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ANAIS DO V SEMINÁRIO

INTERNACIONAL DE
PESQUISA EM ARTE E
CULTURA VISUAL

ISSN 2595-8992
CARLA LUZIA DE ABREU
LILIAN UCKER PEROTTO
(ORGANIZADORAS)

ANAIS DO V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE

PESQUISA EM ARTE E CULTURA VISUAL

(en)volver

2022

ISSN: 2595-8992 DOI: 10.29327/1203597

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
GPT/BC/UFG

Bibliotecário responsável: Enderson Medeiros / CRB1: 2276

S471 Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual (5. : 2022 :


Goiânia, GO).
Anais da V Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura
Visual: (en)volver [recurso eletrônico / organizadoras, Carla Luzia de
Abreu, e Lilian Ucker Perotto. – Dados eletrônicos (1 arquivo : PDF). -
Goiânia : Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG,
Goiás, 2023.

Modo de acesso: World Wide Web:


<https://seminarioculturavisual.fav.ufg.br>
DOI 10.29327/1203597
ISSN: 2595-8992
Evento realizado remotamente: 06 a 09 de dezembro de 2022.

1. Artes - Congressos. 2. Cultura Visual - Congressos. 3. Arte, cultura


e sociedade. I. Abreu, Carla Luzia de. II. Perotto, Lilian Ucker. III. V
Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual.

CDU: 7.011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS [UFG]

Profa. Angelita Pereira de Lima


Reitora

Prof. Jesiel Freitas Carvalho


Vice-Reitor

Prof. Israel Elias Trindade


Pró-Reitoria de Graduação

Prof. Felipe Terra Martins


Pró-Reitoria de Pós-Graduação

Profa. Helena Carasek


Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação

Profa. Luana Cássia Miranda Ribeiro


Pró-Reitoria de Extensão e Cultura

Prof. Robson Maia Geraldine


Pró-Reitoria de Administração e Finanças

Prof. Everton Wirbitzki da Silveira


Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas

Profa. Maísa Miralva da Silva


Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis

Prof. Bráulio Vinícius Ferreira


Direção da Faculdade de Artes Visuais (FAV)

Prof. Cláudio Aleixo Rocha


Vice-Direção da Faculdade de Artes Visuais (FAV)

Prof. Samuel José Gilbert de Jesus


Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV-UFG)

Prof. Flávio Gomes de Oliveira


Vice-Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV-UFG)

Prof. Fernando Miranda


Coordenação do Programa de Pós-Graduação Maestría en Arte y Cultura Visual (Facultad de
Artes – UDELAR)

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V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM
ARTE E CULTURA VISUAL (2022)

COORDENAÇÃO GERAL
Profa. Dra. Carla Luzia de Abreu (PPGACV-FAV-UFG)
Profa. Dra. Lilian Ucker Perotto (PPGACV-FAV-UFG)

COMISSÃO ORGANIZADORA
Cristiano de Oliveira Sousa (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Giovanna Carolina Silva (Doutoranda, PPGACV-FAV-UFG)
Ícaro Lênin Maia Malveira (Doutorando, PPGACV-FAV-UFG)
Isabele Maria Geraldo Barbosa (Mestranda, PPGACV-FAV-UFG)
João Pedro Teles Pires (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Jocy Meneses dos Santos Junior (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Kassius Brunno Souza (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Luiza Domingos Barra (Mestranda, PPGACV-FAV-UFG)
Marcos Felipe Fidelis Araújo (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Marília de Paula Gontijo Macedo (Mestranda, PPGACV-FAV-UFG)

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EQUIPE DE MONITORIA
Ana Laura Matos Torquato (PPGACV-UFG)
Alliny Maia Siqueira de Carvalho Cabral (PPGACV-UFG)
Bruno Karasiaki Filene (PPGAC-UFG)
Gustavo Henrique Luz de Abreu (PPGACV-UFG)
Iram Leandro da Silva (PPGACV-UFG)
Luciana de Moura Ferreira (UFC)
Maria de Fátima França Rosa (PPGACV-UFG)
Márcia Santana Soares (PPGACV-UFG)
Nélia Cristina Pinheiro Finotti (PPGACV-UFG)
Renata Cunha Castro Okiyama (Graduanda, Psicologia)
Suzilayne Rodrigues da Silva (Aluna especial, PPGACV-UFG)

IDENTIDADE VISUAL V SIPACV


João Pedro Teles Pires (Mestrando, PPGACV-UFG)
Marcos Felipe Fidelis Araújo (Mestrando, PPGACV-UFG)

PROGRAMAÇÃO VISUAL
Cristiano de Oliveira Sousa (Mestrando, PPGACV-UFG)
Isabele Maria Geraldo Barbosa (Mestranda, PPGACV-UFG)
João Pedro Teles Pires (Mestrando, PPGACV-UFG)
Kassius Brunno Souza (Mestrando, PPGACV-UFG)
Suzilayne Rodrigues da Silva (Aluna especial, PPGACV-UFG)

EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO DOS ANAIS DO V SIPACV


Profa. Dra. Carla Luzia de Abreu (PPGACV-FAV-UFG)
Jocy Meneses dos Santos Junior (Mestrando, PPGACV-FAV-UFG)
Isabele Maria Geraldo Barbosa (Mestranda, PPGACV-UFG)

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COMITÊ CIENTÍFICO

Dr. Adair Marques Filho (FAV-UFG)


Dra. Adriana Hoffmann Fernandes (PPGEDU-UNIRIO)
Dra. Adriane Camilo Costa (PUC, GO)
Dr. Aldrin Vianna de Santana (UNICAMP)
Dra. Alice Fátima Martins (PPGACV-UFG)
Dra. Ana Rita Vidica (UFG)
Dra. Carla Luzia de Abreu (PPGACV-UFG)
Dra. Carla Milani Damião (PPGACV-UFG)
Dra. Carolina Brandão Piva (TRT, GO)
Dr. Cláudio Aleixo Rocha (PPGACV-UFG)
Dra. Clícia Tatiana Alberto Coelho (UNIFAP)
Dr. Edgar Silveira Franco (PPGACV-UFG)
Dra. Eliane Maria Chaud (FAV-UFG)
Dr. Elinaldo da Silva Meira (PPGACV-UFG)
Dr. Fábio Purper Machado (Biblioteca Pública Municipal de Uberlândia, MG)
Dr. Fernando Miranda (Facultad de Artes – UDELAR, Uruguai)
Dra. Flavia Leme de Almeida (FAV-UFG)
Dr. Flávio Gomes de Oliveira (PPGACV-UFG)
Dr. Gazy Andraus (bolsista PNPD-Capes, PPGACV-UFG)
Gonzalo Vicci Gianotti (Facultad de Artes – UDELAR, Uruguai)
Dr. Henrique Lima Assis (UFJ)
Dr. Henrique Paiva de Magalhães (UFPB)
Dr. Ivan Carlo de Andrade Oliveira (UNIFAP)
Dr. José Antônio Loures (IFSP)
Dr. Juan Sebastián Ospina Alvarez (pesquisador)
Dra. Juçara de Souza Nassau (UNIMONTES)
Dra. Kárita Garcia (Escola de Artes Basileu França, GO)
Dra. Kelly Christina Mendes Arantes (FAV-UFG)
Dra. Lavínnia Seabra Gomes (FAV-UFG)
Dra. Leda Maria de Barros Guimarães (PPGACV-UFG)
Dra. Lilian Ucker Perotto (PPGACV-UFG)
Dra. Luciana Borre Nunes (UFPE)
Dr. Luiz Carlos Pinheiro Ferreira (UnB)
Dr. Luiz Henrique Arantes Araujo Olivieri (FAV-UFG)
Dra. Nayara Joyse Silva Monteles (IFG, Campus Uruaçu)
Dr. Nicolas Andres Gualtieri (Senac, GO)
Dra. Noeli Batista dos Santos (FAV-UFG)
Dr. Odinaldo da Costa Silva (FAV-UFG)
Dr. Paulo Henrique Duarte Feitoza (FAV-UFG)
Dr. Paulo Passos de Oliveira (Pós-doutorando, PPGSA)
Dr. Quéfren Trindade M. Crillanovick (FAV-UFG)
Dr. Renato Cirino Machado Alves Pereira (FAV-UFG)
Dra. Rita Morais de Andrade (PPGACV-UFG)
Dr. Ronne Franklim Carvalho Dias (IFAP)
Dra. Rosana Horio Monteiro (FAV-UFG)
Dra. Rosane Andrade de Carvalho (Prefeitura de Goiânia)
Dra. Tamiris Vaz (UFU)
Dra. Valéria Fabiane B. Ferreira Cabral (FAV-UFG)
Dr. Vandimar Marques Damas (pesquisador)

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APRESENTAÇÃO

Sobretudo a arte e a cultura sofrem quando se anunciam, como em nossa época,


acontecimentos que mais se parecem com um redemoinho a assolar, estejamos falando da distopia
pandêmica ou dos descalabros políticos. É causa nossa, no entanto, peneirar novos horizontes a
partir do que ficou, criar os tempos necessários para deixar germinar resistências e encontros.
Dialeticamente, se a arte padece, também em torno do pulsar que dela se escuta, torna-se possível
juntar fragmentos vivos e férteis, para construir um mundo outro. É no espaço transitivo da memória,
de Benjamin, na partilha do sensível, de Rancière, na urgência dos afetos, de Spinoza e Deleuze &
Guattari, no pensamento que entrelaça imagem, cultura e realidade, de W. J. T. Mitchell e Mirzoeff,
que esse movimento se dá.
Pensando nessas questões, os programas de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual
(PPGACV-UFG, Brasil) e Maestría en Arte y Cultura Visual (Facultad de Artes - UDELAR, Uruguai)
apresentam o V SIPACV, com a temática: (en)volver. Em uma época em que a dissidência e a guerra
voltam a ser uma discussão do plano geopolítico, o ano de 2022 se destaca por seus marcos nobres,
o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna, bem como, o
aniversário de trinta e quatro anos da Constituição de 88, indiscutível divisa democrática do nosso
regime político. Por isso, a necessidade de pensar a liberdade, a democracia e novos manifestos
artísticos e pedagógicos.
Volver (voltar) não é verbo que faz retroceder, mas revisitar de forma auspiciosa momentos
em que cabe nossa aposta para refazer o futuro. Como a canção da argentina Mercedes Sosa, volver
é voltar à pulsão de vida jovial que enredando faz brotar esperança e ata destinos. Portanto, é
preciso volver como quem “devolve uma imagem”, tal qual Georges Didi-Huberman (2015) apresenta
ser a criação de um lugar do comum. Estar em conjunto, em relação e desfazendo as distâncias,
elaborar e compartilhar conhecimentos que sejam mudanças no e para o coletivo. Por outro lado,
imersos no presente, apesar de sua natureza, não podemos contar com um fio de Ariadne que faça
aparecer o caminho milagroso, mais do que antes, é chegado o momento de juntar os fios, emaranhar
experiências sensíveis, propor o entrelaçamento humano, (en)volver.
É tempo de engajar saberes e atores sociais, ocupar e reterritorializar espaços, desvelar
ações e atos políticos e micropolíticos, imbuídos da latência e da potência necessárias para a
transformação, começando, em pequenos passos, pelo agora. Mesmo através de uma proposição de
Seminário que se mantém no formato remoto, mantemos o olho na presença, como uma forma de
ver, mas também de deixar soar um perene chamado ao presente. Somos muitos e são muitas as
vozes. Desse emaranhado que ressoe a riqueza das dissonâncias, pois apenas os estados de entropia
se aplainam em novas ordens de coisas. Nesse contexto do V SIPACV, pelas diferenças e aproximações,
temos expectativa de colher o amálgama e a união. É tempo de (en)volver.

Comissão de Organização do V SIPACV: (en)volver.

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SUMÁRIO

CONFERÊNCIA DE ABERTURA
............................................................................................... 11

CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
............................................................................................... 22

EIXO A IMAGEM, CULTURA E PRODUÇÃO ARTÍSTICA


............................................................................................... 37

EIXO B POÉ TICAS ARTÍSTICAS E PROCESSOS DE CRIAÇÃO


.............................................................................................. 277

EIXO C EDUCAÇÃO, ARTE E CULTURA VISUAL


............................................................................................... 578

EIXO D ARTE Y PRÁCTICAS IN TERPRETATIVAS


............................................................................................ 1119

EIXO E ARTE Y POLÍ TICAS DE REPRESEN TACIÓN


.......................................................................................... 1134

EIXO F ESTUDIOS DE CULTURA VISUAL Y CONDICIONES DE CREACIÓN


Y PRODUCCIÓN ARTÍSTICA CON TEMPORÁNEA
............................................................................................ 1197

EIXO G NARRATIVAS VISUAIS (resumos expandidos)


............................................................................................ 1214

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CONFERÊNCIAS
Conferência de Abertura do V SIPACV 2022

DE(VOLVER) LAS IMÁGENES A LA TERRITORIALIDAD.


ARTE LATINOAMERICANO, VISUALIDADES EN CONTEXTO 1

María Elena Lucero


Instituto de Estudios Críticos en Humanidades. Universidad Nacional de Rosario, Argentina

Introducción

El peso simbólico y cultural de la historia como una disciplina de tenor interpretativo


en el campo de las artes visuales ha sido decisivo, no solo por los numerosos estudios
realizados a lo largo del tiempo, sino por su protagonismo en los recintos académicos
universitarios. Podemos afirmar que, como parte de las distintas transformaciones
que acontecieron en las últimas décadas del siglo XX, las maneras de observar,
analizar y describir las imágenes han cambiado. Al respecto, los Estudios Visuales
contribuyeron en gran medida con dichos cambios. Dentro del ámbito teórico
contemporáneo, constituyen un espacio disciplinar que procura revisar las
estrategias tradicionales que la Historia del arte ha implementado para la lectura de
los diferentes ejemplos de piezas artísticas, sea pintura, escultura, grabado, dibujos,
u otros medios mixtos. Al respecto, los Estudios Visuales plantean algunos
denominadores comunes con los Cultural Studies de la década del sesenta en
adelante, los cuáles proporcionaron ideas-fuerza para examinar los aspectos
hegemónicos que intervienen en el análisis de las manifestaciones culturales (Lucero,
2020). Si bien se enfocan en el análisis y exploración de las imágenes en sus
diferentes acepciones, coinciden en la lectura de los vínculos entre cultura y poder,
con lo cual surge una nueva óptica sobre cómo decodificar, revelar y observar los

1
Conferência realizada dia 6 de dezembro de 2022, acessível no link:
https://www.youtube.com/watch?v=BkGpyBqMuSA&t=4603s
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efectos de la cultura visual. Por lo tanto, los Estudios Visuales surgen como una
propuesta alternativa al discurso instalado por la Historia del Arte canónica y
eurocéntrica, dado que incluyen los impactos políticos de las imágenes desde sus
tensiones históricas, desde las disimilitudes y desigualdades entre los centros
metropolitanos y las periferias culturales.

En tal sentido, también es necesario considerar las ideas del investigador Georges
Didi-Huberman (2006), quien formula una arqueología crítica de la historia del arte
capaz de discutir las categorías que han sido naturalizadas durante largo tiempo. Es
decir, se trata no solo cuestionar los parámetros de la historia del arte sino también
del objeto “historia”. Las herramientas conceptuales utilizadas para comprender las
obras de arte, señala el autor, están arraigadas en la Historia, la cual localiza a la
mayoría de sus objetos de estudio en una trayectoria temporal, que se traduce
también en la noción de “estilo”. Así, los distintos movimientos se superan unos a
otros, se solapan, se contradicen o se oponen, pero en general observador en una
determinada cronología. Por esta razón Didi-Huberman propone la idea de
anacronismo como un recurso teórico que permite establecer nuevas lecturas sobre
las imágenes y especialmente, enlazar expresiones visuales correspondientes a
temporalidades heterogéneas.

Sobre los Estudios Visuales

De esta manera se gesta una nueva perspectiva que desató interrogantes acerca del
discurso lineal de la historia del arte. Cabe destacar la injerencia del denominado giro
pictórico desarrollado por William J. T. Mitchell, quien lo describe como un
redescubrimiento poslingüístico de la imagen, un juego complejo entre la visualidad,
los aparatos, las instituciones, los discursos, los cuerpos y la figurabilidad. Mitchell
(2016) se pregunta qué es una imagen, cuáles serían las diferencias entre las imágenes
y las palabras, y como se entraman las ideologías con el poder en el ámbito de lo
visual. Por lo tanto, es fundamental decodificar y comprender qué es lo que trasmiten
las imágenes, cómo describen, interpretan, narran historias, convencen o persuaden
al espectador. La compleja trama que describe el autor nos lleva a directamente a
revisar los vínculos entre imagen, política y cultura, una tríada que, si bien en
numerosas etapas de la historia han funcionado de manera articulada, en las últimas

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décadas a partir de la intensa proliferación visual que inunda nuestra vida cotidiana
se ha estrechado. Para remontarnos al momento en que se inician profundas
transformaciones en la vida cultural global, es necesario señalar la emergencia del
giro pictórico (pictorial turn). El propio W. J. T. Mitchell (2018) alude a este giro como
un tropo o una figura del pensamiento que surge en la historia de la cultura en los
años noventa del siglo XX, de manera paralela a la fuerte impronta de las tecnologías
de la reproducción, cuando las imágenes circulantes se enlazan, refuerzan y
sostienen nuevos posicionamientos políticos y/o estéticos. Este giro pictórico, con
antecedentes en las ideas de Ludwig Wittgenstein o Nelson Goodman, se despliega
en una coyuntura histórica que coincide en gran medida con el giro cultural que
Fredric Jameson señala en el ámbito filosófico o con el giro lingüístico que desarrolla
Richard Rorty respecto a los nuevos modos de la textualidad. En ese sentido, y
considerando específicamente el terreno de las artes visuales, lo que ocurre es una
suerte de pasaje desde la noción más tradicional de la historia del arte hacia una
historia de las imágenes, un reemplazo del concepto de arte en su sentido
occidentalizante por el de cultura visual. Dichos cambios en los paradigmas visuales
conllevan a demarcar otras dimensiones dentro de la misma noción de imagen, por
un lado, la imagen material (picture) referida a los soportes y medios materiales, por
otro la imagen (image) de raigambre más bien mental, representacional, que
sobrevive en el tiempo. Las imágenes llamadas textuales, las cuáles enlazan palabras
e imágenes, conducen al planteo de nuevos cuestionamientos sobre la visualidad del
lenguaje y sobre las formas en que la cultura visual se produce y consume. De ahí la
circulación de expresiones que alternan lo visual y lo verbal, y que conforman un
vocabulario específico, tales como écfrasis -un género poético y literario, la
representación verbal de la representación visual- o lingüística de la imagen -
término que proviene del pensamiento de Ernst Gombrich, estudioso de las
imágenes en la historia-. Estos intercambios teóricos se deben a la convergencia de
tres campos de estudios. Por un lado, la iconología, que implica el análisis
transmediático entre lenguajes e imágenes, por otro lado, la cultura visual, que es el
espacio teórico que nos interesa, y que refiere a los estudios de la percepción y de la
representación visual, y finalmente las ciencias de la información y/o la estética de
los medios. La cultura visual, mucho más reciente que la iconología, incluye la
construcción del cambio social de la visibilidad y a su vez, la construcción visual del

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contexto social. Por esa razón, según Mitchell la cultura visual posee mayores
afinidades con la antropología visual, con los estudios de la cultura material y de
masas, y con la cultura popular. Autores y autoras como el ya mencionado Mitchell,
Svletana Alpers, Keith Moxey, Mieke Bal, Nicholas Mirzoeff, Susan Buck-Morss,
Martin Jay, José Luis Brea o Anna Maria Guasch han configurado este derrotero
teórico desde sus respectivos espacios académicos, con una mayor
institucionalización, circulación y continuidad del campo a través de numerosas
publicaciones. A grandes rasgos, los aspectos más relevantes que identifican el
campo de los Estudios Visuales se direccionan hacia una renovación de la tradicional
historia del arte que permite la construcción de una historia de las imágenes, lo cual
tiende a una democratización disciplinar de mayor horizontalidad. Se diluyen las
categorías binarias presentes en los análisis del arte moderno respecto a la alta
cultura y/o baja cultura, dado que se tiende a borrar los compartimentos
característicos de la historia del arte.

Asimismo, en el ámbito teórico germano surgió en una etapa histórica simultánea la


Bildwissenschaft, traducida en general como ciencia de la imagen. Es posible
encontrar ciertas diferencias entre la Bildwissenschaft y los Estudios Visuales. En la
Bildwissenschaft el concepto de imagen (Bild) es heterogéneo, no se dirige a un único
sentido, en cambio de los Estudios Visuales se separa la imagen mental (image) de la
imagen material o física (Picture) (Lucero, 2022). Tengamos en cuenta que el prefijo
Bild de este término alemán adquiere distintos significados. Puede ser el equivalente
de una imagen mental, de una imagen material, o puede referirse a la dimensión
mágica de las representaciones visuales. De acuerdo con García Varas (2017) la
Bildwissenschaft constituye una escuela de estudio sobre las imágenes, con intensos
debates en su interior y antecedentes en la década del setenta, según lo ha planteado
el historiador del arte Horst Bredekamp. En los años noventa, Gottfried Böhm (autor
del conocido texto ¿Was ist ein Bild?, ¿Qué es una imagen? de 1994) inicia un debate
con W. J. T. Mitchell acerca de la naturaleza de las imágenes, sus connotaciones
sociales y culturales, las respectivas diferencias entre la ciencia alemana y los
Estudios Visuales de corte anglosajón y las implicancias en las imágenes de los
diversos giros, es decir, el giro cultural planteado por Jameson o el giro lingüístico
de acuerdo a Rorty, como hemos citado anteriormente. Tanto la Bildwissenschaft
representada por las ideas de Boehm como los estudios sobre cultura visual iniciados

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y profundizados por W. J. T. Mitchell son vertientes teóricas y académicas en
expansión.

La crítica latinoamericana

Para reflexionar sobre la cultura visual en la región latinoamericana es necesario


considerar el rol de la crítica y la teoría artística, sobre todo teniendo en cuenta
referentes académicos que han sostenido diferencias sustanciales con la mirada
monolítica de la historia del arte occidentalizante y eurocentrada. Críticos y críticas
como Ticio Escobar, Elsa Flores Ballesteros o Rita Eder han reflexionado sobre las
categorías estéticas, los modelos culturales e históricos, la resistencia y las políticas
locales en el terreno del arte para dar espacio a investigaciones interdisciplinares
que insisten en un pensar situado respecto a la producción artística en América
Latina. Ticio Escobar (Paraguay) ha trabajado extensamente en sus escritos sobre las
artes visuales, la cultura popular, el diseño y las producciones simbólicas indígenas.
Para el autor el campo del arte no es un ámbito aislado, sino que incluye distintos
sistemas de expresión y sensibilidad procedentes de culturas ancestrales (Escobar,
2005). Las imágenes se desbordan hacia otras dimensiones culturales y aparecen
nuevas configuraciones de sentido que superan las temporalidades y las cronologías
lineales características del sistema artístico hegemónico. En tal aspecto, estas
transformaciones cambian la manera de leer las expresiones visuales regionales, a
contrapelo del formalismo propio de la modernidad europea. Los debates que surgen
de estas tensiones quedan para Escobar (2015) en un espacio flotante, donde el arte
pasa de lo estético-formal a lo extra-estético, con el consecuente descentramiento
de los lenguajes. Esta posición crítica se abre a los diálogos e intercambios, más allá
de las categorías y las clasificaciones. Elsa Flores Ballesteros (Argentina/Venezuela)
manifiesta una posición ideológica que coadyuvaría en los debates posteriores sobre
las relaciones entre los centros y las periferias. En algunos de sus artículos
académicos, Flores Ballesteros (1986) analizó la incidencia de la teoría de la
dependencia en los procesos artísticos regionales a partir de la dominación cultural
y los procesos socioeconómicos y políticos en los años sesenta. De ahí la mención a
referentes de la economía y de la filosofía como Fernando Cardoso, Enzo Faletto,
Aníbal Quijano y Theotonio Dos Santos, autores que señalaron las consecuencias de

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dependencia, en el plano económico y cultural. También establece una suerte de
tradición poscolonial donde sitúa a José Carlos Mariátegui, Augusto Salazar Bondy,
Aníbal Quijano y Mirko Lauer, destacando con énfasis el pensamiento de Quijano
sobre la colonialidad, una configuración estructural de poder que incide en las
dimensiones políticas, sociales y culturales. Al destacar las resonancias de la teoría
de la dependencia en la cultura, nos alerta sobre los procesos artísticos imperiales
que proceden desde las metrópolis externas. Por su parte, Rita Eder (México) amplía
y extiende el análisis sobre la producción surrealizante en nuestra región al trazar
otras genealogías para investigar los desarrollos culturales que cruzaron América
Latina y el territorio europeo. Eder (2006) reformula las categorías críticas en el
terreno artístico, ligadas a la pérdida de integridad del cuerpo, la tortura y el
asesinato, al arte contemporáneo de México y su acogida internacional. Al establecer
puntos de contacto entre distintas territorialidades latinoamericanas, formula
puntos de contacto que refiere a sensibilidades comunes y problemáticas
simultáneas. A grandes rasgos, estos tres investigadores transitaron lugares
académicos que les permitieron examinar y debatir sobre la cultura visual local.

Imágenes y territorios. Un caso curatorial

Frente a este panorama, nos interesaría recabar en algunas estrategias del campo de
las curadurías que, a partir de investigaciones recientes relacionadas con la cultura
visual o los debates sobre la historia del arte tradicional, proponen nuevas
perspectivas de lecturas de las imágenes. Hace seis años atrás se inauguró en el
Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA), Argentina, la exhibición
Verboamérica, con la curaduría de la investigadora Andrea Giunta y el entonces
director del museo Agustín Pérez Rubio. La muestra se basó en la colección
permanente de la institución y su característica más destacada fue la organización
de núcleos conceptuales a partir de temas comunes, problemáticas visuales,
afinidades simbólicas o políticas, sincronías conceptuales, lo cual trascendía no solo
la cronología propia de la historia sino los dilemas estéticos característicos de los
movimientos o las categorías estilísticas. De esta manera se quebranta la linealidad
histórica a partir de un contexto global contemporáneo que cuestiona la hegemonía
artística. Según Andrea Giunta (2016) la complejidad y heterogeneidad cultural de

16
América Latina desemboca en múltiples representaciones visuales que
transformaron las cartografías locales ya desde las primeras décadas del siglo XX e
impulsaron idearios específicos de las vanguardias locales que se inscriben en los
propios territorios. De este modo Giunta propone en esta nueva curaduría establecer
tramas de significaciones entre las obras exhibidas recurriendo en gran medida al
anacronismo, en pos de nuevas opciones de lectura e interpretación. Para el ex
director del MALBA fue importante leer la historia de nuevo y poder examinar las
maneras de citarla, evocarla. Si la historia es un constructo, la historia del arte es
también un artificio (Pérez Rubio, 2016). Esta construcción histórica es en general
eurocéntrica, y ha sido discutida por otras disciplinas tales como el pensamiento
poscolonial, decolonial y subalternos, las ideas procedentes del feminismo o aquellos
estudios vinculados a las minorías raciales y sexuales.

Este ejemplo marca un movimiento conceptual en relación con el discurso lineal de


la historia del arte. En Verboamérica se establecieron ocho ejes temáticos: “I. En el
principio”, “II. Mapas, geopolítica y poder”, “III. Ciudad, modernización y
abstracción”, “IV. Ciudad letrada, ciudad violenta, ciudad imaginada”, “V. Trabajo,
multitud y resistencia”, “VI. Campo y periferia”, “VII. Cuerpos, afectos y
emancipación” y “VIII. América indígena, América negra”. Nos detendremos en el
último, “VIII. América indígena, América negra”. En primer lugar, es importante
destacar la selección de artistas que implementaros ambos curadores.
Probablemente, una de las piezas más significativas incluidas en esta sección es
Abaporú (1928) de Tarsila do Amaral. Una figura enraizada en el territorio, ligada a la
antropofagia cultural que caracterizó al Brasil de finales de los años veinte, donde
resuena el “Tupí or not Tupí” del manifiesto escrito por Oswald de Andrade. Se
estrechan los diálogos con obras de diferentes períodos o países, tales como
Autorretrato con chango y loro (1942) de Frida Kahlo -una pintura emblemática de la
colección Costantini, La mañana verde (1943) de Wilfredo Lam o Mujer de
Tehuantepec (c. 1945) de Miguel Covarrubias. Se trata de representaciones simbólicas
que entrecruzan seres femeninos o anfibios con paisajes, donde los imaginarios
culturales locales se potencian a partir de la incorporación de elementos de la propia
naturaleza. La selva, la floresta y los animales forman parte de un contexto geográfico
exuberante que a menudo ha sido asociado a la idea de América Latina. La presencia
femenina resurge en las Siluetas de fuego (1975) de Ana Mendieta, un proyecto que no

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solo se localiza en la territorialidad centroamericana, sino que demarca una etapa
sustancial en las prácticas artísticas ligadas a la performance. O en las imágenes que
Anna Bella Geiger presenta en Blonde & Brunette, Indian & Indian (2014), un recorte
elegido por la artista que denota la discriminación racial y de clase al comparar las
protagonistas de piel blanca, rubia y morena, con las dos mujeres indígenas con sus
típicos ornamentos. Asimismo, mujeres ancianas, jóvenes, niñas y varones de las
comunidades nativas son el núcleo de las fotografías de Claudia Andujar, tal como se
observa en Horizontal 3 (1981-1983/2015). Un damero de rostros donde sobresalen
sus gestos y miradas. Hacia la década del treinta, la obra de Cândido Portinari, Festa
de São João (1936-1939) describe una escena característica sobre las comunidades
trabajadoras que, cerca del morro, se reúnen para la celebración y el encuentro.
Como ocurre en Seresta (1928) de Emiliano Di Cavalcanti, dos mujeres escuchan con
atención la melodía ejecutada por un cantante popular en las calles brasileñas.
Encuentros, expresiones musicales, celebración. Diego Rivera pinta el maravilloso
Baile en Tehuantepec (1928) donde retrata los atuendos típicos del pueblo mexicano
en plena danza regional, con un trasfondo identificado con la verde opulencia de la
vegetación. También en relación con las danzas regionales, Candombe (1921) de Pedro
Figari nos muestra parte de la comunidad afrodescendiente moverse al son de este
peculiar ritmo, como lo señala el título, o Carnaval (1933) de Hans Nöbauer, un
pequeño objeto-collage que, utilizando una tipografía característica del art-decó,
plasma una escena del popular encuentro carioca que se celebra desde hace décadas.
Los entornos populares nos llevan al Mercado del altiplano (c. 1936-1943) de Antonio
Berni, un paisaje del norte argentino con montañas, tonalidades ocres, hombres y
mujeres con sus vestimentas típicas, casas e iglesias. O a las Cuatro cholas (1923) de
Xul Solar, con claras referencias a las mujeres latinoamericanas de etnia indígena que
portan una indumentaria específica, y que, en la obra de este pintor argentino, están
dibujadas y coloreadas con pigmentos semitransparentes. Las Tres figuras en marcha
(1943) de Héctor Poleo son alusiones a los migrantes y desplazados, caminan
descalzos, atraviesan un terreno desierto y árido en condiciones inhóspitas. Una
robusta escultura simboliza El viento (1931-1932) de Luis Ortiz Monasterio, manos
amplias, el soplido del rostro hinchado, un cuerpo de trabajo y esfuerzo. La tierra, la
labor cotidiana y la obra de Jesús Ruiz Durand integran la serie de la Reforma agraria
(1968-1973), un conjunto de gráficos materializados a modo de comic, apelando al

18
lenguaje de los medios de comunicación masiva, pero haciendo hincapié en una
problemática vital para las clases subalternas. Los imaginarios nacionales
desembocan en dos trabajos claves de la sección, Sin Título (2013) de José Carlos
Martinat, un enorme signo que refiere a la iconografía andina y Black Nation (2014)
de Matías Duville, una paisaje oscuro y enrarecido con montañas de color negro
donde resuena la incidencia de la negritud en las culturas locales. De ese modo en la
sección VIII aparece una trama simbólica que nos remite a los procesos de
racialización, al mestizaje, al componente mulato, a la América afrodescendiente e
indígena, a la misma territorialidad.

Consideraciones finales

Como hemos mencionado, George Didi-Huberman propone la noción de


anacronismo como una estrategia de interconexión, diálogo y vinculación entre las
imágenes, y agregaríamos, expresiones visuales heterogéneas y arraigadas en
distintas temporalidades. Recordemos que, en el ámbito de los Estudios Visuales de
corte anglosajón, W. J. T. Mitchell ha caracterizado a las meta-imágenes como una
representación de segundo orden, al margen de su objetivo de primer orden, lo que
permite una articulación entre las imágenes y los textos. Así, en la retórica de la
imagen subyacen los vínculos entre mirada y subjetividad, lo cual habilita un estudio
cultural de la mirada.

Si tenemos en cuenta las repercusiones de los Estudios Visuales en el ámbito


latinoamericano, es necesario considerar los aportes de Ticio Escobar, Elsa Flores
Ballesteros y Rita Eder, entre otros investigadores. Escobar destaca la condición de
contemporaneidad que incide en las curadurías actuales y el descentramiento,
cuestionando la autonomía de la esfera del arte y potenciando la injerencia de las
herencias indígenas en la conformación de las culturas latinoamericanas. Elsa Flores
Ballesteros analiza la impronta de la economía y la dependencia cultural en relación
con las producciones artísticas, hecho que marca el peso de los aspectos
económicos, políticos y materiales en nuestra región, probablemente desde los años
sesenta en adelante. Y en el caso de Rita Eder, es necesario considerar sus estudios
sobre los ecos y reapropiaciones de los procedimientos vanguardistas en el arte
latinoamericano a partir de una serie de relaciones complejas que acontecen entre

19
la cultura europea y las expresiones artísticas regionales. De este modo, las tramas
simbólicas que surgen en la selección y organización de las manifestaciones propias
de la cultura visual latinoamericana conllevan a la creación de una etnografía visual,
figuras e imágenes creadas por artistas que pueden ser organizadas y enlazadas a
partir de una plataforma social y colectiva.

En los casos de manifestaciones artísticas latinoamericanas, las imágenes más allá de


generar discursos, referirse a otras imágenes, señalar sus condiciones determinantes
o conducir hacia ciertas ideas, acorde a lo que Mitchell denomina meta-imagen,
encontramos una plataforma simbólica de enorme potencia que, de acuerdo con la
propia historia y al proceso colonial que duró varios siglos, confluye en reflexiones
sobre la América indígena o la América negra. Diríamos, a modo de una trama de
índole social, colectiva y política. En la sección que hemos analizado, las imágenes
nos conducen a la territorialidad, con un énfasis en los aportes, problemas y
temáticas de la cultura local. De esta manera, la curaduría de Verboamérica funciona
como la construcción de un meta-archivo de las imágenes, organizadas en nuevos
relatos visuales.

Referencias

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las


imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
EDER, Rita. El arte en México y el exilio español: memoria, melancolía y surrealismo entre
1930 y 1945. In: WESCHLER, Diana. Territorios de diálogo, España, México y Argentina
1930-1945. Buenos Aires: Nuevo Mundo, 2006. pp. 47-118.
ESCOBAR, Ticio. Zonas en litigio. Los extraños lugares del arte en los tiempos del
esteticismo total. In: Quinta Bienal do Mercosul. Catálogo de Exposición. Porto Alegre,
2005. pp. 66-73.
ESCOBAR, Ticio. Imagen e intemperie. Las tribulaciones del arte en los tiempos del
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Universidad Autónoma de México, noviembre 2017-abril 2018, pp. 23-39. Disponible en:
https://ornitorrincotachado.uaemex.mx/article/view/9276. Acceso el 7 de setiembre de
2022.

20
GIUNTA, Andrea. Todas las partes del mundo. In: Verboamérica. Catálogo de Exposición.
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LUCERO, María Elena. Debatir la historia. Perspectivas culturales para repensar las
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LUCERO, María Elena. Estudios sobre la imagen: historia y cultura visual. Octante (N °7). La
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MITCHELL, William J. T. Iconología. Imagen, texto, iconología. Buenos Aires: Capital
Intelectual, 2016.
MITCHELL, William J. T. Teoría de la imagen. Ensayos sobre representación verbal y
visual. Akal: Madrid, 2018.
PÉREZ RUBIO, Agustín. Historia abierta, tiempo múltiple. La Colección MALBA desde otro
giro. In: Verboamérica. Catálogo de Exposición. Buenos Aires: Museo de Arte
Latinoamericano de Buenos Aires, 2016. pp. 33-53.

Mini Currículo

María Elena Lucero


É doutora em Humanidades e Artes, com menção em Belas Artes e Pós-doutora pela Universidad
Nacional de Rosario (UNR), Argentina. Professora do Seminario de Arte Latinoamericano y de
Problemática del Arte Latinoamericano del Siglo XX (Facultad de Humanidades y Artes, UNR).
Professora visitante da Universidade Federal de Integração Latino Americana (UNILA), Brasil, da
Universidade Pedagógica e Tecnológica da Colômbia e da Universidade de Concepción, Chile.
Diretora de Doutorado em Arte e Cultura Visual, da Escola de Pós-Graduação (FHUMyAR-UNR).
Membro do Comitê de Doutorado em Humanidades y Artes (FHUMyAR-UNR). Membro do Comitê do
Programa de Pós-Doutorado (UNR). Diretora do Centro de Estudios Visuales Latinoamericanos,
sediado no Instituto de Estudios Críticos en Humanidades (Unidad Ejecutora UNR-CONICET).
Membro fundadora da Red de Estudios Visuales Latinoamericanos. Miembro do Comitê Editorial das
Revistas Artefacto Visual (España) e NO-iMAGEN (Chile). Compiladora de publicações especializadas
em arte contemporânea, cultura visual e feminismo. Autora de "Memorias de Brasil y Cuba. Gestos
decoloniales, prácticas feministas", HyA Ediciones, Rosario (2019). Editora do Dossiê “Feminismos y
Cultura Visual. Imaginarios de una cotidianeidad en transformación” junto a Paula Bertúa, Revista
Artefacto Visual, # 13 (2022). Curadora de exposições individuais e coletivas no Museo de Bellas Artes
Juan B. Castagnino, na Fundação OSDE e no Museo de la Memoria, Rosario, Argentina.

21
Conferência de Encerramento do V SIPACV 2022

BORDANDO O MANTO DO MUNDO: DA DESTITUIÇÃO À RESTITUIÇÃO DE

HUMANIDADES SUBALTERNIZADAS 1

Rosane Borges
Universidade de São Paulo, Brasil

Eu não sou necessariamente das artes visuais, mas eu trabalho com imaginário e
imagem, e as artes visuais sempre me mobilizam muito, enquanto uma área de
interlocução e de reflexão para pensar o nosso tempo, pensar o nosso mundo. A
partir desse lugar, eu não vou fazer, portanto, uma palestra, uma conferência
pontual, específica. Ela será, tanto quanto ela puder, ser abrangente, mas essa
abrangência coloca as artes visuais no epicentro de um debate irreversível, um
debate que vem marcando nosso século XXI.

Quando fui questionada sobre o que queria falar com o público hoje, escolhi um tema
quase poético, que é Bordando o manto do mundo: da destituição à restituição de
humanidades subalternizadas. Na verdade, esse tema, como muitos/as devem saber,
vem de uma obra da artista mexicana Remedios Varo2. Essa obra sintetiza muito o
tema da conversa que teremos.

O que significa bordar o manto do mundo? Que manto é esse? Quais são as
possibilidades de nós sermos artesãs e artistas desse outro manto do mundo? As
artes visuais, as artes em geral, estão no epicentro dessa responsabilidade, que

1
Conferência realizada dia 9 de dezembro de 2022, acessível no link:
https://www.youtube.com/watch?v=4N9HcegCbDk&t=3202s. Transcrição: Marcos Felipe Fidelis Araújo
(Universidade Federal de Goiás, PPGACV, Brasil). Revisão: Jocy Meneses dos Santos Junior (Universidade Federal de
Goiás, PPGACV, Brasil)
2
Trata-se da obra Bordando el manto terrestre (1961).
22
muitos/as pensadores/as dizem que é tarefa da geração que vem… mas é uma tarefa
nossa, pelo menos, começar a tecer esse outro manto do mundo.

Para falar da destituição e da restituição das humanidades subalternizadas, vou


colocar algumas questões antecedentes. Uma questão antecedente para bordarmos
o manto do mundo, considerando que hoje a grande reivindicação é por novas ordens
de representação, por outros regimes de visibilidade, é: Como se escreve ou se
inscreve o visível? De que maneira promovemos, pelos regimes do visual ou da
visibilidade, um deslocamento que saia do lugar da destituição, da estereotipia, da
negação, do racismo, da segregação, da subalternização, para um outro território,
que é o território da restituição de humanidades?

Quando falamos de restituição de humanidades, estamos falando das humanidades


subalternizadas, dos terrivelmente outros do mundo. Essa primeira pergunta nos
leva a uma outra questão: De que maneira podemos reescrever a cena? Estou
considerando que a cena aqui não só no seu sentido restrito, dramatúrgico, mas
como o palco a partir do qual nos inserimos na dinâmica da vida e do mundo.

Uma outra pergunta é: O que é uma gramática? Se estamos falando de gramáticas de


produção, de ortografias do visível, de como podemos escrever e nos inscrever para
bordar esse manto do mundo, o que seria uma gramática? Normalmente, falamos da
gramática como uma disciplina, uma didática por excelência, que tem por finalidade
codificar o uso idiomático, dele induzindo, por classificação e sistematização, as
normas que, em determinada época, representam o ideal da expressão correta. Se
pensarmos e fizermos um inventário muito rápido sobre a gramática de produção,
ela carrega esse ideal da expressão “correta”.

Outra pergunta que não quer calar é: Qual é a expressão “correta” sobre o imaginário
de povos originários, de pessoas negras? Qual foi a representação ideal da expressão
“correta”, do “bom termo”, de pontos de vista que não estão dados numa rubrica
validada pelo cânone?

Como as artes, e as artes visuais, acabam subscrevendo o ideal da expressão


“correta”? Como elas podem constituir outras gramáticas de produção, que não
sejam camisas de força, receitas nem receituários, mas que possam ser guias que

23
enunciem um outro princípio, um princípio de inclusão, um princípio que seja
universalizante, e não universal?

É preciso construir um outro manto do mundo. É preciso que nós construamos cenas
de ruptura, a partir dos nossos modos de fazer no campo das visualidades em geral.
É preciso que flertemos com as nossas estranhezas. Walter Benjamin diz que o
capitalismo coloniza tudo, exceto aquilo que temos de mais estranho.

Nesse sentido, vou recorrer a dois pensadores que uso muito, gosto muito: bell
hooks, uma mulher negra, feminista, ativista, pensadora e intelectual que muito
colaborou para pensar como bordar o manto do mundo de outra forma, e Jacques
Rancière, que é um autor também muito conhecido, que tem várias obras, entre elas
A partilha do sensível. Tanto bell hooks, uma mulher negra estadunidense da
diáspora, quanto Jacques Rancière, vão considerar a contribuição política das
narrativas ficcionais, que estão no campo da produção humana.

O ficcional tem uma larga concepção, que não está necessariamente no conteúdo
representativo por ele expresso, nem na utilização da representação para corrigir
costumes, valores e ações, mas na figuração, ou seja, no modo como a intriga, a
narrativa que colocamos no mundo, confere liberdade a atores e espectadores de
indagar e questionar as incoerências das representações. Esse é um termo das artes
da cena, porque bell hooks e Jacques Rancière pensam muito o teatro, mas que se
aplica a todas as artes, a todos os modos de produção da visualidade e das narrativas.
Cenas de ruptura e novos regimes de visibilidade não dizem respeito ao modo de
requerermos e flagrarmos as incoerências das representações, não é
necessariamente uma ação política no sentido de como eu acuso (e é preciso acusar),
mas de como eu melhoro a incoerência dessas representações. É algo que, para bell
hooks, se instala numa dimensão muito mais profunda, porque normalmente a
reparação no campo das artes é pontual, corrigindo aquela incoerência daquela
representação, enquanto o estatuto, a forma da expressão, continuam os mesmos.

Então, quando ela diz que o problema é muito mais fundamental, não se trata de
apontarmos se aquele artista daquela obra foi racista, se aquela obra flerta com a
violação, com a barbárie. Eles não estão dizendo que isso não seja fundamental, mas

24
que as cenas de ruptura exigem de nós uma outra coisa. Elas exigem que as artes
estejam em consórcio com a mudança da representação do ideal “correto”, da
expressão “correta”, da forma como construímos e mobilizamos as nossas
gramáticas. Portanto, as cenas de ruptura têm o papel de reconfigurar regimes de
visibilidade e questionar ordens discursivas opressoras, perturbando o modo como
usualmente as representações têm feito aparecer ao mesmo tempo os conflitos e as
suas soluções pacíficas.

Sobre esse questionamento das ordens discursivas, não sei se muitos de vocês
acompanharam — eu inclusive fiz um texto sobre isso, que saiu hoje na IstoÉ3 — a
crítica ácida que Maxwell Alexandre fez ao Instituto Inhotim, denunciando uma
concepção de curadoria que nos subalterniza, segrega e estereotipa. O curioso dessa
confusão com o Maxwell Alexandre é que a chamada “grande mídia”, a exemplo da
Folha de São Paulo, divulgou isso largamente, de maneira muito expressiva, e colocou
o título “Artista negro [sem nome] ataca Inhotim” 4. Dessa forma, parece que tem
granada, tem fuzil, que alguém chegou no museu de Inhotim tocando o terror, como
se fosse um ataque terrorista, mas, na verdade, não se trata de um “ataque”, mas de
uma crítica. Vou ler para vocês um trecho do meu artigo que saiu hoje:

Como era de se esperar, o campo das artes está no epicentro de um


debate irreversível, que coloca em jogo uma discussão sobre os modos
de produção e suas formas de difusão. Maxwell Alexandre soube ousar,
denunciar, criticar; soube, acima de tudo, reivindicar acesso a uma
soberania negada em espaço ainda refratário às humanidades negras,
postulando concomitantemente a transformação desse espaço. Do
lugar social e simbólico que ocupa hoje, poderia se acomodar no acesso
e na ocupação de lugares como o Museu de Inhotim. Mas, como soube
elaborar algo emancipatório da palavra que a ele foi dada, Maxwell
postula transformação e, assim, honra com o nome e o legado daqueles
e daquelas que influenciaram sua formação artística e política.
Obrigada pelo gesto, Maxwell Alexandre! (BORGES, 2022, n.p.)

Maxwell, para mim, promove uma cena de ruptura. Ele fala que não vai pactuar, e que
não quer mais a sua obra em um espaço que antecipadamente nos toma a partir de

3
Ver Borges (2022).
4
Ver Alexandre (2022a, 2022b).

25
um lugar que é reducionista. Ainda que ela esteja, para o museu, no lugar de
reconhecimento, de celebração, no mês da Consciência Negra, ele dá “visibilidade”
invisibilizando.

É preciso, portanto, que consideremos como uma tarefa urgente para as artes visuais
o dizer, fazer e ensaiar o que está por vir. Como o próprio Walter Benjamin
costumava dizer, a arte é uma brecha. Ela é uma brecha não por ser essencialmente
emancipatória, porque ela pode ser reacionária, mas porque ela carrega uma
essência daquilo que pode ser e, naquilo que pode ser, ela abre brechas para a
emancipação. Essa emancipação se dá a partir do momento em que as artes visuais,
as imagens, conseguem se colocar no lugar de fabuladoras, porque a fabulação
antecipa tempos, imagina e consolida mundos.

Acho que essa foi uma das coisas que nos ajudou a fazer essa travessia do deserto,
nessa barbárie da nossa institucionalidade brasileira. Ninguém saiu ileso desses
quatro anos de Bolsonaro, todos nós fomos afetados, todos estamos chamuscados,
alguns em maior ou menor grau. Mas nós que fizemos a resistência conseguimos
antecipar tempos, imaginar mundos e consolidar esse mundo. Eu não tenho dúvidas
de que foi isso que fez com que chegássemos agora, em 2022, e estivéssemos aqui
conversando e dialogando.

Voltando a bell hooks, ela nos lega a possibilidade de imaginar a partir do patrimônio
negro. É preciso construir um outro manto do mundo. Porque esse manto está
mofado, puído, rasgado. Porque esse manto deixou mais da metade da população de
fora. Nós não fomos recobertos pelo manto do mundo. Esse manto do mundo, que
se renovou com a modernidade, com esse projeto “lindo”, “maravilhoso”, que se
queria emancipatório, deixou mais da metade da população, os terrivelmente outros,
de fora. Ele sustentou a ideia do “bárbaro”, em contraponto ao “civilizado”. Então,
para as artes visuais serem construtoras, produtoras, artesãs desse outro manto do
mundo, é preciso que nós ouçamos essas vozes. As vozes dos que ficaram
descobertos. As vozes de quem ficou para trás.

A possibilidade de imaginarmos a partir do patrimônio negro é fundamental. Eu


incluiria, aqui, também o patrimônio indígena. É preciso que, no Brasil, nós

26
imaginemos a partir do patrimônio negro e do patrimônio indígena. Não se trata,
necessariamente, de acusarmos e recusarmos a matriz ocidocêntrica, mas o “lixo”
ocidental é tão grande, tão vasto, que precisamos acusar e recusar. Dizer isso não
quer dizer que nós faremos uma matriz, como foi a matriz ocidocêntrica. A Oyèrónkẹ
Oyěwùmí e a Leda Maria Martins, uma das nossas grandes intelectuais e pensadoras,
dizem que a única cultura que engoliu o outro, que comeu o outro, foi a cultura
ocidocêntrica. A própria Leda diz que isso não significa que em culturas outras não
há formas de hierarquização, de preconceito, porque isso é comum na dinâmica
cultural da humanidade, mas que a única que se impôs comendo, devorando o outro,
foi a cultura ocidocêntrica. Então, ela produziu muito “lixo”. É preciso saber do “lixo”
ocidental para construirmos esse outro manto do mundo. Uma vez que
consideramos que há muito “lixo” na dinâmica cultural, na dinâmica de perceber o
outro, e que as artes visuais foram um grande manto usado pelo ocidente para
colocar de fora, é papel das artes visuais hoje dizer que é preciso construir outro
manto.

Didi-Huberman cunhou a expressão de que é preciso “ensaiar o ver”, que se refere


ao nosso dever de imaginar, apesar de tudo. Apesar de tudo, é preciso que
imaginemos. Ele faz isso, por exemplo, em relação às imagens do Holocausto. Havia
uma discussão de que o Holocausto estava no campo do irrepresentável, do
inominável, do indizível, ao que Didi-Huberman vai responder que é preciso
representar, nomear, dizer, imaginar, apesar de tudo. Não se trata de uma
imaginação qualquer, porque com a barbárie não se brinca. A barbárie nós
enfrentamos. Só imaginamos, no lugar da barbárie, se conseguirmos criar um lugar
de cultura. Aí não estaremos mais no território da barbárie… É preciso imaginar,
fotografar, escrever, narrar e construir.

Então, não é uma ideia megalômana o que eu disse, que as artes e as artes visuais
estão no epicentro de um debate fundamental para o século XXI, que é a construção
de novos processos, de novos imaginários, a partir de uma imaginação. Mas não de
uma imaginação qualquer. É de uma imaginação desse patrimônio que está fora, que
foi excluído, que foi soterrado, ou que a empresa colonialista tentou soterrar.

27
bell hooks nos oferece uma perspectiva que a um só tempo é epistemológica e
metodológica. Epistemológica no sentido em que nos leva a pensar a política, a teoria
do pensar. Ela nos insere em uma outra chave teórica e, também, política. Ao nos
inserir em outra chave política, ela nos dá toda uma caixa de ferramentas, que é
metodológica, para bordarmos o manto do mundo, a partir de heranças estéticas,
como a colcha de retalhos da qual ela fala. Ela diz que o legado estético e as
contribuições artísticas das mulheres negras são uma possibilidade fundamental
para construirmos novas rotas ou, como eu costumo dizer, outra gramática de
produção. A bell hooks resgata as colchas de retalhos produzidas por mulheres
negras e tenta dar nome ao feito. Faz desse feito um modelo possível de ser replicado
em outro contexto.

Quando esquecemos o nome, esquecemos o exemplo. Não é à toa que esse manto
carcomido, cheio de ácaros, foi muito pródigo em dar nomes e impor esses nomes
como exemplo, como matrizes, como cânones. Não é à toa que nós, e principalmente
vocês, no campo do fazer das artes visuais, temos modelos, exemplos, matrizes.
Porque, se esquecemos o nome, nos esquecemos do exemplo.

Para ser de fato uma matriz, ou seja, aquilo que pode ser replicado, é preciso dar um
nome. Um nome é o mínimo de presença. Por isso que esse trabalho de arqueologia,
de montagem da colcha de retalhos, é um passo. Eu falei que minha fala seria sobre
questões antecedentes, e essa é uma questão antecedente importante, se quisermos
realmente pensar as artes visuais comprometidas com o que é humano,
demasiadamente humano.

Alice Walker tem um livro que se chama Em busca dos jardins das nossas mães. É um
livro belíssimo, do qual eu tive a alegria, a honra e o desafio de fazer o posfácio. Ela
diz o seguinte:

A ausência de modelos na literatura e na vida, sem falar na pintura, é


um risco ocupacional para o artista, pelo simples fato de que os
modelos na arte, no comportamento, no desenvolvimento do espírito
e do intelecto — mesmo se rejeitados — enriquecem e ampliam a visão
que uma pessoa tem da existência. (WALKER, 2021, n.p.)

28
Uma pergunta, provocação, que eu queria fazer para vocês é: Quais são os modelos
que vocês têm? O que prisma o pensamento teórico e o fazer artístico de cada
um/uma de vocês?

Esse livro é muito bonito porque Alice Walker, uma mulher negra, escritora, que ficou
muito conhecida com A Cor Púrpura, mas que tem uma obra extensíssima. O título
do livro, Em busca do jardim das nossas mães, é uma metáfora importante para
pensarmos, avolumando os argumentos que bell hooks traz, e que tantas outras
pensadoras negras e latino americanas também trazem, que quando dizemos que é
preciso construir novas gramáticas e que, no campo das artes, a nossa grande tarefa
é deslocar e restituir a imagem aos destituídos, estamos querendo dizer o seguinte:
não vamos partir do grau zero, nem da tabula rasa, porque já há toda uma experiência
que pode nos inspirar para construir essa outra gramática de produção. Experiência
que foi soterrada, que não foi nomeada, portanto foi “esquecida” como exemplo.
Então, quando Alice Walker se diz Em busca do jardim das nossas mães, ela nos leva à
constatação de que as coisas já estão aí, basta fazermos o papel de
arqueólogas/es/os, escavando o que a empresa colonial tentou soterrar. É um livro
muito bonito sob esse ponto de vista.

É preciso, portanto, nessa ideia de deslocamento da destituição para a restituição,


que as artes visuais sejam celebrativas. A celebração é muito associada à festa, e é
isso mesmo, mas não só. A celebração significa você dar visibilidade de maneira altiva
aos terrivelmente outros do mundo. É preciso criar imagens que desafiem e que
rompam com as representações convencionais da negritude e dos povos originários.
Esse é um desafio primordial para bell hooks.

Como produzimos imagens de pessoas negras, indígenas ou da população


LGBTQIAP+ que não sejam estereotipadas ou caricaturadas? Como podemos pensar
nesse embaralhamento de papéis das artes, que é a um só tempo estético e é político?
Como podemos pensar o trajeto da cena e do personagem, de modo a mudar o lugar
desses personagens, para que possam ter agência sobre suas trajetórias?

29
Para promovermos a restituição, confrontando todo processo de destituição, minha
trajetória até aqui foi de defender que é preciso que manufaturemos um novo manto
do mundo no campo das artes visuais. O pensador Ngũgĩ wa Thiong’o diz o seguinte:

nós que estamos no presente somos todos, em especial, mães e pais


daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa,
realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os
filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus
gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a
nós mesmos. [...] Desse modo, o passado torna-se a nossa fonte de
inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro nossa
aspiração coletiva. (THIONG’O, 1997, p. 139 apud BORGES, 2021, n.p.)

Nossa aspiração coletiva, a nossa arena de respiração, é acreditar que podemos


imaginar. Podemos denunciar o “lixo” ocidental. Para essa denúncia do lixo ocidental,
o território das artes visuais tem um papel primordial, que é dizer que o manto do
mundo vem com defeito de fabricação. Não foi à toa que eu peguei uma metáfora das
artes visuais, uma pintura, para pensarmos o que cobrimos e o que recobrimos
quando manufaturamos uma obra. Que manto é esse que estamos produzindo? Quais
são os elementos do nosso manto?

Quando pensamos nessa arena de respiração, nos terrivelmente outros do mundo,


na verdade estamos pensando um manto para todos. A ideia de modernidade
produziu um manto que deixou muita gente de fora, que deixou até os excêntricos
europeus de fora. Essa modernidade é um jardim muito bem podado, lindo,
maravilhoso, verdejante, mas ela deixou inclusive os seus considerados excêntricos
de fora. Os nomes não foram citados, os exemplos foram esquecidos. E a nossa
aspiração coletiva, na construção desse outro mundo por meio das artes, é que esse
manto de fato recubra todos. Invariavelmente a todos. Quando denunciamos a nossa
exclusão, na verdade propomos a possibilidade de construção de um manto que
possa recobrir a todos, e que seja saudável, sem ácaros, sem buracos, sem mofo.
Dizemos para os hegemônicos do mundo: o manto que vocês estão encobertos não
presta, esse manto também prejudica vocês.

Me encaminho aos finalmentes provocando e convocando vocês: De que lado da


história vocês querem estar? É do lado da destituição de corpos, de pessoas, ou do

30
lado da restituição desses corpos e dessas pessoas que foram trucidadas, que foram
excluídas, que foram racializadas de maneira negativa pelas artes, com destaque
muito vivo para as artes visuais no Brasil e no mundo?

Perguntas e respostas

Frente a um mundo organizado visualmente de modo a segregar, marginalizar e


violentar, você fala em seu texto “Política, imaginário e representação: uma nova
agenda para o século XXI”, publicado no livro “Esboços de um tempo presente”, da
necessidade de “fundar uma nova gramática política, livre das orientações de um
pensamento oxidado” (BORGES, 2016, p. 95), apontando ser “preciso que produzamos
outra ortografia do visual, com novas regras que possam acolher a pluralidade do
universo” (BORGES, 2016, p. 99) . Ainda em seu texto, você demonstra acreditar no
potencial da “insubordinação dos corpos ‘imperfeitos’, ‘indesejáveis’ (negros, mulheres
negras, obesas, gays, lésbicas, trans) frente aos signos visuais que teimam em
estigmatizá-los, deformá-los, ignorá-los, excluí-los da paleta que representa cada
um(a) e todos(as)” (BORGES, 2016, p. 96). Você acredita que essa construção dessa nova
gramática, dessa outra ortografia, já está acontecendo?

Eu acho que sim. Voltando ao exemplo do Maxwell Alexandre, nós estamos


conseguindo reposicionamento. O que eu estou chamando de reposicionamento?
Conseguimos ver sujeites/as não convencionais, não hegemônicos, tomando lugar
onde não víamos. Quem imaginaria que nós teríamos um artista negro dizendo pro
Inhotim: “Dessa forma eu não quero! Não foi por esse acesso que eu lutei!”? Então,
nós já temos a luta do reposicionamento. Agora, dizer que nos reposicionamos, que
temos nossos lugares nessa sociedade, na universidade, não quer dizer que o racismo
deixou de existir, ou que ele arrefeceu. Pelo contrário. O que temos é uma denúncia
que ganha maior amplitude. A nossa voz chega muito mais. Você ouve mais. Esses
dias, eu entrevistei a Jurema Werneck para uma revista da ECA-USP5. Ela disse: “Olha,

5
Ver Werneck (2023).

31
há uns dez anos, se a USP fosse me entrevistar, não teriam duas mulheres negras me
entrevistando". Ou seja, há o nosso reposicionamento. É por isso que a nossa luta é
política. Ela não pode se dar apenas no acesso: “ah, não tinha negros em galerias, hoje
tem”. Isso não quer dizer nada, porque o reposicionamento diz de uma luta, de uma
reivindicação, que vem exigindo que o próprio modo da expressão “correta” mude.
Porque o nosso posicionamento quer que nos insiramos na rubrica já dada. E o que
estamos dizendo? Que não queremos essa rubrica. Essa rubrica em que vocês estão
querendo nos colocar, não queremos. É o que o Maxwell Alexandre fez. Então, sim,
podemos celebrar de um lado esse reposicionamento, mas temos muito o que
contestar, porque a rubrica não mudou ainda.

Você nos falou que o manto do mundo vem com defeito de fabricação e está “carcomido”.
Qual sua opinião sobre os motivos que levam as pessoas a preferirem se aquecer com
um manto deteriorado a jogar ele fora em prol da manufatura de um novo?

É o privilégio, a hegemonia, a ideia de uma superioridade racial, que muita gente diz
que não tem, mas tem. O privilégio nos leva a essa situação. É uma relação de poder.
É disputa de poder. Porque esse manto carcomido beneficiou muita gente. Ele
conferiu poder e privilégio a muita gente. Ele não conferiu humanidade a quem foi
coberto, ele não conferiu cidadania, mas ele conferiu privilégio, conferiu poder.
Então, muitas dessas pessoas não querem experimentar a cobertura desse outro
mundo, porque elas sabem que elas vão ter que partilhar o comum, voltando à ideia
do Rancière. É partilha. Porque, quando dizemos que queremos um novo manto, não
estamos dizendo que é só nós que vamos ser cobertos. Estamos dizendo que
queremos um novo manto para o mundo. Mas esse novo manto supõe partilha, e
muita gente não quer partilhar, então prefere ficar nesse manto cheio de ácaros,
carcomido, fedorento da modernidade ocidental.

Para Rancière, a “resistência” da arte é a tensão dos contrários, que por sua vez permite
uma aproximação com a própria humanidade. Construir o manto do mundo passa por
esta expectativa?

32
Sim, exatamente! Nós existimos em uma tensão dos contrários. Só que… você
tensiona em nome de quê? Você tensiona em nome de disputas do que é humano, do
que é humanidade, do que é sociedade. Então, construir um manto do mundo passa
por esse processo de tensão, de disputarmos o que é humano e o que é humanidade.
Agora, se estamos falando de humano e de humanidade, temos que saber qual pacto
nós estabelecemos para construir esse manto. O nosso pacto é o da emancipação, da
civilização. A questão é: em nome do que emancipo?

Qual o papel das artes visuais e audiovisuais para nos ajudar a reajustar, nos fazer
religar com o mundo e com uma vida mais humana?

As dicas estão nessas mulheres que eu apontei. Se considerarmos que a arte é uma
brecha, podemos perguntar: mas uma brecha para onde? As artes visuais e
audiovisuais, repito, são uma brecha não por serem emancipatórias, em uma
perspectiva de que “a arte nos liberta”. Não! Elas podem nos ferrar, nós temos
experiências disso. Elas podem ser reacionárias, elas podem ser destituidoras, como
boa parte delas foi. Mas, quando temos um bonde de mulheres negras, indígenas e
latino-americanas apontando que brechas são essas, o campo das artes se torna um
território muito fecundo para fazermos esse reajuste, essa repactuação. Zerar o jogo,
mas sem zerar o jogo, porque não se trata de zerar o jogo, mas sim de escavar o que
temos. Se a arte tem a ver com imaginação, que imaginação queremos fazer
frutificar? Dessa imaginação, que tipo de imaginário queremos construir? Porque a
imaginação antecipa mundos, e se ela antecipa mundos significa dizer que ela
constrói coisas no horizonte do possível. É por isso que a arte é importante. Ela pode
não se tornar concreta, no sentido da vida real, da vida como ela é, da realidade. Ela
pode nunca chegar a isso, mas ela constrói horizontes do possível. E precisamos
construir horizontes do possível. Quando você nomeia, você insere um nome na
cadeia discursiva. Então, é preciso que a arte nomeie porque, ainda que essa
nomeação não ganhe desdobramento na realidade imediata, utilitária, ela constrói
um horizonte do possível que, quem sabe, em algum momento histórico, em algum
tempo, em algum lugar, ganhe uma materialidade. E é por isso que a arte tem que

33
nomear, porque ela vai construindo um horizonte do possível. A vida como ela é?
Não! O discurso acadêmico? Não! É a arte que pode fazer isso. Não é o discurso da
ciência. É o discurso artístico.

