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CLIMA

CERRADO
AMEAÇADO
Com 45,6% de sua vegetação original alterada,
o bioma está se tornando mais quente,
seco e propenso a grandes queimadas

Ricardo Zorzetto

FABIO COLOMBINI

52 | NOVEMBRO DE 2021
O
Cerrado, o segundo bioma bra- (UnB), especialista em conservação e uso susten-
sileiro mais extenso e um dos tável desse ecossistema.
mais ricos em diversidade de Nos últimos 36 anos, o Cerrado perdeu qua-
plantas e animais, encontra-se se 20% do que restava de sua vegetação original.
ameaçado. A rápida eliminação De 1985 a 2020, cerca de 26,5 milhões de hecta-
da vegetação nativa – que neste res contendo os três principais tipos de formação
século ocorre ao ritmo de 0,5% de sua área ao ano, nativa (campos, savanas e florestas) deram lugar
duas vezes superior ao observado na Amazônia – a novas áreas de criação de gado e produção em
e a posterior conversão dessas terras em vastas larga escala das principais commodities agrícolas
pastagens e plantações de soja, milho, algodão e brasileiras, segundo o mais recente relatório do
cana estão alterando a ecologia e o clima desse Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cober-
ecossistema de maneira que pode se tornar irre- tura da Terra no Brasil, o MapBiomas, divulgado
versível em algumas regiões. O Cerrado está hoje, em setembro deste ano. A área de campos, savanas
nos meses de estiagem, até 4 graus Celsius (oC) e florestas perdida nesse período equivale quase
mais quente do que nos anos 1960, além de mais ao território do Equador e é maior do que a de
seco. Em algumas regiões, também vem sofrendo outros 120 países.
queimadas mais intensas, duradouras e frequentes Com 2 milhões de quilômetros quadrados (km2),
do que algumas décadas antes. o correspondente a um quarto do território nacio-
Essas mudanças, que começam a ser registra- nal, o Cerrado originalmente ocupava toda a região
das em medições sistemáticas e observações em central do Brasil, do sul do Piauí e do Maranhão,
campo feitas por pesquisadores brasileiros, têm o no Nordeste, ao norte do Paraná, na região Sul.
potencial de afetar a sobrevivência da fauna e da Hoje, no entanto, apenas 54,4% dessa área con-
flora do Cerrado, levando a extinções locais, e de tinua coberta por vegetação nativa – e uma pro-
reduzir a disponibilidade de água, prejudicando porção bem menor (em torno de 20%) permanece
os 20 milhões de pessoas que vivem no bioma e inalterada. Com 45,6% de sua área convertida em
o agronegócio, que prosperou em suas terras nas plantações, pastagens, estradas, hidrelétricas e
últimas décadas. “O Cerrado já sofre hoje as con- cidades, o Cerrado é o segundo bioma brasileiro
sequências de mudanças que estão ocorrendo em mais alterado pela ação humana. Perde apenas
escala local, regional e global”, afirma a ecóloga para a Mata Atlântica, suprimida de quase 90%
Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília do território que ocupava.

Chuva se formando
sobre área de
Cerrado no Parque
Estadual do Jalapão

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O encolhimento
do Cerrado
Em 36 anos, o bioma perdeu
26,5 milhões de hectares de
vegetação nativa

