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ESTUDOS
LINGUÍSTICOS
VOLUME I • LINGUÍSTICA HISTÓRICA
E HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA
Organizado em duas secções, o livro põe em destaque as grandes linhas
I NFOGRAFIA
Jorge Neves
I NFOGRAFIA DA CAPA
Mickael Silva
E XECUÇÃO GRÁFICA
Frases Favoritas
ISBN
978-989-26-2131-9
ISBN D IGITAL
978-989-26-2132-6
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-2132-6
D EPÓSITO LEGAL
495629/22
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só se tem assistido à comunicação entre as construções teóricas destas duas
áreas disciplinares e os aspectos da história de várias línguas, nomeadamente
das línguas românicas, como se tem vindo mesmo a configurar uma Socio-
linguística histórica e se entrevê também a possibilidade de uma Pragmática
histórica2.
O facto de os aspectos históricos poderem ser interpretados e analisados
sob ângulos teóricos e metodológicos novos não invalida nem sequer desva-
loriza as abordagens de carácter tradicional. Reputamos de suma importância
a publicação de novas fontes documentais que oferecem a matéria-prima para
o estudo de fases pretéritas da língua e consideramos que esses textos escri-
tos, na medida em que oferecem aspectos com interesse para a diacronia da
língua, podem ser estudados produtivamente com os métodos da filologia tra-
dicional. No entanto, oferecendo os textos escritos correspondentes a etapas
históricas passadas outras dimensões, nomeadamente a dimensão pragmática
e a dimensão sociolinguística, julgamos enriquecedora a análise dos mesmos
de acordo com perspectivas de abordagem diferenciadas.
Uma das questões da história do português cujo tratamento não se reno-
vou desde que foi analisada pelos representantes da filologia tradicional foi o
problema da periodização.
Tentaremos mostrar quais as aportações que a concepção da língua pro-
posta pela Sociolinguística e a teoria variacionista3, a corrente mais nitida-
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mente linguística da Sociolinguística actual, podem dar para o tratamento
desta questão.
Mas para se poder avaliar que novas possibilidades oferece a Sociolinguís-
tica histórica para a análise de textos correspondentes a etapas passadas da
língua e, indirectamente, para o modo de encarar o problema da periodização
linguística, façamos uma sintética apreciação global das diferentes propostas
apresentadas numa perspectiva de abordagem tradicional.
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intrínseco da língua: trata-se de uma proposta de periodização apoiada num
número significativo de transformações da estrutura linguística do português5.
Se examinarmos mais de perto as análises que do percurso histórico do
português foram feitas pelos estudiosos que se ocuparam do problema, veri-
fica-se existir praticamente unanimidade quanto ao início do primeiro período
histórico da língua: o marco inicial dessa fase coincide com o começo da
tradição escrita da língua do Ocidente peninsular. É certo que alguns autores,
sobretudo os mais antigos, assinalam os finais do século XII e outros, mais
recentes, os primeiros anos do século seguinte, devendo-se, no entanto, essa
divergência fundamentalmente à renovação que a questão dos mais antigos
textos não-literários experimentou nas últimas décadas6.
De acordo com as propostas da autoria de representantes da filologia tra-
dicional – tais como Leite de Vasconcelos7, Carolina Michaëlis8, Serafim da
Silva Neto9 e Said Ali10 –, a história do português decorreu em duas etapas
fundamentais, uma antiga ou arcaica e outra moderna, não sendo cronolo-
gicamente coincidente a divisória entre as duas fases evolutivas da língua: os
autores referidos propõem como limite da primeira fase «os fins do século XV»
5 Evanildo Bechara, As fases da língua portuguesa escrita. In: Actes du XVIII e Congrès
International de Linguistique et de Philologie Romanes, vol. III, Tübingen (Max Niemeyer
Verlag), 1991, p. 68-76.
6 Sobre essa questão, veja-se sobretudo Avelino de Jesus da Costa, Os mais antigos
documentos escritos em português. Revisão de um problema histórico-linguístico. Sep. da
Revista Portuguesa de História, tomo XVIII (Homenagem ao Doutor Torquato de Sousa
Soares). Coimbra, 1979.
7 José Leite de Vasconcelos, Lições de filologia portuguesa. Quarta edição enriquecida
com notas do Autor, prefaciada e anotada por Serafim da Silva Neto. Rio de Janeiro (Livros
de Portugal) 1966, p. 14-19; Idem, Esquisse d’une dialectologie portugaise. Lisboa, 1901;
3.a edição por Maria Adelaide Valle Cintra. Lisboa (Instituto Nacional de Investigação Cien-
tífica. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa), 1987, p. 11-15.
8 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lições de filologia portuguesa. Segundo as prelec-
ções feitas aos cursos de 1911/12 e de 1912/13, seguidas das Lições práticas de português
arcaico. Lisboa (Dinalivro), s.d., p. 17-22 («Generalidades: períodos e características do
português arcaico»).
9 Serafim da Silva Neto, História da língua portuguesa. Segunda edição aumentada.
Apresentação do Professor Celso Cunha. Rio de Janeiro (Livros de Portugal), 1970, p. 397-425.
10 M. Said Ali, Gramática histórica da língua portuguesa. 6. a edição melhorada e
aumentada de Lexeologia e formação de palavras e Sintaxe do português histórico. Esta-
belecimento do texto, revisão, notas e índices pelo Prof. Maximiano de Carvalho e Silva.
São Paulo (Edições Melhoramentos), 1966, p. 17-21 («Introdução: história resumida da
língua portuguesa»).
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ou, ainda, os «primeiros anos do século seguinte» (Said Ali), o início do século
XVI (Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Serafim da Silva Neto), ou, mesmo,
os meados da era de Quinhentos (Leite de Vasconcelos).