Tomando a ideia de imaginário, como tratar o carimbo da palavra “arte”, um carimbo


marcadamente ocidocêntrico, para tratar de manifestações outras, que não fazem parte
do sistema da arte? A palavra e o conceito de arte não existem em muitas línguas de
povos não ocidentais.

Gostei da pergunta, porque ela diz respeito inclusive a como sair dessa matriz. Agora,
por que eu estou designando “arte”? Tenho inspiração no Caliban, de A Tempestade,
de Shakespeare. “Já que me ensinaste a tua língua, eu tenho como te amaldiçoar”. Eu
tento muito fazer isso: já que me ensinaste esta tua língua, eu tenho como te
amaldiçoar pela tua língua. É só quando eu falo da “arte” que eu designo o lixo
ocidental. Agora, eu não estou dizendo que a arte é o único conceito possível.
Podemos dar outros nomes a ela. Mas eu tenho que nomear aquilo que forma e
conforma as nossas existências. Há uma matriz hegemônica que tentou se impor e
se impôs no mundo, e é preciso dar nome a isso. É preciso que validemos aquilo que
não tem nome, ou que tem outro nome, como uma possibilidade de validar o mundo,
o nosso mundo, o mundo coletivo. É possível validar o mundo a partir de outras
chaves.

Como você vê a questão da apropriação nas artes visuais?

A apropriação tem uma lógica cruel quando se come a cultura do outro e não se
consegue, no processo de reelaboração do que se absorveu, transformar isso em
outra coisa, partilhando a base da inspiração. Jacques Lacan já dizia que tudo que
chamamos de produção humana, não tem nada de individual. Tudo que produzimos
é resultado de vozes anteriores que nos habitam, de coletividades. Tudo se dá em um
lastro coletivo. Agora, dizer que tudo se dá num lastro coletivo, não quer dizer que
você não tenha autoria, embora a definição de autoria venha sendo muito criticada.

34
A autoria tem a ver com sujeitos, então é preciso que pensemos autoria e sujeitos, a
partir dos lugares de cada um. Como é que o ocidente se impôs? Ele saqueou, ele
roubou. Tem obras até hoje nos museus europeus, que agora estão dizendo que vão
devolver. Isso é uma apropriação cultural. Ele comeu a cultura do outro, e nesse
processo as impressões digitais da cultura do outro sumiram. Então, se pensarmos
apropriação deste modo, ela é danosa, ela é cruel, ela se faz a partir de uma relação
de poder. Mas você pode elaborar a partir de vozes que habitam e proporcionar o
“novo”, fazendo a fusão e fusionamento, e considerando o papel de sujeitos no
processo artístico, sem nenhum tipo de problema.

Referências

ALEXANDRE, Maxwell. 1 dez. 2022a. Instagram: @maxwell__alexandre. Disponível em:


https://www.instagram.com/p/Clo81vWJBSL. Acesso em 9 dez. 2022.
ALEXANDRE, Maxwell. 3 dez. 2022b. Instagram: @maxwell__alexandre. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/Clt9tXwpHKl. Acesso em 9 dez. 2022.
BORGES, Rosane. Política, imaginário e representação: uma nova agenda para o século XXI.
In: BORGES, Rosane. Esboços de um tempo presente. Rio de Janeiro: Malê, 2016. p. 94-99.
BORGES, Rosane. Tempo de plantar, tempo de colher, tempo de concluir. In: WALKER,
Alice. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2021. E-book. n.p.
BORGES, Rosane. Ousado Maxwell Alexandre. IstoÉ, 9 dez. 2022. Disponível em:
https://istoe.com.br/ousado-maxwell-alexandre. Acesso em: 9 dez. 2022.
WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2021. E-book.
WERNECK, Jurema. Uma voz plural em meio aos desafios contemporâneos brasileiros.
Entrevista concedida a Gabriela Monteiro e Rosane Borges. Organicom, São Paulo, v. 20, n.
41, p. 226-233, 2023.

Mini Currículo

Rosane Borges
É jornalista e pesquisadora colaboradora do Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Criações
Colaborativas e Linguagens Digitais (COLABOR), vinculado à Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP). É doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela

35
Universidade de São Paulo. Suas pesquisas, suas comunicações e seus escritos abordam, a partir do
campo da Comunicação, temas como raça e gênero, bem como outros problemas brasileiros. É autora
dos livros Fragmentos do tempo presente (2021), Esboços de um tempo presente (2016), e "Sueli Carneiro"
(2009). Organizou as coletâneas Mídia e racismo (2012), com Roberto Carlos da Silva Borges, e Espelho
infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), com Flávio Carrança. Prefaciou as edições brasileiras
dos livros Em busca dos jardins de nossas mães: prosa mulherista (2021), de Alice Walker, e Olhares
negros: raça e representação (2019), de bell hooks. É articulista da Revista Carta Capital Digital e do
blog da Editora Boitempo. Escreve regularmente no portal de notícias Jornalistas Livres.

36
EIXO A

IMAGEM, CULTURA E PRODUÇÃO ARTÍSTICA


TERRITÓRIOS CARTOGRAFADOS: NARRATIVAS ARTÍSTICAS E CENÁRIOS DE
EMPODERAMENTO EM CONTEXTO IBEROAMERICANO

CARTOGRAPHED TERRITORIES: ARTISTIC NARRATIVES AND EMPOWERMENT


SCENARIOS IN IBEROAMERICAN CONTEXT

Lilian Amaral
USP/Diversitas / Brasil

Fabiane Cristina Silva dos Santos


UNIZAR – ES

Resumo

O presente artigo apresenta aspectos da cartografia na contemporaneidade como parte


fundamental do modo como vêm emergindo muitos dos mais diversos movimentos sociais,
culturais, estéticos, étnicos, políticos, e suas lutas, anseios, desejos e reivindicações, também
múltiplos. A tecnologia de fazer mapas configura-se como uma forma de poder, sendo
ocupada e desapropriada também por aqueles que lhe foram historicamente invisíveis.
Trata-se de uma tecnologia que é, ao mesmo tempo, tecnos e logos, isto é, modo de fazer e
de pensar; processo de ir sendo e identidade. Nessa longa história de dominações territoriais
e culturais, aprendemos que quem nomeia possui, pois o definir é um ato também de criar.
Daí a importância de cartografar, de subverter os mapas oficiais e a visão que deles se
desprende sobre nós a partir da experiência do território habitado. Nossa investigação em
poéticas artísticas e processos colaborativos, de caráter nômade, apresenta um amplo
recorrido cartográfico que se desloca por territórios ibero americanos, e assim, confronta
distintas formas, usos e significados desenvolvidos junto a diversos grupos de pesquisa em
arte em comunidades com as quais vimos desenvolvendo uma nova cartografia cognitiva,
pautada no empoderamento das narrativas da memória local, por meio de processos que
envolvem a criatividade social, ação coletiva, práticas artísticas e ativistas em rede.

Palavras-chave: cartografia contemporânea, território iberoamericano, práticas artísticas,


redes

Abstract

This article presents aspects of contemporary cartography as a fundamental part of the way
in which many of the most diverse social, cultural, aesthetic, ethnic and political movements

38
have emerged, and their struggles, anxieties, desires and claims are also multiple. The
technology of making maps is configured as a form of power, being occupied and
dispossessed also by those who were historically invisible to it. It is a technology that is, at
the same time, technos and logos, that is, a way of doing and thinking; process of becoming
and identity. In this long history of territorial and cultural domination, we learn that whoever
names owns, because defining is also an act of creating. Hence the importance of mapping,
of subverting the official maps and the vision that emerges from them from the experience
of the inhabited territory. Our investigation on visual poetics and collaborative processes of
nomadic character, presents a wide cartographic journey that moves through Ibero-
American territories, and thus, confronts different forms, uses and meanings developed
together with several artistic research groups in communities with which we have been
developing a new cognitive cartography, based on in the empowerment of local memory
narratives, through processes that involve social creativity, collective action, artistic
practices and network activists.

Keywords: contemporary cartography, Iberoamerican territory, artistic practices, networks

Introdução

Percorrer o lugar – real e imaginário, individual e coletivo, público e privado, material


e existencial - revela paisagens potenciais que instigam à experiência urbana e
legitimam a intervenção e ocupação performativas como ação transformadora.
Propõe-se a pesquisa mediante métodos inspirados em práticas artísticas e
urbanísticas que defendem o caminhar como prática estética, entendendo a
corporalidade urbana como instância que desmente a ideia do corpo como uma
categoria genérica. A ação investigativa implica uma reflexão sobre práticas artísticas
como processos narrativos que entrelaçam cultura, cidade e memória, contextos
estes entendidos como Museus do Território, como parte de uma experiência
a/r/tográfica (IRWIN, 2005) vivenciada em derivas e mergulhos poéticos andarilhos
com/no território como forma de intervenção artística, mediação cultural e ativação
dos lugares de memoria e memórias dos lugares. Trata-se de uma ação concebida
para integrar o projeto Tocar: iconografía de um lugar como parte de um ecosistema
poético, organismo vivo, como um museu difuso, nômade e temporário que, em
diálogo com o conceito de geopoética dos sentidos (AMARAL, 2013), problematiza
outros patrimônios possíveis e opera como dispositivo de memória contra o
“desperdício da experiência” (SANTOS, 2010). Para além de divulgar resultados

39
parciais da investigação em processo, trata-se do exercício do próprio método,
contribuindo dessa forma, para a produção do comum, do conhecimento co-
elaborado sobre arte, copesquisa, e transformações dos territórios no cenário
contemporâneo.

A presente reflexão propõe investigar os modos de fazer artísticos como práticas


críticas, os processos de transformação no território deles decorrentes e implicações
políticas no tecido social. Nessas circunstâncias abertas surgem determinados
projetos para aprofundar a compreensão da expansão de limites tensionados pela
arte contemporânea, propositores de espaços de encontros entre arte e vida,
estética e política e entre artista e sociedade.

Cientes da ameaça no âmbito da memória, buscamos propor, analisar e difundir


ações cujos objetivos sejam o da conscientização sobre a importância do patrimônio
cultural na contemporaneidade global, colocando ênfase nos processos
protagonizados por artistas pesquisadores organizados em comunidades
investigativas e coletivos com atuação em territórios em transformação.

Os projetos desenvolvidos buscam uma identificação e socialização do patrimônio


cultural a fim de fortalecer a sociedade acerca de seu próprio legado, gerando,
processos de apropriação social para garantir a apropriação, a valorização, a
intervenção, a transformação e a preservação dos bens culturais, estabelecendo
vínculos através de uma abordagem relacional entre pessoas, lugares e patrimônio.

Modos de abitar o território: a atitude cartográfica como procedimento


investigativo

O desafio do procedimento cartográfico adotado na pesquisa em processo, em linhas


gerais, reside em exercitar a sustentação da abertura de pensamento para receber
tudo o que for se apresentando no processo de pesquisar como condição de
possibilidade para se produzir conhecimento pertinente e consistente. Acompanhar
processos (BARROS & KASTRUP, 2012) é ao que se destina o método da cartografia.
São os processos e a dimensão interventiva que orientam sua prática e não metas e
objetivos previamente definidos. Caracterizando-se como uma prática de pesquisa
que tem por objetivo o acompanhamento de processos, a cartografia apresenta um
forte viés interventivo e, por esta razão, assume o caráter de pesquisa-
40
intervenção (PASSOS & BENEVIDES DE BARROS, 2012). Pesquisar é intervir na
realidade e não apenas representá-la. Contudo, a intervenção que a pesquisa opera
não é unilateral, ou seja, ela não se dá em um sentido único. Todos os que estão
envolvidos na pesquisa estão implicados em todo o processo, configurando um
mapeamento de territórios psicossociais, acompanhando as linhas de força que os
constituem. Portanto, pesquisador-pesquisados-campo estão mutuamente
implicados no ato de pesquisar.

Por ser interventiva e porosa, a perspectiva da cartografia supõe o mergulho do


pesquisador no território onde acontece sua investigação. Este mergulho implica o
cartógrafo como mediador nos movimentos das forças, das intensidades e dos afetos
circulantes, de modo a compor, com sua presença e ações, o coletivo de forças como
plano da experiência cartográfica (ESCÓSSIA E TEDESCO, 2012) que, em seus
movimentos vai desenhando e fazendo emergir paisagens e mapas (formas e
realidades), também em movimento. Nessa medida, a pesquisa cartográfica acontece
mediante o envolvimento implicado e reflexivo do pesquisador com tudo e com todos
que participam da composição do campo, definindo uma perspectiva de redes de
copesquisa.

Cartografar um campo é, portanto, um convite para habitar um território que, a


princípio, não se habita. Desde esse ponto de vista, segundo Barros e Kastrup (2009),
observa-se uma proximidade com a etnografia que acontece através da observação
e/ou observação participante. Intervir e implicar-se no/com o campo demanda,
assim, acompanhar processos. A processualidade da cartografia diz respeito ao modo
de pesquisar. Os passos da pesquisa, tradicionalmente separados e organizados
sequencialmente, não se separam na cartografia: “a processualidade está em todos
os momentos – na intervenção, na coleta, na análise, na reflexão e discussão dos
dados e também [...] na escrita” (BARROS e KASTRUP, 2009, p. 58).

Tocar... Iconografia de um Lugar

As cidades estão continuamente em processo de transformação, e estas, muitas


vezes interferem nos costumes do próprio lugar, na nossa visão, na nossa forma de
relacionar com o entorno, porém também, fazem com que nossa visão adormeça,
gerando uma “foto estática” ou seja, uma imagem fácil de ver que são construídas no
41
nosso imaginário como uma única leitura, onde muitas vezes pequenos detalhes que
configuram os espaços que nos rodeiam passam despercebidos.

É importante mudar a nossa percepção dos espaços que nos rodeiam, neste sentido
reivindicamos a figura do flaneur como elemento principal do projeto Tocar. Esse
flaneur de que Walter Benjamin tanto nos fala em O Livro das Passagens, esse
personagem que anda pelas ruas, olhando vitrines, e que observa com
desprendimento a explosão da mudança arquitetônica nas ruas de Paris, dando-nos
um retrato do crescimento do capitalismo, refletido no consumismo e fetichismo dos
produtos. Mas esse flaneur não consome os objetos que estão nas vitrines, ele
simplesmente observa os detalhes que por um momento passam despercebidos
pelos transeuntes habituais, tentando andar pelas ruas vagando no anonimato sem
compromisso ou rumo definitivo, mas com um objetivo de olhar para além da imagem
construída, transformando o ato de caminhar em um prazer em si.

Porém, não confundamos o flaneur com o voyeur, há uma nuance. O


flaneur está sempre em plena posse de sua individualidade. A do
voyeur, por outro lado, desaparece, absorvida pelo mundo exterior (...)
que o atinge ao ponto de embriaguez e êxtase. O voyeur, sob a
influência do espetáculo que vê, torna-se um ser impessoal. Ele não é
mais um homem, ele é público, ele é uma multidão. Natureza à parte,
alma ardente e ingênua levada ao devaneio (...) o verdadeiro voyeur é
digno de admiração de todos os corações retos e sinceros (Benjamin,
2005, p. 433).

A palavra flaneur aparece nos anos 1500 e 1600, mas foi a poesia dos escritos de
Charles Baudelaire que no século XIX ganhou relevância, tornando-se um intérprete
da vida na cidade. Etimologicamente, vem da dialética com raízes do antigo
escandinavo onde o prefixo flana referia-se a correr de um lugar para outro sem um
lugar determinado, tendo uma característica relaxada, de andar sem pressa como se
entregando à fome; vagar pelas ruas não apenas como um ato físico, mas também
refletindo sobre o que observamos. Francisco Carreri (2016) comenta que os
dadaístas em 1924 realizaram algumas excursões a lugares poucos concorridos da
cidade, esta experiencia define como, “uma deambulação, uma espécie de escritura
automática no espaço real capaz de revelar as zonas inconscientes do espaço e as partes
obscuras da cidade."

42
Tomamos como referência a psicogeografia, ferramenta metodológica desenvolvida
pela Internacional Situacionista (1957 - 1972), que busca analisar a cidade, o ambiente
a partir das experiências pessoais. Os situacionistas, na época, se rebelaram contra
os planos modernistas e as transformações resultantes de renovação urbana em
processo.

Diante da necessidade de construir cidades inteiras rapidamente,


estamos nos preparando para construir cemitérios de concreto
armado, nos quais grandes massas da população estão condenadas a
morrer de tédio. Ora, para que servem as invenções técnicas mais
espantosas que o mundo agora tem à sua disposição, se faltam as
condições para aproveitá-las, se não acrescentam nada ao lazer, se
falta a imaginação? Nós reivindicamos a aventura. Não a encontrando
na Terra, alguns foram procurá-la na Lua. Estamos sempre e acima de
tudo comprometidos com uma mudança na terra. Pretendemos criar
situações, e novas situações. Contamos com o descumprimento das
leis que impedem o desenvolvimento de atividades efetivas na vida e
na cultura. Encontramo-nos no alvorecer de uma nova era, e já
estamos a tentar delinear a imagem de uma vida mais feliz e de um
urbanismo unitário; urbanismo feito para o prazer. 1

Muitas ações artísticas vem se convertendo em instrumentos para colocar em valor


muitos lugares, assim como em um veículo para colocar em evidencia certas
transformações que vem ocorrendo nas grandes cidades acompanhadas de
processos de gentrificação, cuja origem nos remete à palavra inglesa “Gentry” que se
traduz como burguês, e no contexto se entende como elitização do lugar, e como
sabemos, é um processo, e não um resultado final, que se materializa partir de três
fases consecutivas: 1º: Abandono por parte da administração, degradando os serviços
básicos; 2º: reassentamento por uma classe social mais baixa, que passam a serem
estigmatizados, gerando inseguridade e conflito social; 3º: revitalização econômica,
compra de propriedade, especulação, novos moradores com nível aquisitivo mais
alto, mudanças de costumes.

Trata-se de um processo que a administração pública tem conhecimento e que se


estende com os diversos processos de ganho de capital urbana, que se mantém pelo

1
Publicado em #3 de Internationale Situationniste (1959). Tradução extraída da Internacional Situacionista, vol. I: A
realização da arte, Madrid, Literatura Gris, 1999. In: https://sindominio.net/ash/is0314.html
43
próprio Estado e por outro, que captam as parcelas que estão disponíveis para o
mercado capitalista. A administração decide qual será o próximo bairro a perder
serviços para que em um futuro passem por um processo de reurbanização,
requalificação, tendo como resultado a perda do patrimônio material e imaterial do
lugar, falta de referências, perda da memória, descaracterizando a cultura local.

Se faz evidente a necessidade de gerar discussão a respeito destas transformações,


assim como gerar propostas em que a cidadania possa ser partícipe deste processo
com uma visão crítica, manifestando seus sentimentos, percepções. Neste contexto
emerge a proposta Tocar... iconografia de um lugar, que pretende ser uma ferramenta
cultural, com uma ação em espaços específicos das cidades ibero-americanas que
fazem parte da uma rede em constante movimento, lugares que de certa forma
apresentam semelhanças em seus processos de transformação.

O projeto Tocar... tem início em Cabanyal, na cidade de Valencia, Espanha, antigo


bairro de pescadores que cresce paralelo à praia da cidade, composto por
construções do modernismo popular, e que esteve durante 21 anos ameaçado por um
projeto urbanístico que pretendia dividir o bairro em duas partes para construir uma
grande avenida que conectasse o centro da cidade com a praia, tendo como
consequência a destruição de 1651 casas, muitas delas, catalogadas como bens de
interesses cultural.

Em oposição a este projeto político emerge, como reação poético-política


comunitária, em 1998, a plataforma Salvem El Cabanyal, constituída por um grupo de
moradores locais, entre eles, artistas que durante os vinte e um anos de luta para
preservar o bairro, deram início ae seguimento a várias ações articuladas em três
eixos: jurídico, urbanístico e cultural.

Aqui centramos nossa atenção nas ações culturais realizadas ao longo desses anos
como iniciativas para dar visibilidade aos problemas que sofriam os moradores com
a ameaça de perder suas residências, assim como colocar em valor o patrimônio
material e imaterial do lugar. Em 1998 o evento de arte Cabanyal Portes Obertes,
projeta intervenções artísticas abertas a diferentes campos disciplinares. As
intervenções estavam expostas nas ruas do bairro e nas casas dos moradores, os
quais abriam as portas de suas casas ao público uma vez por ano, todos os fins de
semana durante o mês em que se realizasse o evento. Realizado ininterruptamente

44
até 2015, tornou-se uma referência da arte como dispositivo de movimento de
cidadania ativa no sentido da visibilidade das reivindicações das comunidades.

Ramificações deste projeto desdobram-se em outras iniciativas artísticas como


ecossistemas poéticos que evidenciam o valor patrimonial de territórios e contextos,
como Cabanyal Archivo Vivo 2 – projeto realizado em 2011, cujo objetivo centra-se na
valorização do patrimônio cultural por meio das práticas artísticas e pedagogias
críticas como instrumentos de engajamento cultural, promoção de valores comuns,
fortalecimento da identidade, memória e património do bairro, com um conjunto de
ações em espaço real e em rede / internet, que abrangem o campo pedagógico (com
a realização de um material educativo sobre o patrimônio arquitetônico e cultural do
bairro para exploração junto às escolas do território e da cidade), social (reuniões e
mesas redondas com especialistas e associações de bairros da costa marítima) e
projetos artísticos (uma série de propostas poéticas colaborativas baseadas em
conceitos de geolocalização e a edição de um número especial da revista “la más
bella”).

Em 2013, o projeto Tocar El Cabanyal, desenvolve-se como uma proposta para


ampliar a percepção sobre o patrimônio modernista popular, característico da
singularidade do Bairro, composto por uma infinidade de detalhes presentes nas
fachadas das casas e edificações, as quais, ao integrarem parte de um itinerário
poético geolocalizado, passaram a estimular a descoberta de novos elementos que
faziam parte deste rico e diversificado conjunto histórico ameaçado.

Conforme adverte o artista catalão Antoni Muntadas, Atenção: A percepção requer


participação3, integrante do projeto “On Translation: Warning” realizado em
diferentes lugares do mundo, entre os quais, no bairro do Cabanyal, local de uma das
suas intervenções, trata de colocar em evidencia a necessidade de uma visão crítica
diante um mundo contaminado visualmente, fazendo uma chamada de
comprometimento ao espectador.

2
http://www.cabanyalarchivovivo.es/
3
Codello, Francesco. Entre límites, responsabilidad, delegación y participación: In:
https://www.elviejotopo.com/topoexpress/entre-limites-responsabilidad-delegacion-y-participacion/ consulta:
20/11/2021
45
Partindo desta premissa, convidamos os moradores e visitantes do bairro de
Cabanyal a participar desta iniciativa, aguçando sua percepção com uma visão critica
por meio de ações lúdicas, em uma espécie de caça ao tesouro, para colocar em valor
elementos que fazem parte da arquitetura modernista popular, tais como azulejaria,
carpintaria, gradil, produzidos artesanalmente, feitos especificamente para cada
casa, detalhadamente. Com o decorrer dos anos foram perdendo-se, desaparecendo
e paulatinamente, sendo substituídos por outros elementos modernos padronizados,
industrializados, que deixam para atrás as referências e a memória deste lugar.

TOCAR EL CABANYAL, configura-se, assim, como um repositório on-line de imagens


reunidasa partir dos ícones do modernismo popular espanhol utilizado na decoração
dos edifícios do bairro e de elementos singulares que fazem parte da iconografia
material e imaterial do lugar. Esse web-blog foi realizado com a colaboração de
moradores locais, assim como também de visitantes. As imagens são apresentadas
como forma de mosaico e são geolocalizadas para que os usuários possam situá-las
no mapa virtual, caminhar por ele e reconhecer cada elemento exposto porf meio da
participação com a publicação de fotografias e comentários acerca das descobertas
registradas fotograficamente e compartilhadas. As imagens que fazem parte de Tocar
El Cabanyal, são imagens do cotidiano, da experiência subjetiva da cidade
compartilhada com os demais em uma espécie de pachwork, uma colagem, uma nova
construção coletiva do bairro, da cidade, de nossa realidade.

46
https://tocarelcabanyal.wordpress.com/

Fig.1: Captura de tela. Plataforma Tocar Cabanyal. Fonte: Cabanyual Archivo Vivo

Podemos dialogar com o projeto desenvolvido em 2011 do Laboratório de Luz da


Universidade Politécnica de Valência, Espanha, dentro do projeto Cabanyal Archivo
Vivo , que desenvolveu um blog Impresiones Intangibles como um arquivo público de
imagens acerca das impressões visuais, sonoras, gustativas e olfativas coletadas
durante caminhadas pelo bairro do Cabanyal. Neste caso, a proposta não estava
condicionada a colocar em evidência o valor arquitetônico do bairro ou suas
problemáticas, buscando as impressões que o Barrio podia transmitir a partir das
sensações, articulando-as com a memória, os lugares, os comércios, as residências.
Utilizando a geolocalização também se faz possível uma deriva virtual pelo bairro.

A partir de 2019, como desdobramento junto ao Grupo de Pesquisa MEDIA LAB BR


UFG + HolosCiudade 4 e coletivos no Brasil, iniciamos o projeto Tocar... Iconografia
de um lugar, deslocando-nos e estabelecendo uma cartografia entre as cidades de

4
http://www.espai214.org/holos/. Profa. Dra. Lilian Amaral é coordinadora do coletivo investigativo
iberoamericano HolosCi(u)dad(e) – MEDIA LAB BR / UFG | DIVERSITAS USP
47
Fortaleza, Recife, São Paulo e Florianópolis, passando a integrar a plataforma online
“TOCAR” http://tocar.espai214.org/ que busca uma nova forma de relação com o
espaço, em um jogo de derivas físicas e virtuais, utilizando ferramentas culturais e
tecnológicas 5.

O projeto Tocar..., é uma proposta colaborativa que se desenvolve a partir da prática


do caminhar como ação estética e ativista, registrando a iconografia de um lugar
específico, em um processo de mediação, que propõe aos participantes uma visão
mais crítica, para além da “foto estática” que estamos acostumados a produzir e a
consumir em nosso dia a dia, registrando a partir de uma deriva individual, elementos
do patrimônio material e imaterial do território. A partir destes registros, um arquivo
colaborativo online é composto por imagens geolocalizadas, acompanhadas de um
mapa on line onde o usuário da plataforma pode localizar os elementos por ele
registrados, dialogando com outros elementos produzidos por outros usuários,
habitantes e performers do lugar, e ainda, fazer uma deriva virtual pelo território
explorado coletivamente.

Estas ações que vem sendo desenvolvidas na esfera local, que se propagam
globalmente contando com a participação de diferentes coletivos, não só na esfera
social, mas também no campo das artes visuais, atuam na mudança de paradigma que
faz surgir novos campos de atuação, novas ferramentas de trabalho, que atuam não
só no espaço real, como também no simbólico e no virtual.

5
Projeto internacional desenvolvido pelas artistas e pesquisadoras Profa. Dra. Bia Santos – UNIZAR/ES e Profa. Dra.
Lilian Amaral – DIVERSITAS USP.
48
Fig. Captura de tela. Tocar São Paulo –https://tocarsp.wordpress.com/

Tocar Benfica: arquitetura da experiência

Tivemos a oportunidade de desenvolver no bairro de Benfica na cidade de Fortaleza


- CE, Brasil, uma oficina com os alunos do curso de Graduação em Artes Visuais em
colaboração com o Grupo de pesquisa-ação "Meio Fio", do Instituto Federal do Ceará
-IFCE. A partir da cartografia do bairro, dividimo-nos em grupos onde
estabeleceram-se diferentes dinâmicas de caminhada para descobrir, perceber,
analisar o ambiente cotidiano dos participantes. Uma das dinâmicas adotadas foi
explorar o território caminhando com os olhos fechados, o que estimulava a
ampliação dos sentidos e a cada um, sentir o espaço, os aromas, as texturas das
paredes, pisos, etc., mapeando ainda, as sonoridades que definem o lugar por meio
da Geopoética dos Sentidos (AMARAL, 2013) experiência de exploração com/dos
sentidos.

As deambulações, derivas e errâncias realizadas performativamente, converteram-


se em narrativas visuais geolocalizadas, compartilhadas coletivamente no grupo e em
rede.

49
Causa sulcos na maneira de andar, exerce lentidão ao tocar estruturas,
texturas. Abaixe o corpo e toque o chão, pule e meça o tamanho das
paredes. A arquitetura aparece primeiro no corpo. Cheire as folhinhas
que brotam nas calçadas e quase não têm significado para o
ambientalismo urbano. Sistemas de valores invertidos. Percebendo as
camadas de tinta e papel coladas nas paredes, as camadas de
memórias. Quantos grafites, lambidas e promessas de amor em até sete
dias foram colocados nessa parede? Exercite uma arqueologia dessas
estruturas. Ao remover a venda, crie um mapa dessa experiência.
Negando geometrias e fronteiras, mas fazendo deste mapa um lugar de
trânsito entre os sentidos. 6

A rede se estabelece como suporte de conexão entre o público e o privado e como


um propulsor e difusor das transformações sociais e políticas. A expressão artística
passa a ser esse conector a partir das ações participativas e coletivas que rompem
fronteiras nos processos criativos colaborativos, promovendo a coesão social,
visibilizando problemáticas, gerando espaços de resistências.

Nestes contextos emergem algumas ações artísticas que contribuem para que esses
espaços cotidianos passem a ter uma outra relação com seus habitantes,
funcionando como lente de aumento e alto-falante para produzir escuta e fazer
visível os problemas locais, suas reivindicações, resistência às formas de especulação
e constituir-se como uma ferramenta para colocar em evidência valores locais que
são ocultados estrategicamente. Vale salientar que quando se trabalha com o espaço
público relacionado com arte, memória e mediação cultural é importante reconhecer
os valores patrimoniais deste lugar, tanto o material como o imaterial, valores estes
que estão presentes na coesão social, na solidariedade e na colaboração. A história
de um lugar resulta do conjunto das experiências vividas, transmitidas e
compartilhadas socialmente.

6
Depoimento do professor Adriano Morais do IFCE e participante do workshop Tocar Benfica. In:
https://tocarbenfica.photo.blog/2019/11/13/329/
50
Fig. Captura de tela. Tocar São Benfica - https://tocarbenfica.photo.blog/

Reflexões em processo: a modo de conclusão

Buscamos uma nova forma de relação com o espaço, em um jogo de deriva física e
virtual, utilizando ferramentas culturais e tecnológicas. Descobrimos e
compartilhamos em uma plataforma aberta e colaborativa, os detalhes, a essência e
a identidade que se revela aos usuários, visitantes e passantes, traçando novos
lugares e caminhos. Recriamos, reconhecemos e encontramos nossos corpos em um
processo de imersão, errância, lazer associado à potencialização da criatividade na
cidade e ao crescimento do ambiente social, tendo como referência as 3T propostas
pelo geógrafo Richard Florida - a tecnologia, o talento e a tolerância -, a partir de sua
teoria de classe criativa que estabelece relação direta com a economia criativa, mas
aqui nos interessa trazer suas ideias como referência dentro do marco relacional que
potencializa o participante a desenvolver sua criatividade e ser, assim, também um
co-autor, tendo uma visão mais ampla do lugar pelo qual transita e habita, gerando
pensamento inovador, sensível, crítico, pragmático, político, reconhecendo valor do
lugar e respeitando as diferenças.

51
Referências

AMARAL, L. Geopoética. Cartografía dos Sentidos. In:


http://www.anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/simposios/09/Lilian%20Amaral.pdf
consulta em 20/09/2022
BARROS, L. P., & KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In Passos, E., Kastrup,
V., & Escóssia, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e
produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.
BENJAMIN, W. (2005). El libro de los Pasajes. Madrid: Akal.
CARERI, F. Pasear, detenerse. Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, 2016..
CODELLO, F. Entre límites, responsabilidad, delegación y participación: In:
https://www.elviejotopo.com/topoexpress/entre-limites-responsabilidad-delegacion-y-
participacion/ consulta: 25/09/2022
DEBORD, Guy. Manifesto Internacional Situacionista. Paris, 1960.
ESCÓSSIA, L., & TEDESCO, S. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica.
In PASSOS, E., KASTRUP, V., & ESCOCCIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.
IRWIN, Rita. ”A/r/tografia: Uma Mestiçagem Metonímica”, in BARBOSA, Ana Mae e
AMARAL, Lilian [Orgs.] InterTerritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo:
Edições SESC, 2005.
PIETRO, Paco. Las 3 T´s del desarrollo económico. In: https://www.pacoprieto.com/las-3-
ts-del-desarrollo-economico/. Consulta: 03/10/2022
SANTOS, B. de S. Crítica da razão indolente: contra o desperdicio da experiencia. São
Paulo: Cortez, 2010
SONGEL, F.(2021). El arte de leer las calles. Barlin Libros, Valencia.
VILLA, K. Pasear con el paseante: Walter Benjamin, la pregunta por el flaneur y el sujeto del
capitalismo. Tesis Psicológica, 15(2) 148-162, 2020.

Mini Currículos

Lilian do Amaral Nunes (Lilian Amaral)


Artista Visual, Pesquisadora e Curadora Independente. Pós-Doutora com Bolsa PNPD da CAPES junto
ao Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da FAV/UFG e Universidade de
Barcelona/ES. Coordenadora Internacional do Observatório de Educación e da Rede Internacional de
Educación Patrimonial – Espanha e da Cátedra Nômada do PPG Diversitas USP. Lider da Rede e Grupo
de Pesquisa HOLOSCI[U]DAD[E] http://www.espai214.org/holos/. E-mail: ilianamaraln@gmail.com

Fabiane Santos (Bia Santos)


Artista e Pesquisadora Cultural. Professora de Belas Artes da Universidade de Zaragoza. Doutora em
Artes Visuais e Intermediárias pela Universidade Politécnica de Valência. É coordenadora do Projeto

52
CraftCabanyal. Co-organizadora do evento de arte pública Cabanyal Portes Obertes, 2005 a 2014.
Secretária da ANIAV – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Visuais. Faz parte da equipe
editorial da revista ANIAV [Revista de pesquisa em artes visuais]. E-mail: fsilva@unizar.es

53
A PLURALIDADE CULTURAL NAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS DA
COMUNIDADE DA MISSÃO: CONSTRUINDO A IDENTIDADE

CULTURAL PLURALITY IN THE ARTISTIC MANIFESTATIONS OF THE MISSÃO


COMMUNITY: BUILDING IDENTITY

Thaila Bastos da Fonseca


Núcleo de Ensino Superior de Eirunepé (NESEIR-UEA) e da Rede Estadual de Ensino (SEDUC-TEFÉ)

Resumo

O presente trabalho visa, sobretudo, pensar as manifestações artísticas e culturais


pertinentes na comunidade da Missão dentro de uma perspectiva pluralista e não
hegemônica. Neste sentido, reconhecer a pluralidade cultural de uma localidade, é uma
tentativa de romper com o discurso hegemônico e legitimar a identidade cultural de
diferentes populações, sem hierarquizá-las. Os moradores da Comunidade Missão possuem
suas histórias, crenças e tradições, as quais são portadoras de uma particularidade e
sabedoria que precisam ser pensadas, difundidas e reconhecidas dentro de uma
perspectiva científica. Para isso foram selecionados autores como Bauman (2005), Boas
(2005), Hall (2003) e Thompson (1992). A metodologia pautou-se na História Oral e como
principal resultado inferiu que as manifestações culturais abarcam uma diversidade de
conhecimentos e saberes que nos ajudam a compreender a construção da nossa
identidade, como também perceber que todo sistema cultural está em constantes
mudanças. Compreender esta dinâmica é fundamental para prevenir qualquer tipo de
manifestações preconceituosas entre culturas diversas.

Palavras-chave: Cultura, Arte, Reconhecimento, Identidade.

Abstract

The present work aims, above all, to think about the relevant artistic and cultural
manifestations in the Mission community within a pluralistic and non-hegemonic
perspective. In this sense, recognizing the cultural plurality of a locality is an attempt to
break with the hegemonic discourse and legitimize the cultural identity of different
populations, without prioritizing them. Residents of the Mission Community have their
histories, beliefs and traditions, which are carriers of a particularity and wisdom that need
to be thought about, disseminated and recognized within a scientific perspective. For this,
authors such as Bauman (2005), Boas (2005), Hall (2003) and Thompson (1992) were
selected. The methodology was based on Oral History and as main results we infer that
cultural manifestations cover a diversity of knowledge and knowledge that help us
54
understand the construction of our identity, as well as realize that every cultural system is
in constant change. Understanding this dynamic is essential to prevent any kind of
prejudiced manifestations between different cultures.

Keywords: Culture, Art, Recognition, Identity.

Introdução

Este artigo é o resultado de um estudo sobre a pluralidade cultural nas


manifestações artísticas e culturais pertinentes na comunidade da Missão,
localizada no município de Tefé-AM. Esta localidade é reconhecida por preservar e
conter elementos historiográficos imprescindíveis para a compreensão
historiográfica da cidade de Tefé. É um local repleto de danças, crenças, ritos,
costumes e tradições que são preservadas ao longo dos anos por seus moradores.
Diante disso, o presente estudo é justificável, pois, pensar as manifestações
artísticas e culturais de uma comunidade dentro de uma perspectiva pluralista é
uma tentativa de romper com o discurso hegemônico e eurocêntrico de cultura
dominante.

A Missão está localizada à margem esquerda da Boca do Rio Tefé, a


aproximadamente 6,8 Km em linha reta da sede do Município de Tefé-Amazonas. É
um lugar conhecido nacional e internacionalmente por seus pontos turísticos
históricos, que todos os anos recebem turistas de vários lugares do mundo por
conterem elementos memoráveis oriundos do período Colonial. Ela foi colonizada
por padres espiritanos, cuja finalidade era disseminar a fé cristã. O deslocamento
até este local é possível por intermédio da via fluvial e terrestre.

Desse modo objetiva-se desvendar elementos historiográficos pertinentes nos


contextos dessas manifestações e, sobretudo, a pluralidade artística e cultural que
elas engendram, no intuito de desconstruir estereótipos semeados pela cultura
colonizadora, pois, a ideia de cultura além de ser dinâmica é diversificada e plural.
Para discorrer sobre a presente temática, fundamentou-se em teóricos como:
Bauman (2005), Boas (2005), Hall (2003) e Thompson (1992). Como amostragem da
pesquisa, foram selecionados cinco moradores antigos da Comunidade da Missão,
que participavam das danças. Para preservação da identidade desses sujeitos,
adotou-se uma postura ética perante os envolvidos na pesquisa, e os nomes dos

55
entrevistados não estão expostos nos resultados. Neste sentido, para diferenciar
uma fala da outra se utilizou o seguinte critério: morador 1, morador 2 e etc.

No processo de coleta das entrevistas utilizou-se a História Oral como método de


pesquisa, pois a narração oral é um meio para que as tradições sejam reavivadas e
ressignificadas. Ela funciona também como uma importante estratégia de
identificação de comunidades tradicionais. Neste sentido, Thompson (1992) afirma
que:

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela


lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de
ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a
maioria desconhecida do povo. Traz a história para dentro da
comunidade e extrai a história de dentro da comunidade
(THOMPSON, 1992, p. 44).

Para Thompson (1992) a História Oral é uma das possibilidades de privilegiar e


legitimar os conhecimentos que durante muito tempo ficaram na invisibilidade.
Este método nos ajuda a compreender os saberes interligados às gerações
passadas, mas que refletem de forma significativa no presente, revelando aspectos
imprescindíveis para a compreensão histórica de comunidades com práticas
tradicionais.

Desse modo, através da memória é possível conhecer a sua própria história e


afirmar a sua identidade cultural. Conservar essas lembranças por intermédio do
registro escrito é uma das formas de fortalecer os valores e as crenças deixados
pelos povos ancestrais. Assim, “todo ser humano, toda coletividade deve irrigar sua
vida pela circulação incessante entre o passado, no qual reafirma a identidade...”
(MORIN, 2000, p. 118).

As manifestações culturais se perpetuam até hoje no imaginário dos agricultores,


pescadores e moradores de zonas campesinas, através das reminiscências. São
saberes e práticas tradicionais transmitidas de geração para geração através da
cultura da oralidade carregadas de fatos históricos que evidenciam o rico
imaginário dessas pessoas.

56
A pluralidade cultural como forma de legitimação e construção identitária

Para fixar nossa identidade é necessário o retorno à ancestralidade, mas é


necessário também auto afirmá-la para sua integração na sociedade. A cultura dos
povos da Amazônia é diversa, mas não é por isso que é ilegítima, ela é plural. Neste
aspecto, é importante evidenciar as contribuições de Franz Boas (2005) para a
configuração do conceito de cultura numa perspectiva pluralista: ele fala em
“culturas” e não em “cultura”. Termo esse que abriu caminho para que outros
antropólogos “desenvolvessem as implicações decorrentes da percepção da
relatividade das formas culturais sob as quais os homens têm vivido” (BOAS, 2005,
p. 18). Essas implicações a respeito da cultura como pluralista contribuíram para
desconstruir conceitos hierárquicos que evidenciavam o pensamento colonial e
racista.

Pensar o termo cultura numa perspectiva pluralista é reconhecer as diferenças


culturais como legítimas. Para Boas (2005), as diferentes populações que existem
no mundo têm diferentes culturas e é praticamente impossível estabelecer entre
elas uma comparabilidade. Posto que, ao analisar a história de várias populações
indígenas, o antropólogo chegou à conclusão de que é equivocada a ideia de
hierarquizá-las, pois suas histórias, crenças e tradições são portadoras de uma
particularidade e sabedoria, que qualquer tipo de comparação seria impossível.
Neste contexto, é relevante evidenciarmos a fala do morador1:

Aqui na comunidade “nós brinca” de um tudo, quando eu era mais


novo brincava “O Barqueiro”, que é uma dança tradicional daqui,
gosto de ver “O Cangaço” também é muito animado ver os cabras de
Lampião e Maria Bonita e os índios Kiri-Kiris. Quando a gente
organiza as nossas coisas aqui ninguém espera por ninguém pra dá
nada pra gente não. Nós “mermo” “corremo” atrás, porque se
depender dessas autoridades ninguém faz é nada. A gente faz porque
a gente gosta, desde criança que a gente brinca, se diverte todo
mundo junto, quando num dá pra fazer na frente da escola, a gente se
organiza e faz lá no terreiro da “Dona Noca 1”. Entrevista cedida em
agosto de 2017.

Nome fictício.
1

57
Mediante a fala do entrevistado, percebemos a pluralidade cultural que esta
comunidade agrega, é uma diversidade de mundos, que é impossível uma
hierarquização entre eles. Por intermédio das manifestações artísticas dos
moradores, eles evidenciam o encontro de três culturas que foram cenários de
muitas histórias, principalmente na região Amazônica. Quando o narrador enfatiza
que gosta de brincar o Barqueiro, intrinsicamente ele está colocando em evidência
a cultura colonizadora, tendo em vista que esta dança descreve o período das
grandes navegações portuguesas no período colonial. Nesta dança, os moradores
usam a indumentária de marinheiro e demonstram coreograficamente, os perigos
enfrentados pelos portugueses em alto mar.

O narrador afirma que brincava esta dança quando era mais jovem, pois é uma
manifestação cultural que completou em 2018, 35 anos, e se instaurou na localidade
por intermédio da colonização. Em contrapartida, ele gosta de apreciar a dança o
Cangaço, que é uma manifestação típica da região Nordeste, a qual descreve uma
história significativa de luta e resistência. O interessante que esta dança vem
atravessado gerações na localidade, comprovando a presença de Nordestinos, que
desejavam fugir da seca, e enriquecer nos Seringais.

Segundo o entrevistado, o Cangaço foi se consolidando na localidade, devido à


migração dos Nordestinos para a Amazônia, no período da Borracha. Vale frisar
que: “Durante o auge do ciclo da borracha embarcaram para a Amazônia
aproximadamente 500 mil nordestinos, muitos dos quais retornaram após a crise,
enquanto outra parte permaneceu na região e se integrou nela” (LOUREIRO, 2015,
p. 47).

Neste entrelaçar de cultura, a pluralidade cultural foi se consolidando nas


manifestações artísticas desta localidade, como também nas crenças, ritos, valores
e tradições. Desse modo, Loureiro (2015) destaca que a cultura amazônica é: “um
produto de acumulação cultural que absorveu e se aglomerou com a cultura dos
nordestinos que, em épocas diversas, mais especialmente no ciclo da borracha,
migraram para a Amazônia” (p. 49).

O narrador destaca também a dança dos índios “Kiri-Kiris”, manifestação esta, que
evidencia os aspectos culturais dos ancestrais indígenas. Na fala do morador não
identificamos nenhuma hierarquização entre essas culturas, mais sim

58
comprovamos e aprendemos que elas podem ser evidenciadas numa perspectiva
pluralista reconhecendo suas diferenças culturais como legítimas.

Assim, cada sistema cultural está em permanente mudança, compreender esta


dinâmica é fundamental para evitar manifestações preconceituosas entre culturas
diversas. Da mesma forma que é importante para a humanidade o entendimento
das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as
diferenças presentes dentro de um mesmo sistema. Este é um dos principais
processos que preparam o indivíduo para descortinar o mundo, pois a cultura é
uma teia de significado tecida pelos seres humanos, é um todo integrado, e não
apenas um conjunto desagregado de práticas, hábitos, costumes, relações e
pensamentos.

Para Franz Boas (2005) essa integração dessa multiplicidade de elementos,


ordenado a partir de um princípio compartilhado por todos os indivíduos de uma
sociedade específica, criava a cultura. Por ela ser única e exclusiva de cada
sociedade, é inviável a tentativa de comparação entre outras culturas. O autor
propõe reconhecer a diversidade cultural sem imposições de juízos de valores, pois
só assim, é possível entender as práticas culturais realizadas pelas sociedades
distintas.

Através da memória é possível conhecer a sua própria história e afirmar a sua


identidade cultural. Conservar essas lembranças por intermédio do registro escrito
é uma das formas de fortalecer os valores e as crenças deixados pelos povos
ancestrais. Assim, “todo ser humano, toda coletividade deve irrigar sua vida pela
circulação incessante entre o passado, no qual reafirma a identidade...” (MORIN,
2000, p. 118).

Falar em identidade cultural então é compreender um tempo de mudança onde o


moderno pode coabitar com o tradicional, a comunidade pode coabitar com a
sociedade, não há uma anulação de uma modalidade antiga para a substituição de
outra, mas sim uma realidade que permite que diferentes temporalidades ocupem o
mesmo espaço e estas possam ser vivenciadas concomitantemente pelos agentes
sociais. Mesmo com a concepção de um significado partilhado nas comunidades
campesinas não há como compreender esta vivência de forma essencializada, onde
uma época sucede a outra.

59
A busca de uma identidade continua sendo uma luta constante contra a dissolução
e a fragmentação. Mas também, a identificação causa uma intenção de devorar e ao
mesmo tempo uma recusa resoluta de ser devorada. É uma ideia paradoxal e
desestabilizadora, que levanta questionamentos paradoxais, criando um “conceito
altamente contestado” nesta perspectiva:

A identidade é uma ideia inescapavelmente ambígua, uma faca de dois


gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das
comunidades que desejam ser por estes imaginadas. Num momento o
gume da identidade é utilizado contra as “pressões coletivas” por
indivíduos que se ressentem da conformidade e se apegam a suas
próprias crenças (que “o grupo” execraria como preconceitos) e os
seus próprios modos de vida (que o grupo condenaria como exemplos
de “desvio” ou “estupidez”, mas, em todo o caso de anormalidade,
necessitando ser curados ou punidos). Em outro momento é o grupo
que volta ao gume contra um grupo maior, acusando-o de querer
devorá-lo ou destruí-lo, de ter a intenção viciosa e ignóbil de apagar a
diferença de um grupo menor, força-lo ou induzi-lo a se render ao
seu próprio “ego coletivo”, perder prestígio, dissolver-se... Em ambos
os casos, porém, a “identidade” parece um grito de guerra usado
numa luta defensiva: um indivíduo contra o ataque de um grupo, um
grupo menor e mais fraco (e por isso ameaçado) contra uma
totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora).
(BAUMAN, 2005, p. 82-83)

Assim, o processo de identificação é uma verdadeira batalha em defesa de línguas,


memórias, crenças, valores, costumes e hábitos locais menores contra hábitos que
promovem a homogeneização e a exigência da uniformidade, pautados na ideia de
unidade nacional. Mas estes conflitos são naturais da identidade, ela só aflora no
tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos
da guerra. Assim, “não se pode evitar que ela corte dos dois lados. Talvez possa ser
conscientemente descartada, mas não pode ser eliminada do pensamento humano,
muito menos afastada da experiência humana”. (BAUMAN, 2005, p. 83) No sentido
da preocupação de defender a memória e os costumes de uma tradição, trazemos a
fala do morador 5:

Quando nós “era” curumim, nós sentava na beira do barranco, e ouvia


e contava histórias uns “pros” outros. Naquela época não tinha tanta
maldade, hoje é a coisa mais difícil na vida “a gente” ver essa
juventude junta para momentos assim, quando não tão grudado no

60
celular tão de olho duro na televisão. Quando eu “ralho 2” e aconselho,
fazem é rir de mim dizendo que as coisas que a gente fala é do tempo
do “ronca3”. É triste minha filha, mas muita coisa tão se acabando a
juventude tá muito mudada. Na nossa época tinha muita alegria, não
tinha “arengação4” não, e como hoje ninguém tá nem aí para nada
tudo vai se “escafeder5” “num” abrir e fechar de olho. Entrevista
cedida em agosto de 2017.

Podemos identificar na fala do narrador, a preocupação em legitimar a sua


identidade, e isso se comprova através do fato de os jovens não terem tanta
preocupação em ouvir e perpetuar as heranças. Muitas vezes ele é ridicularizado
por tentar mostrar para a geração atual como as coisas aconteciam em sua época. A
identidade cultural pode está iniciando um processo de desestabilização na
Comunidade da Missão, e o celular e as outras mídias, como a internet, têm sido os
responsáveis pelo afastamento das pessoas de suas identidades culturais, em
contrapartida, são trabalhos desta natureza que irão dar legitimidade ao
conhecimento local.

Não importa o quanto tentemos estender a nossa imaginação acerca da identidade,


a luta por auto afirmar-se não é fácil, muito menos uma conclusão inevitável. Sua
tarefa não é apenas repetir mais uma vez um feito realizado muitas vezes ao longo
da história da espécie humana, mas substituir uma identidade escrita por outra,
mais inclusiva, e afastar a fronteira da exclusão. E esse desafio “deve ser enfrentado
hoje por uma espécie humana fragmentada, profundamente dividida, desprovida de
todas as armas, exceto o entusiasmo e a dedicação de seus militantes”. (BAUMAN,
2005, p.86)

Portanto, somos incessantemente forçados a torcer e moldar as nossas identidades,


sem ser permitido que nos fixemos a uma delas. A tarefa de construir uma
identidade própria legitimá-la, torná-la coerente e submetê-la à aprovação pública
exige “atenção vitalícia”, vigilância constante, um enorme e crescente volume de

2
Expressão utilizada pelos moradores para exortar alguém, ou melhor, ralhar significa chamar atenção perante
algo não considerado certo.
3 Expressão que caracteriza algo como muito antigo e que não tem tanta importância.
4 Arengação é um termo que significa brigas, divergências e discórdias.
5 Escafeder significa sumir, desaparecer, sucumbir ousimplesmente deixar de existir, expressão muito utilizada na
Comunidade da Missão.
61
recursos e um esforço incessante sem esperança de descanso. Os conflitos são
numerosos e tendem a ser amargos e violentos. “Essa é uma ameaça constante à
integração social, e também ao sentimento de segurança e autoafirmação
individual”, (BAUMAN, 2005, p.88) porque a identidade não é imutável, mas algo em
progresso e em constante processo de emancipação. De acordo com esta
perspectiva, daremos ênfase a seguir, à pluralidade de culturas pertinentes na
Missão para endossar a identidade cultural.

A cultura local dentro de uma perspectiva pluralista

A cultura é como uma lente que filtra tudo aquilo que vemos, percebemos e
sentimos. Não há como perceber o mundo a não ser através do filtro de alguma
cultura. “Cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura em que
cresceu” (BOAS, 2005, p. 18). Um dos elementos centrais desse processo de
“percepção do mundo” é a linguagem, que é um mecanismo de transmissão de
valores, ideias e formas de refletir sobre a realidade.

A Cultura é um todo integrado, é tudo aquilo que é feito, pensado e trabalhado


pelas pessoas. As crenças, os mitos, as tradições e os costumes são criações
culturais, pois foram construídas por grupos sociais e transmitidas de geração em
geração através da linguagem. É o meio pelo qual vemos e percebemos o mundo.

Para Laraia (2014) a cultura pode ser entendida também como um componente
interno essencial da natureza humana, estando, pois, associada ao contexto
biológico como também ao contexto evolutivo. Ela não é estática, vem se
transformando de acordo com o tempo, é um conjunto de convenções
características dos seres humanos.

Na realidade são comportamentos e saberes naturais das pessoas, que de acordo


com a evolução da sociedade, estas atividades e essas práticas também evoluem,
pois estão em constante progressão evolucional. Elas podem ser adquiridas através
do constante processo de aprendizagem das pessoas, e transmitidas de geração
para geração por intermédio de suas vivências sociais. A cultura, “tomado em seu
amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. (LARAIA, 2005, p. 25)
62
O autor reafirma ainda que a cultura é dinâmica e está sujeita às mudanças devido
ao seu constante processo evolucional. Ela deixa de ser um conjunto de práticas
observáveis e passa a configurar um conjunto de códigos simbólicos, ou melhor, é
mais semelhante a um conjunto de códigos do que apenas um conjunto de
comportamentos. É um conjunto de regras que é internalizado pelas pessoas desde
a infância.

A cultura não é somente os fazeres de determinado grupo social, mas também o


que ele pensa. Ela está presente em todos os indivíduos que vivem em sociedade, é
compartilhada e transmitida de geração para geração, como um código, permeada
pela linguagem e por várias características que a língua traz consigo.

As identidades culturais são diversas, o universo das crenças é pertinente entre os


moradores antigos da Comunidade da Missão, assim como as lendas e os mitos, eles
acreditam nos conhecimentos transmitidos pela geração passada. Partindo desse
pressuposto, consideramos relevante destacar a fala da moradora6:

Quando a gente emprenhava, “num” tinha esse negócio de médico


não, a gente ia até a casa da “Dona Reza6” e ela dizia quando é que nós
ia “parir” e se nós ia ter um bom parto ou não. Eu fazia do jeitinho que
ela mandava toda sexta-feira me banhava e ela rezava em mim. Se o
menino tivesse de atravessado, bastava rezar três sexta-feira seguida
que a Nossa Senhora do Bom Parto e do Desterro colocava o menino
encaixado. Tive 15 filhos minha filha só na base da reza com galho de
peão roxo e dos asseios. No meu resguardo, eu tirava os 40 dias de
baixo do mosquiteiro, se num cuidasse a “doença do vento 7” vinha e
levava a criança. Esse vento da “boca da noite” nem pensasse em
pegar, tinha que se resguardar porque quando a “mãe do corpo” vinha
era uma dor medonha que num tinha quem suportasse, era cruel.
Minhas plantas tão tudo aí “espaiáda” pelo quintal, só não cuido mais
porque “tô” muito velha, mas pra mim esse negócio de tá o tempo
todo no médico num ficou pra mim não, basta fazer um chazinho
minha filha que fico boa na hora. Entrevista cedida em agosto de 2017.

Mediante a fala da narradora, percebemos o costume de uma tradição pela maneira


como ela reconstruiu seu passado, demonstrando a sua fé nas rezas, nos banhos e

6 Nome fictício.
7 Doença do vento que não tinha cura na época, hoje é conhecida como a meningite, muitas crianças vinham a
óbito, a maioria recém nascido, era muito raro uma criança sobreviver da “doença do vento”.
63
cuidados vindos das práticas tradicionais de uma ancestralidade. Esses saberes
contribuíram para o nascimento saudável de seus 15 filhos, apesar dos poucos
recursos, as parteiras realizavam os partos de mulheres e curavam as “mães do
corpo”, doença muito temida por elas, pois eram as consequências de um resguardo
não cuidado. A sabedoria popular é predominante entre os moradores antigos, pois
se a mulher não cumprir o resguardo de 40 dias debaixo do “mosquiteiro”, pode ter
consequências sérias futuramente.

Esses aspectos culturais são como um processo resultante de todo conhecimento


histórico das gerações anteriores, uma vez que toda a experiência de um indivíduo
é transmitida aos demais, criando, assim, um interminável processo de construção,
o qual se dá graças ao ato da comunicação oral. E são por intermédio da
reconstituição desses aspectos culturais que legitimamos e construímos a nossa
identidade no presente.

A narradora destaca que a medicina tradicional tem sido pouco valorizada, para ela,
as plantas medicinais surtem mais efeitos do que estar constantemente no médico.
A cura de seus males está em seu quintal, porém como está idosa não tem tanta
habilidade e força de manter suas plantas como queria. Essas práticas tradicionais
são ensinamentos para a nossa geração, em vez de nos entupirmos de remédios e
drogas fabricados em laboratórios, podemos muito bem nos render às nossas
tradições e tratar de nossas enfermidades de uma forma mais saudável.

Nesta perspectiva, Hall (2003, p.56) destaca que há três conceitos para definir o
que se considera como cultura ou (...) “Comunidade Imaginada”: as memórias do
passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança. Assim,
valorizando, ressignificando e registrando essas três definições através da história
oral, os moradores da Comunidade da Missão podem reconstruir o passado dando
sentido às ações do presente. Nesta perspectiva, é importante ressaltar que:

O conhecimento cultural é o único que não tem vergonha de seu


sectarismo e do viés dele resultante. É, na verdade, o único
conhecimento audacioso o bastante para oferecer ao mundo seu
significado, em vez de acreditar (ou fingir acreditar), com
ingenuidade, que o significado está ali, já pronto e completo, à espera
de ser descoberto e aprendido. A cultura, portanto, é o inimigo
natural da alienação. Ela questiona constantemente a sabedoria, a

64
serenidade e a autoridade que o real atribui a si mesmo (BAUMAN,
1999, p. 204).

Considerações Finais

As narrativas estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas


acerca das regiões “estranhas do mundo”, elas também se tornam o método usado
pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história
própria deles. Evidenciar as narrativas de tradição oral, que permearam o
imaginário dos moradores antigos de uma determinada comunidade, é uma das
alternativas de preservar o passado, e contribuir para uma construção identitária
no presente. Legitimar a identidade da cultura local inclui destacar a língua, a
história, a geografia, os modos de formular ideias, de fazer, de ser e de estar com os
membros de um mesmo grupo social, abrange um espaço compartilhado.

É importante para a humanidade o entendimento das diferenças entre povos de


culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças presentes dentro de
um mesmo sistema. Este é um dos principais processos que preparam o indivíduo
para descortinar o mundo, pois a cultura é uma teia de significados tecida pelos
seres humanos, é um todo integrado, e não apenas um conjunto desagregado de
práticas, hábitos, costumes, relações e pensamentos.

Assim, valorizando, ressignificando e registrando essas três definições através da


história oral, os moradores da Comunidade da Missão podem reconstruir o passado
dando sentido às ações do presente. Legitimar a identidade da cultura local inclui
destacar a língua, as manifestações artísticas e culturais, a história, a geografia, os
modos de formular ideias, de fazer, de ser e de estar com os membros de um
mesmo grupo social, abrange um espaço compartilhado. Desse modo este trabalho
possibilita reconhecer a diversidade cultural sem imposições de juízos de valores,
pois só assim, é possível entender as práticas culturais realizadas pelas sociedades
distintas.

65
Referências

BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução Carlos Alberto


Medeiros. São Paulo, 1999.
BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Guacira Lopes Louro
& Tomas Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: Lamparina, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 26ª reimpressão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Manaus:
editora Valer, 2015.
Morin, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina
Eleonora. – 2. Ed. – São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Mini Currículo

Thaila Bastos da Fonseca


Professora colaboradora do Curso de Letras-Língua Portuguesa do Núcleo de Ensino Superior de
Eirunepé (NESEIR-UEA) e da Rede Estadual de Ensino (SEDUC-TEFÉ); É mestra em Ciências
Humanas (PPGICH-UEA); É integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos
(NEPAM/UFAM). E-mail: thailabastos@yahoo.com

66
O MUSEU DE STREET ART DE SALVADOR E O GRAFITE: RESSIGNIFICANDO AS
COMUNIDADES DO SOLAR DO UNHÃO E GAMBOA DE BAIXO.

THE MUSEUM OF STREET ART DE SALVADOR AND GRAFFITI: RESIGNIFYING THE


COMMUNITIES OF SOLAR DO UNHÃO AND GAMBOA DE BAIXO.

Olga Nathália da Paixão Vidal


UFRB/PPGAP, Brasil.

Resumo

A partir das reflexões acerca do conceito de patrimônio cultural, o artigo propõe-se analisar
o Museu de Street Art de Salvador. Localizado nas comunidades do Solar do Unhão e da
Gamboa de Baixo, no bairro do Dois de Julho, na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Realizado
pelo Coletivo Nova10Ordem, provoca essas comunidades a um diálogo com sua história, por
meio de imagens, que narram as diversas vivências culturais das comunidades. Inseridas em
um contexto socioespacial que torna invisíveis vários aglomerados urbanos, sobretudo nas
metrópoles contemporâneas, com um histórico de estereotipação e estigmatização do
território da favela e dos seus habitantes - e que, por consequência, sofrem com a falta de
acesso à direitos fundamentais, demarcados pelas mazelas das desigualdades sociais.
Interessa-nos, aqui, investigar a construção do MUSAS nas comunidades, a partir das
metodologias etnográficas e etnoarqueológicas, considerando as condutas
comportamentais, técnicas e execução, optou-se por estudar as atuações artísticas, que
passam a desempenhar, para além no cenário artístico paisagístico, um papel político e
econômico cada vez maior, que elucida a economia criativa, ressignificando estes
subespaços urbanos. Por continuidade, minha hipótese é que o MUSAS fomenta os
processos de cidadania e de preservação da memória social pelos grafites, por isso, está
investigação busca analisar essas narrativas visuais. Mais do que uma linguagem da arte de
rua, este um movimento cultural simbólico de comunicação e de mobilização social, sendo
compreendido nesta pesquisa, na perspectiva proposta por Latour (2012) e a teoria de ator-
rede. Alguns conceitos relacionados aos estudos das cidades contemporâneas estão
presentes aqui: territorialidade, arte, espaços públicos e privados, subespaços, patrimônio
cultural e memória. Para análise destes conceitos, a arte urbana - o grafite, foram entendidos
enquanto dinamizador de processos sociais que tem ressignificado lugares e empoderado
pessoas. Destaca-se que o fazer artístico dos grafiteiros aponta como resultado uma função
referencial do espaço para pensar o futuro das comunidades e instrumentalizar as lutas
políticas do presente.

Palavras-chave: Patrimônio cultural, arte urbana, memória e territorialidade.

67
Abstract

Based on the reflections about the concept of cultural heritage, the article proposes to
analyze the Street Art Museum of Salvador. Located in the communities of Solar do Unhão
and Gamboa de Baixo, in the neighborhood of Dois de Julho, in the city of Salvador, Bahia,
Brazil. Carried out by the Nova10Ordem Collective, it provokes these communities to a
dialogue with their history, through images that narrate the diverse cultural experiences of
the communities. Inserted in a socio-spatial context that makes several urban agglomerates
invisible, especially in contemporary metropolises, with a history of stereotyping and
stigmatization of the shantytown territory and its inhabitants - and that, consequently,
suffer with the lack of access to fundamental rights, demarcated by the mazels of social
inequalities. We are interested here in investigating the construction of MUSAS in the
communities, based on ethnographic and ethno-archaeological methodologies, considering
behavioral behaviors, techniques and execution, we chose to study the artistic
performances, which start to play, beyond the landscape art scene, an increasing political
and economic role, which elucidates the creative economy, resignifying these urban sub-
spaces. By continuity, my hypothesis is that MUSAS fosters the processes of citizenship and
preservation of social memory by graffiti, so this research seeks to analyze these visual
narratives. More than a street art language, this a symbolic cultural movement of
communication and social mobilization. Some concepts related to the studies of
contemporary cities are present here: territoriality, art, public and private spaces,
subspaces, cultural heritage, and memory. To analyze these concepts, urban art - graffiti -
was understood as a dynamizer of social processes that have resigned places and
empowered people. It is noteworthy that the artistic work of the graffiti artists points as a
result a referential function of the space to think about the future of communities and
instrumentalize the political struggles of the present.

