas conversas lacónicas, para
trazer à baila o Jogo das Contas de Vidro e a música, não tiveram
êxito absolutamente nenhum. Ou pareceram cair no ouvido dum
surdo, ou foram afastadas com um sorriso indulgente, a menos que
um provérbio lhes não servisse de resposta: «Grandes nuvens,
nenhuma chuva», ou «O nobre é sem mancha». No entanto, quando
Knecht mandou vir de Monteport um pequeno clavicórdio e tocou
durante uma hora todos os dias isso não levantou objeções. Um dia,
Knecht confessou ao seu professor que desejava ser capaz de
incorporar o sistema do I Ching no Jogo das Contas de Vidro. O
Irmão Mais Velho riu-se. – Tenta – exclamou – e já vês. Introduzir
no mundo uma linda plantaçãozinha de bambus ainda é possível.
Mas parece-me duvidoso que o plantador consiga introduzir o
mundo no seu bosque de bambus. – Basta deste assunto.
Acrescentemos apenas que alguns anos mais tarde, quando Knecht
se tornou uma personalidade muito considerada em Waldzell,
convidou o Irmão Mais Velho a aceitar uma cátedra mas não
recebeu resposta.
Depois disto Josef Knecht qualificou os meses que passara no
Bosque dos Bambus não apenas como uma época particularmente
feliz mas muitas vezes também como «primeiro despertar». A partir
desse período, a imagem do despertar ocorre aliás mais
frequentemente nas suas declarações, com um sentido análogo,
senão mesmo completamente idêntico, ao que anteriormente dava
ao da vocação. Pode supor-se que este «despertar» significa de
todas as vezes o conhecimento de si mesmo e do ponto onde se
encontrava na ordem castaliana e humana em geral, mas parece-nos
que a tónica acaba por recair cada vez mais no conhecimento de si,
no sentido de que Knecht, a partir deste «primeiro despertar», se
apropria cada vez mais do sentimento da sua posição e do seu
destino particular e único, enquanto as ideias e as categorias de
toda a escala dos valores tradicionais, e mais especialmente
castaliana, lhe parecem cada vez mais relativas.
Os seus estudos chineses ficaram longe de se concluírem durante
a estada no Bosque dos Bambus, prosseguiram, e Knecht esforçou-
se nomeadamente por conhecer a música chinesa antiga. Em todo o
lado, nos primeiros escritores chineses, encontrava o elogio da
música, celebrada como uma das origens profundas de toda a
espécie de ordem, moralidade, beleza e saúde; esta alta ideia moral
da música tinha-lhe sido desde sempre tão inculcada pelo Mestre da
Música, que podia quase passar por ser a sua encarnação. Sem
renunciar ao plano fundamental de estudos que conhecemos pela
carta de Fritz Tegularius, meteu-se energicamente e com grandes
passos por todas as vias onde suspeitava haver qualquer coisa de
essencial para ele, isto é, por onde o caminho do «despertar» que já
percorrera parecia prolongar-se. Um dos resultados positivos do seu
estágio com o Irmão Mais Velho foi o de ter ultrapassado a
apreensão do regresso a Waldzell. Todos os anos seguia aí um dos
cursos superiores e, sem saber muito bem como aconteceu, deu por
si como sendo uma personalidade que gozava já do interesse e da
consideração do Vicus Lusorum; viu-se fazer parte daquele órgão
que era o mais central e o mais sensível de todo o sistema do Jogo,
daquele grupo anónimo de jogadores com provas dadas que
decidem do destino deste ou pelo menos da sua orientação e das
suas modas. Este grupo de jogadores, no qual também se
encontravam, sem no entanto predominarem, funcionários das
instituições do Jogo, tinha sobretudo as suas sessões em algumas
salas tranquilas das traseiras dos arquivos; aí se dedicavam a
estudos críticos, lutavam para que fossem aceites ou rejeitadas
novas matérias no Jogo; discutiam os prós e os contras das
tendências sempre variáveis do gosto, da forma, do manejo exterior,
do aspeto desportivo do Jogo das Contas de Vidro. Todos os que
eram familiares deste círculo eram virtuoses do Jogo, todos
conheciam exatamente os talentos e as originalidades de todos os
outros. Tudo se passava como nos corredores dum ministério ou
num clube aristocrático, onde os poderosos e os responsáveis de
amanhã e de depois de amanhã se encontram e travam
conhecimento. Um tom reservado, vigiado, dominava; era-se
ambicioso sem o mostrar, atento e crítico até ao exagero. Esta elite
das gerações ascendentes do Vicus Lusorum era considerada por
muitas pessoas em Castália, e também por algumas pessoas do
exterior, como a nata da tradição castaliana, a nata duma
aristocracia do espírito exclusiva, e muito adolescente formava
durante anos o sonho ambicioso de um dia fazer parte dela. Para
outros, em contrapartida, este círculo escolhido de pretendentes às
dignidades superiores da hierarquia do Jogo parecia odioso e
degenerado; viam nele uma clique de ociosos que se davam grandes
ares, de génios intelectualmente deformados pelo jogo, desprovidos
do sentido das realidades e da vida, uma sociedade pretensiosa
composta no fundo por parasitas, elegantes e arrivistas, cuja vida e
cuja profissão se limitavam a um jogo mesquinho e ao gozo estéril e
egoísta do seu espírito.
Knecht não era sensível a nenhuma destas duas conceções; pouco
lhe importava passar nas brincadeiras de estudantes por um animal
curioso ou ser ridicularizado como arrivista e pretensioso. Para ele só
os seus estudos contavam e estes doravante estavam centrados
exclusivamente no Jogo. Um único problema poderia ainda ter talvez
importância para ele, o de saber se o Jogo era realmente o que
havia de maior em Castália e se valia a pena consagrar-lhe a sua
vida. Pois não lhe calava completamente as dúvidas o facto de se
iniciar em segredos cada vez mais escondidos das leis e das
possibilidades do Jogo, familiarizar-se com o dédalo multicolor dos
seus arquivos e a complexidade interna do seu simbolismo. Tinha já
feito pessoalmente a experiência de que a fé e a dúvida andam a
par, que se condicionam uma à outra, como a inspiração e a
expiração. Ao mesmo tempo que progredia em todos os domínios do
microcosmo do Jogo, não deixava naturalmente de tornar-se cada
vez mais clarividente e sensível aos seus problemas. A vida idílica do
Bosque dos Bambus talvez o tivesse tranquilizado e também
confundido durante um curto momento; o exemplo do Irmão Mais
Velho mostrara-lhe que havia sempre meio de escapar a esses
problemas; podia-se, por exemplo, como aquele homem,
metamorfosear-se em chinês, entrincheirar-se por trás da sebe do
seu jardim e viver numa espécie de perfeição, bela e frugal. Podia-
se, talvez, também tornar-se pitagórico ou monge e escolástico, mas
era uma fuga, uma renúncia à universalidade só possível e permitida
a poucas pessoas, uma renúncia ao presente e aos seus amanhãs,
em proveito duma perfeição, mas que era a perfeição do passado;
era uma forma sublime de fuga e Knecht sentira a tempo que não
era essa a sua via. Mas qual era então? Para lá dos grandes dotes
que tinha para a música e para o Jogo das Contas de Vidro, sabia
que possuía outras forças: uma certa independência interior, uma
ideia elevada da sua personalidade, que, se não lhe proibia e não lhe
tornava penoso pô-la ao seu serviço, exigia todavia que servisse
apenas o Mestre supremo. E esta força, esta independência, esta
personalidade não eram apenas um traço de carácter que se
manifestava e agia sobre o seu ser íntimo, agia também
exteriormente. Desde os anos de escola, e nomeadamente durante o
período da rivalidade com Plínio Designori, tinha muitas vezes feito a
experiência de muitos rapazes da sua idade, mas mais ainda os
camaradas mais novos, não contentes em gostarem dele e
procurarem a sua amizade, propendiam a deixar-se dominar por ele,
a solicitar-lhe conselhos, a sofrer-lhe a influência, e, mais tarde,
renovara muitas vezes esta experiência. Esta tinha um aspeto
extremamente agradável e lisonjeiro, satisfazia a sua ambição e
confirmava a consciência que tinha da sua pessoa. Mas tinha
também outro aspeto completamente diferente, sinistro e temível,
pois já a tolerância do desprezo devido à fraqueza deles, a falta de
personalidade e de dignidade daqueles camaradas ávidos de
conselhos, diretivas e modelos, e também o secreto desejo, que às
vezes aflorava, de fazer deles (pelo menos em pensamento)
escravos dóceis, tinha em si qualquer coisa de proibido e de feio. Por
outro lado, desde o tempo de Plínio, aprendera à sua custa quantas
responsabilidades, esforços e que fardo interior paga toda a posição
brilhante e representativa. Sabia também quanto a do Mestre da
Música às vezes lhe pesava. Era belo e bastante sedutor exercer um
poder sobre homens e brilhar perante os outros, mas era também
uma tentação diabólica e perigosa. A história do mundo não se
compunha duma série ininterrupta de soberanos, chefes, homens de
ação e comandantes-chefes que, fora as exceções infinitamente
raras, tinham todos começado bem e acabado mal, todos, pelo
menos afirmavam-no, tinham aspirado ao poder por amor do bem,
para em seguida serem possuídos e embrutecidos por esse poder e
amá-lo por ele mesmo? Tratava-se de santificar e tornar salutar essa
força que a Natureza lhe dera, pondo-a ao serviço da hierarquia;
parecera-lhe sempre que isso era evidente. Mas qual era o lugar
onde as suas forças podiam ser mais úteis e dar frutos? A
capacidade de atrair e influenciar outros seres, em particular os mais
novos, seria apreciada por um oficial ou um homem político, mas
aqui, em Castália, não havia lugar para isso; na verdade, essas
capacidades, aí, só podiam ser úteis ao professor e ao educador, e,
precisamente, Knecht não sentia nenhum desejo de exercer essas
atividades. Se dependesse unicamente de si teria preferido a
qualquer outra vida a de pesquisador livre ou ainda a de Jogador de
Contas de Vidro. E isso conduzia-o à velha questão que o torturava:
este Jogo era realmente o que havia de mais nobre, era
verdadeiramente o rei no reino do espírito? Finalmente, apesar de
tudo, e no fim de tudo, não era apenas um jogo? Valia realmente a
pena entregar-se-lhe completamente, servi-lo toda a vida? Outrora,
gerações antes, esse jogo célebre tinha começado por ser uma
espécie de sucedâneo da arte e, pelo menos para muitas pessoas,
estava em vias de se tornar pouco a pouco uma espécie de religião;
era, para as inteligências superiormente desenvolvidas, uma ocasião
de recolhimento, de elevação e fervor. Como se vê, era o velho
conflito entre o estético e o ético que atormentava Knecht. Esta
questão, nunca completamente formulada, mas igualmente nunca
completamente sufocada, era a mesma que, aqui e ali, surgira nos
seus poemas de aluno, em Waldzell, sombria e ameaçadora; não se
referia apenas ao Jogo das Contas de Vidro mas a toda a Castália.
Na época precisa em que este problema o preocupava vivamente
e em que sonhava muitas vezes com discussões com Designori,
aconteceu que um dia, ao atravessar um dos vastos pátios da cidade
dos Jogadores, em Waldzell, ouviu gritar muito alto, nas suas costas,
o seu nome. Era uma voz que não reconheceu imediatamente e que
no entanto lhe pareceu familiar. Quando se voltou, viu um grande
homem jovem de bigodinho que corria impetuosamente para si. Era
Plínio e, num entusiasmo de recordação e de ternura, saudou-o com
cordialidade. Marcaram encontro para a noite. Plínio, que há muito
terminara os seus estudos nas universidades seculares, e que era já
funcionário, tinha vindo seguir, numa licença curta, um curso do
Jogo das Contas de Vidro, como já fizera uma vez alguns anos
antes. Mas o seu encontro nessa noite não tardou no entanto a
embaraçar os dois amigos. Plínio era um ouvinte livre, um diletante
do exterior que era aqui admitido; seguia evidentemente o seu curso
com muito zelo, mas era um curso para profanos e amadores. A
distância era demasiada, encontrava-se na presença dum homem da
arte e dum iniciado que, nem que fosse só pela amabilidade com
que se inquiria do interesse do seu amigo pelo Jogo das Contas de
Vidro, devia fazê-lo sentir que nessa matéria não era seu colega mas
uma criança; que encontrava o seu prazer na periferia duma ciência
da qual o seu interlocutor era familiar até aos arcanos. Knecht
tentou desviar a conversa do Jogo, pediu a Plínio que lhe falasse das
suas funções, do seu trabalho, da sua vida lá fora. Neste domínio,
era a vez de Josef estar atrasado e semelhante a uma criança que
faz perguntas ingénuas; o outro informou-o com amabilidade. Plínio
era jurista, tentava ter influência política, estava para casar com a
filha do chefe dum partido, falava uma linguagem de que Josef só
compreendia metade; muitas das suas expressões, que afloravam
muitas vezes, pareciam-lhe vazias de sentido, para si pelo menos
não abrangiam nada. Verificava em todo o caso que Plínio, no seu
mundo, representava qualquer coisa, que estava bem informado e
que os seus objetivos eram ambiciosos. Mas aqueles dois universos
que, outrora, dez anos antes, se tinham unido e medido
curiosamente e não sem simpatia na pessoa dos dois adolescentes,
divergiam agora, irreconciliáveis e estranhos um ao outro. Era
necessário, certamente, estar grato àquele homem do mundo e da
política pelo facto de ter guardado uma certa afeição a Castália e por
sacrificar, já pela segunda vez, as suas férias ao Jogo das Contas de
Vidro; mas em última análise, dizia Josef a si mesmo, era mais ou
menos a mesma coisa que se ele, Knecht, se tivesse encontrado um
dia no setor de atividade de Plínio e pedisse para lhe mostrarem,
como convidado curioso, algumas sessões de tribunal, algumas
fábricas ou instituições da assistência social. Foi uma deceção para
ambos. Knecht achou o seu antigo amigo grosseiro e mais
superficial, em contrapartida Designori julgou o seu camarada de
antigamente bem pretensioso no seu intelectualismo e esoterismo
exclusivos; pareceu-lhe que ele se tornara um verdadeiro maníaco
do espírito, encantado consigo mesmo e com o seu desporto.
Todavia, fizeram um esforço e Designori soube contar toda a espécie
de coisas sobre os seus estudos e os seus exames, sobre as viagens
que fizera em Inglaterra e no Sul, sobre reuniões políticas e sobre o
Parlamento. Arriscou uma vez também uma palavra que continha
um toque de ameaça ou de advertência: – Vais ver, vamos entrar
numa época de perturbações, de guerra talvez, e não é de modo
nenhum impossível que o vosso tipo de vida, em Castália, seja
seriamente posto em questão. – Josef não levou isto demasiado a
sério, perguntou simplesmente: – E tu, Plínio, vais estar contra ou a
favor de Castália?
– Ora! – exclamou Plínio com um riso forçado. – A mim não me
perguntarão qual é a minha opinião. Aliás, sou naturalmente a favor
da manutenção da atual situação em Castália, senão não estaria,
evidentemente, aqui. Entretanto, por mais modestas que sejam as
vossas exigências materiais, Castália custa anualmente uma linda
soma ao país.
– Sim – riu-se Josef. – Essa soma ascende, ao que me dizem, a
cerca dum décimo do que no século da guerra o nosso país gastava,
por ano, com o exército e munições.
Voltaram a encontrar-se ainda várias vezes e, quanto mais se
aproximava o fim do curso de Plínio, mais se alargavam em
amabilidades mútuas. Mas ambos se sentiram aliviados quando as
duas ou três semanas chegaram ao fim e Plínio partiu.
O Mestre do Jogo das Contas de Vidro era na altura Thomas von
der Trave. Era um homem célebre, que fizera longas viagens, um
homem do mundo também, conciliador e cheio da melhor boa
vontade para com todos os que vinham ter com ele, mas, na
questão do Jogo, mostrava o rigor mais vigilante e ascético. Era um
grande trabalhador, coisa de que não suspeitavam os que só o
conheciam no seu papel representativo, por exemplo no seu traje de
pompa de diretor dos grandes jogos ou quando recebia delegações
do estrangeiro. Dizia-se que era um ser de inteligência fria, ou
mesmo glacial, que com as musas tinha apenas relações corteses e,
entre os jovens amadores entusiastas do Jogo das Contas de Vidro,
ouvia-se às vezes exprimir sobre ele juízos mais desfavoráveis do
que favoráveis – juízos errados, pois se não fosse um entusiasta e se
preferia evitar, nos grandes jogos públicos, abordar vastos assuntos
exaltantes, as suas partidas brilhantemente construídas e duma
perfeição formal inigualável mostram no entanto aos conhecedores
que estava muito familiarizado com os problemas ocultos do mundo
do jogo.
Um dia o Magister Ludi convocou Josef Knecht; recebeu-o no seu
apartamento, em trajo informal e perguntou-lhe se lhe seria possível
e agradável voltar nos dias seguintes, à mesma hora, para passar
meia hora com ele. Knecht nunca tinha estado sozinho na presença
dele. Acolheu esta ordem com espanto. Nesse dia o Mestre
apresentou-lhe um manuscrito volumoso, um projeto que lhe enviara
um organista, um desses inúmeros projetos cujo exame faz parte
dos trabalhos do mais alto serviço do Jogo. Trata-se geralmente de
pedidos de admissão duma nova matéria nos arquivos. Um, por
exemplo, elaborou com uma precisão especial a história do madrigal
e descobriu na evolução do seu estilo uma curva, da qual executou
uma transcrição musical e matemática, tendo em vista fazer com
que fosse admitida no vocabulário do Jogo; outro estudou as
qualidades rítimicas do latim de Júlio César e encontrou a
correspondência mais surpreendente com o resultado de
investigações bem conhecidas sobre os intervalos nos cânticos da
igreja bizantinos. Ou então, um sonhador inventou uma vez mais um
novo sentido cabalístico para as partituras do século XV. Não falemos
já das cartas exaltadas de experimentadores tresloucados que
pretendem tirar, por exemplo da comparação dos horóscopos de
Goethe e de Spinoza, as conclusões mais espantosas e às quais
muitas vezes juntam desenhos geométricos e cores, de aspeto muito
bonito e sugestivo. Knecht lançou-se com vontade ao projeto
daquele dia. Tivera já muitas vezes projetos desse género, se bem
que não os houvesse enviado. Não sonham todos os Jogadores de
Contas de Vidro em alargar constantemente os domínios do Jogo até
as fazer englobar o universo? Mais do que isso, em imaginação e nos
seus exercícios privados, estão sempre a fazer alargamentos e
alimentam o desejo de que os que parecem resistir à prova se
tornem oficiais. A habilidade particular, a habilidade suprema das
partidas privadas dos jogadores de alta cultura consiste
precisamente em manejar tão magistralmente as leis do Jogo em
matéria de expressão, denominações, conformação, que integrem,
seja em que partida for, valores objetivos e históricos das
representações puramente individuais e particulares. Um botânico
reputado teve uma vez uma saída divertida sobre este assunto: «No
Jogo das Contas de Vidro tudo tem de ser possível, incluindo por
exemplo que uma planta fale em latim com o senhor Lineu.»
Knecht ajudou por conseguinte o Magister a analisar o esquema
que lhe fora submetido; a meia hora passou depressa, no dia
seguinte chegou pontualmente e veio assim todos os dias, durante
duas semanas, trabalhar meia hora a sós com o Magister Ludi. Logo
desde os primeiros dias surpreendeu-o ver que este o mandava
analisar cuidadosamente e duma ponta à outra projetos de valor
muito inferior, que à primeira vista se revelavam inúteis; admirou-se
que o Mestre tivesse tempo para aquilo e começou pouco a pouco a
aperceber-se de que não se tratava de lhe ser útil e de o aliviar um
pouco no seu trabalho, mas que estas tarefas, ainda que
necessárias, eram sobretudo um pretexto para submeter o jovem
adepto que ele era a um exame extremamente minucioso, sob a
mais cortês das formas. Passava-se qualquer coisa, qualquer coisa
análoga ao que lhe acontecera outrora na sua infância, quando o
Mestre da Música entrara em cena. Notou-o também, de repente, na
atitude dos seus camaradas, que se tornou mais reservada, mais
distante e se tingiu por vezes de respeito irónico; qualquer coisa se
preparava, sentiu-o, mas isso não lhe trazia a mesma felicidade que
outrora.
No fim da última sessão, o Mestre do Jogo das Contas de Vidro
disse-lhe na sua voz cortês, um pouco aguda, numa língua duma
dicção precisa, e sem nenhuma solenidade: – Muito bem, não vais
precisar de voltar amanhã, de momento acabámos; dentro de pouco
tempo terei de te pedir outro trabalho. Agradeço-te imenso a tua
colaboração, que me foi preciosa. Sou aliás de opinião que deverias
solicitar agora o teu ingresso na Ordem. Não encontrarás obstáculos,
avisei já a administração da Ordem. Suponho que estás de acordo?
– Em seguida acrescentou ao mesmo tempo que se levantava: –
Apenas mais uma palavra de passagem: tu, como a maior parte dos
bons Jogadores de Contas de Vidro na sua juventude, tens
tendência a utilizar de vez em quando o nosso Jogo como uma
espécie de instrumento da filosofia. O que quer que te diga não te
curará disso, mas no entanto digo-o: só se deve filosofar com os
meios legítimos, os da filosofia. Ora, o nosso Jogo não é nem uma
filosofia nem uma religião, constitui uma disciplina particular e, pelas
suas características, é com a arte que mais se aparenta, é uma arte
sui generis. Progrides mais atendo-te a este princípio do que
reconhecendo-o apenas ao fim de cem derrotas. O filósofo Kant...
deixou de ser conhecido agora mas era um espírito de grande
classe... disse da filosofia teológica que era «a lanterna mágica das
aranhas do cérebro». Nós não queremos reduzir o nosso Jogo das
Contas de Vidro a isso.
Josef ficou surpreendido e a sua emoção contida era tão grande
que quase não ouviu esta última advertência. Uma ideia atravessou-
o como um relâmpago: estas palavras significavam o fim da
liberdade, o ponto final dos estudos, a admissão na Ordem e a
próxima integração na hierarquia. Agradeceu ao Mestre inclinando-
se profundamente e dirigiu-se imediatamente à secretaria da Ordem
de Waldzell onde encontrou de facto o seu nome já inscrito no
quadro das admissões aceites. Como todos os estudantes do seu
nível, conhecia já bastante bem as regras da Ordem e recordou-se
da cláusula que dava a todo o membro da Ordem, titular duma
função oficial de nível superior, qualidade para presidir à admissão
dum noviço. Exprimiu portanto o desejo de que o Mestre da Música
procedesse a esta cerimónia: obteve um salvo-conduto e uma breve
licença e partiu no dia seguinte para casa do seu protetor e amigo,
em Monteport. Encontrou o respeitável, velho senhor um pouco
sofredor, mas este desejou-lhe no entanto as boas-vindas com
alegria.
– Chegas na altura própria – disse o velho. – Um pouco mais tarde
e não estaria em condições para te acolher na Ordem como noviço.
Estou para resignar das minhas funções, o meu pedido de reforma já
foi aceite.
A cerimónia foi simples. No dia seguinte, o Mestre da Música
convidou, tal como diziam os estatutos, dois membros da Ordem
para lhe servirem de testemunhas. Anteriormente Knecht recebera
como tema de exercício de meditação uma frase da regra da Ordem.
Esta dizia: «Se as altas autoridades te designam para uma função, é
bom que saibas: o acesso a uma função de grau superior não é um
passo para a liberdade mas uma ligação suplementar. Quanto mais a
função é elevada, mais as ligações são apertadas. Quanto mais os
poderes da função são grandes, mais o seu serviço é estrito. Quanto
mais uma personalidade é forte, mais o arbitrário lhe está interdito.»
Reuniram-se então na cela onde o Mestre se entregava aos seus
exercícios musicais, aquela onde outrora Knecht conhecera a
primeira iniciação na arte de meditar. O Mestre convidou o noviço a
tocar, para celebrar a solenidade do momento, um coral de Bach, em
seguida uma das testemunhas leu a versão abreviada da regra da
Ordem, e o Mestre da Música fez as perguntas rituais e recebeu o
juramento do seu jovem amigo. Concedeu-lhe ainda uma hora do
seu tempo. Ficaram sentados no jardim, e o Mestre deu-lhe
indicações amistosas sobre o espírito da regra da Ordem, que devia
saber e com a qual devia viver. – É bom tu subires à brecha no
momento em que eu me retiro. É como se tivesse um filho que vai
cumprir no futuro o seu papel de homem no meu lugar. – E vendo
ensombrar-se o rosto de Josef, acrescentou: – Ei! Não estejas triste,
que eu também não estou. Encontro-me muito cansado e felicito-me
com os tempos livres que vou gozar agora e dos quais aproveitarás
com muita frequência, como espero. E da próxima vez que
voltarmos a ver-nos, trata-me por tu. Não podia propor-to enquanto
estivesse em funções. – Deixou-o partir com aquele sorriso cheio de
sedução que Josef conhecia há vinte anos.
Knecht voltou rapidamente a Waldzell; só lhe tinham dado três
dias de licença. Mal chegou, o Magister Ludi convocou-o; recebeu-o
amavelmente, como confrade, e felicitou-o pela sua admissão na
Ordem. – Para que nos tornemos completamente colegas e
camaradas de trabalho, só falta uma coisa: é que tu venhas ocupar
um lugar determinado no edifício da nossa Ordem. – Josef ficou um
pouco assustado. Ia perder a liberdade. – Ah! – disse timidamente –
espero que possam utilizar-me num posto modesto qualquer. Mas
confessarei que esperava, na verdade, poder estudar ainda durante
algum tempo livremente. – O Magister olhou-o bem nos olhos com o
seu sorriso inteligente e levemente irónico. – Disseste «algum
tempo», mas sabes quanto tempo? – Knecht riu-se pouco à
vontade: – Não sei ao certo. – É o que eu pensava – aprovou o
Mestre. – Ainda falas uma linguagem de estudante e pensas com os
conceitos dum estudante, Josef Knecht, e isso é normal. Mas em
breve deixará de ser normal, pois temos necessidade de ti. Sabes
que, mais tarde, e mesmo quando ocupares as funções mais
elevadas da nossa administração, poderás pedir licenças por motivo
de estudos, se souberes convencer as autoridades do valor desses
estudos; o meu antecessor e professor solicitou, por exemplo, e
obteve um ano inteiro de licença para as suas investigações nos
arquivos de Londres, quando era Magister Ludi e já estava velho.
Mas não a obteve «por algum tempo», obteve-a por um número
determinado de meses, semanas, dias. Há que dar atenção a isso
doravante. E agora tenho uma proposta a fazer-te. Precisamos dum
homem capaz, e que ainda não seja conhecido fora do nosso círculo,
para levar a cabo uma missão especial.
Tratava-se de cumprir o papel seguinte: o Convento de
Beneditinos de Mariafels, um dos mais antigos centros de cultura do
país, que mantinha relações amistosas com Castália e, em particular,
tinha desde há décadas um fraco pelo Jogo das Contas de Vidro,
pedira que lhe confiassem por algum tempo um jovem professor,
encarregado de dar cursos de iniciação ao Jogo e também encorajar
os poucos jogadores mais adiantados do mosteiro. A escolha do
Mestre recaíra em Josef Knecht. Fora por esta razão que o
examinara com tanta circunspecção e acelerara a sua admissão na
Ordem.
9 Saudação chinesa constituída por vénias, com as mãos juntas. (N. do T.)
AS DUAS ORDENS

Em muitos aspetos conheceu novamente uma situação análoga à


que vivera nos tempos da escola de latim, depois da visita do Mestre
da Música. Que esta nomeação para Mariafels representaria uma
distinção especial e um primeiro passo importante na escada da
hierarquia, Josef quase não o pensou. Mas pôde lê-lo distintamente,
mais lucidamente, apesar de tudo, do que no passado, no
comportamento e na atitude dos seus camaradas. Se, há já algum
tempo, pertencia, entre a elite dos Jogadores de Contas de Vidro, ao
círculo mais exclusivo, a partir de agora esta missão fora do vulgar
designava-o, à frente de todos os outros, como um homem sobre
quem os seus superiores tinham os olhos postos e do qual
pensavam servir-se. Os seus camaradas de ontem e os que tinham
partilhado das suas ambições não se afastaram dele
verdadeiramente e não se mostraram menos amáveis; neste meio
muito aristocrático havia demasiado o sentido das boas maneiras
para isso, mas observavam-se as distâncias. O camarada de ontem
podia ser o superior de amanhã e, nas relações recíprocas deste
círculo, os graus e as diferenças acusavam-se e exprimiam-se
através das vibrações mais ténues.
Fritz Tegularius foi uma exceção. Podemos dizer perfeitamente
que foi, juntamente com Ferromonte, o amigo mais fiel que Josef
Knecht teve durante a sua vida. Este homem, que os seus dotes
destinavam ao maior futuro, mas que era fortemente prejudicado
por uma falta de saúde, de equilíbrio e de confiança em si mesmo,
tinha a mesma idade que Knecht. Na época em que este foi admitido
na Ordem, tinha portanto quase vinte e quatro anos. Knecht
conhecera-o pela primeira vez cerca de dez anos antes, num curso
do Jogo das Contas de Vidro, e, a partir daí, sentira até que ponto
aquele jovem silencioso e um pouco melancólico se sentia atraído
por ele. Com o sentido dos homens que já possuía, ainda que contra
sua vontade, penetrou também a natureza daquele amor: era uma
amizade e uma veneração prontas a uma dedicação e a uma
subordinação incondicionais, abrasadas por um entusiasmo quase
religioso, mas temperadas e travadas por uma distinção inata e
também por um pressentimento lúcido do seu drama íntimo. Knecht,
que na altura ainda estava abalado e hipersensível, desconfiado
mesmo, pelas suas aventuras com Designori, mantivera este
Tegularius à distância, com um rigor sistemático, se bem que se
sentisse atraído por este camarada interessante, que saía do vulgar.
Sirvamo-nos para fazer o seu retrato dumas notas administrativas
confidenciais que Knecht fazia, dez anos mais tarde, para intenção
exclusiva do Diretório. Encontramos aí o seguinte:
«Tegularius. Amigo pessoal do relator. Distinguiu-se de várias
maneiras na escola de Keuperheim. Bom especialista das línguas
antigas, interessa-se muito pela filosofia, dedicou-se a trabalhos
sobre Leibniz, Bolzano e posteriormente Platão. É o Jogador de
Contas de Vidro mais dotado e mais brilhante que conheço. Seria o
Magister Ludi nato se, devido à sua saúde frágil, o seu carácter não
fosse totalmente inadequado às funções. É necessário que T. nunca
ascenda a um posto de direção, de representação ou de organizador,
isso seria uma infelicidade para a administração e para ele. O seu
desequilíbrio manifesta-se fisicamente por estados depressivos,
períodos de insónia e de dores nervosas, esporadicamente por
melancolia, uma violenta necessidade de solidão, pelo temor das
obrigações e das responsabilidades, provavelmente também por
ideias de suicídio. Este homem tão atormentado reage com tanta
coragem, graças à meditação e a uma grande disciplina pessoal, que
a maior parte dos membros do seu meio não suspeita da gravidade
dos seus sofrimentos e só se apercebe unicamente da sua grande
timidez e do seu carácter muito fechado. Se T. é, por conseguinte,
inapto a dirigir serviços importantes, não deixa de ser uma joia do
Vicus Lusorum, um valor absolutamente insubstituível. Possui a
técnica do nosso Jogo como um grande instrumentista o seu
instrumento, encontra às primeiras a tonalidade mais subtil, e as
suas qualidades de professor não são desprezáveis. Nos cursos
superiores de aperfeiçoamento e nos do nível mais elevado – teria
escrúpulos em utilizá-lo em cursos inferiores – não saberia como
prescindir dele. A maneira como analisa os jogos de ensaio dos
jovens, sem nunca os desencorajar, cujas manhas descobre, e
reconhece e desvenda tudo o que é imitação ou puro ornamento,
como encontra num jogo solidamente baseado mas ainda incerto e
mal composto a origem dos erros, a qual apresenta como uma
preparação anatómica perfeita, é qualquer coisa de absolutamente
único. É, antes de mais, esta perspicácia incorruptível na análise e
nas correções que lhe assegura a consideração dos seus alunos e
dos seus colegas. Esta estaria, aliás, muito comprometida pelo seu
comportamento incerto e instável, e pela sua timidez bisonha.
Gostaria de ilustrar com um exemplo o que disse sobre o génio
absolutamente ímpar de T. como Jogador de Contas de Vidro. Nos
primeiros tempos da nossa amizade, numa altura em que já não
tínhamos mais nada a aprender nos cursos em matéria de técnica,
ele um dia permitiu-me dar uma vista de olhos a algumas partidas
que já então tinha composto. À primeira vista achei que a inspiração
era brilhante e que o estilo tinha algo de novo e original. Pedi-lhe
licença para estudar os esquemas que ele esboçara, e encontrei
nessas composições verdadeiros poemas, qualidades tão
surpreendentes e tão pessoais, que creio não ter o direito de as
passar aqui em silêncio. Esses jogos eram pequenos dramas, quase
exclusivamente monólogos, e refletiam a vida espiritual do autor, tão
posta à prova como genial, como um retrato perfeito pintado por ele
próprio. Havia aí não apenas um concerto dialético e um conflito
entre os diferentes temas e grupos de temas, sobre os quais
repousava o Jogo e cuja sucessão e oposição eram muito
engenhosas, mas também síntese, e a harmonização das vozes
contrastadas não era conduzida da maneira habitual e clássica até
ao seu termo final; esta harmonização sofria antes toda uma série
de fraturas e detinha-se sempre, como tomada de fadiga ou
desespero, antes de se resolver; perdia-se na interrogação e na
dúvida. Com isso os seus Jogos adquiriam não apenas um
cromatismo exaltante, nunca antes tentado que eu saiba, mas
transformavam-se inteiros na expressão duma dúvida e duma
renúncia trágicas, acabavam por fixar a imagem de tudo quanto o
esforço espiritual tem de contestável. Ao mesmo tempo, tanto na
sua espiritualidade como na sua caligrafia e perfeição técnica, era
duma beleza tão excecional que fazia chorar. Cada um destes Jogos
lutava tão sinceramente, tão gravemente, para encontrar a sua
solução e acabava por a ela renunciar com um tão nobre ascetismo
que se assemelhava a uma elegia perfeita sobre a precariedade
inerente a toda a beleza e sobre a incerteza final dos grandes
objetivos do espírito. Item, recomendo Tegularius, se me sobreviver
ou se sobreviver à duração das minhas funções, como um bem
extremamente frágil e precioso, mas sempre comprometido. Deve
gozar de muita liberdade, o seu conselho deve ser ouvido sobre
todas as questões importantes relativas ao Jogo. Mas é preciso
nunca confiar alunos à sua direção única.»
Ao longo dos anos este homem curioso tornara-se
verdadeiramente amigo de Knecht. Tinha por Josef, no qual
admirava, além do espírito, uma espécie de natureza de chefe, uma
dedicação comovedora, e muitas das informações que possuímos
chegaram-nos por seu intermédio. Foi talvez o único, no círculo
exclusivo dos Jogadores da jovem geração, a não invejar o seu
amigo pela missão que lhe foi confiada e o único a quem o seu
afastamento por um período indeterminado causou uma dor e uma
perda quase intoleráveis.
Josef acolheu com alegria esta nova situação, logo que
ultrapassou a espécie de temor que lhe causava a perda repentina
da sua cara liberdade. Tinha vontade de viajar, agir, e sentia
curiosidade por aquele mundo desconhecido para onde o enviavam.
De resto, não deixaram partir assim o jovem membro da Ordem para
Mariafels. Fizeram-no passar primeiro três semanas na «polícia».
Este era o nome que os estudantes davam a essa pequena secção
do aparelho administrativo do ensino que poderíamos quase
qualificar de departamento político ou ainda de Ministério dos
Negócios Estrangeiros, se não fossem nomes um pouco pomposos
para uma coisa tão pequena. Aí inculcaram-lhe as regras de conduta
que deviam observar os membros da Ordem em viagem pelo Mundo,
e quase todos os dias o senhor Dubois, que dirigia este serviço, lhe
consagrou pessoalmente uma hora. Este homem consciencioso
achava arriscado, com efeito, enviar para um posto exterior como
aquele um rapaz que ainda não dera provas e era totalmente
ignorante do mundo. Não escondeu absolutamente nada que
desaprovava a decisão do Mestre do Jogo das Contas de Vidro e
teve o dobro da dificuldade para esclarecer com amistosa solicitude
este jovem irmão noviço sobre os perigos do mundo e os meios de
os vencer eficazmente. Esta preocupação paternal e sincera do chefe
de serviço conjugou-se tão felizmente com o desejo que tinha o
jovem de se deixar catequizar, que durante essas horas de iniciação
nas regras do comércio com o século, Josef Knecht conquistou
verdadeiramente o afeto do seu professor e este pôde finalmente
deixá-lo partir para a sua missão, tranquilizado e perfeitamente
confiante. Tentou mesmo, mais por benevolência do que por política,
confiar-lhe por sua própria iniciativa uma espécie de encargo
suplementar. O senhor Dubois, devido ao próprio facto de ser um
dos raros «políticos» da Província, pertencia àquele grupo muito
restrito de funcionários cujos pensamentos e estudos eram na sua
maior parte consagrados à manutenção jurídica e económica de
Castália, às suas relações com o mundo exterior e com a sua
independência em relação a este. Os castalianos, na sua grande
maioria, tanto os funcionários como os eruditos e os estudantes,
viviam na sua Província pedagógica e na sua Ordem como num
mundo estável, eterno e que era evidente em si mesmo; sabiam na
realidade que esse mundo nem sempre tinha existido, que havia
aparecido um dia e numa época de profunda miséria, no decurso de
longos e amargos combates, no fim da era das guerras, fruto tanto
da tomada de consciência e dos esforços plenos de heroísmo
ascético dos intelectuais como da profunda necessidade de ordem,
de normas, de razão, de leis e de medida dos povos esgotados,
exangues e caídos na incultura. Sabiam-no e sabiam também qual
era o papel de todas as Ordens e de todas as «Províncias» do
Mundo: manterem-se afastadas do poder político e da concorrência
e assegurarem em compensação a permanência e a duração dos
fundamentos espirituais de tudo o que era lei e medida. Mas o que
ignoravam era que esta ordem das coisas não era absolutamente
nada evidente, que supunha uma determinada harmonia entre o
século e o espírito, que a todo o momento podia ser perturbada, que
a história do Mundo, bem visto tudo, não procurava e de modo
nenhum favorecia o que era desejável, razoável e belo, mas o
tolerava quando muito, de longe a longe, como uma exceção. Os
problemas secretos que a sua existência como castalianos levantava
estavam no fundo ausentes do espírito da maior parte deles,
remetiam-se precisamente para as poucas cabeças políticas, das
quais fazia parte o diretor Dubois. Foi por seu intermédio que
Knecht, depois de lhe ter ganho a confiança, foi sumariamente
iniciado nos fundamentos políticos de Castália; isso pareceu-lhe em
primeiro lugar, como à maior parte dos seus confrades da Ordem,
um assunto bastante rebarbativo e pouco interessante, mas a
observação feita por Designori sobre a eventualidade duma
conjuntura perigosa para Castália veio-lhe ao espírito e, ao mesmo
tempo, todo o ressaibo amargo, que julgava escorraçado e
esquecido para sempre, das suas discussões juvenis com Plínio. De
repente, isso pareceu-lhe da maior importância; julgou subir um
degrau na via do despertar.
No fim da sua segunda sessão, Dubois disse-lhe: – Creio que
posso deixar-te partir agora. Ater-te-ás estritamente à missão que o
venerável Magister Ludi te confiou e respeitarás igualmente as
regras de conduta que te inculcámos aqui. Fiquei muito contente por
te ter ajudado. Verás que estas três semanas, durante as quais te
retivemos aqui, não foram perdidas. E se alguma vez viesses a sentir
o desejo de me provar que estás satisfeito com as minhas
informações e com as nossas relações, vou dizer-te como deves
fazê-lo. Vais chegar a uma fundação de Beneditinos; se lá ficares
algum tempo e ganhares a confiança dos padres, é provável que, no
círculo dessas respeitáveis pessoas e dos seus convidados, ouças
também conversas, descubras tendências políticas. Se quiseres
nessa altura informar-me, ficar-te-ei grato. Compreende-me bem.
Não tens, por nada deste mundo, que te considerar como uma
espécie de espião, ou que abuses da confiança que te
testemunharem os padres. Não terás de me confiar nada que a tua
consciência não autorize. Nós só tomaremos conhecimento e só
exploraremos as tuas eventuais informações no interesse da nossa
Ordem e de Castália, disso responsabilizo-me perante ti. Não somos
verdadeiros políticos e não temos nenhum poder, mas dependemos
do século, que precisa de nós ou nos tolera. Em certas
circunstâncias pode ser-nos útil saber que um homem de Estado
entra para o convento ou que o papa passa por estar doente ou que
novas candidaturas se acrescentam à lista dos futuros cardeais. As
tuas informações não nos serão indispensáveis, dispomos de fontes
diversas, mas uma pequena fonte suplementar não pode fazer-nos
mal. Vai então, não precisas de responder já hoje à minha sugestão
com um sim ou um não. Não te proponhas mais nada a não ser
cumprir em primeiro lugar a tua missão oficial e honrar-nos junto
desses eclesiásticos. Desejo-te boa viagem.
No Livro das Mutações, que Knecht interrogou, procedendo à
cerimónia dos paus de mil-folhas, antes de iniciar a viagem,
deparou-se-lhe o símbolo Lu, que significa «o viajante» e é
acompanhado por este juízo: «Ter êxito com coisas pequenas. A
tenacidade é salutar ao viajante.» Em segundo lugar encontrou um
hexagrama e procurou o seu significado no Livro:

O viajante chega ao albergue.


Traz consigo o que é seu.
Obtém a ligação dum jovem servidor.

As despedidas fizeram-se com alegria, só a última conversa com


Tegularius constituiu para ambos uma dura prova de resistência.
Fritz violentou-se e estava como que de pedra na frieza que se
impôs; para ele, com o seu amigo era o melhor do que possuía que
se ia embora. O temperamento de Knecht não lhe permitia ligar-se
tão apaixonadamente e sobretudo tão exclusivamente; podia em
rigor passar sem a amizade e orientar os raios da sua simpatia sem
falso pudor para objetos e seres novos. Esta separação não
constituía para ele uma perda lancinante. Mas conhecia já então
bastante bem o seu amigo para saber que abalo e que provação
esta separação representava para ele, e preocupava-se com ele.
Tinha-lhe já acontecido muitas vezes ficar preocupado com esta
amizade e havia mesmo falado já uma vez dela ao Mestre da
Música, e aprendera, até a um certo grau, a objetivar e a considerar
com olho crítico a sua vida e os seus sentimentos pessoais. Dera-se
então conta de que não era propriamente, de que não era
unicamente o grande talento do outro que o cativava e lhe inspirava
uma espécie de paixão, mas precisamente a coexistência desse
talento com perturbações tão graves, com tanta fragilidade, e
também o facto de este amor único e exclusivo que Tegularius lhe
dedicava não ter apenas o encanto e a aparência da beleza; tinha
também o seu perigo: a tentação, para Knecht, de poder vir a fazer
sentir o seu poder àquele rapaz mais fraco, mas mais rico de amor.
Nesta amizade impôs-se até ao fim uma grande reserva e uma
grande disciplina. Por mais caro que lhe fosse, Tegularius não teria
tido outra importância na vida de Knecht se a amizade deste ser
frágil, fascinado pelo seu amigo muito mais vigoroso e mais bem
equilibrado, não tivesse aberto os olhos deste para a atração e o
poder que tinha o dom de exercer sobre muitos homens. Começou a
suspeitar que existe qualquer coisa desse poder de atrair e
influenciar os outros na própria essência das qualidades inatas aos
professores e aos educadores, que isso encerra perigos e impõe uma
responsabilidade. Tegularius não era senão um homem entre muitos,
Knecht via-se exposto a muitos aspetos que procuravam conquistá-
lo. Ao mesmo tempo, durante os últimos anos, ganhara uma
consciência cada vez mais clara da atmosfera extremamente tensa
em que vivia na aldeia dos Jogadores. Nela fazia parte dum meio ou
duma classe sem existência oficial, mas claramente delimitada, a
elite mais eminente dos candidatos e dos repetidores do Jogo das
Contas de Vidro. Podia-se recorrer a um membro qualquer deste
círculo para servir de assistente ao Magister, ao arquivista ou nos
cursos de Contas de Vidro, mas nenhum deles estava afeto às
funções subalternas ou intermediárias da administração ou do
ensino. Constituíam a reserva onde se recrutavam os dignitários dos
postos de direção. Todos se conheciam de perto, de demasiado
perto, e ninguém se iludia sobre os talentos, os caracteres e as
realizações de ninguém. Cada um destes repetidores da ciência do
Jogo e destes aspirantes às funções mais elevadas representava
uma força superior à média e digna de consideração; as suas
realizações, o seu saber, os seus diplomas, punham-nos a todos no
primeiro plano. Por isso os traços e as subtilezas de carácter que
predestinavam tal pretendente para o papel de chefe e para o êxito,
tinham uma importância particular e eram observados com atenção.
Pesava muito na balança, podia ser determinante num concurso ter
mais ou menos ambição, desenvoltura, altura de corpo ou beleza de
aparência, mais ou menos encanto pessoal e eficácia junto dos mais
novos ou das autoridades, ser mais ou menos amável. Se Fritz
Tegularius neste círculo era apenas um outsider, um simples
convidado, um estrangeiro tolerado e pertencia apenas à periferia
porque visivelmente não possuía qualidades de chefe, Knecht, pelo
contrário, estava no centro. O que lhe valia o favor dos jovens e lhe
atraía cortesãos era a sua frescura, a sua graça ainda juvenil, que
lhe dava a aparência de ser inacessível às paixões, incorruptível e
tão irresponsável como uma criança, em suma, uma certa inocência.
E o que nele agradava aos seus superiores era o outro aspeto desta
inocência: a sua falta quase total de ambição e arrivismo.
Nos últimos tempos o jovem tomara consciência do efeito
produzido pela sua personalidade, em primeiro lugar nos seus
inferiores, mas pouco a pouco, finalmente, também nos seus
superiores, e, quando considerava o seu passado com esta lucidez
nova, via que estas duas linhas atravessavam e formavam a sua
infância: a amizade ávida que lhe haviam concedido camaradas e
mais novos e a atenção benevolente com que muitos dos seus
superiores o tinham tratado. Houvera exceções, como o reitor
Zbinden, mas compensadas por distinções tais como o favor do
Mestre da Música e, recentemente, do senhor Dubois e do Magister
Ludi. Era uma coisa manifesta e, apesar disso, Knecht nunca, até ali,
a quisera ver e admiti-la completamente. Visivelmente, a via que
para si estava traçada levava, em todo o lado, imediatamente e sem
esforço, ao seio da elite; fazia-o encontrar amigos admiradores e
protetores altamente colocados; o seu destino não lhe consentia
parar na sombra, na base da hierarquia, era constantemente
obrigado a aproximar-se do topo e da luz viva que o rodeava. Não
seria um subalterno, nem um erudito anónimo, mas um chefe. O
facto de o notar depois dos outros que estavam na mesma situação
conferia-lhe um acréscimo indescritível de encanto, um toque de
inocência. E porque é que o notava tão tardiamente e mesmo contra
vontade? Porque nada disso era o que pretendera e quisera, porque,
para ele, reinar não era uma necessidade, nem comandar, um
prazer, porque era infinitamente mais ávido de vida contemplativa do
que de vida ativa e teria ficado mais satisfeito se pudesse passar
ainda mais anos, ou mesmo toda a vida, como estudante obscuro,
peregrino curioso e respeitoso dos santuários do passado, das
catedrais da música, dos jardins e das florestas das mitologias, das
línguas e das ideias. Quando se viu inexoravelmente empurrado para
a vita activa, foi muito mais sensível do que anteriormente às
tensões criadas à sua volta pelo arrivismo, a concorrência e a
ambição, sentiu que a sua inocência estava ameaçada, que a sua
posição já não era mais sustentável. Deu-se conta de que doravante
era obrigado a querer e a afirmar com o corpo o que lhe fora
atribuído e destinado, não só para vencer o sentimento de ser
prisioneiro como também a saudade da liberdade perdida dos seus
dez últimos anos. E, como no fundo de si mesmo ainda não estava
totalmente disposto, sentiu um alívio ao deixar provisoriamente
Waldzell e a Província e ir viajar pelo Mundo.
O mosteiro, a fundação de Mariafels, durante os numerosos
séculos da sua existência, fora um elemento e contribuíra para forjar
a história do Ocidente; conhecera períodos de desenvolvimento,
decadência, renascimento e novamente de profundo marasmo e, em
muitas épocas e em domínios variados, alcançara a celebridade e a
glória. Outrora grande centro de erudição e de disputas escolásticas,
possuía ainda uma imensa biblioteca de teologia da Idade Média.
Depois de fases de torpor e inércia, brilhara com um brilho novo,
desta vez com a música, graças aos seus coros muito apreciados, às
missas e aos oratórios escritos e executados pelos seus frades.
Desse tempo guardava ainda uma bela tradição musical, uma meia
dúzia de arcas de nogueira cheias de partituras manuscritas e os
mais belos órgãos do pais. Seguidamente, tinha sido o período
político do mosteiro; também este deixara uma certa tradição, um
certo treino. Nas horas dos piores regressos à barbárie provocados
pelas guerras, Mariafels tinha sido por diversas vezes uma ilhota de
bom senso e de razão, onde os espíritos mais esclarecidos dos
partidos adversos se punham, com cautela, em contacto e
procuravam um terreno de acordo, e, uma vez – foi a última glória
da sua história –, Mariafels vira nascer e assinar uma paz que
satisfazia por algum tempo as aspirações dos povos esgotados.
Quando, logo a seguir, uma era nova começou e foi fundada
Castália, o mosteiro observou uma atitude de expectativa, e mesmo
de reserva, provavelmente não sem antes ter solicitado instruções a
Roma. Quando a administração do ensino lhe pediu hospitalidade
para um sábio que queria trabalhar durante algum tempo na
biblioteca escolástica do mosteiro, o pedido chocou-se com uma
recusa educada. Um convite para enviarem um representante a uma
reunião consagrada à história da música teve o mesmo destino. Foi
somente a partir do abade Pius, que, em idade já avançada,
começou a interessar-se vivamente pelo Jogo das Contas de Vidro,
que relações e trocas se instituíram; consecutivamente, transformar-
se-iam em relações amistosas ou mesmo muito animadas.
Trocavam-se livros, hóspedes eram mutuamente recebidos; o
protetor de Knecht, o Mestre da Música, tinha passado na sua
juventude algumas semanas em Mariafels e copiara lá manuscritos
de partituras e tocara nos órgãos célebres. Knecht sabia isto e
estava contente por fazer uma estada num sítio sobre o qual tinha
ouvido o seu venerado Mestre às vezes falar com alegria.
Foi recebido com atenções e uma gentileza que ultrapassara as
suas expectativas e que o confundiu um pouco. É verdade que era a
primeira vez que Castália punha à disposição do mosteiro, por tempo
indeterminado, um Jogador de Contas de Vidro escolhido entre a
elite. Knecht tinha ficado a saber pelo diretor Dubois que,
especialmente nos primeiros tempos do seu papel de convidado,
devia abstrair-se da sua pessoa, considerar-se somente como
representante de Castália, não acusar nem retribuir eventuais
amabilidades e friezas, a não ser em nome da sua embaixada; isto
ajudou-o a ultrapassar os seus primeiros embaraços. Dominou
igualmente o sentimento de estranheza, de angústia e de leve
emoção que sentiu ao princípio, nas primeiras noites, em que pouco
conseguiu dormir. E, como o abade Gervasius lhe testemunhasse
uma benevolência afetuosa e alegre, sentiu-se rapidamente à
vontade no seu novo meio. Gostou da frescura e do relevo vigoroso
da paisagem: era uma região de ásperas montanhas, com falésias
abruptas rodeando viçosos prados cheios de belo gado; a rude
solidez e amplidão das velhas construções, onde se lia a história de
séculos sem conta, enchiam-no de felicidade; foi conquistado pela
beleza e o conforto simples do seu alojamento, duas salas no andar
de cima da longa ala reservada aos convidados; deu-lhe prazer
explorar este imponente pequeno Estado com as suas duas igrejas,
os seus claustros, os seus arquivos, a sua biblioteca, a sua abadia,
os seus diversos pátios, a vasta extensão dos seus estábulos cheios
de gado bem tratado, as suas fontes rumorejantes, as gigantescas
caves abobadadas, adegas e madureiros, os seus dois refeitórios, a
sua célebre sala do capítulo, os seus jardins bem tratados, bem
como as oficinas dos irmãos laicos, do tanoeiro, do sapateiro, do
alfaite, do ferreiro, etc., que formavam uma pequena aldeia à volta
do pátio principal. Tinha já acesso à biblioteca, o organista mostrara-
lhe já os magníficos órgãos e autorizara-o a tocar, e não eram uma
atração menor as arcas cheias de músicas, onde deviam dormir um
número imponente de partituras manuscritas das épocas anteriores,
inéditas e em parte ainda totalmente desconhecidas.
No mosteiro não pareciam absolutamente nada impacientes em
vê-lo entrar nas suas funções oficiais. Passaram-se dias, e até
semanas, sem que se falasse seriamente do verdadeiro objetivo da
sua presença naquele sítio. Com efeito, logo no primeiro dia, alguns
frades, e nomeadamente o próprio abade, conversaram de bom
grado com Josef sobre o Jogo das Contas de Vidro, mas nunca se
tratou da questão do ensino ou de qualquer outra atividade
sistemática. De um modo geral, Knecht notou também no
comportamento, no estilo de vida e no tom da conversa destes
religiosos, um ritmo que ainda não conhecia, uma certa lentidão
venerável, uma paciência inesgotável de crianças bem-comportadas.
Estas qualidades pareciam ser comuns a todos os frades, e até
mesmo àqueles a quem pessoalmente não faltava temperamento.
Era o espírito da Ordem, o ritmo do fôlego milenar duma
organização, duma comunidade antiga, privilegiada, que centenas
de vezes dera provas tanto nas horas boas como nas más. Faziam
parte dela, como cada abelha participa do destino e da vida da sua
colmeia, dorme o seu sono, sofre os seus sofrimentos, treme com os
seus medos. Comparado com o estilo de vida de Castália, o dos
Beneditinos parecia à primeira vista menos intelectual, menos ágil,
menos nervoso, menos ativo, mas em contrapartida mais impassível,
mais rebelde às influências, mais antigo e mais seguro de si; aqui,
parecia reinar um espírito, um pensamento que há muito era uma
natureza. Com curiosidade, um grande interesse e também uma viva
admiração, Knecht abandonou-se à influência desta vida monacal
que, numa época em que Castália ainda não existia, já era quase
igual ao que era hoje, com mil e quinhentos anos de idade, e que
respondia tão bem ao aspeto contemplativo do seu temperamento.
Era um convidado; fizeram-lhe honrarias, mais do que as que
esperava e para lá das conveniências, mas ele sentia-o nitidamente
– era o que queriam as formas e o costume e nada disso se dirigia à
sua pessoa nem ao espírito de Castália ou do Jogo das Contas de
Vidro; era a majestosa cortesia duma antiga grande potência para
com outra mais nova. Como só parcialmente tinha sido preparado
para isso, ao fim de algum tempo, apesar de todos os confortos da
sua vida em Mariafels, sentiu-se tão pouco seguro de si que pediu à
sua administração que lhe desse diretivas de conduta mais precisas.
O Magister Ludi escreveu-lhe algumas linhas pessoalmente. «Não te
forces», dizia-lhe ele, «por consagrar mais ou menos tempo a
estudar a vida daí. Tira partido dos dias, aprende, procura tornar-te
simpático e útil, na medida em que aí sejam sensíveis a isso, mas
não procures impor-te, nunca te mostres mais impaciente do que os
teus anfitriões, nunca dês a impressão de teres menos ócios do que
eles. Mesmo que te tratem durante um ano inteiro como se fosse o
primeiro dia da tua presença aí, compraz-te tranquilamente e
comporta-te como se não te importassem serem dois ou dez anos.
Toma tudo como um concurso de paciência. Medita com atenção! Se
os teus ócios te pesam, consagra algumas horas por dia, não mais
de quatro, a um trabalho regular, tal como o estudo ou a cópia de
manuscritos. Mas não dês a impressão de trabalhar, tem tempo para
quem quiser conversar contigo.»
Knecht conformou-se e não tardou a sentir-se mais livre. Até aí
tinha pensado demasiado no seu papel de responsável por cursos
para amadores do Jogo das Contas de Vidro, título da sua missão,
enquanto os frades do mosteiro o tratavam antes como enviado
duma potência amiga que convinha manter satisfeito. E quando o
abade Gervasius acabou por se lembrar da sua missão de professor
e lhe trouxe primeiro alguns frades que já tinham feito uma primeira
iniciação no Jogo e aos quais devia dar um curso complementar,
revelou-se, para seu espanto, e ao princípio para sua grande
deceção, que o verniz que tinham do nobre Jogo neste sítio
hospitaleiro era bastante superficial; digno de diletantes, e que,
segundo todas as aparências, se contentavam com uma dose muito
modesta de conhecimentos. E no seguimento desta descoberta
acabou por, lentamente, fazer também a seguinte: a arte do Jogo
das Contas de Vidro e o seu ensino não eram, de certeza, de modo
nenhum, a causa da sua vinda aqui. Inculcar mais algumas noções
elementares a este grupo de frades molemente amadores do Jogo e
dar-lhes o prazer dum modesto feito desportivo era uma tarefa fácil,
demasiado fácil. Qualquer outro Jogador estagiário teria estado à
altura, mesmo se estivesse longe de pertencer à elite. O ensino não
podia, por conseguinte, ser o verdadeiro objetivo da sua missão.
Começou a compreender que o tinham enviado, de certeza, para ali
menos para ensinar do que para aprender.
Mas no próprio momento em que pensou ter desvendado o
mistério, a sua autoridade no mosteiro viu-se no entanto reforçada
subitamente e, com esse facto, a sua confiança em si próprio, pois,
apesar de todos os encantos e das comodidades do seu papel de
convidado, a sua estada tinha-lhe já por vezes dado a sensação de
ser uma medida disciplinar. Ora aconteceu que um dia, durante uma
conversa com o abade, lhe escapou, sem intenção nenhuma, uma
alusão ao I Ching chinês; o abade pôs-se à escuta, fez-lhe algumas
perguntas e quando descobriu que o seu hóspede,
inesperadamente, conhecia o chinês e o Livro das Mutações, não
conseguiu dissimular a sua alegria. Sentia uma predileção pelo I
Ching e, se bem que não compreendesse palavra do chinês e que as
ideias que concebera do Livro dos Oráculos e de outros segredos
chineses tivessem a insignificância e a superficialidade com que o
interesse científico dos ocupantes do mosteiro nessa época parecia
contentar-se, era claro que aquele homem avisado e que, em
comparação com o seu hóspede, tinha uma grande experiência e um
enorme conhecimento do mundo, possuía realmente afinidades com
a sabedoria política e moral da antiga China. Daqui resultou uma
conversa duma vivacidade fora do habitual que, pela primeira vez,
rompia o gelo das relações corteses entre o dono da casa e o seu
hóspede e que teve como consequência que Knecht fosse solicitado
a dar, duas vezes por semana, uma lição de I Ching ao respeitável
religioso.
Ao mesmo tempo que as suas relações com o abade e seu
anfitrião ganhavam, deste modo, vida e eficácia, que a sua amizade
colegial com o organista florescia e que se familiarizava pouco a
pouco com o pequeno Estado eclesiástico onde vivia, a promessa do
oráculo que interrogara antes de sair de Castália começou a realizar-
se. Tinha sido prometido ao viajante que levava consigo o seu bem –
e era ele – não apenas entrar num albergue mas também conquistar
«a ligação dum jovem servidor». O viajante estava em condições de
considerar como sinal favorável a realização progressiva desta
promessa, este era o sinal de que trazia realmente «o seu bem
consigo»; de que, mesmo longe das escolas, dos professores, dos
camaradas, dos protetores e dos apoios, longe da atmosfera da sua
pátria de Castália, seu alimento e socorro, trazia consigo o espírito e
as forças que o destinavam a uma vida ativa e digna. O «jovem
servidor» anunciado veio com efeito a encontrá-lo na figura de um
noviço chamado Anton, e, se bem que este jovem não tenha tido
nenhum papel na vida do próprio Knecht, foi todavia nessa altura,
naqueles primeiros tempos curiosamente indecisos da sua estada no
mosteiro, um indicativo, um mensageiro de novidade e grandeza, o
arauto de acontecimentos iminentes. Anton, um jovem taciturno mas
cujos olhos traíam ardor e talento, quase já bastante amadurecido
para ser admitido no número dos monges, encontrou-se bastantes
vezes com o Jogador de Contas de Vidro, cuja origem e arte eram
para ele um grande mistério, enquanto, geralmente, o pequeno
bando dos noviços, na sua ala separada, fechada ao convidado,
permanecia quase desconhecida deste e era mantida visivelmente
longe do seu olhar. Os noviços não estavam autorizados a seguir os
cursos de Contas de Vidro. Mas este Anton estava de serviço várias
vezes por semana à biblioteca, como ajudante. Era lá que Knecht o
encontrava; nessas ocasiões trocaram algumas palavras, e Knecht
apercebeu-se cada vez mais de que este jovem de olhos sombrios e
enérgicos, dotados de grossas sobrancelhas negras, tinha por ele
aquele apego entusiasta e prestável, aquele amor cheio da
veneração do adolescente e do discípulo, que encontra já com
bastante frequência e na qual reconhecera, apesar do seu desejo
constante de se lhe furtar, um elemento vital e importante da vida
da Ordem. Resolveu, neste mosteiro, mostrar-se duplamente mais
reservado. Julgaria infringir as leis da hospitalidade se procurasse
influenciar aquele jovem, ainda submetido à educação eclesiástica.
Tão-pouco ignorava o rigoroso imperativo de castidade que lá
reinava, e pareceu-lhe que uma paixão amorosa juvenil podia tornar-
se ainda mais perigosa. Fosse como fosse, tinha de evitar todas as
possibilidades de chocar os seus anfitriões, e agiu em consequência.
Na biblioteca, único lugar onde encontrava com frequência Anton,
travou também conhecimento com um homem, ao qual de início não
dera atenção, tão modesto de atitude ele era, mas que aprendeu a
apreciar melhor com o tempo e que amou durante toda a sua vida
com uma veneração plena de gratidão, quase só igual talvez à
manifestada pelo Mestre da Música. Era Frei Jakobus, sem dúvida o
historiógrafo mais significativo da Ordem dos Beneditinos. Este tinha
na altura sessenta anos; era um homem descarnado, de aspeto
idoso, com uma cabeça de gavião empoleirada num pescoço
comprido e nervoso. De frente, o seu rosto, bastante avaro de
expressões, parecia, sobretudo por esta razão, inerte e apagado,
mas o perfil, a curva ousada da testa, a reentrância profunda acima
da aresta do nariz, o recorte do nariz aquilino e o queixo um pouco
curto mas que acabava numa linha duma beleza sedutora,
revelavam uma personalidade marcada e obstinada. Este velho
silencioso que, quando se conhecia melhor, era capaz de revelar o
temperamento mais apaixonado, dispunha na salinha interior da
biblioteca duma mesa de trabalho própria, sempre coberta de livros,
manuscritos e mapas geográficos. Neste mosteiro, que possuía livros
sem preço, parecia ser o único sábio que trabalhava
verdadeiramente a sério. Foi aliás o noviço, Anton, quem, sem
querer, chamou a atenção de Josef para Frei Jakobus. Knecht notara
que aquele pequeno reduto interior da biblioteca, onde o sábio tinha
a sua mesa, era quase considerado como um gabinete particular; os
raros utentes da biblioteca só lá entravam em caso de necessidade,
sem fazer barulho, com respeito e em pontas de pés, se bem que o
irmão que lá trabalhava de modo nenhum desse a impressão de ser
tão fácil de incomodar com isso. Knecht tomara imediatamente
como seu dever mostrar-lhe as mesmas atenções e, por este facto, o
esforçado velho tinha escapado sempre à sua observação. Um dia,
este tinha mandado Anton trazer-lhe alguns livros e quando ele
regressou do reduto interior, Knecht notou que se demorava um
pouco no limiar da porta e se voltava para olhar para o sábio,
sentado à mesa, mergulhado no seu trabalho. Anton tinha uma
expressão exaltada de admiração e respeito, a que se misturava
aquela atenção quase terna e solícita que os jovens de boas
maneiras às vezes concedem às calvícies e às doenças dos velhos.
Knecht em primeiro lugar teve prazer em ver aquilo, era em si
mesmo um belo espetáculo e mostrava-lhe apesar de tudo que
Anton era propenso a entusiasmos por pessoas mais velhas e
admiradas, sem que essa paixão tivesse alguma coisa de carnal. No
minuto que se seguiu, veio-lhe uma ideia bastante irónica, de que se
envergonhou quase imediatamente. Imaginou que naquela
instituição a erudição devia estar muito mal partilhada, para que o
único sábio da casa que trabalhava seriamente fizesse esbugalhar os
olhos à juventude, como um animal raro ou fabuloso. Fosse como
fosse, o olhar quase terno de veneração admirativa que Anton fixava
no velho abriu os olhos de Knecht para a pessoa do sábio frade, e,
lançando depois disso de vez em quando um olhar ao homem,
descobriu-lhe o perfil romano, desvendou pouco a pouco em Frei
Jakobus este ou aquele pormenor que lhe pareciam revelar um
espírito e um carácter fora do vulgar. Sabia já que ele era historiador
e que passava por ser o especialista mais versado na história dos
Beneditinos.
Um dia o frade dirigiu-lhe a palavra. Não tinha a entoação
untuosa, cheia de benevolência, cheia de bom humor e um pouco
paternal que parecia fazer parte do estilo da casa. Convidou Josef a
ir ao seu quarto depois das vésperas. «Não encontrará certamente
em mim», disse numa voz baixa e quase tímida, mas com uma
dicção maravilhosamente precisa, «um conhecedor da história de
Castália e ainda menos um Jogador de Contas de Vidro, mas uma
vez que parece que as nossas duas Ordens tão diferentes se ligam
cada vez mais de amizade, não gostaria de ficar de lado e desejaria,
também eu, aproveitar um pouco de vez em quando com a sua
presença.» Falava com uma seriedade perfeita, mas a voz contida e
o rosto velho malicioso davam às suas palavras, duma educação
excessiva, aquela maravilhosa ambiguidade entre o sério e a ironia,
o ar devoto e o gracejo leve, o patético e a comédia, cujo jogo de
paciência protocolar, feito das vénias intermináveis trocadas, ao
saudarem-se mutuamente, por dois santos ou dois príncipes da
Igreja, pode, por exemplo, despertar o sentimento. Esta mistura de
superioridade e ironia, de sabedoria e cerimonial obstinado, que
Josef Knecht conhecia tão bem desde que estudava os chineses, foi
para si um conforto. Deu-se conta de que havia um certo tempo que
não ouvia ninguém adotar esse tom: o Magister Ludi Thomas
dominava-o como um mestre. Aceitou o convite com alegria e
gratidão. Quando se dirigiu, à noite, para o apartamento do frade,
ao fundo duma ala lateral tranquila, e se interrogava sobre qual era
a porta a que devia bater, teve a surpresa de ouvir tocar piano. Pôs-
se à escuta. Era uma sonata de Purcell, executada sem pretensão
nem virtuosismo, mas dentro do compasso e corretamente. Os sons
desta música pura, profundamente serena nos seus acordes doces
de terceira, chegavam até ele, íntimos e agradáveis, e lembravam-
lhe o tempo de Waldzell, em que se exercitava com o seu amigo
Ferromonte a tocar em diversos instrumentos peças deste género.
Esperou pelo fim da sonata, escutando com volúpia. O corredor
tranquilo, mergulhado na penumbra, vibrava com aqueles sons que
respiravam ao mesmo tempo solidão e desprendimento, coragem e
inocência, puerilidade e superioridade, como toda a boa música no
coração deste mundo ainda condenado ao mutismo. Bateu à porta
com força, o Irmão Jakobus gritou «Entre!» e acolheu-o com a sua
dignidade cheia de modéstia. Duas velas ardiam ainda em cima do
piano. «Sim», respondeu o Irmão Jakobus à pergunta de Knecht:
tocava todas as noites meia hora, ou mesmo uma hora inteira;
acabava o seu trabalho diário ao cair da noite e renunciava a ler e a
escrever durante as horas que precediam o deitar. Falaram de
música, de Purcell, Haendel, da antiga prática da música entre os
Beneditinos, essa Ordem verdadeiramente familiar das musas e com
cuja história Knecht manifestou o desejo de se familiarizar. A
conversa animou-se e aflorou centenas de questões; os
conhecimentos históricos do velho pareciam verdadeiramente
admiráveis, mas não contestava que a história de Castália, do
pensamento castaliano e dessa Ordem estrangeira não o tinham
ocupado nem interessado; tão-pouco fez mistério da sua atitude
crítica em relação a Castália, cuja «Ordem» considerava uma
imitação das congregações cristãs e, no fundo, uma falsificação
sacrílega, uma vez que não tinha como fundamento nem a religião,
nem Deus, nem a Igreja. Knecht ouviu respeitosamente esta crítica,
mas deu no entanto a entender que, fora das conceções dos
Beneditinos e do catolicismo romano sobre esses pontos, outros
eram ainda possíveis e tinham existido: não se podia contestar nem
a pureza das intenções e dos esforços de Castália e da Ordem, nem
a sua profunda influência na vida espiritual.
– Exato – disse Jakobus. – O meu amigo pensa, entre outros, nos
protestantes. Os protestantes não foram capazes de conservar a sua
religião e a sua Igreja, mas aconteceu-lhes mostrar muita coragem e
terem homens exemplares. Durante a minha vida, ao longo de vários
anos, estudei com predileção as diferentes tentativas de
reconciliação entre as confissões e as Igrejas cristãs adversas,
nomeadamente as que existiram por volta de 1700, nas quais se
veem pessoas como o filósofo e matemático Leibniz, mais aquele
singular conde Zinzendorf, esforçarem-se por reunir esses irmãos
inimigos. Dum modo geral, o século XVIII, tão aéreo e diletante
como o seu espírito às vezes pode parecer, e notavelmente
interessante e complexo do ponto de vista da história das ideias, e é
precisamente com os protestantes desta época que me tenho
ocupado frequentemente. Descobri, um dia, um filólogo, professor e
educador de grande classe, que era aliás um pietista suabo, um
homem cuja influência moral deixou marcas manifestas e
demonstráveis durante dois bons séculos; mas aí entramos noutro
domínio, voltemos à questão da legitimidade e da missão histórica
da Ordem propriamente dita...
– Oh, não! – exclamou Josef Knecht –, demoremo-nos mais, por
favor, nesse professor de que falava agora mesmo. Creio quase ser
capaz de adivinhar quem é.
– Pois bem, adivinhe.
– Pensei em primeiro lugar em Francke, de Halle, mas tem de ser
um suabo: nesse caso, só pode ser Johann Albrecht Bengel.
Uma gargalhada ressoou e um clarão de prazer transfigurou o
rosto do sábio. – Surpreende-me, meu caro amigo – exclamou, com
vivacidade. – Era de facto em Bengel que estava a pensar. Onde foi
que ouviu falar dele? Ou será perfeitamente natural na sua
espantosa Província conhecerem factos e nomes tão singulares e tão
esquecidos? Tenha a certeza: se quisesse interrogar todos os
padres, os professores e os alunos do nosso mosteiro e com eles os
das algumas gerações precedentes, não se encontraria um só que
conhecesse esse nome.
– Em Castália também não, poucas pessoas o conheceriam, ou
mesmo ninguém, se excetuarmos eu próprio e dois dos meus
amigos. Aconteceu-me fazer estudos sobre o século XVIII e o
pietismo, apenas a título privado; alguns teólogos suabos
chamaram-me a atenção e provocaram a minha admiração, e, entre
eles, especialmente esse Bengel; na altura deu-me a sensação de
ser o professor e o guia ideal da juventude. Fiquei de tal modo a
gostar desse homem que mandei mesmo fotografar o seu retrato
que estava num velho livro e preguei-o durante algum tempo por
cima da minha mesa de trabalho.
O frade voltou a rir-se. – É um sinal extraordinário, este – disse. –
É verdadeiramente notável que o meu amigo e eu tenhamos caído,
no decurso dos nossos estudos, sobre essa personagem esquecida.
É provavelmente ainda mais notável que esse protestante suabo
tenha conseguido fazer sentir a sua influência ao mesmo tempo num
Beneditino e num Jogador de Contas de Vidro de Castália. Imagino,
de resto, que o vosso Jogo das Contas de Vidro seja uma arte que
exige muita imaginação, e espanta-me que um homem tão realista
como Bengel tenha podido atraí-lo assim tanto.
Foi a vez de Knecht se rir alegremente. – Ora! Se se lembrar dos
longos anos que Bengel passou a estudar a revelação segundo São
João e do sistema de interpretação que deu das profecias desse
livro, tem de reconhecer que os antípodas do realismo não eram
estranhos em absoluto ao nosso amigo.
– É verdade – reconheceu alegremente o frade. – E como explica
esses contrastes?
– Se me permite uma graça, diria que o que faltou a Bengel e que
ele, sem o saber, nostalgicamente procurou e desejou, era o Jogo
das Contas de Vidro. De facto, coloco-o entre o número dos
precursores e antepassados desconhecidos do nosso Jogo.
Com prudência e novamente sério, Jakobus comentou: – É um
pouco ousado, parece-me, anexar precisamente Bengel à vossa
árvore genealógica. E como justifica isso?
– Era uma graça, mas uma graça que pode defender-se. Na sua
juventude, antes de se absorver nos seus grandes trabalhos sobre a
Bíblia, Bengel participou, um dia, um plano aos seus amigos:
esperava resumir e ordenar, sistematicamente e sinopticamente à
volta dum centro, todo o saber do seu tempo, numa obra
enciclopédica. É, muito simplesmente, o que também o Jogo das
Contas de Vidro faz.
– A ideia enciclopédica é que foi o brinquedo de todo o século
XVIII – exclamou o frade.
– Sim – disse Josef. – Mas o que Bengel procurava não era
somente uma justaposição dos domínios da ciência e da
investigação, mas uma sobreposição, uma ordem orgânica; ele
estava na via da procura dum denominador comum. E essa é que é
uma das ideias fundamentais do Jogo das Contas de Vidro. E direi
mesmo mais: se Bengel tivesse estado na posse dum sistema
análogo ao nosso Jogo, teria sem dúvida podido evitar enganar-se
durante tanto tempo na sua interpretação dos números proféticos e
no anúncio do Anticristo e do Império milenar. Bengel não conseguiu
orientar para um objetivo comum, como desejava, os múltiplos dons
que reunia em si próprio, e foi por isso que as suas qualidades
matemáticas combinadas com o seu faro de filólogo chegaram a
essa «ordem dos tempos», curiosa mistura de ciência meticulosa e
pura fantasia, que o ocupou durante tantos anos.
– É uma sorte que não seja historiador – disse Jakobus. – Cede
verdadeiramente à imaginação. Mas compreendo o que quer dizer;
só sou pedante na minha especialidade.
Daqui resultou uma conversa frutuosa, um reconhecimento das
suas qualidades recíprocas, o início duma espécie de amizade.
Parecia ao sábio que era mais do que um acaso, ou pelo menos um
acaso bastante singular, que ambos, ele na sua observância dos
Beneditinos e aquele jovem na de Castália, tivessem feito este
achado, descoberto aquele pobre precetor dum mosteiro do
Württemberg, esse homem de coração terno e firme como uma
rocha, esse espírito tanto tenebroso como realista; devia haver ali
um elemento de união sobre o qual o mesmo íman invisível agira tão
poderosamente. E a partir daquela noite, que começara com a
sonata de Purcell, esse elemento e essa união existiram realmente.
Jakobus teve prazer em trocar ideias com aquele jovem espírito tão
instruído e ainda tão recetivo; era uma satisfação que não tinha
muitas vezes. Para Knecht, as relações que teve com o historiador e
a formação que começou então a receber marcaram-lhe uma etapa
nova na via do despertar, que considerava como a sua vida. Digamo-
lo em poucas palavras: graças ao frade, aprendeu história, as leis e
as contradições dos estudos e das relações entre os historiadores e,
no decurso dos anos seguintes, habituar-se-ia também a considerar
o presente e a sua própria existência como realidades históricas.
As suas conversas tomavam muitas vezes as proporções de
verdadeiras discussões, ataques, justificações. No início, para dizer a
verdade, foi antes o Frei Jakobus que se mostrou agressivo. Quanto
mais conhecia o espírito do seu jovem amigo, mais sofria por saber
que aquele rapaz, cheio de tão altas promessas, crescera sem a
disciplina duma educação religiosa e no engano duma espiritualidade
feita de intelectualismo estético. O que podia encontrar de
reprovável na mentalidade de Knecht atribuía-o ao espírito
castaliano «moderno», à sua falta de sentido das realidades, à sua
tendência para jogar com abstrações. E quando Knecht o
surpreendia com conceções e declarações normais, próximas da sua
própria maneira de pensar, triunfava por ver que a boa natureza do
seu jovem amigo tinha resistido tão vigorosamente à educação
castaliana. Josef aceitava com muita calma a sua crítica de Castália,
e quando o velho, levado pela paixão, lhe parecia ir longe de mais,
repelia friamente os seus ataques. De resto, entre as declarações
negativas que o frade fazia sobre Castalia, havia também aquelas a
que Josef era obrigado a dar parcialmente razão. E, num ponto,
aprendeu, durante a sua estada em Mariafels, a modificar
significativamente o seu ponto de vista. Tratava-se das relações do
espírito castaliano com a história universal, aquilo a que o frade
chamava «a sua ausência total de sentido histórico». – Vós,
matemáticos e Jogadores de Contas de Vidro, fizestes da história
universal uma quinta-essência que consiste unicamente na história
do espírito e das artes, a vossa história não tem sangue, não tem
realidade; sabeis a que vos aterdes sobre a decadência da
construção da fase latina no século II ou III e não fazeis a mínima
ideia de Alexandre, César ou Jesus Cristo. Tratais a história universal
como um matemático a Matemática, onde tudo é apenas lei e
fórmula, mas onde a realidade não existe, nem o bem nem o mal,
nem o tempo, nem ontem, nem amanhã, onde apenas há um
presente eterno, matemático e plano.
– Mas como fazer história sem lhe meter ordem? – perguntava
Knecht.
– Com certeza, é preciso pôr ordem na história – fulminava
Jakobus. – A ciência consiste, entre outras coisas, em ordenar,
simplificar, tornar assimilável pelo espírito o que lhe é indigesto. Nós
cremos ter reconhecido na história algumas leis e tentamos tê-las
em conta para conhecer a verdade histórica. É um pouco como um
anatomista a autopsiar um corpo; ele não se vê confrontado
unicamente com descobertas surpreendentes em todos os aspetos,
mas encontra, na presença dum mundo de órgãos, músculos,
tendões e ossos sob a epiderme, a confirmação dum esquema que
trouxera consigo. Se esse anatomista não vê mais do que o seu
esquema, se isso o faz descurar a realidade única, individual, do
objeto estudado, então é um castaliano, um Jogador de Contas de
Vidro, aplica a matemática onde ela está mais do que deslocada.
Quem observa a história deve, se posso dizê-lo, introduzir a lei
infantil mais tocante na força ordenadora do nosso espírito e dos
nossos métodos, mas deve também, e apesar disso, ter respeito
pela verdade, pela realidade, pela especificidade incompreensíveis
do acontecimento. Fazer história, meu caro, não é uma brincadeira,
nem um jogo irresponsável. Fazer história supõe que se tem
consciência de estar a investigar uma coisa impossível e no entanto
necessária e extremamente importante. Fazer história é entregar-se
ao caos, conservando ao mesmo tempo a fé na ordem e no espírito.
É uma tarefa muito séria, meu jovem, e talvez trágica.
Notemos ainda, nas palavras do frade que Knecht reproduziu
então numa carta a amigos, um traço característico:
«Os grandes homens são para a juventude as passas de Corinto
do bolo da história universal; pertencem também à sua substância
real, certamente, e não é tão simples nem tão fácil como se julgaria
distinguir os que são verdadeiramente grandes dos que só parecem
sê-lo. Nos falsos grandes homens é o momento histórico, é o facto
de terem adivinhado, de terem apreendido o instante, que lhes dá
uma aparência de grandeza; não faltam evidentemente historiadores
e biógrafos – não falemos em jornalistas – para quem adivinhar e
apreender assim o instante histórico, isto é, para quem o êxito
momentâneo parece ser já um sinal de grandeza. O cabo que dum
dia para o outro se torna ditador ou a cortesã que consegue,
durante algum tempo, reinar sobre o bom ou o mau humor dum
senhor do mundo são as figuras prediletas dos historiadores deste
género. Em contrapartida, os jovens idealistas gostam sobretudo das
tragédias dos falhados, dos mártires, dos que chegaram um instante
demasiado cedo ou demasiado tarde. Para mim, que sou,
evidentemente, antes de mais nada, historiador da nossa Ordem dos
Beneditinos, o que há de mais atraente, mais espantoso e mais
digno de estudo na história universal, não são as personalidades,
nem as suas jogadas de sorte, nem o seu sucesso ou declínio, não...
o meu amor e a minha curiosidade insaciável vão para fenómenos
tais como a nossa congregação, para aquelas organizações dotadas
de longevidade onde se tenta encontrar, no espírito e na alma,
formas de juntar homens, de os formar e transformar, de fazer
deles, pela educação e não pelo eugenismo, pelo espírito e não pelo
sangue, uma aristocracia tanto capaz de servir como de reinar. Na
história dos gregos não foram a sua constelação de heróis, nem os
gritos indiscretos da ágora que me prenderam, mas as tentativas
como as dos pitagóricos ou da academia platónica; nos chineses
nada me pareceu tão apaixonante como a longevidade do sistema
de Confúcio, e, na nossa história ocidental, são sobretudo a Igreja
Cristã e as Ordens que a servem e nela estão enquistadas, que me
parecem valores históricos de primeiro plano. Que um aventureiro
tenha feito uma jogada de sorte e conquistado ou fundado um
império que dure vinte, cinquenta ou mesmo cem anos, que um rei
ou um imperador idealista e bem-intencionado procure, por uma
vez, praticar um género de política mais honesta ou realizar um
sonho cultural, que, sob uma pressão poderosa, um povo ou
qualquer outra comunidade se tenha sentido apta a realizar ou a
suportar um feito inaudito, tudo isso me interessa infinitamente
menos do que ver que se tentou constantemente criar organismos
como a nossa Ordem e que algumas dessas tentativas puderam
prolongar-se por mil e dois mil anos. Não falo da Santa Igreja
propriamente dita: para nós, crentes, isso está fora de discussão.
Mas que congregações como a dos Beneditinos, a dos Dominicanos,
mais tarde a dos Jesuítas, etc., tenham vários séculos de idade e
que, no fim de todos estes séculos, apesar das evoluções,
degenerescências, adaptações e violências sofridas, tenham
conservado o seu rosto e a voz, os seus gestos, a sua alma
individual, isso é para mim o fenómeno mais notável da história e o
mais digno de respeito.»
Knecht admirava o frade até nas injustiças da sua cólera. No
entanto, na altura não fazia ideia da personalidade real de Frei
Jakobus, via nele unicamente um erudito profundo e genial, ignorava
ainda que ele era de resto um homem que tinha, e friamente, os
dois pés assentes na história do mundo, que ajudava a fazê-la, que
era o chefe político da sua congregação, um perito da história e da
atualidade políticas cujos conselhos, informações e bons ofícios eram
solicitados de muitos lados. Durante perto de dois anos, até à sua
primeira licença, Knecht apenas viu no frade um sábio, e só
conheceu uma face da sua vida, da sua atividade, da sua reputação
e da sua influência, aquela que estava voltada para ele. O sábio
sabia calar-se, mesmo com os seus amigos, e os seus irmãos do
mosteiro compreendiam isso melhor do que Josef julgaria.
Ao fim de cerca de dois anos, Knecht aclimatara-se ao mosteiro,
tão perfeitamente como era possível a um convidado e a um
outsider. De vez em quando ajudara o organista a reatar
modestamente, nos seus pequenos coros de motetes, o delgado fio
duma grande tradição antiga e venerável. Tinha feito alguns achados
nos arquivos musicais do mosteiro e enviado diversas cópias de
obras antigas para Waldzell e em particular para Monteport. Reunira
uma pequena classe de Jogadores de Contas de Vidro principiantes,
de que fazia parte o jovem Anton, que era agora um dos mais
aplicados. Ensinara ao abade Gervasius não certamente o chinês
mas o manejo dos pauzinhos de mil-folhas e um melhor método
para meditar nos aforismos do Livro dos Oráculos. O abade
habituara-se perfeitamente a ele e renunciara às tentativas que
fizera no ínicio para o levar a beber vinho. As respostas que o abade
enviava duas vezes por ano ao Mestre do Jogo das Contas de Vidro,
que se informava oficialmente sobre se estavam contentes com
Josef Knecht em Mariafels, cantavam os seus elogios. Em Castália
examinaram mais atentamente do que estas respostas os relatórios
das lições e as listas de apreciação relativas aos cursos de Knecht;
achavam o nível modesto mas estavam contentes com a maneira
como o professor sabia adaptar-se, e sobretudo conformar-se com
os costumes e o espírito do mosteiro. Mas nos gabinetes de Castália
estavam principalmente satisfeitos e verdadeiramente surpreendidos,
sem evidentemente o deixarem entrever ao encarregado da missão,
com as relações frequentes, familiares, por fim mesmo quase
amistosas, de Knecht com o célebre Frei Jakobus.
Estas relações tiveram toda a espécie de frutos; seja-nos
permitido adiantar-nos um pouco em relação ao nosso relato para
dizer sobre elas alguma coisa, pelo menos sobre o que foi mais caro
a Knecht. Foi um fruto que amadureceu lentamente, lentamente;
cresceu na expectativa e na desconfiança, como as sementes das
árvores da montanha que foram semeadas nas terras baixas
luxuriantes: confiadas a um solo fértil e a um clima favorável, trazem
consigo a contenção e a desconfiança hereditárias em que as suas
antepassadas cresceram; a lentidão do crescimento faz parte das
suas qualidades inatas. Foi assim que o inteligente velho, habituado
a controlar com desconfiança tudo o que podia influenciá-lo, só com
hesitação, passo a passo, deixou ganhar raiz em si próprio o que o
seu jovem amigo, o seu colega dos antípodas, lhe trazia de espírito
castaliano. Pouco a pouco, isso acabou no entanto por germinar, e
de todas as felizes experiências que Knecht fez durante os anos que
passou no mosteiro, a melhor e a mais preciosa aos seus olhos foi a
de ver a confiança, a atenção avaras do prudente velho crescerem,
hesitantes, depois duns começos aparentemente sem esperança, de
ver lentamente germinar a sua compreensão não somente pela
pessoa do seu jovem admirador mas também por aquilo que neste
tinha particularmente a marca de Castália. Passo a passo, o jovem,
que parecia quase ser apenas um aluno, um ouvinte, um estudante,
levou o frade, que, no ínicio, apenas empregara os termos
«castaliano» ou «Jogo das Contas de Vidro» com um acento irónico
ou como verdadeiros insultos, a reconhecer, a admitir, primeiro por
vontade de tolerância e finalmente também com respeito, esse tipo
de espírito, essa Ordem, essa tentativa de criação duma aristocracia
intelectual. O frade deixou de denegrir a juventude da Ordem que,
contando só quase pouco mais de dois séculos, estava
evidentemente atrasada milénio e meio em relação aos Beneditinos;
deixou de ver no Jogo das Contas de Vidro apenas um snobismo de
estetas e de rejeitar como impossível para o futuro toda a espécie de
amizade ou aliança entre as duas Ordens de idades tão diferentes. A
administração via nesta conquista parcial do frade, que Josef
considerava como uma sorte muito pessoal e de ordem privada, o
ponto culminante da sua missão e das suas realizações em Mariafels.
Mas ficou ainda algum tempo sem ter a certeza. De longe a longe,
espremia em vão a cabeça para saber onde estava ao certo a sua
missão no convento, perguntando-se se fazia ali verdadeiramente
alguma coisa, se era útil, se a sua delegação naquele lugar, que no
ínicio parecia uma distinção e um avanço e provocava a inveja dos
seus rivais, não representaria a longo termo uma reforma sem
glória, a relegação para a inatividade. Certamente, em todo o lado
se podia aprender qualquer coisa; porque não aqui, então? Mas para
um espírito de Castália, este mosteiro, se se excetuasse apenas o
Frei Jakobus, não era nem um paraíso nem um modelo de ciência.
Knecht não estava sequer em condições de avaliar se, no plano do
Jogo das Contas de Vidro, não começava já a enferrujar-se e a
perder terreno, isolado como estava no meio de diletantes em geral
fáceis de contentar. Mas nesta incerteza, a sua falta de arrivismo,
bem como o seu amor fati já então bastante desenvolvido, vieram
em sua ajuda. Bem vistas as coisas, a vida de convidado e de
pequeno professor especializado que tinha neste mundo monástico
confortável e envelhecido era-lhe em suma mais agradável do que
lhe tinham sido os últimos tempos passados em Waldzell, no círculo
daqueles ambiciosos, e se o destino fosse deixá-lo para sempre
neste pequeno posto excêntrico, procuraria evidentemente introduzir
algumas ligeiras modificações à sua vida aqui; tentaria, por exemplo,
conseguir mandar vir um dos seus amigos, ou pelo menos obter
todos os anos uma licença bastante longa em Castália, mas, no
geral, sentir-se-ia satisfeito.
O leitor deste esboço de biografia espera talvez um relato sobre
outro aspeto da vida interior de Knecht no mosteiro, a sua vida
religiosa. Arriscar-nos-emos apenas a prudentes alusões. Que
Knecht teve em Mariafels contactos mais íntimos com a religião, com
as práticas quotidianas do cristianismo, isso não somente é verosímil
como ressalta inclusivamente também de muitas das suas
declarações e das suas atitudes ulteriores. Tornou-se lá talvez
cristão, e até que ponto? Deveremos deixar esta pergunta sem
resposta. São domínios inacessíveis à nossa investigação. Para lá do
respeito que em Castália se nutria pelas religiões, tinha havido nele
uma certa deferência, que podemos qualificar de piedosa, e ele tinha
sido muito bem instruído, já na escola, em especial quando estudou
a música sacra, sobre a doutrina cristã e suas formas clássicas.
Antes de mais, conhecia bem a liturgia da missa e o rito do ofício
divino. Nos Beneditinos aprendeu, não sem espanto e com respeito,
a ver viver uma religião sobre que até então tivera apenas um
conhecimento teórico e histórico. Tomava parte em diversos ofícios e
depois de se ter familiarizado com alguns dos escritos de Frei
Jakobus e deixado envolver pelas suas conversas, tinha ganho
plenamente consciência do fenómeno daquele cristianismo que, no
decurso dos séculos, tantas vezes tinha parecido fora de moda e
ultrapassado, arcaico e fossilizado, e que no entanto, de todas as
vezes, voltara a encontrar o sentido das suas origens, nelas se
renovara, ultrapassando novamente o que fora moderno e triunfante
na véspera. Não se defendia tão-pouco seriamente contra a ideia,
que lhe era sugerida de vez em quando nessas conversas, de que a
cultura castaliana talvez não fosse também senão uma forma
paralela tardia, secularizada e precária da cultura ocidental cristã e
que seria um dia absorvida e retomada por esta. Mas se fosse assim,
disse um dia ao frade, o seu lugar, dele Josef Knecht, e a sua função
tinham-lhe sido fixadas no interior da organização castaliana e não
por exemplo nos Beneditinos; era aí que devia dar a sua
contribuição e dar as suas provas, sem se preocupar em saber se a
organização de que era membro podia pretender a uma duração
eterna ou mesmo simplesmente longa; aos seus olhos, uma
conversão só poderia ser uma forma de fuga bastante pouco digna.
Fora assim que o famoso Johann Albrecht Bengel, que ambos
veneravam, servira no seu tempo uma Igreja pequena e de
existência precária, sem deixar com isso, fosse no que fosse, de
servir o Eterno. Ser piedoso, dizia Knecht, quer dizer servir com fé e
ser fiel até ao dom da vida, é possível em todas as confissões e em
todos os graus; não existe outra prova válida da sinceridade e do
valor duma piedade pessoal além desta maneira de servir e desta
fidelidade.
Quando a estada de Knecht entre os frades durava há já quase
dois anos, apareceu um dia no mosteiro um convidado que foi com
grande cuidado mantido afastado dele; evitaram mesmo uma
apresentação de fugida. A curiosidade de Knecht despertou,
observou aquele estrangeiro, que de resto só ficou alguns dias, e
ocorreu-lhe todo o tipo de hipóteses. No hábito eclesiástico que o
estrangeiro trazia julgou reconhecer um disfarce. O desconhecido
teve longas reuniões, à porta fechada, com o abade e em particular
com Frei Jakobus, recebeu frequentemente mensagens urgentes e
mandou também outras. Knecht, que estava naturalmente ao
corrente das relações políticas do mosteiro e das suas tradições,
quanto mais não fosse pelos boatos que corriam, supôs que aquele
hóspede seria um grande homem de Estado em missão secreta, ou
um príncipe viajando incógnito; e, ao refletir nas observações que
fizera, lembrou-se também de tal ou tal hóspede dos meses
precedentes que, de repente, lhe pareceu igualmente misterioso ou
importante. Ao mesmo tempo, isso fê-lo pensar no diretor da
«polícia», o simpático senhor Dubois e no pedido que lhe fizera de
ver de vez em quando o que se passava no mosteiro, e, se bem que
não sentisse mais do que anteriormente vontade nem vocação para
fazer relatórios desse género, a sua consciência lembrou-lhe que há
muito tempo não escrevia a esse homem benevolente e que
provavelmente o teria desiludido. Escreveu-lhe uma longa carta,
tentando explicar o seu silêncio e, para dar alguma substância à
carta, falou-lhe um pouco das suas relações com Frei Jakobus. Não
adivinhava com que cuidado, nem por quem, a sua carta seria lida.
A MISSÃO

