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V Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas

Públicas 26 a 29/04/2022, UFRN, Natal (RN), evento online/remoto

ST13 - Mobilizações pelos territórios importam? Movimentos socioterritoriais, poder local e


políticas públicas

TECNOLOGIAS SOCIOTERRITORIAIS (TST) COMO INSTRUMENTOS PARA A


PRODUÇÃO DE TERRITORIALIDADES EMANCIPADORAS NOS ASSENTAMENTOS DE
REFORMA AGRÁRIA

Aline Albuquerque Jorge


Universidade Estadual Paulista, Doutoranda em Geografia, Presidente Prudente, SP.
aline.albuquerque@unesp.br

Naiara Diniz da Mota


Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Graduanda em Serviço Social, Uberaba, MG.
naiaradinizdm@gmail.com

Wuelliton Felipe Peres Lima


Universidade Estadual Paulista, Graduando em Geografia, Presidente Prudente, SP.
Wuelliton.peres@unesp.br

Bernardo Mançano Fernandes


Universidade Estadual Paulista, professor, Presidente Prudente, SP.
mancano.fernandes@unesp.br
Resumo

Os assentamentos de reforma agrária são territórios camponeses em que se produzem


diferentes graus e formas de territorialidades subalternas e emancipadoras. As
territorialidades subalternas são aquelas em que o capital usa o território camponês e se
apropria da renda da terra camponesa. Já as territorialidades emancipadoras são aquelas em
que os camponeses mantêm o controle sobre seus territórios, produções e comercialização.
Neste trabalho, discutimos e trabalhamos exemplos de Tecnologias Socioterritoriais (TST)
produzidas e utilizadas pelos movimentos socioterritoriais que colaboram para o aumento da
autonomia e para o protagonismo dos camponeses na produção de soluções adequadas para
os problemas de suas vidas, o que contribui para a permanência desses sujeitos em seus
territórios e para a emancipação.

Palavras-chave: Território. Subalternização. Emancipação. Tecnologias Socioterritoriais


(TST).

INTRODUÇÃO

Os assentamentos de reforma agrária são territórios camponeses, conquistados a


partir das lutas dos movimentos socioterritoriais. Enquanto territórios, os assentamentos são
marcados pela conflitualidade, por disputas permanentes pelo controle das territorialidades,
isto é, das formas de uso do território. Desse modo, nos assentamentos são produzidas
distintas territorialidades, sendo que no lote de cada assentado pode se desenvolver, ao
mesmo tempo ou em tempos diferentes, diferentes usos do território, camponeses e
capitalistas (ORIGUÉLA, 2019).
Compreendemos que a territorialização do capital no território camponês reflete na
produção de territorialidades subalternas, isso porque o capital monopoliza o território e se
apropria da renda da terra camponesa. Existem diferentes formas e graus de subalternização
que se desenvolvem conforme um conjunto de elementos internos e externos às unidades
camponesas. Muitas vezes, a subalternização ao capital é o meio encontrada pelos
camponeses para se manter na terra de trabalho (ROOS, 2015; ORIGUÉLA, 2019).
Contudo, paralelo ao processo de subalternização, os camponeses constroem
resistências territoriais, baseadas na luta por autonomia e soberania. Essas resistências
territoriais produzem territorialidades emancipadoras. Assim como as territorialidades
subalternas, as territorialidades emancipadoras também se desenvolvem de diferentes
formas e graus. Os movimentos socioterritoriais desenvolvem várias estratégias para
aumentar o nível de autonomia e emancipação camponesa, como por exemplo, a
apropriação/produção de técnicas visando melhorar condições de produção, comercialização,
entre outros.
Neste trabalho, temos como centralidade discutir como a produção tecnológica dos
movimentos contribuem para a produção de territorialidades emancipadoras. Para isso,
utilizamos o conceito de Tecnologia Socioterritorial (TST), considerando que esse conceito é
novo na geografia e surge como uma proposta de método que permite realizar uma leitura
geográfica das tecnologias criadas e utilizadas para a produção, organização, manutenção e
reprodução dos territórios (SANSOLO et al, 2021; REDONDO TIRANO, 2021). Essa proposta
é resultado da articulação entre duas pesquisas: uma de doutorado ainda em andamento e
outra de iniciação científica já concluída.
Para cumprir nosso objetivo nos baseamos em pesquisa bibliográfica, dados de
trabalhos de campo e entrevistas, realizadas com camponeses oriundos de assentamentos
de reforma agrária localizados nos estados do Paraná. Ao longo do texto, citamos um trecho
de uma das entrevistas realizadas, usando um nome fictício para fazer a identificação da fala,
pensando em preservar a identidade do entrevistado.
O trabalho segue dividido em quatro partes além da introdução e das considerações
finais. Na primeira discutimos brevemente os conceitos de território e territorialidade, a partir
de uma perspectiva multidimensional. Na segunda explicamos e citamos exemplos de como
são produzidas territorialidades subalternas e emancipadoras. Na terceira, abordamos o
conceito de TST. Na última, apresentamos exemplos de TST para a produção e a
comercialização de alimentos desenvolvidas nos territórios camponeses, destacando a
importância dessas TST para a emancipação camponesa.

1. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA


MULTIDIMENSIONAL

O conceito de território é utilizado por diversas áreas do conhecimento e por


instituições públicas e privadas na elaboração de projetos de desenvolvimento, a partir de
distintos significados e interpretações. Apesar da multiplicidades de usos e significações, é
importante para a geografia elaborar sua própria compreensão sobre o conceito de território,
antes de emprestar formulações de outras áreas do saber, pois conforme afirma Santos
(2006, p. 56) “conceitos em uma disciplina são frequentemente apenas metáforas nas outras,
por mais vizinhas que se encontrem [...]”.
A criação ou o uso de um determinado conceito é sempre um ato político, que está
relacionado com a intencionalidade, a teoria, a visão de mundo de quem realiza. Portanto,
podemos conceituar o território a partir de uma significação restrita, que pode encobrir
elementos, ou a partir de uma significação ampla, capaz de revelar elementos (FERNANDES,
2008).
Frequentemente, cientistas de diferentes especialidades, incluindo alguns
geógrafos, optam por uma significação restrita, conceituando o território a partir de uma
perspectiva unidimensional, isto é, apenas como uma dimensão das relações sociais
(FERNANDES, 2005). Todavia, partindo de uma significação ampla, compreendemos que o
território é multidimensional, o que quer dizer que é formado por várias dimensões, como a
política, econômica, social, ambiental e cultural (RAFFESTIN, 1993; FERNANDES, 2005;
2008; 2009).
Dessa forma, entendemos que a multidimensionalidade é uma propriedade do
conceito de território, sendo que cada dimensão possui as outras, de modo que todas elas
estão interligadas e, por isso, é impossível explorar uma sem gerar desdobramentos nas
demais (FERNANDES, 2008; 2009).
Outra propriedade do conceito de território é a multiescalaridade, que revela que o
território está organizado em várias escalas, desde a local até a internacional, sendo que,
assim como as dimensões, as escalas também estão interligadas, portanto, uma ação em
escala local, por exemplo, pode ter desdobramentos em escala regional, nacional ou
internacional. (FERNANDES, 2008; 2009).
Cada território, independente da escala, é uma totalidade, pois contém todas as
dimensões. Enquanto totalidade o território sempre está em movimento, transformação,
sendo marcado pela conflitualidade, pelas relações de poder. Segundo Raffestin (1993), o
território é um espaço apropriado e determinado por relações sociais, é um espaço em que
se projetou um trabalho. Nessa definição podemos entender que o território é uma produção
a partir do espaço, sendo que o que determina a transformação do espaço em território é
justamente a apropriação. Portanto, nas palavras do autor: “o espaço é a "prisão original", o
território é a prisão que os homens constroem para si” (RAFFESTIN, 1993, p. 144).
Na condição de espaço marcado pela conflitualidade e pela permanente
transformação, o território está sempre em um movimento de expansão/fluxo,
destruição/refluxo ou criação/conquista (territorialização – desterritorialização -
reterritorialização) (FERNANDES, 2005). Esse movimento é determinado pelas relações de
poder entre as classes sociais, que se desenvolvem de forma intencional e dissimétrica, com
o objetivo de defender interesses, criar ou preservar territórios e territorialidades
(RAFFESTIN, 1993).
Segundo Raffestin (1993, p. 160), as territorialidades se definem como “[...] um
conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo
[...]”. Portanto, a territorialidade é a soma de relações estabelecidas por um determinado
sujeito com o seu meio, é a forma das sociedades satisfazerem suas necessidades em um
dado momento. Nesse sentido:

A territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo


das coisas. Conceber a territorialidade como uma simples ligação com o
espaço seria fazer renascer um determinismo sem interesse. É sempre uma
relação, mesmo que diferenciada, com os outros atores (RAFFESTIN, 1993,
p. 161).

Assim como Roos (2015), compreendemos que a territorialidade é o uso do território,


que está expresso na paisagem e que determina a configuração territorial. Como o território
é marcado pela permanente conflitualidade, as territorialidades variam no tempo e no espaço,
segundo as relações de poder, os processos de dominação (SAQUET, 2007). Além disso,
ainda existem territórios em que se desenvolvem diferentes usos simultaneamente, refletindo
na formação de pluriterritorialidades, ou ainda, territórios em que se desenvolvem diferentes
usos em tempos distintos, desdobrando na formação de multiterritorialidades (ORIGUÉLA,
2019).
De acordo com essa abordagem, entendemos que existem diversos tipos de
território, como os territórios dos países, estados, municípios e das propriedades. Esses
territórios produzem e são produzidos a partir de distintas relações sociais e
intencionalidades. O território camponês, por exemplo, é diferente do território capitalista.
Conforme assevera Origuéla (2019):

Nos territórios camponeses as territorialidades são sistemas de relações que


objetivam a reprodução da vida. Os usos desses territórios são baseados no
trabalho familiar, na produção de alimentos, na relação com a natureza, na
luta por autonomia, em tentativas de equilibrar diferentes elementos que
fazem parte de um modo de viver, saber e produzir que se contrapõe ao
capitalista (ORIGUÉLA, 2019, p.154).

Dessa forma, territórios camponeses e territórios capitalistas estão em constante


conflitualidade, sendo que de acordo com Fernandes (2008):

[...] o território capitalista se territorializa destruindo os territórios


camponeses, ou destruindo territórios indígenas ou se apropriando de outros
territórios do Estado. Os territórios camponeses se territorializam destruindo
o território do capital, ou destruindo territórios indígenas ou se apropriando
de outros territórios do Estado (FERNANDES, 2008, p. 289).