Keywords: Cultural heritage, urban art, memory and territoriality

As comunidades do Solar do Unhão, Gamboa de Baixo e o Museu de Street Art de Salvador

As comunidades do Solar do Unhão e Gamboa de Baixo, Salvador, Bahia, localizam-


se no bairro do Dois de Julho (Centro Histórico), abaixo do viaduto da Avenida
Lafayete Coutinho ou Avenida Contorno, vizinho aos bairros do Comércio, Vitória e
Canela. O Museu de Street Art de Salvador (MUSAS), encontra-se debruçado sobre a
Baía de Todos os Santos, estando nas adjacências o Museu de Arte Moderna da Bahia
(MAM) e o bairro da Vitória, defronte a Ilha de Vera Cruz. Com um histórico de
esteriotipação e estigmatização do território da favela e dos seus habitantes, que

68
sofrem com a falta de acesso a direitos fundamentais, demarcadas pelas mazelas das
desigualdades sociais. Segundo Abreu (2019), sobre a estigmatização do território da
favela

A propagação dos discursos que compõem a estigmatização da favela


cumpre um papel crucial para o Estado e as classes dominantes na
implementação de políticas e ações nas favelas. Essa capacidade de
absorção dos valores dominantes é definida por Bourdieu (2003), como
as condições sociais de produção de significados. Isto demonstra que a
estigmatização não é unilateral e que é compartilhada por diversos
atores, inclusive pelos próprios favelados. (BOURDIEU apud BRUM,
2010, p.99) (ABREU, 2019, p. 7).

Compreendida em uma área de aproximadamente 22.730m², apresentando uma


topografia acidentada, a quase 40 metros acima do nível do mar, com cerca de 300
habitações residenciais. Acima da Baía de Todos os Santos, a segunda maior baía
navegável do mundo. Sendo compreendida e percebida pelo seu aspecto de
favelização, onde, é evidente a precária infraestrutura da localidade. A dificuldade de
acesso, intensificada pelas condições habitacionais e de seus logradouros
acidentados, dão as características que identificam esses aglomerados urbanos,
território de propriedade da União, em processo de Regularização Fundiária,
através da Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade, política urbana, e as Zonas Especiais
de Interesse Social (ZEIS 5) e do Decreto Municipal nº. 33.680 de 22 de março de
2021, que cria a Comissão de Regularização de ZEIS, para acompanhamento e
aprovação do Plano de Regularização Fundiária da ZEIS 5 da Gamboa de Baixo e Solar
do Unhão, respaldado pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município
de Salvador, artigos 81 e 82. Conforme mapa territorial na Figura 1.

69
Figura 1: Mapa das comunidades da Gamboa de Baixo e do Solar do Unhão

Fonte: ORTOFOTO SICAD, PMS, 2006 – CONDER.

As comunidades têm suas gêneses, oriunda de uma pequena vila de pescadores,


tendo uma população de 1.037 habitantes, economicamente de baixa renda e
majoritariamente de cor preta, carente de infraestrutura básica, precária em
iluminação pública, com inexistência: de acessibilidade, de coleta de resíduos
sólidos, limpeza pública e da manutenção da rede de esgoto. Adquiriu um maior
contingente populacional na década de 1990, através de invasões que se tornaram
comum nas grandes e médias cidades brasileiras. Segundo Souza (2000), acerca da
ocupação territorial, “No início dos anos 90, em Salvador as, assim chamadas,
invasões chegavam a 14% das áreas ocupadas por habitação, somadas a outras áreas
de ocupação informal, estas áreas chegariam a 32% da ocupação habitacional.
“(SOUZA, 2000, p.67).

Dentro dessa lógica urbanística, é notável um inchaço urbano compreendido entre a


Baía de Todos os Santos e o Viaduto da Avenida Contorno ou Avenida Lafayete
Coutinho, projetada em 1952, pelo arquiteto Diógenes Rebouças, o executor também

70
do Estádio Octávio Mangabeira em 1951. Dividindo a cidade alta, Gamboa de Cima, da
cidade baixa: Gamboa de Baixo.

As comunidades possuem subjetividades socioculturais, que aqui são


compreendidas, sobretudo, por meio dos moradores, grafiteiros e visitantes, com a
finalidade de propagação das memórias que constituem esse subespaço e
ressignificam a participação do corpo populacional que ali residem, proporcionando
a compreensão das instâncias sociais que regem o percurso da cidade. “O principal
sujeito da cultura é o habitante local, aquele que se apropria da cidade, que cria
condições mais favoráveis para a fruição do patrimônio ambiental urbano”.
(MENESES, 2006, p. 39).

Os trabalhos desenvolvidos pelo MUSAS, são compreendidos na esfera da nova


Museologia contemporânea, que repensa os museus como instituição pública de
empoderamento da população, com discursos e práticas avançadas para a sociedade.
Entendendo empoderamento o mesmo proposto por Berth (2019), como

A aliança entre conscientizar-se criticamente e transformar na prática.


Sendo um instrumento de emancipação política e social e que não se
propõe a viciar ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de
dependência entre indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de
como cada um pode contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos
minoritários. Nem visa retirar poder de um para dar a outro a ponto de
se inverter os polos de opressão, e anuir de uma postura de
enfrentamento da opressão para eliminação da situação injusta e
equalização de existências em sociedade. (BERTH, 2009, p. 13)

O MUSAS, surge no ano de 2013, intitulando-se um museu a céu aberto, tendo suas
obras, expostas nas paredes residências e nas embarcações. Reunido pessoas de
áreas multidisciplinares: artes, saúde e moda, para interagirem com a cultura local,
através das artes visuais, música, consciência ambiental, reciclagem,
sustentabilidade, moda e turismo cultural, movimentando o eixo cultural das
comunidades. Produto da elaboração do coletivo Nova10Ordem, fundado em 1997
pelos integrantes Julio Costa, Bigod Silva e Marcos Prisk. O coletivo atualmente está
composto por 16 integrantes, dentre eles: Julio, Bigod, Ixlutx, Dk-dolks, Iel Furo, Sins,
Hard, Muleca, Lipe, Pepino, Sagaz, Zureta, Questão, Sid e Prisk, formado por
grafiteiros e artistas plásticos de Salvador que trabalham com arte, cultura,
cenografia, live print, animação e outras vertentes no âmbito das artes.
71
Buscou-se ao longo das visitas a campo nortear alguns pontos que tratam da
dinâmica local que nos parecem reger a rotina da comunidade. É interessante
observar como esta dinâmica e costumes foram sendo impressas nos grafites
produzidos por este coletivo. Por isso, está investigação busca analisar essas
narrativas visuais.

Por meio da etnografia e etnoarqueologia dos grafites, considerando sua técnica e


execução, optou-se por estudar a cognição, as atuações artísticas, que passam a
desempenhar, para além no cenário artístico paisagístico, um papel político e
econômico cada vez maior, ressignificando estes espaços urbanos. No caso das
comunidades do Solar do Unhão e Gamboa de Baixo, essa ressignificação tem sido
concretizada por uma comunicação de afirmação identitária que empondera e faz
com que os indivíduos se percebam na conjuntura sócio-urbana na cidade de
Salvador. Para Berth (2009), perante as relações de poder

O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades, da


assertividade individual até a resistência, protesto e mobilização
coletivas, que questionam as bases das relações de poder. No caso de
indivíduos e grupos cujo acesso aos recursos e poder são determinados
por classe, casta, etnicidade e gênero, o empoderamento começa
quando eles não apenas reconhecem as forças sistêmicas que os
oprimem, como também atuam no sentido de mudar as relações de
poder existentes. Portanto, o empoderamento é um processo dirigido
para a transformação da natureza e direção das forças sistêmicas que
marginalizam as mulheres e outros setores excluídos em determinados
contextos. (BERTH, 2009, p. 19)

O interesse pelos museus no Brasil vem crescendo, é possível perceber tal


desenvolvimento a partir de iniciativas não governamentais e coletivas nos mais
diversos campos da sociedade, com grande diversidade de temas e propostas
disseminadas em diferentes regiões do Brasil. Segundo Soares (2006, p. 3-4), “O
termo nova Museologia apareceu no mundo dos museus no início dos anos 1980.
Depois foi utilizado para designar certo tipo de ideologia e de prática, com
significações variáveis”. Nesse momento, surgem os chamados museus
comunitários ou museus-cidadãos, que tem surgido em locais onde há alguns anos
seria inconcebível pensar a existência de museus: nas favelas, periferias, subúrbios
e bairros populares. Entendemos, nesse trabalho a ideia de museu comunitário,

72
proposta por (Lersch e Ocampo, (2004), distinguindo da ideia de “museu da história
vivida”. Os autores nos dizem que

Uma primeira consideração é que o museu nunca é uma expressão


direta da vida, como um pedaço de vida arrancada da realidade e
exposta em um recinto. O museu é sempre uma interpretação da vida,
uma seleção específica e significativa da realidade. Quando não
colocamos essa apreciação logo de saída, existe o perigo de ocultar a
interpretação e o autor da interpretação. Podemos perguntar: o
museu éa história vivida por quem? De acordo com quem? (LERSCH e
OCAMPO, 2004, p. 1).

O processo de globalização permitiu a difusão de ideias numa praticidade que


permite criações e recriações além do vivido. Novas formas de pensar o indivíduo
com um senso crítico que nos permite “imaginar sociologicamente” além dos
padrões e dos estereótipos de um lugar. Ainda sobre museu comunitário (Lersch e
Ocampo, (2004) afirmam que

Em um museu comunitário o objeto não é o valor predominante, mas


sim a memória que se fortalece ao recriar e reinterpretar as histórias
significativas. [...]. No museu comunitário as pessoas inventam uma
forma de contar suas histórias e dessa maneira participam, definindo
sua própria identidade em vez de consumir identidades impostas. [...]
O museu comunitário se converte em uma ferramenta para manejar o
patrimônio sob as formas do poder comum. Por um lado, serve para
manter ou recuperar a posse de seu patrimônio cultural material e por
outro, permite uma apropriação simbólica do que é seu, ao elaborar o
que significa em sua própria linguagem. (LERSCH e OCAMPO, 2004, p.
1).

Neste sentido, o museu proporciona as comunidades se conhecerem historicamente.


Segundo o Conselho Internacional de Museus (ICOM, 2022), na perspectiva de sua
funcionalidade

Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao


serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e
expõe o patrimônio material e imaterial. Os museus, abertos ao
público, acessíveis e inclusivos, fomentam a diversidade e a
sustentabilidade. Os museus funcionam e comunicam ética,
profissionalmente e, com a participação das comunidades,
proporcionam experiências diversas para educação, fruição, reflexão e
partilha de conhecimento”. (ICOM, 2022)

73
Esse artigo tem como objetivo principal compreender a atuação do MUSAS, no
contexto coletivo das comunidades, assim como analisar os processos de produção,
cognitiva, artística, cidadania e preservação da memória social urbana, presente no
nosso recorte espacial. Entendendo o grafite, como um movimento cultural
simbólico, de comunicação e mobilização social que proporciona novos olhares a
respeito de processos criativos que valorizam o saber e a experiência individual,
tornando-se conjuntamente coletiva. Ingold corrobora: “No gratife, o spray, serve
como um transdutor, convertendo a conscientização cinestésica do grafiteiro no
fluxo e na inflexão do traçado.” (INGOLD, 2022, p. 173, grifos meus).

O MUSAS cumpre uma função referencial como espaço de reflexão para repensar
o futuro e instrumentalizar as lutas políticas do presente. Sendo marcada pela
ausência do poder público, extremamente fragmentado, o museu é um espaço de
encontro, com elos capazes de contribuir para pensar as diversidades e as
referências de subjetividades, partilhar o diferente e o comum, especialmente as
memórias, tão negligenciada pelos que tem imposto uma visão histórica a partir do
olhar, dos que sempre estiveram no poder, num país que nunca tratou bem sua
memória e negou ao longo do processo histórico o direto às classes populares de
terem do que lembrar.

Potencialidades sociais e direito à cidade

É competência do município, conforme a Constituição Federal, art. 31, inciso VIII:


“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.”

No caso da cidade de Salvador, que sofre com um déficit habitacional desde o


processo de urbanização acelerada e desordenada que orienta o país a datar da
primeira metade do século XX, e que rege a vida das comunidades pesqueiras do
Solar do Unhão e da Gamboa. O déficit habitacional é compreendido como uma
discrepância entre crescimento populacional e ofertas de novas moradias.

Segundo essa perspectiva, esse seria o principal motivo que teria levado ao
surgimento de habitações precárias. Para Milton Santos, a “urbanização facilita o
processo capitalista que agrava as desigualdades.” (SANTOS, 2008, p. 194).

74
A respeito dos grupos sociais que atuam em comunidades, como é o caso do coletivo
Nova10Ordem, é possível observar que, de certa forma, eles interpenetram o tecido
social, o que pode gerar “uma nova qualidade de vida, diferente da aridez da
‘modernidade’ impulsionada pela homogeneização cultural.” (FARIA, 2003, p.42).

A atuação destes grupos, pode ser identificada como uma espécie de exercício da
cidadania, por meio de atividades culturais, que ampliam horizontes e elucidam
questões referentes ao direito à cidade. O que se torna ainda mais interessante se
considerarmos a realidade, os estigmas e as práticas cotidianas que acontecem nas
comunidades do Solar do Unhão e d a Gamboa de Baixo. Estas localidades, ainda
que, próximas aos bairroscentrais da cidade de Salvador, diferem em diversos
aspectos das zonas privilegiadas, seja em sua infraestrutura, como, por exemplo,
na iluminação pública, no acesso ao saneamento básico, assim como nos acessos aos
serviços de saúde e de educação ou, até mesmo, em constituição populacional.
Tratando-se da diversidade cultural e ao acesso à bens e serviços, Magalhães (2002),
elucida

Nada temos a opor contra o caráter popular desse lugar,


principalmente se considerarmos que a cidade pouco oferece para os
mais pobres. Entretanto o centro do bairro será muito mais
interessante e representativo na medida que a sua apropriação não seja
exclusiva de determinadas classes sociais, mas que possa espelhar a
diversidade social que a cidade possui. (MAGALHÃES, 2002, p. 21)

De caráter mais específico, foi possível perceber o potencial turístico das


comunidades, percebendo as dinâmicas locais, suas topografias, historiografias,
memórias, aspectos estruturais, físicos e culturais, nos dando suporte para
compreender as atividades artísticas, que dinamizam as atividades propostas pelo
MUSAS. Segundo Medeiros (2006), numa de suas reflexões sobre museus em favelas
diz que

Mundo afora, museus a céu aberto, ecomuseus ou museus vivos são


formas híbridas que mesclam características dos museus
convencionais com espaços abertos, em que narrativas próprias aos
museus interagem com a paisagem para construir representações do
patrimônio geográfico e histórico de localidades específicas. Neste
sentido, problematizam dicotomias que tradicionalmente deram norte
às políticas de distinção (passado x presente; processo x produto;

75
popular x erudito, público x privado) e ampliam o repertório de
atribuição de valor no campo cultural. (MEDEIROS, 2006, p. 54).

A proposta do MUSAS está em constante construção e elaboração, pode-se


conjecturar que as comunidades se pressentem contempladas com tais iniciativas.
Nessa perspectiva, Medeiros (2007), argumenta que

[...] a favela comercializada como atração turística [...] ao mesmo tempo


em que permite engajamento altruísta e politicamente correto, motiva
sentimentos de aventura e deslumbramento. É a experiência do
autêntico e do exótico, do risco e do trágico em um único lugar.
(MEDEIROS, 2007, p. 63).

O coletivo que gerencia as atividades do MUSAS, trabalha na perspectiva de divulgar


seus trabalhos e consequentemente as comunidades, numa tentativa de popularizar
o lugar e as artes de produção local. Meneses (2006), corrobora quanto ao direito à
moradia, o universo do cotidiano e as relações socias

Compreende-se (embora não se justifique) a desvalorização do


trabalho, associada a um alto padrão de desperdício, numa sociedade
que ainda tem muito que fazer para superar sua herança escravocrata.
O desprezo pela função de habitar tem a ver com a exclusão da cultura
no horizonte do cotidiano e se agrava em relação ao trabalho: toda
publicidade imobiliária de alto padrão, hoje em dia, insiste em exilar do
espaço de habitação, com rigorosa assepsia, qualquer ameaça de
presença visível do trabalho. Quanto ao cotidiano, observe-se, ainda, o
desconforto inconsciente que ele provoca, já que, muito mais do que
uma inofensiva repetição de si mesmo no dia-a-dia, ele é por
excelência a instância em que concretamente se instituem as relações
sociais, em que as práticas sociais dão corpo e efeito aos interesses em
jogo. (MENESES, 2006, p. 38).

A Museologia Social ampara o desenvolvimento da noção/compreensão de


participação social, possibilitando a Museologia novos objetos de estudo e/ou
preservação. Moutinho (1993), em suas elucubrações sobre o conceito de
Museologia Social, diz

A abertura do museu ao meio e a sua relação orgânica com o contexto


social que lhe dá vida tem provocado a necessidade de elaborar e
esclarecer relações, noções e conceitos que podem dar conta deste

76
processo. [...] a idéia de participação da comunidade na definição e
gestão das práticas museológicas, a museologia como fator de
desenvolvimento, as questões de interdisciplinaridade, a utilização das
"novas tecnologias" de informação e a museografia como meio
autônomo de comunicação, são exemplos das questões decorrentes
das práticas museológicas contemporâneas e fazem parte de uma
crescente bibliografia especializada. (MOUTINHO, 1993, p.8).

Utilizando as casas das comunidades como grandes telas, o MUSAS, vem


funcionando como ponto de intersecção entre moradores, visitantes e artistas de
diversos lugares, concretizando economias criativas, intercâmbios culturais e
pluralidades artísticas.

O papel social do musas e a representatividade d os grafites

O primeiro contato dos grafiteiros, com as comunidades do Solar do Unhão e


Gamboa de Baixo, surgiu a partir do convite de Tico Sant’ana, mestre de capoeira
conhecido na comunidade. No ano de 2013, para pensar a implantação de um ponto
de cultura, que pudesse contribuir para a valorização dos aspectos culturais e
educacionais das comunidades. Já no primeiro momento deste contato, os
integrantes do coletivo, perceberam a possibilidade de cooperar de alguma forma
em prol da localidade. O coletivo possuía experiências com mutirões de grafite em
diversas comunidades de Salvador, e sentia necessidade de firmar-se em alguma
comunidade/lugar, para possuir uma sede e colaborar de alguma forma para/com
as comunidades, que desde o início mostrou-se receptiva a proposta do coletivo.
Ainda sobreos mutirões de grafite que servirão de experiência para a implantação do
MUSAS, Julio, integrante do Coletivo Nova10Ordem comenta

Os mutirões sempre foram realizados através da convocação de


grafiteiros, artistas circenses, e voluntários ligados à área de saúde
como ginecologia, higiene pessoal, odontologia, entre outras. Os
grafiteiros convocados se ocupam com a parte estética da comunidade,
e levam de casa seu próprio material, os artistas circenses são
responsáveis pela magia, os voluntários ligados a saúde fazem oficinas,
e todos interagem em um dia inteiro, brindado por uma super feijoada
servida no almoço para quem quiser chegar. Massaranduba,
Saramandaia, Cidade de Plástico (Periperi), Uruguai, Ribeira, ocupação
sem teto no Bonfim, são algumas das comunidades que já realizamos
alguns mutirões. Ao atuar na comunidade do Solar do Unhão e Gamboa

77
de Baixo, a intenção do coletivo é gerar ali um organismo vivo, que
poderá se tornar futuramente uma célula independente, que permita
que o coletivo expanda suas ações para outras comunidades.
(INFORMAÇÃO VERBAL).

O coletivo possui experiências em realizações de oficinas que objetivam mediar o


processo educativo e/ou socializador de crianças, adolescentes e jovens. Ribeiro
(2007), nessa perspectiva de ação cultural contribui

Entre los multiples desafios de los museos en la actualidad, uno de los


mas significativos es ampliar la mediacion que ejercen en las
transformaciones socio-educacionales, tan urgentes y necesarias en la
construccion de una sociedad realmente inclusiva, ejercitando valores
como la equidad y el respeto a lãs diferencias. Muchos museos
brasileros estan cumpliendo tal mision produciendo conocimiento y
comunicandolo en diferentes lenguajes y medios de divulagación,
explorando la ludicidad e interactividad tanto en la expografia como
en el dialogo con el público. (RIBEIRO, 2007, p.1).

Compreender o grafite contemporâneo como um patrimônio cultural artístico


pertencente às artes urbanas, e ao mesmo tempo que se aproxima da Museologia
através da promoção de ações culturais garantindo a cidadania das comunidades do
Solar do Unhão e Gamboa de Baixo. Na Figura 2, vista parcial das residências do Solar
do Unhão.

Figura 2: Vista parcial das residências do Solar do Unhão, intervenção artística: grafite e da Baía de
Todos os Santos.

Fonte: Olga Vidal

78
Na conjuntura do racismo ambiental expresso, a autoestima das pessoas que
compõem esse espaço urbano incrustado debaixo de um viaduto, com todas as
contradições naturais, históricas e sociais que compreende o centro da cidade de
Salvador, entendido por Milton Santos, numa tentativa de conceituar a área central
de Salvador, diz

O centro é um desses elementos e, ao nosso ver, certamente o mais


representativo. A periferia da cidade não evolui de maneira igual, de
modo que um mesmo organismo urbano pode ter subúrbios com as
mais diversas funções e fisionomias, uns sem relação direta com
outros. (SANTOS, 1959, p.20).

Buscar a compreensão dos fundamentos da Museologia Social nos faz perpassar pela
adequação das estruturas museológicas as necessidades da sociedade
contemporânea, onde as mudanças, sobretudo, as de caráter social ganham um
maior dinamismo nos debates. O grafite torna-se um elemento artístico,
instrumento contestador dessa realidade social, agindo com intuito de ressignificar
e empoderar sejam pessoas ou lugares, dentro de uma lógica de mudança de
paradigmas, compreendida entre o moderno e o pós-moderno. Adquirindo as
atividades culturais urbanas independência e disseminação informacional com maior
acessibilidade, visto a democratização do movimento artístico, expostos nas paredes
residenciais e nos barcos, acessíveis aos transeuntes.

Refletindo sobre os aspectos culturais que envolvem o MUSAS, percebemos que os


grafites encontram-se entre duas percepções: a da sociedade instituída, que o rotula,
no seu sentido amplo, como ato de vandalismo e/ou um atentado ao patrimônio, e a
dos que defendem o grafite como uma forma de arte alternativa, como
contracultura, onde se manifesta um desejo de criatividade, estimulado por vezes,
pela crítica à realidade social ou, simplesmente, pelo desejo de colorir e embelezar
os espaços urbanos.

Desde a década de 1960 o grafite aparece ligado a contestação política e ideológica


e a movimentos de afirmação identitária. Primeiramente na Europa, surge como
forma de manifestação política do movimento estudantil francês, cujas ideias
paulatinamente se espalharam para a Inglaterra em protestos urbanos, na América

79
Latina em manifestações civis, sofrendo influências, nas décadas de 1970 e 1980, dos
movimentos hippie e punk.

Nos Estados Unidos, o grafite é usado como uma forma de afirmação das
comunidades negra e latina, confinadas em seus respectivos guetos, em Nova York,
nos bairros do Bronx e do Brooklin. A priori, nos guetos estadunidenses, o grafite
era utilizado para demarcar territórios. Tartaglia (2009, p. 61), contribui nesse
sentido dizendo que, “[...] num primeiro momento os graffitis foram estratégias
territoriais que demarcavam a disputa por territórios entre gangues, especialmente
de imigrantes, para depois se tornar uma estética de conciliação para esses grupos.
Na década de 1990, torna-se um dos elementos que compõem a cultura Hip-Hop,
juntamente com o Break, o DJ (DiscJokey), e o MC (Master of Cerimony).

Destarte, o que nos interessa nesse momento é perceber quais são as


possibilidades que o grafite oferece para uma reelaboração do contexto social de
comunidades “invisíveis” socialmente.

Etnoarqueologia dos grafites do musas

Partindo de uma percepção etnoarqueológica sobre os signos e símbolos exposto nos


grafites presentes nas comunidades do Solar do Unhão e Gamboa de Baixo, analisei
a representatividade em determinadas obras expostas, neste contexto, os grafiteiros,
agentes e protagonistas do fazer artístico criativo, propagam e disseminam arte e
reflexão social, através da semiótica dos seus signos e da relação com os sentidos.
Meneses (2006), elucida sobre as representações simbólicas do ambiente urbano

O bem cultural tem matrizes no universo dos sentidos, da percepção e


da cognição, dos valores, da memória e das identidades, das ideologias,
expectativas, mentalidades. Todavia, as representações, para deixarem
de ser mero fato mental ou psíquico e integrarem a vida social,
precisam passar pelo mundo sensorial, do universo físico: o patrimônio
ambiental urbano tem matrizes na dimensão física da cidade, pois é por
meio de elementos empíricos do ambiente urbano que os significados
são instituídos, criados, circulam, produzem efeitos, reciclam-se e se
descartam. (MENESES, 2006, p. 37).

Dentre as simbologias presentes nas intervenções artísticas destacam-se a utilização


de elementos das identidades negras e indígenas (conforme Figura 3 e Figura 4,

80
respectivamente), signos religiosos de matrizes africanas, corporalidades, a
comunidade pesqueira, existências, manifestações e vivências da população que
constitui a localidade, insumos da fauna e flora marítima, evidenciando a educação
ambiental e sustentável. Buscando conscientizar os indivíduos para a preservação da
natureza, dos mares e oceanos, e principalmente da Baía de Todos os Santos. É
notório que moradores e visitantes, apreciam e usufruem das representações que
narram a história daquele contexto histórico, os grafites ainda que êfemeros,
expostos as mais diversas intempéries, sobre a incidência solar e umidade constante,
relatam vivências das culturais locais. Nas escolhas das representações e
subjetividades, a detenção da técnica e do saber fazer artístico imaginativo dos
grafiteiros, direciona as simbologias e os signos presentes nos murais. Segundo Silva
(2011), perante os signos e significados

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas


simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados
produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses
sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual
podemos nos tornar. ... Os discursos e os sistemas de representação
constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se
posicionar e a partir dos quais podem falar”. (SILVA, 2011, p.18)

Figura 3: Grafite representando uma criança Figura 4: Grafite representando povos originários
preta, como futuro presidente brasileiro no muro na parede da residência no Solar do Unhão.
da residência no Solar do Unhão.

Fonte: Ilovemusas
Fonte: Olga Vidal

A semiótica comunicacional é uma extrema necessidade humana, expressar-se


dentro da coletividade possibilitou a descoberta de novas tecnologias e

81
conhecimentos, propagando e difundido saberes, a humanidade edificou seu mundo,
criando seus símbolos, signos, valores e sentidos. A vocação aliada as técnicas e
habilidades artística, elenca o direito à arte e à liberdade de expressão, fomentadas
pelas políticas culturais. Para Gitahy (1999), “a arte será sempre um reflexo social de
um povo, no nosso caso reflexo de um povo oprimido.” (GITAHY, 1999, p. 23).

Sendo a arte/grafite um elemento fundamental para sensibilizar pessoas, a cognição


e o uso da técnica pelo artista é o elemento primordial para transformar esses
contextos sociais por meio do fazer artístico, Kandisnsky (1996), corrobora

Quanto ao artista, é a mão que, com a ajuda desta ou daquela tecla,


obtém da alma a vibração certa. É evidente, portanto, que a harmonia
das cores deve unicamente basear-se no princípio do contato eficaz. A
alma humana, tocada em seu ponto mais sensível, responde.
(KANDISNSKY, 1996, p. 69)

Invocando a responsabilidade ao poder público para efetivar políticas públicas que


fomentem as infraestruturas em diversos aspectos, tais como saúde, saneamento
básico, limpeza pública, educação, arte, acessibilidade e segurança pública, recursos
mínimos para que os citadinos compreendam/conscientizem-se de que a cidade é
um bem cultural.

Referências

Livro
LATOUR, B. Reagregando o social. Uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador, BA,
Edufba, 2012.
Capítulo de livro
BERTH, Joice. Empoderamento / Joice Berth. -- São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
(Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro) P. 13 – 19.
GITAHY, Celso. O que é graffiti. São Paulo, Brasiliense, 1999, p. 23.
INGOLD, Tim. Fazer: antropologia, arqueologia, arte e arquitetura. / Tim Ingold; tradução
de Luiz Paulo Rouanet. – Petrópolis, RJ, Vozes, 2022, p. 173.
KANDISNSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. / Wassily
Kandinsky. Tradução: Álvaro Cabral. 2. ed. – São Paulo, Martins Fontes, 1996.

82
SANTOS, Milton O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países
Subdesenvolvidos. / Milton Santos; tradução Myrna t. Rego Viana. – 2. ed – São Paulo:
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. /
Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 10. ed. – Petrópolis, RJ, Vozes,
2011, p. 18.
SOUZA, Ângela Gordilho. Limites do habitar; segregação e exclusão na configuração urbana
contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. Salvador: EDUFBA, 2000,
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Artigo publicado em periódico
FARIA, Hamilton. Políticas Públicas de Cultura e Desenvolvimento Humano nas Cidades. In:
BRANT, Leonardo (org.) - Políticas Culturais Vol. 1. São Paulo, Manole, 2003, pp. 35-54.
LERSCH, Teresa Morales; OCAMPO, Cuauhtémoc Camarena. O conceito de museu
comunitário: história vivida ou memória para transformar a história? - Kansas City,
Missouri, 6-10 octubre, 2004. Este texto es un resumen de la ponencia "El concepto del
museo comunitario: ¿historia viviente o memoria para transformar la historia?" presentada
en la mesa redonda "Museos: nuestra historia viviente", en la Conferencia Nacional de la
Asociación Nacional de Artes y Cultura Latinas.
MAGALHÃES Jr., José. A cidade como lugar da cultura. Revista d’Art (São Paulo), n. 9/10:
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MEDEIROS, Bianca Freire. A favela que se vê e que se vende: reflexões e polêmicas em
torno de um destino turístico. Revista brasileira de ciências Sociais - Vol. 22 nº. 65, 2007, p.
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_____Favela como patrimônio da cidade? Reflexões e polêmicas acerca de dois museus.
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SOARES, Bruno César Brulon. Entendendo o Ecomuseu: uma nova forma de pensar a
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Artigo publicado em anais de eventos
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cidade como bem cultural: Áreas envoltórias e
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RIBEIRO, Maria das Graças. Inclusão Social em Museus. San José, Costa Rica, 9 al11 de
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Sociedad”.

83
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TARTAGLIA, Leandro Riente da Silva. Geograf(it)ando: a territorialidade dos grafiteiros na
cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado (PPGEO-UFF). Niterói, UFF, 2009, p. 61.
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ABREU, André Almeida de. A relação entre Estado e territórios estigmatizados no Rio de
Janeiro, Geografares [on-line], 29 | 2019, posto online no dia 17 outubro 2019, consultado o
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BRASIL. Lei 10.257 – Estatuto da Cidade, 2001.
______Lei nº 9069 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de
Salvador, 2016.
Decreto nº 33.680 – Plano de Regularização Fundiária da ZEIS de Gamboa de Baixo/Unhão,
Salvador, 2021.
International Council of Museums Brazil. Nova Definição de Museu. 2022.

Mini Currículo

Olga Nathália da Paixão Vidal


Mestranda no PPGAP-UFRB (2022), pesquisadora do grupo MESCLAS, na linha de pesquisa Interfaces
do espaço, cultura e patrimônio, e do grupo Imagem, patrimônio cultural e memória, na linha de
pesquisa Produção de sentidos, linguagem e memória. Graduada em Museologia pela UFBA (2014).
Dentre os interesses de pesquisa: museologia, patrimônio cultural, territorialidade, memória e arte
urbana. E-mail: olgavidal@aluno.ufrb.edu.br

84
CIDADES MEDIADAS: ATIVAÇÕES ARTÍSTICAS E
DISPUTA PELO ESPAÇO

MEDIATED CITIES: ARTISTIC ACTIVATION AND STRUGGLE FOR SPACE

Marcos Vinicius de Brito Amato


Mestrando no PPGACL - Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

Jhonatan Alves Pereira Mata


Doutor em Comunicação - Universidade Federal do Rio de Janeiro- Ecopos/UFRJ. Docente
permanente no PPGCOM-UFJF

Resumo

O presente artigo versa sobre a perspectiva do autor Milton Santos sobre a cidade, sua
formação e sua transformação em grandes centos urbanos. Neste cenário, ressaltamos
algumas problemáticas contemporâneas, como a segregação do espaço público em
detrimento das diferenças sociais e, ainda, como alguns artistas questionam ou apontam
essas questões por meio de ativações artísticas disparadas pela disputa do espaço da
cidade.

Palavras-chave: cidade; urbano; espaço público; arte.

Abstract

This article deals with the author Milton Santos' perspective on the city, its formation and
its transformation into large urban centers. In this scenario, we highlight some
contemporary issues such as the segregation of public space to the detriment of social
differences and how some artists question or point out these issues through artistic
activations triggered by the dispute over city space.

Keywords: City; urban; public place; art.

O que entendemos sobre a cidade? E que relações e reflexões podemos tecer com
sua memória, lugares e seu envolvimento com o entorno e habitantes?

85
Quando vivenciamos a cidade nos deparamos com lugares não habitados ou
meramente resíduos de relações com o passado, da história e de sua memória.
Enfrentamos algumas problemáticas que poderiam ser resolvidas com políticas
públicas voltadas para a utilização do espaço de maneira inclusiva e não restritiva. É
o que observamos em grandes cidades ou cidades de médio porte hoje em dia, a
partir da seguinte questão: O espaço “cidade” ou os seus lugares são para todos?
No campo das artes é possível criar perguntas ou questões que visem perspectivar
sobre o campo cidade e de suas relações?

Essas questões relacionadas à cidade e seu espaço são disparadores para a


continuidade de pesquisas e fruições que podem ser tecidas ao se perceber a
relação da cidade e de seus viventes. Aqui trazemos alguns artistas que se
debruçaram sobre o tema e constroem narrativas e ativações sobre a cidade, assim
como suas demandas influências e dilemas. Destacamos aqui proposições artísticas
que operam nos contrastes de vivenciar tais dilemas e propor ações ou ativações
que apontem ou questionem tal lógica.

Entretanto, para entendermos melhor a cidade, nos voltamos para o momento de


sua formação sobre a perspectiva do autor Milton Santos (2008, p.59), que define o
renascimento da mesma na transição do feudalismo, mesmo tendo registros das
primeiras cidades formando-se por volta de 3.500 a.C, quando se dava uma intensa
movimentação comercial na região de sua formação.

O descobrimento da América e o continuo comércio com a Ásia e África é também


determinante para o crescimento das cidades. O avanço das técnicas de produção
agrícola proporcionou excedentes de produtos alimentares. Esse fator possibilitou
que algumas pessoas se dedicassem a outras atividades, fazendo da cidade em
quase sua totalidade, um lugar de atividade não agrícola. Em seus primórdios, a
cidade era lugar do trabalho livre. O autor localiza esse termo como evento de
passagem do feudalismo para o capitalismo. O burgo aparece em contraste em
relação ao campo, pois nele se encontravam possibilidades de trabalho e distintas
profissões, como as de artesãos, pedreiros e comerciantes. Desse modo, a cidade
aparece como possibilidade de escolha, trabalho e do homem livre, além de gerar
produções históricas e sociais que contribuíram para o fim do feudalismo.

86
A cidade reúne um considerável número das chamadas profissões
cultas, possibilitando o intercâmbio entre elas, sendo que a criação e
a transmissão do conhecimento têm nela lugar privilegiado. Dessa
forma, a cidade é um elemento impulsionador do desenvolvimento e
aperfeiçoamento das técnicas. Diga-se, então que é, a cidade, lugar de
ebulição permanente. (SANTOS, 2008, p.60)

Para além de sua formação e transformação em centro de constante ebulição, é


pertinente também entendermos como o crescimento das cidades e como sua
população influenciam nas dinâmicas recentes e atuais em suas relações com o
meio urbano. Milton Santos expõe que o “meio urbano é cada vez mais um meio
artificial, fabricado com restos da natureza primitiva, crescentemente encoberto
pelas obras dos homens” (SANTOS, 2008, p.46). Essa problemática está atrelada aos
estudos do autor sobre a transformação do espaço habitado em uma perspectiva
global sobre o aumento na população nos centros urbanos. Santos explica que, a
população mundial considerada urbana representava apenas 1,7% do total nos
inicios do século XIX; em 1950, esse percentual era de 21%, porcentagem que passa
para 25% em 1960, para 37,4% em 1970, e para cerca de 41,5% em 1980. De acordo
com o pesquisador:

O fenômeno da urbanização é, em meados da década de 1980,


avassalador nos países de Terceiro Mundo. A população urbana dos
países subdesenvolvidos (tomadas apenas as cidades com mais de 20
mil habitantes) é multiplicada por 2,5 entre 1920 e 1980, enquanto nos
países subdesenvolvidos o multiplicados se aproxima de 6. O retrato
da urbanização nos países do “sul” é seguido por uma verdadeira
revolução urbana. No caso do Brasil, a população urbana é
praticamente multiplicada por 5 nos últimos 35 anos [1953-1988] e
por mais 3 nos últimos 25 anos [1963-1988]. A proliferação de grandes
cidades foi surpreendente nos países pobres. Das 26 cidades mundiais
com mais de 5 milhões de habitantes em 1980, dezesseis estão nos
países subdesenvolvidos. (SANTOS, 2008, p.46)

Com esse grande aumento e movimentação em relação aos centros urbanos,


presumimos que o espaço não é igualmente dividido ou vivenciado por todos de
maneira igualitária. Temos que levar em consideração que as diferenças sociais e
econômicas moldam o espaço urbano e a cidade como um todo. Dessa maneira,
tornam menos acessível a grande parcela frágil socialmente ao passo em que
beneficia a pequena fração economicamente privilegiada. Podemos destacar como

87
exemplo recente, problemas enfrentados em grandes centros urbanos relacionados
aos “lugares públicos” e conflitos gerados por diferentes extremos sociais ao
frequentar esses espaços. Em 2015, uma reportagem1 ganhou notoriedade e
repercussão internacional, apesar desta prática ser adotada desde os anos 90. O
texto aborda o fato de moradores da periferia do Rio de Janeiro, que foram
praticamente proibidos de frequentar as praias da Zona Sul do da cidade. Em muito
dos casos, os moradores eram apreendidos por policiais nos ônibus antes de
desembarcarem na praia de Ipanema. Tal pratica era exercida sob a justificativa de
prevenir possíveis arrastões. Mas também revela o racismo estrutural praticado
pelas autoridades, ao tentar conter os habitantes dos bairros mais pobres da cidade
a frequentar um espaço “público” em um bairro de nível social mais elevado. Em
outro momento recente, nos deparamos também com o fenômeno do “rolezinho2”.

Esse movimento é uma ressignificação da expressão “dar um rolê”, que é


comumente utilizada em grandes cidades para expressar o ato andar, passear ou se
divertir pela cidade. Porém, nesse caso, a prática ganha outra dimensão. O
“rolezinho” em questão foi um movimento que concentrava jovens de periferia nos
Shoppings Centers. O movimento começou nas redes sociais, puxado por MCs
como forma de chamar a atenção e condenar o projeto de lei que proibia bailes
funk na cidade de São Paulo. Os jovens, em sua maioria moradores de comunidades
e bairros pobres, se deslocavam para as praças de alimentação dos Shoppings para,
se divertir, tirar fotos e mostrar os passos característicos dos bailes funks.
Entretanto, esse movimento ganhou uma grande repercussão em 2013, quando a
administração desses estabelecimentos comerciais junto à polícia tentou reprimir
os atos, alegando que eram um potencial risco à segurança dos frequentadores e
trabalhadores desses centros.

Diante do impasse, a segurança privada dos shoppings, aliada às forças policiais,


proibia a entrada da população das comunidades mais pobres em grupos nesses
estabelecimentos. Essa política proibitiva e de exclusão revela a segregação social

1 MARTÍN, María. El País, A política que barra negros e pobres e ameaça a democracia da areia no Rio. Disponível
em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/27/internacional/1440710239_607074.html Acesso em: 02 de agosto
de 2022.
2 PINTO, Tales dos Santos. "Rolezinhos e discriminação social"; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm Acesso em 02 de agosto de 2022.
88
existente nesses grandes e populosos centros urbanos. Problemas que são
comumente repetidos em outras cidades e não somente naquelas citadas nos
exemplos. Convivemos com problemas semelhantes em diversas localidades, onde
o espaço e a cidade sempre privilegiam certa porcentagem que pode pagar pela
utilização ou habitação do espaço. A ideia de cidade para “homens livres” (SANTOS,
2008, p.59) se perde ao observarmos esses exemplos. Presumimos que a cidade é
habitável e livre para grandes corporações, empreendimentos e quem pode usufruir
desses espaços. A cidade e seus espaços são divididos pela lógica do poder
aquisitivo, tornando o espaço não integralmente público, ou inclusivo.

Nessa perspectiva destacamos como contraste relacionado aos problemas


anteriores a proposição apresentada no evento SonarSound, realizado em 2004 na
cidade de São Paulo, no Instituto Tomie Ohthake. Essa produção é composta por
dois canhões lasers, que se originam no próprio Instituto. E, em seu outro extremo,
uma escola estadual, localizada no bairro Paraisópolis. Os dois canhões se
encontram na trajetória, unindo esses pontos distintos da cidade. A obra, intitulada
Coluna infinita II, de Daniel Lima, visa conectar e criar uma relação entre bairros
separados por sete quilômetros de concreto, ruas e avenidas, além das disparidades
econômicas e sociais da grande metrópole São Paulo. Essa ativação perdurou por
três dias, conectando materialmente a comunidade do bairro Paraisópolis na Zona
Sul da cidade ao Instituto Tomie Ohthake no bairro Pinheiros. Presumimos que essa
ativação versa sobre os abismos que as grandes cidades criam pela diferença
econômica e social existente em grandes centros urbanos. E que essa disparidade,
muitas vezes, é determinante para que os viventes das cidades não conheçam ou
usufruam de sua totalidade. A crítica de arte e curadora Daniela Labra, descreve
essa ativação como:

Nada de novo, mas as crianças moradoras de Paraisópolis, que


subiram no topo do prédio e viram como a luz chegava até seu bairro,
descobriram que São Paulo é grade demais e tem infinitas luzes, que
nunca chegaram a sua vizinhança. Para quem via a comunidade do
alto do prédio distante, o ponto de chegada daquela luz, lá, era uma
explosão, um ponto imenso que devolvia com violência toda a energia
do raio intenso que vinha do céu. (BAMBOZZI. BASTOS. MINELLI,
2009, p 68-69).

89
Figura 1. Daniel Lima – Coluna Infinita II. 2004.

A proposição descrita acima nos remete a uma perspectiva de cidade, que tem suas
problemáticas expostas a partir da ativação que conectou extremos distintos. Em
outo momento, nos direcionamos também ao projeto Travessias. A iniciativa coloca
em evidência o Complexo da Maré3. E trabalha o deslocar e aproximar da
comunidade nos eixos e circuitos de arte. Destacamos o projeto Travessias de 2011,
formado pela ONG observatório de favelas em parceria com o artista Vik Muniz
junto a outros 17 artistas partindo do galpão Bela Maré. Nesta iniciativa, os artistas
construíram um diálogo com a região do Complexo da Maré na cidade do Rio de
Janeiro, que concentra cerca de 16 favelas com aproximadamente 130.000
habitantes segundo o senso de 2010. O projeto amplia o diálogo com a região, assim
como aponta questões que envolvem problemas, dinâmicas e situações vividas
pelos habitantes do complexo. Dentre as proposições constituintes do projeto
Travessias, Matheus Rocha Pitta apresenta a escultura-instalação “circular”. A
proposição se apropria do trajeto circular que o transporte público faz pela cidade.
Dentro de um ônibus que não mais circula, são dispostos materiais provenientes da

3
MARIJSSE. Simon. Um mergulho na História: O nascimento e Formação do Complexo da Maré. Disponível em:
https://rioonwatch.org.br/?p=23997 Acesso em 05 de agosto de 2022.
90
construção civil. O artista levanta a questão sobre a mobilidade pública que
distribui a força de trabalho pela cidade, invertendo sua lógica em distribuir o
trabalho e a cidade dentro do ônibus. Essa construção propiciada pelo artista em
sua obra nos revela, mesmo que de maneira transversal, uma prática comum em
comunidades da periferia, onde a administração municipal desapropria e derruba
casas em boas condições e oferece em troca um abrigo municipal ou aluguel social,
incompatível as moradias demolidas dos ex-moradores.

Davi Marcos exibiu a proposição “Parado na Esquina”, nas proximidades do Galpão


Bela Maré, em uma região de grande circulação. Fotografias em escala humana de
situações cotidianas e pessoas comuns da comunidade da Maré formam a base do
projeto. O artista teve o intuito de reverter o estereótipo de medo calcado pela
violência presente na comunidade. Davi é um dos “filhos” do complexo da Maré e
sua presença na exposição Travessias reforça as potencialidades dos trabalhos e
dos artistas presente na comunidade.

Figura 2. Matheus Rocha Pitta – Circular. 2011

91
Figura 3. Davi Marcos – Parado na Esquina. 2011

Dentre outras questões, pensamos também nas configurações das cidades, na


forma como suas ruas e avenidas ou suas comunicações entre bairros e a
comunicação até o centro se processam com a maioria da população. É fácil o
deslocamento pela mesma? É possível para todos? Em sua configuração, existem
hiatos que impossibilitem a presença de pessoas ou transeuntes? Essa comunicação
só é possível através de meios automotivos?

O plano diretor das cidades também é uma indagação quando pensamos em um


espaço de convívio ou habitação. Sua configuração é, em muitos dos casos, uma
barreira que impede a plena vivência da cidade. Um impeditivo que envolve
dinâmicas financeiras de uso do espaço, muitas vezes criando muros visíveis ou
invisíveis para ressaltar uma distinção sobre uma diferença econômica e social.
Além de sua configuração, também podemos colocar em perspectiva como a cidade
se apresenta para seus viventes. Que tipo de paisagens4 ou espaços a mesma

4
Tudo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como domínio do visível,
aquilo que a vista abarca. É formada não apenas de volumes, mas também cores, movimento, odores, sons etc.
92
oferece para seus habitantes? Nas configurações atuais das cidades, ela é um
espaço acolhedor ou apenas um ambiente de passagem?

O termo “espaço” é pertinente quando o aproximamos do objeto cidade. De forma


que seu significado é definido por Milton Santos como:

Um conjunto indissociável, de que participam de um lado, certo


arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais , e,
de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em
movimento. O conteúdo da sociedade não é independente da forma
(os objetos geográficos), e cada forma encerra uma fração do
conteúdo. O espaço por conseguinte, é isso: Um conjunto de formas
contendo cada qual frações da sociedade em movimento. (SANTOS,
2008, p.30-31)

Portanto, entendemos aqui que o espaço também é fruto das vivências e da


sociedade em movimento. Dessa forma a cidade não se desassocia da definição de
espaço. Do mesmo modo que a vivência e a sociedade não se desassociam da
cidade. Apontamos aqui mais algumas proposições que visam à criação dessa
relação com os espaços pertencentes à cidade, tendo como exemplo o projeto
HiperGps de Cícero Inácio Silva e Brett Stalbaum, que consiste na aplicação do
conceito de hipertexto na configuração cartográfica da cidade. Durante a incursão
pela mesma, qualquer transeunte, portando aparelhos celulares dotados de gps,
pode localizar textos, sons e imagens pré-gravados no sistema. O projeto tem como
procedimento conceitual deslocar o sentido de que a cidade é simplesmente um
emaranhado de coordenadas geográficas e códigos numéricos, mas sim um espaço
sensível onde as pessoas podem trocar experiências, histórias e situações em
comum.

Valendo-se da arquitetura das cidades e colagens de cartaz e envolvimento com a


publicidade. Jenny Holzer se apropria da funcionalidade dos outdoors para projetar
a frase protect me from what I want (proteja-me contra o que eu quero) em grandes
centros urbanos e financeiros. A artista atua desde 1996 e cria ambientes imersivos
e de reflexão por meio de frases estampadas nas cidades como forma de chamar a

(SANTOS, 2008, p.67-68).


93
atenção para o bombardeio de informações relacionadas ao consumo e ao
capitalismo que impera em grandes metrópoles e centros financeiros.

Urban Dialogues é um grupo formado por Sonia Gil e por diversos artistas de
diferentes cidades e culturas. Os mesmos remontam à visualidade por meio de
intervenções urbanas e das cartografias já estabelecidas pelas imagens de satélite.
O grupo opera recriando o olhar sobre a complexa organização da cidade,
capturando e redesenhando o urbano, onde ocorrem os desafios do cotidiano em
meio à paisagem e as complexas dinâmicas contemporâneas, envolvendo o sujeito e
a cidade.

Essas problemáticas enfrentadas pela sociedade também integram um campo de


reflexão e ativações que podem ser apontadas pelas linguagens visuais. A cidade é
um campo de troca ou um espaço de exposição a céu aberto, passível de se criar
relações entre o sujeito e o espaço e a vivência. Dentre os artistas apresentados até
aqui, constrói-se uma linearidade quando abordamos o tema “cidade” em seu mais
amplo significado. As proposições apresentadas, por mais que não abordem o
mesmo assunto ou procedimento operacional, estão calcadas nas relações, nas
vivências e nas problemáticas que podem ser tecidas quando se pensa na cidade e
suas relações como tema expandido.

O intenso fluxo que existe nas cidades é muitas vezes um palco. Um lugar para
ativações e subjetividades de artistas que se voltam para um campo infinito de
mediações que podem ser construídas a partir dos problemas, configurações
urbanas, disparidades sociais, contradições, movimentos e encontros. A cidade
reflete a diversidade cultural e a disputa pelo espaço, sendo essa disputa muitas
vezes trajada e assumida por artistas, propositores culturais e viventes de um
espaço em ebulição constante.

Referências

BAMBOZZI, Lucas. BASTOS, Marcos. MINELLI, Rodrigo. Mediações Tecnologias e Espaço


Público. Panorama Crítico da Arte e Mídias Móveis. São Paulo: Conrad Editora, 2009.
BERNARDES, Julio. USP Universidade de São Paulo Brasil, São Paulo mantém segregação
espacial elevada, disponível em: https://www5.usp.br/noticias/sociedade/sao-paulo-
mantem-segregacao-espacial-elevada/ Acesso em: 08 de agosto de 2022.

94
GIL. Sônia. Urban Dialogue, disponível em:
https://urbandialogues.wixsite.com/urbandialogues/amy-bassin-clr5 Acesso em 10 de
agosto de 2022.
GIL. Sônia. Urban Dialogue, disponível em: https://www.soniagil.art/urbandialogues
Acesso em: 10 de agosto de 2022.
GUERCHE. Tatiana. A Arte Urbano e Social: um espaço de provocação. Palíndromo, Santa
Maria, n° 11, Julho de 2014.
GOUVÊA. Maria, MELLO. Ramon. Arte Urbana e a (re)construção do imaginário da cidade.
Rio de Janeiro: Caderno Diverso, 2015.
HOUZER. Jenny. Jenny Houzer, disponível em: http://www.jennyholzer.com Acesso em:
08 de agosto de 2022.
MARIJSSE. Simon. RioOnWatch, Um mergulho na história: O Nascimento e Formação do
Complexo da Maré, disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=23997 Acesso em: 02 de
agosto de 2022.
MARTÍN. María. El País, A política que barra negros e pobres e ameaça a democracia da
areia do Rio, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/27/internacional/1440710239_607074.html
Acesso em: 02 de agosto de 2022.
PINTO. Tales dos Santos. Brasil Escola, "Rolezinhos e discriminação social", disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm. Acesso
em 02 de agosto de 2022.
Redes da Maré. Redes da Maré, disponível em:
https://www.redesdamare.org.br/br/info/12/censo-mare Acesso em: 10 de agosto de
2022.
SANTOS. Milton. Metamorfose do Espaço Habitado. São Paulo: Edusp, 2008.
SZANIECKI. Barbara, RIBAS. Cristina. Rio: Cidade Ocupada, Cidade Resistente! Ensaios. Rio
de Janeiro, n° 49, Junho 2012.

Referência das Imagens:


Figura 1: Daniel Lima. Coluna Laser. Disponível em:
http://www.danielcflima.com/Coluna-Lase. Acesso em: 10 de agosto de 2022.
Figura2: Arte-sur. Matheus Rocha Pitta. Disponível em: https://www.arte-sur.org/wp-
content/uploads/2012/06/mrochapitta-low.pdf. Acesso em: 10 de agosto de 2022.
Figura 3: belamare. Travessias. Disponível em: https://www.belamare.org.br/travessias-
1/. Acesso em: 10 de agosto de 2022.

95
Mini Currículos

Marcos Vinicius de Brito Amato


Mestrando em Artes Cultura e Linguagens pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrante do
projeto, Música para olhos e ouvidos (UFJF). Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (2020) e graduação em BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM ARTES E
DESIGN pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2017). Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Artes, atuando principalmente nos seguintes temas: performance, música, tv, videoclipe e
artes.

Jhonatan Alves Pereira Mata


Doutor em Comunicação- Universidade Federal do Rio de Janeiro- Ecopos/UFRJ. Docente
permanente no PPGCOM-UFJF. Coordenador do Projeto "Música para olhos e ouvidos" (UFJF). Vice
coordenador do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual NJA UFJF.Jornalista e Mestre em Comunicação
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Suas pesquisas têm como foco o audiovisual,
atualmente voltadas para a análise do jornalismo colaborativo, das estéticas amadoras no
audiovisual, e das representações do audiovisual na música.

96
CONSTRUINDO CONTRAVISUALIDADES:
UM DIÁLOGO ENTRE FOTOGRAFIA, FEMININO E CERRADO

BUILDING CONTRAVISUALITIES:
A DIALOGUE BETWEEN PHOTOGRAPHY, FEMININE AND CERRADO

Pollyanna Brito Melo


UFG; Brasil

Ana Rita Vidica


UFG; Brasil

Resumo

Esse artigo tem como objetivo pensar inter-relações entre feminino, fotografia e Cerrado.
Para isso, foram produzidas duas pranchas imagéticas, a partir da metodologia do
cruzamento de imagens, do Atlas Mynemosyne de Aby Warburg. A primeira prancha, leva
como título: “Sobre maternidade, invisibilidades e resistência” e a segunda: “Sobre dor,
coletividade, maternidade, força e recomeços”. Nossa intenção é partir dessas pranchas,
vistas como contravisualidades, questionarmos o círculo da homogeneização do olhar,
trazermos imagens que nos façam questionar, provoquem ruídos e tensões. Entre as imagens
selecionadas para compor essas pranchas visuais estão a das mulheres do Grupo de
Produção Flor do Cerrado, localizado em Samambaia, entorno de Brasília-DF. Sendo este um
coletivo de mulheres artesãs que procura trabalhar com flores, folhas e sementes do Cerrado
de forma sustentável. Imagens consagradas pela história da fotografia (Dorothea Lange: Mãe
Migrante de 1936), imagens da minissérie “Maid”(Netflix, 2021) que traz a narrativa de uma
mãe solo, que tenta sair de um relacionamento abusivo e dos seus desafios nesse processo,
e de outras artesãs, além de imagens do Cerrado Brasileiro. Nossa intenção é procurar os
rastros culturais, o que essas imagens comunicam, pulsam, contam, quais são os
cruzamentos que estas imagens despertam. Nesse processo, encontramos os seguintes
rastros e cruzamentos: dor, invisibilidades, maternidade, força, resistências e recomeços. E
propomos questionamentos e desconfortos através dessas imagens: Por que o trabalho
feminino é tão invisibilizado? Por que o trabalho doméstico não é remunerado? Por que não
falamos sobre mães solo? A quem interessa que continuemos a não falar sobre tudo isso?
Com essa pesquisa, concluímos que as imagens das pranchas visuais se cruzam, geram
contravisualidades e nos conclamam a pensar sobre o direito de olhar.

Palavras-chave: Feminino, Fotografia, Cerrado, Contravisualidades, Feminismo.

97
Abstract

This article aims to think interrelations between female, photography and Cerrado. For this,
two imagery planks were produced, based on the methodology of image crossing, from The
Mynemosyne Atlas of Aby Warburg. The first plank, it is titled: "About motherhood,
invisibilities and resistance" and the second: "About pain, collectivity, motherhood, strength
and rebeginnings". Our intention is to start from these boards, seen as countervisualities, we
question the circle of the homogenization of the gaze, bring images that make us question,
cause noises and tensions. Among the images selected to make these visual boards are that
of the women of the Flor do Cerrado Production Group, located in Samambaia, around
Brasília-DF. This is a collective of women artisans who seek to work with flowers, leaves and
seeds of the Cerrado in a sustainable way. Images consecrated by the history of photography
(Dorothea Lange: Mother Migrant of 1936), images from the miniseries "Maid" (Netflix, 2021)
that brings the narrative of a solo mother, who tries to get out of an abusive relationship and
her challenges in this process, and other artisans, as well as images of the Brazilian Cerrado.
And we propose questions and discomforts through these images: Why is women's work so
invisible? Why is housework unpaid? Why don't we talk about solo moms? Who cares if we
keep not talking about all this? With this research, we conclude that the images of the visual
planks intersect, generate countervisualities and call us to think about the right to look.

Keywords: Female, Photography, Cerrado, Contravisualities, Feminism.

Introdução - Atlas Mynemosine: Cruzamento de imagens

Um pensamento por imagens, assim é descrita a construção do Atlas Mnemosyne de


Aby Warburg. O termo escolhido, Mnemosyne, é a própria personificação da
memória, mãe das nove Musas, mas, “Mnemosyne é antes de tudo, uma disposição
fotográfica” (DIDI- HUBERMAN, 2013, p.2). Aby Warburg foi um historiador da arte
alemão que reuniu em pranchas de imagens fotográficas conjuntos de imagens, que
juntas, dialogavam, contavam uma narrativa, produziam sentidos (Didi-Huberman,
2013).

Esses conjuntos de fotografias eram anacrônicos, de tempos e temas distintos, e


assim dispostas, permitiam comparativos, contrastes e diálogos entre tempos tão
distintos. Suas imagens em séries permitiram a estrutura visual de todo o
pensamento de Warburg (DIDI- HUBERMAN, 2013).

Durante toda sua vida, Aby Warburg tentou fundar uma disciplina na qual, em
particular, ninguém tivesse que fazer a pergunta: quem surgiu primeiro, a imagem

98
ou a palavra. Em sua iconologia dos intervalos, a disciplina inventada por Warburg,
oferecia-se como a exploração de problemas formais, históricos e antropológicos
onde, segundo ele, poderíamos acabar de “reconstituir o laço de conaturalidade”. Ou
seja, não haveria hierarquia entre a imagem e a palavra (DIDI-HUBERMAN, 2012).

Neste artigo, propomos essa mesma relação, nossa intenção é que imagem e palavra
dialoguem, conversem, sem hierarquias. Apresentamos para tanto, duas pranchas
visuais, colocadas no início do texto, séries de imagens dispostas que procuram
trazer questionamentos, sentimentos e contravisualidades. Ao longo deste texto
apresentamos ainda possibilidades de reverberação dessas imagens.

Intercalando as pranchas de imagens com as falas1 da coordenadora do Grupo de


Produção Flor do Cerrado, Roze Mendes, sendo esse um coletivo de mulheres que,
através do artesanato com flores, folhas e sementes do Cerrado, procuram trazer
renda e autonomia para suas vidas, trazer protagonismo para suas histórias. Em suas
falas, Roze Mendes deixa claro que o projeto nasce da vontade de ajudar outras
mulheres, algumas, foram abandonadas por seus maridos, mulheres que são mães
solo e que de repente precisaram cuidar sozinhas de suas famílias, mulheres que têm
um sonho.

Nessas pranchas imagéticas ainda trazemos imagens da série da Netflix “Maid” de


2021. Baseada no livro homônimo, da autora Stephanie Land. A série narra a história
da personagem Alex, uma mãe solo que tenta sobreviver e se reerguer após um
relacionamento abusivo, sem rede de apoio ou estrutura familiar. Uma realidade tão
comum e tão presente, sobretudo no contexto das famílias brasileiras 2.

Nosso intento com esse trabalho é refletir sobre o Feminino, o Cerrado e a Fotografia.
Pensar sobre o feminino, e como a fotografia pode ser um caminho (SAMAIN, 2012)
para vermos e refletirmos sobre essas questões. Propondo diálogos entre as imagens
das Pranchas Visuais 1 e 2, entre determinadas características do feminino: dor,

1 Falas retiradas da tese: “De bonecas, flores e bordados: investigações antropológicas no campo do artesanato em
Brasília”. De Aline Sapiezinskas Canani.. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/3661.
2 Segundo dados colhidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2005, 10,5 milhões de
famílias já eram compostas por mulheres sem cônjuge e com filhos, sendo elas as principais responsáveis pela
criação dos mesmos. Nos últimos 10 anos, o número de “mães solo” no Brasil aumentou em mais de um
milhão. Disponível em: https://labedu.org.br/realidade-das-maes-solo-no-brasil/. Acessado em: 9 de agosto de
2022.
99
invisibilidades, maternidade, força, coletividade, resistências e recomeços, também
presentes no Cerrado brasileiro, um bioma que vem sendo ameaçado de tantas
formas e por tanto tempo. E que ainda hoje, tem sua potência e importância
negligenciadas.

Prancha 1 – Atlas Mynemosine. Sobre maternidade, invisibilidades e resistênsia. (Pollyanna Brito)

100
Prancha 2 – Atlas Mynemosine. Sobre dor, coletividade, maternidade, força e recomeços. (Pollyanna
Brito)

O Feminino – “Mas aquelas mulheres eram muito sofridas...”

A Dor
101
E naquele meio eu fui observando as mulheres que tinham sonho. As que
eu fui ensinando, tinha mulheres de todos os jeitos: mulheres que o
marido não deixava, não era o meu caso, por que meu marido era muito
companheiro, mas aquelas mulheres eram muito sofridas, mas tinham
sonho. Aí eu fui separando as que tinham sonho, eu chegava e falava
pra elas: o que você pensa da sua vida? (Roze Mendes, coordenadora do
Grupo Flor do Cerrado)

O que significa ser mulher? O que nos une enquanto mulheres? O que significa ser
mulher em nossa contemporaneidade? Essas perguntas abrem margem para diversas
questões que extrapolam esse artigo, entretanto, a partir de trechos da entrevista de
Roze Mendes, coordenadora do Grupo de Produção Flor do Cerrado, tentamos
encontrar alguns caminhos que dialoguem entre, o feminino, a fotografia e o
Cerrado. Para pensarmos inicialmente, sobre o que vem a ser mulher, ou o que nos
une enquanto mulheres, um dos itens, infelizmente, é o da dor, seja pela violência
física, sexual ou psicológica.

Segundo o Relatório Global da Organização Mundial de Saúde (OMS), com base em


dados de 2000 a 2018, uma em cada três mulheres em todo o mundo (cerca de 736
milhões de pessoas) sofre violência física ou sexual, principalmente por um “parceiro”
íntimo. E essa violência começa cedo: uma em cada quatro mulheres jovens (de 15 a
24 anos) que estiveram em um relacionamento já sofreram violência de seu “parceiro”
por volta dos 20 anos. (ONU Mulheres, 2020)3. As mulheres negras são as maiores
vítimas de violência no Brasil. Segundo o Atlas da Violência de 2021, 66% das
mulheres assassinadas no Brasil em 2019, eram negras. Isto é, a cada dez mulheres
mortas, seis são negras.

