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7 Waldzell: Cela da Floresta ou Cela do Bosque, e por conseguinte Cela Silvestre. (N. do T.)
WALDZELL
Post scriptum:
«Seja-me permitido citar uma frase do venerado Frei Jakobus, que
fixei durante uma das suas inesquecíveis lições:
«Períodos de terror e miséria muito profunda podem ocorrer. Mas
se é possível haver uma felicidade na miséria, só pode ser uma
felicidade do espírito, orientada, no passado, para a salvação da
cultura das épocas anteriores, e, no futuro, para a afirmação serena
e perseverante do espírito, numa era que sem isso correria o risco
de ser inteiramente votada à matéria.»
Tegularius ignorou até que ponto o seu trabalho deixara poucas
marcas nesta epístola; não viu a última versão. Knecht deu-lhe a ler
em contrapartida duas versões anteriores, muito mais
circunstanciadas. Enviou a sua carta e esperou a resposta do
Diretório com muito menos impaciência do que o seu amigo. Tinha
tomado a resolução de dali em diante não fazer mais dele confidente
das suas ações. Proibiu-o, portanto, de falar mais deste assunto e
deu-lhe simplesmente a entender que passaria certamente muito
tempo antes que chegasse uma resposta.
E quando esta lhe chegou, num prazo mais curto do que pensara,
Tegularius não foi informado. Essa carta de Hirsland era assim
concebida:
«Caríssimo Colega:
«Foi com um interesse excecional que a Direção da Ordem, bem
como o Colégio dos Magisters, tomaram conhecimento da vossa
circular tão cheia de coração como de espírito. As retrospetivas
históricas da carta não cativaram menos a nossa atenção do que as
suas ansiosas perspetivas de futuro, e muitos de nós não deixarão
certamente de reservar um lugar nos seus pensamentos a estas
considerações cativantes e certamente, em parte, bastante
fundadas, para delas tirarem proveito. Prestámos todos homenagem,
com alegria, ao espírito que vos anima, ao vosso castalianismo
autêntico e desinteressado, ao vosso amor profundo à nossa
Província, à sua vida, aos seus costumes, que em vós se torna numa
segunda natureza e que as preocupações e, atualmente, um pouco
de angústia, ensombram. Prestámos homenagem com alegria ao
aspeto e ao tom pessoal que toma atualmente o seu amor, e
igualmente ao seu espírito de sacrifício, à sua sede de ação, à sua
gravidade, ao seu zelo e à sua tendência para o heroísmo.
Reconhecemos em todas essas marcas o carácter do nosso Mestre
do Jogo das Contas de Vidro, a sua energia, a sua chama, a sua
audácia. É uma atitude bem digna do aluno do célebre Beneditino
recusar o estudo da história sem ser doutra maneira que não seja
como observador impassível, por uma preocupação de erudição e,
de algum modo, por jogo de esteta, e aspirar utilizar diretamente os
seus conhecimentos históricos no imediato, agir e socorrer! E está
bem no vosso carácter, venerado Colega, ter desejos pessoais tão
modestos, não vos sentirdes atraído por tarefas e missões políticas,
para postos influentes e representativos, mas ambicionardes tão-
somente ser, além de Magister Ludi, mestre-escola!
«Estas são algumas das impressões e dos pensamentos que nos
vieram espontaneamente ao espírito logo à primeira leitura da vossa
circular. A maioria dos nossos colegas teve as mesmas ou pelo
menos sentiu analogamente. Pelo contrário, quando se tratou de
julgar a vossa comunicação, as vossas advertências e os vossos
pedidos, o Diretório não chegou a uma tomada de posição assim tão
unânime. Durante a sessão tida sobre este assunto, a vossa
conceção dos perigos que pesariam sobre a nossa existência, a
natureza, a extensão e a proximidade eventual desses perigos no
tempo foram nomeadamente objeto de vivas discussões e a maioria
dos Diretores encarou essas questões com uma gravidade manifesta
e não sem calor. Contudo, devemos informar-vos de que sobre
nenhum destes pontos a maioria dos votos se juntou à vossa
conceção. Foi somente prestada homenagem ao relevo sugestivo e
às vastas perspetivas das vossas considerações histórico-políticas.
Mas, no pormenor, nenhuma das vossas suposições – será
necessário dizer vossas profecias? – foi aprovada em toda a sua
extensão, nem reconhecida convincente. Inclusivamente sobre o
ponto de se saber em que medida a Ordem e as instituições
castalianas contribuem para a manutenção deste período de paz de
inusitada extensão, em que medida estes poderiam passar, do ponto
de vista do absoluto e dos princípios, por fatores da história política
e dos seus dados, recolhestes apenas poucos sufrágios; e ainda
assim recheados de reservas. A opinião formulada pela maioria é,
em suma, de que a calma ocorrida na nossa parte do Globo no fim
da época das guerras é parcialmente imputável ao esgotamento
geral e às perdas humanas consecutivas dos terríveis conflitos que a
tinham precedido, mas mais ainda ao facto de que o Ocidente tinha
deixado então de ser o ponto nevrálgico da história universal e o
campo fechado das ambições de hegemonia. Sem, por nada deste
mundo, pôr em dúvida os méritos da Ordem, não se pode
reconhecer, ao conceito castaliano duma alta cultura espiritual
colocada sob o signo duma disciplina contemplativa da alma, uma
força historicamente criadora no sentido próprio do termo, isto é,
uma influência viva sobre os dados da política mundial, nada
podendo estar mais longe do carácter deste espírito do que uma
propensão ou uma ambição desta espécie. Castália, algumas
intervenções bastante graves nos debates insistiram neste ponto,
não é, nem por vontade nem por destino, chamada a exercer uma
ação política, ou a procurar influir na guerra e na paz. Um finalismo
desta ordem está de resto fora de questão, pelo próprio facto de que
todo o castalianismo se baseia na razão e tem por campo só o
racional; não se pode, certamente, dizer o mesmo da história
universal, a não ser que se caia nas fantasias teológico-poéticas da
filosofia romântica da história, e se declare como método da razão
universal todo o aparelho de assassínio e de destruição das
potências que fazem a história. O mais fugaz olhar sobre a história
do espírito faz aparecer à evidência que as épocas de grande
desenvolvimento espiritual nunca foram explicadas por
circunstâncias políticas; a cultura, o espírito ou a alma têm, pelo
contrário, a sua história própria, que se desenrola paralelamente ao
que se qualifica de história universal, isto é, à margem dos combates
incessantes pelo poder material, como uma história segunda,
secreta, sagrada e sem efusão de sangue. É unicamente com esta
história universal sagrada e secreta que a nossa Ordem tem a ver e
não com a história “real” e brutal do universo. E nunca pode ter
como tarefa vigiar a história política, e ainda menos ajudar.
«Que a conjuntura política mundial seja, portanto, realmente tal
como a vossa circular dá a entender, ou não, não cabe à nossa
Ordem adotar uma atitude, a não ser a da expectativa e da
tolerância. Assim, sobrepondo-se a algumas vozes, a maioria
rejeitou claramente a vossa opinião, segundo a qual deveríamos
considerar esta conjuntura como um apelo à ação. Quanto à vossa
conceção da situação atual do mundo e às alusões que fizestes
sobre o futuro imediato, produziram, é verdade, manifestamente,
uma certa impressão sobre a maior parte dos nossos colegas e
causou mesmo sensação junto de alguns desses senhores. Contudo,
também sobre este ponto, apesar do respeito que a maior parte dos
oradores testemunhou pelos vossos conhecimentos e a vossa
perspicácia, não se apurou nenhuma maioria unânime a vosso favor,
antes pelo contrário. Tendeu-se antes, considerando ao mesmo
tempo as vossas declarações a este respeito como notáveis e de
grande interesse, a achá-las no entanto exageradamente
pessimistas. Uma voz ergueu-se mesmo para perguntar se não se
podia qualificar de manobra perigosa, ou até criminosa, ou no
mínimo irrefletida, a dum Magister que empreende meter medo ao
seu Diretório com imagens tão sinistras de perigos e provações
pretensamente iminentes. É claro que é lícito, dizia essa voz, lembrar
já agora a precariedade de todas as coisas, e é dever de todos,
especialmente nos postos elevados e que comportam
responsabilidades, recordar de vez em quando o memento mori.
Contudo, profetizar com tais generalizações e um tal niilismo um
pretenso fim próximo para toda a classe dos Magisters, para a
totalidade da Ordem e da Hierarquia, não é somente atentar
indignamente contra o repouso moral e a imaginação dos nossos
colegas, mas também pôr em perigo o próprio Diretório e a sua
eficácia. De facto, a atividade dum Magister nada ganhará se ele for
todas as manhãs para o trabalho dizendo-se que a sua função, o seu
trabalho, os seus alunos, a sua responsabilidade perante a Ordem, a
sua vida por Castália, a sua existência no seu seio, amanhã ou
depois de amanhã serão esquecidos e reduzidos a nada. Ainda que
essa voz não encontrasse apoio da maioria, recolheu no entanto
algumas aprovações.
«Ficar-nos-emos por este breve relato, mas estamos à vossa
disposição para o discutir oralmente. Vedes já por esta curta
exposição, caríssimo Colega, que a vossa circular não produziu o
efeito que talvez pensásseis. Este fracasso deve-se sem dúvida, na
sua maior parte, a causas materiais, a um desacordo de facto entre
os pontos de vista e os desejos que exprimistes e os da maioria.
Contudo, razões de forma contribuíram também para isso. Parece-
nos, pelo menos, que uma discussão oral direta entre vós e os
vossos colegas teria tido um resultado sensivelmente mais
harmonioso e mais positivo. E não foi somente esta forma de circular
escrita que prejudicou, julgámos nós, o vosso requerimento; foi bem
mais antes a associação, geralmente inusitada nas nossas relações,
duma comunicação aos colegas com um pedido pessoal, um
requerimento. A maior parte de nós vê nesta amálgama uma
tentativa de inovação infeliz, alguns qualificam-na francamente como
inadmissível.
«Isto traz-nos ao ponto mais delicado do vosso caso, ao pedido
que formulastes de ser libertado das vossas funções e afetado ao
serviço escolar secular. O solicitante deveria saber já que o Diretório
não podia deter-se num requerimento apresentado tão
abruptamente e assente em motivos tão particulares, que estava
excluído que desse a sua opinião favorável à sua aceitação do
mesmo. A resposta do Diretório é, evidentemente, não.
«Que seria da nossa Hierarquia se já não fossem a Ordem e as
instruções do Diretório que atribuíssem a cada um o seu lugar? Que
seria de Castália se cada um quisesse apreciar ele próprio o seu
valor pessoal, os seus talentos, as suas aptidões, e escolher um
posto em consequência? Recomendamos ao Mestre do Jogo das
Contas de Vidro que reflita alguns instantes e encarregamo-lo de
continuar a administrar o cargo eminente cuja direção lhe
confiámos.
«Julgamos ter satisfeito, deste modo, o vosso pedido de resposta.
Não pudemos dar-vos aquela que talvez esperásseis. Mas não
podemos deixar de prestar homenagem às interessantes sugestões e
aos gritos de alerta contidos no vosso documento. Contamos falar
ainda verbalmente convosco do seu conteúdo, e isso proximamente,
pois, ainda que a Direção da Ordem creia poder confiar em vós, há
contudo um ponto da vossa epístola que constitui um motivo de
preocupação: é aquele onde dizeis que a vossa capacidade de
assegurar ulteriormente as vossas funções seria diminuída ou
comprometida.»
Knecht leu esta carta sem esperar dela grande coisa, mas com
uma atenção extrema. Não tinha tido dificuldade em imaginar que
no Diretório tivessem tido «motivos de preocupação» e de resto
podia concluí-lo dum sinal particular. Um hóspede vindo de Hirsland
fizera a sua aparição na aldeia dos Jogadores, pouco tempo antes,
munido de papéis em regra e duma recomendação da Direção da
Ordem. Pedira hospitalidade por alguns dias, invocando trabalhos a
fazer nos arquivos e na biblioteca; tinha igualmente solicitado
autorização para assistir a algumas conferências de Knecht. Este
homem, que tinha já uma certa idade, fizera a sua aparição,
silencioso e atento, em quase todas as secções e salas da cidade,
informara-se sobre Tegularius e fizera diversas visitas ao diretor da
escola de elite de Waldzell, que habitava na vizinhança. Sem sombra
de dúvidas era um observador enviado para se informar da situação
na aldeia dos Jogadores, para ver se detetava negligências, se o
Magister estava de boa saúde e no seu posto, os funcionários no
trabalho e se os estudantes não manifestavam nenhuma
inquietação. Ficara uma semana inteira e não faltara a uma única
conferência de Knecht; a sua atitude de observador e a sua
presença silenciosa em todos os locais tinham atraído a atenção de
dois dos funcionários. Era, portanto, pelo relatório deste espião que
a Direção da Ordem esperara antes de dirigir a sua resposta ao
Magister.
Que pensar desta resposta e quem podia ter sido o redator? O
estilo não o traía, era o estilo administrativo corrente e impessoal
exigido pelas circunstâncias. Vendo de mais perto esta carta, ela
revelava no entanto mais originalidade e personalidade do que podia
supor-se à primeira leitura. Este documento baseava-se totalmente
no espírito hierárquico da Ordem, na justiça e no amor das
instituições. Via-se claramente quanto o requerimento de Knecht
tinha parecido deslocado, incongruente, penoso mesmo e irritante.
O redator desta resposta tinha decidido certamente rejeitá-lo logo
quando dele tomou conhecimento e sem que o julgamento dos
outros o tivesse influenciado. Em contrapartida, o descontentamento
e a atitude de defesa eram contrabalançados por um entusiasmo,
um estado de espírito diferentes: havia ali uma simpatia sensível; a
benevolência e a amizade de todos os juízos e de todas as
intervenções durante a sessão relativa ao pedido de Knecht eram
sublinhadas. Josef não duvidou que Alexander, o presidente da
Direção da Ordem, tivesse redigido esta resposta.
Pronunciou este verso sem saber em que poeta o lera; este verso
falava-lhe e agradava-lhe. Parecia-lhe responder perfeitamente ao
que lhe estava a acontecer naquele momento. Sentou-se no jardim,
num banco que as primeiras folhas mortas cobriam, regulou a
respiração e lutou por encontrar a sua calma interior até que, de
coração novamente sereno, mergulhasse numa contemplação, em
que a conjuntura desta hora da sua vida se ordenasse em imagens
gerais que ultrapassavam a sua pessoa. Mas, quando voltou à sua
salinha de aulas, o verso voltou-lhe ao espírito, teve de refletir
novamente nele e achou que o texto devia ser um pouco diferente.
E de repente a memória voltou-lhe e ajudou-o. Recitou muito
baixinho:
Lamento
Letras
Um sonho
Servir
No princípio reinavam os virtuosos príncipes
Para consagrarem os campos, o trigo e o arado
E para exercerem o direito de sacrificar e dar a medida
Na carne dos mortais, que tinham sede
Bolas de sabão
Degraus
O fazedor de chuva
Foi há muitos milhares de anos; as mulheres detinham o poder:
na tribo e na família era à mãe e à avó que se testemunhava
respeito e obediência, à nascença uma rapariga valia muito mais que
um rapaz.
Na aldeia havia uma matriarca com cem anos ou mais; todos a
respeitavam e temiam como a uma rainha, embora, tanto quanto
alguém conseguisse lembrar-se, só raramente tivesse de erguer um
dedo ou dizer uma palavra. Era frequente, de dia, estar sentada à
frente da sua cabana, rodeada de parentes que a serviam, e as
mulheres da aldeia vinham testemunhar-lhe respeito, contar-lhe as
suas coisas, mostrar-lhe os filhos e pedir-lhe que os benzesse. As
grávidas iam pedir-lhe que lhes pusesse a mão no ventre e lhes
desse um nome para a criança. A matriarca às vezes impunha a
mão, outras contentava-se com um gesto da cabeça, de aprovação
ou de recusa, salvo quando permanecia imóvel. Raramente falava;
contentava-se em estar ali; encontrava-se ali sentada e, sentada,
reinava com os cabelos branco-amarelados a caírem-lhe em mechas
finas dos lados do seu perfil de águia ressequido e perspicaz.
Sentada, recebia as homenagens, os presentes, os pedidos, as
notícias, os relatórios, as queixas; estava ali sentada e todos sabiam
que era mãe de sete filhas, avó e bisavó de inúmeros netos e
bisnetos; estava ali sentada e as rugas profundas da sua cara e a
sua testa morena continham a sabedoria, a tradição, o direito, a
moral e a honra da aldeia.
Era ao fim da tarde, na primavera; o céu estava coberto e
anoitecia cedo. À frente da cabana de adobe da matriarca não era
ela que estava sentada, mas a filha, que não era menos branca e
menos digna do que ela, e não menos carregada de anos. Estava
sentada e descansava; o seu assento era a soleira da porta, uma
pedra rústica polida, coberta com a pele dum animal quando estava
frio e, num grande semicírculo, lá fora, crianças, mulheres,
rapazinhos pequenos, todos acocorados no chão, na areia ou na
erva. Vinham para ali ao fim da tarde, sempre que não chovia nem
geava, pois queriam ouvir a filha da matriarca contar histórias. Ela
contava histórias ou cantava provérbios. Noutros tempos a matriarca
também o fizera, agora estava velha de mais e já não era
comunicativa. Era a filha que estava ali, no lugar dela, acocorada e a
contar e, assim como aprendera todas as histórias e os provérbios
com a matriarca, herdara dela também a voz, a figura, a dignidade
tranquila da atitude, dos movimentos, da linguagem, e os mais
novos dos ouvintes conheciam-na muito melhor que à mãe e quase
ignoravam já que era em vez de outra que ela se sentava ali e lhes
transmitia as histórias e a sabedoria do clã. Era da sua boca que
corria, nessas tardes, a fonte do saber; ela guardava debaixo dos
cabelos brancos o tesouro da tribo, atrás da testa velha, de rugas
finas, viviam a lembrança e o espírito do povoado. Se alguém sabia
alguma coisa, se conhecia ditados e histórias, devia-o a ela. Tirando
ela e a outra mulher muito velha, havia na tribo só mais uma pessoa
que também sabia, mas essa mantinha-se na sombra; era um
homem misterioso e muito taciturno, o fazedor de tempo ou fazedor
de chuva.
Entre os ouvintes acocorados estava também um rapazinho,
Knecht, e, ao lado dele, uma rapariguinha de nome Ada. Ele gostava
desta rapariguinha e muitas vezes fazia-lhe companhia e protegia-a;
não era verdadeiramente amor, ele ainda não sabia o que isso fosse,
pois era ainda criança; agia assim porque ela era filha do fazedor de
chuva. E a este fazedor de chuva, Knecht respeitava-o e admirava-o
muito, mais do que a qualquer outra pessoa, quase tanto como à
matriarca e à filha. Mas elas eram mulheres. Podia-se honrá-las e
temê-las, não se podia conceber a ideia nem alimentar o desejo de
vir a ser como elas. Ora o fazedor de chuva era um homem bastante
inacessível, a um rapazinho não era fácil permanecer à beira dele;
havia que encontrar maneiras e uma maneira que conduzia até ele
era ser, como Knecht, atencioso para com a filha dele. Ele ia buscá-
la, sempre que podia, à cabana um pouco distante do pai dela, para
a levar a sentar-se, ao fim da tarde, à frente da cabana da velha e
ouvi-la contar histórias e depois trazia-a a casa. Foi o que fez nesse
dia e agora estava acocorado ao lado dela, a ouvir.
Nesse dia a matriarca falava da aldeia das feiticeiras. Contava o
seguinte:
«Às vezes, numa aldeia, há uma mulher má que quer mal a toda a
gente. Geralmente, estas mulheres não têm filhos. Às vezes essas
mulheres são tão más que a aldeia não as quer ter consigo. Então,
vão buscar essa mulher durante a noite, atam o marido, chicoteiam
a mulher com uma vergasta, depois expulsam-na para longe, para
as florestas e os pântanos; pronunciam contra ela uma maldição e
abandonam-na. Soltam então o homem e, se ele ainda não for
muito velho, pode ficar com outra mulher. Mas a que foi expulsa, se
não morrer, erra pelas florestas e pelos pântanos, aprende a língua
dos animais e, depois de muito errar e caminhar, um dia encontra
uma aldeiazinha: é a aldeia das bruxas. Foi lá que todas as mulheres
más que foram expulsas das suas aldeias se juntaram e construíram
uma aldeia para elas. É lá que vivem, que fazem o mal e praticam a
magia. Ou seja, como não têm filhos, gostam de atrair as crianças
das aldeias verdadeiras e, quando um menino se perde na floresta e
nunca mais volta, então é possível que não se tenha afogado no
pântano e que um lobo o não tenha feito em bocados, mas que uma
feiticeira o tenha atraído para o mau caminho e levado para a sua
aldeia. Quando eu era pequena e a minha avó era a mais velha, uma
menina foi uma vez às uvas-do-monte com as outras e, enquanto
andava a colhê-las, sentiu-se cansada e adormeceu; era muito
pequenina, os fetos tapavam-na e as outras raparigas afastaram-se
para mais longe e só quando chegaram à aldeia, já de noite, é que
deram conta de que faltava a rapariga. Mandaram os rapazes novos
à procura dela e eles puseram-se a chamar por ela até ser noite,
depois voltaram, sem a terem encontrado. Ora, a rapariguinha,
depois de ter dormido bastante, metera-se cada vez mais pela
floresta adentro. E quanto mais medo sentia, mais corria, mas já há
muito tempo que não sabia onde estava e afastava-se cada vez mais
da aldeia para sítios onde nunca ninguém havia ido. À volta do
pescoço tinha um dente de javali preso por um fio de ráfia. Fora o
pai que lho dera; trouxera-o da caça e com uma pedra lascada
fizera-lhe um furo por onde se podia meter o fio e, antes disso,
pusera a ferver três vezes o dente no sangue do javali, cantando
rezas que fazem bem; quem trouxesse um dente como aquele
estava protegido contra muitos bruxedos. Então, uma mulher saiu do
meio das árvores, era uma bruxa, que fez uma cara muito doce e
disse: «Olá, minha menina, perdeste-te no caminho? Anda comigo
que eu levo-te a casa.» A menina foi com ela. Mas lembrou-se do
que a mãe e o pai lhe tinham dito: nunca devia mostrar a um
desconhecido o seu dente de javali e, enquanto caminhava,
desprendeu o dente de javali sem que a outra desse por isso e
escondeu-o no cinto. A desconhecida caminhou durante horas com a
rapariga, já era noite quando chegaram à aldeia, mas não era a
nossa, era a das bruxas. Lá, a menina foi fechada numa corte sem
luz mas a bruxa foi dormir na sua cabana. De manhã, a bruxa disse:
«Não trazes um dente de javali contigo?», ao que a menina
respondeu: «Não, tinha um mas perdi-o na floresta», e mostrou o
seu colarzinho de ráfia, no qual já não estava pendurado nenhum
dente. Então a bruxa foi buscar um vaso de pedra com terra, e nesta
terra cresciam três plantas. A menina olhou para elas e perguntou o
que eram. A bruxa mostrou a primeira planta e disse: «É a vida da
tua mãe.» Depois mostrou a segunda e disse: «Esta é a vida do teu
pai.» Depois mostrou a terceira: «E esta é a tua vida. Enquanto
estas plantas estiverem verdes e crescerem, vós vivereis e tereis
saúde. Se uma murchar, então a pessoa que representa adoece. Se
uma planta for arrancada, como agora vou arrancar esta aqui, então
a pessoa cuja vida representa morre.» Agarrou com os dedos a
planta que representava a vida do pai da menina e começou a puxar,
e, quando já a tinha arrancado um bocado e se via uma parte da
raiz branca, a planta soltou um suspiro fundo...»
A estas palavras a rapariguinha sentada ao lado de Knecht
ergueu-se dum salto, como se uma serpente a tivesse mordido,
soltou um grito e fugiu a sete pés. Há muito que lutava contra o
medo que lhe causava esta história e agora não tinha sido capaz de
a aguentar mais. Uma mulher velha pôs-se a rir. Entre os ouvintes
havia quem não tivesse menos medo que a rapariga mas eles
contiveram-se e deixaram-se ficar sentados. Knecht, logo que
acordou completamente do sonho deste conto e do seu medo,
levantou-se também num salto e correu atrás da rapariguinha. A
matriarca continuou a contar.
O fazedor de chuva tinha a sua cabana perto do poço da aldeia e
foi nessa direção que Knecht procurou a fugitiva. Murmurando,
cantando, cantarolando duma maneira atraente e apaziguadora,
tentava tranquilizá-la, imitava uma mulher a chamar as galinhas,
fazia a voz arrastada e doce, de quem quer encontrar. «Ada»,
gritava e cantava ele, «Ada, Adinha, anda cá, Ada, não tenhas
medo, sou eu, Knecht.» Cantou assim sem parar e, antes mesmo de
a ter visto ou ouvido, sentiu de repente a sua mão mole agarrar-lhe
a sua. Ela estava parada à beira do caminho, encostada à parede
duma cabana e ficara à espera dele depois de os seus apelos lhe
terem chegado ao ouvido. Apertou-se, com um suspiro de alívio,
contra este rapaz que lhe parecia já grande e forte como um
homem.
– Tiveste medo? – perguntou-lhe ele. – Não é preciso ter medo,
ninguém vai fazer-te mal, toda a gente gosta muito de ti, Ada. Anda,
vamos para casa.
Ela ainda tremia e soluçava um pouco, mas já estava calma e
acompanhou-o, cheia de gratidão e confiança.
Para lá da porta da cabana luzia uma luz vermelha fraca. O
fazedor de chuva estava acocorado lá dentro, à frente da lareira. Um
clarão vermelho filtrava-se através dos seus cabelos caídos;
acendera a lareira e tinha a cozinhar qualquer coisa em dois potes
pequenos. Antes de entrar com Ada, Knecht ficou a olhar
curiosamente durante alguns instantes, de fora. Viu logo que não
era comida o que estava a ser cozinhado; a comida fazia-se noutros
potes, e de resto já era tarde de mais para isso. Mas o fazedor de
chuva ouvira-o. – Quem está aí à porta? – exclamou. – Entra!
Chega-te! És tu, Ada? – Tapou os potes pequenos com os testos,
rodeou-os com brasas e cinzas e voltou-se.
Knecht estava ainda de olhos presos naqueles potes misteriosos,
cheio de curiosidade, de respeito e temor, como sempre que entrava
naquela cabana. Fazia-o sempre que podia, inventava para isso mil
pretextos e ocasiões, mas sentia sempre essa sensação meio
excitante, meio alarmante, uma angústia ligeira em que a
curiosidade e o prazer da cobiça lutavam contra o medo. O velho
não podia ter deixado de reparar que Knecht há muito o seguia,
passo a passo, e aparecia sempre por perto do sítio onde podia
supor que ele estivesse; seguia-lhe o rasto como um caçador e
oferecia-lhe em silêncio os seus serviços e a sua companhia.
Turu, o fazedor de chuva, fitou-o com os seus olhos claros de ave
de rapina. – Que vens fazer aqui? – perguntou-lhe friamente. – Não
é altura de fazer visitas às cabanas dos outros, pequeno.
– Trouxe Ada, mestre Turu. Ela estava na matriarca, estávamos a
ouvir histórias, as das bruxas, e de repente ela teve medo e pôs-se a
gritar, então eu vim trazê-la.
O pai voltou-se para a pequena: – És uma medricas, Ada. As
raparigas inteligentes não têm medo das bruxas. E tu és uma
rapariga inteligente, és ou não és?
– Sou! Mas as bruxas só sabem fazer coisas más, e quando não se
tem um dente de javali...
– Ah! Querias ter um dente de javali? Havemos de ver isso. Mas
sei duma coisa que ainda é melhor. Sei duma raiz, que te hei de
trazer, é só ir procurá-la e arrancá-la no outono; protege as meninas
inteligentes de todos os bruxedos e até as faz ainda mais bonitas.
Ada sorriu, contente. Estava já acalmada depois que o cheiro da
sua cabana e a luz fraca do fogo da lareira a rodeavam. Knecht
perguntou timidamente: – Não podia ir eu procurar essa raiz? Se ma
descrevesses...
Turu piscou os olhos. – Isso, muitos rapazes gostariam de o saber
–
disse, mas a sua voz não era maldosa, apenas um pouco trocista. –
Não há pressa. No outono, talvez.
Knecht foi-se embora e dirigiu-se para a cabana dos rapazes, onde
dormia. Não tinha pai nem mãe, era órfão e era também por isso
que Ada e a sua cabana tinham para ele qualquer coisa de mágico.
Turu, o fazedor de chuva, não gostava de falas; não se punha a
ouvir o que ele próprio dizia e muito menos os outros, muitos
achavam-no esquisito, outros desagradável. Não era. Em todo o
caso, estava mais bem informado do que se passava à sua volta do
que a sua atitude distraída de sábio e de eremita deixavam entrever.
Sabia exatamente, entre outras coisas, que aquele rapazinho um
pouco importuno, mas bonito e manifestamente inteligente, o seguia
e o observava. Tinha dado conta logo desde o princípio, há mais
dum ano que isso durava. Também sabia muitíssimo bem porquê.
Era uma coisa que era muito importante para aquele rapaz e
também para si que era velho. Tudo queria dizer que o rapaz tinha
uma inclinação para o ofício de fazedor de chuva e que aprendê-lo
era o seu desejo mais ardente. Havia sempre um rapaz igual àquele
no passado. Mais do que um tinha-se já aproximado dele. Muitos
eram fáceis de assustar e de desencorajar, outros não, e, durante
anos, tivera já um ou dois como alunos e aprendizes, que em
seguida se tinham ido casar longe, noutras aldeias, e lá se haviam
tornado fazedores de chuva ou herbanários. Mas depois disso Turu
ficara sozinho, e, se ainda viesse a aceitar um aprendiz, seria para
um dia ter um sucessor. Sempre fora assim, era assim que devia ser
e não podia ser doutra maneira: era preciso que surgisse um rapaz
dotado, que se ligasse ao homem em quem via um mestre da arte e
corresse atrás dele. Knecht possuía dons, tinha o que era preciso, e
certos sinais também o recomendavam: sobretudo o seu olhar
interrogativo, ao mesmo tempo penetrante e sonhador, discrição e
silêncio de maneiras e, na expressão do rosto e da cabeça, um ar de
procurar, de farejar, uma vigilância, uma atenção aos ruídos e aos
cheiros igual à das aves e do caçador. Este rapaz podia com toda a
certeza tornar-se um conhecedor do tempo, talvez mesmo um
mágico, podia-se fazer qualquer coisa dele. Mas havia tempo. Ainda
era muito novo e não era de modo nenhum necessário mostrar-lho;
o facto de lhe reconhecer o valor não devia facilitar-lhe demasiado
as coisas, não havia que poupar-lhe passo nenhum. Se se deixasse
intimidar, atemorizar, desgostar, desencorajar, então pior para ele.
Que esperasse, prestasse serviços, que andasse por ali de mansinho
e lhe fizesse a corte.
Knecht foi-se embora a passear na noite que caía dum céu
coberto onde brilhavam duas ou três estrelas. Estava satisfeito e
agradavelmente excitado. De todos os prazeres, de todas as belezas
e refinamentos que para nós, hoje, são evidentes, que nos são
indispensáveis e que até os mais pobres têm, este povoado não
conhecia nenhum. Ignorava tanto a cultura pessoal como as artes,
ignorava outras moradias além das suas cabanas de adobe todas
tortas, ignorava as ferramentas de ferro e aço e até coisas como o
trigo ou o vinho lhe eram desconhecidas. Invenções como a candeia
ou a lamparina teriam sido para esses homens prodígios espantosos.
A vida de Knecht e o universo das suas representações não eram
menos ricos por isso: o mundo rodeava-o, um mistério e um livro de
imagens infinito. Ele conquistava, em cada novo dia, uma pequena
mas nova porção, desde a vida dos animais e do crescimento das
plantas até ao firmamento e, entre essa misteriosa natureza muda e
a alma solitária que respirava no seu coração inquieto de criança,
existia todo o parentesco e também toda a tensão, angústia,
curiosidade, gosto de assimilação de que é capaz a alma humana.
Se no seu universo não havia um saber escrito, uma história, um
livro, um alfabeto, se tudo o que ficava a mais de duas ou três horas
do caminho da sua aldeia lhe era absolutamente desconhecido, fora
do alcance, em contrapartida, partilhava totalmente, plenamente, da
vida da sua aldeia. Esta aldeia, este torrão natal, esta comunidade
tribal dirigida pelas mães davam-lhe tudo o que podem dar ao
homem o seu povo e o seu Estado: uma terra cheia de mil raízes, de
cujo tecido ele era uma fibra e na qual participava de tudo.
Ia-se embora a passear, satisfeito. O vento da noite murmurava
nas árvores com estalidos leves, cheirava a terra húmida, a canavial
e a lama, a fumo de lenha ainda verde, um cheiro forte e um pouco
adocicado que, mais do que qualquer outro, era sinónimo de torrão
natal, e finalmente, já perto da cabana dos rapazes, o cheiro da
cabana: cheirava a rapazes, a corpos jovens. Sem barulho, deslizou
por baixo da cortina de canas, mergulhou na escuridão quente,
cheia de bafos, estendeu-se na palha e pensou na história das
bruxas, no dente de javali, em Ada, no fazedor de chuva e nos seus
potinhos postos ao lado do fogo, até que adormeceu.