1985 2020
FONTE MAPBIOMAS

Mudança da cobertura da terra


entre 1985 e 2020
Alguns efeitos associados a essa transformação
Proporção (em %) da área do Cerrado radical na paisagem e no uso do solo estão cada
por tipo de vegetação e uso do solo vez mais evidentes: o Cerrado está se tornando
mais quente, seco e, consequentemente, propenso
1985 2020 Desde 1985, a área a sofrer incêndios devastadores. Indícios da per-
da de umidade, do aquecimento e do crescimento
-7,3 Mha *
das formações
florestais diminuiu
(-20,6%) 20,6%, a das
do número de queimadas de grandes proporções
n Formação formações savânicas, foram apresentados nos últimos meses em estu-
18% 14,3% florestal
19,8% e a das dos conduzidos por equipes de pesquisadores de
formações não diferentes regiões do país.
florestais (campos)
18,6%; já a destinada
Em um artigo publicado em maio na revista
às pastagens Global Change Biology, o geógrafo Gabriel Ho-
-14,9 Mha aumentou 22,7% fmann, atualmente em seu segundo doutorado
(-19,8%) e à agricultura 460,7% na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
n Formação (UFRGS), quantificou o aumento da temperatura
37,7% 30,3% savânica
no Cerrado nos últimos 60 anos. Com colabora-
dores do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe), do Museu Nacional da Universidade
-4,5 Mha Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação
(-18,6%) Oswaldo Cruz (Fiocruz), Hoffmann avaliou os da-
n Formação
natural
dos de temperatura e umidade coletados de 1961 a
9,8% não florestal 2019 por 45 estações meteorológicas espalhadas
pelo bioma e os confrontou com medições por
satélites. Conclusão: na estação seca, a tempera-
tura média no Cerrado subiu de 2,2 oC a 4 oC e a
12,1%
+ 8,7 Mha umidade relativa do ar caiu 15%.
(+22,7%)
23,7% n Pastagem Uma possível explicação para o ressecamento é
a conversão da vegetação nativa em plantações e
pastagens. Em experimentos realizados em uma
área de Cerrado na região de Itirapina, interior
de São Paulo, a equipe do engenheiro especia-
19,3%
+ 21,6 Mha lista em recursos hídricos Edson Wendland, da
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

(+460,7%)
13,2% n Agricultura Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos,
verificou que em um ano uma área com arbustos
2,3% -4,1 Mha e árvores típicos da formação savânica lança 30%
(-22%)
n Mosaico de mais umidade na atmosfera do que outra com
agricultura
e pastagem
as mesmas dimensões coberta por cana ou pas-
9,3% 7,3%
to. “A substituição da vegetação de grande porte
n Outros FONTE MAPBIOMAS
* MILHÕES DE HECTARES por uma de menor estatura altera a circulação de

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água nos diferentes compartimentos do ambien- tos (glicose) por fotossíntese e liberar grande
te. Mais água penetra no solo e chega ao lençol quantidade de vapor-d’água na atmosfera por
freático, deixando a atmosfera menos úmida por evapotranspiração. Quando a vegetação nativa é
causa da menor transpiração das plantas. Ainda substituída por culturas que deixam a terra nua
não sabemos se esse efeito é local ou se pode gerar ou coberta de palha durante parte do ano (em
impacto em todo o ecossistema”, diz Wendland. geral na estação seca), a energia antes usada na
Nas seis décadas analisadas por Hofmann e fotossíntese e na evapotranspiração vai direto
colaboradores, houve mudanças importantes na para o solo, que aquece mais ao longo do dia e
paisagem e no padrão de uso do solo em boa parte aumenta a temperatura do ar perto da superfície.
do Cerrado. “O desmatamento, que inicialmen- “Se o efeito fosse decorrente exclusivamente das
te ocorria em áreas pequenas, para extração de mudanças climáticas, provocadas pelo aumento de
carvão ou o estabelecimento de pastagens para gases de efeito estufa na atmosfera, seria esperada
pecuária de subsistência, foi substituído pela der- uma elevação maior na temperatura noturna”,
rubada de extensos trechos de vegetação nativa, explica Hofmann. É que esses gases aprisionam o
que deram lugar a amplos pastos e grandes áreas calor que foi armazenado na superfície terrestre
de monocultura”, lembra o geógrafo gaúcho. de dia e liberado para atmosfera no fim da tarde,
Nesse período, o incremento maior ocorreu na reduzindo o resfriamento noturno.
temperatura máxima, registrada no início da tarde, No período analisado, os autores também no-
embora a mínima, aferida à noite, também tenha taram a tendência de a formação de orvalho se
apresentado um aumento importante. O aqueci- tornar mais difícil. Resultado da condensação do
mento foi mais evidente no mês vapor-d’água da atmosfera sobre superfície mais
de outubro, no fim da estação se- fria, o orvalho serve como fonte de água, em es-
ca e início da chuvosa. Com tem- pecial nos meses de seca, para plantas de raízes
Em 60 anos, peraturas da ordem de 33 oC, os curtas ou que crescem sobre pedras (por exem-
a temperatura média dias de outubro de 2019 foram,
em média, 4 graus mais quen-
plo, as do gênero Vellozia) ou apoiadas em outras
(bromélias, orquídeas e lianas). Essa água que se
do Cerrado subiu tes do que os do mesmo mês em condensa sobre a vegetação e o solo também é im-
1961. À noite, a temperatura mé- portante para insetos e outros animais de pequeno
de 2,2 oC a 4 oC dia ficou em torno dos 22 oC, até porte que se deslocam por distâncias muito curtas.
2,8 graus superior à de 60 anos “Muitas plantas do Cerrado parecem depender
na estação seca antes. Projeções realizadas pelo do orvalho. Se essa dificuldade de condensação da
e a umidade relativa grupo sugerem que o fenômeno
deve se agravar, com as tempera-
água se consolidar, o efeito pode ser desastroso
para parte da flora”, comenta o botânico Rafael
do ar diminuiu 15% turas diurna e noturna subindo Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas
mais 2 graus até 2050. (Unicamp), que investiga a influência do fogo e da
O aquecimento observado no disponibilidade de água sobre certas formações do
Cerrado é bem superior ao in- bioma. O impacto da redução do orvalho, segundo
cremento de 0,2 oC por década Hofmann, poderia afetar a biodiversidade em dife-
indicado há poucos anos pelas projeções do Pai- rentes escalas. “Ele pode prejudicar o crescimento
nel Intergovernamental sobre Mudanças Climá- e a reprodução dos indivíduos, eliminar certas po-
ticas (IPCC) para o hemisfério Sul. E segue um pulações e alterar a relação ecológica entre dife-
padrão que, na avaliação dos autores do estudo, rentes espécies”, conta o pesquisador da UFRGS.
aponta para a mudança na cobertura e no uso Em paralelo ao aumento da temperatura e à di-
do solo como causadora principal desse aqueci- minuição da umidade, o Cerrado enfrenta uma
mento. O tal padrão é marcado por incrementos alteração no padrão de queimadas. Nas duas últi-
na temperatura diurna (máxima) maiores do que mas décadas, as de pequeno porte diminuíram em
na noturna (mínima). número e frequência e aumentaram os incêndios,