Mas ao mesmo tempo que considera a designação de português arcaico
uma expressão abrangente que recobre o período cronologicamente situado
entre o aparecimento dos primeiros textos escritos e o século XVI, Carolina
Michaëlis, com base em factos históricos e na produção literária medieval
portuguesa, subdivide esse longo período de três séculos em período tro-
vadoresco, até 1350, e período da prosa histórica11. Na sua História da lín-
gua portuguesa Serafim da Silva Neto perfilha e apoia a posição de Carolina
Michaëlis, mas propõe para a segunda fase do português arcaico, que teria
como limite inicial o ano de 1385, data da batalha de Aljubarrota, a designa-
ção de português comum. Conforme é explicado pelo Autor, devido a aconte-
cimentos de carácter histórico que transportaram o eixo político de Portugal
para sul, para Lisboa, a língua foi-se depurando dos «regionalismos do grupo
galego-interamnense», vindo a elaborar-se, nessa zona, o “português comum”
que serviu de base a uma rica literatura em prosa surgida nessa época12.
Cumpre, no entanto, salientar que essa delimitação temporal bifásica no
percurso histórico da língua considerado globalmente não goza de aceitação
geral entre os que posteriormente se ocuparam do problema e que propõem
quatro fases evolutivas na história do português, não obstante existirem diver-
gências quanto às designações utilizadas, quanto aos limites entre os períodos
e quanto aos critérios que sustentam e justificam as suas propostas.
Apesar dessas discordâncias, Pilar Vázquez Cuesta, Lindley Cintra e Eva-
nildo Bechara coincidem na delimitação temporal do período compreendido
entre o início do século XIII e a primeira metade do século XVI (Lindley
Cintra e Evanildo Bechara) ou, mais precisamente ainda, o ano de 1540, data
de um importante evento editorial, a publicação da Gramática da língua por-
tuguesa, de João de Barros (Pilar Vázquez Cuesta). Em todos os autores refe-
ridos esse amplo período aparece subdividido em duas fases evolutivas: Pilar
Vázquez Cuesta opõe o período galego-português ao português pré-clássico,
105
assinalando como limite para a primeira etapa o ano de 1385, data da batalha
de Aljubarrota, quando «Portugal da muestras definitivas de su decisión de
construir una nacionalidad independiente dentro de la Península»13; Lindley
Cintra situa a transição do português antigo para a etapa média no ano de
142014; paralelamente, distingue o filólogo brasileiro a fase arcaica, com-
preendida entre o século XIII e finais do século XIV, e a fase arcaica média,
que se prolonga da primeira metade do século XV até à primeira metade do
século seguinte15.
Para os mesmos autores a história do português desde a época de Qui-
nhentos até ao século XX pode igualmente cindir-se em duas fases, com a
transição em finais do séc. XVII ou já no século XVIII, as quais são designa-
das por português clássico e português moderno (por Pilar Vázquez Cuesta e
Lindley Cintra) a que correspondem, na classificação de E. Bechara, as fases
moderna e hodierna da língua.
De natureza diferente das anteriormente referidas é a tentativa de divisão
da história da língua portuguesa em períodos apresentada por Dieter Mess-
ner16 no vol. VI, 2 do Lexikon der Romanistischen Linguistik, aparecido a
público em 1994, a qual propõe «un nouveau classement des facteurs exter-
nes», ao mesmo tempo que integra – embora menos do que seria possível
– alguns conhecimentos linguísticos que recentes investigações divulgaram.
Teríamos, portanto, segundo o Autor, quatro fases: a primeira, a polimor-
fia, até 1300; a segunda, a analogia, até 1550; a terceira, a consolidação da
língua escrita, até 1800, e a última, a difusão diassistemática, desde o início
do século XIX até 1950.
Embora nesta classificação não se fale de uma fase arcaica, no entanto,
no lapso de tempo correspondente inserem-se dois períodos, coincidindo a
transição entre ambos com o ano de 1300.
13 Veja-se Pilar Vázquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, Gramática portuguesa.
Tercera edición corregida y aumentada por Pilar Vázquez Cuesta, vol. I, Madrid (Editorial
Gredos), 1971, p. 202.
14 A propósito da subperiodização do portugués arcaico estabelecida por Lindley Cin-
tra, vejam-se as referências feitas por Rosa [Virgínia] Mattos e Silva, O português arcaico.
Fonologia. Bahia (Editora Contexto), 1991, p. 17-19.
15 Evanildo Bechara, ob. cit., p. 68-72.
16 Sobre a referência completa da obra, veja-se a n. 4 do presente trabalho.
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A originalidade da proposta decorre da perspectiva em que se colocou o
Autor, mas pode questionar-se se as características escolhidas serão definitó-
rias dos lapsos de tempo demarcados e, portanto, se sustentam esse tipo de
periodização. De qualquer forma, convém salientar que o Autor chama a aten-
ção para aspectos interessantes da diacronia do português que, no entanto,
podem vir a ser mais profundamente explorados e exemplificados.
Se considerarmos globalmente as diferentes tentativas de periodização
da história linguística do português e tentarmos fazer uma sintética apre-
ciação crítica, teremos de valorizar sobremaneira as que foram apresentadas
por Carolina Michaëlis de Vasconcelos e, mais recentemente, por Evanildo
Bechara.
Com uma sensibilidade linguística deveras notória seleccionava a ilustre
filóloga, há mais de oito décadas, alguns traços linguísticos que permitiam
definir dois estágios históricos no interior da fase arcaica da língua e outros
que, de certo modo e indirectamente, justificavam a distinção entre esta e o
português moderno. Por outro lado, fazem-se também algumas perspicazes
considerações sobre os diferentes ritmos de evolução de cada fenómeno sin-
gular, sobre o carácter paulatino das mudanças assim como sobre a transição
entre as diferentes fases evolutivas da língua17.
Alicerçada exclusivamente na história interna da língua, a proposta do lin-
guista brasileiro, que aponta para tempos de transição – em vez de assinalar
datas precisas – a delimitar as diferentes divisões cronológicas, oferece, além
disso, uma boa selecção dos factos linguísticos de carácter fonético, morfoló-
gico e sintáctico verdadeiramente balizadores das diferentes etapas evolutivas
da língua.