A primeira estada de Knecht no mosteiro durou dois anos; no


tempo de que tratamos agora, estava no seu trigésimo sétimo ano
de vida. No fim da estada como hóspede do mosteiro de Mariafels,
dois meses após a data aposta à sua longa carta ao diretor Dubois,
foi chamado uma manhã ao gabinete do abade. Pensou que este
homem bastante sociável desejasse conversar um pouco sobre a
língua chinesa e foi sem tardar apresentar-lhe os seus deveres.
Gervasius veio ao seu encontro, com uma carta na mão. –
Honraram-me com o encargo duma mensagem para si, caríssimo –
gritou-lhe alegremente, com o seu ar cordial e protetor, para logo
em seguida cair no tom trocista e irónico que se tornara o modo de
expressão desta amizade ainda mal definida entre a Ordem religiosa
e a de Castália e cujo iniciador era, na verdade, Frei Jakobus. – Os
meus melhores respeitos para o vosso Magister Ludi! Esse é que
sabe escrever cartas! Escreveu-me em latim, esse senhor, sabe Deus
porquê; convosco, castalianos, nunca se sabe, seja lá o que for que
façais, se é vossa intenção ser educados ou troçar, prestar uma
homenagem ou dar uma lição. Este respeitável Dominus escreveu-
me portanto em latim, e num latim como hoje ninguém em toda a
nossa Ordem seria capaz de o fazer, à exceção quando muito do
Irmão Jakobus. É um latim que parece vir em linha reta da escola de
Cícero, mas perfumado ao mesmo tempo com uma pequena dose
bem calculada de latim de igreja, de que tão-pouco se sabe
naturalmente se foi posto ingenuamente como isca para nós, frades,
se é uma ironia, ou muito simplesmente se não se deve a um
indomável instinto de jogo, de estilização e de ornamentação. O
venerável Magister escreveu-me a dizer que teriam um prazer
incalculável em vê-lo, em abraçá-lo e também em verificar até que
ponto talvez esta longa estada entre os semibárbaros que nós
somos corrompeu a sua moral e o seu estilo. Em resumo, se bem
compreendi e interpretei bem esta volumosa obra-prima literária, é-
lhe concedida uma licença e pedem-me que envie o meu hóspede
para Waldzell, por um período indeterminado... todavia, não é para
sempre; antes pelo contrário, parece ser das intenções das
autoridades de lá enviá-lo novamente para aqui dentro de pouco
tempo, se apesar de tudo estivermos de acordo. Mas, desculpe-me,
estou longe de ter sabido interpretar como deve ser todas as
subtilezas desta epístola, o Magister Thomas com certeza não
esperava outra coisa de mim. Devo entregar-lhe esta cartinha; agora
vá e reflita se quer partir e quando. Vai fazer-nos falta, meu caro, e
se viesse a estar muito tempo ausente, não deixaríamos de o exigir
novamente à sua administração.
Na carta que entregou a Knecht este era brevemente informado
pela administração de que lhe era concedida uma licença para que
pudesse descansar e também ter uma entrevista com os seus
superiores; era esperado muito brevemente em Castália. A
conclusão do curso de principiantes começado não devia preocupá-
lo, a menos que o abade o desejasse expressamente. O antigo
Mestre da Música enviava-lhe os seus cumprimentos. Ao ler esta
linha Knecht deteve-se, intrigado; isto dava-lhe que pensar: como é
que o redator da carta, o Magister Ludi, podia ter sido encarregado
de lhe transmitir estes cumprimentos, que de resto estavam
deslocados nesta comunicação oficial? Devia ter havido uma
conferência geral do Diretório, para a qual o antigo Mestre da Música
tinha sido igualmente convocado. Se as sessões e as decisões dos
diretores do ensino não lhe diziam nada, o envio de cumprimentos
do Mestre tocou-o singularmente, achou nisso uma nota curiosa de
camaradagem. Pouco importava o assunto a que tinha sido
consagrada essa conferência, isso provava que as mais altas
autoridades tinham também falado de Josef nessa ocasião.
Esperava-o alguma coisa nova? Iam acabar com a sua missão? Seria
uma promoção ou uma despromoção? Mas esta carta apenas falava
de licença. Congratulava-se sinceramente com ela, o seu desejo
mais caro seria meter-se ao caminho logo no dia seguinte. Mas devia
pelo menos despedir-se dos seus alunos e deixar-lhes instruções.
Anton ficaria desolado por vê-lo partir. E devia também a alguns dos
frades uma visita pessoal antes da partida. Pensou então em
Jakobus e quase se admirou por sentir uma dor terna, um transporte
que lhe dizia que o seu coração estava preso a Mariafels mais do
que julgava. Faltavam-lhe aqui muitas das coisas a que estava
habituado e que lhe eram caras e, na sua imaginação, Castália não
deixara de se tornar mais bela durante estes dois anos, devido ao
afastamento e à privação. Mas, reconheceu-o claramente naquele
instante: o que possuía na pessoa do Frei Jakobus era insubstituível,
faltar-lhe-ia também em Castália. Isto levou-o a tomar mais
claramente consciência do que anteriormente daquilo que vivera e
aprendera aqui; estava cheio de alegria e de confiança com a ideia
de ir a Waldzell, de voltar a encontrar os amigos, o Jogo das Contas
de Vidro, de estar de férias, mas a sua alegria teria sido menor se
não estivesse certo de que voltaria.
Numa decisão súbita foi procurar o frade, contou-lhe que o
chamavam para lhe darem uma licença, disse-lhe da sua própria
surpresa por descobrir, sob a alegria de voltar a casa e rever os seus
amigos, uma outra alegria, a de regressar aqui. E, como era
principalmente ele, o venerando Irmão, a quem esse sentimento
dizia respeito, Knecht, reunindo coragem, ousava fazer-lhe um
pedido: que lhe desse algumas lições quando regressasse, nem que
fosse uma hora ou duas por semana. Jakobus protestou rindo-se e
formulou novamente os seus mais belos elogios irónicos sobre a
cultura castaliana, cuja inegável universalidade só podia mergulhar
em muda admiração um pobre frade como ele e pô-lo a abanar a
cabeça de admiração. Mas Josef notou logo que esta recusa não era
a sério e, quando lhe estendeu a mão para se despedir, o frade
disse-lhe amavelmente para não se preocupar: faria tudo o que
estivesse ao seu alcance para responder ao seu pedido e despediu-
se dele cordialmente.
Partia para casa de férias, cheio de alegria, certo interiormente de
que a sua estada no mosteiro não tinha sido inútil. No momento da
partida sentiu-se como um rapazinho, para logo em seguida
reconhecer, é verdade, que já não era nem um rapazinho nem um
adolescente. Apercebia-se disso por um sentimento de pudor e de
resistência interior que nele surgia quando se preparava para
responder com um gesto qualquer, com um grito, uma pequena
brincadeira àquele ambiente de libertação e felicidade de colegial em
férias. Não, o que outrora teria sido completamente natural e que o
teria aliviado, um grito de alegria lançado aos pássaros das árvores,
uma canção de marcha entoada numa voz sonora, alguns passos
aéreos de dança rítmica, isso já não era possível, teria um aspeto
forçado, teria sido idiota e pueril. Sentia que, se era jovem de
coração e de corpo, já não sabia ceder ao humor do momento, ao
seu entusiasmo, já não era livre, ficava alerta, estava preso,
comprometido – mas porquê? Pelas suas funções? Pela tarefa de
representar o seu país e a sua Ordem junto daquelas pessoas do
mosteiro? Não, era a própria Ordem, era a hierarquia, na qual
durante esta súbita introspeção, descobria, sem compreender como,
que estava comprometido e mergulhado, era a responsabilidade, a
presença à sua volta de valores mais gerais e mais elevados,
capazes de fazer parecer velho mais que um homem jovem e jovem
mais que um velho, era tudo isso que o prendia, que o sustentava e
ao mesmo tempo lhe tirava liberdade, como a árvore tutora à qual
se ata a jovem planta, era isso que lhe tirava a inocência, ao mesmo
tempo que lhe exigia precisamente uma pureza cada vez mais
cristalina.
Em Monteport foi ver o antigo Mestre da Música, que fora
também, na sua juventude, hóspede de Mariafels, estudara a música
dos Beneditinos e que se informou então por Knecht de toda a
espécie de coisas. Josef achou o velho senhor um pouco mais
desprendido, certamente; a voz tinha-se-lhe enfraquecido, mas
estava mais vigoroso de aspeto e mais sereno do que da última vez,
já não se lia o cansaço no seu rosto, e, se não tinha rejuvenescido,
estava mais belo e mais fino, depois de ter resignado às suas
funções. Para surpresa de Knecht, perguntou-lhe pelos órgãos de
Mariafels, pelos armários cheios de partituras e pelo seu canto coral,
quis saber se uma árvore que havia no jardim do claustro ainda lá
estava, mas não pareceu nada curioso em ouvi-lo falar da sua
atividade, do seu curso de Contas de Vidro, nem do objetivo da sua
licença. O velho deu-lhe contudo, antes de prosseguir viagem, uma
indicação que lhe foi valiosa. – Ouvi dizer – disse ele, quase em tom
de brincadeira – que te tinhas tornado uma espécie de diplomata.
Não é, para dizer a verdade, uma bela profissão, mas parece que
estão contentes contigo. Pensa o que quiseres! Mas, se a tua
ambição não é ficar para sempre nesse emprego, então toma
atenção, Josef; creio que te querem prender. Defende-te, estás no
teu direito. Não, não me faças perguntas, que eu não digo mais
nada. Tu verás.
Apesar desta advertência cujo aguilhão continuou a sentir,
experimentou, ao chegar a Waldzell, uma alegria em voltar a ver o
seu país como nunca anteriormente tinha acontecido. Estava tentado
a crer que esta Waldzell era não somente a sua pátria e o sítio mais
belo do Mundo, mas que entretanto se tornara ainda mais
encantadora e mais interessante, ou que ele próprio trouxera da sua
viagem uns olhos novos que sabiam ver melhor. E isto não era
somente válido para as portas da cidade, as torres, as árvores e o
ribeiro, os seus pátios e as suas grandes salas, para os vultos
entrevistos e os rostos conhecidos de longa data; durante a sua
licença percebeu também pelo espírito de Waldzell, pela Ordem e
pelo Jogo das Contas de Vidro, aquele sentimento de recetividade
reforçada, de compreensão acrescida e grata do viajante que
regressa a casa, que viu terras, cujo espírito amadureceu e está
mais avisado. – Parece-me – disse ao seu amigo Tegularius depois
dum vivo ditirambo sobre Waldzell e Castália – que passei todos os
meus anos aqui a dormir, feliz certamente, mas como que privado de
consciência, e que acordei agora e vejo tudo confirmar nitidamente
e claramente a sua realidade. Como dois anos no estrangeiro podem
tornar clarividente uma pessoa! – Saboreou a sua licença como uma
festa, especialmente os jogos e as discussões com os seus
camaradas, no círculo da elite do Vicus Lusorum, o prazer de voltar a
ver os seus amigos, o genius loci de Waldzell. Mas, para dizer a
verdade, esta exaltação de felicidade e alegria só se libertou depois
da sua primeira visita ao Mestre do Jogo das Contas de Vidro; até aí
um certo receio ainda lhe estava misturado.
O Magister Ludi fez menos perguntas do que Knecht esperava.
Quase nem mencionou o curso de principiantes e os estudos
iniciados por Knecht nos arquivos musicais, mas não se cansou de
ouvir falar de Frei Jakobus, voltava sempre ao assunto, nada do que
Josef lhe contava sobre esse homem era de mais. Que estavam
satisfeitos com ele e com a sua missão junto dos Beneditinos, muito
satisfeitos mesmo, pôde concluí-lo não apenas pela grande
amabilidade do Mestre mas quase melhor ainda pela atitude do
senhor Dubois, a quem o Mestre o enviou logo em seguida. – Fizeste
tudo maravilhosamente – disse-lhe este último, e acrescentou com
um risinho: – Faltava-me verdadeiramente intuição quando
desaconselhei que fosses enviado para esse mosteiro. Que tenhas
conquistado o abade e acima de tudo esse grande personagem que
é o Frei Jakobus, que os tenhas tornado mais favoráveis a Castália é
mais, bem mais do que ninguém ousava esperar. – Dois dias mais
tarde o Mestre do Jogo das Contas de Vidro convidou-o para
almoçar, bem como ao senhor Dubois e ao funcionário que então
dirigia a escola de elite de Waldzell, o sucessor de Zbinden. E ao
levantarem-se da mesa, à hora das conversas, o novo Mestre da
Música estava também presente, bem como o arquivista da Ordem,
isto é, mais dois membros do Diretório supremo; um destes levou-o
ainda, depois, para a casa dos hóspedes para conversar
demoradamente com ele. Este convite promoveu Josef – pela
primeira vez isso foi visível a todos – ao número extremamente
restrito de candidatos às funções superiores, e levantou entre ele e a
média dos Jogadores de elite uma barreira imediatamente sensível,
da qual, na sua nova clarividência, teve vivamente consciência. Foi-
lhe ainda concedida mais uma licença provisória de quatro semanas
e a carta habitual dos funcionários para as casas de hóspedes da
Província. Se bem que não lhe fosse imposta nenhuma espécie de
obrigações, nem sequer a de se apresentar às autoridades, viu bem
que o observavam de cima, pois, quando foi realmente fazer visitas
ou excursões, por exemplo a Keuperheim, Hirsland ou ao Instituto
do Extremo Oriente, recebeu imediatamente convites dos principais
funcionários locais; durante estas poucas semanas conheceu
efetivamente toda a administração da Ordem e a maior parte dos
Magisters e dos diretores de estudos. Sem os convites e as tomadas
de contacto muito oficiais, estas excursões teriam revestido para
Knecht o significado dum regresso à liberdade e ao mundo dos seus
anos de estudante. Ele limitou-as, principalmente em atenção a
Tegularius, a quem a interrupção da sua amizade reencontrada
afetava profundamente, mas também por amor do Jogo das Contas
de Vidro, pois pretendia tomar parte nos exercícios e no estudo dos
problemas da ordem do dia e fazer neles as suas provas. Neste
domínio, Tegularius prestava-lhe serviços incomparáveis. O seu outro
amigo íntimo, Ferromonte, pertencia ao estado-maior do novo
Mestre da Música e só pôde estar com ele, nesta altura, duas vezes.
Encontrou-o mergulhado em trabalho e feliz por trabalhar; um
grande estudo de história da música tinha-lhe sido oferecido, o da
música grega e a sua sobrevivência nas danças e cantares populares
dos Balcãs; pelo prazer de se exteriorizar contou ao seu amigo os
seus trabalhos e os seus achados mais recentes. Estes referiam-se à
época do declínio progressivo da música barroca, em fins do século
XVIII, e à penetração de novos elementos provenientes da música
popular eslava.
Mas Knecht consagrou a maior parte deste período de férias e de
festa a Waldzell e ao Jogo das Contas de Vidro. Reviu com
Tegularius as notas tomadas por este num curso que o Magister
dera, nos dois semestres precedentes, aos estudantes mais
avançados e, depois duma privação de dois anos, voltou a mergulhar
com todas as suas forças no nobre mundo do Jogo, cuja magia lhe
parecia tão inseparável da sua vida, tão indispensável como a
música.
Foi somente nos últimos dias da licença de Josef que o Magister
Ludi voltou a abordar o tema da sua missão em Mariafels e o seu
papel no futuro imediato. Primeiramente em tom de conversa, em
seguida com uma gravidade e uma insistência crescentes, falou-lhe
dum plano das autoridades, ao qual a maioria dos Magisters bem
como o senhor Dubois davam muita importância: tratava-se de
instituir uma representação permanente de Castália junto da Santa
Sé, em Roma. O momento histórico tinha chegado, prosseguiu o
Mestre Thomas com aquela persuasão e aquela perfeição de forma
que eram suas, ou pelo menos o momento estava próximo em que
uma ponte poderia ser lançada por cima do velho fosso entre Roma
e a Ordem a que ambos pertenciam; se no futuro surgissem perigos,
ambas teriam sem dúvida perigos comuns, conheceriam o mesmo
destino e seriam aliadas naturais; a longo prazo, a situação, tal como
se apresentava até ali, já não era sustentável e faltava-lhe
verdadeiramente dignidade: com efeito, as duas potências do Mundo
cuja tarefa histórica era defender e cultivar o espírito e a paz,
continuavam a viver lado a lado e quase como estranhas. A Igreja
romana ultrapassava os abalos e as crises da última grande época
de guerras, apesar das pesadas perdas; renovara-se e purificara-se
enquanto os centros seculares científicos e pedagógicos dessa época
tinham sido arrastados no naufrágio da cultura; fora somente sobre
as suas ruínas que a Ordem e o espírito castalianos tinham nascido.
Por esta primeira razão e tendo em consideração também a sua
idade tão veneranda, convinha reconhecer a primazia à Igreja; das
duas potências ela era a mais antiga, a mais eminente, a que
resistira às mais numerosas e às maiores tempestades. Tratava-se
em primeiro lugar de acordar e manter desperta em Roma a
consciência do parentesco entre ambas e da sua interdependência
em todas as crises que pudessem ocorrer.
(Aqui Knecht pensou: «Ah! Então é para Roma que me querem
enviar, e se possível para sempre!» e, lembrando-se do aviso do
antigo Mestre da Música, pôs-se imediatamente na defensiva.)
O Mestre Thomas prosseguiu: a missão de Knecht em Mariafels
tinha feito dar um passo importante nesta evolução, pela qual
Castália lutava havia muito. Essa missão, uma simples tentativa, um
gesto de cortesia que não obrigava a nada, tinha sido levada a efeito
sem ideias preconcebidas, a convite dos seus parceiros do mosteiro.
Senão, não se teria naturalmente utilizado nela um Jogador de
Contas de Vidro ignorante da política, mas por exemplo um
funcionário do departamento do senhor Dubois. Mas o certo é que
essa tentativa, essa missãozinha inocente, tivera um êxito
surpreendente, graças a ela um dos espíritos dirigentes do
catolicismo atual, Frei Jakobus, conhecera um pouco mais de perto a
mentalidade de Castália e ficara com uma ideia desse espírito, que
até aí repudiava radicalmente, mais favorável. Estavam gratos a
Knecht pelo papel que desempenhara. Com efeito, era nisso que
residiam o significado e o êxito da sua missão, e era preciso partir
daí para reconsiderar e levar mais à frente não somente toda a
tentativa de aproximação mas também a missão e o trabalho de
Knecht. Fora-lhe concedida uma licença, que podia ser prolongada
ainda mais um pouco se o desejasse, tinham trocado opiniões com
ele e haviam-lhe apresentado a maioria dos membros do Diretório,
esses altos funcionários tinham manifestado a sua confiança em
Josef e encarregado o Mestre do Jogo de voltar a mandá-lo, com
uma missão especial e atribuições alargadas, para Mariafels, onde a
sorte lhe reservaria seguramente um acolhimento amistoso.
Fez uma pausa, como para dar tempo a que o seu ouvinte fizesse
uma pergunta, mas este deu simplesmente a entender com um
gesto cortês de deferência que tinha aquilo tudo em conta e que
esperava por conhecer a sua missão.
– A tarefa que devo confiar-te – disse então o Mestre – é, por
conseguinte, esta: projetamos, para uma data mais ou menos
próxima, instituir uma representação permanente da nossa Ordem
junto do Vaticano, se possível numa base da reciprocidade. Como
somos os mais novos, estamos dispostos a observar para com Roma
uma atitude, certamente não de submissão, mas de grande respeito;
aceitamos de bom grado vir em segundo lugar e deixar-lhe o
primeiro. Talvez... sei tanto como o senhor Dubois... talvez o papa
aceitasse a nossa proposta hoje mesmo; mas o que devemos evitar
terminantemente é uma recusa. Ora, há um homem que
conhecemos, que podemos tocar e cuja voz tem o maior peso em
Roma, o Frei Jakobus. E a tua missão é voltar ao mosteiro dos
Beneditinos, viveres lá, continuares os teus estudos, fazeres lá um
curso de Contas de Vidro sem pretensões, como no passado, e
consagrares toda a tua atenção e todos os teus esforços em ganhar
lentamente o Frei Jakobus para a nossa causa, levá-lo a que ele
aceite apoiar o nosso projeto em Roma. Desta vez, o objetivo final
da tua missão é, por consequência, claramente delimitado. Quanto
tempo precisarás para o conseguir, é secundário. Pensamos que será
necessário pelo menos um ano, mas também pode acontecer que
exija dois anos ou mais. Conheces bem o ritmo da vida beneditina e
aprendeste a adaptar-te a ela. Nós não devemos de modo nenhum
dar a impressão de estarmos impacientes e ávidos, é preciso que a
discussão deste assunto amadureça por si mesma, não é? Espero
que estejas de acordo em aceitar esta missão e peço-te que
apresentes francamente todas as objeções que possas ter a fazer. Se
o desejares, concedo-te alguns dias de reflexão.
Knecht, para quem esta missão, vinda no seguimento de toda a
espécie de conversações anteriores, já não era surpresa nenhuma,
declarou que um prazo de reflexão era supérfluo e que aceitava com
obediência, mas acrescentou: – Sabeis, Magister, que uma missão
como esta terá mais êxito quando a pessoa responsável por ela não
encontra em si própria resistências e escrúpulos a combater. Nada
me opõe a esta missão, compreendo a sua importância e espero ser
digno dela. Mas sinto algum receio e apreensão no que diz respeito
ao meu futuro. Tende a bondade, Magister, de ouvir um pedido e
uma confissão puramente pessoais e egoístas. Sou Jogador de
Contas de Vidro, como sabeis; esta missão junto dos padres fez-me
perder dois anos completos de estudos, não aprendi nada de novo,
descurei a minha arte e agora vai somar-se a isso mais um ano pelo
menos, provavelmente mais. Gostaria de não perder mais terreno
durante este período. Peço por conseguinte licenças curtas e
bastante frequentes para vir a Waldzell e uma ligação radiotelefónica
permanente que me permita seguir as conferências e os exercícios
especiais do vosso curso superior.
– Ser-te-á concedido com todo o prazer – disse o Mestre, e já,
com uma nuance na entoação, acabava a audiência quando Knecht
elevou a voz e evocou também o outro ponto: temia, se o projeto
concebido para Mariafels fosse avante, ser enviado para Roma ou vir
a ser utilizado de qualquer outra maneira nos serviços diplomáticos.
– E esta perspetiva – concluiu – exerceria em mim e nos meus
esforços no mosteiro uma influência deprimente e paralisante. Pois
seria absolutamente contrário aos meus desejos ver-me, a longo
prazo, mandado para o serviço diplomático.
O Magister franziu as sobrancelhas e ergueu um dedo indicador
reprovador. – Falas de relegação, essa palavra é verdadeiramente
mal escolhida, nunca ninguém pensou numa relegação, mas numa
distinção, numa promoção. Não estou qualificado para te dar
informações ou promessas sobre a maneira como serás utilizado
mais tarde. Mas posso, em rigor, compreender as tuas preocupações
e é provável que possa ajudar-te se se revelasse que os teus
temores têm fundamento. E agora escuta-me: tu possuis um certo
talento para agradar e tornares-te amado; com maldade, poder-se-ia
quase qualificar-te como sedutor, provavelmente foi também esse
talento que levou a administração a enviar-te pela segunda vez para
esse mosteiro. Mas não abuses do teu talento, Josef, e não procures
exagerar o preço dos teus êxitos. Se levares a bom termo a tua
tarefa junto de Frei Jakobus, então será esse o momento de dirigir
um pedido pessoal às autoridades. Hoje parece-me ser demasiado
cedo. Comunica-me quando estiveres pronto a partir.
Josef acolheu estas palavras em silêncio, atendo-se mais à
benevolência que escondiam do que à reprimenda, e não tardou em
regressar a Mariafels.
Em Mariafels, sentiu a segurança que uma missão claramente
definida dá. Esta era além disso importante, era uma honra e, num
ponto, respondia aos desejos mais íntimos daquele que dela era
encarregado: ligar-se o mais possível com Frei Jakobus e ganhar
toda a sua amizade. Tinha, além disso, uma prova de que a sua
nova missão era levada a sério no mosteiro e que ele próprio subira
de condição, na atitude um pouco diferente dos dignitários do
mosteiro, em particular do abade; esta não era menos amistosa,
mas sentia-se nela um grau de respeito suplementar. Josef já não
era o jovem convidado sem posição a quem se testemunha
amabilidade devido à sua origem e por benevolência pela sua
pessoa. Desta vez, foi sobretudo recebido e tratado como
funcionário castaliano duma certa posição, um pouco como um
ministro plenipotenciário. Sabendo, para o futuro, ver claro neste
domínio, tirou daí as suas conclusões.
No Frei Jakobus, para dizer a verdade, não conseguiu descobrir
nenhuma mudança de atitude. A cordialidade e a alegria com que o
Pater o acolheu e lhe lembrou o trabalho comum que tinham
projetado, sem esperar que Knecht lho pedisse ou exigisse,
comoveu-o profundamente. O seu plano de trabalho e os dias
ganharam então um andamento profundamente diferente do de
antes da sua licença. Desta vez, no emprego do tempo e no ciclo
das suas obrigações, o Jogo das Contas de Vidro estaria longe de
ocupar, doravante, o primeiro lugar e, igualmente, deixou de ser
questão dos seus estudos sobre os arquivos musicais e da sua
colaboração amistosa com o organista. O que ocupava agora o
primeiro lugar da lista eram as lições de Frei Jakobus, que abordou
simultaneamente com ele vários domínios da ciência histórica. Com
efeito, o frade não iniciou somente o seu aluno preferido na pré-
história e nos primeiros tempos da Ordem dos Beneditinos como
também no estudo dos documentos da alta Idade Média. Além disso,
numa sessão à parte, lia com ele um dos antigos cronistas no texto
original. Ao frade agradou ouvir Knecht assaltá-lo com pedidos para
que deixasse também o jovem Anton partilhar as suas lições, mas
não lhe foi difícil convencê-lo de que um terceiro, ainda que tivesse
a melhor boa vontade do mundo, travaria consideravelmente este
tipo de ensino de nível muito elevado. E foi assim que Anton, que
ignorava tudo da argumentação de Knecht em seu favor, foi somente
convidado a participar da leitura da crónica; foi para ele uma grande
felicidade. Essas horas tiveram sem dúvida na vida deste jovem
frade, sobre cuja vida não possuímos mais informações, o efeito
duma distinção, dum deleite e dum encorajamento supremos; tinha
à sua frente dois dos mais puros espíritos e das cabeças mais
originais do seu tempo, era-lhe dado o direito de participar um
pouco nos seus trabalhos e nas suas trocas de opiniões, como
ouvinte, como jovem recruta. Em contrapartida do seu ensino,
Knecht dava ao frade, a seguir às suas lições de epigrafia e de
estudo das fontes, uma forte iniciação na história e na estrutura de
Castália, bem como nas ideias diretrizes do Jogo das Contas de
Vidro. O aluno tornava-se assim professor, o Mestre venerado um
ouvinte atento e muitas vezes um inquiridor e crítico difíceis de
contentar. A sua desconfiança em relação à mentalidade castaliana
no seu conjunto continuava desperta; achando que lhe faltava uma
atitude verdadeiramente religiosa, duvidava que fosse capaz e digna
de educar um tipo de humanidade que devesse ser levada
verdadeiramente a sério, se bem que tivesse à sua frente, na pessoa
de Knecht, um tão nobre produto dessa educação. Embora, desde
há muito, o ensino e o exemplo de Knecht o tivessem levado a uma
espécie de conversão na medida em que semelhante coisa era
possível, e que desde há muito estivesse resolvido a apoiar com a
sua autoridade uma aproximação entre Castália e Roma, a sua
desconfiança nunca adormecia completamente; as notas de Knecht
estão disso cheias de exemplos surpreendentes, tomados de cada
vez ao vivo; citaremos um:
Frei Jakobus: «Vós, castalianos, sois grandes eruditos e grandes
estetas, sabeis calcular o valor das vogais num poema antigo e
estabeleceis uma relação entre a sua fórmula e a da órbita dum
planeta. Isso é bonito mas é um jogo. O vosso mistério e vosso
símbolo supremo é também um jogo, o Jogo das Contas de Vidro.
Mas também quero reconhecer que tentais elevar esse lindo Jogo ao
nível duma espécie de sacramento ou, pelo menos, dum meio
edificante. Mas os sacramentos não são fruto de esforços desse
género, esse Jogo continua a ser um jogo.»
Josef: «Quer dizer, Irmão, que lhe falta o fundamento da
teologia?»
Pater: «Ah!, não falemos de teologia, vós ainda estais bem longe
dela. Porém, elementos de base mais simples poderiam melhorar a
coisa: uma antropologia, por exemplo, uma verdadeira doutrina e
um verdadeiro conhecimento do homem. Vós não conheceis o
homem, não conheceis a sua bestialidade, nem o que dele faz
imagem de Deus. Conheceis apenas o homem castaliano, uma
espécie à parte, uma casta, uma cobaia duma criação de animais
especial.»
Para Knecht era uma sorte extraordinária ver abrir-se-lhe, durante
estas sessões, o campo mais favorável e mais vasto que podia
imaginar para levar a cabo a sua missão, ganhar o frade para a
causa de Castália e convencê-lo do valor duma aliança. A situação
que assim se lhe oferecia respondia tão perfeitamente a tudo quanto
podia desejar e conceber, que em breve sentiu uma espécie de
escrúpulo de consciência: parecia-lhe humilhante e indigno ver
aquele homem venerado sentado à sua frente, entregando-se com
confiança, ou a andar dum lado para o outro com ele no claustro,
enquanto era alvo de intenções e negociações políticas secretas.
Knecht não poderia aceitar por muito mais tempo esta situação em
silêncio e refletia somente na maneira como teria de se desmascarar,
quando o velho, para sua grande surpresa, o ultrapassou.
– Caro amigo – disse-lhe ele um dia como por acaso –,
encontrámos aqui uma maneira muito agradável, e, espero, muito
proveitosa também, de trocarmos conhecimentos. As duas
atividades que, na minha vida, me foram mais caras, aprender e
ensinar, encontraram nas nossas horas de trabalho em comum uma
forma de associação nova e bela, e para mim isso surgiu
precisamente na altura certa, pois começo a envelhecer e não teria
podido imaginar uma melhor cura de rejuvenescimento do que as
nossas sessões. No que me diz respeito, sou, por conseguinte, eu
quem ganha na nossa troca, em todo o caso. Pelo contrário, não
estou certo de que o meu caro amigo e particularmente as pessoas
de quem é embaixador, e ao serviço de quem está, tenham tanto a
ganhar neste assunto como talvez o esperem. Gostaria de impedir
uma deceção ulterior e impedir, por outro lado, que uma certa
sombra venha pairar sobre as nossas relações. Permita portanto a
um velho experiente pôr a seguinte questão: a sua estada no nosso
mosteirozinho, por mais agradável que seja, foi já naturalmente para
mim matéria de reflexão. Ainda não há muito tempo, exatamente
até à sua recente licença, julguei reconhecer que o sentido e o
objetivo da sua presença entre nós tão-pouco se lhe revelavam, a si,
com uma perfeita clareza. Estou certo?
E quando Knecht respondeu afirmativamente, continuou: – Bom.
Ora, desde o seu regresso de férias, a situação mudou. O meu
amigo não dá cabo da cabeça nem se preocupa mais com a
finalidade da sua presença aqui, já se informou disso. É exato? Muito
bem, portanto não me enganei. É provável que a ideia que tenho da
sua presença também não seja errada. O meu amigo está
encarregado duma missão diplomática e esta não diz respeito nem
ao nosso mosteiro nem ao nosso abade, mas a mim. Como vê, não
resta grande coisa do seu segredo. Para que a situação se torne
perfeitamente clara, avanço um último passo e aconselho-o a dizer-
me o resto. Qual é então a sua missão?
Knecht erguera-se dum salto e estava de pé à frente dele,
surpreendido, embaraçado, quase perturbado. – Tem razão –
exclamou –, mas ao mesmo tempo que me alivia, envergonha-me
também, ao passar-me à frente. Há algum tempo que me pergunto
como poderia dar às nossas relações essa clareza que acaba de
fazer surgir tão rapidamente. É ainda uma sorte haver-lhe pedido
que me instruísse e ter ficado combinado que me iniciaria na sua
ciência antes de ir de licença, senão tudo isso tomaria
verdadeiramente o aspeto de ter sido pura diplomacia da minha
parte e os nossos estudos ganhariam a aparência dum pretexto!
O velho tranquilizou-o amavelmente. – Eu queria simplesmente
fazer com que ambos avançássemos um passo. A pureza das suas
intenções não precisa de ser afirmada. Se me adiantei a si e se não
provoquei nada que não lhe pareça desejável, está tudo bem. –
Sobre o fundo da missão de Knecht, que este então lhe expôs,
declarou: – Os seus senhores de Castália não são, absolutamente
nada, nenhuns diplomatas geniais, mas são aceitáveis e têm
também a sorte do seu lado. Vou refletir na sua missão
tranquilamente, e a minha decisão dependerá em parte da maneira
como o meu amigo conseguir iniciar-me na vossa constituição, no
vosso universo espiritual e em tornar-nos plausíveis. Teremos todo o
nosso tempo para isso. – E, vendo que Knecht continuava ainda um
pouco embaraçado, riu-se com dureza e exclamou: – Se quiser, pode
também considerar a minha maneira de agir como uma espécie de
lição. Somos dois diplomatas e o nosso encontro é um combate
constante, mesmo que se revista de uma forma amistosa. Ora, na
nossa luta, era eu que estava momentaneamente por baixo, a
iniciativa da ação tinha-se-me escapado, o meu amigo sabia mais do
que eu. Agora, estamos novamente em pé de igualdade. A minha
jogada de xadrez resultou, mas era boa.
Se Knecht dava valor e importância em ganhar o frade para as
intenções das autoridades de Castália, parecia-lhe contudo ainda
muito mais essencial aprender com ele o mais possível e, pelo seu
lado, ser para aquele homem de ciência e aquele político poderoso
um introdutor seguro no mundo castaliano. Knecht provocou a
inveja de muitos dos seus amigos e dos seus alunos, como acontece
geralmente aos seres eminentes, não somente devido à sua
grandeza e à sua energia pessoais, mas também devido à sua sorte
aparente e à aparente predileção que o destino tem por eles. Os
espíritos pequenos veem nos grandes o que está precisamente ao
alcance dos seus olhos, e, para todos os observadores, a carreira e a
ascensão de Josef Knecht têm efetivamente uma luminosidade, uma
rapidez, uma aparente facilidade que saem do comum. Pode-se
verdadeiramente ser tentado a dizer deste período da sua vida: a
sorte sorriu-lhe. Tão-pouco tentaremos explicar esta «sorte» com
argumentos racionais ou morais, quer como consequência normal de
circunstâncias exteriores, quer como uma espécie de recompensa da
sua excecional virtude. A sorte nada tem a ver com a razão nem
com a moral. É, por essência, mágica, atributo dum nível precoce e
juvenil da Humanidade. O ingénuo que tem sorte, que recebe
prendas das fadas, que é estragado pelos deuses, não é um objeto
de observação racional e, por consequência, não é sujeito de
biografia, é um símbolo, ultrapassa os limites da personalidade e da
história. Há no entanto homens eminentes em cuja vida não se pode
abstrair da «sorte»: o simples facto de terem achado efetivamente,
de terem encontrado na história e nas suas vidas a tarefa que lhes
era adequada, de não terem nascido nem demasiado cedo nem
tarde de mais, não é já uma «sorte»? E Knecht parece pertencer a
esse número. Por isso, a sua vida, pelo menos num determinado
momento, dá a impressão de que tudo quanto poderia desejar lhe
caiu do céu. Não está nas nossas intenções negar nem apagar este
aspeto da sua vida, por outro lado não poderíamos explicá-lo
racionalmente, a não ser por um método biográfico que não é o
nosso e que não é o que se deseja e se admite em Castália, isto é,
aprofundando quase sem fim os dados da sua vida mais íntima, mais
privada, da sua saúde, das suas doenças, as oscilações e as curvas
da sua vitalidade e da sua confiança em si mesmo. Estamos
persuadidos de que uma biografia desse género, que não nos
interessa, nos forneceria a prova dum perfeito equilíbrio entre a sua
«sorte» e os seus padecimentos, falsificando ao mesmo tempo a
imagem da sua figura e da sua vida.
Ponhamos fim a esta digressão. Dizíamos que Knecht fora
invejado por muitos dos que o conheceram ou mesmo que
simplesmente ouviram falar dele. Mas não há provavelmente nada
na sua vida que tenha parecido mais digno de inveja aos espíritos
menores do que as suas relações com o velho frade beneditino,
durante as quais era ao mesmo tempo discípulo e professor,
recebedor e dador, conquistado e conquistador, em que havia ao
mesmo tempo amizade e uma íntima comunidade de trabalho. O
próprio Knecht não experimentou tanta felicidade em nenhuma das
suas conquistas; desde a do Irmão Mais Velho, no Bosque dos
Bambus, nenhuma foi para ele até esse grau ao mesmo tempo uma
distinção e motivo de confusão, um presente e um aguilhão. Talvez
não exista um único dos discípulos preferidos, que mais tarde teve,
que não haja testemunhado até que ponto ele falava do Frei
Jakobus frequentemente, de coração pleno e com alegria. Knecht
aprendeu com ele o que nunca poderia aprender na Castália de
então; ganhou não só uma visão geral dos métodos e dos meios de
conhecimento e de investigação históricas e um primeiro treino em
utilizá-los, mas, a um nível bem superior, adquiriu o sentido da
história, não como ciência, mas como realidade, como vida, e é a
isso que corresponde a transformação da sua própria vida pessoal e
a elevação que o fez entrar na história. Não teria podido aprendê-lo
com um simples homem de sabedoria. Jakobus não era apenas, para
lá da ciência, um vidente e um homem de sabedoria. Além disso
vivia a história e contribuía para a modelar, não utilizara o lugar
onde o destino o tinha posto para se refastelar no conforto duma
existência contemplativa; no seu quartinho de sábio deixara soprar
os quatro ventos do mundo, abrira o coração às misérias e aos
pressentimentos da sua época, e, nos acontecimentos do seu tempo,
tivera a sua parte de ação, de culpa e de responsabilidade. O seu
trabalho não consistira somente em dominar, ordenar e interpretar
os dados dum passado remoto, não se ocupara apenas com ideias,
mas, em igual medida, com as resistências da matéria e dos
homens. Consideravam-no, assim como ao seu colaborador e
adversário, um jesuíta que morrera recentemente, como o
verdadeiro fundador da potência diplomática e moral e do elevado
prestígio político que a Igreja romana reconquistara depois das eras
de resignação e grande apagamento.
Nas conversas do professor com o seu aluno, quase nunca se
tratava da atualidade política – o treino do frade em calar-se, em
manter-se na reserva, e, em igual medida, o temor do mais novo em
ver-se arrastar para a diplomacia e a política, opunham-se-lhe. No
entanto, a posição e a atividade política do Beneditino tinham a tal
ponto impregnado a sua conceção da história universal que em cada
uma das suas opiniões, em cada olhar que mergulhava na confusão
dos negócios mundiais, via-se também aparecer o prático da política
– aliás, político sem ambição e sem intrigas, que não era nem
príncipe, nem chefe e muito menos arrivista, mas conselheiro e
intermediário, um homem cuja atividade se temperava com a
sabedoria e a ambição dum profundo conhecimento das
insuficiências e dificuldades da natureza humana, mas a quem a
reputação, a experiência, o conhecimento dos homens e dos factos
e, não o esqueçamos, o desinteresse e a integridade davam um
poder pessoal considerável. Knecht não sabia absolutamente nada
disto quando veio para Mariafels, nem sequer conhecia o nome do
frade. A maioria dos habitantes de Castália vivia num estado de
candura e ignorância políticas que não era raro encontrar também,
em épocas precedentes, no meio dos homens de ciência: estes não
tinham nem os direitos nem os deveres duma existência política
ativa, só muito dificilmente um jornal lhes cairia debaixo dos olhos. E
se tais eram os hábitos e a atitude do castaliano médio, o medo da
atualidade, da política e da imprensa ainda era muito maior nos
Jogadores de Contas de Vidro, que se consideravam de bom grado
como a elite e o nec plus ultra da Província e faziam questão em que
nada perturbasse a atmosfera rarefeita e sublimada da sua
existência de artistas eruditos. Da primeira vez que penetrara
naquele mosteiro, Knecht não estava de resto encarregado duma
missão diplomática, viera simplesmente na qualidade de professor
do Jogo das Contas de Vidro e não possuía outros conhecimentos
políticos além dos que o senhor Dubois lhe inculcara em algumas
semanas. Em comparação com esse tempo, não se tornara agora
certamente muito mais sabedor, mas não tinha de modo nenhum
perdido a repugnância que todo o habitante de Waldzell sentia em
ocupar-se com a atualidade política. Se, nesta matéria, as suas
relações com Frei Jakobus tiveram como efeito abrir-lhe os olhos e
formá-lo em muitos aspetos, não foi porque disso tivesse sentido a
necessidade, como, por exemplo, com a história, pela qual sentia
uma verdadeira avidez, mas antes porque era inevitável.
Para completar o seu equipamento e melhor satisfazer a tarefa
lisonjeira que lhe tinham confiado, de ter o frade como aluno dos
seus cursos de rebus castaliensibus, Knecht trouxera de Waldzell
livros sobre a constituição e a história da Província, sobre o sistema
das escolas de elite e a evolução do Jogo das Contas de Vidro.
Alguns desses livros tinham-lhe já servido, vinte anos antes, no seu
conflito com Plínio Designori; depois disso não voltara a abri-los.
Havia outros que nessa altura não puderam ser-lhe confiados porque
se destinavam especialmente aos funcionários de Castália e que leu
pela primeira vez. E assim, ao mesmo tempo que o domínio dos
seus estudos se alargava assim tanto, viu-se obrigado a
reconsiderar, rever e consolidar a base intelectual e histórica do seu
próprio pensamento. Ao tentar apresentar aos olhos do frade, com
toda a clareza e simplicidade possíveis, os princípios da Ordem e do
sistema castaliano, não tardou – era inevitável – a descobrir o ponto
mais fraco da sua própria cultura e de toda a Castália. Verificou que
não conseguia representar os factos da história universal que
outrora tinham tornado possível e exigido o nascimento da Ordem e
de tudo quanto daí resultara, sem ser na forma duma imagem
esquemática e pálida, donde estavam ausentes os elementos
concretos e a ordem. E como o frade era tudo menos um aluno
passivo, vieram a trabalhar mais ativamente em comum e a ter
trocas de opiniões extremamente vivas. Enquanto Knecht se
esforçava por expor a evolução da sua Ordem castaliana, Jakobus
ajudava-o, em muitos aspetos, a descobrir e a sentir a verdadeira
perspetiva dessa história e a encontrar-lhe as raízes na da política
mundial. Estas discussões apaixonadas que não era raro, dado o
temperamento apaixonado do frade, vê-las transformarem-se em
disputas duma extrema violência, darão ainda os seus frutos anos
mais tarde, vê-lo-emos, e continuarão a exercer uma influência ativa
até à morte de Knecht. Com que atenção o frade seguia, por outro
lado, as exposições de Knecht e quanto estas o ajudaram a conhecer
Castália e reconhecer o seu valor, é mostrado por toda a sua atitude
ulterior. É a estes dois homens que se deve o entendimento entre
Roma e Castália que ainda hoje vigora; este acordo começou por
uma neutralidade benevolente e por trocas culturais ocasionais, para
se transformar, em certos períodos, numa colaboração e numa
aliança verdadeiras. O frade, que, no início, rejeitara com um sorriso
a ideia de ser iniciado na teoria do Jogo das Contas de Vidro, acabou
por exprimir esse desejo, pois sentia perfeitamente que era aí que
era necessário procurar o segredo dessa Ordem e, em certa medida,
a sua fé ou a sua religião. E, assim que tomara duma vez por todas
a decisão de penetrar nesse mundo que até então só conhecia de
ouvido e lhe era pouco simpático, foi direito ao fim, com aquela
mistura de força e astúcia que lhe eram próprias e, se bem que não
se tenha tornado um Jogador de Contas de Vidro – era em todo o
caso demasiado velho para isso –, pelo menos os espíritos do Jogo e
da Ordem raramente fizeram fora de Castália a conquista dum amigo
mais sério e mais precioso do que este grande Beneditino.
De tempos a tempos, quando Knecht se despedia do frade depois
duma sessão de trabalho, este dava-lhe a entender que poderiam
voltar a ver-se no quarto dele à noite. Ao esforço das lições e à
excitação das suas disputas sucediam-se então horas de paz; Josef
trazia muitas vezes o seu clavicórdio ou um violino, e o velho
sentava-se ao piano, à luz suave dum círio cujo perfume açucarado
de cera enchia a sala pequena ao mesmo tempo que a música de
Corelli, Scarlatti, Telemann ou Bach, que tocavam à vez ou em
conjunto. O velho deitava-se cedo, enquanto Knecht, estimulado
pelo fervor musical, prolongava a duração do seu trabalho noturno
até ao limite autorizado pela disciplina.
Tirando estas sessões de estudo e ensino com o frade, do curso
de Contas de Vidro que prosseguia com indolência no mosteiro e
talvez, de longe a longe, duma conversa sobre a China com o abade
Gervasius, encontramos Knecht igualmente ocupado nessa época
com um outro trabalho bastante considerável. Participou, o que
descurara nas duas vezes precedentes, no concurso anual da elite
de Waldzell. Para este concurso era necessário, com base em dois
ou três temas principais prescritos, elaborar projetos de Jogos de
Contas de Vidro; eram apreciadas novas associações de temas,
ousadas e originais, associadas a uma extrema clareza de forma e
de escrita. Era a única ocasião em que se permitia aos concorrentes
cometerem também infrações aos cânones, isto é, tinham direito a
servir-se igualmente de números novos que ainda não estavam
registados no código e no léxico oficiais dos hieróglifos. Este
concurso, que de resto era o acontecimento mais sensacional na
aldeia dos Jogadores, juntamente com os grandes jogos públicos
consagrados, permitia além disso o encontro dos inventores de
símbolos novos mais em vista. A recompensa mais alta que possa
imaginar-se e que raramente era atribuída ao vencedor do concurso,
consistia não somente na representação solene do seu Jogo, o
melhor do ano, como também no reconhecimento oficial e na
introdução, nos arquivos e na língua do Jogo das Contas de Vidro,
do enriquecimento gramatical e terminológico que ele propusera.
Outrora, uns vinte e cinco anos antes, o grande Thomas von der
Trave, o atual Magister Ludi, beneficiara dessa honra rara pelas suas
novas abreviaturas relativas ao sentido alquímico dos signos do
Zodíaco. O Mestre Thomas tinha de resto contribuído, muito depois
disso, para dar a conhecer e admitir a alquimia como uma das
línguas ocultas mais significativas. Knecht desta vez renunciou a
utilizar novos símbolos, se bem que, como quase todos os
candidatos, tivesse muitos de reserva. Tão-pouco se aproveitou
desta ocasião para afirmar a sua fé no método do Jogo psicológico,
o que certamente lhe teria sido cómodo. Construiu um Jogo, de
estrutura e temas modernos e pessoais certamente, mas sobretudo
duma composição duma clareza transparente, clássica, duma
execução rigorosamente simétrica, só moderadamente fazendo uso
de ornamentos e cheia duma graça que lembrava os mestres de
antigamente. Talvez que o afastamento de Waldzell e dos arquivos
do Jogo a isso o tivessem forçado, talvez as suas forças e o seu
tempo estivessem muito absorvidos pelos seus estudos históricos,
talvez fosse também guiado pelo desejo mais ou menos consciente
de estilizar o seu Jogo da maneira que melhor pudesse responder ao
gosto do seu professor e amigo, o Frei Jakobus; não o sabemos.
Utilizámos a expressão de «método psicológico do Jogo», que
talvez não seja imediatamente compreensível a todos os nossos
leitores; no tempo de Knecht era uma fórmula em moda que se
ouvia com frequência. Em todas as épocas conheceram-se sem
dúvida movimentos, modas, conflitos, conceções e interpretações
variáveis entre os iniciados do Jogo das Contas de Vidro; neste
período eram principalmente duas conceções do Jogo que
constituíam a matéria dos debates e da discussão. Distinguiam-se
dois tipos de Jogos, o tipo formal e o tipo psicológico, e sabemos
que Knecht, assim como Tegularius, embora este não se imiscuisse
nesta querela de forma, contava-se entre o número dos partidários e
defensores do segundo. Simplesmente, Knecht, em vez de falar do
método do Jogo «psicológico», preferiu geralmente a designação de
«pedagógico». O Jogo formal esforçava-se por dar aos elementos
concretos de cada Jogo, matemáticos, linguísticos, musicais, etc.,
uma unidade e uma harmonia tão densas, tão plenas, tão perfeitas
de forma quanto possível. O Jogo psicológico, pelo contrário,
procurava a unidade e a harmonia, a redondeza e a perfeição do
cosmo, menos na escolha, na disposição, limitação, associação e
oposição dos elementos do que na meditação que se seguia a cada
etapa do Jogo e na qual colocava toda a tónica. Um Jogo psicológico
deste género, ou como Knecht preferia dizer, pedagógico, não
oferecia exteriormente a imagem da perfeição, mas, com a sucessão
das meditações que prescrevia com precisão, levava o Jogador a
sentir a emoção do perfeito e do divino. «O Jogo, tal como o
concebo», escreveu Knecht um dia ao antigo Mestre da Música,
«engloba o Jogador, quando este levou a cabo a sua meditação,
como a superfície duma esfera engloba o seu centro; dá-lhe o
sentimento de ter destrinçado neste mundo fortuito e confuso um
todo perfeitamente simétrico e harmonioso e de o ter assimilado.»
Ora, o Jogo com que Knecht participou no grande concurso era de
estrutura formal, e não psicológica. É possível que tenha querido
demonstrar aos seus superiores, e provar também a si próprio, que
a sua viagem em Mariafels e a sua missão diplomática não lhe
tinham feito perder nada do seu treino de Jogador de Contas de
Vidro, da sua elasticidade, da sua elegância e virtuosismo; a prova
que disso deu foi convincente. Confiou os últimos retoques e a
passagem a limpo do seu projeto de Jogo, que só podiam ser feitas
em Waldzell, nos arquivos do Jogo, ao seu amigo Tegularius, que de
resto participava também no concurso. Pôde também entregar
diretamente os seus papéis ao seu amigo, falar do jogo
demoradamente com ele, e examinar igualmente o esquema deste,
pois conseguira trazer Fritz Tegularius para o mosteiro por um
período de três dias. Pela primeira vez o Mestre Thomas dera
seguimento ao pedido que já lhe fizera por três vezes. Se bem que
esta visita enchesse Tegularius de alegria e ele chegasse com toda a
curiosidade dum ilhéu castaliano, sentiu-se no entanto muito pouco
à vontade naquele mosteiro; este ser hipersensível ficou quase
doente com todas aquelas impressões dum género desconhecido e
com o contacto com todas aquelas pessoas, amáveis mas simples,
sãs mas também um pouco frustes, das quais nenhuma teria tido a
menor compreensão para os seus pensamentos, as suas
preocupações e os seus problemas. – Vives aqui num outro planeta
– disse ele ao seu amigo. – Não compreendo como pudeste
aguentar-te aqui três anos e admiro-te. Os teus frades são
certamente muito amáveis comigo, mas aqui sinto que tudo me
rejeita e me afasta; nada se me oferece, não há nada que se
compreenda por si mesmo, que se assimile sem resistência e sem
dor. Viver duas semanas aqui para mim seria o inferno. – Knecht
teve dificuldade em acalmá-lo. Pela primeira vez foi espectador
aborrecido desta incompatibilidade das duas Ordens e dos seus dois
mundos, e teve o sentimento de que a sensibilidade exagerada do
seu amigo e a sua perturbação de ansioso não faziam bom efeito.
Mas procederam em conjunto a um estudo aprofundado e crítico dos
seus dois projetos destinados ao concurso. Quando Knecht, no fim
duma dessas sessões, se dirigia para os alojamentos de Frei
Jakobus, na outra ala do edifício ou quando ia tomar uma refeição,
tinha também o sentimento de ser de repente transplantado da sua
terra natal para um pais completamente diferente, onde o ar e o
solo, o clima e as estrelas eram diferentes. Quando Fritz se foi
embora, levou o frade a dizer com que impressão ficara dele. –
Espero – disse Jakobus – que a maioria dos castalianos se pareçam
mais consigo do que com o seu amigo. É um tipo de homem
inadaptado, viciado pela educação, sem força e, tenho também
medo disso, um pouco orgulhoso, que o meu amigo nos apresentou
na pessoa dele. Quero continuar a ater-me a si, doutra maneira
tornar-me-ia injusto para com as pessoas como o meu amigo. Pois
esse pobre homem suscetível, hiperinteligente e agitado de
nervosismo seria capaz de nos desgostar de toda a vossa Província.
– Ah! – disse Knecht. – Entre os Beneditinos deve ter havido, em
todos estes séculos, algum indivíduo enfermiço, fraco de corpo, mas
apesar disso espírito de valor, como é o caso do meu amigo. Talvez
não tenha sido muito acertado da minha parte tê-lo convidado a vir
aqui, onde, é certo, têm olhos penetrantes para ver as suas
fraquezas, mas nenhum órgão para reconhecer as suas grandes
qualidades. Com a sua vinda, o meu amigo prestou-me um grande
serviço. – E contou ao frade em que condições participava no
concurso. Este via com prazer Knecht tomar a defesa do seu amigo.
– Boa resposta! – disse, rindo-se amistosamente. – Mas dir-se-ia na
verdade que tem por amigos apenas pessoas de trato um pouco
difícil. – Saboreou o espanto de incompreensão de Knecht e depois
disse simplesmente: – Estou a referir-me a outro seu amigo. Tem
tido notícias do seu amigo Plínio Designori? – O espanto de Josef
cresceu ainda mais, se possível. Muito emocionado, pediu
explicações. Tinha-se passado isto: num panfleto político Designori
fizera profissão de opiniões violentamente anticlericais e, nessa
ocasião, atacara também com ardor Frei Jakobus. Este tinha
recebido, por intermédio dos seus amigos da imprensa católica,
informações sobre Designori, nas quais se citava a sua escolaridade
em Castália e as suas relações bem conhecidas com Knecht. Josef
pediu para ler o artigo de Plínio; este foi o ponto de partida da
primeira conversa que teve com o frade sobre um assunto de
atualidade política, ao qual, de resto, se seguiria apenas um
pequeno número de outras. «Foi para mim um espetáculo estranho
e quase assustador», escreveu ele a Ferromonte, «ver a figura do
nosso Plínio e, a reboque dela, também a minha de repente
colocadas na cena da política mundial. Era uma conjetura em cuja
possibilidade nunca até ali pensara.» O frade, de resto, prestava
antes homenagem a esse panfleto de Plínio do que o contrário; em
todo o caso não manifestou nenhuma suscetibilidade, elogiou o
estilo de Designori, achou que se reconhecia perfeitamente no estilo
a marca da escola de elite e declarou que, regra geral, a política
quotidiana se contentava com muito menos espírito e com um nível
muito inferior.
Por essa época Knecht recebeu do seu amigo Ferromonte a cópia
duma primeira parte da sua obra que mais tarde se tornaria célebre
com o título de Continuação e desenvolvimento da música popular
eslava pela música de arte alemã, a partir de Haydn. Na carta que
Knecht lhe escreveu em resposta lemos entre outras coisas: «Tiraste
dos teus estudos, que tive o privilégio de acompanhar durante
algum tempo, um balanço conciso; os teus dois capítulos sobre
Schubert, especialmente sobre os seus quartetos, fazem parte do
que conheço como mais bem conseguido, em matéria de história
musical recente. Pensa em mim às vezes, estou longe de poder
conseguir, como tu, uma tão bela colheita. Embora tenha motivos
para estar contente com a minha vida aqui – pois a minha missão
em Mariafels me parece ir a bom termo – sinto-me, no entanto, às
vezes, oprimido por estar tanto tempo afastado da Província e do
círculo de Waldzell, a que pertenço. Aqui, aprendo muito, muito
mesmo, porém não me traz um acréscimo de segurança nem de
virtude técnica, mas um acréscimo de incerteza. E também um
alargamento do horizonte, com certeza. Claro, sou menos
atormentado agora por essa falta de saber-fazer, essa estranheza,
essa falta de segurança, de alegria e de confiança em mim, por
todos aqueles outros males que tanta vez ressenti aqui, sobretudo
durante os dois primeiros anos. Tegularius esteve aqui
recentemente, apenas por três dias, mas, apesar do seu desejo de
voltar a ver-me e da curiosidade que sentia por Mariafels, no
segundo dia já quase não conseguia resistir mais, tanto se sentia
oprimido e desenraizado. Ora um mosteiro é, no fundo, um mundo
protegido, pacífico e onde se gosta do espírito, está longe de ser
uma casa de correção, uma caserna ou uma fábrica; tiro portanto da
minha experiência a conclusão que nós, indígenas da nossa querida
Província, não somos infinitamente mais estragados e mais sensíveis
do que nós próprios pensamos.»
Na época precisamente cuja data é a da carta, Knecht levou Frei
Jakobus a escrever uma breve mensagem à direção da Ordem
castaliana para lhe dar o seu assentimento sobre a questão
diplomática que se sabe. Mas este acrescentou-lhe um pedido: que
autorizassem a ficar ainda durante mais algum tempo no mosteiro
«o Jogador de Contas de Vidro que ganhou aqui a simpatia de
todos» e que fazia o favor de lhe dar lições particulares de rebus
castaliensibus. Compreensivelmente, a satisfação deste desejo foi
tida como uma honra. Quanto a Knecht, que até ali julgara
justamente estar ainda longe dessa «colheita» dos seus esforços,
recebeu uma carta assinada pela direção da Ordem e pelo senhor
Dubois, felicitando-o pela execução da sua missão. O que lhe
pareceu mais importante e lhe deu o maior prazer nessa mensagem
das altas autoridades (anunciou-o quase triunfalmente num bilhete a
Fritz) foi uma curta frase dizendo que a Ordem, informada pelo
Mestre das Contas de Vidro do seu desejo de regressar ao Vicus
Lusorum, estava disposta a dar seguimento a esse desejo, depois de
expirar a missão em curso. Leu igualmente esta passagem a Frei
Jakobus e confessou-lhe quanto isso o alegrava. Confessou-lhe
também até que ponto tinha temido ficar exilado de Castália, a título
talvez permanente e ser enviado para Roma. O frade declarou a rir-
se: – Sim, as Ordens têm essa particularidade, caro amigo.
Preferimos viver no seu seio em vez de na sua periferia e com mais
forte razão no exílio. Pode com toda a tranquilidade esquecer a
pouca política com que entrou aqui, pois o meu amigo não é um
político. Mas não venha a tornar-se infiel à história, mesmo que esta
venha à ser para si talvez uma disciplina acessória e um passatempo
de amador. Pois o meu amigo tinha estofo para vir a ser historiador.
E, agora, vamos ainda aproveitar ambos, um com o outro, durante o
tempo em que o tiver aqui.
Parece que Knecht não fez uso da autorização de vir mais vezes a
Waldzell. Mas seguiu pela rádio uma série de trabalhos práticos e
muitas conferências e Jogos. E foi assim que, de longe, sentado no
seu belo quarto de convidado, tomou parte, no mosteiro, naquela
«cerimónia solene» durante a qual, na sala de festas do Vicus
Lusorum, os resultados do concurso foram proclamados. Tinha
apresentado um trabalho que nada tinha de muito pessoal e ainda
menos de revolucionário, mas que era perfeitamente bom e duma
extrema elegância. Sabia o valor do seu trabalho e esperava uma
menção honrosa ou ainda um terceiro ou um segundo prémio. Para
seu grande espanto ouviu ser-lhe atribuído o primeiro prémio e,
antes mesmo que a surpresa pudesse verdadeiramente dar lugar à
alegria, o porta-voz do Mestre do Jogo, prosseguindo a leitura com a
sua bela voz grave, nomeou o laureado com o segundo prémio:
Tegularius. Que acontecimento emocionante e maravilhoso saírem
assim, os dois, deste concurso de mão na mão, com a palma dos
vencedores! Ergueu-se dum salto, sem ouvir mais nada, desceu as
escadas quatro a quatro e atravessou a correr as salas sonoras e
saiu para o ar livre. Numa carta que escreveu por esses dias ao
antigo Mestre da Música lemos: «Estou tão feliz, venerável amigo,
como podes imaginar. Em primeiro lugar cumpri a minha missão e a
direção da Ordem mandou-me as suas lisonjeiras felicitações dando-
me esperança, tão importante para mim, de que voltaria dentro de
pouco tempo para a nossa pátria, para os meus amigos, para o Jogo
das Contas de Vidro, em vez de ser utilizado nos serviços
diplomáticos. Em seguida, este primeiro prémio por um Jogo cuja
forma imaginei, é verdade, mas que, por boas razões, não esgota
tudo quanto poderia dar. E, ainda por cima, a alegria de partilhar
este êxito com o meu amigo. Na verdade, é muito ao mesmo tempo.
Estou feliz, mas não poderia dizer que esteja radiante. No fundo do
meu coração acho que estas satisfações que ocorrem num prazo
mínimo, são pelo menos, em meu entender, um pouco repentinas e
grandes de mais; à minha gratidão mistura-se uma certa angústia,
como se bastasse uma gota a mais nesta taça cheia até à borda
para tudo pôr em questão. Mas considera, peço-te, que não disse
nada, cada palavra sobre este assunto é de mais.»
Veremos que a taça cheia até à borda estava destinada a recolher
dali a pouco ainda mais do que uma simples gota. Mas durante o
curto período que precedeu esses acontecimentos, Josef Knecht
viveu tudo com a felicidade, e com a angústia que se lhe misturava,
com um ardor e uma intensidade tais que dir-se-ia que pressentira a
grande mudança iminente. Esses poucos meses foram também para
Frei Jakobus um período de felicidade que em breve se esfumaria.
Custava-lhe ter de, dali a pouco, perder aquele aluno, aquele colega,
e tentou, nas suas horas de trabalho propriamente ditas e mais
ainda nas suas conversas sem horas, confiar-lhe e legar-lhe
verdadeiramente o máximo possível das ideias que a sua existência
laboriosa e especulativa lhe fornecera sobre as grandezas e os
abismos da vida dos homens e dos povos. Às vezes falava também
com ele do significado e das consequências da missão de Knecht, da
possibilidade e do preço dum laço amistoso e dum entendimento
político entre Roma e Castália, e recomendava-lhe que estudasse
essa época que tinha tido como frutos a fundação da Ordem
castaliana, bem como a recuperação progressiva de Roma, depois
dos tempos das provações humilhantes. Recomendou-lhe
igualmente duas obras sobre a Reforma e o cisma do século XVI,
mas exortou-o no entanto a preferir sempre, por princípio, o estudo
direto das fontes e a limitar-se sempre aos setores parciais que
formassem um todo para o espírito, em vez de ler «voltas ao
mundo» da história universal. Não fez mistério nenhum da profunda
desconfiança que lhe inspiravam todas as filosofias da história.
MAGISTER LUDI

Knecht decidira adiar o seu regresso definitivo a Waldzell para a


primavera, data do grande Jogo público das Contas de Vidro, o
Ludus anniversarius ou sollemnis. É certo que o ponto culminante da
história memorável desses Jogos, a época em que duravam semanas
e em que dignitários e representantes de todo o Mundo vinham
assistir, pertencia já, para sempre, ao passado e à história. Mas
aquelas reuniões da primavera, com os seus Jogos solenes que se
prolongavam geralmente por dez ou quinze dias, continuavam
apesar de tudo a ser o grande acontecimento e a grande festa anual
de toda a Castália. Era uma cerimónia a que tão-pouco faltava um
elevado significado religioso e moral, pois reunia num espírito de
harmonia simbólica os representantes de todas as opiniões e de
todas as tendências da Província, que nem sempre estavam
perfeitamente de acordo; a festa fazia a paz entre os egoísmos das
diferentes disciplinas e despertava a recordação da união que
dominava a sua multiplicidade. Para os crentes, possuía a virtude
sacramental duma consagração autêntica; para os não crentes,
constituía quando muito um sucedâneo de religião, e para todos era
um banho nas fontes puras do belo. Era deste modo que, outrora, as
Paixões de Johann Sebastian Bach – não tanto no tempo da sua
criação do que no século que se seguiu à sua descoberta – foram,
para os executantes e os ouvintes, em parte um ato profundamente
religioso e uma consagração, em parte um elemento de fervor e um
sucedâneo de religião e, para todos, manifestações solenes de arte e
do Creator spiritus.
Knecht não teve dificuldade em obter a concordância, tanto dos
religiosos como das autoridades do seu país, para a decisão que
tomara. Não conseguia ainda imaginar muito bem qual seria a sua
posição quando regressasse às fileiras da pequena república do
Vicus Lusorum, mas supunha que não o deixariam ficar aí muito
tempo e não tardariam a atribuir-lhe um cargo e honrá-lo com uma
função ou uma missão qualquer. De momento estava feliz por
regressar, voltar a ver os amigos, assistir às festas que se
preparavam, saboreava os últimos dias do seu diálogo com Frei
Jakobus, e aceitou com dignidade e bom humor as numerosas
manifestações de despedida com que o abade e o capítulo quiseram
testemunhar-lhe a sua benevolência. Em seguida, partiu, deixando
não sem melancolia aqueles lugares que se lhe tinham tornado
queridos e este período da sua vida que entrava agora no passado.
Mas a série de exercícios de contemplação preparatórios dos Jogos
solenes tinham-no já de antemão levado para o ambiente das
cerimónias. Obrigara-se a esses exercícios, embora sem guia nem
camaradas, seguindo as instruções estritamente à letra. Não
conseguira persuadir Frei Jakobus a ir com ele e aceitar o convite
solene para os grandes Jogos que o Magister Ludi lhe dirigira há
bastante tempo, mas isso não influiu em nada no seu bom humor,
compreendia a atitude de reserva do velho anticastaliano e sentia-se
assim, por um momento, livre de todas as obrigações e limitações,
pronto a entregar-se por inteiro às festividades que o esperavam.
As cerimónias são coisas curiosas. Uma verdadeira festa não pode,
nunca pode ser completamente falhada, a não ser devido à
intervenção funesta das potências superiores. Para um espírito
religioso, uma procissão tem, mesmo debaixo de chuva, o seu
carácter consagrado e o assado queimado dum jantar festivo não
consegue esfriar o seu ardor. Do mesmo modo, para os Jogadores
de Contas de Vidro, cada Jogo anual é uma festa e tem qualquer
coisa de sagrado. Há, sabemo-lo todos, cerimónias e Jogos em que
tudo e todos concordam e se exaltam mutuamente, ganham ardor e
asas uns com os outros, assim como há representações teatrais e
musicais que, sem causa aparente, como que por milagre, ganham
valor de acontecimentos culminantes e de emoções profundas, ao
passo que outras, que não foram mais mal preparadas, são
realizações quando muito simplesmente honestas. Se fosse
necessário procurar o que faz nascer essas grandes emoções no
estado de alma daqueles que as sentem, Josef Knecht teria estado
preparado duma maneira ideal: livre de todas as preocupações,
regressando ao país carregado de honras, preparava-se, com a
alegria da expectativa, para o que ia passar-se.
Mas, desta vez, não foi dado ao Ludus sollemnis ser aflorado por
esse sopro miraculoso e atingir um grau excecional de consagração
e irradiação. Foi mesmo um Jogo sem alegria, claramente
desprovido de sorte, um Jogo quase falhado. Muitos dos assistentes
puderam, apesar de tudo, ter nele um sentimento de edificação e de
elevação; em contrapartida, como sempre em casos semelhantes, os
verdadeiros autores, os organizadores e os responsáveis sentiram
tanto mais inexoravelmente essa falta de graça e o fracasso, a
reticência e a pouca sorte que ameaçavam o céu dessa festa.
Knecht, embora também disso se apercebesse naturalmente e a
sua expectativa tivesse sido um pouco desiludida, não foi de modo
nenhum daqueles que sentiram mais distintamente essa má sorte.
Não participando no Jogo e livre de toda a responsabilidade, pôde
durante esses dias, se bem que esse ato estivesse privado da sua
flor e da sua graça, seguir piedosamente como espectador essa
partida cuja estrutura engenhosa sabia apreciar; pôde deixar voar as
suas meditações sem obstáculo e libertar-se, dentro de si, num
entusiasmo de gratidão, aquela sensação de solenidade e sacrifício,
de união mística da comunidade aos pés do divino, que todos os
ouvintes daqueles Jogos bem conhecem, e que pode inclusivamente
ser dada pela celebração duma festa que passa por «falhada» no
círculo restrito dos verdadeiros iniciados. Contudo, não ficou
insensível à má estrela que pairava sobre a cerimónia. Certamente, o
Jogo em si mesmo, o seu plano e a sua estrutura eram perfeitos,
como todos os Jogos do Mestre Thomas, era mesmo um dos mais
impressionantes, mais simples, mais diretos que ele tinha feito. Mas
a sua execução estava colocada sob uma má estrela, e a recordação
ainda não se apagou da história de Castália.
Quando Knecht chegou, uma semana antes do começo do grande
Jogo, e deu a conhecer o seu regresso na aldeia dos Jogadores, não
foi recebido pelo Mestre do Jogo das Contas de Vidro, mas pelo
adjunto, Bertram, que lhe desejou cortesmente as boas-vindas, mas
o informou um pouco secamente e com um ar ausente de que o
venerável Magister adoecera pouco antes e que ele pessoalmente
não estava suficientemente informado da missão de Knecht para
receber o seu relatório; pediu-lhe, por conseguinte, que se dirigisse
a Hirsland, à direção da Ordem, e anunciasse aí o seu regresso e
esperasse ordens. Quando Knecht, ao despedir-se dele, traiu sem
querer, com o tom da voz ou com um gesto, a admiração que lhe
causavam a frieza e o laconismo deste acolhimento, Bertram
desculpou-se: o colega devia perdoar-lhe se o tinha desapontado;
pedia-lhe que compreendesse a singularidade da sua situação; o
Magister adoecera, o grande Jogo anual ia começar e ainda não se
sabia se o Mestre poderia assumir a sua direção ou se seria ele, o
seu adjunto, que disso deveria encarregar-se. A doença do venerável
Mestre não podia ter ocorrido num momento mais desfavorável e
mais delicado; certamente, ele estava preparado para resolver os
assuntos correntes em vez do Magister, mas preparar-se além disso
para o grande Jogo num prazo tão curto e assumir a direção do
mesmo, temia que estivesse acima das suas forças.
Knecht deplorou a situação daquele homem, cujo abatimento era
visível e que tinha alguma dificuldade em manter o equilíbrio, mas
não lamentou menos que a responsabilidade pela festa corresse o
risco de estar agora nas suas mãos. Tinha estado ausente
demasiado tempo de Waldzell para saber até que ponto as
preocupações de Bertram tinham fundamento; com efeito, este tinha
perdido, pouco tempo antes, a confiança da elite, daqueles a quem
chamavam os repetidores, o que é a pior coisa que possa acontecer
a um adjunto, e ele encontrava-se efetivamente numa situação
muito difícil. Knecht pensou com preocupação no Mestre do Jogo
das Contas de Vidro, esse campeão da forma clássica e da ironia,
Magister perfeito e perfeito homem do mundo. Acalentara a ideia de
ser recebido, escutado, reintroduzido por ele na pequena
comunidade dos Jogadores, colocado talvez num posto de confiança.
Ver o Jogo solene celebrado pelo Mestre Thomas, continuar a
trabalhar sob a sua direção e procurar a sua aprovação, eram os
seus desejos. Era para ele uma dor e uma deceção sabê-lo
enclausurado por trás da sua doença e ver-se remetido para outras
instâncias. Para dizer a verdade, encontrou uma compensação na
benevolência plena de consideração, no tom quase de camaradagem
com que o secretário da Ordem e o senhor Dubois o acolheram e o
escutaram. Logo nesta primeira entrevista pôde constatar também
que, no imediato, não tinham intenção de o utilizar mais no assunto
de Roma e que respeitavam o seu desejo de regressar ao Jogo por
muito tempo. De momento, convidavam-no cordialmente a alojar-se
na casa dos hóspedes do Vicus Lusorum, a ambientar-se e a assistir
ao Jogo anual. Com o seu amigo Tegularius consagrou os dias que
precederam o Jogo aos exercícios de jejum e de recolhimento, e
participou com um espírito de piedade e gratidão nesse Jogo
singular que deixou em tanta gente uma recordação pouco
agradável.
A situação dos adjuntos dos Magisters, a quem também chamam
«sombras», especialmente as dos Mestres da Música e do Jogo, é de
natureza extremamente especial. Cada Magister tem um adjunto,
que não é designado por exemplo pela administração, mas que eles
próprios escolhem entre uma seleção dos seus aspirantes. É o
Magister que é inteiramente responsável pelos atos e pela assinatura
do adjunto que o substitui. Para um candidato é, por consequência,
uma eminente distinção e marca da maior confiança ser nomeado
adjunto pelo seu Magister. É considerado por esse facto como o
colaborador íntimo e o braço direito dessa personagem todo-
poderosa. Sempre que este está impedido e delega nele, o adjunto
cumpre por ele as obrigações do cargo, nem todas, é verdade: no
escrutínio do Diretório supremo, por exemplo, tem apenas direito a
apresentar-se em nome do seu Mestre para dizer sim ou não, nunca
pode pronunciar discursos nem apresentar propostas, e existem
ainda outras regras de prudência deste género. Se esta nomeação
para o lugar de adjunto dá a este uma posição muito elevada e às
vezes muito exposta, constitui no entanto ao mesmo tempo uma
espécie de afastamento; de certo modo faz dele, no interior da
hierarquia administrativa, um caso excecional e isolado e, ao mesmo
tempo que lhe confere frequentemente as funções mais importantes,
lhe reserva grandes honras, priva-o no entanto de determinados
direitos e possibilidades de que gozam todos os outros concorrentes.
Há em particular dois pontos em que a situação de exceção aparece
claramente: o adjunto não é responsável pelos seus atos
administrativos e não pode subir novos graus na hierarquia. Para
dizer a verdade, não é uma lei escrita, mas pode ler-se na história
de Castália. Quando um Magister morre ou se demite do seu cargo,
nunca é a «sombra», que no entanto o representou muitas vezes e
cuja atividade parece destiná-lo a suceder-lhe, que vem a ocupar o
seu lugar. Dir-se-ia que o costume quer sublinhar aqui com cuidado
o carácter inultrapassável duma fronteira e duma barreira
aparentemente elástica e móvel: a que separa o Magister do seu
adjunto é como o símbolo da distinção entre a função e a pessoa.
Por conseguinte, quando um castaliano aceita o posto de alta
confiança que é o do adjunto, renuncia à perspetiva de jamais vir a
ser Magister, de um dia se identificar verdadeiramente com a toga e
as insígnias que veste muitas vezes a título representativo, e, ao
mesmo tempo, contrai o direito singularmente equívoco de não
carregar o peso dos erros que possa cometer no exercício das suas
funções, mas de os endossar ao seu Magister, único responsável por
ele. E aconteceu já efetivamente que um Magister foi vítima do
adjunto que escolhera e tenha sido obrigado a demitir-se do seu
cargo por causa dum erro bastante grosseiro que o outro cometera.
A expressão que servia em Waldzell para designar o adjunto do
Mestre do Jogo das Contas de Vidro dá admiravelmente bem conta
da sua posição especial, dos laços que o unem ao Mestre, da quase
identidade que tem com ele e ao mesmo tempo da falsa aparência e
da inconsistência da sua existência administrativa. Chamam-lhe a
«sombra».
Ora, o Mestre Thomas von der Trave tinha desde sempre confiado
numa «sombra» de nome Bertram, a quem parece terem faltado
menos as qualidades ou a boa vontade do que a sorte. Era um
Jogador de Contas de Vidro excelente, isso é evidente; era também
um professor, de quem o menos que possa dizer-se é que não lhe
faltava habilidade, e um funcionário consciencioso, inteiramente
dedicado ao seu Mestre. Contudo, durante os últimos anos, tornara-
se impopular junto dos funcionários; tinha contra si a mais jovem
das gerações ascendentes da elite e, como não possuía a franqueza
natural e cavalheiresca do seu Mestre, isso prejudicava a segurança
e a calma da sua atitude. O Magister apoiava-o, mas havia já anos
que o subtraíra o mais possível ao rude contacto com essa elite,
fizera-o aparecer cada vez mais raramente em público e empregara-
o de preferência nas chancelarias e nos arquivos. Este homem sem
mancha mas impopular, pelo menos naquela época, e a quem a
sorte visivelmente não favorecia, via-se subitamente colocado pela
doença do seu Mestre à frente do Vicus Lusorum e, caso tivesse
realmente de dirigir o Jogo anual, no posto mais em vista da
Província, durante a duração das festas. Ele só teria estado à altura
desta grande tarefa se a maioria dos Jogadores de Contas de Vidro,
ou pelo menos o grupo dos aspirantes, o tivesse apoiado com a sua
confiança, o que infelizmente não era o caso. E foi assim que, desta
vez, o Ludus sollemnis se tornou uma pesada prova e quase uma
catástrofe para Waldzell.
Foi dado a conhecer apenas na véspera dos Jogos que o Magister,
gravemente doente, estava impossibilitado de assumir a sua direção.
Ignoramos se o atraso posto nesta comunicação foi ditado pela
vontade do Magister doente, que esperou talvez até ao último
momento poder recuperar e presidir apesar de tudo ao Jogo. É mais
provável que estivesse já demasiado doente para ter semelhantes
ideias e que a sua «sombra» cometeu o erro de deixar até à última
hora Castália na incerteza do que se passava em Waldzell. Poder-se-
ia ainda discutir, evidentemente, se esta hesitação foi realmente um
erro. Ele cometeu-o certamente com uma boa intenção, para não
desacreditar de antemão a festa e não tirar aos admiradores do
Mestre Thomas o desejo de virem. E se tudo se tivesse passado
bem, se tivesse reinado a confiança entre a comunidade dos
Jogadores de Waldzell e Bertram, pode-se perfeitamente imaginar
que a «sombra» teria cumprido verdadeiramente o seu papel de
substituto e que a ausência do Magister teria passado quase
despercebida. É ocioso alicerçar outras hipóteses sobre este
assunto; achamos somente dever indicar que não era de modo
nenhum certo que este Bertram fosse um incapaz ou um indivíduo
indigno, como a opinião pública de Waldzell o julgava então. Ele foi
mais vítima do que culpado.
Como todos os anos, os assistentes afluíam então ao Grande
Jogo. Muitos vinham sem fazerem ideia do que se passava, outros
estavam preocupados com a saúde do Magister Ludi e pressentiam
com desgosto o que iria ser a festa. Waldzell e as localidades
vizinhas encheram-se de gente; a direção da Ordem e a
administração do ensino estavam presentes na sua quase totalidade.
Até das partes mais remotas do país, até mesmo do estrangeiro
chegavam viajantes, de disposição festiva, e as hospedarias
abarrotavam. Como sempre, as cerimónias começaram na noite da
véspera do Jogo, com a sessão de meditação: ao sinal dado pelos
sinos, todo o recinto da festa, cheio de gente, mergulhou num
profundo e fervoroso silêncio. No dia seguinte de manhã teve lugar a
primeira das representações musicais e a primeira fase do Jogo foi
anunciada, bem como a meditação sobre os dois temas musicais que
continha. Bertram, vestido com o traje solene do Mestre do Jogo das
Contas de Vidro, dava uma impressão de contenção e de domínio de
si, mas estava muito pálido e, depois, pareceu de dia para dia mais
esgotado, mais doente e mais resignado. Nos primeiros dias parecia
verdadeiramente uma sombra. Logo no segundo dia espalhou-se o
boato de que o estado do Magister Thomas tinha piorado e que a
sua vida estava em perigo: à noite ouviu-se, aqui e ali, e de todos os
lados entre os mais iniciados, correr os primeiros elementos da lenda
que pouco a pouco se formou à volta do Mestre doente e da sua
«sombra». Esta lenda, que tinha origem no meio mais fechado de
Vicus Lusorum, o dos aspirantes, afirmava que o Mestre teria
querido cumprir as funções de condutor do Jogo, e que estaria em
condições de o fazer, mas que cedera à ambição da sua «sombra»
na condução dessa tarefa solene. Como Bertram não parecia de
modo nenhum à altura desse papel eminente e o Jogo ameaçava ser
uma deceção, o doente, sabendo-se responsável pelo seu Jogo, pela
sua «sombra» e pelo fracasso desta, teria tomado sobre si expiar a
falta em vez da «sombra»: era aí, dizia-se, e não noutra parte, que
era preciso procurar a causa do rápido agravamento da sua doença
e a subida da febre. Não foi naturalmente a única versão desta
lenda, mas era a da elite, e mostrava nitidamente que as ambiciosas
gerações ascendentes achavam a situação trágica e estavam
determinadas a não avalizar nenhuma fuga, nenhuma tentativa de
atenuar ou de disfarçar este drama. A veneração pelo Mestre dava
lugar à antipatia para com a sua «sombra». Desejava-se que este
falhasse e caísse, mesmo que o Mestre caísse com ele. No dia
seguinte, foi possível ouvir contar que o Magister, no seu leito de
doente, conjurara o seu adjunto e dois seniores da elite para
salvarem a paz e não comprometerem a festa; noutro dia afirmava-
se que ditara as suas últimas vontades e designara ao Diretório o
homem que queria para seu sucessor; nomes foram mesmo
pronunciados. Estes boatos, e outros ainda, circulavam ao mesmo
tempo que as notícias dum agravamento constante do estado do
Magister. Na sala das festas, assim como nas casas dos hóspedes,
havia de dia para dia menos ambiente, ainda que ninguém se
deixasse impressionar a ponto de renunciar à continuação da
representação e se fosse embora. Toda a cerimónia estava sob o
poder duma pesada e sinistra opressão. Exteriormente, tudo se
passou corretamente, mas já não restavam vestígios da alegria e da
exaltação pelas quais esta festa era conhecida e dela se esperavam.
Quando, na antevéspera do fim do Jogo, o seu autor, o Mestre
Thomas, fechou os olhos para sempre, os esforços do Diretório não
conseguiram impedir que a notícia se espalhasse e, coisa singular,
muitos assistentes sentiram um alívio em ver o problema resolvido
desta maneira. Os Jogadores noviços e em particular a elite, se bem
que lhes fosse proibido pôr luto antes do fim do Ludus sollemnis e
introduzir a menor interrupção ao emprego do tempo rigorosamente
prescrito dessas jornadas, no qual alternavam as representações e
os exercícios de recolhimento, abordaram no entanto unanimemente
o último ato e o último dia da festa com a mesma atitude e o
mesmo estado de espírito como se fosse uma cerimónia de luto em
honra dum defunto venerado e, à volta de Bertram, que continuou a
desempenhar o seu cargo, esgotado, sem sono, lívido e de olhos
semicerrados, criaram uma atmosfera glacial e de isolamento.
Graças aos contactos estreitos com a elite que ainda tinha por
intermédio de Tegularius e na sua qualidade de Jogador mais velho,
Josef Knecht estava muito recetivo a todos estes movimentos e a
todos estes estados de espírito, mas fechou-se à sua influência. A
partir do quarto ou do quinto dia, proibiu mesmo ao seu amigo Fritz
que o importunasse com notícias do Mestre. Sentia e compreendia
certamente muitíssimo bem que sombra trágica pairava sobre a
festa, pensava no Mestre com uma preocupação e uma tristeza
profundas, pensava no seu adjunto Bertram, que parecia condenado
a partilhar a sua morte, com uma apreensão e uma piedade
crescentes, mas defendeu-se obstinada e asperamente contra todas
as notícias verídicas ou apócrifas capazes de o influenciar, praticou a
concentração mais rigorosa, seguiu docilmente os exercícios e os
meandros daquele Jogo bem construído e, apesar de todas as
discordâncias e de todas as nuvens, esta festa deu-lhe uma
exaltação grave. À «sombra», Bertram, foi poupada a obrigação de
receber, no fim, na qualidade de Vice-Magister e conforme o uso, as
felicitações da assistência e a visita das autoridades. O dia
tradicional de congratulações dos estudantes do Jogo das Contas de
Vidro foi, desta vez, suprimido. Logo após o final musical da festa, a
administração tornou pública a morte do Magister e, no Vicus
Lusorum, começaram os dias de luto, aos quais Josef, instalado na
casa dos hóspedes, se associou igualmente. O funeral deste homem
emérito, que ainda hoje goza dum grande prestígio, teve lugar com
a simplicidade em uso em Castália. Bertram, a «sombra», que
reunira as suas últimas forças para cumprir até ao fim o seu difícil
papel durante a festa, compreendeu a situação. Pediu uma licença e
partiu a pé para a montanha.
A aldeia dos Jogadores e até toda a Waldzell estavam de luto.
Talvez ninguém tivesse tido com o defunto Magister relações
estreitas e verdadeiramente amistosas, mas a superioridade, a
pureza e a distinção do seu carácter, somadas à sua inteligência, a
um sentido delicado e refinado das formas, tinham feito dele um
dirigente e uma personagem representativa, como raramente
Castália, que no fundo é de gostos muito democráticos, viu nascer.
Tinham tido orgulho nele. A sua pessoa, estranha às paixões, ao
amor e à amizade, tinha sido um objeto tanto mais indicado para a
necessidade de veneração das gerações ascendentes, e a dignidade,
a graça principesca, que de resto lhe haviam valido a alcunha quase
terna de «Excelência», tinham-lhe granjeado ao longo dos anos, a
despeito de duras resistências, até no conselho superior, nas
reuniões e nas sessões de trabalho da administração do ensino, uma
posição um pouco à parte. Discutiu-se naturalmente com ardor o
problema da sua substituição nas suas altas funções, mas em parte
nenhuma tanto como entre a elite dos Jogadores de Contas de
Vidro. Depois da demissão e da partida da «sombra», cuja queda
este círculo quisera e obtivera, as funções de Mestre foram
entregues, por voto da própria elite, a três suplentes provisórios.
Tratava-se, evidentemente, apenas das funções internas do Vicus
Lusorum e não das funções administrativas no conselho do ensino.
De acordo com a tradição, este não devia deixar o lugar vago
durante mais de três semanas. No caso em que um Magister
moribundo ou demissionário e que deixe um sucessor que não
sofresse nem discussão nem concorrência, o posto tinha mesmo sido
atribuído imediatamente após uma única sessão plenária do
Diretório. Desta vez era provável que durasse mais tempo.
Durante estes dias de luto aconteceu a Josef Knecht falar com o
seu amigo sobre o Jogo que acabava de terminar e sobre os
acontecimentos que o tinham tão singularmente ensombrado.
– Este adjunto, Bertram – disse Knecht –, não só cumpriu
bastante bem o seu papel até ao fim, isto é, tentou até ao fim
desempenhar o lugar de um verdadeiro Magister, mas, em minha
opinião, fez mesmo mais: sacrificou-se a este Ludus sollemnis que
devia ser o último ato, e o mais solene, do seu cargo. Vós fostes
duros, mesmo cruéis para com ele, vós poderíeis ter salvo a festa e
Bertram. Não o fizestes. Não me permito julgar, vós deveis ter tido
as vossas razões. Mas agora que o pobre Bertram se demitiu e que
fizestes prevalecer a vossa vontade, deveríeis ser magnânimos.
Deveríeis, quando ele voltar a aparecer, estender-lhe a mão e provar
que compreendestes o seu sacrifício.
Tegularius abanou a cabeça. – Nós compreendemo-lo – disse – e
aceitámo-lo. Tu tiveste a sorte de assistir desta vez ao Jogo como
convidado imparcial, por isso, de certeza, não seguiste os
acontecimentos de mais de perto. Não, Josef, não teremos outra
oportunidade de traduzir em atos qualquer compaixão por Bertram.
Ele sabe que o seu sacrifício era necessário e não tentará voltar
atrás.
Só então Knecht compreendeu tudo o que ele queria dizer e
calou-se, cheio de tristeza. Dava-se conta de que, com efeito, não
tinha vivido os dias do Jogo como um verdadeiro habitante de
Waldzell e como camarada, mas antes, na realidade, como um
convidado, viu pela primeira vez o que tinha sido o sacrifício de
Bertram. Até aí este aparecera-lhe como um ambicioso que
sucumbira a uma tarefa acima das suas forças, que devia renunciar
aos objetivos ulteriores da sua ambição e procurar esquecer que fora
uma vez a «sombra» dum Mestre e o condutor dum Jogo anual. Só
agora, com as últimas palavras do seu amigo, que o reduziram
bruscamente ao silêncio, compreendera que Bertram tinha sido
condenado sem apelo pelos seus juízes e que não voltaria. Tinham-
lhe permitido dirigir o Jogo solene até ao fim e tinham-no ajudado,
apenas, o bastante para que não houvesse escândalo, mas não fora
por Bertram que o fizeram, mas para poupar Waldzell.
O cargo de «sombra» exigia por conseguinte não apenas a plena
confiança do Magister – e esta não faltara a Bertram – mas, em
igual medida, a da elite, e tinha sido o que o coitado não conseguira
obter. Se cometesse um erro, não tinha atrás de si, como o seu
mestre e modelo, a hierarquia para o proteger. E se os seus antigos
camaradas não o julgassem bastante capaz, não havia prestígio que
lhe viesse em auxílio, e os seus camaradas, os aspirantes, tornavam-
se os seus juízes. Se fossem impiedosos, a «sombra» era executada.
De facto, este Bertram não voltou da sua excursão à montanha.
Passado algum tempo contou-se que dera uma queda mortal num
precipício. Não se ouviu mais falar dele.
Durante esse tempo, todos os dias, altos e altíssimos funcionários
da Direção da Ordem e da administração do ensino apareciam na
aldeia dos Jogadores, e a todo o momento membros da elite, bem
como da administração, eram convocados individualmente para
consultas, de que um ou outro pormenor transpirava, mas somente
no seio da elite propriamente dita. Josef Knecht foi também
chamado por diversas vezes e interrogado: uma vez por dois
senhores da Direção da Ordem, uma vez pelo Mestre da Filologia,
depois pelo senhor Dubois e de novo por dois Magisters. Tegularius,
igualmente convocado para dar algumas informações da mesma
espécie, ficou agradavelmente agitado e entregou-se a brincadeiras
sobre essa atmosfera de conclave, como lhe chamava. Josef notara
já, durante os dias do Jogo, que restava bem pouco das relações
íntimas que outrora tinha tido com a elite e, durante este período do
conclave, sentiu-o ainda mais claramente. Não somente estava
instalado na casa dos hóspedes como um estrangeiro e os altos
funcionários pareciam tratá-lo como um dos seus, como também a
própria elite, o grupo dos aspirantes, o não acolhia com confiança,
como camarada; testemunhava-lhe uma cortesia trocista ou
manifestava quando muito uma frieza expectante. Já quando
recebera a nomeação para Mariafels a elite marcara um recuo, que
era normal e natural: quem deu o passo que separa a liberdade do
serviço, do mundo dos estudantes ou dos aspirantes para o da
hierarquia, deixava de ser um camarada, estava em vias de ser um
superior e um bonzo, já não pertencia à elite e devia saber que, até
nova ordem, esta o observaria criticamente. Isto acontecia a todos
os que estavam na sua situação. Mas impressionou-o especialmente
ver a elite tão distante e tão fria para com ele, em primeiro lugar
porque, agora que perdera o seu chefe e que ia ter um novo
Magister, cerrava duas vezes mais fortemente e mais ciumentamente
as suas fileiras, em seguida porque, no caso da «sombra» Bertram,
a sua inflexível resolução acabava de revelar tanta dureza.
Uma noite, Tegularius chegou a correr, muito emocionado, à casa
dos hóspedes, procurou Josef, levou-o para uma sala vazia, fechou a
porta e exclamou: – Josef! Josef! Santo Deus, eu devia ter
desconfiado, eu devia tê-lo sabido, saltava aos olhos... Ah! Estou
fora de mim e não sei verdadeiramente se devo alegrar-me! – E este
homem, que conhecia muito exatamente todas as fontes de
informações da aldeia dos Jogadores, apressou-se a contar que era
mais do que possível, que estava quase certo de que Josef Knecht
seria eleito Mestre do Jogo das Contas de Vidro. O diretor dos
arquivos, no qual muitos tinham julgado ver um sucessor já
designado do Mestre Thomas, estava já manifestamente excluído,
havia dois dias, dos candidatos de primeiro plano. E dos três
membros da elite cujos nomes vinham até aí à frente em todas as
consultas, nenhum parecia escudado no favor especial ou na
recomendação dum Magister ou da Direção da Ordem, enquanto
dois representantes desta e o senhor Dubois se tinham tornado
campeões de Knecht, a que se juntava uma opinião de peso, a do
antigo Mestre da Música; vários Magisters, sabia-se de certeza,
tinham ido falar com ele pessoalmente nos últimos dias.
– Josef, eles vão nomear-te Magister! – exclamou ainda
impetuosamente.
O seu amigo pôs-lhe a mão sobre a boca. No primeiro momento
Josef não ficara menos surpreendido e menos apanhado que Fritz
por esta suposição, a qual tinha-lhe parecido absolutamente
impossível; mas, a partir do momento em que este o informou do
que se pensava na aldeia dos Jogadores sobre o estado e a evolução
do «conclave», Knecht começou a dar-se conta de que o seu amigo
não ia por mau caminho. Melhor, sentiu na sua alma como que uma
aceitação, teve como que a sensação de que soubera e esperara
isso, que era normal e natural. Pousou portanto a mão na boca do
seu camarada fora de si, lançou-lhe um olhar frio e disse-lhe,
subitamente tornado quase distante e longínquo: – Não fales tanto,
amice; não quero saber desses falatórios. Vai para junto dos teus
camaradas.
Tegularius, apesar do desejo de dizer mais, ficou mudo com
aquele olhar. Era um ser novo, ainda desconhecido, quem o fixava.
Calou-se imediatamente, empalideceu e saiu da sala. Mais tarde
contou que a calma singular e a frieza de Knecht naquele momento
lhe tinham ao princípio sido como uma pancada, uma ofensa, um
puxão de orelhas, duma traição da sua velha e confiante amizade,
duma antecipação dificilmente concebível sobre a sua próxima
posição de chefe supremo que Josef sublinhava pesadamente. Foi só
ao ir-se embora – e saiu verdadeiramente como um cão escorraçado
– que o sentido daquele olhar inolvidável se lhe revelou, um olhar
distante, real, mas também doloroso, e compreendeu que o seu
amigo tinha aceitado aquele dom do destino sem orgulho, com
humildade. Não pudera impedir-se de pensar, contava ele, no olhar
pensativo e na tónica de profunda compaixão que Josef Knecht
tivera quando se informara, pouco tempo antes, de Bertram e do
seu sacrifício. Se tivesse estado pronto, como a «sombra», a
sacrificar-se e a suprimir-se, o rosto que então voltou para o seu
amigo não teria sido mais orgulhoso e humilde ao mesmo tempo,
mais sublime e mais resignado, mais solitário e mais preparado para
o seu destino: dir-se-ia um monumento de todos os Magisters que
Castália tivera. – Vai ter com os teus camaradas – dissera-lhe ele.
Assim, logo no momento em que, pela primeira vez, ouvia falar da
sua dignidade nova, este homem insondável tomava posse da sua
condição e via o mundo a partir do seu novo centro, já não era mais
um camarada e nunca mais o seria.
Knecht teria podido muito bem ter adivinhado esta última e
suprema nomeação ou pelo menos reconhecer a sua possibilidade,
talvez mesmo a sua probabilidade. Contudo, também desta vez,
ficou surpreendido, assustado mesmo. Pensou depois que teria
podido pensá-la e sorriu-se da pressa de Tegularius que igualmente
não estava à espera desde o início, mas que contara com ela e a
predissera vários dias antes de ter sido decidida e notificada. Nada,
com efeito, se opunha à escolha de Josef para essa dignidade
suprema, a não ser talvez a sua juventude. A maior parte dos seus
colegas tinha acedido às suas altas funções com a idade de pelo
menos quarenta e cinco ou cinquenta anos, enquanto Josef ainda
quase nem tinha quarenta. Mas não havia lei nenhuma que proibisse
uma nomeação tão precoce.
Quando Fritz surpreendeu o seu amigo com a revelação do
resultado das suas observações e dos seus cálculos, e eram os dum
Jogador de elite experiente que conhecia nos seus mínimos
pormenores o aparelho complicado da pequena comunidade de
Waldzell, Knecht dera-se imediatamente conta de que ele tinha
razão; compreendeu imediatamente e aceitou a sua eleição e o seu
destino, mas a sua primeira reação foi a de mandar embora o seu
amigo dizendo-lhe que «não queria saber desses falatórios».
Mal o outro saiu, chocado e quase ferido, Josef dirigiu-se para um
sítio onde podia meditar para pôr as suas ideias em ordem. O ponto
de partida dos seus pensamentos foi uma recordação cuja imagem
se lhe impôs nesse momento com um vigor fora do costume. Teve a
visão duma salinha despojada onde se encontrava um piano. Pela
janela entrava uma luz matinal fresca e serena e à porta aparecia
um belo homem simpático, de certa idade, de cabelos a ficarem
grisalhos e de rosto claro cheio de bondade e dignidade. Quanto a
Josef, ele era ele próprio, um aluno da escola de latim que esperara
nessa salinha pelo Mestre da Música, meio ansioso, meio encantado,
e que via pela primeira vez aquela personagem venerável, aquele
Mestre da lendária Província das escolas de elite e dos Magisters,
que viera mostrar-lhe o que era a música, e que depois, passo a
passo, o introduzira, o acolhera na sua Província, no seu império, na
elite, na Ordem, e de quem agora se tornara colega e confrade; o
velho tinha deposto a varinha mágica, ou o cetro, e
metamorfoseara-se num velho amável e taciturno, sempre tão
bondoso, tão venerável e tão misterioso, cujo olhar e exemplo
dominavam a vida de Josef, e que sempre estaria à sua frente uma
geração e alguns degraus na vida, ganhando-lhe distância com uma
margem incomensurável de dignidade e ao mesmo tempo também
de modéstia, de maestria e de mistério, mas que sempre, seu
patrono e modelo, iria docemente obrigá-lo a seguir os seus passos,
tal um astro que, do nascimento ao ocaso, arrasta os seus irmãos
atrás de si.
Durante todo o tempo em que Knecht se abandonou sem ideia
preconcebida ao fluxo das imagens interiores, tais como surgiam,
parentes dos sonhos, foram sobretudo duas representações que
surgiram da corrente e se demoraram mais longamente, duas
imagens ou dois símbolos, duas parábolas. Numa, Knecht, criança,
seguia por todo o tipo de caminhos o Mestre que ia à frente como
um guia e que, de cada vez que se voltava para trás e mostrava a
cara, se tornava mais velho, mais calmo e mais respeitável,
aproximando-se da imagem ideal duma sabedoria e duma dignidade
intemporais, enquanto Josef caminhava devotamente e docilmente
atrás do seu modelo, mas permanecia sempre o mesmo rapazinho;
sentia alternadamente vergonha e também uma certa alegria, quase
uma espécie de satisfação de rebelde. A segunda imagem era a
seguinte: a cena na sala do piano, a entrada do velho que
caminhava para o rapazinho renovavam-se constantemente, sem
fim, o Mestre e a criança seguiam-se como puxados pelo fio dum
mecanismo, se bem que pouco depois se deixasse de reconhecer
quem entrava e quem saía, quem vinha à frente e quem ia atrás, se
o velho, se o rapazinho. Ora parecia que era a criança que
testemunhava à idade, à autoridade e à dignidade, honra e
obediência; ora era aparentemente o velho a quem aquela figura da
juventude, do começo, da jovialidade que corria à sua frente com
passos ligeiros, impunha o dever de a seguir para a servir e adorar. E
enquanto olhava para a roda desse sonho, banalidade cheia de
significado, sentia identificar-se ora com o velho, ora com a criança,
ser ora o adorador e ora o adorado, ora o chefe e ora o súbdito
dócil. E ao longo destas alternâncias móveis, veio um momento em
que foi um e outro, simultaneamente o mestre e o aluno, ou antes,
estava acima deles, era o organizador, o inventor, o condutor e o
espectador dessa roda, dessa corrida à volta, onde jovens e velhos
rivalizavam sem resultado e que, com uma pulsação variável, ora
abrandava, ora se ativava até ao frenesi. E nesse estádio, outra
representação se desenvolveu, já mais símbolo do que sonho, e essa
representação, ou antes essa intuição, era a seguinte: essa
insignificância cheia de sentido, o andar à roda do aluno e do
Mestre, essa corte feita pela sabedoria à juventude, pela juventude à
sabedoria, esse jogo alado que nunca mais acabava, era o símbolo
de Castália, era na verdade o jogo da vida, pura e simplesmente,
correndo sem fim, dividido em jovens e velhos, no dia e na noite, no
Yang e no Yin. A partir daqui, a sua meditação trouxe-o do mundo
das imagens para a calma e, após um longo recolhimento, voltou a
si, reconfortado e sereno.
Quando, alguns dias mais tarde, a Direção da Ordem o convocou,
dirigiu-se para lá com segurança e aceitou com uma gravidade
serena as saudações fraternas dos chefes supremos, a mão
estendida acompanhada com um esboço de abraço. Informaram-no
da sua nomeação para o grau de Mestre do Jogo das Contas de
Vidro e convidaram-no a vir dali a dois dias à sala dos Jogos solenes
para a investidura e a prestação do juramento. Era a mesma sala
onde pouco tempo antes o adjunto do defunto Magister dirigira
aquela cerimónia opressiva, como um animal sacrificado carregado
de ouro. O dia de liberdade que precedia a investidura estava
destinado ao estudo preciso da fórmula sacramental e do «pequeno
regimento dos Magisters», bem como a meditações rituais, sob a
direção e a vigilância de dois funcionários superiores: desta vez, foi
o Chanceler da Ordem e o Magister Mathematicae. Durante a pausa
que cortou ao meio este dia fatigante, Josef lembrou-se
intensamente da sua entrada na Ordem e da sua iniciação prévia
pelo Mestre da Música. Desta vez, na verdade, o rito da admissão
não o fazia entrar como, em cada ano, a centenas de jovens, por um
vasto pórtico numa grande comunidade, tratava-se de penetrar pelo
buraco duma agulha no círculo mais elevado e mais estreito, o dos
Magisters. Mais tarde confessou ao antigo Mestre da Música que
nesse dia de introspeção intensa um pensamento o preocupara, uma
ideiazinha perfeitamente ridícula: tinha estado à espera que um dos
Mestres aludisse ao facto de ser anormalmente jovem para se tornar
titular da dignidade suprema. Tivera de lutar seriamente contra esse
medo, essa ideia duma vaidade pueril, e contra o desejo de lhe
responder, caso fizessem alusão à sua idade: «Deixai-me então
envelhecer em paz, já que nunca lutei por esta promoção.» Mas o
seguimento da sua introspeção mostrara-lhe que,
inconscientemente, a ideia e o desejo de ser nomeado não tinham
podido ser-lhe assim tão estranhos; confessara-o a si mesmo,
reconhecera e repudiara a vaidade do seu pensamento e, na
realidade, nem nesse dia nem depois os seus colegas lhe lembraram
alguma vez a sua idade.
Por esse motivo a escolha do novo Mestre foi, é verdade, ainda
mais vivamente discutida e criticada entre aqueles cujos esforços até
ali Knecht partilhara. Não tinha adversários declarados, mas
concorrentes, e, entre estes, alguns mais velhos do que ele. Neste
círculo estavam dispostos a não aceitar esta escolha a não ser como
resultado dum combate onde ele deveria dar as suas provas, ou pelo
menos dum exame extremamente minucioso e crítico. Não há
nenhum caso em que a entrada em funções, o primeiro período de
atividade dum novo Magister, não tenha de fazer a travessia das
chamas do purgatório.
A investidura dum Mestre não é uma cerimónia pública. Tirando os
mais altos dignitários da administração do ensino e da Direção da
Ordem, os únicos que assistem são os alunos mais velhos, os
aspirantes e os funcionários da disciplina a que pertence o novo
Mestre. Durante a cerimónia na sala de festas, o Mestre do Jogo das
Contas de Vidro devia fazer o juramento do cargo, receber em
seguida da administração as insígnias da função, que consistiam em
algumas chaves e vários selos, e deixar em seguida que lhe fosse
vestido pelo arauto da Direção da Ordem o hábito talar, a toga que o
Mestre deve vestir nas festividades mais importantes e sobretudo
por ocasião da celebração do Jogo anual. Falta, é verdade, a um ato
deste tipo, a amplidão e a leve embriaguez das festas públicas; é,
por natureza, um ato ritual e austero, mas, em contrapartida, a
presença, na totalidade, das duas administrações mais altas confere-
lhe, só por si, uma dignidade pouco comum. A pequena república
dos Jogadores de Contas de Vidro vê ser-lhe dado um novo chefe,
que deve presidi-la e representá-la no seio do Diretório. É um
acontecimento raro e capital. Se bem que os alunos e os jovens
estudantes não se apercebam ainda de todo o significado e não
vejam nesta festa senão uma cerimónia e um prazer para os olhos,
todos os outros participantes estão conscientes da sua importância.
Estão bastante enraizados na sua comunidade e identificaram-se
suficientemente com ela para sentirem este acontecimento como se
interessasse inclusivamente aos seus corpos e às suas vidas. Desta
vez, a alegria da festa foi ensombrada não apenas pela morte e o
luto pelo Mestre precedente mas também pela atmosfera de
angústia do Jogo anual e pelo fim trágico do adjunto Bertram.
A investidura foi dirigida pelo arauto da Direção da Ordem e pelo
arquivista do Jogo de grau mais elevado. Em conjunto, ergueram no
ar o hábito talar e pousaram-no nos ombros do novo Mestre do Jogo
das Contas de Vidro. A curta alocução solene foi feita pelo Magister
Grammaticae, Mestre da Filologia em Keuperheim; um representante
de Waldzell, fornecido pela elite, procedeu à entrega das chaves e
dos selos, e viu-se, de pé junto aos órgãos, o vulto dum velho: o
antigo Mestre da Música em pessoa. Viera assistir à investidura, para
ver o seu protegido vestir o hábito e fazer-lhe uma surpresa com a
sua presença inesperada e talvez para lhe dar também algum
conselho. O velho teria preferido tocar aquela música de festa com
as suas próprias mãos, mas já não podia permitir-se semelhante
esforço, teve de deixá-lo a cargo do organista da aldeia dos
Jogadores; contudo, de pé por trás dele, virava-lhe as páginas.
Ergueu os olhos para Josef com um sorriso cheio de fervor, viu-o
receber a toga e as chaves e ouviu-o pronunciar primeiramente a
fórmula do juramento, em seguida uma alocução aos seus futuros
colaboradores, funcionários e escolares. Nunca aquele rapaz, Josef,
lhe fora tão querido e lhe dera tanto prazer como hoje, em que
quase já deixara de ser Josef e começava ser apenas o titular dum
hábito talar e duma função, uma pedra da coroa, um pilar do edifício
da hierarquia. Mas só pôde falar alguns momentos a sós com o seu
pequeno Josef. Sorriu-lhe alegremente e apressou-se a passar-lhe
este conselho: – Procura chegar ao fim das primeiras três ou quatro
semanas, vão exigir muito de ti. Pensa sempre no conjunto, pensa
sempre que uma falta de pormenor agora não é muito importante.
Tens de te consagrar inteiramente à elite, não ponhas a cabeça em
mais nada. Vão enviar-te dois homens que deverão ajudar-te a
familiarizares-te com a tua tarefa. Um, o Yogin Alexander, recebeu
as minhas instruções; escuta os seus conselhos, ele sabe o que faz.
O que é preciso é que acredites plenamente que os diretores fizeram
bem ao chamarem-te para o meio deles, confia neles, tem uma
confiança cega na tua própria força. Quanto à elite, concede-lhe
alegremente a tua desconfiança, sempre, mantém-te sempre em
guarda, ela não espera outra coisa. Tu vais ganhar, Josef, eu sei.
O novo Magister conhecia já bem a maior parte das funções
magistrais do seu cargo, essas atividades eram-lhe familiares, tinha-
se-lhes já consagrado na qualidade de criado ou de assistente. As
mais importantes eram os cursos de Contas de Vidro, desde os dos
alunos e principiantes, cursos de férias, dos ouvintes livres, até aos
exercícios, conferências e trabalhos de seminário para a elite. Todos
os Magisters nomeados de fresco podiam sentir-se com capacidade
de os enfrentar sem outra preparação, com exceção dos últimos,
enquanto as novas funções, que nunca tiveram oportunidade de
exercer, deviam dar-lhes muitas mais preocupações e esforços.
Assim foi com Josef. Teria preferido consagrar inicialmente todo o
seu zelo precisamente a estes novos deveres, verdadeiramente
magistrais, participar nas sessões do conselho superior do ensino,
colaborar nos trabalhos do conselho dos Magisters e da Direção da
Ordem, dos representantes do Jogo das Contas de Vidro e do Vicus
Lusorum no Diretório geral. Ardia por familiarizar-se com estas novas
atividades e retirar-lhes o seu aspeto ameaçador de coisa
desconhecida. Teria preferido ficar, inicialmente, algumas semanas
afastado para se entregar a um estudo minucioso da constituição,
formalidades, atas das sessões, etc. Para o informar e guiar neste
domínio tinha à sua disposição, para além do senhor Dubois, o
homem mais perito que existia, um mestre do protocolo e das
tradições magistrais: era o arauto da Direção da Ordem que, para
dizer a verdade, não era Magister mas assegurava o bom
funcionamento das sessões do Diretório e nelas fazia respeitar a
ordem tradicional, como o grande mestre de cerimónias na corte
dum príncipe. Como teria gostado de pedir lições a esse homem
experiente, experimentado, impenetrável sob a capa de verniz da
sua cortesia e cujas mãos acabavam de lhe impor solenemente a
toga, se ele residisse em Waldzell e não nessa Hirsland que ficava
bem a meio dia de viagem; como teria gostado de se refugiar algum
tempo em Monteport e deixar-se iniciar nessas coisas pelo antigo
Mestre da Música! Mas era melhor não pensar nisso. Um Magister
não tinha o direito de alimentar desejos de sujeito particular e de
estudante. Antes pelo contrário, era obrigado, nos primeiros tempos,
a consagrar-se, com um cuidado e uma dedicação profundas e
exclusivas, precisamente às funções que pensara não lhe custariam
dificuldade nenhuma. Durante o Jogo solene de Bertram, em que
vira debater-se e sufocar, num espaço por assim dizer privado de ar,
um Magister abandonado pela sua própria comunidade, a elite,
pressentira o que as palavras do velho de Monteport, no dia da sua
investidura, lhe confirmavam, e agora todos os momentos do seu dia
oficial, todos os segundos de reflexão sobre a situação mostravam-
lhe a justeza disso mesmo: era sobretudo à elite e ao grupo dos
aspirantes que devia consagrar-se, aos estudos de grau mais
elevado, aos exercícios de seminário, às relações muito pessoais com
os aspirantes. Podia abandonar os arquivos aos arquivistas, os
cursos de principiantes aos professores existentes, o correio aos
secretários, não seriam cometidos muitos erros. Mas não podia
permitir-se abandonar um único instante a elite a ela própria, devia
consagrar-se-lhe, impor-se-lhe, tornar-se indispensável, convencê-la
do valor das suas capacidades e da pureza das suas intenções; era
preciso conquistá-la, fazer-lhe a corte, ganhá-la para a sua causa,
medir-se com cada um dos candidatos que mostrassem desejo disso,
e estes não faltavam. Várias coisas jogavam a seu favor, e, entre as
que anteriormente julgara pouco propícias, nomeadamente a sua
longa ausência de Waldzell e da elite, onde agora fazia quase figura
de Homo novus. A amizade que o ligava a Tegularius revelou-se,
inclusivamente, útil. Pois Tegularius, o outsider espiritual e
enfermiço, era manifestamente tão pouco feito para uma carreira de
arrivista e parecia ter tão pouca ambição que, se o novo Magister
tivesse manifestado por ele uma preferência qualquer, tal não teria
desmerecido os outros concorrentes. Contudo, era sempre Knecht
quem devia fazer a maior e a melhor parte do trabalho para
conhecer essa classe superior do mundo do Jogo, a mais viva, a
mais inquieta e mais suscetível, para a domar como um cavaleiro a
um cavalo de raça. Com efeito, em cada instituto castaliano e não
apenas no Jogo das Contas de Vidro, a elite dos candidatos, a que
se chama também aspirantes, aqueles cuja formação está concluída
mas que continuam a estudar livremente sem terem ainda entrado
nos serviços da administração do ensino ou da Ordem, constitui o
capital mais precioso, a reserva propriamente dita, a fina flor e o
futuro de Castália, e, em todo o lado e não apenas na aldeia dos
Jogadores, esta seleção orgulhosa das gerações ascendentes tende
bastante a desdenhar e a criticar os professores e os novos
superiores. Quando muito manifesta a um chefe recentemente
promovido um mínimo de cortesia e subordinação, e é preciso
terminantemente que este pague com a sua pessoa para a seduzir,
ganhar, convencer e vencer, antes de ela reconhecer a sua
autoridade e se submeter de boa vontade à sua direção.
Knecht meteu ombros sem temor à tarefa, mas ficou espantado
com a sua dificuldade. Enquanto a ia resolvendo, enquanto ia
ganhando essa parte que exigia de si esforços consideráveis e lhe
desgastava inclusivamente as forças, as outras tarefas e obrigações
com as quais tivera tendência a preocupar-se passaram por si
mesmas para segundo plano e pareceram-lhe exigir menos atenção.
Confessou a um colega ter assistido como num sonho à primeira
sessão plenária do Diretório, para a qual se deslocara por correio
especial para voltar a partir do mesmo modo quando esta terminou;
confessou que de repente não pudera consagrar-lhe um único
pensamento, tanto o seu trabalho o tinha absorvido: e, durante a
sessão propriamente dita, embora o assunto lhe interessasse e
tivesse estado à espera desta reunião com alguma inquietação, pois
era a primeira vez que aparecia no Diretório, deu por si, por várias
vezes, bem longe, em pensamento, dos debates e dos seus colegas,
transportado para Waldzell, para a sala dos arquivos, revestida de
azul, onde, de três em três dias, fazia então exercícios de dialética
com cinco participantes apenas e em que cada hora lhe custava uma
tensão e um dispêndio de forças maiores do que todas as outras
funções do dia. Todavia, estas também não eram fáceis e não tinha
possibilidade de se lhes juntar, pois, tal como o antigo Mestre da
Música lho anunciara, o Diretório tinha-lhe afetado como adjunto,
para os primeiros tempos, um explicador e um controlador que
deviam vigiar o seu dia hora a hora, aconselhar-lhe o horário a
seguir, evitar-lhe ser monopolizado e cansar-se em excesso. Knecht
estava-lhes reconhecido, ainda mais ao delegado da Direção da
Ordem, Mestre da arte da meditação de grande fama; chamava-se
Alexander. Este velava para que Knecht, que trabalhava quase até à
tensão mais extrema do espírito, se dedicasse três vezes por dia ao
«pequeno» ou «curto» exercício e para que a ordem e a duração de
cada uma das sessões fossem meticulosamente respeitadas. Todos
os dias Knecht tinha de fazer, antes da meditação da noite, com
aqueles dois homens, o explicador e o contemplativo membro da
Ordem, uma recapitulação retrospetiva do seu dia oficial, analisar os
progressos e os fracassos, «medir a sua própria pulsação» como
dizem os professores de meditação, isto é, fazer o ponto da sua
situação presente, reconhecer e apreciar o seu estado de saúde, o
equilíbrio das suas forças, suas esperanças e preocupações, ter uma
visão objetiva de si próprio e do seu trabalho do dia, não deixar
nenhum problema por resolver para a noite ou para o dia seguinte.
Enquanto os aspirantes assistiam ao enorme trabalho do seu
Magister com um interesse mitigado de simpatia e agressividade e
não falhavam nenhuma ocasião para lhe impor, de imprevisto,
pequenas provas de força, de paciência e de presença de espírito,
esforçando-se ora para o espicaçar, ora para lhe entravar o trabalho,
um vazio sinistro fizera-se à volta de Tegularius. Este compreendia
certamente que Knecht não estivesse mais em condições de lhe
consagrar a sua atenção, o seu tempo, os seus pensamentos e a sua
simpatia, mas não conseguia armar-se de bastante dureza e
indiferença contra o esquecimento total em que de repente parecia
ter caído da parte do seu amigo. Conseguia-o tanto menos que não
só lhe parecia tê-lo perdido dum dia para o outro, como os seus
camaradas lhe testemunhavam também uma certa desconfiança e
quase mal lhe falavam. Não era para admirar, pois se Tegularius não
podia ser um sério obstáculo no caminho dos ambiciosos, sabia-se
no entanto que tomara partido e que figurava nos papéis íntimos do
jovem Magister. Isto Knecht podia-o muito bem adivinhar e uma das
suas obrigações imediatas era também a de pôr de lado, durante
algum tempo, esta amizade, assim como todos os seus assuntos
privados e pessoais. Mas, tal como o confessou mais tarde ao seu
amigo, não o fez friamente nem intencionalmente; esquecera-se
muito simplesmente de Fritz, tinha-se a tal ponto obrigado a ser um
instrumento que coisas tão privadas como a amizade se esfumavam
no impossível. E quando por acaso, como por exemplo naqueles
exercícios de seminário a cinco, o vulto e a figura de Fritz apareciam
à sua frente, não era Tegularius, não era um amigo, uma relação,
uma pessoa particular, mas antes um membro da elite, um
estudante, ou antes um candidato, um aspirante, um elemento do
seu trabalho e da sua tarefa, um soldado da tropa que se propunha
instruir e com a qual queria vencer. Fritz teve um arrepio da primeira
vez que o Mestre lhe dirigiu a palavra deste modo. Sentira no seu
olhar que aquela frieza e aquela objetividade nada tinham de
fingido, que eram sinceras, temíveis, que aquele homem à sua
frente que o tratava com aquela cortesia prática e aquela grande
vigilância de espírito já não era o seu amigo Josef, mas apenas um
professor e um examinador, o Mestre dos Jogos das Contas de Vidro,
rodeado e fechado na sua gravidade e na austeridade das suas
funções como numa película brilhante de vidro moldada ao fogo e
arrefecida à sua volta. De resto, durante estes seminários
tempestuosos, Tegularius esteve na origem dum pequeno incidente.
Sofrendo de insónia e abalado interiormente pelo que lhe acontecia,
deixou-se ir ao ponto de numa sessão restrita do seminário ter uma
saída deslocada, uma pequena explosão de cólera, não contra o
Magister, mas contra um colega cujo tom trocista lhe fazia nervos.
Knecht notou-o, apercebeu-se também do estado de sobreexcitação
em que se encontrava o delinquente e não se contentou com
chamá-lo à ordem, sem dizer nada, com um sinal do dedo, mas
enviou-lhe em seguida o seu Mestre de Meditação com a missão de
preencher um pouco o seu papel de médico das almas junto daquele
espírito difícil. Após semanas de privações, Tegularius viu nesta
solicitude um primeiro sinal do despertar da sua amizade;
considerou-a, de facto, como uma atenção pessoal e deixou-se tratar
de boa vontade. Na realidade, Knecht quase nem se apercebera de
quem era a pessoa a quem testemunhava essa solicitude, agira
simplesmente como Magister: tendo notado num estudante
nervosismo e falta de contenção, tivera uma reação de educador,
sem se perguntar, por um só momento, quem era aquele aspirante e
que relações tinha com ele. Quando, alguns meses mais tarde, o seu
amigo lhe recordou esta cena e lhe disse até que ponto esta marca
de benevolência o alegrara e consolara, Knecht ficou calado; tinha-
se esquecido totalmente desse caso.
Finalmente, o objetivo foi alcançado e a batalha ganha; tinha sido
uma pesada tarefa vencer aquela elite, cansá-la à força de
exercícios, domar os arrivistas, ganhar para a sua causa os
indecisos, vergar os orgulhosos. Mas agora o trabalho estava feito, o
grupo dos candidatos da aldeia dos Jogadores reconhecera o seu
Mestre e submetera-se-lhe. De repente tudo começou a rolar por si
mesmo, como se só faltasse uma gota de óleo. O explicador
estabeleceu com Knecht um último programa de trabalho, exprimiu-
lhe o reconhecimento do Diretório e desapareceu. O Mestre de
Meditação Alexander fez o mesmo. A massagem da manhã foi
novamente substituída pelo passeio. De momento ainda tinha que
não pensar em coisas como o estudo ou a leitura. Mas à noite, antes
de se deitar, recomeçou em certos dias a fazer no entanto um pouco
de música. A primeira vez que voltou a aparecer no Diretório, Knecht
sentiu claramente, sem que tal questão fosse aflorada, que os seus
colegas doravante consideravam que ele tinha dado as suas provas e
que era seu igual. Depois do ardor e da dureza do combate que
travara para se afirmar, surpreendeu-se, ao acordar, frio e lasso. Viu-
se no centro de Castália, na posição suprema da hierarquia, e, com
uma lucidez singular, quase com deceção, deu-se conta de que, se
este ar empobrecido também se podia respirar, ele, que enchia
agora com esse ar os pulmões como se não conhecesse outro,
transformara-se completamente. Fora o resultado do duro período
de provas que o temperara como nenhum outro serviço, nenhum
outro esforço o fizeram até ali.
Desta vez a elite mostrou com um gesto a aceitação do seu
dirigente. Quando Knecht sentiu que as resistências tinham cessado,
que o grupo dos aspirantes depositava confiança nele e se entendia
com ele, quando viu que o mais duro estava feito, chegou o seu
momento de escolher uma «sombra». E de facto nunca teve tanta
necessidade dela, tanta necessidade de ser aliviado das suas tarefas
do que depois de ter ganho esta vitória e no momento em que a
prova de forças quase sobre-humanas lhe deixou de repente uma
relativa liberdade; fora neste ponto da estrada que mais do que um
se tinha voltado. Mas Knecht renunciou ao direito que lhe era
concedido de escolher entre os candidatos e pediu ao grupo dos
aspirantes que lhe arranjasse uma «sombra» que eles próprios
elegeriam. Ainda sob a impressão da morte de Bertram, a elite levou
esta oferta duas vezes mais a sério, fez a sua escolha ao fim de
várias sessões e consultas secretas e apresentou como adjunto do
Magister um dos seus melhores homens que, até à nomeação de
Knecht, passara por ser um dos candidatos mais em vista ao
Mestrado do Jogo.
Certamente, o mais duro tinha passado, os passeios e a música
voltavam a estar na ordem do dia, com o tempo ser-lhe-ia permitido
voltar a pensar também na leitura, retomar as suas relações
amistosas com Tegularius, trocar de vez em quando cartas com
Ferromonte, teria às vezes meio dia de liberdade, talvez um dia de
licença para fazer uma viagem. Mas estas facilidades todas, outro
qualquer aproveitá-las-ia, mas não o Knecht de antigamente, que se
julgara um Jogador de Contas de Vidro consciencioso e um
castaliano aceitável e que, apesar disso, não fazia ideia nenhuma da
ordenação interna de Castália; tinha vivido num egoísmo ingénuo,
como uma criança a brincar; era inimaginável que pudesse ter tido
uma existência tão privada, tão isenta de responsabilidades. Um dia,
a advertência irónica que provocara ao Mestre Thomas, quando
exprimira o desejo de consagrar ainda mais algum tempo aos
estudos livres, veio-lhe ao espírito: «Algum tempo? Quanto tempo?
Ainda falas a linguagem dos estudantes, Josef.» Fora já há alguns
anos; tinha-o escutado com admiração e um profundo respeito,
também com o ligeiro susto que lhe inspiravam a perfeição
impessoal e a disciplina daquele homem, e sentira que Castália ia
igualmente lançar a sua mão sobre si, que o ia aspirar e fazer de si
um dia talvez um outro Thomas, um Mestre, um dirigente e um
criado, um instrumento perfeito. Ora, agora ocupava o lugar que
fora desse homem, e quando falava com um desses aspirantes, um
desses Jogadores experientes, um desses eruditos sem funções que
se dedicam a todas as ciências, com um desses príncipes esforçados
e altivos, o seu olhar mergulhava noutro mundo, estranhamente
belo, bizarro e revolto, tal como outrora o Mestre Thomas
mergulhara os olhos no seu bizarro universo de estudante.
EM FUNÇÕES