P
que atingem áreas maiores, de modo mais intenso.
ara entender como os pesquisadores A partir de dados coletados por satélite, o grupo
concluíram que as mudanças climáti- coordenado pela meteorologista Renata Libonati,
cas não são o fator principal, é preci- da UFRJ, avaliou a frequência, intensidade, duração,
so lembrar como os ecossistemas do sazonalidade e extensão das queimadas no Cerra-
planeta consomem grande parte da do de 2001 a 2019 e sobrepôs essas informações ao
energia luminosa que recebem do Sol mapa das 19 regiões com características ecológicas
nos processos de fotossíntese e evapotranspira- distintas (ecorregiões) em que se divide o bioma.
ção. Ao longo do dia, a radiação solar atravessa a Dois terços das áreas queimadas a cada ano es-
atmosfera quase sem aquecê-la e banha a vegeta- tão em apenas cinco das 19 ecorregiões, indicam
ção. Uma parte importante dessa energia (25%) os pesquisadores em artigo publicado em outu-
é usada pelas plantas para sintetizar carboidra- bro no Journal of Environmental Management.

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As queimadas de maior intensidade, extensão e otimista de mudanças climáticas (com o aumento
frequência ocorrem na metade norte do Cerrado. de 1,7 oC na temperatura até a metade do século)
Lá estão quase 90% da vegetação nativa remanes- e outro pessimista (2 oC). Detalhados em um ar-
cente do bioma e, desde meados dos anos 1980, as tigo de 2020 na revista Science of the Total Envi-
principais frentes de expansão agrícola. ronment, os resultados indicam que em ambas as
As áreas mais afetadas são o centro-norte de situações a produção de soja e milho deve dimi-
Mato Grosso e o oeste do Maranhão, em uma zo- nuir no país, em especial no Matopiba, porque as
na de transição com a Amazônia muito alterada condições climáticas se tornarão desfavoráveis a
pela ação do homem e conhecida como Arco do essas culturas. Como resultado, parte delas deve
Desmatamento, e as ecorregiões localizadas no se deslocar para o Sudeste e o Sul.
Matopiba, formado pelo estado do Tocantins e Assim como as savanas da África e da Austrália,
parte do Maranhão, Piauí e Bahia. “A região sul o Cerrado é um ambiente moldado naturalmente
do Cerrado tem áreas agrícolas bem estabelecidas pelo fogo. Muitas das 12.699 espécies de plantas do
desde o século passado e remanescentes de vege- bioma apresentam características de resistência ao