Ainda segundo a pesquisa, com relação ao mercado de trabalho, a Agência Patrícia


Galvão divulgou uma pesquisa (2022) que revela que 76% das mulheres já foram
vítimas de violência, sendo que quatro em cada dez foram alvos de xingamentos,
insinuações sexuais ou receberam convites dos colegas homens para sair. Na mesma
proporção, as trabalhadoras tiveram seu trabalho supervisionado excessivamente,

3 Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2022/03/07/mulheres-em-situacao-de-violencia-numeros-avancos-


e-desafios. Acessado em: 27 de jun. De 2022.
102
depreciação das funções que exercem e/ou receberam um salário menor do que
seus colegas homens com o mesmo cargo4.

A pandemia aumentou ainda mais essas tensões, segundo o relatório da OCDE, as


alterações bruscas na vida das famílias e da sociedade em geral, com o isolamento,
os índices de violência doméstica aumentaram consideravelmente no mundo. As
mulheres tiveram ainda mais dificuldades de acesso às redes de proteção e aos canais
de denúncia, o que prejudicou o levantamento real dos dados e o devido
acompanhamento aos demais tipos de violência contra as mulheres.

O isolamento social aumentou ainda mais a sobrecarga de trabalho das mulheres:


com o acompanhamento escolar diário, trabalho remoto, o convívio prolongado com
seus “parceiros” dentro de casa, representando um risco, especialmente em um
contexto em que as preocupações e inseguranças trazidas pela pandemia e a crise
econômica, que também marca a atual conjuntura do país, elevam as tensões e os
conflitos familiares e aumento de casos de violência de gênero5. A partir do exposto,
não podemos negar que a dor e o sofrimento seja um dos elementos que nos une
enquanto mulheres, infelizmente.

Coletividade - Mulheres sendo rede de apoio para mulheres

O trabalho de Roze Mendes e das artesãs do Grupo de Produção do Cerrado é


realizado de forma comunitária, elas se propõem a transformar a comunidade em
que vivem, gerando renda e autonomia para as mulheres daquela região. Um projeto
de arte coletiva que auxilia mulheres a conquistarem autonomia e empoderamento6,
ou seja, a assumirem o controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de
seu destino, tomar consciência de sua habilidade e competência para produzir, criar

4 Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2022/03/07/mulheres-em-situacao-de-violencia-numeros-avancos-


e-desafios. Acessado em: 27 de jun. De 2022.
5 Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2022/03/07/mulheres-em-situacao-de-violencia-numeros-avancos-
e-desafios. Acessado em: 27 de jun. De 2022.
6 Ressalte-se que o conceito de empoderamento surgiu com os movimentos de direitos civis nos Estados Unidos nos
1970, através da bandeira do poder negro, como uma forma de auto valoração da raça e conquista de uma cidadania
plena (COSTA, 2008). E, aqui, no artigo, toma-se o termo “empoderamento” no sentido de autovaloração de si e do
ser mulher.
103
e gerir, construindo uma autoimagem de confiança positiva, desenvolvendo a
habilidade para pensar criticamente e tomar decisões (STROMQUIST, 1997).

Segundo a filósofa contemporânea Silvia Federici7, as mulheres não poderiam ser


totalmente desvalorizadas e privadas de sua autonomia se não tivessem passado por
um longo e intenso processo de degradação social, o que ocorreu ao longo dos
séculos XVI e XVII. Nesse período as mulheres tiveram duras perdas em seus direitos
conquistados. Foram ainda declaradas como seres inerentemente inferiores aos
homens, excessivamente emocionais e luxuriosas, incapazes de se governar, e
tinham de ser colocadas sob o controle masculino (FEDERICI, 2017).

Em pleno período da Época da Razão (Revolução Francesa de 1789), “eram colocadas


focinheiras nas mulheres acusadas de serem desbocadas, como se fossem cães elas
eram exibidas pelas ruas; as prostitutas eram açoitadas e enjauladas” (FEDERICI, 2017,
p.203). A definição das mulheres como seres demoníacos e o histórico de
humilhações e sofrimento pelo qual passaram deixaram marcas em sua psique
coletiva e em seu senso de possibilidades, sob todos os pontos de vista: social,
econômico, cultural, político (FEDERICI, 2017).

Esse período destruiu toda uma história de relações coletivas e de sistemas de


conhecimento que haviam sido as bases do poder das mulheres na Europa pré-
capitalista. A coletividade sempre foi um traço feminino, mulheres cuidando de
mulheres, mulheres ensinando mulheres, uma característica que foi arrancada da
nossa história e que pede novo recomeços através de Coletivos Femininos como do
Grupo de Produção Flor do Cerrado.

Invisibilidades - O corpo feminino como objeto

A pesquisadora Linda Nochlin, que dedicou-se aos estudos da história da arte


feminista, em seu ensaio mais conhecido “Por que não houve grandes artistas

7 Silvia Federici é filósofa contemporânea, professora e ativista feminista italiana radicada nos Estados Unidos. Ela
foi nos anos 1970 uma das pioneiras nas campanhas que reivindicavam salário para o trabalho doméstico. É autora
dos livros: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2004), O ponto zero da revolução: trabalho
doméstico, reprodução e lutas feministas (2013),[1] Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias
atuais (2018) e O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo (v.1) (2020). Atualmente
é professora emérita da Universidade Hofstra em Nova York. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Silvia_Federici. Acessado em: 24 de jul. De 2022.
104
mulheres?”, sobre a invisibilidade das mulheres na história da arte, pontua “A falha
não está em nossas estrelas, nossos hormônios, nossos ciclos menstruais ou nossos
espaços internos vazios, mas em nossas instituições e nossa educação” (NOCHLIN,
1973,p. 8).

É importante entender que sempre existiram muitas mulheres grandiosas e


excelentes nas artes, assim como em praticamente todas as outras áreas, mas na
tradição da sociedade patriarcal, eventualmente elas sofriam pressões para se
dedicarem exclusivamente às tarefas que lhes eram esperadas: o cuidado com a
casa e a criação dos filhos 8.

As mulheres não tinham permissão para assistir a sessões de desenho ao vivo de uma
modelo nua, embora as mulheres pudessem desfilar nuas, uma afirmação de seu
lugar como objeto e não como criadora autônoma.

Silvia Federici (2017) nos fala sobre como a invisibilidade feminina foi sendo
construída ao longo dos séculos. Sobre como a partir dos séculos XVI e XVII, com a
intensa perseguição, humilhação e violências às mulheres, várias perdas de direitos
conquistados, surgiu um novo modelo de feminilidade: a mulher e esposa ideal:
passiva, obediente, parcimoniosa (aquela que evita despesas), casta, de poucas
palavras e sempre ocupada com os afazeres domésticos, domesticada, irracional
(FEDERICI, 2017).

A autora narra sobre o período histórico conhecido como “A Grande caça às Bruxas
na Europa” que continua sendo, ainda hoje, um dos fenômenos menos estudados na
história da Europa, sendo para muitos, ainda hoje, apenas uma história de folclore.
Esse foi um dos grandes genocídios da história. Ao longo de dois séculos centenas de
milhares de mulheres foram queimadas, enforcadas e torturadas (FEDERICI, 2017).

O feminino e o Cerrado - Resistências e Força

Segundo as pesquisadoras Leda Guimarães e Eliane Chaud (2009) o trabalho


artesanal apresenta-se como uma resistência, que, geralmente, as mulheres lançam

8 Disponível em: https://diplomatique.org.br/por-que-nao-existiram-grandes-mulheres-artistas-na-historia/.


Acessado em: 2 de jun. De 2022.
105
mão para buscarem formas de manutenção, para superarem dificuldades e
romperem barreiras. Enfrentamentos como a pobreza e os preconceitos impostos à
mulher na sociedade. Revelam ainda uma vontade, uma busca de aprender, de sair
de um lugar para outro, de uma condição para outra, de independência financeira
(GUIMARÃES, CHAUD, 2009).

A cultura do cerrado envolve uma tradição que passa de mãe para filha, seja no
manejo, nas histórias, culturas e lendas, nas plantas medicinais, na religiosidade, no
respeito e no olhar e escuta atenta. Um conjunto de saberes passado entre mulheres,
ao longo de muitas gerações.

Socorro Teixeira é presidenta da Rede Cerrado e coordenadora do Movimento


Interestadual das Quebradeiras do Coco-Babaçu (MIQCB), quando perguntada
sobre o que é a palmeira ela responde sem hesitar: “É só tudo. Porque a gente tira
a amêndoa e da amêndoa faz o óleo, faz o leite, faz a cocada, faz o sabão, um monte
de coisa. E do coco, da fruta inteira, a gente tira a casca que faz o carvão e o
artesanato, a gente tira o mesocarpo. Da palmeira em si, quando cai, a gente tira o
adubo. A palha que cobre as nossas casas, que faz o piso de nossas casas, faz nossas
paredes, o cofo, o abano, o quibano, cerca as nossas hortas, cerca nosso criatório
de galinhas. Não tem na palmeira um produto que não seja aproveitado pelas
quebradeiras” 9.

E por meio desses múltiplos usos, como ela bem cita: a palmeira é tudo, e por isso,
é chamada de “mãe-palmeira”, como dizem as quebradeiras, traz alimento e
sustento para milhares de famílias do Cerrado. Esse saber tradicional se
materializa em uma relação na qual natureza e povos tradicionais se confundem,
como expresso na fala de Socorro: “Pra gente que é quebradeira, a relação com a
palmeira é como se fosse com outra mulher, com outra companheira. A dor da
palmeira é a dor da gente, a dor da gente é a dor da palmeira.”. Mulheres que
cuidam de mulheres. Cerrado que nutre, abriga, sustenta, traz cura, que também
padece de dores mas se ressignifica no sofrimento e floresce. E essa relação faz da

9 Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-forca-das-mulheres-do-cerrado-raizeiras-e-quebradeiras/.


Acessado em: 24 de jul. De 2022.
106
luta em defesa de seus direitos uma luta intrinsecamente relacionada à defesa do
Cerrado10.

Fotografia - Contravisualidades

O que são contravisualidades? O pesquisador Nicholas Mirzoeff (2016) nos propõe


compreenderas contravisualidades como manifestações políticas que desafiam
determinadas “ordens” e delimitações das estruturas que conformam as narrativas
hegemônicas, provocando ruídos e tensões, além de questionar os sistemas de
ajuizamento de valores morais.

Ainda segundo Mirzoeff (2016) visualidade é uma palavra antiga que faz referência à
visualização da história. Esta prática deve ser imaginária ao invés de perceptual.
Porque o que está sendo visualizado é criado a partir de informações, imagens e
ideias. E esta habilidade para compor uma visualização manifesta a autoridade do
visualizador.

O autor (Mirzoeff, 2016) ainda nos fala sobre quem tem o direito a olhar, que contesta
primeiramente o direito de propriedade sobre outra pessoa, eu posso te olhar. O
direito a olhar, simplesmente reconhece a genealogia escravocrata patriarcal de
autoridade - e sua recusa. Para o autor, a autoridade pode ser definida como o poder
sobre a vida, ou biopoder, fundamentalmente definido pela autoridade sobre um
“escravo”, a forma-mercadoria da vida humana (Mirzoeff, 2016). Precisamos entender
que mulheres não são invisibilizadas à toa. Essa invisibilidade reflete um biopoder,
precisamos refletir: a quem interessa que mulheres continuem à margem da
sociedade?

Isso só pode também indicar a escravidão como a remoção do direito a olhar. A


cegueira torna a pessoa um escravo e remove a possibilidade de recuperação do
status de pessoa livre. Este arquétipo da cegueira da escravidão foi transformado pela
prática formal da vigilância própria da visualidade (MIRZOEFF, 2016).

10 Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-forca-das-mulheres-do-cerrado-raizeiras-e-quebradeiras/.


Acessado em: 24 de jul. De 2022.
107
Os comerciantes transatlânticos de escravos não cegavam fisicamente os
escravizados, pois sabiam que o seu trabalho requeria um engajamento visual, e
assim escravos fugitivos eram encontrados por todo o hemisfério. No entanto, a
autoridade legal da escravidão agora policiava a imaginação dos escravos. Por
exemplo, na colônia britânica da Jamaica, os escravizados eram proibidos até mesmo
de “imaginar a morte de qualquer pessoa branca” (MIRZOEFF, 2016).

Mirzoeff (2006) ainda relata em seu texto, que em 1951, um fazendeiro chamado Matt
Ingram foi condenado por agredir uma mulher branca na Carolina do Norte, porque
ela não tinha gostado da maneira como ele olhou para ela a uma distância de sessenta
e cinco pés. Este monitoramento do olhar se manifestou também na fase de Abu
Ghraib da guerra no Iraque, quando os prisioneiros recebiam ordens como “não crave
seus olhos em mim!”.

As contravisualidades nos ajudam a questionar o círculo da homogeneização do


olhar, no qual os dispositivos de visibilidade formalizam o que é representável e o que
não pode ser visto. Trata-se de narrar uma alternativa a outras realidades, onde a
presença, em geral invisibiliza o ‘outro’ e de outros contextos socioculturais, é
requisitada. As possibilidades das contravisualidades como dispositivos eficientes
para visibilizar outras histórias, provocar, incomodar, levantar discussões e gerar
desconforto naqueles que determinam o que pode ou não ser visto (MIRZOEFF, 2016).

Considerações Finais

Através das Pranchas Visuais 1 e 2 propomos trazer contravisualidades, imagens que


provoquem ruídos, desconfortos e levantem discussões. Por que o trabalho feminino
é invisibilizado? Por que tantas mulheres precisam sustentar sozinhas suas famílias?
Por que o trabalho doméstico não é remunerado? Por que quem “pariu Mateus é
quem deve balançá-lo?” (Como se uma mulher fizesse um filho sozinha). Por que não
falamos sobre mães solo? Por que historiadores não se dedicam ao grande genocídio
da Caça às Bruxas? Por que precisamos falar baixo, sermos recatadas e do lar? A quem
interessa que continuemos não falar sobre tudo isso?

Por que o Bioma Cerrado continua sofrendo esse imenso abandono? Por que não
temos políticas públicas eficientes sobre a preservação do Cerrado? Por que os povos

108
tradicionais do Cerrado foram e continuam à margem da sociedade e/ou estão sendo
assassinados? Por que nossos ambientalistas e mulheres negras estão sendo
assassinados?

A quem interessa que as coisas continuem como estão? Existe uma história não
contada, invisibilidades que são extremamente interessantes a determinados
segmentos da sociedade. Ao olharmos para essas imagens, muitas questões vão
surgindo (nem todas foram respondidas nessa comunicação), mas essas são
costuradas à partir das relações traçadas entre as imagens fotográficas das pranchas,
as falas de Roze Mendes, e as discussões que tocam o feminino (dor, maternidade,
coletividade e invisibilidades) e as resistências do cerrado.

Já que segundo o pesquisador Etienne Samain (2012), todas as imagens nos convocam
a pensar, nos fazem falar. E precisamos VER, como diria o fotógrafo Henri Cartier-
Bresson “Não há nada a dizer. Temos que ver, olhar. É tão difícil fazer isto. Estamos
acostumados a pensar, todo o tempo. É um processo muito lento e demorado,
aprender a olhar. Um olhar que tenha um certo peso, um olhar que questione”. Que
possamos abrir espaços para novas contravisualidades e questionemos antigas e
hegemônicas visualidades.

Olhar para as pranchas visuais expostas no início do texto nos faz pensar sobre o
feminino (a dor, a maternidade, a coletividade e as invisibilidades) presentes nas
imagens de Dorothea Lange, da série Maid, das mulheres do coletivo Flor do Cerrado,
que se mesclam ao poder de resistência do bioma Cerrado. E, enquanto imagens
fotográficas se cruzam e geram contravisualidades, conclamando o direito a olhar.

Referências

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respeito à Diversidade.
CANANI, Aline Sapiezinskas Kras Borges. De bonecas, flores e bordados: investigações
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Revista Arte e Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA,
UFRJ, ano XVI, número 19, 2009.

Mini Currículos

Pollyanna Brito Melo


Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação (PPGCOM) (UFG) na Linha de Pesquisa
Mídia e Cultura. Mestre em Cultura Visual (PPGACV) pela Faculdade de Artes Visuais (FAV) UFG (2012)
e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) (FAV) (2016).

Ana Rita Vidica


Doutora em História pela Faculdade de História-UFG (2017) com doutorado sanduíche na École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris / PDSE-CAPES), Mestre em Cultura Visual pela
Faculdade de Artes Visuais-UFG (2007) e Bacharel em Comunicação Social com habilitação em
Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Goiás (2003).

111
VISUALIDADES GOIANAS: NA PROCURA DE VALORIZAÇÃO DO
PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL

GOIANA’S VISUALS: SEEKING MATERIAL AND INTANGIBLE HERITAGE


VALORIZATION

Nicolas Andres Gualtieri


Universidade Federal de Goiás

Giovanna Soares Santos


Faculdade Senac Goiás, Brasil

Resumo

Centrado em Goiânia, capital de Goiás, foi realizado um estudo sobre os diferentes tipos de
cultura, como elas produzem identidades e configuram visualidades que interferem
diretamente na construção do imaginário social e coletivo. Nesse contexto, após entender e
realizar um levantamento dos bens patrimoniais da cidade e estabelecendo o papel do design
social como processo que contribui com a valorização cultural da cidade e principalmente
dos patrimônios materiais e imateriais. Foram criadas peças e releituras de características
visuais locais, destacando elementos culturais levantados durante a pesquisa.

Palavras-chave: Visualidades culturais; Identidades; Design social.

Abstract

A study about different types of culture and how they produce identities and configure
visuals which interfere directly on our social and collective imaginary foundation was held
focusing on Goiânia, the capital of Goiás state. In this sense, after understanding and
conducting a research on the city’s patrimonial properties and stablishing the design’s role
in society as a process which contributes to the its cultural valorization and, besides, its
material and intangible heritages. Some projects and reinterpretations of local visuals were
created, highlighting the cultural elements seen during this research.

Keywords: Cultural visualities; Identities; Social Design.

Introdução

Goiânia é uma das maiores capitais do Brasil e possui uma rica diversidade cultural
devido a sua localização geográfica, bem ao centro do país, sendo foco de migrações
112
e turismo (SANDES, 2013). Entretanto, após tantos fatores externos e principalmente
com a globalização e avanço da internet a cultura local está cada vez mais sendo
abandonada e trocada pela externa, principalmente europeia e norte americana.

Sob este contexto, este artigo tem como objetivo fortalecer e ressignificar a
identidade goiana a partir de projetos de design que trabalhem a valorização das
visualidades que compõem os patrimônios materiais e imateriais da cidade. Para isso
é realizado um estudo sobre a cultura e suas categorias, como estão relacionadas na
criação das identidades, dos monumentos, patrimônios materiais e imateriais, nas
visualidades goianas e de que maneira o design social (BRAGA, 2011) é capaz de
contribuir para a valorização cultural, através da criação de produtos gráficos que
reforcem a valorização local de ideias e relações construídas no imaginário coletivo
social dos seus moradores. Importante é destacar que como esse artigo é um trecho
de uma pesquisa maior, quando nos referimos a visualidades goianas esse artigo
propõe um recorte focado em caraterísticas arquitetônicas, linguísticas e festivas da
cultura extraídas principalmente das cidades de Goiânia e Pirenópolis, considerando
que a pesquisa completa contempla outros patrimônios, espaços e explorações
visuais.

Cultura visual, identidade e patrimônio

As pesquisas que têm como foco a cultura visual e a construção de identidade


(VILLAS-BOAS,2002), tentam compreender o papel social da imagem na vida da
cultura” (MARTINS, 2008, p.26) e como elas se vinculam na nossa cotidianidade na
chamada “civilização das imagens”. Quando pensamos as visualidades, compreendida
desde Romanelli (2010), pode ser definida como parte de uma linguagem da arte, que
envolve elementos estéticos visuais, que desenvolvem a visão e outras formas
perceptivas de visualizar as coisas. Nesse casso, o patrimônio material e imaterial de
uma cidade produz visualidades no imaginário coletivo que reforçam como "a cultura
visual busca elucidar questões afetas ao uso, interação, criação e demais relações
com as imagens visuais [...] em função da ampliação do entendimento dos contextos
a que estão ligadas." (VICTORIO FILHO; CORREIA, 2013, p.51).

Os objetos de estudo e produção da cultura visual incluem, não apenas


materiais visuais tangíveis, palpáveis, mas também modos de ver, sentir

113
e imaginar através dos quais os objetos visuais são usados e entendidos.
(MILLER; HORST, 2015).

Ainda, Mirzoeff (2003) afirma que a cultura visual é uma “tática para estudar a
genealogia, a definição e as funções da vida cotidiana pós-moderna a partir da
perspectiva do consumidor, mais que do produtor” (p.20). Enfatiza que não se trata
de uma história das imagens, nem depende das imagens em si mesmas, mas sim dessa
tendência de plasmar a vida em imagens ou visualizar a existência, pois o visual é um
“lugar sempre desafiante de interação social e definição em termos de classe, gênero,
identidade sexual e racial” (p.20).

Nesse sentido, são as interações entre a sociedade com a arquitetura e a arte dos
espaços da cidade, as vivências e experiências nesses contextos, onde se produzem
novas visualidades materiais e imateriais que precisamos destacar, revalorizar,
redescobrir e ressignificar. Utilizar o design para dar visibilidade e voz a essas
visualidades e fortalecer a identidade cultural de uma cidade é um ato social que
desloca o design de simples áreas mercadológicas capitalista e o posiciona em uma
perspectiva de construção social que procura fortalecer a identidade regional e por
sua vez, enriquecer a identidade nacional. Isso reforça a perspectiva de Fernando
Miranda (2007) quem indica que “o espectador, carregando essa visualidade com
significado e possibilidade, aventura-se na condição do experiencial, onde o coletivo
e o individual estão relacionados, permitindo prazer, beleza, diversão” (p.6). Nesse
contexto a identificação e tombamento dos patrimônios nos auxilia a fortalecer e
perpetuar esses rasgos culturais identitários da nossa sociedade e transformam eles
em política de estado na educação.

O tombamento de um patrimônio segundo o próprio IPHAN “é o instrumento de


reconhecimento e proteção do patrimônio cultural mais conhecido, e pode ser feito
pela administração federal, estadual e municipal" (IPHAN, 2014). O tombamento
estabelece formas de preservação, registro e inventário que compõe o patrimônio. O
patrimônio material é composto por um conjunto de bens culturais "classificados
segundo sua natureza, conforme os quatro Livros do Tombo: arqueológico,
paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas" (IPHAN, 2014).
Portanto, imóveis, cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos, bens
individuais, coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais,

114
bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos se
encaixam dentro do patrimônio material.

Patrimônio imaterial: diz respeito ao conjunto de

[...] bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas


práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes,
ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas,
plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e
santuários que abrigam práticas culturais coletivas). (IPHAN, 2014)

O patrimônio imaterial carrega à cultura popular que é transmitida pela oralidade e


gerações sendo constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à
diversidade cultural e à criatividade humana.

Ainda, a linguagem, como forma de construir imagens, ganha força nas


representações culturais. Resultaria injusto apresentar características do povo
goiano sem mencionar o sotaque, que costuma puxar o “r”, o modo de falar carregado
das raízes rurais, a maneira como alteram a pronúncia e o significado de algumas
palavras. Há fatores de risco para o esquecimento da cultura e as expressões da fala
não são exceção e algumas já não mais utilizadas, pensando nesse fator Armando
Honório da Silva e Ismael David Nogueira (2017), servidores aposentados da
Universidade Federal de Goiás (UFG), desenvolveram um dicionário goianês
disponível em e-book gratuitamente na Internet que consta mais de 300 expressões
goianas preservando parte da nossa cultura popular, a linguagem oral coloquial.

Um novo olhar para o patrimônio material e imaterial goiano desde o design


social e a cultura visual

A identidade cultural regional e nacional é formada a partir de construções sociais


que tem a ver com: a memória e as relações históricas, a tradição, as crenças e
festividades, expressões artísticas, elementos arquitetônicos, linguagem, modo de
viver e costumes da sociedade em esse espaço determinado, dentre outras coisas.
Isso se traduz em visualidades físicas e mentais que formam parte dos imaginários
coletivos. Às vezes essas construções derivam em estereótipos que são replicados,
115
em muitos dos casos, pela falta de conhecimento, estranheza e ausência de contato
com essa cultura.

Sob o olhar do design social, antes comentado e as visualidades que compõem esse
patrimônio material e imaterial goianiense esse projeto entende a necessidade de:

[…] utilizar-se de características locais que transponham ao produto a


riqueza de novos detalhes e composições, que atribuem a ele não
somente beleza, como também o tornem singular, dotado de símbolos
e representações únicos de um local. Para isso, o designer deve assumir
o desafio de traduzir e interpretar essas culturas de forma correta e ter
sensibilidade para percebê-las como fator diferencial e competitivo,
sem interferir no seu real significado.” (PICHLER, MELLO, 2012, p.8)

Pesquisar e desenvolver projetos com características goianas pode contribuir para


com o fortalecimento da valorização e ressignificação a partir do visual, despertando
o interesse daqueles que antes não admiravam ou a consideravam como parte de si,
porque há uma carga afetuosa que trabalha com experiências de vários moradores
da capital, traz voz para os traços da cultura e faz questionar sobre a falta de
apreciação com as tradições e valores regionais.

Design de Superfície como ferramenta de (re)significação

Uma área do design de comunicação visual útil para desenvolver projetos com viés
social e que nos permita valorizar as visualidades do patrimônio e a cultura goiana é
o Design de Superfície. Esse campo é responsável por estabelecer “um modo de
comunicação que envolve a percepção dos sentidos, não só por meio do sentido do
raciocínio lógico e conceitual, mas também por tudo que representa a comunicação
das sensações.” (FREITAS, 2018, p.13). Pode-se acrescentar que trabalha fortemente
com a (re)significação dos objetos, sendo capaz de atribuir valores semânticos a
estes, ou seja, é ligado com a criação de diferentes e novas experiências. Freitas (2018)
ainda explica que a atribuição de valores ocorre por meio da sinestesia, uma
comunicação dos sentidos em ordem não cronológica, um cruzamento de sensações
associadas à palavras, expressões, cheiros, entre outros. Portanto é plausível concluir
que o design de superfície se relaciona fortemente com a experiência do usuário,
porque esta é um conjunto de características que determinam a quão satisfatória é a

116
usabilidade do usuário para com a peça desenvolvida, seja ela um site, um aplicativo
ou um módulo, pattern ou rapport.

Segundo Freitas (2018, p.66), o módulo “consiste em desenvolver os motivos


(grafismos, texturas e cores) dentro de uma área com medidas de comprimento e
largura predeterminadas'', ou seja, é a unidade da padronagem, a área que inclui os
elementos visuais e desenvolver um módulo significa através da sinestesia e análise
semântica construir a carga informacional. É então possível criar o rapport, traduzido
como repetição, constitui os motivos que serão reproduzidos em um pattern, ou
padrão, alinhado ou não-alinhado (horizontal ou vertical).

Fundamentada a ideia de que o design de superfície está relacionado com a


comunicação das sensações ligadas ao emocional, com a semântica e a sinestesia, a
(re)significação dos objetos e consequentemente com a criação de diferentes e novas
experiências, é viável a aplicação em variados suportes, sendo alguns desses: tênis,
meias, camisetas, bolsas, azulejos, cartazes, cadernos e assim por diante. Nesse
contexto, aproximar os patrimônios, valores e imagens antes analisadas, permite
trabalhar a desconstrução de estereótipos e ressignificações da cultura goiana em
elementos quotidianos que nos auxiliem a valorizar e reposicionar os símbolos
identitários da região.

Analisando a cultura goiana desde a perspectiva do design de comunicação visual

Com suporte na construção do painel semântico reunindo os patrimônios materiais


e imateriais, além de outras visualidades coletivas, nota-se a forte presença
morfológica e de composição de linhas mais rígidas, firmes e geométricas. Rasgos
característicos influenciados possivelmente pelo movimento Art Decó presente
culturalmente. Embora existam algumas exceções com formas flexíveis e mais
orgânicas, como por exemplo, os sistemas de tijolos usados na bancada do tradicional
bar Zé Latinhas.

117
Figura 1 – Painel semântico patrimônios materiais

Fonte: Elaboração da autora, 2022

O trabalho de ilustração Goiás é Goiás carrega particularidades das visualidades


goianas em sua composição cromática. Prevalecem formas orgânicas que são mais
visíveis e interpretativas desde a observação dos patrimônios materiais, das comidas
e festas.
118
Figura 2 – Painel semântico patrimônio imaterial, formas e cores

Fonte: Elaboração da autora, 2022

A partir da montagem dos painéis semânticos com imagens dos patrimônios e demais
elementos visuais foi executável a construção de uma análise cromática. O Goiás é
um estado onde o clima predominante é tropical, ou seja, verões úmidos e chuvosos
e invernos quentes e secos, logo as artes, comidas e festas carregam essas
características em sua gama cromática com tons quentes, terrosos e neutros mais
presentes do que frios.

119
Aplicações e resultados

Após toda a contextualização e compreensão dos diferentes tipos de cultura, das


características da identidade cultural e dos patrimônios materiais e imateriais é
então o momento de criação das primeiras propostas de materiais gráficos e
experimentação dos seus pontos de contato.

Figura 3 – Painel semântico grafismos e aplicações em mockups

Fonte: Elaboração da autora, 2022

120
O primeiro módulo criado a partir das palavras mais usadas em meu vocabulário: Uai
e Véi. O segundo módulo desenvolvido após a observação de tijolos encontrados no
Zé Latinhas que possuem traços e linhas características da arquitetura dos prédios
da cidade, a geometria também remete a Art Déco (ROCHA,2012). O terceiro e quarto
originado em decorrência de um olhar para os padrões da comunidade Iny Karajá,
nesse contexto cabe destacar que se trata de uma simulação e releitura de trabalho
autoral desenvolvido em parceria com um dos membros da comunidade que nos
autorizou a realizar os testes sem fins lucrativos. Os demais grafismos e composições
tipográficas brincam com o vocabulário goiano, dialetos, objetos e elementos da
cultura e patrimônios, sendo esses: Errensga!, Rensga!, Dar nomes aos bois, E esse
dogão tá bão demais?, copo americanos, cajuzinho do cerrado, Véi e boi tradicional
das festas de Pirenópolis.

Considerações finais

É importante destacar que o projeto se encontra em execução e aplicação têxtil e


que pela extensão desse artigo não foi possível acrescentar os mais de 15 painéis
analíticos e experimentações visuais que contemplam o patrimônio material e
imaterial levantado durante essa pesquisa.

No decorrer dos anos a influência cultural européia, norte americana e oriental


sempre foi mais forte, entretanto após ingressar na faculdade de design percebi o
quão pouco valorizava e conhecia das minhas raízes, da cultura local, da cidade onde
nasci e estou crescendo. Com carinho e respeito pela área do design e a enorme
vontade de conhecer mais de Goiânia me dediquei então a pesquisar com muita
devoção pela cultura e patrimônios da localidade.

Ao decidir escrever e relacionar as visualidades com a cultura local foi um desafio


individual ao notar que não conhecia tanto do lugar onde moro, sendo assim a
pesquisa se tornou algo do meu íntimo como goiana, investiguei tudo o que consegui
sobre a origem da cidade, nome, construção de tradições, as visualidades, os traços
que criam e identidade que caracteriza os moradores. A criação e aplicação de
grafismos goianos é importante pois é capaz de contribuir com o fortalecimento e
propagação da identidade cultural local, valorização dos patrimônios materiais e
imateriais.
121
Após o processo de autoconhecimento, descobertas, exploração e aprendizagem foi
perceptível o quanto é importante olhar para nossa cultura. Desde o princípio, da
“descoberta” do Brasil, da Marcha para o Oeste, até finalmente o processo de
globalização com a internet sempre fomos forçados e instigados a abandonar nossos
traços em troca da cultura de fora, mais reconhecida, falada e representada. Além
disso, minha percepção particular é que a maior parte dos governantes nunca
demonstrou grande interesse em criar e investir em projetos que contribuam para a
apreciação, reforço e preservação cultural, principalmente após o fechamento
definitivo do ministério da cultura durante o primeiro ano de mandato do presidente
da república, Jair Messias Bolsonaro.

Nascemos, crescemos e morremos aqui, todas as ações, trejeitos, sotaques são


características que carregamos, sem ao menos perceber, e que fazem o povo goiano
ser quem são, é parte de nós e da cidade, é uma questão de história e valorização.

Em seguida, sob a perspectiva do design social foi possível compreender a atuação


desta área em união à cultura. Sendo assim este artigo busca assimilar e interligar
propriedades das visualidades locais, responsáveis por mudanças identitárias e
comportamentais, ao design, responsável por conectar a sociedade à informação por
meio da comunicação visual, do mesmo modo como Aloísio Magalhães fazia,
restabelecer parte do interesse social com a cultura por meio de trabalhos gráficos.

Somos bombardeados de informação visual o tempo todo, portanto a atual etapa do


artigo é prosseguir com o desenvolvimento de materiais gráficos que carreguem
cores, traços e características da cultura goiana, além de suas aplicações em pontos
de contato que sejam capazes de contribuir com o fortalecimento e propagação da
identidade cultural local, valorização dos patrimônios materiais e imateriais.

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123
Mini Currículos

Nicolas Andres Gualtieri


Bacharel em Design de Comunicação Visual pela UNL (Argentina). Especialista em História e
Narrativas Audiovisuais, Mestre e Doutor em Artes e Cultura Visual pela UFG (Brasil). Com experiência
nas áreas de design, metodologias projetuais, educação, visualidades, cinema e comunicação visual.
Atualmente professor e coordenador do curso de Design Gráfico na Faculdade SENAC Goiás e diretor
do escritório de design Cônico (www.conicodesign.com). E-mail: nicoagualtieri@gmail.com

Giovanna Soares Santos


Graduada em Design Gráfico na Faculdade Senac Goiás e atualmente trabalha como designer
freelancer na área de Social Media. Amplamente interessada em todas as áreas do campo de design e
a recentemente descoberta como pesquisadora das visualidades culturais, história e comunicação
visual direcionada a construção de identidades visuais. E-mail: gssb2002.com@gmail.com

124
REFLEXOS DA CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA NO CARNAVAL DE 2019

REFLECTIONS ON THE BRAZILIAN POLITICAL CONJUNCTURE IN THE CARNIVAL


OF 2019

Taynara Quites Senra


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

Os enredos com temática e compromisso de crítica social, comuns nos desfiles das Escolas
de Samba do Rio de Janeiro na década de 80, reapareceram nos desfiles do Carnaval do Rio
de Janeiro de 2018. Esse trabalho, no entanto, pretende, seguindo esses enredos de temática
e compromisso social, se debruçar sobre os desfiles do Carnaval de 2019 do G.R.E.S. Paraíso
do Tuiuti e G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira – Escolas de Samba que abordaram em
seus enredos os reflexos do momento político e social brasileiro. O intuito do artigo é
estabelecer uma reflexão sobre as críticas sociais e políticas narradas através das alegorias
e das fantasias, indo ao encontro das questões debatidas por pesquisadores de Carnaval e da
Imagem.

Palavras-chave: Carnaval, Escola de Samba, Política, Paraíso do Tuiuti, Mangueira.

Abstract

The themes of commitment and social criticism common in the Rio de Janeiro Samba Schools
parade in the 80s, returned to be themes present in the Rio de Janeiro Carnival parades in
2018, but the focus of the work is on the Carnival parades in Rio de Janeiro. 2019 of the
G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti and G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira that addressed in their
plots the reflexes on the Brazilian political and social moment, the purpose of the article is
to reflect as a spectator of social and political criticism narrated through allegories and
fantasies that go against issues debated by Carnival researchers and the Image.

Keywords: Carnival, Samba School, Politics, Paraíso do Tuiuti, Mangueira.

O intuito do presente artigo é estabelecer uma reflexão sobre os desfiles do G.R.E.S.


Estação Primeira de Mangueira e do G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti no Carnaval de 2019.
As soluções estéticas apresentadas nesses desfiles vão ao encontro do momento
político vivenciado pelo país durante a campanha eleitoral de 2018.

125
As Escolas de Samba do Rio de Janeiro promovem verdadeiros espetáculos artísticos
que são apresentados na televisão para todo o país e mundo. Nesse sentido, torna-
se relevante pensar como as agremiações abordam temáticas que vão ao encontro
das necessidades e anseios da população brasileira.

O carnavalesco é o responsável por usufruir e reunir as manifestações de cenografia,


figurino, dança e música no espetáculo audiovisual, sendo o autor intelectual do
enredo que é “o tema central de todo o desfile” (RIOTUR, 1991, p. 309). Por isso, o
carnavalesco vai trabalhar com a capacidade de compreensão do público utilizando
de “suas habilidades e especializações profissionais, sendo ele próprio um membro
da sociedade para a qual trabalha e partilha de sua experiência e costumes visuais”
(GEERTZ, 1997, p. 156). Isso significa dizer que os desfiles conectam as experiências
humanas para servir, refletir e descrever os interesses culturais da sociedade.

No ano de 2019, o carnavalesco Leandro Vieira da Escola de Samba G.R.E.S. Estação


Primeira de Mangueira foi campeão do Carnaval Carioca com o enredo História para
ninar gente grande. Tal enredo questionou a versão histórica e heróica do Brasil
ensinada nas salas de aula. O G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, que foi a Escola vice-campeã
do Carnaval de 2018, do carnavalesco Jack Vasconcelos, no Carnaval de 2019, contou
a história do bode ioiô e o processo de construção da política brasileira com o enredo
intitulado O Salvador da Pátria.

Diante do exposto, nas próximas páginas do presente trabalho será apresentado a


influência da conjuntura política brasileira nos desfiles das Escolas de Samba do Rio
de Janeiro no Carnaval de 2019. Essa análise foi realizada a partir de uma como
espectadora dos desfiles na segunda-feira de Carnaval na Marquês de Sapucaí e a
partir de vídeos disponibilizados na plataforma digital Youtube.

O cotidiano

Esses desfiles de compromisso e crítica social utilizam a temática do cotidiano


a partir da década de 80 quando o regime autoritário entra em declínio. A
hiperinflação, o FMI, a gasolina cara e os juros altos que assombravam os brasileiros,
juntaram-se ao desejo pelas eleições diretas para presidente, resultando, assim, em
temas presentes nos desfiles das agremiações G.R.E.S. Caprichosos de Pilares e

126
G.R.E.S. São Clemente – que no período de 1984 a 1987, com muita crítica, bom humor
e irreverência deram voz às insatisfações políticas e sociais do Brasil na década de
80.

Merecem destaque, todavia, duas novidades que se apresentaram com


enorme força no período de redemocratização: a dos enredos que
versam o cotidiano e a dos temas explicitamente politizados,
vinculando as escolas de samba ao ambiente de denúncia das mazelas
sociais. Tais tendências só podem ser entendidas no contexto em que
as broncas represadas pela sociedade brasileira, de forma geral,
romperam as comportas do autoritarismo e desceram como águas
livres, lavando tudo e mandando às favas o entulho da repressão.
(SIMAS; FABATO, 2015, p . 55).

As duas agremiações priorizaram em seus enredos o cotidiano. Isso também foi feito
pela G.R.E.S. União da Ilha do Governador, da carnavalesca Maria Augusta, que
apresentou a tendência de enredos simples e informais voltados para a realidade
cotidiana da sociedade nos desfiles: Domingo (1977) e O Amanhã (1978)..

Com isso, segundo a professora Helenise Guimarães (1992), a tendência de enredos


com elementos do cotidiano real das pessoas geraram, mais tarde, os desfiles de
crítica política e social, explorados pelas agremiações na década de 80 no Carnaval.
O carnavalesco do G.R.E.S. Caprichosos de Pilares, Luiz Fernando Reis, apresentou a
temática de enredos do cotidiano com uma “linha crítica política que mexia o Brasil
de então, mas com pitadas de humor” (DATTOLI, 2015, p. 146). O mesmo foi feito pelos
carnavalescos Roberto Costa e Carlinhos d'Andrade do G.R.E.S. São Clemente.

Essa vertente de enredos entra em declínio no período de redemocratização com a


saída dos militares do Palácio do Planalto, a Constituição de 1988 e as diversas
tentativas de combater a inflação do país.

Além disso, como consequência dos altos custos dos desfiles, o quesito enredo foi
bastante sacrificado, limitando as temáticas dos carnavalescos e fazendo com que as
agremiações, através de enredos patrocinados, encontrassem novas fontes de
recursos financeiros para realizar o seu Carnaval. Como afirmam alguns
pesquisadores: “A força dos patrocínios, encarecendo os desfiles à cifras
inacreditáveis, ainda acaba se refletindo em uma valorização demasiada dos quesitos
visuais, sobretudo nas escolas do Grupo Especial” (SIMAS; FABATO, 2015, p. 64).

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Como resultado, as agremiações atuaram como veículos de propaganda de consumo
em setores da indústria, comércio e turismo. Segundo Luiz Antonio Simas e Fábio
Fabato (2015), o próprio mundo do samba questionava esse modelo de desfiles
patrocinados e as expectativas para o futuro.

Porém, é preciso destacar que os patrocínios privados começaram a se ausentar do


espetáculo e que o fomento público foi reduzido consideravelmente na gestão do
prefeito Marcelo Crivella no período de 2017 a 2020. Outro fator para ausência de
patrocínios, foi a crise financeira dos últimos anos.

No entanto, tal adversidade permitiu aos carnavalescos maior liberdade no exercício


da criatividade artística, a qual, associada à atual conjuntura política e social do país,
permitiu desfiles altamente críticos e politizados com as temáticas do cotidiano.

Essas temáticas voltam, por exemplo, no Carnaval de 2018 nos desfiles das
seguintes agremiações: 1. G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira com o enredo Com
dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!, criticando o corte de verba da prefeitura do Rio
de Janeiro; 2. G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis com o enredo intitulado Monstro é
aquele que não sabe amar: Os filhos abandonados da pátria que os pariu, que foi
campeão do carnaval abordando os problemas sociais das periferias do Rio de
Janeiro; e 3. a vice-campeã, G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, com o enredo Meu Deus, meu
Deus, está extinta a escravidão? questionando o trabalho análogo.

Os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro são transmitidos para todo
o Brasil. As temáticas e as imagens desses desfiles de compromisso e crítica social
revelam a importância das agremiações abordarem a situação social e política do
país. Peter Burke (2017) teoriza a relevância das imagens no debate político.

o uso político de imagens, não deve ser reduzido a tentativas de


manipulação da opinião pública. Entre a invenção do jornal e a
invenção da televisão, caricaturas e desenhos, por exemplo,
ofereceram uma contribuição fundamental ao debate político,
desmistificando o poder e incentivando o envolvimento de pessoas
comuns nos assuntos de Estado. Realizaram tais tarefas mostrando
assuntos controversos de uma maneira simples, concreta e notável
(BURKE, 2017, p. 121)

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No ano seguinte, o G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira e G.R.E.S Paraíso do Tuiuti
continuaram abordando em seus enredos temáticas de compromisso e crítica social,
criticando as ações e políticas do Estado brasileiro e debatendo questões que vão ao
encontro dos acontecimentos da política brasileira. Para compreender os desfiles é
preciso contextualizar o momento social e político brasileiro.

Contexto social e político brasileiro

A situação política, econômica e social brasileira em 2017 influenciou diretamente na


escolha dos enredos para o Carnaval de 2018, ano das eleições presidenciais. O país
encontrou-se dividido politicamente entre eleitores do PT (Partido dos
Trabalhadores) do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aqueles eleitores que
seguiam o lema “PT NUNCA MAIS” – o sociólogo Jessé Souza afirma que “o ódio ao
PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias
sociais entre as classes no Brasil moderno” (SOUZA, 2019, p. 71).

Ao longo dos 13 anos governados pelo (PT), as classes consideradas excluídas viveram
uma ascensão social com direitos sociais, acesso ao ensino superior e técnico,
aumento do salário mínimo e outras ações que aumentaram o poder de compra. Mas,
no segundo ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, foi protocolado, em
dezembro, um pedido de impeachment contra a presidenta na Câmara dos
Deputados em Brasília. A votação aconteceu em abril de 2016 e ela foi afastada. Seu
vice-presidente Michel Temer assumiu o governo.

As consequências desta instabilidade política e social gerou o aumento do número


de desempregados, ataques à CLT (Consolidação das Leis do Trabalho),
empobrecimento da população e o sucateamento dos serviços públicos. O discurso
do falso moralismo e a falsa sensação do combate à corrupção influenciou a oratória
dos candidatos ao Governo Federal e Estadual do Brasil. Esse discurso político de
combate a corrupção ganhou proporções na oralidade dos brasileiros,
principalmente devido às ações de aprisionamento de políticos e empreiteiros
envolvidos na operação Lava Jato.

O antipetismo reinante na mídia hegemônica pretendia localizar o


descontentamento só no PT, para matá-lo de vez. Mas o público passou

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a desconfiar de todos os políticos e de toda a política. Os brasileiros
chegam à eleição de 2018 com ódio da política, que, para eles, é a causa
de sua pobreza crescente e de sua falta de esperança. Afinal, essa foi a
mentira que lhes foi contada todos os dias pelos seus intelectuais e pela
imprensa venal durante cem anos. (SOUZA, 2021, p. 265)

Na medida em que a campanha eleitoral avançava em 2018, não apenas o discurso de


ódio aumentou, como também o discurso racista, homofóbico, machista e contra as
minorias. Foi este discurso que favoreceu a eleição de Jair Bolsonaro para a
presidência da República. O então Deputado Federal e representante político da
milícia carioca era idolatrado na imaginação de muitos brasileiros como o único
candidato a conseguir a não eleição de Fernando Haddad do PT e combater a
corrupção, restabelecendo a sensação de moralidade da elite brasileira.

Desta forma, o ódio acabou vencendo nas urnas e com ele todo o discurso extremista.

Bolsonaro que se constrói como defensor dos valores familiares


tradicionais atacando figuras como Marielle Franco, cujo assassinato
parece ter sido um “presente” miliciano ao presidente e o deputado
Jean Wyllys, um ícone da luta contra a homofobia (SOUZA, 2021, p. 268).

É com esse discurso extremista e antipetista que muitos governadores, senadores e


deputados são eleitos no Brasil em 2018. O desfecho dessas eleições levou o país a
uma grande polarização política com uma grande afirmação do discurso de ódio
contra as minorias, o sucateamento das instituições de ensino federal, a dificuldade
no acesso à saúde e a diminuição do poder de compra.

Em vista disso, esses fatos interferem diretamente nos enredos para o Carnaval de
2019. As agremiações abordaram o sucateamento de serviços públicos, a falta de
acesso à educação e saúde, a fragilidade da política brasileira e o modo como a falsa
moralidade reverbera no Brasil em ações do cotidiano. A seguir, esse estudo vai
contextualizar o “mito carnavalesco brasileiro” – conceito visualizado nos desfiles da
G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira e da G.R.E.S Paraíso do Tuiuti no Carnaval de
2019.

Queiroz (1992) chama de “mito carnavalesco brasileiro” quando um conjunto de


conceitos e ideias vão dividir as emoções de alegria e rejeição, buscando uma
tradução complexa da sociedade:

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O mito carnavalesco é uma narrativa que explica a realidade a partir de
dados da experiência (insatisfações com a sociedade existente) que se
misturam a aspirações coletivas (desejos de uma “outra” sociedade);
estabelece uma convergência entre o aspecto objetivo do
conhecimento e o aspecto subjetivo dos sentimentos para atingir um
porvir imaginário mas acessível (QUEIROZ, 1992, p. 184).

Por conseguinte, as imagens ecoadas do desfile ofereceram uma contribuição


fundamental ao debate político. Os carnavalescos apresentaram uma crítica política
e social ao momento brasileiro, sendo possível compreender os acontecimentos da
campanha eleitoral de 2018 através das fantasias e alegorias. Em vista disso, é preciso
entender a ideia do testemunho de imagens. Segundo Peter Burke,

Uma vantagem particular do testemunho de imagens é a de que elas


comunicam rápida e claramente os detalhes de um processo complexo
que um texto levaria muito mais tempo para descrever e de mais vaga
(BURKE, 2017, p.125)

Sendo assim, foi necessário entender as Escolas de Samba que foram pioneiras
nos enredos de compromisso e crítica social – Caprichosos de Pilares e São Clemente
na década de 80 –, a exposição do “mito carnavalesco brasileiro”, o contexto político
e social do Brasil em 2018, para enfim começar, na próxima seção, os reflexos da
política brasileira no Carnaval de 2019.

O Carnaval Carioca e a política

As Escolas de Samba são organismos sociais e vivos. As agremiações em seus desfiles


produzem, ensinam e sintetizam temáticas através de alegorias e fantasias.

O carnaval carioca, especialmente através das escolas de samba (essa


invenção genial nascida do povo, intuitiva na origem e com
desenvolvimento que espanta todos os observadores), é hoje a síntese
da nossa nacionalidade. Dá o espelho que reflete o que somos, com as
angústias, expectativas, frustrações, anseios, vitórias, enganos e
desenganos que compõem o nosso retrato falado. [...] é o carnaval que
tem preenchido a lacuna do desconhecimento que temos de nós
mesmos. Lá aprendemos a história do Brasil (COSTA, 2007, p. 252)

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Segundo a citação de Haroldo Costa (2007), os desfiles das Escolas de Samba são
responsáveis por produzir conhecimento para os espectadores. Na madrugada da
terça-feira gorda no Carnaval de 2019, as agremiações promoveram conhecimento
ao debater questões que vão ao encontro dos acontecimentos políticos e sociais do
Brasil no período de 2018. A campeã do Carnaval de 2019 foi o G.R.E.S. Estação
Primeira de Mangueira com o enredo intitulado História para ninar gente grande do
carnavalesco Leandro Vieira. No enredo, encontrávamos a narrativa das histórias
ausentes dos nossos livros de história: as lutas de índios, negros e pobres por
igualdade, respeito e liberdade no Brasil. A proposta do enredo foi uma
desconstrução do olhar colonial existente no Brasil – olhar desconstrutor e
desmistificador da imagem heróica dos heróis dos livros de história. No livro abre-
alas, lemos o contexto histórico do enredo:

O enredo do G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira é um olhar


possível para a história do Brasil. Uma narrativa baseada nas páginas
ausentes. Se a história oficial é uma sucessão de versões dos fatos, o
enredo que proponho é uma outra versão.[...] Ao dizer que o Brasil foi
descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos
feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro;
ao selecionar heróis dignos de serem eternizados em forma de
estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as
conquistas são fruto da concessão de uma princesa e não do resultado
de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o
ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em
sono profundo.

De forma geral, a predominância das versões históricas mais bem-


sucedidas está associada à consagração de versões elitizadas, no geral,
escrita pelos detentores do prestígio econômico, político, militar e
educacional. (VIEIRA, 2019, p. 313).

Como podemos analisar na citação supracitada, Leandro Vieira propõe promover


conhecimento e reconhecimento aos verdadeiros heróis populares do Brasil. Esses
brasileiros e brasileiras tiveram sua história apagada pelo patriarcado e por uma elite
que controlou a nossa história por anos, promovendo o extermínio das crenças,
costumes e culturas indígenas e africanas.

Diante disso, o desfile do G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira foi aclamado pelo
público presente na Marquês de Sapucaí e os periódicos também noticiaram o

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sucesso do desfile que contou com a presença de políticos, representantes de
movimentos sociais, artistas, intelectuais e familiares da vereadora Marielle Franco
–brutalmente assassinada.

As fantasias e alegorias tinham o objetivo de ensinar a história de brasileiros que


resistiram e lutaram: os chefes de tribos indígenas, Tereza de Benguela, Luiz Gama,
Luísa Mahin, a revolta dos malês, a resistência e a luta dos índios, pobres e negros no
Brasil. O desfile estava repleto de momentos que emocionaram os espectadores,
começando pelo lindo samba enredo elucidando os nossos verdadeiros heróis –
samba enredo que fez muito sucesso e continua fazendo em rodas de samba.

Algumas alas e alegorias também emocionaram o público, como por exemplo: a


alegoria do Monumento dos Bandeirantes de São Paulo que aparecia pichada de
vermelho, representando o assassinato de milhares pessoas em prol do benefício
colonial; a filha de Zuzu Angel desfilando com o vestido de sua mãe como forma de
protesto da ditadura militar brasileira; e a representação de Delegado, Alcione e Lecy
Brandão exaltando a resistência do Quilombo dos Palmares.

No fechamento do desfile, as cores da bandeira do Brasil foram trocadas para as


cores da agremiação, verde e rosa, a referenciando como uma Escola de Samba do
povo brasileiro. Ao invés do escrito “ordem e progresso”, Leandro Vieira escreveu
“índios, negros e pobres”, dando representatividade as minorias e mostrando que os
discursos de ódio não impulsionam a melhoria e harmonia da sociedade brasileira.

Também com propósito de contar uma história que o brasileiro não conhece, Jack
Vasconcelos no desfile do G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti no Carnaval de 2019 construiu o
enredo intitulado O salvador da pátria. O carnavalesco apresentou uma metáfora da
democracia brasileira, a história do bode ioiô. Esse desfile continuava com a temática
de enredos de compromisso e crítica social. A seguir, podemos ler a citação do livro
abre-alas com a justificativa do enredo:

O Brasil tem histórias que a própria História desconhece. A saga de um


bode que fugiu da seca e foi eleito vereador de uma das mais
importantes capitais nordestinas na primeira metade do Século XX
parece um fato creditado na conta do improvável. Coisa de contador
de lorota, diria um desavisado. Mas a verdade é que Ioiô não só existiu
como se tornou símbolo da gaiatice e da pilhéria, marcas importantes
na formação do povo cearense. É essa história de luta e resistência que

133
o Paraíso do Tuiuti irá levar para a Avenida no Carnaval de 2019. Para
isso, a escola resolveu direcionar o olhar não apenas para a paisagem e
para os tipos sociais que compõem toda a história que envolve Ioiô.
Mas aproxima a lupa sobre o pano de fundo político que levou o danado
do caprino a se tornar tão amado a ponto de ser escolhido como
legítimo representante do povo. Trata-se de uma metáfora sobre
democracia, representatividade e o direito de erguer símbolos
aderentes ao imaginário popular. (VASCONCELOS, 2019, p. 251).

Como é possível perceber, o fio condutor da história de Jack Vasconcelos é o bode


ioiô. O animal saiu da seca do sertão do Ceará para Fortaleza no início do século XX,
fez sucesso na noite boêmia e foi eleito vereador e salvador da população da capital
do Ceará. Como é uma metáfora da democracia brasileira e representatividade, o
desfile foi uma crítica ao voto de cabresto, a falta de representação política, aos
políticos eleitos e a falta de melhorias em interesses básicos e essenciais da
população brasileira.

Esses assuntos são abordados ao longo do desfile em fantasias, como por exemplo:
representando a manipulação do voto popular, o voto de cabresto e na última ala que
dialogava com o momento político e social do Brasil em 2018.

Com a ala A paleja entre o bode da resistência e a coxinha ultra conservadora é possível
a partir de uma análise enxergar os desfilantes que estão com a fantasia em formato
de coxinha como os eleitores de direita e a fantasia na cor do Partido dos
Trabalhadores, a resistência, como os eleitores de esquerda.

A quarta alegoria foi incisiva em criticar os representantes políticos brasileiros na


alegoria nomeada de Fauna Eleitoral. As esculturas representavam cobras, aves,
ratos, porcos e outros bichos peçonhentos de terno e gravata.

O desfile da G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti também contou com representantes de


movimentos sociais, intelectuais e artistas na última alegoria nomeada de “O bode da
resistência”. A luta de ioiô contra a intolerância, o retrocesso, a ignorância e a
imposição: todas essas questões vão de encontro ao discurso do presidente eleito
Jair Bolsonaro.

Com base nas imagens analisadas, os dois desfiles, com seus enredos, abordam
questões do contexto político e social brasileiro, afinal, os enredos de compromisso
e crítica social do Carnaval de 2019 representam a fragilidade política e a falta de

134
representação, mostrando como a polarização e os discursos de ódio contra a
minoria afetam nosso cotidiano. O retrocesso, a exploração e o aniquilamento
cultural são consequências das leis do Brasil escravocrata que afetaram – e ainda
afetam – toda a construção da nossa sociedade.

as classes populares não foram simplesmente abandonadas. Elas foram


humilhadas, enganadas, tiveram sua formação familiar
conscientemente prejudicada e foram vítimas de todo tipo de
preconceito, seja na escravidão, seja hoje em dia. [...] a nossa herança
escravocrata, que agora é usada para oprimir todas as classes
populares independentemente da cor da pele (SOUZA, 2019, p. 95)

Leandro Vieira, ao propor desconstruir a visão colonial, mostra como a nossa história
até hoje é reprimida e aniquilada. Do mesmo modo, Jack Vasconcelos também mostra
como a nossa herança patriarcal está presente em nosso cotidiano.

Sendo assim, essas críticas construídas pelos desfiles das Escolas de Samba mostram
como nossos representantes eleitos democraticamente através do voto são os
principais responsáveis por proporcionar melhores condições de vida aos indivíduos
das regiões brasileiras. Essa não é, porém, uma realidade. Infelizmente o dinheiro
público muitas vezes não é usado em benefício do povo e sim para benefício de
poucos. Falta dinheiro para o povo e sobra para os políticos e empresários. Isso sem
falar da corrupção que está espalhada pelo país.

Para terminar, as Escolas de Samba realizam o seu papel de transmitir conhecimento


para o povo brasileiro, porém elas não conseguiram mudar os resultados das eleições
de 2018, 2020 e 2022. Os representantes políticos eleitos não esconderam seus
discursos racistas, homofóbicos, machistas e de ataques às minorias. O retrocesso
brasileiro está sendo noticiado todos os dias nas redes sociais e na imprensa.

Referências

BALTAR, Anderson; LEAL, Eugênio; DATTOLI, Vicente. As primas Sapecas do Samba:


Alegria, crítica e irreverência na avenida. Rio de Janeiro: Novaterra. 2015.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de
François Rabelais. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

135
BARROS, José D'Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Vozes
Limitadas, 2004.
BECKER, Howard S. Mundos artísticos e tipos sociais. Arte e sociedade: ensaios de
sociologia da arte. Rio de Janeiro. Editora:Zahar, p. 9-26, 1977.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo:
Editora UNESP, 2017.
COSTA, Haroldo. Política e religiões no Carnaval. São Paulo: Irmãos Vitale, 2007.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Tradução de Leandro Konder. 9º ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1997.
GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o profissional que faz escola no Carnaval
Carioca. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais), Escola de Belas Artes, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SIMAS, L. A.; FABATO, F. Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos. Rio de
Janeiro: Mórula, 2015.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2019.
SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1992.
RIOTUR. Memória do carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1991.
VASCONCELOS, Jack. G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti: O Salvador da Pátria. In. LIESA. Carnaval
2019: Livro Abre-Alas Segunda. Rio de Janeiro, p. 243-306. 2019. Disponível em:
<http://liesa.globo.com/downloads/memoria/outros-carnavais/2019/abre-alas-
segunda.pdf> Acesso em: 23 de julho de 2022.
VIEIRA, Leandro. G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira: História para ninar gente
grande. In. LIESA. Carnaval 2019: Livro Abre-Alas Segunda. Rio de Janeiro, p. 307-390. 2019.
Disponível em: <http://liesa.globo.com/downloads/memoria/outros-
carnavais/2019/abre-alas-segunda.pdf> Acesso em: 12 de outubro de 2022.

Mini Currículo

Taynara Quites Senra


É mestranda do programa de pós-graduação em artes visuais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ) na linha de pesquisa em Imagem e Cultura. Atualmente é foliã e
pesquisadora do Carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e estuda a influência da conjuntura
política brasileira nos desfiles na década de 80. E-mail: taynarasenra93@gmail.com

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VISUALIDADES DA VIOLÊNCIA E DA AFETIVIDADE NOS JOGOS DIGITAIS

VISUALITIES OF VIOLENCE AND AFFECTION IN DIGITAL GAMES

João Pedro Teles Pires


Flávio Gomes de Oliveira
Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Plataformas midiáticas incitam ódio e segregação social por meio de discursos e visualidades
estratégicas. Este artigo estuda certas relações de aparatos midiáticos que são usados como
artefatos de controle para a criação de conexões dúbias entre jogos digitais e violência. Para
tal, revisamos conceitos como o de contra-visualidades, criado por Mirzoeff (2011) que
propõe oposições às narrativas midiáticas que reproduzem visualidades hegemônicas.
Utilizamos conceitos como catarse, violência e frustração em análise a League of Legends
(Riot Games, 2009), bem como imersão, afetividade e identidade em World of Warcraft
(Blizzard Entertainment, 2004) para expandir e questionar as visualidades construídas entre
jogos, jogador e o jogar.

Palavras-chave: Contra-visualidades; Jogos digitais; League of Legends; Violência; World of


Warcraft.

Abstract

Media platforms incite hate and social segregation through discourses and strategic
visualities. This paper studies relations of mainstream media devices used as control artifacts
to create dubious connections between digital games and violence. For such, we review
concepts such as counter-visualities, termed by Mirzoeff (2011) that propose opposition to
media narratives that reproduce hegemonic visualities. We use concepts such as catarsis,
violence and frustration in analysis to League of Legends (Riot games, 2009) as well as
immersion, affectivity and identity in World of Warcraft (Blizzard Entertainment, 2004) in
order to expand and question visualities built between games, player and play.

Keywords: Counter-Visuality; Digital Games; League of Legends; Violence; World of


Warcraft.

137
Neste artigo pretendo elaborar um olhar crítico que possibilita permear o diálogo
entre o tratamento midiático e jogos digitais, bem como as visualidades construídas
nas últimas décadas, um sobre o outro. Para tal, utiliza-se textos que discorrem sobre
agressão e violência e sua relação com o jogar; bem como, textos que questionam a
abordagem da mídia a respeito de jogos violentos e o comportamento social dos
jogadores; exemplos, também, do lado social, tanto tóxico quanto colaborativo, dos
jogos – o que, a partir da imagem socialmente construída do jogador, funciona como
uma contra-visualidade (MIRZOEFF, 2011).

Os exemplos discorrem sobre o comportamento tóxico da comunidade de League of


Legends (Riot Games, 2009) e o Incidente do Sangue Corrompido de World of
Warcraft (Blizzard Entertainment, 2004). Assim, questiona-se a imagem construída
do jogador antissocial e violento, que causa massacres por mera incitação do que vê
na tela de um jogo, partindo do que Mirzoeff (2003) chama de “direito a olhar” que se
opõe à “autoridade da visualidade” (p. 2).

Adriel da Silva (2020), no artigo “A relação dos jogos eletrônicos e a violência real”,
faz correlações do tratamento midiático em relação às manifestações violentas,
massacres e atentados que foram atribuídos aos jogos digitais. O autor destaca o falso
moralismo e sensacionalismo por parte da cobertura midiática diante de tais casos.
É inegável que aludir à relação entre violência e jogos digitais faz mencionar
atentados como tiroteios em escolas ou ‘school shootings’ (MABILDE, 2021), como o
caso Columbine, de 1999, nos Estados Unidos da América do Norte, ou o Massacre
de Suzano, em 2019. A propensão de se abordar tendenciosamente 1 estes casos
demonstra a falta de tato no tratamento da relação entre sociedade e indivíduo –
muitas vezes esse é o objetivo. A forma que os telejornais tratam o assunto é um
escape para manobrar a atenção do espectador dos problemas sociais para uma
relação supérflua de causa-efeito (Idem).

Anderson e Warburton (2016) relacionam a construção do “jogador violento” a fatores


de risco, problemas sociais mais severos que a relação com mídia ou violência.

1
Massacre de Suzano reacende debate sobre má influência de games violentos. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/massacre-de-suzano-reacende-debate-sobre-ma-influencia-
de-games-violentos.shtml>.

138
Ressalta-se a descrição de violência dos autores “Essencialmente, violência é o
comportamento agressivo cujo objetivo é um dano extremo. Logo, toda violência é
agressão, mas nem toda agressão é violência” (p. 62). Dentre os pontos dos autores
em relação aos estudos que corroboram a aproximação de causa-efeito de violência
e jogos violentos, é citado que a agressividade não se resume a danos extremos,
podendo ser expressada através de danos físico, moral, social e de propriedade.