A sua entrada nas funções de Magister parecia, à primeira vista,


ter sido uma perda e não um ganho; absorvera-lhe quase todas as
forças e a sua vida pessoal, aniquilara-lhe todos os hábitos e as suas
preferências de amador, para deixar no seu coração apenas uma
calma fria e na cabeça a vertigem que se segue a um grande
esforço. Mas o período de repouso, de reflexão, de aclimatação que
se seguiu foi todavia também uma fonte de observações e emoções
novas. A maior, depois da batalha que travara, foi a sua colaboração
confiante e amistosa com a elite. Nas trocas de opiniões que teve
com a sua «sombra», no decurso do seu trabalho com Tegularius,
que empregava à experiência para o ajudar na sua correspondência,
ao estudar pouco a pouco, ao controlar e ao completar os boletins e
as outras notas relativas a alunos e a colaboradores que o seu
antecessor lhe deixara, penetrou, rapidamente enamorado, na vida
da elite; tinha julgado conhecê-la bem, mas foi somente então que
descobriu em toda a sua realidade a sua natureza profunda, ao
mesmo tempo que a originalidade da aldeia dos Jogadores e o seu
papel na existência castaliana. É certo que tinha pertencido durante
anos a essa elite, a esse grupo de aspirantes, a essa aldeia dos
Jogadores de Waldzell, tanto artista como ambiciosa, e sentira ser
um seu elemento integrante. Mas agora já não era um elemento
qualquer dela: não só partilhava a vida íntima dessa comunidade
como sentia que, em última análise, era o seu cérebro, a sua
consciência e também a sua consciência moral. Não se contentava
com partilhar dos seus entusiasmos e do seu destino, dirigia-os,
eram da sua responsabilidade. Num instante de exaltação, no fim
dum curso de aperfeiçoamento para professores de Contas de Vidro
do nível elementar, exprimiu-o nestes termos: «Castália constitui um
pequeno Estado autónomo e o nosso Vicus Lusorum um enclave no
interior desse Estado, uma república pequena mas antiga e
orgulhosa. Está no mesmo plano que as suas irmãs e goza dos
mesmos direitos, mas tem de si própria uma consciência mais forte
e mais elevada, pois a natureza particular das suas funções
consagra-a às Musas e dá-lhe uma espécie de carácter sagrado.
Temos na verdade a tarefa insigne de guardar o próprio santuário de
Castália, o seu mistério e o seu símbolo, único no seu género, o
Jogo das Contas de Vidro. Castália forma músicos e historiadores de
arte, linguistas, matemáticos e outros sábios eminentes. Cada
instituto de Castália, cada castaliano, deveria conhecer somente dois
objetivos e dois ideais: realizar a maior perfeição possível na sua
especialidade e manter a esta a sua vida e a sua elasticidade, e
manter também as suas, tendo sempre em espírito o que liga essa
disciplina às outras e cria entre todas elas uma amizade profunda.
Este segundo ideal, a ideia da unidade interna de todos os esforços
espirituais dos homens, a ideia de universalidade, encontrou a sua
expressão perfeita no nosso ilustre Jogo. É possível que em certas
épocas seja necessário que o físico, o musicógrafo ou qualquer outro
homem de ciência se atenham rigorosamente, asceticamente, à sua
especialidade e que uma renúncia à ideia de cultura universal
favoreça nesse momento o esforço que ele leva a cabo. Em todo o
caso, nós, Jogadores de Contas de Vidro, nunca devemos aprovar
nem praticar esta limitação e este narcisismo, pois a nossa tarefa é
precisamente sermos os guardiões da ideia da Universitas
Litterarum, da sua expressão suprema, o nosso nobre Jogo, e de as
preservarmos continuamente dessa tendência das diferentes
disciplinas a contentarem-se com elas próprias. Mas como
poderemos preservar o que não desejaria sê-lo? E como podemos
obrigar o arqueólogo, o pedagogo, o astrónomo, etc., a renunciarem
a entrincheirar-se na sua ciência particular e a abrirem
continuamente janelas para todas as outras disciplinas? Só pela
força dos regulamentos o poderemos conseguir, tornando por
exemplo o Jogo das Contas de Vidro matéria obrigatória desde a
escola, e não o conseguiremos lembrando unicamente o significado
que os nossos antecessores lhe deram. O único meio de provar que
o nosso Jogo é indispensável, e também nós, é mantendo-o
constantemente no cume de toda a vida espiritual, apoderando-nos
com vigilância de cada nova perspetiva, de cada conquista, de cada
questão nova da ciência, indo buscar à ideia de unidade alimento
para a nossa universalidade, e a este Jogo nobre, mas também
perigoso, uma perpétua novidade, uma forma e um movimento tão
graciosos, tão convincentes, tão atraentes, tão cheios de encanto,
que o mais grave dos investigadores e o mais esforçado dos
especialistas sejam obrigados a ouvir constantemente as suas
injunções e a sofrer a sua sedução e a sua atração. Imaginemos que
nós, Jogadores, nos puséssemos a trabalhar durante algum tempo
com menos zelo, que os nossos cursos de principiantes se tornassem
mais aborrecidos e mais superficiais, que os eruditos na matéria
deixassem de encontrar nos Jogos do nível superior a pulsação da
vida, a atualidade e o interesse espirituais, que o nosso grande Jogo
anual desse aos convidados, dois ou três anos seguidos, a impressão
de ser uma cerimónia vazia, uma sobrevivência do passado, inerte,
fora de moda, antiquada, e bem depressa o Jogo teria acabado e
nós com ele! Já não estamos naqueles píncaros brilhantes que o
Jogo das Contas de Vidro atingiu há uma geração. Nessa época, o
Jogo anual não durava uma semana ou duas, mas três, quatro, e era
não só para Castália, mas também para o país inteiro, o ponto
culminante do ano. Hoje ainda há um representante do governo que
assiste ao nosso Jogo anual e muitíssimas vezes com aborrecimento.
Há algumas cidades, algumas classes sociais, que ainda enviam
delegados. Quando as jornadas do Jogo chegam ao fim, os
representantes dos poderes seculares comprazem-se em dar-nos a
entender cortesmente que a duração da nossa festa impede as
cidades de enviarem também as suas deputações e que talvez fosse
altura ou de reduzir sensivelmente a duração da cerimónia ou de,
futuramente, a celebrar somente de dois em dois ou de três em três
anos. Pois bem, não podemos opor-nos a esta evolução, ou a este
declínio. É muito possível que o nosso Jogo encontre no exterior, no
século, apenas incompreensão, e que esta festa já só possa ser
celebrada de cinco em cinco anos, ou nem sequer ser celebrada.
Mas o que devemos e podemos impedir é que na sua própria pátria,
na nossa Província, o Jogo perca crédito e valor. Aqui, o combate
que travamos é rico de esperança, alcança sempre novas vitórias.
Todos os dias há jovens alunos de elite que se inscreveram no curso
de Contas de Vidro sem muito ânimo e que o seguem amavelmente
mas sem entusiasmo, e de repente vemo-los, apaixonados pelos
espíritos do Jogo, pelas suas possibilidades intelectuais, pela sua
tradição venerável, pelas suas forças perturbantes, tornarem-se seus
partidários e militantes apaixonados. E todos os anos podemos ver
no Ludus sollemnis sábios ilustres de grande classe que, sabemo-lo,
olham de alto para os Jogadores de Contas de Vidro com os seus
importantes trabalhos e nem sempre desejam o melhor para o nosso
instituto, vemo-los, no Jogo solene, libertarem-se cada vez mais dos
seus preconceitos, deixarem-se ganhar, descontrair e exaltar pelos
encantos da nossa arte, que lhes devolvem a juventude e asas; e,
finalmente, de coração reconfortado e comovido, despedem-se com
palavras de gratidão quase confusa. Consideremos um momento os
meios de que dispomos para realizar a nossa tarefa: vemos um rico
e belo aparelho, bem ordenado, cujo coração e centro são os
arquivos do Jogo, os quais utilizamos todos constantemente com
gratidão e de que todos, do Magister e do arquivista ao último dos
empregados, somos os servidores. O que há de melhor e de mais
vivo no nosso instituto é o velho princípio castaliano da seleção dos
melhores, da elite. As escolas de Castália acolhem os melhores
alunos de todo o país e instruem-nos. Do mesmo modo, na aldeia
dos Jogadores, procuramos selecionar os mais excelentes entre os
que têm o amor e o dom do Jogo, procuramos retê-los e dar-lhes
uma formação cada vez mais perfeita. Os nossos cursos e os nossos
seminários acolhem centenas de alunos e deixam-nos partir, mas aos
melhores aperfeiçoamo-los continuamente para deles fazermos
verdadeiros Jogadores, artistas do Jogo. E cada um de vós sabe que
na nossa arte, assim como em todas as artes, a evolução não
conhece fim, que cada um de nós, a partir do momento em que lhe
é dado pertencer à elite, trabalha toda a sua vida a aperfeiçoar-se, a
afinar-se, a aprofundar o seu espírito e a sua técnica, pertença ou
não à nossa administração. Qualificou-se por vezes de luxo a
existência da nossa elite e declarou-se que não deveríamos formar
mais Jogadores de elite do que os necessários para prover
convenientemente os postos da nossa administração. Mas, em
primeiro lugar, a instituição do funcionalismo não é um fim em si
mesma, em segundo lugar é necessário que cada um seja apto para
a administração; tão-pouco todos os bons filólogos são feitos para o
ensino. Nós, funcionários, sabemos e apesar de tudo sentimos
perfeitamente que o grupo dos aspirantes não é unicamente uma
reserva de Jogadores dotados e experimentados onde vamos
escolher os elementos necessários para preencher as lacunas e
donde sairão os nossos sucessores. Diria mesmo que essa é apenas
uma função acessória da elite dos Jogadores, ainda que insistamos
nela perante os ignorantes sempre que é posto em causa o sentido e
a legitimidade da nossa instituição. Não, os aspirantes não são os
Magisters, os diretores de cursos, os arquivistas de amanhã;
constituem um fim em si, o seu pequeno grupo é verdadeiramente a
pátria e o futuro do Jogo das Contas de Vidro; é aí, nestas poucas
dúzias de corações e cérebros, que o nosso Jogo se desenvolve, se
adapta, que encontra os seus entusiasmos, é aí que tem os seus
combates com o espírito do tempo e das ciências particulares. É
somente aí que o nosso Jogo é verdadeiramente praticado como
deve ser, com o seu justo valor, com o máximo de interesse, é
somente aí, na nossa elite, que é um fim em si e um serviço
sagrado, totalmente isento quer de diletantismo como de vaidade
cultural, tanto de presunção como de superstição. É nas vossas
mãos, aspirantes de Waldzell, que está o futuro do Jogo. Se ele é o
coração e a alma de Castália, vós sois a alma e o núcleo mais vivo
da nossa colónia, vós sois, por conseguinte, verdadeiramente o sal
da nossa Província, o seu espírito, a sua inquietação. Não há perigo
de que os vossos efetivos sejam demasiado elevados, o vosso zelo
veemente, a vossa paixão por este Jogo magnífico demasiado
ardente: aumentai-os, aumentai-os! Para vós, assim como para
todos os castalianos, no fundo só há um perigo contra o qual
devemos todos, diariamente, precaver-nos. O espírito da nossa
Província e da nossa Ordem assenta em dois princípios: a
objetividade e o amor à verdade no estudo e a prática da sabedoria
meditativa e da harmonia. Manter o equilíbrio entre estes dois
princípios é, para nós, sermos sábios e dignos da nossa Ordem.
Amamos as ciências, cada um a sua, mas sabemos que não basta
dedicar-se a uma ciência para se estar totalmente livre do egoísmo,
do vício e do ridículo. A história das ciências conhece inúmeros
exemplos disso, e a figura do Doutor Fausto é a vulgarização literária
desse perigo. Outros séculos refugiaram-se na união do espírito com
a religião, da investigação com o ascetismo; na sua Universitas
Litterarum a teologia era senhora. Aqui é através da meditação, pela
prática dos múltiplos graus do yoga que procuramos exorcisar o
animal em nós e o diabo que se esconde em cada ciência. Ora,
sabei-lo tão bem como eu, o Jogo das Contas de Vidro tem também
o seu diabo que o persegue; este Jogo pode conduzir a um
virtuosismo oco, ao narcisismo das vaidades artísticas, ao arrivismo,
à aquisição de poder sobre os outros e, nessa medida, ao abuso
desse poder. É por isso que temos também necessidade de outra
educação, além da do espírito, e que nos submetemos à moral da
Ordem, não para trocar a vida ativa do nosso espírito pela existência
vegetativa e sonhadora da nossa alma, mas para pelo contrário
sermos capazes dos maiores feitos intelectuais. Não devemos fugir
da vita activa para a vita contemplativa, nem ao contrário, mas
enveredar alternadamente por uma ou por outra, estarmos em
nossa casa em cada uma delas e participarmos em ambas.»
Reproduzimos estas palavras de Knecht – muitos discursos
análogos foram apontados e conservados por alunos – porque
iluminam perfeitamente a conceção que ele tinha das suas funções,
pelo menos durante os primeiros anos do seu cargo. Foi um
professor eminente, de início aliás para seu próprio espanto; o
número impressionante dos apontamentos das suas conferências
que chegaram até nós basta para o mostrar. Uma das descobertas e
das surpresas que logo de início lhe revelaram as suas altas funções
foi a de ter tanto prazer em ensinar e de o fazer facilmente. Knecht
não teria acreditado nisso, pois, até ali, nunca havia
verdadeiramente ansiado por essa profissão. Tinha sido, claro, como
todos os membros da elite, encarregado esporadicamente, quando
era ainda só estudante veterano, de missões de ensino de curta
duração, substituíra professores nos cursos de Contas de Vidro dos
diversos graus e, mais frequentemente ainda, servira de explicador
aos seus alunos, mas nessa altura gostava tanto de estudar
livremente e concentrar-se, na solidão, sobre os seus estudos do
momento, dava tanto valor a estes que considerara sobretudo essas
missões como uma contrariedade importuna, embora fosse já um
professor hábil e amado. Tinha também acabado, é verdade, de
fazer cursos no mosteiro dos Beneditinos, mas estes tinham pouca
importância em si mesmos e ele também pouca lhes concedera. O
que aprendia com Frei Jakobus e a relação que tinha com ele
haviam feito com que o restante trabalho lhe parecesse acessório.
Ser bom aluno, aprender, assimilar e cultivar-se, tal tinha sido então
a sua mais alta ambição. Agora o aluno tornara-se professor e fora
sobretudo nesta qualidade que levara a cabo a grande tarefa dos
primeiros tempos do seu cargo, a luta pela autoridade e pela
identificação exata da sua pessoa com a função. Esta luta levou-o à
descoberta de duas coisas: a alegria que se sente em transplantar
para o espírito dos outros as suas próprias aquisições intelectuais e
vê-las ganhar formas e uma irradiação novas, a alegria de ensinar e,
em seguida, a de lutar com a personalidade dos estudantes e
alunos, alcançar e exercer autoridade, ser guia, a alegria de educar.
Nunca as separou e durante o seu cargo não somente formou um
grande número de bons e excelentes Jogadores de Contas de Vidro,
mas, com o seu exemplo, com o seu modelo, com as suas opiniões,
com a sua paciência severa, com a força da sua personalidade e do
seu carácter, tirou deles o que tinham de melhor.
Fez nessa altura uma experiência característica, se todavia nos é
permitida esta antecipação. No início das suas funções ocupou-se
exclusivamente da elite, com os alunos do grau mais elevado, com
estudantes e aspirantes, dos quais muitos eram da sua idade e cada
um já Jogador completo. Progressivamente, logo de início, quando
ficou seguro da elite, começou lenta e prudentemente a retirar-lhe,
de ano para ano, um pouco mais das suas forças e do seu tempo até
que por fim pôde, momentaneamente, abandoná-la quase
inteiramente aos seus homens de confiança e aos seus
colaboradores. Esta evolução durou anos e, de ano para ano,
Knecht, nas conferências, nos cursos e nos exercícios que dirigia,
recuava a gerações escolares mais distantes, mais jovens. Chegou
mesmo, no fim, coisa rara num Magister Ludi, a fazer pessoalmente,
por diversas vezes, os cursos de principiantes para os mais novos,
para alunos escolares por conseguinte, que ainda não eram
estudantes. E quanto mais os seus alunos eram jovem e ignorantes,
mais prazer encontrou em ensinar. Às vezes, durante esses anos, foi-
lhe quase desagradável, custou-lhe um esforço sensível deixar esses
jovens e essas crianças para ir ter com os estudantes e, com mais
forte razão, com a elite. Por vezes sentiu mesmo o desejo de recuar
ainda mais e dirigir-se a alunos ainda mais jovens, àqueles para
quem ainda nem sequer havia cursos nem Jogos de Contas de Vidro.
Acontecia-lhe, por exemplo, desejar ensinar durante algum tempo
latim, canto ou álgebra a rapazinhos de Eschholz ou doutra escola
preparatória. Era um trabalho muito menos intelectual do que
inclusivamente o dos primeiros cursos elementares de Contas de
Vidro, mas nessas aulas teria a ver com alunos ainda mais abertos,
mais maleáveis, mais educáveis, num grau em que o ensino e a
educação estavam mais estreitamente e mais intimamente unidos.
Nos dois últimos anos do seu cargo magistral qualificou-se por duas
vezes, em cartas, como «mestre-escola», lembrando assim que a
expressão Magister Ludi, que há gerações não tinha em Castália
outro sentido que não o de «Mestre do Jogo», designava na origem
simplesmente o mestre-escola.
Não se punha a questão, evidentemente, de realizar estes desejos
de ser mestre-escola, eram sonhos no ar, como se pode sonhar, num
dia cinzento de inverno, com um céu de canícula. Para Knecht, todas
as vias estavam fechadas doravante, os seus deveres estavam
determinados pelo seu cargo, mas como este o deixava em grande
parte responsável pela maneira como entendia cumpri-los, no
decurso dos anos, sem talvez ter disso consciência de início, não
deixou de se interessar pela educação e pelas mais jovens das
gerações que podia alcançar. Quanto mais avançou em idade, tanto
mais a juventude o atraiu. Hoje, pelo menos, temos o direito de o
dizer. Nessa época, um crítico teria dificuldade em descobrir, na
maneira como se desempenhava das suas funções, a mínima marca
de diletantismo e arbitrariedade. O seu cargo obrigava-o de resto a
voltar constantemente à elite e, mesmo em períodos em que
confiava quase inteiramente as sessões de seminário e os arquivos
aos seus auxiliares e à sua «sombra», os trabalhos de longa
duração, por exemplo os concursos anuais de Jogos ou a preparação
do Jogo público, asseguravam-lhe um contacto vivo e quotidiano
com a elite. Um dia, disse, a brincar, ao seu amigo Tegularius: – Há
príncipes que durante toda a vida foram atormentados por um amor
infeliz pelos seus súbditos. O coração lançava-os para os
camponeses, para os pastores, para os artesãos, para os mestres-
escola e os seus alunos, mas era raro verem-nos; estavam sempre
rodeados pelos seus ministros e oficiais, que erguiam como que uma
parede entre eles e o seu povo. É o que acontece também com um
Magister. O Magister gostaria de se aproximar dos homens e só vê
os colegas, gostaria de ver de perto alunos e crianças e só encontra
pessoas instruídas e membros da elite.
Mas adiantámo-nos muito e vamos voltar à época dos seus
primeiros anos como Magister. Depois de ter conseguido estabelecer
relações convenientes com a elite, foi primeiramente o pessoal dos
arquivos que teve de ganhar, como Mestre amável mas vigilante.
Teve de estudar igualmente a estrutura e o funcionamento da
chancelaria, dar-lhe uma certa ordem. Uma quantidade de correio
chegava constantemente, sessões ou circulares do Diretório geral
infligiam-lhe continuamente obrigações e tarefas cuja interpretação
e ordem de prioridade não eram fáceis de encontrar pelo
principiante que ele era. Não era raro tratar-se de problemas que
punham em jogo os interesses das diversas faculdades da Província
e que provocavam os seus ciúmes mútuos, por exemplo questões de
competência. E foi só progressivamente mas com uma admiração
constante que aprendeu a conhecer a função oculta, e ao mesmo
tempo poderosa, da Ordem, alma viva do Estado castaliano e
guardião vigilante da sua constituição.
Passaram-se assim meses de vida austera e sobrecarregada, sem
que no espírito de Josef Knecht houvesse lugar para Tegularius.
Limitava-se, quase por instinto, a encarregar o seu amigo de todo o
tipo de trabalhos, para o preservar duma inação demasiado grande.
Fritz perdera o camarada: dum dia para o outro este tornara-se um
grande senhor e o seu superior mais elevado em grau. Tegularius já
não tinha acesso a ele livremente, devia obedecer-lhe e falar-lhe na
segunda pessoa do plural, tratando-o por «Vossa Grandeza». No
entanto, acolheu as medidas que o Mestre tomou a seu respeito
como marcas de solicitude e atenção pessoais. Solitário, um pouco
lunático, em parte era também estimulado pela ascensão do seu
amigo e pela extrema animação de toda a elite, em parte absorvido
e engrandecido pelos trabalhos que lhe confiavam. O que é um facto
é que suportou melhor esta mudança radical de situação do que ele
próprio julgara, logo no momento em que Knecht, aquando da
notícia da sua nomeação para o grau de Mestre do Jogo das Contas
de Vidro, o afastara da sua presença; por outro lado, Fritz era
bastante inteligente e sensível para ver também, ou pelo menos
para adivinhar, o esforço monstruoso e a prova de força que o seu
amigo devia sofrer nessa altura. Viu-o na fornalha, assistiu à sua
têmpera e é provável que tenha sofrido com o que nisso houvesse
de doloroso, mais vivamente que o próprio paciente. Tegularius
esforçava-se o mais que podia nos trabalhos que lhe atribuía o
Mestre, e, se alguma vez lamentou e ressentiu como uma lacuna a
sua própria fraqueza e a sua incapacidade para as funções de
responsabilidade, foi no momento em que desejou vivamente estar
ao lado do seu ídolo, como ajudante, como funcionário, como sua
«sombra» e levar-lhe a sua ajuda.
Os bosques de faias acima de Waldzell começavam já a colorir-se
de roxo quando um dia Knecht levou um livrinho para o jardim
magistral que ladeava a sua casa, esse jardinzinho que o falecido
Mestre Thomas tanto apreciara e que tantas vezes tratara com as
suas mãos de amador de Horácio. Knecht, como todos os alunos e
os estudantes, imaginara nessa época esse lugar venerável, esse
santuário onde o Mestre descansava e se concentrava, como um
fabuloso asilo das Musas, um Tusculum. Desde que era Magister e
dono daquele jardim, só muito raramente lá estivera. e só com
dificuldade encontraria tempo para dele usufruir. Desta vez veio só
por um quarto de hora, depois do almoço, ofereceu-se apenas o luxo
de andar dum lado para o outro, sem se preocupar, por entre os
grandes arbustos e as árvores pequenas, sob as quais o seu
antecessor aclimatara toda a espécie de plantas meridionais sempre
verdes. Como a sombra fosse já fresca, levou uma cadeira leve de
vime para um sítio onde dava o sol, sentou-se e abriu o livrinho que
trouxera. Era o Calendário de bolso do Magister Ludi que redigira
uns setenta ou oitenta anos antes o Mestre do Jogo das Contas de
Vidro de então, Ludwig Wassermaler, e no qual, a partir daí, cada
um dos seus sucessores tinha corrigido, riscado ou completado
algum ponto, segundo os dados do seu tempo. Este calendário fora
concebido como um vade mecum dos Magisters, especialmente dos
principiantes sem experiência, para os primeiros anos do cargo.
Fazia-os percorrer todo o ano de trabalho, todo o exercício da sua
função, semana após semana, punha-lhes à frente dos olhos as mais
importantes das suas obrigações, descrevendo-as por vezes em
fórmulas pormenorizadas, às vezes, mais explicitamente, juntando-
lhes conselhos pessoais. Knecht procurou a folha da semana em
curso e leu-a atentamente duma ponta à outra. Não encontrou nada
de surpreendente nem de particularmente urgente, mas no fim do
parágrafo vinham estas linhas: «Começa a orientar
progressivamente os teus pensamentos para o próximo Jogo anual.
Parece ser ainda cedo; acharás, talvez. No entanto, aconselho-to: se
não tiveres já um plano para o Jogo, não deixes passar uma
semana, ou pelo menos um só mês sem concentrar os teus
pensamentos nele. Assenta as ideias que te ocorram, leva contigo de
tempos a tempos o esquema dum Jogo clássico quando tiveres meia
hora de liberdade, nem que seja durante uma deslocação de serviço.
Prepara-te, não tentando forçar a vinda de boas ideias mas
simplesmente repetindo para ti próprio muitas vezes, a partir de
hoje, que nos próximos meses te espera uma tarefa bela e solene,
para a qual é necessário que te fortaleças continuamente, te
concentres, te decidas.»
Estas palavras foram escritas algumas três gerações antes por um
sábio velho, mestre da sua arte, numa época aliás em que o Jogo
das Contas de Vidro tinha talvez atingido, no domínio da forma, o
seu grau mais elevado de cultura: tinha-se chegado então, nos
Jogos, a uma elegância e a uma riqueza de ornamentação na
execução como só conheceram o gótico tardio ou, na época do
rococó, a arte da arquitetura decorativa. Durante quase vinte anos
parecera verdadeiramente que se jogava com Contas de Vidro, tinha
sido um Jogo na aparência claro como o vidro é pobre de conteúdo,
de aspeto coquete, orgulhoso, rico em linhas ornamentais delicadas,
uma dança, às vezes mesmo um passo aéreo de funâmbulo sobre os
ritmos mais diferenciados; havia Jogadores que falavam do estilo
dessa época como dum código mágico cuja chave se perdera
entretanto, e outros que o achavam superficial, sobrecarregado de
ornamentos, decadente e sem virilidade. Fora um dos mestres e dos
criadores do estilo desse período que redigira os conselhos e os
avisos bem ponderados e amistosos do calendário dos Magisters. E
Josef Knecht, ao ler as suas palavras pela segunda e terceira vez
com um olho crítico, sentiu no coração uma emoção serena e
agradável, achou-se num estado de alma que lhe pareceu ter
sentido apenas uma vez e nunca mais depois. E, quando refletiu
nisso, descobriu que tal tinha sido durante a meditação que
precedera a sua investidura. Era o estado de alma que dele se
apoderara quando imaginou aquela singular dança de roda, a dança
entre o Mestre da Música e Josef, entre o Mestre e o principiante,
entre a maturidade e a juventude. Fora um homem idoso, já velho,
quem escrevera e pensara aquilo outrora: «Não deixes passar uma
semana...» e «não tentando forçar a vinda das boas ideias». Um
homem que desempenhara as altas funções de Mestre do Jogo das
Contas de Vidro pelo menos vinte anos antes, ou talvez mais, que,
na época desse rococó folgazão enfrentara sem dúvida uma elite
extremamente mimada e emproada, que concebera e celebrara mais
de vinte desses brilhantes Jogos anuais que, então, ainda duravam
quatro semanas, um velho para quem a obrigação, todos os anos
renovada, de compor um grande Jogo solene já não representava,
havia muito tempo, simplesmente uma grande honra e uma alegria,
mas antes um fardo e uma pena pesada, uma tarefa para a qual era
preciso deitar mãos à obra, arranjar coragem, estimular-se um
pouco. Knecht não sentia apenas por aquele sábio velho, aquele
conselheiro cheio de experiência, um respeito grato, pois o seu
calendário fora já para ele um guia precioso, mas sentia por ele
também um sentimento de superioridade alegre, divertido mesmo e
orgulhoso, o da superioridade da sua juventude. Pois, entre as
inúmeras preocupações dum Mestre do Jogo das Contas de Vidro de
que tinha já experiência, uma havia que ainda não conhecia: a de
que nunca seria cedo de mais para pensar no Jogo anual, que para
semelhante Jogo pudesse faltar à pessoa ânimo ou até ideias. Não,
Knecht, que nesses meses dera por vezes a impressão de ser muito
velho, sentiu nesse momento a sua juventude e a sua força. Não
pôde abandonar-se por muito tempo a esse sentimento agradável,
saboreá-lo, pois o seu curto descanso estava já quase terminado.
Mas esta bela impressão de alegria não se apagou; levou-a consigo
e, deste modo, esta curta pausa no jardim magistral e a leitura
daquele calendário trouxeram-lhe apesar de tudo alguma coisa e
fizeram nascer nele uma inspiração. Foi mais do que uma pausa e
um breve sentimento exaltado e feliz de vitalidade: vieram-lhe
também duas ideias que imediatamente se transformaram em
decisões. Em primeiro lugar decidiu que quando um dia fosse velho
e cansado resignaria das suas funções logo no primeiro momento
em que a composição do Jogo anual passasse a ser para si um fardo
e tivesse dificuldade em ter ideias. Em seguida, resolveu começar
imediatamente os trabalhos para o seu primeiro Jogo anual e
chamar Tegularius como camarada e principal assistente para essa
tarefa: seria para o seu amigo uma satisfação e uma alegria; quanto
a si, tentaria insuflar deste modo uma nova vida naquela amizade de
momento paralisada. Com efeito, não era Tegularius que podia
tomar essa iniciativa nem assegurar o reatamento: tal devia provir
de si, do Magister.
Isso daria mesmo muito que fazer ao seu amigo. Knecht
amadurecia com efeito, desde Mariafels, a ideia duma partida de
Contas de Vidro que se propunha utilizar no primeiro Jogo solene da
sua função.
Esse Jogo, e nisso residia a beleza do seu achado, devia ter como
base da sua estrutura e das suas proporções o velho esquema
confuciano ritual do plano duma casa chinesa: orientação segundo
os quatro pontos cardeais, os portais, as paredes dos espíritos, as
relações e a finalidade das construções e dos pátios, a sua
ordenação em relação aos astros, ao calendário, à vida familiar, a
que se acrescentavam o simbolismo e as regras de estilo do jardim.
Num dia em que estudava um comentário do I Ching revelara-se-lhe
que a ordem mística e o significado dessas regras constituíam um
símbolo particularmente significativo e agradável do cosmo e do
lugar reservado ao homem no universo. Achava também que o
espírito popular dos mitos da alta antiguidade maravilhosamente se
fundia, na tradição da construção duma casa, com o espírito de
especulação erudita dos mandarins e dos Magisters. Sem recolher
apontamentos, é verdade, agitara em si mesmo muitas vezes e com
bastante deleite a ideia desse plano de Jogo, para o ter, em suma,
completo no seu pensamento; mas desde que entrara em funções
nunca mais conseguira ocupar-se com ele. Prontamente, tomou
então a decisão de construir o seu Jogo solene com base nessa ideia
chinesa. Fritz deveria começar imediatamente, se todavia o seu
espírito se revelasse aberto à ideia, estudar-lhe o desenvolvimento e
tomar as medidas preparatórias para a sua transcrição na língua do
Jogo. Mas havia um obstáculo: Tegularius não sabia chinês.
Aprendê-lo? Era tarde de mais. Mas, segundo as indicações que o
próprio Knecht e o Instituto do Extremo Oriente lhe dessem,
Tegularius podia perfeitamente, com a ajuda dos livros, penetrar no
simbolismo mágico da casa chinesa; não se tratava dum trabalho de
linguista. Contudo, era necessário tempo, sobretudo para um
homem mimado como o seu amigo, e que nem todos os dias tinha
vontade de trabalhar; era, por conseguinte, melhor ocupar-se
imediatamente deste assunto. Por consequência, reconhecia-o
sorrindo e agradavelmente surpreendido, o velho senhor prudente
do calendário de bolso não deixava de ter razão.
Logo no dia seguinte, como as suas horas de receção
terminassem muito cedo, convocou Tegularius. Este veio, fez a sua
vénia com a expressão de dedicação e humildade acentuadas a que
se acostumara em relação a Knecht, e ficou muito admirado quando
este, muito lacónico e avaro de palavras, o saudou com um sinal de
cabeça um pouco trocista e lhe perguntou: – Lembras-te ainda
daquela querela que tivemos uma vez os dois, quando éramos
estudantes, e eu não consegui converter-te ao meu ponto de vista?
Discutíamos o valor e a importância do estudo do Extremo Oriente,
em particular da China, e eu queria que tu fosses de vez em quando
ao Instituto e aprendesses chinês. Sim, lembras-te? Pois bem, hoje
lamento não ter conseguido fazer com que mudasses de opinião.
Como seria bom que soubesses chinês! Poderíamos fazer os dois o
mais maravilhoso dos trabalhos. – E continuou a brincar um pouco
com o seu amigo, espevitou a sua curiosidade, antes de abordar
finalmente a sua proposta: pretendia, disse-lhe, começar
brevemente a elaborar o grande Jogo, e Fritz deveria, se tal lhe
desse prazer, executar uma grande parte desse trabalho, como
outrora tinha ajudado Knecht a elaborar o Jogo destinado ao
concurso solene quando estava nos Beneditinos. O outro lançou-lhe
um olhar quase incrédulo, profundamente surpreendido e já
deliciosamente tranquilizado pelo tom trocista e o rosto sorridente
do seu amigo, que já só conhecia no papel de grande senhor e
Magister. Comovido e cheio de alegria, não foi sensivel somente à
honra e à confiança expressa por esta oferta, compreendeu e viu
logo o que significava este belo gesto; era uma tentativa de curar a
chaga, de voltar a abrir a porta que se fechara entre o seu amigo e
ele. Não se deteve nos temores que Knecht manifestava quanto ao
chinês, declarou-se imediatamente pronto a colocar-se à inteira
disposição do Venerável Mestre e a consagrar-se à elaboração do
seu Jogo. – Muito bem – disse o Magister –, aceito a tua promessa.
Assim, seremos outra vez, em determinadas horas, camaradas de
trabalho e de estudos como dantes, naquela época estranhamente
distante em que ambos elaborámos e fizemos triunfar muitos Jogos.
Isso dá-me prazer, Tegularius. E agora é preciso, em primeiro lugar,
que compreendas o sentido da ideia sobre a qual quero construir
este Jogo. Será necessário que compreendas o que é uma casa
chinesa e o que significam as regras prescritas para a construir. Vou
dar-te uma recomendação para o Instituto do Extremo Oriente, onde
te ajudarão. Ou então... ocorre-me outra ideia, ainda mais bela...
poderíamos dirigir-nos ao Irmão Mais Velho, o homem do Bosque
dos Bambus, de que tanto te falei nessa época. Talvez ele julgue
acima da sua dignidade, ou que é demasiado incómodo, travar
relações com uma pessoa que não sabe chinês, mas deveríamos
apesar de tudo tentar. Se ele quiser, esse homem é capaz de fazer
de ti chinês.
Mandou uma mensagem ao Irmão Mais Velho, convidando-o
cordialmente a ser por algum tempo hóspede do Mestre do Jogo das
Contas de Vidro, em Waldzell, pois as funções deste não lhe
deixavam tempo para lhe fazer uma visita, e informando-o do
serviço que se esperava dele. Mas o chinês não saiu do seu Bosque
dos Bambus, o mensageiro trouxe em vez dele um bilhetinho,
pintado com tinta-da-china em caracteres chineses, e que dizia:
«Seria uma grande honra ver o grande homem. Mas deslocar-me
cria dificuldades. Empreguem-se para o sacrifício dois pratinhos. O
mais jovem saúda o altíssimo.» Knecht conseguiu então, não sem
dificuldade, que o seu amigo se decidisse a fazer uma visita ao
Bosque dos Bambus e pedisse para ser recebido e instruído. Mas
esta viagem não teve êxito. O eremita do bosque acolheu Tegularius
com uma cortesia quase obsequiosa, mas sem responder a nenhuma
das suas perguntas, a não ser com amáveis sentenças em chinês e
sem o convidar a ficar, a despeito da sua magnífica carta de
recomendação, pintada em belo papel, pela própria mão do Magister
Ludi. Fritz voltou a Waldzell sem ter cumprido a sua missão e de
bastante mau humor. Trouxe de presente ao Magister uma folha
onde estava pintado um verso antigo por cima de um peixe de ouro.
E teve de ir procurar a sua sorte no Instituto do Extremo Oriente. Aí,
as recomendações de Knecht foram mais eficazes, ajudaram o
solicitante, embaixador dum Mestre, com a maior solicitude, que não
tardou a ficar tão perfeitamente informado sobre o seu assunto
quanto era possível sê-lo sem o chinês. Esta ideia de Knecht de
tomar para base do seu plano o simbolismo da casa agradou-lhe
tanto que se consolou do seu fracasso do Bosque dos Bambus e o
esqueceu.
Quando Knecht ouviu o relatório do infeliz que não fora recebido
pelo Irmão Mais Velho e seguidamente leu, a sós, o verso que
encimava o peixe de ouro, a atmosfera que rodeava aquele homem
e a lembrança da estada que outrora tinha feito na sua cabana dos
bambus oscilantes, à frente daqueles pauzinhos de mil-folhas,
voltaram-lhe à memória, com uma força penetrante, a lembrança da
liberdade, dos tempos livres, dos anos de estudante e do paraíso
multicolorido dos seus sonhos de juventude. Como esse corajoso
eremita fantástico soubera encontrar um retiro sem perder a
liberdade, como o seu silencioso Bosque dos Bambus o protegia do
mundo! Com que profundidade e com que vigor se consagrava ao
ideal do chinês asseado, pedante e sábio que se tornara a sua
segunda natureza, em que retiro, em que concentração, em que
hermetismo a magia do sonho da sua vida o mantinha cativo, ano
após ano, decénio após decénio, transformando o seu jardim na
China, a sua cabana num templo, os seus peixes em divindades e
ele próprio em sábio! Com um suspiro Knecht abandonou esta
imagem. Tinha tomado uma via diferente, ou antes, tinha sido
conduzido para ela, e a única coisa que importava era agora
percorrer fielmente e a direito o caminho traçado, e não a sua
comparação com o de outros.
Na companhia de Tegularius esboçou e compôs o seu Jogo, nas
horas que para isso tinha reservadas, e abandonou ao seu amigo
todo o trabalho de seleção a fazer nos arquivos, bem como o
cuidado da primeira e da segunda versões. Este alimento novo deu
vida e forma à sua amizade, que se tornou outra, e o Jogo em que
trabalhavam sofreu igualmente, nas mãos originais e na imaginação
inventiva daquele ser singular, toda a espécie de transformações e
enriquecimentos. Fritz era desses homens nunca satisfeitos e no
entanto sem exigências que, perante um ramo de rosas acabadas de
colher, perante uma mesa posta, que para qualquer outro estariam
prontas e perfeitas, acha ainda meio de se atarefar durante horas
numa voluptuosa agitação, arranjando tudo sem tréguas, com amor,
e que sabem fazer do mais pequeno trabalho a obra dum dia levado
a cabo com diligência e fé. Nos anos seguintes esta fórmula foi
também adotada: o grande Jogo solene foi, em cada ano, obra de
duas pessoas e, para Tegularius, foi uma dupla satisfação tornar-se
útil, indispensável mesmo, ao seu amigo e Mestre num assunto tão
importante e assistir à manifestação pública do Jogo como
colaborador anónimo mas perfeitamente conhecido da elite.
No fim do outono desse primeiro ano de funções, quando ainda o
seu amigo estava no início dos seus estudos sobre a China, o
Magister, percorrendo rapidamente as indicações lançadas na sua
agenda pela chancelaria, caiu sobre uma anotação: «Estudante
Petrus, de Monteport, chega com uma recomendação do Mestre da
Música, é portador dos mais cordiais cumprimentos do antigo Mestre
da Música, pede para ser alojado e ter acesso aos arquivos. A ser
alojado na casa dos hóspedes dos estudantes.» Podia confiar
tranquilamente às pessoas dos arquivos o que dizia respeito ao
estudante e ao seu pedido, era um caso banal. Mas dos «muito
cordiais cumprimentos do antigo Mestre da Música» só ele podia
encarregar-se. Mandou chamar o estudante; era um jovem de
aspeto ao mesmo tempo minucioso e apaixonado, mas taciturno,
que fazia manifestamente parte da elite de Monteport; pelo menos
parecia habituado a ser recebido em audiência por um Mestre.
Knecht perguntou-lhe que comissão o antigo Mestre da Música lhe
dera para ele. – Os seus cumprimentos – disse o estudante –, os
seus cumprimentos muito cordiais e respeitosos, Venerável Magister,
e também um convite. – Knecht pediu ao seu convidado que se
sentasse. Escolhendo cuidadosamente as palavras, o jovem
prosseguiu: – O antigo e Venerando Mestre pediu-me
insistentemente que transmitisse os seus cumprimentos a Vossa
Grandeza. Exprimiu o desejo de um dia vos ver lá, o mais cedo
possível. Convida Vossa Grandeza ou sugere-lhe que o visite muito
proximamente se porventura essa visita puder incluir-se numa
deslocação de serviço e não implicar uma grande perda de tempo.
Tais são, mais ou menos, os termos do recado de que me
encarregou.
Knecht lançou a este jovem um olhar inquiridor; era certamente
um dos protegidos do velho. Perguntou-lhe prudentemente: –
Quanto tempo contas passar nos nossos arquivos, studiose? – E
recebeu esta resposta: – Exatamente até ao momento, Venerável
Mestre, em que vir Vossa Grandeza a caminho de Monteport.
Knecht refletiu. – Muito bem – disse. – E porque é que não me
deste a conhecer, nos seus termos exatos, o que o antigo Mestre te
encarregou de me dizer, como seria de esperar?
Petrus aguentou obstinadamente o olhar de Knecht e apresentou
lentamente as suas razões, continuando a procurar prudentemente
as palavras, como se tivesse de se exprimir numa língua estrangeira.
– Não fui encarregado de nada, Venerável Mestre – disse –, e não
existem termos exatos. Vossa Grandeza conhece o meu Venerando
Mestre e sabe que ele foi sempre um homem duma modéstia
excecional. Conta-se em Monteport que no tempo da sua juventude,
quando ainda era aspirante mas já passava, entre toda a elite, por
ser o futuro Mestre da Música, o alcunharam de «o boi que quer
passar por rã». Ora, esta modéstia e, em igual grau, a sua piedade,
a sua prestabilidade, o seu respeito humano e a sua tolerância
aumentaram ainda mais com a velhice e sobretudo desde que
resignou das suas funções, Vossa Grandeza sabe-o certamente
melhor do que eu. Esta modéstia proibir-lhe-ia por exemplo pedir a
Vossa Grandeza que o visitasse, mesmo que esse fosse o seu maior
desejo. E assim sendo, Domine, não tive a honra de ser encarregado
dum recado deste género e tão-pouco agi como se tal me tivesse
sido dado. Se foi um erro, pertence-vos considerar como realmente
inexistente esta comissão que não existe.
Knecht teve um leve sorriso: – E o que tens a fazer nos arquivos
do Jogo, meu bom amigo, era só um pretexto?
– Oh, não. Tenho de investigar um certo número de claves e, de
qualquer modo, muito proximamente ir-me-ia ser necessária a
hospitalidade de Vossa Grandeza. Mas pareceu-me oportuno avançar
antes um pouco a data desta viagenzinha.
– Muito bem – opinou o Mestre, novamente grave. – Pode saber-
se a causa dessa mudança de data?
O jovem fechou durante um momento os olhos, a testa lavrou-se-
lhe de rugas profundas, como se a pergunta o torturasse. Em
seguida, voltou a olhar de frente para o Mestre, com os olhos
inquiridores e críticos próprios dos jovens.
– Não me é possível dar uma resposta a essa pergunta, a menos
que Vossa Grandeza decida formulá-la ainda com mais precisão.
– Pois bem, seja – exclamou Knecht. – O estado de saúde do
antigo Mestre é mau, causa inquietações?
Se bem que o Magister tivesse falado com a maior calma, o
estudante notou que grande inquietação afetuosa ele sentia por
aquele velho. Pela primeira vez desde o começo da entrevista um
raio de benevolência iluminou o seu olhar um pouco sinistro e a sua
voz ganhou uma tonalidade levemente mais amável e mais direta
quando se viu no dever de expor francamente o seu pedido.
– Tranquilizai-vos, Senhor Magister – disse. – A saúde do
Venerando não é de modo nenhum má, ele foi sempre um homem
duma saúde exemplar e é-o ainda, se bem que com a idade
avançada esteja naturalmente muito enfraquecido. Não é que tenha
mudado sensivelmente de aspeto, nem que as suas forças tenham
declinado mais rapidamente: dá passeios pequenos e todos os dias
toca um pouco de música. Há pouco tempo ainda dava lições de
órgão a dois alunos, principiantes, pois sempre gostou de se rodear
de crianças. Mas quando, há algumas semanas, renunciou a ver
mesmo esses dois últimos alunos, foi, apesar de tudo, um sintoma
que me chocou, e, a partir daí, observei o meu Venerando Mestre
um pouco mais de perto e fiquei preocupado com ele. É esta a causa
da minha vinda aqui. Se alguma coisa me autoriza a ter estas ideias
e esta empresa, é que fui aluno do antigo Mestre da Música, uma
espécie de discípulo preferido, se ouso dizê-lo, e que o seu sucessor
me delegou já há quase um ano para desempenhar o papel duma
espécie de famulus, fazer-lhe companhia. Encarregou-me de velar
por ele. Para mim é uma missão muito agradável, pois não há outro
homem por quem nutra tanta veneração e amizade do que pelo meu
antigo Mestre e protetor. Foi ele quem me abriu o espírito ao
mistério da música e me tornou capaz de a servir; o que pude
adquirir noutros sítios, as minhas ideias, a inteligência que tenho na
nossa Ordem, a maturidade e a disciplina interior, tudo isso veio
igualmente dele, é obra dele. Assim, faz já quase um ano, vivo
inteiramente em sua casa, ocupando-me, é verdade, com alguns
estudos e aulas, mas sempre à sua disposição, fazendo-lhe
companhia à mesa, acompanhando-o nos passeios, às vezes
também quando toca música, e dormindo à noite separado dele pela
espessura duma parede. Partilhando a sua vida de tão perto, posso
observar muito exatamente os estados do seu... enfim, do seu
envelhecimento, devo dizê-lo, do seu envelhecimento fisiológico e,
de tempos a tempos, alguns dos meus camaradas entregam-se a
comentários piedosos ou irónicos sobre as singulares funções que
fazem de um homem tão jovem como eu criado e companheiro de
vida dum grande velho. Mas eles não sabem, e ninguém sem dúvida
exceto eu o sabe, como é dado àquele Mestre envelhecer, quanto o
seu corpo se torna pouco a pouco cada vez mais fraco e caduco:
come cada vez menos, regressa sempre mais fatigado dos passeios,
sem no entanto estar doente, e ao mesmo tempo, no silêncio da sua
velhice, continua a ter muito espírito, fervor, dignidade e
simplicidade. Se as minhas funções de famulus ou de enfermeiro
apresentam algumas dificuldades, elas provêm unicamente do facto
de o Venerando Mestre nunca desejar ser servido nem tratado; ele
desejaria sempre apenas dar e nunca tomar.
– Agradeço-te – disse Knecht. – Agrada-me saber que um
discípulo tão dedicado e tão reconhecido está junto do Venerando.
Mas, uma vez que não falas em nome do teu Mestre, diz-me enfim
claramente porque é que a minha visita a Monteport te é tão
importante?
– Vossa Grandeza informou-se ainda agora com preocupação da
saúde do antigo Mestre da Música – respondeu o jovem –, pois o
meu pedido vos fez aparentemente pensar que ele estava doente e
que afinal poderia ser tempo de ir vê-lo pela última vez. Pois bem,
creio que é agora. O Venerando Mestre não me parece, para dizer a
verdade, estar a morrer, mas a sua maneira de se despedir do
mundo é verdadeiramente especial. Assim é que há meses quase
perdeu inteiramente o hábito de falar e, ainda que sempre tenha
preferido os discursos curtos aos longos, atingiu agora uma concisão
e um silêncio que me assustam um pouco. Quando lhe aconteceu
deixar cada vez mais frequentemente sem resposta uma fala ou uma
pergunta que lhe dirigia, pensei ao princípio que ele começava a
ficar surdo, mas ele ouve tão bem como sempre, verifiquei-o mais
do que uma vez. Então, fui levado a supor que era distração e que já
não conseguia concentrar-se muito bem. Mas também não é
explicação suficiente. Creio antes que, desde há muito, está, por
assim dizer, a caminho, já não vive inteiramente entre nós, mas cada
vez mais no seu universo pessoal; assim foi que acabou por fazer
cada vez menos visitas e receber também cada vez menos.
Presentemente, fora eu, já não vê ninguém durante todo o dia. E
desde que isto começou, esta maneira de se afastar do mundo, de
não mais estar aqui, esforcei-me por lhe levar ainda uma vez mais
os poucos amigos que sei que ele mais amou. Se Vossa Grandeza
quer fazer-lhe uma visita, Domine, será sem dúvida alguma uma
alegria para o seu velho amigo, estou certo disso, e encontraríeis
ainda, em suma, o mesmo homem que venerastes e amastes. Daqui
a alguns meses, ou até semanas, a alegria que sentirá em ver Vossa
Grandeza e a simpatia que lhe testemunhará serão bem modestas, é
mesmo possível que já não vos reconheça ou que não vos dê
nenhuma atenção.
Knecht ergueu-se, aproximou-se da janela e ficou um momento
parado a olhar lá para fora e procurando o fôlego. Quando se voltou
para o estudante, este tinha-se levantado da cadeira, como se
considerasse terminada a audiência. O Magister estendeu-lhe a
mão.
– Muito obrigado, Petrus – disse. – Deves saber que um Magister
tem obrigações de toda a espécie. Não posso, dum momento para o
outro, pegar no chapéu e fazer uma viagem, primeiramente tenho
de repartir o trabalho e tornar a coisa possível. Espero consegui-lo
para depois de amanhã. Seria suficiente para ti, terás terminado
aqui os teus trabalhos nos arquivos? Sim? Então mandar-te-ei
chamar quando chegar o momento.
Knecht partiu efetivamente alguns dias depois para Monteport,
acompanhado de Petrus. Quando entraram no pavilhão que o antigo
Mestre da Música ocupava nos jardins, um gracioso eremitério
perfeitamente tranquilo, ouviram música, na sala das traseiras, uma
música delicada, ténue, mas precisa de ritmo e duma delicada
serenidade. O velho estava sentado e tocava com dois dedos uma
melodia a duas vozes. Knecht adivinhou imediatamente que devia
ser extraída duma das recolhas de motetes a duas vozes do fim do
século XVI. Ficaram imóveis até ele acabar, em seguida Petrus
chamou pelo Mestre, anunciou-lhe o seu regresso e disse-lhe que
tinha trazido consigo uma visita. O velho apareceu no limiar da porta
e saudou-os com o olhar. Aquele sorriso com que o Mestre da
Música acolhia as pessoas e que todos amavam fora sempre um
sorriso que se oferecia, radioso de franqueza infantil, cheio de
cordialidade e gentileza; a primeira vez que Josef Knecht o vira,
trinta anos antes, o seu coração abrira-se, dera-se àquele homem
amável durante aquela sessão matinal cheia de felicidade ansiosa na
sala de música, e muitas vezes depois disso voltara a ver esse
sorriso, sempre com uma alegria profunda e uma emoção singular.
Enquanto os cabelos daquele amável Mestre se tornavam pouco a
pouco completamente grisalhos, uma vez que embranqueciam
lentamente, e a voz se lhe tornava mais surda, a mão mais fraca, o
andar mais penoso, o sorriso nada tinha perdido da sua clareza e da
sua graça, da sua pureza e da sua profundidade. E desta vez, o
amigo, o discípulo via-o, sem poder duvidar: a mensagem radiante,
conquistando aquele rosto sorridente de velho, cujos olhos azuis e o
doce rosado das faces não tinham deixado de empalidecer com os
anos, não era somente o antigo rosto que tantas vezes vira, tornara-
se mais profundo, mais secreto, mais intenso. Foi somente então, ao
saudá-lo, que Knecht começou a compreender realmente o pedido
do estudante Petrus e a ver até que ponto, julgando sacrificar-se,
recebia um dom.
O seu amigo Ferromonte, que foi visitar algumas horas mais tarde
– Ferromonte era então conservador da célebre biblioteca musical de
Monteport –, foi a primeira pessoa com quem falou disso. Este
registou numa carta a conversa que nesse momento tiveram.
– O nosso antigo Mestre da Música – disse Knecht – foi teu
professor e tu gostavas muito dele; ainda o vês com frequência?
– Não – exclamou Carlo –, isto é, não é raro vê-lo, naturalmente,
por exemplo quando dá o seu passeio e eu saio da biblioteca, mas
há meses que não falo com ele. Ele vive cada vez mais retirado e já
não parece suportar companhia. Dantes reservava um serão para as
pessoas como eu, seus antigos aspirantes que são agora
funcionários em Monteport; mas há já quase um ano que isso
acabou, e ficámos todos extremamente surpreendidos quando ele foi
assistir à investidura de Sua Grandeza, a Waldzell.
– Sim – disse Knecht –, mas se mesmo assim o vês às vezes, não
notaste nele nenhuma mudança?
– Oh! sim! Vossa Grandeza quer dizer a sua expressão, a sua
serenidade, a sua curiosa radiância? Notámo-lo, naturalmente.
Enquanto as suas forças declinam, a sua serenidade não deixa de
crescer. Habituámo-nos, mas isso não podia deixar de impressionar
Vossa Grandeza.
– O seu famulus Petrus vê-o, no entanto, muitas mais vezes do
que tu – exclamou Knecht –, mas não se habituou a isso, como tu
dizes. Fez por sua própria recriação a viagem a Waldzell, sob um
motivo plausível, naturalmente, para me obrigar a fazer esta visita.
Que pensas dele?
– De Petrus? É um muito bom musicógrafo, do género pedante,
aliás, em vez de genial, um rapaz um pouco pesado ou fleumático.
Dedicou-se de corpo e alma ao antigo Mestre da Música e deixar-se-
ia matar por ele. Creio que está todo inchado com o serviço que tem
junto do seu Mestre adorado, do seu ídolo, está possuído. Vossa
Grandeza não é da mesma impressão?
– Possuído? Sim, mas creio que este jovem não está somente
possuído por uma predileção, por uma paixão, não está
simplesmente apaixonado pelo seu velho Mestre, não faz dele
somente o seu deus, mas antes está possuído e enfeitiçado por um
fenómeno real e autêntico, que vê melhor ou que, por instinto,
compreende melhor do que vós. Vou dizer-te ao que assisti. Vim
portanto hoje a casa do antigo Mestre da Música, que já não via há
seis meses, e, segundo as alusões do seu famulus, não estava à
espera de tirar grande proveito, mesmo nada, desta visita.
Simplesmente, apoderara-se de mim o medo de que aquele
venerável velho viesse subitamente a deixar-nos dentro de pouco
tempo e vim a correr para o ver pelo menos mais uma vez. Quando
me reconheceu e me saudou, o seu rosto iluminou-se, mas disse
somente o meu nome e estendeu-me a mão. E esse movimento,
aquela mão, pareceram-me tão cheios de luz, pareceu-me que de
todo aquele homem, ou pelo menos dos olhos, dos cabelos brancos
e da sua pele cor-de-rosa-claro, emanava uma leve radiação de
frescura. Sentei-me ao lado dele, ele mandou o estudante embora
com um simples olhar e então começou a conversa mais
extraordinária que já tive. Ao princípio, para dizer a verdade, senti-
me muito confuso, e também oprimido e humilhado, pois não parava
de o interpelar ou de lhe fazer perguntas, e não havia nada que ele
honrasse com outra resposta além dum olhar. Eu estava incapaz de
perceber se as minhas perguntas e as minhas declarações lhe faziam
outro efeito além dum ruído fastidioso. Isso enchia-me de confusão,
de deceção, de fadiga, achava-me supérfluo e importuno; dissesse o
que dissesse ao Mestre, não recebia como resposta senão um
sorriso e um curto olhar. Na verdade, se aqueles olhares não fossem
tão bondosos e tão cordiais, teria mesmo pensado que o velho
troçava de mim abertamente, dos meus relatos e das minhas
perguntas, de toda a encenação inútil da minha viagem e da minha
visita. Ora era também algo disso mesmo o que o seu silêncio e o
seu sorriso davam a entender, constituíam efetivamente uma defesa
e uma chamada à ordem, mas duma maneira diferente, num plano
diferente e num sentido diferente do que poderiam fazê-lo por
exemplo ditos irónicos. Tive de esgotar os meus meios e ver falhar
radicalmente todas as tentativas que fazia para iniciar uma conversa,
com uma cortesia cheia de paciência, parecia-me, antes de começar
a compreender que aquele homem era de molde a resistir à vontade
a uma paciência, a uma teimosia e a uma cortesia cem vezes
maiores do que as minhas. Isto deve ter durado bem um quarto de
hora ou meia hora, a mim pareceu-me meio dia, comecei a ceder à
tristeza, ao cansaço, ao descontentamento e a lamentar a viagem; a
boca secou-se-me. Aquele homem venerável, meu protetor, meu
amigo, a quem tinha dado o coração e a minha confiança desde que
aprendera a pensar e que nunca deixara uma palavra minha sem
resposta, estava ali, sentado, a ouvir-me discorrer, ou talvez sem me
ouvir; estava sentado ali e tinha-se escondido completamente e
entrincheirado por trás da sua radiação e do seu sorriso, por trás da
sua máscara de ouro, inacessível, pertencia a outro mundo, regido
por outras leis, e tudo quanto se queria exprimir de mim para ele, do
nosso mundo para o seu, deslizava sobre ele como a chuva numa
pedra. Por fim... Já não tinha mais esperança... atravessou aquela
parede mágica, ajudou-me, disse uma palavra! Foi a única que o
ouvi pronunciar hoje.
«Cansas-te, Josef», disse, muito baixo e com uma voz cheia
daquela gentileza e daquela solicitude comoventes que tu lhe
conheces. E foi tudo. «Cansas-te, Josef.» Como se me tivesse visto
apegar-me muito tempo a um trabalho demasiado árduo e quisesse
avisar-me. Teve alguma dificuldade em pronunciar essas palavras,
como se, desde há muito, já não se servisse dos lábios para falar. Ao
mesmo tempo pousou a mão no meu braço, ela era tão leve como
uma borboleta, olhou-me nos olhos com insistência e sorriu-se.
Nesse momento fui vencido. Algo do seu silêncio sereno, da sua
paciência e da sua calma passou para mim, e de repente
compreendi plenamente aquele velho e a viragem que tinha sofrido
o seu ser, trocando os homens pelo silêncio, a palavra pela música, o
pensamento pela unidade. Compreendi o que me fora dado
contemplar ali e comecei então também a compreender aquele
sorriso, aquela irradiação. Ele era um santo, um ser que alcançara a
perfeição, que me permitia ficar ali uma hora com ele no seu brilho e
que eu, ignorante, quisera entreter, interrogar e conduzir para uma
conversa. Graças a Deus a luz não se fizera demasiado tarde dentro
de mim. Ele teria podido também mandar-me embora e assim
rejeitar-me para sempre. Teria perdido o mais estranho e o mais
magnífico espetáculo que jamais vi.
– Vejo – disse Ferromonte pensativamente – que Vossa Grandeza
encontrou no nosso antigo Mestre da Música uma espécie de santo.
É bom que sejais vos precisamente a dizer-me isso. Confesso que,
da boca doutra pessoa, não teria acolhido esse relato senão com a
maior desconfiança. Em geral não sou de modo nenhum um amador
do misticismo e, em particular, na minha qualidade de músico e
historiador, levo quase até ao pedantismo o amor pelas categorias
puras. Sendo dado que em Castália não somos nem uma
congregação cristã nem um mosteiro hindu ou tauista, não me
parece admissível classificar um dos nossos entre os santos, numa
categoria puramente religiosa por consequência, e, vinda doutro que
não tu... perdão, que não Vossa Grandeza, Domine... Objetaria que
é um desvio. Mas imagino que Vossa Grandeza não terá seriamente
intenção de iniciar em favor do venerando antigo Mestre um
processo de canonização, aliás não se encontraria na nossa Ordem
nenhum serviço competente para isso. Não, não me interrompais,
Domine, estou a falar a sério, nada disto é dito a brincar. Vossa
Grandeza contou-me o que viu, e devo confessar que fiquei algo
confuso, pois o fenómeno que descreveis não nos escapou
completamente, aos meus colegas de Monteport e a mim, mas nós
contentámo-nos em verificá-lo e não lhe demos muita atenção.
Interrogo-me sobre a causa do meu fracasso e da minha indiferença.
Que a metamorfose do antigo Mestre tenha impressionado assim
tanto Vossa Grandeza e lhe tenha parecido um acontecimento
sensacional, enquanto eu mal a notava, pode explicar-se
naturalmente porque Vossa Grandeza se encontrou na presença dum
facto consumado e inesperado, enquanto eu fui testemunha da sua
lenta evolução. O antigo Mestre que Vossa Grandeza viu há dez
meses e este que viu hoje são muito diferentes um do outro,
enquanto nós, seus vizinhos, não observávamos, dum encontro para
outro, senão modificações que quase não se notavam. Se se
consuma à nossa frente uma espécie de milagre, ainda que lento e
leve, deveríamos, se não estivéssemos de pé atrás, ser por ele mais
fortemente tocados do que aconteceu comigo. E aqui foco a causa
da minha cegueira: é que eu de modo nenhum estava de pé atrás.
Se não observei esse fenómeno foi porque não quis reparar nele.
Apercebi-me, como toda a gente, de que o nosso venerando Mestre
vivia cada vez mais retirado, cada vez mais taciturno e que ao
mesmo tempo a sua gentileza crescia, que o brilho do seu rosto se
tornava mais claro e mais imaterial, quando o encontrava, respondia
sem uma palavra à minha saudação. Notei-o bem, naturalmente, e
toda a gente também. Mas proibia-me de ver nisso mais do que isso,
não por falta de respeito pelo nosso velho Mestre mas por aversão
ao culto da personalidade e ao entusiasmo sentimental em geral, e
neste caso particular por aversão justamente ao entusiasmo, à
espécie de culto que o estudante Petrus tem pelo seu Mestre, seu
ídolo. Isso foi muito claro para mim em todo o relato de Vossa
Grandeza.
– Mesmo assim foi um desvio – disse Knecht rindo-se – para
descobrir a tua antipatia por esse pobre Petrus. Mas que pensar
agora? Sou também um místico e um entusiasta? Será que pratico
também o culto proibido das personalidades e dos santos? Ou então
reconhecerás o que não querias admitir da boca desse estudante,
que vimos e sentimos algo, que não eram sonhos nem fantasias da
nossa imaginação, mas factos reais e concretos?
– Vindo de Vossa Grandeza, admito-o, naturalmente – disse Carlo
lenta e pensativamente. – Ninguém porá em dúvida o que sentistes,
nem a beleza ou a serenidade do antigo Magister que nos sorriu de
maneira tão incrível. O problema agora é o seguinte: como
classificar esse fenómeno, que nome lhe dar, como explicá-lo. Isto
cheira a mestre-escola, mas nós, castalianos, que somos senão
mestres-escola? E se desejo classificar o que Vossa Grandeza e nós
próprios vimos, se desejo dar-lhe um nome, não é para que a sua
realidade e a sua beleza não vão perder-se no abstrato e no geral,
mas porque gostaria de o registar e fixar com o máximo de precisão
e clareza possíveis. Quando em viagem ouço algures um camponês
ou uma criança cantarolar uma melodia que não conheço, é também
uma coisa que me surpreende, e se procuro assentar imediatamente
a música o mais exatamente que posso, não é para me
desembaraçar dela nem para dela fazer um assunto classificado, é
uma homenagem e uma maneira de a eternizar.
Knecht fez-lhe um sinal de aprovação amistoso. – Carlo – disse –,
é uma pena que só raramente possamos continuar a ver-nos. Nem
sempre há prazer em ver-se um amigo da juventude. Vim contar-te
esta história do nosso velho Mestre porque tu és, aqui, neste sítio, o
único que me importa pôr ao corrente e ver partilhar da minha
emoção. Devo agora confiar em ti para tratar do meu relato e
qualificar este estado de transfiguração do nosso Mestre como
quiseres. Ficaria feliz se aceitasses ir vê-lo um dia e ficar alguns
instantes na sua aura. É possível que o seu estado de graça, de
perfeição, de sabedoria de velho, de felicidade, chamemos-lhe como
quisermos, releve da vida religiosa. Embora nós em Castália não
tenhamos nenhuma confissão nem nenhuma igreja, a piedade não
nos é desconhecida; o nosso antigo Mestre da Música foi sempre um
homem profundamente piedoso. E uma vez que em muitas religiões
se contam casos de graça, de perfeição, de radiação, de
transfiguração, porque é que a nossa piedade castaliana não deveria
conhecer também um dia essas alturas? Faz-se tarde, tenho de ir
dormir, tenho de partir amanhã de manhã à primeira hora. Espero
voltar em breve. Deixa-me apenas terminar muito brevemente a
minha história. Portanto, depois de me ter dito «cansas-te»,
consegui finalmente deixar de querer fazer conversa e não somente
manter silêncio, mas também desviar a minha vontade desse falso
objetivo: sondar aquele taciturno com auxílio de palavras, duma
conversa, e tirar proveito disso. E a partir do momento em que
renunciei e lhe abandonei completamente as rédeas, tudo começou
por si próprio. És livre de substituir mais tarde as minhas expressões
por outras, mas agora escuta-me, mesmo que pareça que me falta
precisão ou que confunda as categorias. Fiquei uma hora, ou hora e
meia, junto do velho e não sou capaz de te dar a conhecer o que se
passou ou a troca que se processou entre ele e mim. Não
pronunciámos palavra. Simplesmente, depois que a minha
resistência se quebrou, senti que ele me acolhia na sua paz e na sua
claridade; estávamos, ele e eu, num recinto fechado de serenidade e
de repouso maravilhoso. Sem o querer, sem o saber, achei-me a
fazer uma espécie de meditação particularmente bem conduzida e
benéfica, cujo assunto teria sido a vida do antigo Magister. Via-o ou
sentia-o, a ele, à progressão do seu devir, desde o minuto em que
me conheceu, criança, até ao instante presente. Era uma vida de
dedicação e trabalho, mas livre de constrangimento, pura de
ambição, e completamente cheia de música. E desenvolvia-se como
se, ao tornar-se músico e Mestre da Música, ele a tivesse escolhido
como uma das vias que conduzem ao fim supremo da Humanidade:
a liberdade interior, a pureza, a perfeição, e como se, a partir daí, se
tivesse contentado em deixar-se cada vez mais penetrar,
transformar, purificar pela música, pelas suas mãos hábeis e
sabedoras de tocador de cravo, pela sua rica, pela sua gigantesca
memória de músico, até encher todas as partes e todos os órgãos
do corpo e da alma, as pulsações do coração e a respiração do seu
ser, até lhe encher o sono e os sonhos, como se ele fosse apenas
um símbolo, que digo eu, uma forma fenomenal, uma personificação
da música. Esta radiação que emanava dele, ou essas ondas que
iam e vinham entre ele e mim como um sopro rítmico, senti-as ao
menos como uma música, uma música tornada totalmente imaterial,
esotérica, que acolhe quem quer que entre no seu círculo mágico,
como um canto a várias vozes acolhe uma voz nova. Quem não
fosse músico teria talvez percebido esta graça na forma de outras
imagens, um astrónomo ter-se-ia talvez sentido satélite,
descrevendo a sua órbita à volta dum planeta, um linguista ter-se-ia
ouvido interpelar numa língua fundamental, universal e mágica. Mas
basta, despeço-me de ti. Gostei muito de te ver, Carlo.
Contámos este episódio bastante longo, pois o Mestre da Música
ocupava um lugar muito grande na vida e no coração de Knecht. O
que também nos moveu ou conduziu é o facto de a conversa de
Knecht com Ferromonte ter chegado até nós, escrita pela própria
mão deste último numa das suas cartas. Este relato da
«transfiguração» do antigo Mestre da Música é certamente o mais
antigo e o mais digno de fé; com a continuação não iria haver
poucas lendas e glosas deste tema.
OS DOIS POLOS

Knecht e o seu amigo recolheram os frutos do trabalho que


consagraram a esse Jogo anual, ainda hoje conhecido e bastantes
vezes citado como o «Jogo da Casa Chinesa». Este Jogo confirmou a
Castália e ao seu Diretório que tinham feito bem chamar Knecht às
mais altas funções. Uma vez mais Waldzell, a aldeia dos Jogadores e
a elite conheceram a satisfação duma festa brilhante e entusiasta.
Havia na verdade muito que o Jogo anual não era um acontecimento
como aquele: o mais jovem dos mestres, aquele de quem mais se
falava, ia pela primeira vez apresentar-se perante o público e
mostrar do que era capaz; além disso, Waldzell devia fazer esquecer
a sua perda e o seu fracasso do ano anterior. Desta vez não havia
ninguém doente, não havia nenhum adjunto intimidado à espera,
angustiado, da grande cerimónia, glacialmente vigiado pelo ódio
desconfiado e atento da elite, apoiado fielmente mas sem
entusiasmo por funcionários nervosos. Silencioso, distante,
verdadeiro grande sacerdote, figura de proa vestida de branco e
ouro no tabuleiro solene dos símbolos, o Magister celebrou a sua
obra e do seu amigo; irradiando calma, vigor e dignidade,
inacessível a todos os apelos profanos, apareceu na sala de festas
rodeado pelos seus numerosos oficiantes, e inaugurou, um após
outro, os atos do seu Jogo com os gestos rituais; numa escrita
elegante, traçou, com um estilete de ouro faiscante, sinais
sucessivos no pequeno quadro colocado à sua frente e
imediatamente estes caracteres do código cifrado do Jogo
apareceram, aumentados cem vezes, no ecrã gigantesco do fundo
da sala, mil vozes sussurrantes soletraram-nos a compasso, os
arautos gritaram-nos, as antenas transmitiram-nos para o país e o
universo. No fim do primeiro ato evocou no quadro a fórmula que o
resumia; numa pose imponente e cheia de graça deu as suas
instruções para a meditação, pousou o estilete e adotou, ao sentar-
se, a posição exemplar da concentração: então, não apenas na sala,
na aldeia dos Jogadores, e em Castália, mas também noutros sítios
em muitos países da Terra, os fiéis do Jogo das Contas de Vidro
sentaram-se, cheios de fervor, para a mesma meditação e nela
ficaram mergulhados até que, no salão, o Magister voltasse a
levantar-se. Era tudo semelhante ao que fora muitas vezes e, no
entanto, aquilo era novo e prendia as pessoas. O universo do jogo,
abstrato e na aparência intemporal, era bastante elástico para
provocar cem reações diferentes no espírito, na voz, no
temperamento e na escrita duma pessoa; esta tinha bastante
grandeza e cultura para não julgar as suas ideias mais importantes
do que as leis intangíveis do Jogo; os assistentes, os adversários e a
elite obedeciam como soldados bem treinados e, no entanto, cada
um, mesmo ao executar as suas vénias com os outros ou ao ajudar
a correr a cortina à volta do Mestre mergulhado em meditação,
parecia entregar-se a um jogo pessoal, alimentado pela sua própria
inspiração. Mas era da multidão, da vasta comunidade que enchia a
sala e toda a Waldzell, do milhar de almas que seguiam o passo
fantasticamente hierático do Mestre percorrendo sucessivamente os
espaços infinitos das representações polidimensionais do Jogo que a
cerimónia recebia o seu acordo fundamental, esse ressoar profundo
de baixo, que para os mais infantis dos assistentes é tudo e quase a
única emoção da festa, mas que também faz vibrar com um arrepio
de respeito os virtuoses afeitos ao Jogo e as críticas da elite, desde
os oficiantes e os funcionários até aos mais altos escalões e até ao
Mestre.
Foi uma festa retumbante; os delegados do exterior sentiram-no e
também eles o proclamaram, e mais do que um noviço foi, no
decurso desses dias, para sempre ganho para o Jogo das Contas de
Vidro. Mas há uma tónica especial nas palavras com que Josef
Knecht, na conclusão desta cerimónia de dez dias, resumiu as suas
impressões ao seu amigo Tegularius. – Temos razão para estarmos
satisfeitos – disse. – Sim, Castália e o Jogo das Contas de Vidro são
coisas admiráveis, quase perfeitas. Mas talvez o sejam demasiado,
são demasiado belas, tão belas que quase nem se podem
contemplar sem recear por elas. É desagradável imaginar que, como
todas as coisas, um dia desaparecerão; e, no entanto, há que pensar
nisso.
Esta afirmação, que nos foi transmitida, obriga o biógrafo a
abordar a parte mais delicada e mais secreta da sua tarefa, que
gostaria de manter afastada por mais algum tempo, para
primeiramente terminar, com a calma e o à-vontade dados ao
narrador pelas situações claras e sem equívoco, a narração dos
êxitos de Knecht, da sua carreira administrativa exemplar e do seu
brilhante apogeu. Mas seria um erro, julgamos nós, e não seria
digno do nosso assunto não reconhecer e não assinalar a dualidade
ou a polaridade da natureza e da vida deste venerado Mestre,
inclusivamente ainda quando não se tinham revelado a ninguém,
para além de Tegularius. Será, pelo contrário, tarefa nossa, a partir
deste momento, admitir e sublinhar que este cisma, ou antes, que
as pulsações contínuas desta polaridade na alma de Knecht
constituem a originalidade e a característica da sua natureza. Um
autor que se julgasse autorizado a escrever a vida dum Magister
castaliano unicamente como se da vida dum santo se tratasse, ad
majorem gloriam Castaliae, teria de facto dificuldade em fazer da
narração dos anos de Magister de Josef Knecht uma enumeração
panegírica de méritos, de deveres cumpridos e de êxitos. Não há
vida, não há nenhuma carreira de Mestre do Jogo das Contas de
Vidro, incluindo a do famoso Ludwig Wassermaler, na época o mais
apaixonado pelo Jogo de Waldzell, que possa parecer, aos olhos dum
historiador que se atenha exclusivamente aos factos atestados, mais
irrepreensível e mais digna de elogios do que a do Magister Knecht.
A sua carreira teve realmente um fim absolutamente fora do habitual
que suscitou uma grande emoção e causou mesmo escândalo aos
olhos de muitos juízes; ora este fim não teve nada de fortuito nem
de acidental, ocorreu com uma lógica perfeita e é nosso dever
mostrar que não está absolutamente nada em contradição com os
brilhantes e gloriosos feitos do Venerável Mestre, nem com os seus
êxitos. Knecht foi, no exercício das suas altas funções, um grande
administrador, um representante exemplar, um Mestre irrepreensível
do Jogo das Contas de Vidro. Mas via e sentia que o brilho de
Castália, de que se fizera servo, era uma grandeza comprometida e
em vias de desaparecimento; não vivia em Castália sem
pressentimentos nem preocupações, como a grande maioria dos
seus concidadãos: conhecia a origem e a história desse esplendor,
via nele um fenómeno histórico, submetido às contingências,
agredido e abalado pela impiedosa violência da sua época. O
sentimento vivo do desenrolar da história despertara nele próprio;
na sua atividade pessoal via a duma célula que partilhava da deriva
e da ação da torrente do devir e das metamorfoses: estas ideias
tinham amadurecido nele e tornara-se consciente delas com os seus
estudos históricos e a influência do ilustre Frei Jakobus, mas, muito
antes disso, trouxera em si os germes e a matriz dessas ideias, e
quando olhamos verdadeiramente, em toda a sua vivacidade, para a
personalidade de Josef Knecht, quando entramos realmente na pista
da originalidade e do sentido dessa existência, descobrimos
facilmente essas disposições e esses fermentos.
O homem que disse, num dos dias mais brilhantes da sua vida, no
fim do seu primeiro Jogo solene, depois duma manifestação
excecionalmente conseguida e impressionante do espírito castaliano:
«É desagradável pensar que Castália e o Jogo das Contas de Vidro
desaparecerão um dia, e no entanto há que pensar nisso», esse
homem possuiu cedo, bem antes de ter sido iniciado na história, um
sentido do universo que lhe tornava familiares a precariedade dos
resultados e o carácter problemático das criações do espírito
humano. Se recuarmos aos seus anos de infância, à escola de latim,
somos surpreendidos por uma indicação: sempre que um dos seus
condiscípulos desaparecia de Eschholz por ter desiludido os mestres
e ter sido excluído das escolas de elite e enviado para as escolas
gerais, Knecht sentia uma perturbação e uma inquietação profundas.
Sobre nenhum desses excluídos nos é referido que tenha sido amigo
pessoal do jovem Knecht; não era a perda, não era a expulsão e o
desaparecimento de tal ou tal indivíduo que o abalavam e lhe
infligiam esta dor imensa. Mas a sua fé infantil na existência da
ordem castaliana e da sua perfeição era, com isso, levemente
abalada e era sobretudo isso que lhe causava essa dor. Que
houvesse rapazes, jovens capazes, que, depois de terem tido a sorte
e a graça de serem admitidos nas escolas de elite da Província,
perdessem por culpa sua essa graça e a rejeitassem, para ele, que
dava à sua vocação um sentido tão sagrado e tão grave, havia nisso
qualquer coisa de perturbante, um testemunho do poder dum
mundo não castaliano. Por isso talvez também (não temos provas
disto) incidentes deste género despertassem nesta criança uma
primeira dúvida da infalibilidade da administração do ensino, que até
então admitira: não chamava a administração, esporadicamente, a
Castália, alunos de que era obrigada a desembaraçar-se passado
algum tempo? Que acessoriamente esta ideia, uma primeira
manifestação duma crítica das autoridades estabelecidas, tenha
desempenhado igualmente um papel ou não, o que é um facto é
que sempre que um aluno de elite se afastava do reto caminho e era
expulso, para esta criança isso não era uma infelicidade mas antes
uma incongruência, uma mancha horrível e fascinante cuja
existência era uma censura e de que era responsável toda a Castália.
É aí, em nossa opinião, que está a razão da perturbação e da
confusão de que era suscetível o aluno Knecht em tais ocasiões.
Existiam lá fora, do outro lado das fronteiras da Província, um
mundo e um estilo de vida que contradiziam Castália e as suas leis,
que não se inseriam na ordem e no equilíbrio destas e que não
podiam ser domados nem sublimados. E naturalmente o seu coração
dizia-lhe também que esse mundo existia. Também ele tinha
instintos, fantasias, ardores sensuais contrários às leis a que estava
submetido, instintos que só pouco a pouco é possível calar e pelo
preço de duros trabalhos. Eram portanto estas tendências que, em
determinados alunos, podiam tornar-se tão fortes, que se afirmavam
apesar das advertências e das sanções, e recambiavam aqueles que
lhes sucumbiam, do mundo da elite para aquele outro universo,
onde eram elas e não a disciplina e o culto do espírito quem reinava.
As crianças que lutavam por alcançar as virtudes de Castália viam
forçosamente nesse outro universo ora um mundo inferior e mau,
ora a sedução dum paraíso de brincadeiras e exuberância. Muitas
jovens consciências adquiriram, há gerações, nesta forma castaliana,
o conceito do pecado. E, muitos anos depois, Knecht aprenderia com
mais precisão, quando se tornou adulto e amador de história, que
esta não pode existir sem a matéria e o dinamismo desse mundo
pecaminoso, feito de egoísmo e de vida instintiva, e que,
inclusivamente, criações tão sublimes como a da sua Ordem
nasceram dessas correntes turvas e nelas se precipitarão um dia.
Era, por conseguinte, o problema de Castália que estava na origem
de todas as grandes emoções da vida de Knecht, dos seus esforços
e das suas confusões, e nunca foi, para ele, uma questão puramente
ideológica. Este problema tocava-o no mais profundo de si, mais do
que qualquer outra coisa; e sabia que também ele era responsável
por isso. Knecht era dessas naturezas que são capazes de adoecer,
mirrar e morrer porque veem a ideia que é senhora do seu amor e
da sua fé, a pátria e a comunidade que amam, sucumbir à
necessidade e ao mal.
Sigamos o nosso fio condutor e chegaremos à primeira estada de
Knecht em Waldzell, aos seus últimos anos de escola e ao seu
encontro revelador com o ouvinte livre Designori, que a seu tempo
descrevemos. Esta confrontação do ardente partidário do ideal
castaliano com o filho do mundo que era Plínio não foi somente
violenta e cheia de consequências longínquas, foi também para o
aluno Knecht um acontecimento com uma profunda importância
simbólica. Pois lhe impuseram então esse papel tão capital como
desgastante que, embora de aparência puramente acidental,
respondia de tal modo à sua natureza, que seríamos tentados a
dizer que a sua vida ulterior não fez mais do que o retomar e
revestir cada vez mais perfeitamente: o papel de defensor e
representante de Castália, o mesmo papel que dez anos depois teve
de voltar a desempenhar contra Frei Jakobus, o mesmo papel que
desempenhou até ao fim na sua qualidade de Mestre do Jogo das
Contas de Vidro. Ele defendia e representava a Ordem e as suas leis,
mas interiormente estava sempre pronto, trabalhava sempre para
aprender com o seu adversário e para favorecer não o
enquistamento e o isolamento rígido de Castália, mas a sua
participação ativa no jogo do mundo exterior, a sua confrontação
com ele. O que na sua justa espiritual e de eloquência com
Designori era ainda em parte um jogo, tornou-se mais tarde, na
presença desse adversário e desse amigo de peso que era Jakobus,
um assunto profundamente sério. Contra esses dois protagonistas
Knecht fez as suas provas; no contacto com eles cresceu, aprendeu;
nessa luta e nessa troca não deu menos do que o que recebeu, e,
das duas vezes, se não venceu o adversário, o que desde o início, de
resto, não era o objetivo do combate, pelo menos soube obrigá-lo a
prestar homenagem, à sua pessoa, bem como ao princípio e ao ideal
que representava. Ainda que as suas discussões com o sábio
Beneditino não tenham tido como consequência prática e imediata a
instituição duma representação semioficial de Castália junto da
Santa Sé, terão tido um valor superior ao imaginado pela maioria
dos castalianos.
As suas justas amistosas com Plínio Designori, bem como com o
frade velho e sábio, tinham dado a Knecht, que nunca tivera outro
contacto mais estreito com o mundo não castaliano, um
conhecimento, ou antes uma presciência deste, que seguramente
poucas em Castália possuíam. Se excetuarmos a sua estada em
Mariafels, que igualmente não podia dar-lhe a conhecer a vida real
do século, e se excetuarmos também a sua primeira infância, ele
nunca vira nem vivera essa existência; contudo, por intermédio de
Designori, de Jakobus, pelo estudo da história, adquirira uma
presciência lúcida da realidade, de origem em parte intuitiva e
escorada apenas numa muito fraca experiência, mas que fez dele
um homem mais bem informado e mais aberto ao século do que a
maioria dos seus concidadãos de Castália, excetuando talvez os
Diretores. Knecht foi sempre e permaneceu sempre um verdadeiro e
fiel castaliano, mas nunca esqueceu que Castália é apenas uma
parte, uma pequena parte do universo ainda que a mais preciosa e a
mais amada.
Que foi feito então da sua amizade com Fritz Tegularius, esse
carácter difícil e atormentado, esse sublime artista do Jogo das
Contas de Vidro, esse castaliano exclusivo, mimado e receoso que
durante a sua breve visita a Mariafels se sentira tão pouco à vontade
e tão miserável entre os rudes Beneditinos, que garantia não poder
ali aguentar uma semana, e que admirava perdidamente o seu
amigo que lá resistia perfeitamente havia dois anos? Levantámos
todo o tipo de hipóteses sobre esta amizade; algumas tiveram de ser
rejeitadas, outras pareciam plausíveis. Incidiam todas sobre o que
poderá ter sido a raiz e o sentido desse afeto que durou longos
anos. Não esqueçamos desde já que, em todas as suas amizades,
com exceção quando muito da do Beneditino, Knecht não fora o
buscador, o solicitador, o pobre. Ele é que atraía, ele é que era
admirado, invejado, amado, simplesmente pela nobreza da sua
natureza; e a partir de determinado estádio do seu «despertar»,
teve igualmente consciência desse dom. Fora portanto assim que,
logo nos seus primeiros anos de estudo, tinha sido admirado e
procurado por Tegularius, mas Knecht tinha-o mantido sempre um
pouco à distância. Contudo, muitos sinais mostram que lhe era
realmente afeiçoado. Pensamos, por conseguinte, que não foi
somente o seu excecional talento, o seu génio sempre desperto e
sensível principalmente a todos os problemas do Jogo das Contas de
Vidro que atraíram Knecht. O vivo e duradouro interesse que lhe
testemunhou não ia somente para o grande talento do seu amigo
mas também para os seus defeitos, para a sua falta de saúde; ia
precisamente para o que os outros habitantes de Waldzell achavam
incómodo e muitas vezes intolerável em Tegularius. Este ser singular
era a tal ponto castaliano (toda a sua maneira de viver teria sido
impensável fora de Castália, a atmosfera e o nível cultural desta
eram o seu postulado) que, sem o seu carácter difícil e a sua
estranheza, poderíamos quase qualificá-lo como castaliano de raça.
E no entanto este castaliano puro-sangue dava-se mal com os seus
camaradas, era tanto por eles como pelos superiores pouco amado e
também pelos funcionários; estava sempre a incomodá-los, a chocá-
los, e, sem a proteção e a direção do seu corajoso e inteligente
amigo, ter-se-ia ido abaixo de certeza em pouco tempo. Aquilo a que
se chamava a sua doença era no fundo sobretudo um vício, uma
falta de disciplina, um defeito de carácter: ele realmente tinha uma
mentalidade e um género de vida profundamente rebeldes à
hierarquia, totalmente individualistas. Não se dobrava aos
regulamentos em vigor senão na medida necessária para ser
tolerado na Ordem. O que fazia dele um bom e até um brilhante
castaliano era a curiosidade do seu espírito, o seu zelo infatigável e
insaciável em questões do saber, bem como do Jogo das Contas de
Vidro. Mas era um medíocre e mesmo um mau castaliano pelo
carácter, pela atitude para com a hierarquia e a moral da Ordem. O
seu maior vício consistia em facilitar constantemente e descurar a
meditação, cujo sentido, sabemo-lo, é o de lembrar o seu lugar ao
indivíduo, e cuja prática conscienciosa o teria podido perfeitamente
curar da sua doença nervosa, pois em pontos de pormenor
conseguia-o, isto é, de todas as vezes que, depois dum período de
má conduta, irritabilidade ou melancolia, lhe era imposto pelos seus
chefes, como sanção, praticar severos exercícios de meditação
acompanhada. Era um meio a que mesmo Knecht, que lhe queria
bem e tinha atenção por ele, teve de recorrer frequentemente. Não,
Tegularius era um carácter teimoso, lunático, rebelde a toda a
disciplina social séria. Era, é verdade, um espírito sempre cheio de
acessos de vida e, nas suas horas de animação, era encantador,
espumante de verve pessimista; ninguém conseguia permanecer
insensível à ousadia e ao esplendor, às vezes lúgubre, das suas
inspirações, mas era totalmente incurável porque não queria
absolutamente de modo nenhum ser curado; não dava valor à
harmonia e à disciplina social, amava só a sua liberdade, a sua
eterna existência de estudante e preferia ser toda a vida um original
enfermiço, inconstante e recalcitrante, um louco e um niilista genial
em vez de ir ocupar o seu lugar na hierarquia e encontrar a paz.
Troçava da paz, troçava da hierarquia; a censura e o isolamento em
que o deixavam não o atingiam. Numa comunidade cujo ideal é a
ordem e a harmonia, era por conseguinte incómodo e intolerável ao
máximo. Mas pelo seu carácter difícil e insuportável, representava
precisamente, num pequeno mundo tão esclarecido e tão ordenado,
um elemento de inquietação viva e perpétua, uma crítica, uma
advertência e um aviso, incitava às ideias novas, ousadas, proibidas,
revolucionárias, era a ovelha negra enfermiça do rebanho. E foi com
isso, cremos nós, que conquistou, apesar de tudo, o seu amigo.
Claro, nas relações que Knecht teve com ele, a piedade, o apelo
daquele desgraçado, geralmente infeliz, a todos os seus sentimentos
cavalheirescos desempenhou sempre também um papel. Mas isso
não teria bastado, mesmo após a elevação de Knecht à dignidade de
Mestre, para manter viva aquela amizade no meio duma existência
sobrecarregada de trabalho, obrigações e responsabilidades. Em
nosso entender, na vida de Knecht, este Tegularius não foi menos
necessário nem menos importante do que Designori e o frade de
Mariafels: foi-o em igual medida que eles, como um facto do seu
despertar, um postigo aberto para perspetivas novas. Julgamos que
Knecht farejou e, com o tempo, reconheceu claramente, neste
amigo tão especial, o representante dum tipo que ainda só existia
nesta figura única de precursor, o tipo do castaliano tal como poderia
vir um dia a ser, se não se conseguisse dar à vida de Castália, por
meio de confrontações e impulsos novos, um novo fôlego de
juventude e de força. Tegularius, como a maior parte dos génios
solitários, era um precursor. Vivia efetivamente numa Castália que
ainda não existia mas que poderia existir amanhã, uma Castália
ainda mais fechada ao mundo e interiormente em vias de
desagregação devido ao envelhecimento e ao enfraquecimento da
moral contemplativa da Ordem: era um mundo onde os mais altos
voos espirituais e os mergulhos mais ardentes nos valores profundos
ainda eram possíveis, mas onde o desenvolvimento superior e o livre
jogo da espiritualidade já não tinham outra finalidade senão o gozo
do seu próprio refinamento. Aos olhos de Knecht, Tegularius
encarnava as mais elevadas capacidades castalianas e ao mesmo
tempo era o sinal precursor ameaçador do desaparecimento da sua
moral e do início do seu declínio. Era uma maravilha e uma delícia
que Fritz existisse. Mas era preciso impedir Castália de se dissolver
num império de sonho povoado de Tegularius. O perigo de se chegar
a esse extremo ainda vinha longe, mas existia. Tal como Knecht a
conhecia, Castália precisava só de erguer um pouco mais os muros
do seu aristocrático isolamento, bastava que se lhe acrescentasse
um declínio da disciplina da Ordem, uma cedência da moral
hierárquica, para que Tegularius deixasse de ser um original
surpreendente e se tornasse o tipo representativo duma Castália em
vias de degenerescência e declínio. Existiam a possibilidade, o início
dum declínio ou duma predisposição a isso? É provável que Knecht
só muito mais tarde tenha feito esta descoberta essencial que se
tornou sua preocupação, ou que nunca a faria se este castaliano do
futuro não tivesse vivido ao seu lado e se o não tivesse conhecido
profundamente. Para o espírito vigilante de Knecht, ele constituía um
sintoma e um aviso, como o seria para o médico prudente o primeiro
caso de uma doença ainda desconhecida; e Fritz não era um homem
da rua, era um aristocrata, um talento de grande classe. Se esta
doença ainda desconhecida, que se manifestava pela primeira vez no
precursor Tegularius, se espalhasse e modificasse o rosto do
castaliano, se a Província e a Ordem viessem um dia a ter esta figura
de degenerado, de doente, os castalianos do futuro não seriam
todos Tegularius, não possuiriam os seus dotes rebuscados, o seu
génio melancólico, os seus acessos de paixão de esteta; pelo
contrário, a maioria teria dele apenas a mentalidade caprichosa, a
sua inclinação para a troça, a sua falta de disciplina e de sentido
social. É possível que nas suas horas de preocupação Knecht tenha
tido visões e premonições assim tão sinistras e deve ter-lhe sido
precisa muita força para as ultrapassar pela contemplação e com um
redobrar de atividade.
O caso de Tegularius fornece-nos precisamente também um
exemplo particularmente belo e instrutivo da maneira como Knecht
se esforçou, sem se lhe furtar, para triunfar sobre os problemas, as
dificuldades e as anomalias que encontrou no seu caminho. Sem a
sua vigilância, sem a solicitude e sem as suas diretivas de educador,
não apenas o seu infeliz amigo estaria de certeza perdido em pouco
tempo, como não se duvida de que na colónia dos Jogadores teria
sido uma causa de perturbações sem fim e de situações impossíveis:
estas não tinham faltado desde que pertencia à elite dos Jogadores.
O Magister teve não só a arte de manter, melhor ou pior, o seu
amigo dentro das vias traçadas como também de lhe utilizar o
talento ao serviço do Jogo das Contas de Vidro e de o levar a nobres
realizações; suportou-lhe os caprichos e as singularidades com
circunspeção e paciência, triunfou fazendo incansavelmente apelo
àquilo que a sua natureza tinha de grande: só podemos admirar a
maestria na arte de manejar os homens. Seria aliás um bom assunto
cujo estudo conduziria talvez a descobertas surpreendentes –
seríamos tentados a recomendá-lo vivamente a um dos nossos
historiadores do Jogo das Contas de Vidro – o estudo exato e a
análise do estilo especial dos Jogos anuais durante o período em que
Knecht esteve em funções: esses Jogos majestosos e ao mesmo
tempo cintilantes de achados e fórmulas deliciosas, esses Jogos
brilhantes, de ritmo tão original e no entanto alheios a todo o
narcisismo do virtuose, tinham um plano, uma estrutura, uma
sucessão de meditações que era criação exclusiva de Knecht,
enquanto o seu colaborador Tegularius era o autor da maior parte
dos acabamentos e do seu minucioso apuramento técnico. Esses
Jogos poderiam ter sido perdidos ou ficado esquecidos sem que a
vida e a atividade de Knecht tivessem tido menos atração e
perdessem muita da sua virtude de exemplo para as gerações
posteriores. Mas temos a sorte de não ter sido assim, os Jogos
foram gravados e conservados como todos os Jogos oficiais; não
jazem mortos nos arquivos, a sua vida prolonga-se ainda hoje na
tradição, os jovens estudantes analisam-nos, os cursos e muitos
exercícios práticos vão lá buscar exemplos apreciados. E neles
sobrevive esse colaborador que doutro modo teria sido esquecido ou
seria apenas uma estranha figura do passado, pairando ainda em
muitas anedotas. Deste modo, Knecht, ao saber indicar, apesar de
tudo, um lugar e um campo de ação a este amigo tão difícil de
integrar, enriqueceu o património e a história de Waldzell com um
bem valioso e assegurou uma certa perenidade à figura e à memória
de Tegularius. Lembremos de passagem que este grande educador,
quando se esforçava tanto pelo seu amigo, estava perfeitamente
consciente do meio de influência essencial que usava. Era o amor e
a admiração deste. Este amor e esta admiração, este entusiasmo
apaixonado pela personalidade forte e harmoniosa de Knecht, pelo
seu temperamento de condutor de homens, o Magister conheceu-os
muito bem não apenas em Fritz mas em muitos dos seus rivais e dos
seus alunos e assentou neles, mais do que na majestade do seu
cargo, a autoridade e o poder que exerceu sobre tantas pessoas,
apesar da sua bondade e do seu espírito conciliador. Sentia
exatamente aquilo de que são capazes uma aprovação, uma palavra
amável dita de passagem – ou, ao contrário, uma atitude de
abstenção e indiferença. Um dos seus alunos mais aplicados contou,
muito mais tarde, que uma vez Knecht não lhe falou durante toda
uma semana, nem na aula nem durante os exercícios práticos;
parecia até nem o ver e agira como se ele não estivesse ali: foi,
disse ele, a mais amarga e a mais eficaz das sanções que conheceu
em todos os seus anos de escolaridade.
Julgámos estas considerações e este regresso atrás necessários
para fazer compreender aqui ao leitor do nosso esboço de biografia
as duas tendências fundamentais, os dois polos da personalidade de
Knecht, e para o preparar, agora que leu a nossa descrição da sua
vida até ao seu ponto culminante, para as últimas fases desta
existência tão rica. As duas tendências fundamentais ou os polos
desta vida, o seu Ying e o seu Yang, eram por um lado a tendência
para o conservadorismo, a fidelidade, o serviço desinteressado da
hierarquia, por outro, a tendência para o «despertar», para ir em
frente, para enfrentar e compreender a realidade. Para o Josef
Knecht crente e bom servidor, a Ordem, Castália e o Jogo das
Contas de Vidro eram qualquer coisa de sagrado, dum valor
absoluto; para o Knecht vigilante, lúcido e dinâmico, eram, abstração
feita do seu valor, criações humanas, resultado duma evolução,
duma luta, sujeitas a mudar nas suas formas vitais, expostas ao
perigo de envelhecerem, de se tornarem estéreis e decadentes: o
seu princípio conservava sempre, para ele, o mesmo valor intangível
e sagrado, mas reconhecera que o seu estado atual era precário e
exigia uma crítica. Ele servia uma comunidade espiritual cuja força e
cujo espírito admirava, mas via um perigo na sua tendência a
considerar-se como um fim em si mesma, a esquecer que tinha de
trabalhar para o conjunto do país e do universo e colaborar com
eles; arriscava-se por fim a perder-se, ao desviar-se ostensivamente
da vida universal para sucumbir cada vez mais à esterilidade. Tivera
um pressentimento desse perigo quando, nos seus jovens anos,
hesitara e temera por diversas vezes ligar-se inteiramente à Ordem.
Durante as discussões que tivera com os monges, principalmente
com Frei Jakobus, a despeito da sua valentia em defender Castália
contra eles, esta ideia impusera-se-lhe cada vez mais ao espírito, e,
desde que vivia novamente em Waldzell e se tornara Magister Ludi,
os sintomas tangíveis desse perigo saltavam-lhe constantemente aos
olhos: via-os no método de trabalho leal mas esotérico e puramente
formalista de muitos serviços e dos seus próprios funcionários, na
especialização inteligente mas orgulhosa dos seus aspirantes de
Waldzell e sobretudo na figura tão comovente como assustadora do
seu amigo Tegularius. Depois de se ter desincumbido do seu
primeiro e difícil ano de funções, durante o qual não pudera
conceder-se nem ócios nem vida privada, voltou outra vez aos
estudos históricos; pela primeira vez meditou, de olhos abertos, na
história de Castália, e adquiriu a convicção que esta era diferente do
que a fatuidade da Província imaginava: em particular, desde há
décadas, as relações de Castália com o mundo exterior, a influência
recíproca que exerciam um sobre o outro em matéria de política, de
vida, de cultura, estavam em regressão. Claro, a Direção do Ensino
ainda tinha a sua palavra a dizer no Conselho federal quando se
tratava das escolas e da cultura; claro, a Província continuava a
dotar o país de bons professores e exercia a sua autoridade em
todos os problemas do saber; mas tudo isso eram hábitos adquiridos
e automatismo. Os jovens das diferentes elites, voluntários para um
serviço de ensino extramuros, eram cada vez mais raros e cada vez
menos entusiastas; as administrações e os cidadãos particulares do
país já só raramente se dirigiam a Castália para pedir conselho, ao
passo que, numa época mais recuada, tinham solicitado de bom
grado e escutado a sua opinião, por exemplo em importantes
debates jurídicos. Se se comparasse o nível de cultura de Castália
com o do país, via-se que, em vez de se aproximarem, acusavam
uma divergência funesta: quanto mais a espiritualidade castaliana se
afinava, se diferenciava, quanto mais tendia para o preciosismo,
mais o século tinha tendência a deixar a Província continuar
Província e a considerá-la, já não como uma necessidade e o pão
quotidiano, mas como um corpo estranho de que tiraríamos o
mesmo orgulhozinho que duma antiguidade valiosa de que tão-
pouco prescindiríamos no curto prazo nem gostaríamos de perder,
mas da qual nos mantínhamos à distância sem o lamentarmos e à
qual atribuíamos, sem estarmos bem ao corrente do que se tratasse,
uma mentalidade, uma moral e uma fatuidade que já não tinham
lugar na vida real e ativa. O interesse dos seus concidadãos pela
vida da Província pedagógica, o seu apego às suas instituições e em
especial ao Jogo das Contas de Vidro, tinham sofrido a mesma
regressão que a simpatia dos castalianos pela vida e o destino do
país. Aí é que estava o erro, há muito que Knecht se apercebera
disso. Mestre do Jogo das Contas de Vidro, fechado na sua aldeia de
Jogadores, desgostava-o lidar apenas com castalianos e
especialistas. Era por isso que se esforçava por consagrar-se cada
vez mais aos cursos de principiantes, que desejava ter alunos tão
jovens quanto possível; quanto mais jovens eles eram e quanto mais
laços ainda tivessem com o conjunto do mundo e da vida, menos
treinados e especializados estavam. Muitas vezes sentia um desejo
ardente de conhecer o século, os homens, uma vida natural – se
todavia tal ainda existisse lá fora, no desconhecido. A maior parte de
nós sentimos de longe a longe um pouco esta saudade, esta
impressão de vazio, esta impressão de vivermos num ar demasiado
rarefeito, e a Direção do Ensino conhece também perfeitamente esta
dificuldade; pelo menos procurou, uma vez por outra, remediá-la e
colmatar esta lacuna desenvolvendo a prática dos exercícios físicos e
os Jogos e experimentando todas as espécies de trabalhos de
artesanato e de jardinagem. Se as nossas observações são exatas, a
Direção da Ordem manifesta também, desde há pouco, uma
tendência para acabar com determinadas especializações científicas
que a alguns parecem um preciosismo, e fê-lo em benefício duma
intensificação das práticas contemplativas. Não é necessário ser-se
cético, pessimista ou mau membro da Ordem para dar razão a Josef
Knecht quando, muito tempo antes de nós, reconheceu que o
aparelho complexo e sensível da nossa república envelhecera e que
precisava, em muitos aspetos, de ser renovado.
A partir do segundo ano do seu cargo, encontramo-lo, dizíamos,
orientado outra vez para os estudos históricos: fora da história de
Castália consagrava-se sobretudo à leitura de todos os trabalhos,
maiores e menores, que Frei Jakobus escrevera sobre a Ordem dos
Beneditinos. Encontrava também tempo, nas suas conversas com o
senhor Dubois e um dos linguistas de Keuperheim que assistia a
todas as sessões do Diretório na qualidade de secretário, para dar
um último eco às suas preocupações históricas ou um novo
alimento; eram sempre para ele um reconforto bem-vindo e uma
alegria. Não encontrava ocasião para isso, na verdade, no seu
ambiente quotidiano; o seu amigo Tegularius encarnava
verdadeiramente na sua pessoa a aversão desse meio por todo o
estudo histórico. Encontrámos, entre outras, uma folha dum
caderninho contendo apontamentos relativos a uma conversa na
qual Tegularius declarava com paixão que, para os castalianos, a
história era um objeto absolutamente indigno de estudo.
Evidentemente, dizia ele, podia-se praticar a interpretação e a
filosofia da história duma maneira espiritual, divertida, e
eventualmente também extremamente patética; era um passatempo
como outras filosofias e não via mal em que se tivesse prazer nisso.
Mas a coisa em si, o objeto desse passatempo, a história, era
qualquer coisa de tão feio, de tão banal e ao mesmo tempo tão
diabólico, tão ignóbil e tão fastidioso que não compreendia como
pudessem interessar-se por ela. Não se limitava o seu conteúdo ao
egoísmo humano e àquela luta pelo poder, eternamente igual, que
eternamente se sobrestimava e se glorificava a si mesma, àquele
combate por um poder material, brutal, bestial, ou seja, por uma
coisa que o mundo das representações dum castaliano não conhecia
ou a que não dava valor? A história universal era a narrativa
interminável, sem espírito nem jogo dramático, da violência feita ao
mais fraco pelo mais forte. E querer estabelecer uma relação entre a
história verdadeira, real, a história intemporal do espírito e esta rixa
estúpida e velha como o mundo dos ambiciosos em busca do poder
e dos arrivistas ávidos dum lugar ao sol, ou querer explicá-la por
meio desta, era verdadeiramente trair o espírito. E isso lembrava-lhe
uma seita muito espalhada no século XIX ou XX de que um dia lhe
tinham falado: essa seita acreditava com a maior seriedade que os
sacrifícios feitos pelos povos da antiguidade aos seus deuses, bem
como esses mesmos deuses, os seus templos e os seus mitos, eram,
como todas as outras lindas coisas, consequência duma falta ou dum
excesso quantificáveis de alimento e de trabalho, resultado duma
tensão calculável que era função do salário e do preço do pão; essa
seita achava que as artes e as religiões eram fachadas (a isso
chamava-se ideologias) que mascaravam uma Humanidade inteira
ocupada com a sua fome e a sua comida. Knecht, a quem esta
conversa divertia, perguntou de passagem se a evolução do espírito,
da cultura, das artes, não era também história e se não tinha,
apesar de tudo, algumas relações com o conjunto desta. Não,
exclamou o seu amigo com veemência, era precisamente isso o que
ele negava. A história universal era uma competição no tempo, uma
corrida ao ganho, ao poder, ao tesouro; o que importava era ter
bastante vigor, sorte ou baixeza para não falhar o bom momento. O
ato espiritual, cultural, artístico era exatamente o contrário: era
sempre uma evasão da escravatura do tempo; o homem, da lama
dos seus instintos e da sua inércia, elevava-se até outro nível, até ao
intemporal, até ao supratemporal, o divino, um domínio
radicalmente estranho e rebelde à história. Knecht tinha prazer em
escutá-lo, provocou ainda outras explosões da sua parte, a que de
modo nenhum não faltou espírito, e então concluiu friamente a
conversa com esta observação: – Tiro o chapéu ao teu amor pelo
espírito e os seus atos! Mas a criação espiritual é uma coisa em que
não podemos participar tanto quanto muitas pessoas julgam. Um
diálogo de Platão ou um motivo dum coral de Heinrich Isaac, tudo
aquilo a que chamamos um ato do espírito, ou uma obra de arte, ou
uma objetivação espiritual são os resultados finais, os balanços
definitivos duma luta pela pureza e pela liberdade; digamos, para
falar como tu, que são evasões do tempo para o intemporal e, na
maior parte dos casos, as mais perfeitas dessas obras são as que
não deixam adivinhar mais nada do combate e do corpo a corpo que
as precederam. É uma grande coisa termos essas obras e, na
verdade, é só quase delas que vivemos, nós castalianos, a nossa
capacidade de produzir limita-se a reproduzir, vivemos
constantemente nessa esfera transcendente do intemporal e da não
violência que consiste precisamente nessas obras que sem elas
ignoraríamos. E vamos ainda mais longe na via da espiritualização
ou, se preferires, da abstração: no nosso Jogo das Contas de Vidro
desmontamos peça a peça essas obras dos sábios e dos artistas,
extraímos delas regras de estilo, esquemas de formas,
interpretações sublimadas e operamos com essas abstrações como
se fossem materiais de construção. Ora tudo isso é muito belo,
ninguém o contesta. Mas nem todos podem, durante toda a sua
vida, respirar, comer e beber unicamente abstrações. Sobre o que
um aspirante de Waldzell acha digno do seu interesse, a história tem
uma vantagem: ela lida com a realidade. As abstrações são
encantadoras mas sou de opinião de que também é preciso respirar
o ar e comer pão.
De longe a longe Knecht encontrava maneira de fazer uma curta
visita ao antigo Mestre da Música. O venerando velho, cujas forças
diminuíam agora visivelmente e que, desde há muito, se desabituara
completamente do uso da fala, permaneceu até ao fim no seu
estado de sereno recolhimento. Não estava doente e o seu
falecimento não foi propriamente uma morte, mas uma
desmaterialização progressiva, um esvaimento da sua substância
corporal e das suas funções carnais, enquanto a sua vida se
concentrava cada vez mais exclusivamente no olhar e na leve
radiação do seu rosto encovado de velho. A maioria dos habitantes
de Monteport conhecia bem este fenómeno e tinham-no acolhido
com respeito, mas só a poucas pessoas como Knecht, Ferromonte e
ao jovem Petrus, foi dado participar um pouco na luminosidade
desse pôr do Sol e nos últimos raios duma vida pura e
desinteressada. Quando estas poucas pessoas entravam, de espírito
preparado e recolhido, na salinha onde o antigo Mestre estava
sentado na sua cadeira, tinham o privilégio de penetrar nesse doce
brilho do fim dum devir, de partilhar a intuição desta perfeição sem
palavras; como que ao alcance de invisíveis raios, essas pessoas
passavam, na esfera cristalina desta alma, instantes de felicidade,
ouvintes duma música que não era desta terra, e regressavam
seguidamente às suas jornadas, de coração iluminado e fortificado,
como se regressassem dum grande cume. Veio o dia em que Knecht
recebeu a notícia da sua morte; partiu precipitadamente e encontrou
o Mestre, que se tinha extinguido docemente, deitado na sua cama;
o seu rosto miúdo tinha-se fundido e afundado até já só formar uma
runa, um arabesco mudo, uma figura mágica, não mais legível mas
que no entanto parecia falar de sorrisos e de felicidade realizada. Na
sua campa, depois do Mestre da Música e de Ferromonte, Knecht
tomou também a palavra, mas não falou do músico sábio e
iluminado, nem do grande professor, nem do prudente decano do
Diretório e bom menino, falou somente da graça da sua velhice e da
sua morte, da beleza imperecível do espírito que nele se manifestara
aos companheiros dos seus últimos dias.
Sabemos, por diversas declarações suas, que Knecht formulara o
desejo de descrever a vida do antigo Mestre, mas as suas funções
não lhe deixaram tempo livre para um tal trabalho. Tinha aprendido
a já não dar muito lugar aos seus desejos. Disse um dia a um dos
seus aspirantes: «É pena que vós não conheçais, vós estudantes, o
supérfluo e o luxo em que viveis. Mas eu também era assim quando
era estudante. Estuda-se, trabalha-se, não se é preguiçoso,
julgamos poder dizer que somos diligentes, mas quase nem
sentimos tudo quanto poderíamos realizar, tudo quanto poderíamos
fazer com esta liberdade. E de repente chega uma convocação do
Diretório, precisam de nós, dão-nos uma cadeira, uma missão, uma
função, daí passa-se para um escalão mais elevado e vemo-nos
presos inesperadamente numa rede de obrigações e deveres que,
quanto mais nos agitamos, mais encolhe e se aperta. Em si mesmas
são apenas tarefas pequenas, mas cada uma delas leva o seu tempo
próprio a fazer, e as funções dum dia comportam mais tarefas do
que horas. Está bem assim, não é preciso que seja doutra maneira.
Mas quando, entre a sala de aulas, os arquivos, o secretariado, o
gabinete de receção, as sessões e as deslocações de serviço, nos
lembramos por um momento da liberdade que possuíamos e
perdemos, da faculdade de não trabalhar por ordem, de fazer vastos
estudos sem limites, podemos muito bem ter um momento de
lamento e imaginar que, se a voltássemos a ter, saborearíamos até
às borras as suas alegrias e as suas possibilidades.»
Ele sabia descobrir com um sentido extremamente fino se os seus
estudantes e os seus funcionários eram aptos para os serviços da
hierarquia; escolhia com circunspeção um homem para cada tarefa,
para cada posto vago, e as apreciações, as características, que
apontava num livro, testemunham duma grande segurança de
julgamento que incide sempre imediatamente sobre o valor humano,
o carácter. Quando se tratava de apreciar e manejar caracteres
difíceis, iam pedir-lhe conselho. Houve por exemplo o caso daquele
estudante Petrus, o último dos discípulos preferidos do antigo Mestre
da Música. Esse jovem, do género dos fanáticos silenciosos,
satisfizera, até ao fim, no seu papel um pouco especial de jovem de
companhia, de enfermeiro e discípulo fervoroso do Mestre venerado.
Mas quando esse papel encontrou o seu fim natural com a morte do
antigo Magister, caiu primeiramente numa melancolia e numa
tristeza compreensível e que foi aceite durante algum tempo, mas
cujos sintomas não tardaram a causar sérias preocupações ao
dirigente de Monteport dessa época, o Mestre da Música Ludwig.
Petrus insistia obstinadamente em continuar a habitar no pavilhão
que tinha sido a residência de velhice do defunto; fizera-se guardião
dessa casinha, mantinha tão meticulosamente como no passado o
mobiliário e a casa, considerava especialmente as salas onde o
desaparecido vivera e morrera, com a cadeira, o leito de morte e o
cravo, como um santuário intangível, cuja guarda era sua missão. E
fora da conservação minuciosa dessas relíquias, só conhecia uma
preocupação e um dever: a manutenção da campa onde repousava
o Mestre bem-amado. Via-se chamado a consagrar a sua vida a um
culto permanente do morto, naqueles lugares da recordação, a
guardá-los, como um servidor do templo dos Lugares Santos, a vê-
los talvez tornarem-se um local de peregrinação. Nos primeiros dias
que se seguiram ao enterro não tomou nenhum alimento e depois
limitara-se a essas raras e ligeiras refeições com que o Mestre se
contentara nos últimos tempos da sua vida. Dir-se-ia que meditava
tomar assim a sucessão do venerado Magister e segui-lo na morte.
Não aguentando muito tempo nesse regime, adotou a atitude que
devia designá-lo como administrador da casa e da campa, como
encarregado eterno desses lugares da lembrança. Ressaltava
claramente de tudo isto que este jovem, além do mais original e que
desde há bastante tempo gozava duma situação excecional cheia de
encanto para si, pretendia conservá-la a todo o preço e não queria
de modo nenhum retomar o seu serviço quotidiano, de cujo
cumprimento devia já, em segredo, não se sentir mais capaz. «Aliás,
esse Petrus, que fora afetado ao falecido antigo Mestre, perdeu a
cabeça», declara breve e friamente um bilhete de Ferromonte.
Claro, o estudante de música de Monteport não era da alçada do
Magister de Waldzell, Knecht não era responsável por ele e não
sentia certamente necessidade de se imiscuir num assunto de
Monteport, nem de arranjar um trabalho suplementar. Mas o infeliz
Petrus, que teve de ser evacuado à força do pavilhão, não se
acalmava; no seu desgosto e confusão, atingira um estado de
isolamento e desprezo pelas realidades que não permitia aplicar-lhe
as sanções correntes por faltar à disciplina. Como os seus superiores
conheciam as relações benevolentes que Knecht tivera com ele, a
chancelaria do Mestre da Música pedia a Knecht conselho e
assistência, enquanto o rebelde, provisoriamente considerado como
doente, era guardado em observação numa cela da enfermaria.
Knecht resmungara um pouco por ter de se ocupar deste assunto
penoso mas, uma vez que refletiu e que resolveu fazer uma
tentativa de salvamento, tomou firmemente o assunto em mãos.
Propôs mandar vir Petrus para junto de si à experiência, na condição
de que o tratassem absolutamente como um homem de boa saúde e
o deixassem viajar sozinho. Juntou a isso um breve e amável convite
em que lhe pedia que o visitasse, se estivesse disponível, e no qual
dava a entender que se esperava obter dele todo o tipo de
informações sobre os últimos dias do antigo Mestre da Música. O
médico de Monteport deu o seu acordo com reticências, entregaram
ao estudante o convite de Knecht; como este supusera com razão,
nada podia ter sido mais agradável e mais salutar para esse rapaz,
que se tinha entrincheirado na sua situação arreliadora, do que
afastar-se rapidamente do lugar das suas infelicidades; com efeito,
Petrus declarou-se imediatamente pronto a iniciar essa viagem, não
recusou absorver uma verdadeira refeição, deram-lhe uma
autorização de viagem e partiu a pé. Chegou a Waldzell em bastante
boa forma; por instruções de Knecht ignoraram o seu ar instável e
agitado e albergaram-no com os hóspedes dos arquivos. Ele
observou que não o tratavam nem como um indíviduo passível de
sanções, nem como um doente, nem como alguém que saísse, por
algum motivo, do normal. Ele não sofria tanto, apesar de tudo, que
não apreciasse esta atmosfera agradável e não utilizasse este
caminho que se lhe oferecia para voltar à vida. Claro, foi ainda, nas
semanas que se seguiram à sua estada, um fardo bastante pesado
para o Magister, que lhe fixou uma tarefa, ao controlar
continuamente esse pretexto de trabalho que consistia em
estabelecer os exercícios musicais e os estudos feitos pelo seu
Mestre nos seus últimos dias. Nos arquivos, fez com que o
obrigassem sistematicamente a pequenos trabalhos materiais:
pediam-lhe, quando os seus tempos livres lho permitissem, que
desse uma ajuda, diziam-lhe que estavam justamente muito
ocupados e que havia falta de auxiliares. Em resumo, ajudaram este
transviado a regressar ao bom caminho. Foi somente quando
reencontrou a calma e se decidiu verdadeiramente a submeter-se
que Knecht começou também, em breves conversas, a exercer
diretamente sobre ele a sua influência de educador e a expulsar
completamente do seu espírito a ideia de que o seu culto idólatra
pelo defunto tivesse um carácter sagrado e fosse possível em
Castália. Mas como ele não podia triunfar sobre as apreensões que
lhe causava o seu regresso a Monteport, deram-lhe, uma vez que
parecia curado, a missão de assistir a um professor de música, numa
das escolas elementares da elite, e aí ele comportou-se de resto
honrosamente.
Poder-se-ia citar ainda muitos exemplos da atividade de Knecht,
educador e médico de almas, e não faltam jovens estudantes que
foram ganhos para uma vida conforme ao verdadeiro espírito
castaliano pela suave violência da sua pesonalidade, da mesma
maneira que Knecht para ela tinha sido levado outrora pelo Mestre
da Música. Todos estes exemplos mostram-nos que o Magister Ludi
nada tinha dum carácter atormentado, todos eles testemunham da
sua saúde e do seu equilíbrio. Mas a solicitude cheia de amor do
Venerável Mestre por caracteres instáveis e em perigo, como os de
Petrus ou Tegularius, parece revelar uma vigilância, um faro especial
por esse género de doenças ou de disposição dos castalianos, uma
atenção aos problemas e aos perigos inerentes à sua natureza, que,
uma vez despertada, nunca mais conhece repouso ou sono. Não
estava na sua maneira límpida e corajosa fechar os olhos a esses
perigos por leviandade ou sibaritismo, assim como o faz uma boa
maioria dos nossos concidadãos. E é provável que nunca fizera sua a
tática da maior parte dos seus colegas do Diretório que, ao mesmo
tempo que conhecem a existência desses perigos, os tratam por
princípio como se não existissem. Ele via, conhecia esses perigos,
pelo menos muitos deles. Familiar da história das origens de
Castália, concebia a existência no meio deles como um combate e
amava essa vida perigosa cujo valor afirmava, enquanto tantos
castalianos não veem na sua comunidade e no papel que nela
desempenham senão um simples idílio. As obras de Frei Jakobus
sobre a Ordem dos Beneditinos tinham-lhe igualmente tornado
familiar a ideia de que a Ordem era uma comunidade militante e a
piedade uma atitude de combate. «Não há», dissera ele um dia,
«vida nobre e superior se não se souber que existem diabos e
demónios e se não os combatermos constantemente.»
É extremamente raro entre nós que verdadeiras amizades se
façam no escalão das funções mais elevadas: não nos admiraremos
por conseguinte que Knecht, nos primeiros anos do seu cargo, não
tenha tido relações desse género com nenhum dos seus colegas.
Tinha muita simpatia pelo especialista das línguas antigas de
Keuperheim e uma profunda consideração pela Direção da Ordem,
mas nessas esferas o elemento individual e privado está quase
totalmente recalcado e despersonalizado, tanto que, fora do trabalho
oficial em comum, quase não é possível haver aproximações sérias e
amizades. E no entanto essa era uma experiência que ainda deveria
fazer.
Não dispomos dos arquivos confidenciais da Direção do Ensino.
Sobre a atitude e atividade de Knecht durante as sessões e os
escrutínios, sabemos apenas o que é possível deduzir das
declarações que às vezes fez aos seus amigos. Não parece ter
observado sempre, nessas reuniões, o mesmo mutismo que
aquando da sua entrada em funções, mas parece só raramente ter
discursado, salvo quando ele próprio propunha uma iniciativa ou
apresentava um requerimento. Sabemos, por testemunhos formais,
com que rapidez fez seu o tom que é de rigor nas conversas dos
nossos maiores hierarcas, que elegância, que riqueza de invenção e
que prazer de virtuose mostrou na arte de manejar as suas formas.
Os chefes da nossa hierarquia, os Magisters e os homens da Direção
da Ordem não conversam entre si, sabe-se, senão num estilo
protocolar de que têm o cuidado de não revelar e, por outro lado,
reina entre eles, sem que saibamos dizer desde quando, uma
tendência – talvez seja um regulamento secreto, uma regra do jogo
– que quer que eles observem uma cortesia tanto mais estrita, tanto
mais subtilmente refinada, quanto as suas divergências de opinião
são maiores e as questões em litígio mais importantes. É provável
que esta boa educação, que se transmitiu de época para época, para
além das outras funções que possa ter, constitua também e
sobretudo uma medida de precaução: não somente o tom
extremamente cortês dos debates evita aos interlocutores deixarem-
se cegar pela paixão e os ajude a conservar uma postura perfeita,
como também ajuda e defende a própria dignidade da Ordem e do
Diretório, revestindo-as com os mantos do cerimonial e os véus da
santidade. Esta arte do elogio, muitas vezes docemente troçada
pelos estudantes, tem sem dúvida por conseguinte a sua razão de
ser. Antes da chegada de Knecht, o seu predecessor, o Magister
Thomas von der Trave, era especialmente admirado pela sua
maestria neste domínio. Não se pode dizer verdadeiramente que
Knecht tenha sido o seu sucessor e ainda menos seu imitador: era
antes um aluno dos chineses. A sua cortesia escondia menos pontas
e ironia. Mas, entre os seus colegas, a sua boa educação passava
igualmente por não ter igual.
UM DIÁLOGO