Além de se territorializar destruindo territórios camponeses, o capital também


expande seu domínio se apropriando desses territórios, por meio do controle das formas de
uso, isto é, das territorialidades, refletindo na subalternização dos povos campesinos (ROOS,
2015; ORIGUÉLA, 2019). Contudo, a subalternização não ocorre sem resistência, sendo que
muitas vezes, os camponeses mesmo em condições de subalternidade lutam por maiores
graus de autonomia e pela produção de territorialidades emancipadoras.
Consideramos os assentamentos de reforma agrária como territórios camponeses,
conquistados a partir das lutas dos movimentos socioterritoriais1, dentre eles, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nesses territórios se desenvolvem tanto
territorialidades subalternas, quanto territorialidades emancipadoras, sendo que os
movimentos constroem diversas técnicas, objetos e procedimentos para aumentar o grau de
autonomia e emancipação dos camponeses em seus territórios. A seguir, aprofundaremos o
debate acerca da produção de territorialidades subalternas e emancipadoras nos
assentamentos de reforma agrária.

2.SUBALTERNIZAÇÃO X EMANCIPAÇÃO NOS TERRITÓRIOS CAMPONESES

O desenvolvimento do capitalismo no campo se nutre também de relações não


capitalistas de produção, quer dizer, relações camponesas, baseadas no trabalho familiar
(OLIVEIRA, 2001; ROOS, 2015; 2016). Nesse sentido, apesar dos assentamentos de reforma
agrária serem territórios camponeses, que produzem e são produzidos por meio de relações
sociais camponesas, neles também se desenvolvem relações capitalistas de produção, o que
indica que no interior dos assentamentos se desenvolve uma constante disputa pelo controle
do uso do território, ou seja, da territorialidade.
Conforme explica Origuéla (2019), o uso capitalista do território diverge do uso
camponês. Enquanto o primeiro tem como finalidade a reprodução ampliada do capital, o
segundo objetiva a reprodução da vida e da família. As disputas pelo controle das
territorialidades nos assentamentos ocorrem porque, em alguns momentos, ao invés de se
territorializar, é mais vantajoso para o capital monopolizar o território camponês, subordinando
a sua produção à indústria, dominando a circulação e se apropriando da renda da terra
camponesa (OLIVEIRA, 2001; ROOS, 2015; 2016). Segundo Origuéla (2019, p. 261) “os
mecanismos de usurpação da renda da terra não se restringem à apropriação das
mercadorias produzidas pelos camponeses, uma vez que diferentes tipos de capitais
monopolizam a circulação de mercadorias, como o capital industrial e o financeiro”.
Além da apropriação da renda da terra, a dependência das tecnologias produzidas
pelo capital contribuem amplamente para a subalternização camponesa, sendo que através
dos pacotes tecnológicos, o capital controla também a forma como o trabalho camponês é
desenvolvido, quer dizer, como suas mercadorias são produzidas (ROOS, 2015; 2016;
ORIGUÉLA, 2019).
Entendemos que a territorialização do capital no território camponês tem como efeito
a produção de territorialidades subalternas (ROOS, 2015; 2016). A subalternização acontece

1
Sobre o conceito de movimento socioterritorial ver Fernandes (2005).
nos assentamentos de diferentes formas, a depender de um conjunto de fatores internos e
externos às unidades camponesas, tais como a disponibilidade de mão de obra para o
trabalho no lote; as variações de preço dos produtos agrícolas; as ações do Estado por meio
de políticas públicas, as ações dos movimentos socioterritoriais e etc. (ORIGUÉLA, 2019).
Dentre as formas de uso do território camponês pelo capital, temos a inserção dos
assentados no sistema produtivo do agronegócio, caracterizado pela produção de
commodities (soja, milho, cana-de-açúcar), com uso de maquinários, sementes
geneticamente modificadas, adubos químicos e agrotóxicos. Percebemos, com base em
trabalhos de campo realizados em assentamentos de reforma agrária no estado do Paraná,
que o cultivo da soja e a adoção do modelo produtivo do agronegócio têm se expandido nos
territórios camponeses nos últimos anos, atingindo, inclusive, áreas caracterizadas por solos
não adequados para cultivo da oleaginosa.
Um dos principais motivos para atração dos assentados por esse cultivo específico
é a sua valorização no mercado internacional, especialmente nos últimos anos, sendo que a
cotação da soja no início de 2022 está em torno de 200,00 reais a saca, valor 17,7% maior
comparado ao mesmo período do ano anterior, segundo o indicador do Centro de Estudos
Avançados em Economia Aplicada (CEPEA), base Paranaguá (PR) (CEPEA, 2022).
A adoção do sistema produtivo do agronegócio também está relacionada a outros
elementos, como o fato desse modelo depender de pouca mão de obra, fazendo com que
seja comum observamos a opção pelas monoculturas temporárias em lotes pertencentes a
pessoas idosas, muitas vezes já aposentadas, que não conseguem mais desenvolver outros
tipos de cultivo e atividades que exigem mais trabalho na terra. Além disso, ainda há uma
dimensão ideológica, que faz com que vários assentados considerem que o modelo agrícola
convencional e a produção de commodities é mais vantajoso e desejável, apesar de
possuírem pequenas áreas.
Com a produção no molde da agricultura capitalista, os camponeses necessitam
incorporar técnicas e tecnologias que não dominam, que são desenvolvidas pelas
corporações produtoras de insumos e maquinários, cujos preços são controlados pelo capital
industrial e comercial (PAULINO, 2004). Nesse sentido, as cooperativas, cerealistas e lojas
agropecuárias passam a atuar nos assentamentos, forjando laços de dependência como o
fornecimento de insumos mediante condições de pagamento atreladas à entrega dos
resultados da produção (ROOS, 2015). Essa estratégia, permite que as empresas drenem
“[...] a renda gerada pelos camponeses para as camadas capitalistas” (ROOS, 2016, p. 178)
em dois momentos distintos: primeiro, durante a produção, com a venda dos insumos
necessários, depois, na comercialização dos resultados da produção (ROOS 2015;
ORIGUÉLA, 2019).
Em várias situações, a territorialização do agronegócio no território camponês ocorre
associada ao arrendamento parcial ou total da terra. De acordo com Roos (2015), nos
assentamentos esse processo acontece de duas formas: a primeira é quando os lotes são
arrendados para pessoas de fora dos assentamentos, que normalmente possuem os
maquinários necessários às lavouras mecanizadas, que arrendam vários lotes dentro de um
mesmo assentamento e possuem vasta extensão de terras próprias e/ou arrendadas externas
ao assentamento. A segunda forma, é o arrendamento de camponês para camponês, sendo
o camponês-rendeiro um sujeito que dispondo da infraestrutura básica, arrenda lotes vizinhos
para expandir o cultivo de grãos, entre outros.
O grau de subalternização dos camponeses varia conforme seus níveis de inserção
no modelo do agronegócio. Desse modo, existem camponeses altamente subordinados, que
ocupam ou que arrendam todo o seu lote com a produção de soja, por exemplo, dependendo
exclusivamente desta cultura, não produzindo alimentos nem mesmo para o autoconsumo.
Da mesma forma, existem camponeses parcialmente subordinados, que são aqueles que
produzem ou arrendam parte de seu lote para o cultivo de soja e outros grãos, separando
espaços para a produção de hortaliças, leite, criação de porcos e galinhas para autoconsumo
e comercialização em escala local (ORIGUÉLA, 2019).
Sendo assim, percebemos que um mesmo território camponês pode ser desenvolver
formas de uso capitalistas e camponesas, desdobrando na produção de
(pluri)(multi)territorialidades. É válido destacar que a subalternização não é um processo
linear, que ocorre sem que haja resistência por parte dos assentados (ROOS, 2015;
ORIGUÉLA, 2019). Portanto, se integrar ao capital, é uma estratégia adotada pelos
camponeses para continuar existindo, para permanecer na terra de trabalho. Segundo
Oliveira (2001)
É dentro desse processo de sujeição da renda da terra que o capital entra no
mundo do pequeno lavrador camponês, sitiando-o pela ação dos monopólios.
Mas é aí mesmo que é gestado o movimento contrário, que leva à união
desses trabalhadores enquanto classe. E a “liberdade de produzir” tem sido
a bandeira empunhada por esses camponeses (OLIVEIRA, 2001, p. 12).