Chama a atenção que nenhum dos tratados de história da língua portu-
guesa nem nenhum dos estudos que se ocuparam do estabelecimento de
divisões cronológicas no curso da sua evolução linguística tenham discutido
teoricamente sobre as questões, complexas e delicadas, postas pela periodi-
17 Cf. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ob.cit., p. 19: «Claro que os limites entre
os dois períodos [o período arcaico e o periodo moderno] são vagos, e que houve uma
época de transição. (...) «Uma língua não nasce em dia e hora certa», nem evoluciona num
momento de um estado a outro. Algumas transformações realizam-se muito devagar; outras
muito depressa».
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zação. À semelhança do que acontece com os manuais de história da língua
relativos a outros domínios linguísticos, também os do português, quando se
ocupam deste tema, fazem-no sob o ponto de vista prático, mas não desenvol-
vem sobre ele uma reflexão de carácter teórico.
Em vão se procura nessas obras uma fundamentada ponderação sobre a
necessidade teórica e sobre a utilidade prática do estabelecimento de divisões
cronológicas no fluxo da evolução linguística, do mesmo modo que nelas
está também completamente ausente a discussão sobre o problema teórico e
sobre o verdadeiro significado dos limites entre as diferentes fases históricas
da língua.
Uma questão fundamental – e, no entanto, também não discutida – é a que
se refere aos critérios que devem presidir ao estabelecimento de subdivisões
cronológicas na história da língua, ora referentes a dados do contexto extra-
linguístico, ora em parâmetros exclusiva e verdadeiramente linguísticos: no
fundo, trata-se do problema da inter-relação entre história interna, a história
da língua enquanto sistema funcional, e a história externa, dado que, efecti-
vamente, há factores socio-culturais que incidem sobre a mudança da língua
e nela se repercutem18.
Ficam, além disso, também em aberto algumas questões relativas à perio-
dização da história linguística do português, nomeadamente no que se refere
aos fundamentos da distinção e aos limites entre o português arcaico e o
português moderno, assim como à subdivisão cronológica daquele primeiro
período.
18 Coincidimos, neste aspecto, com a opinião expressa por Francisco Abad, Notas sobre
la disciplina “Historia de la lengua española”. In: Anuario de Letras, vol. XXIX, 1991,
p. 14: «(...) Sistema lingüístico formal y factores históricos y culturales externos, condicio-
nan inseparablemente la historia de la lengua y por tanto la explican inseparablemente».
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possível desenvolver, neste momento, essa reflexão com a desejável e necessá-
ria amplitude, poremos em relevo os aspectos verdadeiramente nucleares de
cada uma das questões e cuidaremos de sublinhar o alcance que apresentam
para a fundamentação do tratamento do problema que nos ocupa.
3.1. Encaremos, em primeiro lugar, o problema da reconstituição de fases
passadas da língua.
Contrariamente ao linguista que tem por objectivo o estudo das mani-
festações verbais produzidas pelos falantes nas comunidades em que estão
inseridos, constituindo, portanto, ele próprio o seu “corpus” de acordo com
as finalidades da pesquisa, o historiador da língua tem que trabalhar com
um “corpus” que, em palavras de William Labov, é o resultado de «historical
accidents beyond the control of the investigator»19. Do carácter fragmentário
e incompleto da documentação subsistente decorre a impossibilidade não só
de ter acesso a um conhecimento total de estados de língua correspondentes
a fases pretéritas como também de captar e descrever os próprios processos
históricos da mudança linguística. Por outro lado, ainda, os condicionamen-
tos característicos dos textos escritos, sobretudo dos que reflectem estilos
formais, impedem, em grande parte, de recuperar a língua falada da época, o
que impõe, portanto, limitações na reconstrução de fases passadas da língua.
Uma vez que o historiador da língua tem que desenvolver a sua análise
sobre a documentação escrita subsistente, torna-se necessário o conhecimento
de quanto significa a «transferência para o código escrito de um sistema lin-
guístico de comunicação oral, em uso»20. A esse propósito, convém sublinhar
que as relações entre o “texto escrito” e o “texto oral” são variáveis de acordo
com as épocas e os respectivos contextos socio-culturais. Na história da lín-
gua portuguesa, ultrapassado o período compreendido entre o século IX e o
fim do século XII, época de profundas tensões entre o “oral” e o “escrito”, a
qual culminará com a passagem à escrita do galego-português, podem dis-
tinguir-se claramente duas fases: a primeira, compreendida entre o início do
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século XIII e os finais do século XV ou primeiras décadas do século XVI, e a
segunda desde meados do século XVI até à actualidade. A diversidade gráfica
e linguística é uma característica dominante dos textos escritos do período
medieval: a ausência de uma grafia fixada, de uma “ortografia”, é favorável ao
aparecimento de traços da linguagem oral. A partir do século XVI inicia-se um
processo de fixação da língua escrita devido à actuação dos gramáticos, ortó-
grafos e lexicógrafos, embora se deva salientar também o importante papel
desempenhado pela Imprensa na codificação da língua escrita.
Daí decorre que é durante a Idade Média que se põe com mais acuidade
e pertinência o problema de saber até que ponto os textos escritos deixam
transparecer particularidades da linguagem oral da época e, portanto, também
«testemunham reflexos das mudanças linguísticas que ocorreram na língua de
comunicação oral nesse período histórico»21. No entanto, mesmo situando-
-nos apenas no âmbito do período medieval, o valor dos textos subsistentes
para o conhecimento da linguagem falada da época é variável de acordo com
os diferentes géneros ou tipos textuais e, ainda, com o modo de transmissão
de cada texto, ou seja, de acordo com a sua tradição textual.