Eis-nos chegados, na nossa tentativa de biografia, ao ponto em


que toda a nossa atenção é cativada pela evolução que se apoderou
da vida do Mestre nos seus últimos anos que o levou a resignar às
suas funções, a abandonar a Província, a passar a uma esfera de
vida diferente, e ao fim. Embora até ao momento da partida ele
tenha gerido o seu cargo com uma lealdade exemplar e tenha
gozado, até ao último dia, do afeto e da confiança dos alunos e dos
seus colaboradores, renunciamos a prosseguir a descrição da sua
atividade de funcionário, pois vemos que, no fundo de si mesmo,
está cansado disso e se orienta para outros objetivos. Tinha
conhecido todas as possibilidades de empregar as suas forças que o
cargo lhe dava e chegara ao ponto em que todas as grandes
naturezas abandonam a via da tradição e do conformismo dócil e em
que, confiantes em potências supremas que não têm nome, devem
enveredar por vias novas nunca traçadas nem conhecidas e assumir
os riscos.
Quando tomou consciência de tudo isso, examinou
cuidadosamente, a sangue-frio, a sua situação e as possibilidades de
a modificar. Tinha alcançado, numa idade excecionalmente precoce,
o cume que um castaliano dotado e ambicioso pode desejar e
procurar; não o tinha feito à força de ambição, nem de esforço, mas
sem arrivismo, sem esforço de conformismo, quase contra vontade,
pois uma vida de sábio apagada, independente, livre das obrigações
duma função, teria respondido melhor aos seus desejos. Não dava
um valor igual a todas as vantagens e a todos os privilégios
eminentes que o seu cargo lhe trouxera, e parece que precisou de
pouco tempo para perder quase todo o gosto por algumas dessas
distinções e de certos desses poderes. Em especial, o trabalho
político e administrativo ao qual se entregava com os seus colegas
do Diretório geral, pareceu-lhe sempre um fardo, se bem que
naturalmente não se lhe entregasse com menos consciência. E a
tarefa propriamente dita, característica e original do seu posto, a
formação de uma seleção de Jogadores de Contas de Vidro
completos, a despeito de toda a alegria que às vezes lhe dava e do
orgulho que aquela elite testemunhava pelo seu Mestre, foi talvez,
com o tempo, mais um encargo do que um prazer. A sua alegria, a
sua satisfação, era ensinar e educar, e, nesse domínio, a experiência
ensinara-lhe que o prazer e o êxito eram tanto maiores quanto os
alunos eram mais jovens. Por isso era aos seus olhos uma privação,
um sacrifício, exercer uma função que atraía para si não as crianças
e os rapazes pequenos mas apenas jovens e adultos. Contudo,
houve ainda outras considerações, outras experiências, outras
reflexões que o levaram ao longo dos anos de Magister a adotar
uma atitude crítica para com a sua própria atividade e para com
determinadas particularidades de Waldzell, a considerar mesmo o
seu cargo como um grave obstáculo ao desenvolvimento e libertação
das suas melhores e mais fecundas faculdades. Há muitos factos
que cada um de nós conhece, muitos outros que apenas
presumidos. O Magister Knecht teve verdadeiramente razão para
procurar libertar-se do fardo do seu cargo, para criticar a situação de
Castália? Há que considerá-lo como um pioneiro e um ousado
campeão ou como uma espécie de rebelde, ou até desertor? É uma
questão que tão-pouco nós não abordaremos: foi por de mais
discutida. Esta querela dividiu durante algum tempo Waldzell e
mesmo toda a Província em dois campos, e ainda não se calaram
todos os seus ecos. Se bem que façamos profissão de sermos
admiradores gratos do grande Magister, recusamo-nos a tomar
posição sobre este assunto; aliás, há muito que a síntese das
opiniões e dos juízos formulados nesta querela sobre a pessoa e a
vida de Josef Knecht começou a fazer-se. Não desejamos nem julgar
nem converter mas contar com o máximo de veracidade a história
do fim do nosso venerado Mestre. Ora acontece que não se trata
totalmente duma história verdadeira, seríamos antes tentados a
qualificá-la como lenda: é uma narrativa onde se misturam as
informações autênticas e simples ruídos, na forma com que,
confluindo de fontes claras e obscuras, se espalharam pela nossa
Província até aos recém-chegados que nós somos.
Numa época em que Josef Knecht tinha já começado, em
pensamento, a procura dum caminho para a liberdade, encontrou
inesperadamente uma figura que noutros tempos lhe tinha sido
familiar na sua juventude e que depois disso quase esquecera, Plínio
Designori. Este antigo ouvinte livre, filho duma velha família
benemérita da Província, deputado e escritor político influente,
apareceu um dia de repente, a título oficial, no Diretório geral.
Realmente, tinha havido, como periodicamente acontecia, novas
eleições para a comissão governamental encarregada de controlar o
orçamento de Castália, e Designori era um dos comissários. Na
primeira vez que se apresentou nessa qualidade, durante uma
reunião na casa da Direção da Ordem, em Hirsland, o Mestre do
Jogo das Contas de Vidro também estava presente. Este encontro
causou-lhe uma forte impressão que teve consequências: possuímos
sobre este assunto inúmeras informações devidas a Tegularius, e
depois ao próprio Designori, que, neste período da sua vida, sobre o
qual pairam umas certas trevas, se tornou outra vez, em pouco
tempo, seu amigo e mesmo seu confidente. Durante este primeiro
encontro, depois de dezenas de anos de esquecimento, o porta-voz
apresentou aos Magisters, como de costume, os membros da
comissão do Estado recém-constituída. Quando o nosso Mestre
ouviu o nome de Designori ficou surpreendido, mesmo confuso, pois
à primeira vista não reconhecera aquele camarada da sua juventude
que perdera de vista há longos anos. Renunciando à vénia e à
fórmula de saudação oficiais, estendeu-lhe a mão amistosamente.
Ao mesmo tempo observou atentamente o seu rosto, procurando
descobrir que transformações podiam tê-lo tornado irreconhecível a
um velho amigo. Durante a sessão, também o seu olhar se demorou
muitas vezes sobre aquelas feições outrora tão familiares. Aliás,
Designori tinha-lhe falado na terceira pessoa, dando-lhe o seu título
magistral, e tivera de lhe pedir, por duas vezes, que o tratasse como
antigamente e voltasse a tratá-lo por tu, antes que este a isso se
decidisse.
O Plínio que Knecht conhecera era um adolescente fogoso e
alegre, comunicativo e brilhante, bom aluno e ao mesmo tempo
jovem do mundo, que se sentia superior aos jovens castalianos,
ignorantes do mundo, e às vezes tinha prazer em provocá-los. Não
fora talvez isento de vaidade, mas era uma natureza aberta, sem
mesquinhez, e que, para a maior parte dos camaradas da sua idade,
era interessante, atraente e amável; ofuscava mesmo alguns com a
sua educação, a segurança das suas maneiras e o perfume de
exotismo que rodeava esse ouvinte livre filho do século. Anos mais
tarde, para o fim dos seus estudos, Knecht voltara a vê-lo:
encontrara-lhe então menos relevo; Plínio parecera-lhe mais
grosseiro e desprovido de todo o seu encanto de então; desiludira-o.
Tinham-se separado friamente, com incómodo. Agora parecia
novamente um homem completamente diferente. Parecia sobretudo
ter abdicado totalmente ou perdido a juventude e a alegria, o gosto
de se exteriorizar, discutir, trocar ideias, o seu génio ativo,
conquistador, voltado para o exterior. Aquando deste encontro com o
seu amigo de outrora, este não lhe chamara a atenção, não fora o
primeiro a saudá-lo, e mesmo, depois de os seus nomes terem sido
pronunciados, não tratara por tu o Mestre; convidado cordialmente a
fazê-lo, só a contragosto a isso se resolvera. Do mesmo modo, na
atitude, no olhar, na maneira de falar, nas feições do rosto e nos
movimentos, a agressividade de antigamente, a franqueza, o
entusiasmo tinham dado lugar à reserva ou ao abatimento, a uma
vontade de se apagar e permanecer em segundo plano, a uma
espécie de medo ou crispação, ou talvez apenas ao cansaço. O
encanto da juventude afogara-se, extinguira-se, mas a
superficialidade e a frescura excessiva da sua mundanidade tinham
também desaparecido. Toda a sua pessoa, e sobretudo o rosto,
pareciam agora marcados, em parte escalavrados e em parte
enobrecidos, por uma expressão de dor. E o Mestre das Contas de
Vidro, ao mesmo tempo que seguia os debates, não deixava de
reservar uma parte da sua atenção para aquele espetáculo; não
podia impedir-se de se perguntar que destino de sofrimento podia
dominar e ter assim marcado aquele homem vivo, belo e cheio de
desenvoltura. Parecia ter sido uma dor singular, que Knecht não
conhecia, e quanto mais se entregou em pensamento a essa
procura, mais compaixão e simpatia sentiu por aquele ser sofredor,
mais atraído para ele se sentiu. A sua piedade e o seu amor eram
levemente toldados por um sentimento de dívida para com aquele
amigo da juventude que parecia tão triste, pelo sentimento de lhe
dever uma satisfação. Fez toda a espécie de hipóteses sobre a causa
da tristeza de Plínio, depois abandonou-as, e então veio-lhe uma
ideia: a dor que exprimia aquele rosto não era de origem vulgar, era
uma dor nobre, talvez trágica, e a sua expressão era duma natureza
desconhecida em Castália; lembrava-se de às vezes ter visto uma
expressão análoga em rostos de pessoas do século, não castalianos,
mas nunca tão forte, nem tão cativante. Pelo que conhecia, havia
também algo de semelhante em determinados retratos de
personagens do passado, nos de muitos sábios ou artistas, onde se
liam uma tristeza, um sentimento de solidão e impotência
comoventes, em parte doentios, e outra parte devidos ao destino.
Para o Magister, artista tão delicadamente sensível aos segredos da
expressão, educador tão atento aos caracteres, havia há bastante
tempo sinais fisionómicos determinados, nos quais se fiava por
instinto, sem disso fazer um sistema; para ele havia, por exemplo,
uma maneira de rir, de sorrir, de estar alegre especificamente
castaliana e uma outra específica do século, e, do mesmo modo,
existia uma maneira de sofrer e de estar triste específica do século.
Era este género de tristeza que julgava reconhecer no rosto de
Designori: essa expressão era tão forte e tão pura que dir-se-ia que
aquele rosto estava destinado a ser a representação de muitos
outros, a tornar visíveis a dor e o mal secretos duma multidão de
pessoas. Aquele rosto inquietava-o, comovia-o. Não lhe parecia
somente significativo que o século lhe tivesse enviado naquela altura
aquele amigo perdido, que ambos, como outrora nos seus duelos
oratórios de alunos, fossem agora realmente e validamente os
representantes, um do século e o outro da Ordem. Estava tentado a
achar mais importante e mais simbólico o facto de que o mundo,
naquele rosto solitário e velado de tristeza, não tivesse, desta vez,
delegado para Castália o seu riso, a sua alegria de viver, a alegria da
sua força e a sua frescura, mas a sua miséria e a sua dor. Isso dava-
lhe também que refletir, e não lhe desagradava que Designori
parecesse evitá-lo em vez de o procurar, que não cedesse às suas
instâncias e só se abrisse a ele depois duma forte resistência. Aliás,
e isso convinha naturalmente a Knecht, o seu camarada de escola,
educado em Castália, não era, nesta comissão tão importante para
Castália, um comissário penoso, desgostoso, ou até quase
malevolente, como conhecera outros; pelo contrário, fazia parte dos
admiradores da Ordem e dos mecenas da Província, à qual podia
prestar muitos serviços. Renunciara, é verdade, desde há muito, ao
Jogo das Contas de Vidro.
Não poderíamos contar em pormenor de que maneira o Magister
ganhou novamente a confiança do seu amigo. Cada um dos que de
nós conhecem a calma serenidade e a gentileza afetuosa do Mestre
pode imaginar a coisa à sua maneira. Knecht só descansou quando
conquistou Plínio, e quem podia resistir-lhe a longo prazo, quando
ele queria?
Alguns meses depois deste primeiro encontro Designori acabou
por aceitar um convite repetido para vir visitá-lo a Waldzell, e
ambos, numa tarde de outono ventosa e coberta, atravessaram de
carro o campo, onde a sombra e a luz alternavam continuamente,
para chegarem ao teatro dos seus anos de escola e da sua amizade,
Knecht calmo e sereno, o seu convidado silencioso mas agitado:
como os campos ermos, entre o sol e a sombra, oscilava entre a
alegria de reencontrar o seu amigo e a dor de se lhe ter tornado
estranho. Chegados perto da cidade, desceram e fizeram a pé os
velhos caminhos que tinham percorrido os dois, evocaram muitas
recordações de camaradas, de professores e de conversas que então
tinham tido. Designori foi, durante vinte e quatro horas, convidado
de Knecht, que lhe prometera deixá-lo assistir como espectador,
durante esse dia, a todos os seus atos e a todos os seus trabalhos
oficiais. No fim – o seu convidado queria ir-se embora no dia
seguinte de manhã cedo – ficaram sozinhos os dois, no salão de
Knecht e quase reencontraram a intimidade de antigamente. Esse
dia, durante o qual pudera observar hora a hora o trabalho do
Magister, causara ao visitante profano uma grande impressão. Nessa
noite, houve entre os dois um diálogo que Designori assentou logo
que chegou a casa. Se bem que contenha em parte elementos sem
importância e venha cortar a imparcialidade da nossa narrativa
duma maneira que talvez incomode mais do que um leitor,
gostaríamos no entanto de o reproduzir tal como ele o assentou:
– Queria mostrar-te tantas coisas – disse o Magister –, mas não
consegui. O meu lindo jardim, por exemplo; lembras-te ainda do
«jardim do Magister» e das plantações do Mestre Thomas?... E
tantas outras coisas. Espero que ainda tenhamos tempo um dia para
isso. Desde ontem, em todo o caso, terás podido verificar mais do
que uma recordação, e ficaste com uma ideia do que são os deveres
do meu cargo e de todos os meus dias.
– Estou-te grato por isso – disse Plínio. – Só hoje voltei a
pressentir o que é verdadeiramente a vossa Província, que grandes e
singulares mistérios esconde, se bem que, mesmo durante os anos
em que permaneci longe dela, tenha pensado em vós bem mais do
que tu suporias. Hoje deste-me um resumo das tuas funções e da
tua vida, Josef. Espero que não seja a última vez e que conversemos
muitas vezes sobre o que vi aqui e de que ainda não sou capaz de
falar esta noite. Sinto, em contrapartida, que a tua confiança me cria
também obrigações e sei que a atitude fechada que até aqui tive te
deve ter feito sofrer. Pois bem, tu virás ver-me um dia e verás o meu
lar. Para hoje só pouca coisa posso contar-te, apenas o bastante
para que saibas novamente com que deves contar quanto a mim e,
embora seja simultaneamente uma humilhação e uma punição para
mim, aliviar-me-á um pouco sem dúvida falar-te disso.
«Sabes que pertenço a uma velha família a quem o país deve
muito e que é amiga da vossa Província, uma família conservadora
de proprietários fundiários e altos funcionários. Mas, vê tu, basta
que eu diga simplesmente isto, para me encontrar perante o fosso
que me separa de ti! Digo «família» e creio ter dito uma coisa
simples, evidente, sem equívocos, mas que é isso ao certo? Vós,
gente da Província, vós tendes a vossa Ordem e a vossa hierarquia,
mas não tendes família, não sabeis o que é a família, o sangue, a
ascendência, não fazeis a menor ideia das forças e dos sortilégios
misteriosos e poderosos daquilo a que se chama uma família. E, no
fundo, o mesmo se passa com a maior parte das palavras e dos
conceitos que exprimem a nossa vida: a maior parte dos que são
importantes para nós não o são para vós; muitos são-vos muito
simplesmente incompreensíveis e outros significam aqui uma coisa
completamente diferente do que entre nós. E queremos nós
conversar os dois! Vê, quando tu falas, é como se um estrangeiro
me dirigisse a palavra, mas um estrangeiro cuja língua aprendi e
falei na minha juventude; compreendo quase tudo. Ora o inverso
não é verdadeiro: quando falo, tu ouves uma língua de que só
conheces metade das expressões, e de modo nenhum as
tonalidades e as vibrações. Ouves contar as histórias duma vida
humana, dum modo de existência que não são os teus. Ainda que
isso pudesse interessar-te, isso continua a ser-te estranho na sua
maior parte e só compreendes, quando muito, metade. Lembras-te
dos nossos inúmeros duelos oratórios e das nossas conversas
quando éramos alunos; pelo meu lado, era simplesmente uma
tentativa, entre muitas outras, de harmonizar o universo e a língua
da vossa Província com o meu universo e a minha língua. Foste tu
que mostraste mais abertura de espírito, boa vontade e lealdade de
todos quantos com quem tentei semelhante experiência. Fazias-te
valentemente o campeão dos direitos de Castália, sem no entanto
seres indiferente ao meu outro universo e aos seus direitos, e
sobretudo sem o desprezar. Chegávamos então verdadeiramente a
uma certa aproximação. Mas voltaremos mais tarde a esse assunto.
Calou-se um momento pensativamente e Knecht declarou com
circunspecção: – Esta impossibilidade de nos compreendermos
talvez não seja tão terrível. É certo que dois povos e duas línguas
nunca comunicarão uma com a outra com tanta compreensão e
intimidade como dois indivíduos que tenham em comum a nação e a
língua. Mas isso não é motivo para renunciar a compreender e
recusar o diálogo. Entre pessoas dum mesmo povo e duma mesma
língua, existem também barreiras que impedem uma perfeita
comunicação e uma plena compreensão mútuas: as barreiras da
cultura, da educação, do talento, da individualidade. Pode-se afirmar
que todo o homem pode exprimir em princípio as suas ideias a
outro, qualquer que ele seja, e também que não há dois seres no
mundo para os quais seja possível comunicar entre si e de se
compreenderem verdadeiramente, totalmente, intimamente: as duas
teses são ambas verdadeiras. É o Ying e o Yang, o dia e a noite;
ambos têm razão, é preciso de vez em quando metê-lo na cabeça, e
dou-te razão na medida em que também não acredito naturalmente
que possamos ambos compreender-nos alguma vez perfeitamente e
completamente. Sejas tu ocidental e eu chinês, falemos nós línguas
diferentes, não deixaremos de conseguir, se somos homens de boa
vontade, comunicar muitas coisas e adivinhar, pressentir outras a
partir do outro, para lá do que é exatamente comunicável. Em todo
o caso tentemos.
Designori aprovou com um sinal e prosseguiu: – Vou
primeiramente contar-te o pouco que tens de saber para fazer
alguma ideia da minha situação. Em primeiro lugar há portanto a
família, potência suprema na vida dum ser jovem, quer ele o
reconheça ou não. Eu entendi-me bem com a minha, enquanto fui
ouvinte livre nas vossas escolas de elite. Durante todo o ano estava
em boas mãos aqui; nas férias faziam-me festas em casa e
mimavam-me, era filho único. Tinha pela minha mãe um amor terno,
mesmo apaixonado; sentia dor sempre que partia, a dor de me
separar dela. As minhas relações com o meu pai eram mais frias,
mas amistosas, pelo menos durante todos os anos da infância e da
adolescência que passei aqui. Ele era um velho admirador de
Castália e tinha orgulho em educar-me nas escolas de elite e iniciar-
me em coisas tão sublimes como o Jogo das Contas de Vidro. Estas
estadas de férias em casa respiravam muitas vezes o entusiasmo e a
solenidade: a minha família e eu já só nos conhecíamos, em suma,
em trajo de festa. Às vezes, ao partir para férias, tive pena de vós,
que ficáveis na escola e não conhecíeis semelhante felicidade. Não
preciso de falar muito dessa época: tu conheceste-me melhor do
que ninguém. Era quase um castaliano, um pouco mais inclinado
para o século talvez, mais rude e mais superficial, mas cheio dum
orgulho feliz, de ânimo e entusiasmo. Foi a época mais feliz da
minha existência; não duvidava disso então, claro, pois durante
esses anos de Waldzell situava a felicidade e o ponto culminante da
minha vida no momento em que abandonaria as vossas escolas para
voltar para casa, e conquistaria o mundo com a superioridade que
tivesse aqui adquirido. Em vez disso, depois de me ter despedido de
ti, vi iniciar-se um conflito que ainda hoje dura e uma batalha que
perdi. Pois esse país natal para onde regressava, já não se
compunha, desta vez, unicamente da minha casa paterna, e não
esperara de modo nenhum pelo privilégio de me abraçar e
reconhecer a minha distinção de aluno de Waldzell. Mesmo em
minha casa houve, passado pouco tempo, deceções, dificuldades e
dissonâncias. Precisei de algum tempo para delas me aperceber. Era
protegido pela minha confiança ingénua, pela fé de aluno que tinha
em mim mesmo e na minha sorte, e também pela moral da Ordem
que vós me tínheis dado como viático pelo hábito da meditação. Mas
que deceção, que ressaca me causou a universidade onde quis
estudar as ciências políticas! O tom que lá se adotava entre os
estudantes, o nível da sua cultura geral e da sua vida social, a
personalidade de muitos professores, como tudo contrastava com
aquilo a que me habituara convosco! Lembras-te como antigamente
defendia o nosso mundo contra o vosso: cantava os louvores da vida
sem restrições, sem artifícios, tinha muitas vezes a boca cheia disso.
Se merecesse uma punição, meu amigo, fui duramente punido por
isso. Pois a vida instintiva, ingénua e inocente, a ingenuidade e o
génio espontâneo da Natureza, existiam sem dúvida algures, talvez
nos camponeses, nos artistas ou noutro sítio, mas não conseguia vê-
los e muito menos participar nela. Lembras-te também de que nos
meus discursos criticava a fatuidade dos castalianos, os ares de
pavão desta casta cheia de si própria, efeminada no seu espírito de
capela e no seu orgulho de elite. Pois bem, as pessoas do século não
eram menos orgulhosas das suas maneiras, da sua cultura sumária,
do seu grosseiro e ruidoso humor, da sua esperteza saloia em
limitar-se a fins práticos e egoístas; com a sua natureza limitada,
não se achavam menos preciosos, menos amados pelos deuses,
menos eleitos do que alguma vez o mais amaneirado dos alunos
modelo de Waldzell se terá achado. Troçavam de mim, ou davam-me
pancadinhas no ombro, mas muitos reagiram contra o que farejavam
em mim de estrangeiro, de castaliano, com esse ódio declarado, de
faca de fora, que o vulgar tem contra tudo o que é nobre e que eu
estava decidido a suportar como uma distinção.
Designori fez uma curta pausa e lançou um olhar a Knecht,
perguntando-se se não estava a cansá-lo. O seu olhar encontrou o
do amigo e achou nele uma expressão de profunda atenção e
cordialidade que lhe fez bem e o tranquilizou. Viu que o seu
interlocutor estava completamente cativado pelas suas revelações;
não o escutava como se escuta uma conversa oca, ou mesmo uma
narrativa interessante, mas com a concentração e o ardor com que
se recolhe numa meditação, e mesmo com uma benevolência
sincera e afetuosa, cuja expressão no seu olhar o comoveu, tanto
lhe pareceu cordial e quase infantil. Foi com uma espécie de estupor
que viu aquela expressão no rosto do homem em quem admirava ao
longo de todo o dia os trabalhos múltiplos, a sabedoria e autoridade
de administrador. Aliviado, continuou:
– Não sei se a minha vida foi inútil, se foi apenas um contrassenso
ou se tem um significado. Se tivesse um significado, seria sem
dúvida o seguinte: um indivíduo, um homem do nosso tempo, de
carne e osso, teve oportunidade de reconhecer e sentir da maneira
mais límpida e mais dolorosa até que ponto Castália o afastou da
sua mãe-pátria ou, se quisermos, o inverso: até que ponto o nosso
país se tornou estranho e infiel à mais nobre das suas províncias e
ao seu espírito, até que ponto entre nós o corpo e a alma, o ideal e
a realidade divergem, até que ponto se ignoram e querem ignorar-
se. Se tive na minha vida uma tarefa e um ideal, foi o de realizar na
minha pessoa uma síntese desses dois princípios, de servir de
intermediário entre eles, intérprete e conciliador. Tentei e falhei. Mas
não posso contar-te toda a minha vida, também tu não a
compreenderias. Vou por conseguinte evocar uma das situações
características do meu fracasso. Quando então comecei os meus
estudos na universidade, o difícil não foi tanto de triunfar sobre os
castigos ou a hostilidade que enfrentava na minha qualidade de
castaliano e de jovem modelo. Os meus poucos novos camaradas
que consideravam a minha formação na escola de elite como uma
distinção, uma coisa sensacional, deram-me mesmo preocupações e
causaram-me problemas. Não, a dificuldade, a impossibilidade
talvez, era continuar a viver no espírito castaliano no meio da
atmosfera do século. Ao princípio, mal me apercebi disso, observava
as regras que aprendera convosco, e durante algum tempo
pareceram ser boas, também lá; pareciam fortalecer-me e proteger-
me, manter-me de bom humor e de boa saúde e confirmar-me na
minha intenção de passar os meus anos de estudos sozinho, com
independência, segundo o melhor estilo castaliano, obedecendo
apenas à sede de saber e não deixando que me impusessem um
programa de estudos cujo único objetivo era especializar o
estudante, no mínimo de tempo e o mais possível, numa profissão
lucrativa, matando nele toda a presciência de liberdade e de
universalidade. Mas a proteção de que Castália me dotara revelou-se
perigosa e contestável, pois apesar de tudo não queria conservar a
paz da minha alma e a calma contemplativa do meu espírito na
resignação e na clausura; o que eu queria era conquistar o mundo,
compreendê-lo, obrigá-lo a compreender-me, queria afirmar o seu
valor e, se possível, renová-lo e melhorá-lo; queria reunir e
reconciliar na minha pessoa Castália e o século. Quando depois
duma deceção, duma querela, duma crise de indignação, me retirava
para meditar, ao princípio era para mim um benefício, uma pausa,
uma lufada de ar, um regresso às potências de bondade e de afeto.
Mas com o tempo notei que era justamente esse recolhimento, os
cuidados com a minha alma que me isolavam, que me davam aos
olhos dos outros aquele aspeto desagradavelmente estrangeiro e me
tornavam incapaz de os compreender realmente. Os outros, os do
século, não podia compreendê-los, via-o bem, a não ser voltando a
ser como eles, a não ser não tendo nenhuma vantagem sobre eles,
nem mesmo o asilo da contemplação. É também possível
naturalmente que embeleze as coisas ao descrevê-las desta
maneira. É possível ou provável que, sem camaradas com a mesma
formação e o mesmo espírito, sem o controlo dos professores, sem a
atmosfera protetora e salutar de Waldzell, eu tenha muito
simplesmente perdido pouco a pouco a minha disciplina, e me tenha
tornado preguiçoso e desatento, e cedido à rotina: quando tinha má
consciência desculpava-me, dizendo-me que a rotina é precisamente
um dos atributos do século, e que, ao abandonar-me a ela,
conseguiria compreender melhor os que me rodeavam. Não tenho
nenhuma justificação perante ti para colorir a verdade, mas também
não desejaria negar e dissimular que me dei ao trabalho, que fiz
esforços, que lutei, mesmo quando me enganei. Levava aquilo a
sério. Mas que a minha tentativa de me integrar no século, de o
compreender e de ter nele um sentido, não tenha sido senão pura
presunção da minha parte ou não, aconteceu o que era natural: o
mundo foi mais forte do que eu; lentamente, arrasou-me e engoliu-
me. Passou-se tudo exatamente como se a vida me pegasse nas
palavras e me alinhasse totalmente pelo século, de que, nas nossas
discussões de Waldzell, eu gabara de tal modo e defendera contra a
tua lógica, a excelência, a naturalidade, a força e a superioridade
original. Tu lembras-te.
«E agora devo lembrar-te outra coisa que tu sem dúvida há muito
esqueceste, pois para ti não era importante. Mas para mim era
muito; foi grave para mim, grave e terrível. Os meus anos de
estudos tinham acabado, eu tinha-me adaptado, estava vencido,
mas não completamente: no fundo de mim mesmo continuava pelo
contrário a considerar-me como um dos vossos, e julgava ter
operado por astúcia e voluntariamente certas adaptações, certos
ajustamentos, em vez de os ter sofrido como vencido. Assim foi que
permaneci fiel a muitos hábitos e necessidades da minha juventude,
entre outros o Jogo das Contas de Vidro, o que provavelmente não
fazia sentido, pois, sem treino permanente e sem um intercâmbio
constante com adversários da mesma força e sobretudo dum nível
superior, não se pode aprender nada; jogar sozinho compensa
alguma coisa quando muito, como um monólogo compensa uma
conversa real e um verdadeiro diálogo. Portanto, sem saber bem
onde estávamos eu, a minha arte de jogador, a minha cultura, a
minha qualidade de aluno de elite, esforçava-me no entanto para
salvar esses bens, ou pelo menos parte deles. E quando, perante um
dos meus amigos dessa época que tentavam falar comigo do Jogo
das Contas de Vidro, sem fazer a mínima ideia do seu espírito,
esboçava o esquema duma partida ou analisava uma fase do jogo,
devia ser para esses perfeitos ignorantes como uma verdadeira
feitiçaria. Durante o meu segundo ou terceiro ano de estudos, segui
um curso de Contas de Vidro em Waldzell. Senti uma alegria
melancólica por voltar a ver a região, a cidadezinha, a nossa antiga
escola, a aldeia dos Jogadores, mas tu não estavas cá, estudavas
então não sei onde, em Monteport ou em Keuperheim e passavas
por um ambicioso que se punha à parte. O meu curso de Contas de
Vidro era na verdade apenas um curso de férias, ao nosso alcance,
pobres seculares e diletantes; no entanto, apresentava dificuldades
para mim, e fiquei orgulhoso por no fim obter o «três» ordinário,
essa menção «suficiente» que é o mínimo suficiente para se poder
seguir outros cursos de férias.
«E alguns anos mais tarde juntei toda a minha coragem e voltei a
inscrever-me num desses cursos; foi no tempo do teu antecessor.
Esforcei-me como pude para estar mais ou menos apresentável em
Waldzell. Reli duma ponta à outra os meus velhos cadernos de
trabalhos práticos, fiz também tentativas para voltar a familiarizar-
me um pouco com o exercício de concentração; em resumo, com os
meus modestos meios treinei-me para o curso de férias, preparei-me
mentalmente, recolhi-me como um verdadeiro Jogador de Contas de
Vidro para um grande Jogo anual. Fiz assim a minha entrada em
Waldzell onde, depois deste intervalo de alguns anos, me senti ainda
bem mais desenraizado. No entanto, ao mesmo tempo que sentia o
encanto disso, parecia-me regressar a uma bela pátria perdida mas
cuja língua já não me era familiar. E desta vez o vivo desejo que
tinha de voltar a ver-te foi igualmente satisfeito. Deves lembrar-te,
Josef.
Knecht olhou-o gravemente nos olhos, fez um sinal de cabeça
afirmativo e sorriu um pouco, mas não disse nada.
– Muito bem – prosseguiu Designori –, lembras-te portanto. Mas
de que é que te lembras? Duma entrevista fugidia com um
camarada de escola, um breve encontro e uma desilusão; cada um
segue o seu caminho e não pensa mais nisso a menos que, dezenas
de anos mais tarde, o interlocutor tenha a deselegância de to
lembrar. Não é? Para ti foi outra coisa, para ti foi mais?
Se bem que se esforçasse visivelmente por conter-se, encontrava-
se num estado de grande excitação, dir-se-ia que ia descarregar
sentimentos acumulados durante anos e inultrapassados.
– Estás a adiantar-te – disse Knecht com muita circunspecção. – O
que foi para mim falaremos disso quando for a minha vez e eu te
prestar contas. Agora és tu que tens a palavra, Plínio. Vejo que esse
encontro não te foi agradável. Nessa época também para mim o não
foi. Mas continua a contar o que se passou então. Fala com toda a
franqueza!
– Tentarei – disse Plínio. – Não quero fazer-te recriminações. Devo
também reconhecer no teu ativo que nesse momento te
comportaste para comigo com uma perfeita correção e mesmo mais
ainda. Quando acedi ao convite que me fizeste agora de vir a
Waldzell, que já não via desde esse segundo curso de férias, e
mesmo já a partir do momento em que aceitei ser eleito membro
desta Comissão encarregada de Castália, a minha intenção era
afrontar-te, afrontar o que então se passou, quer tenha sido ou não
agradável para ambos. E agora continuo. Tinha vindo para o curso
de férias e alojaram-me na casa dos hóspedes. As pessoas inscritas
no curso tinham quase todas a minha idade, algumas eram mesmo
sensivelmente mais velhas; éramos vinte quando muito, na sua
maior parte castalianos, mas ou maus castalianos, indiferentes e
falhados, ou principiantes que só tardiamente tiveram a ideia de se
familiarizar também um pouco com o Jogo; foi um alívio para mim
não ser conhecido de ninguém. Embora o diretor desse curso, um
auxiliar dos arquivos, fizesse louváveis esforços e se mostrasse
muito amável connosco, aquilo teve no entanto logo imediatamente
um pouco o aspeto duma escola de segunda ordem, um desses
cursos inúteis para alunos castigados, em cujo sentido e em cuja
eficácia os participantes, caídos ali por acaso, não acreditavam mais
do que o professor, se bem que nenhum o confesse. Podia-se
perguntar com espanto porque é que aquele punhado de pessoas se
tinham ali reunido, para praticar voluntariamente um desporto acima
dos seus meios e que não os interessava o bastante para lhes dar o
vigor de o suportarem e de se sacrificarem por ele e porque é que
um sábio especialista consentia em dar-lhes um ensino e ocupá-los
com exercícios cujo êxito não podia ele mesmo prometer-se.
Ignorava então, e só mais tarde viria a saber com pessoas mais
experientes, que tinha tido uma pouca sorte espantosa e que uma
distribuição ligeiramente diferente dos participantes teria podido
tornar aquele curso vivo, estimulante, entusiasmante mesmo. Muitas
vezes basta, disseram-me depois, dois adversários que se inflamam
mutuamente ou que se conhecem e já anteriormente tenham
simpatizado um com o outro para dar a um curso desses, a todos os
seus participantes, ao professor, um andamento de grandeza. Tu és
Mestre do Jogo das Contas de Vidro, deves conhecer bem isso. Em
resumo, não tive sorte; na nossa comunidade fortuita faltou a
pequena celulazinha vivificante; a atmosfera não aqueceu, o
entusiasmo não veio, foi e permaneceu um morno curso de
reciclagem para alunos adultos. Os dias passavam e cada um
somava-se à minha deceção. Mas fora do Jogo, tinha ainda Waldzell,
lugar de recordações sagradas, cultivadas com carinho, e se o curso
me desiludia, restava-me a alegria do regresso, o contacto com
camaradas de antigamente, talvez também a sorte de voltar a ver
aquele a quem se ligavam as minhas recordações mais numerosas e
mais fortes e que, aos meus olhos, mais do que nenhum outro,
encarnava a nossa Castália: tu, Josef. Se voltava a ver alguns dos
meus camaradas da juventude e da escola, se nos meus passeios
através desta bela região que tanto amava voltava a ver os bons
espíritos da minha adolescência, se tu voltasses a aproximar-te de
mim, se nas nossas conversas, como outrora, nascesse uma
discussão, menos entre tu e eu do que entre o meu problema
castaliano e eu próprio, então estas férias não teriam sido perdidas,
então pouco importavam o curso e o resto.
«Os dois camaradas de escola que encontrei primeiramente no
meu caminho eram insignificantes, deram-me pancadinhas
alegremente no ombro e fizeram-me perguntas infantis sobre a vida
fabulosa que eu levava no século. Mas outros eram menos
inocentes, faziam parte da aldeia dos Jogadores e do mais jovem
contingente da elite; não fizeram perguntas ingénuas, mas quando
nos voltávamos a encontrar numa das salas deste santuário e lhes
era impossível evitarem-me, saudavam-me com uma educação, ou
antes com uma afabilidade ácida, um pouco forçada, e tinham
sempre medo de não sublinhar bastante o quanto estavam
absorvidos por assuntos importantes e que eu nunca teria podido
compreender; o tempo, a curiosidade, a simpatia, a vontade,
faltavam-lhes para reatar as nossas relações de outrora. Não
procurei impor-me, deixei-os em paz, na sua paz olímpica, serena,
risonha, de castalianos. Olhava para eles, para as ocupações calmas
do seu dia, como um prisioneiro através das grades ou como os
pobres, os famintos e os oprimidos olham para os aristocratas e os
ricos, para essas pessoas alegres, lindas, cultas, bem educadas, bem
repousadas, de mãos e rostos tratados.
«E foi então que apareceste, Josef; a alegria e uma nova
esperança nasceram em mim quando te vi. Atravessavas o pátio,
reconheci-te de costas pelo andar e chamei-te logo pelo nome.
Enfim, um ser humano!, pensei, enfim um amigo, talvez mesmo um
adversário, mas com quem se pode falar, um castaliano ortodoxo, é
verdade, mas em quem o espírito de Castália não se petrificou numa
máscara e numa armadura, um ser humano que me compreenderá!
Deves ter visto a minha alegria e tudo o que esperava de ti, e com
efeito vieste também para mim com a maior das amabilidades. Ainda
me conhecias, eu representava ainda alguma coisa para ti, dava-te
prazer voltar a ver o meu rosto. Não ficámos, por conseguinte, por
essa breve e alegre saudação no pátio, convidaste-me e
consagraste-me, sacrificaste-me um serão. Mas que serão foi, meu
caro Knecht! Como nos torturámos ambos para parecermos de
excelente humor, para encontrarmos um tom de perfeita cortesia, de
camaradagem quase, e que esforço tivemos para fazer ir dum
assunto para outro aquela conversa que languescia! Se os outros me
tinham manifestado a sua indiferença, contigo era pior; o esforço
fatigante e vão para reanimar uma amizade passada fez-me muito
mal. Esse serão pôs um ponto final nas minhas ilusões; vi ser-me
demonstrado com impiedosa clareza que não era um camarada nem
um igual, que não era um castaliano, um homem de classe, mas um
grosseirão que se dava ares de familiaridade, um estrangeiro sem
cultura. E o que me pareceu pior, foi que tudo isso se passasse
naquela forma correta e bela, e que uma máscara tão perfeita
escondesse a tua deceção e a tua impaciência. Se me tivesses
insultado, se me tivesses feito críticas, se me tivesses acusado: “Mas
que foi feito de ti, meu amigo, como pudeste degenerar até esse
ponto?”, eu teria ficado feliz e o gelo teria sido quebrado. Mas não
se passou nada disso. Vi que ter pertencido a Castália não contava,
como também não contava ter gostado de vós, ter estudado o Jogo
das Contas de Vidro e ter sido teu camarada. O aspirante Knecht
tinha aceitado a minha importuna visita a Waldzell, tinha-me tido
nos braços todo um serão, tinha-se aborrecido; depois do que com
um irrepreensível respeito pelas formas me tinha polidamente
acompanhado à porta.
Lutando contra a sua irritação, Designori interrompeu-se e olhou
para o Magister com um ar torturado. Este, muito atento, era todo
ouvidos, mas não estava nada emocionado e considerava o seu
velho amigo com um sorriso cheio de simpatia amistosa. Como ele
não prosseguisse, Knecht deixou o seu olhar demorar-se nele, cheio
de benevolência e com uma expressão de satisfação, de prazer
mesmo; Plínio suportou-o durante um minuto, mais tempo talvez,
com um ar sombrio.
– Ris-te? – exclamou, com veemência, mas sem cólera. – Ris-te?
Achas isso tudo normal?
– Devo dizer – retorquiu Knecht sorrindo – que descreveste essa
aventura maravilhosamente, perfeitamente; passou-se tudo
exatamente como contaste e seria talvez necessário que a tua voz
conservasse esse tom ofendido e acusador para evocar tudo dessa
maneira e trazer-me essa cena à memória tão perfeitamente.
Embora manifestamente ainda vejas isso um pouco com os mesmos
olhos de então e ainda haja alguma coisa que te doa, devo dizer-te
que contaste objetivamente essa história de dois jovens colocados
numa situação bastante penosa, ambos obrigados a dissimular um
pouco e em que um, tu, cometeu o erro de esconder igualmente sob
um ar descontraído o sofrimento real e grave que aquilo tudo lhe
causava, em vez de tirar a máscara. Parece mesmo, até certo ponto,
que é a mim que atribuis ainda hoje o fracasso desse encontro,
enquanto te pertencia, sem dúvida nenhuma, acabar com essa
situação. Não viste isso verdadeiramente? Mas devo dizer-te que
descreveste tudo muito bem. Senti realmente outra vez todo o
incómodo e o embaraço desse serão bizarro, julguei outra vez, por
um momento, que me seria necessário lutar para conservar a
contenção e tive um pouco de vergonha por nós dois. Não, a tua
descrição é perfeitamente exata, é um prazer ouvir-te falar assim.
– Pois bem – retomou Plínio com alguma admiração, e sentia-se
na sua voz que ainda estava ofendido e desconfiado –, ainda bem
que a minha descrição divertiu pelo menos um de nós. Não tinha
absolutamente desejo nenhum de me divertir, se queres saber.
– Mas agora – disse Knecht – vês, apesar de tudo, que podemos
considerar com alegria essa história que não é nada gloriosa para
nenhum de nós? Podemos rir-nos dela.
– Rir-nos dela? Porquê?
– Porque esta história do ex-castaliano Plínio que se dá ao
trabalho de jogar às Contas de Vidro e merecer a estima dos seus
antigos camaradas pertence ao passado e perdeu toda a realidade,
bem como a do cortês aspirante Knecht, que, apesar de todo o
cerimonial castaliano, soube tão mal esconder o seu embaraço a
esse Plínio que lhe caía do céu, que, ao fim de tantos anos, lhe foi
mostrado hoje, como num espelho, qual era o aspeto que tudo isso
tinha. Mais uma vez, Plínio, tens boa memória, contaste bem tudo,
eu não teria sido capaz. É uma sorte para nós que essa história
pertença tanto ao passado que possamos rir-nos dela.
Designori estava desorientado. Havia certamente no bom humor
do Mestre algo que lhe era agradável, uma cordialidade isenta de
troça e sentia também que toda aquela jovialidade escondia uma
grande seriedade. Mas ao fazer a sua narrativa voltara a sentir
demasiado dolorosamente a amargura dessa aventura e a sua
narração revestira por de mais o carácter duma confissão para que
pudesse mudar agora de tom pura e simplesmente.
– Talvez te esqueças – disse com hesitação, se bem que já meio
convencido – de que o que te contei não foi para ti o mesmo que
para mim. Para ti era um transtorno quando muito; para mim foi
uma derrota e uma desilusão, e foi de resto o princípio de mudanças
importantes na minha existência. Quando nessa altura parti de
Waldzell, logo no fim do curso, decidi nunca mais voltar, e não
estava longe de odiar Castália e a vós todos. Tinha perdido as
ilusões e compreendi que já não era dos vossos, talvez que
antigamente nunca tivesse sido dos vossos tanto como julgava, e
pouco faltou para passar a ser um renegado e vosso inimigo
declarado.
O seu amigo lançou-lhe um olhar alegre e penetrante ao mesmo
tempo.
– Muito bem – replicou. – Espero que me contes isso tudo dentro
de pouco tempo. Mas por hoje a nossa situação é a seguinte, ao que
me parece: fomos amigos na nossa primeira juventude, estivemos
separados e seguimos vias muito diferentes; depois, voltámos a
encontrar-nos aquando do teu infeliz curso de férias. Tinhas-te
tornado quase um homem do mundo, talvez completamente, e eu
um habitante de Waldzell um pouco gordo e preocupado com o
formalismo castaliano. Hoje evocámos esse encontro dececionante e
humilhante. Voltámos a ver-nos com o nosso embaraço de outrora e
fomos capazes de suportar esse espetáculo e rir dele, pois hoje é
tudo completamente diferente. Também não dissimularei que a
impressão que me fizeste então me embaraçou muito; foi uma
impressão extremamente desagradável e negativa: não sabia que
fazer contigo, tu aparecias-me, foi inesperadamente, como um
perturbador, um ser primitiva, grosseiro, secular. Eu era um jovem
castaliano ignorante do século e verdadeiramente pouco desejoso
também de o conhecer e tu... pois bem, tu, tu eras um jovem
estrangeiro que não compreendia muito bem por que razão vinha
ver-nos, porque é que seguia um curso de Contas de Vidro, pois já
não me parecias ter o estofo dum aluno de elite. Nessa altura
enervaste-me tanto como eu próprio te irritava. Eu devia
naturalmente dar-te a impressão de ser um orgulhoso habitante de
Waldzell desprovido de méritos, preocupado em manter
cuidadosamente as distâncias entre ele e um não castaliano, um
jogador diletante. E tu eras para mim uma espécie de bárbaro ou
indivíduo semiculto, que parecia ter pretensões de ordem
sentimental, penosas e pouco fundadas, em relação ao meu
interesse e à minha amizade. Estávamos, um e outro, na defensiva,
não estávamos longe de nos odiarmos. Tudo quanto podíamos fazer
era ir cada um para seu lado, pois nenhum tinha nada a dar ao outro
e não era capaz de responder ao que o outro esperava.
«Mas hoje, Plínio, tínhamos o direito de evocar essa lembrança
que enterrámos pudicamente, tínhamos o direito de rir dessa cena,
pois hoje viemos um para o outro com intenções e possibilidades
completamente diferentes, sem falsa emoção, sem reprimir um
sentimento de ciúme ou de ódio, sem estarmos enfatuados com nós
mesmos, pois há muito tempo ambos nos tornámos homens.
Designori teve um sorriso de alívio. Mas ainda perguntou:
– Estamos assim tão certos disso? Bem vistas as coisas, nesse
tempo também tivemos boa vontade.
– Creio que sim – respondeu Knecht rindo-se –, e com a nossa
boa vontade infligimo-nos um tormento e uma sobrecarga quase
intoleráveis. Nessa altura não éramos capazes de nos suportar. Era
instintivo; cada um de nós achava no outro um aspeto insólito,
perturbante, estranho, antipático e só a ilusão de obrigações
recíprocas, de laços mútuos nos obrigou a desempenhar durante
todo um serão essa comédia penosa. Pouco antes da tua partida eu
já via as coisas claramente. Nós, nem um nem outro tínhamos
ultrapassado o estádio da nossa amizade e da nossa antiga
rivalidade. Em vez de as deixarmos extinguir-se, julgávamos dever
desenterrá-las e dar-lhes um seguimento, fosse ele qual fosse.
Sentíamos que tínhamos uma dívida para com o outro e não
sabíamos como a devíamos saldar. Tenho razão?
– Creio – disse pensativamente Plínio – que és um pouco bem-
educado de mais ainda hoje. Falas de «nós os dois» mas não
éramos dois a procurarmo-nos e a não conseguirmos encontrar-nos.
A procura, o amor, estavam ambos inteiros do meu lado, e também
a deceção e o sofrimento. Que mudança houve na tua vida,
pergunto-te, desde o nosso encontro? Nenhuma! Para mim, pelo
contrário, ele marcou um corte profundo e doloroso e é por isso que
não posso partilhar desse riso com o qual tu o votas ao
esquecimento.
– Desculpa-me – disse Knecht com um tom conciliador e amistoso
–, fui talvez um bocado depressa de mais. Mas espero ainda
conseguir, com o tempo, fazer-te rir comigo. Tens razão, nesse dia
foste ferido não por mim, é verdade, como julgavas e como ainda
pareces pensar, mas pela presença desse fosso que vos separa de
Castália, por essa incompatibilidade que julgávamos ter ultrapassado
quando éramos camaradas de escola e que surgia subitamente à
nossa frente, terrivelmente grande e profunda. Se é a mim
pessoalmente que atribuis a culpa disso, peço-te que exponhas as
tuas razões com toda a franqueza.
– Ora! Nunca foi um ressentimento. É uma queixa: na altura tu
não a ouviste e parece que hoje também ainda a não queres ouvir.
Nessa altura respondeste com um sorriso e contendo-te, e é o
mesmo que fazes ainda hoje.
Se bem que sentisse no olhar do Mestre a sua amizade e a sua
profunda benevolência, não podia impedir-se de insistir nesse ponto.
Julgava chegado o momento de se ver livre do fardo dessa dor
antiga.
Knecht não mudou de expressão. Refletiu um pouco e acabou por
dizer com circunspeção: – Creio que só agora começo a
compreender-te, meu amigo. Talvez tenhas razão e há que falar
também disso. Mas em primeiro lugar gostaria de te lembrar
simplesmente que tu só poderias querer que eu me interessasse por
isso a que chamas a tua queixa se a tivesses formulado realmente.
Ora, ao longo do nosso diálogo, nessa noite, na casa dos hóspedes,
não exprimias a mínima queixa; antes pelo contrário, como eu de
resto, mostravas-te enérgico, valente, tanto quanto eras capaz;
armavas-te, tal como eu, em alguém que nada tem a censurar-se e
que não precisa de ser lamentado. Mas em segredo, pelo que fico a
saber agora, esperavas que essa queixa sufocada chegasse apesar
de tudo aos meus ouvidos, que, por baixo da tua máscara, o teu
verdadeiro rosto me aparecesse. Pois bem, é verdade, na altura
apercebi-me de qualquer coisa; mas estava longe de ver tudo. Mas
como podia, sem ferir o teu orgulho, dar-te a compreender que me
preocupava contigo e que estava com pena de ti? E de que teria
servido estender-te a mão, uma vez que a minha estava vazia e eu
não tinha nada a dar-te, nem um conselho, uma consolação,
amizade, pois os nossos caminhos eram totalmente diferentes? Sim,
nesse dia, esse mal-estar e essa infelicidade secretos que escondias
debaixo do teu ar desenvolto eram-me penosos e incomodavam-me;
digamo-lo francamente, repugnava-me. Incluía uma pretensão à
simpatia e à piedade que não condizia com a tua atitude; achava
que tinha qualquer coisa de indiscreto e pueril, e não fez mais do
que arrefecer a minha amizade. Reivindicavas a minha
camaradagem, querias ser um castaliano, um Jogador de Contas de
Vidro e parecias ao mesmo tempo tão pouco senhor de ti, tão
bizarro, de tal modo absorvido por sentimentos egoístas! Foi mais ou
menos assim que então te julguei, pois via perfeitamente que não
restava quase nada de castaliano em ti; era claro que tinhas
esquecido tudo até às regras fundamentais. Bom, não era comigo.
Mas porque é que, nesse caso, vinhas a Waldzell, porque é que
querias abordar-nos como camarada? Era isso, como te disse, que
me irritava e me repugnava, e tiveste perfeitamente razão em
interpretar então a minha boa educação forçada como uma recusa.
Sim, recusava-te profundamente, não porque eras um filho do
século mas porque pretendias passar por castaliano. Quando, ao fim
de tantos anos, voltaste a aparecer não havia marcas disso em ti,
parecias um homem do século, falavas como qualquer outro do
exterior, e o que me parece mais estranho em ti foi essa expressão
de tristeza, de desgosto ou de infelicidade no teu rosto. Mas tudo
isso, a tua atitude, as tuas palavras e até a tua tristeza, tudo isso me
agradou: era belo, estava de acordo contigo, era digno de ti; não
havia nada nisso que me chocasse; podia aceitar-te, defender-te,
sem me sentir mal comigo intimamente; desta vez não era
necessário um excesso de boa educação e de convenção; vim por
conseguinte imediatamente ao teu encontro como amigo, e esforcei-
me para te mostrar o meu afeto e a minha simpatia. Desta vez foi o
inverso da outra: fui antes eu que me esforcei e te fiz a corte
enquanto tu permanecias muito reticente. Mas evidentemente, sem
o dizer, considerei a tua aparição na nossa Província e o interesse
que manifestavas pelo seu destino como uma espécie de profissão
de amor e fidelidade. Em resumo, acabaste por ceder às minhas
instâncias, e chegámos ao ponto em que somos capazes de nos
abrir um com o outro e esperar a renovação da nossa velha
amizade.
«Acabas de dizer que este encontro da juventude te fez mal, mas
que não foi importante para mim. Não discutamos isso e talvez
tenhas razão. Mas o nosso encontro de agora, amice, está longe de
não ter importância para mim, tem muito mais importância do que
posso dizer-te e do que tu podes certamente supor hoje. Para dizer
tudo numa palavra, não é somente o regresso dum amigo perdido, e
a seguir a ressurreição dum passado que encontra aqui novas forças
e nelas se metamorfoseia. Tem sobretudo para mim o sentido dum
apelo, duma mão estendida, abre-me um caminho para o vosso
século e coloca-me novamente perante o velho problema duma
síntese entre vós e nós; este acontecimento, digo-te, chega no
momento certo. Este apelo, desta vez, não encontrará um surdo,
encontrar-me-á mais acordado do que nunca, pois, para dizer a
verdade, não me surpreende, não é para mim uma voz estrangeira
vinda do exterior à qual se pode tanto dar ouvidos como fechá-los;
parece-me pelo contrário emanar de mim próprio, é a resposta a
uma exigência muito forte que se tornava urgente, a uma miséria e
a uma saudade que trago em mim. Mas falaremos disso noutra vez,
e é tarde já, ambos precisamos de descansar.
«Falavas há pouco da minha serenidade e da tua tristeza, e davas
a entender, parece-me, que eu não ligo ao que tu chamas a tua
“queixa”, mesmo hoje, pois lhe respondo com um sorriso. Há
qualquer coisa aí que não compreendo muito bem. Porque é que
não se pode ouvir uma queixa com serenidade, porque é que não se
deve responder-lhe com um sorriso, mas com tristeza? Voltaste a
Castália, para junto de mim, com o teu desgosto e as tuas
preocupações: creio poder concluir que é precisamente talvez a
nossa serenidade que te diz respeito. Se, por outro lado, não
partilho da tua tristeza e das tuas preocupações, e se não tenho o
direito de me deixar ganhar por elas, isso não significa que as
conteste e que as não leve a sério. À expressão que tens, que a tua
vida e o teu destino secular te imprimiram no rosto, reconheço-lhe
todo o sentido: é o teu fardo, pertence-te; amo-a e respeito-a,
esperando ao mesmo tempo vê-la mudar. Que origem tem? Só
posso adivinhá-lo, depois tu dir-me-ás ou calarás o que achares
melhor. Tudo o que consigo ver é que pareces ter uma vida difícil.
Mas porque julgas que não quero nem posso interessar-me pelas
tuas preocupações?
O rosto de Designori tornara a ensombrar-se. – Às vezes – disse
com resignação –, parece-me que não só temos dois modos de
expressão, duas línguas diferentes que não podem traduzir-se uma
na outra a não ser por alusões, como também são os nossos seres
que diferem total e profundamente e que nunca poderemos
compreender-nos. Quem, nós ou vós, representa o tipo de homem
autêntico e completo? Nós? Parece-me cada vez mais duvidoso.
Houve momentos em que erguia os olhos para vós, membros da
Ordem e Jogadores de Contas de Vidro, com tanta veneração,
humildade e inveja como para deuses ou super-homens destinados a
uma eternidade de alegria, jogo e prazer, com as suas próprias
existências, inacessíveis a toda a dor. Noutros momentos,
aparecestes-me dignos ora de inveja, ora de piedade e ora de
desprezo, castrados que éreis, artificialmente presos a uma infância
eterna, rapazinhos pueris no vosso mundo do Jogo, neste jardim-
infantil ignorante das paixões, perfeitamente isolado e bem asseado,
onde todos os narizes estão limpos e adormecidos e superados
todos os arroubos inconvenientes do coração e do espírito, onde
durante toda a vida se brinca a uns jogozinhos amáveis sem perigo,
que não fazem correr sangue, onde todos os entusiasmos de vida,
todos os grandes sentimentos, todas as verdadeiras paixões, todos
os transportes do coração que vêm lançar a confusão são
imediatamente controlados, desviados e neutralizados pela
terapêutica da contemplação. Não é um mundo artificial,
esterilizado, castrado pelos vossos mestres-escola, mas antes mais
um mundo truncado e feito de aparências, este universo onde
vegetais cobardemente, um mundo sem vícios, sem paixões, sem
fome, sem seiva nem sal, um mundo sem família, sem mães, sem
filhos, e mesmo sem mulheres ou quase! A vida instintiva é aqui
domada pela meditação; tudo quanto seja perigoso, a doer,
carregado de responsabilidade, como a economia, o direito, a
política, foi, há gerações, abandonado a outros; aqui vive-se
cobardemente uma vida de parasita, perfeitamente abrigada, livre
da preocupação de ter de se alimentar, sem obrigações demasiado
fastidiosas e, para que não seja tudo muitíssimo aborrecido,
consagrais-vos diligentemente a essas especialidades de eruditos,
contais sílabas e letras, tocais música e jogais às Contas de Vidro,
enquanto lá fora, na porcaria do mundo, as pobres gentes acossadas
vivem a vida verdadeira e fazem o verdadeiro trabalho.
Knecht escutara-o com uma atenção constante e amistosa.
– Meu caro amigo – disse pensativamente –, como as tuas
palavras me recordaram o tempo em que andávamos na escola e tu
me criticavas e me atacavas francamente! A única diferença é que
hoje já não tenho o mesmo papel que antigamente; hoje não tenho
de defender a Ordem e a Província contra os teus ataques e
congratulo-me por não estar encarregado dessa penosa tarefa, que
já uma vez me custou esforços demasiado grandes. É que é um
pouco difícil responder a um assalto de grande estilo como o que
acabas de me lançar, de tambores a rufar. Falas-me por exemplo de
pessoas que lá fora, no país, «vivem a vida verdadeira e fazem o
verdadeiro trabalho». Isso soa tão absoluto e sincero, quase como
um axioma, e, se se quisesse aceitar o desafio, seria necessário ser
deselegante, ou quase, e recordar ao orador que o seu «verdadeiro
trabalho» consiste todavia, em parte, em contribuir, numa comissão,
para a prosperidade e a manutenção de Castália. Mas chega de
brincadeira! As tuas palavras e o teu tom mostram-me que o teu
coração ainda está cheio de ódio contra nós, e, ao mesmo tempo,
dum amor desesperado, de desejo e de saudade. Para ti somos
cobardes, parasitas ou meninos que brincam num jardim-infantil,
mas em certos momentos viste também em nós deuses eternamente
serenos. Há uma coisa, em todo o caso, que creio poder deduzir das
tuas palavras: não é, apesar de tudo, Castália que é responsável
pela tua tristeza, pela tua infelicidade, chamemos-lhe como
quisermos. Se fôssemos nós, castalianos, a causa disso, as censuras
e as objeções que nos fazes hoje já não seriam certamente as
mesmas como nas discussões da nossa infância. Falar-me-ás mais
nas nossas conversas ulteriores, e não duvido que não encontremos
um meio de te tornar mais feliz e mais alegre, ou, pelo menos, de
tornar as tuas relações com Castália mais espontâneas e mais
agradáveis. Tanto quanto até aqui consigo ver, a tua atitude para
connosco, para com Castália, e, por consequência, para com a tua
própria juventude e os teus anos de escola, é falsa, parcial e
sentimental. Tens a alma dividida entre castalianos e gentes do
século, e torturas-te demasiado com aquilo de que não és
responsável. Mas é possível que leves demasiado pouco a sério
outras coisas de que és responsável. Suponho que há já muito
tempo não fazes exercícios de meditação, não é verdade?
Designori teve um sorriso atormentado. – Que perspicácia,
Domine! Há muito tempo, é o que julgas? Há anos e anos que
renunciei às magias da meditação. Como te preocupas comigo, de
repente! Nessa época em que todos vós me mostrastes, em
Waldzell, no meu curso de férias, tanta cortesia e desprezo, e
repelistes com tanta distinção as minhas intenções amistosas, parti
daqui com a resolução de acabar duma vez por todas com o que
havia em mim de castaliano. A partir desse dia renunciei ao Jogo das
Contas de Vidro, nunca mais meditei; durante algum tempo perdi
inclusivamente o gosto pela música. Em vez disso encontrei novos
camaradas que me ensinaram os prazeres do século. Bebemos e
fomos às prostitutas, experimentámos todos os estupefacientes
acessíveis, cuspimos em todas as conveniências, em todas as
respeitabilidades, em todos os ideais, escarnecemos de tudo. Estas
extravagâncias não duraram muito tempo naturalmente, contudo
bastaram para decapar completamente o que me restava de verniz
castaliano. E quando, anos mais tarde, me aconteceu dar-me conta
de que tinha ido um pouco longe de mais e que um pouco de
técnica contemplativa me teria sido muito útil, tinha-me tornado
demasiado orgulhoso para voltar a praticá-la.
– Demasiado orgulhoso? – perguntou Knecht a meia voz.
– Sim, demasiado orgulhoso. Entretanto, tinha mergulhado no
século e havia-me tornado um homem do século. Queria apenas ser
um deles, já não queria outra vida que não a deles, a sua vida
apaixonada, infantil, cruel, impetuosa, que vacila entre a felicidade e
o medo. Desdenhei recorrer aos vossos processos para me aliviar
um pouco e criar para mim uma posição privilegiada.
O Magister lançou-lhe um olhar penetrante. – E aguentaste isso
durante anos? Não utilizaste outros meios para venceres isso?
– Oh, sim – confessou Plínio. – Fi-lo e ainda hoje o faço. Há
momentos em que bebo e geralmente para poder dormir preciso de
toda a espécie de estupefacientes.
Knecht fechou os olhos durante um segundo, como se apanhado
por um cansaço súbito, depois voltou a olhar firmemente para o seu
amigo. Fixou-o nos olhos, em silêncio, primeiramente inquisidor e
severo, mas pouco a pouco com uma ternura, um afeto e uma
serenidade cada vez maiores. Designori declara nas suas notas que
até esse momento nunca vira um olhar como aquele em olhos
humanos, ao mesmo tempo perscrutante e tão cheio de amor,
inocente e condenatório, irradiante de amizade e omnisciente.
Confessa que aquele olhar ao princípio o desorientou e irritou,
depois tranquilizou-o e, pouco a pouco, domou-o com uma suave
violência. Mas tentou ainda defender-se.
– Dizias – exclamou – que conheces meios de me tornar mais feliz
e mais alegre. Mas nem sequer me perguntas se eu quero.
– Mas – disse Knecht rindo-se –, quando se pode tornar um ser
mais feliz e mais sereno, deveríamos fazê-lo em todos os casos, quer
ele o peça ou não. E como poderias tu não procurar e não desejar
isso? É para isso que estás aqui, que estamos outra vez sentados
aqui à frente um do outro, é para isso que voltaste aqui. Odeias
Castália, despreza-la, estás mais do que orgulhoso da tua vida de
secular e da tua tristeza para querer aliviá-las com um pouco de
razão e de meditação, e no entanto uma saudade secreta e
indomável, durante todos estes anos, conduziu-te e aproximou-te de
nós, da nossa serenidade, até te veres obrigado a voltar e a tentar
mais uma vez a experiência connosco. E digo-to, desta vez vieste na
boa altura, no momento em que eu também tinha uma grande
saudade de ouvir um apelo do vosso século, de ver uma porta abrir-
se. Mas falaremos disso da próxima vez! Fizeste-me todo o tipo de
confidências, meu amigo, agradeço-tas e vais ver que também eu
tenho confissões a fazer-te. É tarde, partes amanhã cedo e a mim
espera-me um novo dia de trabalho; temos de não demorar muito a
irmos dormir. Concede-me apenas um quarto de hora, peço-te.
Ergueu-se, foi à janela e olhou para o céu: por entre as nuvens
que passavam, apareciam em todo o lado nesgas de céu profundo e
límpido, semeado de estrelas. Como não regressasse imediatamente,
o seu convidado ergueu-se também e foi ter com ele à janela. O
Magister continuava de pé, a olhar para o céu e saboreando em
grandes haustos ritmados o ar fresco e leve daquela noite de
outono. Apontou para o céu com a mão.
– Olha – disse – para esta paisagem de nuvens com os seus fiapos
de azul! À primeira vista poder-se-ia julgar que as profundezas são
nos sítios onde a noite é mais escura, mas vemos logo que esta
escuridão sem resistência é feita apenas de nuvens e que as grandes
funduras do espaço cósmico começam somente na borda e nos
fiordes desses maciços de bruma... Aí, mergulham no infinito, onde
brilham solenemente as estrelas, símbolos supremos para nós,
humanos, da clareza e da ordem. As profundezas do mundo e dos
seus segredos não se encontram onde estão as nuvens e as trevas:
o seu fundo está na clareza e na serenidade. Permite-me que te faça
um pedido: antes de ires deitar-te, olha por um momento para
aqueles golfos e aqueles estreitos com todas as suas estrelas, e não
expulses os pensamentos ou os sonhos que possam vir-te.
Plínio sentiu uma palpitação singular no coração, não soube se de
dor ou de alegria. Fora com palavras análogas, lembrava-se, que
outrora, em tempos infinitamente longínquos, na bela serenidade
dos seus inícios de aluno em Waldzell, o tinham exortado aos seus
primeiros exercícios de meditação.
– E permite-me que acrescente uma palavra – prosseguiu o
Mestre das Contas de Vidro em voz baixa. – Gostaria de te dizer
ainda alguma coisa sobre a serenidade das estrelas e do espírito, e
também da que nos é própria, em Castália. Tens aversão à
serenidade, provavelmente porque a via que tiveste de seguir era a
da tristeza. Presentemente, toda a espécie de clareza e de bom
humor, especialmente os nossos, parecem-te superficiais, infantis, e
também cobardes; vês neles uma fuga aos terrores e aos abismos
da realidade para um mundo claro, bem ordenado, só formas e
fórmulas, abstrações e superfícies lisas. Mas, meu caro e triste
amigo, mesmo que fosse uma fuga, mesmo que não faltassem
castalianos poltrões e tímidos, que jogam com fórmulas ocas,
mesmo que, além disso, estes fossem a maioria, isso nada tiraria ao
valor e ao brilho da verdadeira serenidade, a do céu e a do espírito.
Se há entre nós pessoas que se satisfazem com pouco e têm apenas
uma aparência de serenidade, outros há, homens, gerações de
homens, para quem a serenidade não é um jogo nem um verniz,
mas uma coisa grave e profunda. Conheci um: era o nosso antigo
Mestre da Música, que tu por vezes também viste em Waldzell. Nos
seus últimos anos de vida, esse homem possuía a tal ponto a virtude
da serenidade, que esta irradiava dele como a luz dum sol,
transbordava sobre todos uma corrente de bondade, de alegria de
viver, de bom humor, de confiança e de certeza, e os seus raios
refletiam-se em todos os que tinham recolhido a sua luz com
gravidade e se tinham deixado penetrar por eles. Eu também estive
na sua luz e ele comunicou-me também um pouco da sua clareza e
do brilho do seu coração, como ao nosso amigo Ferromonte e a
muitos outros mais. Alcançar essa serenidade é para mim, é para
muitos homens, o fim supremo e o mais nobre. Encontrá-la-ás
também em alguns Irmãos da Direção da Ordem. Essa serenidade
não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento
supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à
borda dos grandes fundos e de todos os abismos; é uma virtude dos
santos e dos cavaleiros, é indestrutível e cresce com a idade e a
aproximação da morte. É o segredo da beleza e a verdadeira
substância de toda a arte. O poeta que celebra, na dança dos seus
versos, as magnificências e os terrores da vida, o músico que lhes
dá os tons duma pura presença, trazem-nos a luz; aumentam a
alegria e a clareza sobre a Terra, mesmo se primeiro nos fazem
passar por lágrimas e emoções dolorosas. Talvez o poeta cujos
versos nos encantam tenha sido um triste solitário, e o músico um
sonhador melancólico: isso não impede que as suas obras participem
da serenidade dos deuses e das estrelas. O que eles nos dão, não
são mais as suas trevas, a sua dor ou o seu medo, é uma gota de
luz pura, de eterna serenidade. Mesmo quando povos inteiros,
línguas inteiras, procuram explorar as profundezas cósmicas em
mitos, cosmogonias, religiões, o último e o supremo termo que
poderão atingir é essa serenidade. Lembras-te dos antigos hindus, o
nosso professor de Waldzell falou-nos muito deles: era o povo da
dor, da busca obstinada, da expiação, do ascetismo; mas os últimos
grandes achados do seu espírito foram todos de luz e serenidade: o
sorriso sereno dos triunfadores do mundo e dos budas, as figuras
serenas das suas insondáveis mitologias. O mundo, tal como essas
mitologias o representam, começa por ser divino na origem, bem-
aventurado, radioso, belo como a primavera: é uma idade de ouro.
Em seguida, sucumbe à doença e degenera cada vez mais, torna-se
grosseiro e miserável, e, no fim das quatro idades cósmicas, durante
as quais cai cada vez mais profundamente, está maduro para ser
espezinhado e destruído por Xiva, aquele que ri e dança. Mas o
universo não acaba aí, recomeça com o sorriso de Vixnu, que, num
sonho, cria com as suas mãos brincalhonas um mundo novo, jovem,
belo, radioso. Isso é admirável: esse povo, perspicaz e sensível como
talvez nenhum outro, observou com vergonha e horror o jogo cruel
da história universal, a eterna rotação da roda da cupidez e da dor,
viu e compreendeu a caducidade da coisa criada, a rapacidade e o
diabólico do homem e, ao mesmo tempo, a sua profunda saudade
da pureza e da harmonia. E, para exprimir toda a beleza e tragédia
da criação, encontrou os símbolos magníficos das idades e da queda
do mundo, do poderoso Xiva, cuja dança destrói este universo
degenerado, e do sorridente Vixnu, que dorme na sua cama e, dos
seus divinos sonhos de ouro, faz surgir, a brincar, o universo novo.
«A nossa serenidade castaliana é um ramo talvez tardio e menor
dessa grande serenidade, mas perfeitamente legítimo. Sabê-lo, nem
sempre nem em todo o lado, foi sereno, ainda que devesse sê-lo.
Aqui, o saber, o culto da verdade, está intimamente ligado ao culto
do belo, bem como à prática da meditação e à cultura da alma:
nunca pode perder, por conseguinte, inteiramente a sua serenidade.
Quanto ao nosso Jogo das Contas de Vidro, ele une em si estes três
princípios: a ciência, o respeito pelo belo e a meditação. Um
verdadeiro Jogador de Contas de Vidro deveria portanto estar
impregnado de serenidade, como um fruto maduro pelo seu sumo
açucarado; deveria antes de mais possuir em si a serenidade da
música, essa forma da coragem, esse passo de dança alegre e
sorridente através do terror e das chamas do mundo, essa solene
oferta duma vítima. Foi esta serenidade que me atraiu, logo que
comecei, aluno e depois estudante, a pressenti-la e a compreendê-
la, e nunca renunciarei a ela, mesmo na infelicidade e no
sofrimento.
«Agora vamos dormir, tu tens de partir cedo. Volta depressa, fala-
me mais de ti; eu dir-te-ei também mais; ficarás a saber que,
mesmo em Waldzell e na vida dum Magister há problemas,
desilusões e mesmo desesperos e coisas diabólicas. Mas agora tens
de ir dormir com os ouvidos cheios de música. Erguer os olhos para
o céu estrelado e encher o ouvido de música antes de dormir vale
mais do que todos os soporíferos.
Sentou-se e tocou delicadamente, muito baixo, uma frase daquela
sonata de Purcell que era uma das peças favoritas de Frei Jakobus.
Como gotas de luz dourada, os sons filtravam-se no silêncio, tão
baixo que ainda se ouvia cantar nos seus intervalos a velha fonte do
pátio. Ternas e severas, austeras e doces, as vozes desta música
grácil encontravam-se e cruzavam-se; dançavam, corajosas e
serenas, na sua ronda íntima através do nada do tempo e da
precariedade; efémeras, davam ao espaço e a esta hora noturna a
amplidão e a grandeza do universo e, quando Josef se despediu do
seu convidado, o rosto deste estava mudado: tinha-se iluminado e
ao mesmo tempo havia lágrimas nos seus olhos.
PREPARATIVOS

Knecht tinha conseguido quebrar o gelo; entre ele e Designori


voltaram a nascer relações, trocas cheias de vida, reconfortantes
para ambos. Designori, que vivera muitos anos numa melancolia
resignada, foi obrigado a dar razão ao seu amigo: fora a saudade da
cura, da clareza, da serenidade castaliana que o levara a voltar à
Província pedagógica. Passou a vir à Província com frequência,
mesmo sem a comissão e sem qualquer fim oficial. Tegularius
observava-o com desconfiança ciumenta. E o Magister Knecht não
tardou a saber sobre a sua pessoa e sobre a sua vida tudo de
quanto precisava. A existência de Designori não fora tão
extraordinária nem tão complicada quanto Knecht supusera depois
das suas primeiras revelações. Durante a juventude Plínio sofrera, no
seu entusiasmo e na sua sede de ação, a deceção e a humilhação
que se sabe. Posto entre o século e Castália, não se tornara um
intermediário e um reconciliador mas um outsider solitário e azedo.
Não tinha conseguido a síntese dos elementos seculares e
castalianos que lhe vinham das suas origens e do seu carácter. E, no
entanto, não era um simples falhado, tinha apesar de tudo, na
derrota e na renúncia, adotado uma posição própria e assumido um
destino pessoal. A educação recebida em Castália não parecia dar
bons resultados; seja como for trouxera-lhe apenas, logo de início,
conflitos e deceções, uma singularidade e uma solidão profundas
dificilmente suportáveis pela sua natureza. E dir-se-ia que, uma vez
tomada esta via espinhosa de original inadaptado, era ainda
obrigado a esforçar-se para se isolar e aumentar as suas
dificuldades. Nomeadamente, a partir do momento em que começou
a ser estudante, teve um diferendo irredutível com a família,
sobretudo com o pai. Este, sem se incluir no número dos chefes
políticos propriamente ditos, tinha sido, como todos os Designori,
um pilar do conservadorismo e do partido governamental, um
inimigo de todas as inovações, oposto às reivindicações jurídicas e
sociais das classes desfavorecidas, cheio de desconfiança para com
aqueles que não tinham nem nome nem posição, fiel à ordem
antiga, a tudo quanto lhe parecia legítimo e sagrado, e pronto a
sacrificar-se-lhe. Sem ter necessidades religiosas, era mesmo assim
um amigo da Igreja, e, se bem que não fosse isento de espírito de
justiça, de benevolência e de assistência, opunha-se obstinadamente
e por princípio aos esforços tentados pelos rendeiros para
melhorarem a sua situação. Justificava esta dureza com uma falsa
lógica, invocando o programa e as palavras de ordem do seu
partido. Na realidade, não eram evidentemente a convicção nem a
perspicácia que o guiavam, mas uma fidelidade feudal cega aos seus
pares e às tradições da sua casa. Um certo espírito e um sentido
cavalheiresco da honra, bem como um desprezo ostensivo por tudo
quanto se pretendia moderno, progressista e atual, constituíam de
resto um dos traços do seu carácter.
Tal era o homem. O seu filho Plínio desiludiu-o, irritou-o e
amargurou-o ao aproximar-se, em estudante, dum partido
claramente modernista de oposição e filiando-se nele. Por essa
altura tinha-se formado uma ala esquerda juvenil dum velho partido
liberal burguês, dirigida por Veraguth, publicista, deputado e tribuno
popular que era bastante eficaz a deitar poeira nos olhos dos outros,
amigo do povo, herói da liberdade cheio de temperamento que às
vezes se deixava comover um pouco e entrar em transe com as suas
próprias palavras. Os seus esforços para ganhar para a sua causa a
juventude estudantil por meio de conferências públicas nas cidades
universitárias deram os seus frutos e, entre outros ouvintes e
partidários entusiastas, trouxeram-lhe o filho de Designori. Este
jovem, desiludido com a universidade e à procura duma base, dum
sucedâneo da moral castaliana que perdera aos seus olhos a sua
substância, à procura dum idealismo e dum programa novos, fossem
eles quais fossem, tinha ficado entusiasmado com as conferências
de Veraguth; admirava-lhe o pathos e a coragem agressiva, o
espírito, as poses acusadoras, a beleza da aparência e da linguagem,
e aderiu a um grupo de estudantes que, depois de o ouvirem, faziam
propaganda do seu partido e dos seus objetivos. Quando o pai de
Plínio soube, foi ter imediatamente com o filho; pela primeira vez na
sua vida foi fulminante com ele, no auge da cólera acusou-o de
conspirar, de trair o pai, a família e as tradições da sua casa e, com
uma ordem curta, intimou-o a emendar os seus erros imediatamente
e a romper com Veraguth e o seu partido. Não era o melhor método
para influenciar o jovem, pois este achou que a sua atitude ia
precisamente fazer de si uma espécie de mártir. Plínio resistiu à fúria
do pai e declarou-lhe que não frequentara durante dez anos a escola
de elite e alguns anos a universidade para renunciar às suas
conceções e ao seu juízo pessoal e deixar que uma dique de barões
latifundiários egoístas lhe ditasse o que devia pensar do Estado, da
economia e da justiça. Serviu-se, nessa circunstância, das lições de
Veraguth, que, tal como os grandes tribunos, ignorava sempre os
seus próprios interesses e os da sua classe e não pretendia outra
coisa no mundo que não fosse a justiça e a humanidade puras e
absolutas. O velho Designori soltou uma gargalhada amarga.
Convidou o filho a começar por ao menos acabar os seus estudos
antes de se meter em assuntos de homem e não achar que sabia
mais sobre a vida humana e a justiça do que séries de gerações
veneráveis das nobres raças de que era um rebento degenerado e às
quais a sua traição apunhalava agora pelas costas. Cada palavra
agravava a querela, o azedume e os insultos de ambos: por fim, o
velho, como se tivesse visto num espelho o seu rosto desfigurado
pela cólera, calou-se, gelado de vergonha, e foi-se embora sem uma
palavra. A partir desse dia Plínio nunca mais voltou a encontrar a
antiga intimidade inocente que dava toda a sua atração à casa
paterna, pois não somente permaneceu fiel ao seu grupo e ao
neoliberalismo deste como, antes sequer de concluir os estudos, se
tornou no discípulo, auxiliar e colaborador direto de Veraguth e,
alguns anos depois, seu genro. Se a educação que recebera na
escola de elite, ou antes, se a dificuldade de seguidamente se
habituar ao século e ao seu país natal não tinham destruído o
equilíbrio espiritual de Designori e dado à sua vida uma inquietação
que a minava completamente, esta nova situação acabou por levá-lo
a uma situação exposta, difícil e delicada. Nesta situação ganhou
seguramente um bem valioso: uma espécie de fé, convicção e
pertença políticas, que respondiam à sua necessidade juvenil de
justiça e de vontade de progresso. Encontrou na pessoa de Veraguth
um mestre, um guia e a amizade duma pessoa mais velha que
admirou e amou de início sem espírito crítico e que, além disso,
parecia estimá-lo e precisar dele; ganhou com ele uma orientação e
uma finalidade, um trabalho e a tarefa da sua vida. Não era pouca
coisa, mas teve de a pagar caro. Este jovem teria sabido resignar-se
à perda da sua posição natural, hereditária, na casa do seu pai e na
sua classe social; teria podido suportar com um certo masoquismo
fanático ser excluído duma casta privilegiada e suportar a sua
hostilidade, mas havia muitas coisas de que não pôde consolar-se
completamente: roía-o principalmente o sentimento de ter feito
sofrer a mãe que muito amava, tê-la colocado numa situação
extremamente penosa e delicada, entre o pai e ele, e sem dúvida
ter-lhe abreviado a vida. Morreu pouco depois do seu casamento.
Após a sua morte, Plínio não mais se mostrou na casa do pai e,
quando este faleceu, vendeu a sua moradia familiar antiga.
Existem naturezas que conseguem a proeza de gostar e tornar sua
uma situação, uma função, um casamento, uma profissão, devido
precisamente ao sacrifício que lhes custou, e que neles encontram a
sua felicidade e a sua satisfação. Com Designori foi diferente.
Permaneceu fiel, evidentemente, ao seu partido e ao seu chefe de
fila, à sua orientação e à sua atividade política, ao seu casamento e
ao seu idealismo. Mas, com o tempo, encontrou nisso tudo uma
fonte de tantos problemas como os que sempre lhe causara a sua
própria natureza. O seu entusiasmo político e ideológico de jovem
acalmou-se; com o tempo, lutar por ter razão não o tornou mais feliz
do que sofrer e sacrificar-se por desafio. Por outro lado, adquiriu
uma experiência de profissional e a concomitante desilusão. Por fim,
perguntou-se se, no fundo, era somente o sentido da verdade e do
direito que fez dele um partidário de Veraguth, se a retórica deste e
a sua habilidade de tribuno popular, o seu encanto e a sua
habilidade na cena pública, se as sonoridades da sua voz e a
virilidade do seu riso soberbo, a inteligência e a beleza da sua filha
não eram, pelo menos parcialmente, os responsáveis. Cada vez com
mais insistência perguntou-se se o velho Designori tinha realmente
defendido o ponto de vista menos nobre quando permaneceu fiel à
sua classe e se mostrou duro para com os rendeiros. Perguntou-se
também se o bem e o mal, o justo e o injusto existiam no absoluto,
se, em última análise, a linguagem da sua própria consciência não
era o único juiz válido: se o fosse, Plínio estaria errado, pois não
vivia na felicidade, na calma e na fé, na confiança e na certeza, mas
na indecisão, na dúvida e na má consciência. O seu casamento não
era certamente um casamento infeliz e falhado no sentido brutal da
palavra, mas conhecia continuamente crises, complicações,
dificuldades. Era talvez o que Plínio tinha de melhor, mas isso não
lhe trazia o repouso, a felicidade, a consciência tranquila de que
tanto precisava; exigia muita circunspeção e aprumo e custava-lhe
muito esforço. Até o seu filhinho Tito, uma bela criança muito
dotada, se tornou rapidamente objeto de conflito, objeto de
manobras diplomáticas; buscaram os seus favores, tiveram ciúmes
dele até que esse pequeno ser demasiado amado e mimado optou
cada vez mais pela mãe e se tornou o seu campeão. Tinha sido a
última dor, a última perda que Designori conhcera na sua vida e era,
parecia, o que mais amargura lhe causara. Não o destruíra, triunfara
disso e encontrara e mantivera uma contenção que era digna, mas
grave, constrangida e melancólica.
Knecht soube tudo isto, pouco a pouco, da boca do seu amigo,
durante inúmeras visitas e encontros. Em troca falara-lhe também
das suas experiências e dos seus problemas pessoais. Nunca deixou
Plínio chegar à situação dum homem que se confessou e que, mal a
hora passa e a atmosfera muda, se arrepende e deseja retratar-se.
Antes pelo contrário, conservava e fortificava a confiança de
Designori com a sua própria franqueza e com o seu abandono.
Pouco a pouco, a sua vida desdobrou-se à frente dos olhos do
amigo, em aparência muito simples, retilínea, exemplar e regrada,
dentro duma ordem hierarquizada, de estrutura límpida; era uma
carreira rica de êxitos e distinções, mas uma vida dura, cheia de
sacrifícios e muito solitária; se muitos pontos não eram
completamente inteligíveis àquele homem do exterior, ele apreendia-
lhe todavia as grandes correntes e os tons profundos, e nada podia
ser-lhe mais compreensível e fazê-lo vibrar mais do que a
necessidade de Knecht de se dirigir à juventude, a jovens alunos que
ainda não estivessem deformados, exercer uma atividade modesta,
sem brilho, sem aquela obrigação constante do decoro, uma
atividade por exemplo de professor de latim ou de música de nível
elementar. E enquadrava-se perfeitamente no estilo do método
terapêutico e educativo de Knecht não se contentar em conquistar
aquele paciente com a sua grande franqueza, mas sugerir-lhe
também que, em contrapartida, podia ajudá-lo, ser-lhe útil e incitá-lo
desse modo a fazê-lo realmente. De facto, Designori podia ser útil
ao Magister em muitos aspetos, pouco quanto ao essencial, mas
mais, em contrapartida, na satisfação da sua curiosidade e da sua
sede de conhecer mil pormenores da vida do século.
Ignoramos por que razão Knecht se deu ao trabalho de ensinar a
sorrir e rir ao seu melancólico amigo da juventude e se, ao fazê-lo,
se perguntou se este podia por sua vez ser-lhe útil. Designori, que
deveria sabê-lo melhor do que ninguém, não o julgou. Contou mais
tarde: «Quando tento ver como foi que o meu amigo se pôs a
exercer a sua influência num homem tão resignado e tão fechado
em si como eu, parece-me cada vez mais claro que, no fundo de
tudo isso, havia sobretudo uma grande parte de magia e, devo
também dizê-lo, de malícia. Ele era muito mais malicioso do que os
castalianos julgariam, com gosto pela brincadeira, cheio de espírito,
astúcia, encantado com os seus truques, as suas fintas, as suas
desaparições e os seus regressos surpreendentes. Creio que, logo na
minha primeira aparição no Diretório de Castália, decidiu atrair-me e
influenciar-me à sua maneira, isto é, despertar-me e pôr-me em
melhor forma. A verdade é que, logo no primeiro momento, se deu
ao trabalho de me conquistar. Porque é que agiu assim, porque é
que se carregou com o fardo que eu era, não sei dizê-lo. Creio que
os seres da sua espécie geralmente agem inconscientemente, como
por reflexo: sentem-se confrontados por uma tarefa; ouvem o apelo
duma desgraça e respondem-lhe sem mais reflexão. Encontrou-me
desconfiado e feroz, de modo nenhum pronto a cair-lhe nos braços e
ainda menos disposto a pedir-lhe ajuda. A mim, que outrora tinha
sido um amigo tão aberto e tão comunicativo, encontrou-me
desiludido e fechado, e foi esse obstáculo, essa dificuldade, que não
era pequena, que justamente pareceu incitá-lo ao jogo. Não desistiu,
por mais esquivo que eu fosse, e acabou por obter o que queria.
Para isso recorreu, entre outros, ao processo que consistia em dar
uma aparência de reciprocidade às nossas relações, como se a
minha força respondesse à sua força, o meu valor ao seu, como se
precisasse tanto de ajuda como eu. Logo no primeiro encontro um
pouco longo que tivemos, deu-me a entender que estivera à espera
de um acontecimento como a minha aparição, que o esperava
mesmo, e iniciou-me em seguida progressivamente no plano que
fizera para resignar das suas funções e abandonar a Província. Fazia
notar constantemente até que ponto contava com os meus
conselhos, a minha assistência, a minha discrição, pois, além de
mim, não tinha mais amigos no exterior, no século, e não possuía
nenhuma experiência deste. Confesso que tinha prazer em ouvi-lo e
que isso não contribuiu pouco para me ganhar toda a confiança e a
entregar-me de qualquer maneira a ele; acreditei nele prontamente.
Mas mais tarde, com o tempo, acabei por pôr tudo isso em questão
e achá-lo inverosímil, e seria perfeitamente incapaz de dizer se ele
esperava realmente alguma coisa de mim e em que medida.
Também não saberia dizer se a maneira de me apanhar na sua rede
era dum ingénuo ou dum diplomata, se era inocente ou calculista, se
era a sua intenção sincera ou um artifício de jogo. Ele era-me muito
superior e fez-me muito bem, para eu ter alguma vez a ousadia de
me dedicar a um inquérito sobre esse ponto. Seja como for, a ficção
de que a sua situação era análoga à minha, e que tinha tanta
necessidade da minha simpatia e da minha dedicação como eu das
suas, impressiona-me hoje como uma simples gentileza, uma
sugestão sedutora e agradável, com a qual me dava a volta. Mas
não sou capaz de dizer até que ponto o jogo que fazia comigo era
consciente, calculado e desejado, nem em que medida era ingénuo e
lhe estava na natureza. Pois o Magister Josef foi na verdade um
grande artista; por um lado, era incapaz de resistir à paixão de
educar, de influenciar, de curar, de ajudar, de desenvolver os seus
semelhantes, até os meios utilizados se lhe tornarem quase
indiferentes. Por outro lado, era-lhe impossível fazer a mais pequena
coisa sem se entregar todo inteiro. Um facto pelo menos é certo:
ocupou-se então de mim como amigo, como um grande médico e
guia que nunca mais me largou e que acabou por me despertar e
curar-me tanto quanto tal era possível. E, coisa curiosa e que estava
bem na sua linha: enquanto fingia recorrer à minha assistência para
se libertar das suas funções e me ouvia sem emoção, muitas vezes
mesmo com um ar aprovador, criticar frequentemente Castália com
rudeza e ingenuidade, ou até lançar suspeitas sobre ela e insultá-la,
e lutava ele próprio para se libertar dela, na realidade atraiu-me
novamente e trouxe-me para ela; fez-me reencontrar o caminho da
meditação; por meio da música e da contemplação, com a sua
serenidade, a sua valentia castalianas, educou-me e transformou-
me. Apesar da saudade que vós me inspirais, eu era pouco
castaliano e muito hostil a Castália; ora, ele fez de mim outra vez um
dos vossos; da paixão infeliz que tinha por vós ele fez um amor
feliz.»
Foi assim que se exprimiu Designori e esta gratidão admirativa era
fundada. Se não é demasiado difícil, com os nossos velhos métodos
comprovados, formar segundo o estilo de vida da Ordem rapazes
novos e adolescentes, com um homem à beira já dos cinquenta, era
certamente uma tarefa árdua, mesmo que este pusesse nisso muito
boa vontade. Não que Designori se tivesse tornado um castaliano
integral e ainda menos um castaliano exemplar. Mas Knecht
conseguiu completamente o que se propusera: triunfar sobre o seu
espírito rebelde e sobre o peso da sua tristeza amarga, trazer esta
alma hipersensível e feroz para a harmonia e para a serenidade,
substituir muitos dos seus maus hábitos por outros bons. O Mestre
do Jogo das Contas de Vidro não podia, naturalmente, desincumbir-
se de todo o imenso trabalho de pormenor que isso necessitava.
Apelou, para este hóspede de honra, para o aparelho e para o
pessoal de Waldzell e da Ordem, e deu-lhe, inclusivamente durante
algum tempo, um mestre de meditação de Hirsland, sede da Direção
da Ordem, para ir a sua casa controlar permanentemente os seus
exercícios. Mas o plano e a orientação ficaram na sua mão.
Foi no oitavo ano da sua magistratura que respondeu pela
primeira vez aos convites tantas vezes repetidos do seu amigo e foi
visitá-lo na sua casa da capital. Com autorização da Direção da
Ordem, cujo presidente Alexander gozava do seu afeto, aproveitou
um dia de licença para fazer essa visita, da qual esperava muito e
que há um ano, no entanto, vinha adiando, em primeiro lugar
porque queria estar seguro do seu amigo e também talvez por uma
espécie de apreensão natural. Era de facto o primeiro passo que
arriscava naquele século donde o seu camarada Plínio trouxera a sua
tristeza obstinada e que continha para ele tantos mistérios
importantes. Achou a casa moderna que o seu amigo tinha trocado
pela sua velha residência citadina dos Designori dirigida por uma
bela dama, muito esperta, cheia de reserva, e esta dama dominada
por sua vez pelo seu lindo filho pretensioso e bastante insuportável.
Tudo parecia girar em torno da sua pequena pessoa parecendo que
aprendera com a mãe a atitude teimosa e autoritária um pouco
humilhante que tinha para com o pai. De resto, manifestava-se na
casa uma certa frieza e desconfiança em relação a tudo quanto era
castaliano, mas a mãe e o filho não resistiram muito tempo à
personalidade do Magister, cujas funções, porém, se rodeavam para
eles duma atmosfera de mistério, sacralidade e lenda. Não obstante,
a primeira visita passou-se num clima de rigidez e constrangimento
extremos. Knecht adotou uma atitude de observação e expectativa,
falou pouco; a dama recebeu-o com uma cortesia formal e fria e
uma repugnância secreta, um pouco como um oficial superior
inimigo que houvesse que aboletar. Foi o seu filho Tito que mostrou
mais à-vontade: devia ter sido muitíssimas vezes a testemunha
atenta, talvez divertida, e o beneficiário de situações semelhantes. O
seu pai parecia desempenhar o papel de dono da casa mais do que
era. Entre ele e a mulher o tom era o duma polidez moderada,
circunspecta, um pouco ansiosa, uma espécie de urbanidade em
surdina; a mulher instalava-se com mais à-vontade e mais
naturalidade que o marido. Para com o filho, Plínio esforçava-se por
tomar uma atitude de camaradagem, que este parecia habituado ora
a explorar ora a repelir com insolência. Em resumo, era uma
coabitação penosa, sem espontaneidade, pesada de instintos
recalcados; respirava-se o medo das desordens, explosões, crises; o
estilo do comportamento e dos discursos era, como o de toda a
casa, um pouco afirmativo e marcado de mais, como se não
tivessem podido erguer uma barricada bastante sólida, impenetrável
e segura contra uma intrusão e um ataque eventuais. E Knecht fez
ainda mais uma observação que registou: uma grande parte da
serenidade que Plínio reencontrara tinha-se apagado do seu rosto.
Ele que, em Waldzell ou na casa da Direção da Ordem, em Hirsland,
parecia estar quase inteiramente liberto da sua melancolia e da sua
tristeza, reencontrava aqui, no seu próprio lar, todas as suas trevas e
dava azo tanto à crítica como à piedade. A sua casa era bela,
respirava riqueza e sibaritismo; o mobiliário de cada sala em era
função das dimensões desta, em cada uma reinava uma agradável
harmonia em duas ou três cores, pontuada aqui e ali por uma obra
de arte valiosa. Knecht deixou errar o seu olhar com satisfação, mas
esse prazer dos olhos pareceu-lhe, no fim, um nada belo de mais,
perfeito de mais, bem calculado de mais; faltava ali um devir, uma
história, uma renovação, e sentia que a própria beleza das salas e
dos objetos revestia o sentido dum exorcismo, dum gesto de defesa,
e que aquelas salas, aqueles quadros, aqueles vasos e aquelas flores
enquadravam e acompanhavam uma vida que aspirava à harmonia e
à beleza, sem precisamente conseguir lá chegar a não ser através do
cuidado com a decoração.
Foi no período que se seguiu a esta visita, rica de impressões em
parte pouco prazenteiras, que Knecht enviou ao seu amigo um
mestre de meditação ao domicílio. Depois de ter passado um dia na
atmosfera curiosamente tensa e pesada daquela casa, ficara a saber
muitas coisas que não desejava saber, mas muitas outras também
que lhe faziam falta e que procurava, por amor do seu amigo. Não
se ficaram ambos por esta primeira visita, Knecht repetiu-a por
diversas vezes, e esteve na origem de conversas sobre a educação e
sobre o jovem Tito. A mãe deste participou também com vivacidade.
O Magister ganhou pouco a pouco a confiança e a simpatia desta
mulher sabedora e desconfiada. Quando um dia, quase em tom de
brincadeira, disse que era pena que o filhinho deles não tivesse sido
enviado a tempo para Castália para aí ser educado, ela levou esta
observação a sério, como uma crítica, e defendeu-se: não era
absolutamente certo, disse, que Tito fosse lá admitido; ele era, claro,
bastante dotado mas difícil de tratar, e ela nunca se teria permitido
intervir assim na vida dessa criança contra a sua vontade, tanto mais
que a mesma experiência não tinha dado absolutamente nada bons
resultados com o pai. Aliás, nem ela nem o seu marido tinham tido a
ideia de reivindicar para o seu filho um privilégio da família antiga
dos Designori, dado que Plínio havia rompido com o pai e com toda
a tradição da sua velha casa. E acrescentou, para acabar com um
sorriso doloroso, que, mesmo que as circunstâncias tivessem sido
diferentes, não poderia ter-se separado do filho, pois, tirando ele,
não possuía nada que tornasse a sua vida digna de ser vivida. Esta
observação, mais involuntária do que refletida, deu muito que
pensar a Knecht. Assim, esta bela casa, na qual tudo respirava
distinção, esplendor e harmonia, o marido dela, a política e o
partido, a herança daquele pai que ela adorara outrora, nada disso
era suficiente para dar à sua vida um sentido e um valor: havia só o
seu filho. E ela preferia deixar esta criança crescer em condições tão
más e prejudiciais como as que reinavam em sua casa e no seu
casamento, em vez de se separar dele para o bem dele. Da parte
duma mulher tão inteligente, intelectual, e que parecia de espírito
tão frio, isso era uma confissão espantosa. Knecht não podia auxiliá-
la tão diretamente como ao marido e também não pensou por um
momento em correr esse risco. Mas as suas raras visitas e a
influência que ganhara em Tito trouxeram um elemento de equilíbrio
e ganharam um valor de exortação naquela vida familiar transviada
e falseada. Para o Magister, ao mesmo tempo que, duma vez para
outra, adquiria naquela casa mais influência e autoridade, a vida
daquelas pessoas do século revelava-se mais rica de enigmas à
medida que a conhecia melhor. Mas é muito pouco o que sabemos
sobre as suas visitas à capital, sobre o que lá viu e a experiência que
com isso adquiriu, e contentar-nos-emos com estas indicações.
Até então Knecht não tinha frequentado o presidente da Direção
da Ordem, em Hirsland, mais do que as suas funções oficiais lhe
exigiam. De resto, só assistia às sessões plenárias do Diretório do
ensino que tinham lugar em Hirsland e, mesmo aí, o presidente
geralmente procedia apenas às formalidades protocolares da sua
função: estava ali para receber os seus colegas e despedir-se deles,
enquanto o trabalho principal de direção das sessões incumbia ao
arauto. O presidente precedente, que, à entrada em funções de
Knecht, era já de idade respeitável, era certamente venerado pelo
Magister Ludi, mas nunca lhe deu ocasião de se aproximar dele. Aos
seus olhos quase não era já um ser humano, uma pessoa: pairava,
grande sacerdote, símbolo da dignidade e da concentração, acima
da pirâmide das autoridades e de toda a Hierarquia, cujo vértice
silencioso e coroamento era. Ora esse homem venerável morrera e a
Ordem tinha eleito Alexander para o seu lugar como novo
presidente. Era precisamente o Mestre de Meditação que a Direção
da Ordem afetara a Josef Knecht nos primeiros tempos das suas
funções, e a partir daí o Magister nutria por esse membro exemplar
da Ordem uma admiração e um afeto reconhecidos. Pelo seu lado,
este, durante o período em que o Mestre do Jogo das Contas de
Vidro fora objeto dos seus cuidados diários e, de certo modo, seu
pupilo, pudera observar e conhecer bastante de perto o seu
temperamento e o seu comportamento para o amar. Tomaram os
dois consciência dessa amizade até aí latente, e ela manifestou-se
desde o momento em que Alexander se tornou colega de Knecht e
presidente do Diretório, pois então voltaram a ver-se bastante
frequentemente e tiveram tarefas comuns. Claro, faltou sempre a
esta amizade o contacto diário, bem como a comunhão de
recordações da juventude; foi uma simpatia de colegas altamente
colocados; manifestava-se apenas por uma leve cordialidade
suplementar quando se encontravam ou se despediam, por uma
compreensão recíproca mais total e mais pronta, talvez também por
conversas de alguns minutos nos intervalos das sessões.
Se, nos termos da constituição, o presidente da Direção da
Ordem, a quem se chamava também Mestre da Ordem, não estava
colocado num plano superior aos seus colegas, os Magisters, estava-
o no entanto em virtude da tradição que lhe dava a presidência das
sessões do Diretório supremo. E quanto mais a Ordem, nas últimas
décadas, se tornara contemplativa e monástica, mais a sua
autoridade crescera, apenas, diga-se, no interior da Hierarquia e da
Província, não no exterior. No Diretório do ensino eram cada vez
mais o presidente da Ordem e o Mestre dos Jogos das Contas de
Vidro que se tinham tornado as duas sumidades e os verdadeiros
representantes do espírito de Castália. Em comparação com as
antigas disciplinas herdadas das épocas pré-castalianas, como a
gramática, a astronomia, a matemática ou a música, é certo que a
disciplina contemplativa e o Jogo das Contas de Vidro eram o que
caracterizava verdadeiramente Castália. Não era portanto
despiciendo que os seus dois representantes e dirigentes desta
época tivessem relações amistosas. Aos olhos de ambos a amizade
confirmava e realçava a dignidade de ambos, punha um pouco de
calor e satisfação nas suas existências, era mais um estímulo para
cumprirem a sua tarefa: representar com as suas pessoas e
proclamar com as suas vidas as suas riquezas e as duas virtudes
sagradas mais profundas do universo castaliano. Para Knecht era por
consequência uma ligação a mais e um contrapeso suplementar à
tendência que amadurecera e que o levava a renunciar a tudo isso, a
abrir um caminho numa esfera de vida nova e diferente. Esta
tendência continuou, no entanto, a desenvolver-se irresistivelmente.
A partir do momento em que ficou plenamente consciente dela (tal
podia recuar ao sexto ou ao sétimo ano do seu Magistério), ela tinha
ganho força, e este homem preso a um «despertar» admitira-o, sem
falso pudor, na sua vida consciente e nos seus pensamentos.
Julgamos poder dizer que, a partir dessa época, a ideia de vir a
abandonar a sua função e a Província se lhe tinha tornado familiar,
às vezes como a um prisioneiro a fé numa libertação, às vezes como
pode sê-lo num doente grave a certeza da morte. Na sua primeira
conversa com Plínio, o camarada da infância que voltara para ele,
falara disso pela primeira vez, talvez unicamente para ganhar a
simpatia dum amigo tornado taciturno e fechado em si e para o
levar a confiar-se, talvez porque quisesse também, com esta
primeira declaração a um terceiro, dar ao seu novo despertar, ao seu
novo modo de vida, um confidente, um início de orientação para o
exterior, um esboço de realização. Nas conversas que depois teve
com Designori, o seu desejo de um dia renunciar à sua vida de
então, de arriscar o salto para outra, tomou já o valor duma decisão.
Entretanto, cultivou cuidadosamente a sua amizade com Plínio – que
agora já não estava preso a ele apenas pelos laços da admiração,
mas igualmente pelos duma gratidão de convalescente e de doente
livre de perigo – e possuía nessa amizade uma ponte para o mundo
exterior e todos os mistérios da sua vida.
Não podemos admirar-nos por o Magister só muito tarde ter
permitido ao seu amigo Tegularius entrever o seu segredo e o seu
plano de evasão. Apesar de toda a benevolência e simpatia ativa que
caracterizavam as suas amizades, Knecht soube sempre dominá-las
e dirigi-las com toda a independência e diplomacia. Ora, a reentrada
em cena de Plínio na vida do Magister era para Fritz a entrada em
liça dum rival: este novo amigo de outrora tinha direito ao interesse
e ao coração de Knecht, e este não pôde deixar de se admirar em
ver Tegularius reagir de início com um ciúme veemente. Durante
algum tempo, até o Magister ter acabado a conquista de Designori e
o ter levado a reencontrar o seu lugar certo, é possível mesmo que o
mimo e as reticências do seu outro amigo lhe tenham parecido, no
fundo, bem-vindas. Com o tempo, evidentemente, uma outra
consideração prevaleceu. Como ia acomodar ao gosto dum ser como
Tegularius e tornar-lhe assimilável o seu desejo de se retirar
discretamente de Waldzell e do seu Magistério? Se Knecht deixasse
Waldzell, este amigo perdia-o para sempre. Levá-lo consigo pela via
estreita e perigosa que a si se abria, era melhor nem pensar, mesmo
que, contra todas as expectativas, ele manifestasse o desejo e a
coragem. Knecht esperou, refletiu e hesitou muito tempo antes de o
fazer confidente das suas intenções. Por fim, no entanto, fê-lo, numa
altura em que a sua decisão de se evadir estava há muito tomada.
Teria sido demasiado contrário à sua natureza deixar o seu amigo na
ignorância até ao fim, por assim dizer pelas costas, e fazer planos e
preparar ações cujas consequências teria igualmente de suportar.
Como com Plínio, queria fazer dele, se pudesse, não apenas seu
confidente, mas um cúmplice e um auxiliar, se não reais pelo menos
imaginários, pois a atividade faz aceitar mais facilmente todas as
situações.
O seu amigo conhecia há muito naturalmente as suas ideias sobre
o declínio que ameaçava o espírito castaliano na medida em que
Knecht quisera participar-lhas e ele próprio estivera disposto a ouvi-
las. Foram essas ideias que o Magister invocou quando decidiu abrir-
se com Fritz sobre as suas intenções. Contra as suas expectativas e
para seu grande alívio, este não fez uma tragédia desta declaração
confidencial; antes pelo contrário, a ideia dum Magister que lançava
o seu título à cabeça das autoridades, que levantava o pó de
Castália para escolher uma vida a seu gosto, pareceu excitá-lo
agradavelmente e até diverti-lo. Original e inimigo de todas as
normas obrigatórias, Tegularius estivera sempre do lado do indivíduo
contra as autoridades; sempre que se tratava de lutar com espírito
contra os poderes oficiais, dar-lhes cabo da paciência, confundi-los
com armadilhas, estava sempre mais do que desejoso para entrar no
jogo. Isso mostrou a Knecht o caminho a seguir; suspirou de alívio
e, rindo para dentro de si, abraçou imediatamente as reações do seu
amigo. Deixou pairar que se tratava duma espécie de armadilha
contra as autoridades e os burocratas; nesta sua empresa deu-lhe
um papel de confidente, de colaborador e de conjurado. Era
necessário elaborar um requerimento do Magister ao Diretório,
expondo e explicando todos os motivos que o levavam a desejar
demitir-se do seu cargo. A preparação e a elaboração deste
requerimento seriam essencialmente obra de Tegularius. Antes de
mais, devia assimilar a conceção histórica e o estado atual de
Castália, em seguida reunir toda uma documentação histórica e
buscar aí argumentos para apoiar os seus desejos e as suas
propostas. O que o obrigava a entrar num domínio que até ali
sempre reprovara e desprezara, o dos estudos históricos, mas tal
não pareceu incomodá-lo; Knecht apressou-se a dar-lhe as
indicações necessárias e foi assim que Tegularius mergulhou neste
trabalho novo com o zelo e a teimosia de que sabia dar provas nos
seus empreendimentos de original solitário. Este individualista
casmurro encontrou um prazer crescente e singularmente feroz
nesses estudos que deviam pô-lo em condições de demonstrar aos
bonzos e à Hierarquia as suas lacunas e o seu carácter contestável,
ou pelo menos provocar-lhes a suscetibilidade.
Josef Knecht participava menos desses prazeres do que acreditava
no êxito dos esforços do seu amigo. Estava resolvido a soltar os
laços da sua situação atual e libertar-se para as tarefas que o
esperavam, sentia-o. Mas dava-se conta de que não poderia vencer
o Diretório com uma argumentação racional, nem descarregar em
Tegularius uma parte do que era necessário fazer. Contudo, era-lhe
muito agradável sabê-lo ocupado e absorvido por outra coisa
durante o tempo que lhe restava para viver na sua proximidade.
Após ter falado disto a Designori na primeira vez que depois disso se
encontraram, acrescentou: – O meu amigo Tegularius agora está
ocupado e compensado daquilo que julga que o teu regresso lhe fez
perder. Os seus ciúmes estão já quase meio curados e o trabalho
contra os meus colegas faz-lhe bem, está quase feliz. Mas não
creias, Plínio, que me prometa o que quer que seja da sua ação,
exceto precisamente o bem que ela lhe faz. É absolutamente
inverosímil, impossível mesmo, que o nosso Diretório supremo dê
seguimento ao requerimento que projeto. Responder-me-á quando
muito com uma discreta chamada à ordem. Entre as minhas
intenções e a sua realização há a lei fundamental da nossa
Hierarquia, e um Diretório que restituísse a sua liberdade ao Mestre
do Jogo das Contas de Vidro, mesmo que com um requerimento
fundado nos motivos mais convincentes e lhe atribuísse uma
atividade fora de Castália, tão-pouco a mim me agradaria. Aliás, está
lá o Mestre Alexander, da Direção da Ordem, e é um homem
impossível de dobrar. Não, este combate tenho de ser eu a vencê-lo
sozinho. Mas deixemos primeiramente Tegularius exercer a sua
perspicácia! Com isso apenas perdemos algum tempo, e preciso
dele, seja como for, para deixar tudo em ordem aqui, para que a
minha partida não possa prejudicar Waldzell. Mas, enquanto espero,
é preciso que me arranjes alojamento e um trabalho, por mais
modestos que sejam. À falta de melhor, contentar-me-ei com um
lugar de professor de música, basta que seja um começo, um
trampolim.
Designori declarou que isso arranjava-se de certeza e que, quando
fosse a altura, a sua casa estaria aberta ao seu amigo pelo tempo
que ele quisesse. Mas Knecht não ficou satisfeito com esta solução.
– Não – disse –, não sou feito para o papel de hóspede, preciso de
trabalho. E uma estada em tua casa, por mais bela que seja, só
agravaria, se fosse por mais do que alguns dias, as crises e as
dificuldades. Tenho muita confiança em ti e a tua mulher teve
igualmente a amabilidade de se habituar às minhas visitas, mas tudo
teria um aspeto diferente a partir do momento em que eu já não
viesse como Magister Ludi mas como desertor e hóspede
prolongado.
– Preocupas-te muito – disse Plínio. – Uma vez que estejas livre
das obrigações que tens aqui e tenhas escolhido domicílio na capital,
não tardarão a oferecer-te um emprego digno de ti, pelo menos uma
cátedra de professor numa universidade, podes contar com isso com
toda a certeza. Mas esse género de coisas exige tempo, sabe-lo
bem, e eu não poderei naturalmente empreender nada por ti antes
de a tua rutura com Castália se ter consumado.
– Certamente – disse o Magister. – Até esse momento a minha
decisão deve permanecer secreta. Não posso pôr-me à disposição da
vossa administração antes de a minha ter sido informada e ter
tomado uma decisão; isso é evidente. Mas tão-pouco procuro uma
função pública para começar. Tenho poucas necessidades, menos do
que provavelmente és capaz de imaginar. Preciso dum quartinho e
do meu pão quotidiano, mas tenho necessidade sobretudo de ter um
trabalho e uma tarefa de professor ou de educador, preciso dum
aluno, dum pupilo, ou vários, com os quais viva e sobre os quais
possa exercer uma influência. A universidade é a coisa em que
menos penso; gostaria, que digo, adoraria ser o precetor dum
rapazinho, ou qualquer coisa do género. O que procuro, o que
preciso, é duma tarefa simples, natural, um ser que tenha
necessidade de mim. Uma cátedra universitária integrar-me-ia
imediatamente num aparelho administrativo tradicional, consagrado
e mecanizado, e eu desejo exatamente o contrário.
Designori decidiu-se então com hesitação a formular um pedido
em que meditava já há algum tempo.
– Eu talvez tivesse uma proposta a fazer-te – disse – e peço-te, ao
menos, que a ouças e a examines com benevolência. Talvez te
pareça aceitável e seria também um serviço que me prestavas.
Desde o primeiro dia em que fui teu hóspede aqui tu deste-me em
muitos aspetos uma ajuda fecunda. Ficaste também a saber o que
são a minha vida e o meu lar, sabes como são. A minha situação não
é brilhante, mas está melhor do que há anos atrás. O mais delicado
são as minhas relações com o meu filho. Ele é mimado e presumido,
criou em nossa casa uma posição privilegiada e contestada, a qual
lhe foi oferecida, imposta no tempo em que ainda era pequeno e em
que a sua mãe e eu buscávamos igualmente as suas boas graças.
Depois tomou resolutamente o partido da mãe e eu perdi pouco a
pouco todos os meios de educação eficazes. Tinha-me resignado a
isso, como de resto à vida um pouco falhada que tenho. Era o meu
luto. Mas agora que, graças à tua ajuda, estou quase curado, ganhei
outra vez confiança. Percebes onde quero chegar. Tinha grandes
esperanças num professor e num educador que se ocupasse durante
algum tempo de Tito. Aliás, ele tem dificuldades na escola. É um
pedido egoísta, sei-o, e pergunto-me se esta tarefa poderia atrair-te.
Mas foste tu que me deste coragem para exprimir esta proposta.
Knecht sorriu e estendeu-lhe a mão.
– Agradeço-te, Plínio. Nenhuma outra oferta poderia ter sido mais
agradável. Mas falta-nos ainda a concordância da tua mulher. Além
disso, seria necessário que vós os dois aceitásseis confiar-me
inteiramente o vosso filho nos primeiros tempos. Para o ter bem na
mão é preciso subtraí-lo à influência quotidiana da casa paterna.
Deverás falar disto à tua mulher e levá-la a aceitar esta condição.
Fá-lo com circunspeção, com tempo.
– E acreditas – perguntou Designori – que farás alguma coisa de
Tito?
– Claro, porque não? Ele tem dos pais a raça e o talento, falta-lhe
só equilibrar essas forças. O meu trabalho, e encarrego-me dele de
bom grado, será acordar nele o desejo dessa harmonia, ou antes,
fortalecê-la e torná-la finalmente consciente.
Josef Knecht viu assim os seus dois amigos ocupados com o seu
caso, cada um de maneira diferente. Enquanto na capital Designori
expunha os seus novos planos à mulher e procurava tornar-lhos
aceitáveis, em Waldzell, Tegularius, sentado numa cela de trabalho
da biblioteca, juntava, segundo indicações de Knecht, documentação
para o relatório projetado. O Magister tinha encontrado um
excelente engodo na leitura que o obrigava a fazer; Fritz Tegularius,
esse grande desprezador da história, já não conseguia desligar-se da
crónica da era das guerras, estava apanhado por ela. Ele tinha sido
sempre, a brincar, um grande trabalhador, e juntou, com um apetite
crescente, anedotas sintomáticas dessa época, dessa era sinistra
anterior à Ordem; acumulou tantas que o seu amigo, quando lhe
apresentou o seu trabalho, vários meses mais tarde, só com
dificuldade deixou subsistir delas a décima parte.
Nessa época Knecht voltou várias vezes em visita à capital. A
senhora Designori ganhava progressivamente confiança nele, pois
um homem são e equilibrado encontra facilmente acesso junto dos
caracteres difíceis e atormentados. Aderiu em pouco tempo ao
projeto do seu marido. Quanto a Tito, sabemos que, durante uma
destas visitas, declarou com insolência a Knecht que não queria que
o tratasse por tu, uma vez que toda a gente, incluindo os
professores, na escola, o tratavam na terceira pessoa. Knecht
agradeceu-lhe muito cortesmente e pediu-lhe desculpa. Contou-lhe
que na sua Província os professores tratavam todos os alunos e os
estudantes por tu, incluindo aqueles que já eram adultos há muito
tempo. E depois da refeição pediu ao rapaz que saísse por um
bocado com ele e lhe mostrasse um pouco da cidade. Durante este
passeio Tito levou-o por uma rua estreita e majestosa da cidade
velha, ladeada quase sem interrupção por um conjunto de casas
centenárias de famílias patrícias ricas e ilustres. Tito parou à frente
duma dessas casas altas, sólidas e estreitas, mostrou-lhe o brasão
por cima do portal e perguntou: – Conhece isto? – Knecht
respondeu que não. – São as armas dos Designori e esta é a antiga
casa da nossa família, pertenceu-lhe durante trezentos anos. Mas
nós vivemos no nosso prédio anónimo e banal unicamente porque
deu na fantasia do meu pai, depois da morte do meu antepassado,
vender esta bela e venerável casa e comprar uma da moda que,
aliás, já não é tão moderna como isso. Pode compreender uma coisa
destas?
– Custa-lhe muito ter perdido esta velha casa? – perguntou-lhe
Knecht amistosamente. Tito respondeu: – Sim – e com uma
entoação apaixonada repetiu a sua pergunta: – Pode compreender
uma coisa destas? – É possível compreender tudo – respondeu
Knecht – quando se tenta ver claro. Uma casa antiga é uma bela
coisa: se a nova ficasse ao lado desta e se ele tivesse podido
escolher, provavelmente teria ficado com a antiga. É verdade, as
casas velhas são belas e veneráveis, sobretudo quando são tão
bonitas como esta. Mas também é uma tarefa sedutora nós próprios
construirmos uma casa, e quando um jovem trabalhador e audacioso
pode escolher entre instalar-se comodamente num ninho já pronto e
tentar construir um completamente novo, compreende-se facilmente
que possa optar também pela construção. Tanto quanto conheço o
seu pai, e conheci-o quando ainda tinha a sua idade e era
apaixonadamente empreendedor, a venda e a perda desta casa-mãe
deve tê-lo feito sofrer mais do que a ninguém. Ele sofreu com um
conflito penoso entre o pai dele, a família e ele próprio, e parece que
a educação que recebeu connosco, em Castália, não era de modo
nenhum a que lhe convinha; seja como for, não conseguiu preservá-
lo de certas precipitações passionais. Uma foi evidentemente a
venda desta casa. Ele quis com isso desafiar a tradição da sua
família, o seu pai, todo o seu passado de dependência e declarar-
lhes guerra: esta seria para mim uma explicação bastante aceitável.
Mas o homem é um ser singular e outra hipótese não me pareceria
absolutamente inverosímil: que o vendedor desta velha moradia
tenha querido, com a venda, não somente ferir a sua família, mas
sobretudo a ele próprio. A sua família tinha-o desiludido, tinha-o
enviado para as nossas escolas de elite para ser educado à nossa
maneira, e no regresso teve de enfrentar, em casa, tarefas,
exigências e pretensões para as quais não podia estar preparado.
Mas não gostaria de ir mais longe nesta interpretação psicológica.
Em todo o caso, a história da venda desta casa mostra como o
conflito entre um pai e o seu filho, esse ódio, o amor
metamorfoseado em ódio, pode ser uma mola poderosa. É raro que
as naturezas cheias de vida e talento escapem a este conflito: a
história universal está cheia de exemplos disso. De resto, imaginaria
muitíssimo bem que um jovem Designori doutra geração se
propusesse como objetivo repor, por qualquer preço, a sua família na
posse desta casa-mãe.
– E então – exclamou Tito –, não lhe daria razão se ele o fizesse?
– Não gostaria de ser o juiz, jovem. Se no futuro um Designori,
consciente da grandeza da sua raça e das obrigações que ela lhe
impõe na existência, servir com todas as suas forças a cidade, o
Estado, o povo, a justiça, o bem público, e se for buscar aí a força
para conseguir, além disso, readquirir esta casa, então será um
homem digno do nosso respeito e tirar-lhe-emos o chapéu. Mas se
não tiver outro fim em vista na sua vida, a não ser a história da
casa, será apenas um maníaco e um obcecado, um apaixonado, e,
com toda a verosimilhança, um indivíduo que nunca terá
compreendido o sentido dos diferendos que na juventude temos
com o nosso pai: arrastará as suas sequelas toda a sua vida, mesmo
quando for um homem feito. Saberemos compreendê-lo, lamentá-lo
também, mas não contribuirá para a glória da sua casa. É bom que
uma velha família esteja ternamente ligada à sua residência, mas só
conhecerá juventude e grandeza novas se os seus filhos se puserem
ao serviço de fins superiores aos seus.
Durante este passeio Tito escutou o convidado do seu pai
atentamente e com bastante boa vontade. Mas noutras
circunstâncias voltou a manifestar-lhe a sua antipatia e o seu espírito
rebelde. Neste homem de quem os seus pais, geralmente tão pouco
de acordo, pareciam ambos fazer um caso tão grande, adivinhava
uma força capaz de comprometer a sua liberdade de menino
mimado. Aconteceu-lhe mostrar-se claramente desagradável. Claro,
de todas as vezes, lamentava-o em seguida e esforçava-se por se
redimir, pois feria o seu amor-próprio mostrar o defeito da sua
couraça, enquanto o Magister se entrincheirava na sua cortesia
serena, como por baixo duma couraça brilhante. E em segredo
sentia também no seu coração experiente e um pouco ao abandono
que era um homem que talvez fosse possível venerar e amar muito.
Pressentiu-o em especial durante uma certa meia hora em que
encontrou Knecht sozinho, à espera do seu pai, retido por negócios.
Ao entrar na sala, Tito viu o hóspede sentado, de olhos
semicerrados, imóvel, numa atitude escultural, irradiando
tranquilidade e calma na sua contemplação. A criança,
involuntariamente, caminhou mais suavemente e quis retirar-se em
bicos de pés. Mas Knecht então abriu os olhos, saudou-o
amistosamente, ergueu-se, e, apontando para um piano que se
encontrava na sala, perguntou-lhe se gostava da música.
Sim, respondeu Tito, na verdade havia já muito que não recebia
lições de música e não fazia exercícios, pois não era muito brilhante
na escola e lá aborreciam-no bastante ao obrigarem-no a fazer
repetições. Mas tinha sido sempre uma alegria para si ouvir música.
Knecht levantou a tampa e sentou-se ao piano, certificou-se de que
estava afinado e tocou um andante de Scarlatti, que tomara alguns
dias antes como base dum exercício de Contas de Vidro. Depois
parou e, vendo que o rapaz estava atento e interessado, começou a
explicar-lhe em poucas palavras como se procedia aproximadamente
num exercício daquele género; analisou as componentes da melodia,
mostrou-lhe vários métodos de análise utilizáveis, evocou os meios
de transcrever esta música para os hieróglifos do Jogo. Pela primeira
vez Tito deixou de ver no Mestre um convidado, uma celebridade da
ciência, que lhe era antipático porque incomodava o seu amor-
próprio: via em ação um homem que aprendera uma arte muito
subtil e muito precisa, e a praticava com maestria. Era uma arte cujo
sentido não podia certamente adivinhar mas que parecia exigir uma
concentração e um entusiasmo de todo o ser. Lisonjeou o seu amor-
próprio ser considerado bastante grande e bastante inteligente para
o tentarem interessar nessas coisas complexas. Calou-se e começou,
durante essa meia hora, a pressentir as fontes onde aquele homem
curioso ia buscar a sua serenidade e a sua calma tranquila.
A atividade profissional de Knecht foi, durante este último período,
quase tão intensa como a dos dias difíceis em que tomara posse do
seu cargo. Levava a peito deixar num estado exemplar todos os
departamentos do seu Magistério. Conseguiu-o de resto ao mesmo
tempo que falhava o objetivo que visava: mostrar que a sua pessoa
não era indispensável, ou, pelo menos, que era facilmente
substituível. É quase sempre assim com os postos mais elevados da
nossa Hierarquia: o Magister paira, simples e supremo elemento
decorativo, figura brilhante, acima da multiplicidade complexa do
seu departamento; onde, dum lado para o outro, rápido, leve como
um espírito propício, diz duas palavras, opina prontamente, indica
com um gesto um trabalho a fazer. E mal partiu, já lá está o
seguinte, que joga com o aparelho do seu cargo como um músico
toca o seu instrumento, parece agir sem esforço, quase sem refletir,
e tudo corre como deve ser. Mas todos os empregados desse
aparelho sabem o que representa uma deslocação ou uma doença
do Magister, o que é substituí-lo, nem que seja por umas horas ou
um dia! Ao percorrer mais uma vez com um olhar crítico todo o
Estado miniatura do Vicus Lusorum e ao pôr, em especial, todos os
cuidados em preparar, sem o parecer, a sua «sombra» para o
substituir muito proximamente, verificou que, no fundo de si próprio,
se tinha desligado e afastado de tudo, e que todas as joias deste
pequeno mundo perfeitamente concebido já não o satisfaziam nem
o cativavam. Waldzell e o seu Magistério pareciam-lhe já como se
pertencessem ao passado: era um território que atravessara, que lhe
dera muito e lhe ensinara muito, mas que doravante já não poderia
excitar as suas forças e a sua atividade. Pouco a pouco, durante este
período de lento desprendimento e de adeus, deu-se igualmente
conta de que o que fazia de si um estrangeiro e o levava a partir era
talvez menos o conhecimento dos perigos que ameaçavam Castália e
a preocupação com o futuro desta, do que muito simplesmente esta
parte do seu ser, do seu coração, da sua alma que ficara vazia e
desocupada e que exigia, agora, o que lhe era devido e procurava a
plenitude.
Nessa altura estudou também mais uma vez a fundo a
constituição e os estatutos da Ordem e viu que a sua partida da
Província não era, na realidade, difícil nem quase impossível de
conseguir, como de ínicio pensara. Era livre de resignar das suas
funções por um motivo de consciência, bem como de sair da Ordem.
O juramento da Ordem não era por toda a vida, se bem que
raramente um membro, e nunca um titular do Diretório supremo,
tivesse feito uso desta liberdade. Não, o que lhe fazia parecer esta
ação tão difícil, não era o rigor das leis, mas o próprio espírito da
Hierarquia, a lealdade do seu coração e a sua fidelidade ao pacto
que concluíra. Não queria, evidentemente, fugir clandestinamente,
preparava um requerimento circunstanciado para solicitar a sua
liberdade e o infantil Tegularius enchia os dedos de tinta com isso.
Mas não acreditava no êxito deste requerimento. Responder-lhe-iam
com boas palavras, com exortações, oferecer-lhe-iam talvez umas
férias de descanso em Mariafels, onde o Frei Jakobus morrera pouco
tempo antes, ou talvez em Roma. Mas não o deixariam sair, parecia-
lhe cada vez mais. certo. Se o Diretório fizesse isso, reconheceria
que o seu desejo era justificado, que a vida em Castália e, mais
importante, num posto tão eminente podia, em certos casos, não
responder às exigências dum homem e representar para ele uma
renúncia e uma prisão.
A CIRCULAR

Aproximamo-nos do fim da nossa narrativa. Como dissemos, só


fragmentariamente conhecemos o fim; tem mais o aspeto duma
lenda do que duma narrativa histórica. Teremos de nos contentar
com isso. É-nos tanto mais agradável poder encher este penúltimo
capítulo da biografia de Knecht com um documento autêntico, o
volumoso documento em que o Mestre do Jogo das Contas de Vidro
expõe ao Diretório os motivos da sua decisão e pede para ser
libertado do seu cargo.
Devemos acrescentar, é verdade, que Josef Knecht não só já não
acreditava, há muito que o sabemos, num êxito desta exposição tão
circunstanciada, mas que teria preferido, quando o momento
chegasse, não escrever e não apresentar este «requerimento».
Passava-se com ele como com todos os homens que exercem sobre
outros um poder natural e inicialmente inconsciente: esse poder
comporta consequências para quem o exerce e, se o Magister se
alegrou por trazer desse modo o seu amigo Tegularius para as suas
opiniões ao fazer dele defensor delas e seu colaborador, os
acontecimentos revelavam-se agora mais fortes do que as suas
ideias e os seus desejos. Cometera ou desviara Fritz para um
trabalho em cujo valor já não acreditava, ele que era o iniciador;
mas quando finalmente Tegularius lho apresentou, não pôde anulá-
lo nem arquivá-lo e deixá-lo inutilizado sem na verdade ferir
profundamente e desapontar o seu amigo, para quem tinha querido,
com este expediente, tornar a sua separação entre ambos
suportável. Julgamos saber que nessa época teria estado mais nas
intenções de Knecht resignar simplesmente das suas funções e
declarar que saía da Ordem, do que recorrer a este desvio do
«requerimento», que lhe parecia agora quase uma comédia. Mas,
em atenção ao amigo, resolveu calar por mais algum tempo a sua
impaciência.
Seria de facto interessante conhecer o manuscrito do
consciencioso Tegularius. Esse manuscrito era constituído
essencialmente por documentos históricos por ele recolhidos para
servirem de prova ou ilustração da sua tese, mas não devemos
iludir-nos supondo que continha críticas, aceradas e espiritualmente
formuladas, à Hierarquia, bem como ao século e à história universal.
Todavia, admitindo inclusivamente que esse manuscrito, fruto dum
trabalho excecionalmente obstinado de vários meses, ainda
existisse, o que é bem possível, e que estivesse à nossa disposição,
seria nosso dever igualmente renunciar a publicá-lo, pois de facto
não estaria no seu lugar na nossa obra.
A única coisa que para nós conta é o uso que o Magister Ludi fez
do trabalho do seu amigo. Quando este lho entregou com um gesto
solene, aceitou-o exprimindo-lhe cordialmente a sua gratidão e a sua
satisfação e, sabendo que tal lhe daria prazer, pediu-lhe que lho
lesse. Tegularius veio então durante vários dias sentar-se meia hora
com o Magister, no seu jardim, pois era verão, e leu-lhe com prazer
as inúmeras páginas de que se compunha o seu manuscrito. Não era
raro que uma grande gargalhada dos dois homens viesse
interromper esta leitura. Foram belos dias para Tegularius. Mas em
seguida Knecht retirou-se e redigiu, com o auxilio de inúmeras
partes do manuscrito de Fritz, a sua carta ao Diretório, que
reproduzimos textualmente e que dispensa comentários.