As análises de Silva (2020) demonstram que o uso de entorpecentes, pais abusivos e


antissociais, a noção de pertencer a grupos marginalizados e colegas antissociais são
indicadores de predisposição a comportamentos agressivos – fatores cujo foco a
mídia se esforça em deturpar, esconder os reais motivos de ser e manter o
espectador anestesiado, produzindo um “treinamento mental, organizado de tal
forma a manter tanto a segregação física entre comandantes e comandados, quanto
a complacência mental para tais arranjos” (MIRZOEFF, 2011, p. 5)

Mabilde (2021) aponta para essa tendência midiática de parcialidade, em particular


com o uso dos termos “terroristas” ou “terrorismo”. A autora define terrorismo como
o uso de violência, física ou psicológica, contra a manifestação de um inimigo/outro,
realizada com intenção de causar medo, pânico e efeitos psicológicos que
ultrapassem o número de vítimas atingidas diretamente na população ou governo
afetados. Além disso, a motivação não envolve ganho pessoal monetário e parte de
um fundamento religioso, ideológico ou social. (MABILDE, 2021, p. 13)

Ela destaca ainda o resguardo destes termos para a criação de uma imagem
específica, geralmente de pessoas não-brancas, ou de fé islâmica, em decorrência do
esquema de ódio político e identitário a partir do atentado do 11 de Setembro nos
Estados Unidos da América do Norte, uma forma de proteger a imagem do homem
branco, que é na verdade a descrição dos terroristas em grande parte de atentados
desde os anos 1980 (idem, p. 14), como no citado caso de Columbine, em 1999.

Esse modelo de perpetuação de estereótipos no imaginário da massa consumidora é


a fórmula seguida por conglomerados de capitalistas e governos a fim de desviar
críticas e demandas da população (Idem, p. 13). Outra ressalva de Mabilde é o efeito
contágio, que atribui à notoriedade conferida pela mídia como

139
um atrativo para potenciais novos autores [...] uma vez que muitos dos
atiradores buscam ser reconhecidos por suas ações [...] A notoriedade
funciona aqui como um “chamado à ação”, convidando indivíduos que
se identificam com o crime a realizarem atos de imitação. (MABILDE,
2021, p. 9)

Existe um intenso movimento que luta contra o estigma social que banaliza, segrega,
ridiculariza e torna nefasto o ato de jogar jogos digitais. Falas saudosistas reforçam
essa imagem violenta e degenerada dos jogos, afirmando que em tempos passados,
anteriores às tecnologias midiáticas, a vida “era melhor”, como diz o vice-presidente
da República, General Mourão (MABILDE, 2021, p. 28) em uma entrevista abordando
o massacre de Suzano de 2019, o que despeja sobre os jogos eletrônicos uma
característica de ‘tutorial’ para seus jogadores, como se fossem instruções de
violência planejada.

É comum ler e ouvir comentários sobre jogos digitais que os vilaniza em decorrência
de seu conteúdo. No entanto, os jogos digitais – ou games – são dispositivos de
entretenimento, apenas um (embora versáteis e diversos) dentre vários outros. Este
curto período de existência dos games não é contemplado pela absolvição da
violência humana, não nos tornamos pacíficos ou plenamente empáticos. Não são os
jogos que contaminam nossos ‘inocentes e manipuláveis’ jovens, mas sim um aparato
social de controle e perpetuação de visões de mundo segregacionistas, que criam e
deslocam os motivos de massacres, assédios e atendados terroristas para suas
vítimas – o mesmo sistema que condecora policiais assassinos e protege
adolescentes supremacistas, acusando revoluções e dispositivos tecnológicos como
inimigos, utilizando a mídia como veículo de pânico e conformação, mantendo-se
invisível no interior dessa estrutura.

Afirmar que um jogo digital é via de recriação de atos violentos é apagar toda a
subjetividade de um indivíduo ou grupo, como geralmente é feito em programas
sensacionalistas que buscam a resposta mais fácil para incidentes, para causar
histeria e um ódio direcionado para, então, passar para uma nova pauta, estruturando
uma cadeia de pensamentos rápidos e infundados, que contemplam o espectador
com uma sequência de choques e uma mão que aponta para o outro com todos os
dedos. Citando Mirzoeff,

140
[...] complexos são complexos. São divididos contra si mesmos primeiro
como configurações da visualidade contra contra-visualidades e,
então, como sistemas materiais de administração da autoridade ligada
a meios mentais de autorização. (2003, p. 8, tradução nossa)

É uma forma simples de desviar a atenção e exculpar aquele que aparece refletido na
tela escura de uma televisão desligada, o que por si só permite a criação de
argumentos tendenciosos que reforçam discursos segregacionistas banhados em
estereótipos, por exemplo, a relação causa-efeito infundada de que ver
relacionamentos homoafetivos na televisão permeia a subjetividade de crianças,
posicionando-as como cascas ocas que serão preenchidas por qualquer produção
midiática, implicando, assim, que ver tal afetividade cria uma pulsão pela replicação
da mesma.

É possível encontrar atritos nos questionamentos entre o “dar a ver” e um “ser pelo
ver”. Este esforço de criar uma visualidade sobre jogadores pode ser formulado à
imagem das operações de visualidades de Mirzoeff (2011), ou o “complexo de
visualidade”:

Primeiro, a visualidade classifica por nomeação, categorização, e


definição, um processo definido por Foucault como “nomeação do
visível” [...] Segundo, a visualidade separa os grupos tão classificados
como forma de organização social. Tal visualidade separa e segrega
aqueles que ela vê para preveni-los de concordar enquanto sujeitos
políticos, como os trabalhadores, o povo, ou a nação (decolonizada).
Terceiro, ela [a visualidade] faz essa classificação separada parecer
correta e, portanto, estética. (MIRZOEFF, 2011, p. 3, tradução nossa)

League of Legends (Riot Games, 2009) é um jogo inteiramente social por ser um MOBA
(Massive Online Battle Arena, ou ainda, Arena de Batalha Multijogador Online), termo
que designa jogos competitivos jogados em partidas com média de 30 minutos, com
um limite de jogadores distribuídos em duas equipes inimigas com um objetivo em
comum. O que se destaca em League of Legends é o apelo a certa sociabilidade dos
jogadores. Como em qualquer jogo, uma boa comunicação e cooperação entre
membros da equipe são fundamentais para a vitória.

141
Para além dessa socialização ingame2, League of Legends possui um complexo sistema
de socialização3 entre jogadores e comunidade. No entanto, essa diversidade de
opções de socialização é mal utilizada, ainda mais ao nos voltarmos para o servidor
brasileiro.

O que se constata na interação entre jogadores é que, com a normalização de


agressões, uma comunidade se torna tóxica. O principal gatilho observável para as
agressões verbais e conturbações dentro do jogo é uma forma complexa de
frustração. A agressividade é retificada a partir de um certo conforto de grupo, a
sensação de “pertencimento” em uma equipe ou grupo. Quando esse pertencimento
passa a ser de um servidor inteiro, ou seja, quando jogadores de todo o país
concordam com essa conduta e visualidade, a toxicidade se torna “estética”, ela é
aceita e cativada, um ponto a ser utilizado a favor do discurso que vilaniza os jogos.
Existe, no entanto, a frustração.

A frustração em jogos digitais competitivos, talvez nos jogos em geral, se dá em parte


pela violação das regras do jogo, como foi determinado por Huizinga em seu livro
Homo Ludens, originalmente publicado em 1938. Huizinga escreve as relações
culturais e sociais do jogo, observando para além das teorias filosóficas, da moral, da
racionalidade e lógica, da psicologia e da fisiologia, mesmo para além da própria
‘humanidade’. Entrar num jogo, como diz Huizinga, é uma prática voluntária num
espaço-tempo que se expressa para além das esferas que qualificam o humano e a
socialização cotidiana (HUIZINGA, 2019).

A frustração, que se transforma em comportamentos tóxicos dentro da comunidade


de League of Legends, por exemplo, é indicativo de uma ruptura neste espaço-tempo
do jogo – o que o autor chama de “círculo mágico”, tratado como um segredo criado
e mantido por e entre participantes

Isso é para nós e não para os outros. O que os outros fazem lá fora não
nos importa nesse momento. No interior do círculo do jogo, as leis e

2 O termo inglês ingame refere-se à diegese dos jogos, o que ocorre “dentro” do jogo.
3 Sistemas de honra e denúncias ao final de todas as partidas, chats de conversa in e out-game, sistemas de
recompensa de equipes e ‘presenteamento’ de amigos, missões coletivas, campeonatos mundiais com times de
diversas redes globais de E-Sports, campeonatos amadores, partidas ranqueadas, de treino e personalizadas e
interações entre os próprios campeões ingame.

142
costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos e fazemos coisas
diferentes [...] [O jogo] é “jogado até o fim” dentro de certos limites de
tempo e de espaço. Possui um encaminhamento e um sentido próprios.
(HUIZINGA, 2019, p. 9)

O que pode elucidar um comportamento disruptivo num jogo digital como League of
Legends é a atuação daquele que Huizinga denomina de desmancha-prazeres, o
jogador que remove o véu “mágico” do jogo e puxa os outros jogadores de volta para
o mundo real. A toxicidade se torna recíproca num sistema pouco responsivo.
Jogadores se sentem frustrados ao entrar no jogo voluntariamente, conscientes de
que nos próximos trinta a quarenta minutos não poderão sair e, caso o façam, podem
sofrer penalidades por abandono, mas um desmancha-prazeres com
comportamentos disruptivos não. Com a estetização do meio, os comentários
racistas, classistas, homofóbicos, xenofóbicos e machistas são naturalizados nos
chats de conversa.

Dentro de uma partida, um jogador pode chamar atenção para um comportamento


disruptivo de um desmancha-prazeres e ser repreendido por ambos os times por
retirar o véu do jogo, trazendo para o círculo mágico o mundo real, com seus
“pequenos” problemas sociais. O comportamento generalizado dos jogadores é de
não aceitar repressões, o que decorre do senso de protagonismo que o universo
digital propicia, como se os outros personagens não fossem controlados por outros
jogadores e, quem repreende, é a máquina.

Larrain descreve testes com atividades catárticas, isto é, atividades de catarse ou


sublimação, mecanismos de controle de impulsos agressivos. O autor cita a Hipótese
da Frustração-Agressão desenvolvida pela escola de Yale (LARRAIN, 1976, p. 22). A
catarse é o deslocamento do impulso agressivo para redução de fantasias agressivas
em atividades que não necessariamente sejam agressivas, uma forma de permitir,
através da expressão do sentimento que um novo sentido seja construído, como um
“insight”, uma forte percepção. O autor destaca que a agressividade é um mecanismo
de preservação ecológica, um “sistema de comportamento instintivo que gera sua
própria energia independente de estimulação externa” (Idem, p. 21), enquanto a
frustração se dá como “bloqueio ou interferência da atividade dirigida” (Idem, p. 22).
Existe em sua pesquisa argumentos que contestam e favorecem a ideia da catarse,

143
de forma que, em sua análise, ele prevê atividades e comportamentos que podem ou
não funcionar como catárticos.

Em League of Legends, ser confrontado com diversos antagonismos pode iniciar o


ciclo de frustração: ser abatido diversas vezes por um inimigo esnobe; ver um
companheiro de equipe fazendo ações errôneas repetidamente; táticas
desnecessariamente hostis e imodestas dos inimigos e trapaças. Estes e tantos
outros são exemplos de comportamentos que podem iniciar uma discussão nos chats
de equipe. Talvez o que suscite estas discussões seja a competitividade e a inabilidade
de controlar o outro jogador, não estar sempre no controle da situação geral e
depender do outro. Assim os discursos de ódio são perpetuados. Odeie o jogador,
não o jogo.

As ações tomadas pelo sistema de punição de comportamentos tóxicos da Riot


Games, criadora de League of Legends, são conhecidas por serem restritas e
demoradas, punições leves que não estão de acordo com a necessidade das
denúncias. Uma das ações, ainda recente, foi a de apartar os jogadores em grupos
menores que possam criar um senso de comunidade e autovigilância, o que confere
recompensas por vitórias de partidas e bom comportamento de equipe, tendo
penalidades para o todo, talvez idealizado a partir do panóptico.

O apelo para socialização dos jogadores é um mecanismo de controle. Grupos, times


e guildas são voltados para os jogadores, não contribuindo para uma narrativa que
possa persuadi-los a participarem mais ativamente neste sistema de manutenção de
ordem. O enredo – ou lore – do universo não possui aberturas suficientes para a
criação de narrativas de jogadores a partir do jogar. Em contrapartida, existem jogos
que contam com a criação de histórias, times e guildas para aumentar a cooperação
e socialização dos jogadores entre si, como World of Warcraft (Blizzard
Entertainment, 2004).

Essa organização autônoma dos jogadores permite a criação de uma identidade


coletiva mais pura e afetiva para o jogador. Existe um senso de comunidade e
preservação não-violentos. Em ambos os exemplos, as comunidades extravasam o
espaço do jogo, sendo levadas para redes sociais, encontros virtuais, presenciais e
mesmo eventos internacionais desses grupos. O jogo torna-se um fenômeno
cultural:

144
As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se
permanentes, mesmo depois de acabado o jogo [...] Numa situação
excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do
mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além
da duração de cada jogo. O clube pertence ao jogo. (HUIZINGA, 2019,
p. 33)

World of Warcraft é um exemplo de MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-


Playing Games – Jogos Multijogador Massivo Online) famoso desde seu lançamento,
desenvolvido por uma empresa que produz jogos, filmes, séries, brinquedos e outros
produtos que carregam a franquia pelo mundo. World of Warcraft (WoW) como o
nome diz, numa tradução literal, é um Mundo da Arte da Guerra, um ambiente
medieval que conta com diversas classes de personagens (magos, guerreiros,
caçadores), raças (humanos, elfos, anões, orcs, mortos-vivos) divididos em duas
facções principais – a Horda e a Aliança.

Por si só, estas características já são modeladoras da diversificada e complexa


narrativa do universo, sendo complementada pelas histórias dos próprios jogadores
e atualizações recorrentes de expansões e outros jogos externos à franquia original.
A fama de WoW se dá pelo pioneirismo de trazer um RPG (Role-Playing Game, Jogo
de Interpretação de Papéis) para o digital e pelo sucesso no trabalho de criação do
mundo, enredo, balanceamento de batalha, sistemas de criação de personagens, de
magia, de interação e mesmo seu sistema monetário.

Murray (2011) traduz o círculo mágico de Huizinga no universo digital através de


conceitos que qualificam esse universo de criação de narrativas como procedimental,
participativo, espacial e enciclopédico4. Partindo destes termos, pode-se perceber que
os jogos digitais funcionam com os mesmos regulamentos das regras de jogos não-
digitais, os quais, em decorrência do tempo em que viveu, Huizinga não pôde teorizar
sobre, em Homo Ludens (2019). Murray (2011) ressalta a importância da narrativa para
a manutenção da estrutura de um jogo – a forma que uma narrativa deve ser aberta

4
Estas quatro propriedades essenciais do ambiente digital, são o que o qualificam como interativo, explorável e
extenso: "correspondendo, em muito, ao que temos em mente quando dizemos que o ciberespaço é imersivo”
(MURRAY, 2011, p. 78).

145
o suficiente para o jogador se sentir cativado, mas, ainda ser regulada pelo sistema
para que não saiba demais ou de menos, o que ela chama de regulação da excitação.

Desta forma, a autora desenvolve o potencial de criação narrativo do computador a


partir dos MUDs5 (Multi-User Dungeons – Calabouço Multiusuário), predecessores
dos MMORPGs. A narrativa cria uma micropolítica de conservação da crença que
afasta o mundo real do círculo mágico. Juntamente com um universo digital que
habilita a ação do jogador de uma forma extraordinária e fantasiosa, maior que a
realidade, tem-se um espaço de socialização entre pessoas com os mesmos
interesses, que esperam do outro um senso de segurança e cooperação; possibilita o
acolhimento das subjetividades e imaginação do jogador, imersão, segundo Murray
(2011). A imersão e a identificação com um grupo ou personagem abre espaço para
uma afeição, uma estima que parte do jogador para o personagem, ou avatar.

“O avatar é nossa auto-representação na íntegra” é a afirmação que sumariza o Efeito


Proteu, como descrito pelos pesquisadores de comunicação Yee e Bailenson (2007).
A pesquisa aponta para o comportamento humano diante de personagens dentro de
jogos, uma implicação de que, por ser a expressão primária da autoimagem no
ambiente digital, a aparência do personagem dita como este é percebido pelos
jogadores, criando e restringindo a interatividade e expressão no espaço diegético
com reflexos no mundo real.

O Efeito Proteu dita então, como exemplo, que um personagem ‘sombrio’, sendo ele
pre-disponível ou criado pelo jogador, terá um comportamento ‘sombrio’, o que se
alinha com a teoria da ‘autopercepção’, que dita que os jogadores “se conformam
com o comportamento que eles acreditam que é esperado deles pelas outras
pessoas.” (Idem, p. 274, tradução nossa). A pesquisa de Yee e Bailenson se baseia num
princípio de confiança passada através da aparência de um personagem projetado
num espaço tridimensional, controlado por uma pessoa que vê através deste
personagem em primeira pessoa. Essa conexão com um personagem digital ou com
um grupo de jogadores e amigos virtuais é um afeto que mantém a relação entre jogo

5
Diferente do espaço tridimensional comumente associado aos MMORPGs, os MUDs são sites de jogos que se
desenvolvem apenas através de textos ou hiperlinks, não tendo um desenvolvimento gráfico, em parte por apreço
dos jogadores, mas inicialmente pela limitação dos computadores caseiros.

146
e jogador ativa. Os jogadores se preocupam com seus personagens, se deliciam com
as aventuras e narrativas criadas por eles mesmos ou pelo próprio sistema do jogo e
o ato de jogar.

Captura de tela de vídeo atribuído ao jogador Faxmonkey, originalmente postado em sua página
pessoal no site warcraftmovies.com6 em 2005.

A imagem acima é uma captura de tela de 2005, ano do que veio a ser chamado de
Corrupted Blood Incident (Incidente do Sangue Corrompido). Numa DLC7 nova do
jogo, um erro de código permitiu que um debuff8 vazasse de uma área específica do
jogo. O debuff funcionava como um contágio de proximidade entre jogadores e seus
companheiros animais, uma infecção que durava 10 segundos e podia ser contraída
novamente caso o personagem estivesse em proximidade com outros infectados.

Graças ao erro de código do próprio jogo, os jogadores carregaram o debuff para as


grandes cidades centrais, infectando outros jogadores e NPCs9, culminando no

6 FAXMONKEY. Hakkar Destroys Orgrimmar, 2005. Disponível em:


<https://www.warcraftmovies.com/movieview.php?id=7014>
7 Downloadable Content - Conteúdo Disponível para Download, vendido como expansões oficiais para jogos
8 Debuffs são o oposto de buffs. São efeitos de curta duração que modificam os atributos naturais de um
personagem. Enquanto buffs podem aumentar a defesa ou velocidade de movimento, debuffs podem causar dano
constante, lentidão, quebra de defesa, entre outros.
9 NPCs, Non-Playable Characters, são personagens que existem em jogos que são controlados pelo próprio jogo,
sendo Personagens Não-Controláveis. Eles existem para preencher vazios em histórias, servem como mercadores,
por exemplo, e para passar informações e dicas importantes para o desenvolvimento do personagem.

147
desligamento temporário do jogo, até que o problema fosse solucionado semanas
após o primeiro contágio. A “pandemia” durou entre os dias 13 de setembro e 8 de
outubro de 2005, e se espalhou em todos os continentes do jogo, entre todos os
servidores. A imagem escolhida mostra pilhas de cadáveres de jogadores que não
conseguiram fugir do contágio.

Os jogadores ativos na época, através de fóruns oficiais10 e extra oficiais, relataram


algumas mobilizações da comunidade. A infecção pertencia a uma área nova do jogo,
uma expansão, o que, comumente, é designada para ser explorada por jogadores de
nível avançado, com atributos e itens superiores comparados a um jogador novo, sem
experiência. Ao ser levada desse ambiente novo e distante para um centro comercial
de uma grande cidade, a infecção foi transmitida entre jogadores e NPCs – estes
últimos são essenciais para o jogo, portanto não recebem danos e nem morrem, logo,
transmitiam indefinidamente a infecção para qualquer jogador nas proximidades.

Alguns jogadores se dividiram em "forças-tarefa", formando equipes de contenção e


proteção de jogadores menos experientes. Grupos se mobilizaram para fechar as
cidades através de alertas emitidos no chat ou fisicamente impedindo que
personagens passassem pelos portões. Outros, mais experientes e resistentes,
escoltavam os personagens de outros jogadores para fora da cidade, mantendo-os
vivos com buffs, escudos, magias de cura e regeneração.

Pôde-se antecipar também que haveria jogadores contra essa mobilização, incitando
pânico e, propositalmente, infectando o máximo de jogadores possíveis, levando o
debuff para lugares previamente isolados e seguros ou mantendo-o ativo nos
importantes centros de comércio do jogo. A mobilização comunitária, as formas de
organização coletiva e os contra-ataques de World of Warcraft é uma contra-
visualidade. O Incidente foi, inclusive, utilizado como uma forma de se analisar o
comportamento humano durante a pandemia da COVID-1911.

10 Questions: Anyone that experienced the Corrupted blood incident? Disponível em:
<https://us.forums.blizzard.com/en/wow/t/questions-anyone-that-experienced-the-corrupted-blood-
incident/128459/7>. Acesso em: 22 nov. 2022.
11 CLOSEJHAAN E. World of Warcraft experienced a pandemic in 2005. That experience may help coronavirus
researchers. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/video-games/2020/04/09/world-warcraft-
experienced-pandemic-2005-that-experience-may-help-coronavirus-researchers/>

148
Esta é uma das diferenças fundamentais entre a realidade ingame e o mundo real,
segundo Ahmad et al. (2014). Os autores apresentam problemáticas metodológicas
comparativas, ou ainda, preventivas, sobre acontecimentos ingame e seus possíveis
reflexos no mundo real. Abordam primeiro a complexidade do comportamento
humano, questionando a projeção do jogador de sua personalidade em seu
personagem – ou avatar – tanto dentro do jogo quanto no mundo real e vice-versa.

Os autores defendem que existe, em partes, uma permuta de personalidades entre


jogador e personagem. Na conjuntura do Efeito Proteu, o personagem sombrio é
interpretado partindo das individualidades do jogador, que por sua vez, internaliza o
personagem e traz partes daquela personalidade para o mundo real, como uma
encenação teatral, enquanto em contato com o personagem (AHMAD et al., 2014).

O problema de pesquisas que confirmam que os jogos influenciam no


comportamento dos jogadores é que, geralmente, elas não levam em consideração
outros aspectos da vida no mundo real do sujeito. Esse material corrobora para a
visualidade acerca dos jogos e dos jogadores, transmitindo uma imagem de
agressividade descontrolada, um indivíduo antissocial que se isola do mundo
puramente em função de seu vício tecnológico.

Jogos possuem um aspecto de sensibilização, podem causar frustração,


agressividade ou mesmo violência, da mesma forma que podem imergir o jogador
num espaço de afeto, amizade e criatividade. Os jogadores percebem a diferença
entre o mundo real e o espaço diegético por mais tecnológico e verossimilhante que
seja o jogo e as sensações por ele criadas. Mesmo a tecnologia mais avançada, de um
futuro imaginário distante ou mesmo o aparato mais avançado da nossa geração, não
conseguem apagar por completo o véu que divide a realidade e o espaço
computacional (MURRAY, 2011).

Por fim, a visualidade idealizada a desfavor dos jogos é uma forma de controle
amplamente disseminada e aceita, ela é estética. Dentro dos jogos, existe a

149
possibilidade autônoma de organização dos jogadores, um senso de poder político e
comunidade não ideal para o controle invisível apagado pela mídia. Da mesma forma
que, por fins de exemplo, os Estados Unidos da América, convenientemente, cria
rótulos por fim de segregação racial e ideológica, cria também a imagem de um jovem
sem subjetividade, sem aparência, que pratica atos violentos em decorrência de um
objeto tecnológico de entretenimento, e não por ser controlado por um aparato
invisível que incentiva a violência, que entrega a ele o instrumento de assassinato e
o imbui com ideologias segregacionistas e o promove como o futuro ou o herói da
nação.

O jogador antissocial violento é a visualidade que acoberta o jovem terrorista de


países imperialistas. Os conflitos mal controlados (ou normalizados) nos chats de
conversa, que incitam dizeres racistas, misóginos e outros, são nada além do reflexo
do que está por fora do círculo mágico. A violência é, em boa parte dos jogos, uma
opção. Os jogos criam opções. Os jogadores, e não apenas eles, escolhem a violência.

Referências

AHMAD, M. A. et al. On the Problem of Predicting Real World Characteristics from Virtual
Worlds. Predicting Real World Behaviors from Virtual World Data, p. 1–18, 2014.
ANDERSON A. WARBURTON, W. The impact of violent video games: An overview In:
Growing up fast and furious: reviewing the impacts of violent and sexualised media on
children. Annandale, Nsw: Federation Press, p. 56-84, 2012.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o Jogo como Elemento na Cultura (1938). São Paulo:
Perspectiva, 2019.
LARRAIN, L. C. R. A catarse da agressão: uma abordagem experimental. Arquivos Brasileiros
de Psicologia Aplicada, v. 28, n. 1, p. 20–36, 7 mar. 1976.
LEAGUE OF LEGENDS. Desenvolvido por: Riot Games, 2009.
MABILDE, D. C. Massacre de Suzano: análise do discurso da Folha de São Paulo sobre os
atiradores. lume.ufrgs.br, 2021.
MIRZOEFF, N. The Right to Look: A Counterhistory of Visuality. Durham; London Duke
University Press, 2011.
MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: O Futuro da Narrativa no Ciberespaço. São Paulo:
Itaú Cultural/Unesp, 2003.
SILVA, Adriel Kistemacher da. A relação dos jogos eletrônicos e a violência real. 26f. 2020.
Unicesumar - Universidade Cesumar: Maringá, 2020.

150
WORLD OF WARCRAFT. Desenvolvido por: Blizzard Entertainment. 2004.
YEE, N.; BAILENSON, J. The Proteus Effect: The Effect of Transformed Self-Representation
on Behavior. Human Communication Research, v. 33, n. 3, p. 271–290, jul. 2007.

Mini Currículos

João Pedro Teles Pires


Bacharel em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
Mestrando em Arte e Cultura Visual, PPGACV-FAV-UFG, bolsista FAPEG. E-mail:
jp1020@discente.ufg.br

Flávio Gomes de Oliveira


Doutor em Arte e Cultura Visual, Mestre em Arte e Cultura Visual, Especialista em Arte
Contemporânea, Bacharel em Artes Visuais com habilitação em Design Gráfico, todos pela instituição
FAV/UFG e Especialista em Educação e Patrimônio Cultural e Artístico pela UNB . Professor efetivo e
coordenador do Curso de Design Gráfico da FAV/UFG, professor convidado do Programa de Pós
Graduação em Arte e Cultura Visual da FAV. E-mail: flaviogomes@ufg.br

151
INTERSEÇÕES DA ARTE NA CULTURA DAS INTERFACES

INTERSECTIONS OF ART IN THE CULTURE OF INTERFACES

Guilherme Lazzaretti
Universidade de Brasília, Brasil

Resumo

Traçando um breve panorama das circunstâncias e antecedentes que compõem o repertório


artístico na virada do século XXI, investigamos inicialmente as semelhanças estabelecidas
entre as diversas interfaces e dispositivos tecnológicos com a teoria psicológica cognitivista,
buscando elucidar o impacto dessas tecnologias nas formas de produção cultural e novos
comportamentos em relação à elaboração e fruição da arte, manifestas por meio dos
recursos computacionais atuais.

Palavras-chave: Arte computacional, interfaces, cognitivismo.

Abstract

Tracing a brief overview of the circumstances and antecedents that make up the artistic
repertoire at the turn of the 21st century, we initially investigate the similarities established
between the different interfaces and technological devices with the cognitive psychological
theory, seeking to elucidate the impact of these technologies on the forms of cultural
production and new behaviors in relation to the elaboration and fruition of art, manifested
through current computational resources.

Keywords: Computer art, interfaces, cognitivism.

Introdução

As questões desenvolvidas ao longo do texto provêm de um recorte e recomposição


de alguns dos tópicos abordados na pesquisa de doutorado em andamento no
Departamento de Artes Visuais (VIS) da Universidade de Brasília até o presente
momento. Esta investigação recai primordialmente sobre as alterações e efeitos das
tecnologias computacionais nas formas de produção artística e recepção midiática
da informação, considerando as recentes configurações das obras de arte e a

152
disposição intermediada de estímulos que consolidam uma existência dialógica na
contemporaneidade – uma rede de relações facilitadas.

Assumindo o repertório de materiais artísticos que se tornaram disponíveis pelos


sistemas e processos eletrônicos a partir da década de 90, não se pode deixar de
evocar questionamentos relativos à arte computacional e aos elementos decorrentes
implicados na utilização de interfaces para produção e apreciação de obras
artemídia, mas também indagações sobre o efeito da presença das interfaces como
mediadoras da experiência cotidiana, nos diversos domínios digitais e de rede.

A arte computacional se desenvolveu nas últimas décadas através da tentativa de


aproximar os seres vivos das máquinas, pelas quais as interfaces fazem surgir uma
conexão permanente entre o universo sensível e o universo maquínico, estando
fornecidos os materiais e recursos próprios de uma estética digital, na elaboração de
sistemas e processos artísticos. Lúcia Santaella descreve uma genealogia das
máquinas repartida em três etapas sucessivas: a das máquinas musculares; a das
máquinas sensórias; e a das máquinas cerebrais. Seu texto O Homem e as Máquinas
(SANTAELLA, 1997) inicialmente apresenta uma distinção entre artefatos, utensílios,
ferramentas e máquinas. Utensílios e ferramentas seriam artefatos, objetos
construídos com finalidade utilitária, porém as ferramentas teriam a particularidade
de conferir como objetivo a realização de um trabalho ou tarefa, funcionando como
extensão das habilidades manuais humanas. As máquinas seriam um tipo especial de
ferramenta, justamente pela natureza relativamente autônoma pela qual funcionam.

O computador e seus derivados portáteis apresentam essa natureza pré-


determinada, fundada na lógica numérica, na metodologia meticulosa dos processos
matemáticos, com seus diversos arranjos e esquemas. Por outro lado, algoritmos que
operam nestes aparelhos (máquinas) oferecem uma atividade dinâmica tão
apropriada para adaptação na ininterrupta urgência pós-moderna, explicando por
que eles são tão pertinentes para a compreensão das mídias na atualidade. No nível
mais essencial, os algoritmos estão internalizados em nós, seus projetistas e usuários.
Há uma constituição entrelaçada, na qual “não somos apenas nós que os fazemos,
eles também nos condicionam.” Nesta ligação íntima e mútua são ocultadas as
operações e séries de cálculos realizados, manifestando através de representações

153
compreensíveis (símbolos, ícones, botões) os comandos e funções de um sistema: as
mais profundas tecnologias são aquelas que desaparecem.

Em um contexto onde o virtual se torna extensão do real, onde sobretudo as imagens


fazem a mediação da realidade, reconfiguram também a noção de espaço, que antes
era concreto, numa grandeza imaterial povoando a existência de um novo aspecto
do espelhamento sígnico da realidade – o que nos submete inevitavelmente
dependentes dessas mesmas tecnologias para compreender as novas feições dessa
realidade.

Considerando que a evolução da eletrônica culmina nos dispositivos digitais que


permeiam em trânsito inédito todos os âmbitos da atividade humana, os dispositivos
analógicos da era industrial, como o cinema e o rádio, embora tenham exercido um
impacto relevante nas formas de produção e consumo cultural no século XX, não
foram responsáveis pelas transições tão abruptas e decisivas como as que o domínio
da eletrônica e do digital têm assumido no momento atual. Em última análise, os
estados e processos mentais – as operações que desempenhamos sobre o que
pensamos – são transpostos para a computação e o processamento sistemático da
lógica de circuitos e seus caminhos até as interfaces. Não por acaso o início da
pesquisa em inteligência artificial coincide com um aprofundamento dos estudos da
cognição.

Modelo algorítmico da mente

Os estudos de psicologia da cognição nas décadas de 1950/60, subsequentemente


às correntes behavioristas, já elucidavam tópicos pertinentes para o entendimento
da mente estabelecendo uma comparação com o cálculo computacional, naquilo
para que apontam ambos modelos de processamento de informações (artificial e
humano), mecanismos que interpretam dados de entrada e saída com estímulos e
respostas. Recaindo o olhar não apenas sobre os estímulos e as respostas que são
dadas a eles, mas enfatizando os processos internos que servem de mediação na
percepção, obtemos uma analogia oportuna, para não dizer derivação, das teorias
cognitivas em relação à computação. Essas teorias demonstram um modelo essencial
para a compreensão dos processos mentais como decorrentes da computação, de
maneira que esses modelos podem se converter nas formas que esquematizam os
154
programas de computador nas suas variadas atribuições, e numa relação de
retroalimentação, esses programas passam despercebidamente a assumir a forma do
pensamento, através da coerção exercida pelas suas formas de uso e conjunto de
regras inerentes (do algoritmo). Reciprocamente se pergunta em que medida as
operações de computação determinam os limites do nosso pensamento, e como a
máquina influencia a percepção e o comportamento, tendo em vista uma noção
expandida dos dispositivos, como declara Agamben: “qualquer coisa que tenha de
algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres
viventes.”(AGAMBEN, 2009, p. 40)

Um dos pressupostos da psicologia cognitiva enuncia que as explicações sobre o


comportamento se referem não apenas às entradas (inputs) e saídas (outputs), mas
também ao modo como a informação está codificada na mente e como estes
esquemas de representação mental ou linguagem criam modelos de inteligência
baseados na noção de um cérebro processador de informações, um computador
biológico. O tipo de informação que as computações no cérebro operam são de uma
natureza semelhante aos conteúdos traduzidos pelas diversas concepções estéticas
que emergem das tecnologias que simulam formas de informação que o cérebro
processa, armazena e recupera : se a parte da filogenia e da herança genética é
importante no funcionamento do cérebro e de suas articulações somáticas, sua
enorme plasticidade, suas capacidades de adaptação, de memorização e de invenção
contrabalançam amplamente as limitações naturais que a modelaram. A
universalidade dos processos cognitivos e biológicos implicados na criação e
recepção artísticas não impõe obstáculo à diversificação das obras produzidas por
esses processos. “Essa diversificação convida a infinitas e livres trocas de experiência
e de interpretação.” (COUCHOT ,2011,128).

Consentindo que as formas de representação derivem de um processamento de


informações - a codificação e a transformação da informação – apontando para os
mecanismos de processamento de estímulos e não seu conteúdo, surge uma
casualidade circular entre o organismo e o seu meio. O processamento neuroquímico
dos estímulos exteriores manifesta a interface humana em sua relação com a
realidade, nas infinitas operações dentro de limites e variáveis, o organismo

155
traduzido pelo comportamento máquina/cérebro. Revela-se, assim, a origem dos
primeiros computadores, qual seja: facilitar operações mentais, tendo como
referência os modelos cognitivos humanos.

A devolutiva da máquina se torna mais que uma tarefa executada, passa a exprimir
uma correspondência mental, concebendo a cognição como um circuito que
processa informações. O aspecto algoritmo declara a forma lógica dos modelos
cognitivos, encaminhando para uma indistinção dos tipos maquínicos e biológicos de
inteligência. O sistema formal dessa estrutura lógica provoca a semelhança
máquina/mente: ambos operam com uma coleção de elementos arbitrários e as
implícitas regras para a manipulação destes elementos, de modo que a interface
destes dispositivos seduz o usuário em potencial e o liga cada vez mais ao sistema. O
princípio que acabamos de enunciar, assim como a crença na necessidade de uma
comunicação com o computador que fosse intuitiva, metafórica e sensoriomotora,
em vez de abstrata, rigidamente codificada e desprovida de sentido para o usuário,
contribuíram para "humanizar” a máquina. Ou seja, essas interfaces, essas camadas
técnicas suplementares “estornaram os complexos agenciamentos de tecnologias
intelectuais e mídias de comunicação, também chamados de sistemas informáticos,
mais amáveis e mais imbricados ao sistema cognitivo humano.” (LÉVY, 1993, p. 32).

Interfaces como suportes do pensamento e linguagem

Desde que ocorreu um síntese entre o computador e a indústria da comunicação, as


variadas tecnologias computacionais, incluindo a tecnologia de cálculos, as
telecomunicações e a linguagem reciprocamente ao tratamento de som e da imagem
fundiram-se em uma tecnologia interativa hipermediática, consolidadas pela
interfaces cognitvas: a ruptura das noções tradicionais de contato interpessoal está
nos conduzindo para uma transformação cultural, de acordo com Lévy (1999), que
prevê uma “sociedade coletiva” ligada por redes eletrônicas, com os cidadãos
acoplados ativamente na invenção contínua das línguas e dos sinais de uma
comunidade, onde “a integração dos meios, a multimídia, é o catalizador para a
evolução social, uma arquitetura do futuro – ou a linguagem da nova era.”
(BERNARDINO, 2010, 52).

156
As linguagens de software aproveitam da forma pela qual os seres humanos
representam o conhecimento e processam informação, descobrindo as
características gerais da linguagem humana que reflete aspectos da arquitetura da
mente, elaborada pelo processamento das representações mentais definido pela
cognição. Há uma influência mútua do design de sistemas biológico e maquínico, nos
procedimentos para coletar, organizar, classificar, indexicar, recuperar e mediar os
materiais que são suporte aos dados, conhecimentos e significado da experiência.

Os processos computacionais proporcionados pelas dinâmicas inventivas do design


de hardware e software, o aperfeiçoamento das câmeras e sensores, convergem para
a construção de um vocabulário estético inédito e único, mas também para a
redefinição do comportamento humano no âmbito das relações sociais e a percepção
de uma realidade simultaneamente conjugada e individualizante. Ao imergir nos
ambientes virtuais, dos quais o ciberespaço é um local comum que experimentamos
recorrentemente a ultrapassagem das fronteiras geográficas e que, de uma forma
geral, nos é transmitido uma vívida impressão de dependência da tecnologia, quer
por prescindir da substância do espaço físico, quer pela ausência de presenças físicas
para a ativação das diversas relações sociais possíveis.

A nível de composição, as sequências de algoritmos nada mais são que incontáveis


bits armazenados nos dos servidores e “alojamentos invisíveis” que comportam rede
universal de dados. Isso resulta numa estrutura ampla e complexa de sites, endereços
e ligações intricadamente imiscuídas pelas atividades de programação. Quando a
última instância de um complexo diagrama finalmente alcança o usuário, nas
extremidades das interfaces, reinventa-se o corpo, a arquitetura, e a complexa
relação dos dois a que chamamos estar no mundo. As interfaces passam
gradualmente a ocupar esse intervalo entre um agente e uma demanda, de modo
que:

a interface possui sempre pontas livres prontas a se enlaçar, ganchos


próprios para se prender em módulos sensoriais ou cognitivos,
estratos de personalidade, cadeias operatórias, situações. A interface é
um agenciamento indissoluvelmente material, funcional e lógico que
funciona como armadilha, dispositivo de captura. Sou captado pela
tela, a página, ou o fone, sou aspirado para dentro de uma rede de
livros, enganchado a meu computador ou telefone celular. A armadilha
fechou-se, as conexões com meus módulos sensoriais e outros estão

157
estreitas a ponta de fazer-me esquecer o dispositivo material e sentir-
me cativado apenas pelas interfaces que estão na interface: frases,
história, imagem, música.” (LÉVY, 1993, p. 110).

A língua computacional agora está apta para demonstrar como sistemas


informacionais diferentes processam informações de modo análogo, nos quais a
percepção humana passa a ser vista como categorial e denotativa, isso porque um
sistema de linguagem é visto primariamente como um mecanismo formal para a
transferência de informação pela manipulação de símbolos entre humanos,
máquinas e humano/máquina, e por conseguinte, uma tendência a considerar o
sujeito cognitivo como um computador. Como não comparar as duas maiores
faculdade da cognição - perceber e conhecer - com sistemas digitais que arquivam,
recuperam, transformam, transmitem e comunicam informação? E mais, em que
medida a capacidade mental dos humanos pode ser capturada por meio das
máquinas?

Entendendo o organismo como o conjunto dos órgãos do corpo interconectados,


aparecem também os órgãos mentais, onde a linguagem se destaca como habilidade
inerentemente humana (CHOMSKY, 2005), atuando como um órgão que
compreende um subsistema submetido a um organismo que culmina na expressões
de um todo genético no qual a faculdade da linguagem possui um desdobramento
dos aspectos linguísticos empíricos, e para além da forma lógica de um sistema que
se aproxima do processamento algoritmo, os órgãos sensoriais se configuram como
transdutores de dados, na recepção de um sinal externo pelo órgão especializado
dos sentidos, a transformação dessa informação em sinal nervoso e o previsto
transporte do sinal e a modificação que sofre até chegar ao cérebro. Boa parte deste
aparato mental opera através de conversores de sinais físico-químicos em sinais
elétricos que são transmitidos por nossos nervos. Sensores cujo desígnio é perceber
de modo preciso cada tipo distinto de informação, órgãos codificadores e
decodificadores de informação somam uma colaboração nos mecanismos de
sensação, criando uma concepção integrada dos mecanismos de percepção. Os
órgãos formam sistemas que justificam a simbiose humano máquina, em que a
interface é componente fundamental para a realização de um processo dialógico e
inter-relacional, de modo que interfaces mais orgânicas são solicitadas na
composição das práticas artísticas midiáticas.
158
Implicações computacionais na arte

As formas artísticas e as manifestações estéticas que deixam explícitas os recursos


tecnológicos empregados em sua produção - boa parte aperfeiçoados ou surgidos
do terceiro milênio - introduzem mutações nas formas de recepção (agora interação,
como um quase pressuposto), assumindo indiretamente também essa inquietação de
uma realidade expressa em multimeios, através das produções que levam o humano
a repensar a sua própria condição enquanto “sujeito interfaceado” (COUCHOT, 1998).

Prontamente aparecem as intersecções das novas tecnologias, interferindo


diretamente na criação das obras de arte no final do séc. XX: sistemas operam
autonomamente processamentos sobre as representações de mundo, agindo dentro
de um intencionalidade e um poder de referencialidade, os fluxos de informação se
refazem em novas condições de significação, a imagem assume feições diferentes,
desenvolvendo movimentos com poder capaz de redefinir diretamente a realidade
concreta do espaço real, por vezes mediante um dismorfismo entre os componente
representativos de um sistema e os conteúdos dessas representações e processos.
Inaugura-se uma nova postura de permanência e construção dos espaços, nos quais
as novas mídias oferecem material abundante para as gerações de artistas do século
XXI.

Sobra aos artistas que atuam nesses contextos interpretar os algoritmos na


correspondência que estabelecem com o modelo de mente das ciências cognitivas:
um sistema de representações e de manipuladores das representações tem que ser
funcionalmente decomposto e reagrupado nas funções e componentes que estão
caracterizados referencialmente nas propostas poética das obras.

Os artistas que atuam no âmbito computacional exploram situações sensíveis com


as tecnologias, pois percebem que as relações humanas se alteraram no mundo após
uma hegemonia instaurada pelo digital e as comunicações, predominantes na
aproximação que nos aproxima diante do código binário, da inteligência artificial, da
realidade virtual, do ciber espaço, da robótica e de outros inventos que vêm
irrompendo no cenário das utilidades das últimas décadas do século XX.

O problema para o artista que se limita a manipular instrumentos se


não inteligentes, pelo menos oriundos das tecno-ciências, é o de
mudar a destinação originária desses modelos que são concebidos para

159
produzir conhecimento e não arte, de transformar as certezas das
ciências em incertezas da sensibilidade, em gozo estético, e esse
excesso de clareza, em sombra. (COUCHOT, 2011, p. 54).

Compreendendo que as formas de interação artística modificaram completamente o


papel do “apreciador”, em uma tendência que tem como principal motivação o
objetivo de colocar os vários agentes na condição de autores da obra, de maneira que
a manipulação e configuração da multiplicidade de interfaces disponíveis apenas
situam uma das etapa de ativação da obra, que num constante processo de
atualização dos meios passa a ser cada vez mais interativa:

Cada grande inovação em informática abriu a possibilidade de novas


relações entre homens e computadores: códigos de programação cada
vez mais. intuitivos, comunicação em tempo real, redes, micro, novos
princípios de interfaces... É porque dizem respeito aos humanos que
estas viradas na história dos artefatos informáticos nos importam.
(LÉVY, 1993, p. 33)

Remetendo mais uma vez à obra artística computacional, enquanto dispositivo de


comunicação, tanto estético quanto conceitual, realoca-se o “apreciador” no meio
da experiência artística, onde a interface, na qual a máquina age sobre ele e ele sobre
ela, assim, estão em conexão, numa troca dialógica que quer dizer que
alternadamente artista, obra e espectadores, impõem suas regras a cada momento.
O diálogo recíproco, dá origem a uma conexão humano-máquina no intuito de
promover o movimento entre a veemência de um discurso e o empirismo de um
coexistir acessível aos sentidos. Com os recursos midiáticos e sob o modo como
percebemos a materialidade em suas diversas possibilidades, vamos preparados para
participação de um viés integrador, que diminui a cada geração a distância entre
conceitos que definem os ambientes como naturais ou artificiais.

Este tipo de estética presume a atividade colaborativa, baseado na troca de


informações através de padrões (algoritmos) dentro de um sistema que pode ser
composto por inter-relações recíprocas entre máquinas, seres humanos e o meio;
sendo o processo de execução e experiência da realização das ações que importam,
mais do que um resultado previsto e determinado. Com um inventário de
possibilidades à disposição, entendemos estas produções como ambientais, à medida
em que dependem do meio em que estão inseridas; privilegiam a interação,

160
ocorrendo pelas intenções de atuadores se relacionando em trocas mútuas; e
também concedem certa autonomia para o sistema que vincula o elo, pois possui
poder de ação próprio. Seguindo esta lógica, percebe-se que para a “estética do
sistema importa a interdependência entre os agentes, sejam eles humanos ou não,
rejeitando a noção da máquina em oposição ao ser humano: ambos estão lado a lado
interagindo e compondo a obra de arte.” (BERNARDINO, 2010, 23).

Nessa linha de raciocínio podemos depreender como a arte no século XXI propõe
uma humanização radical das tecnologias, colocando uma questão atual: a produção
artística sintonizada com os avanços tecnológicos, revelando os aspectos humanos
das tecnologias.

Um computador concreto é constituído por, uma infinidade de


dispositivos materiais e de camadas de programas que se, recobrem e
interfaceiam umas com as outras. Grande número de inovações
importantes no domínio da informática provêm de outras técnicas:
eletrônica, telecomunicações, laser... ou de outras ciências:
matemática, lógica, psicologia cognitiva, neurobiologia. Cada casca
sucessiva vem do exterior, é heterogênea em relação à rede de
interfaces que recobre, mas acaba por tornar-se porte integrante da
máquina .(LÉVY,1993, 62).

Esse imbricamento tem a arte como ponto de convergência e são pensados os efeitos
das tecnologias na vida contemporânea, determinando os traços da história das
primeiras décadas do terceiro milênio.

O desenvolvimento da tecnologia digital proporcionou aos artistas novos


instrumentos, criando-se, pela capacidade dos suportes eletrônicos e digitais, novos
paradigmas no que diz respeito à própria definição de arte, assim como a sua forma
de produção, obrigando, inclusive, a novos conceitos de espaços expositivos – a
imaterialidade das várias formas que apresentam as obras de arte digitais criou uma
série de dificuldades sem precedentes numa sociedade que sempre baseou suas
maiores conquistas no acúmulo e no colecionismo de objetos:

Os tratamentos físicos dos dados textuais, icônicos ou sonoros tinham


cada qual suas próprias particularidades. Ora, a codificação digital
relega a um segundo plano o tema do material. Ou melhor, os
problemas de composição, de organização, de apresentação, de
dispositivos de acesso tendem a libertar-se de suas aderências

161
singulares aos antigos substratos. Eis por que a noção de interface
pode ser estendida ao domínio da comunicação como um todo e deve
ser pensada hoje em toda sua generalidade. (LÉVY,1993, p. 63)

O desenvolvimento das tecnologias que refletem convergência entre a forma de


existência humana e do computador aparecem numa relação de simbiose:

Para além de seu significado especializado em informática ou química,


a noção de interface remete a operações de tradução, de
estabelecimento de contato entremeios heterogêneos. Lembra ao
mesmo tempo a comunicação (ou o transporte) e os processos
transformadores necessários ao sucesso da transmissão. A interface
mantém juntas as duas dimensões do devir :o movimento e a
metamorfose. É a operadora da passagem. Inclusive, o surgimento de
artistas que exploram esse conceito deram consistência à extensão da
tecnologia como parte do corpo aparelhado, na interação homem-
máquina. (LÉVY, 1993, p. 108)

Nessa revolução proporcionada pela tecnologia, aparece a imagem digital, pela sua
capacidade/facilidade de poder ser manipulada até o pixel, como a forma ideal para
fazer a integração entre a subjetividade da pintura com a objetividade da fotografia.
A célula digital nos permite a intervenção em qualquer ponto da superfície da
imagem tão livremente como o artista pode intervir em qualquer meio plástico para
dar forma a sua obra. Surge então um desejo de não apenas libertar a arte feita
através de aparatos da sua tortuosa e mecânica opressão, mas também libertar o
nosso pensamento por imagens, por excelência, das suas muitas limitações.

Obras de arte produzidas mediante a tecnologia continuaram a expandir a nossa


capacidade de experiência. Vemos na produção de muitos artistas a capacidade de
reinventar os seus espaços de ação através das tecnologias cada vez mais imersivas
para responder a desafios específicos. A fotografia e o cinema representaram apenas
uma primeira etapa de uma série de recortes e reinterpretações da imagem
processada pelas máquinas.

A codificação da imagem digital, via computador, mostra-nos claramente que os


resultados produzidos por estes aparelhos não exibem mais aspectos da realidade
propriamente, mas determinados conceitos que forjamos a respeito do mundo.
Assim podemos desdobrar um conceito de “ecologia cognitiva”, como um campo
unificado, que atravessa a fronteira entre sujeitos e objetos (LÉVY, 1999). Pelo

162
princípio da multiplicidade conectada, um meio tecno-ecológico é reconhecido nas
ressonâncias que perpassam por sistemas biológicos e corpos, mas também por
redes técnicas de armazenamento, transformação, transmissão de informações em
vídeo e algoritmos computacionais. Uma indagação nesse processo questiona como
as “tecnologias da inteligência implicam em redefinir a espacialidade e
temporalidade do pensamento intuitivo.” (BERNARDINO, 2010, 44)

Uma vez referenciadas as intersecções mais explícitas entre a arte computacional,


algoritmos e interfaces, devemos trazer também para o campo da discussão
midiática a figura do artista que trabalha no âmbito digital e a consequente recepção
das obras de arte que emergem deste cenário. Arlindo Machado considera artistas-
digitais aqueles que entendem e interferem na linguagem do meio digital. Segundo
Machado, a informática introduz um dado novo em relação à produção simbólica
anterior: os programas ou softwares que se interpõem entre a máquina (hardware) e
o usuário. O produto final é então resultado das atualizações desses programas;
nesse sentido, pode-se dizer que o que importa não é tanto o produto gerado mas
aquilo que permitiu gerá-lo, no caso, o desenho do algoritmo se torna também um
importante aspecto da totalidade da obra.

Muitos trabalhos recentes não são mais objetos puros e simples, mas campos de
possibilidades, obras em transformação derivadas da utilização das novas
ferramentas digitais. Nesse sentido, podemos afirmar que a criação de softwares
específicos para a manipulação de dados assume grande importância, convertendo
o programador, os especialistas da linguagem algorítmica e os engenheiros de
hardware para interfaces em sujeitos que desempenham um trabalho análogo ao do
artista.

A criação de inúmeras conexões entre coisas/elementos que se vão somando,


remetendo o trabalho artístico para um campo onde se excede o conteúdo específico
da mensagem. O modo como a subjetividade do “observador” se amplia para além
experiência habitual perante a obra de arte, fazendo com que o momento da
produção e o da recepção se convertam num ato criativo. A imagem não pode mais
ficar restrita ao nível da superfície e aparência, mas deve ser estendida para abranger
todo o processo pelo qual a informação é tornada perceptível, incorporando todos

163
mecanismo possíveis que explicitem o percurso circular que vai da obra ao artista e
ao fruidor da experiência estética.

Por vezes, é dada uma ênfase no papel que as novas mídias exerciam sobre a
produção artística contemporânea. Agora, entretanto, a história do desenvolvimento
dessas mídias evidencia um desejo de transcendência em estabelecer interconexões
e transpor distâncias. Esse mesmo desejo tem sido continuado com o avanço das
redes telemáticas que ampliaram as experiências de telepresença, conectividade,
autoria, distribuição, compartilhamento e interatividade1. As operações promovidas
pela programação de máquinas de visão e sonorização, sendo elas câmeras de
fotografar e filmar, assim como os dispositivos de gravação e reprodução sonora, têm
um paralelo com os aspectos fisiológicos da captação perceptiva, uma vez que a
transdução (conversão de formas de energia) inerente desses processos permitem
um outro tipo de produção de imagem. As imagens geradas a partir da interligação
entre cérebros e os computadores nos levam a retomar a análise das imagens
mentais da consciência em relação à atualização das imagens virtuais, instrumentais
e tecnocientíficas, por suas influências no comportamento comunicacional
contemporâneo e em possíveis atualizações da percepção do mundo e de nós
mesmos. Pela motivação em ampliar as possibilidades perceptivas através da arte,
investiga-se os efeitos de compartilhamento de sensações e interconexões
cognitivas, e investimentos em experimentações com as mídias para compreender,
além de suas qualidades técnicas programadas, as limitativas e expansivas, visando
atingir percepções transensoriais, aquelas que não se restringem aos territórios
habituais determinados pelos contextos biológicos ou tecnológicos.

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164
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YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. New York: E.P.Dutton&Co, 1970.

Mini Currículo

Guilherme Lazzaretti

165
Doutorando no programa de Arte e Tecnologia da Universidade de Brasília, sua pesquisa orbita em
torno da intermedialidade e sensorialidade. Concentra sua produção artística nas relações entre som
e imagem, elaborando vídeos, performances e instalações através das interfaces e tecnologias digitais.
E-mail: guizztt@gmail.com

166
LA APROXIMACIÓN ALTERNATIVA A LAS IMÁGENES EN GEORGES DIDI-
HUBERMAN COMO UNA POÉTICA TEÓRICA DE LAS VISUALIDADES
CONTEMPORÁNEAS

GEORGE DIDI-HUBERMAN´S ALTERNATIVE APPROACH TO IMAGES A POETIC


THEORY IN CONTEMPORARY VISUALS

María José Apezteguía


Facultad de Artes Udelar Uruguay

Resumen

En este artículo me propongo avanzar en lo que denomino una aproximación alternativa a


las imágenes en el marco de los estudios realizados por Georges Didi-Huberman. En este
caso en particular me interesa recorrer su producción teórica, a partir de las propuestas de
dos autores excéntricos de la academia en su propio tiempo: Aby Warburg y Walter
Benjamin, para observar su propia conceptualización en relación a lo que él denomina
IMAGEN DIALECTICA. Me centro para esto en dos de sus libros: Ante la imagen (1990) y Ante
el tiempo (2000) ya que me interesa la particular manera de trabajar que tiene el propio Didi-
Huberman con dos conceptos que él entiende como paradojales en la obra teórica de los
autores ya mencionados: el síntoma y el anacronismo sumados al uso del montaje como
técnica que habilita la lectura de una temporalidad de doble faz en las imágenes y que es lo
que sustenta su propia propuesta. La obra de Didi-Huberman es amplia y profusa, y en
ocasiones, heterogénea; sin embargo, este teórico francés nos propone una deriva poética
en la que, a veces, el mismo objeto de estudio se transforma en conceptualizaciones potentes
que nos permiten comprender la generación del pensamiento desde los márgenes lo que
dota a la producción de conocimiento de una especificidad que solo puede entenderse si
viene gestada desde el propio proceso de la creación artística.

Palabras clave: Arte - Historia - Imagen dialéctica – Anacronismos

Abstract

In this article, my main goal is going onwards to what I named an alternative approach to
images in Georges Didi-Huberman’s theoretical proccess. Here, I am interested in his works
about two authors who were outsiders on their own time in the academic research and how
both helped him to construct his own theory about Dialectic Images: Aby Warburg and
Walter Benjamin. I am focused to learn how Georges Didi-Huberman in two of his books:

167
Ante la imagen (1990) y Ante el tiempo (2000) works through the concept of montage and
other concepts such as symptom and anachronism as well, in order to explain how to read in
an image what he calls “double sided temporality”. Last, but not least, I would say that this
author works are wide and vast and occasionally heterogenous, however, he proposes us a
poetic approach in which his own studied objects allows us to understand how art can help
us to conceive a new kind of knowledge, more fair and engage with contemporaries issues
as visuals processes.

Keywords: Art - History - Dialectic Image - Anachronism

Me interesa abordar, en este trabajo, la posibilidad que brinda un teórico tan prolífico
como novedoso en relación a cómo pensar las imágenes de una manera alternativa.
Me refiero a Georges Didi-Huberman, quien, a lo largo de sus innumerables
reflexiones, escritos, presentaciones, etc ha logrado problematizar, no solo la
disciplina de la Historia del Arte, sino también discutir con los abordajes
estructuralistas y semióticos de entender la visualidad contemporánea.

Es bien sabido que este estudioso de la imagen, por nombrarlo de alguna manera, ha
generado un corpus tan amplio como desconcertante a lo largo de su carrera y
considero que, en este desconcierto en relación a su aproximación, mejor expresado,
a su manera de leer las imágenes es donde se centra mi propio interés.

La teoría de Didi-Huberman me interesó a partir del anudamiento que hace del


tiempo y el espacio en relación a lo que él denomina: imágenes dialécticas. El centro
de mi atención fue el modo que tiene este autor de ver una dinámica, por fuera de
los consabidos análisis formales del tipo estructural o semiótico, a los que estaba
acostumbrada. Poder establecer, a partir de su lectura, que en la fijación de una
imagen existía la posibilidad de leer una “energía” que proponía un dinamismo
paradójico me pareció a la vez osado y trascendente. Encontrar en lo que Georges
Didi-Huberman denomina “una dialéctica de la imagen” la posibilidad de potenciar
las lecturas más allá de las consabidas hermenéuticas tradicionales me pareció
provocador aunque dispuesta a aceptar el desafío.

Ahora bien, vayamos por parte: la tarea principal de Didi-Huberman, según lo


entiendo, consiste en abrir una constelación de pensamientos teóricos no siempre
168
bienvenidos dentro de las rigideces académicas. La mayoría conoce que uno de sus
trabajos más exhaustivos y enormemente citado es el que analiza la “supervivencia
warburgiana”, me refiero, por supuesto, a La imagen superviviente (DIDI-
HUBERMAN, 2009).

En este volumen Didi-Huberman, a partir del corpus de la monumental tarea de Aby


Warburg en la construcción de los paneles de su Atlas Mnemosyne, encara su
aproximación -no menos monumental- que consiste en recorrer la
conceptualización de la supervivencia a la que se refiere Warburg y la que había
ocupado gran parte de su indagación no solo teórica sino además vital.

Pero no quiero detenerme en este volumen, sino centrarme en dos trabajos que
fueron en definitiva los que me abrieron la posibilidad de encontrar una hermeneusis
contracorriente.

Hablo de Ante la imagen (1990) y Ante el tiempo (2000) libros que, entre sí, tienen
una década de aparición de distancia.

El verbo que elegí para mencionar estos trabajos fue “abrir” y esta elección no es
inocente. Justamente Didi-Huberman en Ante la imagen, comienza el capítulo 4: La
imagen como desgarro y la muerte del dios encarnado, así:

¿Abrir? Por lo tanto romper algo. Al menos, hacer una incisión, rasgar.
¿De qué se trata exactamente? De debatirse en las redes que todo
conocimiento impone y de intentar devolver al gesto mínimo de este
debate -gesto en su fondo doloroso, sin fin- una especie de valor
intempestivo o, mejor, incisivo. Que al menos la simple pregunta haya
tomado, en algún momento, este valor incisivo y crítico: ése sería el
primer deseo. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 145)

Elegí esta cita, también, no por casualidad sino porque este sentido de apertura fue
lo que me provocó la invitación a pensar por fuera “de las redes que todo
conocimiento impone” para, de este modo, entender la imagen como aquello que
está atrapado en una red de relaciones de todo tipo: filosóficas, históricas, formales
y hasta religiosas e intentar saltar este cerco, lo que me provoca un deseo de
conocimiento desconcertante y paradojal como ya mencioné, puesto que me invita
a despojarme de todos los enredos epistemológicos que están enmarañados en el
plano de la imagen para empezar a entender desde otro lugar.

169
Generar conocimiento en definitiva, sin embargo, es -o al menos aspiro- otro tipo de
conocimiento que no puedo nombrar más que como algo alternativo. Entendiendo
esta palabra como la definen los sinónimos que encontré: opción y posibilidad.

II

Descentrarme de lo que la historia del arte ha construido a lo largo de los siglos -tal
es la propuesta, en definitiva, de este estudioso- para empezar a pensar la imagen,
señala el autor en el otro libro editado diez años después, como productora de “una
temporalidad de doble faz” (Didi-Huberman 143: 2011) que atribuye a Warburg y que
posteriormente Benjamin retomara, ese fue mi desafío como alguien que se volvió
adulte en un momento donde la imagen eclosionó a través de la rápida propagación
de la televisión por cable y que algunos la denominan como generación MTV.

Las imágenes forman parte de mi educación sentimental, comencé mis estudios y


estudié en el momento en que el videoclip se instalaba como una bandera
generacional y comenzaba una verdadera revolución democratizadora de la imagen
con las primeras filmadoras portátiles. Nosotros empezamos a ser imagen para
nosotros mismos, de ahí mi interés personal en las imágenes.

Sin embargo, y a pesar de esta pequeña digresión autobiográfica, es interesante este


aspecto, porque al decir de Didi-Huberman la temporalidad de doble faz es lo que
inhibiría a la imagen de quedar reducida a lo documental, porque:

Esta temporalidad fue dada por Warburg, luego por Benjamin -cada uno con su
propio vocabulario- como la condición mínima para no reducir la imagen a un simple
documento de historia y, simétricamente, para no idealizar la obra de arte en un puro
momento de lo absoluto. Pero las consecuencias eran graves: esa temporalidad de
doble faz debía ser reconocida solo como productora de una historicidad anacrónica
y de una significación sintomática. Paradojas constitutivas de los “umbrales teóricos”
de las radicales novedades introducidas en las disciplinas históricas por Warburg y
más tarde por Benjamin. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 143-144)

Aquí, es donde aparece entonces, el montaje como uno de los mecanismos


fundamentales en lo que según Didi-Huberman sería el aporte tanto de Warburg
como Benjamin, basado en dos paradojas constitutivas de sus “umbrales teóricos”. A

170
saber, el síntoma -Didi-Huberman ubica aquí la técnica del montaje- y el
anacronismo que sería lo que Benjamin, luego de que Warburg ya hubiera indagado
en las supervivencias como ubicadas en el “inconsciente del tiempo”, llama “historia
a contrapelo”. Y esta historia sería, justamente, aquella que aborda la Historia con
mayúsculas como historia de acontecimientos sí, seguro, pero también como la de
las extemporaneidades. Puesto que de acuerdo a la interpretación que hace el propio
Didi-Huberman “es necesario deducir que la historia del arte siempre está por
recomenzar”1 (Didi-Huberman 144: 2011) y, en este sentido, atribuye a Warburg el
descubrimiento de que con cada síntoma nuevo volvemos al origen -no en el sentido
esencialista, por supuesto- y así es posible leer la supervivencia como un espacio en
el que aparece “el largo pasado” como síntoma y reordena entonces el presente
(siempre según Didi-Huberman como un presente dialéctico) que modifica, a su vez,
todo el tiempo anterior y genera ese destello anacrónico que en Benjamin sería
posible a través de una entrada en la historia a contrapelo. O lo que este autor señala
en su famoso pasaje donde refiere al Ángel de la Historia en su IX Tesis sobre la
filosofía de la historia donde escribe:

Hay un cuadro de Klee que se llama Angelus Novus. En él se muestra


un ángel que parece a punto de alejarse de algo que le tiene paralizado.
Sus ojos miran fijamente, tiene la boca abierta y las alas extendidas; así
es como uno se imagina al Ángel de la Historia. Su rostro está vuelto
hacia el pasado. Donde nosotros percibimos una cadena de
acontecimientos, él ve una catástrofe única que amontona ruina sobre
ruina y la arroja a sus pies (…) desde el Paraíso sopla un huracán que se
enreda en sus alas (…) Este huracán le empuja irremediablemente hacia
el futuro, al cual da la espalda mientras los escombros se elevan ante él
hasta el cielo. Ese huracán es lo que nosotros llamamos progreso.
(BENJAMIN, 1940)

Resaltado en itálicas del propio autor


1

171
Figura 1

III

Decía con anterioridad que es a través del montaje que Didi-Huberman ubica en la
irrupción del síntoma que sería, si seguimos la cita anterior de Benjamin, esa
“catástrofe única que amontona ruina sobre ruina y la arroja a sus pies” -sumado a la
de los razonamientos de Warburg en relación a la supervivencia como anacronismo-
los mecanismos que dan cuenta de lo que él ha dado en llamar “imagen dialéctica” y
que a mí se me ocurre como ese nudo presente en toda imagen en el que se
amalgaman en el instante del visionado el pasado y el presente. Ahí es donde
encuentro esa energía que permanecía en latencia hasta que fue nuevamente
actualizada con la mirada del espectador. El caso, mejor dicho, la interpretación que
hace Benjamin del Ángelus Novus de Paul Klee es un claro ejemplo de lo anterior. La
dialéctica de esta imagen está precisamente en ese instante detenido en el que
pasado y presente se mantienen en equilibrio pero, a la vez, en tensión y el resultado
es el estallido de una temporalidad deshecha en los escombros que vuelan hasta el
cielo mientras el huracán lo arrastra hacia el futuro impidiéndole cerrar sus alas.