Dessa forma, se por um lado, a expansão capitalista no campo se intensifica e


complexifica, incorporando novos mecanismos para dominação dos territórios e apropriação
da renda da terra, por outro, a resistência camponesa também avança. Portanto, nos
assentamentos de reforma agrária, paralelo as territorialidades subalternas, existem territórios
em que são produzidas territorialidades emancipadoras, isto é, outras formas de uso do
território, baseadas “[...] na autonomia, na soberania, na emancipação das amarras do capital”
(ORIGUÉLA, 2019, p. 234).
Assim como subalternização, a emancipação também acontece nos assentamentos
de diferentes formas e graus, dependendo de fatores internos e externos, como os já
mencionados. Dentre os fatores externos, as políticas públicas são bastante determinantes,
sendo que conforme a correlação de forças dentro dos governos, as políticas para a
agricultura camponesas/familiar podem ser implementadas apenas sob a perspectiva da
subalternização ao capital, ou então, podem possibilitar o aumento do nível de autonomia e
emancipação dos camponeses.
As ações dos movimentos socioterritoriais também contribuem sobremaneira para a
emancipação camponesa. Isto porque, além de reivindicar e construir políticas
emancipatórias, os movimentos desenvolvem diversas estratégias para aumentar grau de
autonomia dos assentados, inclusive, se apropriam e produzem suas próprias técnicas,
visando melhorar as condições de produção, comercialização, entre outros.
A apropriação e produção de técnicas/tecnologias influencia diretamente nos tipos
de territorialidades desenvolvidas nos assentamentos. Nesse sentido, é importante
compreendermos como se realiza e de que forma a produção tecnológica dos movimentos se
constitui em um elemento central para a emancipação camponesa. Neste trabalho, utilizamos
o conceito de tecnologias socioterritoriais (TST) para discutir a relação entre as tecnologias e
a produção e reprodução de territórios e territorialidades. Na próxima seção, abordamos o
conceito de TST, destacando mais adiante as TST voltadas para a produção dos territórios
camponeses.