A CARTA DO MAGISTER LUDI À DIREÇÃO DO ENSINO


«Diversas considerações determinaram o signatário, Magister Ludi,
a apresentar ao Diretório um requerimento duma natureza especial
nesta carta separada e, de algum modo, privada, em vez de lhe
reservar um lugar no relatório solene da sua função. Junto
entretanto esta carta ao relatório oficial que apresentarei e esperarei
a resolução oficial que comporta, mas considero-a todavia antes
como uma espécie de circular dirigida aos Magisters, meus colegas.
«Faz parte dos deveres dum Magister assinalar ao Diretório os
obstáculos que comprometem ou os perigos que eventualmente
ameaçam a execução regular das suas funções. Ora, o meu
Magistério, embora me aplique em consagrar-lhe todas as minhas
forças, está, ou parece-me estar, ameaçado por um perigo que
reside em mim, embora essa não seja a sua única origem.
Considero, em todo o caso, que o perigo moral duma diminuição das
minhas qualidades de Mestre do Jogo das Contas de Vidro constitui
não só um perigo objetivo, como é alheio à minha pessoa. Numa
palavra: comecei a duvidar das minhas capacidades em assegurar
plenamente a direção do meu serviço, porque posso constatar os
perigos que correm esse mesmo serviço e o Jogo das Contas de
Vidro de que sou o guardião. A intenção desta epístola é a de abrir
os olhos do Diretório para a existência do perigo que assinalo e
demonstrar-lhe que é ele precisamente, agora que o descobri, que
me chama com urgência para outro lugar que não este onde me
encontro. Seja-me permitido ilustrar esta situação com uma
parábola: um homem, numas águas-furtadas, está mergulhado num
subtil trabalho de erudito quando se dá conta de que deve ter-se
declarado fogo nos baixos da casa. Não vai perguntar se é uma
obrigação da sua função, nem se é melhor pôr as suas tabelas a
salvo: descerá as escadas quatro a quatro e tentará salvar o edifício.
Eu estou num dos andares superiores do nosso edifício castaliano,
ocupado com o Jogo das Contas de Vidro; trabalho apenas com
instrumentos delicados e sensíveis, mas é o meu instinto, o meu
nariz, que me levam a reparar que, algures lá em baixo, arde
qualquer coisa, que todo o nosso edifício está ameaçado, em perigo,
e que o que tenho a fazer não é analisar música nem diversificar
regras do Jogo, mas precipitar-me para onde vem o fumo.
«A instituição de Castália, a nossa Ordem, a nossa atividade
científica e escolar, incluindo o Jogo das Contas de Vidro e o resto,
parecem à maior parte dos membros da nossa Ordem tão naturais
como ao homem o ar que respira e o solo que o suporta. Talvez não
haja um só que alguma vez pense que este ar e este solo poderiam
não existir, que o ar poderia um dia faltar-nos e também o solo
debaixo dos pés. Temos a sorte de viver abrigados, num pequeno
universo limpo e sereno, e a grande maioria de nós, por mais
singular que tal possa parecer, vive na ilusão de que este universo
existiu sempre e que nascemos nele. Eu próprio passei os meus
verdes anos nessa ilusão bastante agradável, enquanto a realidade
me era no entanto perfeitamente conhecida, isto é, que não nascera
em Castália, mas que a administração para lá me tinha mandado, lá
tinha sido educado, e que Castália, a Ordem, o Diretório, os
estabelecimentos de ensino, os arquivos e o Jogo das Contas de
Vidro não tinham estado ali sempre e não eram obra da Natureza,
mas uma criação tardia e nobre da vontade humana, perecível como
todas as coisas criadas. Tudo isso, sabia-o, mas para mim não tinha
nenhuma realidade, não pensava nisso muito simplesmente; olhava
para o outro lado e sei que mais de três quartos de nós vivem e
morrerão nesta singular e agradável ilusão.
«Mas, assim como houve séculos e milénios sem Ordem e sem
Castália, voltará a haver épocas análogas no futuro. E se, hoje,
chamo a atenção para este facto, para esta banalidade aos meus
colegas e ao venerado Diretório, se os intimo a olharem por um
momento para os perigos que nos ameaçam, se adoto por
conseguinte por um momento o papel, bastante pouco simpático e
demasiado fácil de ridicularizar, dum profeta exortando à vigilância e
à penitência, estou pronto a aceitar essa troça eventual. No entanto,
tenho a esperança de que a maioria de vós lerá esta epístola até ao
fim e que alguns me darão inclusivamente razão em alguns pontos.
Isso seria já muito.
«Uma instituição como a nossa Castália, um pequeno Estado do
espírito, está exposta a perigos internos e externos. Os perigos
internos, pelo menos muitos deles, são nossos conhecidos,
observamo-los e combatemo-los. Em cada momento expulsamos
alunos das escolas de elite porque descobrimos neles defeitos e
instintos inerradicáveis que os tornam inutilizáveis e perigosos para a
nossa comunidade. Na maior parte, esses ex-alunos, temos essa
esperança, não são seres de menor valor devido a isso;
simplesmente, não são feitos para a vida castaliana e podem, uma
vez regressados ao século, encontrar lá condições de existência mais
propícias a tornarem-se homens de valor. Deste ponto de vista, as
nossas práticas deram as suas provas e, no conjunto, pode dizer-se
da nossa comunidade que ela se importa muito com a sua dignidade
e a sua disciplina e que esta satisfaz o seu propósito de representar
uma classe superior, uma aristocracia do espírito, e de formar novos
elementos. É verosímil que não tenhamos mais indivíduos indignos e
negligentes entre nós do que o que é natural e suportável. O que
escapa menos à crítica é a presunção da nossa Ordem, este orgulho
de casta, que toda a aristocracia, toda a posição privilegiada origina
erradamente e que também é de uso criticar em toda a nobreza, às
vezes sem razão, outras com todo o direito. À história social
compete sempre tentar constituir uma aristocracia. Esse é o seu
vértice e o seu coroamento, e parece que uma espécie de
aristocracia qualquer, da primazia dos melhores, seja sempre o
objetivo e o ideal verdadeiros, ou pelo menos sempre confessados,
de todas as tentativas feitas para constituir uma sociedade. O poder,
tanto monárquico como anónimo, mostrou-se sempre disposto a
favorecer uma nobreza nascente com a sua proteção e com
privilégios, quer se trate duma nobreza política ou de outra
natureza, duma nobreza de nascimento ou da seleção e da
educação. A aristocracia favorecida prosperou sempre sob este sol, e
a proximidade do sol e o benefício dos privilégios tornaram-se
sempre, a partir dum certo grau do seu desenvolvimento, uma
tentação que conduz à sua corrupção. Ora, se considerarmos a
nossa Ordem como uma aristocracia e tentarmos fazer o nosso
exame de consciência para saber em que medida a nossa atitude em
relação ao nosso povo e ao século justifica a nossa posição
privilegiada, em que medida talvez esta doença característica das
aristocracias, a hybris, a presunção, o orgulho de classe, a fatuidade,
a ingratidão dos oportunistas, se apoderaram já de nós e nos
governam, isso pode ser matéria de reflexão. É possível que o
castaliano de hoje observe as leis da Ordem e não lhe falte nem o
zelo nem a cultura intelectual; mas o que lhe falta não é muitas
vezes compreender qual é o seu lugar na estrutura do nosso povo,
no século, na história universal? Terá ele consciência de qual é a
base da sua existência, sabe que pertence a um organismo vivo, que
é uma sua folha, uma flor, um ramo ou uma raiz? Imagina os
sacrifícios que o povo faz por ele, ao alimentá-lo, vesti-lo,
permitindo-lhe ir à escola e fazer os seus múltiplos estudos? E
preocupa-se muito com o sentido da situação social e com o lugar à
parte que nos são criados? Faz verdadeiramente alguma ideia da
finalidade da nossa Ordem e da nossa vida? Admitindo, inclusive,
que haja exceções, inúmeras e louváveis exceções, tendo a
responder «não» a todas estas perguntas. Talvez o castaliano médio
não tenha pelo homem do século e pelos seres pouco cultos nem
desprezo, nem inveja, nem ódio; mas não o considera como seu
irmão, não vê que ele lhe dá o seu pão, não sente que é responsável
juntamente com ele pelo que acontece lá fora, no século. Parece-lhe
que a finalidade da sua vida é cultivar as ciências por amor delas
mesmas ou, tão boamente, errar com delícias pelo jardim duma
cultura que toca verdadeiramente na universalidade, sem de facto lá
chegar. Em resumo, a cultura castaliana, que certamente tem
grandeza e nobreza e à qual devo uma profunda gratidão, não
constitui, na maior parte dos seus possuidores e representantes, um
órgão e um instrumento; não é ativa nem está orientada para fins,
não se põe conscientemente ao serviço de valores maiores ou mais
profundos; antes, pelo contrário, é um pouco levada ao narcisismo e
à fatuidade, compraz-se em desenvolver e afinar as especializações
intelectuais. Sei que há um grande número de castalianos íntegros e
de valor superior que pretendem apenas servir realmente: são os
professores por nós formados, especialmente aqueles que, no país,
longe do agradável clima e do sibaritismo intelectual da nossa
Província, asseguram nas escolas secundárias um serviço feito de
renúncia, mas duma importância sem preço. Vendo estritamente as
coisas, esses corajosos professores são na verdade os únicos de nós
que satisfazem plenamente os fins de Castália e que dão ao nosso
país e ao nosso povo todo o bem que nos fazem. O nosso dever
supremo e o mais sagrado é manter, para o país e o século, a sua
base espiritual, que se revelou também um elemento moral duma
eficácia superior: quero dizer, aquele sentido da verdade sobre o
qual repousa, entre outras, também a justiça. Isto cada um de nós,
na Ordem, o sabe muitíssimo bem, mas bastaria à maioria um
rápido exame de consciência para confessar que o bem do século, a
manutenção da probidade e da limpeza intelectuais no exterior da
nossa Província tão bem tratada, não são para eles o essencial, que
isso não lhes parece sequer muito importante e que nós confiamos
de bom grado a esses valentes professores do exterior o pagamento
da nossa dívida ao século com o seu trabalho dedicado, e nos
damos, em suma, o direito, a nós, Jogadores de Contas de Vidro,
astrónomos, músicos e matemáticos, o gozo dos nossos privilégios.
Um corolário deste orgulho e deste espírito de casta de que falei
afirma, precisamente, que não nos preocupemos demasiado com
saber se merecemos os nossos privilégios pelas nossas obras; um
bom número de nós nem sequer concebe que o ascetismo imposto
pela Ordem às nossas vidas é uma virtude, que praticamos apenas
por amor à virtude, enquanto constitui, da nossa parte, uma
contrapartida mínima ao que o país faz por nós para nos permitir
viver como castalianos.
«Contentar-me-ei em assinalar estas deteriorações e estes perigos
internos. Não devem ser considerados levianamente, ainda que não
haja o risco de, numa época tranquila, comprometerem a nossa
existência. Mas nós, castalianos, não dependemos unicamente da
nossa moral e da nossa razão. Dependemos também,
essencialmente, da situação do país e da vontade do nosso povo.
Comemos o nosso pão, utilizamos as nossas bibliotecas, alargamos
as nossas escolas e os nossos arquivos – mas se o povo deixar de
ter vontade para nos dar essa possibilidade, ou se a nossa pátria,
devido a um empobrecimento, uma guerra, etc. ... vier a ser incapaz
disso, será o fim imediato da nossa vida e dos nossos estudos. É
possível que o nosso país cesse um dia de poder manter a sua
Castália e a nossa cultura, que considere Castália como um luxo a
que já não pode permitir-se, que inclusive, um dia, em vez de estar,
como até agora, amavelmente orgulhoso connosco, sinta que somos
parasitas e antissociais ou até falsos profetas e inimigos: esses são
os perigos que nos ameaçam do exterior.
«Se quisesse torná-los sensíveis a um castaliano médio, deveria
recorrer sem dúvida primeiramente a exemplos retirados da história,
e chocar-me-ia então com uma certa resistência passiva, uma
ignorância e uma indiferença que qualificaria quase como infantis. O
interesse que damos à história é bem fraco, vós sabei-lo. O que falta
à maior parte de nós não é somente o interesse pela história, é
antes, diria, prestar-lhe justiça, respeitá-la. Esta antipatia, feita de
indiferença e presunção, para com os estudos históricos levou-me
com frequência a procurar-lhe as causas e encontrei-lhe duas. Em
primeiro lugar, o conteúdo da história parece-nos de valor medíocre

não falo naturalmente da história das ideias, nem da da cultura, que
praticamos muito. A história universal, tanto quanto possamos
aperceber-nos, é feita de lutas brutais pela conquista dum poder,
bens, terras, matérias-primas, dinheiro, em resumo, matérias e
quantidades, coisas que achamos alheias ao espírito e que somos
levados a desdenhar. Para nós, o século XVII é a época de
Descartes, Pascal, Froberger, Schütz; não a de Cromwell ou de Louis
XIV. A nossa antipatia pela história tem um segundo motivo: é a
desconfiança hereditária e, em minha opinião, em grande parte
justificada, que nos inspira uma determinada ótica, uma
determinada apresentação dos factos que esteve muito em moda
durante o período de decadência anterior à fundação da nossa
Ordem e no qual, a priori, não temos a menor confiança: quero
dizer, aquilo a que se chamou a filosofia da história; encontramos-
lhe em Hegel o desenvolvimento mais espiritual e o efeito ao mesmo
tempo mais perigoso; no século seguinte atinge as falsificações
históricas mais odiosas e fez esquecer o valor moral do espírito de
verdade. A predileção por esta pretensa filosofia da história constitui,
a nosso ver, uma das principais características desta época de
profundo abaixamento espiritual e de conflitos políticos de grande
envergadura, que nos acontece qualificar como “século das guerras”,
mas a que geralmente chamamos “Idade do Folhetim”. É sobre as
ruínas desta época, é do combate contra o seu espírito – ou contra a
sua antiespiritualidade –, é do triunfo alcançado que nasceu a nossa
cultura atual, que saíram a nossa Ordem e Castália. É por orgulho
intelectual que voltamos as costas à história, em especial à dos
tempos modernos, um pouco como os ascetas e os eremitas do
cristianismo primitivo voltavam as costas ao teatro do mundo. A
história produz em nós o efeito de uma cena onde os instintos e o
gosto do dia, a cupidez, o amor ao dinheiro, ao poder e ao
assassínio têm livre curso, o efeito de uma exibição de violências, de
destruições e de guerras, de ministros ambiciosos, de generais
vendidos, de cidades arrasadas pelos canhões. E esquecemos
demasiado facilmente que este foi apenas um dos seus numerosos
aspetos. E sobretudo perdemos de vista que nós próprios somos um
fragmento da história, o fruto duma evolução, condenado a perecer
também ele se perder as suas capacidades de desenvolvimento e de
metamorfose. Nós estamos, somos história, partilhamos a
responsabilidade pela história universal e pela posição que nela
ocupamos. Falta-nos muito o sentido dessa responsabilidade.
«Lancemos um olhar sobre a nossa própria história, sobre o
período que viu nascer as Províncias pedagógicas atuais no nosso
país, como em tantos outros, que viu surgir as diversas ordens e as
hierarquias, de que a nossa é um exemplo. Verificamos
imediatamente que a nossa Hierarquia e a nossa pátria, a nossa
querida Castália, estão longe de ter sido fundadas por pessoas que
manifestavam tanta resignação e orgulho como nós em relação à
história universal. Temos o costume de dar da situação mundial
dessa época, que começou mais ou menos com o que chamamos a
Primeira Guerra Mundial, uma explicação parcial, dizendo que
justamente então não se dava nenhum valor ao espírito e que ele
era, para os déspotas no poder, apenas um meio de combate
ocasional de segunda ordem, o que é, a nosso ver, uma
consequência da corrupção dos “folhetins”. Ora, é fácil observar com
que falta de preocupações espirituais, com que brutalidade se lutou
nessa época pelo poder. Se declaro essas lutas contrárias ao espírito,
não é porque se me furtem a inteligência e os métodos das suas
enormes realizações, mas porque estamos habituados e gostamos
de considerar à primeira vista o espírito como uma vontade de
verdade; e o espírito, que foi enxovalhado nessas lutas, parece nada
ter a ver em comum com isso. A infelicidade dessa época foi que a
agitação que engendrou o crescimento prodigiosamente rápido da
espécie humana não encontrou pela frente uma ordem moral
verdadeiramente forte; o que dela restava foi varrido pelas palavras
de ordem na moda, e encontramo-nos, durante essas lutas, na
presença de factos estranhos e terríveis. Exatamente como no
tempo do cisma confessional provocado por Lutero quatro séculos
antes, o mundo inteiro viu-se subitamente a braços com uma
agitação prodigiosa, em todo o lado constituíram-se frentes, em todo
o lado uma intimidade desenfreada e amarga opôs os jovens aos
velhos, a pátria ao género humano, o Vermelho ao Branco. E hoje já
não conseguimos reconstituir, nem, com mais forte razão,
compreender e sentir o poder e o dinamismo internos do “vermelho”
e do “branco”, nem o conteúdo e o sentido reais de todas as
palavras de ordem e de todos os gritos de guerra. Como no tempo
de Lutero, vemos em toda a Europa, que digo, em metade do Globo,
crentes e heréticos, jovens e velhos, campeões do passado e
campeões do futuro, desferirem cutiladas, entusiasmados ou
desesperados. Muitas vezes as frentes cortavam os territórios
nacionais, os povos e as famílias, e nada nos autoriza a duvidar que
tudo isso não tenha revestido um sentido extremamente profundo
para a maioria dos combatentes, ou, pelo menos, para os seus
chefes, assim como também não temos o direito de negar a muitos
dos seus condutores e dos seus porta-vozes nesses conflitos uma
certa boa-fé robusta, um certo idealismo, como então se dizia. Em
todo o lado se combatia, se matava, se acumulavam as destruições
e, em toda a parte, dum lado e doutro, o faziam com a fé dum
combate por Deus contra o Diabo.
«Entre nós, essa época feroz de grandes entusiasmos, ódios
desenfreados e sofrimentos absolutamente indizíveis caiu numa
espécie de esquecimento dificilmente compreensível, uma vez que
está intimamente ligado ao nascimento de todas as nossas
instituições, de que é postulado e causa. Um espírito satírico poderia
comparar este esquecimento com a falta de memória que os
aventureiros nobilitados e arrivistas sentem para com as suas
origens e os seus pais. Consideremos um pouco mais essa época de
guerras. Li muitos documentos dela e interessei-me menos pelos
povos submetidos e pelas cidades destruídas do que pelo
comportamento dos intelectuais desse período. A sua situação era
difícil e a maior parte não resistiu. Houve mártires tanto entre os
sábios como entre os religiosos. E o seu martírio e o seu exemplo
exerceram uma influência, mesmo nessa época, que estava
familiarizada com atrocidades. Seja como for, a maior parte dos
representantes do mundo do espírito não conseguiu suportar o peso
dessa era de violência. Uns renderam-se e puseram o seu talento, os
seus conhecimentos e os seus métodos à disposição dos homens no
poder. Conhece-se a declaração que então fez um professor
universitário da república dos Masságetas: “Quantos são dois vezes
dois, não é a nossa Faculdade que diz, mas o nosso general.” Em
contrapartida, outros fizeram oposição enquanto puderam num setor
semiprotegido e difundiram protestos. Garante-se que um autor de
reputação mundial – lemo-lo em Ziegenhalß – assinou num único
ano mais de duzentos desses protestos, dessas advertências, desses
apelos à razão, mais talvez do que os que realmente leu. Mas a
maior parte aprendeu a calar-se, e também a ter fome e frio, a
mendigar e a esconder-se para fugir à polícia; teve um fim precoce e
os que morriam provocavam a inveja dos que ficavam. O número
dos que se mataram é incontável. Já não era verdadeiramente uma
satisfação nem uma honra ser-se homem de ciência ou de letras: os
que se punham ao serviço do poder e das suas palavras de ordem
tinham, é verdade, emprego e pão, mas também o desprezo dos
melhores dos seus confrades e tinham tambem geralmente uma
muito má consciência. Os que se recusavam a servir desta maneira
eram obrigados a passar fome, a viver fora da lei e a morrer na
miséria ou no exílio. Procedeu-se a uma seleção cruel, duma dureza
inaudita. Não houve somente um declínio rápido da investigação
científica na medida em que não servia os fins do poder e da guerra,
mas também um declínio do ensino. Cada nação, quando chegava a
sua vez de ser hegemónica, explorava por sua conta a história
universal e foi sobretudo esta que foi simplificada e reescrita
incomensuravelmente: a filosofia da história e o folhetim reinavam
inclusive nas escolas.
«Basta de pormenores. Foram épocas de violência e selvajaria,
uma era caótica e babilónica, em que os povos e os partidos, os
jovens e os velhos, os vermelhos e os brancos já não se
compreendiam. No fim de tudo isso, quando já tinha corrido
bastante sangue e a miséria se tornou bastante grande, todos
sentiram um desejo cada vez mais poderoso de recolhimento, de
voltarem a encontrar uma linguagem comum, uma ordem, uma
moral, normas válidas, um alfabeto e uma aritmética não mais
ditadas e modificadas em cada momento pelos interesses do poder.
Nasceu uma imensa necessidade de verdade e de justiça, de razão,
uma necessidade de vencer o caos. É a esse vazio, no fim duma
época de despotismo unicamente preocupada com o exterior, é ao
paroxismo inexprimível de violência atingido pelo desejo de conhecer
uma renovação e uma ordem, que devemos a existência de Castália.
O grupo ínfimo e corajoso dos intelectuais dignos desse nome,
semimortos de fome, mas que não se tinham vergado, começou a
aperceber-se das suas possibilidades. Com uma disciplina dum
heroísmo ascético, começou a ordenar-se e a constituir-se; agarrou-
se, em todo o lado, ao trabalho em pequenos cenáculos, em grupos
minúsculos; começou a clarificar as palavras de ordem e a
reconstruir, a partir da base, uma espiritualidade, um ensino, uma
investigação científica, uma cultura. Teve êxito na sua construção;
ao princípio heroica e miserável, esta tornou-se lentamente um
edifício esplêndido, criou, numa série de gerações, a nossa Ordem, a
administração do ensino, as escolas de elite, os arquivos e as
coleções, as escolas de especialidades e os institutos, o Jogo das
Contas de Vidro, e somos nós, os que habitam hoje esta construção
quase sumptuosa, os seus herdeiros e seus usufrutuários. Repitamos
mais uma vez que habitamos aqui como convidados bastante
inconscientes e que começamos a instalar-nos algo
confortavelmente. Já não queremos ouvir falar dos monstruosos
sacrifícios humanos sobre que foram edificados os nossos alicerces,
nem das dolorosas experiências de que somos herdeiros, nem da
história universal que construiu ou tolerou o nosso edifício, que nos
suportará e tolerará, a nós e talvez ainda a muitos castalianos e
Magisters depois de nós, mas que um dia derrubará e engolirá a
nossa casa, como derrubou e engoliu tudo quanto deixou crescer.
«Deixo o domínio da história e a minha conclusão, a sua aplicação
ao presente e a nós próprios é esta: o nosso sistema e a nossa
Ordem ultrapassaram já o ponto culminante de desenvolvimento e
de felicidade que o jogo enigmático do destino deste mundo permite
por vezes ao belo e ao desejável atingir. Estamos no declínio; este
prolongar-se-á talvez ainda por muito tempo, mas em todo o caso já
não nos estará reservado nada de maior, de mais belo e de mais
desejável do que o que já possuímos; descemos a encosta.
Historicamente, creio que estejamos maduros para a regressão e
esta sobrevirá sem dúvida nenhuma não amanhã mas depois de
amanhã. Não se acredite que seja um diagnóstico moral em excesso
das nossas realizações e das nossas capacidades o que me conduz a
esta conclusão: deduzo-a sobretudo dos movimentos que vejo
prepararem-se no mundo exterior. Aproximamo-nos duma época
crítica; em todo o lado se sentem as primícias, o mundo apresta-se
uma vez mais a deslocar o seu centro de gravidade. Preparam-se
mudanças de poder que não se efetuarão sem guerra nem violência,
e não é somente uma ameaça para a paz, mas uma ameaça para a
vida e a liberdade o que se anuncia do fundo do Oriente. Mesmo
que o nosso país e a sua política observem uma atitude de
neutralidade, mesmo que o nosso povo persista unanimemente (e
não faça nada com isso) na manutenção da ordem atual, mesmo
que queira permanecer fiel ao ideal castaliano e a nós próprios, será
em vão. A partir de agora, mais do que um dos nossos
parlamentares declarará bastante explicitamente, quando a ocasião
se apresente, que Castália é um luxo algo caro de mais para o nosso
país. Logo que este seja obrigado a armar-se seriamente, a equipar-
se para se defender, e esse tempo talvez não esteja tão distante
como isso, far-se-ão grandes economias e, por mais bem-
intencionado que o governo seja para connosco, uma grande parte
dessas economias incidirão sobre nós. Estamos orgulhosos por a
nossa Ordem e a permanência da cultura espiritual que ela assegura
não exigirem do nosso país apenas sacrifícios relativamente
modestos. Em comparação com outras épocas, especialmente os
primeiros tempos da Idade do Folhetim, com as suas universidades
dotadas de créditos sumptuosos, os seus numerosos conselheiros
honorários e os seus luxuosos institutos, esses sacrifícios não são
grandes de facto e as despesas são ínfimas se as compararmos com
as que devoram as operações e o armamento durante o século da
guerra. Mas este armamento irá voltar a ser talvez precisamente o
imperativo supremo; no Parlamento serão novamente os generais
quem dominará, e quando o povo tiver de escolher entre sacrificar
Castália e expor-se ao perigo da guerra e da ruína, sabemos como
votará. Então, uma ideologia belicista estará também na moda, sem
dúvida nenhuma; apoderar-se-á especialmente da juventude: será
uma filosofia de slogans, segundo a qual os homens de ciência e do
saber, o latim e a matemática, a cultura e o culto do espírito já não
terão direito a existir, salvo na medida em que puderem servir os
fins da guerra.
«Esta vaga está já a rolar, varrer-nos-á um dia. Talvez seja um
bem, uma coisa necessária. Mas antes disso é-nos dado, venerados
colegas, na medida em que compreendemos os acontecimentos, na
medida em que o nosso espírito está desperto e é corajoso, usar
esta liberdade limitada de decidir e agir que é concedida ao homem
e que faz da história do universo uma história da Humanidade.
Podemos fechar os olhos se o quisermos, pois o perigo ainda está
bastante longe. É provável que nós, que hoje somos Magisters,
ainda possamos respirar todos em paz até ao fim e dormirmos
tranquilamente, para morrer antes que o perigo se aproxime e se
torne visível aos olhos de todos. Mas para mim, e de certeza não
serei o único, esta quietude não seria a duma consciência tranquila.
Não desejaria continuar a administrar tranquilamente o meu cargo e
a fazer partidas de Contas de Vidro, dizendo-me com satisfação que
o que deve acontecer já não me encontrará vivo provavelmente.
Não, parece-me, antes pelo contrário, necessário lembrar-me que
também nós, que não nos metemos na política, pertencemos à
história universal e a ajudamos a fazer. É a razão pela qual dizia no
início desta epístola que a minha atividade magistral estava reduzida
ou mesmo comprometida, pois não posso impedir que uma grande
parte dos meus pensamentos e das minhas preocupações tenha por
único objeto esse perigo futuro. Recuso à minha imaginação, claro,
jogar com as formas que um destino nefasto poderia revestir para
nós e para mim. Mas não posso fechar os ouvidos a esta pergunta:
Que devemos fazer, que tenho de fazer eu, para afrontar o perigo?
Seja-me permitida ainda uma palavra mais sobre isto.
«Não gostaria de fazer minha a exigência de Platão, segundo a
qual o sábio, ou antes o homem de sabedoria, deve deter o poder
do Estado. O mundo era então mais jovem. E Platão, ainda que
fundador duma espécie de Castália, não era de modo nenhum um
castaliano, mas um aristocrata pelo nascimento, e de sangue real.
Claro, nós também somos aristocratas e constituímos uma nobreza,
mas do espírito e não do sangue. Não creio que os homens
consigam selecionar alguma vez uma aristocracia fundada no sangue
e ao mesmo tempo no espírito. Será uma aristocracia ideal, mas
continua a ser um sonho. Nós, castalianos, embora sejamos pessoas
civilizadas e muito inteligentes, não somos feitos para o poder; se
tivéssemos de governar, não o faríamos com a força e o engenho
necessários aos verdadeiros dirigentes. O nosso próprio domínio e o
nosso papel específico, o culto duma vida intelectual exemplar não
tardariam também a ser então descurados. Para reinar não é
necessário ser-se idiota e brutal, como às vezes pensam intelectuais
vaidosos, mas antes comprazer-se constantemente numa atividade
orientada para o exterior, é preciso ter a paixão de se identificar com
os seus objetivos e os seus propósitos, e tambem certamente
rapidez e uma certa ausência de escrúpulos na escolha dos meios
para ter êxito. Tantas qualidades, por consequência, que um sábio –
pois não queremos chamar-nos homens de sabedoria – não pode ter
e não tem, pois para nós a contemplação é mais importante que a
ação e, na escolha dos meios e dos métodos a utilizar para
alcançarmos os nossos fins, aprendemos a ser tão escrupulosos e
desconfiados quanto possível. Não nos pertence portanto governar,
nem fazer política. Somos técnicos da interrogação, da análise e da
medida, somos os conservadores e os perpétuos verificadores de
todos os alfabetos, das tabelas de multiplicação e dos métodos,
somos controladores dos pesos e medidas espirituais. Claro, somos
também muitas outras coisas, quando calha podemos ser também
inovadores, descobridores, aventureiros, conquistadores, intérpretes
revolucionários, mas a nossa primeira e essencial função, a que nos
torna necessários ao povo e faz com que ele nos mantenha, consiste
em guardar puras todas as fontes do saber. No comércio, na política
e um pouco por todo o lado ocasionalmente, fazer dum U um X
poderá passar por uma proeza e uma marca de génio, mas nunca
entre nós.
«Em épocas anteriores, nos anos de exaltação, naquilo a que se
chamava as «grandes» épocas, no tempo das guerras e das
mudanças de regime, exigia-se às vezes dos intelectuais que
fizessem política. Foi o caso nomeadamente no fim da Idade do
Folhetim. Esta também pretendia politizar ou militarizar o espírito.
Assim como os sinos das igrejas serviam para fazer canhões e a
juventude fresca das escolas para colmatar os vazios das tropas
dizimadas, também o espírito devia ser requisitado e utilizado,
contranatura, como meio de combate.
«Não podemos, naturalmente, admitir esta pretensão. Que um
homem de ciência seja, em caso de perigo, tirado à sua cátedra ou à
sua mesa de trabalho para fazer dele um soldado, que
eventualmente também se aliste voluntariamente, que, por outro
lado, num país esgotado pela guerra, deva aceitar os maiores
sacrifícios materiais e mesmo a fome, tal não precisa de
comentários. Quanto mais um homem possui uma alta cultura,
quanto mais os privilégios de que goza são consideráveis, tanto
maiores devem ser os sacrifícios por ele consentidos em caso de
perigo. Esperamos que tudo isto seja evidente um dia para todos os
castalianos. Mas se estamos prontos a sacrificar ao nosso povo o
nosso bem-estar, as nossas comodidades, a nossa vida quando ele
está em perigo, tal não implica que estejamos prontos a sacrificar o
próprio espírito, a tradição e a moral da nossa espiritualidade aos
interesses do dia, da nação ou dos generais. Cobarde é aquele que
se furta aos atos, aos sacrifícios e aos perigos que o seu povo
afronta. Mas não menos cobarde nem menos traidor é aquele que
trai os princípios da vida espiritual em proveito de interesses
materiais, que está pronto a entregar-se, por exemplo, às potências
do dia para decidir quantos são dois vezes dois! Sacrificar o espírito
de verdade, a probidade intelectual, a fidelidade às leis e aos
métodos do espírito a um outro interesse, seja ele qual for, nem que
seja o da pátria, é uma traição. Quando nos conflitos de interesses e
das palavras de ordem a verdade corre perigo de ser desvalorizada,
desfigurada e violentada como o indivíduo, a língua, as artes, como
toda a criação orgânica e o fruto subtil de toda a alta cultura, então
o nosso único dever é resistir e salvar a verdade, quero dizer a
busca de verdade, como artigo supremo da nossa fé. O homem de
ciência que no seu papel de orador, autor, professor, diz friamente
coisas falsas, que concede friamente o seu apoio a mentiras e
falsificações, não somente age contra leis orgânicas fundamentais,
mas, embora não pareça no momento, não serve o seu povo, causa-
lhe pelo contrário um grave prejuízo, corrompe o ar e a terra, o
comer e o beber, envenena o seu pensamento e a sua justiça e
ajuda todas as potências malignas e hostis que ameaçam destruí-lo.
«O castaliano não deve, por conseguinte, tornar-se político. Em
caso de perigo deve sacrificar a sua pessoa mas nunca a sua
fidelidade para com o espírito. O espírito só é benfazejo e nobre
quando obedece à verdade. A partir do momento em que a traia, a
partir do momento em que perca o respeito, que se torne venal e
maleável à discrição, é o diabo em potência, e infinitamente pior que
a bestialidade animal instintiva, que guarda ainda alguma coisa da
inocência da Natureza.
«Deixo a cada um de vós, venerados colegas, o dever de
pensardes em que é que consistirão os deveres da nossa Ordem se
ela e o país forem ameaçados. As conceções diferirão sobre este
ponto. Eu tenho a minha e, depois de muito ter ponderado todos os
problemas aqui levantados, cheguei, pelo meu lado, a representar-
me claramente o que era o meu dever e merecia ser o meu objetivo.
O que me leva a apresentar ao venerável Diretório um pedido
pessoal, com que terminará este memorando.
«De todos os Magisters que constituem o nosso Diretório, sou sem
dúvida, como Magister Ludi, aquele cujas funções o retêm mais
longe do mundo exterior. O matemático, o linguista, o físico, o
pedagogo e todos os outros Magisters trabalham em domínios que
partilham com o mundo profano. Nas escolas gerais, não
castalianas, do nosso país e de todos os outros países, a matemática
e o estudo da língua constituem também as bases do ensino; nas
universidades profanas faz-se também astronomia, física; há
pessoas totalmente incultas que também fazem música. Todas estas
disciplinas remontam à noite dos tempos, são muito mais antigas
que a nossa Ordem, existiam bem antes dela e sobreviver-lhe-ão. Só
o Jogo das Contas de Vidro é nossa invenção pessoal, nossa
especialidade, nossa predileção, nosso brinquedo; é a expressão
última e a mais diferenciada dum género de espiritualidade
especificamente castaliano. É a joia ao mesmo tempo mais preciosa
e mais útil, mais amada, a mais frágil do nosso tesouro. É ele que
será o primeiro a perecer quando a manutenção de Castália for
posta em questão. Não só porque é por natureza o mais frágil dos
nossos bens, mas também porque, para profanos, representa sem
dúvida nenhuma o elemento menos indispensável de Castália. Se se
tratar de poupar ao país todas as despesas que não sejam
inevitáveis, limitarão o número de escolas de elite, discutirão os
créditos destinados a conservar e enriquecer as bibliotecas e as
coleções e suprimi-las-ão finalmente, reduzirão as nossas refeições,
não renovarão mais o nosso guarda-roupa, mas deixarão subsistir
todas as disciplinas mestras da nossa Universitas Litterarum, com
exceção do Jogo das Contas de Vidro. A matemática também é
precisa para inventar novas armas de fogo, mas que o encerramento
do Vicus Lusorum e a supressão do nosso Jogo possam causar o
menor prejuízo ao país e ao nosso povo, ninguém acreditará nisso,
os militares menos do que ninguém. O Jogo das Contas de Vidro é a
parte mais avançada e a mais exposta do nosso edifício. Talvez seja
por isso que justamente o Magister Ludi, o chefe de fila da nossa
disciplina mais alheia ao século, seja o primeiro a pressentir os
sismos em atividade ou pelo menos que é o primeiro a exprimir este
sentimento perante o Diretório.
«Considero, por consequência, que, em caso de perturbações
políticas e sobretudo militares, o Jogo das Contas de Vidro está
perdido. Degenerará rapidamente, seja qual for o número dos
indivíduos que se lhe mantenham ligados, e não será restaurado. A
atmosfera que suceder a uma nova era de guerras não o permitirá.
Desaparecerá, assim como determinados costumes duma muito alta
cultura na história da música, por exemplo, os coros de cantores
profissionais, cerca de 1600, ou os cânticos representados do
domingo nas igrejas, cerca de 1700. Os ouvidos humanos ouviram
nessa época sons que nenhuma ciência e nenhuma magia poderão
ressuscitar na irradiação seráfica da sua pureza. O Jogo das Contas
de Vidro não será esquecido, mas não poderá ser reanimado, e os
que estudarem a sua história, a sua génese, o seu desenvolvimento
e o seu fim suspirarão e invejar-nos-ão por termos podido viver num
mundo tão pacífico, tão culto e com manifestações duma
espiritualidade tão pura.
«Ora, se bem que seja Magister Ludi, não considero que seja do
meu ou do nosso dever impedir ou retardar o fim do nosso Jogo: a
beleza e a suprema beleza são perecíveis a partir do momento em
que se tornam história e fenómenos desta terra. Sabemo-lo e
podemos sentir melancolia com isso, mas não tentar seriamente
mudar alguma coisa, pois é um facto imutável. Quando chegar o fim
do Jogo das Contas de Vidro, Castália e o mundo sentirão uma
perda, mas nesse momento quase não sentirão nada, tão ocupados
estarão, nessa grande crise, a salvar o que ainda puder ser salvo.
Uma Castália sem Jogo das Contas de Vidro é concebível, mas não
uma Castália sem respeito pela verdade e fidelidade ao espírito. Uma
administração do ensino poderá funcionar sem um Magister Ludi.
Mas esta expressão “Magister Ludi”, na verdade, nós já quase o
esquecemos, não significa primitivamente nem essencialmente a
especialidade que designamos com este termo. Magister Ludi, na
origem, significa muito simplesmente mestre-escola. E o nosso país
terá tanta mais necessidade de mestres-escola, de bons e corajosos
mestres-escola, quanto Castália estiver mais em perigo e um maior
número das suas joias parecerem antiquadas e caírem de velhice.
Temos mais necessidade de mestres do que de tudo o resto, de
homens que inculquem na juventude a capacidade de medir e de
julgar, que sejam seus modelos no respeito pelo verdadeiro, na
obediência ao espírito, no serviço do verbo. E isto não se aplica
somente, nem à primeira vista, às nossas escolas de elite, cuja
existência terá também fim um dia, aplica-se também às escolas
seculares do exterior, onde burgueses e camponeses, artesãos e
soldados, homens políticos, oficiais e soberanos são educados e
formados, enquanto ainda são crianças e maleáveis. É aí que está a
base da vida espiritual do país e não nos institutos nem no Jogo das
Contas de Vidro. Temos fornecido sempre ao país os seus mestres e
educadores; já o disse: são os melhores de nós. Mas devemos fazer
bem mais do que tem sido feito até ao presente. Não devemos ficar
mais à espera que as escolas do exterior lancem constantemente
para nós a elite dos alunos dotados e nos ajudem a manter a nossa
Castália. Devemos reconhecer cada vez mais que esse humilde
serviço das escolas seculares, cheio de responsabilidades, é a parte
essencial e a mais prestigiosa da nossa tarefa, e devemos
desenvolvê-la.
«Isto traz-me agora ao pedido pessoal que gostaria de apresentar
ao venerável Diretório. Peço-lhe pela presente que me liberte das
minhas funções de Magister Ludi, que me confie, no exterior, no
país, uma escola ordinária, grande ou pequena, e me permita atrair
a mim, pouco a pouco, para nela ensinar, um estado-maior de
jovens Irmãos da nossa Ordem, pessoas em quem eu possa confiar
para me ajudarem fielmente a fazer entrar os nossos princípios na
cabeça e no sangue dos jovens laicos.
«Queira o venerável Diretório examinar com benevolência o meu
requerimento e os seus motivos e dar-me a conhecer seguidamente
as suas ordens.»
O Mestre do Jogo das Contas de Vidro

Post scriptum:
«Seja-me permitido citar uma frase do venerado Frei Jakobus, que
fixei durante uma das suas inesquecíveis lições:
«Períodos de terror e miséria muito profunda podem ocorrer. Mas
se é possível haver uma felicidade na miséria, só pode ser uma
felicidade do espírito, orientada, no passado, para a salvação da
cultura das épocas anteriores, e, no futuro, para a afirmação serena
e perseverante do espírito, numa era que sem isso correria o risco
de ser inteiramente votada à matéria.»
Tegularius ignorou até que ponto o seu trabalho deixara poucas
marcas nesta epístola; não viu a última versão. Knecht deu-lhe a ler
em contrapartida duas versões anteriores, muito mais
circunstanciadas. Enviou a sua carta e esperou a resposta do
Diretório com muito menos impaciência do que o seu amigo. Tinha
tomado a resolução de dali em diante não fazer mais dele confidente
das suas ações. Proibiu-o, portanto, de falar mais deste assunto e
deu-lhe simplesmente a entender que passaria certamente muito
tempo antes que chegasse uma resposta.
E quando esta lhe chegou, num prazo mais curto do que pensara,
Tegularius não foi informado. Essa carta de Hirsland era assim
concebida:

A Sua Grandeza o Magister Ludi, em Waldzell

«Caríssimo Colega:
«Foi com um interesse excecional que a Direção da Ordem, bem
como o Colégio dos Magisters, tomaram conhecimento da vossa
circular tão cheia de coração como de espírito. As retrospetivas
históricas da carta não cativaram menos a nossa atenção do que as
suas ansiosas perspetivas de futuro, e muitos de nós não deixarão
certamente de reservar um lugar nos seus pensamentos a estas
considerações cativantes e certamente, em parte, bastante
fundadas, para delas tirarem proveito. Prestámos todos homenagem,
com alegria, ao espírito que vos anima, ao vosso castalianismo
autêntico e desinteressado, ao vosso amor profundo à nossa
Província, à sua vida, aos seus costumes, que em vós se torna numa
segunda natureza e que as preocupações e, atualmente, um pouco
de angústia, ensombram. Prestámos homenagem com alegria ao
aspeto e ao tom pessoal que toma atualmente o seu amor, e
igualmente ao seu espírito de sacrifício, à sua sede de ação, à sua
gravidade, ao seu zelo e à sua tendência para o heroísmo.
Reconhecemos em todas essas marcas o carácter do nosso Mestre
do Jogo das Contas de Vidro, a sua energia, a sua chama, a sua
audácia. É uma atitude bem digna do aluno do célebre Beneditino
recusar o estudo da história sem ser doutra maneira que não seja
como observador impassível, por uma preocupação de erudição e,
de algum modo, por jogo de esteta, e aspirar utilizar diretamente os
seus conhecimentos históricos no imediato, agir e socorrer! E está
bem no vosso carácter, venerado Colega, ter desejos pessoais tão
modestos, não vos sentirdes atraído por tarefas e missões políticas,
para postos influentes e representativos, mas ambicionardes tão-
somente ser, além de Magister Ludi, mestre-escola!
«Estas são algumas das impressões e dos pensamentos que nos
vieram espontaneamente ao espírito logo à primeira leitura da vossa
circular. A maioria dos nossos colegas teve as mesmas ou pelo
menos sentiu analogamente. Pelo contrário, quando se tratou de
julgar a vossa comunicação, as vossas advertências e os vossos
pedidos, o Diretório não chegou a uma tomada de posição assim tão
unânime. Durante a sessão tida sobre este assunto, a vossa
conceção dos perigos que pesariam sobre a nossa existência, a
natureza, a extensão e a proximidade eventual desses perigos no
tempo foram nomeadamente objeto de vivas discussões e a maioria
dos Diretores encarou essas questões com uma gravidade manifesta
e não sem calor. Contudo, devemos informar-vos de que sobre
nenhum destes pontos a maioria dos votos se juntou à vossa
conceção. Foi somente prestada homenagem ao relevo sugestivo e
às vastas perspetivas das vossas considerações histórico-políticas.
Mas, no pormenor, nenhuma das vossas suposições – será
necessário dizer vossas profecias? – foi aprovada em toda a sua
extensão, nem reconhecida convincente. Inclusivamente sobre o
ponto de se saber em que medida a Ordem e as instituições
castalianas contribuem para a manutenção deste período de paz de
inusitada extensão, em que medida estes poderiam passar, do ponto
de vista do absoluto e dos princípios, por fatores da história política
e dos seus dados, recolhestes apenas poucos sufrágios; e ainda
assim recheados de reservas. A opinião formulada pela maioria é,
em suma, de que a calma ocorrida na nossa parte do Globo no fim
da época das guerras é parcialmente imputável ao esgotamento
geral e às perdas humanas consecutivas dos terríveis conflitos que a
tinham precedido, mas mais ainda ao facto de que o Ocidente tinha
deixado então de ser o ponto nevrálgico da história universal e o
campo fechado das ambições de hegemonia. Sem, por nada deste
mundo, pôr em dúvida os méritos da Ordem, não se pode
reconhecer, ao conceito castaliano duma alta cultura espiritual
colocada sob o signo duma disciplina contemplativa da alma, uma
força historicamente criadora no sentido próprio do termo, isto é,
uma influência viva sobre os dados da política mundial, nada
podendo estar mais longe do carácter deste espírito do que uma
propensão ou uma ambição desta espécie. Castália, algumas
intervenções bastante graves nos debates insistiram neste ponto,
não é, nem por vontade nem por destino, chamada a exercer uma
ação política, ou a procurar influir na guerra e na paz. Um finalismo
desta ordem está de resto fora de questão, pelo próprio facto de que
todo o castalianismo se baseia na razão e tem por campo só o
racional; não se pode, certamente, dizer o mesmo da história
universal, a não ser que se caia nas fantasias teológico-poéticas da
filosofia romântica da história, e se declare como método da razão
universal todo o aparelho de assassínio e de destruição das
potências que fazem a história. O mais fugaz olhar sobre a história
do espírito faz aparecer à evidência que as épocas de grande
desenvolvimento espiritual nunca foram explicadas por
circunstâncias políticas; a cultura, o espírito ou a alma têm, pelo
contrário, a sua história própria, que se desenrola paralelamente ao
que se qualifica de história universal, isto é, à margem dos combates
incessantes pelo poder material, como uma história segunda,
secreta, sagrada e sem efusão de sangue. É unicamente com esta
história universal sagrada e secreta que a nossa Ordem tem a ver e
não com a história “real” e brutal do universo. E nunca pode ter
como tarefa vigiar a história política, e ainda menos ajudar.
«Que a conjuntura política mundial seja, portanto, realmente tal
como a vossa circular dá a entender, ou não, não cabe à nossa
Ordem adotar uma atitude, a não ser a da expectativa e da
tolerância. Assim, sobrepondo-se a algumas vozes, a maioria
rejeitou claramente a vossa opinião, segundo a qual deveríamos
considerar esta conjuntura como um apelo à ação. Quanto à vossa
conceção da situação atual do mundo e às alusões que fizestes
sobre o futuro imediato, produziram, é verdade, manifestamente,
uma certa impressão sobre a maior parte dos nossos colegas e
causou mesmo sensação junto de alguns desses senhores. Contudo,
também sobre este ponto, apesar do respeito que a maior parte dos
oradores testemunhou pelos vossos conhecimentos e a vossa
perspicácia, não se apurou nenhuma maioria unânime a vosso favor,
antes pelo contrário. Tendeu-se antes, considerando ao mesmo
tempo as vossas declarações a este respeito como notáveis e de
grande interesse, a achá-las no entanto exageradamente
pessimistas. Uma voz ergueu-se mesmo para perguntar se não se
podia qualificar de manobra perigosa, ou até criminosa, ou no
mínimo irrefletida, a dum Magister que empreende meter medo ao
seu Diretório com imagens tão sinistras de perigos e provações
pretensamente iminentes. É claro que é lícito, dizia essa voz, lembrar
já agora a precariedade de todas as coisas, e é dever de todos,
especialmente nos postos elevados e que comportam
responsabilidades, recordar de vez em quando o memento mori.
Contudo, profetizar com tais generalizações e um tal niilismo um
pretenso fim próximo para toda a classe dos Magisters, para a
totalidade da Ordem e da Hierarquia, não é somente atentar
indignamente contra o repouso moral e a imaginação dos nossos
colegas, mas também pôr em perigo o próprio Diretório e a sua
eficácia. De facto, a atividade dum Magister nada ganhará se ele for
todas as manhãs para o trabalho dizendo-se que a sua função, o seu
trabalho, os seus alunos, a sua responsabilidade perante a Ordem, a
sua vida por Castália, a sua existência no seu seio, amanhã ou
depois de amanhã serão esquecidos e reduzidos a nada. Ainda que
essa voz não encontrasse apoio da maioria, recolheu no entanto
algumas aprovações.
«Ficar-nos-emos por este breve relato, mas estamos à vossa
disposição para o discutir oralmente. Vedes já por esta curta
exposição, caríssimo Colega, que a vossa circular não produziu o
efeito que talvez pensásseis. Este fracasso deve-se sem dúvida, na
sua maior parte, a causas materiais, a um desacordo de facto entre
os pontos de vista e os desejos que exprimistes e os da maioria.
Contudo, razões de forma contribuíram também para isso. Parece-
nos, pelo menos, que uma discussão oral direta entre vós e os
vossos colegas teria tido um resultado sensivelmente mais
harmonioso e mais positivo. E não foi somente esta forma de circular
escrita que prejudicou, julgámos nós, o vosso requerimento; foi bem
mais antes a associação, geralmente inusitada nas nossas relações,
duma comunicação aos colegas com um pedido pessoal, um
requerimento. A maior parte de nós vê nesta amálgama uma
tentativa de inovação infeliz, alguns qualificam-na francamente como
inadmissível.
«Isto traz-nos ao ponto mais delicado do vosso caso, ao pedido
que formulastes de ser libertado das vossas funções e afetado ao
serviço escolar secular. O solicitante deveria saber já que o Diretório
não podia deter-se num requerimento apresentado tão
abruptamente e assente em motivos tão particulares, que estava
excluído que desse a sua opinião favorável à sua aceitação do
mesmo. A resposta do Diretório é, evidentemente, não.
«Que seria da nossa Hierarquia se já não fossem a Ordem e as
instruções do Diretório que atribuíssem a cada um o seu lugar? Que
seria de Castália se cada um quisesse apreciar ele próprio o seu
valor pessoal, os seus talentos, as suas aptidões, e escolher um
posto em consequência? Recomendamos ao Mestre do Jogo das
Contas de Vidro que reflita alguns instantes e encarregamo-lo de
continuar a administrar o cargo eminente cuja direção lhe
confiámos.
«Julgamos ter satisfeito, deste modo, o vosso pedido de resposta.
Não pudemos dar-vos aquela que talvez esperásseis. Mas não
podemos deixar de prestar homenagem às interessantes sugestões e
aos gritos de alerta contidos no vosso documento. Contamos falar
ainda verbalmente convosco do seu conteúdo, e isso proximamente,
pois, ainda que a Direção da Ordem creia poder confiar em vós, há
contudo um ponto da vossa epístola que constitui um motivo de
preocupação: é aquele onde dizeis que a vossa capacidade de
assegurar ulteriormente as vossas funções seria diminuída ou
comprometida.»
Knecht leu esta carta sem esperar dela grande coisa, mas com
uma atenção extrema. Não tinha tido dificuldade em imaginar que
no Diretório tivessem tido «motivos de preocupação» e de resto
podia concluí-lo dum sinal particular. Um hóspede vindo de Hirsland
fizera a sua aparição na aldeia dos Jogadores, pouco tempo antes,
munido de papéis em regra e duma recomendação da Direção da
Ordem. Pedira hospitalidade por alguns dias, invocando trabalhos a
fazer nos arquivos e na biblioteca; tinha igualmente solicitado
autorização para assistir a algumas conferências de Knecht. Este
homem, que tinha já uma certa idade, fizera a sua aparição,
silencioso e atento, em quase todas as secções e salas da cidade,
informara-se sobre Tegularius e fizera diversas visitas ao diretor da
escola de elite de Waldzell, que habitava na vizinhança. Sem sombra
de dúvidas era um observador enviado para se informar da situação
na aldeia dos Jogadores, para ver se detetava negligências, se o
Magister estava de boa saúde e no seu posto, os funcionários no
trabalho e se os estudantes não manifestavam nenhuma
inquietação. Ficara uma semana inteira e não faltara a uma única
conferência de Knecht; a sua atitude de observador e a sua
presença silenciosa em todos os locais tinham atraído a atenção de
dois dos funcionários. Era, portanto, pelo relatório deste espião que
a Direção da Ordem esperara antes de dirigir a sua resposta ao
Magister.
Que pensar desta resposta e quem podia ter sido o redator? O
estilo não o traía, era o estilo administrativo corrente e impessoal
exigido pelas circunstâncias. Vendo de mais perto esta carta, ela
revelava no entanto mais originalidade e personalidade do que podia
supor-se à primeira leitura. Este documento baseava-se totalmente
no espírito hierárquico da Ordem, na justiça e no amor das
instituições. Via-se claramente quanto o requerimento de Knecht
tinha parecido deslocado, incongruente, penoso mesmo e irritante.
O redator desta resposta tinha decidido certamente rejeitá-lo logo
quando dele tomou conhecimento e sem que o julgamento dos
outros o tivesse influenciado. Em contrapartida, o descontentamento
e a atitude de defesa eram contrabalançados por um entusiasmo,
um estado de espírito diferentes: havia ali uma simpatia sensível; a
benevolência e a amizade de todos os juízos e de todas as
intervenções durante a sessão relativa ao pedido de Knecht eram
sublinhadas. Josef não duvidou que Alexander, o presidente da
Direção da Ordem, tivesse redigido esta resposta.

Eis-nos chegados ao fim do nosso caminho e esperamos ter


relatado o essencial da biografia de Josef Knecht. Sobre o fim da sua
vida poderá sem dúvida um futuro biógrafo estabelecer e relatar
ainda muitos outros factos.
Renunciamos a descrever os últimos dias da vida do Magister,
sobre os quais não sabemos mais do que qualquer outro estudante
de Waldzell e tão-pouco saberíamos fazer melhor do que a «Lenda
do Mestre das Contas de Vidro», cujas inúmeras cópias circulam
entre nós e cujos redatores são provavelmente alguns dos alunos
preferidos do desaparecido. Seja-nos permitido concluir o nosso livro
com essa lenda.
A LENDA

Quando ouvimos os nossos camaradas falar do desaparecimento


do nosso mestre e das suas causas, ou do bem ou mal fundado das
decisões e das ações deste, do significado ou do absurdo do seu
destino, isso assemelha-se-nos aos comentários de Diodorus Siculus
sobre as causas presumidas das inundações do Nilo. E, em nosso
entender, seria não apenas inútil como também injusto acrescentar
novos comentários aos que já existem. Em vez disso queremos
alimentar no nosso coração a memória do nosso Mestre que, depois
da sua partida misteriosa para o século, passou tão prematuramente
para um além ainda mais desconhecido e mais misterioso. É para
servir a sua memória que nos é querida, que vamos ressaltar o que,
desses acontecimentos, chegou aos nossos ouvidos.
Depois de ter lido a carta em que o Diretório rejeitava o seu
requerimento, o Mestre teve um leve arrepio, aquele sentimento de
frescura e disponibilidade que se sente de manhã, e isso fê-lo
compreender que tinha chegado a hora, que a partir dali já não era
mais possível hesitar e temporizar. Este sentimento particular, ao
qual dava o nome de «despertar», conhecera-o nos momentos
decisivos da sua existência; era ao mesmo tempo estimulante e
doloroso, ao mesmo tempo uma rutura e uma partida, e abalava as
profundezas do seu inconsciente como uma tempestade da
primavera. Olhou para o relógio, devia dar uma aula dali a uma
hora. Resolveu consagrar esta hora à meditação e dirigiu-se para o
seu tranquilo jardim magistral. A lembrança dum verso que
subitamente lhe veio ao espírito acompanhou-o:

Pois todo o começo tem um encanto próprio...

Pronunciou este verso sem saber em que poeta o lera; este verso
falava-lhe e agradava-lhe. Parecia-lhe responder perfeitamente ao
que lhe estava a acontecer naquele momento. Sentou-se no jardim,
num banco que as primeiras folhas mortas cobriam, regulou a
respiração e lutou por encontrar a sua calma interior até que, de
coração novamente sereno, mergulhasse numa contemplação, em
que a conjuntura desta hora da sua vida se ordenasse em imagens
gerais que ultrapassavam a sua pessoa. Mas, quando voltou à sua
salinha de aulas, o verso voltou-lhe ao espírito, teve de refletir
novamente nele e achou que o texto devia ser um pouco diferente.
E de repente a memória voltou-lhe e ajudou-o. Recitou muito
baixinho:

E em todo o começo mora um encanto


Que nos protege e nos ajuda a viver.

Mas foi só já quase à noite, muito depois de ter dado a aula e


concluído toda a espécie de outros trabalhos, que descobriu a
origem destes versos. Encontravam-se não num poeta antigo
qualquer mas num dos seus próprios poemas: tinha-o escrito
quando era aluno ou estudante e o poema concluía-se com este
verso:

Para a frente então, coração, despede-te e cura-te!

Nessa mesma noite convocou o seu adjunto e declarou-lhe que


tinha de fazer uma viagem de duração indeterminada no dia
seguinte. Transmitiu-lhe todos os negócios correntes com breves
instruções e despediu-se amistosamente, sem frases, como era seu
costume antes duma curta deslocação de serviço.
Antes disso, tinha-se apercebido perfeitamente de que deveria
abandonar Tegularius sem o pôr ao corrente e sem lhe infligir o
desgosto das suas despedidas. Tinha de agir assim não somente
para poupar a extrema sensibilidade do seu amigo mas também
para não comprometer todo o seu plano. Tegularius acomodar-se-ia
provavelmente ao facto consumado; uma declaração que o
surpreenderia e uma cena de adeus podiam, pelo contrário, levá-lo a
excessos desagradáveis. Knecht pensara mesmo, durante um
momento, em partir sem voltar a vê-lo. Mas, ao refletir, achou que
isso se assemelharia antes a uma fuga perante a dificuldade. Se era
justo e sensato poupar uma cena ao seu amigo, uma excitação e
uma ocasião de fazer loucuras, não tinha o direito de conceder-se
tantos cuidados consigo mesmo. Restava-lhe ainda meia hora antes
de ir deitar-se, podia ainda ir visitar Tegularius, sem o incomodar,
nem a ele nem a quem quer que fosse. Estava já escuro no vasto
pátio interior que atravessou. Bateu à cela do seu amigo, com o
sentimento singular de que era a última vez, e encontrou-o sozinho.
Surpreendido a ler, este acolheu-o com alegria, guardou o livro e
mandou o seu visitante sentar-se.
– Lembrei-me hoje dum velho poema – começou Knecht num tom
de conversa informal – ou, mais exatamente, de alguns versos desse
poema. Sabes talvez onde se pode encontrar o resto?
E citou-o: E em todo o começo mora um encanto...
O aspirante não precisou de muito esforço. Um instante de
reflexão fê-lo reconhecer o texto, ergueu-se e tirou dum
compartimento da sua secretária o manuscrito dos poemas de
Knecht; era o exemplar original que este lhe oferecera. Procurou e
tirou duas folhas que continham o texto primitivo do poema.
Estendeu-as ao Magister:
– Aqui está – disse sorrindo. – Queira Vossa Grandeza servir-se. É
a primeira vez em muitos anos que vos dignais lembrar-vos destes
poemas.
Josef Knecht considerou as folhas atentamente e não sem
emoção. Fora no tempo em que era estudante, durante a sua estada
no Instituto do Extremo Oriente que escrevera versos naquelas duas
folhas: evocavam para ele um passado longínquo; tudo lhe falava ali
dum tempo quase esquecido cujo despertar doloroso era um aviso:
aquele papel que começava a amarelecer, aquela letra juvenil,
aqueles riscos e aquelas correções do texto. Pareceu-lhe lembrar-se
não apenas do ano e da estação do ano em que tinham nascido
aqueles versos, mas até do dia e da hora e também do seu estado
de espírito da altura, o sentimento de força e orgulho que o
encheram e o transportaram, de que aquelas linhas eram expressão.
Tinha-os escrito durante um daqueles dias singulares em que lhe
fora dado conhecer aquilo a que chamava o despertar.
Manifestamente, o título tinha sido concebido antes do próprio
poema, antes do primeiro verso. Tinha sido traçado com uma letra
impetuosa, em letras grandes:
Transcender-se!
Só mais tarde, numa altura diferente, noutro estado de espírito e
numa situação diversa, o título e o ponto de exclamação tinham sido
riscados e substituídos por um outro texto escrito em letras mais
pequenas, mais finas, mais modestas: Degraus.
Knecht lembrava-se de como no voo das ideias do seu poema
escrevera as palavras: Transcender-se! Era um apelo e uma ordem,
uma exortação a si mesmo, uma decisão que acabava de formular e
confirmar: colocar a sua ação e a sua vida sob aquele signo e levá-la
a transcender, transpor com uma serenidade resoluta, colmatar e
ultrapassar todos os espaços, todas as distâncias. Leu a meia voz
algumas estrofes:

Serenos transponhamos espaço após espaço,


não nos prendendo a nenhum como a um lar;
Ser-nos corrente ou parede não quer o espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.

– Esqueci estes versos durante muitos anos – disse – e quando


hoje me veio um ao espírito, por acaso, não soube donde me vinha,
nem que era meu. Que impressão te dão hoje? Ainda te dizem
alguma coisa?
Tegularius refletiu.
– Principalmente este poema impressionou-me sempre – disse em
seguida. – Faz parte do pequeno número de poemas de Vossa
Grandeza de que, para dizer a verdade, não gostava, que me
chocavam ou me perturbavam por um pormenor qualquer. Na altura
não sabia o que era. Hoje creio que sei. O vosso poema, Venerado
Magister, que intitulastes com essa ordem de marcha Transcender-
se! e que substituístes, louvado seja Deus, por outro título bem
melhor, nunca me agradou porque tem qualquer coisa de imperativo,
moralizante, ou que cheira a mestre-escola. Se se pudesse retirar-
lhe esse elemento, ou antes, desbastar esse verniz, seria um dos
vossos mais belos poemas, acabo de o notar outra vez. O seu
conteúdo verdadeiro está bastante bem indicado pelo título Degraus.
Podíeis mesmo ter feito melhor se o tivésseis intitulado Música ou
Essência da Música. Pois, se se eliminar essa atitude moralizante ou
de pregador, trata-se verdadeiramente de considerações sobre a
essência da música ou, se se quiser, um elogio da música, da sua
presença permanente, da sua alegria e do seu andamento decidido,
da sua mobilidade, da sua disponibilidade e da sua infatigável
vontade de prosseguir o voo, de sair do espaço ou do setor onde
acaba precisamente de penetrar. Se este poema se tivesse limitado a
essas considerações ou a esse elogio do espírito da música, se,
aparentemente dominado já nessa época por uma ambição de
educador, não tivésseis feito dele uma exortação e uma prédica,
podia ser uma joia pura. Tal como está, não me parece apenas
demasiado didático, pedante, parece-me também pecar por um erro
de raciocínio. Unicamente por necessidades de moral, coloca no
mesmo plano a música e a vida, e isso é no mínimo duvidoso e
contestável; faz desse motor natural, alheio à moral, que é da
música, uma «vida» que quer educar-nos e desenvolver-nos por
meio de injunções, ordens e bons princípios. Em resumo, neste
poema, uma visão, uma coisa duma beleza e duma grandeza únicas,
encontra-se falsificada e explorada para fins didáticos e foi isso o
que sempre me pôs contra ele.
O Magister teve prazer em ouvir o seu amigo e vê-lo ir buscar a
uma espécie de cólera um calor verbal que nele lhe agradava.
– Possas tu ter razão – disse, num tom meio sério meio a brincar.
– Em todo o caso falas verdade no que diz respeito às referências à
música que o poema contém. Esse «transpor os espaços» e a ideia
fundamental dos meus versos provêm efetivamente da música, sem
que eu o tenha sabido ou notado. Não sei se falseei a ideia ou
deformei a visão; talvez tenhas razão. Quando fazia versos, o
assunto, na verdade, já não era a música, mas uma descoberta: o
belo símbolo da música tinha-me revelado de facto o seu aspeto
moral e tornara-se para mim um elemento do meu despertar, uma
exortação, um apelo vital. Esta forma imperativa do poema que
tanto te desagrada não exprime uma vontade de comandar ou
doutrinar, pois essa ordem, essa exortação só a mim se dirigem.
Mesmo que o não tivesses sabido perfeitamente doutra maneira,
caro amigo, terias podido reconhecê-lo no último verso. Tive, por
conseguinte, uma iluminação, uma intuição, uma visão íntima, e quis
lembrar-me e meter na cabeça o conteúdo e a moral dessa
iluminação. Foi por isso que este poema, sem que eu o tivesse
querido, me ficou na memória. Sejam bons ou maus, estes versos
atingiram por conseguinte o seu objetivo, esta exortação sobreviveu
em mim e eu não a esqueci. Hoje tem para o meu ouvido um som
quase novo. É uma pequena emoção que não deixa de ser bela, as
tuas críticas não podem estragar-ma. Mas é tempo de nos
separarmos. Que bela época, camarada, foram esses anos em que,
ambos estudantes, podíamos permitir-nos muitas vezes infringir o
regulamento e ficar mergulhados nas nossas discussões até altas
horas da noite. Um Magister já não tem esse direito. É pena!
– Oh! – exclamou Tegularius –, o direito temo-lo, a coragem é que
não.
Knecht pôs-lhe a mão no ombro, rindo-se.
– No que diz respeito à coragem, meu caro, eu ainda seria capaz
de fazer muita coisa. Boa noite, velho descontente!
Ia feliz ao sair da cela, mas no caminho, nos corredores e nos
pátios onde reinava o vazio da noite, a sua gravidade voltou-lhe, a
gravidade da partida. Partir acorda sempre imagens do passado e
durante este trajeto uma recordação assaltou-o: a da primeira vez
em que, criança ainda, novo na escola de Waldzell, percorrera a
localidade e a aldeia dos Jogadores, cheio de pressentimentos e
esperanças, e somente então, no meio das árvores e dos edifícios
silenciosos, na frescura noturna, sentiu-se penetrado de dor ao ver
que era a última vez que via aquilo tudo, a última vez que ouvia a
queda do silêncio, aquele sono da cidade tão cheia de vida durante o
dia, a última vez que via a luzinha por cima do pavilhão do porteiro
refletir-se na bacia da fonte e as nuvens da noite passarem por cima
das árvores do seu jardim magistral. Explorou lentamente todos os
caminhos e recantos da aldeia dos Jogadores, sentiu desejo de abrir
uma vez mais a portinha do seu jardim e entrar, mas não tinha a
chave consigo e isso contribuiu para lhe devolver rapidamente o seu
sangue-frio e voltar a si. Entrou em casa, escreveu ainda algumas
cartas, em especial para anunciar a Designori a sua chegada à
capital. Seguidamente, libertou-se, por meio duma meditação
conscienciosa, dos transportes sentimentais daquele momento, para
ser forte no dia seguinte e enfrentar a sua última tarefa em Castália,
a entrevista com o Diretor da Ordem.
No dia seguinte de manhã o Magister levantou-se à hora habitual,
mandou vir o carro e partiu. Só poucas pessoas repararam na sua
partida, ninguém se preocupou. Fez a viagem até Hirsland, na
manhã saturada pelos primeiros nevoeiros do outono, chegou lá ao
meio-dia e fez-se anunciar ao Magister Alexander, o presidente da
Direção da Ordem. Levava consigo, envolvo num tecido, um belo
cofre de metal que tirara dum compartimento secreto da chancelaria
e que continha as insígnias da sua dignidade, os selos e as chaves.
No «grande» escritório da Direção da Ordem acolheram-no com
uma certa surpresa; quase nunca tinha acontecido que um Magister
aparecesse sem ser anunciado ou convidado. Por instruções do
Diretor da Ordem deram-lhe de almoçar, em seguida abriram-lhe
uma cela de repouso no velho claustro e informaram-no de que Sua
Grandeza esperava poder libertar-se dentro de duas ou três horas
para o receber. Pediu que lhe trouxessem um exemplar das regras
da Ordem e instalou-se. Leu o fascículo duma ponta à outra e
certificou-se mais uma vez da simplicidade e da legalidade do seu
plano: parecia-lhe ainda, no entanto, verdadeiramente impossível,
mesmo naquele momento, torná-lo compreendido, com palavras, no
seu sentido e na sua legitimidade profundas. Recordou uma frase do
regulamento que outrora lhe tinham dado a meditar, nos últimos
dias da sua juventude e dos seus anos de estudos, aquando da sua
admissão na Ordem. Releu essa frase, mergulhou na contemplação
e sentiu então até que ponto era diferente, agora, do jovem
aspirante um pouco ansioso que tinha sido então. «Se as
autoridades superiores te chamam para uma função», dizia essa
passagem dos regulamentos, «sabe que toda a ascensão na escada
das funções, longe de ser um passo para a liberdade, cria uma nova
obrigação. Quanto mais o poder do cargo é grande, mais o seu
serviço é rigoroso. Quanto mais uma personalidade é forte, mais a
sua arbitrariedade é repreensível.» Que aspeto definitivo e evidente
isso tinha tido para ele nessa altura e, contudo, como o sentido de
muitos termos havia mudado depois disso, como se invertera
mesmo, aos seus olhos, sobretudo o de palavras tão capciosas como
«obrigação, personalidade, arbitrariedade»! E, no entanto, que belas
frases claras, sólidas e admiravelmente sugestivas, bem-feitas, para
parecerem a um espírito jovem absolutas, eternas e verdadeiras
duma ponta à outra! Oh! Para que ainda o fossem, bastaria, na
verdade, que Castália fosse o mundo inteiro, múltiplo e contudo
indivisível, em vez de precisamente ser apenas um pequeno universo
no grande universo ou um extrato ousado e arbitrário deste. Se a
terra fosse uma escola de elite, a Ordem a comunidade de todos os
homens e o seu Presidente Deus, como todas aquelas frases e o
regulamento seriam perfeitos! Ah! Se tivesse sido assim, que graça
não teria tido a vida, que libertação, que beleza inocente! Outrora,
tinha sido realmente assim: a Ordem e o espírito castaliano
representavam o divino e o absoluto, a Província o mundo, os
castalianos a Humanidade, e a fração não castaliana do todo uma
espécie de mundo infantil, a antecâmara da Província, um solo
virgem que esperava ainda ser cultivado e redimido, que erguia para
Castália olhares cheios de respeito e lhe enviava, de longe a longe,
visitantes tão amáveis como o jovem Plínio.
Que situação singular no entanto a sua, a do seu espírito! Esta
espécie de inteligência e de intuição que lhe eram próprias, este
conhecimento vivido da realidade, que ele classificava de despertar,
não a tinha considerado outrora, e ainda ontem mesmo, como uma
penetração, passo a passo, no centro do mundo, o coração da
verdade, como uma espécie de absoluto, uma via ou uma
progressão que, certamente, só podia realizar-se passo a passo, mas
que na sua conceção era contínua e retilínea? Outrora, na sua
juventude, não lhe parecera ser um despertar, um progresso, um ato
de valor indiscutível e certo, marcar consciente e exatamente, como
bom castaliano, as distâncias entre si e o mundo exterior, prestando-
lhe homenagem ao mesmo tempo, é verdade, na pessoa de Plínio? E
tinha sido ainda um progresso e um sinal de sinceridade optar, após
anos de dúvida, pelo Jogo das Contas de Vidro e pela vida de
Waldzell. E também deixar integrar-se no serviço pelo Mestre
Thomas, ser acolhido na Ordem pelo Mestre da Música, e mais tarde
ser nomeado Magister. Tudo isso outros tantos passos, pequenos ou
grandes, numa via de aparência retilínea – e no entanto tinha
chegado agora ao seu termo e não estava nem no coração do
mundo nem nos arcanos do verdadeiro; no seu despertar atual
ainda só tinha aberto os olhos, ainda só encontrara uma nova
situação e adaptara-se a conjunturas novas. Aquele mesmo carreiro
estreito, claro, evidente, retilíneo que o levara a Waldzell, a
Mariafels, que o fizera entrar na Ordem e aceder à função magistral,
fazia-o agora sair dele. O que tinha sido uma sucessão de atos de
despertar era ao mesmo tempo uma série de gestos de adeus.
Castália, o Jogo das Contas de Vidro, a dignidade magistral, tinham
sido, cada um, um assunto que fora necessário explorar e esgotar,
um espaço a atravessar, a transcender. Tinha-os já transposto. E
manifestamente, outrora, quando o seu pensamento e os seus atos
eram o contrário do que eram hoje, sabia ou pressentia já o que
havia nisso de problemático; não escrevera esse apelo Transcender-
se! por cima do poema quando era estudante e onde se falava de
degraus e de despedidas?
Assim tinha andado às voltas, a menos que não tivesse sido em
elipse, ou em espiral, em todo o caso não tinha ido a direito, pois a
linha reta parecia existir apenas na geometria e ser alheia à
Natureza e à vida. Contudo, mesmo depois de ter esquecido durante
muito tempo aquele poema e o seu despertar de então, tinha-se
conformado fielmente pelas exortações e os encorajamentos que
formulara para si mesmo, não inteiramente, é verdade, e não sem
hesitação, sem ceticismo, sem crise e sem lutas, mas subira degrau
a degrau, atravessara corajosamente todos os espaços, com
recolhimento e bastante serenidade, sem a radiação do antigo
Mestre da Música, mas sem cansaço nem fraqueza, sem denegação
nem infidelidade. E se cometia hoje aos olhos dum castaliano uma
denegação e uma infidelidade, se, com desprezo por toda a moral
da Ordem, parecia agir no interesse da sua própria personalidade,
arbitrariedade, por consequência, agiria também no espírito da
coragem e da música, fiel por conseguinte à sua cadência, e na
serenidade, fosse o que fosse que lhe acontecesse. Não poderia
explicar e provar aos outros o que lhe parecia tão claro? Que esta
«arbitrariedade» dos seus atos atuais era na realidade uma maneira
de servir e obedecer, que se orientava não para a liberdade, mas
para novas obrigações, desconhecidas e angustiantes, que, longe de
desertar, respondia a um apelo, que não agia como queria, mas por
obediência, não como senhor, mas como vítima? E as virtudes, a
serenidade, o respeito pela medida, a coragem? Tornavam-se
delgadas mas ainda existiam. Supondo que não avançássemos, que
seguíssemos apenas um guia, que não transcendêssemos a
autoridade própria mas que o espaço girasse apenas à volta do ser
colocado no seu centro, essas virtudes não permaneciam menos,
conservavam o seu valor e a sua magia, consistiam em dizer sim em
vez de negar, em obedecer em vez de se furtar, e talvez, também
um pouco, em parecer agir e pensar como mestre cheio de iniciativa,
em aceitar sem controlo a vida e o seu engano espontâneo, esse
reflexo aureolado duma aparência de autodeterminação e de
responsabilidade, em ser justamente, por causas desconhecidas,
construído, no fundo, para agir e não para conhecer, em ser mais
instintivo do que espiritual. Ah!, poder falar disto com Frei Jakobus!
Pensamentos e sonhos deste género prolongaram o eco da sua
meditação. O cerne do «despertar» era, parecia, não a verdade e o
conhecimento, mas a realidade, o facto de a viver e a enfrentar. O
despertar não nos fazia chegar mais perto do núcleo das coisas,
mais perto da verdade. O que se aprendia, o que se realizava e o
que se sofria nessa operação era só a tomada de posição do eu face
ao estado momentâneo das coisas. Não se descobriam leis, mas
decisões, não se penetrava no coração do mundo, mas no coração
da nossa própria pessoa. Era também por isso que o que então se
conhecia era tão pouco comunicável, tão singularmente rebelde à
fala e à formulação. Parecia que exprimir estas regiões da vida não
fizesse parte dos objetivos da linguagem. Quando, por exceção,
acontecia que se seguisse algum tempo o nosso pensamento, era
porque o homem que nos compreendia estava numa situação
análoga, que sofria ou despertava como nós. Tinha acontecido a
Fritz Tegularius compreendê-lo um pouco, Plínio tinha-o seguido
mais longe ainda. Quem podia nomear agora? Ninguém.
A tarde começava já a cair e ele estava inteiramente perdido e
absorto no jogo dos seus pensamentos quando bateram
energicamente à porta. Como não regressasse imediatamente a si e
não respondesse, a pessoa que estava lá fora esperou um pouco,
depois bateu novamente, ao de leve. Desta vez Knecht respondeu.
Ergueu-se, acompanhou o criado que o conduziu ao edifício da
chancelaria e o mandou entrar, sem o anunciar, para o gabinete do
presidente. O Mestre Alexander veio ao seu encontro.
– É pena que tenhais vindo sem serdes anunciado – disse. –
Tivestes de esperar. Estou impaciente por saber o que vos trouxe
aqui tão repentinamente. Nada de desagradável, espero?
Knecht riu-se. – Não, não é nada de desagradável. Mas a minha
vinda é realmente tão inesperada e não sois capaz verdadeiramente
de imaginar o que me traz?
Alexander olhou-o nos olhos com uma expressão grave e
preocupada.
– Pois bem – disse –, posso fazer uma ideia. Dizia-me, por
exemplo, nestes últimos dias, que para vós o assunto da vossa
circular não estava certamente ainda regulado. O Diretório teve de
lhe responder um pouco curtamente, num espírito e num tom talvez
um pouco dececionantes para vós, Domine.
– Não – disse Knecht –, no fundo não esperava quase outra coisa
do que o que contém, em substância, esta resposta do Diretório. E
quanto ao tom, pois bem, foi precisamente ele que me fez bem.
Notei, ao ler essa carta, que tinha custado a escrever ao seu redator,
que lhe dera desgosto e que ele sentiu a necessidade de misturar
algumas gotas de mel a essa resposta desagradável e um pouco
humilhante para mim. Conseguiu-o perfeitamente e estou-lhe grato
por isso.
– E o conteúdo da carta, aceitaste-lo por conseguinte, Venerável?
– De facto, tomei conhecimento dele, e, no fundo, também o
compreendi e aprovei. Esta resposta dificilmente me poderia trazer
outra coisa que não uma recusa, juntamente com uma censura
velada. A minha circular era uma coisa insólita para pôr o Diretório
num grande embaraço, nunca duvidei disso. Além do mais, na
medida em que continha um pedido pessoal, talvez não estivesse
redigida em termos muito oportunos. Não podia esperar outra coisa
que não uma recusa.
– É agradável para nós – disse o presidente da Direção da Ordem
com alguma severidade – verificar que o vedes e que a nossa carta
não vos causou por conseguinte uma surpresa dolorosa. Isso é
muito agradável para nós. Mas há ainda um ponto que não
compreendo. Se, ao redigirdes e enviardes a vossa carta...
compreendo-vos perfeitamente, não é verdade?... não acreditáveis
já num êxito nem numa resposta positiva, se estáveis inclusivamente
convencido de antemão do vosso fracasso, porque é que a
acabastes, lhe destes a última forma e expedistes a vossa circular,
que representa, ao fim e ao cabo, trabalho considerável?
Knecht olhou para ele com simpatia e respondeu: – Senhor
Presidente, o conteúdo e a intenção da minha carta eram duplos, e
não julgo que nesses dois pontos tenha sido assim tão totalmente
infrutuosa e ineficaz. Continha um pedido pessoal: eu pedia para ser
liberto das minhas funções e empregado noutro sítio; estava no meu
direito considerá-lo como um elemento relativamente secundário,
uma vez que todos os Magisters devem, tanto quanto possível, pôr
em segundo lugar os seus assuntos pessoais. O meu pedido foi
rejeitado, devo sobre isso tirar as minhas conclusões. Mas a minha
circular continha muitas outras coisas além do meu pedido: por um
lado, uma quantidade de factos, por outro, ideias que achava dever
levar ao conhecimento do Diretório e recomendar à sua atenção.
Todos os Magisters, ou pelo menos a sua maioria, leram a minha
exposição, para não dizer os meus avisos, e, ainda que a sua maior
parte só tenha, de certeza, absorvido esta iguaria contra vontade e
manifestando antes mau humor, não leram tudo e engoliram tudo o
que julgava dever dizer-lhes. Que esta epístola não tenha recolhido
os seus sufrágios não constitui a meu ver uma derrota. Não
procurava na verdade nem os seus votos nem a sua aprovação; e o
meu objetivo era antes tirá-los da sua quietude e abaná-los. Se,
pelas razões que enunciais, tivesse renunciado a enviar este estudo,
lamentá-lo-ia vivamente. Que tenha produzido pouca ou muita
impressão, terá sido apesar de tudo um despertar, um apelo.
– Com certeza – disse o presidente com hesitação –, mas em meu
entender isso não resolve o enigma. Se quisésseis ter a certeza de
que os vossos avisos, os vossos gritos de alarme, as vossas
advertências chegariam ao Diretório, porque é que enfraquecestes
ou, em todo o caso, comprometestes o efeito das vossas palavras de
ouro, associando-as a um pedido pessoal, que vós próprio não
acreditáveis fosse concedido nem o pudesse ser? Até nova ordem
ainda o não compreendo. Mas isto vai sem dúvida ser esclarecido se
examinarmos em conjunto todo este assunto. Seja como for, o ponto
fraco da vossa circular foi o de associar esse grito de alarme e esse
requerimento aos vossos avisos e esse pedido. Estaríamos no direito
de pensar que, apesar de tudo, não teríeis necessidade de recorrer a
esse requerimento para servir de veículo às vossas admoestações.
Tínheis bastantes facilidades para tocar os vossos colegas oralmente
ou por escrito, se achásseis que eles precisavam de ser abanados na
sua quietude. E o vosso requerimento teria seguido a via
administrativa que lhe é adequada.
Knecht olhou para ele com simpatia. – Sim – disse num tom leve.
– É possível que tenhais razão, se bem que... Considerai mais uma
vez este assunto complexo! Nem na minha exortação nem no meu
requerimento se tratava dum facto banal, habitual e normal; ambos
iam a par devido ao que tinham de excecional por serem fruto dum
estado de urgência e se situarem fora das convenções. Não é
corrente nem normal que, sem uma causa externa, urgente, um
homem conjure de repente os seus colegas a lembrarem-se de que
são mortais e precária toda a sua situação. Também não é corrente
e banal ver um Magister castaliano solicitar um posto de mestre-
escola no exterior da Província. Neste sentido, os dois pontos da
minha carta estão muito bem juntos. O espírito dum leitor que
tivesse levado verdadeiramente toda a carta a sério deveria conduzir,
em meu entender, a esta conclusão: não estamos somente na
presença dum indivíduo um pouco fantástico que grita os seus
pressentimentos e pretende morigerar os seus colegas, mas as
ideias e a miséria deste homem colocam-no numa situação
dramática, ele está pronto a repudiar as suas funções, o seu título, o
seu passado, para retomar tudo pela base, no posto mais humilde;
está farto da sua dignidade, da sua paz, das honras e da autoridade,
aspira a desfazer-se delas, a mandá-las para as urtigas. Essa
leitura... procuro ainda colocar-me no espírito do leitor da minha
carta... teria podido, parece-me, conduzir a duas deduções: ou o
autor de tal homilia era louco e já não se põe a questão de o manter
como Magister, ou então o redator de tal prédica penosa, não
estando manifestamente demente, mas são e normal, os seus
sermões e as suas declarações pessimistas deviam encobrir mais do
que esquisitices e ideias dum humor variável: quero dizer, uma
realidade, uma verdade. Foi mais ou menos assim que imaginei
como as coisas se passariam na cabeça dos meus leitores e devo
reconhecer que cometi um erro de cálculo. O meu requerimento e o
meu grito de alarme, longe de se apoiarem e reforçarem
mutuamente, não foram levados a sério nem um nem outro, e foram
metidos numa gaveta. A recusa não me aflige muito e não me
surpreende verdadeiramente, pois, no fundo, devo repeti-lo, estava,
apesar de tudo, à espera dela e concordo que também a mereci. O
meu requerimento, de facto, em cujo êxito não acreditava, era uma
espécie de fingimento, um gesto, uma fórmula.
A expressão do Mestre Alexander tornara-se ainda mais grave,
quase sombria. Mas não interrompeu o Magister.
– Não estava nas minhas intenções – prosseguiu este – esperar
seriamente uma resposta favorável quando enviei o meu
requerimento, nem congratular-me com ela, mas também não
estava disposto a aceitar docilmente uma resposta negativa como
uma decisão que me ultrapassasse.
– Não estáveis disposto a aceitar uma resposta do vosso Diretório
como uma decisão que vos ultrapassasse, foi o que ouvi, Magister? –
interrompeu o presidente, sublinhando fortemente cada palavra. Era
claro que reconhecera agora toda a gravidade da situação.
Knecht inclinou-se levemente. – Sim, ouvistes bem. Não
acreditava nada num êxito possível do meu pedido, mas, contudo,
calculava que devia apresentá-lo, em nome da boa ordem e por
respeito pela forma. Fornecia assim, de certo modo, ao nosso
venerado Diretório uma possibilidade de resolver o assunto sem
escândalo. Se esta solução lhe repugnasse, estava, desde já, para
dizer a verdade, decidido a não me deixar reter, nem acalmar, mas a
agir.
– E a agir como? – perguntou Alexander, numa voz contida.
– Como o meu coração e a minha razão mo ditam. Estava decidido
a demitir-me das minhas funções e começar a entregar-me a uma
atividade no exterior de Castália, mesmo sem ter recebido uma
missão ou licença do Diretório.
O Diretor da Ordem fechou os olhos e pareceu não mais o escutar.
Knecht viu que ele se entregava àqueles exercícios para os casos de
sofrimento, com a ajuda dos quais os membros da Ordem procuram,
na presença duma ameaça ou dum perigo súbito, assegurar o
domínio de si próprios e a sua calma interior; comporta duas
paragens sucessivas muito longas da respiração, para esvaziar os
pulmões. Viu o rosto daquele homem, que se sabia culpado de
colocar nesta situação desagradável, empalidecer levemente e
depois recuperar a cor com uma lenta inspiração que começou pelos
músculos do ventre; viu os olhos daquele Magister, que tanto
prezava, voltarem a abrir-se durante um momento, fixos e sem
objeto, mas logo a seguir despertarem e retomarem o seu vigor;
com um ligeiro temor, viu o olhar claro, cheio de domínio e sempre
disciplinado daquele ser, tão grande na obediência como no
comando, voltar-se então para si e considerá-lo com uma frieza
contida, medi-lo, julgá-lo. Teve de suportar muito tempo aquele
olhar em silêncio.
– Creio ter compreendido Vossa Grandeza – disse por fim
Alexander em voz calma. – Desde há algum tempo que estáveis
cansado das vossas funções ou de Castália, ou atormentado pelo
desejo de viver a vida do século. Tomastes a resolução de obedecer
antes a esse humor do que às leis e às vossas obrigações. Não
sentistes igualmente a necessidade de vos confiardes a nós e de
procurardes conselho e assistência junto da Ordem. Para satisfazer
uma exigência de forma e descarregar a vossa consciência,
dirigistes-nos por consequência então esse requerimento, que
sabíeis inaceitável por nós, mas que poderíeis invocar, se o caso
viesse à discussão. Admitamos que esse comportamento tão insólito
tenha sido motivado e que as vossas intenções tenham sido
honestas e respeitáveis... não consigo de resto imaginar que tenha
sido doutra maneira. Mas como foi possível que, alimentando no
coração tais pensamentos, tais desejos, tais resoluções, que, já
desertor no vosso foro íntimo, tenhais podido permanecer tanto
tempo em funções sem dizer nada e continuar a desempenhar-vos
delas sem parecer faltar-lhes?
– Estou aqui – disse o Mestre do Jogo das Contas de Vidro com a
mesma afabilidade – para falar a fundo de tudo isso convosco, para
responder a cada uma das vossas perguntas, e decidi, porque optei
daqui para a frente pela via das minhas ideias pessoais, não deixar
Hirsland e a vossa casa antes de saber que me compreendestes um
pouco, a mim, à minha situação e aos meus atos.
O Mestre Alexander refletiu: – Devo compreender que esperais
que eu alguma vez aprove a vossa conduta e os vossos planos? –
perguntou com hesitação.
– Oh!, longe de mim pensar numa aprovação. Aguardo e fico à
espera de ser compreendido por vós e conservar um resto da vossa
estima quando me for embora daqui. São as únicas despedidas que
me resta para fazer na nossa Província. Saí hoje de Waldzell e da
aldeia dos Jogadores para sempre.
Alexander voltou a fechar os olhos durante alguns segundos. As
revelações deste homem incompreensível perturbavam-no.
– Para sempre? – perguntou. – Tendes verdadeiramente a
intenção de nunca mais voltar ao vosso posto? Devo dizer-vos que
tendes a arte de surpreender as pessoas. Uma pergunta, se me
permitis: considerais-vos agora verdadeiramente ainda como o
Mestre do Jogo das Contas de Vidro, ou não?
Josef Knecht pegou na caixinha que tinha trazido consigo.
– Fui-o até ontem – disse – e penso libertar-me hoje, depondo
nas vossas mãos, para o Diretório, os meus selos e as minhas
chaves. Estão todos; encontrareis igualmente tudo em ordem na
aldeia dos Jogadores quando lá fordes certificar-vos.
O Presidente da Ordem ergueu-se então lentamente da sua
cadeira; tinha um aspeto cansado e subitamente quase envelhecido.
– Vamos deixar a vossa caixinha por aqui hoje – disse secamente.
– Se o facto de receber os vossos selos deve significar que a vossa
saída do cargo é um facto consumado, em todo o caso sou
incompetente: um terço pelo menos de todo o Diretório deveria
estar presente. Outrora, tínheis um sentido vivo dos antigos usos e
da forma; não consigo habituar-me tão depressa a essas maneiras
novas. Talvez tenhais de me fazer o favor de me conceder um prazo
até amanhã antes de voltarmos a falar de tudo isto.
– Estou inteiramente à vossa disposição, Venerável. Conheceis-me
e sabeis o respeito que tenho por vós há anos; acreditai que nada
disso mudou. Sois a única pessoa de quem me despeço antes de
deixar a Província, e o vosso caso de presidente da Direção da
Ordem não é o único motivo. Assim como entreguei nas vossas
mãos os meus selos e estas chaves, espero, Domine, quando
amanhã tivermos terminado completamente a nossa entrevista, que
me libertareis também do meu juramento de membro da Ordem.
Alexander olhou-o nos olhos com uma expressão triste e
interrogativa e reprimiu um suspiro. – Deixai-me sozinho agora, meu
caro mestre, destes-me bastantes preocupações e matéria de
reflexão para um dia. Por hoje chega. Voltaremos a falar amanhã.
Voltai aqui cerca de uma hora antes do meio-dia.
Despediu-se do Magister com um gesto cortês, e aquele gesto
cheio de resignação e duma cortesia intencional que já não se dirigia
a um colega mas a um estranho fez mais mal ao Mestre do Jogo das
Contas de Vidro do que todas as suas palavras.
O famulus, que passado um momento veio buscar Knecht para o
jantar, conduziu-o a uma mesa reservada aos convidados e
anunciou-lhe que o Mestre Alexander se tinha retirado para um
exercício bastante prolongado e presumia que o senhor Magister
tão-pouco desejaria companhia nesse dia e que um quarto estava
preparado para ele.
Alexander fora apanhado absolutamente de surpresa pela visita e
pelas declarações do Mestre do Jogo das Contas de Vidro. Claro,
depois de ter redigido a resposta do Diretório à sua epístola, ficara à
espera de o ver aparecer um dia, e pensara com uma leve
inquietação na sua discussão iminente. Mas teria julgado
absolutamente impossível que o Magister Knecht, cuja docilidade
exemplar conhecia, bem como a sua cortesia refinada, a sua
modéstia e o seu tato inato, se apresentasse um dia à sua frente
sem ser anunciado, que resignasse das suas funções por sua própria
autoridade, sem ter consultado o Diretório e espezinhasse dessa
maneira perturbante todos os usos e todas as tradições. Claro, havia
que concordar, a maneira como Knecht se apresentara, o tom e os
termos do seu discurso, a sua cortesia discreta, tinham permanecido
as mesmas de sempre, mas o conteúdo e o espírito das suas
declarações eram assustadores e feriam, eram novos,
surpreendentes e, oh como!, pouco castalianos! Ninguém, ao ver e
ao ouvir o Magister Ludi, teria podido suspeitar que se encontrasse
doente, esgotado, excitado, nem que não estivesse perfeitamente
senhor de si. As observações precisas a que o Diretório havia
mandado recentemente proceder em Waldzell não tinham revelado o
menor sinal de perturbação, de desordem, nem de desleixo na vida
e nos trabalhos da aldeia dos Jogadores. E no entanto aquele
homem terrível estava ali agora; ele que, ainda na véspera, tinha
sido o seu colega mais querido, depunha aquela caixinha com as
insígnias do seu cargo como um saco de viagem, declarava que
deixara de ser Magister, deixara de ser membro do Diretório, de ser
Irmão da Ordem e castaliano e tinha apenas vindo despedir-se
rapidamente. Era a situação mais terrível, mais difícil e mais odiosa
em que as suas funções de Presidente da Direção da Ordem jamais
o tinham colocado; sentira grande dificuldade em conservar o
sangue-frio.
E que fazer? Seria recorrer à força, mandar por exemplo prender o
Magister Ludi; e imediatamente, nessa mesma noite, dirigir
mensagens urgentes a todos os membros do Diretório e convocá-
los? O que é que se opunha a isso? Não era a solução mais natural e
mais viável? E no entanto qualquer coisa dentro de si sentia
repugnância nisso. E, no fundo, que resultado obteria com essas
medidas? Não teriam outro efeito sobre o Magister Knecht do que
humilhá-lo, não trariam nada a Castália e só iriam libertá-lo duma
parte das suas responsabilidades de Presidente e aliviar a sua
consciência, poupando-lhe continuar a enfrentar sozinho este
problema odioso e delicado. Supondo mesmo que ainda fosse
possível dar algum remédio a este arreliador caso, apelar por
exemplo à honra de Knecht e que uma mudança de atitude da sua
parte fosse talvez concebível, isso só poderia ser possível frente a
frente e num encontro a dois. Era entre eles os dois, Knecht e
Alexander, que devia esvaziar-se esta triste querela, sem mais
ninguém. E ao pensar nisto devia fazer a Knecht essa justiça que o
seu ato era no fundo justo e nobre, uma vez que ele se retirava do
Diretório, cuja autoridade já não reconhecia, mas apresentava-se ao
Presidente para travar esta última justa e despedir-se dele. Este
Josef Knecht, se bem que cometesse um ato proibido e odioso, sabia
apesar de tudo conduzir-se e o seu tato era seguro.
O Mestre Alexander decidiu então entregar-se a esta consideração
e deixar fora do jogo o aparelho da administração. Foi somente
quando tomou esta resolução que começou a refletir nos
pormenores deste caso e a perguntar-se, primeiramente, em que
medida a ação do Magister era lícita ou ilegal. Este dava a impressão
de estar convencido da sua integridade e da legitimidade da sua
ação inverosímil. Pôs-se então a reduzir a uma fórmula o audacioso
projeto do Mestre do Jogo das Contas de Vidro e a confrontá-lo com
as leis da Ordem, que ninguém conhecia mais a fundo do que ele, e
chegou à conclusão que o surpreendeu: efetivamente, Josef Knecht
não infrigira a letra do regulamento e não tivera intenção de o fazer,
pois o texto deste, cujo alcance já não era controlado, é verdade, há
décadas, concedia a todos os membros da Ordem a liberdade de
saírem, em cada momento, sob reserva de renunciarem ao mesmo
tempo aos privilégios de Castália e à sua vida comunitária. Se
Knecht entregava os selos, declarava que abandonava a Ordem e
entrava no século, cometia certamente um ato de que, memória de
homem, nunca se ouvira falar, um ato insólito, terrível e talvez um
grave transtorno, mas à letra não era uma infração às regras da
Ordem. Cometia este ato incompreensível mas que no plano formal
nada tinha de ilegal, não nas costas do Presidente da Direção da
Ordem, mas no decurso duma conversa de homem para homem
com ele: era mais do que aquilo a que a letra do regulamento
obrigava. Mas como é que este homem respeitado, um dos pilares
da Hierarquia, tinha chegado a isto? Como podia referir-se à lei
escrita para justificar o seu projeto, que, apesar de tudo, era uma
deserção, enquanto cem compromissos não escritos, mas não
menos sagrados e evidentes, o deveriam ter proibido disso?
Ouviu um relógio soar, arrancou-se aos seus vão pensamentos, foi
tomar um banho, entregou-se durante dez minutos a exercícios
respiratórios meticulosos e dirigiu-se para a sua cela de meditação, a
fim de fazer ainda provisão duma hora de força e de calma antes de
dormir e não pensar mais neste caso até ao dia seguinte.
No outro dia, um jovem famulus da casa dos hóspedes da Direção
da Ordem conduziu o Magister Knecht junto do Presidente e foi
testemunha das saudações que os dois trocaram. Estava no entanto
habituado a ver mestres da meditação e do domínio de si, bem
como a viver entre eles. Houve, contudo, no aspeto, no
comportamento e na saudação destes dois Veneráveis alguma coisa
de particular, de novo para ele, que o chocou, um grau insólito e
supremo de recolhimento e lucidez. Não foi de modo nenhum, disse-
nos mais tarde, a saudação habitual que trocavam dois dignitários
dos mais altos graus, que, segundo os casos, podia ser um
cerimonial de desenvolvimento sereno e desenvolto ou às vezes uma
espécie de torneio de delicadezas, de apagamento e de humildade
ostensivas. Dir-se-ia a receção dum estrangeiro, dum grande mestre
de yoga vindo de terras longínquas, a prestar homenagem ao
Presidente da Ordem e a medir-se com ele. As suas palavras e os
gestos de ambos eram certamente modestos e comedidos, mas os
olhares e as expressões destes dois dignitários estavam cheios de
calma, de sangue-frio, de recolhimento e ao mesmo tempo duma
tensão secreta, como se tivessem sido iluminados por dentro ou
carregados com uma corrente elétrica. Este testemunho digno de fé
não viu nem ouviu mais nada da entrevista. Os dois homens
desapareceram no interior das salas, provavelmente para o gabinete
particular do Mestre Alexander, e aí ficaram várias horas, sem que
ninguém fosse autorizado a incomodá-los. O que chegou até nós da
sua entrevista tem por fonte as descrições que dela fez às vezes o
senhor delegado Designori, a quem Josef Knecht participou diversos
pormenores.
– Ontem surpreendestes-me – começou o Presidente –, quase me
fizestes perder o sangue-frio. O meu ponto de vista, evidentemente,
não mudou; sou membro do Diretório e da Direção da Ordem. A
letra do regulamento autoriza-vos a anunciar que deixais a Ordem e
resignais às vossas funções. Chegastes a um ponto em que o vosso
cargo vos pesa e vos parece necessário tentar viver fora da Ordem.
E se eu vos propusesse, agora, que fizésseis essa tentativa, não
evidentemente no espírito das vossas impetuosas decisões, mas na
forma duma licença prolongada ou mesmo ilimitada? É, em suma, o
que pretendia o vosso requerimento.
– De modo nenhum – disse Knecht. – Se o meu pedido me tivesse
sido concedido, eu teria ficado na Ordem, é verdade, mas não nas
minhas funções. O que me propondes tão amavelmente seria uma
falsa solução. De resto, Waldzell e o Jogo das Contas de Vidro nada
teriam que fazer com um Magister na situação de licença
prolongada, ausente por um prazo indeterminado e do qual não se
saberia se voltaria, se não. E supondo mesmo que voltasse ao fim
dum ano ou dois, não teria feito mais, no domínio do seu cargo e da
sua disciplina, o Jogo das Contas de Vidro, do que desaprender em
vez de enriquecer os seus conhecimentos.
Alexander: – Talvez tivesse, apesar de tudo, aprendido muitas
coisas. Talvez a vida lhe ensinasse que o mundo exterior é diferente
do que imaginava e que tem tão pouca necessidade dele como esse
mundo dele próprio. Regressaria apaziguado e contente por passar
os seus dias neste quadro antigo que deu as suas provas.
– A vossa bondade vai muito longe. Estou-lhe grato mas contudo
não posso aceitá-la. O que procuro não é tanto satisfazer uma
curiosidade ou um desejo sensual pela vida do século como uma
solução radical. Não desejo ir pelo mundo levando no bolso a
certeza de voltar, para o caso em que me desiludisse, como um
viajante prudente que vai lançar um breve olhar circular sobre o
século. O que desejo, pelo contrário, é o risco, as dificuldades e o
perigo; tenho fome de realidade, de tarefas a realizar, de ação;
tenho também fome de privações e de sofrimentos. Permiti-me que
vos peça para não vos deterdes na vossa benevolente proposta e
não procurardes enfraquecer a minha resolução e reter-me com
promessas. Isso não conduziria a nada. A minha visita aqui perderia,
aos meus olhos, o seu valor e a sua solenidade se tivesse de render-
me um consentimento tardio e que já não desejo para o meu
requerimento. Depois de o ter redigido, não fiquei inativo; a via que
tomei é agora tudo para mim, é a minha lei, a minha pátria, o meu
serviço.
Alexander concedeu com um abanar de cabeça e um suspiro. –
Admitamos então – disse pacientemente – que seja efetivamente
impossível enternecer-vos e fazer-vos mudar de atitude, que, apesar
de todas as aparências, estejais preso do frenesi dum Amok ou dum
Berserker surdo a toda a autoridade, a toda a razão e a toda a
bondade, a quem há que não barrar o caminho. Quero portanto
renunciar provisoriamente a fazer-vos mudar de atitude e a procurar
influenciar-vos. Mas, então, dizei-me agora o que tínheis intenção de
vir dizer aqui, contai-me a história da vossa queda, explicai-me esses
atos e essas resoluções com que vindes assustar-nos! Confissão,
justificação ou requisitório, quero ouvi-la.
Knecht consentiu com um gesto de cabeça. – A vítima do Amok
agradece-vos e congratula-se. Não tenho nenhum requisitório a
formular. O que gostaria de dizer... se não fosse tão difícil, tão
incrivelmente difícil de pôr em palavras... tem para mim o sentido
duma justificação, para vós terá talvez o duma confissão.
Encostou-se na cadeira e olhou para o ar, para onde o teto
abobadado conservava ainda pálidos restos dum antigo fresco, do
tempo em que Hirsland era um convento, esquemas de linhas e de
tonalidades, de flores e de ornamentos, ténues como um sonho.
– A ideia de que era possível alguém fartar-se das funções de
Magister e de lhes resignar veio-me, pela primeira vez, alguns meses
apenas depois de ter sido nomeado Mestre do Jogo das Contas de
Vidro. Estava sentado, um dia, a ler um opúsculo do meu
predecessor, Ludwig Wassermaler, que foi célebre outrora, no qual
ele dá indicações e conselhos aos seus sucessores, ao longo do ano
administrativo, mês a mês. Li aí a sua exortação a pensar com
tempo no Jogo das Contas de Vidro público do ano a vir, e no caso
em que nos faltasse ânimo ou ideias, a concentrarmo-nos para
encontrar o humor conveniente. Quando li essa advertência, forte na
minha fé de jovem Mestre, ao princípio sorri-me, com um pouco de
presunção juvenil, das preocupações do velho que escrevera aquilo,
mas ao mesmo tempo farejei ali qualquer coisa de grave, um perigo,
uma ameaça, uma angústia. Ao refletir nisso acabei por tomar esta
decisão: se um dia a ideia do próximo Jogo solene me enchesse não
de alegria mas de preocupação, não de orgulho mas de apreensão,
então, em vez de me rebentar a procurar um Jogo solene novo,
retirar-me-ia e entregaria ao Diretório as insígnias do meu cargo. Foi
a primeira vez que uma tal ideia me ocupou o espírito e, para dizer a
verdade, nessa época em que acabava precisamente de vencer as
grandes fadigas da iniciação no meu cargo e me parecia ter o vento
pela popa, não acreditava, no fundo de mim mesmo, na
possibilidade de vir a ser, um dia, também eu, um velho, vir a estar
cansado do trabalho e da vida, nem de nunca estar embaraçado e
desgostoso por ter de fazer aparecer, com um truque de mágica
qualquer, novos projetos de Jogos das Contas de Vidro. O que é um
facto é que tomei então essa resolução. Vós conhecestes-me bem
nessa época, Venerável, talvez melhor do que eu me conhecia a mim
próprio. Tínheis sido meu conselheiro e meu diretor de consciência
durante o primeiro e difícil período do meu cargo e tínheis deixado
Waldzell pouco tempo antes.
Alexander lançou-lhe um olhar interrogativo. – Nunca cumpri sem
dúvida missão mais bela – disse. – Estava contente convosco e
comigo mesmo, como raramente acontece. Se é verdade que, na
vida, se tem de pagar por tudo o que é agradável, tenho de expiar
agora a minha exaltação desse tempo. Estava verdadeiramente
orgulhoso de vós. Hoje não posso. Se a Ordem, com o vosso ato,
conhece presentemente uma deceção e se Castália é com ela
abalada, eu sei que a responsabilidade por isso é minha em parte.
Deveria ter ficado, quando era vosso guia e vosso conselheiro, talvez
mais algumas semanas na vossa cidade dos Jogadores, ou tratar-vos
ainda mais rudemente, controlar-vos mais exatamente.
Knecht aguentou-lhe o olhar com serenidade. – Não deveis ter tais
escrúpulos, Domine, pois me obrigaríeis a lembrar-vos muitas
advertências que tivestes de me fazer nessa época, em que, jovem
Magister, levava demasiadamente para o trágico as obrigações e as
responsabilidades do meu cargo. Dissestes-me um dia, num desses
momentos de inquietação, isso ocorre-me precisamente, que se eu,
Magister Ludi, fosse um patife ou um incapaz, que se fizesse tudo o
que um Magister não deve fazer, que se até mesmo
intencionalmente me aplicasse nas minhas altas funções a causar o
mais mal possível, tal não poderia perturbar e atingir mais
profundamente a nossa querida Castália do que uma pedra atirada a
um lago. Algumas ondazinhas, círculos, e teria passado. Tais eram,
dizíeis, a solidez, a segurança da nossa Ordem castaliana, a
invulnerabilidade do seu espírito. Lembrais-vos? Não, sois
certamente inocente das tentativas que faço para ser tão mau
castaliano quanto posso e prejudicar a nossa Ordem o melhor que
sei. E vós sabeis também que não conseguirei, que não posso
conseguir perturbar seriamente a vossa paz. Mas prossigo a minha
narrativa. Se, desde o início da minha carreira magistral, pude tomar
esta decisão e se a não esqueci, se estou em vias, pelo contrário, de
a traduzir nos factos, isso não é sem relação com um certo abalo
espiritual a que sou sujeito de tempos a tempos e a que chamo um
«despertar». Mas vós estais já ao corrente, falei-vos disto uma vez,
no tempo em que éreis meu mentor e meu guru: queixei-me a vós
nessa altura de que, depois da minha entrada em funções, esse
abalo não me tivesse mais sido concedido e parecesse tornar-se
cada vez mais longínquo.
– Lembro-me – confirmou o Presidente. – Na altura fiquei muito
impressionado com a vossa capacidade para isso. Isso encontra-se
de resto raramente entre nós, e no exterior, no século, aparece sob
formas muito diferentes: em génios, por exemplo, nomeadamente
nos homens de Estado e nos grandes capitães, mas também em
seres fracos, semidoentes e de um modo geral pouco dotados, como
os indivíduos clarividentes, telepatas e médiuns. Parecíeis-me nada
ter verdadeiramente em comum com estes dois tipos de
personagens, sejam os grandes homens de guerra ou os videntes
extralúcidos e os radiestesistas. Pelo contrário, parecíeis-me ser um
espírito, então e até ontem, um bom membro da Ordem: um espírito
refletido, claro, dócil. Parecia-me que essas visitações, essa
possessão, por vezes misteriosas, divinas, demoníacas ou
simplesmente interiores, não estavam nada de acordo com o vosso
género. Por isso interpretei esses estados de «despertar» que me
descrevíeis simplesmente como uma tomada de consciência
ocasional do desenvolvimento da vossa personalidade. Parecia
natural, nesta hipótese, que esses abalos espirituais tivessem
cessado então de produzir-se durante bastante tempo: acabáveis de
facto de assumir funções e assumir uma tarefa que eram ainda para
vós como um casaco demasiado grande, que só com o passar do
tempo deveríeis encher. Mas dizei-me: acreditastes alguma vez que
esses despertares eram uma espécie de revelações de potências
superiores, de comunicações ou de apelos emanando das esferas
duma verdade objetiva, eterna ou divina?
– Isso traz-nos – disse Knecht – à tarefa e à dificuldade que me
incumbem neste momento, de exprimir por palavras o que se furta
constantemente ao verbo, de tornar racional o que está
manifestamente fora do domínio da razão. Não, esses despertares
nunca me fizeram pensar em manifestações dum deus ou dum
demónio, nem duma verdade absoluta. O que dá a esses abalos o
seu poder de choque e a sua virtude convincente não é o que
encerram de verdade, nem a sua origem sublime, o seu carácter
divino ou qualquer característica análoga, mas a sua realidade. São
prodigiosamente reais, assim como, por exemplo, uma violenta dor
física ou um fenómeno natural surpreendente, uma tempestade ou
um tremor de terra nos parecem carregados duma qualidade
completamente diferente do real, de presença, de inelutabilidade
dos períodos e das situações ordinárias. A rabanada de vento
precursora duma tempestade que vai rebentar, que nos faz regressar
a casa a toda a pressa e que procura ainda arrancar-nos a porta das
mãos... ou uma violenta dor de dentes, que parece concentrar no
nosso maxilar todas as tensões, dores e todos os conflitos do
universo... ora aí estão coisas de cuja realidade e importância
podemos mais tarde troçar, concedo-o, se formos levados por esse
género de insignificâncias; mas, no momento em que as sentimos,
não sofrem a menor dúvida, rebentam de realidade. Pois bem, o
meu «despertar» tem para mim um carácter análogo de realidade
exaltada, e é daí que vem o seu nome. Em instantes desses parece-
me verdadeiramente que, depois de ter estado muito tempo
adormecido ou sonolento, sou acordado, que tenho o espírito claro e
recetivo, como nunca geralmente. Os instantes de grande dor ou de
grande agitação, mesmo na história universal, têm uma necessidade
que convence; desencadeiam um sentido da atualidade e um
sentimento de tensão que nos oprimem. Essa agitação pode
provocar seguidamente a vinda da beleza e da luz, assim como a da
loucura e das trevas; o que se produz reveste, em todo ocaso, as
aparências da grandeza, da necessidade, da importância; distingue-
se e destaca-se dos acontecimentos quotidianos.
«Mas deixai-me tentar – prosseguiu depois de ter feito uma pausa
para respirar – tomar a coisa por um lado diferente. Lembrais-vos da
lenda de São Cristóvão? Sim? Cristóvão era por conseguinte um
homem de grande vigor e de grande coragem, mas não queria
tornar-se senhor e reinar, queria servir. Servir era a sua força e a sua
arte, era nisso que ele se entendia. Mas não lhe era indiferente
servir quem quer que fosse. Era necessário que fosse o maior, o
mais poderoso dos senhores. E quando ouvia falar dum senhor que
era ainda mais poderoso que o seu senhor do momento, oferecia-lhe
os seus serviços. Esse grande servidor agradou-me sempre e devo
ser um tanto parecido com ele. No único período da minha vida em
que me foi dado dispor de mim mesmo, durante os meus anos de
estudante, ponderei pelo menos muito tempo e procurei qual senhor
serviria. Durante anos defendi-me e desconfiei do Jogo das Contas
de Vidro, no qual reconhecera no entanto de longa data o fruto mais
precioso e o mais original da nossa Província. Tinha provado do
engodo e sabia que não havia mais nada tão delicioso e subtil na
Terra do que praticar esse Jogo; tinha também notado bastante
cedo que esse Jogo sedutor não queria ingénuos jogadores do
domingo, mas que açambarcava completamente e atraía para o seu
serviço quem quer que um dia se tivesse nele um pouco iniciado. E
entregar-me então, para sempre, com todas as minhas forças, com
todos os meus múltiplos interesses a esse sortilégio, um instinto em
mim, um sentimento ingénuo da simplicidade, do conjunto, do que
era são, opunha-se-lhe e precavia-me contra o espírito do Vicus
Lusorum de Waldzell, espírito de especialização e de virtuosismo,
espírito de alta cultura, claro, e dum refinamento duma extrema
riqueza, mas que contudo estava cortado do conjunto da vida e da
Humanidade, para se perder nos cimos duma solidão orgulhosa.
Durante anos duvidei e examinei a questão, até amadurecer a minha
decisão e apesar de tudo optei pelo Jogo. Fi-lo porque qualquer
coisa me levava justamente a procurar a realização mais alta e a só
servir o senhor maior.
– Compreendo – disse o Mestre Alexander. – Mas, seja de que
maneira for que se considere a coisa que vós possais apresentar,
caio sempre no mesmo móbil de todas as vossas originalidades.
Estais demasiado imbuído da vossa própria pessoa ou estais dela
demasiado dependente, e isso não é duma grande personalidade.
Um indivíduo pode ser uma estrela de primeira grandeza pelos seus
talentos, força de vontade, perseverança, mas ser tão bem centrado
que ressoa as vibrações do sistema a que pertence sem fricções e
sem desperdício de energia. Outro terá os mesmos dons eminentes,
talvez ainda mais belos, mas o seu eixo não passará exatamente
pelo seu centro, e desperdiçará metade da sua força em movimentos
excêntricos que o enfraquecerão e perturbarão o mundo que o
rodeia. É a esta categoria que deveis pertencer. Mas tenho de
confessar, na verdade, que tivestes a arte de o esconder
admiravelmente. A explosão do mal parece por isso agora tanto mais
violenta. Falastes-me de São Cristóvão, e devo dizer que, se essa
figura tem grandeza e algo de comovente, nada tem de exemplar
para um servidor da nossa Hierarquia. Quem quer servir, deve servir
aquele a quem prestou juramento, sejam quais forem os riscos e
não com a secreta intenção de mudar de senhor assim que
encontrar outro mais soberbo. Esse servidor torna-se desse modo
juiz do seu senhor, e é exatamente o que fazeis. Quereis sempre
servir apenas o maior senhor e tendes a candura de decidir do grau
dos senhores entre os quais fazeis a vossa escolha.
Knecht escutara-o com atenção, não sem que uma sombra de
tristeza lhe aflorasse ao rosto. Continuou: – Respeitando ao mesmo
tempo o vosso julgamento, não podia esperar outra coisa dele. Mas
deixai-me continuar com a minha relação. Tornei-me então Jogador
de Contas de Vidro e tive efetivamente, durante um bom momento,
a convicção de servir o maior de todos os senhores. Pelo menos o
meu amigo Designori, nosso benfeitor no Conselho Federal,
descreveu-me um dia, nas cores mais realistas, que arrogante,
presunçoso e convencido virtuoso do Jogo e pavão da Elite eu era
nessa altura. Mas devo dizer-vos ainda qual o sentido que a palavra
«transcendência» tomou para mim desde os meus anos de
estudante e do meu «despertar». Foi, creio, ao ler um filósofo das
Luzes e sob a influência de Mestre Thomas von der Trave, que essa
palavra se impôs à minha atenção, e desde então, tal como
«despertar», tornou-se para mim uma verdadeira fórmula mágica,
provocante e dinâmica, consoladora e prometedora. A minha vida,
tal foi mais ou menos o projeto que fiz, devia ser uma
transcendência, uma progressão de degrau em degrau, devia
transpor e passar um espaço após outro, assim como uma melodia
esgota, acaba e abandona um tema após outro, compasso após
compasso, nunca cansada, nunca adormecida, sempre desperta e
perfeitamente presente. Estabelecendo um laço entre isso e o abalo
do despertar, eu notara que existem degraus e espaços deste género
e que o último período dum capítulo da nossa vida toma sempre um
aspeto murcho, um ar de querer morrer, e que isso constitui a
transcendência que nos faz passar para um espaço novo, chegar ao
despertar, a uma nova partida. Participo-lhe também esta imagem, a
da transcendência: é uma chave que ajudará talvez a compreender a
minha vida. A minha decisão de optar pelo Jogo das Contas de Vidro
constituiu um degrau importante, bem como a minha primeira
integração sensível na Hierarquia. Mesmo nas minhas funções de
Magister aconteceu-me ainda transpor degraus desse género. O que
o meu cargo me trouxe de melhor foi a descoberta de que a música
e o Jogo das Contas de Vidro não são as únicas atividades que
tornam uma pessoa feliz, mas que há também as do ensino e da
educação. E descobri além disso, pouco a pouco, que tinha tanta
mais alegria na função de educador quanto os meus alunos eram
mais jovens e menos deformados pela cultura. E isso, como muitas
outras coisas, concorreu com os anos para me fazer desejar alunos
jovens, cada vez mais jovens, preferir tornar-me professor numa
classe de principiantes, em resumo, a ocupar às vezes a minha
imaginação com coisas que, já na altura, estavam fora do campo das
minhas funções.
Parou para descansar. O Presidente observou: – Surpreendeis-me
cada vez mais, Magister. Falais da vossa vida e é só questão de
emoções individuais, subjetivas, desejos pessoais, evolução de
decisões particulares! Ignorava verdadeiramente que um castaliano
da vossa classe pudesse ver a essa luz a sua pessoa e a sua vida.
O tom da sua voz estava já a meio caminho entre a censura e a
tristeza: isso fez mal a Knecht. Mas refez-se e exclamou
alegremente: – Mas, Venerável, de momento não é de Castália nem
do Diretório, nem da Hierarquia que falamos, mas unicamente de
mim, da psicologia dum homem que infelizmente deve ter-vos
causado grandes aborrecimentos. Não me pertence falar da maneira
como cumpri o meu cargo e satisfiz as minhas obrigações, nem do
valor ou da minha incapacidade como castaliano e Magister. O
exercício das minhas funções, como toda a minha vida pública, é um
livro aberto que podeis verificar, nada encontrareis nele para
sancionar. Aquilo de que se trata aqui é muito diferente: eu gostaria
de vos dar a ver a via que segui como indivíduo, que me levou agora
para fora de Waldzell e me conduzirá amanhã para fora de Castália.
Escutai-me ainda um instante, tende essa bondade!
«O conhecimento da existência dum mundo exterior à nossa
pequena Província não o devo aos meus estudos, no decurso dos
quais esse mundo só me apareceu na forma dum passado
longínquo, devo-o em primeiro lugar ao meu condiscípulo Designori,
que era um dos nossos hóspedes vindos do exterior, e mais tarde à
minha estada nos Beneditinos e a Frei Jakobus. Aquilo que os meus
próprios olhos viram do mundo foi bem pouco, mas graças a esse
homem fiquei com uma ideia daquilo a que se chama a história, e
talvez tenha já na altura construído com isso as bases deste
isolamento em que mergulhei depois do meu regresso. Ao regressar
desse convento, encontrei um país desprovido de história, uma
Província de eruditos e de Jogadores de Contas de Vidro, uma
sociedade extremamente distinta e agradável, mas na qual parecia
que eu era o único a fazer uma ideia do que fosse o século, a ter
curiosidade, a sentir simpatia por ele. Havia nisso com que me
compensar amplamente: alguns homens que venerava, e a honra de
me tornar colega deles encheu-me de confusão e alegria; havia uma
quantidade de pessoas de boa educação e de alta cultura, havia
trabalho com bastança e muitos alunos muito dotados e simpáticos.
Mas durante o meu estágio com Frei Jakobus, descobrira que eu não
era somente um castaliano mas também um homem, e que o
mundo, o mundo inteiro, me dizia respeito e tinha o direito de me
ver partilhar da sua vida. Esta descoberta fez nascer em mim
necessidades, desejos, exigências, obrigações que a minha vida não
podia satisfazer. Na ótica dos castalianos, a vida do século era um
elemento atrasado e de valor secundário, uma existência de
desordem e de instintos primitivos, feita de paixões e de dispersão,
sem beleza, sem nada que merecesse desejá-la. Mas o século e a
sua vida eram na verdade infinitamente maiores e mais ricos do que
um castaliano era capaz de conceber, o mundo estava cheio de devir,
de história, de tentativas e eternos recomeços; era talvez caótico,
mas era a pátria e o solo alimentador de todos os destinos, de todas
as nobilitações, de todas as artes, de toda a Humanidade, tinha
engendrado as línguas, os povos, os Estados, as culturas; tinha-nos
engendrado a nós e à nossa Castália, ia ver morrer tudo isso e
sobreviver-lhe. Era para esse mundo que o meu mestre Jakobus
tinha acordado em mim um amor que não cessava de crescer e que
procurava alimento. Ora, em Castália nada havia que pudesse
alimentá-lo, aí estava-se fora do mundo, Castália era ela própria um
pequeno universo perfeito que já não tinha mais devir e não crescia
mais.
Respirou profundamente e ficou um momento silencioso. Como o
Presidente não respondesse e olhasse com ar de esperar, fez-lhe um
sinal de cabeça pensativo e continuou: – Tive, portanto, durante
muitos anos, de carregar dois fardos. Tinha de administrar um cargo
importante, assumir-lhe as responsabilidades e tinha de levar o meu
amor até ao fim. O meu cargo, para mim era claro desde o início,
não devia sofrer por causa desse amor. Antes pelo contrário,
pensava que devia beneficiar dele. Se levasse a cabo o meu trabalho
menos do que perfeitamente, menos irrepreensivelmente do que é
de esperar dum Magister... e eu esperava bem o contrário... sabia no
entanto que o meu coração era mais vigilante e mais vivo do que o
de muitos colegas irrepreensíveis, e que podia levar isto ou aquilo
aos meus alunos e aos meus colaboradores. A minha tarefa, em meu
entender, consistia em alargar e aquecer lentamente e docemente a
vida e o pensamento castalianos, sem romper com a tradição,
trazer-lhe sangue novo, buscado ao século e à História, e um acaso
amável quis que ao mesmo tempo, no exterior, no país, um homem
do século sentisse e pensasse como eu, e que sonhasse estabelecer
laços de amizade, uma penetração recíproca entre Castália e o
mundo: era Plínio Designori.
O Mestre Alexander cerrou a boca durante algum tempo e por fim
disse: – Ora aí está. Nunca esperei grande coisa de bom da
influência desse homem em vós, assim como também não daquele
falhado que protegeis, Tegularius. Então foi Designori que vos levou
a romper completamente com a ordem estabelecida?
– Não, Domine, mas sem o saber ajudou-me parcialmente.
Trouxe-me um pouco de ar ao meu retiro; por intermédio dele
retomei o contacto com o mundo exterior, e foi então somente que
me foi possível compreender e confessar a mim próprio que tinha
chegado, aqui, ao fim da minha carreira, que tinha perdido o
verdadeiro gosto pelo meu trabalho e que era tempo de pôr fim a
este tormento. Tinha novamente transposto um degrau, atravessado
um espaço e, desta vez, o espaço era Castália.
– Exprimis isso duma maneira... – observou Alexander abanando a
cabeça. – Como se o espaço castaliano não fosse bastante grande
para ocupar dignamente quantidades de pessoas durante toda a
vida! Acreditais seriamente que o medistes e que chegou ao fim?
– Oh! não – exclamou o seu interlocutor com vivacidade –, nunca
acreditei em nada de parecido. Quando digo que cheguei ao limite
deste espaço, quero dizer apenas que o que podia realizar aqui,
como indivíduo e no meu cargo, foi feito. Cheguei há algum tempo
ao limite em que o meu trabalho de Mestre do Jogo das Contas de
Vidro não é mais do que uma eterna repetição, um exercício vazio,
uma fórmula oca, em que ajo sem alegria, sem entusiasmo, às vezes
mesmo sem fé. Era tempo de acabar com isso.
Alexander suspirou. – É o vosso ponto de vista, não o da Ordem,
nem da sua regra. Que um membro da nossa Ordem tenha os seus
humores, que às vezes lhe aconteça estar cansado do seu trabalho,
isso não é nada de novo, nem de notável. A regra indica-lhe então a
via a seguir para recuperar a sua harmonia e o seu lugar,
esquecestes-vos?
– Não o creio, Venerável. Tendes o direito de olhar para a maneira
como cumpro as minhas funções, e ainda recentemente, quando
recebestes a minha circular, controlastes precisamente a aldeia dos
Jogadores e a minha própria pessoa. Pudestes verificar que o meu
trabalho está feito, que a minha chancelaria e os meus arquivos
estão em ordem, que o Magister Ludi não manifesta nem doença
nem esquisitices. É precisamente a essas regras, nas quais vós
outrora me iniciastes tão magistralmente, que devo o facto de ter
resistido e não ter perdido a minha força nem o meu sangue-frio.
Mas custou-me muito sofrimento convencer-vos de que não me
deixo levar por saltos de humor, nem por esquisitices ou desejos
sensuais. Mas, consiga-o ou não consiga, quero pelo menos fazer-
vos reconhecer que até ao momento em que vós os controlastes
pela última vez, a minha pessoa e o meu trabalho eram
irrepreensíveis e utilizáveis. É esperar muito de vós?
O Mestre Alexander piscou levemente os olhos como que para
fazer troça.
– Meu caro colega – disse –, falais comigo como se fôssemos
ambos dois particulares cuja conversa não tem consequências. Mas
isso só é verdade quanto a vós: agora sois de facto um particular.
Mas eu não, e o que digo, o que penso, não sou eu quem o diz, é o
Presidente da Direção da Ordem, e ele é responsável perante a sua
administração por todas as suas palavras. O que dizeis aqui hoje não
terá consequências; por mais que o queirais, continua a ser o
discurso dum particular que fala do seu projeto próprio. Mas eu não
estou no termo das minhas funções e da minha responsabilidade e o
que digo ou faço hoje pode ter consequências. Perante vós e no que
diz respeito ao vosso assunto, represento a administração. A
administração quererá admitir a vossa maneira de apresentar os
factos, ou mesmo reconhecê-la lícita? A coisa não é indiferente.
Apresentais-me uma situação, segundo a qual, ao mesmo tempo
que alimentais todo o tipo de ideias vossas, teríeis sido até ontem
um castaliano e um Magister irrepreensíveis, acima de toda a
suspeita, segundo a qual, ao mesmo tempo que sofríeis no vosso
cargo assaltos e crises de lassidão, as teríeis regularmente
combatido e vencido. Suponhamos que admita isso: como
compreenderei então essa monstruosidade, que o Magister
irrepreensível, íntegro, que ainda ontem satisfazia todas as regras,
deserte hoje subitamente? É-me ainda assim mais fácil transportar-
me em pensamento para o espírito dum Mestre cujo coração estava
já há muito tempo transformado e doente e que, enquanto se
considerava ainda como bom castaliano, o não era já na realidade
desde há muito. Pergunto-me também por que razão, para dizer a
verdade, dais tanto valor a que seja reconhecido que fostes até ao
fim um Magister respeitador dos seus deveres. Sendo certo que
acabais de dar um passo, que rompestes o juramento de obediência
e cometestes uma deserção, não deveis dar mais importância a
estas comprovações.
Knecht defendeu-se. – Permiti, Venerável, porque é que não devo
dar importância a isso? É o meu nome e a minha reputação, é a
recordação que deixo aqui, que estão em jogo. É também a
possibilidade para mim de agir no exterior em favor de Castália. Não
estou aqui para salvar alguma coisa para mim, nem para obter que o
Diretório conceda o seu acordo ao que faço. Esperei e resignei-me a
que os meus colegas duvidem mais tarde de mim e me considerem
como uma personalidade discutível. Mas não quero ser considerado
traidor ou louco, é um juízo que não posso aceitar. Fiz uma coisa que
sois obrigado a desaprovar, mas fi-la porque a isso era obrigado,
porque era a minha missão, porque é o destino em que acredito e
que assumo de bom grado. Se não podeis sequer conceder-me isso,
então perdi; era inútil ter esta conversa convosco.
– Andamos sempre à volta do mesmo ponto – respondeu
Alexander. – Quereis fazer-me admitir que há circunstâncias em que
a vontade dum indivíduo teria direito a infringir as leis em que
acredito e que tenho de representar. Mas não posso ao mesmo
tempo acreditar na nossa Ordem e no vosso direito pessoal de
romper com a Ordem. Não me interrompais, peço-vos. Posso
reconhecer que, segundo toda a aparência, estais convencido do
vosso direito e do sentido da vossa funesta ação e que acreditais na
vossa vocação para realizar esse projeto. Não esperais certamente
que aprove o vosso ato. Pelo contrário, conseguistes mesmo que eu
renuncie à minha primeira ideia de vos reconquistar e fazer-vos
mudar de decisão. Aceito que saiais da Ordem e transmitirei ao
Diretório o aviso, que vós me destes, da vossa saída voluntária do
cargo. Não posso fazer mais para vos ser agradável.
O Mestre do Jogo das Contas de Vidro teve um gesto de
resignação. Depois disse tranquilamente: – Agradeço-vos, senhor
Presidente. Depus já a minha caixa nas vossas mãos. Entrego-vos
também, para ser entregue ao Diretório, as poucas notas que tomei
sobre a situação atual em Waldzell, sobretudo sobre o corpo de
aspirantes e sobre as poucas pessoas em que creio se poderá pensar
em primeiro lugar para me substituir.
Tirou dum bolso diversas folhas dobradas e pousou-as na mesa.
Depois levantou-se e o Presidente fez o mesmo. Knecht deu um
passo para ele, olhou-o demoradamente nos olhos com uma tristeza
afetuosa, inclinou-se e disse: – Tinha intenção de vos pedir que me
estendêsseis a mão como um adeus, sem dúvida devo renunciar a
isso. Tive sempre por vós uma ternura particular, o dia de hoje não
alterou nada. Adeus, querido e venerado amigo.
Alexander permaneceu imóvel, um pouco pálido; durante um
momento pareceu que ia erguer a mão e estendê-la àquele homem
que se ia embora. Sentiu que os seus olhos se tornavam húmidos;
inclinou a cabeça, respondeu à vénia de Knecht e deixou-o partir.
Quando este fechou a porta atrás de si, o Presidente permaneceu
imóvel e ficou a ouvir os seus passos afastarem-se. Quando o último
deixou de ouvir-se e o silêncio veio novamente, pôs-se a andar
durante algum tempo dum lado para o outro dentro da sala, até que
de novo passos se fizeram ouvir lá fora e alguém bateu ao de leve
na porta. O jovem criado entrou e anunciou um visitante que pedia
para lhe falar.
– Diz-lhe que poderei recebê-lo daqui a uma hora e que lhe peço
que seja breve, tenho um trabalho urgente. Não, espera um pouco!
Vai também à chancelaria e diz ao primeiro-secretário que faça o
favor de convocar imediatamente e com urgência o Diretório para
uma sessão plenária depois de amanhã, precisando que é necessário
que estejam todos presentes e que a única desculpa admitida será
por doença grave. Vai depois ao intendente e diz-lhe que tenho de ir
amanhã de manhã a Waldzell, que o carro esteja pronto para as sete
horas...
– Com vossa licença – disse o jovem –, mas o carro do senhor
Magister Ludi está disponível.
– Como?
– Sua Grandeza chegou ontem de carro. Acaba de sair prevenindo
que prosseguia o seu caminho a pé e que deixava o carro aqui à
disposição do Diretório.
– Muito bem. Levarei então amanhã o carro de Waldzell. Repete,
peço-te.
O criado repetiu: – O visitante será recebido dentro de uma hora,
deverá ser breve. O primeiro-secretário convocará o Diretório para
depois de amanhã. Devem estar todos presentes salvo por doença
grave. Amanhã de manhã partida às sete horas para Waldzell no
carro do senhor Magister Ludi.
O Mestre Alexander soltou um suspiro de alívio quando o jovem
partiu. Aproximou-se da mesa à qual tinha estado sentado com
Knecht. No seu ouvido ressoava ainda o barulho dos passos daquele
ser incompreensível, que amara mais do que todos os outros e que
lhe causara tanta dor. Desde sempre, desde o tempo em que lhe
tinha prestado alguns serviços, amara aquele homem. Entre muitas
outras particularidades amara também precisamente o andar de
Knecht, o seu passo nítido e ritmado, mas leve, quase aéreo, a meio
caminho entre a dignidade e a infância, entre o sacerdócio e a
dança, o seu passo muito pessoal, simpático e distinto, que se
harmonizava perfeitamente com o seu rosto e a sua voz.
Harmonizava-se bem. também com o seu estilo particular de
castaliano e de Magister, de grande senhor e espírito sereno, que às
vezes lembrava um pouco a atitude aristocrática e comedida do seu
antecessor, o Mestre Thomas, e outras vezes também aquela
simplicidade do antigo Mestre da Música, que lhe ganharam os
corações. De modo que já tinha partido, cheio de pressa, a pé, sabe
Deus para onde, e era provável que nunca mais voltasse a vê-lo, que
nunca mais ouvisse o seu riso, que não voltasse a ver a sua bela
mão comprida traçar os hieróglifos dum motivo do Jogo das Contas
de Vidro. Pegou nas folhas que tinham ficado em cima da mesa e
começou a lê-las. Era um breve testamento, muito conciso e muito
concreto, muitas vezes composto apenas por fórmulas
surpreendentes, à laia de frases. Devia servir para facilitar ao
Diretório o próximo controlo da aldeia dos Jogadores bem como a
escolha dum novo Magister. Estas observações inteligentes estavam
ali, em pequenos caracteres graciosos; estas palavras, esta caligrafia
tinham a marca da natureza excecional, ímpar, de Josef Knecht,
tanto como o seu rosto, a sua voz e o seu andar. O Diretório teria
dificuldade em encontrar um homem da sua classe, para lhe dar a
sua sucessão; os grandes senhores, as personalidades verdadeiras
eram raras precisamente e uma figura como a sua teria sido uma
bênção, um dom providencial, mesmo aqui em Castália, província da
Elite.
Andar dava prazer a Josef Knecht, há anos que não fazia uma
viagem a pé. Refletindo melhor, parecia-lhe que a sua última
verdadeira caminhada tinha sido a que o trouxera do convento de
Mariafels a Castália e a Waldzell, para aquele famoso Jogo anual
sobre o qual pesara tão fortemente a sombra da morte de «Sua
Excelência», o Mestre Thomas von der Trave, e que fizera de si seu
sucessor. De todas as vezes que recordara essa época ou, com mais
forte razão, os seus anos de estudante e o Bosque dos Bambus,
tinha tido até aí a impressão de lançar, do fundo duma cela austera
e despojada, um olhar sobre regiões inundadas por um sol
primaveril, sobre um mundo que nunca mais voltaria a ver e que se
tinha tornado um paraíso da memória. Todas essas recordações,
mesmo quando não eram acompanhadas por melancolia,
apresentavam-lhe um mundo muito longínquo, à parte, que um
misterioso ar de festa diferenciava do presente e do quotidiano. Mas
agora, nesta tarde luminosa e serena de setembro, no meio das
cores fortes da vizinhança e das tonalidades suavemente veladas
daquelas lonjuras duma delicadeza de sonho, cuja gama ia do azul
ao violeta, caminhava pacificamente, olhava à sua volta sem pressas
e a caminhada que tinha feito há tanto tempo já não lhe dava a
impressão duma aventura longínqua, nem dum paraíso entrevisto do
fundo dum presente resignado: antes, pelo contrário, a viagem que
estava a fazer parecia-se como uma irmã à desse tempo, o Josef
deste dia ao de outrora; também desta vez era tudo novo,
misterioso, prenhe de promessas, todo o passado podia voltar e mil
novidades acrescentarem-se-lhe. Havia muito tempo que o dia e o
mundo não assumiam para ele este aspeto, não tinham esta leveza,
esta beleza, esta inocência. A felicidade de ser livre de decidir por si
próprio penetrava-o como uma bebida capitosa. Há quanto tempo
não tinha esta sensação, a graça e a sedução desta ilusão? Refletiu
e lembrou-se do momento em que esse sentimento delicioso o
aflorara outrora pela primeira vez e em que conhecera as suas
correntes. Fora durante uma conversa com Mestre Thomas, sob o
seu olhar cheio de simpatia irónica, e lembrava-se perfeitamente da
inquietante sensação desse momento em que perdera a liberdade.
Para dizer a verdade não sentira sofrimento, nenhuma dor ardente,
mas antes uma angústia, um leve arrepio na nuca, o aviso duma
sensação interna acima do diafragma; a temperatura do seu corpo
mudara e sobretudo o ritmo da sensação de viver. O sentimento de
grande angústia, de contração, a ameaça de sufocação retardada
que sentira nesse instante fatídico encontravam agora a sua
compensação, alcançavam a sua cura.
Na véspera, ao dirigir-se a Hirsland, Knecht decidira não lamentar
nada, em caso nenhum, acontecesse o que acontecesse. Proibiu-se,
para o dia, pensar nos pormenores das suas conversas com
Alexander, na luta que ele travara consigo para o conquistar. Abria-
se completamente a esta sensação de paz e de liberdade que o
enchia, como a impressão do repouso merecido enche o camponês
que acabou a sua jorna. Sabia-se em segurança, livre de todos os
compromissos, sabia-se por um instante perfeitamente disponível,
livre do circuito, livre de todas as obrigações de trabalhar, pensar, e
aquele dia luminoso, colorido, rodeava-o com a sua doce radiação;
era só imagem, presença, sem exigências, sem ontem nem amanhã.
Às vezes, de satisfação, cantarolava, ao andar, uma das marchas que
cantara outrora a duas ou três vozes, em excursão, no tempo em
que era um aluno pequeno na escola de elite em Eschholz. E, dessa
manhã serena da sua vida, pequenas recordações luminosas,
bocados de sons revoluteavam à sua volta como uma chilreada de
pássaros.
Parou debaixo duma cerejeira cujas folhas ganhavam já reflexos
purpurinos e sentou-se na erva. Rebuscou no bolso de dentro do
casaco e tirou um objeto que o Mestre Alexander nunca suspeitaria
que ele tivesse, uma flautazinha de madeira, e contemplou-a com
alguma ternura. Ainda não havia muito tempo que possuía este
instrumento de aspeto inocente e infantil, seis meses talvez, e
lembrou-se com divertimento do dia em que se tornara seu
possuidor. Tinha ido de carro a Monteport, para aclarar com
Ferromonte umas questões de musicologia. Ambos acabaram por
falar igualmente dos instrumentos de sopro de madeira de
determinadas épocas e tinha pedido ao seu amigo que lhe mostrasse
as coleções de Monteport. Depois de haver percorrido com deleite
algumas salas, cheias de órgãos, harpas, alaúdes, pianos, entraram
num anexo onde se conservavam instrumentos destinados às
escolas. E aí Knecht vira uma caixa cheia de flautazinhas iguais
àquela, examinara e experimentara uma, e pedira ao seu amigo se
podia deixá-lo ficar com uma. Rindo-se, Carlo pedira-lhe que
escolhesse e dera-lhe um recibo a assinar, mas explicara-lhe
seguidamente com uma extrema precisão a estrutura do
instrumento, o seu manejo e a técnica de tocar. Knecht trouxera
consigo esse lindo brinquedo. Depois da flauta primitiva da sua
infância em Eschholz, nunca mais tocara nenhum instrumento de
sopro e tinha-se proposto por várias vezes voltar a fazê-lo; praticara
de longe a longe. Para isso tinha-se servido, para além das escalas,
dum caderno de melodias antigas que Ferromonte publicara para
uso de principiantes e, de vez em quando, do jardim magistral ou do
seu quarto de dormir jorrara o som doce e suave daquela pequena
flauta. Ainda estava longe de ser um mestre, mas tinha aprendido a
tocar um certo número de salmos e canções do livro de Ferromonte;
sabia as notas de cor e, em muitos casos, também as letras. Uma
das canções, que convinha àquele momento, veio-lhe ao espírito e
recitou, sozinho, alguns versos:

Mein Haupt und Glieder,


Die lagen darnieder,
Aber nun steh ich,
Bin munter und fröhlich,
Schaue den Himmel mit meinen Gesicht.10

Levou em seguida o instrumento aos lábios e tocou a melodia, de


olhos voltados para o brilho suave do horizonte, para o lado das
altas montanhas distantes. Ouviu a sua canção serena e inocente
elevar-se nas doces tonalidades da flauta, e sentiu-se satisfeito, em
uníssono com o céu, com os montes, com aquele cântico e com o
dia. Tinha prazer em sentir entre os dedos a madeira lisa e redonda
e pensou que, para além das vestes que tinha sobre o corpo, aquela
flautazinha era o único bem que se permitira trazer de Waldzell. Ao
longo dos anos mil coisas haviam-se acumulado à sua volta; tinham
mais ou menos o carácter duma propriedade pessoal; eram
sobretudo apontamentos, cadernos com excertos de leituras...
Deixara tudo isso, servir-se-iam como entendessem disso na aldeia
dos Jogadores. Mas trouxera aquela flautazinha e estava contente
por tê-la consigo. Era uma companheira de viagem discreta e
simpática.
No dia seguinte o nosso viajante chegou à capital e apresentou-se
na moradia dos Designori. Plínio desceu as escadas ao seu encontro
e abraçou-o com emoção.
– Estávamos à tua espera com impaciência e inquietação –
exclamou. – Deste um grande passo, meu amigo, possa ele trazer-
nos sorte a todos. Deixaram-te partir? Nunca teria acreditado nisso.
Knecht riu-se: – Como vês, estou aqui. Mas contar-te-ei tudo
noutro dia. Agora gostaria, antes de mais, de cumprimentar o meu
aluno, e também a tua mulher, naturalmente, e falar convosco sobre
a maneira como vamos conceber as minhas novas funções. Estou
com pressa de começar.
Plínio chamou uma criada e mandou-a procurar imediatamente o
seu filho.
– O jovem senhor? – perguntou ela, com uma admiração visível,
mas partiu imediatamente a correr, enquanto o dono da casa
conduzia o seu amigo ao quarto que lhe estava destinado e lhe
explicava entusiasmado tudo quanto previra e preparara para a sua
chegada e a sua vida com o jovem Tito. Arranjara-se tudo como
Knecht tinha desejado. A própria mãe de Tito, depois de algumas
reticências, tinha compreendido o que ele queria e conformara-se.
Eles possuíam na montanha, para as férias, uma casinha, chamada
Belpunt, lindamente situada à beira dum lago. Era aí que Knecht
devia ir viver, durante os primeiros tempos, com o seu aluno. Uma
criada velha ocupar-se-ia deles; já tinha partido para lá, alguns dias
antes, para preparar tudo. Claro, seria apenas uma estada curta,
possível quando muito até ao começo do inverno. Mas para os
primeiros tempos, precisamente, um retiro como esse só poderia ser
proveitoso. E estava contente por Tito ser um grande amante da
montanha e gostar da casinha de Belpunt: desse modo era uma
alegria muito grande ir passar uns tempos na montanha e partiria
sem relutância. Designori lembrou-se de que tinham um álbum de
fotografias dessa casinha e da região. Levou Knecht para o seu
escritório, procurou o álbum por todo o lado e, quando o encontrou
e abriu, deu-se ao trabalho de mostrar a casa ao seu convidado,
descreveu-lhe a grande sala rústica, o fogão de ladrilhos, o
caramanchão, o sítio dos banhos junto ao lago, a queda-d’água.
– Gostas? – perguntava de vez em quando. – Sentir-te-ás bem lá?
– Porque não? – dizia Knecht tranquilamente. – Mas onde está
Tito? Já o mandaste chamar há um bom bocado.
Falaram ainda um pouco de várias coisas, em seguida ouviram-se
passos lá fora. A porta abriu-se e entrou alguém, mas não era Tito
nem a criada que tinham mandado à procura dele. Era a mãe de
Tito, a senhora Designori. Knecht ergueu-se para a cumprimentar,
ela estendeu-lhe a mão e sorriu-lhe com uma amabilidade um pouco
constrangida. Ele viu que aquele sorriso educado escondia uma
expressão de preocupação e de irritação. Logo que pronunciou
algumas frases de boas-vindas voltou-se para o seu marido e
libertou-se impetuosamente da notícia que lhe pesava no coração.
– É mesmo desagradável! – exclamou ela. – Olha, o pequeno
desapareceu, não se encontra em parte nenhuma.
– Pois bem, deve ter saído – disse Plínio para a tranquilizar. – Não
deve demorar.
– É pouco provável, infelizmente – disse a mãe –, pois partiu já
esta manhã. Dei conta pouco tempo depois.
– E porque é que só agora mo dizes?
– Estava à espera naturalmente de o ver regressar a todo o
momento e não queria inquietar-te inutilmente. Ao princípio também
não pensei que fosse grave, julguei que tivesse ido passear. Foi
somente quando vi que não voltou ao meio-dia que comecei a ficar
preocupada. Tu não almoçaste em casa hoje, senão ter-to-ia dito ao
meio-dia. Mesmo nessa altura tentava convencer-me de que era
apenas uma falta de atenção da sua parte fazer-me esperar assim
tanto tempo. Mas devemos acreditar que não era isso.
– Permita-me uma pergunta – disse Knecht. – Esse jovem estava
ao corrente da minha chegada próxima e dos projetos sobre nós os
dois?
– Evidentemente, senhor Magister, e parecia mesmo satisfeito com
esses projetos. Em todo o caso, preferia tê-lo como professor do que
ser enviado outra vez para uma escola qualquer.
– Pois bem – disse Knecht –, nesse caso está tudo bem. O seu
filho, Signora, está habituado a ter liberdade, sobretudo nestes
últimos tempos. A perspetiva de ter um educador e um mentor não
lhe sorri nada, é compreensível. E eclipsou-se no momento em que
o iam confiar ao seu novo professor, talvez menos na esperança de
escapar realmente ao seu destino do que com a ideia de que não
teria nada a perder num adiamento. E quis também provavelmente
dar um safanão nos pais e no precetor que mandaram vir e
manifestar-se contra o universo inteiro dos adultos e dos
professores.
Designori ficou contente por Knecht tomar este incidente tão
pouco tragicamente. Mas estava preocupado e inquieto. O seu
coração afetuoso achava possíveis todos os perigos que ameaçavam
o seu filho. Talvez, dizia para consigo, tenha fugido para sempre,
talvez tenha atentado mesmo contra os seus dias. Tudo quanto fora
descurado e feito erradamente na educação daquele rapaz parecia
procurar a sua vingança no preciso momento em que se esperava
remediá-lo.
Contrariamente ao que Knecht aconselhava, tomou medidas e
alguma coisa foi feita. Sentia-se incapaz de aguentar este golpe
passivamente, sem agir. Cedeu a uma impaciência e a um
nervosismo crescentes que desagradaram vivamente ao seu amigo.
Decidiu-se por conseguinte a enviar emissários a algumas casas
onde Tito ia às vezes encontrar-se com camaradas da sua idade.
Knecht ficou contente ao ver a senhora Designori sair para tomar
estas disposições e ter o seu camarada só para si.
– Plínio – disse-lhe –, estás a fazer a mesma cena como se te
tivessem trazido o teu filho morto para casa. Ele já não é um bebé:
não deve ter ficado debaixo dum carro nem comido beladona.
Acalma-te, meu caro. Já que o teu filho não está cá, permite-me que
te dê uma lição em vez de a ele. No momento em que um atleta
recebe uma pancada ou sofre uma pressão inesperada, a sua
musculatura entrega-se, quase por si própria, aos movimentos
necessários; estende-se ou contrai-se e ajuda-o a tornar-se senhor
da situação. É assim, aluno Plínio, que no momento em que
recebeste este golpe... ou o que com algum exagero te pareceu um
golpe... deverias ter recorrido ao primeiro meio de defesa em caso
de ataque espiritual e procurar respirar lentamente e de maneira
cuidadosamente calculada. Em vez disso respiraste como um ator
que quer representar a emoção. Não estás suficientemente
couraçado. Vós, pessoas do século, pareceis singularmente
desarmados contra a dor e as preocupações. Isso tem qualquer
coisa de forçado e comovente. E às vezes, sobretudo quando se
trata de verdadeiras dores e o martírio tem sentido, isso chega
mesmo ao sublime. Mas, para a vida quotidiana, essa renúncia a
defender-se não constitui uma arma. Tentarei que o teu filho um dia
esteja mais bem armado se tiver necessidade disso. E agora, Plínio,
tem a bondade de fazer alguns exercícios comigo, para eu ver se já
desaprendeste tudo.
Graças a estes exercícios respiratórios para os quais deu sinal com
um ritmo rigoroso, forneceu ao seu camarada uma diversão salutar.
E em seguida encontrou-o também disposto a ouvir a voz da razão e
a libertar-se de todo o aparelho de terror e preocupações de que se
tinha rodeado. Subiram ao quarto de Tito. Knecht considerou
divertido o amontoado de tesouros do rapazinho; pegou num livro
pousado na mesinha ao lado da cama e viu sair de lá um bocado de
papel. Milagre! Aquela folha continha uma mensagem do
desaparecido. Estendeu o papel, a rir-se, a Designori e o rosto deste
desanuviou-se. Naquela folha Tito informava os seus pais de que
partira, às primeiras horas, e que ia sozinho para a montanha onde
esperaria o seu novo professor, em Belpunt. Pedia que lhe
concedessem este pequeno prazer, antes que a sua liberdade
voltasse a ser desagradavelmente entravada; sentia, dizia ele, uma
repugnância invencível em fazer essa viagenzinha encantadora na
companhia do seu precetor, já sob vigilância e cativo.
– Ora aqui está o que é bastante compreensível – disse Knecht. –
Vou portanto tomar o mesmo caminho que ele e encontrá-lo-ei sem
dúvida já na tua casa da montanha. Mas agora é preciso, antes de
mais, que vás ter com a tua mulher e lhe dês esta notícia.
Durante o resto do dia a casa conheceu uma atmosfera serena e
descontraída. Nessa noite Knecht, por instância de Plínio, contou
brevemente ao seu amigo os acontecimentos dos dias precedentes
e, nomeadamente, as suas duas conversas com o Mestre Alexander.
Foi também nessa noite que escreveu uma estrofe estranha numa
folha de papel que está hoje nas mãos da família Designori. Eis
como isso se passou:
O dono da casa tinha-o deixado sozinho durante uma hora, antes
da refeição da noite. Knecht viu um armário cheio de livros antigos,
que despertou a sua curiosidade. Também isso era um divertimento
cujo hábito tinha perdido durante inúmeros anos de renúncia, e que
quase esquecera. Encontrar-se à frente de livros desconhecidos,
mergulhar neles a mão ao acaso, pescar aqui e ali um volume cujos
dourados ou o nome do autor, cujo formato ou a cor do couro lhe
diziam qualquer coisa, acordava no seu coração a recordação
profunda dos seus anos de estudante. Percorreu inicialmente, com
complacência, os títulos inscritos nas costas dessas obras e verificou
que ali só havia obras literárias dos séculos XIX e XX. Acabou por
tirar um volume encadernado numa tela um pouco gasta, cujo título,
A Sabedoria dos Brâmanes, o atraiu. Folheou-o inicialmente de pé,
depois sentou-se: continha centenas de poemas didáticos onde
estavam, lado a lado, curiosamente, a verborreia sentenciosa e a
sabedoria real, o filistinismo e o autêntico espírito poético. A esta
obra singular e comovente não lhe faltava, pareceu-lhe, esoterismo,
mas este estava apresentado sob uma capa grosseira e os mais
lindos poemas não eram aqueles onde uma doutrina, uma
sabedoria, procurava verdadeiramente a sua forma, mas antes
aqueles onde o coração do poeta, a sua sensibilidade amorosa, a
sua boa-fé e a sua ternura humana, o seu carácter de bom cidadão,
estavam expressos. Enquanto procurava penetrar o espírito deste
livro com uma mistura particular de respeito e divertimento, uma
estrofe atraiu o seu olhar. Saboreou-a com satisfação, aplaudiu,
abanou a cabeça com um sorriso aprovador, como se ela lhe tivesse
sido especialmente dirigida para aquele dia. Ei-la:

Vemos os dias passar queridos e com prazer


Para encontrarmos madura outra coisa ainda mais querida:
Uma planta rara que cultivamos no jardim,
Uma criança que educamos, um livrinho que escrevemos.

Abriu a gaveta da escrivaninha, procurou, encontrou uma folha de


papel e passou estes versos. Mais tarde, mostrou-os a Plínio e
acrescentou: – Estes versos agradaram-me, têm qualquer coisa de
especial: esta secura e, ao mesmo tempo, esta sinceridade! E
aplicam-se-me perfeitamente, à minha situação e ao meu estado de
espírito atuais. Se não sou jardineiro e se não tenho intenção de
consagrar os meus dias a tratar duma planta rara, sou professor e
educador, e eis-me a caminho da minha tarefa, para me juntar à
criança que quero educar. Que prazer espero disso! Quanto ao autor
destes versos, o poeta Rückert, deve ter tido estas três nobres
paixões, a do jardineiro, do educador e do autor, e foi sem dúvida
esta última que ocupou nele o primeiro lugar. Indica-a em último, no
sítio mais marcante, e está tão apaixonado pelo objeto da sua
paixão que cede à ternura e não lhe chama uma obra, mas um
«livrinho». Como é comovedor!
Plínio riu-se: – Quem sabe – disse ele – se esse lindo diminutivo
não é simplesmente um processo dum fazedor de rimas que
precisava de três sílabas nesse sítio em vez de duas?
– Mesmo assim não o subestimemos – disse Knecht tomando a
sua defesa. – Um homem que escreveu durante a sua vida dezenas
de milhares de versos não se deixa apanhar por uma situação difícil,
por uma sórdida necessidade de prosódia. Não, escuta um pouco,
que qualidade de ternura há ali, e também de leve pudor: «um
livrinho que escrevemos»! Talvez, de resto, não seja somente um
sentimento de amor que fez de «livro» «livrinho». É possível que
haja aí uma intenção de embelezamento, um esforço conciliador. É
possível, é mesmo provável que este poeta se entregava de tal
modo à sua obra, que a sua própria propensão a escrever livros era
para ele uma espécie de paixão, um vício. Neste caso, a expressão
«livrinho» não teria somente este valor e esta qualidade de amor,
mas igualmente essa intenção de embelezamento, de diversão, de
desculpa, que encontramos na boca do jogador que nos convida,
não para uma partida mas para uma «partidinha», ou do bebedor
que pede mais um «copinho». São hipóteses, claro. Seja como for,
este poeta tem toda a minha aprovação e toda a minha simpatia no
que respeita à criança que quer educar e ao livrinho que se propõe
escrever. Pois não conheço somente a paixão de educar, a de
escrever livrinhos também não me é totalmente estranha. E agora
que me libertei das minhas funções, esta ideia volta a ter para mim
qualquer coisa de deliciosamente atraente. Escrever um livro, à
vontade e de bom humor, ou antes um livrinho, um texto pequeno
para os meus amigos e camaradas que partilham as minhas ideias...
– E sobre que assunto? – perguntou Designori com curiosidade.
– Oh! Não é importante, o assunto não teria importância. Seria
para mim apenas uma ocasião para me retirar para a minha crisálida
e gozar da sorte de ter muito tempo livre. O que para mim contaria
seria o tom, convenientemente escolhido a meio caminho entre o
respeito e a familiaridade, entre o sério e o divertimento, o tom, não
de ensino mas da informação amistosa e da discussão sobre tal e tal
ponto que julgo ter elucidado pela experiência e o estudo. A maneira
que tem este Friedrich Rückert de misturar nos seus versos o ensino
e o pensamento, a informação e a verborreia, não seria, sem dúvida,
a minha e, no entanto, há nessa maneira de proceder qualquer coisa
que me toca: é pessoal, sem ser arbitrária, tem divertimento e
restringe-se no entanto a regras formais rígidas, isso agrada-me.
Enfim, de momento não conhecerei as alegrias nem os problemas da
redação dum livrinho, devo concentrar-me para uma outra tarefa.
Mas, mais tarde, penso que poderia talvez conhecer, um dia, na sua
flor, a felicidade de ser autor tal como a imagino, essa arte de
abordar as coisas com à-vontade, ao mesmo tempo que com
cuidado, não para tirar disso um prazer solitário mas sempre com o
pensamento num pequeno número de bons amigos e de leitores.
No dia seguinte de manhã Knecht partiu para Belpunt. Designori
tinha-lhe declarado na véspera que ia acompanhá-lo, mas ele
opusera-se resolutamente, e quando este arriscou ainda uma
palavra para o convencer, quase o invetivou: – Esta criança – disse,
secamente – terá bastante que se esforçar para tomar contacto com
o seu novo mestre e habituar-se-lhe, não temos o direito de lhe
infligir ainda por cima a vista do seu pai que, precisamente agora,
dificilmente o poderia encher de alegria.
Nessa fresca manhã de setembro, dentro do carro que Plínio lhe
alugara, voltou a encontrar o bom humor da sua viagem da véspera.
Falava com bastante frequência com o condutor, pedia-lhe às vezes
para parar ou para ir lentamente quando a paisagem o seduzia; por
diversas vezes tocou também a sua flautazinha. Foi uma bela e
apaixonante viagem da capital e das terras baixas até aos
contrafortes da cadeia montanhosa, e depois até à alta montanha.
Ao mesmo tempo passava do verão findante para um outono que se
afirmava cada vez mais. Cerca do meio-dia, a última grande subida
iniciou-se em largas curvas através da floresta de coníferas já mais
rala, ladeando torrentes escumantes que rugiam entre as rochas,
por cima das pontes, ao longo de quintas solitárias de paredes
maciças furadas por janelas pequenas, para penetrar no mundo de
pedra da montanha cada vez mais austera e mais áspera e cuja
dureza e gravidade faziam parecer duas vezes mais encantador o
desdobrar de numerosos paraísos minúsculos floridos.
A casa de campo que alcançaram finalmente estava escondida à
beira dum lago nos rochedos cinzentos de que quase não se
destacava. Quando a viu, o viajante foi sensível à severidade, ao
aspeto mesmo sinistro desta arquitetura adaptada aos rigores da
alta montanha. Mas logo um sorriso sereno iluminou o seu rosto,
pois no limiar da porta aberta distinguiu um vulto de rapazinho de
casaco vistoso e calções. Só podia ser o seu aluno Tito e, se bem
que a sua escapada nunca lhe tivesse dado sérias preocupações,
soltou no entanto um suspiro de alívio e gratidão. Se Tito estava ali,
se vinha saudar o seu professor no limiar da porta, tudo ia bem e
isso excluía diversas complicações cuja possibilidade encarara,
apesar de tudo, durante o caminho.
O rapazinho veio ao seu encontro sorrindo gentilmente, um pouco
incomodado, e ajudou-o a descer do carro, dizendo: – Não foi por
má intenção que o deixei fazer a viagem sozinho. – E antes mesmo
que Knecht pudesse responder acrescentou num tom confiante: –
Creio que compreendeu o que eu queria. Doutra maneira, o senhor
teria certamente trazido o meu pai consigo. Eu já lhe fiz saber que
tinha chegado bem.
Knecht apertou-lhe a mão rindo-se e deixou-se conduzir para
dentro de casa, onde a criada veio igualmente cumprimentá-lo e lhe
prometeu que o jantar não se faria esperar. Quando, cedendo a uma
necessidade fora do costume, se estendeu um pouco em cima da
cama antes de se sentar à mesa, deu conta de que aquela bela
viagem de carro o tinha cansado especialmente, esgotado mesmo,
e, durante o serão, enquanto conversava com o seu aluno e o fazia
mostrar-lhe as suas coleções de flores alpestres e de borboletas,
esse cansaço aumentou mais; sentiu mesmo uma espécie de
vertigem, um vazio na cabeça que nunca antes sentira, uma
fraqueza e uma arritmia cardíaca penosas. Contudo, ficou sentado
com Tito até à hora que tinham combinado para irem deitar-se e fez
um esforço para não deixar transparecer nada do seu mal-estar. O
seu aluno ficou um pouco admirado por o Magister não dizer nada
sobre o momento em que começaria o seu ensino, sobre o emprego
do tempo, sobre as suas últimas notas e sobre assuntos deste
género. E mesmo, quando Tito se arriscou a explorar estas boas
disposições e propôs um passeio bastante longo para o dia seguinte
de manhã, a fim de dar a conhecer ao seu professor esta região,
nova para ele, a sua oferta foi amistosamente aceite.
– Dar-me-á prazer fazer esse passeio – acrescentou Knecht – e ao
mesmo tempo vou pedir-lhe um serviço. Apercebi-me, ao examinar
o seu herbário, que o menino conhecia as plantas alpestres muito
melhor do que eu. O objeto da nossa vida comum é evidentemente,
entre outras coisas, que troquemos os nossos conhecimentos e os
ponhamos ao mesmo nível; comecemos portanto assim: o menino
vai controlar os meus magros conhecimentos de botânica e ajudar-
me a fazer alguns progressos nesse domínio.
Desejaram-se boa noite; Tito estava muito satisfeito e tomou boas
resoluções. Mais uma vez este Magister Knecht lhe tinha agradado.
Sem utilizar grandes palavras, sem falar de ciência, de virtude, de
aristocracia do espírito e doutras enormidades, como os professores
da escola gostavam de fazer, este homem alegre e amável tinha, na
sua maneira de ser e de falar, qualquer coisa que se impunha e fazia
apelo a impulsos e a forças nobres, dons, cavalheirescos e
superiores. Podia haver prazer ou até mesmo mérito em surpreender
a boa-fé ou a malícia dum mestre-escola qualquer, mas perante este
homem não se podia ter ideias dessas. Ele era... de facto, como era
ele? Tito perguntou-se o que, naquele desconhecido, lhe agradava e
se lhe impunha tanto, e achou que era a sua nobreza, a sua
distinção, o seu ar de grande senhor. Era isso que o atraía acima de
tudo. Este senhor Knecht era distinto, era um grande senhor, um
cavalheiro, ainda que ninguém conhecesse a sua família e o seu pai
pudesse perfeitamente ter sido sapateiro. Tinha mais nobreza e
distinção que a maior parte dos homens que conhecia, mais
distinção mesmo que o seu pai. O jovem, que apreciava muito as
tradições e os instintos patrícios da sua casa e que não perdoava ao
pai o facto de se ter desviado dela, encontrava-se pela primeira vez
na presença da aristocracia do espírito, da educação, daquela força
que, numa conjuntura feliz, sabe às vezes realizar o milagre sem
passar por uma longa série de antepassados e gerações, de
transformar, numa única vida, uma criança da plebe num ser duma
nobreza superior. Neste adolescente cheio de fogo e orgulho surgiu
vagamente a ideia de que a sua honra e o seu dever seriam talvez o
de pertencer a esta espécie de aristocracia e servi-la. Pensou que,
sob a aparência, a figura daquele professor, apesar de toda a doçura
e gentileza, estava no entanto até à ponta das unhas um grande
senhor, era talvez o sentido da sua vida que se lhe apresentava e ele
estava destinado a fixar objetivos à sua existência.
Knecht, depois de Tito o ter acompanhado ao seu quarto, não se
deitou imediatamente, se bem que sentisse grande vontade disso.
Este serão havia-lhe custado muito, tinha sido difícil e penoso
perante aquele jovem que o observava certamente com atenção,
manter-se senhor da sua expressão, da sua contenção, da sua voz,
para que ele não notasse nada desse cansaço, depressão ou doença
singular que entretanto se agravaram mais. Fosse como fosse,
parecia tê-lo conseguido. Mas agora precisava de enfrentar e
ultrapassar esse vazio, esse mal-estar, essa vertigem de angústia,
esse cansaço mortal, feito ao mesmo tempo de inquietação, e para
isso tinha primeiro de os reconhecer e compreender. Conseguiu-o
sem demasiada dificuldade, se bem que lhe fosse necessário um
certo tempo. O seu mal-estar não tinha outra causa, em seu
entender, a não ser a viagem que fizera nesse dia e que, num prazo
tão curto, o trouxera da planície até alguns dois mil metros de
altitude. Havendo perdido o hábito, desde as raras excursões da sua
primeira juventude, de passar tempo em tais alturas, suportara mal
esta ascensão rápida. Teria sem dúvida ainda de sofrer pelo menos
mais um dia ou dois deste mal-estar e, se não passasse
verdadeiramente, pois bem!, seria obrigado a regressar com Tito e a
governanta e, nesse caso, o plano que Plínio concebera para Belpunt
estaria arrumado. Seria pena, mas a desgraça não seria grande.
Depois destas considerações meteu-se na cama e passou a noite
sem ter muito sono, em parte a rever a sua viagem, desde as
despedidas em Waldzell, em parte a tentar acalmar as pulsações do
seu coração e a irritação dos nervos. Pensou também muito no seu
aluno, com prazer, mas sem fazer projetos; parecia-lhe preferível
domar este jovem puro-sangue recalcitrante unicamente através da
benevolência e da habituação; não era necessário forçar as coisas
nem empregar a coação. Tinha intenção de acordar pouco a pouco
neste adolescente a consciência dos seus dons e das suas forças e,
ao mesmo tempo, alimentar nele essa nobre curiosidade, essa
insatisfação aristocrática, que dão a sua força ao amor pelas
ciências, pelo espírito e pelo belo. Era uma bela tarefa e o seu aluno
não era de resto um jovem talento qualquer que se tratasse de
despertar e pôr em forma: filho único dum patrício influente e rico,
era também um dos senhores de amanhã, um dos homens
destinados, no plano da sociedade e da política, a dar o rosto ao seu
país, ao seu povo, a servir-lhe de exemplos e de chefes. Castália
mantivera uma dívida para com esta velha família dos Designori.
Não oferecera ao pai deste Tito, que outrora lhe tinha sido confiado,
uma educação bastante forte, não o armara suficientemente para
ocupar essa situação delicada, a meio caminho entre o século e o
espírito, que era a sua. Não somente o jovem e simpático Plínio, rico
de dons, fora depois um infeliz, vítima duma vida mal equilibrada
que não soubera dirigir, como o seu filho único também estava em
perigo e implicado nos problemas do seu pai. Havia ali uma boa cura
a operar, uma reparação a trazer, uma espécie de culpabilidade a
assumir, e isso dava-lhe prazer; parecia-lhe significativo que esta
tarefa lhe pertencesse precisamente a si, que era um rebelde e,
aparentemente, um renegado.
De manhã, quando deu conta de que a vida despertava na casa,
levantou-se, encontrou ao lado da cama um roupão de banho
pronto, que enfiou por cima do pijama leve e, como Tito lho tinha
mostrado na véspera à noite, saiu por uma porta das traseiras para
uma passagem semiencoberta que ligava a casa à cabina de banho
e ao lago.
Este lago pequeno estendia-se à sua frente, cinzento-verde,
imóvel. Na margem oposta uma alta falésia abrupta, de crista
recortada e escalavrada, recortava-se no céu matinal sem
profundidade, esverdeado e fresco, brutalmente, no frio da sombra.
Mas sentia-se que, por detrás daquela crista, o Sol já tinha nascido;
a sua luz fazia cintilar aqui e ali as facetas minúsculas duma aresta
de pedra viva. Precisaria apenas de alguns minutos para aparecer
acima do denteado da montanha e inundar de luz o lago e o vale
alpino. Knecht contemplou com atenção e gravidade este
espetáculo, cuja calma austeridade e beleza não lhe eram familiares
e de que tinha a impressão no entanto que lhe falavam e que o
avisavam. Mais fortemente ainda do que durante a sua viagem da
véspera, foi sensível ao poder, à frieza e àquela dignidade de outro
mundo do universo da alta montanha, que não tem pelo homem
nenhuma contemplação, que não o convida e o tolera com
dificuldade. E pareceu-lhe singular e significativo que o seu primeiro
passo na liberdade nova da vida do século o tivesse trazido aqui
precisamente, a esta grandeza calma e fria.
Tito apareceu, de calções, estendeu a mão ao Magister e disse-
lhe, mostrando a falésia à frente de ambos: – Chega no momento
exato, o Sol vai erguer-se dentro de instantes. Ah! como é magnífico
a esta altitude! – Knecht aprovou amistosamente com um gesto da
cabeça. Sabia desde há muito que Tito gostava de se levantar cedo,
correr, lutar, fazer grandes marchas, nem que fosse para protestar
contra a atitude e a vida descontraídas, confortáveis e um pouco
marciais do seu pai, assim como, por uma razão análoga,
desprezava o vinho. Estes hábitos e estas tendências levavam-no às
vezes, é verdade, a armar-se em naturista e em contemplador do
espírito – todos os Designori pareciam ter uma inclinação inata para
o exagero – mas Knecht achava-os bem-vindos e estava resolvido a
utilizar também a camaradagem do desporto para conquistar e
domar este fogoso adolescente. Era um meio entre outros, não um
dos mais importantes. A música, por exemplo, conduzi-lo-ia muito
mais longe. Também não pensava, evidentemente, realizar os
mesmos feitos desportivos que o jovem e ainda menos em superá-
lo. Bastar-lhe-ia fazer-lhe companhia, sem pretensões, para lhe
mostrar que o seu precetor não era nem um cobarde nem um
burocrata.
Tito fixava apaixonadamente a sombria crista de rochas na
margem oposta, por trás da qual o céu lançava fluxos de luz matinal.
Um fragmento da corcova rochosa pôs-se então a lançar raios, como
um metal incandescente que acabasse de entrar em fusão. A crista
perdeu nitidez, pareceu de repente mais baixa; dir-se-ia que se
achatava ao fundir e, pelo braseiro daquela brecha, o astro do dia
apareceu, encandeante. O solo, a casa, a cabina de banho e a
margem do lago onde se encontravam foram ensolarados ao mesmo
tempo, e as duas formas humanas, apanhadas nesta radiação
poderosa, não tardaram a sentir o agradável calor da luz. O jovem,
penetrado pela beleza solene deste momento e pelo sentimento
embriagador da sua juventude e da sua força, espreguiçou-se,
agitou ritmicamente os braços, e em breve todo o seu corpo seguiu
o movimento, para celebrar numa dança entusiasta o nascer do dia
e o seu acordo íntimo com os elementos que o rodeavam com as
suas ondas e os seus raios. Os seus passos voavam numa
homenagem de alegria à frente do Sol triunfante, recuavam
respeitosamente perante ele, os seus braços afastados atraíam para
o seu coração os montes, o lago e o céu; de joelhos, parecia prestar
homenagem à terra alimentadora e, de mãos afastadas, às águas do
lago; parecia oferecer a sua pessoa, a sua juventude, a sua
liberdade, a vida que ardia no mais profundo do seu ser, num
pomposo holocausto às potências. Os seus ombros bronzeados
refletiam o Sol, os seus olhos semicerravam-se contra o
encandeamento e o seu rosto jovem fixava-se, tal uma máscara,
numa expressão de gravidade entusiasta e quase fanática.
O Magister também estava comovido e emocionado com o
espetáculo solene do nascer do dia na solidão muda das rochas.
Mas, mais do que este quadro, foi o fenómeno humano que tinha à
frente dos olhos que se apoderou dele e o cativou, esta dança do
aluno, saudação cerimoniosa à manhã e ao Sol que conferia àquele
adolescente em plena evolução, presa de esquisitices, uma
gravidade quase sacerdotal e revelava num instante, para o
espectador, as mais profundas e as mais nobres das suas
inclinações, dos seus dons e das suas vocações, também
subitamente, por uma revelação tão radiosa como a aparição do Sol
destacando e banhando de luz este frio e sinistro vale lacustre da
alta montanha. Descobria que este jovem tinha ainda mais vigor e
carácter do que o que até ali pensara, mas que era também mais
duro, mais inacessível, mais estranho de espírito, mais pagão. Essa
dança de alegria e de oferenda desse adolescente, possuído por um
entusiasmo pânico, tinha mais conteúdo do que outrora os discursos
e os versos do jovem Plínio. Situando-o ao mesmo tempo vários
graus mais acima, fazia-o também aparecer mais estranho, mais
inalcançável, mais inacessível aos apelos.
Quanto ao rapaz, deixara-se prender por aquele entusiasmo, sem
saber o que lhe acontecia. A dança que executava não era de modo
nenhum um passo que já tivesse conhecido, praticado ou tentado;
não era o rito duma cerimónia solar e matinal que já lhe fosse
familiar, ou que tivesse inventado. Não era somente, devia
reconhecê-lo mais tarde, o ar da montanha, o Sol, a manhã e o
sentimento da sua liberdade que tinham tido um papel na sua dança
e no seu frenesi mágico, mas, em grau igual, a mudança iminente, o
novo patamar da sua jovem vida, que se revelavam nos traços tão
simpáticos como imponentes do Magister. Nessa hora matinal,
muitos elementos se conjugavam no destino e na alma do jovem
Tito, para conferir àquele momento uma grandeza, uma solenidade,
uma consagração que o distinguiam de milhares de outros. Sem
saber o que fazia, sem espírito crítico, nem suspeita, realizava aquilo
que este momento de beatitude exigia dele, dançava a sua
adoração, dirigia uma oração ao Sol, confessava em movimentos e
em gestos de devoção a sua alegria, a sua fé na vida, a sua piedade
e o seu respeito; na sua dança, oferecia ao mesmo tempo,
orgulhosamente e humildemente, a sua alma inocente àquele ser
que admirava e temia ao mesmo tempo, àquele homem de
sabedoria, àquele músico, ao mestre vindo das esferas do Jogo
mágico, seu futuro precetor e amigo.
Tudo isso, como a embriaguez de luz daquele nascer do Sol, durou
apenas alguns minutos. Knecht contemplou, dominado, aquele
espetáculo magnífico, durante o qual o seu aluno se transformava,
se desvendava aos seus olhos e se lhe apresentava, novo,
estrangeiro em todo o seu valor, como seu igual. Encontravam-se
ambos no carreiro que unia a casa à cabina de banhos, banhados
pela plenitude de luz do levante, profundamente excitados pelo
turbilhão dos instantes que acabavam de viver. Mal acabou de
executar o seu último passo de dança, Tito acordou daquela
vertigem de felicidade e parou, como um animal surpreendido nos
seus jogos solitários. Deu-se conta de que não estava sozinho e que
não somente vivera e fizera qualquer coisa de insólito mas que tinha
tido um espectador junto de si. Rápido como o raio, seguiu a
primeira inspiração que lhe permitisse sair desta situação, na qual
julgou de repente ver uma espécie de perigo e de vergonha, e
romper energicamente os sortilégios daqueles minutos estranhos
que tão totalmente o tinham envolvido e dominado.
O seu rosto, que um instante antes estivera revestido por uma
máscara de gravidade sem idade, tomou uma expressão pueril e um
pouco idiota, como a dum ser arrancado demasiado bruscamente a
um sono profundo; passeou-se um pouco, olhou o seu professor nos
olhos com um estupor pateta e, tomado por uma pressa súbita,
como se acabasse de se lembrar duma coisa importante de que se
tivesse esquecido, estendeu o braço direito, num gesto
demonstrativo, para a margem oposta. Assim, como metade da
largura do lago, esta encontrava-se ainda na vasta zona de sombra
que o pico rochoso, vencido pelos raios da manhã, juntava pouco a
pouco, mais estreitamente, à volta da sua base.
– Se nadarmos muito depressa – exclamou precipitadamente, com
uma urgência de rapazinho – podemos atingir a outra margem antes
do Sol.
Tendo proferido estas palavras como se se tratasse de palavras de
ordem para rivalizar com o Sol, Tito, com um poderoso movimento,
desapareceu no lago, de cabeça, como se, por orgulho ou embaraço,
não pudesse eclipsar-se bastante rapidamente e fazer esquecer por
meio duma atividade acrescida a cena solene que precedera. A água
saltou e fechou-se sobre ele; alguns instantes mais tarde a sua
cabeça, os seus ombros e os seus braços reapareceram,
permaneceram visíveis e afastaram-se rapidamente no espelho azul-
verde do lago.
Quando saíra, Knecht não tinha tido intenção de tomar banho nem
de nadar: a temperatura era demasiado fria para ele e, depois
daquela noite de mal-estar, estava longe de se sentir bastante bem
para o fazer. Agora, naquele belo sol, excitado com o que acabava
de ver, convidado, tratado como camarada pelo seu aluno, achou
esta temeridade muito menos perigosa. Mas temeu sobretudo ver
afundar-se e perder-se o que se iniciava e prometia aquela hora
matinal, se deixasse agora o jovem sozinho, se o desiludisse
recusando aquela prova de força com uma fria razão de adulto.
Tinha, claro, o aviso daquele sentimento de insegurança e fraqueza
provocado pela sua rápida ascensão, mas talvez o meio mais rápido
de ultrapassar esse mal-estar fosse justamente forçar-se e agir
brutalmente. O apelo foi mais forte do que o aviso, a sua vontade
mais forte do que o instinto. Desembaraçou-se à pressa do roupão
leve, respirou profundamente e lançou-se à água no sítio onde o
aluno tinha mergulhado.
O lago, alimentado pelas águas dos glaciares e que só era
acessível, mesmo no pino do verão, a pessoas muito endurecidas,
recebeu-o num frio glacial, mordente, hostil. Ele esperara um
violento arrepio, mas não este frio cruel que o rodeou de todos os
lados como um jato de chamas e que, sucedendo a um instante de
queimadura lancinante, o penetrou rapidamente. Depois do
mergulho, voltara rapidamente à superfície; avistou novamente à
sua frente Tito, que tinha ganho um grande avanço, e sentiu os
ásperos assaltos do elemento glacial, feroz, hostil: julgava ainda
lutar para reduzir a distância, para chegar ao fim da sua corrida,
conquistar a estima e a camaradagem do rapaz, ganhar a sua alma,
e já lutava contra a morte que o encurralara e envolvera. Batalhando
com todas as suas forças, resistiu-lhe durante o tempo que o seu
coração continuou a bater.
O jovem nadador olhara muitas vezes para trás e verificara com
satisfação que o Magister o tinha seguido na água. Lançou outra
olhada penetrante e já não o viu; a inquietação apoderou-se dele,
olhou atentamente e chamou, fez meia volta e precipitou-se para o
socorrer. Já não o encontrou e procurou o desaparecido; nadou e
mergulhou até o frio temível lhe esgotar as forças. Aos bordos,
esgotado, chegou enfim a terra firme, viu o roupão de banho na
margem, juntou-o e pôs-se maquinalmente a esfregar o corpo e os
membros para aquecer a pele transida. Sentou-se ao sol, quase
estupidificado, de olhos fixos na água, cuja fria extensão azul-
esverdeada lhe parecia agora estranhamente vazia, estranha e
pérfida, e sentiu-se vencido pelo desespero e possuído de uma
tristeza profunda quando, uma vez passada esta fraqueza corporal, a
consciência e o terror do que acabava de passar-se se apoderaram
de si novamente.
«Que pena!», pensou com terror. «Eis-me responsável pela morte
dele!» E foi só nesse instante, em que já não tinha de defender o
seu orgulho nem opor resistência, que sentiu, com a dor do seu
coração aterrorizado, quanto começara já a amar aquele homem. E,
reconhecendo que, apesar de todos os argumentos, era em parte
responsável pela morte do Mestre, veio-lhe com um arrepio sagrado
o pressentimento de que este erro iria transformar a sua pessoa e a
sua vida e reclamar de si mais grandeza do que nunca, até ali, ele
tinha exigido de si próprio.
10 Tinha cabeça e membros, / Por terra, / Mas agora estou de pé, / Vivo e alegre, / Olho o céu de
frente. (N. do T.)
ESCRITOS PÓSTUMOS
DE JOSEF KNECHT
OS POEMAS DO ALUNO E DO ESTUDANTE

Lamento

Nenhum ser nos foi concedido. Correnteza apenas


Somos, fluindo de forma em forma docilmente:
Movidos pela sede do ser atravessamos
O dia, a noite, a gruta e a catedral.

Assim sem descanso as enchemos uma a uma


E nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta,
Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante,
A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão.

Não sabemos o que de nós quer Deus


Que, barro em suas mãos, connosco brinca,
Barro mudo e moldável que não ri nem chora,
Barro amassado que nunca coze.

Ser enfim como a pedra sólido! Durar uma vez!


Eternamente vivo é este o nosso anseio,
Que medroso arrepio permanece apesar de eterno,
E nunca será o repouso no caminho.
Boa Vontade

Os eternamente constantes e simples


Não suportam de boa vontade as nossas dúvidas.
O mundo é plano, explicam-nos simplesmente,
E disparates as sagas dos abismos.

Pois se mais dimensões de facto houvera


Além das duas boas e velhas conhecidas,
Como podia alguém estar seguro em sua casa,
Como podia alguém viver sem cuidados?

Para que haja alguma paz portanto,


Deixai-nos pois riscar uma dimensão!

Como os constantes são mesmo honestos


E a visão dos abismos muito perigosa,
Dispensar-se-á então a terceira dimensão.

Em segredo porém temos sede...

Grácil, volátil, delicada como um arabesco


A nossa vida parece-se com a das fadas,
Em suaves danças girando em redor
Do nada a que sacrificamos o ser e o presente.

Uma beleza de sonho, alegre brincadeira,


Como um sopro, sintonia pura;
Lá no fundo, por baixo da tua calma superfície,
Cintila a ânsia da noite, do sangue, da barbárie.
No vazio, sem amarras, fácil,
Gira livre a nossa vida, a brincar sempre pronta;
Em segredo porém temos sede de realidade,
De procriar e nascer, da dor e da morte.

Letras

Às vezes pegamos na pena


E traçamos sinais num papel
Que dizem isto e aquilo, todos os conhecem,
É um Jogo que tem as suas regras.
Mas se um selvagem viesse
Ou um selenita e pusesse
O papel, qual campo lavrado de runas,
À frente dos olhos curiosos de saber,
Saltar-lhe-ia de lá uma bizarra imagem do mundo,
Uma estranha galeria de imagens mágicas.
Para ele o A e o B seriam o homem e o animal,
Olhos, línguas, membros a mexer,
Pensativos acolá, acometidos de impulsos aqui,
Leria como na neve as pegadas da gralha,
Correria, descansaria, sofreria, voaria com as letras
E veria todas as possibilidades da criação perpassarem
Como fantasmas através dos negros sinais petrificados,
Deslizarem pelos ornamentos traçados,
Veria o amor arder, palpitarem dores.
Havia de espantar-se, rir-se, chorar, tremer,
Pois por detrás das barras das grades dessa escrita
Lhe apareceria reduzido o mundo inteiro
No seu ímpeto cego, feito anão, enfeitiçado
Nesses caracteres que em passo hirto
Prisioneiros passam e uns aos outros tanto se assemelham
Que a pulsão da vida e a morte, a volúpia e o sofrimento
Irmãos se tornam e quase mal se distinguem...
E por fim o selvagem gritaria de medo insuportável
E um fogo atiçaria
E batendo na testa e por entre litanias
A branca folha das runas às chamas lançaria.
Então talvez ao adormecer pressentisse
Que esse não-mundo, esse passe de mágica,
Essa coisa insuportável sugada seria
Para o que nunca foi e fica em sítio nenhum
E suspiraria e rir-se-ia e ficaria bom outra vez.

Ao ler um filósofo antigo

O que ainda ontem era cheio de encanto e nobreza,


Fruto de séculos de pensamentos seletos, de repente
Empalidece, murcha e perde o sentido como uma partitura
A cujos ornamentos se arrancaram claves e sustenidos;

O mágico centro de gravidade dum edifício


Desapareceu; gaguejando desconjunta-se
E desmorona-se num eterno ecoar
O que harmonia parecia.

Assim também se amarrota um rosto velho


Cheio de sabedoria que admirávamos e
Pronto para a morte, tremula num jogo de pregas
Lastimoso e louco o fulgor da sua luz espiritual.

Assim também pode nos nossos sentidos


Num instante um sentimento elevado transformar-se
Num desgosto como há já muito soubesse que tudo
Apodrece, murcha, morre.

E sobre a nojenta vala dos cadáveres


Estende-se cheio de dores mas incorrupto
O Espírito saudoso de fanais ardentes,
Combatendo a morte, tornando-se imortal.

O último Jogador de Contas de Vidro

De jogo na mão, as coloridas contas,


Senta-se curvado, à sua volta devastado
Pela guerra e a peste o país, nas ruínas
A hera cresce e na hera abelhas zumbem.
Uma paz cansada com saltério abafado
Ressoa pelo mundo, na sua calma velhice.
O velho conta as suas coloridas contas,
Aqui uma azul prende uma branca,
Ali uma grande escolhe uma pequena
E combina-as, num anel, para o Jogo.
Outrora foi grande no Jogo dos Símbolos,
Mestre de muitas artes, muitas línguas,
Conhecedor do mundo, viajante, homem
Célebre, conhecido até nos polos,
Sempre por alunos e colegas rodeado.
Hoje só ele resta, velho, gasto, sozinho,
Nenhum jovem aspira à sua bênção,
Por nenhum Magister é desafiado;
Tudo passou, os templos, as bibliotecas,
As escolas de Castália já não existem... Entre os
Escombros repousa o Velho, de contas na mão,
Hieróglifos que outrora diziam muito,
E agora são apenas vidrilhos coloridos
Das suas mãos idosas silenciosamente rolam
E perdem-se na areia...
A uma toccata de Bach

Silêncio primordial... As trevas reinam...


Um raio rompe com a sua ponta as nuvens
E arranca as profundezas do Universo ao cego Não-Ser,
Constrói Espaços, e de luz revolve a Noite,
Sugere as cristas, os cumes, as encostas e os poços,
Torna os ares azuis, inconstantes, e espessa a Terra.

Para a ação e a guerra o raio fende


Criador a matriz primeira:
De fulgor inflama o mundo apavorado.
Onde a luz bate, transforma tudo
E ordena e ressoa magnífica
No louvor da Vida, na vitória da luz do Criador.

E mais se arroja num reflexo em direção a Deus


E penetra na agitação das criaturas
No ímpeto imenso do Espírito-Pai.
Torna-se gozo e tristeza, fala, imagem e canto,
Arqueia um a um os mundos em arcos de vitória
Da catedral, é ímpeto, é Espírito,
É Combate e Sorte, é Amor.

Um sonho

Convidado dum convento das montanhas


Entrei, na hora em que todos tinham ido rezar,
Numa biblioteca. À luz do crepúsculo
Brilhavam ainda na parede, com magníficas
Inscrições, as lombadas de milhares de pergaminhos.
Cheio de sede de conhecimento e encantado
Peguei num livro e li:
«O último passo para a quadratura do círculo».
Este livro, pensei, levo-o comigo!
Noutro livro, um in quarto de couro dourado,
lia-se, em tiras minúsculas, na lombada:
«De como Adão também comeu de outra árvore»...
De outra árvore? De qual? Da da vida!
Então Adão é imortal? Em vão não é,
concluí, que estava ali, e um in folio
Entrevi, que na lombada, nas bordas e nos cantos
Cintilava com as cores do arco-íris.
O título, uma iluminura, dizia:
«Da correspondência entre a cor e o som.
Uma prova de como cada cor e cada mudança de cor
Corresponde a uma tonalidade musical».
Oh, em quantas promessas cintilava para mim
O coro das cores! E comecei a pressentir;
E cada livro em que me pegava mo confirmava:
Estava na Biblioteca do Paraíso;
Para todas as perguntas que sempre me atormentaram,
Para todas as sedes de saber que sempre me queimaram,
Estava aqui a resposta e para toda a fome
Guardado aqui o pão do espírito. Pois qualquer
Que fosse o volume a que lançasse um olhar rápido,
Todos tinham títulos cheios de promessas;
Todas as necessidades eram aqui contempladas,
Para serem abertos estavam aqui todos os frutos
Que jamais um aluno, temente, imaginou,
A que jamais um Mestre, ousando, estendeu a mão.
Estava aqui o sentido mais íntimo e mais puro,
Todas as sabedorias, poesias, ciências,
Estava aqui a força mágica de todas as interrogações,
A chave e o vocabulário, estava aqui a mais fina
Essência do espírito, aqui em inauditos
E secretos livros magistrais conservada.
As chaves penetravam toda a espécie
De perguntas e segredos e pertenciam àquele
A quem a graça da hora mágica as oferecia.
Então pousei com mãos trementes
Na mesa de leitura um daqueles volumes,
Decifrei a escrita mágica das imagens,
Como muitas vezes num sonho, a brincar
Entramos pelo desconhecido e com sorte encontramos algo.
E em breve desaparecia pelas regiões consteladas
Do espírito, incrustadas no zodíaco,
Onde tudo quanto do visível em imagens
Pela imaginação dos povos foi visto,
Herança de milénios de experiência
Encontrando-se harmoniosamente em sempre novas
Relações e correlações,
Saberes antigos, imagens simbólicas, descobertas
Sempre novas, questões sublimes.
E assim, ao ler, durante minutos ou horas,
Fiz novamente o caminho de toda a Humanidade
E fiz meu o sentido íntimo e comum
Das mais antigas e das mais modernas descobertas.
Lia e via as figuras simbólicas
Formarem pares, afastarem-se,
Fazerem roda, dispersarem-se,
Emitirem novas constelações,
Figuras simbólicas dum caleidoscópio
Que recebiam um sentido novo, inesgotável.

E como, encandeado com as visões,


Do livro erguesse os olhos para descansar,
Vi que não era ali o único visitante.
Na sala estava um ancião contemplando
Os livros, talvez fosse o bibliotecário
Que eu via na diligência do seu trabalho,
Ocupado com os livros, e assaltou-me a curiosidade
De conhecer esse trabalho zeloso
E que sentido tinha. Este homem velho,
assim o vi, com a mão engelhada e terna
Pegou num livro, leu o que na lombada
Estava escrito, sussurrou com os lábios pálidos
O título – um título entusiasmante,
Prometedor de preciosas horas de leitura! –
Apagou-o com os dedos, ao de leve,
Escreveu sorrindo um novo título,
Completamente diferente, e em seguida
Continuou a andar, tirando um livro aqui,
Outro acolá, os títulos apagando
E escrevendo outros em seu lugar.

Confuso observei-o longamente e voltei,


Já que a minha razão se recusava a entender,
Ao meu livro, onde pouco antes algumas linhas
Tinha lido; mas a sequência das imagens
Que me encantara, já não a encontrei,
Perdera-se e pareceu-me afastar-se
O mundo simbólico onde mal penetrara
E que tratava tão ricamente do sentido do mundo;
Vacilava esse mundo, corria em círculo, parecia turvar-se,
E ao dissipar-se nada mais deixou de si
Do que o brilho pardacento do pergaminho vazio.
No ombro senti então uma mão,
Ergui os olhos e vi ao meu lado
O diligente velho e levantei-me. Sorrindo
Ele pegou no meu livro, um arrepio percorreu-me
Como um calafrio, e o seu dedo deslizou
Como uma esponja por cima dele; no couro limpo
Escreveu novo título, perguntas e promessas,
E numa bela caligrafia, desenhando as letras,
Uma a uma a sua pena deu às mais velhas perguntas
Novas respostas. Depois levou consigo silenciosamente
O livro e a pena.

Servir
No princípio reinavam os virtuosos príncipes
Para consagrarem os campos, o trigo e o arado
E para exercerem o direito de sacrificar e dar a medida
Na carne dos mortais, que tinham sede

Do reino justo do Invisível


Que mantém Sol e Lua em equilíbrio
E cujos vultos de eterna radiância
Não conhecem a dor nem o mundo mortal.

Há muito que a fila sagrada dos filhos dos deuses


Se extinguiu e a Humanidade ficou sozinha
A oscilar entre o prazer e a dor, longe do Ser,
Num devir eterno sem medida nem sagração.

Porém jamais morreu o verdadeiro sentido da vida,


E nossa é a missão de, na decadência, conservarmos
Pelo jogo dos símbolos, pela alegoria e o canto
A exortação do sagrado respeito.

Talvez a escuridão desapareça um dia,


Talvez um dia os tempos se transformem,
E o Sol nos regerá de novo como um Deus,
Aceitando oferendas de nossas mãos.

Bolas de sabão

De estudos e pensamentos de muitos anos


Destila um ancião a sua obra da velhice
Entretecendo-lhe ao longo das gavinhas
Jogos de muita e doce sabedoria.

Cheio de ardor precipita-se um estudante zeloso


Que explorou bibliotecas e arquivos
E a quem a ambição queima
Duma obra de juventude de profundeza genial.

Sentado um rapazinho sopra numa palha


Enchendo de ar bolas de sabão coloridas,
E cada uma brilha como um salmo de louvores:
E a criança entrega toda a sua alma ao sopro.

E todos três, o velho, o rapazinho e o estudante


Da espuma da maya dos mundos criam
Mágicos sonhos que por si nada valem
Mas nos quais sorrindo a Luz eterna
Se reconhece e se inflama mais alegremente.

Depois de ler a Summa contra Gentiles

Outrora era, assim nos parece, mais verdadeira a vida,


O mundo mais ordenado, os espíritos mais claros,
Saber e Ciência ainda não estavam separados.
Viviam mais plenamente, mais alegres aqueles antigos
De quem lemos em Platão, nos chineses
E em todo lado coisas maravilhosas...
Ah! E sempre que entrávamos
No harmonioso templo da Súmula de Aquino
Parecia saudar-nos à distância
O mundo da pura, da doce,
Da sincera verdade:
Tudo nele parecia ser de luz, o espírito
Reinava sobre a natureza, o homem era formado
Para Deus e por Deus, a lei e a ordem
Com belas sentenças proclamadas,
Tudo no conjunto contemplando-se, sem ruturas.
Em vez disso, a nós, tardios, parece-nos
À luta estarmos condenados e a errar pelos desertos,
E à dúvida apenas e às amargas ironias,
Só nos pertencendo as ardentes ânsias e a saudade.

Mas que aconteça o mesmo aos nossos netos:


Ver-nos-ão a outra luz, como santos e sábios,
pois ouvem, dos confusos ecos dos lamentos
Das nossas vidas, apenas ecos de harmonia,
E dos sofrimentos e das lutas passadas, os mitos já contados.
E aquele que de nós ousou menos e mais perguntou
E duvidou, será talvez aquele cuja ação
Mais longe chegará no tempo,
A cuja imagem se faz a juventude;
E aquele que de mais dúvidas sofreu,
Será talvez um dia como santo invejado
Que nunca conheceu necessidade ou medo,
Em cujo tempo viver era um prazer
E cuja felicidade, a felicidade das crianças.

Pois também em nós vive o Espírito eterno


Que em todos os tempos é chamado o Irmão dos Espíritos:
A hoje ele sobrevive, e não tu, nem eu.

Degraus

Assim como as flores murcham e a juventude


Cede à velhice, também os degraus da vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração estar pronto
A despedir-se e a começar de novo
Para, com coragem e sem lágrimas, se dar
A outras novas ligações.
Em todo o começo reside um encanto
Que nos protege e ajuda a viver.
Serenos transponhamos espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum como a um lar;
Ser-nos corrente ou parada não quer o espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.
Mal nos habituamos a um círculo de vida,
íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.

Talvez também a hora da morte


Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da vida nunca tem fim...
Vamos, coração, despede-te e cura-te.

O Jogo das Contas de Vidro

A música do Universo e a música dos Mestres


Estamos prontos a ouvir com respeito,
Conjurando para uma festa de pureza
Os espíritos venerados dos tempos abençoados.

Deixamo-nos guindar pelo mistério


Das fórmulas mágicas em cujo encanto
A imensidão, a tempestade, a vida
Fluíram em límpidos símbolos.

Como as figuras do céu vibram cristalinos


No seu serviço a nosssa vida ganhou sentido
E nada pode dos seus círculos cair
A não ser para o centro sagrado.
OS TRÊS CURRICULA

O fazedor de chuva
Foi há muitos milhares de anos; as mulheres detinham o poder:
na tribo e na família era à mãe e à avó que se testemunhava
respeito e obediência, à nascença uma rapariga valia muito mais que
um rapaz.
Na aldeia havia uma matriarca com cem anos ou mais; todos a
respeitavam e temiam como a uma rainha, embora, tanto quanto
alguém conseguisse lembrar-se, só raramente tivesse de erguer um
dedo ou dizer uma palavra. Era frequente, de dia, estar sentada à
frente da sua cabana, rodeada de parentes que a serviam, e as
mulheres da aldeia vinham testemunhar-lhe respeito, contar-lhe as
suas coisas, mostrar-lhe os filhos e pedir-lhe que os benzesse. As
grávidas iam pedir-lhe que lhes pusesse a mão no ventre e lhes
desse um nome para a criança. A matriarca às vezes impunha a
mão, outras contentava-se com um gesto da cabeça, de aprovação
ou de recusa, salvo quando permanecia imóvel. Raramente falava;
contentava-se em estar ali; encontrava-se ali sentada e, sentada,
reinava com os cabelos branco-amarelados a caírem-lhe em mechas
finas dos lados do seu perfil de águia ressequido e perspicaz.
Sentada, recebia as homenagens, os presentes, os pedidos, as
notícias, os relatórios, as queixas; estava ali sentada e todos sabiam
que era mãe de sete filhas, avó e bisavó de inúmeros netos e
bisnetos; estava ali sentada e as rugas profundas da sua cara e a
sua testa morena continham a sabedoria, a tradição, o direito, a
moral e a honra da aldeia.
Era ao fim da tarde, na primavera; o céu estava coberto e
anoitecia cedo. À frente da cabana de adobe da matriarca não era
ela que estava sentada, mas a filha, que não era menos branca e
menos digna do que ela, e não menos carregada de anos. Estava
sentada e descansava; o seu assento era a soleira da porta, uma
pedra rústica polida, coberta com a pele dum animal quando estava
frio e, num grande semicírculo, lá fora, crianças, mulheres,
rapazinhos pequenos, todos acocorados no chão, na areia ou na
erva. Vinham para ali ao fim da tarde, sempre que não chovia nem
geava, pois queriam ouvir a filha da matriarca contar histórias. Ela
contava histórias ou cantava provérbios. Noutros tempos a matriarca
também o fizera, agora estava velha de mais e já não era
comunicativa. Era a filha que estava ali, no lugar dela, acocorada e a
contar e, assim como aprendera todas as histórias e os provérbios
com a matriarca, herdara dela também a voz, a figura, a dignidade
tranquila da atitude, dos movimentos, da linguagem, e os mais
novos dos ouvintes conheciam-na muito melhor que à mãe e quase
ignoravam já que era em vez de outra que ela se sentava ali e lhes
transmitia as histórias e a sabedoria do clã. Era da sua boca que
corria, nessas tardes, a fonte do saber; ela guardava debaixo dos
cabelos brancos o tesouro da tribo, atrás da testa velha, de rugas
finas, viviam a lembrança e o espírito do povoado. Se alguém sabia
alguma coisa, se conhecia ditados e histórias, devia-o a ela. Tirando
ela e a outra mulher muito velha, havia na tribo só mais uma pessoa
que também sabia, mas essa mantinha-se na sombra; era um
homem misterioso e muito taciturno, o fazedor de tempo ou fazedor
de chuva.
Entre os ouvintes acocorados estava também um rapazinho,
Knecht, e, ao lado dele, uma rapariguinha de nome Ada. Ele gostava
desta rapariguinha e muitas vezes fazia-lhe companhia e protegia-a;
não era verdadeiramente amor, ele ainda não sabia o que isso fosse,
pois era ainda criança; agia assim porque ela era filha do fazedor de
chuva. E a este fazedor de chuva, Knecht respeitava-o e admirava-o
muito, mais do que a qualquer outra pessoa, quase tanto como à
matriarca e à filha. Mas elas eram mulheres. Podia-se honrá-las e
temê-las, não se podia conceber a ideia nem alimentar o desejo de
vir a ser como elas. Ora o fazedor de chuva era um homem bastante
inacessível, a um rapazinho não era fácil permanecer à beira dele;
havia que encontrar maneiras e uma maneira que conduzia até ele
era ser, como Knecht, atencioso para com a filha dele. Ele ia buscá-
la, sempre que podia, à cabana um pouco distante do pai dela, para
a levar a sentar-se, ao fim da tarde, à frente da cabana da velha e
ouvi-la contar histórias e depois trazia-a a casa. Foi o que fez nesse
dia e agora estava acocorado ao lado dela, a ouvir.
Nesse dia a matriarca falava da aldeia das feiticeiras. Contava o
seguinte:
«Às vezes, numa aldeia, há uma mulher má que quer mal a toda a
gente. Geralmente, estas mulheres não têm filhos. Às vezes essas
mulheres são tão más que a aldeia não as quer ter consigo. Então,
vão buscar essa mulher durante a noite, atam o marido, chicoteiam
a mulher com uma vergasta, depois expulsam-na para longe, para
as florestas e os pântanos; pronunciam contra ela uma maldição e
abandonam-na. Soltam então o homem e, se ele ainda não for
muito velho, pode ficar com outra mulher. Mas a que foi expulsa, se
não morrer, erra pelas florestas e pelos pântanos, aprende a língua
dos animais e, depois de muito errar e caminhar, um dia encontra
uma aldeiazinha: é a aldeia das bruxas. Foi lá que todas as mulheres
más que foram expulsas das suas aldeias se juntaram e construíram
uma aldeia para elas. É lá que vivem, que fazem o mal e praticam a
magia. Ou seja, como não têm filhos, gostam de atrair as crianças
das aldeias verdadeiras e, quando um menino se perde na floresta e
nunca mais volta, então é possível que não se tenha afogado no
pântano e que um lobo o não tenha feito em bocados, mas que uma
feiticeira o tenha atraído para o mau caminho e levado para a sua
aldeia. Quando eu era pequena e a minha avó era a mais velha, uma
menina foi uma vez às uvas-do-monte com as outras e, enquanto
andava a colhê-las, sentiu-se cansada e adormeceu; era muito
pequenina, os fetos tapavam-na e as outras raparigas afastaram-se
para mais longe e só quando chegaram à aldeia, já de noite, é que
deram conta de que faltava a rapariga. Mandaram os rapazes novos
à procura dela e eles puseram-se a chamar por ela até ser noite,
depois voltaram, sem a terem encontrado. Ora, a rapariguinha,
depois de ter dormido bastante, metera-se cada vez mais pela
floresta adentro. E quanto mais medo sentia, mais corria, mas já há
muito tempo que não sabia onde estava e afastava-se cada vez mais
da aldeia para sítios onde nunca ninguém havia ido. À volta do
pescoço tinha um dente de javali preso por um fio de ráfia. Fora o
pai que lho dera; trouxera-o da caça e com uma pedra lascada
fizera-lhe um furo por onde se podia meter o fio e, antes disso,
pusera a ferver três vezes o dente no sangue do javali, cantando
rezas que fazem bem; quem trouxesse um dente como aquele
estava protegido contra muitos bruxedos. Então, uma mulher saiu do
meio das árvores, era uma bruxa, que fez uma cara muito doce e
disse: «Olá, minha menina, perdeste-te no caminho? Anda comigo
que eu levo-te a casa.» A menina foi com ela. Mas lembrou-se do
que a mãe e o pai lhe tinham dito: nunca devia mostrar a um
desconhecido o seu dente de javali e, enquanto caminhava,
desprendeu o dente de javali sem que a outra desse por isso e
escondeu-o no cinto. A desconhecida caminhou durante horas com a
rapariga, já era noite quando chegaram à aldeia, mas não era a
nossa, era a das bruxas. Lá, a menina foi fechada numa corte sem
luz mas a bruxa foi dormir na sua cabana. De manhã, a bruxa disse:
«Não trazes um dente de javali contigo?», ao que a menina
respondeu: «Não, tinha um mas perdi-o na floresta», e mostrou o
seu colarzinho de ráfia, no qual já não estava pendurado nenhum
dente. Então a bruxa foi buscar um vaso de pedra com terra, e nesta
terra cresciam três plantas. A menina olhou para elas e perguntou o
que eram. A bruxa mostrou a primeira planta e disse: «É a vida da
tua mãe.» Depois mostrou a segunda e disse: «Esta é a vida do teu
pai.» Depois mostrou a terceira: «E esta é a tua vida. Enquanto
estas plantas estiverem verdes e crescerem, vós vivereis e tereis
saúde. Se uma murchar, então a pessoa que representa adoece. Se
uma planta for arrancada, como agora vou arrancar esta aqui, então
a pessoa cuja vida representa morre.» Agarrou com os dedos a
planta que representava a vida do pai da menina e começou a puxar,
e, quando já a tinha arrancado um bocado e se via uma parte da
raiz branca, a planta soltou um suspiro fundo...»
A estas palavras a rapariguinha sentada ao lado de Knecht
ergueu-se dum salto, como se uma serpente a tivesse mordido,
soltou um grito e fugiu a sete pés. Há muito que lutava contra o
medo que lhe causava esta história e agora não tinha sido capaz de
a aguentar mais. Uma mulher velha pôs-se a rir. Entre os ouvintes
havia quem não tivesse menos medo que a rapariga mas eles
contiveram-se e deixaram-se ficar sentados. Knecht, logo que
acordou completamente do sonho deste conto e do seu medo,
levantou-se também num salto e correu atrás da rapariguinha. A
matriarca continuou a contar.
O fazedor de chuva tinha a sua cabana perto do poço da aldeia e
foi nessa direção que Knecht procurou a fugitiva. Murmurando,
cantando, cantarolando duma maneira atraente e apaziguadora,
tentava tranquilizá-la, imitava uma mulher a chamar as galinhas,
fazia a voz arrastada e doce, de quem quer encontrar. «Ada»,
gritava e cantava ele, «Ada, Adinha, anda cá, Ada, não tenhas
medo, sou eu, Knecht.» Cantou assim sem parar e, antes mesmo de
a ter visto ou ouvido, sentiu de repente a sua mão mole agarrar-lhe
a sua. Ela estava parada à beira do caminho, encostada à parede
duma cabana e ficara à espera dele depois de os seus apelos lhe
terem chegado ao ouvido. Apertou-se, com um suspiro de alívio,
contra este rapaz que lhe parecia já grande e forte como um
homem.
– Tiveste medo? – perguntou-lhe ele. – Não é preciso ter medo,
ninguém vai fazer-te mal, toda a gente gosta muito de ti, Ada. Anda,
vamos para casa.
Ela ainda tremia e soluçava um pouco, mas já estava calma e
acompanhou-o, cheia de gratidão e confiança.
Para lá da porta da cabana luzia uma luz vermelha fraca. O
fazedor de chuva estava acocorado lá dentro, à frente da lareira. Um
clarão vermelho filtrava-se através dos seus cabelos caídos;
acendera a lareira e tinha a cozinhar qualquer coisa em dois potes
pequenos. Antes de entrar com Ada, Knecht ficou a olhar
curiosamente durante alguns instantes, de fora. Viu logo que não
era comida o que estava a ser cozinhado; a comida fazia-se noutros
potes, e de resto já era tarde de mais para isso. Mas o fazedor de
chuva ouvira-o. – Quem está aí à porta? – exclamou. – Entra!
Chega-te! És tu, Ada? – Tapou os potes pequenos com os testos,
rodeou-os com brasas e cinzas e voltou-se.
Knecht estava ainda de olhos presos naqueles potes misteriosos,
cheio de curiosidade, de respeito e temor, como sempre que entrava
naquela cabana. Fazia-o sempre que podia, inventava para isso mil
pretextos e ocasiões, mas sentia sempre essa sensação meio
excitante, meio alarmante, uma angústia ligeira em que a
curiosidade e o prazer da cobiça lutavam contra o medo. O velho
não podia ter deixado de reparar que Knecht há muito o seguia,
passo a passo, e aparecia sempre por perto do sítio onde podia
supor que ele estivesse; seguia-lhe o rasto como um caçador e
oferecia-lhe em silêncio os seus serviços e a sua companhia.
Turu, o fazedor de chuva, fitou-o com os seus olhos claros de ave
de rapina. – Que vens fazer aqui? – perguntou-lhe friamente. – Não
é altura de fazer visitas às cabanas dos outros, pequeno.
– Trouxe Ada, mestre Turu. Ela estava na matriarca, estávamos a
ouvir histórias, as das bruxas, e de repente ela teve medo e pôs-se a
gritar, então eu vim trazê-la.
O pai voltou-se para a pequena: – És uma medricas, Ada. As
raparigas inteligentes não têm medo das bruxas. E tu és uma
rapariga inteligente, és ou não és?
– Sou! Mas as bruxas só sabem fazer coisas más, e quando não se
tem um dente de javali...
– Ah! Querias ter um dente de javali? Havemos de ver isso. Mas
sei duma coisa que ainda é melhor. Sei duma raiz, que te hei de
trazer, é só ir procurá-la e arrancá-la no outono; protege as meninas
inteligentes de todos os bruxedos e até as faz ainda mais bonitas.
Ada sorriu, contente. Estava já acalmada depois que o cheiro da
sua cabana e a luz fraca do fogo da lareira a rodeavam. Knecht
perguntou timidamente: – Não podia ir eu procurar essa raiz? Se ma
descrevesses...
Turu piscou os olhos. – Isso, muitos rapazes gostariam de o saber