La imagen dialéctica, entonces, es la que produce una apertura que confunde los
tiempos, mezcla las temporalidades. Allí donde lo contemporáneo expresa su
172
presente este se vuelve dialéctico y, entonces, lo que surge es el anacronismo, ese
síntoma, la extemporaneidad de la historia siguiendo a Didi-Huberman en su
interpretación de Walter Benjamin y la supervivencia de Aby Warburg que se activa
y modifica toda la serie hacia atrás. Es por esto que al comienzo de este artículo hablé
de que una de las propuestas más radicales del pensamiento de Didi-Huberman es
que entiende la imagen como algo dinámico. Como algo que contiene una energía
que es imposible cercar ni siquiera en la fijeza de su revelado, si es fotográfica o en
la fijeza de su secado si es una obra pictórica.

El propio autor se expresaba en este sentido en el Catálogo de una muestra exhibida


en Barcelona, y que se repitió en Ciudad de México y en Buenos Aires, Argentina, en
la que tuvo la responsabilidad de llevar adelante la curaduría, donde escribió:

Allí donde reina la oscuridad sin límite ya no hay nada que esperar. A
eso se le llama sumisión a la oscuridad (o, si lo prefieren, obediencia al
oscurantismo). A eso se le llama pulsión de muerte: la muerte del deseo.
Walter Benjamin, en un texto de 1933 titulado Experiencia y pobreza,
escribía que: "un poco por doquier, las mejores mentes hace mucho
que han empezado a formarse una idea de estas cuestiones [las
cuestiones acuciantes relacionadas con la situación política del
momento]. Se caracterizan por una falta absoluta de ilusiones sobre su
época y, al mismo tiempo, por una adhesión sin reservas a esta" Este
diagnóstico no ha perdido su vigencia en absoluto. Todo el mundo, o
casi, sabe que pocas ilusiones puede hacerse uno en la oscuridad, salvo
que le proyecten millones de títeres, como en las paredes de una
caverna platónica forrada de pantallas de plasma. Una cosa es no
hacerse ilusiones en la oscuridad o ante los títeres del espectáculo
impuesto, y otra muy distinta doblegarse a este en la inercia mortífera
de la sumisión, tanto si es melancólica como cínica o nihilista. (DIDI-
HUBERMAN, 2016)

Como se lee en este texto curatorial, la manera en la que Didi-Huberman opera como
teórico, pero a la vez también como historiador de arte, se manifiesta con mucha
precisión y, en este caso en particular, en su rol de encargado de realizar la curaduría
de una exhibición tan particular como esta, en la que se exhiben imágenes de las
insurrecciones a lo largo de todos los tiempos.

Si convoco esta exhibición en particular es porque aquí leo el gesto que este autor
impone a su propio andamiaje teórico: una manera a contrapelo de leer las imágenes

173
que implican una sublevación respecto del modo en que las imágenes han sido leídas,
no solo a lo largo del tiempo, sino además en los anales de las historias del arte.

El gesto, además, es algo que a él le resulta caro ya que tiene desarrollado este aspecto
en un pequeño libro que se llama ¡Qué emoción! ¿Qué emoción? Donde recorre a la
manera de Warburg el modo en la que las emociones domestican los gestos y cómo
estos gestos pueden encontrarse seriados a lo largo de la historia de lo social.

El oscurantismo contemporáneo, en sus palabras, está en los campos de refugiados


de la Europa de este siglo XXI donde “La gente, desposeída de todo, espera en el
barro durante horas por una simple taza de té caliente o por un medicamento.”
(Georges Didi-Huberman: 2016) Y aquí entonces es donde su posición teórica
respecto del estudio de las imágenes nos propone la posibilidad de entender toda la
fuerza de la sublevación que nos mete de lleno en el campo de las transformaciones
sociales impidiéndonos abandonarnos: “en la inercia mortífera de la sumisión, tanto
si es melancólica como cínica o nihilista” de la que hablaba en la cita antes
mencionada.

Figura 2

174
Justamente, a propósito de lo que implica sublevarse, explicaba en una entrevista del
Canal Encuentro (YouTube) que: “No hay sublevación sin afecto. Cuando uno se
subleva lo hace con toda su alma y su cuerpo. No hay sublevaciones a medias.” (Didi-
Huberman:2018) Precisamente, considero entonces, que su manera de abordar los
tópicos teóricos relacionados con las imágenes y el modo de entenderlas consiste en
desentramar en el sentido de hacer cognoscible la potencia encerrada en el gesto de
estas fotografías que no pueden leerse como congeladas, sino, todo lo contrario,
deben ser abordadas de la misma manera en la que Walter Benjamin leía el Ángelus
Novus de Paul Klee, es decir, en tensión dialéctica.

Sublevaciones, como ya mencioné, fue una exhibición que rodó por varios lugares y,
en cada sitio, hubo un espacio para que la muestra contara con fotografías de las
insurrecciones locales, así fue, por ejemplo, cómo en la de Argentina hubo fotografías
de las Madres de Plaza de Mayo o del llamado Siluetazo, entre otras. Hago notar el
detalle porque, en este caso, en su rol curatorial, Didi-Huberman insiste en la
apertura. La manera en la que su propuesta se elabora cuenta con esta posibilidad de
sumar, agregar para expandir, en los recorridos, las resonancias dialécticas de las
lecturas de las fotografías locales en su relación con las fotografías mundiales.

Este es un gesto claro de cómo su procedimiento de “montaje” teórico puede


amalgamar la praxis para ensanchar los procedimientos del síntoma benjaminiano y
el anacronismo de Warburg para hacerlos dialogar directamente con el público de
una exhibición. Es como si, a partir de su propia praxis expositiva, generara una
práctica teórica -nótese la contradicción- ad Infinitum.

IV

Finalmente, y no por vanidad, me gustaría volver a mi propia biografía. Como ya dije,


haber llegado a la adultez en medio de la eclosión de imágenes en la que consistió la
aparición de las primeras videograbadoras portátiles, pertenezco una generación
generación que se volvió imagen para sí misma, lo que no es para menor y menos en
los tiempos que corren, donde las visualidades impregnan hasta los más mínimos
gestos cotidianos como el de sentarse en un bar a tomar un café y hacer una selfie
para IG.

175
Conclusiones

¿Qué tendrá esto que ver con todo lo anterior? No lo sé, tal vez muy poco o quizá
también una enormidad. Vivimos al decir de Didi-Huberman en tiempos de
oscurantismos, encerrados “en las paredes de una caverna platónica forrada de
pantallas de plasma” pero todavía contamos con la posibilidad de sublevarnos, en
este caso -el mío-, compelida por las teorizaciones de un estudioso que propone una
alternativa potente y liberadora de leer las imágenes a lo largo de la historia del arte,
no solo como objeto de estudio sino además como generadoras de conocimiento.

Un conocimiento que dotado de la preciosidad poética que solo el arte y los artistas
pueden generar, con toda la ganancia académica que eso implica y con toda la
potencia de resistencia que tiene poder acceder al conocimiento de una manera
alternativa.

Referencias

Didi-Huberman, Georges. Ante la imagen: Pregunta formulada a los fines de la historia del
arte. Traducción de Francoise Mailler. Murcia: CENDEAC, 2010.
____________ Ante el tiempo: Historia del Arte y Anacronismo de las imágenes.
Traducción de Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2011.
____________ La imagen superviviente: historia del arte en el tiempo de los
fantasmas. Traducción de Juan Calatrava Escobar. Madrid: Adaba editores, 2009.
____________ Entrevista con Gabriela Siracusano. Canal Encuentro, Programa
Diálogos Transatlánticos II, Buenos Aires, 30 de julio de 2018. Disponible en:
https://youtu.be/EyJDSj-ekuU.
DIDI-HUBERMAN, Georges et al. Publicación Muestra Sublevaciones MUAC-UNAM.
Traducción publicada originalmente en Georges Didi-Huberman, Insurrecciones. Catálogo
de la exposición en el Museo Nacional d’Art de Catalunya y el Jeu de Paune. Disponible en:
https://muac.unam.mx/exposicion/sublevaciones?lang=es

Mini Currículo

María José Apezteguía


Master of Arts. College of Liberal Arts. University of Oregon. USA. Se desempeña como Profesora en
el Seminario de las Estéticas 3 de la Facultad de Artes de la Universidad de la República en Uruguay y
es responsable del segundo nivel en quinto año de las licenciaturas que allí se dictan. Asimismo dicta

176
cursos optativos en la Facultad de Artes en los que desarrolla su interés con las narrativas visuales
contemporáneas y el modo en el que estas son constitutivas de nuevas subjetividades así como su
vinculación con la sociedad. También tiene trabajos sobre la relación entre el arte, la política y lo social
centrándose en aspectos que hacen a la construcción de la memoria de pasados traumáticos en el
cono sur. E-mail: mapezteguia@enba.edu.uy

177
POSTURAS DISSENSUAIS NO FOTOJORNALISMO: IMAGENS SOBREVIVENTES
EM CENAS URBANAS DE ABUSO DE DROGAS

DISSENSELY POSTURES IN PHOTOJOURNALISM: SURVIVAL IMAGES IN URBAN


SCENES OF DRUG ABUSE

Júlio César Rigoni Filho


Kati Caetano
Universidade Tuiuti do Paraná – Brasil

Resumo

O artigo objetiva analisar as formas dissensuais em posturas fotojornalísticas de cenários


urbanos de uso de drogas na cidade de São Paulo. Em tais imagens, analisam-se a partir das
dimensões estético-políticas, as tensões entre expor situações de vida precárias e preservar
a dignidade do ser humano a despeito de sua vulnerabilidade social. O objeto empírico são
algumas fotos captadas pelo jornalista Daniel Arroyo, publicadas no portal A Ponte, no
período de 2017 a 2022. De maneira teórica, a constelação de autores que tensionam as
relações entre a estética e política, parte de Jacques Rancière (1996, 2009, 2010, 2018, 2021),
Laura Quintana (2020) e de Georges Didi-Huberman (2018, 2015, 2020). Ainda, empregam-se
aspectos da semiótica discursiva sobre a enunciação e a corporeidade, partindo das
abordagens de Jacques Fontanille (2011) sobre o corpo enquanto capacidade testemunhal.
Como considerações, as análises das imagens jornalísticas apresentam os corpos e as
condutas dos usuários de drogas de maneira diferencial às homologações midiáticas. O
jornalista representa com dignidade e sem recorrer a estereótipos o contexto de
precariedade e vulnerabilidade impostos no cotidiano dos sujeitos.

Palavras-chave: Estética e política; Cenários urbanos de uso de drogas; Dano social;


Fotojornalismo; Imagens.

Abstract

The article aims to analyze the dissenting forms in photojournalistic postures of urban
scenarios of drug use in the city of São Paulo. In such images, the tensions between exposing
precarious life situations and preserving the dignity of human beings despite their social
vulnerability are analyzed from the aesthetic-political dimensions. The empirical object are
some photos captured by journalist Daniel Arroyo, published on the portal A Ponte, from

178
2017 to 2022. Theoretically, the constellation of authors who stress the relationship between
aesthetics and politics, starts with Jacques Rancière (1996, 2009, 2010, 2018, 2021), Laura
Quintana (2020) and by Georges Didi-Huberman (2018, 2015, 2020). Also, aspects of
discursive semiotics are used on enunciation and corporeality, based on Jacques Fontanille's
(2011) approaches to the body as a witness capacity. As considerations, the analyzes of
journalistic images present the bodies and behavior of drug users in a different way from the
media approvals. The journalist represents with dignity and without resorting to stereotypes
the context of precariousness and vulnerability imposed on the subjects' daily lives.

Keywords: Aesthetics and politics; Drug use urban scenarios; Images; Photojournalism;
Social harm; Images.

Apontamentos iniciais
Este texto tem o propósito de abordar formas dissensuais em posturas
fotojornalísticas da Cracolândia na cidade de São Paulo. Pretende-se explorar em
imagens jornalísticas as tensões entre expor situações de vida precárias e preservar
a dignidade do ser humano a despeito de sua vulnerabilidade social.

Toma-se como objeto empírico algumas fotos captadas pelo jornalista Daniel Arroyo,
o qual está diante de um outro que historicamente sofre e que requer olhares
sensíveis sem a confabulação de estereótipos e de uma vitimização que determine os
sujeitos, armazenando-os em rígidas estruturas de tempo e espaço por meio das
imagens.

Analisam-se as formas estético-políticas geradas nesse cenário de sobrevivência a


despeito das adversidades, com vistas a postura tomada por uma mídia
independente, o portal A Ponte, do qual o fotógrafo faz parte. Nessa expedição pelo
jogo de olhares do profissional aplicam-se as conjunções da estética e da política,
pois há uma partilha do sensível que define formas de pertencimento e de comum,
como apontam Rancière (1996, 2009) e Laura Quintana (2020). Em uma lógica de
invisibilidades, essa partilha pende a uma determinação consensual que agencia e
rotula os sujeitos incapazes e anormais, como os usuários de drogas. Ao oposto,
pretende-se apresentar as fotos de Arroyo como exemplo de ações dissensuais,
capazes de perturbar a ordem do tecido social, além de questionar as distribuições e
ordens naturalizadas. Desse modo, a estética é compreendida como dimensão
originária da política, pois a partilha se ampara em valores e práticas sensíveis, ainda
que justificados por princípios de suposta racionalidade. É, porém, igualmente de
179
uma lógica sensível que o pensamento consensual pode ser desmontado, por meio
de ações que expressam olhares, gestos e práticas capazes de perceber a dignidade
de outrem a despeito de, e sobretudo devido a, sua condição de vida.

Inicialmente, ampliam-se essas constatações teóricas sobre as relações de estética e


política, sob a ótica de Jacques Rancière (1996, 2009, 2010, 2018, 2021), Laura
Quintana (2020) e de Georges Didi-Huberman (2018, 2015, 2020). Além disso, alguns
componentes da semiótica discursiva, como enunciação e a corporeidade, são
valiosos a discussão proposta. Nessa esteira teórica, o texto baseia-se no trabalho de
Jacques Fontanille (2011) sobre o corpo como superfície de inscrições e de agitações
internas, capazes de apoiar e conceituar a dimensão testemunhal dos corpos. Em
seguida, apresentam-se as imagens, analisando-as sob a perspectiva de tais teóricos.

Aspectos teóricos e metodológicos


Entende-se como partilha do sensível a sistematização, repartição, dos tempos,
espaços e atividades fundamentada a partir de uma gama "de evidências sensíveis
que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele
definem lugares e partes respectivas" (RANCIÈRE, 2015, p.15). Ainda, a partilha do
sensível constitui as maneiras participativas pelas quais os sujeitos tomam parte, "em
função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce"
(RANCIÈRE, 2015 p.16). Com isso, Rancière (2005, p.16) alinha-se ao pensamento
kantiano, compreendendo como estética o "recorte dos tempos e dos espaços, do
visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o
que está em jogo na política como forma de experiência".

Ao considerar os usuários de drogas como um amontoado de pessoas, algo


recorrente no jornalismo, ignora-se que esse povo não é uma mera reunião de
indivíduos, uma densa massa de sujeitos sem qualquer qualidade, virtude ou riqueza;
em contrapartida, trata-se de uma comunidade formada pelo "dano que causa dano
à comunidade e a institui como 'comunidade' do justo e do injusto". (RANCIÈRE, 1996,
p.24). O dano referenciado pelo filósofo não consiste na solicitação de reparação, mas
a partir dele institui-se "um universal singular, um universal polêmico, vinculando a
apresentação da igualdade, como parte dos sem-parte, ao conflito das partes sociais"
(RANCIÈRE, 1996, p.51). Logo, o dano não é apenas o sofrimento, mas a ausência de
reação frente ao sofrimento, ou seja, a predominância da injustiça (QUINTANA,
2020).

180
Embora a sociedade esteja mergulhada em agenciamentos e configurações que
ordenam o sensível, o desacordo diante de situações de injustiça decorre de
intervalos formados como práticas emancipatórias, pelas quais deixa-se
transparecer arranjos destoantes dos ordenamentos impostos aos corpos
(QUINTANA, 2020). Decisões tomadas de ‘baixo para cima’ e que permitam aos sem-
parte (RANCIÈRE, 1996) assumirem a direção de suas vidas, em intervenções
contrárias a lógica dominante.

Nessa linha de raciocínio, interessa-nos ainda o em aproximar o percurso formado


por Didi-Huberman (2017) em Cascas com fotos captadas pelo fotojornalista Daniel
Arroyo em um centro urbano arruinado, na 'cracolândia' de São Paulo.

A partir de três cascas da árvore bétula retiradas da visita aos campos de Auschwitz-
Birkenau, Didi-Huberman (2017) não só narra os espaços de bárbarie como reflete
sobre o passado e o presente que repousam sob seu olhar. O choque diante de tais
espaços conduz o filósofo a uma digressão rumo às imagens dialéticas. Sua proposta,
desse modo, é expor que "a imagem é um ponto exemplar da história, do pensamento,
do conhecimento, até mesmo da ação política. A imagem é o lugar onde tudo é
possível, tanto o pior quanto o melhor, e que devemos atravessar num momento ou
noutro" (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.96-97).

Já Arroyo publica suas imagens no portal A Ponte Jornalismo, um veículo de


comunicação sem fins lucrativos criado para conferir visibilidade a sujeitos e temas
marginalizados na mídia hegemônica. O foco editorial do jornal são assuntos de
segurança pública, principalmente na repressão estatal conduzida aos sujeitos mais
vulneráveis da sociedade. Desse modo, o próprio veículo que confere suporte às
imagens produzidas pelo jornalista insere-se em um contexto dissensual, o qual
tenta ampliar as práticas de emancipação, as brechas que rasgam o tecido social na
partilha do sensível (QUINTANA, 2020).

No aspecto interpretativo das imagens, Didi-Huberman (2017, p.106) nos lembra que
"a maneira como você olha, descreve e compreende uma imagem é, no fim das
contas, um gesto político". Embora o termo político empregado pelo autor não esteja
em consonância com a noção de política defendida por Rancière (1996), compreender
a imagem de forma dissensual, contra-hegemônica, desestabilizando os consensos e
a distribuição vertical dos corpos, mesmo que esse regime de normalidade insista em
existir, apesar de tudo (DIDI-HUBERMAN, 2015).

181
Rancière (2018, p.14) postula que a objetiva não deseja o presente, “é desprovida de
memória e de interesse” e não possui ressentimento. Ela registra apenas o que lhe é
solicitado. A objetiva é um agente duplo, que serve a dois mandatários: quem está
atrás dela e a comanda ativamente e quem está na frente dela e “controla
passivamente a passividade do aparelho” (RANCIÈRE, 2018, p.15).

Considera-se que o fotógrafo é, em linhas gerais, o sujeito da enunciação por


disseminar os temas e as figuras no discurso (BARROS, 2002). É ele quem “opera, ao
realizar a produção discursiva, no espaço do aqui e no tempo do agora” (FIORIN,
2000, p.40). Fontanille (2016) expande esse horizonte ao considerar que o texto é
uma enunciação corporizada, sendo o corpo próprio um actante do sentido e emissor
de uma enunciação. Com isso o autor objetiva compreender, de um lado, a própria
fonte corporal do discurso, como essa fonte imprime o texto, e de outro, como, ao
imprimi-lo, o corpo está presente no texto como vestígio tensivo esquemático.

Tematizar e figurativizar um texto, para Fiorin (2000), são formas de concretizar o


sentido. No caso dos temas há uma performance e sua presença é marcada pela
organização narrativa. Já a figurativização resume-se, para Fontanille (2019), em
atribuir aos percursos temáticos uma roupagem sensorial. A partir disso, com fixação
dos temas e figuras, origina-se à simbolização. Nesse aspecto, o símbolo pode ser
definido como um elemento concreto dotado de um conteúdo abstrato, em que a
interpretação temática de determinada figura é fixa. No caso desta pesquisa, as
representações dominantes instauram temas de dor, sofrimento, degradação e
miséria na figura do usuário de drogas. Todavia, pretende-se extrapolar essas
maneiras de tematizar e figurativizar o corpo, o que será exposto nas análises das
imagens de Daniel Arroyo.

Análises das imagens


Destaca-se que nas imagens a serem analisadas há poucos casos de legendas, embora
o jornal ofereça breves matérias que explicitam, muitas vezes de forma poética, a
situação exposta no cenário da cracolândia. Portanto, convém integrar à análise
alguns desses textos jornalísticos.

Na primeira imagem, trata-se mulher que se posiciona diante da escavadeira que


acabou de destruir um muro. Em meio aos restos de tijolo e cimento a senhora em
pé estende a mão para a máquina, provavelmente com o objetivo de parar a
destruição, algo ineficaz, frente o desnível dos elementos que se opõem na imagem.

182
Nessa enunciação, manifestada em terceira pessoa, a mulher pretende comunicar-
se com uma máquina, sem rosto evidente, como uma entidade que simboliza a força
estatal em expulsar tais indivíduos da região central da cidade. A desproporção
expressa figurativamente entre a miúdes da senhora e o aparato mecânico que
executa as ordens do Estado e torna-se um dispositivo de arruinação (STOLER, 2013).
Pode-se relacionar tal captura de Daniel Arroyo com a foto do Homem dos Tanques
de Jeff Widener. Em tal imagem um estudante chinês impediu, solitariamente, o
avanço de tanques de guerra que passavam na região da Praça da Paz Celestial.
Figura 1 - Ação policial na Luz, no centro de São Paulo, em 21/5/2017, para “acabar com a
‘Cracolândia'”

Fonte: ARROYO, Daniel; 2017.

Mas não é só de sofrimento que as imagens de Arroyo tematizam e figurativizam o


corpo do usuário de drogas no centro de São Paulo. Ao contrário, o jornalista já
captou cenas de lazer que ocorrem na região, algo desconhecido por muitos. A roda
de samba que ocorre. Ao fundo é possível notar instrumentos musicais tocados por
homens aglomerados em uma praça. O ponto de vista do fotógrafo centra-se nos
elementos corpóreos de braço e de perna que cruzam a imagem. O braço, repleto de
veias aparentes, somadas ao modelo da calça vestida e, a isotopia de figuras
masculinas ao fundo, leva a concluir que se trata de um homem. Em seu bolso
armazena uma garrafa, aparente apenas pela tampa e início do corpo da embalagem
de bebida. Provavelmente, trata-se de uma bebida alcoólica, dado o formato da
garrafa e a coloração do líquido.

Tanto na primeira quanto na segunda imagem, assume-se no estudo do corpo, nos


moldes desenvolvidos por Fontanille (2011), a impressão corpórea (marca/empreinte)
de vestígios a partir uma prática normalmente explorada na mídia, no caso, as
representações degradantes e aterrorizantes dos usuários de drogas. Assim, é

183
possível compreender que o corpo de tais sujeitos da enunciação torna-se
testemunha, já que é detentor da capacidade “de conservar, em nome da memória
figurativa, os traços e marcas de suas interações com outros corpos” (FONTANILLE,
2016, p.151).

Figura 2 – Roda de samba na Cracolândia

Fonte: ARROYO, Daniel; 2018.

Mesmo com a presença da droga enquanto elemento figurativo da imagem, a


tematização conferida ao encontro não se mostra condenatória, como a maior parte
das imagens dos usuários de drogas em situação de rua. Isso nos leva ao
questionamento: será que sem a legenda essa cena poderia ocorrer em qualquer
outra região da própria cidade de São Paulo ou de qualquer outra cidade do país?
Talvez essa tenha sido a intenção enunciativa do fotógrafo, por meio da evidência de
uma cena dissensual, tensionar as percepções construídas pelo público sobre o
cenário urbano de consumo de drogas, sem apelar para uma normalidade das
situações de vulnerabilidade, mas, ao contrário, expor que naquela região existe vida,
apesar de tudo, e que mesmo diante das ineficácias do poder público, tais sujeitos
lutam pela sobrevivência e desejam ser tratados com dignidade. O texto que
acompanha a matéria também traz à luz os sujeitos que compõem essa cena, de
forma a nomeá-los e a conferir a eles uma breve trajetória de vida, sem resumi-los a
meros consumidores abusivos de crack.

Descalço, um dos rapazes acompanhava o ritmo e arriscava passos sem


medo. Crianças andavam de bicicleta e cães corriam pelo gramado.

184
Com o pandeiro, Douglas Marco, 40 anos, puxava o repertório e guiava
o coro. “Está vendo esses instrumentos aqui?”, apontava. “Sei tocar
todos. Toda a vez que escuto um batuque, é inexplicável a sensação.
Hoje eu estou sentindo o samba irradiando meu coração”, contava
emocionado. “Por trás do que as pessoas chamam de usuário de drogas,
há muita história”, completava. Organizada pelo movimento A Craco
Resiste, a roda de samba, realizada no sábado (1/12), buscava promover
a ocupação do espaço público por pessoas que moram e frequentam a
região da Luz, conhecida como Cracolândia, e que engloba a Praça Júlio
Prestes (ARROYO; MENDONÇA, 2018, s/p).

Ao invés de representar com sensacionalismo a dependência química, considerando-


a como o único atributo de tais indivíduos, Daniel Arroyo insiste em expor os
vestígios do cotidiano dos sujeitos, algo que, de certa forma, liga-se com o cotidiano
de pessoas que não estão inseridas nestes espaços. São os objetos que
figurativamente e materialmente estabelecem essa ponte, pois a banalidade dos itens
encontrados, remete a elementos comuns encontrados em inúmeros espaços
públicos e privados. Analisam-se em conjunto três fotos.
Figura 3 – Composição de fotos dos vestígios da Cracolândia

Fonte: ARROYO, Daniel; 2018.

Um elemento visual que chama a atenção são as cores presentes nesses cenários
arruinados (STOLER, 2013). As imagens vistas de cima condensam a região a um
emaranhado de tons acinzentados, compilando uma massa homogênea de impureza,
a qual deve ser limpa. Destoando dessas manifestações que tematizam o higienismo
social, o fotógrafo preocupa-se com os vestígios deixados pelos sujeitos. Calçados,
instrumentos para uso de drogas, como isqueiros e cachimbos, além de alimentos e,
até mesmo, uma pequena escultura de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do
Brasil, além de alimentos ‘largados’ como frutas, um pacote de sal.

185
Com a pele os seres humanos se comunicam a partir do toque, sendo que no caso
das cenas urbanas a pele pode ser aproximada das superfícies das cidades. O lixo sob
as ruas é como uma cicatriz na pele dos indivíduos, destoa-se do cenário e, assim
como as marcas corpóreas permitem reconstruir as interações passadas sofridas
pelos sujeitos, o lixo depositado nas cidades é fonte das referências culturais de
determinado grupo.

O lixo representa o descarte, a exclusão, o inútil que se encontra


apenas à ação do tempo materializada através de corrosões, fissuras,
danos devido à utilização e outros procedimentos químicos aos quais a
matéria está sujeita. Estes sinais aparentes mostram o caráter sensível
da superfície dos resíduos assim como uma pele marcada pelo tempo
(STUMPP; MINUZZI, 2011, p. 4054).

O tempo parece parar nessas imagens, estanca-se o fluxo de confusão geralmente


exposto e a ausência figurativa do corpo conduz ao aprofundamento das reflexões.
No aspecto da temporalidade, ao invés de ratificar a quantidade de pessoas que estão
nesse local e a confusão e o conflito gerado pelas abordagens de segurança pública,
características tensivas de extensividade e condensação dos corpos em determinado
regime de visibilidade, as imagens de Arroyo parecem resguardar os aspectos
materiais sem necessariamente figurativizar o corpo. Essa a ausência da
corporalidade visível pode ser entendida como a ruptura na partilha do sensível. Mas
isso não significa que o corpo não se faz presente nas imagens, pois Fontanille (2016)
compreende que não apenas o próprio corpo actante pode se tornar testemunha,
mas também objetos que marcam presença nas figurações junto ao corpo. Logo,
assumir a invisibilidade do corpo nas imagens não é exaurir a sua potencialidade na
construção das cenas representadas, tendo em vista, principalmente que as
deformidades evidentes nos objetos foram causadas no seio das interações entre os
corpos, alguém se utilizou de tais itens em determinado momento e para
determinada função.

Ao refletir sobre o processo de produção das imagens, desprende-se que o fotógrafo


executou um movimento de torção corpórea: recusando-se a posicionar-se de
maneira superior a cena, captando imagens aéreas ou distantes de grupos, projetasse
para baixo, como se olhasse os próprios pés. Talvez o que mais armazene os
sofrimentos de tais corpos seja o chão: é nele que dormem, alimentam-se e usam
drogas. Prova disso é a descrição textual apresentada pelo jornalista:

186
Vestígios: substantivo masculino. Rastros; indícios; as marcas da
ocorrência ou da passagem. Fragmentos de uma realidade que não
existe mais. As duas operações efetuadas pelo governo do Estado e pela
Prefeitura de São Paulo na região da Cracolândia, no final de maio e
início de junho, expulsaram as pessoas que viviam naquele território. A
primeira ação foi no quarteirão da rua Helvétia com as alamedas Dino
Bueno e Barão de Piracicaba e depois na praça Princesa Isabel. Essas
operações violentas ocorreram logo pela manhã, surpreendendo a
todos que habitavam o lugar. Era preciso sair rapidamente e, assim, as
pessoas não conseguiam carregar todos os seus pertences, deixando
muitos itens pra trás. O que ficou pelo chão foi uma mistura de objetos
pessoais, restos de alimentos, cachimbos improvisados e lixo. Esse
conjunto de coisas espalhadas pelo território revelavam vestígios,
fragmentos de histórias que provavelmente não seriam contadas. Eram
vestígios de humanidade, pertences que poderiam ser encontrados em
qualquer casa, de qualquer pessoa. As imagens mostram que a
dependência química é apenas parte de um todo. Uma pequena história
dentro de uma história maior, uma história de vida (ARROYO, 2017,
s/p).

A mera presença desses elementos, considerados lixos pela ordem consensual, já é


uma forma de desestabilizar o sistema, como instrumento contestatório. Por isso, o
lixo não são apenas objetos usados, itens “destituídos de sua função inicial, mas que
podem apresentar perspectivas para a arte” (STUMPP; MINUZZI, 2011, p. 4055).

A cena, enquanto instante de distribuição do sensível, no caso do estatuto da


visibilidade de uma ruína demonstra a “maneira como olhamos ruínas e como
andamos entre elas; o estatuto de pensamento do que é viver em um país em ruínas
e, de modo mais amplo, de se mover e de pensar em determinado cenário”
(RANCIÈRE, 2021, p.60). De tal modo, as ruínas não são efeitos de causas conhecidas,
mas causas de efeitos imprevisíveis. Pensar em imagens de ruínas não consiste em
mostrar as imagens que contém ruínas, mas, o que as ruínas fazem com as imagens.
Por isso, a dificuldade em representar a miséria, a dor e o conflito para além de
enquadramentos verticais. Os corpos resistem e insistem em existir nas cenas
arruinadas e as imagens desses contextos são evidências das lutas travadas pelos
sujeitos para manter-se no mundo. Representar o conflito, a miséria e a dor envolve
tensionar esses aspectos. A construção das cenas, a discussão sobre quais ruínas são
representadas e a impossibilidade de manter os corpos naquela paisagem, já que os
corpos “vão sair da paisagem da miséria para se instalar em uma cena que é aquela
de sua própria capacidade de viver em determinado mundo” (RANCIÈRE, 2021, p.60).
187
Se as imagens são "superfícies frágeis" (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.108), elas também
são inflamáveis e nos consomem, por isso queimam. Elas "fazem parte do que os
pobres mortais inventam para inscrever seus tremores e suas próprias consumações"
(DIDI-HUBERMAN, 2018). De tal modo, ao estar diante de uma imagem o observador
deve refletir sobre as "condições que impediram sua distribuição, seu
desaparecimento. É tão fácil, tem sido tão recorrente, em qualquer época, destruir
as imagens" (DIDI-HUBERMAN, 2018).

No caso das imagens dos circuitos urbanos repletos de usuários de drogas, as


tomadas distantes, captadas do alto ou a uma distância considerável, são mais
frequentes no jornalismo. Elas inflamam as notícias sobre a periculosidade da região
ou sobre a ineficácia das abordagens policiais em repelir os usuários de drogas, isso
ao considerar a degradação algo homogêneo a todos os transeuntes e moradores da
região. Tal conformismo e consensualismo editorial por si só já instaura o
desaparecimento de fotografias que propiciem uma enunciação diferente sobre o
fenômeno. Tratando-se do fotojornalista Daniel Arroyo, as condições de
invisibilidade de suas imagens incidem na sua práxis: o jornalista já foi intimidado por
autoridades a não produzir determinadas fotos e, ordenado a apagar imagens que
captou. Em outra situação, Arroyo foi atingido com uma bala de borracha ao cobrir
uma manifestação1.

Considerações finais
A partir das análises das imagens, demonstrou-se que a política existe a partir da
interrupção da ordenação natural "por uma liberdade que vem atualizar a igualdade
última na qual assenta toda ordem social" (RANCIÈRE, 1996, p.31). Ainda, Rancière
(1996, p.51) salienta que o dano não está associado ao que comumente rotula-se de
vitimização, mas de um elemento que estrutura a política, já "que é o modo de
subjetivação no qual a verificação da igualdade assume figura política". O filósofo
lembra que há uma tentativa de compreender positivamente as maneiras de dispor e
ordenar os corpos, principalmente pelo instinto da sociedade em responsabilizar os
sujeitos pelas suas escolhas, em uma lógica policial, de forma "oposta à administração
estatal dos corpos e da saúde, como pudemos ver, especialmente, nos combates em

1 A nota da Associação Brasileira dos Jornalistas Investigativos, de 2019, situa o fato sofrido pelo jornalista:
https://www.abraji.org.br/noticias/fotografo-da-ponte-e-ferido-com-bala-de-borracha-disparada-por-pm-durante-
manifestacao-em-sp.

188
torno de questões relativas às drogas e a Aids" (RANCIÈRE, 2010, p.77). Entretanto, tal
ordem policial não pode ser resumida a uma instituição, pois trata-se uma
distribuição das experiências, do que pode ser feito, dito, visto, sentido, enfim, trata-
se da normalização das percepções e das sensibilidades.

Já de forma oposta, a política pretende redistribuir as percepções consiste em tentar


libertar-se da ordem policial, no caso das imagens, ao permitir que vozes
consideradas ruídos de fundo recebam atenção e sejam considerados sujeitos
falantes, rompe-se com o regime consensual de visibilidade. De tal modo, é na
partilha do sensível que a estética e a política se encontram, por isso a denominação
'política da estética'.

Negar aos sujeitos o direito à própria história consiste em corroborar com a história
não como um ordenamento sequencial de ações, mas uma lógica "que mantém os
fatos juntos e permite apresentá-los como um todo" (RANCIÈRE, 2018, p.16).
Portanto, nesse aspecto, “a história é o tempo em que aqueles que não têm o direito
de ocupar o mesmo lugar podem ocupar a mesma imagem” (RANCIÈRE, 2018, p.19).

Todavia, não é tornar igualitária a maneira de captar imagens, mas de compreender


o ato fotográfico como uma partilha de luz, ao "fixar pontos de luz nos seres
mergulhados no anonimato" (RANCIÈRE, 2018, p.20). Nesse aspecto de igualdade, que
repousam sobre a materialidade fotográfica, registram-se as desigualdades, sendo
que a imagem detém o poder de revelar a divisão existente entre o visível e o invisível.
As fotos tornam-se uma “coletânea do que é digno de ser guardado na memória. Não
necessariamente o que aconteceu e é comprovado por testemunhas, mas o que, por
sua grandeza, merece ser retido, refletido, imitado” (RANCIÈRE, 2018, p.55).

Ao longo das análises pretendeu-se explorar imagens que apresentassem os corpos


e as condutas de forma destoante das homologações geralmente introjetadas pela
mídia, seja pela exposição exacerbada dos danos causados pelo uso de drogas, pela
violência praticada por e contra os usuários, aspectos tratados de forma distante,
sem o envolvimento e a compreensão que um tema como a dependência química
exige. Isso, sem considerar que além das situações de abuso de drogas há uma série
de vulnerabilidades e de violências as quais tais sujeitos estão diariamente impostos.
A noção defendida neste artigo sobre o corpo envolve não só a sua manifestação
visual, observável, mas a construção semiótica na qual ele está inserido, em suas
relações na enunciação e na consolidação de sentidos e significações a partir das

189
MENDOÇA, Jeniffer. Chamar a ‘Cracolândia’ de ‘Cracolândia’ ajuda a especulação
imobiliária, aponta pesquisadora. A Ponte, 23 mar. 2022. Disponível em:
https://ponte.org/chamar-a-cracolandia-de-cracolandia-ajuda-especulacao-imobiliaria-
aponta-pesquisadora/ Acesso em: 13 out. 2022.
QUINTANA, Laura. Política de los cuerpos: emancipaciones desde y más allá de Jacques
Rancière. Barcelona: Herder Editorial, 2020.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. Biopolitíca ou política? Urdimento-Revista de Estudos em Artes
Cênicas, v. 2, n. 15, p. 075-079, 2010. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102152010075
Acesso em: 13 out. 2022.
RANCIÈRE, Jacques. Figuras da história. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
RANCIÈRE, Jacques. O trabalho das imagens. Conversações com Andrea Soto Calderón.
Belo Horizonte: Chão da Feira, 2021.
STOLER, Ann Laura. Imperial debris: on ruins and ruination. Durham and London: Duke
University Press, 2013.
STUMPP, Marianna Elisabeth; MINUZZI, Reinilde de Fátima B. Pele urbana: fronteiras
possíveis. In: Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes, 20a edição, 2011,
Rio de Janeiro. Anais (...). Rio de Janeiro: ANPAC, 2011, p. 4053-4063. Disponível em:
http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/marianna_elisabeth_stumpp.pdf. Acesso
em: 13 out. 2022.

Mini Currículos

Júlio César Rigoni Filho


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do
Paraná (PPGCom/UTP). Membro da linha de pesquisa Processos Mediáticos e Práticas
Comunicacionais e do Grupo de Pesquisas “Interações Comunicacionais, Imagens e Culturas Digitais”
(Incom/CNPQ). Bolsista CAPES. E-mail: julinhorigoni@hotmail; katicaetano@hotmail.com

Kati Caetano
Docente titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade
Tuiuti do Paraná (PPGCom/UTP). Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) com
pós-doutorado em Semiótica e em Ciências da Linguagem (França). Líder do Grupo de Pesquisas
“Interações Comunicacionais, Imagens e Culturas Digitais” (Incom/CNPQ). E-mail:
katicaetano@hotmail.com

190
UMA CONSTELAÇÃO DE HIBRIDISMOS DA FOTOGRAFIA BRASILEIRA:
PERCURSOS DE UMA TRANSFORMAÇÃO

A CONSTELLATION OF HYBRIDISMS OF BRAZILIAN PHOTOGRAPHY: PATHS OF A


TRANSFORMATION

Deborah Roberta Núñez Nascimento Lopes


PPGAV/UFRJ – BRASIL

Resumo

Este artigo pontua determinados momentos da fotografia brasileira em que há uma expansão
do seu caráter documental e factual. Processos de hibridização e inventividade marcaram a
transformação da fotografia no campo em que se afirmou como prática social:
fotojornalismo. Em sua busca pelo desprendimento do real, fotógrafos perdem a relação com
os referentes, alargam o fazer fotográfico, antes limitado às funções do aparelho e ampliam
o uso de suportes. Por conseguinte a fotografia brasileira reinventa os modos de fazer de
materializar-se e de relacionar-se com seu público.

Palavras Chave: Fotografia, imagem, hibridização, experimentação visual

Abstract

This article punctuates certain moments of Brazilian photography in which there is an


expansion of its documental and factual character. Processes of hybridization and
inventiveness have marked the transformation of photography in the field in which it has
asserted itself as a social practice: photojournalism. In their search for detachment from the
real, photographers lose their relationship with referents, broaden the photographic making,
previously limited to the functions of the apparatus, and expand the use of supports. As a
result, Brazilian photography reinvents the ways of making, of materializing, and of relating
to its public.

Keywords: Photography, image, hybridization, visual experimentation

“Gesto é um movimento no qual se articula uma liberdade. ...Gesto é


um movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar ou
de se velar para o outro” (Flusser)

191
A partir da consolidação de um campo fotográfico nos anos 1980, a fotografia
brasileira1 solidifica suas bases e caminha rumo a uma expansão criativa. Percurso
que nos anos 1990 verificamos em projetos como o do grupo Caixa de Pandora, nos
trabalhos de Rochelle Costi, Nino Rezende, Cris Bierrenbach, entre outros. A
expansão da fotografia nacional pelo seu caráter inventivo, transgressor, criativo,
questiona, não só, a transparência do real facultada as práticas foto-jornalísticas e
impregnada na concepção histórica da fotografia moderna. Ao expandir-se a
fotografia transcende as limitações impostas às suas tradicionais materializações,
propondo distintos suportes, novas imbricações com as artes visuais, tornando-se
ela própria objeto artístico. Propomos pensar esse momento da fotografia nacional
como um gesto em busca de uma liberdade expressiva com potentes
questionamentos sociais e políticos.

Neste trabalho procuramos pontuar no percurso de hibridização da fotografia


brasileira momentos em que essa concepção, desnaturalizada e expandida, se realiza.
Nossa convicção é de que há um debate contínuo desde as primeiras elaborações
fotográficas no Brasil, que discutem funções documentais e criativas, assim como
meios e possibilidades de realizar esses projetos. Procuramos destacar
historicamente alguns processos que levaram ao que consideramos o ápice desse
percurso, os anos 1990, nos quais a expansão e experimentação fotográficas
libertam-se definitivamente de amarras realístico-documentais.

A mitificação de uma elite

Em sua gênese a fotografia brasileira em muito se assemelha a concepção de imagem


que foi arquitetada por André Adolphe Disdéri (1819-1890) na França entre 1852 e
1853. As famosas “Carte de Visite” substituíam pelo processo de colódio úmido as
placas de metal: os daguerreótipos2, e viabilizaram a reprodução em série de retratos,

1
Cf. Dissertação de mestrado: A constituição do campo fotográfico no Brasil e a formação da coleção Joaquim Paiva,
da mesma autora.
2
O daguerreótipo (em francês: daguerréotype ) foi o primeiro processo fotográfico a ser anunciado e
comercializado ao grande público. Foi divulgado em 1839, tendo sido substituído por processos mais práticos e
baratos apenas no início da década de 1860. Consiste numa imagem fixada sobre uma placa de cobre, ou outro
metal de custo reduzido, com um banho de prata (casquinha), formando uma superfície espelhada. A imagem é ao
mesmo tempo positiva e Negativo (fotografia) - negativa dependendo do ângulo em que é observada. Trata-se de
imagens únicas, fixadas diretamente sobre a placa final, sem o uso de negativo. (Disponível em: <
192
em sua maioria a imagem das elites burguesas em ascensão. Disdéri não somente
revolucionou a questão da difusão da fotografia, como também instituiu um modelo
de representação pautado na criação de retratos indenitários do burguês, a partir de
premissas conceituais que desenvolveu no ato de retratar a elite europeia. Segundo
o pesquisador Lícius da Silva:

Naquele momento de definições, quando a sociedade se adaptava à


novidade da natureza técnica, científica e da lógica industrial da
fotografia – esta ainda muito longe de possuir linguagem e estética
própria – o mito de fidedignidade do ‘real’ sobrepujou-se à
representação do retratado, tomado objeto pela precisão técnica da
fotografia. De fato, por meio de grande parte da população fotográfica
oitocentista europeia – consequentemente também a brasileira, que
adotou o modelo de Disdéri -, o indivíduo de gosto burguês foi
‘coisificado’ no ‘fichário de personalidades’ organizado pelo olhar
iluminista de racionalização e pela atitude colecionista em
desenvolvimento. (SILVA, 2008, p.108)

No Brasil, os primeiros daguerreótipos foram feitos no império de Dom Pedro II,


ávido colecionador dessas pequenas placas de metal que representavam a cidade e a
sociedade emergente. O acervo criado pelo imperador, compilou relíquias de
distintas viagens realizadas pelo monarca, uma coleção de quase 25 mil fotografias,
doadas à biblioteca nacional no ano de sua partida em 1889.

Reconhecidamente o início do uso da fotografia no Brasil é imbricado com a auto-


representação. A princípio foi utilizada na afirmação de um monarca forte e culto,
assim foram construídas as imagens do imperador (SCHWARTZ, 1998). Seguidamente
nas imagens das elites, tanto da corte quanto nas aristocracias rurais, reafirmando
uma auto-imagem das estruturas sociais e familiares. Ao observamos essas
fotografias, verificamos uma rigidez nas posturas e uma sobriedade nos vestuários.
Sabemos também que limitações técnicas possivelmente construíram essa estética.
Contudo, já nos anos 1860, o desenvolvimento técnico não necessariamente exigia
uma postura tão rígida dos retratados a fim de evitar imagens borradas. Nesse caso,

https://pt.wikipedia.org/wiki/Daguerreótipo > Acesso em fevereiro de 2019.

193
foi a criação de uma estética de representação pautada na reprodução de posturas
de elites dominantes.

Dessa forma realizava-se no país, assim como na Europa no século XIX, a


consolidação de uma nova identidade. Segundo Schwarcz (1998), as fotos tornavam-
se símbolo da modernidade e marcas de status. A fotografia imperial, oficializada por
Dom Pedro II no Brasil, foi instrumento de identificação e legitimação social. A
concepção de retrato do real, já desde o surgimento da fotografia no séc XIX, é
atrelada à representação de uma realidade das elites, a uma iconização de modelos
das elites que refletiam uma ideia de burguês que deveria ser assimilada pelas classes
dominadas, no caso do nosso país escravos e índios.

A fotografia nesse período não se considerava construída, apesar de todo o processo


de realização das imagens ser pensado no sentido da escolha da indumentária, de
definição de poses e objetos que caracterizariam o ”personagem" a ser retratado.
Assim como na Europa um modelo de representação é estipulado ao se realizarem
os retratos da burguesia local. Em nosso território a identidade de classe tem
autenticidade afirmada a partir dos retratos confeccionados em consonância com
uma representação também elaborada.

É interessante notar que o universo temático dos retratos fotográficos


oitocentistas definiram estratégias de construção das identidades e
alteridades sociais. Do ponto de vista da identidade de classe, o retrato
fotográfico moldou a face das camadas médias endinheiradas, à
semelhança dos códigos pictóricos de representação da aristocracia,
atualizando seu modo de vida por meio de um dispositivo de
representação moderno – a câmera fotográfica. Essa prática articulava
um universo de signos de distinção que os retratados reconheciam
como próprio de um novo tempo: indumentária, estética social, pose e
adereços para a mise-en-scène do retrato, serviram de elementos de
reconhecimento da emergência de um novo código de
comportamento, tipicamente burguês. (MAUAD, 2012, p. 270-271)

Semelhante ao processo de construção da imagem do burguês que se deu na Europa


no séc. XIX, nos estúdios fotográficos brasileiros, a questão da teatralidade e
composição cénica foram instituídos. No caso brasileiro, uma ação realizada para
obter uma valorização do ofício do fotógrafo, foi o uso de cenários mais elaborados.
Estes constituíam-se pelo uso de fundos pintados a óleo que representavam as

194
paisagens locais. Uma marca inicial de um hibridismo entre a pintura e a fotografia,
que cria uma série de intervenções nos momentos de pré e pós-produção das
imagens.

São referências importantes os retratos da família imperial, produzidos


por Carneiro &Gaspar, em 1865, e por Joaquim Insley Pacheco, em 1883.
É nesse momento que os pintores e fotógrafos se unem para ampliar
os domínios artísticos da fotografia no Brasil. Estendendo a prática da
fotopintura por mais de duas décadas. (MAGALHÃES, Angela,
PEREGRINO, Nadja, 2004, p.25)

Ao analisarmos a produção de alguns fotógrafos que representaram a casa imperial,


encontramos nos retratos da princesa Isabel de Henrique Revert Klumb, assim como
na foto de Carneiro e Gaspar e no retrato do imperador de Joaquim Insley Pacheco,
imagens que destoavam do padrão de representação europeu. Isto se deu a partir do
uso de fundos pintados a óleo com paisagens do Brasil, ou mesmo pela pós-produção
de fotografias pintadas à mão e ainda pela criação de cenários inusitados com
florestas tropicais.

Os retratos de fundos pintados que representam paisagens do Rio de Janeiro, por


exemplo, como é o caso da foto da princesa Isabel (Princesa Isabel, por Revert
Henrique klumb, 1863), causam uma certa estranheza ao nosso olhar
contemporâneo. Se colocado lado a lado com a típica encenação e representação
burguesa que vinha sendo realizada, especialmente no retrato da família imperial, é
também alheio, destoante. Seria esse retrato o sintoma de uma fotografia que teria
como expressão subjetiva um caráter mais híbrido? No qual a possibilidade de
compor a imagem fotográfica deixaria transparecer justamente brechas de um lado
inventivo em oposição a um retrato criado para parecer ser mais real? Seria esse
recorte um ponto já sintomático da necessidade de transgredir os padrões
estipulados, como também, a relação de representação fidedigna da realidade que
pressupunha-se ter a fotografia?

A desacralização do real

Nos debates existentes nos anos 1940/1950 na fotografia brasileira identificamos


uma ressonância com as questões discutidas pelos pictorialistas na Europa nos anos

195
1920/1930. O pictorialismo procurava dar um caráter artístico a fotografia tomando
como princípio composições baseadas nas temáticas picturais, marinhas, cenas
bucólicas, paisagens. Assim como a intenção de transformar a fotos como peças
únicas a partir de intervenções nos negativos, e uso de técnicas distintas (goma
bricomatada, flou). O movimento pictorialista na Europa reagia ao caráter
documental, a mecanização, industrialização e massificação do processo fotográfico,
aspirando expressar a individualidade e subjetividade do fotógrafo(a).

Posteriormente os americanos questionaram esse caminho de intervenções


propondo as bases da fotografia moderna. A Straight Photography reconectava a
fotografia com a reprodução da realidade, trabalhando em oposição as imagens
nuançadas, difusas, pictoriais. Assim a nitidez, uso apurado técnica fotográfica,
controlando as etapas de reprodução e tonalidade, tornavam-se as formas de fazer
da arte fotográfica. O objetivo era também o de alcançar um expressão individual,
subjetiva, mas o meio de encontrar uma linguagem artística, seria a partir do uso da
técnica fotográfica e de suas características fundamentais. Como por exemplo, o
manejo do uso de luz e sombra, a composição, o ângulo, e posteriormente a
abstração.

O embate entre pictorialistas brasileiros, segundo Teresa Bandeira de Mello (1998),


pautou-se em conceber uma fotografia artística a partir de manipulações e
intervenções versus uma estética direta a partir do uso apurado da técnica
fotográfica apenas. Discussões que dividiram tanto o Photo Clube Brasileiro (fundado
em 1929 no Rio de Janeiro) como o Photo Cine Clube Bandeirantes (fundado em 1939
em São Paulo); ambos representantes do movimento pictorialista no país.

Nesse contexto em que a fotografia se debatia quanto as suas formas e intenções,


José Oiticica Filho - etmólogo, cientista, representante do fotoclube carioca - atua
como um fotógrafo que procura transcender, em suas experimentações, as questões
pontuadas tanto pelos pictorialistas, quanto pelos puristas da fotografia direta.
Apesar de ele próprio ter realizado fotografias de caráter realista e com as premissas
puristas, Oiticica foi além desses projetos e criou uma experiência própria e abstrata
da fotografia. Segundo Fatorelli:

Sem dispensar a força crítica característica das poéticas modernas,


Oiticica refez, ao longo da sua trajetória de fotógrafo, o percurso

196
empreendido por influentes tendências fotográficas, incorporando e a
seguir superando, sucessivamente, os protocolos da fotografia
científica, respaldados no critério de verdade de representação, além
de diferentes princípios caros a prática modernista hegemônica,
inscritos nas convenções da estética pura e direta. Após compartilhar
as convicções dessas iniciativas subordinadas às noções de
objetividade (Borboleta, 1954) e de analogia figurativa (O Kiosque, 1946),
a inclinação experimental de Oiticica orienta-se, particularmente nas
séries produzidas no limiar dos anos 50 e 60, às práticas híbridas,
impuras e intermediais, inspiradas nas premissas do movimento
concretista. (FATORELLI)

Em seu processo de criação nos anos 1960, Oiticica transcende o aparelho, desloca
o olhar do visor da câmera e verifica em sua imaginação a possibilidade processual
de criação de formas, nas quais o processo fotográfico estaria imbricado. Distinto de
uma construção foto-pictural, que no Brasil imperial intencionou criar uma imagem
das elites, a partir de uma "foto-pintura" o processo de construção em Oiticica é mais
amplo, parte de uma desconstrução. Esta pode ser entendida como uma ampliação
do processo em relação ao clique, uma expansão do fazer do fotógrafo, uma
possibilidade mais aberta a imaginação criadora.

O não funcionário da caixa preta

Flusser em a Filosofia da Caixa Preta, discute a questão do funcionamento do


aparelho fotográfico e da relação complexa e imbricada do fotógrafo com o mesmo.
Ao ser programado, o aparelho, contém em sí a gama de possibilidades de realização
que, no caso da fotografia, seriam realizadas pelo fotógrafo. Este selecionaria
também a partir de sua constituição cultural imagens do mundo. Dessa forma a
fotografia seria um híbrido: entre o que o programa permite executar, e o que o
fotógrafo seleciona no seu meio cultural. Ao ser um programa complexo e
indecifrável, a câmera, pode ser considerada uma caixa preta, da qual como
fotógrafos temos acesso ao seu input e output apenas. Segundo Flusser: “pelo
domínio do input e do output o fotógrafo domina o aparelho, mas pela ignorância do
que acontece no interior da caixa, é por ele dominado.” Em essa relação complexa, o
decifrar do programa do aparelho, seria interminável, e o fotografo torna-se um
funcionário que o executa.

197
O gesto de fotografar implica em uma seleção na vastidão cultural, produzindo
momentos que se tornam fotografias. Estas virtualmente existentes no programa,
sob diversas categorias, e, ainda, intencionalmente capturadas e tornadas gesto. Este
é ao mesmo tempo, uma comprovação dessa intenção, porém não independente da
infinidade de possibilidades previstas no aparelho. Segundo Flusser: “Tudo que é
fotografável pode ser fotografado. ... A imaginação do fotógrafo por maior que seja,
está inscrita nessa enorme imaginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o
desafio.”

O trabalho Fotoformas (feito entre 1948 e 1951) de Geraldo de Barros é em nosso


entendimento, um exercício experimental de branqueamento da caixa preta. Em seu
percurso artístico Barros foi primeiro um pintor expressionista, buscando uma
liberdade da pintura formalmente acadêmica, atrelada a uma representação precisa
do mundo. Posteriormente, trabalhou com design e fotografia figurativa com
influências da fotografia direta, moderna. Tanto a partir do expressionismo quanto a
partir das intervenções e abstrações que realizou com a fotoformas, Barros procurou
exercitar a sua imaginação e libertar-se de convenções documentais, realísticas e
formais.

Segundo Heloisa Espada Rodrigues Lima (2006), Geraldo de Barros, deixa de ser
funcionário ao descaracterizar a função documental da fotografia apresentando-a
como lugar de artifício e de construção; estimular o espectador a uma percepção
dinâmica e ativa; enfatizar a qualidade bidimensional do suporte; ampliar as
possibilidades de percepção da imagem; romper a perspectiva, colocar ritmo,
espontaneidade e universalidade em seu trabalho. Assim como, segundo Mario
Pedrosa (1996, Apud LIMA, Heloísa, 2006) em suas fotografias esteticamente
“infantis” Geraldo provocava um descondicionamento pelo gosto artístico através do
que ele considerava como arte virgem3.

3
No cenário cultural brasileiro do pós-guerra, preocupado em renovar o gosto artístico ainda ligado à representação,
o crítico passou a defender um tipo de produção que chamou de “arte virgem”: trabalhos feitos não apenas por
povos “primitivos”, mas também por crianças, pacientes psiquiátricos e artistas naïfs. Via neles valores estéticos
universais, o que o fazia pensar a arte como uma “necessidade vital”: uma linguagem comum a todos os seres
humanos e que independeria da formação cultural de seu produtor.94 Os artistas “virgens”, por não estarem
condicionados às normas artísticas convencionais, seriam mais aptos a manifestar espontaneamente formas de
origem inconsciente que corresponderiam a valores estéticos puros e universais. (Heloisa Espada Rodrigues Lima,
2006, p.43) Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-13082009-154838/en.php>
198
Como um artista múltiplo e um explorador do aparelho fotográfico, Geraldo, viveu
em uma época de amplos questionamentos estéticos nas artes brasileiras. Tocado
pelo movimento abstracionista que reivindicava uma desconexão da nacionalização
figurativa, Barros criou fotografias abstratas mas não deixou de expressar figuras
primitivas. Apesar de considerar-se concretista e assinar o documento do grupo
Ruptura, exerceu livremente sua imaginação.

As fotoformas realizadas por Geraldo são fotografias que pelo seu caráter inovador e
experimental provocaram uma ruptura na história da fotografia brasileira. Assim
como ao pontuar e ampliar as percepções da imagem a partir de suas construções
fotográficas e usos distintos do aparelho, do programa e da informação, Barros
provocou de acordo com Flusser, “...obrigar o aparelho a produzir imagem
informativa que não está em seu programa”. Barros empenhou-se em impulsionar a
liberdade dentro de uma práxis dominada por aparelhos, opondo-se, recriando,
expandindo a fotografia.

Ao expor as fotoformas no Masp em 1951, Geraldo de Barros, propõe objetos, que são
esculturas fotográficas, em dois trabalhos, (Máscara Africana 1949) e (A Menina e o
Sapato, 1949). As fotografias-esculturas partem de uma imagem fotográfica com
intervenções nos negativos e posterior recorte não convencional. Expostas com um
suporte as fotos transformam-se em esculturas dentro da exposição. A força criativa
e imaginativa de Barros finalmente tensiona a materialização da imagem fotográfica,
assim como a relação com o espectador.

Acesso em fevereiro de 2019.

199
Figura 2: Exposição Fotoformas, Máscara Afri-
cana, Geraldo de Barros, MASP, 1951.

O suporte como materialidade

O movimento de arte concreta na Europa, surge nos anos 1930. Em sua essência
reivindica a concepção da obra de arte a partir da racionalidade mecânica. Rejeita a
figuração ainda que impressionista, afastando-se da representação da natureza e
negando as correntes artísticas subjetivas. Segundo um dos fundadores, Van
Doesburg, o que há de concreto em uma pintura são os elementos formais, ponto,
linha, cor e plano, pois não figuram nada.

O pensamento concretista europeu é fruto de um momento de valorização do


racionalismo prático, paralelo a um período de forte industrialização. Na américa
latina, após a segunda-guerra mundial, há também um forte desenvolvimento
industrial. No Brasil o concretismo tem como referências os grupos Ruptura de São
Paulo, o grupo Frente do Rio de Janeiro, este tinha entre seus integrantes, os artistas
Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clarck, Amilcar de Castro, entre outros. O grupo
Frente liderou o Manifesto Neoconcreto, no qual há basicamente uma flexibilização
das rígidas premissas concretas de criação.

A exposição nova objetividade, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro


em abril de 1967, reuniu trabalho de diversos artistas dos movimentos de vanguarda
dos anos anteriores, como também concretistas, neo-concretistas e a nova
figuração. Destacamos a participação de Hélio Oiticica com sua obra “Tropicália”,

200
uma obra que era constituída por um labirinto de areia, plantas tropicais e barracões
no qual o espectador deveria percorrer até encontrar uma televisão ligada.

Tropicália e outros trabalhos apresentados na exposição que exploram uma nova


relação com o espectador, como por exemplo, as mascaras sensoriais de Lygia Clark,
produzem um novo momento da arte brasileira. Uma postura que inaugura um
distinto papel ao publico, o papel de criação conjunta do trabalho, da obra, que só
existe enquanto experiência modulada e vivenciada. Um “comum” que segundo
Rancière (2000) permite a partilha do sensível.

É nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação


do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós como
espectador. Ser espectador não é a condição passiva que
deveriamos converter em atividade. É nossa situação normal.
Apreendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também
como espectadores que relacionam a todo instante o que veem,
ao que viram e disseram, fizeram e sonharam. (RANCIÉRE, 2008,
p.21)

Segundo Rancière: As práticas artísticas são “maneiras de fazer” que intervêm na


distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as maneiras de ser
e formas de visibilidade. Acreditamos que a fotografia brasileira é influenciada pelos
movimentos que tornam visíveis participantes os espectadores. Especialmente no
campo de experimentações que é aberto a partir dos anos 1980 e 1990 no país.

Supomos que as novas materializações das imagens fotográficas no Brasil, começam


a ser experimentadas nos anos 1990, após um período de intensa discussão sobre a
fotografia e os campos de atuação que lhe eram atribuídos. O processo de
institucionalização da fotografia no país4, fruto de debate proposto pelo Instituto
Nacional de Fotografia nos anos 1980 contribuiu para a valorização da produção
nacional. O questionamento em torno da profissão do fotógrafo, da linguagem
fotográfica e o mapeamento dos fotógrafos do país, a partir das semanas de fotografia
e das convocatórias nacionais, promoveu a afirmação da fotografia como arte
autônoma. Consideramos que as transições da fotografia nacional em novas

4
Pesquisa desenvolvida no mestrado pela autora: “A constituição do campo fotográfico no Brasil e a formação da
coleção Joaquim Paiva, um estudo interdisciplinar da fotografia brasileira”, agosto de 2015.
201
materialidades manifestam-se em um contexto propício, assim como refletem as
influências das novas proposições artísticas da arte conceitual e da interação do
público com a obra.

A necessidade de um diálogo mais singular com a criação de imagens em que a


fotografia era o principal mediador, provoca em fotógrafos e fotografas brasileiras
nos anos 1990, a incorporação de outros suportes. Trabalhos como o de Rochelle
Costi, que utilizam placa de cerâmica como forma de materialização, tencionam
tanto as tradicionais formas de corporeidade da fotografia moderna, como também
problematizam a escultura ao concebê-la a partir da imagem fotográfica.