3. TECNOLOGIAS SOCIOTERRITORIAIS (TST) E A EMANCIPAÇÃO DO TERRITÓRIO


CAMPONÊS

O conceito de tecnologias socioterritoriais (TST) é recente no debate geográfico


(SANSOLO et al, 2021; REDONDO TIRANO, 2021) e surge visando destacar a importância
estratégica das técnicas no processo de produção, organização, manutenção e reprodução
dos territórios em uma perspectiva multidimensional e multiescalar. Segundo Sansolo et al
(2021), o conceito de TST nasce pela integração da perspectiva geográfica de território com
o conceito de tecnologias sociais (TS). A discussão sobre as TST inaugura uma nova
possibilidade de análise territorial, pois destaca o papel fundamental que a construção e
implementação das técnicas desempenha no processo de produção e reprodução dos
territórios e das territorialidades.
A produção do território é mediada, em grande parte, pela construção de diversas
técnicas. As técnicas são o conjunto de meios instrumentais (objetos e ferramentas) ou sociais
(conhecimentos organizados e procedimentos) que os seres humanos constroem e se
apropriam visando a materialização de suas existências, o aumento da produtividade de seu
trabalho e a superação dos obstáculos impostos pela realidade (SANTOS, 2006, 1978;
PINTO, 2013; DAGNINO, 2014; DIAS & NOVAES, 2009; SEIXAS et al, 2015). A existência
dos seres humanos enquanto sujeitos sociais, culturais e históricos é condicionada, em
grande parte, pela produção, emprego e aprimoramento de suas técnicas (PINTO, 2013). Há
diversos tipos de técnicas, elaboradas para os mais diversos fins, como a construção civil,
agricultura, pecuária, atividades científicas, industriais, financeiras, pedagógicas, de
comunicação, etc.
A técnica é o principal meio desenvolvido pelos seres humanos para realizar o
processo produtivo, o qual está em constante movimento e transformação, em função da
descoberta/elaboração de novas técnicas e do refinamento das técnicas pré-existentes. O
empenho dos sujeitos sociais para elaboração ou refinamento das técnicas está relacionado
ao aumento da produtividade e/ou da emancipação do trabalho nas diversas dimensões da
atividade humana. O aumento da produtividade significa a redução do tempo dedicado ao
trabalho, quer dizer, a obtenção de um maior rendimento devido às novas técnicas
empregadas (SANTOS, 1978). Já a emancipação do trabalho está relacionada ao
crescimento da autonomia e da soberania dos sujeitos (ORIGUÉLA, 2019) que, a partir de
seus próprios meios e objetivos, desenvolvem técnicas próprias para sua reprodução social.
Compreendemos que a diferença entre técnica e tecnologia é relativa de autor para
autor (PINTO, 2013). Nossa análise está baseada nas contribuições teórico-conceituais de
Álvaro Pinto (2013). Segundo o autor, a técnica é entendida como o conjunto indissociável de
conhecimentos, ações e objetos que os seres humanos elaboram para reproduzir suas vidas.
Já a tecnologia está relacionada ao seu significado etimológico, ou seja, ao estudo das
técnicas. Em outras palavras, a tecnologia é a perspectiva científica e sistemática voltada a
compreender os diversos sistemas técnicos produzidos e apropriados pela sociedade. Isso
envolve um conjunto de elementos multidimensionais, como o processo de produção dos
conhecimentos, a organização das relações sociais, a produção dos procedimentos e objetos,
suas consequências e tendências sociais e ambientais (PINTO, 2013).
O conceito de TST nos permite elaborar análises territoriais que enfoquem,
sistematicamente, a produção tecnológica - conjunto de técnicas - de forma indissociável das
dimensões (política, cultural, econômica, ambiental, etc) dos territórios. A produção
tecnológica, como parte do processo de produção e reprodução dos territórios e das
territorialidades em uma perspectiva multidimensional , está sempre relacionada com as
intencionalidades dos sujeitos que a realizam.
Nosso estudo vincula o território com as Tecnologias Sociais (TS), que são todo
conjunto de técnicas, estratégias, procedimentos e objetos construídos pela relação de
conhecimentos acadêmicos e saberes populares, visando a produção de soluções práticas,
sustentáveis, economicamente viáveis e de fácil aplicação/apropriação nas relações sociais,
para os problemas da vida cotidiana dos sujeitos e o desenvolvimento territorial das
comunidades (DAGNINO, 2014; DIAS & NOVAES, 2009; SEIXAS et al, 2015; SANSOLO et
al, 2021). As TS, por serem produzidas visando o desenvolvimento social das comunidades,
viabilizam os pequenos empreendimentos, a inclusão social, os valores de solidariedade,
soberania, práticas socioambientais sustentáveis, a troca de experiências, a tomada coletiva
de decisões e a libertação das potencialidades criativas para desenvolver e renovar os
conhecimentos e as tecnologias (DAGNINO, 2014; DIAS & NOVAES, 2009; SEIXAS et al,
2015; SANSOLO et al, 2021).
Como já debatido acima, nos territórios dos assentamentos de reforma agrária se
desenvolvem tanto territorialidades subalternas quanto territorialidades emancipadoras e
ambas estão em constante processo de conflitualidade. Compreendemos que as TST são
uma das dimensões do processo de uso do território, ou seja, uma forma de territorialidade e,
devido a isso, estão contidas neste movimento de conflitualidade no interior dos
assentamentos. Os assentados que buscam aumentar o grau de emancipação se empenham
na produção de TST com base em TS. Suas TST contribuem com a sustentabilidade, pois
exploram as capacidades humanas de observação, compreensão e apropriação das
dinâmicas naturais, visando otimizar os processos ecológicos e utilizá-los a favor da
manutenção e da reprodução dos territórios. Assim, nos assentamentos são criados diversos
tipos de TST para produção de um sistema agrícola que possibilite maiores níveis de
autonomia, emancipação e sustentabilidade.
O processo de desenvolvimento das TST nos assentamentos de reforma agrária é
atravessado pelas práticas agroecológicas. Compreendemos a agroecologia como o conjunto
indissociável e sistêmico de conhecimentos tradicionais/culturais e princípios científicos que
abre mão da utilização dos pacotes tecnológicos produzidos pelos territórios do agronegócio,
potencializando práticas que respeitam aos saberes culturalmente construídos pelas
comunidades locais, que preservam a biodiversidade e promovem os protagonismos dos
sujeitos para produzirem suas vidas (CAPORAL e COSTABEBER, 2002; ALTIERI, 2010)
A agroecologia é uma ciência que utiliza um conjunto multidisciplinar de
conhecimentos acadêmicos e saberes produzidos por comunidades locais para construir
desenhos e manejos adequados dos diversos tipos de agroecossistemas. As orientações
fundamentais da agroecologia são multidimensionais e não meramente restritivas ao sistema
agrícola ou as etapas de comercialização dos alimentos. As demais dimensões (econômica,
política, ética, cultural e simbólica) também estão contidas no processo de repensar os modos
de vida e de produção dos conhecimentos (ALTIERI, 2010). Segundo Fernandes (2019), a
agroecologia, como ciência, também compreende diversas dimensões do saber científico
(pedologia, botânica, geografia, agronomia, sociologia, economia, etc).
Na sequência, vamos debater exemplos de TST identificadas no interior dos
territórios de assentamentos de reforma agrária voltadas para a produção e para a
comercialização de alimentos, buscando destacar seu papel estratégico para o crescimento
da autonomia e da soberania dos assentados (ORIGUÉLA, 2019), bem como, o protagonismo
destes sujeitos na elaboração de técnicas próprias para solucionar os problemas da realidade.