É indubitável que os textos não-literários – os “documentos linguísticos”,
segundo a terminologia de Menéndez Pidal – sob o ponto de vista que nos
ocupa oferecem grande vantagem sobre os textos literários pelo facto de
serem conhecidas as coordenadas de tempo e espaço em que foram produ-
zidos, isto é, pelo facto de serem textos datados e localizados. O seu valor
vê-se ainda acrescido sempre que esses textos nos foram transmitidos através
de “orginais” no sentido diplomático do termo, isto é, sempre que se trata
de textos com uma unívoca procedência paleográfico-diplomática. Menor é
o grau de autoridade que se atribui aos documentos chamados “vidimus”, às
diferentes espécies de cópias, aos cartulários e às traduções22.
Em virtude do carácter complexo ou, por vezes, muito complexo da histó-
ria manuscrita dos textos literários, na sua análise devem ser tidas em conside-
110
ração «desde os possíveis erros dos copistas envolvidos na tradição manuscrita
de cada obra e as suas inovações; às interferências de modelos mais antigos
desconhecidos, que serviram de base a cópias posteriores remanescentes; até
às interpretações adequadas e inadequadas e às convenções adoptadas nas
edições críticas e mesmo nas edições diplomáticas»23.
Convém ainda sublinhar que, durante a Idade Média, o estado da língua
revelado por um texto não é totalmente coincidente com o de outros textos
da mesma época, mas correspondentes a outros géneros textuais e com uma
diferente tradição manuscrita.
A partir de quanto anteriormente foi dito deduzir-se-á facilmente que nem
todas as inovações ou já mudanças da língua se reflectem simultaneamente
nos textos escritos e, além disso, que neles se revelam em graus distintos e de
modo diverso de acordo com os géneros textuais.
Poder-se-á, então, concluir que, se a mudança textual não se ajusta exacta-
mente nem se sobrepõe de forma rigorosa à mudança linguística, de facto, só
é possível estabelecer uma periodização da língua escrita.
3.2. O segundo fenómeno atrás referido cuja reflexão muito pode contri-
buir para a renovação do tratamento do tema da periodização é o complexís-
simo fenómeno da mudança linguística, o qual implica factores de natureza
muito diversa: linguísticos, sociais, geográficos, psicológicos, pragmáticos,
etc.24. Uma vez nele intervêm motivações distintas, são, portanto, variados os
pontos de vista segundo os quais pode ser estudado.
Devido à grande amplitude de aspectos abrangidos pela designação de
mudança linguística, convém proceder ao estabelecimento de algumas dis-
111
tinções fundamentais. Particularmente relevante para os objectivos propostos
é a distinção estabelecida inicialmente por E. Coseriu e depois aceite por
muitos autores entre, por um lado, a inovação que se verifica no discurso
(desempenho) e a mudança na língua (competência) e, por outro, entre estes
aspectos considerados simultaneamente e a mudança entendida como um
processo numa comunidade de falantes. Neste último processo, que é de natu-
reza sociolinguística, podem distinguir-se quatro fases: «adoption (of an inno-
vation by an individual), diffusion (adoption by several individuals), selection
(alternating use of the older and the newer tradition), mutation (abandon-
ment of one of the two traditions and retention of the other, or establishment
of a certain distribution of both traditions in the same “dialect” or eventually
in different “dialects”)»25.
Desde o ponto de partida, a inovação, até ao ponto de chegada, a muta-
ção, há o longo e complexo processo de difusão da inovação na estrutura
social da comunidade, ou seja, a adopção interindividual, que conduz fre-
quentemente ao uso alternado («alternating use») de formas diacronicamente
concorrentes26. Essa coexistência de tradições linguísticas, as tradições
“novas” e as tradições “velhas”, verifica-se durante muito tempo, por vezes
de forma multissecular, conforme, aliás, demonstrou, há já algumas dezenas
de anos, R. Menéndez Pidal numa obra ainda hoje exemplar, Orígenes del
español27. Vale a pena ressaltar que essa etapa só termina quando a variação é
25 Cf. E. Coseriu, Linguistic Change does not Exist. In: Linguistica Nuova et Antica.
Rivista di Linguistica Classica, Medioevale e Moderna, ano I, 1983, p. 56-57.
26 Cf. E. Coseriu, Sincronía, diacronía e historia. El problema del cambio lingüístico.
3.ª ed., Madrid (Editorial Gredos), 1978, p. 220-221: «Ciertamente, las explicaciones (moti-
vaciones) estructurales son históricas, pero la explicación concreta del cambio no se agota
con su motivación: entre el punto de partida (innovación) y el de llegada (mutación) está
el cambiar mismo, como “difusión”, es decir, como adopción interindividual de la innova-
ción, proceso histórico sumamente complejo, de muchas idas y vueltas, en cuyo estudio se
ha destacado sobre todo la escuela lingüística española».
27 R. Menéndez Pidal, Orígenes del español Estado lingüístico de la Península Ibérica
hasta el siglo XI. 6.ª ed., Madrid (Espasa-Calpe), 1968, sobretudo p. 532-533 das “Conclu-
sões”. Baseando-se na análise da documentação do período pré-literário, pôde o Autor
observar a pugna entre tradições linguísticas novas e tradições linguísticas antigas, o que
lhe permitiu afirmar o seguinte: «Un cambio fonético no suele ser nunca obra exclusiva
de las tres o cuatro generaciones en que de un modo arbitrario se considera dividida la
población convivente, sino que es producto de una idea o un gusto tradicional que per-
siste a través de muchas generaciones de hablantes. La duración del cambio fonético suele
ser extraordinariamente larga, multisecular, por lo mismo que la tradición que hay que
112
eliminada, quer porque uma das formas foi abandonada – o que transforma a
outra em constante em toda a comunidade –, quer porque se estabeleceu um
determinado tipo de distribuição das duas séries de formas num ou em vários
“dialectos” da “arquitectura” da língua28.
É óbvio – mas mesmo assim vale a pena explicitar – que, combinada com
a lenta generalização da mudança na comunidade de falantes está a progres-
são da mudança através da estrutura linguística, ou seja, a sua integração na
estrutura da língua29. No entanto, neste momento, desejamos centrar-nos
e pôr uma ênfase especial no primeiro dos processos e deixar de lado os
aspectos estruturais ou paradigmáticos da mudança idiomática por não serem
tão pertinentes para as finalidades que, neste momento, nos propusemos.