Turu ia ao encontro do rapaz com passos mais do que
parcimoniosos, não lhe facilitava as coisas. Mas o jovem ia-lhe
sempre na cola; algo naquele homem velho o atraía; nem ele
próprio muitas vezes sabia como. Às vezes, quando o velho, num
sítio muito escondido da floresta, do pântano ou do matagal,
colocava uma armadilha, farejava o rosto dum animal, desenterrava
uma raiz ou juntava grãos, acontecia-lhe sentir de repente o olhar
daquele rapaz que o seguia há horas, invisível e sem ruído, e que o
espiava. Então, algumas vezes, fingia que não via, outras
resmungava e escorraçava o seu perseguidor com irritação, outras
ainda fazia-lhe sinal para se aproximar e ficava com ele até o dia
chegar ao fim; punha-o a fazer-lhe recados, mostrava-lhe isto e
aquilo, levava-o a adivinhar, punha-o à prova, dizia-lhe os nomes das
plantas, ordenava-lhe que fosse buscar água ou acendesse o fogo, e
para cada uma destas operações ele conhecia truques, processos,
segredos, fórmulas, cujo segredo obrigava o rapaz a manter. E por
fim, quando Knecht era já um pouco maior, ficou com ele,
reconheceu-o como seu aprendiz e foi buscá-lo à cabana onde
dormiam os rapazes e instalou-o na sua. E isto distinguiu Knecht aos
olhos de todos: já não era uma criança, era aprendiz do fazedor de
chuva, o que queria dizer que, se se aguentasse e valesse alguma
coisa, seria o seu sucessor.
A partir do momento em que o velho levou Knecht para a sua
cabana, a barreira que os separava caiu. Não a do respeito e da
obediência, mas a da desconfiança e da reserva. Turu cedera e
deixara-se conquistar pelos avanços tenazes de Knecht; dali em
diante pensou só em fazer dele um bom fazedor de chuva e seu
sucessor. Para este ensino não existiam nem conceitos, nem
doutrina, nem método, nem textos, nem números, mas apenas
poucas palavras; eram os sentidos de Knecht, bem mais de que o
seu entendimento, o que o mestre formava. Tratava-se não só de
administrar e utilizar, mas transmitir um tesouro considerável de
tradições e experiência, toda a ciência da Natureza que então o
homem possuía. Um vasto sistema complexo de noções,
observações, instintos e hábitos de investigador abriu-se lentamente,
na penumbra, para os olhos do adolescente. Disso, quase nada
havia sido reduzido a conceitos, os sentidos é que tinham de seguir,
aprender, verificar quase tudo. Mas a base e o centro desta ciência
eram o conhecimento da Lua, das suas fases e da sua ação. Era
preciso saber que ela inchava regularmente e diminuía
regularmente, povoada pelas almas dos mortos que mandava
renascer para darem lugar a outros mortos.
Do mesmo modo que a tarde que o conduzira da contadora de
histórias aos potes colocados junto à lareira do velho, uma outra
hora gravou-se na memória de Knecht, uma hora intermédia entre a
noite e a manhã, em que o mestre o acordou duas horas depois da
meia-noite e saiu com ele para as trevas profundas, para lhe mostrar
o último nascer do quarto crescente que estava já a diminuir.
Esperaram então um longo momento, o mestre imóvel e silencioso,
o jovem com um pouco de angústia, arrepiado com falta de sono, no
meio das colinas cobertas de florestas, em cima duma rocha plana e
isolada até que no sítio indicado previamente pelo mestre, na forma
e com a inclinação que ele descrevera de antemão, a Lua surgiu,
delgada, como um risco levemente arqueado. Dominado pela
angústia e pelo encanto, Knecht olhou fixamente para a lenta
ascensão do astro que progredia, pairando docemente no meio das
trevas das nuvens, numa ilha de azul-noturno.
– Em breve vai mudar de forma e inchar outra vez e então será o
momento de plantar o trigo miúdo – disse o fazedor de chuva,
contando antecipadamente os dias pelos dedos. Então caiu
novamente no seu antigo silêncio. E, como se o tivesse deixado
sozinho, Knecht ficou acocorado na pedra que brilhava de humidade
tremendo de frio. Do fundo dos bosques, um longo piar dum mocho
subiu até eles. O velho meditou muito tempo, depois ergueu-se,
pousou a mão nos cabelos de Knecht e disse-lhe muito baixo, como
se saísse dum sonho: – Quando eu morrer, o meu espírito voará
para a Lua. Tu serás então um homem e terás uma mulher: a minha
filha Ada será a tua mulher. Quando ela tiver um filho de ti, o meu
espírito voltará e habitará no vosso filho e chamar-lhe-ás Turu, como
eu me chamo Turu.
O aprendiz escutou-o com estupor, não ousou dizer nada. O
delgado crescente de prata elevava-se, estava já meio engolido
pelas nuvens. Uma premonição estranha apoderou-se do jovem, o
pressentimento de relações e conexões numerosas, de repetições e
de cruzamentos entre as coisas e os acontecimentos; achou-se
estranhamente colocado, ao mesmo tempo espectador e ator,
perante aquele céu noturno desconhecido, onde, por cima das
florestas imensas e das colinas, o delgado crescente aparecera,
anunciado previamente com precisão pelo mestre. Achou que o
mestre era prodigioso, completamente envolvido em segredos, o
mestre que pensava na sua própria morte, o mestre cujo espírito ia
passar um tempo na Lua e voltaria para dentro dum homem que
seria o filho de Knecht e que deveria ter o nome do mestre defunto.
Tal como o céu coberto de nuvens, o futuro, o destino, pareciam
soltar-se por obra dum prodígio, transparentes em alguns pontos à
sua frente, e o facto de se poder saber alguma coisa sobre eles, dar-
lhes nomes e falar deles, era como mergulhar o olhar em espaços
sem fim, cheios de maravilhas onde, apesar de tudo, a ordem
reinava. Num momento pareceu-lhe que o espírito podia aprender
tudo, saber tudo, espiar tudo, o passo leve e seguro dos astros lá
em cima, pondo a vida dos homens e dos animais, as suas uniões e
as suas hostilidades, os seus encontros e as suas lutas, todas as
grandezas e pequenezas, como também a morte contida em cada
ser vivo; viu ou sentiu isso tudo num primeiro arrepio premonitório,
como um conjunto onde também ele estava inserido e
compreendido, parte desse todo perfeitamente ordenado, regido por
leis, acessível ao espírito. Foi o primeiro pressentimento dos grandes
mistérios, da dignidade e da profundidade dos mistérios, bem como
da possibilidade de os conhecer, que, na frescura silvestre daquela
noite, quase manhã, em cima daquela rocha que dominava os
milhares de copas rumorejantes das árvores, aflorou o adolescente
como a mão dum espírito. Não pôde falar disso nem então nem em
toda a sua vida, mas teve de pensar nisso muitas vezes. Enquanto
continuou a aprender e a ganhar experiência foram sempre esta
hora e a sua emoção que teve presentes no espírito. «Pensa»,
advertiam-no elas, «pensa que há isto tudo, que entre a Lua e tu, e
Turu e Ada, passam raios e correntes, que há a morte e a terra das
almas e o regresso de lá de cima e que para todas as imagens e
para todos os fenómenos do universo há uma resposta no fundo do
teu coração, que tudo te diz respeito, que sobre isso tudo deverias
saber tanto quanto é possível ao homem.» Foi isto, mais ou menos,
o que lhe disse a voz. Foi a primeira vez que Knecht ouviu falar
assim o espírito, que recebia o seu chamamento, as suas exigências,
a sua solicitação mágica. Vira já muitas Luas errarem pelo céu e
ouvira, à noite, muitos mochos piarem e, da boca do seu mestre,
por pouco loquaz que fosse, ouvira já muitos discursos inspirados
por uma sabedoria antiga ou por considerações solitárias, mas
naquela hora presente tudo fora novo e diferente, tocara-o o
pressentimento do todo, o sentimento das relações, da ordem que o
englobava e o tornava também responsável. Quem tivesse a chave
de tudo isto não deveria estar só em condições de reconhecer um
animal pelo rasto, uma planta pelas raízes ou os grãos, mas deveria
poder também apreender a totalidade do universo: abarcar os
astros, os espíritos, os homens, os animais, os remédios e os
venenos, tudo, na sua totalidade, e decifrar em cada elemento, em
cada signo, todas as outras partes. Havia bons caçadores que dum
rasto, dos restos deixados, dum pelo ou dum vestígio, sabiam
deduzir mais do que outros: por alguns pelos pequenos reconheciam
não apenas de que espécie de animal provinham, mas também se
era jovem ou velho, macho ou fêmea. Outros, pela forma duma
nuvem, dum cheiro no ar, do comportamento especial dos animais
ou das plantas, descobriam com dias de antecedência o tempo que
iria fazer; neste domínio o seu mestre não tinha igual e era quase
infalível. Havia ainda outros que possuíam um jeito inato: havia
rapazes capazes de, a trinta passos, acertarem num pássaro com
uma pedra. Não o tinham aprendido, sabiam-no muito
simplesmente. Não era o resultado dum esforço, mas dum encanto
ou duma graça: a pedra que tinham na mão voava sozinha, essa
pedra queria chegar ao seu alvo, o pássaro queria ser atingido.
Dizia-se que havia outros que conheciam o futuro com antecedência:
sabiam se um doente ia morrer ou não, se uma mulher grávida daria
à luz um rapaz ou uma rapariga; a filha da matriarca era célebre por
isso, e dizia-se que o fazedor de chuva possuía também um pouco
desse saber. Ora, naquele momento parecia a Knecht que na
gigantesca rede das relações devia haver um centro donde se podia
saber, ver e decifrar todo o passado e todo o futuro. Quem se
encontrasse nesse ponto central deveria ver o conhecimento vir-lhe
como o vale vê vir a água e a couve a lebre. A sua palavra atingiria o
alvo, tão cortante e tão infalível como a pedra saída da mão do
lançador de elite. Por meio da força do espírito, deveria reunir em si
e deixar agir todos esses dons particulares, todas essas capacidades.
Esse seria o homem perfeito, sábio, sem rival! Ser como ele,
aproximar-se dele, estar no caminho que conduzia a ele, era o
objetivo, era o que dava a uma vida consagração e sentido. Tais
eram mais ou menos os seus sentimentos, e o que deles tentamos
dizer na nossa linguagem de conceitos, que ele não conhecia, não
pode exprimir nada do arrepio dos seus pensamentos e do ardor da
sua emoção. A lembrança de se levantar em plena noite, de ser
conduzido através da floresta escura e silenciosa, cheia de perigos e
segredos, a espera em cima da placa rochosa, ao frio da manhã, a
aparição daquele delgado fantasma de Lua, as palavras
parcimoniosas do sábio, aquela conversa a dois com o mestre
naquela hora insólita, tudo isso Knecht o revivia e conservava na sua
memória como uma festa e um mistério, a festa da sua iniciação, da
sua admissão numa aliança e num culto, do seu acesso ao direito de
servir com honra o que não tinha nome, o mistério do universo. Esta
emoção e muitas outras análogas não podiam tornar-se
pensamentos, nem, com mais forte razão, palavras, e uma ideia
mais longínqua e mais impossível ainda do que qualquer outra foi
mais ou menos a seguinte: «Sou eu sozinho que crio esta emoção
ou ela é uma realidade objetiva? O mestre sente a mesma coisa ou
sorri-se de mim? Os meus pensamentos, quando sinto isto, são
novos, pessoais, únicos, ou o mestre e muitos outros antes dele
conheceram e pensaram um dia exatamente a mesma coisa?» Não,
estas refrações e estas diferenciações não existiam, era tudo real,
tudo estava impregnado e cheio de realidade, como a massa dum
pão o estava de fermento. As nuvens, a Lua e o teatro variável do
céu, o calcário molhado e frio debaixo dos seus pés nus, o frio
húmido, escorrendo de humidade na brisa da noite baça, esse cheiro
consolador e familiar do fumo da lareira e da enxerga de folhas que
se mantinha preso à pele de animal em torno dos rins do mestre, a
sua dignidade e, na sua voz rouca, aquela leve vibração da idade e
da espera da morte, tudo isso era mais do que real e impunha-se
quase com violência aos sentidos do adolescente. E para as
lembranças, as impressões dos sentidos constituem um húmus mais
profundo que os melhores sistemas e métodos de pensamento.
O fazedor de chuva pertencia, é verdade, ao pequeno número de
homens que exerciam uma profissão e que, por sua própria
iniciativa, tinham desenvolvido uma arte especial, uma capacidade.
Mas a sua vida quotidiana não diferia, exteriormente, da de todos os
outros. Era um alto funcionário e gozava da consideração da tribo,
recebia também dela considerações e um salário de cada vez que
tinha de trabalhar para a comunidade, mas isso só acontecia em
circunstâncias particulares. A sua função, de longe a mais
importante e mais solene, que se revestia mesmo de um carácter
sagrado, consistia em fixar, na primavera, o dia das sementeiras para
cada espécie de sementes e de plantas. Ele fazia-o tendo
estritamente em conta o estado da Lua, em parte segundo as regras
que tinha herdado, em parte segundo a sua própria experiência. Mas
o ato solene do início das sementeiras propriamente dito, o gesto de
lançar à terra da comunidade o primeiro punhado de grão e de
sementes ultrapassava já as suas funções. Nenhum homem ocupava
uma posição bastante elevada para isso. Todos os anos era a
matriarca em pessoa, ou as suas parentas de mais idade, quem o
realizava. O mestre tornava-se a personagem mais importante da
aldeia quando tinha de fazer realmente a função de fazedor de
chuva. Isso acontecia quando uma longa seca, a humidade ou o frio
persistiam nos campos e ameaçavam a tribo de fome. Então, Turu
devia utilizar os remédios conhecidos contra a falta de água e a má
colheita: os sacrifícios, as conjurações, as procissões. Segundo a
lenda, quando nenhum outro procedimento resolvia uma seca
persistente ou uma chuva sem fim e os espíritos não se deixavam
convencer nem pelas conjurações nem pelas lamentações ou as
ameaças, existia ainda um último meio infalível que, dizia-se, fora
utilizado com bastante frequência no tempo das mães e das avós: a
imolação do próprio fazedor de chuva pela comunidade. Contava-se
que a matriarca ainda conhecera e tinha assistido a isso.
Para lá do cargo de se ocupar com o tempo, o mestre tinha ainda
uma espécie de atividade privada: conjurava os espíritos,
confecionava amuletos e feitiços e servia em certos casos como
médico, na medida em que a matriarca não reservava para si esse
privilégio. Mas, de resto, o mestre Turu fazia a vida de qualquer
outro. Ajudava, quando era a sua vez, a cultivar o terreno da
comunidade e tinha também ao lado da sua cabana as suas
pequenas plantações pessoais. Juntava frutos, cogumelos, lenha e
conservava-os. Ia à pesca e à caça, mantinha uma cabra ou duas.
Era um camponês como todos os outros, mas quando se tratava de
caçar, pescar e procurar plantas, não era igual a nenhum outro
qualquer: era um original e um génio e tinha reputação de conhecer
um ror de manhas, capturas, truques de mão e de astúcias naturais
e mágicas. Dizia-se que dum laço de vime feito por ele nenhum
animal apanhado conseguia escapar-se. Sabia, por meios
particulares, dar perfume e gosto aos engodos para os peixes, tinha
o jeito de atrair a si os lagostins e havia quem acreditasse que
também compreendia a língua de muitos animais. Mas o seu
verdadeiro domínio continuava a ser, no entanto, o da sua ciência
mágica: a observação da Lua e das estrelas, o conhecimento dos
sinais do tempo, a premonição das intempéries e do crescimento das
plantas, a prática de tudo quanto servia de meio auxiliar para obter
resultados mágicos. Assim era que tinha reputação de conhecedor e
colecionador das formas do mundo vegetal e animal que podiam
servir de remédio e de veneno, de veículos para os sortilégios e as
bênçãos e de meios de proteção contra os espíritos hostis. Conhecia
e descobria cada planta, mesmo a mais rara. Sabia onde e quando
florescia e dava semente, quando era o momento de lhe desenterrar
a raiz. Conhecia e encontrava todas as espécies de serpentes e
sapos; sabia como utilizar cornos, cascos, unhas, pelos, percebia de
deformidades, malformações, formas terríveis devidas aos maus
espíritos, tuberosidades, excrescências, bolhas na madeira, na folha,
no grão, na noz, no corno e no casco.
Knecht tinha mais a aprender por intermédio dos sentidos, com os
pés e com as mãos, com os olhos, com o tato, o ouvido e o cheiro,
do que com o entendimento, e Turu ensinava-o bem mais com o
exemplo e a demonstração do que por meio de palavras e teorias.
Era raro, de resto, que o mestre pronunciasse palavras coerentes e,
mesmo assim, as suas falas eram apenas uma tentativa de tornar
mais claras ainda as suas mímicas extraordinariamente prementes. A
aprendizagem de Knecht não diferia da que um jovem pescador ou
um jovem caçador pode fazer com um bom mestre, e era para ele
uma grande alegria, pois só aprendia aquilo para que tinha já
inclinações. Aprendia a vigiar, a escutar, a aproximar-se
furtivamente, a observar atitudes de alerta e de vigília, a identificar
rastos pelo cheiro e pela vista. Mas a caça que espiavam, ele e o
mestre, não era apenas a raposa e o texugo, a víbora e o sapo,
pássaros e peixes, era o espírito, o todo, as significações, as
relações. O que procuravam era determinar, referenciar, adivinhar e
saber antecipadamente o tempo fugaz e caprichoso, a conhecer a
morte à espreita numa baga ou na mordedura duma cobra, a
desvendar o segredo segundo o qual as nuvens e as tempestades
estavam em relação com as fases da Lua e influíam nas sementeiras
e no crescimento das plantas, bem como na prosperidade e nos
males que marcavam a vida do homem e do animal. O seu esforço
neste ponto tinha, para dizer a verdade, o mesmo objetivo que a
ciência e a técnica dos milénios ulteriores: o domínio da Natureza e
o poder de jogar com as suas leis, mas procediam duma maneira
completamente diferente. Não estabeleciam uma separação entre
eles e a Natureza, não tentavam penetrar nos seus segredos pela
violência; nunca se lhe opunham nem a hostilizavam, permaneciam
sempre um dos seus elementos e alimentavam por ela uma
dedicação cheia de respeito. É permitido pensar que a conheciam
melhor e que a tratavam mais inteligentemente. Mas havia uma
coisa que lhes era totalmente impossível, inclusivamente nos seus
pensamentos mais temerários: estarem devotamente ligados,
submetidos à natureza e ao mundo dos espíritos sem sentirem medo
ou, com mais forte razão, julgarem-se superiores a eles. Esta hybris
era inconcebível e ter-lhes-ia parecido impossível ter outras relações
do que as do medo com as potências da Natureza, da morte e dos
demónios. Era o temor que dominava a vida dos homens, vencer o
medo não parecia ser possível. Mas era possível apaziguá-lo, limitá-
lo a certas formas, enganá-lo, impor-lhe uma máscara e fixar-lhe um
lugar no conjunto da vida: era para isso que serviam os diferentes
sistemas de sacrifícios. O medo pesava sobre a vida dos homens e
sem essa pressão poderosa a sua vida teria perdido, claro, os seus
terrores, mas também a sua intensidade. Conseguir elevar até ao
respeito uma parte do medo era um grande passo. Os homens que o
tinham feito, aqueles cujo medo se transformara em piedade, eram
os indivíduos de valor, os elementos mais avançados da época.
Faziam-se muitos sacrifícios e nas mais variadíssimas formas e uma
parte deles e dos seus ritos eram da competência do fazedor de
chuva.
Ao lado de Knecht, a pequena Ada crescia na cabana. Era uma
criança linda, a preferida do velho, e quando este achou que
chegara a altura, deu-a como mulher ao seu aluno. A partir daí
Knecht foi considerado como auxiliar do fazedor de chuva. Turu
apresentou-o à mãe da aldeia como seu genro e seu sucessor e, a
partir dessa data, fez-se substituir por ele em muitas operações e
atos oficiais. Pouco a pouco, por força das estações e dos anos, o
velho fazedor de chuva caiu completamente na solidão
contemplativa dos velhos, abandonou-lhe todas as suas funções, e
quando morreu – encontraram-no morto, acocorado junto à lareira,
debruçado sobre uns potinhos cheios duma mistura mágica, tinha os
cabelos brancos crestados pelo fogo –
há muito que o homem, o aluno Knecht, era conhecido na aldeia
como fazedor de chuva. Reclamou no conselho exéquias que
honrassem o seu mestre e queimou em sacrifício sobre a sua campa
toda uma carga de plantas medicinais e raízes raras e odoríferas.
Também isto fora já num passado longínquo e entre os filhos de
Knecht, que, sendo vários, tornavam já acanhada a cabana de Ada,
havia um rapaz que tinha o nome de Turu. Fora nele que o velho
regressara da viagem que a morte o obrigara a fazer à Lua.
Knecht conheceu a vida que tinha sido anteriormente a do seu
mestre. Uma parte do seu medo transformou-se em piedade e
espiritualidade. Uma parte das suas aspirações juvenis e da sua
profunda saudade permaneceu viva, outra morreu e perdeu-se com
a idade no trabalho, no amor e nos cuidados que tinha com Ada e os
filhos. Era sempre para a Lua que ia o seu afeto mais vivo, para a
Lua que estudava com mais empenho, bem como a sua influência
nas estações e nas intempéries; neste domínio igualou o seu mestre
Turu e, no fim, ultrapassou-o. E, como o crescimento e a diminuição
da Lua estavam muito intimamente ligados com a morte e o
nascimento dos humanos e, de todas as angústias em que viviam, o
medo da morte inelutável era o mais profundo, o adorador e o
conhecedor da Lua que Knecht era teve também, graças às suas
relações estreitas e vivas com esse astro, relações sagradas e mais
puras com a morte. Foi, na sua idade madura, menos sujeito que
outros ao medo de morrer. Era capaz de falar à Lua a linguagem do
respeito, da súplica ou da ternura, sabia que lhe estava ligado por
ternas relações espirituais, conhecia muito exatamente a vida dela e
participava muito intimamente nas suas aventuras e no seu destino,
vivia a sua diminuição e a sua renovação como um mistério, sofria
com ela, era dominado pelo terror quando um fenómeno
monstruoso se produzia e ela parecia exposta a doenças e perigos,
transformações e degradações, quando perdia o brilho e mudava de
cor, quando se ensombrava quase até extinguir-se. É verdade que
nesses momentos toda a gente participava na vida da Lua, tremia
por ela, reconhecia no seu escurecimento uma ameaça e a iminência
dum acontecimento funesto e fixava, cheia de angústia, o seu velho
rosto doente. Mas era justamente então que se revelava que Knecht,
o fazedor de chuva, estava mais intimamente ligado de que os
outros à Lua e que sabia mais sobre ela. Claro, partilhava os
sofrimentos do seu destino com o coração apertado de medo, mas
as suas recordações de acontecimentos análogos eram mais vivas e
mais bem mantidas, a sua confiança mais solidamente fundada; a
sua fé na eternidade e no retorno dos factos, na possibilidade de
corrigir e vencer a morte era maior, e maior também a sua devoção.
Em tais instantes sentia-se capaz de viver o destino desse astro até
ao seu desaparecimento e ao seu renascimento; às vezes sentia
mesmo uma espécie de desejo impertinente, uma espécie de
coragem e de resolução temerárias de desafiar a morte por meio do
espírito, de ganhar força dedicando-se a destinos sobre-humanos.
Isso influenciava um pouco a sua maneira de ser e os outros
apercebiam-se: a sua reputação era de ser um homem sábio,
piedoso, uma pessoa dotada duma grande calma, pouco temente da
morte e que mantinha boas relações com as potências.
Os seus dons e as suas virtudes foram postos a rude prova muitas
vezes. Uma vez teve de suportar um período de más colheitas e de
tempo contrário que se prolongou por mais de dois anos. Foi a maior
provação da sua vida. Os sinais nefastos e hostis haviam começado
com as sementeiras, cuja data fora adiada por diversas vezes, pois
todas as más estrelas, todas as coisas daninhas imagináveis deram
cabo das colheitas e das ceifas e tinham-nas destruído quase
inteiramente. A comunidade conhecera uma fome cruel e Knecht
também. E já era muito ter podido ultrapassar a amargura desse
ano sem perder a fé e a influência e haver conseguido ajudar a tribo
a suportar esta desgraça com humildade e resignação. Quando,
ainda por cima, depois dum duro inverno acompanhado por
numerosos falecimentos, o ano seguinte se apresentou com o
mesmo cortejo de males e misérias, as terras da comunidade
secaram e estalaram por efeito duma seca teimosa e houve uma
terrível proliferação de ratos e também as suas invocações e os seus
sacrifícios solitários tiveram tão-pouco eco e ficaria como as
manifestações públicas, os concertos de tambor, as procissões da
tribo inteira, quando se revelou cruelmente que desta vez o fazedor
de chuva não podia fazer chuva, não foi um caso simples. Foi preciso
ele mostrar-se mais do que um homem vulgar para suportar esta
responsabilidade e fazer frente à população aterrorizada e
perturbada. Passaram-se duas ou três semanas em que Knecht se
viu absolutamente sozinho e enfrentou a comunidade inteira, a
fome, o desespero e aquela velha crença popular segundo a qual o
único meio de reconciliação com as potências era sacrificar o fazedor
de chuva. Ele ganhou cedendo. Não se opôs à ideia de que o
sacrificassem, propôs-se ele próprio como vítima. Por outro lado,
com um esforço e uma dedicação inauditas, contribuíra para adoçar
a miséria de todos: de todas as vezes tinha descoberto água,
detetado uma fonte, um reguinho. Tinha impedido que no auge da
miséria não se aniquilasse todo o gado e, em particular nesse época
de grandes perigos, havia evitado com a sua assistência e os seus
conselhos, com ameaças, sortilégios e orações, com o exemplo e a
intimidação, que aquela que era então a anciã da aldeia, dominada
por um desespero e uma depressão funestas, se fosse abaixo e
largasse estupidamente as rédeas. Revelara-se então que em épocas
de angústia e de preocupação gerais um homem é um socorro tanto
maior quanto a sua vida e o seu pensamento estão mais orientados
para o espírito, para valores superiores à sua pessoa, e aprendeu a
respeitar, a observar, a adorar a arte de servir e de se sacrificar.
Esses dois anos terríveis, que quase fizeram dele uma vítima e
causaram a sua perda, valeram-lhe finalmente um grande prestígio e
a confiança, não apenas da multidão dos irresponsáveis mas
também dos poucos indivíduos que suportavam o peso das
responsabilidades e eram capazes de julgar um homem da sua
espécie.
A sua vida atravessara essas provações e ainda muitas outras
quando atingiu a idade madura e se achou no ponto culminante da
sua existência. Ajudara a enterrar duas matriarcas da tribo, perdido
um belo rapazinho de seis anos que o lobo levara. Havia
ultrapassado uma doença grave sem o socorro de ninguém,
tratando-se a ele mesmo. Sofrera fome e frio. Tudo isso deixara
marcas no seu rosto e também na sua alma. Igualmente fizera a
experiência de que os homens de pensamento provocam nos outros
uma singular espécie de escândalo e repulsa: de longe, claro,
estimam-nos e, em caso de necessidade, recorrem a eles, mas não
gostam deles, não os consideram como seus semelhantes, preferem
afastar-se do seu caminho. Dera-se também conta de que as
fórmulas tradicionais – ou livremente inventadas – de sortilégios e
exorcismos são muito mais facilmente aceites por doentes ou
infelizes do que um conselho sensato, que o homem gosta mais de
suportar males e uma aparência de expiação do que emendar ou
simplesmente examinar o seu ser íntimo, que acredita mais
facilmente na magia do que na razão, em fórmulas do que na
experiência: tudo coisas que, durante os poucos milhares de anos
que se seguiram, não mudaram certamente tanto como muitos livros
de história afirmam. Mas tinha também aprendido que um homem
de pensamento, um homem que procura alguma coisa, não tem
direito a perder o amor, tem de enfrentar os desejos e as loucuras
dos outros, sem orgulho, mas também sem o direito de se deixar
dominar por eles, que há só um passo entre o homem de sabedoria
e o charlatão, o sacerdote e o malabarista, entre o irmão digno de
socorro e o oportunista parasita, e que no fundo as pessoas
preferem infinitamente pagar a um vigarista, deixar-se explorar por
um vendedor de banha da cobra do que aceitar sem dispêndio um
socorro generosamente oferecido. Não gostavam de pagar em
confiança e amor, preferiam que fosse em dinheiro e em géneros.
Enganavam-se mutuamente e estavam à espera que os
enganassem. Teve de aprender a considerar o ser humano como
uma criatura fraca, egoísta e cobarde, e dar também conta que ele
próprio partilhava de todos esses defeitos e esses maus instintos. E
no entanto foi-lhe concedido alimentar a sua alma com a fé de que o
homem é também espírito e amor, que tem qualquer coisa em si que
se opõe aos instintos e aspira a enobrecê-los. Mas todas estas ideias
estão sem dúvida destrinçadas bem de mais e formuladas ainda
mais subtilmente para ter sido Knecht a fazê-lo. Digamos que ele
estava nessa via, que essa via um dia conduziria a estas ideias e
ultrapassá-las-ia.
Enquanto seguia este caminho, com um desejo nostálgico pelas
ideias, mas vivendo ainda bem mais no mundo sensível, enfeitiçado
pela Lua, pelo perfume duma planta, pelos sais duma raiz, pelo
gosto duma casca, maravilhado pela cultura das ervas medicinais,
pelas decocções de unguentos, pela sua devolução ao tempo e à
atmosfera, muitas faculdades se desenvolveram nele, que nós,
tardios, não possuímos e que só compreendemos até metade. A
mais importante era naturalmente a de fazer chuva. Se bem que em
muitas circunstâncias particulares o céu permanecesse insensível e
parecesse troçar cruelmente dos seus esforços, Knecht fez apesar de
tudo chuva mais de cem vezes e sempre de maneiras ligeiramente
diferentes. Claro, não ousaria modificar ou omitir o mínimo
pormenor nos sacrifícios e no rito das procissões, das conjurações e
do rolar do tambor. Mas isso era só apenas a parte oficial, pública,
da sua atividade, o lado espetacular das suas funções e do seu
sacerdócio. Era muito belo certamente, inspirava um orgulho
magnífico ver o céu ceder no crepúsculo dum dia de sacrifício e
procissão, o horizonte cobrir-se, o vento cheirar a humidade e as
primeiras gotas flutuarem no ar. Mas, mesmo aqui, tinha sido
necessário primeiramente que a arte do fazedor de chuva escolhesse
o dia conveniente e não tentasse obter o impossível às cegas. Era
evidente que havia o direito de suplicar às potências, assaltá-las
inclusivamente com orações, mas com tato e medida, dobrando-se à
sua vontade. E, a esses belos triunfos, que lhe rendiam o sucesso e
a audiência das potências, preferia aqueles que, tirando ele,
ninguém conhecia e de que só tinha uma consciência receosa, mais
assente nos sentidos do que no entendimento. Havia estados do
tempo, tensões do ar e do calor, espécies de nuvens e de ventos,
havia categorias de cheiros de água, de terra e de pó, havia
ameaças ou promessas, humores e caprichos dos demónios do
tempo que Knecht pressentia e sentia na pele, no cabelo, em todos
os sentidos, tanto e tão bem que nada podia surpreendê-lo nem
desiludi-lo, tanto e tão bem que concentrava em si o tempo,
desposava-lhe as vibrações e levava-o no seu ser, duma maneira que
o tornava capaz de dar ordens às nuvens e aos ventos, não
evidentemente duma maneira arbitrária e como quisesse, mas em
função justamente do parentesco, das ligações que suprimiam
totalmente a diferença entre ele e o mundo, entre a sua essência
íntima e o universo exterior. Acontecia-lhe, nessas alturas, ficar
parado, em transe, à escuta, ficar acocorado, com todos os poros da
pele abertos, e não sentir já em si a vida das brisas e das nuvens,
mas dirigi-la, fazê-la nscer, um pouco como nós sabemos acordar e
reproduzir em nós próprios uma frase musical que conhecemos
exatamente. Então bastava-lhe suster a respiração: e o vento ou o
trovão calavam-se. Bastava-lhe fazer com a cabeça um sinal de
aquiescência ou de recusa: a tempestade de granizo desencadeava-
se ou não acontecia. Bastava-lhe, com um sorriso, dar às forças em
conflito um meio de exprimirem nele a sua reconciliação: e lá em
cima, as rugas das nuvens apagavam-se e descobriam o azul
luminoso e liso. Em certas épocas em que as suas disposições e a
ordem da sua alma eram particularmente puras, transportava dentro
de si o tempo dos dias seguintes, numa presciência exata e infalível,
como se tivesse no sangue o texto de toda a partitura pela qual o
concerto devia ser tocado lá fora. Eram esses os seus bons dias, os
seus melhores dias, as suas recompensas e as suas delícias.
Mas quando esta união íntima com o exterior se rompia, quando o
tempo e o mundo eram insólitos, incompreensíveis e imprevisíveis,
então também nele a ordem era perturbada e as correntes
interrompidas; sentia que não era um bom fazedor de chuva e as
suas funções, a responsabilidade pelo tempo e pelas colheitas
pesavam-lhe e pareciam-lhe injustas. Em tais momentos era caseiro,
obedecia a Ada e ajudava-a, ocupava-se conscienciosamente do
trabalho de casa com ela, fabricava brinquedos e utensílios para os
filhos, punha os seus remédios a cozer; tinha necessidade de amor e
fazia um esforço para se distinguir o menos possível dos outros
homens, submeter-se inteiramente aos usos e aos costumes e
mesmo até para dar atenção ao que a sua mulher e as vizinhas
contavam e que habitualmente o aborrecia e onde se falava da vida,
da saúde, dos feitos e dos gestos dos outros. Mas nos seus bons
momentos via-se pouco em casa: vagueava, ficava lá fora, pescava à
linha, caçava, procurava raízes, ficava deitado na erva ou escondido
atrás das árvores, farejava, espiava, imitava a voz dos animais,
acendia fogueiras e comparava as formas das nuvens de fumo com
as das nuvens do céu; deixava a pele e o cabelo impregnarem-se de
nevoeiro, de chuva, de ar, de sol ou de luar, e colecionava além
disso, como o seu mestre e antecessor Turu fizera durante toda a
sua vida, esses objetos cuja essência e aspeto pareciam pertencer a
esferas diferentes e em que a sabedoria ou o capricho da natureza
pareciam trair um pouco as regras do seu jogo e os mistérios da
criação, objetos que reuniam em si simbolicamente elementos muito
afastados, por exemplo ramos nodosos que tinham figura de homem
ou de animal, seixos polidos e com textura de madeira, petrificações
de animais dum mundo anterior, caroços de frutos disformes ou
gémeos, pedras em forma de rim ou coração. Numa folha duma
árvore decifrava desenhos, na cabeça dum cogumelo a disposição
radial dos filetes e pressentia então um mistério, um sentido, um
futuro, uma possibilidade: a magia dos signos, a premonição do
número e da escrita, a fixação do infinito e dos seus milhares de
formas no elemento simples, no sistema, no conceito. Todas estas
possibilidades de apreensão do mundo pelo espírito não eram, para
ele, desprovidas de nome, inexpressas mas não estavam excluídas,
não eram imprevisíveis, ainda em embrião, por despontar; faziam
parte da sua essência e cresciam com ele, eram parte orgânica do
seu ser. E se pudéssemos recuar ainda mais alguns milhares de
anos, para lá deste fazedor de chuva e da sua época que nos parece
longínqua e primitiva, encontraríamos já, em todo o lado, estamos
convencidos, o espírito ao mesmo tempo que o homem, esse
espírito que não tem começo e que sempre conteve tudo quanto
produzirá mais tarde.