FOTOS RAFAEL OLIVEIRA / UNICAMP


tação nativa muito fragmentados, o que dificulta fogo – sementes que germinam só após queima-
as queimadas de grande porte”, explica Libonati. das, troncos recobertos por cortiça grossa e frutos
No que diz respeito ao risco de incêndios, a si- com revestimento espesso – que teriam surgido
tuação no Matopiba pode ainda se agravar. Com 337 há cerca de 4 milhões de anos, simultaneamente
municípios espalhados por 73 milhões de hectares ao aparecimento de gramíneas, que, na estiagem,
(quase um terço do Cerrado), essa região é uma têm seus ramos e folhas dessecados e se tornam
importante produtora nacional de soja, milho e inflamáveis. Há indícios de que o fogo de origem
algodão. Nas últimas três décadas, seu clima vem natural ocorra nas savanas do planeta há milhões de
apresentando uma mudança importante, com po- anos. Fragmentos de carvão aprisionados em cama-
tencial impacto na agricultura e na vegetação nativa. das profundas de sedimento permitiram concluir,

A
ainda nos anos 1990, que há 12 mil anos queima-
nálises da equipe do climatologista das já ocorriam com certa frequência no Cerrado.
José Marengo, recém-submetidas Também há indícios de que, há pelo menos 4 mil
para publicação em uma revista anos, os grupos humanos que habitavam o bioma
científica, confirmam as tendên- usavam o fogo para alterar a paisagem.
cias observadas pelo grupo da “Muitas espécies de plantas do Cerrado são
UFRGS e indicam que o Mato- beneficiadas pelo fogo. Produzem mais flores e
piba está hoje 1,2 oC mais quente do que em 1981. sementes após uma queimada”, afirma a enge-
Segundo a projeção do grupo, a temperatura ali nheira florestal Giselda Durigan, pesquisadora do
deve seguir aumentando à taxa de 0,45 oC por dé- Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) de São
cada neste século. Além disso, houve um aumento Paulo, que investiga há quase três décadas estra-
no número de dias secos consecutivos e o retardo tégias de manejo e restauração do Cerrado. Sob
de quase um mês do início do período de chuvas. sua orientação, a bióloga Natashi Pilon comparou
“Essas alterações parecem decorrer de uma o florescimento e a produção de sementes de 47
mistura de efeitos do aquecimento global e da mu- espécies de plantas de duas áreas de Cerrado – uma
dança de uso do solo na região”, conta Marengo, queimada seis meses antes e outra que não pegou
coordenador de pesquisa do Centro Nacional de fogo. Segundo os resultados, publicados em 2018
Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais
(Cemaden), do Ministério de Ciência, Tecnolo-
gia e Inovações (MCTI), e coordenador-geral do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para
Mudanças Climáticas (INCT for Climate Change),
apoiado pela FAPESP. “O atraso das chuvas altera
o regime de abastecimento dos rios e aumenta o
risco de fogo”, afirma o climatologista.
Esse não é o único sinal de ameaça à agricultura
do Matopiba. Anos atrás, a engenheira ambiental
Marcia Zilli, hoje em estágio de pós-doutorado na Após uma queimada,
vegetação campestre
Universidade de Oxford, no Reino Unido, usou um floresce na Chapada
modelo computacional para avaliar o desempenho dos Veadeiros:
de 18 culturas agrícolas, cinco produtos florestais as ervas Bulbostylis
e sete pastoris nacionais até 2050. O modelo leva paradoxa (no alto)
e Lantana glaziovii
em consideração a competição por terra entre a (ao lado) e um campo
agricultura, a restauração da vegetação nativa e de Paepalanthus
a produção de energia renovável em um cenário chiquitensis

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na Plant Ecology & Diversity, 63% dos exempla- pelas equipes de Libonati e da ecóloga Isabel Sch-
res de plantas floresceram nas regiões queimadas, midt, da UnB. Elas e colaboradores acompanharam
diante de 19% no trecho não atingido pelo fogo. a evolução da dinâmica do fogo de 2003 a 2018 em
“O fogo induziu a floração em 79% das espécies duas áreas no Tocantins: a Terra Indígena Xerente
estudadas, incluindo 20 que só produziram flores e o Parque Indígena Araguaia – nas quais o ma-
após a queimada”, relata Durigan. nejo integrado do fogo foi implantado em 2015.