Não obstante não considerarmos estes aspectos, não quereríamos deixar de
salientar que o estabelecimento de qualquer “sincronia” no devir de qual-
quer “língua histórica”30 representa sempre um artificialismo metodológico;
acresce ainda, no caso concreto do português antigo, caracterizado por acen-
tuada instabilidade linguística e por uma extraordinária riqueza de variantes,
que essa delimitação de “sincronías” encerra uma dupla arbitrariedade. Isto
para não falarmos da dificuldade em isolar, através da documentação do pas-
sado, cada “língua funcional”, a única que pode ser objecto de uma descrição
estrutural31.
vencer es la más fuerte de todas, como arraigada en la inmensa repetición cotidiana del
acto colectivo del lenguaje. Los 300 años señalados por Saussure como caso notable de
duración para la propagación de un cambio lingüístico, son todavía poca cosa en muchos
casos» (p. 533). (O sublinhado é da nossa responsabilidade).
28 Sobre o conceito de ‘arquitectura’, veja-se E. Coseriu, Lecciones de lingüística gene-
ral. Madrid (Editorial Gredos), 1981, p. 316-327; Idem, Los conceptos de “dialecto”, “nivel”
y “estilo de lengua” y el sentido propio de la dialectología. In: Lingüística Española Actual,
vol. III, n.º 1, 1981, p. 21-22.
29 Na crucial contribuição de Uriel Weinreich, W. Labov e Marvin I. Herzog citada na
nota 24, referem-se os Autores, ao estabelecerem alguns princípios gerais para o estudo da
mudança linguística, à «generalização da mudança linguística através da estrutura linguística»
e à transmissão da mudança idiomática no interior da comunidade de falantes. Cf. Uriel
Weinreich, William Labov e Marvin I. Herzog, ob. cit., p. 188.
30 Sobre o conceito de ‘língua histórica’, veja-se Eugenio Coseriu, Lecciones de lingüística
general. Madrid (Editorial Gredos), 1981, p. 302-303; Idem, Au-delà du structuralisme. In:
Actes. XVIe Congrès Internacional de Lingüística i Filologia Romàniques. Palma de Mallorca
(Editorial Moll), tomo 1, 1982, p. 166.
31 Cf. Eugenio Coseriu, Lecciones de lingüística general. Madrid (Editorial Gredos),
1981, p. 287-315 (cap. XI. «La lengua funcional») e, em particular, p. 302-315. «El objeto
113
Para a compreensão dos mecanismos dos processos de mudança em curso
no interior das comunidades de fala muito têm contribuído os estudos siste-
máticos que recentemente têm vindo a empreender-se em comunidades vivas:
trata-se dos trabalhos de Sociolinguística sobre as mudanças no chamado
“tempo aparente”32, a que em seguida faremos referência.
Os estudos empíricos da mudança em progresso não só tinham estado
ausentes da linguística da primeira metade do século XX, como existia a pro-
funda convicção de que a mudança linguística era imperceptível e inacessível à
observação, sendo, por conseguinte, impossível determinar as suas “causas”33.
No entanto, a observação e a análise da mudança em curso foram empreendi-
das com êxito, a partir da década de sessenta, por autores situados no campo
da Sociolinguística, tendo sido possível retirar desses estudos esclarecedores
ensinamentos sobre a mutação histórica das línguas, os quais permitiram esta-
belecer alguns fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística.
A partir dos seus primeiros trabalhos de carácter quantitativo, William
Labov mostrou um especial interesse pelas mudanças em progresso, tendo
reconhecido que a variação linguística apresenta uma dimensão diacrónica,
isto é, a variação que se encontra na actuação dos falantes é também, con-
forme salienta Henrietta J. Cedergren «reflejo del dinamismo temporal del
lenguaje»34: na variação sincrónica da língua está presente a história. Desco-
114
briu-se, mesmo, que entre a variabilidade sincrónica e a mudança linguística
há uma relação de implicação: toda a mudança vai sempre precedida de uma
etapa de variação, durante a qual coexistem e alternam formas linguísticas
rivais. A variação linguística observável em sincronia – quer se trate da varia-
ção temporal (baseada no tempo aparente), geográfica, social e diafásica – é
o reflexo, a tradução directa da mudança em curso. Desse modo, é impossí-
vel estabelecer uma distinção nítida entre a “mudança diacrónica” e a “varia-
ção sincrónica”, já que se trata apenas de duas faces de um único e mesmo
fenómeno.
Como bem salientou Francisco Gimeno Menéndez, no artigo Hacia una
sociolingüística histórica, publicado em 1983, «variabilidad y cambio están,
pues, intimamente unidos, hasta el punto de ser las dos caras – sincrónica y
diacrónica – del mismo hecho de la lengua. Ahora bien, no toda variabilidad y
heterogeneidad en la estructura lingüística envuelve cambio; pero todo cam-
bio lingüístico implica variabilidad y heterogeneidad sincrónica en la comu-
nidad de habla»35.
Desse modo se compreende por que razão o estudo da variação linguís-
tica tem relações muito directas com a Linguística histórica; a observação da
mudança em curso não só contribui para a compreensão do mecanismo real
da mudança linguística como também ajuda a esclarecer alguns problemas de
história da língua. Por conseguinte, a análise da variação linguística oferece
um inegável interesse para a Linguística histórica.
115
a fases pretéritas da língua e, indirectamente, para o tratamento do problema
da periodização.
Para a Sociolinguística, entendida em sentido restrito e, portanto, como
uma disciplina epistemologicamente vinculada à Linguística, a variação não
só é fundamental como constitui o eixo dos estudos realizados no âmbito
desta disciplina. Mas a análise dessa importante dimensão das línguas natu-
rais – constitui mesmo uma dimensão inerente, intrínseca das línguas e não
uma dimensão secundária – tem sido empreendida com êxito não apenas
em comunidades vivas, como acima referimos, como também tem sido utili-
zada no reexame dos textos remanescentes do passado, configurando, assim,
uma outra importante vertente da Sociolinguística histórica que tem vindo a
desenvolver-se nos nossos dias a partir dos estudos de Suzanne Romaine37.