Não foi reservado a este fazedor de chuva fixar para a eternidade
um dos seus pressentimentos nem encaminhá-lo para uma forma
demonstrável, do que aliás ele quase não precisava. Não se tornou
um dos numerosos inventores da escrita, da geometria, da medicina
ou da astronomia. Permaneceu um elo desconhecido dessa corrente,
mas um elo tão indispensável como qualquer outro. Transmitiu o que
tinha recebido e acrescentou-lhe o fruto das suas novas aquisições e
das suas lutas. Pois também teve alunos. Ao longo dos anos fez de
dois aprendizes fazedores de chuva e um deles tornou-se mais tarde
seu sucessor.
Durante longos anos praticou o seu ofício e viveu a sua vida,
sozinho e sem ser observado, e quando pela primeira vez – pouco
tempo depois da sucessão de más colheitas e da fome – um
adolescente começou a fazer-lhe visitas, a observá-lo, a espiá-lo, a
venerá-lo e a persegui-lo, movido pela vocação de fazer chuva e de
vir a ser mestre, conheceu então, com uma singular melancolia, o
regresso e o inverso da grande aventura da sua juventude. Ao
mesmo tempo sentiu pela primeira vez essa severa sensação de
meio-dia, que nos aperta e ao mesmo tempo nos acorda: a
consciência de que a juventude passou e, passado o meio-dia, a flor
se tornou fruto. E, coisa que nunca julgara possível, comportou-se
com o rapaz exatamente como outrora o velho Turu com ele, e essa
atitude azeda, desencorajante, de espera e de contemporização
impôs-se-lhe espontaneamente, por instinto, não por imitação do
seu defunto mestre nem por considerações morais e pedagógicas.
Não argumentou, por exemplo, que era preciso primeiramente pôr à
prova um jovem para garantir a seriedade da sua vocação, que não
havia que facilitar a ninguém a iniciação nos mistérios, mas torná-la,
pelo contrário, mais difícil, etc... Não, Knecht comportou-se muito
simplesmente para com os seus aprendizes como qualquer outro
solitário ou original erudito, que começa a ficar velho, trata os seus
adoradores e os seus alunos: com um embaraço feroz, respostas
tortas, pronto a fugir; receava pela sua bela solidão e a sua
liberdade pelos seus passeios errantes pela natureza selvagem, pela
liberdade e solidão das suas caçadas e das suas buscas, pelas suas
fantasias e as horas passadas à espreita; gostava ciumentamente de
todos os seus hábitos e fantasias de amador, dos seus segredos e
dos seus recolhimentos. Esteve longe de apertar nos braços aquele
jovem hesitante que vinha ao seu encontro com uma curiosidade
respeitosa, de o ajudar a ultrapassar essa timidez e encorajá-lo, de
encontrar alegria e recompensa, uma consagração e um êxito
agradável naquela mensagem e declaração de amor que o mundo
dos outros acabava de lhe enviar, naquela corte que lhe faziam, no
apego e no parentesco dum ser que sentia em si, como ele, a
vocação de servir os mistérios. Não, isso foi inicialmente como que
um incómodo importuno, um atentado aos seus direitos e aos seus
hábitos, um roubo da sua independência, que pela primeira vez via
quanto lhe era querida. Defendeu-se, excedeu-se em jogos de
astúcia, de engano, de confusão dos seus rastos, e fugia-lhe. Mas
também aqui lhe aconteceu o mesmo que outrora com Turu: a corte
prolongada e muda do jovem enterneceu-lhe lentamente o coração,
cansou pouco a pouco e quebrou-lhe progressivamente a
resistência. E quanto mais o jovem ganhava terreno, mais aprendia,
numa lenta progressão, a falar e a abrir-se com ele, a aprovar o que
ele desejava, a aceitar-lhe a corte e a ver, nesta obrigação nova e
muitas vezes tão fastidiosa da iniciação e do ensino, um facto
inevitável fixado pelo destino e desejado pelo espírito. Cada vez mais
teve de dizer adeus ao sonho, ao sentimento e ao gozo das
possibilidades infinitas do futuro e das suas mil formas. Em vez do
seu sonho duma progressão infinita, soma de toda a sabedoria,
tinha agora à sua frente este aluno, pequena realidade próxima e
exigente, um invasor, um estorvo que não podia rejeitar nem evitar:
era o seu único caminho para o futuro real, a única obrigação
essencial, a única via estreita na qual a vida e os atos, as
convicções, as ideias e os pressentimentos do fazedor de chuva
podiam ser preservados da morte e continuar a viver num pequeno
rebento novo. Decidiu-se suspirando, rangendo os dentes, com um
sorriso.
Inclusivamente, nesta importante esfera das suas funções, que
comportava talvez mais responsabilidades, a transmissão das
tradições e a educação do seu sucessor, tão-pouco lhe foi poupado
conhecer uma experiência e uma desilusão bastante penosas e
bastante amargas. O primeiro aprendiz que se esforçou em ganhar-
lhe os favores e que conseguiu tê-lo como mestre, depois de uma
longa espera e apesar da sua resistência, chamava-se Maro, e
causou-lhe uma deceção de que nunca pôde libertar-se
completamente. Maro era servil e adulador e fingiu durante muito
tempo obediência absoluta, mas faltavam-lhe certas qualidades e
sobretudo coragem; principalmente tinha medo da noite e do
escuro. Procurou esconder este facto, e Knecht, que apesar de tudo
disso se deu conta, tomou tais defeitos ainda durante muito tempo
como resquícios da infância, que um dia desapareceriam. Mas não.
Este aluno também não possuía o dom de se entregar com
desinteresse e sem segundas intenções à observação, às operações
e aos procedimentos da sua profissão, aos pensamentos, aos
pressentimentos. Era inteligente, tinha um entendimento claro,
rápido, assimilava com facilidade e segurança o que pode ser
adquirido sem abnegação. Mas tornou-se cada vez mais visível as
suas intenções e um fim egoístas e que era para isso que queria
aprender o ofício de fazedor de chuva. Queria sobretudo valorizar-
se, ter um papel e impressionar, tinha a vaidade do homem de
talento a quem falta a vocação. Procurava o êxito, exibia perante os
camaradas da sua idade os seus conhecimentos e os truques
aprendidos de fresco –
isso também poderia passar por infantil e talvez corrigir-se. Mas não
procurava somente o êxito, ambicionava exercer um poder sobre os
outros e tirar proveito disso. Quando o mestre começou a dar conta,
teve medo, retirando pouco a pouco o seu afeto a esse rapaz. Por
duas ou três vezes ficou com a convicção de que ele cometera
graves faltas ao fim de vários anos de aprendizagem. Cometeu o
erro ora de administrar por sua própria autoridade um remédio a
uma criança doente, ora de proceder numa cabana a conjurações
contra a praga dos ratos. E quando, apesar de todas as ameaças e
de todas as promessas, foi novamente surpreendido em práticas
semelhantes, o mestre expulsou-o, apresentou o caso à matriarca e
tentou apagar da sua memória a imagem daquele jovem ingrato e
sem préstimo.
Encontrou uma compensação em dois alunos que teve depois
disso e muito especialmente no segundo, que não era outro senão o
seu filho Turu. Gostou muito deste filho mais novo, este último dos
seus aprendizes e discípulos, e acreditou que este poderia vir a ser
mais do que ele próprio era; tornara-se visível que o espírito do seu
avô tinha regressado nele. Knecht teve a satisfação e o conforto
espiritual de haver transmitido ao futuro a soma do seu saber e da
sua fé, de conhecer um ser que era duplamente seu filho e a quem
podia sempre passar o seu cargo, se se tornasse muito penoso para
si. Mas não pôde banir da sua vida e dos seus pensamentos aquele
primeiro aluno que dera para o torto. Este tornara-se na aldeia um
homem que, sem gozar de grande consideração, era no entanto
extremamente apreciado por muitos e não lhe faltava influência.
Casara-se. Tinha uma popularidade de bobo e de amigo de pregar
partidas, era até primeiro-tambor no coro e permaneceu inimigo
secreto do fazedor de chuva, que invejava e a quem causou toda a
espécie de problemas, pequenos e grandes. Knecht nunca fora
homem de amizades e conversas, precisava de estar só e livre,
nunca correra atrás da consideração e do amor, salvo outrora atrás
do mestre Turu quando era rapazinho. Mas agora aprendeu o que é
a existência dum inimigo que nos odeia, e isso estragou bastantes
dias da sua vida.
Maro tinha sido um desses alunos, desses discípulos muito
dotados que, apesar das suas qualidades, são constantemente
desagradáveis e penosos aos seus mestres, porque neles o talento
não é uma força com profundas raízes íntimas, nem tem uma base
orgânica; não é o terno estigma de nobreza duma natureza feliz, a
marca do valor do sangue e do carácter, mas uma espécie de
acrescento fortuito, quando não é usurpação ou roubo. Um aluno
com pouco carácter mas dotado duma inteligência superior ou duma
imaginação brilhante põe infalivelmente o seu mestre em má
situação. Este deve inculcar-lhe o seu património de saber e de
método, torná-lo apto a colaborar na vida do espírito, e contudo não
pode deixar de sentir que o seu verdadeiro dever e o mais nobre
seria precisamente proteger a ciência e as artes da aproximação
indiscreta daqueles que só têm talento. Pois a tarefa do mestre não
é a de ser útil ao aluno: ambos devem servir o espírito. Por este
motivo é que os professores, na presença de certos talentos
brilhantes, sentem repugnância e horror. Todos os alunos deste
género falseiam o sentido e a utilidade do ensino. Todas as
promoções concedidas a um discípulo capaz de brilhar, mas não de
servir, são no fundo um atentado à ideia de serviço, uma maneira de
trair o espírito. Conhecemos, na história de muitos povos, períodos
em que, quando as instituições espirituais estavam profundamente
perturbadas, indivíduos que só tinham dons naturais quase tomaram
de assalto a direção das comunas, das escolas, das academias e dos
Estados e em que todas as funções era ocupadas por talentos
eminentes que queriam dirigir sem serem capazes de servir. É com
certeza muito difícil reconhecer a tempo os talentos deste género,
antes mesmo que eles tenham assimilado os rudimentos duma
profissão intelectual, e recambiá-los com a dureza necessária para
as vias que conduzem a carreiras doutra ordem. Também Knecht
cometera erros e mostrara uma paciência excessiva para com o seu
aprendiz Maro, confiara a um arrivista e a um espírito superficial
uma parte de sabedoria reservada aos vocacionados, e era pena. As
consequências foram mais pesadas para ele do que jamais pensaria.
Veio um ano – a barba de Knecht era já bastante grisalha – em
que a ordem que reinava entre o céu e a terra pareceu ter sido
alterada e perturbada por demónios duma força e duma perfídia
insólitas. Estas perturbações começaram no outono com uma
majestade terrível que aterrorizou profundamente todas as almas e
as encheu de angústia: foi um espetáculo celeste que nunca se vira,
pouco tempo depois do equinócio que o fazedor de chuva observava
e que vivia sempre com uma certa solenidade, numa devoção
respeitosa, com uma atenção acrescida. Uma tarde veio em que,
com um tempo de vento ligeiro e um pouco fresco, o céu, duma
claridade vitrosa, era só turvado por algumas nuvenzinhas móveis
que pairavam a uma altitude muito grande e retinham
anormalmente, durante muito tempo, a luz rosada do pôr do Sol,
feixes de luz à deriva, esfiapados e aos flocos no éter frio e lívido.
Há alguns dias já que Knecht sentia uma coisa mais forte, mais
especial do que o que se manifestava todos os anos nesta época,
em que os dias começavam a diminuir: uma manifestação das
potências no espaço celeste, uma comoção da terra, das plantas e
dos animais, uma inquietação nos ares, uma instabilidade, uma
espera, uma emoção, uma premonição de toda a natureza. As
nuvenzinhas desta hora vesperal que lançavam longas chamas
tardias e palpitantes vinham também somar-se a isso, com os seus
movimentos ondulantes, que não correspondiam ao vento da terra,
com a sua luz suplicante que se debatia longamente, tristemente,
contra a extinção e a que o resfriamento e o desaparecimento
tornavam subitamente invisíveis. Na aldeia reinava a calma. À frente
da cabana da matriarca os visitantes e os ouvintes infantis tinham-se
já disperso havia pouco, alguns rapazinhos perseguiam-se e ainda
lutavam, mas, fora eles, toda a gente voltara para as cabanas e
comera havia muito. Muitos já dormiam e, exceto o fazedor de
chuva, não havia quase ninguém a observar as nuvens vermelhas do
pôr do Sol. Knecht andava dum lado para o outro na sua pequena
plantação, por trás da sua cabana, meditava sobre o tempo,
preocupado, inquieto. Às vezes sentava-se para descansar um pouco
num cepo caído no meio das urtigas que lhe servia para rachar a
lenha. Quando o último farrapo vermelho das nuvens se extinguiu
no céu ainda cheio de luz e de reflexos esverdeados, as estrelas
tornaram-se de repente mais distintas, o seu número e o seu brilho
não tardaram a aumentar; ali onde, um momento antes, duas ou
três apenas eram visíveis havia agora dez, vinte. O fazedor de chuva
conhecia muitas estrelas, os seus grupos e as suas famílias, tinha-as
visto centenas e centenas de vezes. O constante regresso das
estrelas tinha qualquer coisa de tranquilizante, as estrelas eram
consoladoras; lá em cima, claro, eram longínquas e frias, não
dispensavam calor, mas podíamos fiar-nos nelas, a sua disposição
era sólida, elas eram mensageiras de ordem, promissoras de
duração. Pareciam estrangeiras, longínquas, opostas à vida terrestre,
à vida dos homens, inacessíveis ao seu calor, às suas palpitações, às
suas dores e aos seus êxtases, superiores a ela até ao ridículo na
nobre frieza da sua majestade e da sua eternidade, mas havia
contudo relações entre elas e nós, talvez fossem elas que nos
dirigissem e nos governassem. E se existia um saber humano, um
bem espiritual, uma certeza, uma superioridade do espírito sobre a
precariedade das coisas que pudéssemos obter e conservar, esse
saber parecia-se com as estrelas, tinha a sua radiação fria e
tranquila, a sua consolação arrepiante, o seu ar de eternidade um
pouco irónico. O fazedor de chuva tinha tido muitas vezes esta
impressão e, se bem que não tivesse com as estrelas relações assim
tão estreitas, tão excitantes, tão comprovadas, num ciclo constante
de modificações e de regressos, como com a Lua, esse grande peixe
mágico e próximo, húmido e gordo dos mares celestes, apesar de
tudo respeitava-as profundamente e estava-lhes ligado por muitas
crenças. Contemplá-las muito tempo, deixar a sua ação exercer-se
sobre ele, oferecer a sua pequenez, o seu calor e a sua emoção aos
seus olhares pacíficos e gelados, fora para ele muitas vezes como
um banho ou uma bebida salutar.
Também nesse dia tinham o seu aspeto de sempre, mas eram
muito luminosas, pareciam talhadas com facetas agudas no ar tenso
e sem profundidade. Knecht não encontrava repouso interior, não
podia entregar-se a elas. Do fundo de espaços desconhecidos uma
potência aspirava-o, tornava os seus poros dolorosos, sugava-lhe os
olhos, agia silenciosamente, continuamente, como uma corrente,
uma tremura premonitória. Ao lado, na sua cabana, a débil luz
quente da lareira tinha uma vermelhidão baça: a pequena vida
morna esgotava-se: um apelo fazia-se ouvir, um riso, um bocejo; um
odor de humanidade flutuava, um calor de pele, de maternidade, de
sono de criança, e essa vizinhança inocente parecia tornar mais
profunda a noite começada e empurrar as estrelas ainda para mais
longe, para um espaço e uma altura inconcebíveis.
No momento em que Knecht ouvia, na sua cabana, Ada a acalmar
uma criança, cantarolando com uma voz profunda e melodiosa, no
céu começou a catástrofe de que a aldeia iria lembrar-se durante
muitos anos. Na rede tranquila e brilhante das estrelas produziu-se
aqui e ali uma cintilação, uma tremulação como se os seus fios
habitualmente invisíveis se incendiassem; como um jato de pedras
incandescentes e logo extintas, estrelas isoladas rolaram dum lado
para o outro atravessando o espaço, uma aqui, duas além, em
seguida um punhado delas e os olhos ainda não se tinham desviado
da queda dos primeiros astros desaparecidos, nem o coração
petrificado por este espetáculo não tinha ainda recomeçado a bater
e já aquelas luzes que caíam ou que eram projetadas obliquamente,
numa ligeira curva através do céu, perseguiam-se em enxames, às
dúzias, às centenas, em bandos inumeráveis, como se uma
gigantesca tempestade muda as tivesse levado através da noite
silenciosa, como se um outono cósmico tivesse arrancado todas as
estrelas, folhas mortas da árvore celeste, para as varrer sem ruído
para o nada. Como folhas secas, como flocos de neve ao vento,
voavam aos milhares num silêncio terrível, caíam e desapareciam
por trás das colinas florestadas do Sudeste onde nunca antes, que
alguém se lembrasse, uma estrela se tinha deitado, despenhando-se
num abismo sem fundo.
De coração paralisado, os olhos a piscar, Knecht, com a cabeça
lançada para trás, contemplava com um olhar aterrorizado e
insaciável aquele céu transformado e maldito, não acreditando nos
seus olhos e demasiado seguro no entanto daquele horror. Como
todos os que assistiram a este espetáculo noturno, julgou ver as
estrelas que conhecia perfeitamente oscilarem, fundirem-se em
centelhas e despenharem-se nas profundezas. Estava à espera, se a
terra o não engolisse antes, de ver a abóbada celeste tornar-se
rapidamente negra e vazia. Observou realmente, passado um
momento, o que outros não eram capazes de ver: as estrelas
conhecidas ainda estavam presentes aqui e ali, em todo o lado;
aqueles esguichos de estrelas não faziam as suas horríveis razias
entre os velhos astros familiares, mas no espaço intermédio entre o
céu e a terra, e essas luzes que caíam ou que eram lançadas por
alguém, que apareciam e desapareciam tão rapidamente, ardiam
com um fogo cuja cor diferia um pouco da das velhas estrelas
autênticas. Isto foi para ele uma consolação e ajudou-o a recompor-
se. No entanto, mesmo se estivessem ali outras estrelas, novas e
precárias, cuja borrasca enchia o ar, era no entanto atroz, nefasto,
era uma desgraça, uma perturbação, e profundos suspiros exalaram-
se da garganta seca de Knecht. Voltou os olhos para a terra, pôs-se
à escuta de todos os lados, a ver se era o único que presenciara
aquele espetáculo fantástico ou se os outros também o viam. Não
tardou a ouvir, nas cabanas, gemidos, urros e gritos de terror.
Também eles haviam visto aquilo, tinham-no gritado, puseram em
alarme os que dormiam e desassossegado os espíritos. Num abrir e
fechar de olhos o medo e o pânico apoderavam-se de toda a aldeia
inteira. Com um profundo suspiro Knecht chamou tudo a si. Era ele
antes de mais a quem esta desgraça atingia, ele, o fazedor de
chuva, é que era de qualquer modo responsável pela ordem do céu
e dos ares. Reconhecera e revelara sempre com antecedência as
grandes catástrofes: as cheias, o granizo, as grandes tempestades;
de todas as vezes preparara e alertara as mães e os mais idosos,
evitara o pior; com o seu saber, com a sua coragem e a sua
confiança nas potências superiores, construíra na aldeia um escudo
contra o desespero. Porque é que desta vez não soubera nada com
tempo, porque é que não tomara nenhuma disposição? Porque é
que não dissera nada a ninguém sobre o obscuro fenómeno, a
obscura premonição que no entanto tivera?
Afastou a esteira que fechava a entrada da sua cabana e
pronunciou a meia voz o nome da mulher. Ela veio, apertando ao
peito o seu último nascido; ele pegou nele, deitou-o na sua enxerga,
pegou na mão de Ada e pousou-lhe um dedo nos lábios para exigir
silêncio. Conduziu-a para o exterior e viu o seu rosto, paciente e
tranquilo, logo desfigurado pela angústia e terror.
– As crianças devem dormir, é preciso que não vejam isto,
compreendes? – murmurou num tom veemente. – Não deves deixar
sair nenhum, nem mesmo Turu. E tu também não saias de casa.
Hesitou, não sabendo até que ponto devia falar e trair os seus
pensamentos e acrescentou em seguida num tom seguro: – Não te
acontecerá nada, nem a ti nem às crianças.
Ela acreditou logo, mas isso não bastou para apagar do seu rosto
nem do seu coração as marcas do medo.
– Que se passa? – perguntou-lhe, olhando fixamente para o céu,
por cima do ombro. – É grave?
– É grave – disse ele suavemente. – Parece-me que é muito
grave. Mas não é contigo e nem com os pequenos. Fica na cabana,
mantém a esteira bem esticada. Tenho de ir falar com os nossos. Vai
para dentro, Ada.
Empurrou-a para a entrada da cabana, puxou cuidadosamente a
esteira e ficou parado algum tempo a recompor-se, com os olhos
voltados para a chuva de estrelas que não acabava, depois baixou a
cabeça, suspirou mais uma vez, de coração pesado, e afastou-se
rapidamente na noite, para a aldeia e a cabana da matriarca.
Lá, já estava reunida metade da aldeia, num rumor surdo,
dominada por uma vertigem de terror e desespero que o medo
paralisava e não continha totalmente. Havia mulheres e homens que
se abandonavam ao sentimento de horror e de fim do mundo
iminente com uma espécie de raiva e volúpia, com uma crispação
quase estática, ou que agitavam freneticamente os braços e as
pernas descontroladamente. Uma mulher tinha escuma nos lábios e
entregava-se a uma dança solitária, desesperada e obscena,
arrancando tufos dos seus longos cabelos. Knecht apercebeu-se de
que já estava tudo desencadeado, de que quase todos eram já presa
da embriaguez, enfeitiçados e enlouquecidos por aquelas quedas de
estrelas. Talvez fosse haver uma orgia louca, furiosa, uma raiva de
suicida. Era mais do que tempo de reunir e reconfortar os poucos
seres dotados de coração e espírito. A muito idosa matriarca estava
calma; achava que tinha chegado o fim de todas as coisas, mas não
lhe opunha nenhuma resistência e apresentava ao destino um rosto
firme, duro, que, na sua amarga crispação, parecia quase irónico.
Conseguiu que ela o ouvisse. Tentou demonstrar-lhe que as velhas
estrelas que sempre tinham existido ainda estavam nos seus
lugares, mas ela não era capaz de fazer entrar esta ideia na sua
cabeça, quer porque os seus olhos já não tivessem a força para ver,
quer porque a representação que fazia dos astros e das suas
relações mútuas fosse muito diferente da do fazedor de chuva para
que ambos pudessem compreender-se. Abanou a cabeça, manteve o
seu ricto enérgico e, quando Knecht a conjurou a não deixar as
pessoas abandonarem-se à embriaguez do medo e aos demónios,
ela concordou imediatamente. Formou-se à volta dela e do fazedor
de tempo um pequeno grupo de seres angustiados, mas que não
tinham perdido a cabeça e estavam dispostos a deixar-se guiar.
Até ao momento em que chegou à aldeia, Knecht tinha esperado
poder evitar o pânico com a virtude do exemplo, da razão, com os
seus discursos, as suas explicações e as suas exortações. Esta
conversa com a matriarca bastou para lhe provar que era demasiado
tarde. Tinha esperado levar os outros a partilhar das suas próprias
observações, dar-lhas, transmitir-lhas, tinha esperado que, ao
ouvirem-nas, eles vissem sobretudo que não eram as estrelas, pelo
menos não eram todas, que caíam, levadas por aquela tempestade
cósmica; tinha pensado que eles passariam do terror e do espanto
impotentes à observação ativa e que, desse modo, saberiam resistir
àquele choque perturbador. Mas bem depressa viu que bem poucos
em toda a aldeia estariam acessíveis à sua influência; antes que
tivesse conquistado os outros teria sucumbido inteiramente à
loucura. Não, neste caso como em tantos outros, nada havia a
esperar da razão e dum discurso inteligente. Felizmente havia outros
recursos. Se era impossível diluir o medo da morte tingindo-a de
razão, havia no entanto meio de orientar, de organizar esse medo,
de lhe dar forma e aparência e de fazer daquela gritaria
confrangedora de dementes uma unidade compacta, de formar um
coro com aquelas vozes múltiplas enlouquecidas e ferozes. Knecht
utilizou-o imediatamente e logo este remédio agiu. Pôs-se à frente
das pessoas, gritou as orações bem conhecidas com que geralmente
começavam os lutos e as expiações públicas, a lamentação fúnebre
em honra duma matriarca ou a cerimónia do sacrifício expiatório em
casos de perigos públicos, como as epidemias e as inundações.
Gritou as palavras a compasso e marcou a cadência batendo palmas,
inclinou-se quase até ao chão, ergueu-se, voltou a curvar-se, voltou
a erguer-se e logo dez, vinte outros repetiam os seus movimentos. A
velha mãe da aldeia, de pé, fez ouvir um resmungo ritmado e
esboçou, inclinando-se debilmente, os gestos rituais. Os das outras
cabanas que se juntaram a este grupo aderiram prontamente à
cadência e ao espírito deste cerimonial. Os poucos verdadeiramente
possessos, ou se foram abaixo em pouco tempo, de esgotamento, e
ficaram inertes no chão, ou então foram dominados e arrastados
pelos murmúrios do coro e o ritmo das prosternações daquele ofício
divino. Knecht tinha conseguido. Em vez duma horda desesperada
de dementes, havia um povo de devotos, pronto para os sacrifícios e
as expiações; cada um encontrava-se bem, sentia o seu coração
consolado por não ter de guardar sozinho o medo da morte e o
terror, por não bramar sozinho mas integrar-se no coro bem
regulado da multidão, em cadência, numa conjuração solene. Mil
forças secretas intervêm num exercício deste género. A mais
poderosa das suas consolações é a uniformidade que duplica o
sentimento comunitário e os seus remédios mais infalíveis são o
compasso e a ordem, o ritmo e a música.
O céu noturno permanecia coberto com aquele exército de
estrelas que caíam em catarata silenciosa das gotas de luz; passadas
duas boas horas, esta continuou a espalhar profusamente as suas
grossas lágrimas de fogo avermelhado. Durante este tempo, na
aldeia, o horror metamorfoseava-se em resignação e devoção, em
invocações e num sentimento de expiação. Aos céus que tinham
renunciado à ordem, a angústia e a fraqueza humanas opunham-se
na forma da ordem e da harmonia dum culto. Antes mesmo que a
chuva de estrelas começasse a dar sinais de cansaço e a correr em
caudais menos grossos, o milagre tinha sido realizado e dele irradiou
uma força salutar. Quando o ceu, lentamente, pareceu apaziguar-se
e curar-se, os penitentes, mortos de cansaço, tiveram todos o
sentimento libertador de que os seus exercícios haviam apaziguado
as potências e reposto o céu em ordem.
Essa noite de pavor não foi esquecida, falou-se dela ainda durante
todo o outono e todo o inverno, mas já não estava nos ouvidos e
com muitas conjurações; falava-se dela mas no tom de todos os
dias, com a satisfação retrospetiva de rever uma desgraça suportada
com coragem, um perigo combatido com êxito. Contavam-se os
pormenores; cada um tinha sido surpreendido à sua maneira por
aquele acontecimento inaudito, cada um pretendia ter sido o
primeiro a dar por ele. Ousavam troçar de alguns poltrões insignes e
vítimas do pavor. Durante muito tempo persistiu na aldeia uma certa
excitação; tinham tido uma emoção, produzira-se um grande
fenómeno, tinha-se passado qualquer coisa!
Knecht permaneceu alheio a este estado de espírito, não
conheceu o esvaziar gradual e o esquecimento deste grande
acontecimento. Esta aventura desconcertante era para ele um aviso
inesquecível, um espinho que não parou de se lhe cravar na carne.
O facto de aquilo pertencer ao passado e a procissão, a oração e a
penitência lhe terem trazido um alívio não constituiu para ele nem
uma solução nem uma diversão. Quanto mais aquilo recuou no
passado, mais importância passou a ter para ele, pois ele deu-lhe
um sentido; foi então que aprendeu a aprofundar verdadeiramente
as coisas e a interpretá-las. Este acontecimento, em si mesmo, este
prodigioso espetáculo natural oferecia-lhe já um problema duma
amplitude e duma dificuldade infinitas, de perspetivas numerosas:
depois de ter visto aquilo podia-se meditar toda a vida. Só uma
única pessoa da aldeia teria examinado aquela chuva de estrelas
com os mesmos postulados que ele e com os mesmos olhos: era o
seu filho, o seu discípulo; só as confirmações ou as correções dessa
testemunha teriam tido valor para Knecht. Mas deixara dormir o filho
e, quanto mais se perguntava, nas suas meditações, porque é que
no fundo agira assim, porque é que, na presença daquele
acontecimento inaudito, renunciara à única testemunha, ao único
outro observador que merecia ser levado a sério, mais acreditou
firmemente ter feito bem e obedecido a uma sábia inspiração. Tinha
querido poupar os seus àquele espetáculo e entre eles o seu aluno,
o seu colega, e ele mais do que qualquer outro, pois a ele amava-o
sobre todas as coisas. Fora por isso que lhe escondera, que lhe
escamoteara a chuva de estrelas, em primeiro lugar porque
acreditava nos bons espíritos do sono, sobretudo do sono juvenil, e
seguidamente, se as suas recordações eram exatas, porque, para
dizer a verdade, a partir desse momento, a partir do início do
fenómeno celeste, acreditara menos num perigo mortal e imediato
para todos do que num sinal anunciador e no presságio duma
infelicidade futura, que abrangeria e diria respeito a mais ninguém a
não ser ao fazedor de tempo. Havia ali uma iminência, um perigo,
uma ameaça emanante daquelas esferas a que a sua profissão o
ligava, e qualquer que fosse a sua forma, ele é que era o visado,
antes de mais e expressamente. Fazer face a esse perigo com
lucidez e decisão, preparar-se para ele espiritualmente, assumi-lo,
mas sem se deixar diminuir nem desonrar por ele, tais eram o aviso
que leu nesse grande presságio e a decisão que daí tirou. O destino
iminente ia exigir um homem maduro e corajoso, por isso não teria
sido indicado meter nisso o filho, fazê-lo partilhar a sua dor e a sua
presciência, pois, apesar de todo o bem que pensava dele, não tinha
a certeza de que um adolescente que não prestara provas estivesse
à altura desta situação.
O seu filho Turu estava muito descontente, é verdade, por ter
faltado a este grande espetáculo e por ter dormido durante todo
esse tempo. Fosse qual fosse a interpretação que se fizesse, era, em
todo o caso, um grande acontecimento e talvez não voltasse a haver
outro igual a ele em toda a sua vida: tinham-no impedido de ver um
fenómeno sensacional, um prodígio universal e durante algum
tempo amuou contra o pai por este motivo. Mas o amuo acabou,
pois o velho compensou-o com uma ternura e atenções aumentadas
e fez mais do que nunca apelo a ele para todas as operações do seu
cargo. Prevendo o que ia acontecer, esforçou-se ainda mais
visivelmente para concluir e perfazer o mais possível em Turu a
iniciação e a educação do seu sucessor. Se só raramente lhe falou da
chuva de estrelas, abriu-se a ele, cada vez com menos reserva,
sobre os seus segredos, as suas práticas, a sua ciência e as suas
investigações, permitiu-lhe que o acompanhasse mesmo durante as
suas caminhadas, nas suas experiências e investigações da
Natureza, algo que, até ali, não tinha partilhado com ninguém.
O inverno veio e, passou, húmido e bastante doce. Não caíram
mais estrelas, não se produziram grandes acontecimentos
extraordinários; a aldeia reencontrara a paz, os caçadores
perseguiam ativamente as suas presas e, em todo o lado, num
tempo gelado e ventoso, as peles dos animais, tesas pelo frio,
batiam contra as varas onde estavam penduradas por meio de
feixes, por cima das cabanas. Sobre troncos lisos, cargas de lenha
eram arrastadas da floresta. Durante este breve período de gelo,
uma mulher velha acabou por morrer na aldeia e não foi possível
enterrá-la imediatamente. Durante dias, antes que o solo degelasse
um pouco, o seu cadáver gelado ficou acocorado junto à porta da
sua cabana.
