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Estado e Governacao Governação

: Dimensões teórica e conceptual As discussões políticas e filosóficas sobre teorias e prática


do estado e governacao a, inicialmente desenvolvidas no ocidente, remontam aos tempos
clássicos e foram primeiramente abor- dadas por autores como Hobbes, Locke, Hegel e mais
tarde Weber. Embora estes autores tenham desenvolvido as suas reflexões em contextos
políticos, económicos e sociais dia- crónicos, as suas análises têm um aspecto comum quando
vêem o Estado como o reino moral, onde reside um conjunto de valores éticos e uma
autoridade política credível. Decorrente desta visão, aqueles autores conceberam a teoria de
um bom Estado como o pré-requisito para uma boa governação. Tanto Hobbes, Locke, Hegel
como Weber viam a necessidade de melhoramento das condições de vida das comunidades,
gestão da estabilidade política, segurança e harmonia social como a condição essencial para
uma boa governação.
O papel do Estado na edificação dos pilares da boa governação tem recebido diferentes
interpretações, cuja variação depende de elementos estruturais e conjunturais em que tais
acepções são produzidas e desenvolvidas. Sobre esta variação, alguns estudiosos e cien- tistas
políticos situaram os estados africanos na intersecção entre a moral cristã, muçul- mana e das
religiões locais, as quais inspiram diferentes práticas, prioridades, agendas e princípios éticos
através dos quais deve ser avaliada a acção governativa. Torres (1996) ao analisar a política
internacional em certos países, mostra que em África o progresso de construção do
Estado deve ser visto no quadro de um longo processo estrutural que o continente transpôs ao
longo da sua história. Como Torres, também Ricardo e Louteiro (1997) argumentam que a
natureza do colonialismo retardou o progresso político e económico nos países em
desenvolvimento e que estes não se podem desenvolver sem adoptar a condição da
dependência económica em relação aos países desenvolvidos.
Hyden (1999) distanciou-se daquela análise contextual e aprofundou com certa originali-
dade o debate sobre a estrutura política na qual assenta a acção governativa. Para o autor, a
estrutura governativa assenta sobre um quadro normativo criado para alcançar certos
objectivos sociais, económicos e políticos. As instituições governativas manifestam-se de
acordo com as regras básicas sobre as quais as decisões políticas são concebidas
implementadas. No contexto moçambicano, esta mudança é evidenciada através das re-
gras do jogo inicialmente apresentadas na Constituição da República aprovada em 1990
e mais tarde revistas em 2004, pelos consequentes arranjos institucionais que foram
sendo sistematicamente adoptados no contexto da redefinição do Estado.
Sobre este debate, vários autores da Ciência Política mostraram que as instituições
desempenham um papel determinante para a consolidação da boa governação e são a

condição indispensável para a existência de políticas viáveis e efectivas que desem-


penham um papel decisivo no funcionamento do sistema dominante e na consequente

consolidação da estabilidade política.


Banfield (1958) e Tocqueville (1987) compararam diferentes contextos de evolução das
instituições e procuraram entender por que alguns governos democráticos conseguem
ter desempenho satisfatório e outros não e em que medida as instituições dependem do
contexto social, económico e cultural. Assim como Banfield (1958), Tocqueville (1987)

também Putnam (1996) desenvolveu uma reflexão sobre o que se pode fazer para aper-
feiçoar as instituições democráticas no sentido de assegurarem o bem-estar das comu-
nidades. Sobre este assunto, os autores aprofundaram uma reflexão e mostraram que o

sucesso das políticas públicas e dos programas de governação depende dos mecanismos

adoptados para que estes estejam em estreita correlação com as complexidades constitu-
cionais e institucionais, descritos como valores culturais, normas, princípios, estilos de

cada grupo populacional ou sistema político nacional ou internacional.

Por uma questão de hipótese de trabalho, Bobbio (1986) sugere que as bases para a edifi-
cação dos pilares da boa governação assentam nos limites derivados do reconhecimento

constitucional. Ao desenvolver esta reflexão, Bobbio traz para o debate as noções de


confiança e responsabilidade, sobre as quais as instituições devem erguer-se, e conclui
que quanto mais a gestão do sistema político for caracterizada por qualidades associadas
a responsabilização e confiança, mais assegurada estará a autoridade e legitimidade do
processo governativo.

Hyden operacionalizou o conceito confiança que as instituições devem procurar con-


quistar e entendeu-a como sendo o consenso normativo sobre os limites da acção gover-
nativa dentro de um sistema político. De acordo com esta compreensão, num processo

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governativo, a confiança é avaliada pelo índice ou predisposição dos indivíduos para

aceitarem ou resistirem às normas ou regras do jogo. Os níveis de liberdade que os in-


divíduos têm para formarem associações e defenderem os seus interesses, participando

activamente na esfera governativa, a predisposição dos indivíduos para aumentarem as


receitas públicas do Estado, a percentagem de participação nos actos eleitorais ou os

níveis de abstenção política, a esperança dos cidadãos de verem os seus problemas re-
solvidos dentro do sistema da justiça formal ou informal são, entre outros indicadores,

operacionalizados para medir a magnitude da confiança nos actos e instituições gover-


nativas.