Já Cris Bierrenbach, em seu trabalho “Vitrais” realiza uma escultura instalação que é
formada por espelhos sensibilizados por emulsão para fixar imagens fotográficas.
Estas são retratos da artista e de meninos de rua, os quais são apresentados em
mosaicos na sala de exposição. O uso de espelhos como suporte, potencializa nesse
trabalho a experiência sensível do espectador. Segundo Rancière, há uma política da
estética no sentido de que novas formas de exposição do visível e de produção de
afetos determinam novas habilidades, rompendo com antigas configurações do
possível. A reação que se tem ao olhar as fotos dos meninos de rua no trabalho de
Bierrenbach é impulsionada a partir da escolha do suporte. Uma experiência sensível
modificada ao ser possível nos refletirmos na imagem daquele que vemos,
literalmente.

A expansão da fotografia como proposta sensorial

A partir dos anos 1990, verificamos no Brasil uma expansão do campo fotográfico e
das práticas fotojornalísticas para um campo de experimentação mais abrangente.
Neste a imagem fotográfica materializa-se não somente em seus suportes mais
comuns: papel e jornal, mas é plasmada em esculturas, instalações, objetos e
projeções das mais diversas. A fotografia busca desprender-se da realidade a partir
de um percurso de intensa experimentação, no qual, adere aos mais diversos
suportes adquirindo outras “corporalidades”. Esse processo de mutação provoca, e é
também provocado por um gesto em direção ao estabelecimento de outras relações
sensíveis da fotografia com o expectador.

202
Nos anos 1990 em Belém do Pará o Grupo Caixa de Pandora formado por Cláudia
Leão, Flavya Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy realizaram uma
série de exposições e experimentações a partir da fotografia. Esta na época
considerada construída, anos mais tarde foi denominada como expandida, segundo
Rubens Fernandes Junior (2006): livre das amarras da fotografia convencional (...) têm
ênfase no fazer, nos processos e procedimentos de trabalho cuja finalidade é a
produção de imagens que sejam essencialmente perturbadoras (...) É desafiadora
porque subverte os modelos e desarticula as referências. Flavya Mutran cria em suas
“Pandoras de lata” uma espécie de escultura, objeto, em que a fotografia é um
elemento constitutivo e direciona o seu olhar ao espectador.

Além do grupo Pandora, outros fotógrafos no país produziram objetos, destacamos


os trabalhos posteriores de Nino Rezende e Ana Lúcia Taveira. O primeiro fez nos
anos 1998 a série “Panos de Prato” que é dividida em três partes: Santíssimos
mistérios, Ânima e Álbum de família. Segundo Nino, a inspiração veio de uma prática
das mulheres mineiras de sua família de bordar panos de prato. Em Santíssimos
mistérios, por exemplo, Nino imprimiu imagens que fez na parada LGBT em Berlim,
“CSC Christopher ST day”. Nestes vemos imagens de sadomasoquistas, o que causa
uma forte estranheza, uma profanação.

No trabalho Ana Lúcia Taveira: “As verônicas” de 1999, rostos de idosos foram
impressos em películas feitas de silicone – um material transparente – que após
serem emulsionadas e fotossensibilizadas, foram submetidas aos mesmos
procedimentos químicos da revelação da fotografia analógica sobre papel
fotográfico. O resultado é uma imagem maleável cuja “pele” sensibiliza o manuseio e
a interação com o trabalho.

Considerações Finais

A fotografia brasileira atravessa um percurso de expansão do seu fazer, intensa e


diversificada desde seu surgimento no país, no séc. XIX. Pontuamos neste trabalho
alguns aspectos que no decorrer dos anos, tencionaram as definições e formas
oficiais de fazer da fotografia. Fotógrafos artistas como Geraldo de Barros, alargaram
o campo de criação e materialização da imagem. Semelhantemente propostas de
novos suportes para as imagens fotográficas, praticadas por fotógrafos e fotógrafas
203
brasileiras, nos anos 1990, estimularam experimentações variadas. Como foi o caso
dos vitrais de Cris Bierrenbach. A hibridização da fotografia em diversos suportes e
as distintas interações com os espectadores, estimulando outras sensações para
além do olhar, foram também exploradas por fotógrafos e fotógrafas brasileiras. Por
tudo isso acreditamos que há ainda um campo de estudos amplo a ser explorado no
que concerne a criatividade e inventividade da nossa fotografia ao longo da sua
trajetória.

Referências

FATORELLI, Antônio. Entre o moderno e o contemporâneo: reverberações e


reciprocidades na fotografia de Jose Oiticica Filho. Artigo, 2019.
FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Fotografia expandida. (Doutorado em Comunicação e
Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2002.
FLUSSER, Vilén. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
MELLO, Maria Teresa Bandeira de. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil.
Rio de Janeiro: Funarte, 1998.
MAGALHÃES, Angela, PEREGRINO, Nadja. Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao
contemporâneo, Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto imagem no segundo reinado. In: NOVAIS, Fernando.
História da vida privada no Brasil. V. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
PEDROSA, Mário. Arte, necessidade vital. In: _____. (organização Otília Arantes). Forma e
Percepção estética: textos escolhidos II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1996, p. 54.
RANCIERE, Jaques. A partilha do sensível. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. 34. 2009.
__________________. O espectador emancipado, tradução Ivone C. Benedetti – São
Paulo: WWF Martins Fontes, 2012.
SCHWACZ, Lilia Moritz. As Barbas do imperador: Dom Pedro II, um monarca nos trópicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Links:
BARAÚNA, Danilo Nazareno Azevedo. Caixa de Pandora: processos criativos em redes de
colaboração, 2013. Disponível em:
https://www.academia.edu/10578800/Caixa_de_Pandora_processos_criativos_em_red
es_de_colabora%C3%A7%C3%A3o. Acesso em fevereiro de 2022.
SILVA, da Lícius. In Revista do programa de pós-graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ.
Ano XV, número 16, julho de 2008. Retrato fotográfico oitocentista: o corpo visto através do
olhar iluminista”.
STRAIGHT Photography. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo6178/straight-photography>. Acesso em: 15
204
de Mar. 2022. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
Dissertações:
LIMA, Rodrigues, Espada, Heloisa. Fotoformas: a máquina lúdica de Geraldo de Barros. São
Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-
13082009-154838/pt-br.php> Acesso em fevereiro de 2022.

Mini Currículo

Deborah Núñez
Fotógrafa, pesquisadora, docente, formada em Comunicação Social/UFF com mestrado em
Comunicação e Cultura - TCE UFRJ e doutoranda em Artes Visuais / PPGAUFRJ. Trabalhou como
free-lancer em design e como fotógrafa independente. Foi docente na comunicação em Universidades
como Veiga de Almeida/RJ (2015-2017) e na UFRB/BA (2021-2022). Realizou em 2021 o I Festival de
Fotógrafas Latinoamericanas – FFALA a partir do edital Aldir Blanc/RJ. E-mail:
deborahnunez@gmail.com

205
EDWARD MÃOS DE TESOURA E OS CONTOS DE FADAS DA DISNEY: A
INVERSÃO DO BEM E DO MAL

EDWARD SCISSORSHANDS AND THE DISNEY FAIRY TALES: THE INVERSION OF


GOOD AND EVIL

Victória de Freitas Arruda


Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Resumo

Este artigo visa discutir e comparar como as cores são destinadas nos contos de fadas da
Walt Diney Studios e no filme Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990),
desenvolvido pelo diretor americano Tim Burton (1958), além de discutir sobre a inversão
que as cores têm no filme Edward Mãos de Tesoura. Será considerado o elemento
cinematográfico visual cor para analisar os filmes, pois as cores são elementos
indispensáveis no processo de uma produção fílmica. As cores captam a atenção do
espectador, transmitem sentimentos e ajudam na construção da narrativa, independente
do gênero fílmico ou idade do público.

Palavras-chave: Cores; Tim Burton; Contos de fadas; Edward Mãos de Tesoura.

Abstract

This article aims to discuss and compare how colors are intended in fairy tales from Walt
Disney Studios and in the film Edward Scissorhands (Edward Scissorhands, 1990),
developed by American director Tim Burton (1958), in addition to discussing the inversion
that the colors have in the movie Edward Scissorhands. The visual cinematographic
element color will be considered to analyze the films, as colors are indispensable elements
in the process of film production. The colors capture the spectator's attention, convey
feelings and help in the construction of the narrative, regardless of the film genre or age of
the audience.

Keywords: Colors; Tim Burton; Fairy tale; Edward Scissorhards.

Introdução

O cinema é uma arte complexa, mas “considerar um filme como arte facilita a
compreensão de que o cinema em toda dimensão pode ser o instrumento e fonte
206
de conhecimentos” (SANTOS, 2011, p. 25). E, para entender melhor o contexto e a
sociedade da época que o filme está inserido é necessário estudar os aspetos
culturais, históricos, artísticos, sociais e até buscar compreender melhor os
aspectos pessoais de quem está envolvido na produção (SANTOS, 2011;
MASCARELLO, 2006). Conhecer e entender outros elementos no cinema também é
essencial, como os elementos cinematográficos sonoros e visuais. No presente
artigo foi necessário pesquisar e aprofundar nos estudos sobre o elemento visual
cor.

Desse jeito, a partir do conhecimento das mais diversas concepções, nota-se que
existem várias possibilidades para desenvolver leituras acerca de produções
fílmicas. Salienta-se que nem tudo que é produzido pelo cinema deve ser
restringido a uma decodificação simples. É necessário ir além. Desintegrar, explorar
e ponderar o que foi estudado é fundamental para uma afirmação concreta e ampla
da produção como no caso do filme escolhido para este artigo, Edward Mãos de
Tesoura (Edward Scissorhands, 1990)1 do diretor e cineasta Tim Burton (1958).

Busca-se no presente texto compreender a cor como objeto estético visual na


construção da narrativa fílmica e discutir sobre a inversão das cores dos contos de
fadas, da produtora Walt Disney Studios2, no universo peculiar do diretor Tim
Burton, especificamente no filme em Edward Mãos de Tesoura, que abrange
vertentes que podem desdobrar diversas questões.

Filmes e cores

Aumont (2002) afirma que a produção de uma imagem jamais é gratuita, ou seja, o
uso e produção das imagens sempre têm ou haverá um fim, até mesmo em
produções animadas. E, certos elementos visuais são substanciais para a
construção da produção de imagens em movimento, além da possibilidade de dar
sentindo para o que se pretende passar ao espectador.

1
Filme de fantasia/ drama. Dirigido por Tim Burton. Estados Unidos. 1990.
2
Estúdio que desenvolve roteiros e produções cinematográficas, da The Walt Disney Company.

207
Tanto a cor quanto a sua ausência pode ajudar no caminho da construção de
narrativas cinematográficas. Pois, segundo Farina (2006), as cores têm uma
vibração determinada em nossos sentidos que são capazes de produzir sensações e
impressões importantes, além do mais, ele afirma que as cores não só influenciam a
reação do receptor, como também tem influência sobre quem as constrói.

As cores oferecem amplas perspectivas no universo do cinema, com a capacidade


de liberar as reservas da imaginação criativa do ser humano. Se as imagens no
cinema em preto e branco já chamavam atenção e buscavam levar mensagens ao
espectador, as imagens coloridas conseguem prender ainda mais a atenção e
conversar a partir do ritmo da narrativa visual com o espectador. Guimarães (2004)
pondera:

Se a comunicação por imagens por si só já possui uma enorme força


apelativa, as imagens de exuberante colorido têm uma força ainda
maior. A cor com certeza será uma das razões deste sequestro do
nosso olhar. (GUIMARÃES, 2004, p. 06).

No filme O Mágico de Oz (The Wizard of Oz , 1939)3 há dois universos, o primeiro


em preto e branco e o segundo universo colorido. Ao passo que o universo em
preto e branco representa o mundo real, onde Dorothy vive com seus tios no
Kansas (Estados Unidos), o outro mundo, colorido, é direcionado para a fantasia,
para a Terra Mágica de Oz, local que Dorothy é levada quando bate a cabeça
durante a tempestade. Em O Mágico de Oz, os dois mundos tem sua relevância na
narrativa do filme, no entanto a Terra Mágica de Oz chama mais atenção do
espectador por ter cores vibrantes e cativantes.

Em suma, as cores roubam a atenção. Mas, é necessário estudar a narrativa e


observar como as cores conversam em prol do ritmo visual. Apesar da teoria das
cores contribuírem efetivamente para a criação das harmonias, é importante
salientar que não há uma maneira correta do uso das cores, e sim o uso das cores
com coerência com o que se propõe passar ao espectador e as relações de
significados com as culturas e a época de cada filme.

3
Filme de fantasia /musical. Dirigido por Victor Fleming. Estados Unidos, 1939.
208
A criatividade, a tecnologia e a cultura de cada sociedade contribuíram com a
evolução da cor dentro do cinema, já que “a variedade de significados de cada cor,
ao longo dos tempos, está intimamente ligada ao nível de desenvolvimento social e
cultural das sociedades que os criam” (PEDROSA, 2009, p. 110). Com o estudo do
roteiro das cores podemos compor uma mensagem visual de acordo com a
narrativa, cada cor irá definir o ambiente, a reviravolta, os personagens e
sentimentos que eles podem vir a ter e outros elementos cruciais na produção.

No geral, as cores com mais destaque e as mais vibrantes são direcionadas para os
personagens que regem a história, isto é para o personagem principal. Enquanto os
antagonistas, ou melhor, os personagens conflitantes são nomeados, comumente,
com cores mais escuras e com menos destaque. E, por fim, os personagens
auxiliares são colocados com cores de menos destaque.

Com base no mapeamento das cores cria-se a personalidade dos personagens, bem
como identifica as emoções sentidas por cada personagem. É habitual que nos
filmes de terror as cores sejam escuras, com variação do preto e do vermelho como
em A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984)4 ou Hellraiser: Revelações
(Hellraiser: Revelations, 2011)5. Ao passo que nos filmes de romance as cores tendem
a ser mais claras, delicadas e em algumas ocasiões vibrantes, como em Diário de
uma Paixão (The Notebook, 2004)6 ou Minha Bela Dama (My Fair Lady, 1964)7. Já nos
filmes de fantasia e contos de fadas, como nos filmes da Disney, as cores são,
comumente, pré-definidas em dois mundos de um lado o bem e do outro o mal. As
cores primárias são as mais utilizadas para os personagens infantis, possivelmente
por serem as primeiras a entrarem em contato com as crianças na escola,
principalmente o vermelho e cores próximas, pois o vermelho é a cor preferida na
infância (FARINA, 2006).

4
Filme de terror/mistério. Dirigido por Wes Craven. Estados Unidos. 1984.
5
Filme de terror. Dirigido por Victor Garcia. Estados Unidos. 2011.
6
Filme de romance. Dirigido por Nick Cassavetes. Estados Unidos 2004.
7
Filme de romance/musical. Dirigido por George Cukor. Estados Unidos. 1964.
209
Os contos de fadas da Disney

Nos filmes de contos de fadas da Walt Disney Studios é comum o contraste entre os
indivíduos aparentemente normais com os aparentemente estranhos, divididos em
dois mundos distintos. O universo do bem é composto pelo personagem principal
representado pelas cores mais claras, delicadas e vibrantes. É nesse universo
colorido que prevalece a alegria, o amor e a bondade com as princesas e os
príncipes. As cores mais usadas são o rosa, azul claro e amarelo.

No outro universo encontra-se o contraste de cores mais escuras, nebulosas e


mórbidas que simboliza os seres místicos e maus como bruxas, lobos e outros
personagens designados como malignos. As cores mais escuras, como o preto, roxo,
cinza e azul são as cores que representam o lado maligno e sobrenatural, às vezes, o
vermelho também é inserido nesse meio. É possível perceber tal construção dos
dois universos nos filmes como em Cinderela (Cinderella, 1950)8, Aladdin (1992)9,
Peter Pan (1953)10, A Branca de Neve e os Sente Anões (Snow White and the Seven
Dwarfs, 1937)11, A Bela Adormecida (Sleeping Beauty, 1959)12, A pequena Sereia (The
Little Mermaid, 1989)13, entre outros filmes (Figura 1).

Em A Bela Adormecida, a jovem Aurora é condenada, pela feiticeira Malévola, a


dormir profundamente no seu aniversário de 16 anos ao furar o dedo numa agulha
da máquina de tear. A personagem principal, como já mencionado, é a princesa
delicada de vestido azul claro/rosa que é salva por um príncipe, enquanto a
feiticeira, a antagonista, está trajada com roupas em preto e roxo. Podemos
perceber que as cores do ambiente ao longo do filme são alteradas quando
Malévola joga o feitiço em Aurora, passando das cores mais vivas para cores mais
opacas e tons mais escuros, logo as cores do filme passa a não ter muita vida. E, só
é alterado novamente quando o feitiço é quebrado no final da animação. Até mesmo
a cor do vestido da princesa passa de azul claro para rosa, mostrando que o bem
venceu e a maldição acabou.

8
Animação. Dirigido por Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson. Estados Unidos. 1950.
9
Animação. Dirigido por Ron Clements e John Musker. Estados Unidos. 1992.
10
Animação. Dirigido por Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson. Estados Unidos. 1953.
11
Animação. Dirigido por David Hand. Estados Unidos. 1937.
12
Animação. Dirigido por Clyde Geronimi, Eric Larson, Wolfgang Reitherman e Les Clark. Estados Unidos. 1959.
13
Animação. Dirigido por Ron Clements e John Musker. Estados Unidos. 1989.
210
Figura 1: Montagem feita pela autora. Filmes da produtora Walt Disney Studios. A Branca de Neve e os
Sete Anões (1937), A Bela Adormecida (1959) e A pequena Sereia (1989).

O mesmo acontece em A Branca de Neve e os Sete Anões. A beleza da Branca de neve


causa inveja na Rainha Má que tenta envenena-la e só um príncipe pode salva-la. A
antagonista, Rainha Má, assim como Malévola, usa roupas em tons de preto e roxo,
pois representa o mal, à medida que a Branca de Neve usa roupas em tons de azul e
amarelo para representar o bem.

O contraste entre o bem e o mal inseridos nas narrativas dos contos de fadas da
Disney também estão presentes nas narrativas dos filmes de Burton, contudo com
uma pequena inversão. No estranho mundo dos monstros e seres peculiares
criados por Burton, os personagens com vestimentas e características de cores
escuras - nos contos de fadas são personagens ruins - aqui são os mocinhos, os
personagens de bem e de bom coração, como em Edward Mãos de Tesoura (Edward
Scissorhands, 1990).

O excêntrico garotinho Timothy torna-se Tim Burton

O excêntrico garotinho, Timothy Willian Burton, nascido na Califórnia em 1958 não


sabia que ficaria conhecido como Tim Burton, um dos grandes diretores de cinema.
Não é de se espantar que seus filmes tenham uma estética peculiar, visto que ele
211
era apaixonado por filmes de terror de baixo orçamento em sua infância. Timothy
cresceu assistindo monstros em preto e branco e personagens de ficção científica
(WOODS, 2015) que veio fazer parte da sua gama de inspirações para produzir seus
filmes.

Na fase inicial da adolescência, aos treze anos, Burton fez seu primeiro filme não
oficial em Super 8 inspirado nos clássicos de terror da década de 1930 à 40. No
período em que estudou no Instituto de Artes da Califórnia desenvolveu Stalk of
celery monster (1979)14 que chamou a atenção da maior empresa de animação, Walt
Disney Studios.

Mesmo a Walt Disney Studio não tenha sido exatamente o lugar ideal para o
trabalho de Burton devido a sua paixão pelo peculiar e sua estética ser
completamente oposta aos filmes da produtora, foi lá onde deu início a sua carreira
e suas obras fílmicas evoluíram e surgiu a galeria de seres estranhos
incompreendidos, com temáticas de solidão, conflitos humanos e medo em
companhia com a atmosfera dos contos de fadas.

Nas produções é visível que Burton apropriou-se de certas características da


fantasia, como os seres místicos, em conjunto com seres horripilantes e estranhos
dentro do universo sombrio com cores escuras que marcam a sua estética mórbida.
No entanto, apesar do ambiente peculiar existe uma quebra de expectativa. Tim
Burton rompe com o contraste entre o bem e o mal dos contos de fadas da Disney e
acaba minimizando o medo pelos seres estranhos e pelo seu apaixonante universo
de horror.

A Construção Edward Scissorhands No Universo Invertido Dos Contos De Fadas


Da Disney

Logo no início descobrimos que Edward (Figura 2), interpretado por Johnny Depp
(1963)15 foi pensado e construído por um inventor, interpretado por Vincent Price

14
Animação. Dirigido por Tim Burton. Estados Unidos. 1979.
15
Ator norte-americano que ficou famoso pelas suas ótimas interpretações em filmes. Nascido em Owensboro,
Kentucky, Estados Unidos em 1963.
212
(1911-1993)16, que infelizmente faleceu antes de termina-lo. Por isso, no lugar das
mãos Edward tinha tesouras.

Enquanto o jovem, tímido e peculiar, passa a viver sozinho, após a morte do seu
criador, excluído da sociedade e mal tendo compreensão sobre as normas de
comportamento na sociedade, Peg Boggs, interpretada por Dianne Wiest (1948)17,
trabalha do outro lado da cidade de porta em porta para vender os seus produtos
de beleza da Avon.

Figura 2: Montagem feita pela autora. Filme Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands,1990)

O destino destes dois personagens, Peg e Edward, são traçados num dia sem
sucesso nas vendas para Peg. Ela decide ir até o castelo que fica no topo da
montanha do subúrbio onde mora com sua família. Ao chegar ao castelo escuro que
parece abandonado ela grita, mas ninguém responde. Peg Boggs entra e sobe as
escadas até sótão e encontra uma criatura inegavelmente extraordinária com
cabelos pretos desgrenhados e mãos de tesouras.

16
Ator norte americano de filmes de horror. Nascido em San Luis, Missouri, Estados Unidos (1911-1993).
17
Atriz americana, nascida em Kansas City, Missouri, Estados Unidos em 1948.
213
A vendedora assusta-se com a aparência do ser que encontra, mas logo percebe
que ele está tão assustado quanto ela. Impressionada com as mãos de Edward e os
cortes em seu rosto a vendedora resolve ajuda-lo levando-o para casa. A princípio
suas características físicas são motivo de medo imediato e muita curiosidade na
vizinhança. Edward passa a conhecer um novo mundo, com comidas, lugares e
objetos que até então eram desconhecidos para ele.

Kim, interpretada por Winona Laura (1971)18, filha dos Boggs volta para casa sem
avisar e encontra com Edward no meio da noite em circunstância desconfortáveis.
Ele estava hospedado no quarto da jovem enquanto ela acampava com sua turma da
escola e seu namorado. A garota passa abominar Edward por sua aparência e fica
inconformada por ter um estranho em sua casa. A partir daí a trama e a história
conturbada para Edward inicia.

Edward mostra-se ser uma pessoa boa e tenta se adaptar na sociedade colocando a
sua deformidade ao seu favor, e começa a cortar belos arbustos, depois tosando
cachorros e fazendo cortes incríveis nos cabelos das pessoas da vizinhança. O
jovem estranho torna-se uma atração na cidade, chamado para entrevistas e
procurado por muitas pessoas para cortar seus cabelos. A situação leva a Peg ajuda-
lo montar um salão com a vizinha, Joyce, interpretada por Kathy Baker (1950)19, que
aparentemente tem interesse amoroso em Edward e tenta seduzi-lo quando vão
em busca de um local para o salão. Porém, o jovem Edward fica assustado com a
prepotência da moça e sai desajeitado do local sem contar nada a ninguém.

Enquanto Edward vai à busca de abrir o seu salão de beleza tentando pegar um
empréstimo no banco, o namorado da filha dos Boggs, Jim, interpretado por
Anthony Michael (1968)20, planeja furtar a casa dos seus pais ricos que não o ajudam
a comprar um carro. Após Kim esquecer as chaves de casa, Edward abre a porta
com suas mãos de tesoura, levando Jim a persuadir sua namorada Kim a pedir
Edward que os ajudassem, já que ele percebe que o Edward gosta dela. O ingênuo e
amoroso rapaz aceita ajuda-los sem saber das consequências que pode ter para ele.
O plano de Jim não sai como o planejado e Edward fica preso sozinho na casa e

18
Atriz norte-americana, nascida em Winona, Minnesota, Estados Unidos em 1971.
19
Atriz norte americana vencedora de diversos prêmios. Nascida em Midland, Texas, Estados Unidos em 1950.
20
Ator nascido em Boston, Massachusetts, Estados Unidos em 1968.
214
acaba levando toda a culpa, pois fica com medo de arrumar problemas para a Kim e
não conta que foi ela e o namorado que idealizaram o furto.

Posteriormente, durante a produção duma escultura de gelo que Edward fazia, sem
querer Kim chega perto e começa dançar balançando as mãos para cima e acaba
perfurando a sua mão. O namorado dela, Jim, chega ao mesmo instante e briga com
o jovem rapaz, acusando-o de ter atacado a garota. Daí em diante a vizinhança
começa a ficar conturbada e buscando-o para linchar por uma série de
acontecimentos irreais e mal explicados.

A família Boggs sabe do bom coração de Edward, porém sua ingenuidade era
demais e a sua aparência não contribuía para que ele pudesse ter uma vida digna
em sociedade. Já havia muitas conturbações que o envolvia e a família não
conseguiria ajuda-lo mais. Kim descobre que o seu sentimento de abominação na
realidade é amor. Infelizmente já é tarde demais, e o máximo que consegue fazer é
ajudar Edward fugir da cidade sem que nada de ruim acontecesse com ele.

O espectador experiência a injustiça e o sofrimento de Edward. Ao longo do filme


percebemos que ele é o verdadeiro mocinho da história. E, apesar dele ser
considerado uma aberração da natureza pela vizinha religiosa e ter a aparência
estilo Freddy Krueger, Edward não passa de uma doce criatura inacabada, triste e
incompreendida por não ser aceito e amado como desejara.

Conseguimos compreender a contraposição com facilidade ao percebermos o alto


contraste construído nos dois universos (Figura 3) em Edward Mãos de Tesoura.
Primeiro, o ambiente urbano, os personagens vivem alegres em uma cidade com
casas lindas e coloridas em tons pastéis, o ambiente quase ridicularizadas por
Burton, passível de paz e que, normalmente, é o lado bom dos contos de fadas. O
segundo universo é construído por Edward, personagem pálido e fisicamente
estranho, com vestimentas pretas, vive isolado e sozinho no castelo abandonado,
escuro e longe da cidade, localizada no topo da montanha como em um filme de
terror, onde geralmente vive um personagem sombrio e horripilante, ele seria o
monstro, representaria o lado ruim nos contos de fadas.

Toda representação física de Edward, suas vestimentas pretas e os outros aspetos


mencionados nos levam inicialmente a crer que ele seria o personagem ruim, o
vilão da história. Pois, o preto segundo Heller (2012) tem significado, num sentindo
215
figurando, de algo mal ou ruim e, também, Farina (2006) compreende o preto como
cor sombria, como já foi mencionada.

As conclusões precipitadas que tiramos nos levam a uma quebra de expectativa que
nos fazem mudar de ideia sobre quais são os vilões e os mocinhos do filme. A
estética e a narrativa do filme constroem uma verdadeira obra prima sobre amor,
compaixão e solidão.

Figura 3: Montagem feita pela autora. Cenas do filme Edward Mãos de Tesoura (1990)

Conclusão

Acompanhamos a inversão das cores dos personagens dos contos de fadas da


Disney na produção fílmica Edward Mãos de Tesoura, acompanhado pela narrativa
entre o bem e o mal. Ao fim da trama fica explícito que Edward é o verdadeiro
personagem do bem, ingênuo e com bom coração, apesar da sua aparência.

216
Os padrões bem definidos da obra fílmica de Tim Burton, como a caraterização da
vestimenta e do ambiente, e as cores escolhidas tanto para os personagens, quanto
para os dois mundos favoreceram na quebra de expectativa do espectador que está
acostumado com os contos de fadas da Disney, em que os personagens com má
índole são caracterizados por cores escuras e os mocinhos são caracterizados por
cores mais claras e alegres.

Conclui-se que as cores contribuem na construção da narrativa fílmica de modo


que cada cor pode ajudar a caracterizar, a dar vida e personalidade ao personagem,
mesmo quando há uma inversão das cores já pré-estabelecidas pelos contos de
fadas da Disney. Portanto, o preto pode representar a solidão e a exclusão de
Edward diante da vizinhança, mas não remete e o representa como vilão ou a
pessoa de má índole, da mesma forma que as cores quentes e cativantes no filme
não são denominadas aos personagens de bem.

Referências

A BELA Adormecida. Just Watch. Disponível em:


https://www.justwatch.com/br/filme/a-bela-adormecida. Acesso em: 14 out. 2022.
ALEXANDER, Leandro. BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES. Cinema em Cena. Disponível
em: https://cinemaemcena.com.br/coluna/ler/483/branca-de-neve-e-os-sete-anoes.
Acesso em: 14 out. 2022.
A PEQUENA SEREIA (THE LITTLE MERMAID, 1989). Parada Temporal, 2019. Disponível em:
http://www.paradatemporal.com/2019/07/a-pequena-sereia-little-mermaid-1989.html.
Acesso em: 14 out. 2022.
AUMONT, Jacques. A Imagem. 7. ed. Campinas: Papirus Editora, 2002. 336 p.
DAINIUS. 25-Years-Later, This Is What The “Edward Scissorhands” Neighborhood Looks
Like. Bored Panda, 2015. Disponível em: https://www.boredpanda.com/movie-locations-
edward-scissorhands-suburb-now-then-pictures-voodrew/. Acesso em: 14 out. 2022.
FARINA, Modesto et al. Psicodinâmica Das Cores Em Comunicação. 5. ed. São Paulo:
Editora Edgnard Blücher Ltda, 2006. 173 p.
GUIMARÃES, Luciano. A Cor Como Informação: a construção biofísica, linguística e
cultural da simbologia das cores. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2004.
HELLER, Eva. A Psicologia das Cores: como as cores afetam a emoção e a razão. São Paulo:
Editorial Gustavo Gili, 2012. 311 p.
MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006.
432 p.

217
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. 10 ed. Rio de Janeiro: Senac nacional, 2009. 254
p.
SANTOS, Dilma Francisco Rodrigues dos. Cinema E Estética: A Catarse em Diferentes
Contextos. Revista Pandora Brasil. 2011. Disponível em:
http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/filosofia_34/dilma.pdf. Acesso em: 20
abr. 2021.
WOOD, Paulo A. O estranho mundo de Tim Burton. 2° ed. São Paulo: Leya, 2015, 338 p.

Mini Currículo

Victória de Freitas Arruda


Graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Bolsista pelo
Programa de Excelência Acadêmica (Proex), financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) no Programa de Pós-graduação em Artes (PPGArtes) na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do grupo de pesquisa Laboratório
Universitário de Pesquisa e Produção em Arte (LUPPA) na Unimontes. E-MAIL:
vic.freitasa@gmail.com

218
CONEXÕES EXPERIMENTAIS ENTRE AS ARTES VISUAIS E O CINEMA
NO BRASIL

EXPERIMENTAL CONNECTIONS BETWEEN VISUAL ARTS AND CINEMA IN BRAZIL

Mario Caillaux
PPGAV UnB, Brasil

Resumo

Este artigo se propõe a investigar um dos diálogos existentes entre as artes visuais e o cinema
no Brasil. A partir de duas obras emblemáticas, mais especificamente o trabalho “Língua
Apunhalada”, de Lygia Pape, e uma cena do filme “Família do Barulho”, de Júlio Bressane,
onde a atriz Helena Ignez vomita sangue, buscaremos problematizar como a questão do
experimentalismo é um fator importante no diálogo entre essas linguagens. Através da
questão da imagem elaborada por teóricos como J.W.T. Mitchel e o conceito de
sobrevivência de Aby Warburg, interpretado por Didi-Huberman, buscaremos apontar
algumas dessas relações que as imagens dessas obras suscitam.

Palavras-chave: arte contemporânea; cinema experimental; Lygia Pape; Helena Ignez

Abstract

This article proposes to investigate one of the existing dialogues between the visual arts and
cinema in Brazil. Through two emblematic works, Língua Apunhalada (1969) by Lygia Pape
and a scene from the film Família do Barulho (1970) by Júlio Bressane, where the actress
Helena Ignez sick blood, we will seek to problematize how the issue of experimentalism is
an essential factor in this dialogue between these languages. Through questions about the
image raised by theorists such as J.W.T. Mitchel and the concept of survival that Aby
Warburg coined and Didi-Huberman interpreted, we will seek to demonstrate some of these
relationships that the images of these works evoke.

Keywords: Contemporary Art; Experimental Cinema; Lygia Pape; Helena Ignez.

219
Introdução

A busca por conexões entre as artes visuais e o cinema foram e são objeto de vários
estudos e pesquisas. Todavia, geralmente tais conexões são analisadas em uma
relação de causalidade, uma linguagem agindo sobre a outra. Por exemplo, em alguns
casos, investiga-se ligações da pintura na construção narrativa e visual da película
(AUMONT, 2004). Já em outros, problematiza-se as possíveis influências do cinema
nas artes visuais, como a utilização de projeções de sons e imagens em espaços
expositivos, fenômeno que o teórico francês Philippe Dubois chamou de “cinema de
exposição” (DUBOIS, 2004). Neste artigo, procuraremos percorrer um caminho
diferente. A partir de duas imagens marcantes destes meios no Brasil, buscaremos
demonstrar de que maneira as semelhanças entre essas imagens nos indicam
propostas e buscas estéticas coincidentes. Ou seja, são correlações entre essas
linguagens e não uma se sobrepondo a outra. A partir da imagem do trabalho de Lygia
Pape, denominado Língua apunhalada (1968) (Figura 01), e de uma cena final do filme
Família do Barulho (1970), de Júlio Bressane, onde a atriz Helena Ignez vomita sangue
(Figura 02), buscaremos realizar essa análise sobre o cinema e as artes visuais no
Brasil deste período e as suas afinidades.

O trabalho de Lygia Pape exemplifica um momento nas artes plásticas brasileiras que
foi bastante marcado pelo experimentalismo, com a participação do público e por
uma luta pelas liberdades políticas e sociais. Língua apunhalada (1968) é um
autorretrato fotográfico, em preto e branco, com um close do rosto da artista com a
língua para fora. Nessa língua, vemos um líquido preto escorrendo, no sentido
horizontal. Através do título, sugere-se um ato de violência nesse músculo.

Já a imagem de Helena Ignez / Júlio Bressane, surge em uma das cenas finais do filme
Família do Barulho (1970). A câmera faz um close do rosto da atriz. Percebe-se um
certo incômodo, exemplificado pelos movimentos que ela faz em sua garganta. Mais
para o final da cena, sem mudança no quadro fotográfico e sem abrir a boca, um
líquido escuro começa a vazar pelas extremidades dos lábios de Helena. Um vômito
contido de sangue. Entretanto, a forma que essa mancha adquire no rosto da atriz,
um borrão escuro do lábio inferior até o queixo, nos remete a uma língua. Uma língua
ensanguentada, como se a atriz estivesse com ela para fora da boca.

220
Olhando essas duas imagens lado a lado e descontextualizando-as de seus meios,
vemos grandes semelhanças. Apesar da pouca diferença cronológica entre uma
imagem e outra, apenas dois anos, e o fato de os artistas frequentarem um círculo
social comum - a comunidade artística do Rio de Janeiro, que, além das proximidades
e afinidades tinha no MAM o seu ponto de encontro -, não penso que se trate de uma
homenagem ou referência. Acredito que nem Pape nem Bressane tenham tido
contato com essas obras específicas até, no mínimo, o ano de 1971. O filme Família do
Barulho, apesar de ser de 1970, teve sua primeira exibição no Rio de Janeiro em
fevereiro de 1972, na cinemateca do MAM. Já em relação à foto de Pape, que é de 1968,
não encontramos o registro de quando ela foi apresentada em público pela primeira
vez.

O que pretendemos investigar é que, apesar de partirem de pesquisas estéticas em


meios diferentes, existem pontos em comum na base da construção dessas imagens
e, consequentemente, nos trabalhos desses artistas e dos grupos que eles
participavam. Uma transformação da obra de arte, um alargamento de suas
fronteiras, tanto das artes plásticas quanto do próprio cinema. Uma mudança da
própria linguagem e do objeto artístico, ou como a crítica americana Lucy Lippard
(1997) nomeou, uma desmaterialização do objeto artístico. Porém, nesses dois casos,
toda essa reformulação aconteceu seguindo preceitos bem próximos, uma
incorporação de um tipo de experimentalismo.

A questão temática, sem dúvida, se sobressai, principalmente se levarmos em conta


o momento político que o Brasil vivia. Análises e estudos de ambos os trabalhos
percorreram esse caminho, apontado como uma estratégia de resposta à conturbada
situação política. Ou ainda, uma introdução de novos temas - questões sociais e de
gênero - que, até então, de uma certa maneira, eram ignoradas por nossa cultura.

É um fato a ser registrado que esses artistas sofreram na pele a violência do Estado
no regime ditatorial. Bressane, junto a Rogério Sganzerla e Helena Ignez, sai do país
no ano de 1970, após um aviso de que seus filmes estavam sendo considerados
subversivos. Já Lygia Pape, no ano de 1973, foi presa na base aérea do Galeão no Rio
de Janeiro.

O objetivo principal será tentar encontrar uma “genealogia” que ligue essas duas
imagens. Parafraseando o teórico americano W.J.T. Mitchell (2015), “o que essas duas

221
imagens realmente querem?” Será que elas querem a mesma coisa? O fato delas
serem bastante semelhantes é apenas uma coincidência? Ou será que elas realmente
possuem discursos parecidos e que cada uma, a sua maneira, estaria contribuindo
para uma mudança não apenas de meios, mas da própria cultura?

Figura 01: Lygia Pape, Língua Apunhalada, 1968 (Fotografia em preto e branco)

Língua Apunhalada

Na década de 1960, após um aparente esgotamento das correntes abstratas, alguns


artistas plásticos começaram a desenvolver trabalhos experimentais que
extrapolavam as categorias tradicionais das artes plásticas, num alargamento de suas
fronteiras, numa mudança conceitual do que constitui o objeto artístico, uma
atualização e renovação das artes e de toda a sua história. Justamente o que para
muitos marca a passagem de uma arte moderna para contemporânea. Como o
teórico Hans Belting apontou: “Poderíamos [...] falar de uma perda de
enquadramento, que tem como consequência a dissolução da imagem, visto que ela
não é mais delimitada pelo seu enquadramento.” (2012, p.13)

Essa “perda de enquadramento” que Belting fala também se desenvolveu de maneira


bastante rica e singular na arte brasileira. Por motivos históricos, não foi pelo
esgotamento das correntes construtivas que essa mudança ocorreu em nosso país,
pelo contrário, foi através dela, principalmente do neoconcretismo, que chegamos à
arte contemporânea. Como aponta o crítico brasileiro Ronaldo Brito, esse
movimento lançou as bases para o aprofundamento de uma arte geométrica abstrata,
ao mesmo tempo em que proporcionou o alargamento de suas fronteiras, ou como o
autor denominou, o vértice e a ruptura do próprio movimento.
222
Na ala que, conscientemente ou não, operava de modo a romper os
postulados construtivistas ocorria sobretudo uma dramatização do
trabalho, uma atuação no sentido de transformar suas funções, sua
razão de ser, e que colocava em xeque o estatuto da arte vigente.
(BRITO, 1985 p.51)

A incorporação de outros sentidos, não apenas o visual no repertório das artes


plásticas está contida nessa ideia de dramatização a que Brito se refere acima.
Objetos, performances, filmes, fotografias, ambientes e toda uma nova série de
proposições estavam em desenvolvimento, tanto por esses artistas como também
por novas gerações e grupos que atuavam em outras linguagens, como por exemplo
o cinema.

Lygia Pape é uma figura central e importante para entender esse momento cultural
brasileiro. Ela, que foi um dos principais nomes do neoconcretismo após a dissolução
do grupo, passa a desenvolver uma série de trabalhos relacionados ao cinema
tradicional e experimental. Em um depoimento a artista relata que:

Durante uns quatro anos, voltei-me por completo para cinema e a


programação visual de filmes, fazendo cartazes e letreiros de uma série
de realizações do cinema novo […] jamais considerei ocasional essa
passagem da minha atividade em artes plásticas até a atuação na área
de cinema; vejo uma lógica interna justificando a, da gravura ao filme.
[...] O que ocorreu comigo foi ter levado isso a um tal ponto que o
espaço da gravura terminou consumido. Cavei e cheguei à luz total,
espaço idêntico ao espaço real. […] de repente, descobri que no filme
eu poderia manipular e dispor dessa luz impalpável,
luz/transparência[...]. (PAPE, 2004 p.108)

Com esses trabalhos no cinema, Pape desenvolveu um total conhecimento da


indústria cinematográfica e suas etapas de produção (PARENTE, 2013 p.48), que são
bem diferentes do processo de criação individual das artes plásticas. Como a própria
artista comenta, o seu caminho para o cinema não está desassociado dos seus
trabalhos anteriores, faz parte de uma pesquisa ampla que ela percorre ao longo de
sua carreira.

O retorno de Pape ao meio das artes plásticas se dá justamente na exposição Nova


Objetividade Brasileira (1967). Essa exposição não foi apenas um marco na recente
história da arte brasileira, como também é considerada uma tomada de posição dos
artistas, escrevendo e produzindo pensamentos e críticas a respeito de suas
223
condições, de seus trabalhos e dos rumos que a arte estava tomando. É curioso que,
nesse “retorno”, a radicalidade das propostas de Pape também muda
consideravelmente. Não queremos dizer com isso que seja algo que esteja dissociado
de seus trabalhos anteriores. Pelo contrário, dando continuidade a sua poética,
incorpora novas situações e propostas e suas obras adquirem novos caminhos. “A
partir de 1967, a artista inseriu em sua produção ordens, configurações e temas mais
anárquicos, sem deixar de tocar nas questões que sempre lhe interessaram.”
(PEQUENO, 2017 p.153). Nessa exposição ela apresentou as Caixas de baratas (1967) e
a Caixa das formigas (1967), incorporando com bastante desenvoltura e humor outros
signos para seus trabalhos, sem abandonar as ideias construtivas.

É nesse contexto que ela cria o poema visual Língua apunhalada (Figura 01). Na forma
como ele é apresentado hoje em dia, em backlight - uma caixa de luz por trás da
fotografia -, vai totalmente de encontro à forma como Pape descreve o cinema, no
trecho acima: “Luz impalpável, luz/transparência”. Essa maneira de apresentar o
trabalho subverte o uso convencional dessa mídia, trazendo toda uma ligação entre
meios, entre a fotografia e o cinema, criando quase um holograma no espaço.

Neste autorretrato, Pape está com a boca totalmente aberta, com a língua para fora,
mostrando o “sangue”. Mas não vemos a ferida, não sabemos se é resultado de um
corte que esse líquido escorrendo ou de algo mais profundo, perto da garganta.
Também pela expressão facial não visualizamos nenhuma dor ou incômodo da
artista. Pelo contrário, com o rosto limpo, sem maquiagem e olhos bem abertos, a
artista até aparenta uma certa serenidade. Apesar de o título do trabalho sugerir,
num primeiro momento, um ato de violência explícito, uma agressão física, não é isso
que a imagem demonstra.

Apesar de a imagem aparentar essa contradição, nem tudo o que vemos é o que ela
nos mostra. O caminho de leitura que o título nos sugere não corresponde à imagem
real, mas apenas ao sentido figurado. Como W.J.T. Mitchel aponta em O que as
imagens realmente querem?:

As imagens são marcadas por todos os estigmas próprios a animação e


a personalidade: exibem corpos físicos e virtuais; falam conosco, às
vezes literalmente, as vezes figurativamente; ou silenciosamente nos
devolvem o olhar através de um abismo não conectado pela linguagem.
(MITCHEL, 2015, p.67)

224
Essa personalidade própria da imagem é o que ela nos quer mostrar, o que podemos
denominar de seu desejo, mas que nem sempre é visível em um primeiro momento.

Buscando o significado de apunhalado no dicionário, vemos que existem duas


definições para esse adjetivo. A primeira, mais comumente usada, é: “ferido ou morto
a punhal”, o que contradiz a imagem, ou seja, nosso desejo de ver algo que não está
visível na foto. Já a segunda é: “censurado com veemência; exprobrado”. A censura é
um ato de extrema violência e agressão, mas que não deixa marcas físicas.

A censura da língua indica alguns caminhos. O primeiro é a censura da fala, da


palavra, da linguagem. A perda de um tipo de comunicação e socialização do ser
humano. Levando em consideração o ambiente político e social que o país vivia, isso
era algo que estava em curso com toda a violenta repressão da ditadura militar. Nesse
sentido, fazer uma imagem de uma língua apunhalada, exprobada, é um artifício
inteligente de subverter essa proibição e, ao mesmo tempo, denunciá-la. A linguagem
verbal é excluída, mas ainda restam outras linguagens, como a visual e a corporal,
para se comunicar. A perda de um sentido, de uma linguagem, não significa a perda
da ideia, da sua materialização e de seu ato. Isso vai de encontro com a própria ideia
do conceitualismo, que estava em pleno desenvolvimento no mundo das artes nesse
período, e que no Brasil, devido ao contexto social, ganha características políticas
marcantes.

Um outro caminho, e que não exclui o primeiro, é a censura da língua no sentido de


ela ser o músculo responsável pelo paladar. Esse ato implicaria na exprobração de
sentir gosto, algo bastante contraditório. Como é possível proibir, recriminar,
reprovar algum sentimento?

A artista trabalhou com essa ironia em alguns de seus trabalhos de maneira mais
explícita. Este é o caso da instalação Roda dos Prazeres (1968), na qual Pape dialoga
com uma aparente contradição dos sentidos. Segundo a artista: "O olhar é seduzido
por uma cor, mas o paladar pode reagir de maneira diferente” (CYPRIANO,
21/04/2001). De maneira oposta ao que as cores sugeririam, num senso comum, o
seu gosto é desassociado da emoção que a cor nos transmitiria. O vermelho não é
picante, é doce, o amarelo não é salgado, é amargo, e assim por diante.

Em diversas montagens desse trabalho é colocado ao fundo uma foto de um homem


com chapéu de palha interagindo com a obra e pingando em sua língua a cor azul.
225
Um outro registro bastante associado com esse trabalho é o da própria artista numa
praia deserta com uma faixa azul sobre a cabeça, segurando os cabelos, interagindo
com essa instalação e pingando um líquido vermelho. O enquadramento de ambas as
fotos é totalmente diferente de Língua Apunhalada. Os registros da instalação são
tirados de perfil, em um plano aberto, mostrando o ambiente a sua volta e,
principalmente, o gesto de pingar com conta-gotas na língua. Outra diferença
fundamental é que as fotos da instalação são em cor, enquanto o trabalho Língua
Apunhalada é em preto e branco.

Apesar das diferenças formais entre as fotografias, as imagens do líquido escorrendo


pela língua são bastante próximas e, ao mesmo tempo, apontam caminhos opostos.
A língua apunhalada busca uma agressividade, uma violência, já a língua da instalação,
como o próprio nome indica, busca um prazer, uma satisfação. São ideias opostas,
apesar de se tratar da mesma língua, a língua da artista. A pesquisadora Fernanda
Pequeno, analisando os trabalhos de Lygia através da ideia de abjeto e do erotismo,
aponta que:

Jogando com temas, materiais e formas, os trabalhos de Pape, pelos


vieses da abjeção e do erotismo, fizeram uso de assuntos e aspectos
não palatáveis, mantendo uma postura curiosa e crítica, como mulher
e como artista. Nas palavras da própria Pape: “Procuro caminhar pela
obscuridade das coisas. O que quero é o outro lado. É ver pelas frestas
e fazer descobertas. (PEQUENO, 2017 p.156)

Essa fala de Pape, de ver pelas frestas e fazer descobertas, encontra paralelo na ideia
de Aby Warburg sobre sua iconologia e sobre o seu conceito de sobrevivência, onde
para ele era possível ver esse anacronismo da imagem:

A imagem não é imitação das coisas, mas o intervalo tornado visível, a


linha de fratura entre as coisas. Aby Warburg já dizia que a única
iconologia interessante, para ele, era uma “iconologia do intervalo”.
Isso se deve ao fato de que o lugar da imagem não é determinado de
uma vez por todas: seu movimento visa desterritorialização
generalizada. A imagem pode ser, ao mesmo tempo, material e
psíquica, externa e interna, espacial e linguageira, morfológica e
informe, plástica e descontínua [...] (DIDI–HUBERMAN, 2015, p.126)

A imagem pelas frestas, o seu intervalo, seria esse paradoxo que a própria língua de
Pape nos propõe, uma imagem que, em um primeiro momento, nos indica uma
226
direção, mas, ao olharmos atentamente, vemos os múltiplos e contraditórios
caminhos que ela nos sugere, uma imagem entre linguagens.

Como falamos anteriormente, Lygia Pape, após a dissolução do grupo neoconcreto,


realiza trabalhos voltados para a área do cinema. Ela, de certo modo, participa do
movimento do cinema novo em sua fase inicial. Porém, no decorrer da década, mais
para o final dos anos de 1960, esse movimento, que surge com grande força e como
um modelo de ruptura do modo de como se fazia cinema até então no Brasil - filmes
de estúdios mais voltados para as comédias, as famosas chanchadas – acaba se
modificando. Uma parte desse movimento procura incentivar a formação de
espectadores e, como consequência, o desenvolvimento de uma indústria nacional
forte, com todos os seus sistemas correlatos, produção, distribuição e público
consumidor. Não foi uma atitude homogênea, assimilada e corroborada por todos os
seus autores, pois, para os que não seguiram por esse caminho, essas ideias iam num
sentido oposto às bases experimentais do início do movimento.

Família do Barulho

Figura 02: Frame do filme Família do Barulho (1970) Dir. Júlio Bressane, onde a atriz Helena Ignez
vomita sangue.

No final da década de 1960, um grupo de jovens, alguns ligados à crítica


cinematográfica, começam a fazer seus próprios filmes, em contraponto a essa
tentativa de formatação que o cinema novo estava tomando. Preocupados, mais com
a linguagem e com as características estéticas do que com a recepção e a assimilação
de suas obras a um público, eles assumem um caráter experimental e,
consequentemente, marginal. Esse grupo, que surge pós Cinema Novo, não era um

227
movimento organizado, com manifestos e orientações claras. Algumas
denominações para esse conjunto de filmes foram cunhadas: Cinema Marginal,
Cinema de Invenção, Udigrudi, etc. Na verdade, todos esses filmes fazem parte desse
guarda-chuva maior que é o cinema experimental, que abarcaria, além dessas obras,
filmes de artistas, audiovisuais, vídeos e diversas outras propostas com a imagem em
movimento. Segundo o pesquisador André Parente, o cinema marginal era:

[...]um cinema de ruptura tanto na forma (superexposição das


imagens-clichês) como no conteúdo (crítica dos estereótipos
comportamentais). Nele, temas psicossociais como o desespero, a
violência, a escatologia e a carnavalização são geradas por uma espécie
de impotência atávica. (PARENTE, 2013, p. 47)

Essa congruência de arte e vida associada com questões políticas gera o que o autor
acima chama de “impotência atávica”. Esse impedimento, que era vivenciado no dia
a dia, não só por esse grupo, mas também por todos que eram contra o regime
ditatorial, aparece nessas obras na questão narrativa. Não que ela não fosse real, pelo
contrário, já citamos acima os exemplos de Pape e de Bressane, e poderíamos elencar
muitos outros. O ponto que queremos demonstrar é que, apesar de toda essa
“impotência atávica”, os artistas e cineastas conseguiram superá-las e, assim, realizar
suas obras. Através de um experimentalismo, tanto na forma de produção quanto na
linguagem, venceram todas as dificuldades (burocracia, censura governamental,
questões financeiras etc.) e as transformaram quase numa metalinguagem incluída
em sua temática.

No ano de 1970, Júlio Bressane, junto com Rogério Sganzerla e a atriz Helena Ignez,
fundaram uma produtora de cinema, chamada Belair, que foi um marco para esse
movimento. Com um período curto de atuação, apenas alguns meses, ela conseguiu
realizar um total de seis filmes. Em um esquema de produção cooperativa, Família
do Barulho (1970), com direção de Bressane, foi o primeiro filme da Belair. Segundo
relatos, sua filmagem durou apenas quatro dias e sua montagem foi realizada no
mesmo mês, algo bastante incomum na arte cinematográfica.

A sinopse de Família do Barulho poderia ser descrita dessa maneira: Uma família nada
tradicional, formada por uma prostituta (Helena Ignez) e dois homossexuais
vagabundos (Guará Rodrigues e Kleber Santos), que vivem uma rotina de aventuras

228
e malandragens na cidade do Rio de Janeiro. No momento em que a personagem de
Helena Ignez ameaça cortar a boa vida dos irmãos, eles, como alternativa, decidem
contratar uma odalisca para financiá-los.

Até certo ponto ela é verdadeira, numa tentativa de resumir o filme pela questão
narrativa, como geralmente são as sinopses. Mas, mesmo por essa via, temos que
lembrar que os filmes da Belair são caracterizados por “sua estrutura narrativa frouxa
que é frequentemente obscurecida por performances carnavalescas ou dissolvida
por rupturas narrativas” (ELDUQUE, 2019, p.149). Pela profusão de acontecimentos e
pelas potências das imagens e das ações propostas, que fogem desse roteiro, o filme
é algo maior, que esse resumo não é capaz de abranger, tanto das experimentações
da linguagem cinematográfica, quanto das ações propostas. Como disse o poeta
Torquato Neto no artigo A Família do Barulho é da Pesada, publicado em sua coluna
Geléia Geral: “Cada plano existe só e depois que não acaba. Toda a situação é
autônoma - montagem somassequente de planos” (NETO, 1973, p.54). Ou seja, cada
cena, em sua questão narrativa e estética, se desenvolve nela mesma. Dessa maneira,
podemos fazer uma associação com o que Marie José Mondzain diz a respeito da
imagem cinematográfica em A imagem pode Matar?: “A força da imagem provém do
desejo de ver, a do visível da sua capacidade de ocultar, de construir a distância entre
o dado a ver e o objeto do desejo. Sem desejo de ver não há imagem, mesmo se o
objeto deste desejo não é senão o próprio olhar.” (MONDZAIN, 2009 p. 31). Como
essas cenas fazem parte de um filme, um conjunto de cenas, elas também acabam se
conectando e ganhando outro significado, que seria essa capacidade de ocultar do
visível.

No caso da imagem apontada no início do artigo, da atriz Helena Ignez vomitando


sangue (Figura 02), ela surge no final do filme, após outros dois planos dos atores
Kleber Santos e Guará Rodrigues, também em situações de close de seus rostos,
encarando a câmera, quase sem piscar. Santos é o primeiro que aparece e tem
embaixo de seu olho esquerdo uma mancha escura que se assemelha a uma gota,
talvez um choro de sangue. Guará aparece em seguida, de cara limpa, e encara a
câmera por alguns segundos, mas interrompe esse ato colocando suas mãos sobre
os olhos para, em seguida, abaixar a cabeça como se estivesse escondendo o choro.
Por último é que aparece a imagem de Helena Ignez encarando a câmera de frente.

229
Essas tomadas, do ator ou da atriz olhando a câmera fixamente de frente em um
plano fechado, são bastante incomuns nos filmes tradicionais. Elas estariam mais
associadas a uma situação de repressão, às famosas fotografias policiais feitas
quando alguém é detido.

Bressane, no filme, utiliza bastante esse recurso da fotografia. Tanto a fotografia em


si, com imagens de família aparentemente descontextualizadas do núcleo dramático
do filme, quanto também cenas filmadas estaticamente e pousadas dos atores,
imitando a linguagem fotográfica. Essas imagens surgem entre as cenas do filme, sem
uma relação direta com a narrativa, mas como uma memória de algo ainda a ser
lembrado. Essa utilização da referência de outro meio é uma das características dos
estudos da intermidialidade, onde “[...] textos de uma mídia só (que pode ser uma
mídia plurimidiática), que citam ou evocam de maneiras muito variadas e pelos mais
diversos motivos e objetivos, textos específicos ou qualidades genéricas de uma
outra mídia.” (CLUVER, 2011, p.17).

No caso da imagem de Helena Ignez – sem levar em consideração que se trata de um


frame de um filme, ou seja, que sabemos de antemão o processo que levou até àquele
determinado instante – aparenta um mal-estar, se olharmos apenas para a imagem
estática, para a sua fisionomia, o que difere do trabalho de Lygia. Esse mal-estar pode
ser exemplificado pela maquiagem bem escura em volta de seus olhos e pela mancha
que cobre seu queixo, que nos lembra uma língua, mas a forma de sua boca, quase
totalmente fechada, não condiz com a expressão de quando a colocamos para fora.
Essas zonas escuras, em contraste com a pele branca da atriz e com seu cabelo
despenteado, nos passam a ideia de que algo está errado. Não sabemos se é externo,
como uma apunhalada, ou interno, como uma hemorragia.

Conclusões

Será que existe alguma ligação entre as artes plásticas e o cinema nesse período?
Será que são apenas coincidências essas semelhanças das duas imagens? Ou será que
existe uma genealogia, uma sobrevivência da imagem que as liguem? Nos diversos
estudos e artigos onde essas obras são analisadas, elas geralmente são
contextualizadas apenas em seus próprios meios, e ainda não tinham sido colocadas
cara a cara.
230
No artigo, procuramos demostrar, a partir desses dois exemplos, algumas das
afinidades entre essas linguagens. Uma análise mais aprofundada sobre estas
ligações entre as artes plásticas e o cinema marginal neste período ainda merece ser
realizada. Mas, em nosso estudo, identificamos alguns desses pontos de contato,
através das imagens, da utilização e da ligação de meios e suportes que esses
trabalhos suscitam. As duas imagens analisadas no artigo demonstram algumas
características desse experimentalismo, utilizando-se de meios e temas sem
preconceitos e distinções, com uma liberdade que, ao mesmo tempo, subverte e
afirma essas linguagens, em movimentos oposto dentro da própria obra. Esta é uma
característica marcante dessas duas línguas. A temática - a língua, o sangue, o abjeto,
o erotismo - também demonstra que não era uma coincidência, mas que fazia parte
de um projeto maior que estava em curso nessas linguagens. Uma dessacralização
tanto da obra e de seus suportes quanto das narrativas propostas por elas.

Referências

AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac
Naify, 2012.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura. Rio de Janeiro: Funarte, 1985
CLUVER, Claus. Intermidialidade In: Pós Belo Horizonte: v.1, n.2, nov. de 2011.
CYPRIANO, Fabio. A biblioteca de Lygia Pape. São Paulo: Folha de São Paulo, 21 abr. 2001
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2104200113.htm Acesso
em: 28 set. 2022
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
DUBOIS. Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo. Cosac Naify, 2004.
ELDUQUE, Albert. Between film and photography: the bubble of blood in The Family of
Disorder. In: Screen, Volume 60, Issue 1, Spring 2019, Pages 148–159,
https://doi.org/10.1093/screen/hjy069
LIPPARD, Lucy. Six Years: the dematerialization of the art object from 1966 to 1972. Los
Angeles: University of California Press, 1997.
MITCHELL, W.T.J. O que as imagens realmente querem? In: ALLOA, Emmanuel. Pensar a
imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.
NETO, Torquato. Torquato Neto: os últimos dias de paupéria. Rio de Janeiro: Livraria
Eldorado Tijuca, 1973.

231
PAPE, Lygia. Dossiê Lygia Pape: Homenagem Rio de Janeiro. Arte & Ensaios n.11, 2004.
PARENTE, André – Cinemáticos: Tendências do Cinema de Artista no Brasil. Rio de
Janeiro:+2 Editora, 2013.
PEQUENO, Fernanda. Abjeção e erotismo como procedimentos críticos em
trabalhos pós neoconcretos de Lygia Pape. Rio de Janeiro: Arte & Ensaios n.33 ano
2017. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/11086
Acesso 28 set. 2022

Mini Currículo

Mario Caillaux
Doutorando em Teoria e História da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
Universidade de Brasília (PPGAV UnB). Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV da UFRJ. Sua pesquisa é
focada na relação entre as imagens em movimento e a arte contemporânea em suas diversas formas
de atuação. E-MAIL: marcaillaux@gmail.com

232
NÃO ÀS MINHAS CICATRIZES: UM GRITO DECOLONIAL
MÚSICA “AMARELO”- EMICIDA

NO TO MY SCARS: A DECOLONIAL SCREAM


“YELLOW” SONG - EMICIDA

Nádja Nayra Brito Leite


UNEB, Brasil

Resumo

As profundas marcas da colonização, da escravidão e da ditadura estão presentes na história


do Brasil e nas subjetividades dos sujeitos. Contudo essas mazelas não definem a identidade
do povo brasileiro e especificamente do povo negro do Brasil. E este é o grito/alerta que o
rapper Emicida traz na canção AmarElo (2019) cujo refrão entoa “permita que eu fale: não às
minhas cicatrizes”. O presente artigo se propõe a analisar o trabalho musical AmarElo sob a
perspectiva do pensamento decolonial e da crítica social. Alguns pontos a serem
investigados: de que forma o compositor constrói a interseccionalidade na obra? Qual a
significância dos sujeitos convidados para compor a pluridiversidade musical? Em quais
aspectos os discursos presentes na música se relacionam e dialogam com a temática base do
artigo? Discutindo os conceitos de colonialismo, colonialidade, eurocentrismo,
decolonialidade e crítica social por meio do arcabouço teórico dos autores Quijano (2005),
Mignolo (2017), Kilomba (2019), Santos (2015), Spivak (2010) e Hall (2003) pretende-se
responder às questões-chave e compreender a complexidade construtiva da obra decolonial
AmarElo.

Palavras-chave: Decolonialidade, crítica cultural, cultura negra, produção artística

Abstract

The profound marks of colonization, slavery and dictatorship are present in the history of
Brazil and in the subjectivities of the subjects. However, these ills do not define the identity
of the Brazilian people and specifically of the black people of Brazil. And this is the cry/alert
that rapper Emicida brings in the song “Yellow” (2019) whose chorus chants “allow me to
speak: no to my scars”. This article aims to analyze the musical work “Yellow” from the
perspective of decolonial thinking and social criticism. Some points to be investigated: how
does the composer build intersectionality in the work? What is the significance of the
subjects invited to compose the musical pluridiversity? In which aspects do the discourses
present in the music relate and dialogue with the base theme of the article? Discussing the
concepts of colonialism, coloniality, Eurocentrism, decoloniality and social criticism through
the theoretical framework of authors Quijano (2005), Mignolo (2017), Kilomba (2019), Santos

233
(2015), Spivak (2010) and Hall (2003) is intended to respond to the key questions and
understand the constructive complexity of the decolonial work “Yellow”.

Keywords: Decoloniality, cultural criticism, black culture, artistic production

Introdução

AmarElo, título inspirado em um poema de Paulo Leminski1 (amar é um elo | entre o azul |
e o amarelo), nomeia três importantes trabalhos dialógicos do cantor, rapper e
compositor brasileiro Emicida: a música (sample “Sujeito de Sorte” de Belchior) cantada
por ele, Majur e Pablo Vittar; o álbum composto de onze músicas nos estilos rap e neo-
samba e o filme documentário exibido no canal de streaming Netflix. AmarElo - É Tudo Pra
Ontem (2020) é o nome do documentário que vai muito além de um registro do show do
rapper no Theatro Municipal de São Paulo, realizado em novembro de 2019. A intenção
clara e bem sucedida da obra é contar os cem anos da arte da cultura negra no Brasil e
celebrar a memória dos antepassados, construindo uma resistência no presente. Com
o tempo de noventa minutos, a montagem de AmarElo - É Tudo Pra Ontem se constitui
uma obra rizomática que mistura a trajetória de vida do cantor, os bastidores do
álbum de mesmo título, a apresentação no Theatro com a história, o legado, as lutas
e as conquistas do povo negro brasileiro com fundamental contextualização sobre
escravidão, política de branqueamento e racismo, símbolos que acenam para o
passado e para o presente da Nação. Composto de três atos, com os nomes
sugestivos de “Plantar”, “Regar” e “Colher”, o documentário passeia nos ritmos
musicais que constituem a identidade negra, como o samba, o samba-rock e o rap,
sugerindo a elaboração de uma nova vertente: o neo-samba. Mas a narrativa não se
limita a homenagear a música e sim as diversas expressões artísticas como a
literatura, o teatro, a moda e a arquitetura. Assim, o documentário exalta o legado
deixado por grandes nomes da cultura negra como: o artesão e arquiteto que foi
escravizado Tebas, os músicos Pixinguinha, Donga, Ismael Silva, Wilson das Neves,
Zeca Pagodinho, Leci Brandão e Wilson Simonal, a antropóloga e ativista Lélia
Gonzalez, o artista plástico e poeta Abdias do Nascimento e a atriz Ruth de Souza,

1
Paulo Leminski Filho (1944 -1989) foi um escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor brasileiro.
234
entre outros. Não por acaso, Emicida deixa para o final do filme, a potente parceria
musical com Majur e Pabllo Vittar que dão vozes à música AmarElo, sampleada com
“Sujeito de Sorte”, de Belchior. Leandro Roque de Oliveira, artista brasileira que usa
o acrônimo E.M.I.C.I.D.A - Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades
Domino a Arte – relata no documentário AmarElo – É Tudo Para Ontem - que ao
chamar artistas LGBTQIA+, ele estaria juntando as bandeiras, pois não tem como
lutar por liberdade pela metade. “Assim como o prisma decompõe a luz branca em
muitas outras cores, eu gostaria de decompor o preconceito em muitas outras
possibilidades unidas no AmarElo“ (2EMICIDA, 2020). Ao fazer isso, o rapper
interseciona classe, raça e gênero, numa sobreposição de identidades sociais e
sistemas relacionados de opressão, dominação e discriminação. É justamente essa
obra o locus deste trabalho que se dedica a analisar a referida composição musical
por meio dos eixos discursos da decolonidade e da crítica social.