Foi a primavera que primeiramente confirmou os sombrios
pressentimentos do fazedor de tempo. Era uma primavera
verdadeiramente má, traída pela Lua, uma primavera sem alegria,
sem ardor e sem seiva. A Lua estava sempre atrasada; nunca os
diversos sinais necessários para fixar o dia das sementeiras
concordavam. As flores selvagens abriam magramente, os botões
por desabrochar pendiam mortos dos ramos. Knecht estava muito
preocupado, sem o deixar parecer. Só Ada, e sobretudo Turu, viam
até que ponto isso lhe fazia mal. Ele não procedeu somente às
conjurações habituais, entregou-se também a sacrifícios privados,
pessoais; pôs a cozer, para os demónios, caldos e decocções
odoríferas e afrodisíacas, rapou a barba e queimou os pelos na noite
de lua nova, misturados com resina e cascas húmidas, provocando
assim um fumo espesso. Enquanto pôde, evitou as manifestações
públicas, o sacrifício comunal, as procissões propiciatórias, os coros
de tambores; enquanto tal foi possível, fez do tempo maldito
daquela primavera nefasta seu assunto pessoal. Mas quando a data
habitual das sementeiras fora já ultrapassada havia muito, teve de
prestar contas à matriarca. E eis que se chocou também aqui com a
pouca sorte e a hostilidade. Não foi recebido pela velha, que o
tratava como amigo e quase maternalmente: ela não se sentia bem,
estava de cama e tinha confiado à irmã todas as suas obrigações e
tarefas. Esta tinha pouquíssima simpatia pelo fazedor de chuva. Não
possuía o rigor e a retidão da sua irmã mais velha, tinha uma
inclinação pelas distrações e as gracinhas e isso tinha atraído o
tambor e malabarista Maro: ele sabia dar-lhe momentos agradáveis,
lisonjeá-la. Ora Maro era inimigo de Knecht. Logo na primeira
conversa, Knecht percebeu a frieza e a antipatia, se bem que a velha
não tivesse uma só palavra para o contradizer. As suas explicações e
a proposta que lhe apresentou, de esperar ainda mais algum tempo
para fazer as sementeiras e proceder, se fosse caso disso, a
sacrifícios e procissões, foram aprovadas e aceites. Mas a velha
recebera-o e tratara-o com frieza, como a um subalterno, e quando
ele manifestou o desejo de ver a matriarca doente ou, pelo menos,
de lhe preparar um remédio, deparou-se-lhe uma recusa. Regressou
desta entrevista cheio de tristeza e quase com o sentimento de ser
mais pobre, com um gosto amargo na boca. Durante toda uma meia
lua esforçou-se à sua maneira por criar as condições atmosféricas
propícias às sementeiras. Mas o tempo que desposava tantas vezes
as correntes da sua alma, manifestou uma obstinação afrontosa e
hostil. Nem magia, nem sacrifício agiam. Nada foi poupado ao
fazedor de chuva: teve de voltar a ver a irmã da matriarca e, desta
vez, com ar de lhe pedir que tivesse paciência, lhe concedesse um
adiamento. Viu imediatamente que ela devia ter falado dele e do seu
caso com Maro, o seu bobo, pois falaram da necessidade de fixar o
dia das sementeiras ou de ordenar cerimónias propiciatórias
públicas. A velha quis, ostensivamente, saber tudo; utilizou algumas
expressões que só podiam vir-lhe de Maro, o seu antigo aprendiz.
Knecht solicitou um prazo de três dias, expôs que o conjunto da
constelação seria diferente e mais favorável, e fixou as sementeiras
para o primeiro dia do terceiro quartil. A velha deu-lhe o seu acordo
e pronunciou a fórmula ritual; a sua decisão foi proclamada na
aldeia, e todos se prepararam para a cerimónia. E no momento em
que tudo parecia estar composto por algum tempo, os demónios
manifestaram-se novamente em seu desfavor. Como se de propósito,
a velha matriarca morreu na véspera desta festa das sementeiras
tão desejada e já pronta. A cerimónia teve de ser adiada, em vez
dela foi preciso anunciar e preparar as exéquias. O cerimonial foi de
primeira ordem; por trás da nova mãe da aldeia, das suas irmãs e
das suas filhas, vinha o fazedor de chuva no seu traje das grandes
procissões, com o seu alto chapéu pontiagudo de pele de raposa,
assistido pelo seu filho Turu, que agitava a sua matraca de madeira
com dois sons. Prestaram-se grandes honras à morta bem como à
sua irmã, a nova matriarca. Maro exibiu-se muito à frente dos seus
tambores, foi notado e aplaudido. A aldeia chorou e festejou,
deleitou-se com as lamentações e o dia de festa, com os tambores e
os sacrifícios. Foi um belo dia para toda a gente, mas as sementeiras
ficaram adiadas para mais tarde. Knecht mantinha um ar digno e
resignado, mas tinha profundas preocupações. Parecia-lhe que,
juntamente com a matriarca, enterrava todos os dias bons da sua
vida.
Pouco depois, as sementeiras tiveram lugar e, por desejo da nova
matriarca, o cerimonial foi igualmente excecional. A procissão deu
solenemente a volta aos campos, solenemente a velha espalhou
sobre a terra da comunidade os primeiros punhados de sementes,
ladeada pelas irmãs que levavam cada uma um saco, de onde ela
tirava as sementes. Knecht soltou um pequeno suspiro de alívio
quando esta operação foi finalmente concluída.
Mas estas sementeiras solenes não deviam trazer nem alegria nem
colheita. Foi um ano funesto. Em primeiro lugar, houve um regresso
ofensivo do inverno e do gelo e, durante a primavera e o verão, o
tempo entregou-se a todas as perfídias e hostilidades imagináveis.
No verão, quando por fim magros rebentos ralos e raquíticos
cobriram os campos, produziu-se a última e a pior das catástrofes:
ocorreu uma seca absolutamente inaudita, como nunca houvera e
que alguém se lembrasse. Semana atrás de semana, o Sol parecia
cozer na bruma esbranquiçada da canícula, os regatos secaram, não
restou do poço da aldeia senão um pântano insalubre, paraíso de
libélulas e duma terrível praga de mosquitos. Na terra ressequida
abriram-se profundas gretas, assistiu-se à doença e à seca da
colheita. De vez em quando, formavam-se nuvens, mas as trovoadas
eram secas e, quando às vezes caíam algumas gotas de chuva,
durante dias seguidos soprava um vento leste seco. Muitas vezes o
raio caía sobre grandes árvores e as suas copas semimortas ardiam
em chamas rápidas.
– Turu – disse um dia Knecht ao filho –, isto vai acabar mal, todos
os demónios estão contra nós. Começou tudo com a chuva de
estrelas. Penso que isso me custará a vida. Lembra-te: se eu tiver de
ser sacrificado, assume as minhas funções imediatamente. A
primeira coisa que exigirás será que o meu corpo seja queimado e
as suas cinzas espalhadas nos campos. Conhecereis no inverno uma
grande fome. Mas o feitiço será anulado. Deverás velar para que
ninguém toque na reserva de sementes da comunidade. Isso tem de
ser proibido sob pena de morte. O próximo ano será melhor e hão
de dizer: «Ainda bem que temos este jovem e novo fazedor de
chuva.»
Na aldeia reinava o desespero. Maro excitava as pessoas, não era
raro gritarem ameaças e maldições ao fazedor de chuva. Ada
adoeceu e ficou deitada, sacudida por vómitos e febre. As
procissões, os sacrifícios, os longos concertos de tambores que
dilaceravam o coração já não conseguiam concertar nada. Knecht
dirigia-os, era a sua função, mas, quando as pessoas se
dispersavam, ficava sozinho, evitavam-no. Sabia o que lhe restava a
fazer e também não ignorava que Maro exigira já à matriarca que
fosse condenado à morte. Por sentido da honra e por amor ao filho,
fez esta última tentativa: vestiu Turu com o seu traje solene, levou-o
à matriarca, a quem o recomendou como seu sucessor, em seguida
resignou das suas funções e propôs que o sacrificassem. Ela
observou-o criticamente durante um momento, curiosa, depois fez
um sinal de aprovação e respondeu afirmativamente.
A imolação teve lugar no mesmo dia. Toda a aldeia teria ido ver
mas muitos sofriam de disenteria, a própria Ada estava gravemente
doente. Turu teve quase uma insolação com o seu traje solene e o
seu grande chapéu de raposa. Todos os notáveis e os dignitários que
não estavam doentes vieram, a matriarca com duas das suas irmãs,
os anciãos e Maro, o chefe do coro de tambores. Atrás deles, a
massa popular seguia em desordem. Ninguém injuriou o velho
fazedor de chuva, tudo se passou em silêncio e angústia. Dirigiram-
se para a floresta onde chegaram a uma grande clareira quase
redonda, que o próprio Knecht designara como teatro do sacrifício. A
maior parte dos homens tinha trazido os seus machados de pedra, a
fim de ajudar a cortar lenha para queimar o seu corpo. Chegados à
clareira, deixaram o fazedor de chuva no meio, um pequeno círculo
fechou-se à sua volta, enquanto a multidão, mais longe, formava
uma vasta roda concêntrica. Todos observavam um silêncio indeciso
e embaraçado e foi Knecht quem falou: – Fui vosso fazedor de chuva
– disse. – Durante muitos anos fiz o meu ofício o melhor que pude.
Agora, os demónios estão contra mim, nada me sai bem. Por isso
ofereci-me para ser sacrificado. Isso conciliará os demónios. O meu
filho Turu será o vosso novo fazedor de chuva. Agora matai-me e
quando eu estiver morto segui exatamente as indicações do meu
filho. Adeus!... E quem vai matar-me? Recomendo o tambor Maro, é
o homem que é preciso.
Calou-se e ninguém se mexeu. Turu, roxo debaixo do seu pesado
chapéu de raposa, lançou à sua volta um olhar torturado. Um ricto
irónico apareceu nos lábios do seu pai. Por fim, a matriarca bateu
com o pé no chão, furiosa, fez sinal a Maro para se aproximar e
gritou-lhe: – Avança, então! Pega no teu machado e vai! – Maro, de
machado na mão, especou-se à frente do seu antigo mestre.
Odiava-o ainda mais do que habitualmente. A troça daquela velha
boca silenciosa era-lhe horrivelmente dolorosa. Ergueu o machado e
brandiu-o por cima da cabeça, balançou-o no ar, olhou para a sua
vítima nos olhos e esperou que esta fechasse as pálpebras. Mas
Knecht não fez nada, ficou de olhos abertos, resolutamente, fixando
aquele homem armado com o seu machado, com um ar quase
inexpressivo, mas o pouco que a sua expressão traía estava a meio
caminho entre a troça e a piedade.
Furioso, Maro deixou cair o machado: – Não faço isto –
entaramelou, atravessou o círculo dos notáveis e perdeu-se na
multidão. Alguns riram-se à socapa. A matriarca estava pálida de
raiva, tanto por ver a cobardia e a incapacidade de Maro como o
orgulho daquele fazedor de chuva. Fez sinal a um dos anciãos. Este
era um homem respeitável e tranquilo que se apoiava no seu
machado e parecia ter vergonha de toda aquela cena penosa. Deu
um passo em frente e fez um curto sinal de cabeça amistoso à
vítima. Conheciam-se desde crianças. Então Knecht aceitou baixar as
pálpebras. Fechou os olhos com força e inclinou um pouco a cabeça.
O velho assestou-lhe uma machadada: ele abateu-se. Turu, o novo
fazedor de chuva, não estava em condições de falar e contentou-se
em ordenar por gestos o que era preciso fazer: em breve uma pira
foi montada, estenderam sobre ela o morto. O primeiro ato oficial de
Turu foi o de espevitar o fogo segundo os ritos, com os dois
atiçadores de madeira consagrados.
O confessor
Era no tempo em que Santo Hilarião ainda vivia, embora fosse já
de idade avançada. Na cidade de Gaza vivia então um certo
Josephus Famulus que até à idade de trinta ou mais anos vivera no
século e estudara os livros pagãos. Depois, uma mulher que ele
perseguia dera-lhe a conhecer a doutrina divina e a suavidade das
virtudes cristãs. Ele aceitara receber o santo batismo, abjurou dos
seus pecados e, durante vários anos, sentado aos pés dos
presbíteros da sua cidade, escutara, com uma avidez apaixonada, as
histórias tão populares que eles contavam sobre a vida dos pios
eremitas do deserto. E um dia veio, teria então trinta e seis anos,
em que tomou a via que São Paulo e Santo António foram os
primeiros a tomar e que tantos homens pios seguiram depois deles.
Entregou aos anciãos o resto do seu património, para ser distribuído
pelos pobres da comunidade. À porta da cidade despediu-se dos
seus amigos e foi a pé para o deserto, deixando este mundo indigno
para conhecer a pobreza dos penitentes.
Durante anos o sol queimou-o, secou-o, e ele gastou os joelhos
em oração, na rocha e na areia, jejuando até à noite, antes de
mastigar as suas poucas tâmaras. Quando os diabos o
atormentavam com dúvidas, chufas e tentações, triunfava sobre eles
pela oração, a penitência e o sacrifício do seu ser, como
encontramos descrito em pormenor nas biografias dos santos
padres. Muitas noites os seus olhos sem sono voltaram-se para as
estrelas e elas criaram também na sua alma a dúvida e a confusão.
Ele decifrava as imagens das estrelas, nas quais tinha aprendido
outrora a ler também as histórias dos deuses e os símbolos da
natureza humana. Esta ciência a que os padres tinham grande
horror obcecou-o ainda por muito tempo com imaginações e ideias
que datavam da sua fé pagã.
Em todo o lado onde a nudez e a esterilidade do deserto eram
interrompidas por uma nascente, um punhado de verdura, um oásis
pequeno ou grande, viviam então eremitas, às vezes sozinhos,
outras em pequenas comunidades, tal como os representa um fresco
do Campo Santo de Pisa, praticando a pobreza e o amor ao próximo,
adeptos duma nostálgica ars moriendi, duma arte de morrer, de
morrer para o mundo e o próprio eu, para passar, ao morrer, para o
lado do Salvador, para a luz e o imperecível. Recebiam visitas dos
anjos e dos diabos, compunham hinos, exorcizavam demónios,
curavam e benziam, e pareciam ter-se dado como tarefa resgatar os
prazeres mundanos, a rudeza e a sensualidade de numerosos
séculos passados e a vir, com uma imensa vaga de entusiasmo e
devoção, com um suplemento extático de renúncia ao mundo.
Alguns conheciam sem dúvida velhas práticas pagãs de purificação,
os métodos e os exercícios dum método de espiritualização que a
Ásia elevara, havia séculos, a um alto grau de perfeição, mas disso
não falavam; de facto, esses métodos e os exercícios do yoga já não
eram ensinados, caíam sob a alçada do interdito que o cristianismo
lançava cada vez mais sobre tudo quanto era pagão.
Em muitos desses penitentes, a ardência dessa existência fazia
nascer dons particulares, os de rezar, curar impondo as mãos,
profetizar, expulsar o diabo, julgar e castigar, consolar e benzer. Em
Josephus também dormitava um dom e quando com os anos o seu
cabelo começou a perder o brilho, esse dom, lentamente,
desenvolveu-se. Era o dom de escutar. Quando um irmão duma das
congregações ou um filho do século, atormentado e aguilhoado pela
sua consciência, vinha ter com Josephus e contar-lhe o que tinha
feito e sofrido, as suas dúvidas e os seus erros, quando lhe contava
a sua vida, a sua luta pelo bem e a sua derrota, ou ainda uma perda
que sofrera, uma dor, um luto, Josephus tinha a arte de o escutar,
de abrir-lhe e de oferecer-lhe o seu ouvido e o seu coração, de
tomar e guardar a sua dor e o seu tormento e de o deixar ir-se
embora, liberto e em paz consigo. Lentamente, ao longo de muitos
anos, esta função impusera-se-lhe e fizera dele um instrumento, um
ouvido de confiança. Ele possuía como virtudes uma certa paciência,
uma certa passividade recetiva e o grande hábito de se calar. Cada
vez mais frequentemente vinha gente vê-lo para esvaziar o coração,
libertar-se dum novelo de ideias opressivas. Muitas dessas pessoas,
mesmo que tivessem tido de fazer um longo caminho antes de
chegar à sua cabana de canas, não encontravam, ao chegarem e
depois de o terem saudado, a liberdade e a coragem necessárias
para se confessarem. Procuravam escapatórias, sentiam vergonha,
faziam-se rogados em dizer os pecados, ficavam muito tempo,
horas, a suspirar e calados. Perante cada um ele comportava-se da
mesma maneira, quer contassem, de bom grado ou com remorso,
tudo de seguida ou com hesitação, quer cuspissem os segredos com
raiva ou deles se vangloriassem. Para ele tanto fazia, pouco lhe
importava ouvi-los atacar Deus ou a eles próprios, aumentar ou
diminuir os seus pecados e as suas dores, confessar um assassínio
ou apenas um gesto de impudor, chorar a infidelidade duma mulher
amada ou a perda da salvação eterna. Não sentia medo quando lhe
falavam dum comércio familiar com demónios e pareciam tu cá tu lá
com o diabo, nenhum despeito quando uma longa narrativa
circunstanciada deixava visivelmente o essencial em silêncio,
nenhuma impaciência quando se acusavam de pecados insensatos
inventados duma ponta à outra. Tudo quanto a si vinha de queixas,
confissões, acusações e crises de consciência, parecia perder-se no
seu ouvido como a água na areia do deserto; ele parecia não possuir
julgamento e não sentir nem piedade nem desprezo pelo seu
penitente. E contudo, ou talvez por isso mesmo, o que lhe
confessavam nunca parecia cair no vazio: transformava-se em
palavras, em coisas ouvidas e perdia desse modo peso e tragédia.
Só raramente lhe acontecia pronunciar uma admoestação ou uma
advertência, mais raramente ainda dar um conselho e com mais
forte razão uma ordem. Dir-se-ia que isso não era da sua
competência e os que lhe falavam também pareciam senti-lo. A sua
função consistia em despertar a confiança e em ser objeto dela, em
escutar com paciência e amor, em ajudar desse modo a confissão
que estava ainda apenas meio esboçada a tomar de repente forma,
em provocar o fluir e o esvaziar de tudo o que estava estagnado e
incrustado nas almas, em recolhê-lo e rodeá-lo de silêncio. No fim de
cada confissão, horrível ou inocente, contrita ou orgulhosa, mandava
simplesmente ajoelhar o penitente ao seu lado, dizia um pai-nosso e
depunha-lhe um beijo na testa antes de o mandar embora. Infligir
penitências e sanções não era com ele e também não se sentia com
poder para pronunciar uma absolvição verdadeira, sacerdotal. Nem a
condenação, nem o perdão eram da sua competência. Ao escutar e
ao compreender, parecia tomar sobre si uma parte da culpa e ajudar
a suportá-la. Ao calar-se, parecia enviar para o fundo o que tinha
ouvido e relegá-lo para o passado. Ao rezar com o seu penitente no
fim da confissão, era como se o aceitasse e o reconhecesse como
irmão e seu igual. Ao dar-lhe um beijo, parecia benzê-lo mais como
irmão do que como padre, com mais ternura do que solenidade.
A sua reputação espalhou-se por toda a região de Gaza, era
conhecido muito em redor e acontecia mesmo que associassem o
seu nome ao do grande e venerado confessor e eremita Dion Pugil;
para dizer a verdade, a reputação deste datava já de dez anos antes
e baseava-se em qualidades e hábitos completamente diferentes. O
Irmão Dion era de facto célebre por ler mais claramente e mais
depressa ainda nas almas que se lhe confiavam do que nas palavras
que pronunciavam. E não era raro surpreender um penitente
hesitante lançando-lhe à cara os pecados que ainda não tinha
confessado. Este conhecedor de almas, sobre quem Josephus ouvira
contar cem histórias espantosas e com o qual nunca ousara
comparar-se, tinha também recebido a graça de aconselhar as almas
transviadas; era um grande juiz, um justiceiro e um fautor da
ordem. Infligia penitências, mortificações e peregrinações,
consagrava uniões, forçava os inimigos a reconciliarem-se, e a sua
autoridade igualava a dum bispo. Vivia perto de Ascalão, mas os
suplicantes vinham vê-lo inclusivamente de Jerusalém e de lugares
ainda mais distantes.
Josephus Famulus, como a maior parte dos eremitas e dos
penitentes, travara durante longos anos uma luta apaixonada e
esgotante. Claro, tinha abandonado a vida do século, dado a sua
fortuna e a casa, voltado as costas à cidade, repelido os seus
múltiplos convites a gozar os prazeres do mundo e dos sentidos,
mas não pudera deixar de levar o seu ser consigo, e este levou
dentro de si todos os instintos do corpo e da alma que podem
induzir um homem em tentação e pô-lo em perigo. De início, lutara
sobretudo contra o seu corpo, mostrara-se duro e rigoroso com ele,
habituara-o ao calor e ao frio, à fome e à sede, às cicatrizes e às
bolhas, até que ele lentamente murchou e secou. Mas mesmo no
seu magro despojo de asceta, o velho homem que dormia dentro de
si tinha a baixeza de vir surpreendê-lo e atormentá-lo com uma
prodigiosa extravagância de desejos, concupiscências, sonhos e
comédias falaciosas. Nós não ignoramos que o diabo se consagra
com um cuidado especial aos desertores do século e aos penitentes.
Quando aconteceu que pessoas à procura de consolação e
padecentes de confissão se lhe dirigiram, ele reconheceu nisso, com
gratidão, um apelo da graça e achou que aliviava ao mesmo tempo a
sua vida de eremita. Ganhava assim um significado, um valor que o
ultrapassavam; era-lhe dada uma função, podia servir os outros ou
servir a Deus como instrumento para atrair as almas. Um sentimento
maravilhoso e que verdadeiramente o elevava. Mas com a
continuação, revelara-se que os próprios bens da alma pertencem
ainda a esta terra e podem tornar-se tentações e armadilhas. De
facto, muitas vezes, quando um desses viajantes a pé ou a cavalo
parava à frente da sua gruta para lhe pedir um gole de água e lhe
pedir em seguida que o ouvisse em confissão, um sentimento de
satisfação e de contentamento aflorava o nosso Josephus, um
contentamento consigo mesmo, vaidade e amor-próprio, que o
assustava profundamente mal dele se apercebia. Não era raro
implorar de joelhos perdão a Deus e pedir-lhe que não viesse mais
ninguém confessar-se ao ser indigno que ele era, nem das cabanas
dos penitentes das redondezas, seus irmãos, nem das aldeias e das
cidades do século. Contudo, mesmo quando de facto já não vinham
mais penitentes durante algum tempo, ele não se sentia melhor e,
quando em seguida vinham aos magotes, surpreendia-se a cometer
um novo pecado: acontecia-lhe, ao ouvir certas confissões, sentir
acessos de frieza e indiferença, ou mesmo de desprezo pelo
penitente. Assumiu também estes combates com um suspiro e
houve épocas em que se obrigava, depois de cada confissão que
ouvia, a exercícios solitários de humildade e expiação. Impôs-se
além disso, como lei, tratar todos os seus penitentes não apenas
como irmãos mas com um respeito particular e tanto maior quanto a
pessoa deles mais lhe desagradasse: acolhia-os como enviados de
Deus, vindos para o pôr à prova. E foi assim que ao longo dos anos,
já tarde, quando entrava já em anos, encontrou em certo equilíbrio
de vida, e aqueles que estavam na sua vizinhança tiveram a
impressão de que era um homem irrepreensível, que encontrara a
paz em Deus.
Mas a paz também é uma coisa viva e, como tudo o que é vivo,
cresce e mingua, adapta-se, suporta provações e metamorfoses. O
mesmo se passava com a paz de Josephus Famulus, que era
instável, ora visível ora escondida, ora próxima como um círio que
seguramos na mão, ora longínqua como uma estrela no céu de
inverno. Com o tempo a ajudar, foi um género de pecado e nova
tentação que veio cada vez com mais frequência tornar-lhe a vida
difícil. Não era uma emoção poderosa, apaixonada, uma revolta ou
uma exaltação dos instintos, antes parecia o contrário. Era um
sentimento que, nos seus primeiros estádios, era bastante fácil de
suportar, quase não se sentia, um torpor da alma, uma
languescência incómoda que não se deixava definir a não ser
negativamente, um apagamento, uma diminuição e finalmente uma
falta de alegria. Há dias sem sol sem serem maus, mas em que o sol
se recolhe e se fecha silenciosamente sobre si próprio, cinzento sem
ser negro, em que pesa sem atingir a tensão da trovoada: os dias de
Josephus tornaram-se pouco a pouco assim, à medida que ele
envelhecia. Cada vez menos as suas matinas se distinguiam das
vésperas, os dias de festa dos dias ordinários, as horas de exaltação
das horas de abatimento; tudo se escoava preguiçosamente na
inércia da lassidão e do aborrecimento. «É a idade», pensou
tristemente. Estava triste, pois esperara da idade e do
apaziguamento progressivo dos instintos e das paixões mais clareza
e um aligeirar da sua vida, um passo para a harmonia com que
sonhava e para a calma espiritual da maturidade. A idade parecia
dececioná-lo e iludi-lo, ao trazer apenas a lassidão e a cor cinzenta
daquele vazio sem alegria, apenas este sentimento de saciedade
incurável. Sentia-se farto de tudo: da existência pura e simples, de
respirar, do sono das noites, da vida na gruta à beira do pequeno
oásis, da eterna sucessão das tardes e das manhãs, da passagem
dos viajantes e dos peregrinos, dos cameleiros e dos condutores de
burros e, sobretudo, daquelas pessoas que vinham vê-lo de
propósito, daqueles seres um pouco loucos, cheios ao mesmo tempo
de temor e fé pueril, que sentiam a necessidade de lhe contar as
suas vidas, os seus pecados e as suas angústias, os assaltos que
sofriam e as censuras que faziam a eles próprios. Parecia-lhe às
vezes que havia uma semelhança entre a pequena fonte do oásis
cujas águas eram recolhidas num tanque pequeno que em seguida
corriam na erva e formavam um fio de água que ia para o deserto
de areia onde estagnavam e apodreciam depois de serem um curto
regato, e todas aquelas confissões, aquelas listas de pecados,
aquelas biografias, aquelas crises de consciência, pequenas ou
grandes, sérias ou orgulhosas, que confluíam para o seu ouvido, às
dúzias, às centenas, sempre renovadas. Mas o seu ouvido não
estava morto como a areia do deserto, vivia e não podia
eternamente beber, ingurgitar e absorver, sentia-se cansado,
fatigado por aquele abuso, aquele excesso, ansiava por um dia ouvir
acabar aquela corrente e aquele rumorejar de palavras, de
confissões, de preocupações, de queixas, de acusações pessoais,
conhecer o repouso, a morte e o silêncio depois daquele fluir sem
fim. Desejava verdadeiramente que isso acabasse, estava cansado,
farto, a sua vida parecia-lhe vazia e sem valor. Chegou mesmo, às
vezes, a ser tentado a acabar com os seus dias, punir-se e suprimir-
se, como fizera Judas, o traidor, ao enforcar-se. Assim como em
estádios anteriores da sua vida de penitente o diabo tinha
introduzido perfidamente na sua alma os desejos, as representações
e os sonhos da vida dos sentidos e do século, tentava-o agora com
imagens de suicídio. Chegava até a ir experimentar cada galho
grosso para ver se serviria para se enforcar, cada rochedo da região
para se certificar de que era bastante abrupto e bastante alto para
um salto mortal. Resistiu a esta tentação, lutou, não cedeu, mas
viveu dia e noite num inferno de ódio por si mesmo e de ânsia pela
morte. A vida tornara-se-lhe insuportável e odiosa.
Josephus tinha chegado a este ponto. Um dia em que se
encontrava no alto dum desses penedos, viu aparecer ao longe,
entre a terra e o céu, três vultos minúsculos. Eram manifestamente
viajantes, talvez peregrinos, talvez pessoas que vinham vê-lo para se
confessar e, de repente, foi assaltado por um desejo irresistível de
partir imediatamente, o mais depressa possível, de abandonar
aqueles lugares e aquela vida. Esse desejo tomou-o com tanta
violência instintiva que lhe varreu todas as ideias, objeções e
escrúpulos, pois, evidentemente, tinha muitas. Como é que um
piedoso penitente poderia obedecer a um instinto sem que a sua
consciência não se perturbasse? Corria já, regressava à gruta, à
morada que tinha sido o teatro de tantos combates ganhos, ninho
de tantas elevações e de tantas derrotas. Com uma pressa
desaustinada, muniu-se de alguns punhados de tâmaras e duma
cabaça de água, meteu tudo dentro do seu velho saco que pôs ao
ombro, pegou no bordão e deixou a verde paz da sua pequena
pátria, fugitivo perdido, desertor à face de Deus e dos homens,
desertando sobretudo do que outrora considerara o melhor da sua
vida, a sua função e a sua missão. Caminhou primeiramente como
um animal perseguido, como se os vultos que vira aparecer ao
longe, do alto do penedo, fossem realmente de inimigos que o
perseguissem. Mas passada uma hora a andar, perdeu essa pressa
ansiosa; o movimento trouxe-lhe um cansaço benigno e durante a
primeira paragem, para a qual se concedeu excecionalmente uma
pequena colação – tinha-se tornado para ele um hábito sagrado
nunca tomar nenhum alimento antes do pôr do Sol –, a sua razão,
treinada no pensamento solitário, começou a ganhar coragem e a
examinar o seu ato instintivo sob todos os ângulos. Por menos
razoável que este pudesse parecer, ela não o desaprovou,
considerou-o antes com benevolência, pois, pela primeira vez havia
muito, achou a sua maneira de agir inofensiva e inocente. Tinha-se
posto em fuga, subitamente e sem refletir, é verdade, mas não havia
vergonha nisso. Abandonara um posto que já não era capaz de
ocupar. Ao fugir confessara a si mesmo e aos possíveis espectadores
que era um incapaz. Renunciara a uma luta quotidiana e inútil e
reconhecera que estava batido, que perdera. E isso, segundo a
opinião da sua razão, nada tinha de grandioso, nem de heroico, não
era digno dum homem santo, mas era sincero e, segundo todas as
aparências, teria sido impossível fugir-lhe. Admirou-se então por ter
fugido tão tarde e suportado aquilo tanto tempo, tanto tempo que
foi! A luta, o espírito de desafio com que aguentara tanto tempo
aquela posição desesperada apareciam-lhe agora como um erro, ou
antes, como uma luta, um esforço frenético do seu amor-próprio e
do velho homem que dormitava dentro de si; julgou compreender
porque é que essa bravata tivera tão funestas e mesmo tão
diabólicas consequências, porque é que acabara por dilacerá-lo e lhe
embotar o coração, por possuí-lo com o desejo demoníaco de morrer
e destruir-se. Claro, um cristão não devia ser inimigo da morte;
claro, um penitente, um homem santo, devia considerar a vida como
um puro sacrifício. Mas a ideia de se dar voluntariamente à morte
era absolutamente diabólica, só podia nascer numa alma cujos
senhores e guardas já não eram anjos de Deus, mas os demónios do
mal. Ficou sentado durante algum tempo, perdido nos seus
pensamentos, consternado, e, finalmente, profundamente contrito e
perturbado, ao aperceber-se, ao tomar consciência da vida que
acabava de fazer, com o recuo que lhe davam aquelas poucas léguas
percorridas, uma vida desesperada de homem perseguido que
envelhece, que falhou a sua finalidade e torturado constantemente
pela tentação atroz de se pendurar do galho duma árvore, como
aquele que traiu o Salvador. Talvez no horror que tinha ao suicídio
existissem ainda restos duma noção pré-histórica, pré-cristã, do
antigo paganismo, a do uso antigo do sacrifício humano, em que se
escolhia o rei, o santo, o eleito da tribo, e não era raro que este
fosse obrigado a executar o sacrifício pelas suas próprias mãos. Não
era somente o facto de esse costume abolido e odioso lembrar os
tempos pré-históricos do paganismo que o fazia arrepiar-se de
horror, mas mais ainda o pensamento de que afinal a morte sofrida
pelo Redentor na cruz era apenas um sacrifício humano levado a
cabo voluntariamente. E de facto, refletindo bem, houvera um
pressentimento subjacente dessa consciência nos transportes do seu
desejo do suicídio, uma aspiração orgulhosamente má e feroz e
sacrificar-se ele mesmo e imitar dessa maneira o Redentor, duma
maneira, para dizer a verdade, ilícita, ou de indicar de maneira ilícita
que Ele não realizara totalmente a sua obra de redenção. Este
pensamento encheu-o de terror, mas sentiu também que tinha agora
escapado a esse perigo.
Considerou demoradamente esse penitente Josephus em que se
tornara e que, em vez de seguir os passos de Judas ou do
Crucificado, agora fugia, voltando a colocar-se deste modo nas mãos
de Deus. A sua vergonha e o seu desgosto cresciam à medida que
reconhecia mais distintamente o inferno donde escapara e, no fim, a
miséria atravessou-se-lhe na garganta, como um bocado de comida
que não passa, inchou, tornou-se uma pressão intolerável e de
repente encontrou uma saída, uma soltura num rio de lágrimas que
lhe fizeram um bem maravilhoso. Há quanto tempo já não sabia
chorar? As lágrimas correram, os olhos deixaram de ver, mas ele
livrou-se daquele estrangulamento mortal e, quando voltou a si,
quando sentiu o gosto do sal nos lábios e deu conta de que chorava,
pareceu-lhe por um momento ter reencontrado a infância e não
saber nada do mal. Sorriu, um pouco envergonhado pelas suas
lágrimas, acabou por se pôr de pé e retomou o seu caminho. Não se
sentia seguro, ignorando onde a fuga o conduziria e que iria ser feito
de si. Era como se fosse uma criança, mas já não havia um combate
nem vontade dentro de si. Sentia uma impressão de maior leveza e
o sentimento de ser guiado, chamado, atraído por uma voz boa e
longínqua, como se aquela viagem não fosse uma fuga, mas um
regresso ao redil. Sentiu-se cansado e também cansada a sua razão:
ela calava-se, ou descansava, ou não se julgava indispensável.