A abordagem do conceito confiança desenvolvida por Bobbio e mais tarde por Hyden
não é tão revolucionária como pode transparecer. Locke, teórico do contrato social, usou
o conceito legitimidade para referir-se à ideia de confiança estudada por Hyden e viu que
o público dava obediência e legitimidade aos líderes em troca do exercício efectivo da
governação. Ademais, de acordo com Locke, se os líderes revelassem incapacidade nos

seus actos, o público retiraria a sua lealdade e deixaria de obedecer. Na literatura soci-
ológica, Weber anunciou três tipos de autoridade: carismática, tradicional e legal. Para
cada uma destas autoridades, a base de confiança depende de diferentes factores1 entre
os quais a devoção, profissionalismo e outros. Embora, em termos teóricos, o conceito de
legitimidade tenha sido inicialmente abordado na Sociologia, é na Ciência Política que
foi mais desenvolvido e aprofundado.
1 - De acordo com Weber, a dominação carismática repousa na crença de santidade, heroísmo
ou exemplaridade de uma pessoa e nas ordenações por ela criadas ou reveladas. Weber usou a
palavra devoção para designar a atitude dos seguidores do dominador carismático. Em termos
reais, este tipo de dominação ajusta-se à figura de grandes líderes religiosos, sociais ou
políticos
e de grandes condutores de multidões ou de adeptos. A dominação tradicional repousa sobre
a

crença quotidiana da santidade das tradições que vigoram desde os tempos distantes e na
legit-
imidade daqueles que são indicados por essa tradição para exercerem a autoridade. No caso
de

autoridade tradicional, a obediência é devida à pessoa do senhor indicado pela tradição e a ela
vinculado, dentro do círculo dos costumes: dominação e obediência na família, nos feudos, na

tribo e em certos tipos de relações tradicionais. Nos sistemas em que vigora a dominação
tradi-
cional, as pessoas têm autoridade não por causa das suas qualidades intrínsecas, como
acontece

nos sistemas carismáticos, mas por causa da herança ou das instituições ou tradição que
repre-
sentam. Finalmente, a dominação de carácter racional repousa sobre a crença na legalidade de

ordenações instituídas racionalmente e dos direitos de mando das pessoas a quem essas
ordena-
ções responsabilizam pelo exercício da autoridade. A autoridade é, portanto, a contrapartida
da
responsabilidade. No caso da autoridade legal, a obediência é devida às ordenações
impessoais
e objectivas, legalmente instituídas, e às pessoas por elas designadas, que agem dentro de
uma
jurisdição. A autoridade racional fundamenta-se em leis que estabelecem direitos e deveres
para
os integrantes de uma sociedade ou organização. Por isso, a autoridade que Weber chama de
racional é sinónimo de autoridade formal. Uma sociedade, organização ou grupo que depende
de leis racionais tem estrutura do tipo legal-racional ou burocrática. Depois de descrever os
três
tipos puros de autoridade, Weber analisou as características da dominação racional ou então
as

chamadas características da burocracia. Assim, de acordo com Weber, existem três


característi-
cas básicas de uma organização burocrática: Formalidade, Impessoalidade e
Profissionalismo.

Feita a análise detalhada destes elementos, Weber concluiu que a organização burocrática é a
forma mais racional de exercer a dominação. A burocracia possibilita o exercício de
autoridade
e obediência com precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiança.
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Abrahamsson (1998), depois de mostrar que o conceito de legitimidade aparece muitas

vezes ligado à ideia de legalidade, fez uma distinção entre eles. Segundo o autor, os ac-
tos legais aparecem prescritos em conformidade com os procedimentos constitucionais,

enquanto o que é legítimo é reconhecido pelos grupos políticos, económicos, sociais e


culturais. Contudo, nem sempre os elementos ou princípios legais são legitimados pelas
comunidades e podem existir alguns aspectos legítimos na comunidade que, por sinal,
não estão prescritos no preceituado legal ou constitucional de um país, comunidade ou
grupo populacional.
No epicentro do pensamento que estamos apresentando, podemos desconstruir a noção

de reciprocidade, entendida como uma das variáveis do conceito governação, e daí aferi-
la como sendo os níveis de interacção social entre os diferentes actores políticos e sociais

que fazem parte de uma estrutura política. A confiança e a reciprocidade são condições

através das quais as regras de prestação de contas e accountability são aceites por to-
dos os intervenientes. A responsabilidade dos actores individuais e colectivos é avaliada

através dos mecanismos pelos quais os agentes e instituições devem ver as suas acções

apreciadas monitoradas e ser por elas responsabilizados civil, financeira e disciplinar-


mente.