Ao tentar fazer a reconstrução da língua do passado dentro do seu con-
texto social, procede ao estudo sistemático da variação linguística nos textos
históricos, com base num tratamento de tipo quantitativo dos materiais pre-
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sentes no “corpus” disponível ou para determinados fins seleccionado. Essa
reconstrução dos processos históricos da mudança linguística assenta na aná-
lise da diferenciação estilística ou funcional da língua através dos diversos
textos remanescentes relativos a diferentes géneros textuais e a distintas cate-
gorias estilísticas38. Com base no tratamento estatístico dos diferentes estilos
contextuais é possível analisar a dimensão social da variação diafásica.
Na sua abertura para novas problemáticas, a Linguística histórica acolheu
problemas e métodos da Sociolinguística, tendo-se assistido, nos últimos anos,
a uma renovação dos métodos de abordagem dos textos históricos.
A consideração da variação como algo inerente à própria língua e a des-
coberta da sistematicidade da variação no interior das comunidades estimula-
ram a criação e o desenvolvimento de adequadas ferramentas metodológicas:
trata-se de logaritmos probabilísticos computacionais que permitem trabalhar
com materiais muito diversos e em grandes quantidades39. Como veremos a
seguir, esta metodologia pode ser utilizada também na Linguística histórica.
Uma vez que a variação é inerente a qualquer língua em todo e qualquer
momento do seu devir histórico e que os textos escritos oferecem “provas
visíveis” da diversidade e da mudança linguísticas foi possível proceder com
proveito à caracterização quantitativa dos materiais testemunhados por textos
correspondentes a diferentes géneros textuais e a diferentes estilos. Esse tra-
tamento quantitativo pode ser levado a cabo através de análises descritivas de
frequência ou, para quem parte de postulados variacionistas, como Suzanne
Romaine e Francisco Gimeno, através da aplicação do programa VARBRUL
(VARIABLE RULE, regra variável). A metodologia que, com estes autores, é
38 Para uma visão de conjunto das diferentes possibilidades de definir “estilo” que
aparecem nos trabalhos de Sociolinguística e sobre algumas questões relativas à aplicação
da noção de ‘estilo’ aos diferentes tipos de dados históricos que podem ser estudados pela
linguística socio-histórica, veja-se a comunicação apresentada por Elizabeth Closs Traugott
e Suzanne Romaine no “Workshop on Socio-historical Linguistics”: Some Questions for the
Definition of “Style ” in Socio-historical Linguistics. In: Folia Linguistica Historica, vol. VI,
1985, p. 7-39. Sobre o complexo problema das relações entre “estilo” e variação sociolin-
guística, assim como sobre algumas perspectivas teóricas e avanços metodológicos, veja-se
também a obra de Francisco Moreno Fernández (ed.), Sociolinguistics and Stylistic Variation.
A Monographic Series in Linguistics and World Perception, vol. 3, 1992.
39 Sobre esses recursos analíticos, veja-se o que foi dito por Henrietta J. Cedergren,
ob. cit., p. 152-154.
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esboçada, ou seja, a aplicação do modelo variacionista à Linguística histórica,
começa a consolidar-se e a aplicar-se a fases pretéritas de várias línguas40.
Uma vez que, no momento da sua produção, os textos correspondentes a
diferentes géneros textuais e que reflectem diferentes estilos exigiram distin-
tos graus de tensão discursiva, é possível encontrar neles indícios da variação
diafásica.
Na obra Socio-historical Linguistics. Its Status and Methodology, publicada
em 198241, Suzanne Romaine analisou a oração relativa e a variação nos mar-
cadores relativos em textos escoceses do curto período compreendido entre
1530 e 1550, correspondentes aos seguintes géneros textuais: prosa jurídica
(nacional), prosa jurídica (local), prosa literária, prosa epistolar e verso (cortês
ou sério e divertido ou cómico)42. A investigação realizada sobre o referido
aspecto da sintaxe histórica revelou uma correlação entre diferenciação esti-
lística e graus de complexidade sintáctica43.
Com uma metodologia semelhante, mas combinando com as variáveis
sociais e funcionais outras de carácter temporal e geográfico, Francisco
Gimeno investigou a variação fónica em textos jurídicos alicantinos, castelha-
nos, alto-aragoneses e oriolanos44.
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Propomo-nos analisar a diversidade diacrónica do português entre o século
XIII e o século XVI e, em íntima articulação com essa análise, investigar-se-
-á simultaneamente a diversidade diafásica (e a sua dimensão social), assim
como a diversidade diatópica.
Como etapa prévia, impõe-se a fixação, o estabelecimento do “corpus” a
explorar: ou toda a documentação medieval remanescente acessível através
de edições fidedignas – será esta a situação ideal – ou, então, uma amostra
obtida através de técnicas estatísticas de amostragem, a qual deverá ser repre-
sentativa do português arcaico. Embora mais oneroso, preferimos processar a
análise a partir do “corpus” medieval global valorizando, nessa análise, os tex-
tos datados, devendo os dados ser recolhidos e examinados separadamente
de acordo com os diferentes tipos de textos: textos poéticos; textos em prosa
não-literária; textos em prosa literária traduzida e, finalmente, textos em prosa
literária não traduzida. No que se refere à prosa não-literária, os tipos de docu-
mentos a serem explorados são os seguintes, os quais podem considerar-se
complementares para o conhecimento da língua da época: “cartas” privadas,
“cartas” régias, leis locais (forais ou foros breves e foros ou costumes) e leis
gerais45. Além disso, a prosa literária medieval oferece as seguintes categorias
de textos: textos de ficção; textos históricos e textos pragmáticos, de carácter
pedagógico, que visam uma política de educação religiosa, moral e física46.