No poço de água onde Josephus passou a noite, vários condutores
de camelos tinham feito alto. Como também havia duas mulheres na
sua pequena sociedade, contentou-se em saudar com um gesto e
evitou entrar em conversas. Mas, depois de ter comido algumas
tâmaras ao fim do dia e ter rezado e se ter deitado, pôde em
contrapartida ouvir uma conversa que dois homens tiveram em voz
baixa, um velho e o outro mais novo, pois estavam estendidos muito
perto dele. Só um breve fragmento do diálogo havido lhe chegou, o
resto perdeu-se em murmúrios. Mas essa curta passagem bastou
para absorver a sua atenção e o seu interesse e ocupou a sua
reflexão durante metade da noite.
– É bom – ouviu dizer à voz do velho –, é bom quereres encontrar
um homem piedoso e confessares-te. Essas pessoas compreendem
tudo, eu que to diga. Sabem contentar-se com pão seco, há mesmo
mais do que um que percebe de milagres. Basta-lhes dizer uma
palavra a um leão que vai saltar e ele agacha-se, o malandro, e vai-
se embora furtivamente, de rabo entre as pernas. Sabem domar os
leões, sou eu que to diz. Há um, mais santo do que os outros, os
leões que domou cavaram-lhe mesmo a campa quando ele morreu;
cobriram-no delicadamente com terra por cima e durante muito
tempo estiveram sempre dois de guarda, dia e noite. E não
percebem só de domar leões. Um dia houve um que se pôs a dizer
orações a um centurião romano, um bruto cruel, o maior femeeiro
de toda a Ascalão; de tal modo lhe virou o coração mau que o
centurião se fez muito pequenino, foi-se embora cheio de medo
como um rato à procura dum buraco para se esconder. E depois o
tipo ficou quase irreconhecível, tanto se tornou tranquilo e humilde.
Há que dizer, e isso dá que pensar, que o homem morre pouco
depois.
– O santo?
– Não, o centurião. Chamava-se Varrão. Depois de o penitente lhe
ter feito ver e lhe despertar a consciência, acabou-se rapidamente.
Por duas vezes teve febre e ao fim de três meses era um homem
morto. Ora! Pior para ele! Mas mesmo assim eu sempre pensei: «O
penitente não só exorcizou o diabo que estava dentro dele como
deve ter pronunciado uma reza que o mandou desta para melhor.
– Um homem tão piedoso? Não posso crer.
– Acredita ou não acredites, meu velho. Mas a partir desse dia o
nosso homem mudou completamente, para não dizer que foi
enfeitiçado, e passados três meses...
Seguiu-se um silêncio e depois o mais novo prosseguiu: – Há por
aqui um penitente, deve viver algures por aqui, diz-se que vive
sozinho, junto a uma nascente pequena, ao longo do caminho de
Gaza. Chama-se Josephus, Josephus Famulus. Ouvi falar muito
dele.
– Ah, e então?
– É piedoso que mete medo, ao que parece, e sobretudo, nunca
olha para uma mulher. Se passarem camelos junto do seu retiro e
houver uma mulher empoleirada num, pode ter véus tão grossos
como isto, ele vira-lhe as costas e desaparece imediatamente no
meio dos penedos. Muita, mas muita gente foi-se já confessar a ele.
– Não são tantos como isso, doutra maneira já teria também
ouvido falar dele. E que é que ele sabe fazer, esse teu Famulus?
– Oh! É só para nos confessarmos. Se não valesse nada, se não
compreendesse nada, ninguém andava atrás dele. Aliás, conta-se
que ele raramente diz uma palavra; com ele não há berros, trovão,
castigos, nada disso. Parece que é um homem doce, mesmo tímido.
– Mas então que é que ele faz, se não berra com as pessoas, não
as castiga e não abre a boca?
– Parece que se contenta em ouvir e soltar suspiros maravilhosos
e em fazer o sinal da cruz.
– Cala-te! Mas que santo me saiu! Tu não vais ser tão estúpido
para correres atrás dum coitado dum padre que não diz nada!
– Sim, é o que quero fazer. Hei de encontrá-lo, não pode estar
longe daqui. Há bocado havia um pobre irmão que andava à volta
do bebedouro, amanhã pergunto-lhe. Este parece-se com um
penitente.
O velho escandalizou-se. – Deixa lá o teu penitente das nascentes
apodrecer na sua gruta! Um homem que não faz mais do que ouvir,
suspirar, que tem medo das mulheres, que não sabe nada e que não
compreende nada! Não, vou dizer-te quem deves ver. É longe daqui,
é verdade, e mesmo do outro lado de Ascalão, mas é o melhor
penitente e o melhor confessor que existe. Chama-se Dion, mas
tratam-no por Dion Pugil, que quer dizer pugilista, porque ele anda à
pancada com todos os diabos e quando lhe vão confessar a sua
vergonha, então, meu amigo, Pugil não solta suspiros e não fica de
boca fechada, desembesta e puxa a roupa ao pelo que só visto!
Parece que houve tipos que encheu de pancada, houve um que
obrigou a ficar uma noite inteira de joelhos em cima de pedras, e
além disso obrigou-o a dar quarenta moedas aos pobres. Isso é que
é um homem, irmãozinho, que quando o vires nem acreditas. Põe-se
a olhar para ti e até te tremem as pernas. E vê através de ti. E não
há cá suspiros; é um homem que tem aquilo no sangue e quando
não consegues dormir bem ou tens sonhos maus, visões e tudo o
que se segue, Pugil põe-te como novo, eu que to diga. E não to digo
por ter ouvido as mulheres falarem disso. Digo-te porque fui lá. Sim,
eu, ainda que seja um pobre diabo, um dia fui ver o penitente Dion,
o pugilista, tinha a consciência pesada de vergonha e crostas, e,
quando me vim embora, estava limpo e claro como uma estrela da
manhã, tão verdade como eu chamar-me David. Lembra-te: É Dion
que se chama, alcunhado de Pugil. Vai falar com ele assim que
possas e verás um verdadeiro milagre. Há prefeitos, anciãos e bispos
que foram pedir-lhe conselho.
– Sim – disse o outro –, se um dia voltar a passar por aqui,
pensarei nisso. Mas hoje é hoje e aqui é aqui. Como hoje estou aqui
e nas redondezas deve estar esse Josephus, de quem ouvi dizer
tanto bem...
– Ouviste dizer bem! Mas como pudeste engraçar com esse
Famulus?
– O que me agradou é que ele não ralha, não se encoleriza. Isso
agrada-me, há que dizê-lo. Não sou centurião, nem bispo. Sou um
tipo simples, mais para o tímido, não seria capaz de suportar muito
o fogo ou o enxofre. Não me importo, Deus é que sabe, que me
tratem com doçura, eu sou assim.
– Quem não gostaria? Ser tratado com doçura! Depois de te
confessares e teres feito a penitência, aceitado o castigo e te teres
purificado, então talvez seja bem o momento de te tratar com
doçura, mas não quando te apresentas ao teu confessor, ao teu juiz,
impuro e a cheirar pior que um chacal!
– Claro, claro! Não precisas de falar tão alto. As pessoas hão de
querer dormir.
De repente riu-se baixinho. – De facto também me contaram uma
boa sobre ele.
– Sobre quem?
– Sobre ele, o penitente Josephus. Depois da confissão ele tem o
hábito de saudar a pessoa, benzê-la no momento da partida e dar-
lhe um beijo na face ou na testa.
– O quê? Ele faz isso? Que hábito mais esquisito.
– E sabes que tem muito medo das mulheres. Pois bem, um dia
uma puta da região foi falar com ele, vestida de homem, ao que
contam; ele não dá conta de nada; ouve as suas mentiras e quando
ela acaba a confissão, eis que ele se inclina e lhe dá um beijo
solenemente.
O velho rebentou à gargalhada. O outro apressou-se a mandá-lo
calar. E Josephus não ouviu mais nada além daquele riso mal contido
que se prolongou ainda por algum tempo.
Ergueu os olhos ao céu. O crescente da Lua aparecia, nítido e
delgado, por entre os ramos das palmeiras; o frio da noite fê-lo
arrepiar-se. Esta conversa noturna dos condutores de camelos
mostrara-lhe, com a estranheza dum espelho deformante, a imagem
no entanto instrutiva da personagem e do papel a que deixara de
ser fiel. De modo que uma prostituta permitira-se essa brincadeira
consigo! Mas isso não era o mais grave, ainda que fosse bastante. O
diálogo dos dois desconhecidos deu-lhe matéria para longas
reflexões. E quando finalmente, muito tarde, conseguiu adormecer,
conseguiu-o somente porque as suas reflexões não tinham sido em
vão. Tinha chegado a uma conclusão, a uma resolução e foi com
essa decisão ainda fresca no coração que dormiu profundamente até
ao nascer do dia sem ser incomodado.
Era precisamente aquela decisão que o mais novo dos dois
condutores de camelos não pudera tomar. Decidira seguir o conselho
do mais velho e ir ver Dion, dito Pugil, cuja existência era há muito
sua conhecida e de quem ouvira nessa noite cantar louvores com
tanta insistência. Esse célebre confessor, juiz das almas e dador de
conselhos, saberia aconselhá-lo, julgá-lo, castigá-lo, orientá-lo. Era
perante ele que queria comparecer, como perante um representante
de Deus, e aceitar de bom grado o que lhe ordenasse.
No dia seguinte partiu do poço quando os dois homens ainda
dormiam. Uma caminhada penosa permitiu-lhe alcançar, ainda com
dia, um lugar que sabia habitado por irmãos na fé e onde esperava
alcançar o caminho habitual para Ascalão.
Quando chegou à noite, descobriu a paisagem verde e acolhedora
dum oásis pequeno; viu aparecer árvores, ouviu uma cabra balir,
julgou distinguir na sombra verde contornos de tetos de cabanas e
farejar uma proximidade humana. Quando se aproximou com
hesitação, julgou sentir que o observavam. Parou, examinou as
redondezas e viu debaixo das primeiras árvores, encostado a um
tronco, um vulto sentado, um homem velho muito direito, de barba
branca como gelo e de rosto digno, mas severo e composto, que
tinha os olhos voltados para si e devia observá-lo há algum tempo.
Este velho tinha um olhar firme e penetrante, mas desprovido de
expressão, como um homem habituado a observar mas sem
curiosidade nem simpatia, que deixa as coisas e as pessoas virem a
ele e procura conhecê-las, mas sem as atrair ou convidar.
– Louvado seja Jesus Cristo! – exclamou Josephus.
O velho respondeu com um murmúrio.
– Permiti-me que vos pergunte – disse Josephus – se sois como
eu estrangeiro nesta região ou se morais nesta bela congregação?
– Não sou daqui – retorquiu o velho de barba branca.
– Respeitável velho, talvez possais dizer-me então se é possível
alcançar daqui o caminho de Ascalão?
– É possível – respondeu o velho e ergueu-se lentamente, um
gigante descarnado, de membros um pouco hirtos. Ficou imóvel, a
olhar para o horizonte vazio. Josephus sentia que aquele velho
gigantesco não tinha vontade de iniciar uma conversa, mas quis
ainda arriscar mais uma pergunta.
– Permiti-me que vos pergunte mais uma coisa, respeitável velho
–
disse cortesmente e viu o rosto do homem desprender-se do
horizonte para o considerar fria e atentamente.
– Conheceis o lugar onde se pode encontrar o Irmão Dion, a
quem chamam Dion Pugil?
O estrangeiro franziu levemente as sobrancelhas e o seu olhar
tornou-se ainda mais frio.
– Conheço – disse numa voz breve.
– Conheceis? – exclamou Josephus. – Oh! então, dizei-mo, pois é
para lá, para o Irmão Dion, que vou de viagem.
O grande velho lançou-lhe do alto um olhar inquisidor. Demorou
muito a resposta, depois voltou ao seu tronco de árvore, acocorou-
se lentamente e sentou-se, encostado ao tronco como
anteriormente. Com um pequeno gesto da mão convidou Josephus a
imitá-lo. Este obedeceu; ao sentar-se sentiu o grande cansaço dos
seus membros, mas esqueceu-o imediatamente, para concentrar
toda a sua atenção no velho. Este parecia mergulhado em
meditação; uma expressão severa e rebarbativa apareceu no seu
rosto imponente, mas parecia dobrada por uma outra, dum segundo
rosto, e como que velada por uma máscara transparente que
exprimia uma dor antiga e solitária a que o seu orgulho e a sua
dignidade não davam livre curso.
Passou-se muito tempo antes que esta personagem venerável
voltasse novamente os olhos para Josephus. O seu olhar examinou-o
mais uma vez com insistência e de repente perguntou-lhe, num tom
de comando:
– Quem sois então, homem?
– Sou um penitente – respondeu Josephus. – Durante anos vivi a
vida dos eremitas.
– Isso vê-se. Pergunto quem sois.
– Chamo-me Josephus, dito Famulus.
Quando Josephus pronunciou o seu nome, o velho, no único
movimento que fez, franziu tanto as sobrancelhas que os seus olhos
deixaram por um momento de ser visíveis. Pareceu emocionado,
assustado ou desiludido com o que Josephus acabava de dizer, a não
ser que fosse apenas a fadiga dos seus olhos, uma perda de
atenção, ou uma pequena fraqueza passageira como têm as pessoas
de idade. A verdade é que permaneceu completamente imóvel;
manteve ainda durante algum tempo as pálpebras cerradas e,
quando as abriu, o seu olhar tinha mudado, parecia ainda mais
velho, se tal fosse possível, mais solitário, mais petrificado e mais
expectante. Abriu lentamente os lábios para perguntar: – Ouvi falar
de vós. Sois aquele a quem as pessoas vão confessar-se?
Josephus respondeu afirmativamente, com embaraço.
Reconhecido, tinha a impressão desagradável de estar despido e,
pela segunda vez já, o reconhecimento da sua fama envergonhou-
o.
O velho perguntou-lhe ainda com a sua concisão habitual: – Então
queríeis agora ir falar com Dion Pugil? Que lhe quereis?
– Queria confessar-me a ele.
– Que esperais disso?
– Não sei. Confio nele e parece-me mesmo que é uma voz do alto,
uma inspiração que me conduz para ele.
– E depois de vos confessardes, que fareis?...
– Farei o que ele me ordenar.
– E se ele vos der um mau conselho ou uma ordem nefasta?
– Não irei ver se é falsa ou não, obedecerei.
O velho não proferiu mais nenhuma palavra. O Sol tinha baixado,
um pássaro cantava nas folhas da árvore. Como o velho se
mantivesse silencioso, Josephus levantou-se. Voltou ainda
timidamente à pergunta que tinha feito.
– Dissestes que conhecíeis o sítio onde se pode encontrar o Irmão
Dion. Posso pedir-vos que me digais o seu nome e me descrevais o
caminho para lá?
O velho mordeu os lábios com uma espécie de fraco sorriso. –
Julgais – perguntou docemente – que sereis bem-vindo à sua casa?
Penetrado por um estranho medo, Josephus não respondeu. Ficou
imóvel, embaraçado.
Então disse: – Posso pelo menos esperar voltar a ver-vos?
O velho saudou-o com um gesto e respondeu: – Vou dormir aqui e
partirei pouco depois do nascer do Sol. Ide agora, estais fatigado e
tendes fome.
Josephus prosseguiu o seu caminho depois de o ter saudado
respeitosamente e chegou à pequena colónia no momento em que o
crepúsculo caía. Naquele lugar habitavam, como num mosteiro,
vários desses homens a quem chamavam anacoretas. Eram cristãos
vindos das cidades e de localidades diversas que tinham construído
aqui um abrigo retirado, para se entregarem, sem serem
incomodados, a uma vida simples e pura, de silêncio e
contemplação. Deram-lhe água, alimento e uma esteira para a noite.
Vendo o seu cansaço, pouparam-no às perguntas e à conversa. Um
disse uma oração da noite; os outros participaram de joelhos e
pronunciaram o amém em conjunto. Noutros tempos teria sido para
si um acontecimento e uma alegria partilhar da vida desta
comunidade de homens piedosos, mas agora já só tinha uma coisa
na cabeça e, ao romper do dia, apressou-se a voltar ao sítio onde na
véspera deixara o velho. Encontrou-o deitado no chão, a dormir,
enrolado numa delgada esteira. Josephus sentou-se, afastado,
debaixo das árvores, para esperar que ele acordasse. O homem não
tardou a agitar-se, acordou, desembaraçou-se da esteira, ergueu-se
pesadamente e espreguiçou os membros entorpecidos, depois
ajoelhou-se no chão e rezou. Quando se ergueu, Josephus
aproximou-se e inclinou-se sem dizer palavra.
– Já comeste? – perguntou-lhe o desconhecido.
– Não, tenho o hábito de só comer uma vez por dia e apenas
depois do pôr do Sol. Tendes fome, venerável amigo?
– Estamos de viagem – disse este – e já não somos jovens, nem
um nem outro. É melhor comermos um bocado, antes de
continuarmos o nosso caminho.
Josephus abriu o saco e ofereceu-lhe algumas das suas tâmaras.
As boas pessoas em casa de quem passara a noite tinham-lhe dado
também um pão de milho-miúdo que partilhou com o velho.
– Podemos partir – disse o velho, depois de terem comido.
– Oh! Vamos juntos? – exclamou Josephus com alegria.
– Claro. Tu pediste-me que te conduzisse junto de Dion. Anda
daí.
Josephus olhou para ele, admirado e feliz. – Como sois bom! –
exclamou e ia alargar-se em protestos de gratidão mas o
desconhecido calou-o com um gesto rude da mão.
– Só Deus é bom – disse. – Agora partamos. E trata-me por tu,
como te digo. Para quê maneiras e delicadezas entre dois velhos
penitentes?
O grande velho arrancou e Josephus foi atrás dele. O dia tinha
nascido. O guia parecia seguro da direção e do caminho. Prometeu
que pelo meio-dia encontrariam um sítio à sombra onde poderiam
parar durante as horas em que o Sol queimava mais. Não voltaram a
falar durante o resto do caminho.
Foi só quando chegaram a esse sítio, ao fim de várias horas de
grande calor, que descansaram à sombra de rochas esfareladas e
Josephus dirigiu novamente a palavra ao seu guia. Perguntou-lhe
quantos dias faltavam, mais ou menos, para chegarem junto de Dion
Pugil.
– Isso depende unicamente de ti – disse o velho.
– De mim? – exclamou Josephus. – Ah, se dependesse só de mim,
estaria à sua frente ainda hoje mesmo.
Tão-pouco agora o velho parecia estar de humor para falar.
– Veremos – disse brevemente, deitando-se de lado e fechando os
olhos. Era desagradável a Josephus vê-lo dormir. Retirou-se, um
pouco afastado, sem barulho, deitou-se e, contrariamente às suas
previsões, adormeceu também, pois estivera acordado durante
muito tempo nessa noite. O seu guia acordou-o quando achou que
era altura de partirem.
Ao fim da tarde chegaram a um acampamento onde havia água,
árvores e onde crescia a erva. Beberam, lavaram-se e o velho
decidiu ficar ali. Josephus não era dessa opinião e levantou um
tímido protesto.
– Tu disseste hoje – lembrou – que dependia só de mim chegar
mais ou menos cedo ao Irmão Dion. Estou pronto a caminhar ainda
muitas horas, se verdadeiramente posso estar com ele hoje ou
amanhã.
– Ah, não! – exclamou o outro. – Por hoje já fomos bastante
longe.
– Desculpa-me – disse Josephus –, mas não podes compreender a
minha impaciência.
– Compreendo. Mas não te será de nenhum socorro.
– Então porque é que dizias que dependia de mim?
– É como te disse. Logo que estejas certo de querer confessar-te
e estejas pronto e maduro para a confissão, poderás fazê-la.
– Ainda hoje mesmo?
– Ainda hoje mesmo.
Josephus olhou estupefacto para o rosto tranquilo do velho.
– Será possível? – exclamou, perturbado. – Tu és o Irmão Dion?
O velho fez um sinal de cabeça afirmativo.
– Descansa aqui debaixo destas árvores – disse-lhe delicadamente
–,
mas não durmas, concentra-te antes. Eu também vou descansar e
concentrar-me. Depois poderás dizer-me o que desejas confiar-me.
Josephus via-se deste modo chegado de repente ao seu fim e
custava-lhe a compreender agora que não tivesse reconhecido e
adivinhado mais cedo ao lado de que homem venerável tinha
caminhado durante um dia inteiro. Afastou-se, ajoelhou-se, rezou e
concentrou todos os seus pensamentos no que tinha a dizer ao seu
confessor. Passada uma hora voltou e perguntou a Dion se estava
pronto.
E então foi-lhe concedido confessar-se. Tudo quanto vivera desde
há anos, o que desde há muito julgava ter perdido do seu valor e do
seu sentido transbordou dos seus lábios na forma de relatos,
queixas, perguntas, um requisitório contra si mesmo, toda a história
da sua vida de cristão e de penitente que concebera e adotara para
se purificar e santificar, e que finalmente desembocara em tanta
confusão, trevas e desespero. Também não passou em silêncio os
acontecimentos mais recentes da sua vida, a fuga e o sentimento de
libertação e de esperança que esta lhe dera, a génese da decisão de
ir ter com Dion, o encontro entre ambos e a confiança, o afeto que
concebera imediatamente por ele, mas também não lhe escondeu
que, por várias vezes durante este dia, o tinha julgado frio, estranho
e até lunático.
O Sol estava já baixo quando acabou. O velho Dion escutara-o
guardando-se de o interromper e interrogar. E mesmo agora que a
confissão estava acabada, nem uma palavra saía dos seus lábios.
Ergueu-se pesadamente, olhou para Josephus com muito amor,
inclinou-se, beijou-o na testa e fez por cima dele o sinal da cruz. Só
mais tarde Josephus deu conta de que esse era o gesto mudo e
fraterno de renúncia a todo o veredito com que mandara embora
tantos penitentes.
Comeram passado algum tempo, pronunciaram a oração da noite
e deitaram-se. Josephus refletiu ainda algum tempo e esforçou-se:
esperava na verdade uma maldição e uma reprimenda e, apesar
disso, não sentia nem deceção nem inquietação. O olhar e o beijo
fraterno de Dion tinham bastado, a paz reinava dentro de si, não
tardou a cair num sono benfeitor.
Sem palavras inutéis o velho levou-o no dia seguinte consigo,
fizeram então uma etapa bastante longa, depois ainda mais quatro
ou cinco parecidas e chegaram depois ao eremitério de Dion. Foi aí
que passaram a viver dali em diante. Josephus ajudou Dion nos seus
pequenos afazeres diários, aprendeu a conhecer e a partilhar da sua
vida quotidiana, que não diferia nada da que tinha feito durante
muitos anos. Mas agora já não estava sozinho, vivia na sombra e
sob a proteção de alguém e esta era no fundo uma vida
inteiramente diferente. Das congregações das cercanias, de Ascalão
e ainda de mais longe, vinham continuamente pessoas à procura de
conselhos e necessitadas de confissão. De início, Josephus retirava-
se precipitadamente de cada vez que vinham visitantes deste tipo e
só voltava a aparecer depois de eles terem partido. Mas cada vez
com mais frequência Dion o chamou, como se chama um criado,
mandando-o trazer-lhe água ou que fosse fazer qualquer outra
coisa, e depois de ter assim procedido durante algum tempo,
habituou Josephus a ser de longe a longe ouvinte duma confissão,
quando o penitente não ficava desconfiado. Mas muitos deles, a
maior parte mesmo, não se zangavam por não ficarem sozinhos com
o temido Irmão Pugil, fosse de pé, sentados ou de joelhos.
Preferiam a companhia daquela ajuda silenciosa, de olhar amável e
compassivo. Aprendeu assim, pouco a pouco, a maneira que Dion
tinha de escutar as confissões, o estilo dos seus discursos de
consolação, das suas intervenções e das suas reprimendas, das
sanções e dos conselhos. Só raramente se permitia fazer uma
pergunta, como fez por exemplo no dia em que um erudito, um belo
espírito, lhes fez uma visita de passagem.
Ressaltava das narrativas desse homem que ele tinha amigos
entre os magos e os astrónomos. Durante uma pausa ficou sentado
uma hora ou duas junto dos nossos penitentes. Era um hóspede
cortês e loquaz. Falou demoradamente, sabiamente e com elegância
dos astros e do périplo que o homem, dizia ele, tem de percorrer,
bem como todos os seus deuses do início ao fim da era cósmica,
através de todas as moradas do zodíaco. Falou de Adão, o primeiro
homem, e disse que ele e Jesus eram só um, o Crucificado, a viagem
de Adão da árvore do conhecimento à da vida é um apelo à
redenção. Quanto à serpente do paraíso, qualificou-a de guarda da
fonte sagrada, dos abismos tenebrosos cujas águas negras
engendraram o processo da individuação, todos os homens e todos
os deuses. Dion ouvia atentamente este homem cujo sírio era
fortemente impregnado de grego e Josephus admirou-se,
escandalizou-se mesmo, por não o ouvir repelir, refutar e condenar
com paixão e ardor esses erros pagãos, e por ver que, pelo
contrário, o subtil monólogo deste douto peregrino parecia distraí-lo
e despertar a sua simpatia, pois não se contentava em ser todo
ouvidos, sorria e aprovava também frequentemente, com um sinal
da cabeça, uma palavra do orador, como se lhe tivesse agradado.
Quando este homem partiu, Josephus perguntou-lhe num tom
veemente e quase de censura: – Como é que ouviste tão
pacientemente as doutrinas erradas deste pagão incrédulo? Que
digo? Não somente as escutaste com paciência mas, ao que me
pareceu, quase com simpatia e um certo prazer. Porque é que não
ficaste de pé atrás? Porque é que não tentaste refutar esse
indivíduo, castigá-lo e convertê-lo à fé no nosso Senhor?
Dion abanou a cabeça, no alto do seu delgado pescoço cheio de
rugas, e respondeu: – Não o contradisse, pois não teria servido de
nada e sobretudo porque seria absolutamente incapaz. Não há
dúvida de que este homem me ultrapassa de longe na arte da
palavra, do raciocínio e no conhecimento da mitologia e das estrelas.
Não teria podido nada contra ele. E, por outro lado, meu filho, não é
nem o meu papel nem o teu discutir a fé dum homem, pretendendo
que é só erro e mentira. Confesso que ouvi este homem inteligente
com um certo prazer, isso não te escapou. Dava-me prazer porque
ele falava admiravelmente e sabia muita coisa, mas sobretudo
porque me lembrava a minha juventude, pois nos meus verdes anos
ocupei-me muito precisamente com esse género de estudos e
conhecimentos. Os pormenores mitológicos de que este estrangeiro
tão belamente nos falou não são erros nenhuns. São as
representações e os símbolos duma crença de que já não
necessitamos, porque adquirimos a fé em Jesus, o único Redentor.
Mas aqueles que ainda não chegaram lá, que nunca lá poderão
chegar, têm motivo para venerar a sua fé, que nasceu da antiga
sabedoria dos seus pais. Claro, meu caro, a nossa crença é
diferente, totalmente diferente. Mas não é porque a nossa fé não
tenha nada a fazer com a teoria dos astros e dos éons, das águas
matriciais, das mães do mundo e de todos esses símbolos, que essas
doutrinas constituem em si um erro, uma mentira ou um engano.
– Mas a nossa fé – exclamou Josephus – é mesmo assim a melhor
e Jesus morreu por todos os homens; por consequência, os que a
conhecem devem combater essas doutrinas doutras eras e
substituir-lhes a nova, a verdadeira!
– Há muito que o fizemos, tu e eu, e muitos outros mais – disse
Dion com calma. – Nós acreditamos porque a fé, isto é, o poder do
Redentor e da sua morte redentora, se nos impôs. Ora, os outros, os
mitólogos e os teólogos do zodíaco e das doutrinas antigas, não
sofreram, ainda não sofreram o atentado deste poder, e não nos é
dado obrigá-los a sofrê-la. Não notaste, Josephus, com que graça e
habilidade extremas este mitólogo sabia conversar, como combinava
o seu jogo de figuras e que prazer havia nisso, não viste que paz e
que harmonia ele conhecia na sabedoria das imagens e dos
símbolos? Pois bem, é sinal de que nenhuma grande dor o
atormenta, que está satisfeito, que o seu destino é feliz. Ora, às
pessoas felizes nós nada temos a dizer. Para que um homem sinta a
necessidade da redenção e da fé redentora, para que não encontre
mais alegria na sabedoria e na harmonia dos seus pensamentos e
assuma o grande risco de acreditar no milagre da redenção, é
preciso, em primeiro lugar, que conheça a infelicidade, uma
infelicidade muito grande, tem de precisar da experiência da dor e
da deceção, da amargura e do desespero, tem de lhe subir à
garganta o fel. Não, Josephus, deixemos este sábio pagão entregue
à sua felicidade, deixemo-lo gozar da felicidade da sua sabedoria, do
seu pensamento e da sua eloquência! Amanhã talvez, ou daqui a um
ano, dez anos, será presa da dor que destruirá a sua arte e a sua
sabedoria. É possível que lhe matem a mulher que ama, ou o seu
filho único, ou que seja vítima da doença e da pobreza. Então, se
voltarmos a encontrá-lo, ocupar-nos-emos dele e dir-lhe-emos como
tentámos dominar a dor. E se ele nos perguntar: «Porque é que não
mo disseste ontem, porque é que mo não disseste há dez anos?»,
responder-lhe-emos: «Nessa altura ainda não eras bastante infeliz.»
Tornara-se grave e ficou um momento silencioso. Depois, como se
saísse da visão das suas recordações, acrescentou: – Brinquei muito
com a sapiência dos nossos pais e tive prazer nisso. Mesmo quando
seguia já a via da cruz, ainda me divertiu muito fazer de teólogo e,
na verdade, também me atormentou muito. O que mais ocupava os
meus pensamentos era a criação do mundo e o facto de que, no fim
desta obra, tudo deveria ser, em suma, perfeito, pois foi dito: «Deus
lançou os olhos sobre toda a sua obra e tudo estava bem feito.» Na
realidade, a excelência e a perfeição só duraram um instante, o do
paraíso; logo a seguir, o erro e a maldição tinham-se já instalado,
pois Adão comera o fruto da árvore, que estava proibido de provar.
Ora, segundo certos mestres, o Deus que realizou a criação, com
Adão e a árvore do conhecimento, não era o Deus único e supremo,
mas apenas uma parte dele, ou um Deus subalterno, o demiurgo; a
Sua criação, diziam eles, não era boa, era, antes pelo contrário, um
fracasso; o que tinha sido criado passava a ser maldito e entregue
ao maligno por toda uma era cósmica, até que o Deus-Espírito único
decidisse pôr fim a este período de maldição por intermédio do seu
Filho. A partir daí, ensinavam eles, e isso correspondia também ao
meu pensamento, o demiurgo e a sua criação começaram a perecer,
o mundo morre pouco a pouco, murchará, até que venha uma era
cósmica nova, onde já não haverá mais criação, nem universo, nem
carne, nem concupiscência, nem pecado, mais seres engendrados
pela carne, mais nascimentos nem mortos, até que surja um mundo
de perfeição, de espiritualidade e de redenção, livre da maldição de
Adão, do eterno e funesto arrastar do desejo, da conceção, do
nascimento e da morte. Era o demiurgo mais que o primeiro homem
que declarávamos culpado pelos males atuais no universo.
Achávamos que lhe teria sido fácil, se ele fosse realmente o próprio
Deus, criar Adão diferente ou evitar-lhe a tentação. A conclusão das
nossas deduções era, por conseguinte, a existência de dois Deuses,
o Criador e o Pai, e não tínhamos medo de pronunciar sobre o
primeiro um veredito de condenação. Havia mesmo aqueles que iam
mais longe e afirmavam que a criação não tinha sequer sido obra de
Deus mas do Diabo. Imaginávamos, com as nossas subtilezas,
ajudar o Redentor e o advento da era do espírito. Arranjávamos
deuses, mundos e planos cósmicos, discutíamos e fazíamos teologia.
Mas um dia veio em que fui apanhado por uma febre e adoeci de
morte. Nos meus sonhos estava sempre o demiurgo; eu tinha de
fazer a guerra, espalhar sangue; as minhas visões e as minhas
angústias tornaram-se cada vez mais atrozes até que, na noite da
minha febre mais forte, me veio a convicção de que devia matar a
minha mãe para apagar a minha origem carnal. O Diabo, nestes
sonhos, perseguia-me com toda a sua matilha. Mas curei-me e, para
grande deceção dos meus antigos amigos, foi um pateta, um
taciturno sem espírito que voltou à vida, que recobrou, claro, em
pouco tempo, as forças do seu corpo, mas não o gosto de filosofar.
Pois durante os dias e as noites da minha convalescença, quando
aqueles sonhos abomináveis desapareceram e quando dormia quase
sempre, em todos os momentos de vigília sentia o Redentor ao meu
lado, sentia uma força emanar dele e vir para mim. E quando
recuperei a saúde, afligi-me por já não conseguir senti-lo ao meu
lado. Em vez disso senti um desejo profundo dessa presença e
descobri então isto: a partir do momento em que dava atenção às
discussões, apercebia-me de que essa ânsia, que era então o melhor
dos meus bens, corria o perigo de desaparecer e perder-se nos
pensamentos e nas palavras, como a água que a areia bebe. Em
resumo, meu caro, acabei com a subtileza e a teologia. A partir daí
faço parte dos simples de espírito. Mas quando um homem percebe
de filosofia e de mitologia, quando sabe jogar esses jogos em que
outrora me exercitei, não gostaria de o impedir, nem desprezá-lo. Se
antigamente tive de me contentar em considerar incompreensíveis a
interpenetração e a coexistência do demiurgo e do Deus-Espírito, da
criação e da redenção como enigmas insolúveis para mim, tenho
também de aceitar não fazer dum filósofo um crente. Não é a minha
função.
Um dia em que um homem lhe tinha confessado ter cometido
assassínio e adultério, Dion disse ao seu ajudante: – Um assassínio e
um adultério, isso é bem infame e bem considerável, e certamente é
bastante grave, sei-o. Mas digo-te, Josephus, na realidade estes
homens do século não são verdadeiros pecadores. De cada vez que
tento em pensamento meter-me na pele de um deles, é como se
fossem verdadeiras crianças. Não são delicados, nem bons, nem
nobres; são egoístas, lúbricos, orgulhosos, coléricos, é verdade, mas
no fundo são inocentes, inocentes precisamente como as crianças.
