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1 Uma das medidas estruturantes tomadas por Sargão I, o fundador do primeiro grande império

2 da história (s. XXIV-XXIII a.C.), foi a uniformização do sistema de pesos e medidas utilizado nos
3 seus territórios. Percebeu que só com um mesmo critério e uma mesma regra poderia fazer a
4 economia e, por isso, as sociedades do seu território funcionar; por outras palavras, só assim
5 poderia compreender e atuar perante uma realidade plural como a que enfrentava, e também só
6 com um standard comum poderiam as diferentes nações que faziam parte do império
7 compreender-se mutuamente e atuar em conjunto. Depois de Sargão, todos os governantes
8 tiveram de lidar com o mesmo problema (que o Brasil, país continental, replica de forma
9 exponencial): sem uma mesma medida, não se conseguem conjugar realidades diferentes. Ora, a
10 dialetometria é precisamente isso: a almejada eliminação da subjetividade inerente à dialetologia
11 tradicional e, com isso, ciência mais válida.
12 Em termos técnicos, a dialetometria pode ser definida como

13 uma abordagem quantitativa ao estudo dos dialetos com um enfoque na métrica, i.e. na
14 mensuração dos fenómenos de variação dialetal por meio de procedimentos exatos e totalmente
15 comparáveis, os quais importa da classificação numérica ou taxonómica. Aplica cálculos
16 matemático-estatísticos elaborados à matriz de dados obtida a partir dos procedimentos
17 referidos e representa cartograficamente (espacializa) os resultados desses cálculos, cabendo ao
18 linguista, com a liberdade que a estatística confere, a tarefa final de interpretação do quadro
19 geolinguístico que tem à frente. (Brissos & Saramago 2019: 353.)

20 Não é, portanto, uma disciplina exclusivamente focada nos procedimentos quantitativos. A


21 conversão dos resultados da aplicação desses procedimentos num formato facilmente inteligível
22 pela mente humana é também importante, pelo que a cartografia (representação em mapa) dos
23 dados é uma das etapas nucleares do processo dialetométrico. Em qualquer caso, a linha
24 condutora desse processo é tornar possível a digestão (i.e. a sistematização e a análise) de grandes
25 corpora linguísticos, a que poderemos chamar, em linguagem atual, big data dialetais. Só com
26 uma metodologia quantitativa podemos tratar grandes quantidades de dados, e a dialetometria
27 é a única metodologia quantitativa consolidada para esse fim em dialetologia. O linguista que,
28 como Sargão, queira abarcar realidades muito diferentes num mesmo processo depende
29 crucialmente, então, da dialetometria.
30 Quer isso dizer, no entanto, que existe já uma tradição significativa de estudos
31 dialetométricos dispersa pelas principais famílias linguísticas do mundo? Muito ao contrário: a
32 disciplina permanece pouco mais do que restrita ao ambiente europeu em que se formou, há
33 cerca de meio século, como ferramenta de análise dos muitos atlas linguísticos que a dialetologia
34 continental (francesa, italiana, alemã, etc.) já vinha criando há décadas. Por outro lado, sendo uma
35 disciplina recente, não deixamos de poder definir dois períodos na história da dialetometria,
36 divididos por uma baliza fundamental: o fim do séc. XX / início do séc. XXI, i.e. a transição digital,
37 concretamente o surgimento de software dedicado à análise dialetométrica.
38 No primeiro período, antes das possibilidades de computação informática de que dispomos
39 hoje (quer no que respeita aos recursos, quer, talvez mais importante, no que respeita à
40 disponibilidade desses mesmos recursos), temos o que se pode chamar de dialetometria clássica.
41 São exemplos os trabalhos dos pioneiros da disciplina, como Henri Guiter (1971), Jean Séguy
42 (1973) e Hans Goebl (1984), que trataram respetivamente do Atlas Linguistique des Pyrénées
43 Orientales (ALPO); do Atlas Linguistique de la Gascogne (ALG); e do Atlas Linguistique de la France

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1 (ALF) e do Sprach- und Sachatlas Italiens und der Südschweiz (AIS). Sempre em ambiente europeu,
2 e sempre no domínio da Europa Central.
3 Hans Goebl, ativo ainda hoje, veio a criar o principal paradigma teórico-metodológico da
4 dialetometria, a chamada EDS – Escola de Dialetometria de Salzburgo, e também o primeiro
5 software dedicado à análise dialetométrica, o VDM – Visual Dialectometry (Haimerl & Goebl 1998).
6 É a partir deste momento que temos o segundo período da história da dialetometria, i.e. a
7 dialetometria moderna ou pós-clássica, que já não depende crucialmente da computação e
8 cartografia de base manual. Agora, depois da generalização do acesso à tecnologia informática
9 (Internet incluída) pelo utilizador comum, é possível criar software dedicado e, acima de tudo,
10 fazê-lo chegar a um grande número de investigadores. Esse é um facto da maior relevância, pois,
11 quando o investigador pode dispor de software potente e user-friendly, torna-se possível
12 aumentar a eficiência das análises, quer no que respeita à constituição das matrizes de dados,
13 quer no que toca à cartografia dos resultados ― e o processo dialetométrico torna-se mais
14 automático, mais sistematizável, menos artesanal. Concretiza-se então o ensejo inicial da
15 disciplina. Os trabalhos de Goebl (2006, 2012, 2016) são bons exemplos deste período
16 dialetométrico, assim como os que citaremos adiante sobre dialetometria do português.
17 Mas a dialetometria deverá criar outro ensejo: sair da sua zona de conforto europeia e
18 ocupar-se de paisagens linguísticas diferentes, novas e, por isso, difíceis. Há dialetos fora da
19 Europa que também é preciso estudar. O Brasil tem muitos, que colocam vários tipos de
20 dificuldade à dialetometria tal como a conhecemos hoje. Vejamos, na próxima secção, que
21 estudos dialetométricos têm sido feitos sobre a realidade brasileira, que problemas têm sido
22 colocados ao investigador por essa adaptação a um mundo novo e que soluções têm sido
23 desenhadas para os resolver.
24
25
26 [Excerto de «Estudos de dialetometria brasileira: problemas, soluções e estado da questão», Fernando
27 Brissos, 2023, no prelo.]

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