disse, mas a sua voz não era maldosa, apenas um pouco trocista. –
Não há pressa. No outono, talvez.
Knecht foi-se embora e dirigiu-se para a cabana dos rapazes, onde
dormia. Não tinha pai nem mãe, era órfão e era também por isso
que Ada e a sua cabana tinham para ele qualquer coisa de mágico.
Turu, o fazedor de chuva, não gostava de falas; não se punha a
ouvir o que ele próprio dizia e muito menos os outros, muitos
achavam-no esquisito, outros desagradável. Não era. Em todo o
caso, estava mais bem informado do que se passava à sua volta do
que a sua atitude distraída de sábio e de eremita deixavam entrever.
Sabia exatamente, entre outras coisas, que aquele rapazinho um
pouco importuno, mas bonito e manifestamente inteligente, o seguia
e o observava. Tinha dado conta logo desde o princípio, há mais
dum ano que isso durava. Também sabia muitíssimo bem porquê.
Era uma coisa que era muito importante para aquele rapaz e
também para si que era velho. Tudo queria dizer que o rapaz tinha
uma inclinação para o ofício de fazedor de chuva e que aprendê-lo
era o seu desejo mais ardente. Havia sempre um rapaz igual àquele
no passado. Mais do que um tinha-se já aproximado dele. Muitos
eram fáceis de assustar e de desencorajar, outros não, e, durante
anos, tivera já um ou dois como alunos e aprendizes, que em
seguida se tinham ido casar longe, noutras aldeias, e lá se haviam
tornado fazedores de chuva ou herbanários. Mas depois disso Turu
ficara sozinho, e, se ainda viesse a aceitar um aprendiz, seria para
um dia ter um sucessor. Sempre fora assim, era assim que devia ser
e não podia ser doutra maneira: era preciso que surgisse um rapaz
dotado, que se ligasse ao homem em quem via um mestre da arte e
corresse atrás dele. Knecht possuía dons, tinha o que era preciso, e
certos sinais também o recomendavam: sobretudo o seu olhar
interrogativo, ao mesmo tempo penetrante e sonhador, discrição e
silêncio de maneiras e, na expressão do rosto e da cabeça, um ar de
procurar, de farejar, uma vigilância, uma atenção aos ruídos e aos
cheiros igual à das aves e do caçador. Este rapaz podia com toda a
certeza tornar-se um conhecedor do tempo, talvez mesmo um
mágico, podia-se fazer qualquer coisa dele. Mas havia tempo. Ainda
era muito novo e não era de modo nenhum necessário mostrar-lho;
o facto de lhe reconhecer o valor não devia facilitar-lhe demasiado
as coisas, não havia que poupar-lhe passo nenhum. Se se deixasse
intimidar, atemorizar, desgostar, desencorajar, então pior para ele.
Que esperasse, prestasse serviços, que andasse por ali de mansinho
e lhe fizesse a corte.
Knecht foi-se embora a passear na noite que caía dum céu
coberto onde brilhavam duas ou três estrelas. Estava satisfeito e
agradavelmente excitado. De todos os prazeres, de todas as belezas
e refinamentos que para nós, hoje, são evidentes, que nos são
indispensáveis e que até os mais pobres têm, este povoado não
conhecia nenhum. Ignorava tanto a cultura pessoal como as artes,
ignorava outras moradias além das suas cabanas de adobe todas
tortas, ignorava as ferramentas de ferro e aço e até coisas como o
trigo ou o vinho lhe eram desconhecidas. Invenções como a candeia
ou a lamparina teriam sido para esses homens prodígios espantosos.
A vida de Knecht e o universo das suas representações não eram
menos ricos por isso: o mundo rodeava-o, um mistério e um livro de
imagens infinito. Ele conquistava, em cada novo dia, uma pequena
mas nova porção, desde a vida dos animais e do crescimento das
plantas até ao firmamento e, entre essa misteriosa natureza muda e
a alma solitária que respirava no seu coração inquieto de criança,
existia todo o parentesco e também toda a tensão, angústia,
curiosidade, gosto de assimilação de que é capaz a alma humana.
Se no seu universo não havia um saber escrito, uma história, um
livro, um alfabeto, se tudo o que ficava a mais de duas ou três horas
do caminho da sua aldeia lhe era absolutamente desconhecido, fora
do alcance, em contrapartida, partilhava totalmente, plenamente, da
vida da sua aldeia. Esta aldeia, este torrão natal, esta comunidade
tribal dirigida pelas mães davam-lhe tudo o que podem dar ao
homem o seu povo e o seu Estado: uma terra cheia de mil raízes, de
cujo tecido ele era uma fibra e na qual participava de tudo.
Ia-se embora a passear, satisfeito. O vento da noite murmurava
nas árvores com estalidos leves, cheirava a terra húmida, a canavial
e a lama, a fumo de lenha ainda verde, um cheiro forte e um pouco
adocicado que, mais do que qualquer outro, era sinónimo de torrão
natal, e finalmente, já perto da cabana dos rapazes, o cheiro da
cabana: cheirava a rapazes, a corpos jovens. Sem barulho, deslizou
por baixo da cortina de canas, mergulhou na escuridão quente,
cheia de bafos, estendeu-se na palha e pensou na história das
bruxas, no dente de javali, em Ada, no fazedor de chuva e nos seus
potinhos postos ao lado do fogo, até que adormeceu.
Turu ia ao encontro do rapaz com passos mais do que
parcimoniosos, não lhe facilitava as coisas. Mas o jovem ia-lhe
sempre na cola; algo naquele homem velho o atraía; nem ele
próprio muitas vezes sabia como. Às vezes, quando o velho, num
sítio muito escondido da floresta, do pântano ou do matagal,
colocava uma armadilha, farejava o rosto dum animal, desenterrava
uma raiz ou juntava grãos, acontecia-lhe sentir de repente o olhar
daquele rapaz que o seguia há horas, invisível e sem ruído, e que o
espiava. Então, algumas vezes, fingia que não via, outras
resmungava e escorraçava o seu perseguidor com irritação, outras
ainda fazia-lhe sinal para se aproximar e ficava com ele até o dia
chegar ao fim; punha-o a fazer-lhe recados, mostrava-lhe isto e
aquilo, levava-o a adivinhar, punha-o à prova, dizia-lhe os nomes das
plantas, ordenava-lhe que fosse buscar água ou acendesse o fogo, e
para cada uma destas operações ele conhecia truques, processos,
segredos, fórmulas, cujo segredo obrigava o rapaz a manter. E por
fim, quando Knecht era já um pouco maior, ficou com ele,
reconheceu-o como seu aprendiz e foi buscá-lo à cabana onde
dormiam os rapazes e instalou-o na sua. E isto distinguiu Knecht aos
olhos de todos: já não era uma criança, era aprendiz do fazedor de
chuva, o que queria dizer que, se se aguentasse e valesse alguma
coisa, seria o seu sucessor.
A partir do momento em que o velho levou Knecht para a sua
cabana, a barreira que os separava caiu. Não a do respeito e da
obediência, mas a da desconfiança e da reserva. Turu cedera e
deixara-se conquistar pelos avanços tenazes de Knecht; dali em
diante pensou só em fazer dele um bom fazedor de chuva e seu
sucessor. Para este ensino não existiam nem conceitos, nem
doutrina, nem método, nem textos, nem números, mas apenas
poucas palavras; eram os sentidos de Knecht, bem mais de que o
seu entendimento, o que o mestre formava. Tratava-se não só de
administrar e utilizar, mas transmitir um tesouro considerável de
tradições e experiência, toda a ciência da Natureza que então o
homem possuía. Um vasto sistema complexo de noções,
observações, instintos e hábitos de investigador abriu-se lentamente,
na penumbra, para os olhos do adolescente. Disso, quase nada
havia sido reduzido a conceitos, os sentidos é que tinham de seguir,
aprender, verificar quase tudo. Mas a base e o centro desta ciência
eram o conhecimento da Lua, das suas fases e da sua ação. Era
preciso saber que ela inchava regularmente e diminuía
regularmente, povoada pelas almas dos mortos que mandava
renascer para darem lugar a outros mortos.
Do mesmo modo que a tarde que o conduzira da contadora de
histórias aos potes colocados junto à lareira do velho, uma outra
hora gravou-se na memória de Knecht, uma hora intermédia entre a
noite e a manhã, em que o mestre o acordou duas horas depois da
meia-noite e saiu com ele para as trevas profundas, para lhe mostrar
o último nascer do quarto crescente que estava já a diminuir.
Esperaram então um longo momento, o mestre imóvel e silencioso,
o jovem com um pouco de angústia, arrepiado com falta de sono, no
meio das colinas cobertas de florestas, em cima duma rocha plana e
isolada até que no sítio indicado previamente pelo mestre, na forma
e com a inclinação que ele descrevera de antemão, a Lua surgiu,
delgada, como um risco levemente arqueado. Dominado pela
angústia e pelo encanto, Knecht olhou fixamente para a lenta
ascensão do astro que progredia, pairando docemente no meio das
trevas das nuvens, numa ilha de azul-noturno.
– Em breve vai mudar de forma e inchar outra vez e então será o
momento de plantar o trigo miúdo – disse o fazedor de chuva,
contando antecipadamente os dias pelos dedos. Então caiu
novamente no seu antigo silêncio. E, como se o tivesse deixado
sozinho, Knecht ficou acocorado na pedra que brilhava de humidade
tremendo de frio. Do fundo dos bosques, um longo piar dum mocho
subiu até eles. O velho meditou muito tempo, depois ergueu-se,
pousou a mão nos cabelos de Knecht e disse-lhe muito baixo, como
se saísse dum sonho: – Quando eu morrer, o meu espírito voará
para a Lua. Tu serás então um homem e terás uma mulher: a minha
filha Ada será a tua mulher. Quando ela tiver um filho de ti, o meu
espírito voltará e habitará no vosso filho e chamar-lhe-ás Turu, como
eu me chamo Turu.
O aprendiz escutou-o com estupor, não ousou dizer nada. O
delgado crescente de prata elevava-se, estava já meio engolido
pelas nuvens. Uma premonição estranha apoderou-se do jovem, o
pressentimento de relações e conexões numerosas, de repetições e
de cruzamentos entre as coisas e os acontecimentos; achou-se
estranhamente colocado, ao mesmo tempo espectador e ator,
perante aquele céu noturno desconhecido, onde, por cima das
florestas imensas e das colinas, o delgado crescente aparecera,
anunciado previamente com precisão pelo mestre. Achou que o
mestre era prodigioso, completamente envolvido em segredos, o
mestre que pensava na sua própria morte, o mestre cujo espírito ia
passar um tempo na Lua e voltaria para dentro dum homem que
seria o filho de Knecht e que deveria ter o nome do mestre defunto.
Tal como o céu coberto de nuvens, o futuro, o destino, pareciam
soltar-se por obra dum prodígio, transparentes em alguns pontos à
sua frente, e o facto de se poder saber alguma coisa sobre eles, dar-
lhes nomes e falar deles, era como mergulhar o olhar em espaços
sem fim, cheios de maravilhas onde, apesar de tudo, a ordem
reinava. Num momento pareceu-lhe que o espírito podia aprender
tudo, saber tudo, espiar tudo, o passo leve e seguro dos astros lá
em cima, pondo a vida dos homens e dos animais, as suas uniões e
as suas hostilidades, os seus encontros e as suas lutas, todas as
grandezas e pequenezas, como também a morte contida em cada
ser vivo; viu ou sentiu isso tudo num primeiro arrepio premonitório,
como um conjunto onde também ele estava inserido e
compreendido, parte desse todo perfeitamente ordenado, regido por
leis, acessível ao espírito. Foi o primeiro pressentimento dos grandes
mistérios, da dignidade e da profundidade dos mistérios, bem como
da possibilidade de os conhecer, que, na frescura silvestre daquela
noite, quase manhã, em cima daquela rocha que dominava os
milhares de copas rumorejantes das árvores, aflorou o adolescente
como a mão dum espírito. Não pôde falar disso nem então nem em
toda a sua vida, mas teve de pensar nisso muitas vezes. Enquanto
continuou a aprender e a ganhar experiência foram sempre esta
hora e a sua emoção que teve presentes no espírito. «Pensa»,
advertiam-no elas, «pensa que há isto tudo, que entre a Lua e tu, e
Turu e Ada, passam raios e correntes, que há a morte e a terra das
almas e o regresso de lá de cima e que para todas as imagens e
para todos os fenómenos do universo há uma resposta no fundo do
teu coração, que tudo te diz respeito, que sobre isso tudo deverias
saber tanto quanto é possível ao homem.» Foi isto, mais ou menos,
o que lhe disse a voz. Foi a primeira vez que Knecht ouviu falar
assim o espírito, que recebia o seu chamamento, as suas exigências,
a sua solicitação mágica. Vira já muitas Luas errarem pelo céu e
ouvira, à noite, muitos mochos piarem e, da boca do seu mestre,
por pouco loquaz que fosse, ouvira já muitos discursos inspirados
por uma sabedoria antiga ou por considerações solitárias, mas
naquela hora presente tudo fora novo e diferente, tocara-o o
pressentimento do todo, o sentimento das relações, da ordem que o
englobava e o tornava também responsável. Quem tivesse a chave
de tudo isto não deveria estar só em condições de reconhecer um
animal pelo rasto, uma planta pelas raízes ou os grãos, mas deveria
poder também apreender a totalidade do universo: abarcar os
astros, os espíritos, os homens, os animais, os remédios e os
venenos, tudo, na sua totalidade, e decifrar em cada elemento, em
cada signo, todas as outras partes. Havia bons caçadores que dum
rasto, dos restos deixados, dum pelo ou dum vestígio, sabiam
deduzir mais do que outros: por alguns pelos pequenos reconheciam
não apenas de que espécie de animal provinham, mas também se
era jovem ou velho, macho ou fêmea. Outros, pela forma duma
nuvem, dum cheiro no ar, do comportamento especial dos animais
ou das plantas, descobriam com dias de antecedência o tempo que
iria fazer; neste domínio o seu mestre não tinha igual e era quase
infalível. Havia ainda outros que possuíam um jeito inato: havia
rapazes capazes de, a trinta passos, acertarem num pássaro com
uma pedra. Não o tinham aprendido, sabiam-no muito
simplesmente. Não era o resultado dum esforço, mas dum encanto
ou duma graça: a pedra que tinham na mão voava sozinha, essa
pedra queria chegar ao seu alvo, o pássaro queria ser atingido.
Dizia-se que havia outros que conheciam o futuro com antecedência:
sabiam se um doente ia morrer ou não, se uma mulher grávida daria
à luz um rapaz ou uma rapariga; a filha da matriarca era célebre por
isso, e dizia-se que o fazedor de chuva possuía também um pouco
desse saber. Ora, naquele momento parecia a Knecht que na
gigantesca rede das relações devia haver um centro donde se podia
saber, ver e decifrar todo o passado e todo o futuro. Quem se
encontrasse nesse ponto central deveria ver o conhecimento vir-lhe
como o vale vê vir a água e a couve a lebre. A sua palavra atingiria o
alvo, tão cortante e tão infalível como a pedra saída da mão do
lançador de elite. Por meio da força do espírito, deveria reunir em si
e deixar agir todos esses dons particulares, todas essas capacidades.
Esse seria o homem perfeito, sábio, sem rival! Ser como ele,
aproximar-se dele, estar no caminho que conduzia a ele, era o
objetivo, era o que dava a uma vida consagração e sentido. Tais
eram mais ou menos os seus sentimentos, e o que deles tentamos
dizer na nossa linguagem de conceitos, que ele não conhecia, não
pode exprimir nada do arrepio dos seus pensamentos e do ardor da
sua emoção. A lembrança de se levantar em plena noite, de ser
conduzido através da floresta escura e silenciosa, cheia de perigos e
segredos, a espera em cima da placa rochosa, ao frio da manhã, a
aparição daquele delgado fantasma de Lua, as palavras
parcimoniosas do sábio, aquela conversa a dois com o mestre
naquela hora insólita, tudo isso Knecht o revivia e conservava na sua
memória como uma festa e um mistério, a festa da sua iniciação, da
sua admissão numa aliança e num culto, do seu acesso ao direito de
servir com honra o que não tinha nome, o mistério do universo. Esta
emoção e muitas outras análogas não podiam tornar-se
pensamentos, nem, com mais forte razão, palavras, e uma ideia
mais longínqua e mais impossível ainda do que qualquer outra foi
mais ou menos a seguinte: «Sou eu sozinho que crio esta emoção
ou ela é uma realidade objetiva? O mestre sente a mesma coisa ou
sorri-se de mim? Os meus pensamentos, quando sinto isto, são
novos, pessoais, únicos, ou o mestre e muitos outros antes dele
conheceram e pensaram um dia exatamente a mesma coisa?» Não,
estas refrações e estas diferenciações não existiam, era tudo real,
tudo estava impregnado e cheio de realidade, como a massa dum
pão o estava de fermento. As nuvens, a Lua e o teatro variável do
céu, o calcário molhado e frio debaixo dos seus pés nus, o frio
húmido, escorrendo de humidade na brisa da noite baça, esse cheiro
consolador e familiar do fumo da lareira e da enxerga de folhas que
se mantinha preso à pele de animal em torno dos rins do mestre, a
sua dignidade e, na sua voz rouca, aquela leve vibração da idade e
da espera da morte, tudo isso era mais do que real e impunha-se
quase com violência aos sentidos do adolescente. E para as
lembranças, as impressões dos sentidos constituem um húmus mais
profundo que os melhores sistemas e métodos de pensamento.
O fazedor de chuva pertencia, é verdade, ao pequeno número de
homens que exerciam uma profissão e que, por sua própria
iniciativa, tinham desenvolvido uma arte especial, uma capacidade.
Mas a sua vida quotidiana não diferia, exteriormente, da de todos os
outros. Era um alto funcionário e gozava da consideração da tribo,
recebia também dela considerações e um salário de cada vez que
tinha de trabalhar para a comunidade, mas isso só acontecia em
circunstâncias particulares. A sua função, de longe a mais
importante e mais solene, que se revestia mesmo de um carácter
sagrado, consistia em fixar, na primavera, o dia das sementeiras para
cada espécie de sementes e de plantas. Ele fazia-o tendo
estritamente em conta o estado da Lua, em parte segundo as regras
que tinha herdado, em parte segundo a sua própria experiência. Mas
o ato solene do início das sementeiras propriamente dito, o gesto de
lançar à terra da comunidade o primeiro punhado de grão e de
sementes ultrapassava já as suas funções. Nenhum homem ocupava
uma posição bastante elevada para isso. Todos os anos era a
matriarca em pessoa, ou as suas parentas de mais idade, quem o
realizava. O mestre tornava-se a personagem mais importante da
aldeia quando tinha de fazer realmente a função de fazedor de
chuva. Isso acontecia quando uma longa seca, a humidade ou o frio
persistiam nos campos e ameaçavam a tribo de fome. Então, Turu
devia utilizar os remédios conhecidos contra a falta de água e a má
colheita: os sacrifícios, as conjurações, as procissões. Segundo a
lenda, quando nenhum outro procedimento resolvia uma seca
persistente ou uma chuva sem fim e os espíritos não se deixavam
convencer nem pelas conjurações nem pelas lamentações ou as
ameaças, existia ainda um último meio infalível que, dizia-se, fora
utilizado com bastante frequência no tempo das mães e das avós: a
imolação do próprio fazedor de chuva pela comunidade. Contava-se
que a matriarca ainda conhecera e tinha assistido a isso.
Para lá do cargo de se ocupar com o tempo, o mestre tinha ainda
uma espécie de atividade privada: conjurava os espíritos,
confecionava amuletos e feitiços e servia em certos casos como
médico, na medida em que a matriarca não reservava para si esse
privilégio. Mas, de resto, o mestre Turu fazia a vida de qualquer
outro. Ajudava, quando era a sua vez, a cultivar o terreno da
comunidade e tinha também ao lado da sua cabana as suas
pequenas plantações pessoais. Juntava frutos, cogumelos, lenha e
conservava-os. Ia à pesca e à caça, mantinha uma cabra ou duas.
Era um camponês como todos os outros, mas quando se tratava de
caçar, pescar e procurar plantas, não era igual a nenhum outro
qualquer: era um original e um génio e tinha reputação de conhecer
um ror de manhas, capturas, truques de mão e de astúcias naturais
e mágicas. Dizia-se que dum laço de vime feito por ele nenhum
animal apanhado conseguia escapar-se. Sabia, por meios
particulares, dar perfume e gosto aos engodos para os peixes, tinha
o jeito de atrair a si os lagostins e havia quem acreditasse que
também compreendia a língua de muitos animais. Mas o seu
verdadeiro domínio continuava a ser, no entanto, o da sua ciência
mágica: a observação da Lua e das estrelas, o conhecimento dos
sinais do tempo, a premonição das intempéries e do crescimento das
plantas, a prática de tudo quanto servia de meio auxiliar para obter
resultados mágicos. Assim era que tinha reputação de conhecedor e
colecionador das formas do mundo vegetal e animal que podiam
servir de remédio e de veneno, de veículos para os sortilégios e as
bênçãos e de meios de proteção contra os espíritos hostis. Conhecia
e descobria cada planta, mesmo a mais rara. Sabia onde e quando
florescia e dava semente, quando era o momento de lhe desenterrar
a raiz. Conhecia e encontrava todas as espécies de serpentes e
sapos; sabia como utilizar cornos, cascos, unhas, pelos, percebia de
deformidades, malformações, formas terríveis devidas aos maus
espíritos, tuberosidades, excrescências, bolhas na madeira, na folha,
no grão, na noz, no corno e no casco.
Knecht tinha mais a aprender por intermédio dos sentidos, com os
pés e com as mãos, com os olhos, com o tato, o ouvido e o cheiro,
do que com o entendimento, e Turu ensinava-o bem mais com o
exemplo e a demonstração do que por meio de palavras e teorias.
Era raro, de resto, que o mestre pronunciasse palavras coerentes e,
mesmo assim, as suas falas eram apenas uma tentativa de tornar
mais claras ainda as suas mímicas extraordinariamente prementes. A
aprendizagem de Knecht não diferia da que um jovem pescador ou
um jovem caçador pode fazer com um bom mestre, e era para ele
uma grande alegria, pois só aprendia aquilo para que tinha já
inclinações. Aprendia a vigiar, a escutar, a aproximar-se
furtivamente, a observar atitudes de alerta e de vigília, a identificar
rastos pelo cheiro e pela vista. Mas a caça que espiavam, ele e o
mestre, não era apenas a raposa e o texugo, a víbora e o sapo,
pássaros e peixes, era o espírito, o todo, as significações, as
relações. O que procuravam era determinar, referenciar, adivinhar e
saber antecipadamente o tempo fugaz e caprichoso, a conhecer a
morte à espreita numa baga ou na mordedura duma cobra, a
desvendar o segredo segundo o qual as nuvens e as tempestades
estavam em relação com as fases da Lua e influíam nas sementeiras
e no crescimento das plantas, bem como na prosperidade e nos
males que marcavam a vida do homem e do animal. O seu esforço
neste ponto tinha, para dizer a verdade, o mesmo objetivo que a
ciência e a técnica dos milénios ulteriores: o domínio da Natureza e
o poder de jogar com as suas leis, mas procediam duma maneira
completamente diferente. Não estabeleciam uma separação entre
eles e a Natureza, não tentavam penetrar nos seus segredos pela
violência; nunca se lhe opunham nem a hostilizavam, permaneciam
sempre um dos seus elementos e alimentavam por ela uma
dedicação cheia de respeito. É permitido pensar que a conheciam
melhor e que a tratavam mais inteligentemente. Mas havia uma
coisa que lhes era totalmente impossível, inclusivamente nos seus
pensamentos mais temerários: estarem devotamente ligados,
submetidos à natureza e ao mundo dos espíritos sem sentirem medo
ou, com mais forte razão, julgarem-se superiores a eles. Esta hybris
era inconcebível e ter-lhes-ia parecido impossível ter outras relações
do que as do medo com as potências da Natureza, da morte e dos
demónios. Era o temor que dominava a vida dos homens, vencer o
medo não parecia ser possível. Mas era possível apaziguá-lo, limitá-
lo a certas formas, enganá-lo, impor-lhe uma máscara e fixar-lhe um
lugar no conjunto da vida: era para isso que serviam os diferentes
sistemas de sacrifícios. O medo pesava sobre a vida dos homens e
sem essa pressão poderosa a sua vida teria perdido, claro, os seus
terrores, mas também a sua intensidade. Conseguir elevar até ao
respeito uma parte do medo era um grande passo. Os homens que o
tinham feito, aqueles cujo medo se transformara em piedade, eram
os indivíduos de valor, os elementos mais avançados da época.
Faziam-se muitos sacrifícios e nas mais variadíssimas formas e uma
parte deles e dos seus ritos eram da competência do fazedor de
chuva.
Ao lado de Knecht, a pequena Ada crescia na cabana. Era uma
criança linda, a preferida do velho, e quando este achou que
chegara a altura, deu-a como mulher ao seu aluno. A partir daí
Knecht foi considerado como auxiliar do fazedor de chuva. Turu
apresentou-o à mãe da aldeia como seu genro e seu sucessor e, a
partir dessa data, fez-se substituir por ele em muitas operações e
atos oficiais. Pouco a pouco, por força das estações e dos anos, o
velho fazedor de chuva caiu completamente na solidão
contemplativa dos velhos, abandonou-lhe todas as suas funções, e
quando morreu – encontraram-no morto, acocorado junto à lareira,
debruçado sobre uns potinhos cheios duma mistura mágica, tinha os
cabelos brancos crestados pelo fogo –
há muito que o homem, o aluno Knecht, era conhecido na aldeia
como fazedor de chuva. Reclamou no conselho exéquias que
honrassem o seu mestre e queimou em sacrifício sobre a sua campa
toda uma carga de plantas medicinais e raízes raras e odoríferas.
Também isto fora já num passado longínquo e entre os filhos de
Knecht, que, sendo vários, tornavam já acanhada a cabana de Ada,
havia um rapaz que tinha o nome de Turu. Fora nele que o velho
regressara da viagem que a morte o obrigara a fazer à Lua.
Knecht conheceu a vida que tinha sido anteriormente a do seu
mestre. Uma parte do seu medo transformou-se em piedade e
espiritualidade. Uma parte das suas aspirações juvenis e da sua
profunda saudade permaneceu viva, outra morreu e perdeu-se com
a idade no trabalho, no amor e nos cuidados que tinha com Ada e os
filhos. Era sempre para a Lua que ia o seu afeto mais vivo, para a
Lua que estudava com mais empenho, bem como a sua influência
nas estações e nas intempéries; neste domínio igualou o seu mestre
Turu e, no fim, ultrapassou-o. E, como o crescimento e a diminuição
da Lua estavam muito intimamente ligados com a morte e o
nascimento dos humanos e, de todas as angústias em que viviam, o
medo da morte inelutável era o mais profundo, o adorador e o
conhecedor da Lua que Knecht era teve também, graças às suas
relações estreitas e vivas com esse astro, relações sagradas e mais
puras com a morte. Foi, na sua idade madura, menos sujeito que
outros ao medo de morrer. Era capaz de falar à Lua a linguagem do
respeito, da súplica ou da ternura, sabia que lhe estava ligado por
ternas relações espirituais, conhecia muito exatamente a vida dela e
participava muito intimamente nas suas aventuras e no seu destino,
vivia a sua diminuição e a sua renovação como um mistério, sofria
com ela, era dominado pelo terror quando um fenómeno
monstruoso se produzia e ela parecia exposta a doenças e perigos,
transformações e degradações, quando perdia o brilho e mudava de
cor, quando se ensombrava quase até extinguir-se. É verdade que
nesses momentos toda a gente participava na vida da Lua, tremia
por ela, reconhecia no seu escurecimento uma ameaça e a iminência
dum acontecimento funesto e fixava, cheia de angústia, o seu velho
rosto doente. Mas era justamente então que se revelava que Knecht,
o fazedor de chuva, estava mais intimamente ligado de que os
outros à Lua e que sabia mais sobre ela. Claro, partilhava os
sofrimentos do seu destino com o coração apertado de medo, mas
as suas recordações de acontecimentos análogos eram mais vivas e
mais bem mantidas, a sua confiança mais solidamente fundada; a
sua fé na eternidade e no retorno dos factos, na possibilidade de
corrigir e vencer a morte era maior, e maior também a sua devoção.
Em tais instantes sentia-se capaz de viver o destino desse astro até
ao seu desaparecimento e ao seu renascimento; às vezes sentia
mesmo uma espécie de desejo impertinente, uma espécie de
coragem e de resolução temerárias de desafiar a morte por meio do
espírito, de ganhar força dedicando-se a destinos sobre-humanos.
Isso influenciava um pouco a sua maneira de ser e os outros
apercebiam-se: a sua reputação era de ser um homem sábio,
piedoso, uma pessoa dotada duma grande calma, pouco temente da
morte e que mantinha boas relações com as potências.
Os seus dons e as suas virtudes foram postos a rude prova muitas
vezes. Uma vez teve de suportar um período de más colheitas e de
tempo contrário que se prolongou por mais de dois anos. Foi a maior
provação da sua vida. Os sinais nefastos e hostis haviam começado
com as sementeiras, cuja data fora adiada por diversas vezes, pois
todas as más estrelas, todas as coisas daninhas imagináveis deram
cabo das colheitas e das ceifas e tinham-nas destruído quase
inteiramente. A comunidade conhecera uma fome cruel e Knecht
também. E já era muito ter podido ultrapassar a amargura desse
ano sem perder a fé e a influência e haver conseguido ajudar a tribo
a suportar esta desgraça com humildade e resignação. Quando,
ainda por cima, depois dum duro inverno acompanhado por
numerosos falecimentos, o ano seguinte se apresentou com o
mesmo cortejo de males e misérias, as terras da comunidade
secaram e estalaram por efeito duma seca teimosa e houve uma
terrível proliferação de ratos e também as suas invocações e os seus
sacrifícios solitários tiveram tão-pouco eco e ficaria como as
manifestações públicas, os concertos de tambor, as procissões da
tribo inteira, quando se revelou cruelmente que desta vez o fazedor
de chuva não podia fazer chuva, não foi um caso simples. Foi preciso
ele mostrar-se mais do que um homem vulgar para suportar esta
responsabilidade e fazer frente à população aterrorizada e
perturbada. Passaram-se duas ou três semanas em que Knecht se
viu absolutamente sozinho e enfrentou a comunidade inteira, a
fome, o desespero e aquela velha crença popular segundo a qual o
único meio de reconciliação com as potências era sacrificar o fazedor
de chuva. Ele ganhou cedendo. Não se opôs à ideia de que o
sacrificassem, propôs-se ele próprio como vítima. Por outro lado,
com um esforço e uma dedicação inauditas, contribuíra para adoçar
a miséria de todos: de todas as vezes tinha descoberto água,
detetado uma fonte, um reguinho. Tinha impedido que no auge da
miséria não se aniquilasse todo o gado e, em particular nesse época
de grandes perigos, havia evitado com a sua assistência e os seus
conselhos, com ameaças, sortilégios e orações, com o exemplo e a
intimidação, que aquela que era então a anciã da aldeia, dominada
por um desespero e uma depressão funestas, se fosse abaixo e
largasse estupidamente as rédeas. Revelara-se então que em épocas
de angústia e de preocupação gerais um homem é um socorro tanto
maior quanto a sua vida e o seu pensamento estão mais orientados
para o espírito, para valores superiores à sua pessoa, e aprendeu a
respeitar, a observar, a adorar a arte de servir e de se sacrificar.
Esses dois anos terríveis, que quase fizeram dele uma vítima e
causaram a sua perda, valeram-lhe finalmente um grande prestígio e
a confiança, não apenas da multidão dos irresponsáveis mas
também dos poucos indivíduos que suportavam o peso das
responsabilidades e eram capazes de julgar um homem da sua
espécie.
A sua vida atravessara essas provações e ainda muitas outras
quando atingiu a idade madura e se achou no ponto culminante da
sua existência. Ajudara a enterrar duas matriarcas da tribo, perdido
um belo rapazinho de seis anos que o lobo levara. Havia
ultrapassado uma doença grave sem o socorro de ninguém,
tratando-se a ele mesmo. Sofrera fome e frio. Tudo isso deixara
marcas no seu rosto e também na sua alma. Igualmente fizera a
experiência de que os homens de pensamento provocam nos outros
uma singular espécie de escândalo e repulsa: de longe, claro,
estimam-nos e, em caso de necessidade, recorrem a eles, mas não
gostam deles, não os consideram como seus semelhantes, preferem
afastar-se do seu caminho. Dera-se também conta de que as
fórmulas tradicionais – ou livremente inventadas – de sortilégios e
exorcismos são muito mais facilmente aceites por doentes ou
infelizes do que um conselho sensato, que o homem gosta mais de
suportar males e uma aparência de expiação do que emendar ou
simplesmente examinar o seu ser íntimo, que acredita mais
facilmente na magia do que na razão, em fórmulas do que na
experiência: tudo coisas que, durante os poucos milhares de anos
que se seguiram, não mudaram certamente tanto como muitos livros
de história afirmam. Mas tinha também aprendido que um homem
de pensamento, um homem que procura alguma coisa, não tem
direito a perder o amor, tem de enfrentar os desejos e as loucuras
dos outros, sem orgulho, mas também sem o direito de se deixar
dominar por eles, que há só um passo entre o homem de sabedoria
e o charlatão, o sacerdote e o malabarista, entre o irmão digno de
socorro e o oportunista parasita, e que no fundo as pessoas
preferem infinitamente pagar a um vigarista, deixar-se explorar por
um vendedor de banha da cobra do que aceitar sem dispêndio um
socorro generosamente oferecido. Não gostavam de pagar em
confiança e amor, preferiam que fosse em dinheiro e em géneros.
Enganavam-se mutuamente e estavam à espera que os
enganassem. Teve de aprender a considerar o ser humano como
uma criatura fraca, egoísta e cobarde, e dar também conta que ele
próprio partilhava de todos esses defeitos e esses maus instintos. E
no entanto foi-lhe concedido alimentar a sua alma com a fé de que o
homem é também espírito e amor, que tem qualquer coisa em si que
se opõe aos instintos e aspira a enobrecê-los. Mas todas estas ideias
estão sem dúvida destrinçadas bem de mais e formuladas ainda
mais subtilmente para ter sido Knecht a fazê-lo. Digamos que ele
estava nessa via, que essa via um dia conduziria a estas ideias e
ultrapassá-las-ia.
Enquanto seguia este caminho, com um desejo nostálgico pelas
ideias, mas vivendo ainda bem mais no mundo sensível, enfeitiçado
pela Lua, pelo perfume duma planta, pelos sais duma raiz, pelo
gosto duma casca, maravilhado pela cultura das ervas medicinais,
pelas decocções de unguentos, pela sua devolução ao tempo e à
atmosfera, muitas faculdades se desenvolveram nele, que nós,
tardios, não possuímos e que só compreendemos até metade. A
mais importante era naturalmente a de fazer chuva. Se bem que em
muitas circunstâncias particulares o céu permanecesse insensível e
parecesse troçar cruelmente dos seus esforços, Knecht fez apesar de
tudo chuva mais de cem vezes e sempre de maneiras ligeiramente
diferentes. Claro, não ousaria modificar ou omitir o mínimo
pormenor nos sacrifícios e no rito das procissões, das conjurações e
do rolar do tambor. Mas isso era só apenas a parte oficial, pública,
da sua atividade, o lado espetacular das suas funções e do seu
sacerdócio. Era muito belo certamente, inspirava um orgulho
magnífico ver o céu ceder no crepúsculo dum dia de sacrifício e
procissão, o horizonte cobrir-se, o vento cheirar a humidade e as
primeiras gotas flutuarem no ar. Mas, mesmo aqui, tinha sido
necessário primeiramente que a arte do fazedor de chuva escolhesse
o dia conveniente e não tentasse obter o impossível às cegas. Era
evidente que havia o direito de suplicar às potências, assaltá-las
inclusivamente com orações, mas com tato e medida, dobrando-se à
sua vontade. E, a esses belos triunfos, que lhe rendiam o sucesso e
a audiência das potências, preferia aqueles que, tirando ele,
ninguém conhecia e de que só tinha uma consciência receosa, mais
assente nos sentidos do que no entendimento. Havia estados do
tempo, tensões do ar e do calor, espécies de nuvens e de ventos,
havia categorias de cheiros de água, de terra e de pó, havia
ameaças ou promessas, humores e caprichos dos demónios do
tempo que Knecht pressentia e sentia na pele, no cabelo, em todos
os sentidos, tanto e tão bem que nada podia surpreendê-lo nem
desiludi-lo, tanto e tão bem que concentrava em si o tempo,
desposava-lhe as vibrações e levava-o no seu ser, duma maneira que
o tornava capaz de dar ordens às nuvens e aos ventos, não
evidentemente duma maneira arbitrária e como quisesse, mas em
função justamente do parentesco, das ligações que suprimiam
totalmente a diferença entre ele e o mundo, entre a sua essência
íntima e o universo exterior. Acontecia-lhe, nessas alturas, ficar
parado, em transe, à escuta, ficar acocorado, com todos os poros da
pele abertos, e não sentir já em si a vida das brisas e das nuvens,
mas dirigi-la, fazê-la nscer, um pouco como nós sabemos acordar e
reproduzir em nós próprios uma frase musical que conhecemos
exatamente. Então bastava-lhe suster a respiração: e o vento ou o
trovão calavam-se. Bastava-lhe fazer com a cabeça um sinal de
aquiescência ou de recusa: a tempestade de granizo desencadeava-
se ou não acontecia. Bastava-lhe, com um sorriso, dar às forças em
conflito um meio de exprimirem nele a sua reconciliação: e lá em
cima, as rugas das nuvens apagavam-se e descobriam o azul
luminoso e liso. Em certas épocas em que as suas disposições e a
ordem da sua alma eram particularmente puras, transportava dentro
de si o tempo dos dias seguintes, numa presciência exata e infalível,
como se tivesse no sangue o texto de toda a partitura pela qual o
concerto devia ser tocado lá fora. Eram esses os seus bons dias, os
seus melhores dias, as suas recompensas e as suas delícias.
Mas quando esta união íntima com o exterior se rompia, quando o
tempo e o mundo eram insólitos, incompreensíveis e imprevisíveis,
então também nele a ordem era perturbada e as correntes
interrompidas; sentia que não era um bom fazedor de chuva e as
suas funções, a responsabilidade pelo tempo e pelas colheitas
pesavam-lhe e pareciam-lhe injustas. Em tais momentos era caseiro,
obedecia a Ada e ajudava-a, ocupava-se conscienciosamente do
trabalho de casa com ela, fabricava brinquedos e utensílios para os
filhos, punha os seus remédios a cozer; tinha necessidade de amor e
fazia um esforço para se distinguir o menos possível dos outros
homens, submeter-se inteiramente aos usos e aos costumes e
mesmo até para dar atenção ao que a sua mulher e as vizinhas
contavam e que habitualmente o aborrecia e onde se falava da vida,
da saúde, dos feitos e dos gestos dos outros. Mas nos seus bons
momentos via-se pouco em casa: vagueava, ficava lá fora, pescava à
linha, caçava, procurava raízes, ficava deitado na erva ou escondido
atrás das árvores, farejava, espiava, imitava a voz dos animais,
acendia fogueiras e comparava as formas das nuvens de fumo com
as das nuvens do céu; deixava a pele e o cabelo impregnarem-se de
nevoeiro, de chuva, de ar, de sol ou de luar, e colecionava além
disso, como o seu mestre e antecessor Turu fizera durante toda a
sua vida, esses objetos cuja essência e aspeto pareciam pertencer a
esferas diferentes e em que a sabedoria ou o capricho da natureza
pareciam trair um pouco as regras do seu jogo e os mistérios da
criação, objetos que reuniam em si simbolicamente elementos muito
afastados, por exemplo ramos nodosos que tinham figura de homem
ou de animal, seixos polidos e com textura de madeira, petrificações
de animais dum mundo anterior, caroços de frutos disformes ou
gémeos, pedras em forma de rim ou coração. Numa folha duma
árvore decifrava desenhos, na cabeça dum cogumelo a disposição
radial dos filetes e pressentia então um mistério, um sentido, um
futuro, uma possibilidade: a magia dos signos, a premonição do
número e da escrita, a fixação do infinito e dos seus milhares de
formas no elemento simples, no sistema, no conceito. Todas estas
possibilidades de apreensão do mundo pelo espírito não eram, para
ele, desprovidas de nome, inexpressas mas não estavam excluídas,
não eram imprevisíveis, ainda em embrião, por despontar; faziam
parte da sua essência e cresciam com ele, eram parte orgânica do
seu ser. E se pudéssemos recuar ainda mais alguns milhares de
anos, para lá deste fazedor de chuva e da sua época que nos parece
longínqua e primitiva, encontraríamos já, em todo o lado, estamos
convencidos, o espírito ao mesmo tempo que o homem, esse
espírito que não tem começo e que sempre conteve tudo quanto
produzirá mais tarde.
Não foi reservado a este fazedor de chuva fixar para a eternidade
um dos seus pressentimentos nem encaminhá-lo para uma forma
demonstrável, do que aliás ele quase não precisava. Não se tornou
um dos numerosos inventores da escrita, da geometria, da medicina
ou da astronomia. Permaneceu um elo desconhecido dessa corrente,
mas um elo tão indispensável como qualquer outro. Transmitiu o que
tinha recebido e acrescentou-lhe o fruto das suas novas aquisições e
das suas lutas. Pois também teve alunos. Ao longo dos anos fez de
dois aprendizes fazedores de chuva e um deles tornou-se mais tarde
seu sucessor.
Durante longos anos praticou o seu ofício e viveu a sua vida,
sozinho e sem ser observado, e quando pela primeira vez – pouco
tempo depois da sucessão de más colheitas e da fome – um
adolescente começou a fazer-lhe visitas, a observá-lo, a espiá-lo, a
venerá-lo e a persegui-lo, movido pela vocação de fazer chuva e de
vir a ser mestre, conheceu então, com uma singular melancolia, o
regresso e o inverso da grande aventura da sua juventude. Ao
mesmo tempo sentiu pela primeira vez essa severa sensação de
meio-dia, que nos aperta e ao mesmo tempo nos acorda: a
consciência de que a juventude passou e, passado o meio-dia, a flor
se tornou fruto. E, coisa que nunca julgara possível, comportou-se
com o rapaz exatamente como outrora o velho Turu com ele, e essa
atitude azeda, desencorajante, de espera e de contemporização
impôs-se-lhe espontaneamente, por instinto, não por imitação do
seu defunto mestre nem por considerações morais e pedagógicas.
Não argumentou, por exemplo, que era preciso primeiramente pôr à
prova um jovem para garantir a seriedade da sua vocação, que não
havia que facilitar a ninguém a iniciação nos mistérios, mas torná-la,
pelo contrário, mais difícil, etc... Não, Knecht comportou-se muito
simplesmente para com os seus aprendizes como qualquer outro
solitário ou original erudito, que começa a ficar velho, trata os seus
adoradores e os seus alunos: com um embaraço feroz, respostas
tortas, pronto a fugir; receava pela sua bela solidão e a sua
liberdade pelos seus passeios errantes pela natureza selvagem, pela
liberdade e solidão das suas caçadas e das suas buscas, pelas suas
fantasias e as horas passadas à espreita; gostava ciumentamente de
todos os seus hábitos e fantasias de amador, dos seus segredos e
dos seus recolhimentos. Esteve longe de apertar nos braços aquele
jovem hesitante que vinha ao seu encontro com uma curiosidade
respeitosa, de o ajudar a ultrapassar essa timidez e encorajá-lo, de
encontrar alegria e recompensa, uma consagração e um êxito
agradável naquela mensagem e declaração de amor que o mundo
dos outros acabava de lhe enviar, naquela corte que lhe faziam, no
apego e no parentesco dum ser que sentia em si, como ele, a
vocação de servir os mistérios. Não, isso foi inicialmente como que
um incómodo importuno, um atentado aos seus direitos e aos seus
hábitos, um roubo da sua independência, que pela primeira vez via
quanto lhe era querida. Defendeu-se, excedeu-se em jogos de
astúcia, de engano, de confusão dos seus rastos, e fugia-lhe. Mas
também aqui lhe aconteceu o mesmo que outrora com Turu: a corte
prolongada e muda do jovem enterneceu-lhe lentamente o coração,
cansou pouco a pouco e quebrou-lhe progressivamente a
resistência. E quanto mais o jovem ganhava terreno, mais aprendia,
numa lenta progressão, a falar e a abrir-se com ele, a aprovar o que
ele desejava, a aceitar-lhe a corte e a ver, nesta obrigação nova e
muitas vezes tão fastidiosa da iniciação e do ensino, um facto
inevitável fixado pelo destino e desejado pelo espírito. Cada vez mais
teve de dizer adeus ao sonho, ao sentimento e ao gozo das
possibilidades infinitas do futuro e das suas mil formas. Em vez do
seu sonho duma progressão infinita, soma de toda a sabedoria,
tinha agora à sua frente este aluno, pequena realidade próxima e
exigente, um invasor, um estorvo que não podia rejeitar nem evitar:
era o seu único caminho para o futuro real, a única obrigação
essencial, a única via estreita na qual a vida e os atos, as
convicções, as ideias e os pressentimentos do fazedor de chuva
podiam ser preservados da morte e continuar a viver num pequeno
rebento novo. Decidiu-se suspirando, rangendo os dentes, com um
sorriso.
Inclusivamente, nesta importante esfera das suas funções, que
comportava talvez mais responsabilidades, a transmissão das
tradições e a educação do seu sucessor, tão-pouco lhe foi poupado
conhecer uma experiência e uma desilusão bastante penosas e
bastante amargas. O primeiro aprendiz que se esforçou em ganhar-
lhe os favores e que conseguiu tê-lo como mestre, depois de uma
longa espera e apesar da sua resistência, chamava-se Maro, e
causou-lhe uma deceção de que nunca pôde libertar-se
completamente. Maro era servil e adulador e fingiu durante muito
tempo obediência absoluta, mas faltavam-lhe certas qualidades e
sobretudo coragem; principalmente tinha medo da noite e do
escuro. Procurou esconder este facto, e Knecht, que apesar de tudo
disso se deu conta, tomou tais defeitos ainda durante muito tempo
como resquícios da infância, que um dia desapareceriam. Mas não.
Este aluno também não possuía o dom de se entregar com
desinteresse e sem segundas intenções à observação, às operações
e aos procedimentos da sua profissão, aos pensamentos, aos
pressentimentos. Era inteligente, tinha um entendimento claro,
rápido, assimilava com facilidade e segurança o que pode ser
adquirido sem abnegação. Mas tornou-se cada vez mais visível as
suas intenções e um fim egoístas e que era para isso que queria
aprender o ofício de fazedor de chuva. Queria sobretudo valorizar-
se, ter um papel e impressionar, tinha a vaidade do homem de
talento a quem falta a vocação. Procurava o êxito, exibia perante os
camaradas da sua idade os seus conhecimentos e os truques
aprendidos de fresco –
isso também poderia passar por infantil e talvez corrigir-se. Mas não
procurava somente o êxito, ambicionava exercer um poder sobre os
outros e tirar proveito disso. Quando o mestre começou a dar conta,
teve medo, retirando pouco a pouco o seu afeto a esse rapaz. Por
duas ou três vezes ficou com a convicção de que ele cometera
graves faltas ao fim de vários anos de aprendizagem. Cometeu o
erro ora de administrar por sua própria autoridade um remédio a
uma criança doente, ora de proceder numa cabana a conjurações
contra a praga dos ratos. E quando, apesar de todas as ameaças e
de todas as promessas, foi novamente surpreendido em práticas
semelhantes, o mestre expulsou-o, apresentou o caso à matriarca e
tentou apagar da sua memória a imagem daquele jovem ingrato e
sem préstimo.
Encontrou uma compensação em dois alunos que teve depois
disso e muito especialmente no segundo, que não era outro senão o
seu filho Turu. Gostou muito deste filho mais novo, este último dos
seus aprendizes e discípulos, e acreditou que este poderia vir a ser
mais do que ele próprio era; tornara-se visível que o espírito do seu
avô tinha regressado nele. Knecht teve a satisfação e o conforto
espiritual de haver transmitido ao futuro a soma do seu saber e da
sua fé, de conhecer um ser que era duplamente seu filho e a quem
podia sempre passar o seu cargo, se se tornasse muito penoso para
si. Mas não pôde banir da sua vida e dos seus pensamentos aquele
primeiro aluno que dera para o torto. Este tornara-se na aldeia um
homem que, sem gozar de grande consideração, era no entanto
extremamente apreciado por muitos e não lhe faltava influência.
Casara-se. Tinha uma popularidade de bobo e de amigo de pregar
partidas, era até primeiro-tambor no coro e permaneceu inimigo
secreto do fazedor de chuva, que invejava e a quem causou toda a
espécie de problemas, pequenos e grandes. Knecht nunca fora
homem de amizades e conversas, precisava de estar só e livre,
nunca correra atrás da consideração e do amor, salvo outrora atrás
do mestre Turu quando era rapazinho. Mas agora aprendeu o que é
a existência dum inimigo que nos odeia, e isso estragou bastantes
dias da sua vida.
Maro tinha sido um desses alunos, desses discípulos muito
dotados que, apesar das suas qualidades, são constantemente
desagradáveis e penosos aos seus mestres, porque neles o talento
não é uma força com profundas raízes íntimas, nem tem uma base
orgânica; não é o terno estigma de nobreza duma natureza feliz, a
marca do valor do sangue e do carácter, mas uma espécie de
acrescento fortuito, quando não é usurpação ou roubo. Um aluno
com pouco carácter mas dotado duma inteligência superior ou duma
imaginação brilhante põe infalivelmente o seu mestre em má
situação. Este deve inculcar-lhe o seu património de saber e de
método, torná-lo apto a colaborar na vida do espírito, e contudo não
pode deixar de sentir que o seu verdadeiro dever e o mais nobre
seria precisamente proteger a ciência e as artes da aproximação
indiscreta daqueles que só têm talento. Pois a tarefa do mestre não
é a de ser útil ao aluno: ambos devem servir o espírito. Por este
motivo é que os professores, na presença de certos talentos
brilhantes, sentem repugnância e horror. Todos os alunos deste
género falseiam o sentido e a utilidade do ensino. Todas as
promoções concedidas a um discípulo capaz de brilhar, mas não de
servir, são no fundo um atentado à ideia de serviço, uma maneira de
trair o espírito. Conhecemos, na história de muitos povos, períodos
em que, quando as instituições espirituais estavam profundamente
perturbadas, indivíduos que só tinham dons naturais quase tomaram
de assalto a direção das comunas, das escolas, das academias e dos
Estados e em que todas as funções era ocupadas por talentos
eminentes que queriam dirigir sem serem capazes de servir. É com
certeza muito difícil reconhecer a tempo os talentos deste género,
antes mesmo que eles tenham assimilado os rudimentos duma
profissão intelectual, e recambiá-los com a dureza necessária para
as vias que conduzem a carreiras doutra ordem. Também Knecht
cometera erros e mostrara uma paciência excessiva para com o seu
aprendiz Maro, confiara a um arrivista e a um espírito superficial
uma parte de sabedoria reservada aos vocacionados, e era pena. As
consequências foram mais pesadas para ele do que jamais pensaria.
Veio um ano – a barba de Knecht era já bastante grisalha – em
que a ordem que reinava entre o céu e a terra pareceu ter sido
alterada e perturbada por demónios duma força e duma perfídia
insólitas. Estas perturbações começaram no outono com uma
majestade terrível que aterrorizou profundamente todas as almas e
as encheu de angústia: foi um espetáculo celeste que nunca se vira,
pouco tempo depois do equinócio que o fazedor de chuva observava
e que vivia sempre com uma certa solenidade, numa devoção
respeitosa, com uma atenção acrescida. Uma tarde veio em que,
com um tempo de vento ligeiro e um pouco fresco, o céu, duma
claridade vitrosa, era só turvado por algumas nuvenzinhas móveis
que pairavam a uma altitude muito grande e retinham
anormalmente, durante muito tempo, a luz rosada do pôr do Sol,
feixes de luz à deriva, esfiapados e aos flocos no éter frio e lívido.
Há alguns dias já que Knecht sentia uma coisa mais forte, mais
especial do que o que se manifestava todos os anos nesta época,
em que os dias começavam a diminuir: uma manifestação das
potências no espaço celeste, uma comoção da terra, das plantas e
dos animais, uma inquietação nos ares, uma instabilidade, uma
espera, uma emoção, uma premonição de toda a natureza. As
nuvenzinhas desta hora vesperal que lançavam longas chamas
tardias e palpitantes vinham também somar-se a isso, com os seus
movimentos ondulantes, que não correspondiam ao vento da terra,
com a sua luz suplicante que se debatia longamente, tristemente,
contra a extinção e a que o resfriamento e o desaparecimento
tornavam subitamente invisíveis. Na aldeia reinava a calma. À frente
da cabana da matriarca os visitantes e os ouvintes infantis tinham-se
já disperso havia pouco, alguns rapazinhos perseguiam-se e ainda
lutavam, mas, fora eles, toda a gente voltara para as cabanas e
comera havia muito. Muitos já dormiam e, exceto o fazedor de
chuva, não havia quase ninguém a observar as nuvens vermelhas do
pôr do Sol. Knecht andava dum lado para o outro na sua pequena
plantação, por trás da sua cabana, meditava sobre o tempo,
preocupado, inquieto. Às vezes sentava-se para descansar um pouco
num cepo caído no meio das urtigas que lhe servia para rachar a
lenha. Quando o último farrapo vermelho das nuvens se extinguiu
no céu ainda cheio de luz e de reflexos esverdeados, as estrelas
tornaram-se de repente mais distintas, o seu número e o seu brilho
não tardaram a aumentar; ali onde, um momento antes, duas ou
três apenas eram visíveis havia agora dez, vinte. O fazedor de chuva
conhecia muitas estrelas, os seus grupos e as suas famílias, tinha-as
visto centenas e centenas de vezes. O constante regresso das
estrelas tinha qualquer coisa de tranquilizante, as estrelas eram
consoladoras; lá em cima, claro, eram longínquas e frias, não
dispensavam calor, mas podíamos fiar-nos nelas, a sua disposição
era sólida, elas eram mensageiras de ordem, promissoras de
duração. Pareciam estrangeiras, longínquas, opostas à vida terrestre,
à vida dos homens, inacessíveis ao seu calor, às suas palpitações, às
suas dores e aos seus êxtases, superiores a ela até ao ridículo na
nobre frieza da sua majestade e da sua eternidade, mas havia
contudo relações entre elas e nós, talvez fossem elas que nos
dirigissem e nos governassem. E se existia um saber humano, um
bem espiritual, uma certeza, uma superioridade do espírito sobre a
precariedade das coisas que pudéssemos obter e conservar, esse
saber parecia-se com as estrelas, tinha a sua radiação fria e
tranquila, a sua consolação arrepiante, o seu ar de eternidade um
pouco irónico. O fazedor de chuva tinha tido muitas vezes esta
impressão e, se bem que não tivesse com as estrelas relações assim
tão estreitas, tão excitantes, tão comprovadas, num ciclo constante
de modificações e de regressos, como com a Lua, esse grande peixe
mágico e próximo, húmido e gordo dos mares celestes, apesar de
tudo respeitava-as profundamente e estava-lhes ligado por muitas
crenças. Contemplá-las muito tempo, deixar a sua ação exercer-se
sobre ele, oferecer a sua pequenez, o seu calor e a sua emoção aos
seus olhares pacíficos e gelados, fora para ele muitas vezes como
um banho ou uma bebida salutar.
Também nesse dia tinham o seu aspeto de sempre, mas eram
muito luminosas, pareciam talhadas com facetas agudas no ar tenso
e sem profundidade. Knecht não encontrava repouso interior, não
podia entregar-se a elas. Do fundo de espaços desconhecidos uma
potência aspirava-o, tornava os seus poros dolorosos, sugava-lhe os
olhos, agia silenciosamente, continuamente, como uma corrente,
uma tremura premonitória. Ao lado, na sua cabana, a débil luz
quente da lareira tinha uma vermelhidão baça: a pequena vida
morna esgotava-se: um apelo fazia-se ouvir, um riso, um bocejo; um
odor de humanidade flutuava, um calor de pele, de maternidade, de
sono de criança, e essa vizinhança inocente parecia tornar mais
profunda a noite começada e empurrar as estrelas ainda para mais
longe, para um espaço e uma altura inconcebíveis.
No momento em que Knecht ouvia, na sua cabana, Ada a acalmar
uma criança, cantarolando com uma voz profunda e melodiosa, no
céu começou a catástrofe de que a aldeia iria lembrar-se durante
muitos anos. Na rede tranquila e brilhante das estrelas produziu-se
aqui e ali uma cintilação, uma tremulação como se os seus fios
habitualmente invisíveis se incendiassem; como um jato de pedras
incandescentes e logo extintas, estrelas isoladas rolaram dum lado
para o outro atravessando o espaço, uma aqui, duas além, em
seguida um punhado delas e os olhos ainda não se tinham desviado
da queda dos primeiros astros desaparecidos, nem o coração
petrificado por este espetáculo não tinha ainda recomeçado a bater
e já aquelas luzes que caíam ou que eram projetadas obliquamente,
numa ligeira curva através do céu, perseguiam-se em enxames, às
dúzias, às centenas, em bandos inumeráveis, como se uma
gigantesca tempestade muda as tivesse levado através da noite
silenciosa, como se um outono cósmico tivesse arrancado todas as
estrelas, folhas mortas da árvore celeste, para as varrer sem ruído
para o nada. Como folhas secas, como flocos de neve ao vento,
voavam aos milhares num silêncio terrível, caíam e desapareciam
por trás das colinas florestadas do Sudeste onde nunca antes, que
alguém se lembrasse, uma estrela se tinha deitado, despenhando-se
num abismo sem fundo.
De coração paralisado, os olhos a piscar, Knecht, com a cabeça
lançada para trás, contemplava com um olhar aterrorizado e
insaciável aquele céu transformado e maldito, não acreditando nos
seus olhos e demasiado seguro no entanto daquele horror. Como
todos os que assistiram a este espetáculo noturno, julgou ver as
estrelas que conhecia perfeitamente oscilarem, fundirem-se em
centelhas e despenharem-se nas profundezas. Estava à espera, se a
terra o não engolisse antes, de ver a abóbada celeste tornar-se
rapidamente negra e vazia. Observou realmente, passado um
momento, o que outros não eram capazes de ver: as estrelas
conhecidas ainda estavam presentes aqui e ali, em todo o lado;
aqueles esguichos de estrelas não faziam as suas horríveis razias
entre os velhos astros familiares, mas no espaço intermédio entre o
céu e a terra, e essas luzes que caíam ou que eram lançadas por
alguém, que apareciam e desapareciam tão rapidamente, ardiam
com um fogo cuja cor diferia um pouco da das velhas estrelas
autênticas. Isto foi para ele uma consolação e ajudou-o a recompor-
se. No entanto, mesmo se estivessem ali outras estrelas, novas e
precárias, cuja borrasca enchia o ar, era no entanto atroz, nefasto,
era uma desgraça, uma perturbação, e profundos suspiros exalaram-
se da garganta seca de Knecht. Voltou os olhos para a terra, pôs-se
à escuta de todos os lados, a ver se era o único que presenciara
aquele espetáculo fantástico ou se os outros também o viam. Não
tardou a ouvir, nas cabanas, gemidos, urros e gritos de terror.
Também eles haviam visto aquilo, tinham-no gritado, puseram em
alarme os que dormiam e desassossegado os espíritos. Num abrir e
fechar de olhos o medo e o pânico apoderavam-se de toda a aldeia
inteira. Com um profundo suspiro Knecht chamou tudo a si. Era ele
antes de mais a quem esta desgraça atingia, ele, o fazedor de
chuva, é que era de qualquer modo responsável pela ordem do céu
e dos ares. Reconhecera e revelara sempre com antecedência as
grandes catástrofes: as cheias, o granizo, as grandes tempestades;
de todas as vezes preparara e alertara as mães e os mais idosos,
evitara o pior; com o seu saber, com a sua coragem e a sua
confiança nas potências superiores, construíra na aldeia um escudo
contra o desespero. Porque é que desta vez não soubera nada com
tempo, porque é que não tomara nenhuma disposição? Porque é
que não dissera nada a ninguém sobre o obscuro fenómeno, a
obscura premonição que no entanto tivera?
Afastou a esteira que fechava a entrada da sua cabana e
pronunciou a meia voz o nome da mulher. Ela veio, apertando ao
peito o seu último nascido; ele pegou nele, deitou-o na sua enxerga,
pegou na mão de Ada e pousou-lhe um dedo nos lábios para exigir
silêncio. Conduziu-a para o exterior e viu o seu rosto, paciente e
tranquilo, logo desfigurado pela angústia e terror.
– As crianças devem dormir, é preciso que não vejam isto,
compreendes? – murmurou num tom veemente. – Não deves deixar
sair nenhum, nem mesmo Turu. E tu também não saias de casa.
Hesitou, não sabendo até que ponto devia falar e trair os seus
pensamentos e acrescentou em seguida num tom seguro: – Não te
acontecerá nada, nem a ti nem às crianças.
Ela acreditou logo, mas isso não bastou para apagar do seu rosto
nem do seu coração as marcas do medo.
– Que se passa? – perguntou-lhe, olhando fixamente para o céu,
por cima do ombro. – É grave?
– É grave – disse ele suavemente. – Parece-me que é muito
grave. Mas não é contigo e nem com os pequenos. Fica na cabana,
mantém a esteira bem esticada. Tenho de ir falar com os nossos. Vai
para dentro, Ada.
Empurrou-a para a entrada da cabana, puxou cuidadosamente a
esteira e ficou parado algum tempo a recompor-se, com os olhos
voltados para a chuva de estrelas que não acabava, depois baixou a
cabeça, suspirou mais uma vez, de coração pesado, e afastou-se
rapidamente na noite, para a aldeia e a cabana da matriarca.
Lá, já estava reunida metade da aldeia, num rumor surdo,
dominada por uma vertigem de terror e desespero que o medo
paralisava e não continha totalmente. Havia mulheres e homens que
se abandonavam ao sentimento de horror e de fim do mundo
iminente com uma espécie de raiva e volúpia, com uma crispação
quase estática, ou que agitavam freneticamente os braços e as
pernas descontroladamente. Uma mulher tinha escuma nos lábios e
entregava-se a uma dança solitária, desesperada e obscena,
arrancando tufos dos seus longos cabelos. Knecht apercebeu-se de
que já estava tudo desencadeado, de que quase todos eram já presa
da embriaguez, enfeitiçados e enlouquecidos por aquelas quedas de
estrelas. Talvez fosse haver uma orgia louca, furiosa, uma raiva de
suicida. Era mais do que tempo de reunir e reconfortar os poucos
seres dotados de coração e espírito. A muito idosa matriarca estava
calma; achava que tinha chegado o fim de todas as coisas, mas não
lhe opunha nenhuma resistência e apresentava ao destino um rosto
firme, duro, que, na sua amarga crispação, parecia quase irónico.
Conseguiu que ela o ouvisse. Tentou demonstrar-lhe que as velhas
estrelas que sempre tinham existido ainda estavam nos seus
lugares, mas ela não era capaz de fazer entrar esta ideia na sua
cabeça, quer porque os seus olhos já não tivessem a força para ver,
quer porque a representação que fazia dos astros e das suas
relações mútuas fosse muito diferente da do fazedor de chuva para
que ambos pudessem compreender-se. Abanou a cabeça, manteve o
seu ricto enérgico e, quando Knecht a conjurou a não deixar as
pessoas abandonarem-se à embriaguez do medo e aos demónios,
ela concordou imediatamente. Formou-se à volta dela e do fazedor
de tempo um pequeno grupo de seres angustiados, mas que não
tinham perdido a cabeça e estavam dispostos a deixar-se guiar.
Até ao momento em que chegou à aldeia, Knecht tinha esperado
poder evitar o pânico com a virtude do exemplo, da razão, com os
seus discursos, as suas explicações e as suas exortações. Esta
conversa com a matriarca bastou para lhe provar que era demasiado
tarde. Tinha esperado levar os outros a partilhar das suas próprias
observações, dar-lhas, transmitir-lhas, tinha esperado que, ao
ouvirem-nas, eles vissem sobretudo que não eram as estrelas, pelo
menos não eram todas, que caíam, levadas por aquela tempestade
cósmica; tinha pensado que eles passariam do terror e do espanto
impotentes à observação ativa e que, desse modo, saberiam resistir
àquele choque perturbador. Mas bem depressa viu que bem poucos
em toda a aldeia estariam acessíveis à sua influência; antes que
tivesse conquistado os outros teria sucumbido inteiramente à
loucura. Não, neste caso como em tantos outros, nada havia a
esperar da razão e dum discurso inteligente. Felizmente havia outros
recursos. Se era impossível diluir o medo da morte tingindo-a de
razão, havia no entanto meio de orientar, de organizar esse medo,
de lhe dar forma e aparência e de fazer daquela gritaria
confrangedora de dementes uma unidade compacta, de formar um
coro com aquelas vozes múltiplas enlouquecidas e ferozes. Knecht
utilizou-o imediatamente e logo este remédio agiu. Pôs-se à frente
das pessoas, gritou as orações bem conhecidas com que geralmente
começavam os lutos e as expiações públicas, a lamentação fúnebre
em honra duma matriarca ou a cerimónia do sacrifício expiatório em
casos de perigos públicos, como as epidemias e as inundações.
Gritou as palavras a compasso e marcou a cadência batendo palmas,
inclinou-se quase até ao chão, ergueu-se, voltou a curvar-se, voltou
a erguer-se e logo dez, vinte outros repetiam os seus movimentos. A
velha mãe da aldeia, de pé, fez ouvir um resmungo ritmado e
esboçou, inclinando-se debilmente, os gestos rituais. Os das outras
cabanas que se juntaram a este grupo aderiram prontamente à
cadência e ao espírito deste cerimonial. Os poucos verdadeiramente
possessos, ou se foram abaixo em pouco tempo, de esgotamento, e
ficaram inertes no chão, ou então foram dominados e arrastados
pelos murmúrios do coro e o ritmo das prosternações daquele ofício
divino. Knecht tinha conseguido. Em vez duma horda desesperada
de dementes, havia um povo de devotos, pronto para os sacrifícios e
as expiações; cada um encontrava-se bem, sentia o seu coração
consolado por não ter de guardar sozinho o medo da morte e o
terror, por não bramar sozinho mas integrar-se no coro bem
regulado da multidão, em cadência, numa conjuração solene. Mil
forças secretas intervêm num exercício deste género. A mais
poderosa das suas consolações é a uniformidade que duplica o
sentimento comunitário e os seus remédios mais infalíveis são o
compasso e a ordem, o ritmo e a música.
O céu noturno permanecia coberto com aquele exército de
estrelas que caíam em catarata silenciosa das gotas de luz; passadas
duas boas horas, esta continuou a espalhar profusamente as suas
grossas lágrimas de fogo avermelhado. Durante este tempo, na
aldeia, o horror metamorfoseava-se em resignação e devoção, em
invocações e num sentimento de expiação. Aos céus que tinham
renunciado à ordem, a angústia e a fraqueza humanas opunham-se
na forma da ordem e da harmonia dum culto. Antes mesmo que a
chuva de estrelas começasse a dar sinais de cansaço e a correr em
caudais menos grossos, o milagre tinha sido realizado e dele irradiou
uma força salutar. Quando o ceu, lentamente, pareceu apaziguar-se
e curar-se, os penitentes, mortos de cansaço, tiveram todos o
sentimento libertador de que os seus exercícios haviam apaziguado
as potências e reposto o céu em ordem.
Essa noite de pavor não foi esquecida, falou-se dela ainda durante
todo o outono e todo o inverno, mas já não estava nos ouvidos e
com muitas conjurações; falava-se dela mas no tom de todos os
dias, com a satisfação retrospetiva de rever uma desgraça suportada
com coragem, um perigo combatido com êxito. Contavam-se os
pormenores; cada um tinha sido surpreendido à sua maneira por
aquele acontecimento inaudito, cada um pretendia ter sido o
primeiro a dar por ele. Ousavam troçar de alguns poltrões insignes e
vítimas do pavor. Durante muito tempo persistiu na aldeia uma certa
excitação; tinham tido uma emoção, produzira-se um grande
fenómeno, tinha-se passado qualquer coisa!
Knecht permaneceu alheio a este estado de espírito, não
conheceu o esvaziar gradual e o esquecimento deste grande
acontecimento. Esta aventura desconcertante era para ele um aviso
inesquecível, um espinho que não parou de se lhe cravar na carne.
O facto de aquilo pertencer ao passado e a procissão, a oração e a
penitência lhe terem trazido um alívio não constituiu para ele nem
uma solução nem uma diversão. Quanto mais aquilo recuou no
passado, mais importância passou a ter para ele, pois ele deu-lhe
um sentido; foi então que aprendeu a aprofundar verdadeiramente
as coisas e a interpretá-las. Este acontecimento, em si mesmo, este
prodigioso espetáculo natural oferecia-lhe já um problema duma
amplitude e duma dificuldade infinitas, de perspetivas numerosas:
depois de ter visto aquilo podia-se meditar toda a vida. Só uma
única pessoa da aldeia teria examinado aquela chuva de estrelas
com os mesmos postulados que ele e com os mesmos olhos: era o
seu filho, o seu discípulo; só as confirmações ou as correções dessa
testemunha teriam tido valor para Knecht. Mas deixara dormir o filho
e, quanto mais se perguntava, nas suas meditações, porque é que
no fundo agira assim, porque é que, na presença daquele
acontecimento inaudito, renunciara à única testemunha, ao único
outro observador que merecia ser levado a sério, mais acreditou
firmemente ter feito bem e obedecido a uma sábia inspiração. Tinha
querido poupar os seus àquele espetáculo e entre eles o seu aluno,
o seu colega, e ele mais do que qualquer outro, pois a ele amava-o
sobre todas as coisas. Fora por isso que lhe escondera, que lhe
escamoteara a chuva de estrelas, em primeiro lugar porque
acreditava nos bons espíritos do sono, sobretudo do sono juvenil, e
seguidamente, se as suas recordações eram exatas, porque, para
dizer a verdade, a partir desse momento, a partir do início do
fenómeno celeste, acreditara menos num perigo mortal e imediato
para todos do que num sinal anunciador e no presságio duma
infelicidade futura, que abrangeria e diria respeito a mais ninguém a
não ser ao fazedor de tempo. Havia ali uma iminência, um perigo,
uma ameaça emanante daquelas esferas a que a sua profissão o
ligava, e qualquer que fosse a sua forma, ele é que era o visado,
antes de mais e expressamente. Fazer face a esse perigo com
lucidez e decisão, preparar-se para ele espiritualmente, assumi-lo,
mas sem se deixar diminuir nem desonrar por ele, tais eram o aviso
que leu nesse grande presságio e a decisão que daí tirou. O destino
iminente ia exigir um homem maduro e corajoso, por isso não teria
sido indicado meter nisso o filho, fazê-lo partilhar a sua dor e a sua
presciência, pois, apesar de todo o bem que pensava dele, não tinha
a certeza de que um adolescente que não prestara provas estivesse
à altura desta situação.
O seu filho Turu estava muito descontente, é verdade, por ter
faltado a este grande espetáculo e por ter dormido durante todo
esse tempo. Fosse qual fosse a interpretação que se fizesse, era, em
todo o caso, um grande acontecimento e talvez não voltasse a haver
outro igual a ele em toda a sua vida: tinham-no impedido de ver um
fenómeno sensacional, um prodígio universal e durante algum
tempo amuou contra o pai por este motivo. Mas o amuo acabou,
pois o velho compensou-o com uma ternura e atenções aumentadas
e fez mais do que nunca apelo a ele para todas as operações do seu
cargo. Prevendo o que ia acontecer, esforçou-se ainda mais
visivelmente para concluir e perfazer o mais possível em Turu a
iniciação e a educação do seu sucessor. Se só raramente lhe falou da
chuva de estrelas, abriu-se a ele, cada vez com menos reserva,
sobre os seus segredos, as suas práticas, a sua ciência e as suas
investigações, permitiu-lhe que o acompanhasse mesmo durante as
suas caminhadas, nas suas experiências e investigações da
Natureza, algo que, até ali, não tinha partilhado com ninguém.
O inverno veio e, passou, húmido e bastante doce. Não caíram
mais estrelas, não se produziram grandes acontecimentos
extraordinários; a aldeia reencontrara a paz, os caçadores
perseguiam ativamente as suas presas e, em todo o lado, num
tempo gelado e ventoso, as peles dos animais, tesas pelo frio,
batiam contra as varas onde estavam penduradas por meio de
feixes, por cima das cabanas. Sobre troncos lisos, cargas de lenha
eram arrastadas da floresta. Durante este breve período de gelo,
uma mulher velha acabou por morrer na aldeia e não foi possível
enterrá-la imediatamente. Durante dias, antes que o solo degelasse
um pouco, o seu cadáver gelado ficou acocorado junto à porta da
sua cabana.
Foi a primavera que primeiramente confirmou os sombrios
pressentimentos do fazedor de tempo. Era uma primavera
verdadeiramente má, traída pela Lua, uma primavera sem alegria,
sem ardor e sem seiva. A Lua estava sempre atrasada; nunca os
diversos sinais necessários para fixar o dia das sementeiras
concordavam. As flores selvagens abriam magramente, os botões
por desabrochar pendiam mortos dos ramos. Knecht estava muito
preocupado, sem o deixar parecer. Só Ada, e sobretudo Turu, viam
até que ponto isso lhe fazia mal. Ele não procedeu somente às
conjurações habituais, entregou-se também a sacrifícios privados,
pessoais; pôs a cozer, para os demónios, caldos e decocções
odoríferas e afrodisíacas, rapou a barba e queimou os pelos na noite
de lua nova, misturados com resina e cascas húmidas, provocando
assim um fumo espesso. Enquanto pôde, evitou as manifestações
públicas, o sacrifício comunal, as procissões propiciatórias, os coros
de tambores; enquanto tal foi possível, fez do tempo maldito
daquela primavera nefasta seu assunto pessoal. Mas quando a data
habitual das sementeiras fora já ultrapassada havia muito, teve de
prestar contas à matriarca. E eis que se chocou também aqui com a
pouca sorte e a hostilidade. Não foi recebido pela velha, que o
tratava como amigo e quase maternalmente: ela não se sentia bem,
estava de cama e tinha confiado à irmã todas as suas obrigações e
tarefas. Esta tinha pouquíssima simpatia pelo fazedor de chuva. Não
possuía o rigor e a retidão da sua irmã mais velha, tinha uma
inclinação pelas distrações e as gracinhas e isso tinha atraído o
tambor e malabarista Maro: ele sabia dar-lhe momentos agradáveis,
lisonjeá-la. Ora Maro era inimigo de Knecht. Logo na primeira
conversa, Knecht percebeu a frieza e a antipatia, se bem que a velha
não tivesse uma só palavra para o contradizer. As suas explicações e
a proposta que lhe apresentou, de esperar ainda mais algum tempo
para fazer as sementeiras e proceder, se fosse caso disso, a
sacrifícios e procissões, foram aprovadas e aceites. Mas a velha
recebera-o e tratara-o com frieza, como a um subalterno, e quando
ele manifestou o desejo de ver a matriarca doente ou, pelo menos,
de lhe preparar um remédio, deparou-se-lhe uma recusa. Regressou
desta entrevista cheio de tristeza e quase com o sentimento de ser
mais pobre, com um gosto amargo na boca. Durante toda uma meia
lua esforçou-se à sua maneira por criar as condições atmosféricas
propícias às sementeiras. Mas o tempo que desposava tantas vezes
as correntes da sua alma, manifestou uma obstinação afrontosa e
hostil. Nem magia, nem sacrifício agiam. Nada foi poupado ao
fazedor de chuva: teve de voltar a ver a irmã da matriarca e, desta
vez, com ar de lhe pedir que tivesse paciência, lhe concedesse um
adiamento. Viu imediatamente que ela devia ter falado dele e do seu
caso com Maro, o seu bobo, pois falaram da necessidade de fixar o
dia das sementeiras ou de ordenar cerimónias propiciatórias
públicas. A velha quis, ostensivamente, saber tudo; utilizou algumas
expressões que só podiam vir-lhe de Maro, o seu antigo aprendiz.
Knecht solicitou um prazo de três dias, expôs que o conjunto da
constelação seria diferente e mais favorável, e fixou as sementeiras
para o primeiro dia do terceiro quartil. A velha deu-lhe o seu acordo
e pronunciou a fórmula ritual; a sua decisão foi proclamada na
aldeia, e todos se prepararam para a cerimónia. E no momento em
que tudo parecia estar composto por algum tempo, os demónios
manifestaram-se novamente em seu desfavor. Como se de propósito,
a velha matriarca morreu na véspera desta festa das sementeiras
tão desejada e já pronta. A cerimónia teve de ser adiada, em vez
dela foi preciso anunciar e preparar as exéquias. O cerimonial foi de
primeira ordem; por trás da nova mãe da aldeia, das suas irmãs e
das suas filhas, vinha o fazedor de chuva no seu traje das grandes
procissões, com o seu alto chapéu pontiagudo de pele de raposa,
assistido pelo seu filho Turu, que agitava a sua matraca de madeira
com dois sons. Prestaram-se grandes honras à morta bem como à
sua irmã, a nova matriarca. Maro exibiu-se muito à frente dos seus
tambores, foi notado e aplaudido. A aldeia chorou e festejou,
deleitou-se com as lamentações e o dia de festa, com os tambores e
os sacrifícios. Foi um belo dia para toda a gente, mas as sementeiras
ficaram adiadas para mais tarde. Knecht mantinha um ar digno e
resignado, mas tinha profundas preocupações. Parecia-lhe que,
juntamente com a matriarca, enterrava todos os dias bons da sua
vida.
Pouco depois, as sementeiras tiveram lugar e, por desejo da nova
matriarca, o cerimonial foi igualmente excecional. A procissão deu
solenemente a volta aos campos, solenemente a velha espalhou
sobre a terra da comunidade os primeiros punhados de sementes,
ladeada pelas irmãs que levavam cada uma um saco, de onde ela
tirava as sementes. Knecht soltou um pequeno suspiro de alívio
quando esta operação foi finalmente concluída.
Mas estas sementeiras solenes não deviam trazer nem alegria nem
colheita. Foi um ano funesto. Em primeiro lugar, houve um regresso
ofensivo do inverno e do gelo e, durante a primavera e o verão, o
tempo entregou-se a todas as perfídias e hostilidades imagináveis.
No verão, quando por fim magros rebentos ralos e raquíticos
cobriram os campos, produziu-se a última e a pior das catástrofes:
ocorreu uma seca absolutamente inaudita, como nunca houvera e
que alguém se lembrasse. Semana atrás de semana, o Sol parecia
cozer na bruma esbranquiçada da canícula, os regatos secaram, não
restou do poço da aldeia senão um pântano insalubre, paraíso de
libélulas e duma terrível praga de mosquitos. Na terra ressequida
abriram-se profundas gretas, assistiu-se à doença e à seca da
colheita. De vez em quando, formavam-se nuvens, mas as trovoadas
eram secas e, quando às vezes caíam algumas gotas de chuva,
durante dias seguidos soprava um vento leste seco. Muitas vezes o
raio caía sobre grandes árvores e as suas copas semimortas ardiam
em chamas rápidas.
– Turu – disse um dia Knecht ao filho –, isto vai acabar mal, todos
os demónios estão contra nós. Começou tudo com a chuva de
estrelas. Penso que isso me custará a vida. Lembra-te: se eu tiver de
ser sacrificado, assume as minhas funções imediatamente. A
primeira coisa que exigirás será que o meu corpo seja queimado e
as suas cinzas espalhadas nos campos. Conhecereis no inverno uma
grande fome. Mas o feitiço será anulado. Deverás velar para que
ninguém toque na reserva de sementes da comunidade. Isso tem de
ser proibido sob pena de morte. O próximo ano será melhor e hão
de dizer: «Ainda bem que temos este jovem e novo fazedor de
chuva.»
Na aldeia reinava o desespero. Maro excitava as pessoas, não era
raro gritarem ameaças e maldições ao fazedor de chuva. Ada
adoeceu e ficou deitada, sacudida por vómitos e febre. As
procissões, os sacrifícios, os longos concertos de tambores que
dilaceravam o coração já não conseguiam concertar nada. Knecht
dirigia-os, era a sua função, mas, quando as pessoas se
dispersavam, ficava sozinho, evitavam-no. Sabia o que lhe restava a
fazer e também não ignorava que Maro exigira já à matriarca que
fosse condenado à morte. Por sentido da honra e por amor ao filho,
fez esta última tentativa: vestiu Turu com o seu traje solene, levou-o
à matriarca, a quem o recomendou como seu sucessor, em seguida
resignou das suas funções e propôs que o sacrificassem. Ela
observou-o criticamente durante um momento, curiosa, depois fez
um sinal de aprovação e respondeu afirmativamente.
A imolação teve lugar no mesmo dia. Toda a aldeia teria ido ver
mas muitos sofriam de disenteria, a própria Ada estava gravemente
doente. Turu teve quase uma insolação com o seu traje solene e o
seu grande chapéu de raposa. Todos os notáveis e os dignitários que
não estavam doentes vieram, a matriarca com duas das suas irmãs,
os anciãos e Maro, o chefe do coro de tambores. Atrás deles, a
massa popular seguia em desordem. Ninguém injuriou o velho
fazedor de chuva, tudo se passou em silêncio e angústia. Dirigiram-
se para a floresta onde chegaram a uma grande clareira quase
redonda, que o próprio Knecht designara como teatro do sacrifício. A
maior parte dos homens tinha trazido os seus machados de pedra, a
fim de ajudar a cortar lenha para queimar o seu corpo. Chegados à
clareira, deixaram o fazedor de chuva no meio, um pequeno círculo
fechou-se à sua volta, enquanto a multidão, mais longe, formava
uma vasta roda concêntrica. Todos observavam um silêncio indeciso
e embaraçado e foi Knecht quem falou: – Fui vosso fazedor de chuva
– disse. – Durante muitos anos fiz o meu ofício o melhor que pude.
Agora, os demónios estão contra mim, nada me sai bem. Por isso
ofereci-me para ser sacrificado. Isso conciliará os demónios. O meu
filho Turu será o vosso novo fazedor de chuva. Agora matai-me e
quando eu estiver morto segui exatamente as indicações do meu
filho. Adeus!... E quem vai matar-me? Recomendo o tambor Maro, é
o homem que é preciso.
Calou-se e ninguém se mexeu. Turu, roxo debaixo do seu pesado
chapéu de raposa, lançou à sua volta um olhar torturado. Um ricto
irónico apareceu nos lábios do seu pai. Por fim, a matriarca bateu
com o pé no chão, furiosa, fez sinal a Maro para se aproximar e
gritou-lhe: – Avança, então! Pega no teu machado e vai! – Maro, de
machado na mão, especou-se à frente do seu antigo mestre.
Odiava-o ainda mais do que habitualmente. A troça daquela velha
boca silenciosa era-lhe horrivelmente dolorosa. Ergueu o machado e
brandiu-o por cima da cabeça, balançou-o no ar, olhou para a sua
vítima nos olhos e esperou que esta fechasse as pálpebras. Mas
Knecht não fez nada, ficou de olhos abertos, resolutamente, fixando
aquele homem armado com o seu machado, com um ar quase
inexpressivo, mas o pouco que a sua expressão traía estava a meio
caminho entre a troça e a piedade.
Furioso, Maro deixou cair o machado: – Não faço isto –
entaramelou, atravessou o círculo dos notáveis e perdeu-se na
multidão. Alguns riram-se à socapa. A matriarca estava pálida de
raiva, tanto por ver a cobardia e a incapacidade de Maro como o
orgulho daquele fazedor de chuva. Fez sinal a um dos anciãos. Este
era um homem respeitável e tranquilo que se apoiava no seu
machado e parecia ter vergonha de toda aquela cena penosa. Deu
um passo em frente e fez um curto sinal de cabeça amistoso à
vítima. Conheciam-se desde crianças. Então Knecht aceitou baixar as
pálpebras. Fechou os olhos com força e inclinou um pouco a cabeça.
O velho assestou-lhe uma machadada: ele abateu-se. Turu, o novo
fazedor de chuva, não estava em condições de falar e contentou-se
em ordenar por gestos o que era preciso fazer: em breve uma pira
foi montada, estenderam sobre ela o morto. O primeiro ato oficial de
Turu foi o de espevitar o fogo segundo os ritos, com os dois
atiçadores de madeira consagrados.

O confessor
Era no tempo em que Santo Hilarião ainda vivia, embora fosse já
de idade avançada. Na cidade de Gaza vivia então um certo
Josephus Famulus que até à idade de trinta ou mais anos vivera no
século e estudara os livros pagãos. Depois, uma mulher que ele
perseguia dera-lhe a conhecer a doutrina divina e a suavidade das
virtudes cristãs. Ele aceitara receber o santo batismo, abjurou dos
seus pecados e, durante vários anos, sentado aos pés dos
presbíteros da sua cidade, escutara, com uma avidez apaixonada, as
histórias tão populares que eles contavam sobre a vida dos pios
eremitas do deserto. E um dia veio, teria então trinta e seis anos,
em que tomou a via que São Paulo e Santo António foram os
primeiros a tomar e que tantos homens pios seguiram depois deles.
Entregou aos anciãos o resto do seu património, para ser distribuído
pelos pobres da comunidade. À porta da cidade despediu-se dos
seus amigos e foi a pé para o deserto, deixando este mundo indigno
para conhecer a pobreza dos penitentes.
Durante anos o sol queimou-o, secou-o, e ele gastou os joelhos
em oração, na rocha e na areia, jejuando até à noite, antes de
mastigar as suas poucas tâmaras. Quando os diabos o
atormentavam com dúvidas, chufas e tentações, triunfava sobre eles
pela oração, a penitência e o sacrifício do seu ser, como
encontramos descrito em pormenor nas biografias dos santos
padres. Muitas noites os seus olhos sem sono voltaram-se para as
estrelas e elas criaram também na sua alma a dúvida e a confusão.
Ele decifrava as imagens das estrelas, nas quais tinha aprendido
outrora a ler também as histórias dos deuses e os símbolos da
natureza humana. Esta ciência a que os padres tinham grande
horror obcecou-o ainda por muito tempo com imaginações e ideias
que datavam da sua fé pagã.
Em todo o lado onde a nudez e a esterilidade do deserto eram
interrompidas por uma nascente, um punhado de verdura, um oásis
pequeno ou grande, viviam então eremitas, às vezes sozinhos,
outras em pequenas comunidades, tal como os representa um fresco
do Campo Santo de Pisa, praticando a pobreza e o amor ao próximo,
adeptos duma nostálgica ars moriendi, duma arte de morrer, de
morrer para o mundo e o próprio eu, para passar, ao morrer, para o
lado do Salvador, para a luz e o imperecível. Recebiam visitas dos
anjos e dos diabos, compunham hinos, exorcizavam demónios,
curavam e benziam, e pareciam ter-se dado como tarefa resgatar os
prazeres mundanos, a rudeza e a sensualidade de numerosos
séculos passados e a vir, com uma imensa vaga de entusiasmo e
devoção, com um suplemento extático de renúncia ao mundo.
Alguns conheciam sem dúvida velhas práticas pagãs de purificação,
os métodos e os exercícios dum método de espiritualização que a
Ásia elevara, havia séculos, a um alto grau de perfeição, mas disso
não falavam; de facto, esses métodos e os exercícios do yoga já não
eram ensinados, caíam sob a alçada do interdito que o cristianismo
lançava cada vez mais sobre tudo quanto era pagão.
Em muitos desses penitentes, a ardência dessa existência fazia
nascer dons particulares, os de rezar, curar impondo as mãos,
profetizar, expulsar o diabo, julgar e castigar, consolar e benzer. Em
Josephus também dormitava um dom e quando com os anos o seu
cabelo começou a perder o brilho, esse dom, lentamente,
desenvolveu-se. Era o dom de escutar. Quando um irmão duma das
congregações ou um filho do século, atormentado e aguilhoado pela
sua consciência, vinha ter com Josephus e contar-lhe o que tinha
feito e sofrido, as suas dúvidas e os seus erros, quando lhe contava
a sua vida, a sua luta pelo bem e a sua derrota, ou ainda uma perda
que sofrera, uma dor, um luto, Josephus tinha a arte de o escutar,
de abrir-lhe e de oferecer-lhe o seu ouvido e o seu coração, de
tomar e guardar a sua dor e o seu tormento e de o deixar ir-se
embora, liberto e em paz consigo. Lentamente, ao longo de muitos
anos, esta função impusera-se-lhe e fizera dele um instrumento, um
ouvido de confiança. Ele possuía como virtudes uma certa paciência,
uma certa passividade recetiva e o grande hábito de se calar. Cada
vez mais frequentemente vinha gente vê-lo para esvaziar o coração,
libertar-se dum novelo de ideias opressivas. Muitas dessas pessoas,
mesmo que tivessem tido de fazer um longo caminho antes de
chegar à sua cabana de canas, não encontravam, ao chegarem e
depois de o terem saudado, a liberdade e a coragem necessárias
para se confessarem. Procuravam escapatórias, sentiam vergonha,
faziam-se rogados em dizer os pecados, ficavam muito tempo,
horas, a suspirar e calados. Perante cada um ele comportava-se da
mesma maneira, quer contassem, de bom grado ou com remorso,
tudo de seguida ou com hesitação, quer cuspissem os segredos com
raiva ou deles se vangloriassem. Para ele tanto fazia, pouco lhe
importava ouvi-los atacar Deus ou a eles próprios, aumentar ou
diminuir os seus pecados e as suas dores, confessar um assassínio
ou apenas um gesto de impudor, chorar a infidelidade duma mulher
amada ou a perda da salvação eterna. Não sentia medo quando lhe
falavam dum comércio familiar com demónios e pareciam tu cá tu lá
com o diabo, nenhum despeito quando uma longa narrativa
circunstanciada deixava visivelmente o essencial em silêncio,
nenhuma impaciência quando se acusavam de pecados insensatos
inventados duma ponta à outra. Tudo quanto a si vinha de queixas,
confissões, acusações e crises de consciência, parecia perder-se no
seu ouvido como a água na areia do deserto; ele parecia não possuir
julgamento e não sentir nem piedade nem desprezo pelo seu
penitente. E contudo, ou talvez por isso mesmo, o que lhe
confessavam nunca parecia cair no vazio: transformava-se em
palavras, em coisas ouvidas e perdia desse modo peso e tragédia.
Só raramente lhe acontecia pronunciar uma admoestação ou uma
advertência, mais raramente ainda dar um conselho e com mais
forte razão uma ordem. Dir-se-ia que isso não era da sua
competência e os que lhe falavam também pareciam senti-lo. A sua
função consistia em despertar a confiança e em ser objeto dela, em
escutar com paciência e amor, em ajudar desse modo a confissão
que estava ainda apenas meio esboçada a tomar de repente forma,
em provocar o fluir e o esvaziar de tudo o que estava estagnado e
incrustado nas almas, em recolhê-lo e rodeá-lo de silêncio. No fim de
cada confissão, horrível ou inocente, contrita ou orgulhosa, mandava
simplesmente ajoelhar o penitente ao seu lado, dizia um pai-nosso e
depunha-lhe um beijo na testa antes de o mandar embora. Infligir
penitências e sanções não era com ele e também não se sentia com
poder para pronunciar uma absolvição verdadeira, sacerdotal. Nem a
condenação, nem o perdão eram da sua competência. Ao escutar e
ao compreender, parecia tomar sobre si uma parte da culpa e ajudar
a suportá-la. Ao calar-se, parecia enviar para o fundo o que tinha
ouvido e relegá-lo para o passado. Ao rezar com o seu penitente no
fim da confissão, era como se o aceitasse e o reconhecesse como
irmão e seu igual. Ao dar-lhe um beijo, parecia benzê-lo mais como
irmão do que como padre, com mais ternura do que solenidade.
A sua reputação espalhou-se por toda a região de Gaza, era
conhecido muito em redor e acontecia mesmo que associassem o
seu nome ao do grande e venerado confessor e eremita Dion Pugil;
para dizer a verdade, a reputação deste datava já de dez anos antes
e baseava-se em qualidades e hábitos completamente diferentes. O
Irmão Dion era de facto célebre por ler mais claramente e mais
depressa ainda nas almas que se lhe confiavam do que nas palavras
que pronunciavam. E não era raro surpreender um penitente
hesitante lançando-lhe à cara os pecados que ainda não tinha
confessado. Este conhecedor de almas, sobre quem Josephus ouvira
contar cem histórias espantosas e com o qual nunca ousara
comparar-se, tinha também recebido a graça de aconselhar as almas
transviadas; era um grande juiz, um justiceiro e um fautor da
ordem. Infligia penitências, mortificações e peregrinações,
consagrava uniões, forçava os inimigos a reconciliarem-se, e a sua
autoridade igualava a dum bispo. Vivia perto de Ascalão, mas os
suplicantes vinham vê-lo inclusivamente de Jerusalém e de lugares
ainda mais distantes.
Josephus Famulus, como a maior parte dos eremitas e dos
penitentes, travara durante longos anos uma luta apaixonada e
esgotante. Claro, tinha abandonado a vida do século, dado a sua
fortuna e a casa, voltado as costas à cidade, repelido os seus
múltiplos convites a gozar os prazeres do mundo e dos sentidos,
mas não pudera deixar de levar o seu ser consigo, e este levou
dentro de si todos os instintos do corpo e da alma que podem
induzir um homem em tentação e pô-lo em perigo. De início, lutara
sobretudo contra o seu corpo, mostrara-se duro e rigoroso com ele,
habituara-o ao calor e ao frio, à fome e à sede, às cicatrizes e às
bolhas, até que ele lentamente murchou e secou. Mas mesmo no
seu magro despojo de asceta, o velho homem que dormia dentro de
si tinha a baixeza de vir surpreendê-lo e atormentá-lo com uma
prodigiosa extravagância de desejos, concupiscências, sonhos e
comédias falaciosas. Nós não ignoramos que o diabo se consagra
com um cuidado especial aos desertores do século e aos penitentes.
Quando aconteceu que pessoas à procura de consolação e
padecentes de confissão se lhe dirigiram, ele reconheceu nisso, com
gratidão, um apelo da graça e achou que aliviava ao mesmo tempo a
sua vida de eremita. Ganhava assim um significado, um valor que o
ultrapassavam; era-lhe dada uma função, podia servir os outros ou
servir a Deus como instrumento para atrair as almas. Um sentimento
maravilhoso e que verdadeiramente o elevava. Mas com a
continuação, revelara-se que os próprios bens da alma pertencem
ainda a esta terra e podem tornar-se tentações e armadilhas. De
facto, muitas vezes, quando um desses viajantes a pé ou a cavalo
parava à frente da sua gruta para lhe pedir um gole de água e lhe
pedir em seguida que o ouvisse em confissão, um sentimento de
satisfação e de contentamento aflorava o nosso Josephus, um
contentamento consigo mesmo, vaidade e amor-próprio, que o
assustava profundamente mal dele se apercebia. Não era raro
implorar de joelhos perdão a Deus e pedir-lhe que não viesse mais
ninguém confessar-se ao ser indigno que ele era, nem das cabanas
dos penitentes das redondezas, seus irmãos, nem das aldeias e das
cidades do século. Contudo, mesmo quando de facto já não vinham
mais penitentes durante algum tempo, ele não se sentia melhor e,
quando em seguida vinham aos magotes, surpreendia-se a cometer
um novo pecado: acontecia-lhe, ao ouvir certas confissões, sentir
acessos de frieza e indiferença, ou mesmo de desprezo pelo
penitente. Assumiu também estes combates com um suspiro e
houve épocas em que se obrigava, depois de cada confissão que
ouvia, a exercícios solitários de humildade e expiação. Impôs-se
além disso, como lei, tratar todos os seus penitentes não apenas
como irmãos mas com um respeito particular e tanto maior quanto a
pessoa deles mais lhe desagradasse: acolhia-os como enviados de
Deus, vindos para o pôr à prova. E foi assim que ao longo dos anos,
já tarde, quando entrava já em anos, encontrou em certo equilíbrio
de vida, e aqueles que estavam na sua vizinhança tiveram a
impressão de que era um homem irrepreensível, que encontrara a
paz em Deus.
Mas a paz também é uma coisa viva e, como tudo o que é vivo,
cresce e mingua, adapta-se, suporta provações e metamorfoses. O
mesmo se passava com a paz de Josephus Famulus, que era
instável, ora visível ora escondida, ora próxima como um círio que
seguramos na mão, ora longínqua como uma estrela no céu de
inverno. Com o tempo a ajudar, foi um género de pecado e nova
tentação que veio cada vez com mais frequência tornar-lhe a vida
difícil. Não era uma emoção poderosa, apaixonada, uma revolta ou
uma exaltação dos instintos, antes parecia o contrário. Era um
sentimento que, nos seus primeiros estádios, era bastante fácil de
suportar, quase não se sentia, um torpor da alma, uma
languescência incómoda que não se deixava definir a não ser
negativamente, um apagamento, uma diminuição e finalmente uma
falta de alegria. Há dias sem sol sem serem maus, mas em que o sol
se recolhe e se fecha silenciosamente sobre si próprio, cinzento sem
ser negro, em que pesa sem atingir a tensão da trovoada: os dias de
Josephus tornaram-se pouco a pouco assim, à medida que ele
envelhecia. Cada vez menos as suas matinas se distinguiam das
vésperas, os dias de festa dos dias ordinários, as horas de exaltação
das horas de abatimento; tudo se escoava preguiçosamente na
inércia da lassidão e do aborrecimento. «É a idade», pensou
tristemente. Estava triste, pois esperara da idade e do
apaziguamento progressivo dos instintos e das paixões mais clareza
e um aligeirar da sua vida, um passo para a harmonia com que
sonhava e para a calma espiritual da maturidade. A idade parecia
dececioná-lo e iludi-lo, ao trazer apenas a lassidão e a cor cinzenta
daquele vazio sem alegria, apenas este sentimento de saciedade
incurável. Sentia-se farto de tudo: da existência pura e simples, de
respirar, do sono das noites, da vida na gruta à beira do pequeno
oásis, da eterna sucessão das tardes e das manhãs, da passagem
dos viajantes e dos peregrinos, dos cameleiros e dos condutores de
burros e, sobretudo, daquelas pessoas que vinham vê-lo de
propósito, daqueles seres um pouco loucos, cheios ao mesmo tempo
de temor e fé pueril, que sentiam a necessidade de lhe contar as
suas vidas, os seus pecados e as suas angústias, os assaltos que
sofriam e as censuras que faziam a eles próprios. Parecia-lhe às
vezes que havia uma semelhança entre a pequena fonte do oásis
cujas águas eram recolhidas num tanque pequeno que em seguida
corriam na erva e formavam um fio de água que ia para o deserto
de areia onde estagnavam e apodreciam depois de serem um curto
regato, e todas aquelas confissões, aquelas listas de pecados,
aquelas biografias, aquelas crises de consciência, pequenas ou
grandes, sérias ou orgulhosas, que confluíam para o seu ouvido, às
dúzias, às centenas, sempre renovadas. Mas o seu ouvido não
estava morto como a areia do deserto, vivia e não podia
eternamente beber, ingurgitar e absorver, sentia-se cansado,
fatigado por aquele abuso, aquele excesso, ansiava por um dia ouvir
acabar aquela corrente e aquele rumorejar de palavras, de
confissões, de preocupações, de queixas, de acusações pessoais,
conhecer o repouso, a morte e o silêncio depois daquele fluir sem
fim. Desejava verdadeiramente que isso acabasse, estava cansado,
farto, a sua vida parecia-lhe vazia e sem valor. Chegou mesmo, às
vezes, a ser tentado a acabar com os seus dias, punir-se e suprimir-
se, como fizera Judas, o traidor, ao enforcar-se. Assim como em
estádios anteriores da sua vida de penitente o diabo tinha
introduzido perfidamente na sua alma os desejos, as representações
e os sonhos da vida dos sentidos e do século, tentava-o agora com
imagens de suicídio. Chegava até a ir experimentar cada galho
grosso para ver se serviria para se enforcar, cada rochedo da região
para se certificar de que era bastante abrupto e bastante alto para
um salto mortal. Resistiu a esta tentação, lutou, não cedeu, mas
viveu dia e noite num inferno de ódio por si mesmo e de ânsia pela
morte. A vida tornara-se-lhe insuportável e odiosa.
Josephus tinha chegado a este ponto. Um dia em que se
encontrava no alto dum desses penedos, viu aparecer ao longe,
entre a terra e o céu, três vultos minúsculos. Eram manifestamente
viajantes, talvez peregrinos, talvez pessoas que vinham vê-lo para se
confessar e, de repente, foi assaltado por um desejo irresistível de
partir imediatamente, o mais depressa possível, de abandonar
aqueles lugares e aquela vida. Esse desejo tomou-o com tanta
violência instintiva que lhe varreu todas as ideias, objeções e
escrúpulos, pois, evidentemente, tinha muitas. Como é que um
piedoso penitente poderia obedecer a um instinto sem que a sua
consciência não se perturbasse? Corria já, regressava à gruta, à
morada que tinha sido o teatro de tantos combates ganhos, ninho
de tantas elevações e de tantas derrotas. Com uma pressa
desaustinada, muniu-se de alguns punhados de tâmaras e duma
cabaça de água, meteu tudo dentro do seu velho saco que pôs ao
ombro, pegou no bordão e deixou a verde paz da sua pequena
pátria, fugitivo perdido, desertor à face de Deus e dos homens,
desertando sobretudo do que outrora considerara o melhor da sua
vida, a sua função e a sua missão. Caminhou primeiramente como
um animal perseguido, como se os vultos que vira aparecer ao
longe, do alto do penedo, fossem realmente de inimigos que o
perseguissem. Mas passada uma hora a andar, perdeu essa pressa
ansiosa; o movimento trouxe-lhe um cansaço benigno e durante a
primeira paragem, para a qual se concedeu excecionalmente uma
pequena colação – tinha-se tornado para ele um hábito sagrado
nunca tomar nenhum alimento antes do pôr do Sol –, a sua razão,
treinada no pensamento solitário, começou a ganhar coragem e a
examinar o seu ato instintivo sob todos os ângulos. Por menos
razoável que este pudesse parecer, ela não o desaprovou,
considerou-o antes com benevolência, pois, pela primeira vez havia
muito, achou a sua maneira de agir inofensiva e inocente. Tinha-se
posto em fuga, subitamente e sem refletir, é verdade, mas não havia
vergonha nisso. Abandonara um posto que já não era capaz de
ocupar. Ao fugir confessara a si mesmo e aos possíveis espectadores
que era um incapaz. Renunciara a uma luta quotidiana e inútil e
reconhecera que estava batido, que perdera. E isso, segundo a
opinião da sua razão, nada tinha de grandioso, nem de heroico, não
era digno dum homem santo, mas era sincero e, segundo todas as
aparências, teria sido impossível fugir-lhe. Admirou-se então por ter
fugido tão tarde e suportado aquilo tanto tempo, tanto tempo que
foi! A luta, o espírito de desafio com que aguentara tanto tempo
aquela posição desesperada apareciam-lhe agora como um erro, ou
antes, como uma luta, um esforço frenético do seu amor-próprio e
do velho homem que dormitava dentro de si; julgou compreender
porque é que essa bravata tivera tão funestas e mesmo tão
diabólicas consequências, porque é que acabara por dilacerá-lo e lhe
embotar o coração, por possuí-lo com o desejo demoníaco de morrer
e destruir-se. Claro, um cristão não devia ser inimigo da morte;
claro, um penitente, um homem santo, devia considerar a vida como
um puro sacrifício. Mas a ideia de se dar voluntariamente à morte
era absolutamente diabólica, só podia nascer numa alma cujos
senhores e guardas já não eram anjos de Deus, mas os demónios do
mal. Ficou sentado durante algum tempo, perdido nos seus
pensamentos, consternado, e, finalmente, profundamente contrito e
perturbado, ao aperceber-se, ao tomar consciência da vida que
acabava de fazer, com o recuo que lhe davam aquelas poucas léguas
percorridas, uma vida desesperada de homem perseguido que
envelhece, que falhou a sua finalidade e torturado constantemente
pela tentação atroz de se pendurar do galho duma árvore, como
aquele que traiu o Salvador. Talvez no horror que tinha ao suicídio
existissem ainda restos duma noção pré-histórica, pré-cristã, do
antigo paganismo, a do uso antigo do sacrifício humano, em que se
escolhia o rei, o santo, o eleito da tribo, e não era raro que este
fosse obrigado a executar o sacrifício pelas suas próprias mãos. Não
era somente o facto de esse costume abolido e odioso lembrar os
tempos pré-históricos do paganismo que o fazia arrepiar-se de
horror, mas mais ainda o pensamento de que afinal a morte sofrida
pelo Redentor na cruz era apenas um sacrifício humano levado a
cabo voluntariamente. E de facto, refletindo bem, houvera um
pressentimento subjacente dessa consciência nos transportes do seu
desejo do suicídio, uma aspiração orgulhosamente má e feroz e
sacrificar-se ele mesmo e imitar dessa maneira o Redentor, duma
maneira, para dizer a verdade, ilícita, ou de indicar de maneira ilícita
que Ele não realizara totalmente a sua obra de redenção. Este
pensamento encheu-o de terror, mas sentiu também que tinha agora
escapado a esse perigo.
Considerou demoradamente esse penitente Josephus em que se
tornara e que, em vez de seguir os passos de Judas ou do
Crucificado, agora fugia, voltando a colocar-se deste modo nas mãos
de Deus. A sua vergonha e o seu desgosto cresciam à medida que
reconhecia mais distintamente o inferno donde escapara e, no fim, a
miséria atravessou-se-lhe na garganta, como um bocado de comida
que não passa, inchou, tornou-se uma pressão intolerável e de
repente encontrou uma saída, uma soltura num rio de lágrimas que
lhe fizeram um bem maravilhoso. Há quanto tempo já não sabia
chorar? As lágrimas correram, os olhos deixaram de ver, mas ele
livrou-se daquele estrangulamento mortal e, quando voltou a si,
quando sentiu o gosto do sal nos lábios e deu conta de que chorava,
pareceu-lhe por um momento ter reencontrado a infância e não
saber nada do mal. Sorriu, um pouco envergonhado pelas suas
lágrimas, acabou por se pôr de pé e retomou o seu caminho. Não se
sentia seguro, ignorando onde a fuga o conduziria e que iria ser feito
de si. Era como se fosse uma criança, mas já não havia um combate
nem vontade dentro de si. Sentia uma impressão de maior leveza e
o sentimento de ser guiado, chamado, atraído por uma voz boa e
longínqua, como se aquela viagem não fosse uma fuga, mas um
regresso ao redil. Sentiu-se cansado e também cansada a sua razão:
ela calava-se, ou descansava, ou não se julgava indispensável.
No poço de água onde Josephus passou a noite, vários condutores
de camelos tinham feito alto. Como também havia duas mulheres na
sua pequena sociedade, contentou-se em saudar com um gesto e
evitou entrar em conversas. Mas, depois de ter comido algumas
tâmaras ao fim do dia e ter rezado e se ter deitado, pôde em
contrapartida ouvir uma conversa que dois homens tiveram em voz
baixa, um velho e o outro mais novo, pois estavam estendidos muito
perto dele. Só um breve fragmento do diálogo havido lhe chegou, o
resto perdeu-se em murmúrios. Mas essa curta passagem bastou
para absorver a sua atenção e o seu interesse e ocupou a sua
reflexão durante metade da noite.
– É bom – ouviu dizer à voz do velho –, é bom quereres encontrar
um homem piedoso e confessares-te. Essas pessoas compreendem
tudo, eu que to diga. Sabem contentar-se com pão seco, há mesmo
mais do que um que percebe de milagres. Basta-lhes dizer uma
palavra a um leão que vai saltar e ele agacha-se, o malandro, e vai-
se embora furtivamente, de rabo entre as pernas. Sabem domar os
leões, sou eu que to diz. Há um, mais santo do que os outros, os
leões que domou cavaram-lhe mesmo a campa quando ele morreu;
cobriram-no delicadamente com terra por cima e durante muito
tempo estiveram sempre dois de guarda, dia e noite. E não
percebem só de domar leões. Um dia houve um que se pôs a dizer
orações a um centurião romano, um bruto cruel, o maior femeeiro
de toda a Ascalão; de tal modo lhe virou o coração mau que o
centurião se fez muito pequenino, foi-se embora cheio de medo
como um rato à procura dum buraco para se esconder. E depois o
tipo ficou quase irreconhecível, tanto se tornou tranquilo e humilde.
Há que dizer, e isso dá que pensar, que o homem morre pouco
depois.
– O santo?
– Não, o centurião. Chamava-se Varrão. Depois de o penitente lhe
ter feito ver e lhe despertar a consciência, acabou-se rapidamente.
Por duas vezes teve febre e ao fim de três meses era um homem
morto. Ora! Pior para ele! Mas mesmo assim eu sempre pensei: «O
penitente não só exorcizou o diabo que estava dentro dele como
deve ter pronunciado uma reza que o mandou desta para melhor.
– Um homem tão piedoso? Não posso crer.
– Acredita ou não acredites, meu velho. Mas a partir desse dia o
nosso homem mudou completamente, para não dizer que foi
enfeitiçado, e passados três meses...
Seguiu-se um silêncio e depois o mais novo prosseguiu: – Há por
aqui um penitente, deve viver algures por aqui, diz-se que vive
sozinho, junto a uma nascente pequena, ao longo do caminho de
Gaza. Chama-se Josephus, Josephus Famulus. Ouvi falar muito
dele.
– Ah, e então?
– É piedoso que mete medo, ao que parece, e sobretudo, nunca
olha para uma mulher. Se passarem camelos junto do seu retiro e
houver uma mulher empoleirada num, pode ter véus tão grossos
como isto, ele vira-lhe as costas e desaparece imediatamente no
meio dos penedos. Muita, mas muita gente foi-se já confessar a ele.
– Não são tantos como isso, doutra maneira já teria também
ouvido falar dele. E que é que ele sabe fazer, esse teu Famulus?
– Oh! É só para nos confessarmos. Se não valesse nada, se não
compreendesse nada, ninguém andava atrás dele. Aliás, conta-se
que ele raramente diz uma palavra; com ele não há berros, trovão,
castigos, nada disso. Parece que é um homem doce, mesmo tímido.
– Mas então que é que ele faz, se não berra com as pessoas, não
as castiga e não abre a boca?
– Parece que se contenta em ouvir e soltar suspiros maravilhosos
e em fazer o sinal da cruz.
– Cala-te! Mas que santo me saiu! Tu não vais ser tão estúpido
para correres atrás dum coitado dum padre que não diz nada!
– Sim, é o que quero fazer. Hei de encontrá-lo, não pode estar
longe daqui. Há bocado havia um pobre irmão que andava à volta
do bebedouro, amanhã pergunto-lhe. Este parece-se com um
penitente.
O velho escandalizou-se. – Deixa lá o teu penitente das nascentes
apodrecer na sua gruta! Um homem que não faz mais do que ouvir,
suspirar, que tem medo das mulheres, que não sabe nada e que não
compreende nada! Não, vou dizer-te quem deves ver. É longe daqui,
é verdade, e mesmo do outro lado de Ascalão, mas é o melhor
penitente e o melhor confessor que existe. Chama-se Dion, mas
tratam-no por Dion Pugil, que quer dizer pugilista, porque ele anda à
pancada com todos os diabos e quando lhe vão confessar a sua
vergonha, então, meu amigo, Pugil não solta suspiros e não fica de
boca fechada, desembesta e puxa a roupa ao pelo que só visto!
Parece que houve tipos que encheu de pancada, houve um que
obrigou a ficar uma noite inteira de joelhos em cima de pedras, e
além disso obrigou-o a dar quarenta moedas aos pobres. Isso é que
é um homem, irmãozinho, que quando o vires nem acreditas. Põe-se
a olhar para ti e até te tremem as pernas. E vê através de ti. E não
há cá suspiros; é um homem que tem aquilo no sangue e quando
não consegues dormir bem ou tens sonhos maus, visões e tudo o
que se segue, Pugil põe-te como novo, eu que to diga. E não to digo
por ter ouvido as mulheres falarem disso. Digo-te porque fui lá. Sim,
eu, ainda que seja um pobre diabo, um dia fui ver o penitente Dion,
o pugilista, tinha a consciência pesada de vergonha e crostas, e,
quando me vim embora, estava limpo e claro como uma estrela da
manhã, tão verdade como eu chamar-me David. Lembra-te: É Dion
que se chama, alcunhado de Pugil. Vai falar com ele assim que
possas e verás um verdadeiro milagre. Há prefeitos, anciãos e bispos
que foram pedir-lhe conselho.
– Sim – disse o outro –, se um dia voltar a passar por aqui,
pensarei nisso. Mas hoje é hoje e aqui é aqui. Como hoje estou aqui
e nas redondezas deve estar esse Josephus, de quem ouvi dizer
tanto bem...
– Ouviste dizer bem! Mas como pudeste engraçar com esse
Famulus?
– O que me agradou é que ele não ralha, não se encoleriza. Isso
agrada-me, há que dizê-lo. Não sou centurião, nem bispo. Sou um
tipo simples, mais para o tímido, não seria capaz de suportar muito
o fogo ou o enxofre. Não me importo, Deus é que sabe, que me
tratem com doçura, eu sou assim.
– Quem não gostaria? Ser tratado com doçura! Depois de te
confessares e teres feito a penitência, aceitado o castigo e te teres
purificado, então talvez seja bem o momento de te tratar com
doçura, mas não quando te apresentas ao teu confessor, ao teu juiz,
impuro e a cheirar pior que um chacal!
– Claro, claro! Não precisas de falar tão alto. As pessoas hão de
querer dormir.
De repente riu-se baixinho. – De facto também me contaram uma
boa sobre ele.
– Sobre quem?
– Sobre ele, o penitente Josephus. Depois da confissão ele tem o
hábito de saudar a pessoa, benzê-la no momento da partida e dar-
lhe um beijo na face ou na testa.
– O quê? Ele faz isso? Que hábito mais esquisito.
– E sabes que tem muito medo das mulheres. Pois bem, um dia
uma puta da região foi falar com ele, vestida de homem, ao que
contam; ele não dá conta de nada; ouve as suas mentiras e quando
ela acaba a confissão, eis que ele se inclina e lhe dá um beijo
solenemente.
O velho rebentou à gargalhada. O outro apressou-se a mandá-lo
calar. E Josephus não ouviu mais nada além daquele riso mal contido
que se prolongou ainda por algum tempo.
Ergueu os olhos ao céu. O crescente da Lua aparecia, nítido e
delgado, por entre os ramos das palmeiras; o frio da noite fê-lo
arrepiar-se. Esta conversa noturna dos condutores de camelos
mostrara-lhe, com a estranheza dum espelho deformante, a imagem
no entanto instrutiva da personagem e do papel a que deixara de
ser fiel. De modo que uma prostituta permitira-se essa brincadeira
consigo! Mas isso não era o mais grave, ainda que fosse bastante. O
diálogo dos dois desconhecidos deu-lhe matéria para longas
reflexões. E quando finalmente, muito tarde, conseguiu adormecer,
conseguiu-o somente porque as suas reflexões não tinham sido em
vão. Tinha chegado a uma conclusão, a uma resolução e foi com
essa decisão ainda fresca no coração que dormiu profundamente até
ao nascer do dia sem ser incomodado.
Era precisamente aquela decisão que o mais novo dos dois
condutores de camelos não pudera tomar. Decidira seguir o conselho
do mais velho e ir ver Dion, dito Pugil, cuja existência era há muito
sua conhecida e de quem ouvira nessa noite cantar louvores com
tanta insistência. Esse célebre confessor, juiz das almas e dador de
conselhos, saberia aconselhá-lo, julgá-lo, castigá-lo, orientá-lo. Era
perante ele que queria comparecer, como perante um representante
de Deus, e aceitar de bom grado o que lhe ordenasse.
No dia seguinte partiu do poço quando os dois homens ainda
dormiam. Uma caminhada penosa permitiu-lhe alcançar, ainda com
dia, um lugar que sabia habitado por irmãos na fé e onde esperava
alcançar o caminho habitual para Ascalão.
Quando chegou à noite, descobriu a paisagem verde e acolhedora
dum oásis pequeno; viu aparecer árvores, ouviu uma cabra balir,
julgou distinguir na sombra verde contornos de tetos de cabanas e
farejar uma proximidade humana. Quando se aproximou com
hesitação, julgou sentir que o observavam. Parou, examinou as
redondezas e viu debaixo das primeiras árvores, encostado a um
tronco, um vulto sentado, um homem velho muito direito, de barba
branca como gelo e de rosto digno, mas severo e composto, que
tinha os olhos voltados para si e devia observá-lo há algum tempo.
Este velho tinha um olhar firme e penetrante, mas desprovido de
expressão, como um homem habituado a observar mas sem
curiosidade nem simpatia, que deixa as coisas e as pessoas virem a
ele e procura conhecê-las, mas sem as atrair ou convidar.
– Louvado seja Jesus Cristo! – exclamou Josephus.
O velho respondeu com um murmúrio.
– Permiti-me que vos pergunte – disse Josephus – se sois como
eu estrangeiro nesta região ou se morais nesta bela congregação?
– Não sou daqui – retorquiu o velho de barba branca.
– Respeitável velho, talvez possais dizer-me então se é possível
alcançar daqui o caminho de Ascalão?
– É possível – respondeu o velho e ergueu-se lentamente, um
gigante descarnado, de membros um pouco hirtos. Ficou imóvel, a
olhar para o horizonte vazio. Josephus sentia que aquele velho
gigantesco não tinha vontade de iniciar uma conversa, mas quis
ainda arriscar mais uma pergunta.
– Permiti-me que vos pergunte mais uma coisa, respeitável velho

disse cortesmente e viu o rosto do homem desprender-se do
horizonte para o considerar fria e atentamente.
– Conheceis o lugar onde se pode encontrar o Irmão Dion, a
quem chamam Dion Pugil?
O estrangeiro franziu levemente as sobrancelhas e o seu olhar
tornou-se ainda mais frio.
– Conheço – disse numa voz breve.
– Conheceis? – exclamou Josephus. – Oh! então, dizei-mo, pois é
para lá, para o Irmão Dion, que vou de viagem.
O grande velho lançou-lhe do alto um olhar inquisidor. Demorou
muito a resposta, depois voltou ao seu tronco de árvore, acocorou-
se lentamente e sentou-se, encostado ao tronco como
anteriormente. Com um pequeno gesto da mão convidou Josephus a
imitá-lo. Este obedeceu; ao sentar-se sentiu o grande cansaço dos
seus membros, mas esqueceu-o imediatamente, para concentrar
toda a sua atenção no velho. Este parecia mergulhado em
meditação; uma expressão severa e rebarbativa apareceu no seu
rosto imponente, mas parecia dobrada por uma outra, dum segundo
rosto, e como que velada por uma máscara transparente que
exprimia uma dor antiga e solitária a que o seu orgulho e a sua
dignidade não davam livre curso.
Passou-se muito tempo antes que esta personagem venerável
voltasse novamente os olhos para Josephus. O seu olhar examinou-o
mais uma vez com insistência e de repente perguntou-lhe, num tom
de comando:
– Quem sois então, homem?
– Sou um penitente – respondeu Josephus. – Durante anos vivi a
vida dos eremitas.
– Isso vê-se. Pergunto quem sois.
– Chamo-me Josephus, dito Famulus.
Quando Josephus pronunciou o seu nome, o velho, no único
movimento que fez, franziu tanto as sobrancelhas que os seus olhos
deixaram por um momento de ser visíveis. Pareceu emocionado,
assustado ou desiludido com o que Josephus acabava de dizer, a não
ser que fosse apenas a fadiga dos seus olhos, uma perda de
atenção, ou uma pequena fraqueza passageira como têm as pessoas
de idade. A verdade é que permaneceu completamente imóvel;
manteve ainda durante algum tempo as pálpebras cerradas e,
quando as abriu, o seu olhar tinha mudado, parecia ainda mais
velho, se tal fosse possível, mais solitário, mais petrificado e mais
expectante. Abriu lentamente os lábios para perguntar: – Ouvi falar
de vós. Sois aquele a quem as pessoas vão confessar-se?
Josephus respondeu afirmativamente, com embaraço.
Reconhecido, tinha a impressão desagradável de estar despido e,
pela segunda vez já, o reconhecimento da sua fama envergonhou-
o.
O velho perguntou-lhe ainda com a sua concisão habitual: – Então
queríeis agora ir falar com Dion Pugil? Que lhe quereis?
– Queria confessar-me a ele.
– Que esperais disso?
– Não sei. Confio nele e parece-me mesmo que é uma voz do alto,
uma inspiração que me conduz para ele.
– E depois de vos confessardes, que fareis?...
– Farei o que ele me ordenar.
– E se ele vos der um mau conselho ou uma ordem nefasta?
– Não irei ver se é falsa ou não, obedecerei.
O velho não proferiu mais nenhuma palavra. O Sol tinha baixado,
um pássaro cantava nas folhas da árvore. Como o velho se
mantivesse silencioso, Josephus levantou-se. Voltou ainda
timidamente à pergunta que tinha feito.
– Dissestes que conhecíeis o sítio onde se pode encontrar o Irmão
Dion. Posso pedir-vos que me digais o seu nome e me descrevais o
caminho para lá?
O velho mordeu os lábios com uma espécie de fraco sorriso. –
Julgais – perguntou docemente – que sereis bem-vindo à sua casa?
Penetrado por um estranho medo, Josephus não respondeu. Ficou
imóvel, embaraçado.
Então disse: – Posso pelo menos esperar voltar a ver-vos?
O velho saudou-o com um gesto e respondeu: – Vou dormir aqui e
partirei pouco depois do nascer do Sol. Ide agora, estais fatigado e
tendes fome.
Josephus prosseguiu o seu caminho depois de o ter saudado
respeitosamente e chegou à pequena colónia no momento em que o
crepúsculo caía. Naquele lugar habitavam, como num mosteiro,
vários desses homens a quem chamavam anacoretas. Eram cristãos
vindos das cidades e de localidades diversas que tinham construído
aqui um abrigo retirado, para se entregarem, sem serem
incomodados, a uma vida simples e pura, de silêncio e
contemplação. Deram-lhe água, alimento e uma esteira para a noite.
Vendo o seu cansaço, pouparam-no às perguntas e à conversa. Um
disse uma oração da noite; os outros participaram de joelhos e
pronunciaram o amém em conjunto. Noutros tempos teria sido para
si um acontecimento e uma alegria partilhar da vida desta
comunidade de homens piedosos, mas agora já só tinha uma coisa
na cabeça e, ao romper do dia, apressou-se a voltar ao sítio onde na
véspera deixara o velho. Encontrou-o deitado no chão, a dormir,
enrolado numa delgada esteira. Josephus sentou-se, afastado,
debaixo das árvores, para esperar que ele acordasse. O homem não
tardou a agitar-se, acordou, desembaraçou-se da esteira, ergueu-se
pesadamente e espreguiçou os membros entorpecidos, depois
ajoelhou-se no chão e rezou. Quando se ergueu, Josephus
aproximou-se e inclinou-se sem dizer palavra.
– Já comeste? – perguntou-lhe o desconhecido.
– Não, tenho o hábito de só comer uma vez por dia e apenas
depois do pôr do Sol. Tendes fome, venerável amigo?
– Estamos de viagem – disse este – e já não somos jovens, nem
um nem outro. É melhor comermos um bocado, antes de
continuarmos o nosso caminho.
Josephus abriu o saco e ofereceu-lhe algumas das suas tâmaras.
As boas pessoas em casa de quem passara a noite tinham-lhe dado
também um pão de milho-miúdo que partilhou com o velho.
– Podemos partir – disse o velho, depois de terem comido.
– Oh! Vamos juntos? – exclamou Josephus com alegria.
– Claro. Tu pediste-me que te conduzisse junto de Dion. Anda
daí.
Josephus olhou para ele, admirado e feliz. – Como sois bom! –
exclamou e ia alargar-se em protestos de gratidão mas o
desconhecido calou-o com um gesto rude da mão.
– Só Deus é bom – disse. – Agora partamos. E trata-me por tu,
como te digo. Para quê maneiras e delicadezas entre dois velhos
penitentes?
O grande velho arrancou e Josephus foi atrás dele. O dia tinha
nascido. O guia parecia seguro da direção e do caminho. Prometeu
que pelo meio-dia encontrariam um sítio à sombra onde poderiam
parar durante as horas em que o Sol queimava mais. Não voltaram a
falar durante o resto do caminho.
Foi só quando chegaram a esse sítio, ao fim de várias horas de
grande calor, que descansaram à sombra de rochas esfareladas e
Josephus dirigiu novamente a palavra ao seu guia. Perguntou-lhe
quantos dias faltavam, mais ou menos, para chegarem junto de Dion
Pugil.
– Isso depende unicamente de ti – disse o velho.
– De mim? – exclamou Josephus. – Ah, se dependesse só de mim,
estaria à sua frente ainda hoje mesmo.
Tão-pouco agora o velho parecia estar de humor para falar.
– Veremos – disse brevemente, deitando-se de lado e fechando os
olhos. Era desagradável a Josephus vê-lo dormir. Retirou-se, um
pouco afastado, sem barulho, deitou-se e, contrariamente às suas
previsões, adormeceu também, pois estivera acordado durante
muito tempo nessa noite. O seu guia acordou-o quando achou que
era altura de partirem.
Ao fim da tarde chegaram a um acampamento onde havia água,
árvores e onde crescia a erva. Beberam, lavaram-se e o velho
decidiu ficar ali. Josephus não era dessa opinião e levantou um
tímido protesto.
– Tu disseste hoje – lembrou – que dependia só de mim chegar
mais ou menos cedo ao Irmão Dion. Estou pronto a caminhar ainda
muitas horas, se verdadeiramente posso estar com ele hoje ou
amanhã.
– Ah, não! – exclamou o outro. – Por hoje já fomos bastante
longe.
– Desculpa-me – disse Josephus –, mas não podes compreender a
minha impaciência.
– Compreendo. Mas não te será de nenhum socorro.
– Então porque é que dizias que dependia de mim?
– É como te disse. Logo que estejas certo de querer confessar-te
e estejas pronto e maduro para a confissão, poderás fazê-la.
– Ainda hoje mesmo?
– Ainda hoje mesmo.
Josephus olhou estupefacto para o rosto tranquilo do velho.
– Será possível? – exclamou, perturbado. – Tu és o Irmão Dion?
O velho fez um sinal de cabeça afirmativo.
– Descansa aqui debaixo destas árvores – disse-lhe delicadamente
–,
mas não durmas, concentra-te antes. Eu também vou descansar e
concentrar-me. Depois poderás dizer-me o que desejas confiar-me.
Josephus via-se deste modo chegado de repente ao seu fim e
custava-lhe a compreender agora que não tivesse reconhecido e
adivinhado mais cedo ao lado de que homem venerável tinha
caminhado durante um dia inteiro. Afastou-se, ajoelhou-se, rezou e
concentrou todos os seus pensamentos no que tinha a dizer ao seu
confessor. Passada uma hora voltou e perguntou a Dion se estava
pronto.
E então foi-lhe concedido confessar-se. Tudo quanto vivera desde
há anos, o que desde há muito julgava ter perdido do seu valor e do
seu sentido transbordou dos seus lábios na forma de relatos,
queixas, perguntas, um requisitório contra si mesmo, toda a história
da sua vida de cristão e de penitente que concebera e adotara para
se purificar e santificar, e que finalmente desembocara em tanta
confusão, trevas e desespero. Também não passou em silêncio os
acontecimentos mais recentes da sua vida, a fuga e o sentimento de
libertação e de esperança que esta lhe dera, a génese da decisão de
ir ter com Dion, o encontro entre ambos e a confiança, o afeto que
concebera imediatamente por ele, mas também não lhe escondeu
que, por várias vezes durante este dia, o tinha julgado frio, estranho
e até lunático.
O Sol estava já baixo quando acabou. O velho Dion escutara-o
guardando-se de o interromper e interrogar. E mesmo agora que a
confissão estava acabada, nem uma palavra saía dos seus lábios.
Ergueu-se pesadamente, olhou para Josephus com muito amor,
inclinou-se, beijou-o na testa e fez por cima dele o sinal da cruz. Só
mais tarde Josephus deu conta de que esse era o gesto mudo e
fraterno de renúncia a todo o veredito com que mandara embora
tantos penitentes.
Comeram passado algum tempo, pronunciaram a oração da noite
e deitaram-se. Josephus refletiu ainda algum tempo e esforçou-se:
esperava na verdade uma maldição e uma reprimenda e, apesar
disso, não sentia nem deceção nem inquietação. O olhar e o beijo
fraterno de Dion tinham bastado, a paz reinava dentro de si, não
tardou a cair num sono benfeitor.
Sem palavras inutéis o velho levou-o no dia seguinte consigo,
fizeram então uma etapa bastante longa, depois ainda mais quatro
ou cinco parecidas e chegaram depois ao eremitério de Dion. Foi aí
que passaram a viver dali em diante. Josephus ajudou Dion nos seus
pequenos afazeres diários, aprendeu a conhecer e a partilhar da sua
vida quotidiana, que não diferia nada da que tinha feito durante
muitos anos. Mas agora já não estava sozinho, vivia na sombra e
sob a proteção de alguém e esta era no fundo uma vida
inteiramente diferente. Das congregações das cercanias, de Ascalão
e ainda de mais longe, vinham continuamente pessoas à procura de
conselhos e necessitadas de confissão. De início, Josephus retirava-
se precipitadamente de cada vez que vinham visitantes deste tipo e
só voltava a aparecer depois de eles terem partido. Mas cada vez
com mais frequência Dion o chamou, como se chama um criado,
mandando-o trazer-lhe água ou que fosse fazer qualquer outra
coisa, e depois de ter assim procedido durante algum tempo,
habituou Josephus a ser de longe a longe ouvinte duma confissão,
quando o penitente não ficava desconfiado. Mas muitos deles, a
maior parte mesmo, não se zangavam por não ficarem sozinhos com
o temido Irmão Pugil, fosse de pé, sentados ou de joelhos.
Preferiam a companhia daquela ajuda silenciosa, de olhar amável e
compassivo. Aprendeu assim, pouco a pouco, a maneira que Dion
tinha de escutar as confissões, o estilo dos seus discursos de
consolação, das suas intervenções e das suas reprimendas, das
sanções e dos conselhos. Só raramente se permitia fazer uma
pergunta, como fez por exemplo no dia em que um erudito, um belo
espírito, lhes fez uma visita de passagem.
Ressaltava das narrativas desse homem que ele tinha amigos
entre os magos e os astrónomos. Durante uma pausa ficou sentado
uma hora ou duas junto dos nossos penitentes. Era um hóspede
cortês e loquaz. Falou demoradamente, sabiamente e com elegância
dos astros e do périplo que o homem, dizia ele, tem de percorrer,
bem como todos os seus deuses do início ao fim da era cósmica,
através de todas as moradas do zodíaco. Falou de Adão, o primeiro
homem, e disse que ele e Jesus eram só um, o Crucificado, a viagem
de Adão da árvore do conhecimento à da vida é um apelo à
redenção. Quanto à serpente do paraíso, qualificou-a de guarda da
fonte sagrada, dos abismos tenebrosos cujas águas negras
engendraram o processo da individuação, todos os homens e todos
os deuses. Dion ouvia atentamente este homem cujo sírio era
fortemente impregnado de grego e Josephus admirou-se,
escandalizou-se mesmo, por não o ouvir repelir, refutar e condenar
com paixão e ardor esses erros pagãos, e por ver que, pelo
contrário, o subtil monólogo deste douto peregrino parecia distraí-lo
e despertar a sua simpatia, pois não se contentava em ser todo
ouvidos, sorria e aprovava também frequentemente, com um sinal
da cabeça, uma palavra do orador, como se lhe tivesse agradado.
Quando este homem partiu, Josephus perguntou-lhe num tom
veemente e quase de censura: – Como é que ouviste tão
pacientemente as doutrinas erradas deste pagão incrédulo? Que
digo? Não somente as escutaste com paciência mas, ao que me
pareceu, quase com simpatia e um certo prazer. Porque é que não
ficaste de pé atrás? Porque é que não tentaste refutar esse
indivíduo, castigá-lo e convertê-lo à fé no nosso Senhor?
Dion abanou a cabeça, no alto do seu delgado pescoço cheio de
rugas, e respondeu: – Não o contradisse, pois não teria servido de
nada e sobretudo porque seria absolutamente incapaz. Não há
dúvida de que este homem me ultrapassa de longe na arte da
palavra, do raciocínio e no conhecimento da mitologia e das estrelas.
Não teria podido nada contra ele. E, por outro lado, meu filho, não é
nem o meu papel nem o teu discutir a fé dum homem, pretendendo
que é só erro e mentira. Confesso que ouvi este homem inteligente
com um certo prazer, isso não te escapou. Dava-me prazer porque
ele falava admiravelmente e sabia muita coisa, mas sobretudo
porque me lembrava a minha juventude, pois nos meus verdes anos
ocupei-me muito precisamente com esse género de estudos e
conhecimentos. Os pormenores mitológicos de que este estrangeiro
tão belamente nos falou não são erros nenhuns. São as
representações e os símbolos duma crença de que já não
necessitamos, porque adquirimos a fé em Jesus, o único Redentor.
Mas aqueles que ainda não chegaram lá, que nunca lá poderão
chegar, têm motivo para venerar a sua fé, que nasceu da antiga
sabedoria dos seus pais. Claro, meu caro, a nossa crença é
diferente, totalmente diferente. Mas não é porque a nossa fé não
tenha nada a fazer com a teoria dos astros e dos éons, das águas
matriciais, das mães do mundo e de todos esses símbolos, que essas
doutrinas constituem em si um erro, uma mentira ou um engano.
– Mas a nossa fé – exclamou Josephus – é mesmo assim a melhor
e Jesus morreu por todos os homens; por consequência, os que a
conhecem devem combater essas doutrinas doutras eras e
substituir-lhes a nova, a verdadeira!
– Há muito que o fizemos, tu e eu, e muitos outros mais – disse
Dion com calma. – Nós acreditamos porque a fé, isto é, o poder do
Redentor e da sua morte redentora, se nos impôs. Ora, os outros, os
mitólogos e os teólogos do zodíaco e das doutrinas antigas, não
sofreram, ainda não sofreram o atentado deste poder, e não nos é
dado obrigá-los a sofrê-la. Não notaste, Josephus, com que graça e
habilidade extremas este mitólogo sabia conversar, como combinava
o seu jogo de figuras e que prazer havia nisso, não viste que paz e
que harmonia ele conhecia na sabedoria das imagens e dos
símbolos? Pois bem, é sinal de que nenhuma grande dor o
atormenta, que está satisfeito, que o seu destino é feliz. Ora, às
pessoas felizes nós nada temos a dizer. Para que um homem sinta a
necessidade da redenção e da fé redentora, para que não encontre
mais alegria na sabedoria e na harmonia dos seus pensamentos e
assuma o grande risco de acreditar no milagre da redenção, é
preciso, em primeiro lugar, que conheça a infelicidade, uma
infelicidade muito grande, tem de precisar da experiência da dor e
da deceção, da amargura e do desespero, tem de lhe subir à
garganta o fel. Não, Josephus, deixemos este sábio pagão entregue
à sua felicidade, deixemo-lo gozar da felicidade da sua sabedoria, do
seu pensamento e da sua eloquência! Amanhã talvez, ou daqui a um
ano, dez anos, será presa da dor que destruirá a sua arte e a sua
sabedoria. É possível que lhe matem a mulher que ama, ou o seu
filho único, ou que seja vítima da doença e da pobreza. Então, se
voltarmos a encontrá-lo, ocupar-nos-emos dele e dir-lhe-emos como
tentámos dominar a dor. E se ele nos perguntar: «Porque é que não
mo disseste ontem, porque é que mo não disseste há dez anos?»,
responder-lhe-emos: «Nessa altura ainda não eras bastante infeliz.»
Tornara-se grave e ficou um momento silencioso. Depois, como se
saísse da visão das suas recordações, acrescentou: – Brinquei muito
com a sapiência dos nossos pais e tive prazer nisso. Mesmo quando
seguia já a via da cruz, ainda me divertiu muito fazer de teólogo e,
na verdade, também me atormentou muito. O que mais ocupava os
meus pensamentos era a criação do mundo e o facto de que, no fim
desta obra, tudo deveria ser, em suma, perfeito, pois foi dito: «Deus
lançou os olhos sobre toda a sua obra e tudo estava bem feito.» Na
realidade, a excelência e a perfeição só duraram um instante, o do
paraíso; logo a seguir, o erro e a maldição tinham-se já instalado,
pois Adão comera o fruto da árvore, que estava proibido de provar.
Ora, segundo certos mestres, o Deus que realizou a criação, com
Adão e a árvore do conhecimento, não era o Deus único e supremo,
mas apenas uma parte dele, ou um Deus subalterno, o demiurgo; a
Sua criação, diziam eles, não era boa, era, antes pelo contrário, um
fracasso; o que tinha sido criado passava a ser maldito e entregue
ao maligno por toda uma era cósmica, até que o Deus-Espírito único
decidisse pôr fim a este período de maldição por intermédio do seu
Filho. A partir daí, ensinavam eles, e isso correspondia também ao
meu pensamento, o demiurgo e a sua criação começaram a perecer,
o mundo morre pouco a pouco, murchará, até que venha uma era
cósmica nova, onde já não haverá mais criação, nem universo, nem
carne, nem concupiscência, nem pecado, mais seres engendrados
pela carne, mais nascimentos nem mortos, até que surja um mundo
de perfeição, de espiritualidade e de redenção, livre da maldição de
Adão, do eterno e funesto arrastar do desejo, da conceção, do
nascimento e da morte. Era o demiurgo mais que o primeiro homem
que declarávamos culpado pelos males atuais no universo.
Achávamos que lhe teria sido fácil, se ele fosse realmente o próprio
Deus, criar Adão diferente ou evitar-lhe a tentação. A conclusão das
nossas deduções era, por conseguinte, a existência de dois Deuses,
o Criador e o Pai, e não tínhamos medo de pronunciar sobre o
primeiro um veredito de condenação. Havia mesmo aqueles que iam
mais longe e afirmavam que a criação não tinha sequer sido obra de
Deus mas do Diabo. Imaginávamos, com as nossas subtilezas,
ajudar o Redentor e o advento da era do espírito. Arranjávamos
deuses, mundos e planos cósmicos, discutíamos e fazíamos teologia.
Mas um dia veio em que fui apanhado por uma febre e adoeci de
morte. Nos meus sonhos estava sempre o demiurgo; eu tinha de
fazer a guerra, espalhar sangue; as minhas visões e as minhas
angústias tornaram-se cada vez mais atrozes até que, na noite da
minha febre mais forte, me veio a convicção de que devia matar a
minha mãe para apagar a minha origem carnal. O Diabo, nestes
sonhos, perseguia-me com toda a sua matilha. Mas curei-me e, para
grande deceção dos meus antigos amigos, foi um pateta, um
taciturno sem espírito que voltou à vida, que recobrou, claro, em
pouco tempo, as forças do seu corpo, mas não o gosto de filosofar.
Pois durante os dias e as noites da minha convalescença, quando
aqueles sonhos abomináveis desapareceram e quando dormia quase
sempre, em todos os momentos de vigília sentia o Redentor ao meu
lado, sentia uma força emanar dele e vir para mim. E quando
recuperei a saúde, afligi-me por já não conseguir senti-lo ao meu
lado. Em vez disso senti um desejo profundo dessa presença e
descobri então isto: a partir do momento em que dava atenção às
discussões, apercebia-me de que essa ânsia, que era então o melhor
dos meus bens, corria o perigo de desaparecer e perder-se nos
pensamentos e nas palavras, como a água que a areia bebe. Em
resumo, meu caro, acabei com a subtileza e a teologia. A partir daí
faço parte dos simples de espírito. Mas quando um homem percebe
de filosofia e de mitologia, quando sabe jogar esses jogos em que
outrora me exercitei, não gostaria de o impedir, nem desprezá-lo. Se
antigamente tive de me contentar em considerar incompreensíveis a
interpenetração e a coexistência do demiurgo e do Deus-Espírito, da
criação e da redenção como enigmas insolúveis para mim, tenho
também de aceitar não fazer dum filósofo um crente. Não é a minha
função.
Um dia em que um homem lhe tinha confessado ter cometido
assassínio e adultério, Dion disse ao seu ajudante: – Um assassínio e
um adultério, isso é bem infame e bem considerável, e certamente é
bastante grave, sei-o. Mas digo-te, Josephus, na realidade estes
homens do século não são verdadeiros pecadores. De cada vez que
tento em pensamento meter-me na pele de um deles, é como se
fossem verdadeiras crianças. Não são delicados, nem bons, nem
nobres; são egoístas, lúbricos, orgulhosos, coléricos, é verdade, mas
no fundo são inocentes, inocentes precisamente como as crianças.
– Mas no entanto – disse Josephus – muitas vezes pedes-lhes
contas com veemência e apresentas aos seus olhos a imagem do
inferno.
– É justamente para isso. São crianças e quando têm escrúpulos
de consciência e vêm confessar-se, querem ser levados a sério e
insistem também em serem repreendidos seriamente. Pelo menos é
o que eu penso. Tu procedias doutro modo, antigamente, não
repreendias ninguém, não impunhas nem sanções nem penitência;
antes pelo contrário, mostravas-te benevolente e contentavas-te em
mandá-los embora com um beijo fraterno. Não quero criticar isso,
não, mas eu nunca seria capaz disso.
– Seja – disse Josephus com hesitação –, mas diz-me, no dia em
que me confessei, porque é que não me trataste como os teus
outros pacientes, porque é que, pelo contrário, me abraçaste em
silêncio e não me falaste de sanções?
Dion Pugil fixou nele o seu olhar penetrante. – Não procedi bem?