– Mas no entanto – disse Josephus – muitas vezes pedes-lhes
contas com veemência e apresentas aos seus olhos a imagem do
inferno.
– É justamente para isso. São crianças e quando têm escrúpulos
de consciência e vêm confessar-se, querem ser levados a sério e
insistem também em serem repreendidos seriamente. Pelo menos é
o que eu penso. Tu procedias doutro modo, antigamente, não
repreendias ninguém, não impunhas nem sanções nem penitência;
antes pelo contrário, mostravas-te benevolente e contentavas-te em
mandá-los embora com um beijo fraterno. Não quero criticar isso,
não, mas eu nunca seria capaz disso.
– Seja – disse Josephus com hesitação –, mas diz-me, no dia em
que me confessei, porque é que não me trataste como os teus
outros pacientes, porque é que, pelo contrário, me abraçaste em
silêncio e não me falaste de sanções?
Dion Pugil fixou nele o seu olhar penetrante. – Não procedi bem?
–
perguntou.
– Não digo que não tenhas tido razão. Agiste bem, certamente,
senão essa confissão não me teria feito tanto bem.
– Então não penses mais nisso. Impus-te, então, também a ti,
uma penitência severa e longa, se bem que não to tenha dito.
Trouxe-te comigo, tratei-te como criado e reduzi-te a estas funções a
que querias furtar-te.
Afastou-se. Era inimigo de conversas longas. Mas desta vez
Josephus mostrou-se tenaz.
– Sabias de antemão que eu te obedeceria, tinha-to prometido
antes de me confessar e mesmo antes de te conhecer. Não, diz-me:
foi unicamente por essa razão que agiste desse modo comigo?
O outro deu alguns passos dum lado para o outro, parou à frente
dele, pousou-lhe a mão no ombro e disse: – Os homens do século
são crianças, meu filho, e os santos... pois bem, não vêm confessar-
se a nós. Quanto a nós, tu e eu e os nossos iguais, nós, penitentes e
que procuramos, que desertámos do mundo, não somos crianças,
não somos inocentes e não são as admoestações que nos porão a
alma em ordem. Os verdadeiros pecadores somos nós, nós que
sabemos e que pensamos, nós que provámos da árvore do
conhecimento: não deveríamos, por conseguinte, tratar-nos
mutuamente como crianças a quem se dá umas vergastadas e que
depois se deixa ir embora. Depois duma confissão e duma
penitência, não vamos correr para esse mundo infantil onde se
celebram festas, onde se fazem negócios e onde se mata quando
calha. O pecado não nos aparece como um vertiginoso sonho mau,
de que nos desembaraçamos por meio de confissões e sacrifícios.
Vivemos nele, nunca estamos inocentes, somos pecadores
permanentes, a nossa morada é o pecado e o braseiro da
consciência; sabemos que nunca poderemos pagar a dívida, a não
ser que Deus nos perdoe depois da partida daqui de baixo e nos
conceda a sua graça. É por esta razão, Josephus, que não posso
fazer-te um sermão, nem ditar-te penitências, como também não a
mim. Não é com este ou aquele ato transviado ou com esta ou
aquela má ação que lidamos, mas perpetuamente com a própria
falta original; nós, por conseguinte, só podemos assegurar aos
outros que estamos ao corrente e que gostamos deles como irmãos,
não podemos curá-los por meio duma sanção. Não sabias?
Josephus respondeu em voz baixa: – É verdade. Sabia.
– Deixemo-nos então de discursos vãos – disse o velho numa voz
breve, dirigindo-se para a pedra colocada à frente da sua cabana e
sobre a qual se habituara a rezar.
Passaram-se alguns anos. O Irmão Dion era às vezes vítima duma
fraqueza que obrigava Josephus a ajudá-lo de manhã, pois não era
capaz de sentar-se sozinho. Depois ia rezar e após esta oração
também não era capaz de se pôr de pé sozinho. Josephus tinha de o
ajudar. Depois ficava sentado durante todo o dia a olhar para longe.
Era muitas vezes assim; em certas alturas o velho conseguia
levantar-se sozinho. Tão-pouco podia ouvir todos os dias confissões,
e, quando um penitente se tinha confessado a Josephus, Dion
chamava-o em seguida e dizia-lhe: – O meu fim está próximo, meu
filho, está próximo. Diz às pessoas que este Josephus que veem é o
meu sucessor. – E quando Josephus queria defender-se e dizer de
seu direito, o velho fixava-o com aquele olhar terrível que o
penetrava como um raio de gelo.
Um dia em que se levantara sem ajuda e parecia mais forte,
chamou Josephus para junto de si e conduziu-o a um sítio na orla do
pequeno jardim de ambos.
– É aqui – disse – que me hás de enterrar. Vamos cavar juntos a
minha campa, penso que ainda nos resta algum tempo. Vai buscar-
me a pá.
Dali em diante, todos os dias, à alva, cavaram um pouco. Quando
Dion tinha força, tirava ele mesmo algumas pazadas de terra, com
grande dificuldade, mas com uma certa alegria, como se este
trabalho lhe desse prazer. Ao longo do dia não perdia essa
jovialidade; a partir do momento em que começaram a cavar a sua
sepultura ele esteve sempre de bom humor.
– Plantas-lhe uma palmeira em cima – disse um dia, enquanto
trabalhavam. – Talvez ainda comas frutos dela. Se não fores tu,
outro o fará. Aconteceu-me de longe a longe plantar uma árvore,
mas muitíssimo raramente, muitíssimo raramente. Alguns dizem que
um homem não deveria morrer sem ter plantado uma árvore e
deixado um filho. Pois bem, eu deixarei depois de mim uma árvore e
deixar-te-ei também a ti, que és meu filho.
Estava calmo e mais sereno do que nunca Josephus o conhecera e
ainda veio a tornar-se mais calmo. Uma tarde, ao cair do dia –
tinham já tomado a refeição e rezado –, da sua cama, chamou
Josephus e pediu-lhe que ficasse ainda um bocadinho com ele.
– Vou contar-te uma coisa – disse amistosamente. Parecia ainda
não sentir cansaço nem sono. – Lembras-te, Josephus, dos maus
momentos que passaste outrora no teu eremitério, perto de Gaza?
Estavas farto da vida. E lembras-te de como fugiste e decidiste ir ao
encontro do velha Dion e contar-lhe a tua história? E depois, na
colónia dos penitentes, encontraste aquele velho a quem
perguntaste onde morava Dion Pugil. Pois bem, não foi um milagre
que esse velho fosse o próprio Dion? Vou dizer-te agora como se
passou tudo, pois também para mim foi um acontecimento singular
e uma espécie de milagre.
«Sabes o que sente um penitente e confessor quando fica velho e
já ouviu todas as confissões dos pecadores que o tomam por um
santo, puro de todo o pecado, e que não sabem que ele ainda é
mais pecador do que eles. Então tudo o que fez lhe parece inútil e
vão. O que outrora lhe parecia sagrado e importante, quero dizer, o
facto de Deus o ter colocado neste lugar e julgado digno de ouvir as
ignomínias e as torpezas dos homens e aliviá-los, tudo isso é então
como que um grande fardo, uma carga muitíssimo pesada, mesmo
uma maldição e, no fim, um pobre que vem vê-lo com os seus
pecados infantis causa-lhe horror, ele deseja vê-lo partir, partir
também ele próprio, nem que fosse na ponta duma corda, no ramo
principal duma árvore. Conheceste isso. E agora é a hora de também
eu me confessar e confesso-me: também conheci a mesma coisa
que tu. Também eu me julguei um inútil, julguei o meu espírito
extinto, pareceu-me que já não poderia suportar ver as pessoas
afluírem incessantemente a mim, cheias de confiança, para me
trazerem todas as imundícies e o mau cheiro da vida humana que
não conseguiam resolver e tão-pouco eu conseguia resolver.
«Ora, eu ouvira falar por várias vezes dum penitente chamado
Josephus Famulus. Também a ele, ao que se dizia, as pessoas o
tomavam como confessor, muitos preferiam ir vê-lo em vez de a
mim, pois passava por ser um homem doce e compassivo. Contava-
se que não exigia nada das pessoas, que não as repreendia, mas as
tratava como irmãs, contentando-se em ouvi-las e dar-lhes um beijo
como se fosse uma despedida. Não era o meu género, sabes, e das
primeiras vezes que ouvi falar desse Josephus, a sua maneira de agir
pareceu-me estúpida e demasiado infantil. Mas nesse momento em
que me perguntava verdadeiramente se a minha própria maneira de
agir valia alguma coisa, tinha boas razões para me impedir de julgar
a de Josephus e pretender fazer melhor do que ele. De que forças
pudera esse homem dispor? Sabia que era mais novo do que eu,
mas que também era quase um velho; isso agradava-me: não teria
assim tão facilmente confiança num homem novo. Mas este atraía-
me. E foi assim que resolvi ir em peregrinação até esse Josephus
Famulus, confessar-lhe a minha miséria e pedir-lhe conselho, ou, se
ele não mo desse, receber talvez da sua boca uma consolação e um
conforto. Esta resolução bastou para me fazer bem e aliviar-me.
«Iniciei portanto essa viagem e fui de peregrinação para o sítio
onde se dizia que ele tinha o seu eremitério. Mas, entretanto, o meu
Irmão Josephus tinha precisamente conhecido as mesmas provações
que eu e feito a mesma coisa. Ambos tínhamos fugido para ir buscar
conselho no outro. Quando se apresentou aos meus olhos, antes
mesmo que eu tivesse encontrado a sua cabana, reconheci-o logo
na nossa primeira conversa; ele tinha o aspeto do homem que eu
esperava ver. Mas tinha fugido; também para ele tudo tinha corrido
mal, tão mal como para mim, talvez ainda pior, e ele não pretendia
de modo nenhum ouvir confissões. Desejava confessar-se e confiar a
sua miséria a outro. Nesse momento foi para mim uma singular
deceção, fiquei muito triste. Pois, se esse Josephus, que não me
conhecia, se cansara do seu papel e desesperara do sentido da sua
vida, não significava isso, segundo todas as aparências, que não
valíamos nada, nem um nem outro, que tínhamos vivido inutilmente
e falhado ambos?
«Conto-te o que já sabes, permite-me abreviar. Fiquei sozinho,
nessa noite, perto da minha colónia, enquanto tu encontravas um
abrigo junto dos nossos irmãos. Pratiquei a concentração, imaginei-
me na pele desse Josephus e pensei: “Que fará ele quando amanhã
souber que fugiu em vão e que foi em vão que confiou nesse Pugil,
se souber que também Pugil é um desertor atormentado pela
dúvida?” Quanto mais me metia na sua pele, mais Josephus me
dava pena e mais eu era levado a imaginar que era Deus que mo
enviava, para o conhecer e curar, e conhecer-me e curar-me ao
mesmo tempo que ele. Então consegui dormir; metade da noite
tinha já passado. No dia seguinte tu iniciavas a tua peregrinação
comigo e tornaste-te meu filho.
«Eis a história que queria contar-te. Ouço que choras. Chora
então, isso faz bem. E uma vez que me tornei tão escandalosamente
tagarela, faz-me a graça de me ouvir ainda mais isto e guarda-o no
teu coração. O ser humano é estranho e não nos podemos fiar nele;
não é, por conseguinte, impossível que num dado momento tu sejas
novamente assaltado por esses sofrimentos e por essas dúvidas que
procurarão vencer-te. Possa então Nosso Senhor enviar-te um filho e
um pupilo tão amável, tão paciente e duma tão grande consolação
como me foi dado com a tua pessoa! Quanto a esse galho da árvore
com que o tentador te fez sonhar outrora, e com a morte do pobre
Judas Iscariotes, posso dizer-te uma coisa: não é somente pecado e
loucura premeditar uma tal morte, se bem que seja pouca coisa para
o nosso Redentor perdoar também esse pecado. É, além do mais,
terrivelmente lamentável que um homem morra no desespero. Deus
não no-lo envia para nos matar, envia-no-lo para acordar em nós
uma vida nova. Mas quando nos envia a morte, Josephus, quando
nos desliga desta terra, do nosso corpo, e nos chama a si, é uma
grande alegria. Ter o direito de adormecer quando se está cansado e
de deixar cair um fardo que carregámos durante muito tempo é uma
delícia e uma grande maravilha. Desde que cavámos a minha campa
– não te esqueças da palmeira que tens de plantar por cima –,
desde que começámos a cavar essa campa, estou mais alegre e
mais contente do que há bem muitos anos.
«Falei de mais, meu filho, e tu vais ficar cansado. Vai dormir, vai
para a tua cabana. Que Deus seja contigo!»
No dia seguinte Dion não veio fazer a oração da manhã e também
não chamou Josephus. Quando este, amedrontado, entrou a correr
na cabana de Dion e se aproximou da sua enxerga, verificou que o
velho tinha adormecido para sempre. O seu rosto, iluminado por um
sorriso de criança, irradiava suavemente.
Enterrou-o, plantou a árvore sobre a sua campa e conheceu ainda
o ano em que esta deu os primeiros frutos.
O curriculum indiano
Um dos príncipes dos demónios que Vixnu, ou antes, Rama, sua
encarnação humana, matara com a sua seta em forma de crescente
lunar numa das suas furiosas batalhas contra os demónios, tinha
regressado com forma humana ao ciclo das formas. Chamava-se
Ravana e a sua vida, à beira do grande Ganges, era a dum príncipe
guerreiro. Ravana teve um filho, Dasa. A mãe deste morrera já e,
mal a que lhe sucedeu, uma mulher bela e ambiciosa, deu um filho
ao príncipe, o pequeno Dasa tornou-se-lhe um obstáculo. Ela
pensava fazer com que um dia o seu próprio filho fosse sagrado
soberano em vez do primogénito. Com esse fim soube desviar de
Dasa o afeto do seu pai e estava resolvida a afastá-lo do seu
caminho na primeira ocasião favorável. Mas um dos brâmanes da
corte de Ravana, Vasudeva, que conhecia a arte dos sacrifícios,
soube das suas intenções, e este homem sábio conseguiu torná-las
vãs. Teve pena do rapazinho; por outro lado, este princepezinho
parecia-lhe ter herdado da mãe uma tendência para a piedade e o
sentido do bem. Velou para que nada acontecesse a Dasa e esperou
apenas pela ocasião de o furtar à sua madrasta.
Ora o rajá Ravana possuía uma manada de vacas devotadas a
Brama, que passavam por serem sagradas e cujo leite e cuja
manteiga eram oferecidos com frequência como sacrifício ao deus.
Era para elas que estavam reservadas as melhores pastagens do
país. Um dia, um pastor destas vacas consagradas a Brama veio
entregar uma carga de manteiga e avisar que se anunciava um
período de seca na região onde até ali a manada pastara, tanto que
os guardadores tinham chegado a acordo para a levarem para mais
longe, para a montanha, onde, mesmo aquando das maiores secas,
não faltariam nascentes de água nem erva fresca. O brâmane fez
confidências a este pastor, seu conhecido de longa data; era um
homem agradável e fiel e quando, no dia seguinte, o pequeno Dasa,
filho de Ravana, desapareceu e foi impossível encontrá-lo, Vasudeva
e o pastor eram os únicos que conheciam o segredo do seu
desaparecimento. O pequeno Dasa tinha sido levado pelo guardador
das vacas para as colinas, onde se juntaram à manada que
transumava lentamente; Dasa juntou-se de bom grado àquela e aos
seus pastores. Cresceu como um pequeno guardador de vacas,
ajudou a guardar e a conduzir os animais, aprendeu a mungi-las,
brincou com os seus vitelos, preguiçou debaixo das árvores bebendo
leite fresco e tinha bosta de vaca nos seus pés nus. Isto agradava-
lhe muito. Aprendeu a conhecer os pastores, as vacas e a sua vida,
travou conhecimento com a floresta, as suas árvores e os seus
frutos, gostava da manga, do figo-bravo e da varinga; nas poças
verdes dos bosques pescava a raiz adocicada do lótus; nos dias de
festa trazia uma coroa feita de florzinhas vermelhas de gerânio
almiscarado; aprendeu a proteger-se dos animais da selva, a evitar o
tigre, a ser amigo do inteligente mangusto e do brincalhão ouriço-
cacheiro, a suportar a estação das chuvas na penumbra dum refúgio
onde os rapazes brincavam, cantavam versos ou faziam cestos e
esteiras de vime. Dasa não esqueceu totalmente a sua antiga terra
natal e a sua vida anterior, mas em breve ela foi para ele como uma
espécie de sonho.
A manada chegara a outra região. Um dia Dasa foi para os
bosques à procura de mel. Desde que conhecia a floresta, tinha-lhe
um amor maravilhado e ela parecia-lhe de resto especialmente bela.
Através das folhas e das ramagens, a luz do dia insinuava-se em
serpentes de ouro, e assim como os ruídos, os gritos das aves, o
murmúrio das copas das árvores, as vozes dos macacos se
enlaçavam e cruzavam em gráceis laços de luz doce, parecidos com
os raios de luz no mato, assim também os cheiros, os perfumes das
flores, das essências vegetais, das folhas, das águas, dos musgos,
dos animais, dos frutos, da terra e da sua putrefação surgiam,
uniam-se para voltarem a separar-se, ásperos e doces, selvagens e
tímidos, exaltantes e entorpecentes, alegres e pesados de angústia.
Ora se ouvia, numa ravina invisível do bosque, um murmúrio de
água, ora uma borboleta vinha dançar por cima das umbelas
brancas, ora um galho grosso estalava no fundo das sombras azuis
do mato e folhas abatiam-se pesadamente sobre outras folhas, ou
então, nas trevas, um animal bramia, uma macaca irritada discutia
com os seus. Dasa esqueceu-se de que viera à procura de mel e,
enquanto espiava a mistura de cores cintilantes das aves do paraíso,
viu no meio dos fetos altos, que formavam como que uma floresta
pequena cerrada, num rasto que se perdia, uma espécie de carreiro
estreito e minúsculo. E depois de se meter por aí sem barulho,
cautelosamente, seguiu essa senda, e descobriu, por baixo dos
troncos múltiplos duma árvore, uma cabana pequena, uma espécie
de tenda pontiaguda feita de fetos entrançados e, ao lado dela,
sentado no chão, de corpo direito, um homem imóvel cujas mãos
descansavam entre as suas pernas cruzadas. Por baixo dos seus
cabelos brancos e da sua testa grande, os seus olhos tranquilos, sem
expressão, estavam baixados para a terra, abertos, mas voltados
para dentro. Dasa compreendeu que era um homem santo e yogin.
Não era o primeiro que via. Estes homens eram veneráveis, eram os
preferidos dos deuses. Era bom oferecer-lhes presentes e
testemunhar-lhes respeito. Mas este que, à frente da sua cabana de
fetos tão bem escondida, permanecia sentado muito direito, com os
braços caídos, e se entregava à meditação, agradou muito ao rapaz
e pareceu-lhe mais estranho e mais venerável do que os que
costumava ver. À volta deste homem que, sentado, parecia flutuar e,
com um olhar ausente, parecia no entanto ver tudo e tudo saber,
pairava uma aura de santidade, um círculo mágico de dignidade, um
fluxo, uma chama de ardor concentrado e de poder do yoga que o
rapaz não ousaria transpor nem quebrar com uma saudação ou um
chamamento. A dignidade e a grandeza da sua atitude, a luz interior
que a face irradiava, a concentração e o rigor que revestiam as suas
feições, emitiam ondas, uma radiação no meio da qual ele reinava
como uma lua. E a força espiritual acumulada, a vontade
silenciosamente concentrada nesta aparição, estendiam à sua volta
um círculo mágico tal, que se dava perfeitamente conta de que
bastaria a este homem um simples desejo, um pensamento ou
mesmo um piscar de olhos, para matar uma pessoa e ressuscitá-la.
Mais imóvel do que uma árvore cujas folhas e ramos ao menos
mexem quando respiram, tão imóvel como a efígie de pedra dum
deus, o yogin continuava sentado no seu lugar e, desde que o
avistara, o jovem observava a mesma imobilidade, preso ao chão e
atraído pela magia daquele quadro. Demorou-se a olhar fixamente
para o mestre; viu-lhe uma mancha de sol no ombro, outra numa
das mãos inertes; viu deslocarem-se lentamente, viu aparecerem
outras e começou, imóvel e estupefacto, a compreender que aquelas
manchas de luz não estabeleciam nenhuma relação com o homem,
assim como também os cantos das aves e as vozes dos macacos na
floresta circundante ou a abelha selvagem que pousava a sua
mancha escura no rosto do eremita mergulhado em meditação,
farejava a sua pele, corria durante um momento pela sua face e
depois se soltava e voava, como também não havia nenhuma
relação entre toda a vida multiforme da floresta e ele. Não, Dasa
sentia-o, nada do que é belo ou feio, agradável ou desagradável,
tinha a menor relação com aquele homem santo. A chuva não lhe
causaria nem uma constipação nem contrariedade, o fogo seria
impotente em queimá-lo, o mundo inteiro à sua volta tornara-se,
para ele, superficial e sem importância. A noção confusa de que o
universo inteiro realmente talvez fosse apenas um jogo, uma crosta,
uma brisa e uma ondulação por cima de grandes profundidades
desconhecidas veio então aflorar o príncipe-pastor na sua
contemplação, não como uma ideia, mas o seu corpo arrepiou-se
com ela; foi tomado por uma leve vertigem, uma impressão de
horror e perigo, ao mesmo tempo que se sentiu atraído por um
desejo nostálgico. Pois, sentia-o, o yogin mergulhara através da
superfície deste Mundo, através deste Mundo que é só superfície,
até ao fundo do que é, até ao mistério de todas as coisas, rompera e
despojara a rede mágica dos sentidos, dos jogos de luz, dos ruídos,
das cores, das sensações e permanecia solidamente enraizado no
essencial e no permanente. Se bem que outrora tivesse sido
educado por brâmanes e tocado mais do que uma vez pelos raios da
luz espiritual, o jovem não compreendeu isso com o seu
entendimento, não saberia falar disso com palavras, mas sentia-o,
como em horas abençoadas sentimos a aproximação do divino;
sentia-o no arrepio de respeito e admiração que lhe inspirava este
homem, no seu amor por ele e na nostalgia duma vida semelhante à
que aquela figura sentada, aquele contemplador, parecia conhecer.
Coisa estranha, aquele velho lembrava-lhe as suas origens, a sua
qualidade de príncipe e o seu sangue real. Tocado no coração, Dasa
demorou-se, de pé na orla daquela selva de fetos; deixando as aves
voar e as árvores manterem os seus sussurrantes propósitos,
deixando a floresta às suas plantas e a sua longínqua manada aos
seus animais, abandonou-se a esta magia e contemplou o eremita
mergulhado na sua meditação, cativado pelo incompreensível, pela
inabordável calma do seu vulto, pela gritante tranquilidade da sua
face, pela força e o recolhimento da sua atitude e a sua total
devoção ao seu culto.
Não saberia dizer, depois, se foram duas horas ou três que passou
junto àquela cabana ou se foram dias. Quando este encanto lhe
devolveu a sua liberdade e voltou furtivamente, sem barulho, ao
carreiro pelo meio dos fetos e procurou o seu caminho para sair da
floresta e chegou finalmente ao terreno aberto dos pastos, junto à
manada, agia sem saber o que fazia; a sua alma ainda estava
enfeitiçada, e só acordou quando um dos guardadores de vacas o
chamou. Este acolheu-o com censuras ruidosas por se ter ausentado
por muito tempo, mas quando Dasa o olhou com grandes olhos
admirados, como se não compreendesse o que ele dizia, o pastor
calou-se imediatamente, estupefacto com o olhar insólito e
desconhecido do rapaz e a sua atitude solene. Passado um momento
perguntou-lhe: – Onde estiveste, pequeno? Viste algum deus ou
encontraste um demónio?
– Estive na floresta – disse Dasa. – Havia qualquer coisa que me
atraía para lá, eu queria procurar mel. Mas depois esqueci-me de o
fazer, pois vi um homem, um eremita. Estava sentado, mergulhado
em meditação ou em oração, e quando o vi, a ele e ao brilho da sua
cara, não pude impedir-me de ficar longos momentos a olhar para
ele. Gostaria de ir lá hoje à noite e levar-lhe presentes, é um homem
santo.
– Está bem – disse o pastor. – Leva-lhe leite e manteiga fresca.
Devemos honrar os santos e dar-lhes presentes.
– Mas como hei de dirigir-me a ele?
– Não precisas de falar com ele, Dasa, inclina-te apenas à frente
dele e depõe os teus presentes aos seus pés. Não há mais nada a
fazer.
Dasa procedeu então assim. Precisou de algum tempo para
encontrar o sítio. O lugar, à frente da cabana, estava vazio e não
ousou entrar lá dentro. Depôs por conseguinte os presentes no
chão, à frente da entrada, e afastou-se.
Durante o tempo em que os pastores ficaram com as suas vacas
naquele sítio, todas as noites ele levou lá presentes, e uma vez foi
mesmo lá durante o dia. Encontrou o eremita a praticar a
contemplação e, também desta vez, espectador seduzido, não
resistiu à tentação de receber um raio da força e da felicidade do
santo homem. Mesmo depois de terem abandonado aquela região e
Dasa ter ajudado a conduzir a manada para pastagens novas,
durante muito tempo não pôde esquecer o que tinha visto naquela
floresta. Às vezes, como é costume dos rapazes, abandonava-se à
fantasia quando estava sozinho e via-se a si próprio como eremita,
iniciado no yoga. Contudo, com o tempo, esta recordação e esta
imagem de sonho começaram a apagar-se ao mesmo tempo que
Dasa não tardou a tornar-se um vigoroso adolescente que se
entregava com um ardor alegre aos jogos e às batalhas dos
camaradas da sua idade. Mas na sua alma permaneceu um reflexo e
o pressentimento furtivo de que a qualidade de príncipe e soberano
que perdera poderia ser um dia substituída por uma dignidade e um
poder de yogin.
Um dia em que se encontrava nas proximidades da cidade, um
dos pastores trouxe de lá a notícia de que estava em preparação
uma grande festa: o velho príncipe Ravana, que perdera as suas
forças de antigamente e se tornara débil, tinha fixado o dia em que
o seu filho Nala tomaria a sucessão e seria proclamado soberano.
Dasa quis ir a esta festa, para ver a cidade de que quase já só
conservava uma lembrança da sua infância, para ouvir a música, ver
a procissão solene e as justas dos nobres e também para contemplar
esse mundo desconhecido dos citadinos e dos grandes da terra que
eram tantas vezes descritos nas lendas e nos contos e dos quais
sabia – mas também isso era apenas uma lenda, um conto ou talvez
nem isso – que foram outrora, em tempos longínquos, o seu próprio
universo. Os pastores tinham recebido ordem de entregar na corte
uma carga de manteiga para os sacrifícios desse dia de festa e Dasa,
para seu grande prazer, foi um dos três que o chefe dos pastores
designou para essa missão.
Chegaram na noite da véspera à corte para entregar a manteiga e
o brâmane Vasudeva recebeu-a das suas mãos, pois era ele que
presidia às matanças, mas não reconheceu o adolescente. Os três
pastores participaram, depois, na festa, com uma curiosidade ávida.
Logo de manhã viram começar os primeiros sacrifícios sob a direção
do brâmane, viram o brilho de ouro das massas de manteiga presas
pelas chamas transformar-se em línguas de fogo que subiam como
dardos para o céu, para o infinito, com o fumo espesso que
agradava aos três vezes dez deuses. No cortejo solene viram os
elefantes, os tetos dourados coroados pelos palanquins onde
estavam sentados os cavaleiros, viram o carro real enfeitado com
flores e o jovem rajá Nala, ouviram o concerto potente dos timbales.
Tudo isso era grandioso e sumptuoso, mas também um pouco
ridículo, pelo menos na opinião do jovem Dasa. Ele estava
espantado e encantado, e até mesmo embriagado por aquele
barulho, aqueles carros e aqueles cavalos ornamentados, por toda
aquela pompa e aquele desperdício insolente, encantado com as
bailarinas de membros esguios, firmes como o caule do lótus, que
precediam, dançando, o carro do soberano. Foi surpreendido com a
grandeza e a beleza da cidade, e no entanto, apesar de tudo, no
meio daquela embriaguez e daquela alegria, considerou um pouco
todas as coisas com o espírito sereno do pastor que no fundo
despreza o citadino. Não lhe ocorreu sequer que ele é que era o
primogénito, que era o seu meio-irmão Nala, de quem não tinha
nenhuma recordação, que era ungido, consagrado em festa à frente
dos seus olhos, enquanto deveria ser ele, Dasa, quem teria o direito
a desfilar no carro ornamentado com flores. Pelo contrário, aquele
jovem Nala desagradou-lhe cordialmente, achou-lhe um ar idiota e
mau de menino mimado, e essa adoração exagerada por ele mesmo
pareceu-lhe duma vaidade intolerável. Gostaria de ter pregado uma
partida, de dar uma lição àquele adolescente que se armava em
soberano, mas não era possível e depressa o esqueceu, pois havia
tanto a ver, a ouvir, ocasiões para se rir e para se divertir. As
mulheres da cidade eram lindas, tinham olhares, movimentos,
maneiras de falar ousadas e provocantes. Os três pastores ouviram
mais do que uma palavra que ressoou durante muito tempo nos
seus ouvidos. Gritavam-lhes, é verdade, com um ar de troça, pois o
pastor era para o citadino o que ele próprio é para o pastor: um
despreza o outro; apesar de tudo, aqueles belos e robustos
mocetões, alimentados de leite e queijo, que viviam quase todo o
ano ao ar livre, agradavam muito às mulheres da cidade.
Quando Dasa regressou daquela festa, tornara-se um homem;
perseguiu as raparigas e teve de travar contra outros jovens mais do
que um duro combate com os punhos. Depois dirigiram-se mais uma
vez para outra região. Era uma região de pastagens planas com
inúmeros charcos de água estagnada cobertos de juncos e bambus.
Foi aí que viu uma rapariga chamada Pravati e se apaixonou
insensatamente por esta bela criatura. Ela era filha dum rendeiro e
Dasa enamorou-se tanto dela que esqueceu e desprezou tudo para a
ter. Quando os pastores, ao fim de algum tempo, deixaram esta
região, não quis ouvir as suas recriminações nem os seus conselhos;
despediu-se deles e da vida pastoril de que tanto gostara, tornou-se
um sedentário e tanto e tão bem fez que obteve Pravati como
mulher. Cultivou os campos de milho e de arroz do sogro, ajudou no
moinho e na lenha; construiu para a sua mulher uma cabana de
bambu e palha onde a manteve fechada. É necessária uma força
poderosa para levar um homem jovem a renunciar às alegrias, às
camaradagens e aos hábitos da sua vida anterior, mudar de
existência e aceitar o papel pouco invejável de genro numa família
que não conhece. A beleza de Pravati era tão grande, tão grandes e
atraentes as secretas promessas de amor que irradiavam do seu
rosto e do seu corpo que Dasa ficou cego a tudo e se dedicou
inteiramente a essa mulher, e conheceu realmente uma grande
felicidade nos seus braços. Há muitos deuses e santos cuja história
afirma que foram enfeitiçados por uma mulher sedutora, que a
tiveram abraçada durante dias, luas e anos, sendo um só com ela,
absorvidos pelo desejo e esquecendo todas as outras tarefas. Era o
destino e o amor que Dasa desejava. Mas o destino decidiu doutra
maneira e a sua felicidade foi de curta duração. Durou cerca dum
ano e esse período também não foi cheio de felicidade, ainda ficou
lugar para todas as espécies de exigências penosas do sogro, para
as intrigas dos cunhados e os caprichos da sua jovem mulher. Mas
de cada vez que se lhe juntava na enxerga, tudo isso era esquecido,
apagado, tanto a atração do seu sorriso mágico era forte, tanta
doçura ele sentia em acariciar os seus membros esbeltos e tantos
milhares de flores, sombras e perfumes havia no jardim das volúpias
do seu corpo jovem.
A sua felicidade ainda não tinha um ano quando um dia a região
se encheu de agitação e ruído. Mensageiros a cavalo apareceram e
anunciaram a chegada do jovem rajá. Nala vinha pessoalmente, com
as suas gentes, os seus cavalos e o seu séquito, caçar naquela
região. Aqui e ali ergueram-se tendas, ouviu-se o arfar dos cavalos,
o som da trompa. Dasa não prestou atenção, trabalhava nos
campos, ocupava-se do moinho, evitando os caçadores e os
cortesãos. Mas quando num desses dias voltou para a sua cabana e
não viu a mulher, à qual proibira com a maior severidade todas as
saídas durante esse período, sentiu um baque no coração e
pressentiu que a desgraça se juntava sobre a sua cabeça. Precipitou-
se para casa do sogro. Pravati não estava lá e todos afirmaram que
a não tinham visto. A angústia apertou com mais força o seu
coração. Explorou a horta, os campos, passou um dia, dois dias a ir
e vir entre a sua cabana e a do sogro, pôs-se à espreita na sua
terra, desceu ao fundo do poço, rezou, chamou pelo nome dela,
tomou a voz da ternura, praguejou, procurou o rasto dos seus
passos. O mais novo dos seus cunhados, que era ainda uma criança,
acabou por lhe revelar que Pravati estava com o rajá: morava na sua
tenda e tinha sido vista a cavalgar a sua montada. Dasa espiou o
acampamento de Nala. Invisível, levava consigo a funda de que
outrora se servia quando era pastor. A partir do momento em que a
tenda do soberano, fosse de dia ou de noite, ficasse um momento
sem vigilância, aproximava-se como um caçador, mas de todas as
vezes os guardas não tardavam a aparecer e ele tinha de fugir.