E
A adoção de queimadas em períodos específicos
specialistas dizem que o mosaico de reduziu a frequência, a dimensão e a intensidade
campos, savanas e matas caracterís- dos grandes incêndios, relataram em artigo publi-
tico do Cerrado é influenciado pe- cado em setembro na revista Fire.
las queimadas. O fogo iniciado pela “O Cerrado é o bioma que mais queima no Bra-
queda de raios no início do período sil. Em média, 6 milhões de hectares, o corres-
de chuvas – a região onde o Cerrado pondente a 3,3% da área total, pegam fogo a cada
predomina é uma das áreas de maior incidência ano”, afirma a geógrafa Ane Alencar, pesquisadora
de descargas elétricas no país – aparentemente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
tem menor intensidade e alcança uma extensão (Ipam) e coordenadora da equipe do MapBiomas
mais limitada, já que potencialmente é apagado que realiza as análises do Cerrado. Segundo os
pela precipitação. Essas queimadas de pequenas dados apresentados em setembro, 36% do bioma
proporções, também feitas de forma controlada pegou fogo ao menos uma vez nos últimos 36 anos.
pelo ser humano, consomem a biomassa morta Dessa área, 60% queimaram mais de uma vez e
acumulada e contribuem para manter o mosaico 15% mais de cinco vezes no período.
formado por manchas de vegetação O problema, como constatou o grupo de Libo-
aberta (campos) e savânica (com ár- nati, é a mudança no regime das queimadas. “O
vores em proporções variadas) que que se está observando não condiz com o regime
caracterizam o Cerrado. natural de fogo, que ocorre no início do período
Aliás, a predominância das paisa- chuvoso e tem intensidade e extensão baixas”,
gens abertas, que ocupam quase 40% afirma a bióloga Vânia Pivello, da USP, que estuda
do Cerrado, parece ser fundamental o efeito do fogo sobre o Cerrado. “O aumento da
para que esse bioma funcione como intensidade das queimadas e a redução do intervalo
um grande coletor de água. Sem a entre elas modificam a estrutura e a diversidade da
vegetação de maior porte, a água das vegetação”, diz. Há também indícios de que muitas
chuvas infiltra no solo e abastece o dessas queimadas sejam provocadas por ação hu-
lençol freático e os rios. “Esse é um mana (intencional ou acidental). Monitoramento
dos principais serviços ecossistêmi- por satélite realizado pelo Inpe desde 1998 mostra
cos que o Cerrado presta à socieda- que, em mais da metade desse período, foram re-
de”, afirma Durigan. gistrados mais de 60 mil pontos de queimada por
As queimadas controladas e de bai- ano no Cerrado. Em quase 90% dos casos, o fogo
xa intensidade também contribuem ocorreu na seca, quando há menos raios.
para evitar os grandes incêndios. O Com a diminuição das chuvas e o aumento da
efeito protetor dessa estratégia de frequência dos incêndios, o fogo passa a atin-
manejo da paisagem foi observado gir vegetações que, por serem mais úmidas, nor-
malmente não queimariam, como as matas que
margeiam os rios e servem de abrigo para muitos
animais (ver a reportagem “Incêndio na beira do
rio” no site de Pesquisa FAPESP). “A ocorrência de
queimada nessas matas atinge uma fauna muito
menos adaptada ao fogo”, afirma o zoólogo Reu-
ber Brandão, da UnB. “Em algumas regiões, esse
efeito do fogo é agravado pelo consumo de água
para irrigar as plantações”, diz. Há mais de 20 anos
ele estuda anfíbios e répteis no oeste da Bahia,
onde houve um aumento importante no uso de
água para a agricultura. Como resultado, o nível
do lençol freático baixou, fazendo lagos e grandes
áreas de veredas secarem e algumas populações
de sapos, lagartos e serpentes desaparecerem. n

Os projetos e artigos científicos consultados para esta reportagem


estão listados na versão on-line.

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