Não foi feita, até este momento, uma exploração sistemática da documen-
tação medieval com o fim de estabelecer a cronologia relativa de fenómenos
linguísticos singulares, de tal modo que seja possível seleccionar os traços
que podem ser considerados verdadeiros indicadores da situação do portu-
guês arcaico em contraste com o português moderno. No entanto, o convívio
45 Adoptamos a classificação proposta por Luís F. Lindley Cintra, Les anciens textes
portugais non littéraires. Classement et bibliographie. In: Revue de Linguistique Romane,
vol. 27, 1963, p. 45.
46 Baseamo-nos na tipologia apresentada por Rosa Virgínia Mattos e Silva, Estruturas
trecentistas. Elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa (Imprensa Nacional
– Casa da Moeda), 1989, p. 28-35. Outras classificações dos textos medievais portugueses
encontram-se nas seguintes obras: Álvaro Júlio da Costa Pimpão, História da literatura
portuguesa: Idade Média. 2ª. edição, revista. Coimbra (Atlântida), 1959, p. 3-26; Serafim
da Silva Neto, Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro (Casa de Rui
Barbosa), 1956, p. 55-106 e Maria Adelaide Valle Cintra, Bibliografia de textos medievais
portugueses. Lisboa (Publicações do Centro de Estudos Filológicos), 1960.
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com os textos deste período e as informações dispersas relativas à datação de
aspectos da diacronia do português que podem encontrar-se nas gramáticas
históricas da língua e nos estudos de carácter linguístico que acompanham
algumas edições de textos datados permitem-nos propor como parâmetros
essenciais do português arcaico os seguintes traços de carácter fonético e mor-
fológico (nomeadamente da morfologia do verbo, do nome e do pronome)47:
47 É óbvio que, com uma metodologia idêntica, poderão ser analisados aspectos morfo-
-sintácticos da histórica do português que sejam importantes para a definição de etapas
históricas da língua. Devido à escassíssima tradição da Sintaxe histórica na linguística
portuguesa, não é possível, neste momento, fazer uma selecção criteriosa e definitiva
das mudanças sintácticas que sejam decisivas para os fins em vista. Depois da Sintaxe
histórica portuguesa de Augusto Epifânio da Silva Dias, cuja primeira edição apareceu em
1918, não foi publicado nenhum estudo global de Sintaxe histórica do português, tendo
também surgido pouquíssimos trabalhos sobre fenómenos concretos da história sintáctica
da língua, de tal modo que quase todas as questões permanecem por tratar, pelo menos
de modo exaustivo ou suficiente. Gostaria, no entanto, de pôr em relevo que alguns tra-
balhos sobre vários aspectos da sintaxe histórica do português foram realizados no Brasil
por Rosa Virgínia Mattos e Silva, professora da Universidade Federal da Bahia, que, além
disso, tem também orientado algumas teses de Mestrado sobre alguns problemas sintácticos
da história do português. E com base nos dados obtidos nesses estudos recentes, assim
como na bibliografia tradicional de carácter filológico, propôs a Autora uma tentativa de
caracterização do português arcaico apoiada na determinação dos limites cronológicos de
algumas características linguísticas, não só de carácter fónico e morfológico, mas também
sintáctico. Sobre a recente bibliografia utilizada e sobre os aspectos morfo-sintácticos e
sintácticos seleccionados, veja-se o artigo da Autora Para uma caracterização do período
arcaico do português. In: D.E.L.T.A., vol. 10, n.º Especial, 1994, p. 247-276.
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4) a conservação de -d- no morfema número-pessoal -des (ou -de no
imperativo);
5) o particípio passado dos verbos da segunda conjugação com vogal
temática u + do (por ex., auudo, teudo, etc.);
6) a uniformidade genérica nos nomes em -or, -ol e -ês;
7) as formas de plural de substantivos que no singular terminam em -l, do
tipo sina-es, crue-es, etc., com terminações hiáticas;
8) a existência de um sistema de possessivos, com duas séries para o femi-
nino, uma de formas átonas (mia, mha, ma, ta, sa) e a outra de formas
tónicas (mia, m a, minha, tua, sua). Saliente-se, no entanto, que essa
distinção não era rigorosamente observada na língua arcaica;
9) a existência, nalguns verbos, de um lexema para a primeira pessoa do
presente do indicativo e de todas as pessoas do presente do conjuntivo
oposto ao lexema de todas as restantes formas dos outros tempos do
perfeito e do não-perfeito. Entre esses verbos se incluem: a) aqueles
cujo lexema da primeira pessoa do presente do indicativo e de todas
as pessoas do presente do conjuntivo termina em sibilante (/ /e depois
/s /) resultante da palatalização do grupo formado pela consoante
final do lexema latino seguida de semivogal anterior: ardeo → arço;
audio → ouço; metio → meço; mentio → menço; petio → peço;
perdeo → perço; b) aqueles verbos historicamente representantes de
verbos latinos cujo lexema terminava no sufixo derivacional incoativo
-scere. Em virtude do contexto fónico, na primeira pessoa do presente
do indicativo e em todas as pessoas do presente do conjuntivo mantive-
ram-se as formas etimológicas, cujo lexema termina em consoante velar
/k/: conhosco, conhosca, empeesca, nasco, etc.
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etapa histórica da língua em contraste com o português moderno, trata-se de
analisar as mudanças que afectaram cada um deles no decurso desse primeiro
período do devir histórico da língua.
De forma sintética, essas mudanças podem ser enumeradas do seguinte
modo:
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9) a eliminação da variação do lexema que opunha a primeira pessoa do
presente do indicativo e todas as pessoas do presente do conjuntivo
aos restantes tempos do perfeito e do não-perfeito. Em consequência
dessa alteração, verifica-se a regularização dos paradigmas verbais.
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De alguns estudos parcelares por nós iniciados e desenvolvidos segundo
esta perspectiva metodológica assim como do exame minucioso dos textos
escritos entre o início do século XIII e meados do século XVI parece poder
concluir-se que entre meados do século XIV e as primeiras décadas de Qui-
nhentos estavam em curso algumas mudanças linguísticas que contribuirão
para o progressivo abandono, na língua escrita, de características correntes na
língua dos séculos anteriores.