Duma árvore em cujos ramos se escondia e de onde dominava o
campo, avistou o rajá, cujo rosto lhe era já conhecido e antipático
desde que assistira àquela festa na cidade. Viu-o montar a cavalo e
afastar-se. Quando regressou, várias horas mais tarde, depois de ter
desmontado, afastou o pano da ponta da tenda e, na penumbra
desta, foi uma mulher jovem que Dasa viu mexer-se e vir saudar o
homem que entrava. Pouco faltou para que caísse da árvore abaixo
ao reconhecer na jovem Pravati a sua esposa. A partir daí sabia e o
seu coração apertou-se ainda mais. Se a felicidade que lhe dera o
seu amor por Pravati tinha sido grande, a dor, a raiva, o sentimento
de a perder e daquela ofensa não o foram menos mas até mais
importantes. Assim é quando um homem concentra num único
objeto todo o amor de que é capaz; a perda deste faz com que tudo
se desmorone e ele fica pobre no meio das ruínas.
Durante um dia e uma noite Dasa errou ao acaso pelos bosques
da região. Se o cansaço o obrigava a uma breve paragem, a miséria
do seu coração punha-o novamente em pé; tinha de correr, tinha de
se mexer; tinha a impressão de que precisava de correr e caminhar
até ao fim do Mundo e ao fim da vida, que perdera o interesse e o
brilho. No entanto, não partiu para longe, para o desconhecido. Pelo
contrário, mantinha-se sempre nas proximidades da sua desgraça,
vagueava à volta da sua cabana, do moinho, dos campos, da tenda
de caça do soberano. Acabou por voltar a esconder-se nas árvores
que dominavam a tenda e aí ficou agachado, à espreita, cheio de
amargura e de fogo, como uma fera esfomeada no seu esconderijo
no meio da folhagem, até que chegou o momento para o qual
retesava as suas últimas forças, até que o rajá saísse da tenda.
Então, sem ruído, escorregou pelo ramo abaixo, preparou-se, fez
rodar a funda e a pedra atingiu em plena testa aquele que odiava:
este caiu e ficou deitado de costas, imóvel. Não parecia haver ali
ninguém. No meio da tempestade de volúpia e embriaguez da
vingança que revolvia a cabeça de Dasa, surgiu um instante de
profunda calma, terrível e estranho. E antes mesmo que
começassem a soltar gritos à volta da sua vítima e o lugar
fervilhasse de criados, tinha desaparecido por entre o mato e a selva
de bambus que se prolongava em direção ao vale.
No momento em que saltara da árvore, em que, na embriaguez da
ação, tinha feito rodar a funda e lançado a morte, parecera-lhe
também que aniquilava a sua própria vida, que largava as suas
últimas forças e se lançava, atrás daquela pedra mortal, no abismo
da destruição, aceitando morrer desde que aquele inimigo detestado
caísse juntamente com ele. Mas agora que este silêncio inesperado
respondia ao seu ato, uma sede de viver de que não suspeitara um
momento antes reteve-o no limiar daquele abismo bendito; um
instinto primitivo apoderou-se dos seus sentidos e dos seus
membros, obrigou-o a fugir para os bosques e as moitas de bambus,
ordenou-lhe que fugisse e nunca mais se deixasse ver. Foi somente
quando alcançou um refúgio e escapou ao primeiro perigo que
tomou consciência do que lhe acontecia. Deixou-se cair, esgotado, a
arfar, e nesse desfalecimento a bebedeira da ação dissipou-se para
dar lugar ao realismo: primeiramente, ficou desiludido e descontente
por ainda estar vivo, fora de perigo; mas, mal a sua respiração se
tornou mais calma e a vertigem do esgotamento se dissipou, aquele
langor angustiante deu lugar à afirmação, à vontade de viver, e a
alegria feroz pelo que tinha feito voltou a encher-lhe o coração.
Pouco depois ouviu barulho nas imediações. A caça e a
perseguição do assassino tinham começado, duraram todo o dia e só
escapou permanecendo sem fazer barulho no seu esconderijo:
ninguém gostava de entrar muito nessas paragens por causa dos
tigres. Dormiu um pouco, deixou-se ficar estendido à espreita,
rastejou um pouco mais para a frente, voltou a parar e, três dias
depois do seu crime, tinha já ultrapassado a cadeia de colinas e
caminhava sem tréguas para os mais altos cumes.
Esta vida de sem lar levou-o aqui e acolá, tornou-o mais duro e
mais indiferente, mais prudente também e mais resignado, mas à
noite não parava de sonhar com Pravati e com a sua felicidade
passada ou com o que então assim chamava. Sonhou também, às
vezes, com a sua perseguição e com a sua fuga. Tinha pesadelos
terríveis que lhe sufocavam o coração, como por exemplo este: fugia
pela floresta, com os perseguidores nos calcanhares, com tambores
e trompas, e através de bosques e pântanos, através de tufos de
espinhos, por pontes a desfazerem-se e podres, levava um objeto,
um fardo, um embrulho, uma coisa embrulhada, velada,
desconhecida; sabia apenas que era uma coisa preciosa e que não
podia em caso nenhum largar esse objeto valioso que se encontrava
em perigo, um tesouro roubado talvez, amarrotado por baixo dum
pano, dum vestido colorido com um padrão castanho-avermelhado e
azul, como o do vestido de festa de Pravati; carregado com esta
bagagem, furto ou tesouro, fugia, furtivo, por entre os perigos e os
trabalhos, dobrado em dois pelos ramos baixos e os rochedos,
roçando serpentes, transpondo em passadeiras duma estreiteza
vertiginosa rios cheios de crocodilos, para parar por fim, sem fôlego,
esgotado, levar a mão aos nós que atavam o embrulho, desfazê-los
um a um e desdobrar o pano: o tesouro que de lá tirava, que tinha
nas suas mãos trementes, era a sua própria cabeça.
Viveu escondido, como um nómada, não fugindo já dos homens,
antes os evitando. E um dia, o seu caminhar fê-lo atravessar uma
região de vales, rica de pastagens, que lhe pareceu bela e sedutora.
Esta pareceu acolhê-lo como se ele a conhecesse: ora era uma
paisagem de prados com ervas em flor que ondulavam suavemente,
ora um tufo de salgueiros que reconheceu e que lhe lembrou a
época serena e inocente em que ainda ignorava tudo do amor e do
ciúme, do ódio e da vingança. Eram as pastagens onde outrora, com
os seus camaradas, guardara o rebanho. Essa tinha sido a época
mais alegre da sua juventude, chamava-o das profundezas
longínquas do passado sem regresso. Uma tristeza doce respondia
no seu coração a essas vozes que o saudavam, à rabanada de vento
nas folhas prateadas e móveis do salgueiro, à canção alegre e rápida
dos regatos, ao canto das aves e ao surdo zumbir de ouro dos
zângãos. Eram esses os tons, os odores dum lugar de asilo, dum lar.
Nunca, habituado como estava à vida errante dos pastores, se
sentira preso e enraizado assim a uma região.
Acompanhado e guiado por estas vozes na sua alma, animado por
sentimentos de homem que regressa ao redil, atravessou esta região
acolhedora, sem, pela primeira vez desde há meses horríveis, se
sentir estranho, perseguido, fugitivo e condenado à morte, mas de
coração alerta, sem pensamento nem desejo, todo entregue à
presença e à proximidade desta serenidade tranquila, recetivo, cheio
de gratidão, um pouco admirado consigo próprio e com aquele
estado de espírito novo, insólito, que conhecia pela primeira vez e
com encantamento, com uma disponibilidade que nada desejava,
com uma serenidade sem limitações, com um gozo contemplativo,
atento e grato. Qualquer coisa fê-lo atravessar os verdes prados até
à floresta e o levou por baixo das árvores, para a penumbra
semeada de pequenas manchas de sol, e, aí, a impressão de estar
de regresso, de se encontrar no seu país, tornou-se mais forte. Esta
impressão conduziu-o por caminhos que os seus pés pareciam
encontrar por eles próprios: depois de ter atravessado uma selva de
fetos, uma floresta em miniatura, espessa, no meio dos grandes
bosques, chegou finalmente a uma cabana minúscula, à frente da
qual estava sentado um yogin imóvel que outrora já espiara e a
quem já tinha trazido leite.
Dasa parou, foi como um despertar. Aqui tudo se encontrava no
mesmo estado como outrora, o tempo não tinha passado, não tinha
havido nem assassínio nem sofrimento. Parecia que o tempo aqui e
a vida ganhavam uma firmeza de cristal, num apaziguamento de
eternidade. Contemplou o velho e o seu coração voltou a conhecer a
admiração, o amor e a nostalgia que sentira outrora, da primeira vez
que o vira. Examinou a sua cabana e pensou para consigo que era
necessário repará-la antes do início da estação das chuvas. Depois
arriscou-se a dar alguns passos prudentes, penetrou na cabana e viu
o que continha; não era grande coisa, quase nada: uma esteira de
folhas, uma meia cabaça, com um pouco de água, e um saco de
fibras vazio. Pegou no saco e levou-o consigo, procurou comida na
floresta, trouxe frutos e medula doce de árvores, depois saiu com a
cabaça e encheu-a de água fresca. Fez o que podia ser feito naquele
lugar. Mais não era preciso para um homem viver. Dasa acocorou-se
no chão e mergulhou no sonho. Estava satisfeito por descansar sem
falar e por sonhar assim na floresta; estava contente consigo mesmo
e com a voz íntima que o levara a regressar àqueles lugares onde
outrora sentira, na sua adolescência, uma espécie de paz, de
felicidade, e encontrara uma pátria.
Ficou por conseguinte junto daquele homem que não falava.
Renovava-lhe a esteira de folhas, ia buscar alimentos para os dois,
depois consertou-lhe a velha cabana e começou a construir uma
segunda para si, a alguma distância. O velho parecia tolerá-lo, mas
não era possível saber ao certo se o tinha sequer visto. Não saía da
sua contemplação a não ser para ir dormir na cabana, engolir
alguma coisa ou dar alguns passos na floresta. Dasa fazia ao lado do
venerável eremita a vida dum criado junto dum grande da terra, ou
antes, a dum pequeno animal doméstico, uma ave domesticada, ou,
por exemplo, a que um mangusto conhece no meio dos homens; era
prestável e quase não chamava à atenção. Vivera muito tempo como
um fugitivo, escondendo-se, na insegurança e com má consciência,
sempre à espera de ser perseguido. Por isso esta vida tranquila, este
trabalho pouco fatigante, fizeram-lhe um grande bem durante algum
tempo, bem como a proximidade dum ser que parecia não lhe
prestar nenhuma atenção. Dormia sem sonhos de angústia,
acontecia-lhe, durante parte do dia ou até dias inteiros, esquecer o
que tinha sucedido. Já não pensava no futuro e, se uma saudade ou
um desejo o animavam, era o de ficar ali, de ser admitido e iniciado
pelo yogin no segredo da vida de eremita, tornar-se yogin, partilhar
daquele estado e da sua orgulhosa indiferença. Começara por imitar
com frequência a atitude do venerável solitário, por ficar sentado
como ele, imóvel, com as pernas cruzadas, fixando como ele os
olhos num mundo desconhecido e suprarreal e tornando-se
insensível ao que o rodeava. A maior parte dessas vezes cansara-se
depressa; sentia os membros rígidos e tinha dores nas costas; os
moscardos atormentavam-no ou então sentia sensações epidérmicas
esquisitas, era assaltado por comichões e pruridos que o obrigavam
a mexer-se, a coçar-se e, por fim, a levantar-se. Mas doutras vezes
conseguira sentir qualquer coisa diferente, um vazio progressivo,
uma leveza, um sentimento de pairar, como às vezes acontece por
exemplo em certos sonhos, em que tocamos apenas ao de leve na
terra e só de longe a longe, em que nos destacamos suavemente
para voltar a flutuar logo a seguir como um floco de lã. Nesses
momentos tinha uma presciência do que devia ser a sensação de
pairar assim continuamente, de ver o seu próprio corpo, a sua alma,
libertar-se do seu peso e vibrar com o sopro duma vida maior, mais
pura e mais radiosa, ser elevados e aspirados por um além, fora do
tempo e das metamorfoses. Mas isso tinham sido só uns instantes e
uma presciência. E quando voltava a cair, desiludido, de instantes
como esses, na sua vida habitual, pensava que tinha de fazer com
que o mestre se tornasse seu professor, o iniciasse nos seus
exercícios e no segredo das suas práticas, fizesse dele também um
yogin. Mas como? Não parecia que o velho viesse a distingui-lo um
dia com um olhar, nem que pudessem jamais ser trocadas palavras
entre ambos. Assim como ele vivia para lá do dia e do agora, da
floresta e da sua cabana, o velho parecia viver também para lá da
palavra.
E no entanto, um dia, disse uma palavra. Veio então um período
em que Dasa recomeçou a fazer todas as noites sonhos, muitas
vezes duma suavidade perturbante, e muitas vezes dum horror
perturbante; revia quer a sua mulher Pravati, quer os terrores da
sua vida de fugitivo. E durante o dia não fazia nenhum progresso,
não suportava estar muito tempo sentado a exercitar-se, não podia
impedir-se de pensar nas mulheres e no amor, e errava muito pela
floresta. A culpa era talvez do tempo; os dias eram pesados, com
ventanias escaldantes. Ora veio novamente um desses dias maus em
que os mosquitos assobiavam aos ouvidos; Dasa tinha tido durante
a noite mais um pesadelo que o deixara ansioso e abatido. Já não se
lembrava do seu conteúdo, mas, agora que estava acordado,
parecia-lhe que tinha sido uma recaída lastimosa, para dizer a
verdade, inadmissível e profundamente humilhante, em estados e
fases da vida anteriores. Passou todo o dia a andar dum lado para o
outro ou acocorado, sombrio e inquieto, entretendo-se com um
trabalho ou com outro, sentando-se muitas vezes para se entregar
ao recolhimento, mas logo a seguir, de cada vez, uma agitação febril
apoderava-se dele, os seus membros crispavam-se, tinha
formigueiros nas pernas, uma ardência na nuca, quase não era
capaz de ficar um momento tranquilo e lançava olhares receosos e
envergonhados ao velho que estava acocorado numa posição
perfeita e cujo rosto, de olhos voltados para dentro, pairava na
calma inabordável da serenidade como a corola duma flor.
Nesse dia, quando o yogin se ergueu e se voltou para a cabana,
Dasa, que estava à espera deste momento há muito, barrou-lhe o
caminho e interpelou-o com a coragem da angústia: – Venerável
eremita – disse –, perdoa-me ter violado o teu repouso. Procuro a
paz, procuro a calma, gostaria de viver como tu, ser como tu. Olha,
ainda sou jovem, mas tive já de aprender o gosto de muitas dores, o
destino brincou comigo um jogo cruel. O meu nascimento destinava-
me a ser um soberano e fui escorraçado para junto dos pastores.
Tornei-me pastor, cresci, alegre e forte como um touro novo, com a
inocência no coração. Depois, os meus olhos descobriram as
mulheres e, quando vi a mais bela, pus a minha vida aos seus pés;
morreria se não a tivesse possuído. Abandonei os meus
companheiros, os pastores, pedi a mão de Pravati. Deram-ma e
tornei-me um genro, um criado; tinha de trabalhar duramente, mas
Pravati era minha e amava-me, ou pelo menos eu assim o julgava.
Todas as noites tomava-me nos seus braços, eu descansava sobre o
seu coração. Mas de repente o rajá veio à região, aquele por causa
de quem eu tinha sido outrora exilado, quando era criança. Veio e
tirou-me Pravati. Obriguei-me a vê-la nos braços dele. Foi a maior
dor que alguma vez senti, transformou-me, transformou a minha
vida. Ataquei o rajá, matei-o e fiz uma vida de criminoso perseguido;
toda a gente veio atrás de mim, nem um só instante, antes de
chegar aqui, a minha vida esteve em segurança. Sou um insensato,
respeitável eremita, sou um assassino. Talvez ainda me prendam e
me esquartejem. Já não posso suportar esta existência terrível,
gostaria de ser libertado dela.
O yogin ouvira esta explosão de palavras tranquilamente, de olhos
baixos. Abriu-os então e fixou o seu olhar no rosto de Dasa. Era um
olhar claro, penetrante, duma firmeza quase insustentável,
concentrado e luminoso. Examinou a figura de Dasa, refletiu sobre
aquela narrativa precipitada e a sua boca crispou-se lentamente num
sorriso que se abriu; abanou a cabeça rindo-se silenciosamente e
disse, hílare: – Maya! Maya!
Confuso e envergonhado, Dasa ficou imóvel, o outro afastou-se
para o estreito carreiro por entre os fetos, antes de tomar a sua
refeição; ia dum lado para o outro, com um passo compassado,
ritmado. Depois de ter percorrido uma centena de passos, voltou,
entrou na sua cabana. Mais uma vez, como sempre, os seus olhos
estavam voltados para outro sítio que não o mundo fenomenal. Que
significava então o riso com que aquele rosto duma impassibilidade
sempre igual respondera ao pobre Dasa? Isto foi para ele matéria de
longa reflexão. Tinha sido compassivo ou sardónico aquele riso
horrível no momento das confissões desesperadas e das súplicas de
Dasa, era uma consolação ou uma condenação, divino ou
demoníaco? Era simplesmente a gargalhada cínica da velhice que já
não é capaz de levar mais nada a sério, ou o divertimento dum
homem de sabedoria com o espetáculo da loucura dos outros? Era
uma maneira de dizer não? Ou, então, era um conselho, um convite
a imitá-lo e a partilhar da sua hilaridade? Não conseguiu resolver
este enigma. Altas horas da noite, ainda refletia naquela gargalhada
que, para aquele homem velho, parecia resumir a sua vida, a sua
felicidade e a sua miséria. Ruminava em pensamento e meditava e
esforçava-se por compreender aquela palavra que o velho gritara
com uma voz tão clara, que clamara, rindo-se com tamanha
jovialidade e divertimento incompreensível: Maya! Maya! Sabia mais
ou menos e semipressentia o significado da palavra, e a própria
maneira como o velho a gritara na sua hilaridade deixavam entrever
um sentido. A maya era a vida de Dasa, a sua juventude, a doçura
da sua felicidade e a amargura da sua miséria, a maya era a bela
Pravati, era o amor e os seus prazeres, a maya era a vida inteira. A
de Dasa, a de todos os humanos, tudo aos olhos daquele yogin era
a maya, uma espécie de infantilidade, um espetáculo, um teatro,
uma imaginação, um nada coberto de pele estragada, uma bola de
sabão, uma coisa de que podíamos rir-nos com um certo prazer e ao
mesmo tempo desprezar, mas nunca levar a sério.
Mas se, para os olhos do velho yogin, este riso e a palavra maya
bastavam para esgotar e encerrar o capítulo da vida de Dasa, o
mesmo não era para este. Tanto lhe fazia desejar ser um yogin
hílare e apenas ver na sua vida a maya depois daqueles dias e
daquelas noites de inquietação, tudo o que parecia ter quase
esquecido aqui, neste asilo, acordava e revivia dentro de si. A
esperança de aprender verdadeiramente alguma vez a arte do yoga
e, com mais forte razão, de conseguir igualar nela o velho, parecia-
lhe muito ténue. Mas, nesse caso, que sentido tinha ainda a sua
estada nesta floresta? Tinha ali encontrado um refúgio, retomado
um pouco de alento e juntado as suas forças, encontrado os seus
espíritos. Isso tinha também um preço, era já muito. E era possível
que, entretanto, lá em baixo, tivessem renunciado a perseguir o
assassino do rajá. Talvez pudesse continuar o seu caminho sem
grande perigo. Foi o que decidiu fazer. Partiria no dia seguinte. O
mundo era grande, não podia ficar aqui para sempre neste
esconderijo. Esta resolução deu-lhe alguma tranquilidade.
Tinha querido partir de manhã cedo, mas quando acordou, depois
dum longo sono, o Sol ia já alto e o yogin tinha começado o seu
exercício de concentração. Dasa não quis partir sem se despedir dele
e tinha ainda um pedido a fazer-lhe. Esperou então, hora a hora,
que aquele homem se pusesse de pé, se espreguiçasse e começasse
a desentorpecer as pernas. Atravessou-se-lhe então no caminho, fez
vénias e só acabou quando o yogin lhe lançou um olhar interrogador.
– Mestre – disse-lhe humildemente –, vou continuar o meu caminho,
não perturbarei mais o teu repouso. Mas promete-me mais uma vez,
sábio muito venerado, que te faça um pedido. Quando te contei a
minha vida riste-te e gritaste: Maya! Maya! Suplico-te, diz-me mais
sobre a maya.
O yogin dirigiu-se para a sua cabana e o seu olhar disse a Dasa
que o seguisse. O velho pegou na cabaça, estendeu-a a Dasa e
ordenou-lhe que lavasse as mãos. Dasa obedeceu. O mestre verteu
em seguida o resto da água nos fetos, estendeu ao jovem a cabaça
vazia e mandou-o buscar água fresca. Dasa obedeceu e correu. O
seu coração vibrava com a ideia da partida: era a última vez que
trilhava este carreirinho que levava à nascente, a última vez que
inclinava esta taça leve de bordos lisos e gastos para o estreito
espelho das águas onde se refletiam as imagens dos alfaiates, as
copas redondas e, numa miríade de pontos luminosos, o suave azul
do céu. Quando se debruçou para a fonte, o seu rosto refletiu-se lá
também, pela última vez, numa penumbra castanha. Mergulhou a
taça na água, sem compreender porque é que sentia uma impressão
tão singular, nem porque é que, já que estava decidido a ir-se
embora, o magoara que o velho não o convidasse a ficar, talvez para
sempre.
Ficou acocorado na beira da fonte, bebeu um gole de água,
ergueu-se prudentemente com a taça para não verter nada, e
preparava-se para fazer o caminho do regresso quando o seu ouvido
notou um som que o encantou e o aterrorizou. Era uma voz que
ouvira em muitos sonhos, com a qual tinha sonhado durante muitas
horas de vigília com a mais amarga das saudades. Os seus tons
eram suaves, suaves e infantis. Terna, atraía-o para a penumbra do
bosque e o seu coração tremeu de medo e prazer. Era a voz de
Pravati, a sua mulher. «Dasa», dizia ela, acariciante. Olhou à sua
volta, incrédulo, ainda com a taça nas mãos. E eis que surge entre
os troncos das árvores, esbelta, ágil nas suas pernas longas, Pravati,
a sua bem-amada, a inesquecível, a infiel. Deixou cair a taça e
correu ao seu encontro. Ela estava ali, à sua frente, a sorrir e um
pouco confusa, ergueu para ele os seus grandes olhos de corça.
Uma vez junto dela, viu que tinha nos pés sandálias de couro
vermelho e no corpo panos muito belos e muito ricos, no braço uma
bracelete de ouro e nos cabelos negros pedras coloridas, cintilantes
e preciosas. Recuou, fremente. Ela tinha-se tornado então uma
cortesã real? Não matara ele aquele Nala? Ela ainda trazia os
presentes dele? Como podia apresentar-se-lhe e chamá-lo pelo
nome, usando aquelas braceletes e aquelas pedras?
Mas ela estava mais bela do que nunca e, antes de conseguir
pedir-lhe uma explicação, não pôde impedir-se de a estreitar nos
braços, de mergulhar a testa nos cabelos de Pravati, de voltar o
rosto dela para o seu e beijar a sua boca, e, ao fazê-lo, sentiu que
tudo voltava para ele e era de novo seu, tudo o que alguma vez
possuíra, a felicidade, o amor, a volúpia, a alegria de viver, a paixão.
Os seus pensamentos estavam já longe daquela floresta e do velho
eremita; aqueles bosques, aquele eremitério, as meditações e o
yoga tinham-se já transformado em nada e caído no esquecimento.
Não pensou mais na cabaça de água, que devia ter levado ao velho.
Ela ficou ao lado da fonte quando se dirigiu com Pravati para a orla
da floresta. E precipitadamente ela começou a contar-lhe como tinha
vindo até ali e como tudo se havia passado.
Era espantoso o que ela contava, espantoso, encantador e
fabuloso. Dasa penetrava na sua nova vida como num conto de
fadas. Não apenas Pravati lhe pertencia outra vez, não apenas
aquele Nala que odiava estava morto e a perseguição do seu
assassino abandonada há muito, mas, ainda por cima, fora Dasa,
antigo filho de rei tornado pastor, que tinha sido proclamado na
cidade herdeiro e soberano legítimo. Um velho pastor e um brâmane
idoso tinham lembrado a história quase esquecida do seu abandono
e tinham-na posto em todas as bocas. E esse mesmo homem que,
durante algum tempo, tinham procurado por todo o lado como
assassino de Nala, para o supliciar e executar, era agora procurado
em todo o país mais ativamente ainda, para ser sagrado rajá e fazer
uma entrada solene na cidade e no palácio do seu pai. Era como um
sonho e o que lhe deu mais prazer na sua surpresa foi aquele
encantador acaso que quisera que, de todos os mensageiros
enviados, tivesse sido precisamente Pravati a descobri-lo e a
primeira a saudá-lo. Na orla da floresta encontrou tendas montadas,
no meio dum cheiro de fumo e de caça. Pravati foi saudada com
grandes gritos e um cerimonial imponente começou a desenrolar-se
logo que ela fez reconhecer Dasa, o seu esposo. Havia ali um
homem que tinha sido camarada de Dasa no tempo dos pastores e
fora ele quem trouxera Pravati e o seu séquito aqui, a um dos locais
onde ele outrora vivera. Este homem riu de prazer ao reconhecer
Dasa, correu ao seu encontro, e teria sem dúvida gostado de lhe
bater amistosamente no ombro ou de o apertar nos braços, mas
agora o seu camarada era rajá. Parou em plena corrida, como que
paralisado, em seguida continuou num passo mais lento,
respeitosamente, e saudou-o com uma profunda vénia. Dasa fê-lo
erguer-se, abraçou-o, chamou-o ternamente pelo nome e
perguntou-lhe que presente lhe poderia oferecer. O pastor desejou
uma vitela: prometeram-lhe três, do melhor estábulo real. Não
acabavam de ser apresentadas personalidades ao novo soberano,
funcionários, monteiros-mores, brâmanes da corte, e recebeu as
homenagens deles. Foi servido um festim e houve um concerto de
tambores, guitarras e flautas em que se soprava pelo nariz. Todo
este cerimonial e esta pompa eram para Dasa como que um sonho.
Não conseguia acreditar verdadeiramente naquilo. Para ele não
houve, em primeiro lugar, outro real a não ser a sua jovem mulher,
que apertava nos braços.
Em etapas curtas, o cortejo aproximou-se da cidade. Tinham
enviado à frente corredores para espalhar a feliz notícia de que o
jovem rajá fora descoberto e ia fazer a sua entrada. E quando a
cidade ficou à vista, vibrava já toda com o som dos gongos e dos
tambores. Solenemente, o cortejo dos brâmanes veio ao seu
encontro, vestidos de branco, e à sua frente vinha o sucessor
daquele Vasudeva que, cerca de vinte anos antes, enviara Dasa para
os pastores e morrera recentemente. Saudaram-no, cantaram hinos
e, à frente do palácio aonde o conduziram, tinham acendido alguns
grandes fogos propiciatórios. Conduziram Dasa para a sua moradia,
e lá, ainda, recebeu, com novas saudações, homenagens, fórmulas
de bênção e boas-vindas. Lá fora, a cidade festejava alegremente
até ao cair da noite.
Instruído todos os dias por dois brâmanes, aprendeu em pouco
tempo a parte de ciências que parecia indispensável. Assistiu aos
sacrifícios, fez justiça e exercitou-se nas artes da cavalaria e da
guerra. O brâmane Gopala iniciou-o na política; expôs-lhe o que
eram a sua casa e os direitos desta, disse-lhe o que é que mais
tarde os seus filhos poderiam reivindicar e quais eram os seus
inimigos. À cabeça da lista vinha a mãe de Nala, que outrora
frustrara o príncipe Dasa dos seus direitos, ameaçara os seus dias e
que devia, agora, por acréscimo, odiar nele o assassino do seu filho.
Fugira e pedira proteção ao soberano vizinho, Govinda. Vivia no seu
palácio. Ora, este Govinda e a sua casa eram desde sempre inimigos
perigosos e tinham estado já em guerra contra os antepassados de
Dasa e mantinham pretensões sobre determinadas partes do seu
território. Pelo contrário, o seu vizinho do Sul, o rei Gaipali, fora
amigo do pai de Dasa e nunca pudera suportar o defunto Nala. Era
essencial fazer-lhe uma visita, dar-lhe presentes e convidá-lo para a
primeira caçada.
Pravati estava já perfeitamente habituada ao seu estado de dama
nobre, sabia tomar atitudes de soberana e, com os seus belos trajes,
com os seus enfeites, tinha um grande ar e não parecia de mais
baixa extração do que seu senhor e esposo. Viveram anos na
felicidade do amor, e essa felicidade conferia-lhes um certo brilho,
uma radiação como aos preferidos dos deuses, tanto que o seu povo
os respeitou e amou. E quando, após uma longa e vã espera, Pravati
deu à luz um belo rapaz, ao qual ele deu o nome do seu próprio pai,
Ravana, a sua felicidade atingiu o auge. Atribuiu, a partir desse
momento, um significado e uma importância duplas ao que possuía
em terras e poder, casas e estrebarias, leitarias, gado e cavalos; o
seu brilho e o seu preço foram elevados à sua frente. Ele achara
belo e agradável possuir aquilo tudo para com isso rodear Pravati,
vesti-la, enfeitá-la, prestar-lhe homenagem, e doravante ainda lhe
pareceu infinitamente mais belo, mais sedutor e mais importante
que isso fosse o património e a felicidade futuros do seu filho
Ravana.
Se Pravati tinha sobretudo prazer nas festas, no aparato, na
pompa e na opulência dos seus trajes, dos seus enfeites e nos seus
inúmeros criados, as joias preferidas de Dasa eram as que lhe
davam o seu jardim, onde mandara plantar flores e árvores raras e
preciosas, onde mantinha também papagaios e todo um conjunto de
aves de todas as cores. Tinha o hábito de todos os dias ir dar-lhes
de comer e divertir-se com eles. Por outro lado, a erudição atraía-o.
Aluno grato dos brâmanes, aprendeu uma quantidade de versículos
e provérbios, a arte de escrever e de ler; tinha o seu escriba
particular, perito na ciência de preparar, com folhas de palmeira,
rolos para manuscritos, e, nas mãos delicadas deste, uma pequena
biblioteca começou a ver o dia. Aqui, junto destes livros, numa
salinha preciosa, de paredes revestidas de madeiras de essências
raras, todas esculpidas com motivos ricos e personagens, em parte
douradas, que representavam a vida dos deuses, punha às vezes os
brâmanes a discutir entre eles. Esta elite de sábios e pensadores que
incluía o clero discutia assuntos sagrados, a criação do mundo e a
maya do grande Vixnu, os santos Vedas, a virtude dos sacrifícios e
do poder ainda maior da penitência, que pode permitir a um mortal
fazer tremer os deuses de medo. Os brâmanes que melhor tivessem
falado, discutido e argumentado recebiam presentes consideráveis.
Vários, como prémio duma discussão vitoriosa, levavam uma vaca
magnífica, e às vezes era algo ridículo e ao mesmo tempo
comovente ver aqueles grandes sábios, que acabavam de declamar
e explicar as fórmulas dos Vedas e que tinham provado o seu
conhecimento de todos os céus e de todos os mares do mundo,
retirarem-se, orgulhosos e inchados de importância, com os seus
presentes honoríficos ou às vezes discutirem ciumentamente sobre
eles.
De resto, o rei Dasa, no meio das suas riquezas, da sua felicidade,
do seu jardim, dos seus livros, era às vezes levado a achar que tudo
o que diz respeito à vida e à natureza humanas era bizarro e incerto,
ao mesmo tempo comovedor e ridículo, como aqueles brâmanes
vaidosamente sábios, ao mesmo tempo luminoso e tenebroso, digno
de desejo e de desprezo. Se o seu olhar se deleitava nas flores de
lótus que flutuavam nos lagos do seu jardim, nos brilhos
multicolores da plumagem dos seus pavões, dos seus faisões e dos
seus calaus, nas madeiras douradas e esculpidas do seu palácio, se
estes objetos lhe pareciam às vezes de essência quase divina, como
penetrados pelo ardor da vida eterna, outras vezes, ou até ao
mesmo tempo, achava-lhes algo de irreal, de equívoco, de
problemático, uma tendência para a precariedade, para a
desagregação, uma disposição a cair no informe, no caos. Tal como
ele, Dasa, tinha sido príncipe, tornara-se pastor e aviltara-se até se
tornar assassino e fora da lei para voltar novamente ao trono, sem
saber que potências o tinham guiado e trazido e sem que estivesse
seguro do dia de amanhã nem do seguinte, assim também o jogo
maya da vida encerrava em todo o lado nobreza e vilania, a
eternidade e a morte, a grandeza e o ridículo. E assim também a sua
bem-amada, a bela Pravati, tinha às vezes, por alguns instantes,
perdido o seu encanto aos seus olhos e lhe parecera ridícula: tinha
demasiados anéis nos braços, demasiado orgulho e soberba no
olhar, uma dignidade excessivamente afetada no andar.
Mais ainda que o seu jardim e os seus livros, era Ravana, o seu
filhinho, quem representava para ele a realização do seu amor e da
sua existência, que era o objeto da sua ternura e das suas
preocupações. Era uma bela criança frágil, um verdadeiro príncipe.
Tinha os olhos de corça da mãe e possuía do pai uma inclinação
para a reflexão e o sonho. Muitas vezes, quando este via esta
criança demorar-se muito no jardim à frente duma das suas árvores
decorativas ou, acocorada num tapete, mergulhar na contemplação
duma pedra, dum brinquedo de madeira ou duma pena, de
sobrancelhas ligeiramente erguidas, de olhos imóveis, com uma
fixidez um pouco ausente, parecia-lhe que este filho se lhe parecia
muito. Dasa reconheceu quanto o amava da primeira vez que teve
de o deixar sem saber por quanto tempo.