Estes princípios consolidados no limiar da década de 80, fizeram parte do debate políti-
co-filosófico e sustentaram o edifício que suporta os princípios da boa governação, ao

mesmo tempo entraram na agenda das instituições internacionais da dimensão e ex-


periência das Nações Unidas e instituições financeiras como o Banco Mundial e Fundo

Monetário Internacional. Assim como o Banco e o Fundo Monetário Internacional, as


Nações Unidas reconhecem que o conceito de governação é bastante amplo, e a sua
definição varia de acordo com o campo de análise institucional.
Neste novo contexto, em 1992, experts e policy-makers do Banco Mundial definiram o
conceito de governação dentro de uma perspectiva economicista, entendendo-o como
sendo um dos mecanismos através dos quais é feita a gestão dos recursos públicos.

Definido nesta dimensão, a boa governação tem como objectivo influenciar o desen-
volvimento e o crescimento económico. De acordo com o Banco, a consolidação dos
pilares da boa governação é compensada pelo aleitamento de instituições e regras que
assegurem o desenvolvimento da capacidade humana e institucional através da melhoria
da qualidade do sector público, accountability e transparência no processo de tomada de
decisões de interesse mais geral.

Em 1995, no âmbito da sua intervenção, as Nações Unidas identificaram várias categori-


as do conceito de governação e sistematizaram-nas em três principais dimensões e vários

indicadores: a) a natureza do regime político (presidencialista, semi-presidencialista,


parlamentar, monopartidário, multipartidário, social ou liberal); b) o processo através do
qual a autoridade é exercida na gestão dos recursos políticos e económicos (centralizado,
descentralizado, burocrático) e c) a capacidade de os governos formularem políticas e
implementá-las de forma efectiva (transparente, consultivo, participativo). Mais tarde,
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em 1997, as Nações Unidas integraram no conceito de governação, as noções de partici-


pação da sociedade civil nos assuntos de interesse público e de respeito pelas regras do

jogo democrático.
Embora exista uma variedade de categorias do conceito de governação (governação
política, governação económica, governação centralizada, governação descentralizada,

governação corporativa empresarial), de dimensões (tipo de regime, dinâmica das in-


stituições públicas, níveis de corrupção) e de indicadores (abertura na gestão da coisa

pública), existe uma percepção quase consensual de que o processo de governação im-
plica a existência de instituições eficazes que respeitem princípios universais tais como:
participação, accountability, transparência e descentralização. Estes princípios, embora

debatidos nos níveis institucionais, têm indicadores específicos que podem ser mensura-
dos através de um processo de monitoria da governação.

A título de exemplo, num processo governativo, a média da participação pode ser aval-
iada através dos seguintes mecanismos existentes nas instituições que garantem uma

efectiva representação dos interesses dos cidadãos:

a) Existência de fóruns apropriados para recolha de informação e das diversas sensi-


bilidades dos cidadãos; b) Definição de mecanismos pelos quais as preocupações dos

cidadãos são encaminhadas a quem de direito; c) Retro-alimentação do processo gov-


ernativo ou mecanismos pelos quais os governados recebem de volta os resultados da

acção governativa; d) Avaliação sistemática do sentimento dos cidadãos sobre as de-


cisões públicas e outros.

Accountability no processo governativo pode ser mensurado através de: e) Existência


e aplicação dos mecanismos de prestação de contas; f) Controlo interno e externo dos
gastos e das actividades desenvolvidas no processo de governação e outros.
Através de um processo de monitoria da governação, a transparência pública é avaliada

através de: g) Definição dos níveis de abertura das instituições aos cidadãos; h) Mecan-
ismos estruturados para prestação de contas aos cidadãos; i) Espaços para promoção de

debates públicos; j) Processo de planificação (quer em grupos restritos, quer em grupos


alargados) e execução, acompanhado de um controlo interno e externo.
Para avaliar os níveis de descentralização, podem ser mensurados os seguintes aspectos:
k) Os níveis de burocratização nas instituições; l) Autonomia financeira nos diferentes
níveis institucionais; m) Interacção entre os diferentes níveis (micro, meso e macro) de
capacitação e outros.
O debate sobre este assunto é inesgotável. No mundo contemporâneo, onde assistimos

e acompanhamos um rápido desenvolvimento da tecnologia e da produção de conhec-


imento científico, torna-se impossível esvaziar por completo todos os elementos que

estão sendo engendrados à volta deste assunto. Por isso, apresentamos neste capítulo
alguns elementos do eixo estrutural da reflexão desenvolvida à volta do debate teórico
sobre a acção governativa.

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