Em relação aos vários fenómenos de mudança atrás referidos, a docu-
mentação escrita sugere que, a partir da segunda metade de Trezentos até às
primeiras décadas do século XVI, estamos situados num período a que cor-
respondem as duas últimas fases assinaladas por Coseriu para a mudança na
comunidade de falantes50, a selecção, caracterizada pelo “uso alternado”, pela
coexistência de formas diacronicamente concorrentes, e a mutação, durante a
qual uma das formas rivais é abandonada, elevando-se a outra «à categoria de
constante (em toda a comunidade ou numa área dialectal fixa)»51.
As formas mais antigas correspondentes a cada um dos fenómenos de
mudança antes mencionados são eliminadas da língua escrita, mas não de
forma simultânea: algumas apagam-se ainda ao longo do século XV, embora
de forma predominante nas últimas décadas deste século; outras extinguem-
-se apenas durante as primeiras décadas do século seguinte, ainda que pos-
sam ter sobrevivido nalgumas variedades dialectais mais conservadoras.
Em nosso entender, justifica-se, por conseguinte, na história do português,
uma periodização bifásica entre o português arcaico e o português moderno,
encontrando-se essa distinção balizada, não por uma data precisa, mas por
uma “franja de separação”52 que se prolonga das últimas décadas do século
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XV até às primeiras décadas do século XVI. O português arcaico termina,
portanto, quando desaparecem da língua escrita aqueles traços característicos
que antes considerámos identificadores da língua deste período. E algumas
dessas particularidades, tais como as formas participiais em -udo, o morfema
-des da segunda pessoa do plural de formas verbais ou a forma etimológica
arço da primeira pessoa do presente do indicativo do verbo arder, encontram
nas peças de Gil Vicente, cujo último auto (Floresta de enganos) foi represen-
tado em 1536, algumas das suas últimas manifestações escritas. Constituindo
já, nessa época, evidentes indícios de arcaísmo, esses traços foram usados
pelo dramaturgo como marcadores estilísticos e diastráticos para a caracteri-
zação de determinadas personagens53.
Quando se extinguem os traços considerados indicadores da língua arcaica
e se encontram consumadas as mudanças conducentes ao estado de língua
que, em linhas gerais, se conservou até hoje, abre-se uma nova fase na história
da língua portuguesa escrita, o português moderno.
Embora aceitemos uma bipartição básica no curso da evolução linguística
do português e embora consideremos o período arcaico como um período
abrangente que recobre o lapso de tempo compreendido entre o início do
século XIII e as primeiras décadas do século XVI, reputamos pertinente e
realista a subdivisão desse período em duas fases, cuja distinção se estabelece
não apenas com base na diferenciação diacrónica, mas também diatópica.
A primeira fase arcaica, que se prolonga até meados do século XIV, carac-
teriza-se pela presença dos traços considerados antes como próprios desta
etapa histórica, tanto em textos portugueses como galegos: é uma fase galego-
-portuguesa, durante a qual a língua do Noroeste de Portugal e da Galiza
apresentava uma unidade essencial, embora, como acontece com todas as
escolher datas mas sim balizar franjas de separação, mais ou menos largas temporalmente».
Cf. Vitorino Magalhães Godinho, A divisão da história de Portugal em períodos. In: Ensaios,
vol. II, Lisboa (Sá da Costa Editora), 1968, p. 15-16.
53 Sobre a ocorrência de formas verbais com os morfemas -des e -de na obra vicentina,
veja-se o estudo de Paul Teyssier, La langue de Gil Vicente. Paris (Klincksieck), 1959, p. 182-
-198 («Chapitre III. Les commères»). A forma creçudo está documentada uma só vez no Juiz
da Beira e a forma arço no Auto da Alma e no Auto da Lusitânia: cf. Gil Vicente, Obras
completas. Coordenação do texto, introdução, notas e glossário do Doutor Álvaro Júlio da
Costa Pimpão. Nova edição revista. Porto (Livraria Civilização Editora), 1962, respectivamente
p. 432 e p. 73 e 465.
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comunidades reais, oferecesse variação linguística, incluindo a variação diató-
pica entre as duas regiões situadas a norte e a sul do rio Minho54.
Começando a definir-se, por volta de meados do século XIV, a distinção
entre o diassisterna do galego e do português, na segunda fase arcaica, já niti-
damente portuguesa – para a qual preferimos a designação de fase arcaica
média –, consideramos apenas a diferenciação temporal da língua. E, de
acordo com parâmetros diacrónicos, o que a distingue da anterior é o facto
de nela se terem desenvolvido e generalizado algumas mudanças linguísticas
que, ao longo dessa fase, convivem com os fenómenos correntes na etapa
anterior. Trata-se de uma fase evolutiva de acentuada efervescência linguís-
tica, como, aliás, corresponde a um período de grande mobilidade geográfica
e social55, sendo também uma fase de coexistência de tradições linguísticas,
as tradições mais antigas e as tradições mais recentes que contendiam entre si.
É este último aspecto que permite caracterizar este período da história da
língua portuguesa como um período de transição. Embora sem fazer referên-
cia directa e explícita à situação por nós evocada, no seu Curso de história
da língua portuguesa, Ivo Castro afirma o seguinte em relação ao período
que designa de português médio (ou pré-clássico) e que cronologicamente se
situaria entre o reinado de D. João I e o ano de 1536 com que simbolicamente
faz coincidir o início do português clássico: «(...) foi uma longa transição da
língua medieval para uma plataforma estável e “clássica”»56.
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Eliminada a situação de variação que caracterizava a língua escrita da
segunda fase arcaica e regularizados os paradigmas morfológicos – verbais
e nominais –, essa modalidade linguística, após haver feito uma escolha defi-
nitiva entre as diferentes soluções, adquire um considerável grau de estabi-
lidade e, em meados do século XVI, encontra-se no “limiar” do português
moderno da época clássica.
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