De facto, um dia um mensageiro foi-lhe enviado das regiões onde
o seu território confinava com o de Govinda, o seu vizinho, e
informara-o de que a gente deste fizera uma incursão no seu reino,
destruíra o gado e até fizera prisioneiras um certo número de
pessoas que tinham levado com eles. Dasa preparou-se sem esperar
mais, levara consigo o chefe da sua guarda pessoal, algumas
dezenas de cavalos e homens, e obrigara-se a perseguir os
bandidos. E, no momento da partida, quando pegara no seu filhinho
nos braços e o beijara, o seu coração incendiara-se numa labareda
de amor, como um sofrimento fulgurante. E esta dor de fogo cuja
violência o surpreendeu e o perturbou tanto como um aviso vindo de
esferas desconhecidas fizera também nascer nele, durante a sua
longa cavalgada, uma consciência e uma inteligência novas. Com
efeito, a cavalo, preocupou-se em saber por que razão estava na
sela, porque fazia andar a montada com tanta severidade e pressa,
e qual era ao certo a potência que o obrigava a este ato e a este
esforço. Na sua reflexão apercebeu-se de que, no fundo do seu
coração, não lhe parecia tão importante e
tão penoso que algures, na fronteira, lhe tivessem arrasado gado e
pessoas. Este roubo, este atentado aos seus direitos soberanos não
bastariam para inflamar a sua cólera e levarem-no a agir. Estaria
mais no seu carácter acolher a notícia desse roubo de gado com um
sorriso de pena. Mas sabia que desse modo teria sido cruelmente
injusto para com o mensageiro, que correra até ao limite das suas
forças para lhe trazer esta notícia, e para com as vítimas dos
ladrões, bem como os homens que tinham sido feitos prisioneiros,
levados, arrancados ao seu país e à sua vida pacífica para serem
deportados para o estrangeiro e reduzidos à escravidão. Cometera
igualmente uma injustiça para com todos os seus outros súbditos,
pelos quais ninguém havia erguido o dedo mínimo, se tivesse
renunciado a vingar-se pela guerra. Eles dificilmente o suportariam e
não compreenderiam que o seu soberano não defendesse melhor o
seu país, pois nenhum poderia contar com a sua vingança e com a
sua ajuda se um dia usassem de violência para com eles.
Compreendeu que era do seu dever levar a cabo esta expedição
punitiva. Mas que é o dever? Quantos deveres há que descuramos
muitas vezes sem que o nosso coração se sobressalte com isso!
Donde vinha então que este dever de vingança não fosse um dos
que lhe eram indiferentes, que lhe fosse impossível descurar, que
não o cumprisse simplesmente com descontração e meia convicção,
mas com ardor, com paixão? Mal esta pergunta se lhe pôs e o seu
coração lhe tinha já respondido, vibrando de repente com a mesma
dor que sentira ao despedir-se de Ravana, o principezinho. Se o
soberano deixava que lhe roubassem gado e súbditos sem opor
resistência, compreendia-o agora, o banditismo e os atos de
violência propagar-se-iam das fronteiras para o interior do país e, no
fim de contas, encontrar-se-ia face a face com o inimigo, e este
atingi-lo-ia no ponto em que ele era sensível à maior e mais amarga
das dores: na pessoa do seu filho! Roubar-lhe-iam o seu filho, o seu
sucessor, levá-lo-iam, matá-lo-iam, torturá-lo-iam talvez, e seria para
ele o sofrimento mais atroz que podia conhecer, pior, infinitamente
pior do que a própria morte de Pravati. E era por isso que cavalgava
com tanto ardor e era um soberano tão fiel aos seus deveres. Não
era a sensibilidade àquelas perdas de gado e de território, nem a
bondade para com os seus súbditos, nem o respeito ambicioso pelo
nome real do seu pai que o tornavam assim, era o seu amor
violento, doloroso, insensato, por aquela criança, e o temor
veemente e louco da dor que lhe causaria a sua perda.
Eis o que tinha compreendido durante aquela cavalgada. Não
conseguira de resto apanhar e castigar os homens de Govinda. Eles
haviam-lhe escapado com o seu saque e, para provar a firmeza da
sua vontade e da sua coragem, teve de violar ele próprio a fronteira,
causar prejuízos numa aldeia do seu vizinho, tirar-lhe algumas
cabeças de gado e escravos. Tinha estado ausente longos dias, mas,
ao regressar a cavalo, vitorioso, entregara-se outra vez a profundas
reflexões, e entrara em casa muito taciturno e de aspeto triste. Pois,
ao pensar nisso, dera-se conta de que toda a sua maneira de ser e
de agir o fizera cair e enredar-se, sem esperança de lhe escapar,
numa rede pérfida. Enquanto o seu gosto pelo pensamento, a sua
necessidade de contemplação tranquila, de vida inativa e inocente
não deixavam de aumentar e crescer, por outro lado, o seu amor por
Ravana, a angústia e as preocupações que lhe inspiravam a sua
pessoa, a sua vida e o seu futuro faziam crescer em igual medida
aquela obrigação de agir e de se prender na armadilha. A ternura
alimentava a disputa, o amor, a guerra. Tinha já, se bem que
unicamente para ser justo e à laia de castigo, roubado um rebanho,
feito morrer de medo uma aldeia e levado à força pobres inocentes.
E isso ia ser naturalmente a origem de vinganças e violências novas
e continuaria até que toda a sua vida e o seu país inteiro já só
fossem apenas guerra, violências e entrechocar de armas. Era esta
ideia ou esta visão que lhe tinham dado um ar taciturno e tão triste
no caminho do regresso.
E efetivamente o seu vizinho inimigo não lhe deu descanso. As
suas incursões e as suas razias renovaram-se. Dasa teve de
empreender expedições para o castigar e defender-se e, quando o
adversário se furtou, teve de tolerar que os seus soldados e os seus
caçadores infligissem novos prejuízos ao vizinho. Na sua capital
foram vistos, cada vez mais, homens a cavalo e em armas. Em
muitas aldeias da fronteira havia agora uma guarda militar
permanente. Reuniões e preparativos belicosos perturbaram os seus
dias. Dasa não conseguia compreender que sentido e que utilidade
esta guerrazinha perpétua podia ter; sofria com os sofrimentos das
suas vítimas, com a morte de inocentes; lamentava o seu jardim e
os seus livros, que era obrigado a descurar cada vez mais;
lamentava a paz dos seus dias e do seu coração. Falava disto com
frequência a Gopala, o brâmane, e algumas vezes também com sua
esposa, Pravati. Seria necessário, dizia, obter que um dos soberanos
vizinhos mais em vista fosse chamado a arbitrar o conflito e
restabelecer a paz; pelo seu lado, aceitaria de bom grado prestar-se
a isso, por exemplo por meio de concessões e cedendo pastagens e
algumas aldeias. Ficou desiludido e um pouco descontente ao ver
que nem o brâmane nem Pravati queriam ouvi-lo falar disso.
A divergência sobre este ponto levou-o a discutir violentamente
com Pravati e mesmo a zangar-se com ela. Pressionando-a, expôs-
lhe as suas razões e as suas ideias, mas Pravati tinha a impressão de
que cada um dos seus discursos visava não a guerra e matanças
inúteis, mas unicamente a sua pessoa. Num discurso inflamado e
prolixo, demonstrou a Dasa que a intenção do inimigo era
precisamente tirar partido da sua bondade de alma e do seu amor
pela paz (para não dizer do seu medo da guerra). Ele levá-lo-ia a
concluir pazes sucessivas e a pagar cada uma com pequenas
cedências de território e de população e, no fim, longe de se achar
satisfeito, viria às hostilidades declaradas, logo que Dasa estivesse
suficientemente enfraquecido, e tirar-lhe-ia ainda as suas últimas
possessões. O que estava em causa não eram rebanhos e aldeias,
vantagens e desvantagens, era tudo, a existência ou a aniquilação. E
se Dasa ignorava o que devia à sua dignidade, ao seu filho e à sua
mulher, ter-lhe-ia ela de lho ensinar. Os seus olhos lançavam raios, a
sua voz quebrava-se, havia muito que não a via tão bela e tão
apaixonada, mas isso deu-lhe apenas tristeza.
Entretanto, as violações da fronteira e os atentados à paz
prosseguiam. Só a monção lhe pôs termo provisoriamente. Mas na
corte de Dasa havia doravante dois partidos. Um, o da paz, era
minúsculo. Excetuando Dasa, compreendia apenas um pequeno
número de brâmanes mais idosos, sábios perdidos nas suas
meditações. Pelo contrário, o partido da guerra, de Pravati e de
Gopala, tinha por si a maioria dos sacerdotes e todos os oficiais.
Armavam-se com ardor e sabia-se que do outro lado o vizinho fazia
o mesmo. O monteiro-mor ensinava ao pequeno Ravana a atirar com
o arco, e a sua mãe levava-o a todas as revistas militares.
Às vezes, durante este período, Dasa lembrava-se da floresta onde
vivera algum tempo, pobre fugitivo, e recordava-se do velho de
cabelos brancos que lá vivia como eremita contemplativo. Pensava
nele e sentia necessidade de ir vê-lo, ouvir os seus conselhos. Mas
ignorava se o velho ainda era vivo, se o ouviria e o aconselharia. E
mesmo que ainda fosse vivo e lhe desse um conselho, nada se
alteraria, ninguém poderia mudar fosse o que fosse. A contemplação
e a sabedoria tinham o seu valor e a sua nobreza, mas parecia
resultar apenas à margem, ao lado da vida, e quando se nadava na
corrente da vida, quando se lutava contra as suas vagas, os nossos
atos e os nossos sofrimentos nada tinham a ver com a sabedoria,
produziam-se por si mesmos; era uma fatalidade, havia que agir e
sofrer. Os deuses tão-pouco viviam numa paz e numa sabedoria
eterna, também eles conheciam o perigo e o medo, o combate e a
batalha, sabia-o através de inúmeras narrativas. Dasa resignou-se
por conseguinte, não discutiu mais com Pravati, foi às revistas a
cavalo, viu vir a guerra, pressentiu-a nos sonhos esgotantes das
suas noites e, ao mesmo tempo que o seu vulto se tornava mais
magro e o seu rosto mais escuro, viu a felicidade e a alegria da sua
vida empalidecerem. Restou-lhe apenas o amor pelo filho; ele
cresceu com as suas preocupações, com os armamentos e as
manobras das tropas, flor vermelha inflamada no seu jardim que se
tornava deserto. Admirou-se que as pessoas pudessem suportar
tanto vazio e tanta vida sem alegria, habituar-se a tantas
preocupações e descontentamentos, e admirou-se também de que,
num coração que parecia ter perdido a sua paixão, um amor feito de
angústia e de preocupações como aquele pudesse desabrochar com
tanta chama e autoridade. A sua vida talvez não tivesse nenhum
sentido, mas ainda possuía um coração e um centro, tinha o amor
do seu filho. Por ele se levantava da cama de manhã e passava o dia
em ocupações e trabalhos cujo objetivo era a guerra e que, todos,
lhe eram odiosos. Por ele presidia pacientemente às reuniões dos
chefes e a sua oposição às decisões da maioria limitava-se a obter
que ao menos temporizassem e não se lançassem de cabeça baixa
na aventura.
Assim como a alegria da sua vida, o seu jardim e os seus livros se
lhe tornavam pouco a pouco estranhos, tinham-no traído, a não ser
que tivesse sido ele, assim aquela que fora tantos anos de felicidade
e prazer na sua existência se lhe tornara distante e infiel. Aquilo
começara pela política, no dia em que Pravati lhe fizera aquele
discurso apaixonado em que tratava quase abertamente como
cobardia o seu temor do pecado e o seu amor pela paz e em que, de
faces coradas, lhe falara em termos inflamados da sua honra de
príncipe, de heroísmo e dos vexames sofridos; nesse dia sentira
subitamente e vira com consternação, com um sentimento de
vertigem, até que ponto a sua mulher se havia afastado de si, ou ele
dela. E depois disso o fosso que os separava tinha-se alargado e não
parava de alargar, sem que nenhum deles fizesse nada para o
impedir. Melhor teria sido o papel de Dasa fazer alguma coisa nesse
sentido, pois não havia, na realidade, mais ninguém senão ele que
visse esse fosso e, na sua imaginação, ele tornava-se cada vez mais
a fenda simbólica, o abismo cósmico que separa o homem da
mulher, o sim do não, a alma do corpo. Quando pensava no
passado, julgava ver tudo com uma clareza perfeita: compreendia
como Pravati, com a sua beleza enfeitiçante, o tinha enamorado
outrora, como brincara com ele, até ele se separar dos seus
camaradas, os seus amigos, os pastores, e deixasse a vida de pastor,
até ali tão serena, para viver por amor dela em casa de estranhos,
como criado, como genro, na casa de gente sem bondade, que se
aproveitava do seu amor para o fazer trabalhar para eles. Depois
fora a aparição daquele Nala e a sua infelicidade tinha começado.
Nala apoderara-se da sua mulher; aquele belo rajá cheio de
ademanes, tendas, cavalos e criados seduzira aquela pobre mulher
pouco habituada a esses esplendores; não deve ter-lhe custado
muito. Mas seduzi-la-ia assim tão facilmente se, no fundo do
coração, ela tivesse sido fiel e honesta? O rajá seduzira-a por
conseguinte ou simplesmente tomara-a e infligira a Dasa a dor mais
horrível que teve de sofrer até àquele dia. Mas conseguira a sua
vingança, matara o homem que lhe roubara a sua felicidade, e isso
tinha sido um instante de grande triunfo. Logo que esse ato se
consumou fora obrigado a fugir. Durante dias, semanas, meses,
vivera na selva e nos juncos, como fora da lei, não se fiando em
ninguém. E que fizera Pravati durante esse tempo? Nunca se falara
muito disso entre ambos: ela não fugira para ir ter com ele, não o
havia procurado e encontrado senão no momento em que fora
proclamado príncipe devido ao seu nascimento, pois que ela
necessitava dele para subir ao trono e instalar-se no palácio. Fora
então que ela se mostrara; tinha-o tirado à sua floresta e à
vizinhança do venerável eremita; haviam-no vestido com belas
roupas e feito rajá e tudo isso fora apenas aparato e felicidade
fúteis. Mas, na realidade, que abandonara então e recebera em
troca? Recebera a pompa e os deveres dum príncipe. Estes, ao
princípio, tinham sido leves, e depois tornaram-se cada vez mais
pesados. Ganhara o reencontro com a sua bela esposa, passar com
ela doces horas de amor e depois ter um filho, amá-lo e ver crescer
as preocupações que lhe inspiravam a vida dele e a sua felicidade
ameaçadas. E agora a guerra estava às portas da cidade. Eis o que
Pravati lhe trouxera quando o descobriu então na floresta junto à
fonte. Ora, que tinha ele deixado e abandonado em troca? Deixara a
paz dos bosques, uma piedosa solidão, abandonara a vizinhança e o
exemplo dum santo yogin, a esperança de ser seu discípulo e seu
sucessor, de conhecer o repouso espiritual profundo, radiante e
inquebrantável do sábio, tinha renunciado a ser libertado das lutas e
das paixões da vida. Seduzido pela beleza de Pravati, envolvido por
essa mulher e vencido pela sua ambição, deixara a única via que dá
a liberdade e a paz. Era deste modo que lhe aparecia agora a
história da sua vida e de facto era bastante cómodo interpretá-la
assim, bastavam bem poucos retoques e omissões para a ver sob
este aspeto. Ele esquecera-se, entre outras coisas, de que ainda não
era sequer discípulo daquele eremita e estivera a ponto de o
abandonar voluntariamente. As coisas modificam-se facilmente
quando são recordadas.
Pravati via tudo com uns olhos completamente diferentes, se bem
que se entregasse muito menos que o seu esposo a semelhantes
pensamentos. Não pensava, nem só por um momento, no famoso
Nala. Em contrapartida, se as suas recordações eram exatas, fora ela
a única que estivera na origem da felicidade de Dasa e que a
provocara, fora ela que tinha feito de novo dele um rajá, que lhe
dera um filho, que o submergira de amor e felicidade, para dar
conta, afinal, de que ele não estava à sua altura nem digno era dos
seus soberbos planos. Tornava-se claro para ela que a guerra
iminente só podia levar ao aniquilamento de Govinda e ao aumento
do seu poder e das suas possessões. Em vez de se alegrar e
colaborar com todo o seu ardor, Dasa era demasiadamente pouco
príncipe, parecia-lhe, a guerra e a conquista repugnavam-lhe e teria
preferido viver na inação, ao lado das suas flores, das suas árvores,
dos seus papagaios e dos seus livros. Vishvamitra, o chefe supremo
da cavalaria, era um homem completamente diferente: a seguir a
ela, era o partidário e o propagandista mais ardente da guerra e da
vitória próximas. Qualquer comparação entre ambos só podia dar-
lhe vantagem a ele.
Dasa via bem até que ponto a sua mulher estava tomada de
amizade por aquele Vishvamitra quando ela o admirava e se fazia
admirar por esse oficial alegre e corajoso, um pouco superficial
talvez e mediocremente inteligente, de riso enérgico, de belos
dentes fortes e barba tratada. Via-o com amargura, ao mesmo
tempo que com desprezo, com uma indiferença altiva que fingia
perante si mesmo. Não o espiou e não quis saber se a amizade
desses dois seres se detinha ou não nos limites do lícito e da
decência. Observava a inclinação de Pravati pelo belo cavaleiro, os
gestos com que ela lhe marcava a sua preferência sobre aquele
marido demasiado pouco heroico, com a impassibilidade, na
aparência indiferente, mas no fundo plena de amargura, com que se
habituara a considerar tudo o que lhe acontecia. A sua esposa
parecia decidida a cometer para com ele uma infidelidade e uma
traição, ou era apenas uma maneira de exprimir o seu desdém pela
mentalidade de Dasa? Pouco importava, o facto era esse, aquela
intriga desenvolvia-se, crescia, levantava-se contra ele, como a
guerra e a fatalidade; não havia remédio para isso, nem outra
atitude a tomar além da aceitação, da resignação impassível: pois
era assim e não com ataques e conquistas que se manifestava a
virilidade e o heroísmo de Dasa.
Que a admiração de Pravati pelo capitão de cavalaria ou a
admiração deste por ela respeitassem ou não os limites decentes e
permitidos, em todo o caso Pravati, compreendia-o ele, era menos
culpada do que ele próprio. Claro, Dasa, como pensador cético que
era, tendia mais do que naturalmente a culpá-la pelo
desaparecimento da sua felicidade, ou pelo menos a dar-lhe
parcialmente a culpa de todas as armadilhas em que caíra e onde se
prendera: o amor, a ambição, os seus atos de vingança e de
banditismo. Em pensamento ia até ao ponto de tornar a mulher, o
amor e a volúpia culpados de tudo na terra, de toda esta dança, de
toda esta caça às paixões e à cupidez, do adultério, da morte, do
assassínio, da guerra. Mas também sabia com igual força que Pravati
não era culpada, que ela não era uma causa mas uma vítima, que
não tinha sido ela quem fizera a sua beleza nem o amor que ele
tivera por ela; ela não podia ser responsabilizada, era apenas um
grão de pó num raio de sol, uma vaga no rio. Cabia-lhe, só a si,
manter-se afastado dessa mulher e do seu amor, da sua fome de
felicidade e da sua ambição, quer para ficar pastor satisfeito entre os
pastores, quer para superar as suas insuficiências por meio dos
processos ocultos do yoga. Não o fizera, falhara, não sentia a
vocação da grandeza ou não lhe permanecera fiel; e a sua mulher
tinha razão, no fundo, para ver nele um cobarde. Em contrapartida,
fora ela quem lhe dera aquele filho, aquele belo rapaz frágil, que lhe
inspirava tantas inquietações e cuja presença era, em suma, o que
ainda conferia à sua vida um sentido e um valor; aí se misturava
uma grande felicidade com angústia e dor, é verdade, mas apesar de
tudo uma felicidade, a sua felicidade. Pagava-a com esta dor e esta
amargura do coração, com esta espera da guerra e da morte, com a
consciência de ir ao encontro duma fatalidade. Lá, no seu país, o
rajá Govinda reinava, aconselhado e excitado pela mãe daquele Nala
que ele tinha morto, desse corruptor de triste memória. As incursões
e as provocações de Govinda tornavam-se continuamente cada vez
mais frequentes e mais insolentes. Só uma aliança com o poderoso
rajá de Gaipali poderia dar a Dasa a força de exigir a paz e tratados
de boa vizinhança. Mas este rajá, se se relacionava bem com Dasa,
era parente de Govinda e furtara-se, com a mais extrema das
cortesias, a todas as tentativas feitas para o trazer a este tipo de
aliança. Não havia escapatória possível, nada se podia esperar da
razão, nem da humanidade; a hora fatal aproximava-se e havia que
a sofrer. Dasa chegou mesmo quase a aspirar pela guerra, pela
explosão das fúrias acumuladas e por uma aceleração dos
acontecimentos que já não era verdadeiramente capaz de evitar. Fez
ainda outra visita ao soberano de Gaipali e trocou em vão
amabilidades com ele; no conselho, insistiu no sentido da moderação
e da paciência, mas há muito que o fazia sem esperança; de resto,
armava-se. No conselho, as opiniões já só se afrontavam sobre o
ponto de se saber se responderiam à próxima incursão do inimigo
com a invasão do seu território e com a guerra, ou se esperariam
pela sua ofensiva principal para que, apesar de tudo, ele continuasse
aos olhos do povo e do mundo como culpado e autor da guerra.
O inimigo, que pouco se preocupava com estes problemas, pôs
um fim a estas reflexões, a estas deliberações, a estas hesitações.
Um dia atacou. Simulou uma bastante grande operação de
banditismo, que atraiu de urgência Dasa, com o capitão da sua
cavalaria e as suas melhores tropas, à fronteira, e, enquanto eles
iam a caminho, invadiu o país com o grosso das suas forças,
penetrou imediatamente na cidade, forçou as portas e cercou o
palácio. Quando Dasa soube fez meia volta sem mais delongas,
sabia que a sua mulher e o seu filho estavam cercados naquele
palácio ameaçado, sabia que combates sangrentos se travavam nas
ruelas, e o seu coração apertou-se de cólera e de sofrimento ao
pensar nos seus e nos perigos com que se debatiam. Deixou de ser
um comandante reticente e prudente. A dor e a raiva inflamaram-no,
lançou-se com a sua gente no caminho de regresso, numa
precipitação feroz; em todas as ruas chocou com o fluxo e o refluxo
da batalha, abriu à espada um caminho até ao palácio, enfrentou o
inimigo e bateu-se com fúria, para se ir abaixo, esgotado, no
crepúsculo desse dia sangrento, com diversos ferimentos.
Quando recuperou os sentidos, estava prisioneiro. A batalha fora
perdida, a cidade e o palácio estavam nas mãos do inimigo. Foi
conduzido, preso, perante Govinda, que o saudou ironicamente e o
levou para um apartamento. Era aquele cujas paredes eram de
madeira esculpida e dourada e que continha os rolos de
manuscritos. Aí, num dos tapetes, muito direita, com um rosto de
pedra, a sua mulher Pravati estava sentada, com guardas em armas
atrás dela. O seu filho encontrava-se estendido nos joelhos dela. O
seu corpo frágil jazia como uma flor cortada, morto, de rosto
cinzento, a roupa empapada de sangue. A mulher não se voltou
quando fizeram entrar o seu marido. Não olhou para ele, olhava
fixamente para o pequeno cadáver com um olhar sem expressão.
Pareceu a Dasa estranhamente transformada. Precisou de algum
tempo para notar que os seus cabelos, que ainda alguns dias antes
vira dum negro profundo, tinham por todo o lado reflexos grisalhos.
Devia estar assim sentada há muito tempo, com o filho nos joelhos,
petrificada, o rosto como uma máscara.
– Ravana! – exclamou Dasa. – Ravana, meu filho, Ravana, minha
florzinha! – Ajoelhou-se, a sua face tocou a cabeça do morto; como
um homem em oração, ficou ajoelhado à frente da sua mulher muda
e à frente do seu filho, chorando-os aos dois e prestando-lhes
homenagem. Sentiu o cheiro do sangue e da morte misturado com a
loção de flores com que tinham ungido a cabeça do seu filho. Com
uma expressão gelada Pravati fixava-os um e outro.
Alguém lhe tocou no ombro, era um dos capitães de Govinda;
ordenou-lhe que se erguesse e levou-o dali. Dasa não dissera uma
palavra a Pravati, ela não lhe dissera nenhuma também.
Deitaram-no amarrado numa carroça e levaram-no para a cidade
de Govinda, para um calabouço. Aí desfizeram uma parte das suas
amarras, um soldado trouxe-lhe uma bilha de água que pousou no
chão lajeado; deixaram-no sozinho, a porta foi fechada à chave e
trancada. Um ferimento que tinha no ombro ardia-lhe como fogo.
Procurou às apalpadelas a bilha e humedeceu as mãos e o rosto.
Gostaria de beber mas renunciou pensando que assim morreria mais
depressa. Quanto tempo ainda duraria, quanto tempo? Desejava a
morte como a sua garganta ressequida desejava a água. Só a morte
poria fim ao suplício do seu coração, só ela apagaria em si a imagem
daquela mãe carregando o filho defunto. Mas no meio de todos
aqueles tormentos a fadiga e a fraqueza tiveram piedade dele, deu
de si e adormeceu.
Quando uma fraca claridade veio pousar novamente sobre ele
depois deste curto sono, quis esfregar os olhos, atordoado, mas não
pôde fazê-lo; as suas mãos estavam já ocupadas, seguravam
qualquer coisa e, quando despertou completamente e abriu os
olhos, não tinha muros da cela à sua volta; pelo contrário, uma luz
verde escorria, límpida e forte, sobre as folhas e o musgo. Ficou
durante muito tempo com as pálpebras a piscar. Esta luz atingiu-o
como uma pancada silenciosa mas violenta. Um arrepio de horror,
uma crispação de medo percorreram-no da cabeça aos pés. Piscou
mais os olhos, fez esgares como se choramingasse e abriu-os
completamente. Encontrava-se numa floresta e segurava com as
duas mãos uma taça cheia de água; aos seus pés a bacia duma
fonte ganhava reflexos castanhos e verdes. Soube que ali, por trás
daquele tufo de fetos, estava a cabana e que o yogin que o mandara
buscar água o esperava, aquele que tivera aquele riso estranho e a
quem pedira que lhe desse a saber um pouco o que era a maya. Não
tinha perdido nem batalha, nem filho, não tinha sido nem príncipe,
nem pai. Mas o yogin tinha sem dúvida satisfeito o seu desejo e
dera-lhe uma lição sobre a maya: o palácio e o jardim, a biblioteca e
as aves presas, as preocupações e o ciúme, o amor por Pravati e a
violenta desconfiança que ela lhe inspirara, tudo isso era apenas
nada – não, não era o nada, tinha sido a maya! Dasa ergueu-se,
perturbado, lágrimas correram-lhe pelas faces, nas suas mãos a taça
que acabava de encher para o eremita tremeu e vacilou, a água
transbordou e caiu-lhe em cima dos pés. Tinha a impressão de que
lhe haviam amputado um membro, que lhe tinham retirado qualquer
coisa da cabeça, havia um vazio dentro de si; de repente, longos
anos de vida, o que conservara de tesouros, o que saboreara de
alegrias, o que aguentara de sofrimentos, o que conhecera de
angústias e saboreara de desespero até ao limiar da morte era-lhe
retirado, apagado, reduzido a nada – e no entanto não, pois a
lembrança estava ali, as imagens tinham ficado consigo; via ainda
Pravati sentada, grande e petrificada, com os cabelos de repente
grisalhos, o filho de ambos jazendo nos joelhos dela como se ela o
tivesse sufocado com as mãos, estendido ao comprido como uma
presa, e os membros pendentes, amarrotados, mais baixos que os
joelhos da mãe. Oh! como fora rapidamente informado sobre a
maya, por que método expeditivo e atroz, cruel e exaustivo! Para ele
tudo tinha sido condensado: anos numerosos, ricos de
acontecimentos, tinham-se reduzido à medida dum instante. Tudo o
que, um momento antes, lhe parecia uma realidade poderosa, tinha-
o sonhado. Talvez tivesse também sonhado todos os outros
acontecimentos anteriores, as histórias de Dasa, filho dum rei, a vida
de pastor, o casamento, a vingança sobre Nala, o refúgio junto do
eremita. Isso eram imagens, como se podem admirar nas madeiras
esculpidas dum palácio, onde as flores, as estrelas, as aves, os
macacos e os deuses se mostram entre as folhas. E o que vivia
agora precisamente, o que tinha à frente dos olhos, era o despertar
do seu sonho de príncipe, de guerra e de calabouço, aquela
paragem junto à fonte, aquela escudela de água de que acabava de
verter algumas gotas, e também os pensamentos que formava neste
momento, será que tudo isso, no fundo, não seria feito da mesma
coisa, não era um sonho, um engano, a maya? E o que viveria a
seguir, o que veria com os olhos e apalparia com as mãos, até que
um dia a morte viesse, era feito duma coisa diferente, duma
natureza diferente? Isso eram apenas simulacros e aparências,
fantasias e mentiras. Era a maya, todo esse jogo de imagens da
vida, com as suas belezas e as suas atrocidades, as suas seduções e
o seu desespero, as suas ardentes delícias e as suas dores
ardentes.
Dasa ficou como que atordoado, paralisado. Novamente a taça
vacilou entre as suas mãos e a água verteu-se; saltitou fresca sobre
os dedos dos seus pés e perdeu-se. Que era preciso fazer? Encher
novamente a taça, levá-la ao yogin, vê-lo rir-se de tudo o que tinha
aguentado no seu sonho? Isso não era nada sedutor. Deixou-a cair
outra vez, esvaziou-a e lançou-a para o meio do musgo. Sentou-se
na erva e começou a refletir seriamente. Estava ultrapassado,
descoroçoado por esta fantasia, por aquela trama demoníaca de
emoções, alegrias e dores, que lhe apertavam o coração, paravam o
sangue e que, de repente, eram só a maya e o deixavam
mistificado; estava farto disso, já não desejava nem mulher, nem
filho, nem trono, nem vitória, nem vingança, nem felicidade, nem
inteligência, nem poder, nem virtude. Apenas desejava o repouso, o
fim, já não desejava senão parar a rotação eterna daquela roda,
aquela revista interminável de imagens e suprimi-las. Desejava pôr-
se a si mesmo em repouso e aniquilar-se como o desejara na sua
última batalha quando se lançara sobre o inimigo distribuindo
espadeiradas à volta e aguentando outras, abrindo feridas e
recebendo-as, até ter sucumbido. Mas e depois? A isso sucedia a
trégua dum desmaio, dum sono ou duma morte. E logo a seguir
voltava a acordar, era preciso abrir novamente o coração às
torrentes da vida, e os olhos àquele temível, àquele belo e atroz
fluxo de imagens, sem fim, inelutavelmente, até ao próximo desmaio
e à morte seguinte. Esta era talvez uma pausa, uma trégua breve,
ínfima, o tempo de recuperar fôlego, mas em seguida tudo
continuava, e novamente éramos uma das mil figuras da dança
feroz, bêbeda e desesperada da vida. Ah! A aniquilação não existia,
aquilo não tinha fim.
A agitação fê-lo levantar-se. Uma vez que esta ronda maldita não
conhecia repouso, uma vez que o seu único e nostálgico desejo não
podia ser satisfeito, tanto fazia encher mais uma vez esta taça e
levá-la àquele velho homem, que o mandara por ela, se bem que,
para dizer a verdade, ele não tivesse de lhe dar ordens. Era uma
tarefa que tinham exigido de si, era uma missão: podia-se obedecer
e executá-la. Isso era melhor do que ficar sentado e dar cabo da
cabeça para saber com que método se matar. De resto, era bem
mais fácil e mais preferível obedecer e servir, era muito mais
inocente e mais salutar do que reinar e ter responsabilidades, sabia-
o. Está bem, Dasa, pega então nessa cabaça, enche-a gentilmente
de água e vai levá-la ao teu mestre!
Quando chegou à cabana, o mestre recebeu-o com um olhar
singular, um pouco interrogador, meio apiedado, meio divertido, o
dum espírito que sabe, aquele que pode ter um rapaz já grande por
um mais novo que vê regressar duma aventura penosa e um pouco
humilhante, duma prova imposta à sua coragem. Este príncipe-
pastor, este pobre diabo que tinha corrido para junto dele, voltava
apenas da fonte, é verdade. Fora buscar água e demorara-se apenas
um quarto de hora. Mas não saía menos dum calabouço, tinha
perdido uma mulher, um filho e um reino, percorrera o ciclo duma
vida humana e vira a roda que roda. Claro, este homem conhecera
provavelmente já uma vez, ou várias anteriormente, um despertar e
respirara um gole de realidade, senão não teria vindo para aqui e
não ficaria aqui tanto tempo. Mas agora parecia verdadeiramente
acordado e maduro para iniciar o longo caminho. Seriam precisos
anos para inculcar convenientemente neste jovem ser nem que fosse
só a arte da contenção e de respirar.
Foi apenas por este olhar, que continha um vestígio de simpatia
compassiva e uma alusão à relação que se criara entre eles, entre o
mestre e o aluno, que o yogin aceitou este discípulo. Este olhar
expulsou os pensamentos inúteis da cabeça do aluno e marcou a
sua entrada nesta disciplina e neste serviço. Nada mais há a dizer
sobre a vida de Dasa; o resto passou-se para lá das imagens e das
histórias. Ele não voltou a sair da floresta.
Table of Contents
Ficha Técnica
O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO
Introdução à Sua História num Estudo ao Alcance de Todos
BIOGRAFIA DO MAGISTER LUDI JOSEF KNECHT
A VOCAÇÃO
WALDZELL
OS ANOS DE ESTUDO
AS DUAS ORDENS
A MISSÃO
MAGISTER LUDI
EM FUNÇÕES
OS DOIS POLOS
UM DIÁLOGO
PREPARATIVOS
A CIRCULAR
A LENDA
ESCRITOS PÓSTUMOS DE JOSEF KNECHT
OS POEMAS DO ALUNO E DO ESTUDANTE
OS TRÊS CURRICULA
O fazedor de chuva
O confessor
O curriculum indiano