4. TECNOLOGIAS SOCIOTERRITORIAIS PARA A EMANCIPAÇÃO DO TERRITÓRIO


CAMPONÊS

4.1 TST para a produção de alimentos: o cultivo de arroz agroecológico no


assentamento Pontal do Tigre

Durante um trabalho de campo realizado no assentamento Pontal do Tigre,


localizado no município de Querência do Norte (PR), vinculado ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), identificamos a utilização de diversas técnicas para
produção de arroz agroecológico. Segundo o assentado entrevistado Luiz, o cultivo de arroz
agroecológico no assentamento iniciou há mais de 20 anos, conforme o trecho exposto a
seguir:

A partir de 2000 eu vim para cá e, em 2001, comecei a praticar a agroecologia


e o plantio de arroz orgânico. Que daí eu comecei a participar das jornadas
estaduais de agroecologia no Paraná e lá a gente aprendeu a fazer algumas
práticas de adubo orgânico e semente crioula [...] e através da agroecologia
retoma todo esse processo de preocupação com a semente, preocupação
com natureza, preocupação com a água, com o meio ambiente e toda essa
discussão pertinente. E aí eu achei melhor não só participar, mas tentar fazer
alguma prática e comecei no arroz né. Daí assim, os primeiros anos foi difícil
né, porque tinha uma produção, mas na hora da venda, vendia de forma
convencional, né, então não agregava valor, né. Há menos de 5 anos agora,
que a gente conseguiu, então, já ter a certificação, né, que garante 30% a
mais do valor [...] (Luiz em entrevista concedida a JORGE, 2021).

Atualmente, o entrevistado produz quatro variedades de arroz: o arroz branco,


popularmente conhecido como agulhinha; arroz vermelho, popularmente conhecido como
pérola; o arroz arbóreo e o arroz preto. Na Imagem 1 mostramos a produção de arroz
agroecológico do assentado Luiz. Ao longo de sua prática, o assentado informa que enfrentou
diversos desafios com plantas invasoras (como o capim arroz - Echinochloa crus-pavonis) e
insetos indesejados (como a mosca branca - aleyrodidae) que prejudicam a produção,
trazendo inúmeros inconvenientes e perdas financeiras. Um dos princípios da agroecologia é
a não utilização de agrotóxicos (ALTIERI, 2010; CAPORAL & COSTABEBER, 2002). Os
agrotóxicos são características fundamentais dos sistemas agrícolas convencionais,
apropriados/produzidos pelos territórios do agronegócio (FERNANDES, 2019). Dessa forma,
para solucionar os problemas dessa natureza, os camponeses elaboraram e/ou se
apropriaram de um conjunto de técnicas agroecológicas de combate e afastamento das
plantas e insetos invasores.

Imagem 1: cultivo de arroz agroecológico do assentado Luiz no assentamento Pontal do Tigre (PR)

Fonte: os autores.

Dentre essas técnicas está o uso de extrato de Nim (Azadirachta indica A. Juss) e
de calda sulfocálcica - produto preparado à base de óxido de cálcio e enxofre. O extrato de
Nim pode ser feito com a utilização tanto das folhas quanto do próprio fruto da árvore. O
preparo desse inseticida é relativamente simples: as folhas e o fruto são triturados e
dissolvidos em uma garrafa de 2 litros com uma solução de água e álcool. Já a calda
sulfocálcica é proveniente da mistura de duas substâncias diferentes: o cal virgem (óxido de
cálcio) e o enxofre. Esse produto é rico em nutrientes para as plantas e também possui ação
fungicida. A utilização do extrato de Nim e da calda sulfocálcica possuem inúmeros benefícios
Além disso, a preparação desses produtos é de baixo custo econômico, o que faz com eles
sejam TST de alta acessibilidade.
Outra TST identificada para produção do arroz agroecológico foi a utilização de
marrecos para o controle de plantas e animais invasores. Para experimentar a eficiência
dessa TST em seu lote, o camponês Luiz adquiriu 300 marrecos e seguiu um conjunto de
procedimentos, conforme a orientação de técnicos da Emater. A primeira etapa do processo
consistiu em treinar os animais a procurar grãos de arroz para se alimentar. Para tal, os
marrecos foram isolados em um espaço reservado por um período de até 15 dias, sendo que
nesse espaço-tempo, os animais foram alimentados somente com grãos de arroz.
No período entressafras os marrecos, já treinados, são soltos na área de cultivo para
buscar os grãos que se desprenderam e caíram no chão. Durante o processo de busca do
alimento, os marrecos utilizam seus bicos e suas patas para revirar o solo,
consequentemente, auxiliam na descompactação e no preparo deste para nova semeadura,
reduzindo o uso de maquinários. De acordo com os camponeses entrevistados e algumas
pesquisas científicas (NOLDIN et al, 2004; ESCHER, 2013) os marrecos ainda consomem as
plantas e insetos indesejados, atuando como um agente de controle biológico; limpam o
ambiente das palhas do arroz que se desprende durante a colheita e, por fim, adubam o solo.
Além de assumir inúmeras funções na produção de arroz, os marrecos também são uma fonte
de renda para os assentados, que comercializam os animais para o consumo da carne.
Essas TST fazem com que os assentados não dependam das técnicas produzidas
pelos territórios do agronegócio, como os adubos químicos e agrotóxicos. Dessa forma, elas
proporcionam um alto grau de autonomia e emancipação, uma vez que a transferência da
renda da terra para o capital é a menor possível. O aumento do nível de emancipação é
percebido nas falas do assentado Luiz e seus familiares, que afirmam que com o uso dessas
TST é possível reduzir os gastos da produção e trabalhar de maneira mais autônoma,
estabelecendo uma relação harmoniosa com a natureza.
Outro aspecto que vale destacar é a importância da certificação para os camponeses
que trabalham com a agroecologia. Conforme o relato do assentado Luiz, antes da
certificação sua produção era comercializada no mesmo preço da convencional. Após a
certificação agroecológica foi possível obter um acréscimo de 30% no valor da saca de arroz.
Assim, percebemos que a certificação, a medida que possibilita a valorização da produção, é
uma forma de incentivar os assentados a adotarem o modelo agroecológico.