perguntou.
– Não digo que não tenhas tido razão. Agiste bem, certamente,
senão essa confissão não me teria feito tanto bem.
– Então não penses mais nisso. Impus-te, então, também a ti,
uma penitência severa e longa, se bem que não to tenha dito.
Trouxe-te comigo, tratei-te como criado e reduzi-te a estas funções a
que querias furtar-te.
Afastou-se. Era inimigo de conversas longas. Mas desta vez
Josephus mostrou-se tenaz.
– Sabias de antemão que eu te obedeceria, tinha-to prometido
antes de me confessar e mesmo antes de te conhecer. Não, diz-me:
foi unicamente por essa razão que agiste desse modo comigo?
O outro deu alguns passos dum lado para o outro, parou à frente
dele, pousou-lhe a mão no ombro e disse: – Os homens do século
são crianças, meu filho, e os santos... pois bem, não vêm confessar-
se a nós. Quanto a nós, tu e eu e os nossos iguais, nós, penitentes e
que procuramos, que desertámos do mundo, não somos crianças,
não somos inocentes e não são as admoestações que nos porão a
alma em ordem. Os verdadeiros pecadores somos nós, nós que
sabemos e que pensamos, nós que provámos da árvore do
conhecimento: não deveríamos, por conseguinte, tratar-nos
mutuamente como crianças a quem se dá umas vergastadas e que
depois se deixa ir embora. Depois duma confissão e duma
penitência, não vamos correr para esse mundo infantil onde se
celebram festas, onde se fazem negócios e onde se mata quando
calha. O pecado não nos aparece como um vertiginoso sonho mau,
de que nos desembaraçamos por meio de confissões e sacrifícios.
Vivemos nele, nunca estamos inocentes, somos pecadores
permanentes, a nossa morada é o pecado e o braseiro da
consciência; sabemos que nunca poderemos pagar a dívida, a não
ser que Deus nos perdoe depois da partida daqui de baixo e nos
conceda a sua graça. É por esta razão, Josephus, que não posso
fazer-te um sermão, nem ditar-te penitências, como também não a
mim. Não é com este ou aquele ato transviado ou com esta ou
aquela má ação que lidamos, mas perpetuamente com a própria
falta original; nós, por conseguinte, só podemos assegurar aos
outros que estamos ao corrente e que gostamos deles como irmãos,
não podemos curá-los por meio duma sanção. Não sabias?
Josephus respondeu em voz baixa: – É verdade. Sabia.
– Deixemo-nos então de discursos vãos – disse o velho numa voz
breve, dirigindo-se para a pedra colocada à frente da sua cabana e
sobre a qual se habituara a rezar.
Passaram-se alguns anos. O Irmão Dion era às vezes vítima duma
fraqueza que obrigava Josephus a ajudá-lo de manhã, pois não era
capaz de sentar-se sozinho. Depois ia rezar e após esta oração
também não era capaz de se pôr de pé sozinho. Josephus tinha de o
ajudar. Depois ficava sentado durante todo o dia a olhar para longe.
Era muitas vezes assim; em certas alturas o velho conseguia
levantar-se sozinho. Tão-pouco podia ouvir todos os dias confissões,
e, quando um penitente se tinha confessado a Josephus, Dion
chamava-o em seguida e dizia-lhe: – O meu fim está próximo, meu
filho, está próximo. Diz às pessoas que este Josephus que veem é o
meu sucessor. – E quando Josephus queria defender-se e dizer de
seu direito, o velho fixava-o com aquele olhar terrível que o
penetrava como um raio de gelo.
Um dia em que se levantara sem ajuda e parecia mais forte,
chamou Josephus para junto de si e conduziu-o a um sítio na orla do
pequeno jardim de ambos.
– É aqui – disse – que me hás de enterrar. Vamos cavar juntos a
minha campa, penso que ainda nos resta algum tempo. Vai buscar-
me a pá.
Dali em diante, todos os dias, à alva, cavaram um pouco. Quando
Dion tinha força, tirava ele mesmo algumas pazadas de terra, com
grande dificuldade, mas com uma certa alegria, como se este
trabalho lhe desse prazer. Ao longo do dia não perdia essa
jovialidade; a partir do momento em que começaram a cavar a sua
sepultura ele esteve sempre de bom humor.
– Plantas-lhe uma palmeira em cima – disse um dia, enquanto
trabalhavam. – Talvez ainda comas frutos dela. Se não fores tu,
outro o fará. Aconteceu-me de longe a longe plantar uma árvore,
mas muitíssimo raramente, muitíssimo raramente. Alguns dizem que
um homem não deveria morrer sem ter plantado uma árvore e
deixado um filho. Pois bem, eu deixarei depois de mim uma árvore e
deixar-te-ei também a ti, que és meu filho.
Estava calmo e mais sereno do que nunca Josephus o conhecera e
ainda veio a tornar-se mais calmo. Uma tarde, ao cair do dia –
tinham já tomado a refeição e rezado –, da sua cama, chamou
Josephus e pediu-lhe que ficasse ainda um bocadinho com ele.
– Vou contar-te uma coisa – disse amistosamente. Parecia ainda
não sentir cansaço nem sono. – Lembras-te, Josephus, dos maus
momentos que passaste outrora no teu eremitério, perto de Gaza?
Estavas farto da vida. E lembras-te de como fugiste e decidiste ir ao
encontro do velha Dion e contar-lhe a tua história? E depois, na
colónia dos penitentes, encontraste aquele velho a quem
perguntaste onde morava Dion Pugil. Pois bem, não foi um milagre
que esse velho fosse o próprio Dion? Vou dizer-te agora como se
passou tudo, pois também para mim foi um acontecimento singular
e uma espécie de milagre.
«Sabes o que sente um penitente e confessor quando fica velho e
já ouviu todas as confissões dos pecadores que o tomam por um
santo, puro de todo o pecado, e que não sabem que ele ainda é
mais pecador do que eles. Então tudo o que fez lhe parece inútil e
vão. O que outrora lhe parecia sagrado e importante, quero dizer, o
facto de Deus o ter colocado neste lugar e julgado digno de ouvir as
ignomínias e as torpezas dos homens e aliviá-los, tudo isso é então
como que um grande fardo, uma carga muitíssimo pesada, mesmo
uma maldição e, no fim, um pobre que vem vê-lo com os seus
pecados infantis causa-lhe horror, ele deseja vê-lo partir, partir
também ele próprio, nem que fosse na ponta duma corda, no ramo
principal duma árvore. Conheceste isso. E agora é a hora de também
eu me confessar e confesso-me: também conheci a mesma coisa
que tu. Também eu me julguei um inútil, julguei o meu espírito
extinto, pareceu-me que já não poderia suportar ver as pessoas
afluírem incessantemente a mim, cheias de confiança, para me
trazerem todas as imundícies e o mau cheiro da vida humana que
não conseguiam resolver e tão-pouco eu conseguia resolver.
«Ora, eu ouvira falar por várias vezes dum penitente chamado
Josephus Famulus. Também a ele, ao que se dizia, as pessoas o
tomavam como confessor, muitos preferiam ir vê-lo em vez de a
mim, pois passava por ser um homem doce e compassivo. Contava-
se que não exigia nada das pessoas, que não as repreendia, mas as
tratava como irmãs, contentando-se em ouvi-las e dar-lhes um beijo
como se fosse uma despedida. Não era o meu género, sabes, e das
primeiras vezes que ouvi falar desse Josephus, a sua maneira de agir
pareceu-me estúpida e demasiado infantil. Mas nesse momento em
que me perguntava verdadeiramente se a minha própria maneira de
agir valia alguma coisa, tinha boas razões para me impedir de julgar
a de Josephus e pretender fazer melhor do que ele. De que forças
pudera esse homem dispor? Sabia que era mais novo do que eu,
mas que também era quase um velho; isso agradava-me: não teria
assim tão facilmente confiança num homem novo. Mas este atraía-
me. E foi assim que resolvi ir em peregrinação até esse Josephus
Famulus, confessar-lhe a minha miséria e pedir-lhe conselho, ou, se
ele não mo desse, receber talvez da sua boca uma consolação e um
conforto. Esta resolução bastou para me fazer bem e aliviar-me.
«Iniciei portanto essa viagem e fui de peregrinação para o sítio
onde se dizia que ele tinha o seu eremitério. Mas, entretanto, o meu
Irmão Josephus tinha precisamente conhecido as mesmas provações
que eu e feito a mesma coisa. Ambos tínhamos fugido para ir buscar
conselho no outro. Quando se apresentou aos meus olhos, antes
mesmo que eu tivesse encontrado a sua cabana, reconheci-o logo
na nossa primeira conversa; ele tinha o aspeto do homem que eu
esperava ver. Mas tinha fugido; também para ele tudo tinha corrido
mal, tão mal como para mim, talvez ainda pior, e ele não pretendia
de modo nenhum ouvir confissões. Desejava confessar-se e confiar a
sua miséria a outro. Nesse momento foi para mim uma singular
deceção, fiquei muito triste. Pois, se esse Josephus, que não me
conhecia, se cansara do seu papel e desesperara do sentido da sua
vida, não significava isso, segundo todas as aparências, que não
valíamos nada, nem um nem outro, que tínhamos vivido inutilmente
e falhado ambos?
«Conto-te o que já sabes, permite-me abreviar. Fiquei sozinho,
nessa noite, perto da minha colónia, enquanto tu encontravas um
abrigo junto dos nossos irmãos. Pratiquei a concentração, imaginei-
me na pele desse Josephus e pensei: “Que fará ele quando amanhã
souber que fugiu em vão e que foi em vão que confiou nesse Pugil,
se souber que também Pugil é um desertor atormentado pela
dúvida?” Quanto mais me metia na sua pele, mais Josephus me
dava pena e mais eu era levado a imaginar que era Deus que mo
enviava, para o conhecer e curar, e conhecer-me e curar-me ao
mesmo tempo que ele. Então consegui dormir; metade da noite
tinha já passado. No dia seguinte tu iniciavas a tua peregrinação
comigo e tornaste-te meu filho.
«Eis a história que queria contar-te. Ouço que choras. Chora
então, isso faz bem. E uma vez que me tornei tão escandalosamente
tagarela, faz-me a graça de me ouvir ainda mais isto e guarda-o no
teu coração. O ser humano é estranho e não nos podemos fiar nele;
não é, por conseguinte, impossível que num dado momento tu sejas
novamente assaltado por esses sofrimentos e por essas dúvidas que
procurarão vencer-te. Possa então Nosso Senhor enviar-te um filho e
um pupilo tão amável, tão paciente e duma tão grande consolação
como me foi dado com a tua pessoa! Quanto a esse galho da árvore
com que o tentador te fez sonhar outrora, e com a morte do pobre
Judas Iscariotes, posso dizer-te uma coisa: não é somente pecado e
loucura premeditar uma tal morte, se bem que seja pouca coisa para
o nosso Redentor perdoar também esse pecado. É, além do mais,
terrivelmente lamentável que um homem morra no desespero. Deus
não no-lo envia para nos matar, envia-no-lo para acordar em nós
uma vida nova. Mas quando nos envia a morte, Josephus, quando
nos desliga desta terra, do nosso corpo, e nos chama a si, é uma
grande alegria. Ter o direito de adormecer quando se está cansado e
de deixar cair um fardo que carregámos durante muito tempo é uma
delícia e uma grande maravilha. Desde que cavámos a minha campa
– não te esqueças da palmeira que tens de plantar por cima –,
desde que começámos a cavar essa campa, estou mais alegre e
mais contente do que há bem muitos anos.
«Falei de mais, meu filho, e tu vais ficar cansado. Vai dormir, vai
para a tua cabana. Que Deus seja contigo!»
No dia seguinte Dion não veio fazer a oração da manhã e também
não chamou Josephus. Quando este, amedrontado, entrou a correr
na cabana de Dion e se aproximou da sua enxerga, verificou que o
velho tinha adormecido para sempre. O seu rosto, iluminado por um
sorriso de criança, irradiava suavemente.
Enterrou-o, plantou a árvore sobre a sua campa e conheceu ainda
o ano em que esta deu os primeiros frutos.

O curriculum indiano
Um dos príncipes dos demónios que Vixnu, ou antes, Rama, sua
encarnação humana, matara com a sua seta em forma de crescente
lunar numa das suas furiosas batalhas contra os demónios, tinha
regressado com forma humana ao ciclo das formas. Chamava-se
Ravana e a sua vida, à beira do grande Ganges, era a dum príncipe
guerreiro. Ravana teve um filho, Dasa. A mãe deste morrera já e,
mal a que lhe sucedeu, uma mulher bela e ambiciosa, deu um filho
ao príncipe, o pequeno Dasa tornou-se-lhe um obstáculo. Ela
pensava fazer com que um dia o seu próprio filho fosse sagrado
soberano em vez do primogénito. Com esse fim soube desviar de
Dasa o afeto do seu pai e estava resolvida a afastá-lo do seu
caminho na primeira ocasião favorável. Mas um dos brâmanes da
corte de Ravana, Vasudeva, que conhecia a arte dos sacrifícios,
soube das suas intenções, e este homem sábio conseguiu torná-las
vãs. Teve pena do rapazinho; por outro lado, este princepezinho
parecia-lhe ter herdado da mãe uma tendência para a piedade e o
sentido do bem. Velou para que nada acontecesse a Dasa e esperou
apenas pela ocasião de o furtar à sua madrasta.
Ora o rajá Ravana possuía uma manada de vacas devotadas a
Brama, que passavam por serem sagradas e cujo leite e cuja
manteiga eram oferecidos com frequência como sacrifício ao deus.
Era para elas que estavam reservadas as melhores pastagens do
país. Um dia, um pastor destas vacas consagradas a Brama veio
entregar uma carga de manteiga e avisar que se anunciava um
período de seca na região onde até ali a manada pastara, tanto que
os guardadores tinham chegado a acordo para a levarem para mais
longe, para a montanha, onde, mesmo aquando das maiores secas,
não faltariam nascentes de água nem erva fresca. O brâmane fez
confidências a este pastor, seu conhecido de longa data; era um
homem agradável e fiel e quando, no dia seguinte, o pequeno Dasa,
filho de Ravana, desapareceu e foi impossível encontrá-lo, Vasudeva
e o pastor eram os únicos que conheciam o segredo do seu
desaparecimento. O pequeno Dasa tinha sido levado pelo guardador
das vacas para as colinas, onde se juntaram à manada que
transumava lentamente; Dasa juntou-se de bom grado àquela e aos
seus pastores. Cresceu como um pequeno guardador de vacas,
ajudou a guardar e a conduzir os animais, aprendeu a mungi-las,
brincou com os seus vitelos, preguiçou debaixo das árvores bebendo
leite fresco e tinha bosta de vaca nos seus pés nus. Isto agradava-
lhe muito. Aprendeu a conhecer os pastores, as vacas e a sua vida,
travou conhecimento com a floresta, as suas árvores e os seus
frutos, gostava da manga, do figo-bravo e da varinga; nas poças
verdes dos bosques pescava a raiz adocicada do lótus; nos dias de
festa trazia uma coroa feita de florzinhas vermelhas de gerânio
almiscarado; aprendeu a proteger-se dos animais da selva, a evitar o
tigre, a ser amigo do inteligente mangusto e do brincalhão ouriço-
cacheiro, a suportar a estação das chuvas na penumbra dum refúgio
onde os rapazes brincavam, cantavam versos ou faziam cestos e
esteiras de vime. Dasa não esqueceu totalmente a sua antiga terra
natal e a sua vida anterior, mas em breve ela foi para ele como uma
espécie de sonho.
A manada chegara a outra região. Um dia Dasa foi para os
bosques à procura de mel. Desde que conhecia a floresta, tinha-lhe
um amor maravilhado e ela parecia-lhe de resto especialmente bela.
Através das folhas e das ramagens, a luz do dia insinuava-se em
serpentes de ouro, e assim como os ruídos, os gritos das aves, o
murmúrio das copas das árvores, as vozes dos macacos se
enlaçavam e cruzavam em gráceis laços de luz doce, parecidos com
os raios de luz no mato, assim também os cheiros, os perfumes das
flores, das essências vegetais, das folhas, das águas, dos musgos,
dos animais, dos frutos, da terra e da sua putrefação surgiam,
uniam-se para voltarem a separar-se, ásperos e doces, selvagens e
tímidos, exaltantes e entorpecentes, alegres e pesados de angústia.
Ora se ouvia, numa ravina invisível do bosque, um murmúrio de
água, ora uma borboleta vinha dançar por cima das umbelas
brancas, ora um galho grosso estalava no fundo das sombras azuis
do mato e folhas abatiam-se pesadamente sobre outras folhas, ou
então, nas trevas, um animal bramia, uma macaca irritada discutia
com os seus. Dasa esqueceu-se de que viera à procura de mel e,
enquanto espiava a mistura de cores cintilantes das aves do paraíso,
viu no meio dos fetos altos, que formavam como que uma floresta
pequena cerrada, num rasto que se perdia, uma espécie de carreiro
estreito e minúsculo. E depois de se meter por aí sem barulho,
cautelosamente, seguiu essa senda, e descobriu, por baixo dos
troncos múltiplos duma árvore, uma cabana pequena, uma espécie
de tenda pontiaguda feita de fetos entrançados e, ao lado dela,
sentado no chão, de corpo direito, um homem imóvel cujas mãos
descansavam entre as suas pernas cruzadas. Por baixo dos seus
cabelos brancos e da sua testa grande, os seus olhos tranquilos, sem
expressão, estavam baixados para a terra, abertos, mas voltados
para dentro. Dasa compreendeu que era um homem santo e yogin.
Não era o primeiro que via. Estes homens eram veneráveis, eram os
preferidos dos deuses. Era bom oferecer-lhes presentes e
testemunhar-lhes respeito. Mas este que, à frente da sua cabana de
fetos tão bem escondida, permanecia sentado muito direito, com os
braços caídos, e se entregava à meditação, agradou muito ao rapaz
e pareceu-lhe mais estranho e mais venerável do que os que
costumava ver. À volta deste homem que, sentado, parecia flutuar e,
com um olhar ausente, parecia no entanto ver tudo e tudo saber,
pairava uma aura de santidade, um círculo mágico de dignidade, um
fluxo, uma chama de ardor concentrado e de poder do yoga que o
rapaz não ousaria transpor nem quebrar com uma saudação ou um
chamamento. A dignidade e a grandeza da sua atitude, a luz interior
que a face irradiava, a concentração e o rigor que revestiam as suas
feições, emitiam ondas, uma radiação no meio da qual ele reinava
como uma lua. E a força espiritual acumulada, a vontade
silenciosamente concentrada nesta aparição, estendiam à sua volta
um círculo mágico tal, que se dava perfeitamente conta de que
bastaria a este homem um simples desejo, um pensamento ou
mesmo um piscar de olhos, para matar uma pessoa e ressuscitá-la.
Mais imóvel do que uma árvore cujas folhas e ramos ao menos
mexem quando respiram, tão imóvel como a efígie de pedra dum
deus, o yogin continuava sentado no seu lugar e, desde que o
avistara, o jovem observava a mesma imobilidade, preso ao chão e
atraído pela magia daquele quadro. Demorou-se a olhar fixamente
para o mestre; viu-lhe uma mancha de sol no ombro, outra numa
das mãos inertes; viu deslocarem-se lentamente, viu aparecerem
outras e começou, imóvel e estupefacto, a compreender que aquelas
manchas de luz não estabeleciam nenhuma relação com o homem,
assim como também os cantos das aves e as vozes dos macacos na
floresta circundante ou a abelha selvagem que pousava a sua
mancha escura no rosto do eremita mergulhado em meditação,
farejava a sua pele, corria durante um momento pela sua face e
depois se soltava e voava, como também não havia nenhuma
relação entre toda a vida multiforme da floresta e ele. Não, Dasa
sentia-o, nada do que é belo ou feio, agradável ou desagradável,
tinha a menor relação com aquele homem santo. A chuva não lhe
causaria nem uma constipação nem contrariedade, o fogo seria
impotente em queimá-lo, o mundo inteiro à sua volta tornara-se,
para ele, superficial e sem importância. A noção confusa de que o
universo inteiro realmente talvez fosse apenas um jogo, uma crosta,
uma brisa e uma ondulação por cima de grandes profundidades
desconhecidas veio então aflorar o príncipe-pastor na sua
contemplação, não como uma ideia, mas o seu corpo arrepiou-se
com ela; foi tomado por uma leve vertigem, uma impressão de
horror e perigo, ao mesmo tempo que se sentiu atraído por um
desejo nostálgico. Pois, sentia-o, o yogin mergulhara através da
superfície deste Mundo, através deste Mundo que é só superfície,
até ao fundo do que é, até ao mistério de todas as coisas, rompera e
despojara a rede mágica dos sentidos, dos jogos de luz, dos ruídos,
das cores, das sensações e permanecia solidamente enraizado no
essencial e no permanente. Se bem que outrora tivesse sido
educado por brâmanes e tocado mais do que uma vez pelos raios da
luz espiritual, o jovem não compreendeu isso com o seu
entendimento, não saberia falar disso com palavras, mas sentia-o,
como em horas abençoadas sentimos a aproximação do divino;
sentia-o no arrepio de respeito e admiração que lhe inspirava este
homem, no seu amor por ele e na nostalgia duma vida semelhante à
que aquela figura sentada, aquele contemplador, parecia conhecer.
Coisa estranha, aquele velho lembrava-lhe as suas origens, a sua
qualidade de príncipe e o seu sangue real. Tocado no coração, Dasa
demorou-se, de pé na orla daquela selva de fetos; deixando as aves
voar e as árvores manterem os seus sussurrantes propósitos,
deixando a floresta às suas plantas e a sua longínqua manada aos
seus animais, abandonou-se a esta magia e contemplou o eremita
mergulhado na sua meditação, cativado pelo incompreensível, pela
inabordável calma do seu vulto, pela gritante tranquilidade da sua
face, pela força e o recolhimento da sua atitude e a sua total
devoção ao seu culto.
Não saberia dizer, depois, se foram duas horas ou três que passou
junto àquela cabana ou se foram dias. Quando este encanto lhe
devolveu a sua liberdade e voltou furtivamente, sem barulho, ao
carreiro pelo meio dos fetos e procurou o seu caminho para sair da
floresta e chegou finalmente ao terreno aberto dos pastos, junto à
manada, agia sem saber o que fazia; a sua alma ainda estava
enfeitiçada, e só acordou quando um dos guardadores de vacas o
chamou. Este acolheu-o com censuras ruidosas por se ter ausentado
por muito tempo, mas quando Dasa o olhou com grandes olhos
admirados, como se não compreendesse o que ele dizia, o pastor
calou-se imediatamente, estupefacto com o olhar insólito e
desconhecido do rapaz e a sua atitude solene. Passado um momento
perguntou-lhe: – Onde estiveste, pequeno? Viste algum deus ou
encontraste um demónio?
– Estive na floresta – disse Dasa. – Havia qualquer coisa que me
atraía para lá, eu queria procurar mel. Mas depois esqueci-me de o
fazer, pois vi um homem, um eremita. Estava sentado, mergulhado
em meditação ou em oração, e quando o vi, a ele e ao brilho da sua
cara, não pude impedir-me de ficar longos momentos a olhar para
ele. Gostaria de ir lá hoje à noite e levar-lhe presentes, é um homem
santo.
– Está bem – disse o pastor. – Leva-lhe leite e manteiga fresca.
Devemos honrar os santos e dar-lhes presentes.
– Mas como hei de dirigir-me a ele?
– Não precisas de falar com ele, Dasa, inclina-te apenas à frente
dele e depõe os teus presentes aos seus pés. Não há mais nada a
fazer.
Dasa procedeu então assim. Precisou de algum tempo para
encontrar o sítio. O lugar, à frente da cabana, estava vazio e não
ousou entrar lá dentro. Depôs por conseguinte os presentes no
chão, à frente da entrada, e afastou-se.
Durante o tempo em que os pastores ficaram com as suas vacas
naquele sítio, todas as noites ele levou lá presentes, e uma vez foi
mesmo lá durante o dia. Encontrou o eremita a praticar a
contemplação e, também desta vez, espectador seduzido, não
resistiu à tentação de receber um raio da força e da felicidade do
santo homem. Mesmo depois de terem abandonado aquela região e
Dasa ter ajudado a conduzir a manada para pastagens novas,
durante muito tempo não pôde esquecer o que tinha visto naquela
floresta. Às vezes, como é costume dos rapazes, abandonava-se à
fantasia quando estava sozinho e via-se a si próprio como eremita,
iniciado no yoga. Contudo, com o tempo, esta recordação e esta
imagem de sonho começaram a apagar-se ao mesmo tempo que
Dasa não tardou a tornar-se um vigoroso adolescente que se
entregava com um ardor alegre aos jogos e às batalhas dos
camaradas da sua idade. Mas na sua alma permaneceu um reflexo e
o pressentimento furtivo de que a qualidade de príncipe e soberano
que perdera poderia ser um dia substituída por uma dignidade e um
poder de yogin.
Um dia em que se encontrava nas proximidades da cidade, um
dos pastores trouxe de lá a notícia de que estava em preparação
uma grande festa: o velho príncipe Ravana, que perdera as suas
forças de antigamente e se tornara débil, tinha fixado o dia em que
o seu filho Nala tomaria a sucessão e seria proclamado soberano.
Dasa quis ir a esta festa, para ver a cidade de que quase já só
conservava uma lembrança da sua infância, para ouvir a música, ver
a procissão solene e as justas dos nobres e também para contemplar
esse mundo desconhecido dos citadinos e dos grandes da terra que
eram tantas vezes descritos nas lendas e nos contos e dos quais
sabia – mas também isso era apenas uma lenda, um conto ou talvez
nem isso – que foram outrora, em tempos longínquos, o seu próprio
universo. Os pastores tinham recebido ordem de entregar na corte
uma carga de manteiga para os sacrifícios desse dia de festa e Dasa,
para seu grande prazer, foi um dos três que o chefe dos pastores
designou para essa missão.
Chegaram na noite da véspera à corte para entregar a manteiga e
o brâmane Vasudeva recebeu-a das suas mãos, pois era ele que
presidia às matanças, mas não reconheceu o adolescente. Os três
pastores participaram, depois, na festa, com uma curiosidade ávida.
Logo de manhã viram começar os primeiros sacrifícios sob a direção
do brâmane, viram o brilho de ouro das massas de manteiga presas
pelas chamas transformar-se em línguas de fogo que subiam como
dardos para o céu, para o infinito, com o fumo espesso que
agradava aos três vezes dez deuses. No cortejo solene viram os
elefantes, os tetos dourados coroados pelos palanquins onde
estavam sentados os cavaleiros, viram o carro real enfeitado com
flores e o jovem rajá Nala, ouviram o concerto potente dos timbales.
Tudo isso era grandioso e sumptuoso, mas também um pouco
ridículo, pelo menos na opinião do jovem Dasa. Ele estava
espantado e encantado, e até mesmo embriagado por aquele
barulho, aqueles carros e aqueles cavalos ornamentados, por toda
aquela pompa e aquele desperdício insolente, encantado com as
bailarinas de membros esguios, firmes como o caule do lótus, que
precediam, dançando, o carro do soberano. Foi surpreendido com a
grandeza e a beleza da cidade, e no entanto, apesar de tudo, no
meio daquela embriaguez e daquela alegria, considerou um pouco
todas as coisas com o espírito sereno do pastor que no fundo
despreza o citadino. Não lhe ocorreu sequer que ele é que era o
primogénito, que era o seu meio-irmão Nala, de quem não tinha
nenhuma recordação, que era ungido, consagrado em festa à frente
dos seus olhos, enquanto deveria ser ele, Dasa, quem teria o direito
a desfilar no carro ornamentado com flores. Pelo contrário, aquele
jovem Nala desagradou-lhe cordialmente, achou-lhe um ar idiota e
mau de menino mimado, e essa adoração exagerada por ele mesmo
pareceu-lhe duma vaidade intolerável. Gostaria de ter pregado uma
partida, de dar uma lição àquele adolescente que se armava em
soberano, mas não era possível e depressa o esqueceu, pois havia
tanto a ver, a ouvir, ocasiões para se rir e para se divertir. As
mulheres da cidade eram lindas, tinham olhares, movimentos,
maneiras de falar ousadas e provocantes. Os três pastores ouviram
mais do que uma palavra que ressoou durante muito tempo nos
seus ouvidos. Gritavam-lhes, é verdade, com um ar de troça, pois o
pastor era para o citadino o que ele próprio é para o pastor: um
despreza o outro; apesar de tudo, aqueles belos e robustos
mocetões, alimentados de leite e queijo, que viviam quase todo o
ano ao ar livre, agradavam muito às mulheres da cidade.
Quando Dasa regressou daquela festa, tornara-se um homem;
perseguiu as raparigas e teve de travar contra outros jovens mais do
que um duro combate com os punhos. Depois dirigiram-se mais uma
vez para outra região. Era uma região de pastagens planas com
inúmeros charcos de água estagnada cobertos de juncos e bambus.
Foi aí que viu uma rapariga chamada Pravati e se apaixonou
insensatamente por esta bela criatura. Ela era filha dum rendeiro e
Dasa enamorou-se tanto dela que esqueceu e desprezou tudo para a
ter. Quando os pastores, ao fim de algum tempo, deixaram esta
região, não quis ouvir as suas recriminações nem os seus conselhos;
despediu-se deles e da vida pastoril de que tanto gostara, tornou-se
um sedentário e tanto e tão bem fez que obteve Pravati como
mulher. Cultivou os campos de milho e de arroz do sogro, ajudou no
moinho e na lenha; construiu para a sua mulher uma cabana de
bambu e palha onde a manteve fechada. É necessária uma força
poderosa para levar um homem jovem a renunciar às alegrias, às
camaradagens e aos hábitos da sua vida anterior, mudar de
existência e aceitar o papel pouco invejável de genro numa família
que não conhece. A beleza de Pravati era tão grande, tão grandes e
atraentes as secretas promessas de amor que irradiavam do seu
rosto e do seu corpo que Dasa ficou cego a tudo e se dedicou
inteiramente a essa mulher, e conheceu realmente uma grande
felicidade nos seus braços. Há muitos deuses e santos cuja história
afirma que foram enfeitiçados por uma mulher sedutora, que a
tiveram abraçada durante dias, luas e anos, sendo um só com ela,
absorvidos pelo desejo e esquecendo todas as outras tarefas. Era o
destino e o amor que Dasa desejava. Mas o destino decidiu doutra
maneira e a sua felicidade foi de curta duração. Durou cerca dum
ano e esse período também não foi cheio de felicidade, ainda ficou
lugar para todas as espécies de exigências penosas do sogro, para
as intrigas dos cunhados e os caprichos da sua jovem mulher. Mas
de cada vez que se lhe juntava na enxerga, tudo isso era esquecido,
apagado, tanto a atração do seu sorriso mágico era forte, tanta
doçura ele sentia em acariciar os seus membros esbeltos e tantos
milhares de flores, sombras e perfumes havia no jardim das volúpias
do seu corpo jovem.
A sua felicidade ainda não tinha um ano quando um dia a região
se encheu de agitação e ruído. Mensageiros a cavalo apareceram e
anunciaram a chegada do jovem rajá. Nala vinha pessoalmente, com
as suas gentes, os seus cavalos e o seu séquito, caçar naquela
região. Aqui e ali ergueram-se tendas, ouviu-se o arfar dos cavalos,
o som da trompa. Dasa não prestou atenção, trabalhava nos
campos, ocupava-se do moinho, evitando os caçadores e os
cortesãos. Mas quando num desses dias voltou para a sua cabana e
não viu a mulher, à qual proibira com a maior severidade todas as
saídas durante esse período, sentiu um baque no coração e
pressentiu que a desgraça se juntava sobre a sua cabeça. Precipitou-
se para casa do sogro. Pravati não estava lá e todos afirmaram que
a não tinham visto. A angústia apertou com mais força o seu
coração. Explorou a horta, os campos, passou um dia, dois dias a ir
e vir entre a sua cabana e a do sogro, pôs-se à espreita na sua
terra, desceu ao fundo do poço, rezou, chamou pelo nome dela,
tomou a voz da ternura, praguejou, procurou o rasto dos seus
passos. O mais novo dos seus cunhados, que era ainda uma criança,
acabou por lhe revelar que Pravati estava com o rajá: morava na sua
tenda e tinha sido vista a cavalgar a sua montada. Dasa espiou o
acampamento de Nala. Invisível, levava consigo a funda de que
outrora se servia quando era pastor. A partir do momento em que a
tenda do soberano, fosse de dia ou de noite, ficasse um momento
sem vigilância, aproximava-se como um caçador, mas de todas as
vezes os guardas não tardavam a aparecer e ele tinha de fugir.
Duma árvore em cujos ramos se escondia e de onde dominava o
campo, avistou o rajá, cujo rosto lhe era já conhecido e antipático
desde que assistira àquela festa na cidade. Viu-o montar a cavalo e
afastar-se. Quando regressou, várias horas mais tarde, depois de ter
desmontado, afastou o pano da ponta da tenda e, na penumbra
desta, foi uma mulher jovem que Dasa viu mexer-se e vir saudar o
homem que entrava. Pouco faltou para que caísse da árvore abaixo
ao reconhecer na jovem Pravati a sua esposa. A partir daí sabia e o
seu coração apertou-se ainda mais. Se a felicidade que lhe dera o
seu amor por Pravati tinha sido grande, a dor, a raiva, o sentimento
de a perder e daquela ofensa não o foram menos mas até mais
importantes. Assim é quando um homem concentra num único
objeto todo o amor de que é capaz; a perda deste faz com que tudo
se desmorone e ele fica pobre no meio das ruínas.
Durante um dia e uma noite Dasa errou ao acaso pelos bosques
da região. Se o cansaço o obrigava a uma breve paragem, a miséria
do seu coração punha-o novamente em pé; tinha de correr, tinha de
se mexer; tinha a impressão de que precisava de correr e caminhar
até ao fim do Mundo e ao fim da vida, que perdera o interesse e o
brilho. No entanto, não partiu para longe, para o desconhecido. Pelo
contrário, mantinha-se sempre nas proximidades da sua desgraça,
vagueava à volta da sua cabana, do moinho, dos campos, da tenda
de caça do soberano. Acabou por voltar a esconder-se nas árvores
que dominavam a tenda e aí ficou agachado, à espreita, cheio de
amargura e de fogo, como uma fera esfomeada no seu esconderijo
no meio da folhagem, até que chegou o momento para o qual
retesava as suas últimas forças, até que o rajá saísse da tenda.
Então, sem ruído, escorregou pelo ramo abaixo, preparou-se, fez
rodar a funda e a pedra atingiu em plena testa aquele que odiava:
este caiu e ficou deitado de costas, imóvel. Não parecia haver ali
ninguém. No meio da tempestade de volúpia e embriaguez da
vingança que revolvia a cabeça de Dasa, surgiu um instante de
profunda calma, terrível e estranho. E antes mesmo que
começassem a soltar gritos à volta da sua vítima e o lugar
fervilhasse de criados, tinha desaparecido por entre o mato e a selva
de bambus que se prolongava em direção ao vale.
No momento em que saltara da árvore, em que, na embriaguez da
ação, tinha feito rodar a funda e lançado a morte, parecera-lhe
também que aniquilava a sua própria vida, que largava as suas
últimas forças e se lançava, atrás daquela pedra mortal, no abismo
da destruição, aceitando morrer desde que aquele inimigo detestado
caísse juntamente com ele. Mas agora que este silêncio inesperado
respondia ao seu ato, uma sede de viver de que não suspeitara um
momento antes reteve-o no limiar daquele abismo bendito; um
instinto primitivo apoderou-se dos seus sentidos e dos seus
membros, obrigou-o a fugir para os bosques e as moitas de bambus,
ordenou-lhe que fugisse e nunca mais se deixasse ver. Foi somente
quando alcançou um refúgio e escapou ao primeiro perigo que
tomou consciência do que lhe acontecia. Deixou-se cair, esgotado, a
arfar, e nesse desfalecimento a bebedeira da ação dissipou-se para
dar lugar ao realismo: primeiramente, ficou desiludido e descontente
por ainda estar vivo, fora de perigo; mas, mal a sua respiração se
tornou mais calma e a vertigem do esgotamento se dissipou, aquele
langor angustiante deu lugar à afirmação, à vontade de viver, e a
alegria feroz pelo que tinha feito voltou a encher-lhe o coração.
Pouco depois ouviu barulho nas imediações. A caça e a
perseguição do assassino tinham começado, duraram todo o dia e só
escapou permanecendo sem fazer barulho no seu esconderijo:
ninguém gostava de entrar muito nessas paragens por causa dos
tigres. Dormiu um pouco, deixou-se ficar estendido à espreita,
rastejou um pouco mais para a frente, voltou a parar e, três dias
depois do seu crime, tinha já ultrapassado a cadeia de colinas e
caminhava sem tréguas para os mais altos cumes.
Esta vida de sem lar levou-o aqui e acolá, tornou-o mais duro e
mais indiferente, mais prudente também e mais resignado, mas à
noite não parava de sonhar com Pravati e com a sua felicidade
passada ou com o que então assim chamava. Sonhou também, às
vezes, com a sua perseguição e com a sua fuga. Tinha pesadelos
terríveis que lhe sufocavam o coração, como por exemplo este: fugia
pela floresta, com os perseguidores nos calcanhares, com tambores
e trompas, e através de bosques e pântanos, através de tufos de
espinhos, por pontes a desfazerem-se e podres, levava um objeto,
um fardo, um embrulho, uma coisa embrulhada, velada,
desconhecida; sabia apenas que era uma coisa preciosa e que não
podia em caso nenhum largar esse objeto valioso que se encontrava
em perigo, um tesouro roubado talvez, amarrotado por baixo dum
pano, dum vestido colorido com um padrão castanho-avermelhado e
azul, como o do vestido de festa de Pravati; carregado com esta
bagagem, furto ou tesouro, fugia, furtivo, por entre os perigos e os
trabalhos, dobrado em dois pelos ramos baixos e os rochedos,
roçando serpentes, transpondo em passadeiras duma estreiteza
vertiginosa rios cheios de crocodilos, para parar por fim, sem fôlego,
esgotado, levar a mão aos nós que atavam o embrulho, desfazê-los
um a um e desdobrar o pano: o tesouro que de lá tirava, que tinha
nas suas mãos trementes, era a sua própria cabeça.
Viveu escondido, como um nómada, não fugindo já dos homens,
antes os evitando. E um dia, o seu caminhar fê-lo atravessar uma
região de vales, rica de pastagens, que lhe pareceu bela e sedutora.
Esta pareceu acolhê-lo como se ele a conhecesse: ora era uma
paisagem de prados com ervas em flor que ondulavam suavemente,
ora um tufo de salgueiros que reconheceu e que lhe lembrou a
época serena e inocente em que ainda ignorava tudo do amor e do
ciúme, do ódio e da vingança. Eram as pastagens onde outrora, com
os seus camaradas, guardara o rebanho. Essa tinha sido a época
mais alegre da sua juventude, chamava-o das profundezas
longínquas do passado sem regresso. Uma tristeza doce respondia
no seu coração a essas vozes que o saudavam, à rabanada de vento
nas folhas prateadas e móveis do salgueiro, à canção alegre e rápida
dos regatos, ao canto das aves e ao surdo zumbir de ouro dos
zângãos. Eram esses os tons, os odores dum lugar de asilo, dum lar.
Nunca, habituado como estava à vida errante dos pastores, se
sentira preso e enraizado assim a uma região.
Acompanhado e guiado por estas vozes na sua alma, animado por
sentimentos de homem que regressa ao redil, atravessou esta região
acolhedora, sem, pela primeira vez desde há meses horríveis, se
sentir estranho, perseguido, fugitivo e condenado à morte, mas de
coração alerta, sem pensamento nem desejo, todo entregue à
presença e à proximidade desta serenidade tranquila, recetivo, cheio
de gratidão, um pouco admirado consigo próprio e com aquele
estado de espírito novo, insólito, que conhecia pela primeira vez e
com encantamento, com uma disponibilidade que nada desejava,
com uma serenidade sem limitações, com um gozo contemplativo,
atento e grato. Qualquer coisa fê-lo atravessar os verdes prados até
à floresta e o levou por baixo das árvores, para a penumbra
semeada de pequenas manchas de sol, e, aí, a impressão de estar
de regresso, de se encontrar no seu país, tornou-se mais forte. Esta
impressão conduziu-o por caminhos que os seus pés pareciam
encontrar por eles próprios: depois de ter atravessado uma selva de
fetos, uma floresta em miniatura, espessa, no meio dos grandes
bosques, chegou finalmente a uma cabana minúscula, à frente da
qual estava sentado um yogin imóvel que outrora já espiara e a
quem já tinha trazido leite.
Dasa parou, foi como um despertar. Aqui tudo se encontrava no
mesmo estado como outrora, o tempo não tinha passado, não tinha
havido nem assassínio nem sofrimento. Parecia que o tempo aqui e
a vida ganhavam uma firmeza de cristal, num apaziguamento de
eternidade. Contemplou o velho e o seu coração voltou a conhecer a
admiração, o amor e a nostalgia que sentira outrora, da primeira vez
que o vira. Examinou a sua cabana e pensou para consigo que era
necessário repará-la antes do início da estação das chuvas. Depois
arriscou-se a dar alguns passos prudentes, penetrou na cabana e viu
o que continha; não era grande coisa, quase nada: uma esteira de
folhas, uma meia cabaça, com um pouco de água, e um saco de
fibras vazio. Pegou no saco e levou-o consigo, procurou comida na
floresta, trouxe frutos e medula doce de árvores, depois saiu com a
cabaça e encheu-a de água fresca. Fez o que podia ser feito naquele
lugar. Mais não era preciso para um homem viver. Dasa acocorou-se
no chão e mergulhou no sonho. Estava satisfeito por descansar sem
falar e por sonhar assim na floresta; estava contente consigo mesmo
e com a voz íntima que o levara a regressar àqueles lugares onde
outrora sentira, na sua adolescência, uma espécie de paz, de
felicidade, e encontrara uma pátria.
Ficou por conseguinte junto daquele homem que não falava.
Renovava-lhe a esteira de folhas, ia buscar alimentos para os dois,
depois consertou-lhe a velha cabana e começou a construir uma
segunda para si, a alguma distância. O velho parecia tolerá-lo, mas
não era possível saber ao certo se o tinha sequer visto. Não saía da
sua contemplação a não ser para ir dormir na cabana, engolir
alguma coisa ou dar alguns passos na floresta. Dasa fazia ao lado do
venerável eremita a vida dum criado junto dum grande da terra, ou
antes, a dum pequeno animal doméstico, uma ave domesticada, ou,
por exemplo, a que um mangusto conhece no meio dos homens; era
prestável e quase não chamava à atenção. Vivera muito tempo como
um fugitivo, escondendo-se, na insegurança e com má consciência,
sempre à espera de ser perseguido. Por isso esta vida tranquila, este
trabalho pouco fatigante, fizeram-lhe um grande bem durante algum
tempo, bem como a proximidade dum ser que parecia não lhe
prestar nenhuma atenção. Dormia sem sonhos de angústia,
acontecia-lhe, durante parte do dia ou até dias inteiros, esquecer o
que tinha sucedido. Já não pensava no futuro e, se uma saudade ou
um desejo o animavam, era o de ficar ali, de ser admitido e iniciado
pelo yogin no segredo da vida de eremita, tornar-se yogin, partilhar
daquele estado e da sua orgulhosa indiferença. Começara por imitar
com frequência a atitude do venerável solitário, por ficar sentado
como ele, imóvel, com as pernas cruzadas, fixando como ele os
olhos num mundo desconhecido e suprarreal e tornando-se
insensível ao que o rodeava. A maior parte dessas vezes cansara-se
depressa; sentia os membros rígidos e tinha dores nas costas; os
moscardos atormentavam-no ou então sentia sensações epidérmicas
esquisitas, era assaltado por comichões e pruridos que o obrigavam
a mexer-se, a coçar-se e, por fim, a levantar-se. Mas doutras vezes
conseguira sentir qualquer coisa diferente, um vazio progressivo,
uma leveza, um sentimento de pairar, como às vezes acontece por
exemplo em certos sonhos, em que tocamos apenas ao de leve na
terra e só de longe a longe, em que nos destacamos suavemente
para voltar a flutuar logo a seguir como um floco de lã. Nesses
momentos tinha uma presciência do que devia ser a sensação de
pairar assim continuamente, de ver o seu próprio corpo, a sua alma,
libertar-se do seu peso e vibrar com o sopro duma vida maior, mais
pura e mais radiosa, ser elevados e aspirados por um além, fora do
tempo e das metamorfoses. Mas isso tinham sido só uns instantes e
uma presciência. E quando voltava a cair, desiludido, de instantes
como esses, na sua vida habitual, pensava que tinha de fazer com
que o mestre se tornasse seu professor, o iniciasse nos seus
exercícios e no segredo das suas práticas, fizesse dele também um
yogin. Mas como? Não parecia que o velho viesse a distingui-lo um
dia com um olhar, nem que pudessem jamais ser trocadas palavras
entre ambos. Assim como ele vivia para lá do dia e do agora, da
floresta e da sua cabana, o velho parecia viver também para lá da
palavra.
E no entanto, um dia, disse uma palavra. Veio então um período
em que Dasa recomeçou a fazer todas as noites sonhos, muitas
vezes duma suavidade perturbante, e muitas vezes dum horror
perturbante; revia quer a sua mulher Pravati, quer os terrores da
sua vida de fugitivo. E durante o dia não fazia nenhum progresso,
não suportava estar muito tempo sentado a exercitar-se, não podia
impedir-se de pensar nas mulheres e no amor, e errava muito pela
floresta. A culpa era talvez do tempo; os dias eram pesados, com
ventanias escaldantes. Ora veio novamente um desses dias maus em
que os mosquitos assobiavam aos ouvidos; Dasa tinha tido durante
a noite mais um pesadelo que o deixara ansioso e abatido. Já não se
lembrava do seu conteúdo, mas, agora que estava acordado,
parecia-lhe que tinha sido uma recaída lastimosa, para dizer a
verdade, inadmissível e profundamente humilhante, em estados e
fases da vida anteriores. Passou todo o dia a andar dum lado para o
outro ou acocorado, sombrio e inquieto, entretendo-se com um
trabalho ou com outro, sentando-se muitas vezes para se entregar
ao recolhimento, mas logo a seguir, de cada vez, uma agitação febril
apoderava-se dele, os seus membros crispavam-se, tinha
formigueiros nas pernas, uma ardência na nuca, quase não era
capaz de ficar um momento tranquilo e lançava olhares receosos e
envergonhados ao velho que estava acocorado numa posição
perfeita e cujo rosto, de olhos voltados para dentro, pairava na
calma inabordável da serenidade como a corola duma flor.
Nesse dia, quando o yogin se ergueu e se voltou para a cabana,
Dasa, que estava à espera deste momento há muito, barrou-lhe o
caminho e interpelou-o com a coragem da angústia: – Venerável
eremita – disse –, perdoa-me ter violado o teu repouso. Procuro a
paz, procuro a calma, gostaria de viver como tu, ser como tu. Olha,
ainda sou jovem, mas tive já de aprender o gosto de muitas dores, o
destino brincou comigo um jogo cruel. O meu nascimento destinava-
me a ser um soberano e fui escorraçado para junto dos pastores.
Tornei-me pastor, cresci, alegre e forte como um touro novo, com a
inocência no coração. Depois, os meus olhos descobriram as
mulheres e, quando vi a mais bela, pus a minha vida aos seus pés;
morreria se não a tivesse possuído. Abandonei os meus
companheiros, os pastores, pedi a mão de Pravati. Deram-ma e
tornei-me um genro, um criado; tinha de trabalhar duramente, mas
Pravati era minha e amava-me, ou pelo menos eu assim o julgava.
Todas as noites tomava-me nos seus braços, eu descansava sobre o
seu coração. Mas de repente o rajá veio à região, aquele por causa
de quem eu tinha sido outrora exilado, quando era criança. Veio e
tirou-me Pravati. Obriguei-me a vê-la nos braços dele. Foi a maior
dor que alguma vez senti, transformou-me, transformou a minha
vida. Ataquei o rajá, matei-o e fiz uma vida de criminoso perseguido;
toda a gente veio atrás de mim, nem um só instante, antes de
chegar aqui, a minha vida esteve em segurança. Sou um insensato,
respeitável eremita, sou um assassino. Talvez ainda me prendam e
me esquartejem. Já não posso suportar esta existência terrível,
gostaria de ser libertado dela.
O yogin ouvira esta explosão de palavras tranquilamente, de olhos
baixos. Abriu-os então e fixou o seu olhar no rosto de Dasa. Era um
olhar claro, penetrante, duma firmeza quase insustentável,
concentrado e luminoso. Examinou a figura de Dasa, refletiu sobre
aquela narrativa precipitada e a sua boca crispou-se lentamente num
sorriso que se abriu; abanou a cabeça rindo-se silenciosamente e
disse, hílare: – Maya! Maya!
Confuso e envergonhado, Dasa ficou imóvel, o outro afastou-se
para o estreito carreiro por entre os fetos, antes de tomar a sua
refeição; ia dum lado para o outro, com um passo compassado,
ritmado. Depois de ter percorrido uma centena de passos, voltou,
entrou na sua cabana. Mais uma vez, como sempre, os seus olhos
estavam voltados para outro sítio que não o mundo fenomenal. Que
significava então o riso com que aquele rosto duma impassibilidade
sempre igual respondera ao pobre Dasa? Isto foi para ele matéria de
longa reflexão. Tinha sido compassivo ou sardónico aquele riso
horrível no momento das confissões desesperadas e das súplicas de
Dasa, era uma consolação ou uma condenação, divino ou
demoníaco? Era simplesmente a gargalhada cínica da velhice que já
não é capaz de levar mais nada a sério, ou o divertimento dum
homem de sabedoria com o espetáculo da loucura dos outros? Era
uma maneira de dizer não? Ou, então, era um conselho, um convite
a imitá-lo e a partilhar da sua hilaridade? Não conseguiu resolver
este enigma. Altas horas da noite, ainda refletia naquela gargalhada
que, para aquele homem velho, parecia resumir a sua vida, a sua
felicidade e a sua miséria. Ruminava em pensamento e meditava e
esforçava-se por compreender aquela palavra que o velho gritara
com uma voz tão clara, que clamara, rindo-se com tamanha
jovialidade e divertimento incompreensível: Maya! Maya! Sabia mais
ou menos e semipressentia o significado da palavra, e a própria
maneira como o velho a gritara na sua hilaridade deixavam entrever
um sentido. A maya era a vida de Dasa, a sua juventude, a doçura
da sua felicidade e a amargura da sua miséria, a maya era a bela
Pravati, era o amor e os seus prazeres, a maya era a vida inteira. A
de Dasa, a de todos os humanos, tudo aos olhos daquele yogin era
a maya, uma espécie de infantilidade, um espetáculo, um teatro,
uma imaginação, um nada coberto de pele estragada, uma bola de
sabão, uma coisa de que podíamos rir-nos com um certo prazer e ao
mesmo tempo desprezar, mas nunca levar a sério.
Mas se, para os olhos do velho yogin, este riso e a palavra maya
bastavam para esgotar e encerrar o capítulo da vida de Dasa, o
mesmo não era para este. Tanto lhe fazia desejar ser um yogin
hílare e apenas ver na sua vida a maya depois daqueles dias e
daquelas noites de inquietação, tudo o que parecia ter quase
esquecido aqui, neste asilo, acordava e revivia dentro de si. A
esperança de aprender verdadeiramente alguma vez a arte do yoga
e, com mais forte razão, de conseguir igualar nela o velho, parecia-
lhe muito ténue. Mas, nesse caso, que sentido tinha ainda a sua
estada nesta floresta? Tinha ali encontrado um refúgio, retomado
um pouco de alento e juntado as suas forças, encontrado os seus
espíritos. Isso tinha também um preço, era já muito. E era possível
que, entretanto, lá em baixo, tivessem renunciado a perseguir o
assassino do rajá. Talvez pudesse continuar o seu caminho sem
grande perigo. Foi o que decidiu fazer. Partiria no dia seguinte. O
mundo era grande, não podia ficar aqui para sempre neste
esconderijo. Esta resolução deu-lhe alguma tranquilidade.
Tinha querido partir de manhã cedo, mas quando acordou, depois
dum longo sono, o Sol ia já alto e o yogin tinha começado o seu
exercício de concentração. Dasa não quis partir sem se despedir dele
e tinha ainda um pedido a fazer-lhe. Esperou então, hora a hora,
que aquele homem se pusesse de pé, se espreguiçasse e começasse
a desentorpecer as pernas. Atravessou-se-lhe então no caminho, fez
vénias e só acabou quando o yogin lhe lançou um olhar interrogador.
– Mestre – disse-lhe humildemente –, vou continuar o meu caminho,
não perturbarei mais o teu repouso. Mas promete-me mais uma vez,
sábio muito venerado, que te faça um pedido. Quando te contei a
minha vida riste-te e gritaste: Maya! Maya! Suplico-te, diz-me mais
sobre a maya.
O yogin dirigiu-se para a sua cabana e o seu olhar disse a Dasa
que o seguisse. O velho pegou na cabaça, estendeu-a a Dasa e
ordenou-lhe que lavasse as mãos. Dasa obedeceu. O mestre verteu
em seguida o resto da água nos fetos, estendeu ao jovem a cabaça
vazia e mandou-o buscar água fresca. Dasa obedeceu e correu. O
seu coração vibrava com a ideia da partida: era a última vez que
trilhava este carreirinho que levava à nascente, a última vez que
inclinava esta taça leve de bordos lisos e gastos para o estreito
espelho das águas onde se refletiam as imagens dos alfaiates, as
copas redondas e, numa miríade de pontos luminosos, o suave azul
do céu. Quando se debruçou para a fonte, o seu rosto refletiu-se lá
também, pela última vez, numa penumbra castanha. Mergulhou a
taça na água, sem compreender porque é que sentia uma impressão
tão singular, nem porque é que, já que estava decidido a ir-se
embora, o magoara que o velho não o convidasse a ficar, talvez para
sempre.
Ficou acocorado na beira da fonte, bebeu um gole de água,
ergueu-se prudentemente com a taça para não verter nada, e
preparava-se para fazer o caminho do regresso quando o seu ouvido
notou um som que o encantou e o aterrorizou. Era uma voz que
ouvira em muitos sonhos, com a qual tinha sonhado durante muitas
horas de vigília com a mais amarga das saudades. Os seus tons
eram suaves, suaves e infantis. Terna, atraía-o para a penumbra do
bosque e o seu coração tremeu de medo e prazer. Era a voz de
Pravati, a sua mulher. «Dasa», dizia ela, acariciante. Olhou à sua
volta, incrédulo, ainda com a taça nas mãos. E eis que surge entre
os troncos das árvores, esbelta, ágil nas suas pernas longas, Pravati,
a sua bem-amada, a inesquecível, a infiel. Deixou cair a taça e
correu ao seu encontro. Ela estava ali, à sua frente, a sorrir e um
pouco confusa, ergueu para ele os seus grandes olhos de corça.
Uma vez junto dela, viu que tinha nos pés sandálias de couro
vermelho e no corpo panos muito belos e muito ricos, no braço uma
bracelete de ouro e nos cabelos negros pedras coloridas, cintilantes
e preciosas. Recuou, fremente. Ela tinha-se tornado então uma
cortesã real? Não matara ele aquele Nala? Ela ainda trazia os
presentes dele? Como podia apresentar-se-lhe e chamá-lo pelo
nome, usando aquelas braceletes e aquelas pedras?
Mas ela estava mais bela do que nunca e, antes de conseguir
pedir-lhe uma explicação, não pôde impedir-se de a estreitar nos
braços, de mergulhar a testa nos cabelos de Pravati, de voltar o
rosto dela para o seu e beijar a sua boca, e, ao fazê-lo, sentiu que
tudo voltava para ele e era de novo seu, tudo o que alguma vez
possuíra, a felicidade, o amor, a volúpia, a alegria de viver, a paixão.
Os seus pensamentos estavam já longe daquela floresta e do velho
eremita; aqueles bosques, aquele eremitério, as meditações e o
yoga tinham-se já transformado em nada e caído no esquecimento.
Não pensou mais na cabaça de água, que devia ter levado ao velho.
Ela ficou ao lado da fonte quando se dirigiu com Pravati para a orla
da floresta. E precipitadamente ela começou a contar-lhe como tinha
vindo até ali e como tudo se havia passado.
Era espantoso o que ela contava, espantoso, encantador e
fabuloso. Dasa penetrava na sua nova vida como num conto de
fadas. Não apenas Pravati lhe pertencia outra vez, não apenas
aquele Nala que odiava estava morto e a perseguição do seu
assassino abandonada há muito, mas, ainda por cima, fora Dasa,
antigo filho de rei tornado pastor, que tinha sido proclamado na
cidade herdeiro e soberano legítimo. Um velho pastor e um brâmane
idoso tinham lembrado a história quase esquecida do seu abandono
e tinham-na posto em todas as bocas. E esse mesmo homem que,
durante algum tempo, tinham procurado por todo o lado como
assassino de Nala, para o supliciar e executar, era agora procurado
em todo o país mais ativamente ainda, para ser sagrado rajá e fazer
uma entrada solene na cidade e no palácio do seu pai. Era como um
sonho e o que lhe deu mais prazer na sua surpresa foi aquele
encantador acaso que quisera que, de todos os mensageiros
enviados, tivesse sido precisamente Pravati a descobri-lo e a
primeira a saudá-lo. Na orla da floresta encontrou tendas montadas,
no meio dum cheiro de fumo e de caça. Pravati foi saudada com
grandes gritos e um cerimonial imponente começou a desenrolar-se
logo que ela fez reconhecer Dasa, o seu esposo. Havia ali um
homem que tinha sido camarada de Dasa no tempo dos pastores e
fora ele quem trouxera Pravati e o seu séquito aqui, a um dos locais
onde ele outrora vivera. Este homem riu de prazer ao reconhecer
Dasa, correu ao seu encontro, e teria sem dúvida gostado de lhe
bater amistosamente no ombro ou de o apertar nos braços, mas
agora o seu camarada era rajá. Parou em plena corrida, como que
paralisado, em seguida continuou num passo mais lento,
respeitosamente, e saudou-o com uma profunda vénia. Dasa fê-lo
erguer-se, abraçou-o, chamou-o ternamente pelo nome e
perguntou-lhe que presente lhe poderia oferecer. O pastor desejou
uma vitela: prometeram-lhe três, do melhor estábulo real. Não
acabavam de ser apresentadas personalidades ao novo soberano,
funcionários, monteiros-mores, brâmanes da corte, e recebeu as
homenagens deles. Foi servido um festim e houve um concerto de
tambores, guitarras e flautas em que se soprava pelo nariz. Todo
este cerimonial e esta pompa eram para Dasa como que um sonho.
Não conseguia acreditar verdadeiramente naquilo. Para ele não
houve, em primeiro lugar, outro real a não ser a sua jovem mulher,
que apertava nos braços.
Em etapas curtas, o cortejo aproximou-se da cidade. Tinham
enviado à frente corredores para espalhar a feliz notícia de que o
jovem rajá fora descoberto e ia fazer a sua entrada. E quando a
cidade ficou à vista, vibrava já toda com o som dos gongos e dos
tambores. Solenemente, o cortejo dos brâmanes veio ao seu
encontro, vestidos de branco, e à sua frente vinha o sucessor
daquele Vasudeva que, cerca de vinte anos antes, enviara Dasa para
os pastores e morrera recentemente. Saudaram-no, cantaram hinos
e, à frente do palácio aonde o conduziram, tinham acendido alguns
grandes fogos propiciatórios. Conduziram Dasa para a sua moradia,
e lá, ainda, recebeu, com novas saudações, homenagens, fórmulas
de bênção e boas-vindas. Lá fora, a cidade festejava alegremente
até ao cair da noite.
Instruído todos os dias por dois brâmanes, aprendeu em pouco
tempo a parte de ciências que parecia indispensável. Assistiu aos
sacrifícios, fez justiça e exercitou-se nas artes da cavalaria e da
guerra. O brâmane Gopala iniciou-o na política; expôs-lhe o que
eram a sua casa e os direitos desta, disse-lhe o que é que mais
tarde os seus filhos poderiam reivindicar e quais eram os seus
inimigos. À cabeça da lista vinha a mãe de Nala, que outrora
frustrara o príncipe Dasa dos seus direitos, ameaçara os seus dias e
que devia, agora, por acréscimo, odiar nele o assassino do seu filho.
Fugira e pedira proteção ao soberano vizinho, Govinda. Vivia no seu
palácio. Ora, este Govinda e a sua casa eram desde sempre inimigos
perigosos e tinham estado já em guerra contra os antepassados de
Dasa e mantinham pretensões sobre determinadas partes do seu
território. Pelo contrário, o seu vizinho do Sul, o rei Gaipali, fora
amigo do pai de Dasa e nunca pudera suportar o defunto Nala. Era
essencial fazer-lhe uma visita, dar-lhe presentes e convidá-lo para a
primeira caçada.
Pravati estava já perfeitamente habituada ao seu estado de dama
nobre, sabia tomar atitudes de soberana e, com os seus belos trajes,
com os seus enfeites, tinha um grande ar e não parecia de mais
baixa extração do que seu senhor e esposo. Viveram anos na
felicidade do amor, e essa felicidade conferia-lhes um certo brilho,
uma radiação como aos preferidos dos deuses, tanto que o seu povo
os respeitou e amou. E quando, após uma longa e vã espera, Pravati
deu à luz um belo rapaz, ao qual ele deu o nome do seu próprio pai,
Ravana, a sua felicidade atingiu o auge. Atribuiu, a partir desse
momento, um significado e uma importância duplas ao que possuía
em terras e poder, casas e estrebarias, leitarias, gado e cavalos; o
seu brilho e o seu preço foram elevados à sua frente. Ele achara
belo e agradável possuir aquilo tudo para com isso rodear Pravati,
vesti-la, enfeitá-la, prestar-lhe homenagem, e doravante ainda lhe
pareceu infinitamente mais belo, mais sedutor e mais importante
que isso fosse o património e a felicidade futuros do seu filho
Ravana.
Se Pravati tinha sobretudo prazer nas festas, no aparato, na
pompa e na opulência dos seus trajes, dos seus enfeites e nos seus
inúmeros criados, as joias preferidas de Dasa eram as que lhe
davam o seu jardim, onde mandara plantar flores e árvores raras e
preciosas, onde mantinha também papagaios e todo um conjunto de
aves de todas as cores. Tinha o hábito de todos os dias ir dar-lhes
de comer e divertir-se com eles. Por outro lado, a erudição atraía-o.
Aluno grato dos brâmanes, aprendeu uma quantidade de versículos
e provérbios, a arte de escrever e de ler; tinha o seu escriba
particular, perito na ciência de preparar, com folhas de palmeira,
rolos para manuscritos, e, nas mãos delicadas deste, uma pequena
biblioteca começou a ver o dia. Aqui, junto destes livros, numa
salinha preciosa, de paredes revestidas de madeiras de essências
raras, todas esculpidas com motivos ricos e personagens, em parte
douradas, que representavam a vida dos deuses, punha às vezes os
brâmanes a discutir entre eles. Esta elite de sábios e pensadores que
incluía o clero discutia assuntos sagrados, a criação do mundo e a
maya do grande Vixnu, os santos Vedas, a virtude dos sacrifícios e
do poder ainda maior da penitência, que pode permitir a um mortal
fazer tremer os deuses de medo. Os brâmanes que melhor tivessem
falado, discutido e argumentado recebiam presentes consideráveis.
Vários, como prémio duma discussão vitoriosa, levavam uma vaca
magnífica, e às vezes era algo ridículo e ao mesmo tempo
comovente ver aqueles grandes sábios, que acabavam de declamar
e explicar as fórmulas dos Vedas e que tinham provado o seu
conhecimento de todos os céus e de todos os mares do mundo,
retirarem-se, orgulhosos e inchados de importância, com os seus
presentes honoríficos ou às vezes discutirem ciumentamente sobre
eles.
De resto, o rei Dasa, no meio das suas riquezas, da sua felicidade,
do seu jardim, dos seus livros, era às vezes levado a achar que tudo
o que diz respeito à vida e à natureza humanas era bizarro e incerto,
ao mesmo tempo comovedor e ridículo, como aqueles brâmanes
vaidosamente sábios, ao mesmo tempo luminoso e tenebroso, digno
de desejo e de desprezo. Se o seu olhar se deleitava nas flores de
lótus que flutuavam nos lagos do seu jardim, nos brilhos
multicolores da plumagem dos seus pavões, dos seus faisões e dos
seus calaus, nas madeiras douradas e esculpidas do seu palácio, se
estes objetos lhe pareciam às vezes de essência quase divina, como
penetrados pelo ardor da vida eterna, outras vezes, ou até ao
mesmo tempo, achava-lhes algo de irreal, de equívoco, de
problemático, uma tendência para a precariedade, para a
desagregação, uma disposição a cair no informe, no caos. Tal como
ele, Dasa, tinha sido príncipe, tornara-se pastor e aviltara-se até se
tornar assassino e fora da lei para voltar novamente ao trono, sem
saber que potências o tinham guiado e trazido e sem que estivesse
seguro do dia de amanhã nem do seguinte, assim também o jogo
maya da vida encerrava em todo o lado nobreza e vilania, a
eternidade e a morte, a grandeza e o ridículo. E assim também a sua
bem-amada, a bela Pravati, tinha às vezes, por alguns instantes,
perdido o seu encanto aos seus olhos e lhe parecera ridícula: tinha
demasiados anéis nos braços, demasiado orgulho e soberba no
olhar, uma dignidade excessivamente afetada no andar.
Mais ainda que o seu jardim e os seus livros, era Ravana, o seu
filhinho, quem representava para ele a realização do seu amor e da
sua existência, que era o objeto da sua ternura e das suas
preocupações. Era uma bela criança frágil, um verdadeiro príncipe.
Tinha os olhos de corça da mãe e possuía do pai uma inclinação
para a reflexão e o sonho. Muitas vezes, quando este via esta
criança demorar-se muito no jardim à frente duma das suas árvores
decorativas ou, acocorada num tapete, mergulhar na contemplação
duma pedra, dum brinquedo de madeira ou duma pena, de
sobrancelhas ligeiramente erguidas, de olhos imóveis, com uma
fixidez um pouco ausente, parecia-lhe que este filho se lhe parecia
muito. Dasa reconheceu quanto o amava da primeira vez que teve
de o deixar sem saber por quanto tempo.
De facto, um dia um mensageiro foi-lhe enviado das regiões onde
o seu território confinava com o de Govinda, o seu vizinho, e
informara-o de que a gente deste fizera uma incursão no seu reino,
destruíra o gado e até fizera prisioneiras um certo número de
pessoas que tinham levado com eles. Dasa preparou-se sem esperar
mais, levara consigo o chefe da sua guarda pessoal, algumas
dezenas de cavalos e homens, e obrigara-se a perseguir os
bandidos. E, no momento da partida, quando pegara no seu filhinho
nos braços e o beijara, o seu coração incendiara-se numa labareda
de amor, como um sofrimento fulgurante. E esta dor de fogo cuja
violência o surpreendeu e o perturbou tanto como um aviso vindo de
esferas desconhecidas fizera também nascer nele, durante a sua
longa cavalgada, uma consciência e uma inteligência novas. Com
efeito, a cavalo, preocupou-se em saber por que razão estava na
sela, porque fazia andar a montada com tanta severidade e pressa,
e qual era ao certo a potência que o obrigava a este ato e a este
esforço. Na sua reflexão apercebeu-se de que, no fundo do seu
coração, não lhe parecia tão importante e
tão penoso que algures, na fronteira, lhe tivessem arrasado gado e
pessoas. Este roubo, este atentado aos seus direitos soberanos não
bastariam para inflamar a sua cólera e levarem-no a agir. Estaria
mais no seu carácter acolher a notícia desse roubo de gado com um
sorriso de pena. Mas sabia que desse modo teria sido cruelmente
injusto para com o mensageiro, que correra até ao limite das suas
forças para lhe trazer esta notícia, e para com as vítimas dos
ladrões, bem como os homens que tinham sido feitos prisioneiros,
levados, arrancados ao seu país e à sua vida pacífica para serem
deportados para o estrangeiro e reduzidos à escravidão. Cometera
igualmente uma injustiça para com todos os seus outros súbditos,
pelos quais ninguém havia erguido o dedo mínimo, se tivesse
renunciado a vingar-se pela guerra. Eles dificilmente o suportariam e
não compreenderiam que o seu soberano não defendesse melhor o
seu país, pois nenhum poderia contar com a sua vingança e com a
sua ajuda se um dia usassem de violência para com eles.
Compreendeu que era do seu dever levar a cabo esta expedição
punitiva. Mas que é o dever? Quantos deveres há que descuramos
muitas vezes sem que o nosso coração se sobressalte com isso!
Donde vinha então que este dever de vingança não fosse um dos
que lhe eram indiferentes, que lhe fosse impossível descurar, que
não o cumprisse simplesmente com descontração e meia convicção,
mas com ardor, com paixão? Mal esta pergunta se lhe pôs e o seu
coração lhe tinha já respondido, vibrando de repente com a mesma
dor que sentira ao despedir-se de Ravana, o principezinho. Se o
soberano deixava que lhe roubassem gado e súbditos sem opor
resistência, compreendia-o agora, o banditismo e os atos de
violência propagar-se-iam das fronteiras para o interior do país e, no
fim de contas, encontrar-se-ia face a face com o inimigo, e este
atingi-lo-ia no ponto em que ele era sensível à maior e mais amarga
das dores: na pessoa do seu filho! Roubar-lhe-iam o seu filho, o seu
sucessor, levá-lo-iam, matá-lo-iam, torturá-lo-iam talvez, e seria para
ele o sofrimento mais atroz que podia conhecer, pior, infinitamente
pior do que a própria morte de Pravati. E era por isso que cavalgava
com tanto ardor e era um soberano tão fiel aos seus deveres. Não
era a sensibilidade àquelas perdas de gado e de território, nem a
bondade para com os seus súbditos, nem o respeito ambicioso pelo
nome real do seu pai que o tornavam assim, era o seu amor
violento, doloroso, insensato, por aquela criança, e o temor
veemente e louco da dor que lhe causaria a sua perda.
Eis o que tinha compreendido durante aquela cavalgada. Não
conseguira de resto apanhar e castigar os homens de Govinda. Eles
haviam-lhe escapado com o seu saque e, para provar a firmeza da
sua vontade e da sua coragem, teve de violar ele próprio a fronteira,
causar prejuízos numa aldeia do seu vizinho, tirar-lhe algumas
cabeças de gado e escravos. Tinha estado ausente longos dias, mas,
ao regressar a cavalo, vitorioso, entregara-se outra vez a profundas
reflexões, e entrara em casa muito taciturno e de aspeto triste. Pois,
ao pensar nisso, dera-se conta de que toda a sua maneira de ser e
de agir o fizera cair e enredar-se, sem esperança de lhe escapar,
numa rede pérfida. Enquanto o seu gosto pelo pensamento, a sua
necessidade de contemplação tranquila, de vida inativa e inocente
não deixavam de aumentar e crescer, por outro lado, o seu amor por
Ravana, a angústia e as preocupações que lhe inspiravam a sua
pessoa, a sua vida e o seu futuro faziam crescer em igual medida
aquela obrigação de agir e de se prender na armadilha. A ternura
alimentava a disputa, o amor, a guerra. Tinha já, se bem que
unicamente para ser justo e à laia de castigo, roubado um rebanho,
feito morrer de medo uma aldeia e levado à força pobres inocentes.
E isso ia ser naturalmente a origem de vinganças e violências novas
e continuaria até que toda a sua vida e o seu país inteiro já só
fossem apenas guerra, violências e entrechocar de armas. Era esta
ideia ou esta visão que lhe tinham dado um ar taciturno e tão triste
no caminho do regresso.
E efetivamente o seu vizinho inimigo não lhe deu descanso. As
suas incursões e as suas razias renovaram-se. Dasa teve de
empreender expedições para o castigar e defender-se e, quando o
adversário se furtou, teve de tolerar que os seus soldados e os seus
caçadores infligissem novos prejuízos ao vizinho. Na sua capital
foram vistos, cada vez mais, homens a cavalo e em armas. Em
muitas aldeias da fronteira havia agora uma guarda militar
permanente. Reuniões e preparativos belicosos perturbaram os seus
dias. Dasa não conseguia compreender que sentido e que utilidade
esta guerrazinha perpétua podia ter; sofria com os sofrimentos das
suas vítimas, com a morte de inocentes; lamentava o seu jardim e
os seus livros, que era obrigado a descurar cada vez mais;
lamentava a paz dos seus dias e do seu coração. Falava disto com
frequência a Gopala, o brâmane, e algumas vezes também com sua
esposa, Pravati. Seria necessário, dizia, obter que um dos soberanos
vizinhos mais em vista fosse chamado a arbitrar o conflito e
restabelecer a paz; pelo seu lado, aceitaria de bom grado prestar-se
a isso, por exemplo por meio de concessões e cedendo pastagens e
algumas aldeias. Ficou desiludido e um pouco descontente ao ver
que nem o brâmane nem Pravati queriam ouvi-lo falar disso.
A divergência sobre este ponto levou-o a discutir violentamente
com Pravati e mesmo a zangar-se com ela. Pressionando-a, expôs-
lhe as suas razões e as suas ideias, mas Pravati tinha a impressão de
que cada um dos seus discursos visava não a guerra e matanças
inúteis, mas unicamente a sua pessoa. Num discurso inflamado e
prolixo, demonstrou a Dasa que a intenção do inimigo era
precisamente tirar partido da sua bondade de alma e do seu amor
pela paz (para não dizer do seu medo da guerra). Ele levá-lo-ia a
concluir pazes sucessivas e a pagar cada uma com pequenas
cedências de território e de população e, no fim, longe de se achar
satisfeito, viria às hostilidades declaradas, logo que Dasa estivesse
suficientemente enfraquecido, e tirar-lhe-ia ainda as suas últimas
possessões. O que estava em causa não eram rebanhos e aldeias,
vantagens e desvantagens, era tudo, a existência ou a aniquilação. E
se Dasa ignorava o que devia à sua dignidade, ao seu filho e à sua
mulher, ter-lhe-ia ela de lho ensinar. Os seus olhos lançavam raios, a
sua voz quebrava-se, havia muito que não a via tão bela e tão
apaixonada, mas isso deu-lhe apenas tristeza.
Entretanto, as violações da fronteira e os atentados à paz
prosseguiam. Só a monção lhe pôs termo provisoriamente. Mas na
corte de Dasa havia doravante dois partidos. Um, o da paz, era
minúsculo. Excetuando Dasa, compreendia apenas um pequeno
número de brâmanes mais idosos, sábios perdidos nas suas
meditações. Pelo contrário, o partido da guerra, de Pravati e de
Gopala, tinha por si a maioria dos sacerdotes e todos os oficiais.
Armavam-se com ardor e sabia-se que do outro lado o vizinho fazia
o mesmo. O monteiro-mor ensinava ao pequeno Ravana a atirar com
o arco, e a sua mãe levava-o a todas as revistas militares.
Às vezes, durante este período, Dasa lembrava-se da floresta onde
vivera algum tempo, pobre fugitivo, e recordava-se do velho de
cabelos brancos que lá vivia como eremita contemplativo. Pensava
nele e sentia necessidade de ir vê-lo, ouvir os seus conselhos. Mas
ignorava se o velho ainda era vivo, se o ouviria e o aconselharia. E
mesmo que ainda fosse vivo e lhe desse um conselho, nada se
alteraria, ninguém poderia mudar fosse o que fosse. A contemplação
e a sabedoria tinham o seu valor e a sua nobreza, mas parecia
resultar apenas à margem, ao lado da vida, e quando se nadava na
corrente da vida, quando se lutava contra as suas vagas, os nossos
atos e os nossos sofrimentos nada tinham a ver com a sabedoria,
produziam-se por si mesmos; era uma fatalidade, havia que agir e
sofrer. Os deuses tão-pouco viviam numa paz e numa sabedoria
eterna, também eles conheciam o perigo e o medo, o combate e a
batalha, sabia-o através de inúmeras narrativas. Dasa resignou-se
por conseguinte, não discutiu mais com Pravati, foi às revistas a
cavalo, viu vir a guerra, pressentiu-a nos sonhos esgotantes das
suas noites e, ao mesmo tempo que o seu vulto se tornava mais
magro e o seu rosto mais escuro, viu a felicidade e a alegria da sua
vida empalidecerem. Restou-lhe apenas o amor pelo filho; ele
cresceu com as suas preocupações, com os armamentos e as
manobras das tropas, flor vermelha inflamada no seu jardim que se
tornava deserto. Admirou-se que as pessoas pudessem suportar
tanto vazio e tanta vida sem alegria, habituar-se a tantas
preocupações e descontentamentos, e admirou-se também de que,
num coração que parecia ter perdido a sua paixão, um amor feito de
angústia e de preocupações como aquele pudesse desabrochar com
tanta chama e autoridade. A sua vida talvez não tivesse nenhum
sentido, mas ainda possuía um coração e um centro, tinha o amor
do seu filho. Por ele se levantava da cama de manhã e passava o dia
em ocupações e trabalhos cujo objetivo era a guerra e que, todos,
lhe eram odiosos. Por ele presidia pacientemente às reuniões dos
chefes e a sua oposição às decisões da maioria limitava-se a obter
que ao menos temporizassem e não se lançassem de cabeça baixa
na aventura.
Assim como a alegria da sua vida, o seu jardim e os seus livros se
lhe tornavam pouco a pouco estranhos, tinham-no traído, a não ser
que tivesse sido ele, assim aquela que fora tantos anos de felicidade
e prazer na sua existência se lhe tornara distante e infiel. Aquilo
começara pela política, no dia em que Pravati lhe fizera aquele
discurso apaixonado em que tratava quase abertamente como
cobardia o seu temor do pecado e o seu amor pela paz e em que, de
faces coradas, lhe falara em termos inflamados da sua honra de
príncipe, de heroísmo e dos vexames sofridos; nesse dia sentira
subitamente e vira com consternação, com um sentimento de
vertigem, até que ponto a sua mulher se havia afastado de si, ou ele
dela. E depois disso o fosso que os separava tinha-se alargado e não
parava de alargar, sem que nenhum deles fizesse nada para o
impedir. Melhor teria sido o papel de Dasa fazer alguma coisa nesse
sentido, pois não havia, na realidade, mais ninguém senão ele que
visse esse fosso e, na sua imaginação, ele tornava-se cada vez mais
a fenda simbólica, o abismo cósmico que separa o homem da
mulher, o sim do não, a alma do corpo. Quando pensava no
passado, julgava ver tudo com uma clareza perfeita: compreendia
como Pravati, com a sua beleza enfeitiçante, o tinha enamorado
outrora, como brincara com ele, até ele se separar dos seus
camaradas, os seus amigos, os pastores, e deixasse a vida de pastor,
até ali tão serena, para viver por amor dela em casa de estranhos,
como criado, como genro, na casa de gente sem bondade, que se
aproveitava do seu amor para o fazer trabalhar para eles. Depois
fora a aparição daquele Nala e a sua infelicidade tinha começado.
Nala apoderara-se da sua mulher; aquele belo rajá cheio de
ademanes, tendas, cavalos e criados seduzira aquela pobre mulher
pouco habituada a esses esplendores; não deve ter-lhe custado
muito. Mas seduzi-la-ia assim tão facilmente se, no fundo do
coração, ela tivesse sido fiel e honesta? O rajá seduzira-a por
conseguinte ou simplesmente tomara-a e infligira a Dasa a dor mais
horrível que teve de sofrer até àquele dia. Mas conseguira a sua
vingança, matara o homem que lhe roubara a sua felicidade, e isso
tinha sido um instante de grande triunfo. Logo que esse ato se
consumou fora obrigado a fugir. Durante dias, semanas, meses,
vivera na selva e nos juncos, como fora da lei, não se fiando em
ninguém. E que fizera Pravati durante esse tempo? Nunca se falara
muito disso entre ambos: ela não fugira para ir ter com ele, não o
havia procurado e encontrado senão no momento em que fora
proclamado príncipe devido ao seu nascimento, pois que ela
necessitava dele para subir ao trono e instalar-se no palácio. Fora
então que ela se mostrara; tinha-o tirado à sua floresta e à
vizinhança do venerável eremita; haviam-no vestido com belas
roupas e feito rajá e tudo isso fora apenas aparato e felicidade
fúteis. Mas, na realidade, que abandonara então e recebera em
troca? Recebera a pompa e os deveres dum príncipe. Estes, ao
princípio, tinham sido leves, e depois tornaram-se cada vez mais
pesados. Ganhara o reencontro com a sua bela esposa, passar com
ela doces horas de amor e depois ter um filho, amá-lo e ver crescer
as preocupações que lhe inspiravam a vida dele e a sua felicidade
ameaçadas. E agora a guerra estava às portas da cidade. Eis o que
Pravati lhe trouxera quando o descobriu então na floresta junto à
fonte. Ora, que tinha ele deixado e abandonado em troca? Deixara a
paz dos bosques, uma piedosa solidão, abandonara a vizinhança e o
exemplo dum santo yogin, a esperança de ser seu discípulo e seu
sucessor, de conhecer o repouso espiritual profundo, radiante e
inquebrantável do sábio, tinha renunciado a ser libertado das lutas e
das paixões da vida. Seduzido pela beleza de Pravati, envolvido por
essa mulher e vencido pela sua ambição, deixara a única via que dá
a liberdade e a paz. Era deste modo que lhe aparecia agora a
história da sua vida e de facto era bastante cómodo interpretá-la
assim, bastavam bem poucos retoques e omissões para a ver sob
este aspeto. Ele esquecera-se, entre outras coisas, de que ainda não
era sequer discípulo daquele eremita e estivera a ponto de o
abandonar voluntariamente. As coisas modificam-se facilmente
quando são recordadas.
Pravati via tudo com uns olhos completamente diferentes, se bem
que se entregasse muito menos que o seu esposo a semelhantes
pensamentos. Não pensava, nem só por um momento, no famoso
Nala. Em contrapartida, se as suas recordações eram exatas, fora ela
a única que estivera na origem da felicidade de Dasa e que a
provocara, fora ela que tinha feito de novo dele um rajá, que lhe
dera um filho, que o submergira de amor e felicidade, para dar
conta, afinal, de que ele não estava à sua altura nem digno era dos
seus soberbos planos. Tornava-se claro para ela que a guerra
iminente só podia levar ao aniquilamento de Govinda e ao aumento
do seu poder e das suas possessões. Em vez de se alegrar e
colaborar com todo o seu ardor, Dasa era demasiadamente pouco
príncipe, parecia-lhe, a guerra e a conquista repugnavam-lhe e teria
preferido viver na inação, ao lado das suas flores, das suas árvores,
dos seus papagaios e dos seus livros. Vishvamitra, o chefe supremo
da cavalaria, era um homem completamente diferente: a seguir a
ela, era o partidário e o propagandista mais ardente da guerra e da
vitória próximas. Qualquer comparação entre ambos só podia dar-
lhe vantagem a ele.
Dasa via bem até que ponto a sua mulher estava tomada de
amizade por aquele Vishvamitra quando ela o admirava e se fazia
admirar por esse oficial alegre e corajoso, um pouco superficial
talvez e mediocremente inteligente, de riso enérgico, de belos
dentes fortes e barba tratada. Via-o com amargura, ao mesmo
tempo que com desprezo, com uma indiferença altiva que fingia
perante si mesmo. Não o espiou e não quis saber se a amizade
desses dois seres se detinha ou não nos limites do lícito e da
decência. Observava a inclinação de Pravati pelo belo cavaleiro, os
gestos com que ela lhe marcava a sua preferência sobre aquele
marido demasiado pouco heroico, com a impassibilidade, na
aparência indiferente, mas no fundo plena de amargura, com que se
habituara a considerar tudo o que lhe acontecia. A sua esposa
parecia decidida a cometer para com ele uma infidelidade e uma
traição, ou era apenas uma maneira de exprimir o seu desdém pela
mentalidade de Dasa? Pouco importava, o facto era esse, aquela
intriga desenvolvia-se, crescia, levantava-se contra ele, como a
guerra e a fatalidade; não havia remédio para isso, nem outra
atitude a tomar além da aceitação, da resignação impassível: pois
era assim e não com ataques e conquistas que se manifestava a
virilidade e o heroísmo de Dasa.
Que a admiração de Pravati pelo capitão de cavalaria ou a
admiração deste por ela respeitassem ou não os limites decentes e
permitidos, em todo o caso Pravati, compreendia-o ele, era menos
culpada do que ele próprio. Claro, Dasa, como pensador cético que
era, tendia mais do que naturalmente a culpá-la pelo
desaparecimento da sua felicidade, ou pelo menos a dar-lhe
parcialmente a culpa de todas as armadilhas em que caíra e onde se
prendera: o amor, a ambição, os seus atos de vingança e de
banditismo. Em pensamento ia até ao ponto de tornar a mulher, o
amor e a volúpia culpados de tudo na terra, de toda esta dança, de
toda esta caça às paixões e à cupidez, do adultério, da morte, do
assassínio, da guerra. Mas também sabia com igual força que Pravati
não era culpada, que ela não era uma causa mas uma vítima, que
não tinha sido ela quem fizera a sua beleza nem o amor que ele
tivera por ela; ela não podia ser responsabilizada, era apenas um
grão de pó num raio de sol, uma vaga no rio. Cabia-lhe, só a si,
manter-se afastado dessa mulher e do seu amor, da sua fome de
felicidade e da sua ambição, quer para ficar pastor satisfeito entre os
pastores, quer para superar as suas insuficiências por meio dos
processos ocultos do yoga. Não o fizera, falhara, não sentia a
vocação da grandeza ou não lhe permanecera fiel; e a sua mulher
tinha razão, no fundo, para ver nele um cobarde. Em contrapartida,
fora ela quem lhe dera aquele filho, aquele belo rapaz frágil, que lhe
inspirava tantas inquietações e cuja presença era, em suma, o que
ainda conferia à sua vida um sentido e um valor; aí se misturava
uma grande felicidade com angústia e dor, é verdade, mas apesar de
tudo uma felicidade, a sua felicidade. Pagava-a com esta dor e esta
amargura do coração, com esta espera da guerra e da morte, com a
consciência de ir ao encontro duma fatalidade. Lá, no seu país, o
rajá Govinda reinava, aconselhado e excitado pela mãe daquele Nala
que ele tinha morto, desse corruptor de triste memória. As incursões
e as provocações de Govinda tornavam-se continuamente cada vez
mais frequentes e mais insolentes. Só uma aliança com o poderoso
rajá de Gaipali poderia dar a Dasa a força de exigir a paz e tratados
de boa vizinhança. Mas este rajá, se se relacionava bem com Dasa,
era parente de Govinda e furtara-se, com a mais extrema das
cortesias, a todas as tentativas feitas para o trazer a este tipo de
aliança. Não havia escapatória possível, nada se podia esperar da
razão, nem da humanidade; a hora fatal aproximava-se e havia que
a sofrer. Dasa chegou mesmo quase a aspirar pela guerra, pela
explosão das fúrias acumuladas e por uma aceleração dos
acontecimentos que já não era verdadeiramente capaz de evitar. Fez
ainda outra visita ao soberano de Gaipali e trocou em vão
amabilidades com ele; no conselho, insistiu no sentido da moderação
e da paciência, mas há muito que o fazia sem esperança; de resto,
armava-se. No conselho, as opiniões já só se afrontavam sobre o
ponto de se saber se responderiam à próxima incursão do inimigo
com a invasão do seu território e com a guerra, ou se esperariam
pela sua ofensiva principal para que, apesar de tudo, ele continuasse
aos olhos do povo e do mundo como culpado e autor da guerra.
O inimigo, que pouco se preocupava com estes problemas, pôs
um fim a estas reflexões, a estas deliberações, a estas hesitações.
Um dia atacou. Simulou uma bastante grande operação de
banditismo, que atraiu de urgência Dasa, com o capitão da sua
cavalaria e as suas melhores tropas, à fronteira, e, enquanto eles
iam a caminho, invadiu o país com o grosso das suas forças,
penetrou imediatamente na cidade, forçou as portas e cercou o
palácio. Quando Dasa soube fez meia volta sem mais delongas,
sabia que a sua mulher e o seu filho estavam cercados naquele
palácio ameaçado, sabia que combates sangrentos se travavam nas
ruelas, e o seu coração apertou-se de cólera e de sofrimento ao
pensar nos seus e nos perigos com que se debatiam. Deixou de ser
um comandante reticente e prudente. A dor e a raiva inflamaram-no,
lançou-se com a sua gente no caminho de regresso, numa
precipitação feroz; em todas as ruas chocou com o fluxo e o refluxo
da batalha, abriu à espada um caminho até ao palácio, enfrentou o
inimigo e bateu-se com fúria, para se ir abaixo, esgotado, no
crepúsculo desse dia sangrento, com diversos ferimentos.
Quando recuperou os sentidos, estava prisioneiro. A batalha fora
perdida, a cidade e o palácio estavam nas mãos do inimigo. Foi
conduzido, preso, perante Govinda, que o saudou ironicamente e o
levou para um apartamento. Era aquele cujas paredes eram de
madeira esculpida e dourada e que continha os rolos de
manuscritos. Aí, num dos tapetes, muito direita, com um rosto de
pedra, a sua mulher Pravati estava sentada, com guardas em armas
atrás dela. O seu filho encontrava-se estendido nos joelhos dela. O
seu corpo frágil jazia como uma flor cortada, morto, de rosto
cinzento, a roupa empapada de sangue. A mulher não se voltou
quando fizeram entrar o seu marido. Não olhou para ele, olhava
fixamente para o pequeno cadáver com um olhar sem expressão.
Pareceu a Dasa estranhamente transformada. Precisou de algum
tempo para notar que os seus cabelos, que ainda alguns dias antes
vira dum negro profundo, tinham por todo o lado reflexos grisalhos.
Devia estar assim sentada há muito tempo, com o filho nos joelhos,
petrificada, o rosto como uma máscara.
– Ravana! – exclamou Dasa. – Ravana, meu filho, Ravana, minha
florzinha! – Ajoelhou-se, a sua face tocou a cabeça do morto; como
um homem em oração, ficou ajoelhado à frente da sua mulher muda
e à frente do seu filho, chorando-os aos dois e prestando-lhes
homenagem. Sentiu o cheiro do sangue e da morte misturado com a
loção de flores com que tinham ungido a cabeça do seu filho. Com
uma expressão gelada Pravati fixava-os um e outro.
Alguém lhe tocou no ombro, era um dos capitães de Govinda;
ordenou-lhe que se erguesse e levou-o dali. Dasa não dissera uma
palavra a Pravati, ela não lhe dissera nenhuma também.
Deitaram-no amarrado numa carroça e levaram-no para a cidade
de Govinda, para um calabouço. Aí desfizeram uma parte das suas
amarras, um soldado trouxe-lhe uma bilha de água que pousou no
chão lajeado; deixaram-no sozinho, a porta foi fechada à chave e
trancada. Um ferimento que tinha no ombro ardia-lhe como fogo.
Procurou às apalpadelas a bilha e humedeceu as mãos e o rosto.
Gostaria de beber mas renunciou pensando que assim morreria mais
depressa. Quanto tempo ainda duraria, quanto tempo? Desejava a
morte como a sua garganta ressequida desejava a água. Só a morte
poria fim ao suplício do seu coração, só ela apagaria em si a imagem
daquela mãe carregando o filho defunto. Mas no meio de todos
aqueles tormentos a fadiga e a fraqueza tiveram piedade dele, deu
de si e adormeceu.
Quando uma fraca claridade veio pousar novamente sobre ele
depois deste curto sono, quis esfregar os olhos, atordoado, mas não
pôde fazê-lo; as suas mãos estavam já ocupadas, seguravam
qualquer coisa e, quando despertou completamente e abriu os
olhos, não tinha muros da cela à sua volta; pelo contrário, uma luz
verde escorria, límpida e forte, sobre as folhas e o musgo. Ficou
durante muito tempo com as pálpebras a piscar. Esta luz atingiu-o
como uma pancada silenciosa mas violenta. Um arrepio de horror,
uma crispação de medo percorreram-no da cabeça aos pés. Piscou
mais os olhos, fez esgares como se choramingasse e abriu-os
completamente. Encontrava-se numa floresta e segurava com as
duas mãos uma taça cheia de água; aos seus pés a bacia duma
fonte ganhava reflexos castanhos e verdes. Soube que ali, por trás
daquele tufo de fetos, estava a cabana e que o yogin que o mandara
buscar água o esperava, aquele que tivera aquele riso estranho e a
quem pedira que lhe desse a saber um pouco o que era a maya. Não
tinha perdido nem batalha, nem filho, não tinha sido nem príncipe,
nem pai. Mas o yogin tinha sem dúvida satisfeito o seu desejo e
dera-lhe uma lição sobre a maya: o palácio e o jardim, a biblioteca e
as aves presas, as preocupações e o ciúme, o amor por Pravati e a
violenta desconfiança que ela lhe inspirara, tudo isso era apenas
nada – não, não era o nada, tinha sido a maya! Dasa ergueu-se,
perturbado, lágrimas correram-lhe pelas faces, nas suas mãos a taça
que acabava de encher para o eremita tremeu e vacilou, a água
transbordou e caiu-lhe em cima dos pés. Tinha a impressão de que
lhe haviam amputado um membro, que lhe tinham retirado qualquer
coisa da cabeça, havia um vazio dentro de si; de repente, longos
anos de vida, o que conservara de tesouros, o que saboreara de
alegrias, o que aguentara de sofrimentos, o que conhecera de
angústias e saboreara de desespero até ao limiar da morte era-lhe
retirado, apagado, reduzido a nada – e no entanto não, pois a
lembrança estava ali, as imagens tinham ficado consigo; via ainda
Pravati sentada, grande e petrificada, com os cabelos de repente
grisalhos, o filho de ambos jazendo nos joelhos dela como se ela o
tivesse sufocado com as mãos, estendido ao comprido como uma
presa, e os membros pendentes, amarrotados, mais baixos que os
joelhos da mãe. Oh! como fora rapidamente informado sobre a
maya, por que método expeditivo e atroz, cruel e exaustivo! Para ele
tudo tinha sido condensado: anos numerosos, ricos de
acontecimentos, tinham-se reduzido à medida dum instante. Tudo o
que, um momento antes, lhe parecia uma realidade poderosa, tinha-
o sonhado. Talvez tivesse também sonhado todos os outros
acontecimentos anteriores, as histórias de Dasa, filho dum rei, a vida
de pastor, o casamento, a vingança sobre Nala, o refúgio junto do
eremita. Isso eram imagens, como se podem admirar nas madeiras
esculpidas dum palácio, onde as flores, as estrelas, as aves, os
macacos e os deuses se mostram entre as folhas. E o que vivia
agora precisamente, o que tinha à frente dos olhos, era o despertar
do seu sonho de príncipe, de guerra e de calabouço, aquela
paragem junto à fonte, aquela escudela de água de que acabava de
verter algumas gotas, e também os pensamentos que formava neste
momento, será que tudo isso, no fundo, não seria feito da mesma
coisa, não era um sonho, um engano, a maya? E o que viveria a
seguir, o que veria com os olhos e apalparia com as mãos, até que
um dia a morte viesse, era feito duma coisa diferente, duma
natureza diferente? Isso eram apenas simulacros e aparências,
fantasias e mentiras. Era a maya, todo esse jogo de imagens da
vida, com as suas belezas e as suas atrocidades, as suas seduções e
o seu desespero, as suas ardentes delícias e as suas dores
ardentes.
Dasa ficou como que atordoado, paralisado. Novamente a taça
vacilou entre as suas mãos e a água verteu-se; saltitou fresca sobre
os dedos dos seus pés e perdeu-se. Que era preciso fazer? Encher
novamente a taça, levá-la ao yogin, vê-lo rir-se de tudo o que tinha
aguentado no seu sonho? Isso não era nada sedutor. Deixou-a cair
outra vez, esvaziou-a e lançou-a para o meio do musgo. Sentou-se
na erva e começou a refletir seriamente. Estava ultrapassado,
descoroçoado por esta fantasia, por aquela trama demoníaca de
emoções, alegrias e dores, que lhe apertavam o coração, paravam o
sangue e que, de repente, eram só a maya e o deixavam
mistificado; estava farto disso, já não desejava nem mulher, nem
filho, nem trono, nem vitória, nem vingança, nem felicidade, nem
inteligência, nem poder, nem virtude. Apenas desejava o repouso, o
fim, já não desejava senão parar a rotação eterna daquela roda,
aquela revista interminável de imagens e suprimi-las. Desejava pôr-
se a si mesmo em repouso e aniquilar-se como o desejara na sua
última batalha quando se lançara sobre o inimigo distribuindo
espadeiradas à volta e aguentando outras, abrindo feridas e
recebendo-as, até ter sucumbido. Mas e depois? A isso sucedia a
trégua dum desmaio, dum sono ou duma morte. E logo a seguir
voltava a acordar, era preciso abrir novamente o coração às
torrentes da vida, e os olhos àquele temível, àquele belo e atroz
fluxo de imagens, sem fim, inelutavelmente, até ao próximo desmaio
e à morte seguinte. Esta era talvez uma pausa, uma trégua breve,
ínfima, o tempo de recuperar fôlego, mas em seguida tudo
continuava, e novamente éramos uma das mil figuras da dança
feroz, bêbeda e desesperada da vida. Ah! A aniquilação não existia,
aquilo não tinha fim.
A agitação fê-lo levantar-se. Uma vez que esta ronda maldita não
conhecia repouso, uma vez que o seu único e nostálgico desejo não
podia ser satisfeito, tanto fazia encher mais uma vez esta taça e
levá-la àquele velho homem, que o mandara por ela, se bem que,
para dizer a verdade, ele não tivesse de lhe dar ordens. Era uma
tarefa que tinham exigido de si, era uma missão: podia-se obedecer
e executá-la. Isso era melhor do que ficar sentado e dar cabo da
cabeça para saber com que método se matar. De resto, era bem
mais fácil e mais preferível obedecer e servir, era muito mais
inocente e mais salutar do que reinar e ter responsabilidades, sabia-
o. Está bem, Dasa, pega então nessa cabaça, enche-a gentilmente
de água e vai levá-la ao teu mestre!
Quando chegou à cabana, o mestre recebeu-o com um olhar
singular, um pouco interrogador, meio apiedado, meio divertido, o
dum espírito que sabe, aquele que pode ter um rapaz já grande por
um mais novo que vê regressar duma aventura penosa e um pouco
humilhante, duma prova imposta à sua coragem. Este príncipe-
pastor, este pobre diabo que tinha corrido para junto dele, voltava
apenas da fonte, é verdade. Fora buscar água e demorara-se apenas
um quarto de hora. Mas não saía menos dum calabouço, tinha
perdido uma mulher, um filho e um reino, percorrera o ciclo duma
vida humana e vira a roda que roda. Claro, este homem conhecera
provavelmente já uma vez, ou várias anteriormente, um despertar e
respirara um gole de realidade, senão não teria vindo para aqui e
não ficaria aqui tanto tempo. Mas agora parecia verdadeiramente
acordado e maduro para iniciar o longo caminho. Seriam precisos
anos para inculcar convenientemente neste jovem ser nem que fosse
só a arte da contenção e de respirar.
Foi apenas por este olhar, que continha um vestígio de simpatia
compassiva e uma alusão à relação que se criara entre eles, entre o
mestre e o aluno, que o yogin aceitou este discípulo. Este olhar
expulsou os pensamentos inúteis da cabeça do aluno e marcou a
sua entrada nesta disciplina e neste serviço. Nada mais há a dizer
sobre a vida de Dasa; o resto passou-se para lá das imagens e das
histórias. Ele não voltou a sair da floresta.
Table of Contents
Ficha Técnica
O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO
Introdução à Sua História num Estudo ao Alcance de Todos
BIOGRAFIA DO MAGISTER LUDI JOSEF KNECHT
A VOCAÇÃO
WALDZELL
OS ANOS DE ESTUDO
AS DUAS ORDENS
A MISSÃO
MAGISTER LUDI
EM FUNÇÕES
OS DOIS POLOS
UM DIÁLOGO
PREPARATIVOS
A CIRCULAR
A LENDA
ESCRITOS PÓSTUMOS DE JOSEF KNECHT
OS POEMAS DO ALUNO E DO ESTUDANTE
OS TRÊS CURRICULA
O fazedor de chuva
O confessor
O curriculum indiano

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