4.2 TST para comercialização de alimentos: o caso da feira de agricultura camponesa


(FAC) da Universidade Federal do Triângulo Mineiro em Uberaba (MG)

As redes de comercialização dos alimentos produzidos nos assentamentos de


reforma agrária são TST fundamentais no processo de emancipação dos assentados. A partir
dessas TST, são produzidos mercados alternativos, socialmente justos e sem intermediários,
que permitem a apropriação da renda da terra camponesa pelo camponês e o contato direto
desse sujeito com o consumidor final. Em Uberaba (MG), na Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM), mapeamos um exemplo de TST para comercialização de
alimentos: a Feira da Agricultura Camponesa (FAC). A FAC é realizada semestralmente na
UFTM como uma das ações do programa de extensão Fortalecendo a Agricultura Camponesa
em Uberaba (FACU), sendo que no primeiro semestre de cada ano a feira ocorre junto à
Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária (JURA), ressaltando o papel da
universidade na luta ao lado do campesinato pela reforma agrária popular em suas múltiplas
dimensões.
A FAC é construída por diversos sujeitos sendo eles discentes, docentes,
camponeses, assentados da reforma agrária, extensionistas e a comunidade interna da
UFTM. Os assentados que participam da feira são oriundos de diversos territórios, dentre
eles os assentamentos Dandara, localizado em Uberaba (MG), vinculado ao MST; Nova
Santo Inácio Ranchinho, de Campo Florido (MG), ligado ao Movimento de Luta dos Sem Terra
(MLST) e Tereza do Cedro, de Uberaba (MG), vinculado a Federação dos Trabalhadores da
Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG). Também participam da feira famílias
oriundas dos acampamentos 19 de Março e Rosa Luxemburgo que sofreram reintegração de
posse em 2018; e a Cooperativa Camponesa de Produção da Reforma Agrária
(COPERCAMPRA), de Uberlândia (MG), ligada ao MST.
A equipe de extensionistas do FACU se divide em vários coletivos, tais como o
Coletivo de Produção (responsável pelas visitas aos assentamentos e pelo levantamento da
quantidade e variedade de alimentos a serem comercializados); o Coletivo de
Educação/Cultura (que trabalha com a perspectiva de fomentar espaços formativos e
educativos realizados durante a feira), e, por fim, o Coletivo de Comunicação (que realiza a
divulgação, articulando e publicando as ações desenvolvidas pelo programa).
Dessa forma, a FAC consiste em um território que possibilita a articulação dos
camponeses com a comunidade interna e externa à universidade. As ações realizadas nesse
território abrangem várias dimensões (educativa, cultural, social, política e econômica). No
que se refere à dimensão econômica, a FAC representa um meio de comercialização para os
camponeses em escala local, sem depender de atravessadores, que retém parte da renda da
terra camponesa. Além disso, na feira são os próprios camponeses que colocam preço em
seus produtos e, por conseguinte, em seu trabalho. Portanto, a FAC possibilita às famílias
assentadas e acampadas um maior nível de autonomia no que tange a comercialização.
Segundo informações compartilhadas pelos feirantes, eles recebem em média de
300 reais a 700 reais em um único dia de feira, descontando as despesas com transporte,
entre outros. Por meio do Coletivo de Produção da equipe FACU, foi calculado que nos anos
de 2018 e 2019 foram comercializados na feira cerca de 4 toneladas de alimentos advindos
da produção camponesa. Especificamente na edição de 2018, foram comercializados 12 tipos
de frutas, 17 de verduras e grãos, 10 folhosas e 19 quitandas do campo. Na Imagem 2,
mostramos alguns dos alimentos comercializados (MASSON, PINHEIRO, OLIVEIRA; 2021).
Imagem 2: Produção camponesa comercializada na FAC

Fonte: Projeto FACU (2018, arquivo interno)

Conforme pesquisas de campo realizadas pelo programa, a produção dos


camponeses participantes da feira possui baixo ou nenhum uso de agrotóxicos. As famílias
camponesas afirmam que as TST de manejo da produção são baseadas nos princípios da
agroecologia, utilizando-se de produtos como sabão, mamona, pimenta, álcool e água
sanitária. Cerca de 21 alimentos ofertados na FAC, incluindo frutas e hortaliças, possuem
certificação agroecológica participativa da COPERCAMPRA (MASSON, PINHEIRO,
OLIVEIRA; 2021).
Na dimensão cultural são apresentadas diversas expressões artísticas que remetem
à identidade do campesinato. Os momentos culturais da feira já contaram com a participação
de diversos sujeitos, sendo eles: a banda Insurgência Sertaneja; a banda Matéria Orgânica
de Franca (SP); coletivos de mulheres estudantes, professoras, servidoras e a comunidade
externa da UFTM. A feira contou também com a exposição da artista Daniella de Sousa S.
Nespoli intitulada "Expressões Quilombolas” que manifestam a luta dos povos quilombolas.
Por meio do Coletivo de Educação, diversas temáticas foram trabalhadas, tendo
como exemplo as rodas de conversa intituladas “A saúde está na mesa, comer é um ato
político” e “Socialização de dados da pesquisa DATALUTA: Banco de Dados da Luta pela
Terra”. Além disso, foram realizadas diversas oficinas sobre manejo e produção de alimentos
e o lançamento do documentário sobre a história de Pedro Xapuri “A Luta não para: Pedro
Rocha Xapuri”.
Concomitante a uma das edições da feira, foi produzido o documentário “Da Terra
para a Mesa: Documentando a resistência Camponesa na UFTM”, em parceria com o Levante
Popular da Juventude. Através do documentário ilustra-se o impacto social, político e
econômico da FAC, além de sua importância em Uberaba, município que possui o latifúndio
e o agronegócio extremamente enraizados (MASSON, 2020).
A FAC consiste em uma das principais ações do programa de extensão Fortalecendo
a Agricultura Camponesa em Uberaba, consistindo em um canal curto de comercialização,
que possibilita a relação direta entre os camponeses e seus consumidores finais (OLIVEIRA
et. al. 2017). Além de ser uma TST que promove a criação de um mercado camponês, a FAC
possibilita para a população de Uberaba o acesso à alimentos saudáveis e agroecológicos.
A articulação entre a comunidade acadêmica e os camponeses ressalta a
importância da extensão universitária como uma TST, pois por meio dela é construída uma
rede entre os camponeses dos assentamentos de Uberaba e região, contribuindo para a
realização de trocas enriquecedoras entre os envolvidos, para a produção de conhecimento,
criação de alternativas para comercialização e valorização da cultura camponesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os territórios dos assentamentos de reforma agrária são conquistados a partir das


lutas dos movimentos socioterritoriais. Após a conquista da terra, surgem outras demandas e
os camponeses iniciam uma nova fase de luta, em busca das condições para permanecer no
território e se reproduzir socialmente. No interior desses territórios há diversas
conflitualidades, sobretudo, entre as formas de uso do território, ou seja, entre as
territorialidades.
Compreender a territorialidade é necessário para apreender as relações de poder
presente no campo. Com isso, é possível entender as particularidades presentes no território
camponês e no território capitalista, bem como, as disputas entre esses dois tipos de território,
que desdobram nos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização e
na produção de territorialidades subalternas e emancipadoras.
A subalternização ocorre porque mesmo o assentamento sendo um território de
reforma agrária, as formas de uso do território seguem sendo disputadas pelo agronegócio,
que busca investir em ferramentas para o monopólio do território e a apropriação da renda da
terra camponesa, por meio do subsídio de agrotóxicos, maquinário, produção de
commodities, arrendamento da terra, sementes geneticamente modificadas, entre outros.
Em contrapartida, a possibilidade de territórios emancipadores é construída pelo
campesinato por meio das suas lutas, seja reivindicando políticas públicas para seu
fortalecimento e, principalmente, por meio da construção de tecnologias socioterritoriais
(TST). A concepção de tecnologias socioterritoriais (TST) surge a partir da integração da
perspectiva geográfica de território com o conceito de tecnologias sociais.
A produção de tecnologias socioterritoriais (TST) é fundamental para o processo de
produção de territorialidades emancipatórias nos assentamentos, como, por exemplo, a
produção de inseticidas e fungicidas agroecológicos, utilização de agentes biológicos para
controle de pragas, preparo do solo e construção de mercados alternativos para a
comercialização de alimentos. Há uma diversidade de TST utilizadas pelos camponeses para
a produção de territorialidades emancipadoras. Neste trabalho, discutimos as TST para a
produção de alimentos, a partir dos exemplos dois exemplos: as TST empregadas no
assentamento Pontal do Tigre (PR), através do cultivo de arroz agroecológico, utilizando
ferramentas como o extrato de Nim, calda sulfocálcica e os marrecos para o controle biológico
na produção; e o trabalho do programa de extensão Fortalecendo a Agricultura Camponesa
em Uberaba (FACU) que realiza semestralmente a Feira da Agricultura Camponesa da UFTM
(FAC) que trabalha o fortalecimento do campesinato em Uberaba (MG) e na região do
Triângulo Mineiro.
As TST contribuem com o aumento da autonomia e o protagonismo dos sujeitos na
produção de soluções simples e economicamente viáveis para solucionar os problemas de
sua realidade social e territorial, contribuindo com a permanência nos territórios e a
emancipação dos assentados que buscam produzir sistemas alimentares alternativos aos
impostos pelo capital.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


(CNPQ) pela concessão de bolsa durante o período de realização da pesquisa de iniciação
científica. Agradecemos também a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) pela concessão de bolsa para a pesquisa de doutorado (processo número
2020/15045-3).

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