Colonialismo e colonialidade – “3o branco inventou que o negro...”

Para chegar ao conceito de decolonidade é importante informar anteriormente as


concepções de colonialismo e colonialidade. O colonialismo é entendido como um
período histórico marcado pelo processo de expansão cultural e territorial de
determinados países europeus por meio da dominação de povos e/ou nações de
outros continentes. Por um ângulo complementar, o colonialismo pode ser visto
como uma trágica marca da história mundial que com ideias salvacionistas e
civilizatórias justificou e embotou a real dimensão dos intensos genocídio e etnocídio
que se realizaram no período de colonização. Essa expansão do colonialismo
europeu, elaborada por meio das navegações e das pseudos descobertas de outros
continentes, conduziu à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento.
A colonialidade, que é precedida pelo colonialismo, refere-se a um padrão de poder
estabelecido e difundido, orientado em uma visão eurocentrada do mundo, e que não
se limita, por exemplo, a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações,

2
A fala de Emicida está presente no trecho do documentário AmarElo – É Tudo para ontem (2020) – no tempo de
1:13:19. Disponível na plataforma streaming Netflix
3 Trecho damúsica “Mão da limpeza” do cantor e compositor Gilberto Gil que faz parte do álbum Raça Humana de
1984, disponível em https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/574045/
235
mas estende-se à forma como se articulam e se estabelecem a difusão do
conhecimento, as relações de trabalho, as práticas culturais e até as relações
intersubjetivas pós-coloniais no mundo. A fim de distinção, como conceitua a
professora Vieira4 (2021) “colonialismo diz respeito à experiência histórica concreta
que foi o período colonial, vivido do século XVI ao século XIX nas Américas e ao longo
do século XX no Oriente Médio, na África, na Índia e na China, é que se configura
como uma prática de controle e administração político-econômica e cultural”; já a
colonialidade refere-se ao vínculo entre o passado e o presente, emergindo um
padrão de poder resultante da experiência moderna colonial, uma lógica
organizadora do poder que se estende para o pós-colonial. De forma simplista, pode-
se dizer que o colonialismo é o exercício da colonização e a colonialidade é a herança
cujo legado produz marcas reais até hoje, tais como patriarcalismo, racismo e
homofobia. A colonialidade é um conceito que foi cunhado pelo sociólogo peruano
Aníbal Quijano e desempenha na visão do mesmo o papel de primeira ordem na
elaboração eurocêntrica da modernidade. “Nesse sentido, a modernidade foi
também colonial desde seu ponto de partida”. (QUIJANO, 2005, p.114). Portanto,
colonialidade, eurocentrismo e modernidade são conceitos aproximados e
complementares. Para o sociólogo: “A globalização em curso é, em primeiro lugar, a
culminação de um processo que começou com a constituição da América e do
capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder
mundial” (QUIJANO, 2005, p.107). Esse novo padrão de poder mundial ao qual ele se
refere está fundamentado em uma ideia de classificação de raça como uma
construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial. Os
conquistadores europeus estabelecem uma ideia de hierarquização de raça por meio
de uma suposta distinção biológica que, convenientemente, situa os conquistados
em situação natural de inferioridade em relação aos conquistadores. Embasado em
uma divisão racial, foi estabelecido um novo padrão global de controle do trabalho,
no qual homens brancos tem o trabalho assalariado e portanto o controle econômico,
enquanto os homens não-brancos estão destinados ao trabalho servil e escravo, e
isto se tornou um fator determinante para a geografia social do capitalismo.

4
Fala presente no podcast “Pausa para o Fim do mundo”, episódio Pensamento Decolonial e Feminismo Decolonial
(com Helena Vieira), publicado em 21 de abril de 2021. Disponível em
http://open.spotify.com/episode/2E8vjFog4Ac9crlJVzcs3Q
236
Constitui-se uma lógica eurocentrada de estabelecimento do status quo que não se
restringe à parte econômica, mas afeta todas as relações sociais, culturais e
intersubjetivas, como salienta:

Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos


culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural
global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras
palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa
também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas
de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do
conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005. p.110)

Corroborando Mignolo ressalta que “Na sua formulação original por Quijano, o
“patrón colonial de poder” (matriz colonial de poder) foi descrito como quatro
domínios inter-relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da
sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade”. (MIGNOLO, 2017, p.5). Cercada
em todas as áreas, essa matriz colonial do poder garante à Europa uma suposta
legitimidade do poder e da dominação sobre outros povos e nações. As relações
intersubjetivas e culturais entre a Europa Ocidental e o restante do mundo foram
codificadas em uma perspectiva dualística que evidencia a “supremacia” europeia e
desqualifica o que não é Europeu: Oriente x Ocidente, primitivo x civilizado,
mágico/mítico x científico, irracional x racional, tradicional x moderno. A
colonialidade do saber não só ajuda a manter a dominância eurocêntrica do
conhecimento como também impede que o saber possa ser difundido de outra forma,
assim somente os centros eurocentrados são tomados como referências de
construção de ciência e somente essa produção de conhecimento é válida. Para
Mignolo (2017):

O conhecimento na MCP [Matriz Colonial do Poder] era uma faca de


dois gumes: por um lado, era a mediação para a ontologia do mundo,
assim como um modo de ser no mundo (a subjetividade); por outro
lado, uma vez que o conhecimento era concebido imperialmente como
o verdadeiro conhecimento, se tornou uma mercadoria para ser
exportada àqueles cujo conhecimento era alternativo ou não moderno,
segundo a teologia cristã e, depois, a filosofia secular e as ciência.
(MIGNOLO, 2017, p.8)

237
Assim, impondo uma cultura e anulando outras, a dominação europeia ocorre de
forma mais fácil e eficiente, e com o auxílio da teologia cristã chega às instâncias mais
íntimas das subjetividades: ao gênero e à sexualidade. A mulher, por exemplo,
encontra-se em uma posição ainda mais periférica pelos problemas subjacentes às
questões de gênero e Spivak (2010) relata:

É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da


historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção
ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto
da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode
falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na
obscuridade. (SPIVAK, 2010, p.83)

Não há modernidade sem colonialidade, e nem colonialidade sem conceito mental de


ração. A imposição do eurocentrismo vai ao encontro dos conceitos de colonialidade
do poder, do saber e do ser, que conduzem e impõem a dominância europeia em
todos as instâncias sociais, culturais, econômicas, políticas e até subjetivas. É
importante pontuar ainda que a colonialidade do poder, do saber e do ser tende a se
reproduzir nos espaços internos dos países, é o que se vê no Brasil, nas relações
endógenas entre sul/sudoeste X norte/nordeste, que por vezes são palcos de
xenofobia.

Decolonialidade: “ 5exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou
hoje”

“Des” é um prefixo de origem latina que exprime as ideias de separação e


afastamento. Portanto 6des(colonizar) ou de(colonizar) é afastar-se da colonialidade
e do colonialismo, estabelecer um pensamento de contraposição a esses processos.
Há ainda a acepção contra-colonização, como define Santos (2015) que destaca que
para compreender os efeitos da colonização nas Américas faz-se necessário dialogar

5
Ditado ioruba usado na abertura e no encerramento do documentário AmarElo – É tudo pra ontem (2020). Segundo
o professor de filosofia da Universidade Rural do Rio de Janeiro, Renato Nogueira, o termo significa que “É o orixá
que abre caminho para o acontecimento. Na mitologia, quando joga a pedra por trás do ombro e mata o pássaro no
dia anterior, Exu reinventa o passado. Ensina que as coisas podem ser reinauguradas a qualquer momento”.
6
Os termos decolonial e descolonial são usados como sinônimos em grande parte dos materiais acadêmicos
traduzidos para a língua portuguesa. Nas citações a autora manterá o termo usado pelo escritor e usará “decolonial”
nas demais escritas do artigo.
238
profundamente com os conceitos de cor, raça, etnia, colonização e contra-
colonização. (SANTOS, 2015, p. 20). Na perspectiva decolonial, por meio das
realidades vividas dentro de seus espaços geográficos, grupos, práticas e
experiências em países asiáticos e latino-americanos podem proporcionar
visibilidade sem a necessidade da interface de olhares eurocentrados colonizadores.
Mignolo (2017) preconiza que:

O pensamento descolonial e as opções descoloniais (isto é, pensar


descolonialmente) são nada menos que um inexorável esforço analítico
para entender, com o intuito de superar, a lógica da colonialidade por
trás da retórica da modernidade, a estrutura de administração e
controle surgida a partir da transformação da economia do Atlântico e
o salto de conhecimento ocorrido tanto na história interna da Europa
como entre a Europa e as suas colônias (MIGNOLO, 2017, p.6)

“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”: a essência deste
ditado ioruba expressa a meta da decolonialidade que é repensar o passado para se
projetar um presente e um futuro mais igualitários, nos quais os países latinos e
asiáticos possam ter as vozes de seus sujeitos proliferadas e ouvidas, não havendo
uma verdade e uma história únicas. Ou ainda como esclarece Kilomba (2019):
“Descolonização refere-se ao desfazer do colonialismo. Politicamente, o termo
descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os
e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia”. (KILOMBA, 2019,
p.145).

Amarelo: um elo construído por vozes decoloniais

Na construção da independência e da autonomia de povos, nações e sujeitos, a


cultura, especialmente a popular, tem papel fundamental. E sobre “popular”, Hall
(2003) sentencia que há muitos conceitos mas que nem todos são úteis, tais como a
cultura popular vista como algo tradicional ou alternativo e a ideia de ingenuidade e
autonomia associada a este estilo. O teórico propõe outro víeis, no qual a “cultura
popular” está em uma tensão contínua de luta com a cultura dominante. Assim para
Hall (2003):

O que importa não são os objetos culturais intrínseca ou


historicamente determinados, mas o estado do jogo das relações
239
culturais: cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o que
conta é a luta de classes na cultura ou em torno dela (HALL, 2003, p.
258)

Moreira (2018, p.2) expõe que: “Hall (2003) vislumbra perspectivas, tais como culturas
como forma de lutas e identidades, que, do nosso ponto de vista, também
constituíram as bases do Hip Hop, como as lutas contra a segregação racial e social
que visavam à construção de identidades, à liberdade de expressão, ao direito de ir e
vir, ao acesso a bens e a serviços, entre outros”. O movimento Hip Hop é uma cultura
popular que surgiu entre as comunidades afro-americanas do subúrbio de Nova York
na década de 1970, tendo a música (RAP), a dança (break) e a expressão plástica
(grafite) como formas de manifestação. Emicida é um rapper (cantor de rap) que
parece distanciar-se da visão de cultura popular como algo ingênuo e compreender
a arena de luta que a cultura popular faz parte, em um constante jogo de sedução e
negação com a cultura dominante. Assim para a composição artística AmarElo (2019),
o rapper convoca a drag queen e cantora Pablo Vittar e a cantora transexual não-
binária Majur (representantes e militantes da comunidade LGBTQIA+) para
interpretarem a canção e, desta forma, expande a percepção da composição musical
para além das relações inter-raciais (que são tratadas na maioria das outras músicas
do álbum e do documentário), constituindo uma proposta decolonial que contempla
a pluralidade de sujeitos e se coloca como uma alternativa para dar voz e visibilidade
a povos e saberes subalternizados. O sistema colonial inventou as categorias
“homem” e “mulher” assim como inventou as categorias “homossexual” e
“heterossexual pois

Essa invenção faz com que a “homofobia” seja irrelevante para


descrever as civilizações Maia, Asteca ou Inca, pois nessas civilizações
as organizações de gênero/sexo eram moldadas em categorias
diferentes, que os espanhóis (e os europeus, em geral, sejam cristãos
ou seculares) foram ou incapazes de ver ou indispostos a aceitar. Não
havia a homofobia, já que os povos indígenas não pensavam através
desses tipos de categorias (SIGAL, 2002; MARCOS, 2006 apud
MIGNOLO, 2017, p.11)

A mesma colonialidade que inventou a “homofobia” é combustível para a xenofobia e


está na base estrutural da ditadura. E para compor a pluralidade musical de AmarElo,
o rapper invoca um compositor nordestino que critica a ditadura: Belchior com

240
Sujeito de Sorte (1976). Esta é uma composição deste cantor e compositor já falecido
que está presente no álbum “Alucinação”, um dos mais representativos do músico,
cuja letra entoa:

Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte. Porque


apesar de muito moço, me sinto são, e salvo, e forte. E tenho comigo
pensado: Deus é Brasileiro e anda do meu lado. E assim já não posso
sofrer no ano passado. Tenho sangrado demais. Tenho chorado pra
cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro
(BELCHIOR, 1976)

A conjuntura da composição remete ao período da ditadura militar no Brasil no qual


a juventude era o principal alvo de repressão e assim traz de forma irônica a situação
de um “sujeito” jovem nesse contexto, que estaria “são”, “salvo” e “forte” com a
proteção divina. “Sangrado demais”, “chorado pra cachorro” (BELCHIOR, 1976) são
expressões que remetem tanto às questões individuais quanto à história do Brasil:
sangrenta e sofrida que tem marcas coloniais (como a escravidão) e reflexos da
colonialidade (como a ditadura). No refrão “Ano passado, eu morri. Mas esse ano eu
não morro” (BELCHIOR, 1976), o verbo morrer, no sentido real, expressa as vidas
ceifadas na ditadura; e no sentido figurado significa perder gradativamente a força.
Não morrer simboliza resistir, representa a força da resistência ao sistema e às dores
internas do sujeito. E por que não dizer: constitui-se uma força decolonial em sua
essência. Pode-se tomar Belchior como um sujeito decolonial, não só pela obra em
questão mas pela potência do seu conjunto musical e sua atitude artística. O
cearense, condição geográfica subalternizada na estrutura endógena do Brasil,
alertava na canção “À palo seco”: “Tenho vinte e cinco anos de sonho e de sangue e
de América do Sul. Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor
que um blues” (BELCHIOR, 1973). O trecho configura-se como uma chamada para que
o Brasileiro olhasse para a América Latina e compreendesse as semelhanças das lutas,
do sangue derramado pelos indígenas (aqui) e pelo aborígenos (nos outros países).
Em 7entrevista à revista Hit Pop, Belchior questionado sobre a latinidade em sua obra
sentenciou: “O que me impressiona é a possibilidade de nós, latino-americanos,

7 Disponível em www.matias.blogosfera.uol.com.br/2017/05/01/belchior-em-1976-viver-e-mais-importante-que-
pensar-sobre-a-vida-acho-importante-provocar/
241
podermos nos comunicar com uma linguagem nova, comovente, revolucionária”
(BELCHIOR, 1976). Essa chamada de Belchior, de 1976, é dialógica com o pensamento
decolonial de Mignolo, de 2017, como ele relata:

A ordem global que estou advogando [ordem global comunal] é


pluriversal, não universal, e isso significa tomar a pluriversalidade
como um projeto universal em que todas as opções rivais teriam de se
aceitar. (MIGNOLO, 2017, p.14)

O Emicida orquestra a canção como um maestro que está atento à pluralidade,


presente em muitas das suas obras. Sobre o intelectual decolonial, a Spivak alerta:

...questionar a posição do intelectual pós-colonial ao explicitar que


nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem
que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico. Dessa forma,
Spivak desvela o lugar incômodo e a cumplicidade do intelectual que
julga poder falar pelo outro e, por meio dele, construir um discurso de
resistência. (SPIVAK, 2010, p.14)

Como cantor e intelectual negro, Emicida tem legitimidade para tratar das questões
raciais, contudo o rapper não fala em nome da comunidade LGBTQIA+, ele convoca
Pablo Vittar e Majur para mostrar as suas vozes e expor as suas existências assim
como ele busca a força da música de Belchior para rememorar a ditadura e a
necessária resistência. O paulista Emicida, a baiana Majur, a carioca Pablo Vittar e o
cearense Belchior compõem as vozes plurais dessa canção, sendo os sujeitos
decolonais dessa enunciação que possibilita elos de ligação e convergência entre
temáticas e subjetividades.

Amarelo: uma letra, muitas vozes

Eu sonho mais alto que drones. Combustível do meu tipo? A fome


Pra arregaçar como um ciclone. Pra que amanhã não seja só um ontem
Com um novo nome. O abutre ronda, ansioso pela queda
Findo mágoa, mano, eu sou mais que essa merda. Corpo, mente, alma,
um, tipo Ayurveda. Estilo água eu corro no meio das pedra. Na trama,
tudo os drama turvo, eu sou um dramaturgo. Conclama a se afastar da
lama, enquanto inflama o mundo. Sem melodrama, eu busco grana, isso
é hosana em curso. Capulanas, catanas, buscar nirvana é o recurso. É
um mundo cão pra nóis, perder não é opção, certo? De onde o vento

242
faz a curva, brota o papo reto. Num deixo quieto, num tem como deixar
quieto
A meta é deixar sem chão quem riu de nóis sem teto, vai. Figurinha
premiada, brilho no escuro. Desde a quebrada avulso. De gorro, alto do
morro e os camarada tudo. De peça no forro e os piores impulsos.Só eu
e Deus sabe o que é não ter nada, ser expulso. Ponho linhas no mundo,
mas já quis pôr no pulso. Sem o torro, nossa vida não vale a de um
cachorro, triste. Hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro.
Mano, rancor é igual tumor, envenena raiz. Onde a plateia só deseja ser
feliz, saca?Com uma presença aérea, onde a última tendência
É depressão com aparência de férias. Vovó diz: Odiar o diabo é mó' boi
Difícil é viver no inferno e vem à tona. Que o mesmo império canalha.
Que não te leva a sério. Interfere pra te levar à lona. Então revide, diz.
Permita que eu fale. Não as minhas cicatrizes. Elas são coadjuvantes..
Não, melhor, figurantes. Que nem devia tá aqui. Permita que eu fale.
Não as minhas cicatrizes. Tanta dor rouba nossa voz. Sabe o que resta
de nós? Alvos passeando por aí. Permita que eu fale. Não as minhas
cicatrizes. Se isso é sobre vivência. Me resumir a sobrevivência. É
roubar o pouco de bom que vivi. Por fim, permita que eu fale: não as
minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem é o pior dos
crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir, aí (EMICIDA; VASSAO;
DUHÉ, 2019)

Sampleada com “Sujeito de Sorte” – Belchior (1976) cuja letra foi apresentada
anteriormente neste trabalho, a composição AmarElo (2019) é de autoria de Felipe
Vassao, Emicida e Dj Duhé. Na composição linguística da obra, no parágrafo inicial,
os compositores contextualizam o cenário e a proposta: “Eu sonho mais alto que
drones, combustível do meu tipo? A fome. Pra arregaçar como um ciclone” (EMICIDA,
2019). A fome, materialização da pobreza e da desigualdade social, é o combustível
que estimula sonhos mais altos que drones e avassaladores como ciclones. Sabe-se
que para romper com uma lógica colonial, racista e patriarcal é necessário força nas
atitudes. Na continuidade “Pra que amanhã não seja só um ontem com um novo
nome...” (EMICIDA, 2019), a enunciação é consoante com a visão de Mignolo (2017,
p.10): “a analítica da colonialidade (o pensamento descolonial) consiste no trabalho
inexorável de desvendar como a matriz funciona, e a opção descolonial é o projeto
inexorável de tirar todos da miragem da modernidade e da armadilha da
colonialidade”. O “ontem” referido na canção pode ser visto como o colonialismo,
expresso na escravidão/ditadura, que deve ser desvendado/analisado e combatido.
243
É compreender esse “ontem” para não cair na armadilha da colonialidade e nem na
miragem da modernidade e também para que no futuro não haja os mesmos males
mascarados com outros nomes. Na sequência musical: “O abutre ronda, ansioso pela
queda. Findo mágoa, mano, eu sou mais que essa merda. Corpo, mente, alma...”.
(EMICIDA, 2019).

O “abutre” que espera ou deseja a morte ou o desaparecimento de povos de modo a


obter bens ou vantagens pode ser associado ao colonialismo/ colonialidade europeu
que ronda e vincula passado e presente. O colonialismo, como um abutre, embasou
o etnocídio e o genocídio ferozes que aniquilaram povos, nações e culturas, e a
colonialidade sustenta uma hierarquização de poder desigual, desequilibrada e
tendenciosamente eurocentrada. Complementando: “Ser mais do que essa merda” é
um meta decolonial que conclama uma ação concreta que contemple corpo, mente
e alma, visto que os saberes orais e ancestrais dos “conquistados”, que unem corpo e
alma, foram completamente desprezados na visão eurocentrada da ciência que
considera apenas a mente e o corpo em sua concepção. Pois “Uma hierarquia
espiritual/religiosa que privilegiava espiritualidades cristãs em detrimento de
espiritualidades não cristãs/não ocidentais foi institucionalizada na globalização da
Igreja Cristã (católica e depois protestante)”. (MASUZAWA, 2005, apud MIGNOLO,
2017, p.11). No parágrafo seguinte da letra é utilizada a expressão “Mundo Cão” que
foi originada no documentário italiano “Mondo Cane”, de 1962, que mostrava cenas
de depravação e perversidade em vários países, revelando as práticas e atividades
mais vis e grosseiras do ser humano. Para os grupos historicamente subalternizados,
as condições de vida são de um mundo cão, mas o alerta segue em seguida na canção:
“perder não é uma opção”, completada por “Num deixo quieto, num tem como deixar
quieto”. (EMICIDA, 2019), constituindo-se uma chamada para a resistência
necessária. Continuar perdendo vidas, respeito, cultura não é uma opção para o
sujeito decolonial e não se pode acomodar e deixar o status quo, pois essa ordem é
tendenciosa, desigual e alienante. Na sequência da canção, Emicida e demais
compositores relatam: “Hoje cedo não era um hit, era um pedido de socorro”
completado no parágrafo seguinte por “É depressão com aparência de férias”
(EMICIDA, 2019).

244
Neste trecho da letra, eles trazem à tona de forma mais explícita as subjetividades do
sujeito. Em algumas exibições públicas da música antes da parte cantada há uma fala
de um homem descrevendo um momento de angústia e depressão, como um pedido
por ajuda. É importante pontuar que os povos/nações colonizados desenvolveram
um complexo de inferioridade devido ao aniquilamento de sua originalidade cultural
e isso reverbera nas subjetividades. No capitalismo atual, cujas bases são coloniais, o
sujeito é engolido pelo sistema e sobre as crises que esse processo provoca, é
necessária a reflexão: “Os sujeitos se iludem se acreditam que podem elaborar e
executar sua intenção subjetiva de maneira autônoma. Inevitavelmente se inscreve
na intenção intrínseca do sistema. (MORENO, 2005, p.190). Os quatro últimos
parágrafos da canção AmarElo iniciam-se com a expressão: “Permita que eu fale: não
às minhas cicatrizes” (EMICIDA, 2019). Cicatrizes são sequelas de feridas e sobre isso
Kilomba (2019, p.134) diz: “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma
ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.” A expressão da obra
musical pode ser entendida como um grito decolonial por autonomia, no qual o
sujeito subalternizado “reivindica” o direito de não ter que se explicar ao mundo
branco cisgenero, eurocentrado, como focaliza Kilomba: “Para alcançar um novo
papel de igualdade, é preciso também colocar-se fora da dinâmica colonial...
Portanto, é uma tarefa importante para o sujeito negro despedir-se da fantasia de
ter de se explicar ao mundo branco”. (KILOMBA, 2019. p.149). Importante pontuar que
mesmo que fora trazida a fala de Kilomba sobre racismo, as cicatrizes referem-se a
diversas formas de opressão, vide a presença cantada de Pablo Vittar, Maju e Belchior
para multiplicar as vozes. “Elas [as cicatrizes] são coadjuvantes. Não, melhor,
figurantes, que nem devia tá aqui” (EMICIDA, 2019).

Neste extrato, os compositores parecem querer dizer que os sujeitos jogados à


margem, à periferia não podem ser definidos por essa exclusão. As dores, os traumas,
as cicatrizes são presentes na história dos subalternizados, mas estes
indivíduos/nações são muito mais do que sofrimento, angustia e anulação. Como
sentencia e entusiasta Quijano “É tempo de aprendermos a nos libertar do espelho
eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. … tempo,
enfim, de deixar de ser o que não somos” (QUIJANO, 2005, p.126). “Por fim... Achar
que essas mazelas me definem é o pior dos crimes. É dar o troféu pro nosso algoz e
fazer nóis sumir, aí” (EMICIDA, 2019). O projeto colonial, a colonialidade, tem como
245
objetivo sucumbir realidades culturais, sociais e raciais, para gerar a manutenção de
um poder unilateral, monotemático e excludente em vistas a fortalecer e dar
hegemonia a Europa e aos homens brancos. Dessa forma, é imprescindível entender
a dinâmica que se iniciou com o conceito mental de raça, estudado por Quijano,
como base da sustentação da dominação. Assim, se o povo europeu era o “existente”,
“o padrão”, os demais eram o “outro”, como conceitua Kilomba ao trazer o conceito
de “outridade”:

O racismo cotidiano refere-se a todo vocabulário, discursos, imagens,


gestos, ações e olhares que colocam o sujeito negro e as Pessoas de
Cor não só como “Outra/o” – a diferença contra a qual o sujeito branco
é medido – mas também como Outridade, isto é, como a personificação
dos aspectos reprimidos na sociedade branca. Toda vez que sou
colocada como “outra”...estou inevitavelmente experienciando o
racismo, pois estou sendo forçada a me tornar a personificação daquilo
com o que o sujeito branco não quer ser reconhecido. Eu me torno a/o
“Outra/o” da branquitude, não o eu – e, portanto, a mim é negado o
direito de existir como igual. (KILOMBA, 2019, p.52)

É sobre esse direito de existir e não sumir ou sucumbir que a canção finaliza fazendo
um alerta potente: os povos marginalizados não podem ser definidos pelas mazelas
do colonialismo e pela lógica de poder da colonialidade, precisam entender-se,
valorizar-se, decolonizar-se para serem vistos como realmente são.

Considerações Finais

O pensamento colonizado aprisiona, aniquila e aliena portanto decolonizar as


ciências sociais e as artes faz-se necessário e urgente para a tomada de uma
consciência social que busque novas possibilidades e que fuja do passado/presente
deletério do Brasil. Emicida, com a canção AmarElo, se propõe a interseccionar raça,
gênero e classe e este entendimento da necessidade de unir as “lutas”, de criar elos
nas pautas identitárias é um pensamento decolonial em essência. O rapper sabe que
é fundamental ligar as temáticas raciais e sociais às questões dos grupos LGBTQIA+
pois, no fundo, todas as mazelas foram geradas a partir da mesma base: o
colonialismo e a colonialidade. Separar as lutas contra o racismo das lutas contra a
homofobia/transfobia, por exemplo, é enfraquecer o escopo do debate. Como
complemento, o rapper entende a necessidade de lembrar também das vivências
246
políticas passadas e por isso, ele traz Belchior e a crítica à ditadura para engrossar os
discursos contundentes e potentes da composição. Vale ainda evidenciar que o
artista compreende que está na arena da disputa entre a cultura popular e a cultura
dominante e coloca a sua arte no fronte pela luta de classes. Na escolha linguística
da enunciação AmarElo, os compositores misturando ritmo e poesia, desfilam
palavras de ordem como “não às minhas cicatrizes”, “não tem como deixa quieto” ou
“então revide, diz”. E a todo o instante na música lembram da importância de revisitar
o passado para construir um novo presente/futuro: “Pra que amanhã não seja só um
ontem com um novo nome”; “A meta é deixar sem chão quem riu de nóis sem teto,
vai”; “Achar que essas mazelas me definem”... Passado que também é trazido pela
música do Belchior: “Ano passado, eu morri. Mas esse ano, eu não morro”. E isso é a
base do perspectiva decolonial, quando Aníbal Quijano e demais sociólogos criaram
o Grupo Modernidade/Colonialidade - M/C, o passo inicial foi estudar, criticar e
conceituar o colonialismo, a colonialidade, a modernidade e o eurocentrismo, numa
tentativa de compreender o passado para buscar uma teoria nova que desfizesse a
anterior. (Des)fazer, (des)aprender, (des)colonizar almejando algo novo e fora da
visão eurocentrada de conhecimento. “Permita que eu fale: não às minhas cicatrizes”
é um grito decolonial pois por um visão míope que aniquilava os saberes ancestrais,
os povos subalternizados foram vistos como sinônimos apenas de opressão. Por
outro lado, as cicatrizes que são sequelas de feridas que ainda estão abertas precisam
ser faladas mas não de forma reducionista. Por fim, é seguro dizer que a canção
AmarElo é um elo de discursos, temáticas, abordagens e saberes que fazem parte de
um novo agenciamento artístico no qual vozes historicamente subalternizadas são
reverberadas, ouvidas e sentidas. Espera-se que AmarElo, assim como outras
manifestações artísticas, conduza para estradas onde cada sujeito possa ser o que é
sem sucumbir ao olhar marcador colonial branco escravocrata cisheteropatriarcal.

Referências

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. LivSovik(org);


Trad.Adelaine La Guardia Resende. BeloHorizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação
da Unesco no Brasil, 2003.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.

247
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade, o lado mais escuro da modernidade. Tradução de
Marco Oliveira Duke. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), 2017
MOREIRA, Tatiana Aparecida. Cultura: entre a arena de luta e o movimento Hip Hop.
Revista Famecos, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 1-17, maio, junho, julho e agosto de 2018:
ID27498. DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2018.2.27498
MORENO, Alejandro. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO,
Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argentina.2005.p. 88-94
QUIJANO, Anibal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO,
Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argentina.2005. p. 107-130
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília:
INCTI/UnB, 2015.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010.

Mini Currículo

Nádja Nayra Brito Leite


Graduada em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) e especialista em Marketing e
Comunicação Empresarial. Durante 10 anos lecionou as disciplinas de Semiótica, Redação Publicitária
e Produção audiovisual. Atualmente faz mestrado em Crítica Cultural (UNEB) e dedica-se aos estudos
sobre gênero, decolonialidade e crítica cultural/social relacionando as áreas de comunicação, artes e
letras. E-mail: atendimentonadjaleite@gmail.com

248
CAPAS DE DISCOS: ENTRE ARTE, DESIGN E CULTURA

DISC COVERS: BETWEEN ART, DESIGN AND CULTURE

João Paulo de Freitas


Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil

Izabela Soraia Duarte Costa


Universidade do Estados de Minas Gerais, Brasil

Resumo

O presente trabalho apresenta algumas das questões que orientam uma pesquisa em
andamento sobre o design de capas de álbuns musicais no estado de Minas Gerais. Ancorado
na história do design e na perspectiva da cultura visual, o artigo historiciza os projetos
gráficos das capas de discos, destacando as relações entre design, música e cultura na
criação de tais artefatos.

Palavras-chave: Capas de discos; Design gráfico; Design e música

Abstract

This article presents some of the questions that guide research on the design of music album
covers by artists from the Brazilian state of Minas Gerais. Drawing on the history of design
and a visual culture perspective, the article historicizes the cover designs, highlighting the
relationships between design, music, and culture in the creation of such artifacts.

Keywords: Disc covers; Graphic design; design and music

Introdução

Este trabalho apresenta algumas das questões norteadoras que mobilizarão o projeto
de pesquisa intitulado: Imagens da música — A arte e o design nas capas de discos
mineiros. O artigo traça um panorama dos pressupostos que orientam a investigação,
ainda em fase de execução: a compreensão do papel do design gráfico e das artes

249
visuais na consolidação comercial, estética e imaginária da música no estado de
Minas Gerais.

Na gênese do estudo, o design constitui um campo de tensão entre os modos de


produção e a vida comum ao estabelecer relações entre questões econômicas,
sociais e estéticas (SCHNEIDER, 2010). A investigação procura avaliar como as capas
de discos contribuem no processo de construção de sentido de álbuns musicais
comerciais de artistas mineiros.

Para cumprir este objetivo, as capas dos discos são examinadas pela perspectiva da
história do design e da cultura visual. Tal arcabouço teórico permite olhar as capas
de discos não apenas como um produto técnico e funcional, mas, também como um
lugar propício para a materialização e difusão de ideologias, imaginários e
representações culturais.

O design como uma atividade sistêmica envolve a coordenação e articulação entre


diferentes áreas do conhecimento, conjugando soluções funcionais e estéticas na
resolução de um problema. Desse modo, compreendemos o design para além de um
qualificativo centrado em alguns criadores individuais, mas tomando este campo
profissional como um lugar que abrangente que conjuga diferentes aspectos, sujeitos
e práticas da cultura material humana. A perspectiva da cultura visual permite
vislumbrar as relações entre o design gráfico e a música como forças em continuo
intercâmbio, concepção que concorda com W. J. T. Mitchel (2002); para quem todos
os meios são híbridos em sua dialética entre imagens e materialidades.

O estudo tem como objeto as capas de discos de artistas mineiros consagrados,


crítica e comercialmente, no contexto nacional na segunda metade do século XX,
período do auge dos álbuns musicais em formato long-plays (LP) em vinil. Dentro
deste conjunto, o recorte temporal elegido localiza-se entre os anos de 1980 e 1990,
década que assistiu o apogeu da mídia e sua progressiva substituição pelo formato
digital do CD (Compact Disk).

No cotejo entre o texto musical e visual, as capas de discos surgem como imagens da
música e dos músicos, no estado de Minas Gerais. A análise do design gráfico e das
artes visuais, exibidas nas capas dos discos, expõem alguns dos processos simbólicos
e estéticos que ajudam a consolidar a história da música e a identidade artística de
nomes relevantes da cultura em Minas Gerais.
250
Capas de disco entre música e design

Ouvir uma música é tecer uma trama que se articula entre imagens sonoras, visuais,
sensíveis, intelectuais, concretas e imateriais. Músicas são paisagens, retratos,
natureza-morta com cores, formas e texturas. Dentro deste emaranhado de
fragmentos imagéticos, a capa que embala o disco também figura como uma
memória dentro de um jogo de colagem e rememoração. As capas de discos, mesmo
quando trazem apenas um duro retrato do cantor, são igualmente complacentes em
requisitar do observador algo de musical em seu olhar. Por isso, elas compõem parte
desse corpo híbrido chamado álbum musical.

A finalidade primeira de uma capa, seja de um livro, de um traje ou de um embrulho


de presente é proteger aquilo que será abrigado em seu interior (REIS; LIMA; LIMA,
2015). As capas de discos, como caixas protetoras, têm funções técnicas, indicativas
e funcionais, entretanto também são sabidamente comunicativas e enfáticas na
perspectiva do marketing visual. O disco é uma mercadoria cujas embalagens se
prestam a, entre outras coisas: por uma relação o público consumidor e a gravadora;
auxiliar a atrair o consumidor; assim como caracterizar o perfil dos artistas (VARGAS;
SOUZA, 2013).

As capas respondem a requisitos tipológicos e informativos, mas contribuem


grandemente para a consolidação da identidade artística dos músicos, bem como as
estratégias de marketing comercial de seus produtos.

Dessa forma, o lugar das capas de discos na memória afetiva dos ouvintes, destaca
como elas podem transcender sua objetividade em direção a expectativas simbólicas
e subjetivas. O projeto gráfico de um álbum musical pode ser tão importante para a
identidade artística de músicos quanto a música prensada na superfície do disco. Ao
longo do século XX, as capas foram se convertendo em um objeto de atração, uma
estratégia de marketing e de destaque visual.

Ao esquecermos da função primária de armazenamento, em razão do seu potencial


de transmitir significados, nos deparamos com uma vasta e complexa rede que
articula e conecta elementos visuais e músicas.

O desenvolvimento das mídias sonoras e gráficas, anunciados desde a revolução


industrial no século XIX, encontra ao longo do século XX sua consolidação cultural.

251
Originalmente criadas para alojar as mídias sonoras, as capas constituíram um
fenômeno visual que se confunde com a própria história da música contemporânea.

Ao longo da modernidade, o progressivo desenvolvimento técnico nas operações de


captura, criação e reprodução de imagens e sons, as artes visuais, o design e a música
passam a se influenciar de maneira mútua e profícua. Desde o século XIX, são
conhecidos artistas e designers que desenvolvem projetos gráficos para a crescente
cultura urbana e espetacular das grandes cidades europeias. Desde então, imagem e
sonoridade atuam na construção e popularização de estilos, músicas e hábitos de
consumo.

Um exemplo são os cartazes produzidos pelo artista francês Henri de Toulouse-


Lautrec (1864 – 1901), em parceria com o cantor e compositor Aristide Bruant (1851 –
1925), proprietário do cabaré Mirliton (1885 – 1895). Este tipo de imagem configura
uma expressão das transformações econômicas, sociais e culturais que, naquele
contexto, procurava capturar a atenção do crescente público consumidor de
entretenimento, refletindo os estilos da época (HOLLIS, 2010).

No começo do século XX, a criação de peças gráficas para divulgação de espetáculos


em cafés, cabarés e casas noturnas, seria uma das principais atividades de
gravadores, ilustradores e designers gráficos do período. Contudo, é a segunda
metade daquele século que o desenvolvimento da indústria fonográfica, tipográfica
e de impressos intensificou a relação entre imagem e música. Através do
aperfeiçoamento e popularização de novas mídias sonoras, como os discos de vinil,
uma transformação cultural operou mudanças significativas na apreciação e no
consumo musical. Entre as consequências do novo fenômeno, estava justamente a
crescente demanda pelo trabalho de designs para projetar embalagens e capas para
as novas mídias.

O padrão formal e visual das capas de discos atuais tem sua origem por volta de 1939,
ocasião em que o diretor de arte Alex Steinwess (1917–2011) recebeu a incumbência
de transformar as funcionais e grosseiras embalagens das mídias sonoras em algo
mais que um pacote de papelão. Mais que uma mudança projetiva, Steinwess abriu
caminhos para uma nova forma de manifestação cultural que atrelava arte, design,
música e construção de identidades.

252
Até a intervenção de Steinwess, as capas dos discos de goma-laca eram fabricadas
como um invólucro de papel-cartão onde constavam somente o nome do artista e,
em alguns casos, o nome da loja. Em seus quase 40 centímetros quadrados, o espaço
físico das capas é um suporte privilegiado para artistas exibirem seus projetos
gráficos, incorporando fotografia, artes gráficas e tipografia.

No auge da inserção do design de vanguarda no gráfico estadunidense (SCHNEIDER,


2010), as capas de discos se orientam através de novas linguagens visuais da
comunicação e da publicidade. Substituindo as primeiras embalagens de discos de
vinil em papéis sem brilho ou de papelão que continham essencialmente o nome do
produtor, ou dos varejistas que o comercializavam. A partir dos anos de 1930, o
projeto gráfico das capas de discos figura como uma das manifestações gráficas mais
significativas do século XX, passando, em alguns casos, a serem vistas como
verdadeiras obras de arte, símbolos de estilos e grupos musicais e objetos cultuados
por fãs.

Na esteira do desenvolvimento técnico do disco de vinil, na metade do século XX,


podemos constar, paralelamente, o desenvolvimento do modernismo no design
gráfico e de embalagens. Nos anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial, o
Estilo Tipográfico Internacional Suíço investe sobre novos sistemas compositivos,
ampliado o alcance da comunicação visual gráfica e servindo para o desenvolvimento
de trabalhos inovadores para os projetos gráficos de discos. Profissionais como o
designer Karl Gerstner, nos anos 1950, desenvolvem capas de discos inovadoras com
composições dinâmicas em grid, tipografias inusitadas e relações cromáticas de
grande impacto visual (Figura 1). As capas de discos figuram como um suporte gráfico
privilegiado cujo efeito estético emerge da escolha lúcida de meios gráficos
ilimitados.

253
Figura 1 - Design de Karl Gerstner "Boîte à Musique", capa de disco da loja, 1957. (HOLLIS, 2010, p. 140)

No trabalho de composição das capas de discos, muitas vezes, as escolhas são


guiadas pelo clima e pela mensagem que a capa planeja transmitir. Além da utilidade
de reconhecer registros específicos, as capas de álbuns servem para comunicar a
mensagem, por meio de fotografia, design gráfico ou ilustração. Como destacam
Varga e Bruck (2019, p. 3):

Como mediadora, a capa é um espaço simbólico de negociação entre


interesses comerciais, projetos estéticos do rock, e gostos e
comportamentos de uma juventude que se abre ao consumo e que
alimenta novas representações de si própria.

Em se tratando do design dos discos de vinil, a audiência muitas vezes está atrelada
ao ato de ouvir a música, mediada pelo visual da capa e seus encartes, em uma
experiência de contemplação que pode se assemelhar a apreciação de uma pintura,
fotografia ou gravura.

254
Capas de discos no Brasil e Minas Gerais

No Brasil, o desenvolvimento do design está ligado ao desenvolvimento da indústria


nacional no pós-guerra, contexto histórico que segundo observaria o surgimento de
novas necessidades e demandas de consumo em diversos países periféricos
(CARDOSO, 2008). No período posterior a Segunda Guerra Mundial ocorrem
mudanças nos padrões de comportamento e consumo, simultaneamente, artistas e
designers se encontravam diante de um dilema fundamental de nosso modernismo,
dividido entre o nacionalismo e o internacionalismo.

Entre os anos de 1950 e 1960 a modernização da indústria gráfica e fonográfica exigiu


o ingresso de profissionais qualificados para as atividades que compunham o design
de capas de discos. Profissionais como o ilustrador Joselito de Oliveira Mattos, os
fotógrafos Mafra e Francisco Pereira e o artista gráfico Cesar G. Vilela, ajudaram a
dar os contornos da estética moderna da Bossa Nova no Brasil.

Figura 2 - Projeto gráfico de César G. Villela para o disco Maysa – 1964 (CARDOSO, 2008, p. 179)

255
A consolidação do mercado de bens simbólicos no Brasil, entre os anos de 1960 e
1970, acompanha mudanças estruturais da sociedade brasileira. Em especial, são os
aspectos industriais dos projetos desenvolvimentistas que buscavam a inserção do
Brasil no processo de internacionalização do capital e o mercado de bens culturais.
Nessa expansão a indústria do disco se consolida por ser um espaço de difusão de
bens culturais que poderiam ser tão alinhados a ideologia dominante como objetos
subversivos a serem inibidos.

Tal contradição encontram-se ancoradas no cenário político e cultural brasileiro que


inaugura a década de 1970 e os eventos que circulavam o AI5 e nova Constituição. Em
tempos de repressão, o Estado atuava tanto pela via da censura como pela tentativa
de criação de políticas culturais modernizantes. Em um cenário político e cultural
marcado por violentos mecanismos institucionais, observa-se igualmente o
crescimento dos meios de comunicação.

Em Minas Gerais, estado reconhecido como uma das mais ricas musicografias do país
e do mundo, inúmeras discografias apresentam-se como obras de referência, tanto
pela musicalidade como por seu valor visual icônicos. Um exemplo, é a capa do
primeiro disco do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, cujo projeto gráfico foi produzido em
1970 por Waltércio Caldas Jr e que contava com fotografias de Amarílio Gastal.

A música mineira através das capas de seus discos

Ao pensar o design nas capas de discos de artistas mineiros nos deparamos com
alguns dilemas críticos que tem servido como importantes arestas reflexivas para o
trabalho. Uma das questões mais evidentes é a fragilidade da própria definição
redutiva de “música mineira”, um fenômeno cujas matrizes, características e
transformações não cessam de se reconfigurar a cada novo olhar. Em se tratando do
design, outro elemento complicador é sua própria natureza coletiva de produção,
cujo resultado quase sempre é fruto de esforços de diferentes especialidades
profissionais.

Nossa estratégia foi fixar a escolha em músicos que assumem a identidade cultural
mineira que, ainda que híbrida e movente, configuram uma determinada noção

256
identitária com características culturais, simbólicas e representativas distintivas.
Alguns dos atributos dessa identidade podemos chamar de “mineiridade”, uma noção
em constante crise e disputa, mas que tem sua relevância na medida que
circunscreve alguns elementos distintivos de cultura no estado de Minas Gerais.
Como destaca Reis (2007), a ideia de mineiridade, ainda que artificial e em contínuo
processo de reinvenção, é um importante elemento de compreensão das ideologias
e imaginários que orientam noções de pertencimento na cultura mineira.

Na medida que articula discurso, símbolos e signos, a noção de mineiridade poderia


descrever, em parte, o lugar comum em que alguns designers retiram parte de suas
referências e escolhas criativas e composicionais. Lembrando que, para além dos
qualificativos estéticos distintivos de cada músico, álbuns musicais ainda são
produtos industriais comercializáveis, cujo projeto também incorpora a necessidade
de um investimento de familiaridade para a boa aceitação de seu público.

Ao longo do século XX, à medida que o capitalismo se globalizava e os hábitos de


consumo se tornavam cada vez mais a individualização, parte do trabalho do designer
se concentrava em mediar o jogo de expectativas entre o produtor e o consumidor
das obras. A criação de um comum que representa em superfície uma ideia de cultura
mineira é a recorrência de elementos simbólicos de sua tradição, como demonstrada
por Valente e Paula (2021) em sua iconografia musical das capas dos consagrados
discos Minas (1975) e Geraes (1976) do cantor Milton Nascimento:

Os álbuns em questão fazem parte das obras notáveis de Milton


Nascimento, fortalecendo, entre outras coisas, sua relação e
identificação com o estado mineiro. Este trabalho pretende refletir
sobre como as capas dos discos Minas (1975) e Geraes (1976), se inserem
dentro da obra, de que maneira os elementos característicos de uma
identidade regional foram organizados visualmente e sonoramente, e
de que forma a relação música título-imagem se estabelecem.
(VALENTE; PAULA, 2021, p. 159)

Ainda de acordo com Valente e Paula (2021) o estudo da identidade sonora e visual
dos álbuns citados apresentam uma disputa entre identidade e diferença que,
segundo os autores, são representativos do contexto artístico inovador dos anos
1970. Naquele período, podemos perceber como tanto a música quanto o design

257
gráfico investe em inovações a fim de assinalar uma identidade artística que se
desdobra sobre a apropriação e recriação estética.

Nesse jogo de remontagem, percebemos ecos de uma relação dialógica que se


articula a própria noção de mineiridade forjada por uma disputa entre tradição e
modernidade. Tanto na composição musical, quanto nos projetos gráficos do
período, podemos constatar uma livre citação de elementos representativos da
cultura local e formas e composições formais que remetem a linguagem
internacionais do design e da comunicação visual.

A partir dos anos setenta, como assinala Richard Hollis (2010), o design gráfico e a
comunicação de massa passaram por profundas revisões críticas a partir do
questionamento das balizas autocráticas que alinhavam os pressupostos
autocráticos do design modernista com o capitalismo internacional.

Os movimentos de contracultura que surgem no período, também se fazem sentir no


design, que se insere em uma disputa entre a internacionalização de suas influências
e a busca por estilos nacionais. Nesse embate de valores e referências, os designers
procuram referências locais, sem perder de vista o cenário internacional.

Nos anos de 1980 e 1990, o cenário cultural mineiro apresentou alguns músicos e
bandas, sobretudo no pop rock, cujos álbuns tornaram-se muito populares, não
apenas no estado de Minas Gerais, como no país. Nesse momento é interessante
analisar como o design das capas de disco tem em vista articular algumas referências
visuais locais e nacionais com as tendências marcadamente do design gráfico do
período. Um exemplo são os discos da banda mineira Skank, grupo musical cuja
popularidade alcançou todo o território nacional naquele período.

Em seu álbum de estreia “Skank” (Figura 3), lançado em 1992 pelo selo independente
Nowboah, e relançado em CD e vinil pelo selo Chaos no ano seguinte. A banda
representa visualmente algumas de suas marcas musicais mais característica, a
junção de elementos culturais brasileiros e estrangeiros. Se na música a mescla
ocorre com a fusão do pop rock nacional com elementos do reggae e do ska
jamaicano, na capa do disco o local se articula ao internacional através do design.

A capa apresenta alguns elementos gráficos que remetem a estereótipos da cultura


brasileira (chapéu de couro, campo de futebol, sol) em um grafismo que remete a

258
algumas tendências visuais do design pós-modernista internacional, a partir dos
anos 1980. Dentre estes elementos podemos destacar as cores fortes e abundantes,
composições sem um grid rígido em um aparente desordenamento despojado.

Figura 3 – “Skank” álbum de estreia da banda mineira Skank (1992) pelo selo independente Nowboah, e
relançado em CD e vinil pelo selo Chaos (1993).

Considerando que, em alguns casos, a apreciação musical pode vir posteriormente


ao contato com a capa (TADA; BALEEIRO, 2012). No estágio atual de nossa
investigação, percebemos que as articulações simbólicas e estéticas dos músicos se
combinam também com os interesses comerciais e de marketing que procuram
atrelar valores e padrões de gosto e comportamento que acompanham os processos
de globalização do consumo, sobretudo, a partir dos anos 1980.

No auge da popularidade das mídias sonoras analógicas, a capa de um disco poderia


destacar a obra de um artista do conjunto de outras concorrentes em prateleiras
abarrotadas de lojas especializadas. O design das capas de discos serve então como
um primeiro apelo para uma conexão entre os artistas e seus ouvintes/
consumidores. Esse apelo deve, antes de chegar pelo ouvido, vir na velocidade de um
259
“piscar de olhos”. Neste sentido, percebemos que este trabalho congrega aspectos
técnicos funcionais extremamente objetivos, simultaneamente, carregado de
conteúdos simbólicos, subjetivos e culturais.

Considerações Finais

O que traçamos até o momento em nossa investigação sugere que ecletismo musical
brasileiro, formando por um complexo cultural de heterogêneas culturas, está
presente também nas capas e projetos gráficos dos discos. Neste panorama, as capas
de discos nacionais são investidas de símbolos da cultura local, enquanto se atrelam
a estética de movimentos internacionais.

Em consonância com as hipóteses iniciais, torna-se evidente a relação entre música


e visualidade na construção de determinadas identidades estéticas e artísticas de
alguns músicos. Nos próximos passos focalizaremos como tais condições se
manifestam nas capas de discos de artistas mineiros e na construção de determinado
imaginário sobre a música no Estado de Minas Gerais.

Referências

CARDOSO, R. Uma introdução à história do design. São Paulo: Blucher, 2008.


HOLLIS, R. Design gráfico: uma história concisa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010.
MITCHELL, W. J. T. 2003. “Mostrando el ver: Una crítica de la cultura visual” en Estudios
Visuales, núm. 1, pp. 17-40
RESENDE, V.H. Iconografia, iconologia e fato musical: análise das capas de disco do trio Sá,
Rodrix & Guarabyra. Revista Música Hodie, Goiânia, V.15 - n.1, 2015, p.71-86.
REIS, Liana Maria. Mineiridade: identidade regional e ideologia. Cadernos de História, v. 9,
n. 11, p. 89-98, 2007.
REIS, S. R.; LIMA, E. L. O. C.; LIMA, G. C. "Memória Gráfica Brasileira – Da memória ao
efêmero: o caso das capas de discos de vinil", p. 1428-1433. In: C. G. Spinillo; L. M. Fadel; V. T.
Souto; T. B. P. Silva & R. J. Camara (Eds). Anais do 7º Congresso Internacional de Design da
Informação. São Paulo: Blucher, 2015.
SCHNEIDER, B. Design – uma introdução: o design no contexto social, cultural e econômico.
São Paulo: Editora Blücher, 2010.
TADA, E. V. S.; BALEEIRO, C.A.S. O que nos dizem as capas dos discos? Análise semiótica e
hermenêutica em busca de um diálogo entre Pop culture e estudos de religião. Revista
Eletrônica Correlatio v. 11, n. 22 - Dezembro de 2012.

260
VALENTE, H. A. D.; PAULA, M. B. Imagem, Música, Ação: Iconografia da cultura musical e(m)
seus espaços de apresentação/representação Minas Geraes: o que há por trás das capas? In:
Anais do 6 Congresso Brasileiro de Iconografia musical. Campinas: UNICAMP, 2021. ISSN
ISSN 2318-7026.
VARGAS, H.; SOUZA, R.M.Q. Representação do punk rock paulista em capas de disco.
Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 27, p. 1-18, jan.-dez. 2020.

Mini Currículos

João Paulo de Freitas


Doutor em Arte e Cultura Visual pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da
Universidade Federal de Goiás PPGACV-UFG. Mestre em Artes pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Professor na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais
(ED/UEMG). E-mail: joao.freitas@uemg.br

Izabela Soraia Duarte Costa


Estudante de Artes Visuais Licenciatura pela Escola de Design da Universidade do Estado de Minas
Gerais (ED/UEMG) e bolsista do projeto de iniciação científica Imagens da música: A arte e o design
nas capas dos discos mineiros com apoio do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa (PAPq). E-
mail: izabela.0193390@uemg.discente.br

261
A IMAGEM E O ENSINO ATRAVÉS DA IMAGEM

THE IMAGE AND TEACHING THROUGH THE IMAGE

Cícero Fernando de Moura Paz


Instituto Federal do Piauí – IFPI, Brasil

Hendy Barbosa Santos


Instituto Federal de Rondônia – IFRO, Brasil

Morgana Domênica Hattge


Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES, Brasil

Resumo

Diante da constante produção e disseminação de imagens e da influência que as mesmas


exercem sobre o imaginário social, sobretudo, nas pessoas que não tem acesso a uma
educação visual, o presente artigo fala da imagem e de um ensino através da imagem, com
o objetivo de demonstrar a importância da educação visual para a compreensão dos textos
imagéticos. Dialogando com algumas ideias de Couto (2000), Barbosa (1998, 2012, 2019),
Mateus (2013), Noronha (2019) e Silvino (2012), entre outros, o texto também fala da
disciplina de Arte como o local privilegiado para a realização dos processos de apropriação
dos códigos específicos da linguagem visual e da sua utilização social.

Palavras-chave: Imagem. Linguagem visual. Ensino de Arte.

Abstract

Faced with the constant production and dissemination of images and the influence they
exert on the social imaginary, especially on people who do not have access to visual
education, this article talks about the image and teaching through the image, with the
objective of to demonstrate the importance of visual education for the understanding of
imagery texts. Dialoguing with some ideas of Couto (2000), Barbosa (1998, 2012, 2019),
Mateus (2013), Noronha (2019) and Silvino (2012), among others, the text also talks about
the discipline of Art as the privileged place for the realization of the processes of
appropriation of the specific codes of visual language and their social use.

Keywords: Image. Visual language. Teaching Art.

262
Introdução

Tornou-se tão banal a produção e visualização de imagens que parece


não nos darmos conta de sua importância e participação na vida
cotidiana. (SCHWERTNER; MUNHOZ, 2017, p. 61)

O que seria das nossas vidas sem a presença das imagens? É difícil imaginarmos um
mundo onde elas não estejam nos instigando a consumir produtos e serviços,
reforçando marcas e representando sentimentos. Quantos de nós já fizemos uso
dos pequenos ícones em substituição às curtas e rasas conversas de redes sociais?
Podemos dizer, sem medo algum, que a humanidade elegeu a imagem como sua
linguagem oficial e graças às mudanças que vem ocorrendo nos meios de
comunicação desde o século XX, “a mensagem visual tem predominado sobre a
mensagem verbal, e a maior parte das coisas que sabemos, aprendemos,
acreditamos, reconhecemos e desejamos quase sempre é determinada pelo
domínio que a imagem exerce sobre nós” (COUTO, 2000, p. 32). E como
consequência dessa escolha, o ser humano foi capaz de criar tantos signos
imagéticos que podemos até nos perguntar, se, em alguns momentos, não
ultrapassou os limites do bom senso. Sim, pois não basta produzir e disseminar uma
linguagem, é necessário que se proporcione o mínimo de condições para que a
população identifique seus códigos e conheça seus significados.

Essa produção em larga escala, associada ao descuido deliberado com o ensino da


leitura imagética, tem gestado em nossa sociedade gerações de analfabetos visuais1
(MOTTER, 2005), seres incapazes de compreender plenamente as imagens que lhes
cercam. Comparando com o processo de ensino da linguagem verbal, Couto (2000,
p. 32) destaca que o “[...] aperfeiçoamento da imprensa e as possibilidades de
multiplicação da escrita [...]” nos países do ocidente, a partir do século XV,
possibilitaram o aumento do número de pessoas alfabetizadas verbalmente. No
entanto, a “[...] invenção e a popularização dos meios mecânicos de produção da
imagem que não cessam de se desenvolver [...]”, (Ibid.) não conseguem produzir o
mesmo efeito na linguagem visual. Talvez a comparação entre as linguagens não

1 O termo “Analfabetismo Visual” é utilizado por Motter (2005, p. 203) para externar sua preocupação com o “[...]
grau de compreensão propiciado por tanta abundância de imagens”.

263
seja bem-vista por algumas pessoas, mas o modo como as imagens se proliferam e
o seu ensino é negligenciado, demonstra indícios de que a não compreensão de sua
linguagem é vantajosa, pelo menos para uma parte muito pequena da população.

Em face do exposto, o presente artigo aborda a imagem e o ensino através da


imagem com o objetivo de demonstrar a importância da educação visual para a
compreensão dos textos imagéticos. Para tanto, utilizou-se da revisão bibliográfica
como metodologia de pesquisa, levantando em bibliotecas e repositórios virtuais
produções científicas que descrevem o papel que as imagens exercem na
construção simbólica e no controle social, bem como a necessidade de uma
educação visual que privilegie seu ensino. Ainda na questão metodológica, também
foram utilizadas três imagens e suas respectivas leituras com a finalidade de
exemplificar aos Arte Educadores, sobretudo os que ministram a disciplina Artes
Visuais2, a relevância comunicativa e a forte atuação das imagens nos processos de
criação, manutenção e transformação do imaginário social.

Imagem, construção simbólica e controle social

Enquanto instrumento de significação, a imagem atua na produção de sentidos


dentro de uma cultura, criando o que Mateus (2013, p. 34) chama de “formação
pública do imaginário”, ou seja, “[...] representações conceituais simbolicamente
expressas em formas plásticas e visuais, de dimensões imagéticas, que funcionam
como unidades públicas de significado social.” Ainda segundo o mesmo, a
publicidade atua na composição e expansão desses imaginários por meio do
“imaginal”, um conjunto de imagens criadas e compartilhadas com o objetivo de
“[...] fundar novos significados, adicionar novas conotações e renovar os
imaginários em favor de suas potencialidades” (Ibid., p. 42). Nesse sentido, os
conhecedores da linguagem visual detêm e exercem um poder de controle social
quando interferem nas relações simbólicas por meio da proliferação de mensagens
imagéticas e da naturalização dos discursos contidos nas mesmas (NORONHA,
2019, p. 261).

2 Todas às vezes que o termo “Artes Visuais” aparecer no texto é uma referência ao componente curricular.

264
Mas de quais imagens está se falando? Seriam apenas as publicitárias, produzidas e
propagadas pelos veículos de comunicação3, ou todo tipo de imagem, inclusive as
artísticas, teriam o potencial de uma ferramenta estimuladora das relações
simbólicas? Segundo Couto (2000, p. 31), “[...] qualquer imagem visual 4, realizada
pelo homem, é influenciada pelos condicionamentos culturais e pelo ambiente em
que ela foi produzida.” Entendendo por “condicionamentos culturais” não somente
os sentidos atribuídos às imagens no espaço-tempo em que são concebidas, como
também, os sentidos atribuídos por aqueles que as percebem no espaço-tempo em
que são expostas. Corroborando com essas ideias, Noronha (2019, p. 257) afirma que
toda produção imagética é fruto de “[...] escolhas estéticas e ideológicas,
conscientes ou inconscientes, [...] que ativam o referencial simbólico da sociedade
da qual faz parte.”

Figura 01 – Estilo 5

Fonte: elephant art 5

3 Não somente os veículos tradicionais de comunicação, como também as médias sociais, facilitada pelo acesso
aos aparelhos de smartphones e os inúmeros aplicativos de produção e edição de imagens.
4 “Entendemos por imagem aquilo que fica na mente ou na consciência do sujeito percipiente depois de uma
sensação qualquer. Daí existirem imagens visuais, mas também tácteis, olfativas, gustativas, auditivas, oníricas etc.
Portanto, de modo geral, seria impróprio o uso vulgar do termo imagem no sentido exclusivamente visual”
(COUTO, 2000, p. 9).
5 Disponível em: https://elephantartonline.com/products/elephant-painting-by-suda-5. Acesso em: 29 jun. 2021.

265
Essa capacidade de movimentar o referencial simbólico que a linguagem visual
possui é tão impactante, que até mesmo uma imagem, fruto de uma produção
irracional, pode de algum modo nos tocar. Como é o caso da singela figura acima,
uma pintura feita por uma “artista” de 15 anos de idade, que tem como suporte uma
cartolina de 82x62cm.

Na imagem é possível observar um elefante caminhando lentamente sobre a relva,


indo em direção de uma frondosa árvore, talvez em busca do refresco de sua
sombra ou simplesmente atraído pela beleza de suas cores. O traço forte e o fundo
chapado, que realça o verde do campo e o contraste com o vermelho presente na
copa da árvore, evidenciam não apenas uma paisagem, mas uma alegoria. Ou, que
outro nome poderia se dar a um lugar que flutua no papel, como um sonho ou
memórias a navegar no inconsciente? De modo particular, ao ver esta imagem, tive
a sensação de voltar ao passado e revisitar as lembranças da infância, quando, na
companhia do meu avô, visitávamos nossos familiares na zona rural do município
de São Félix do Piauí. Durante as muitas léguas percorridas a passos lentos, ainda
não sei se por causa do seu excesso de peso e das dores nos joelhos ou apenas pelo
deleite de experimentar cada centímetro das estradas e veredas que um dia fizeram
parte de sua rotina de vaqueiro e homem da terra, também nos acompanhavam
suas histórias repletas de aventura e sabedoria, assim como o perfume que exalava
dos bamburrais6.

Em todas essas andanças, meu saudoso avô não perdia a oportunidade de ensinar o
nome das árvores, dos riachos e dos animais que cruzavam nosso caminho. Dentre
as várias árvores que avistávamos sempre me chamava à atenção a robustez e a
beleza da faveira7, que, entre os meses de julho e setembro, se destaca na paisagem
pelo aflorar de suas “bolotas” vermelhas. E bastava uma pergunta sobre essas

6 “Bamburral, de nome científico Hyptis umbrosa, é uma planta pertencente à família das Lamiaceae, também
conhecida como moleque duro e maria-preta. É nativo da região Nordeste do Brasil, nas áreas de caatinga, sendo
bastante utilizada para embelezar os jardins em todo o território brasileiro.” Cf. Débora Silva. Disponível em:
https://www.beneficiosdasplantas.com.br/bamburral/. Acesso em: 30 jun. 2021.
7 Nome científico: Parkia platycephala. “De copa frondosa e florada marcante, com flores vermelhas que lembram
pompons, a Fava de Bolota tem grande potencial ornamental. [...] Seus frutos em forma de favas são utilizados
como complemento na alimentação de ruminantes, por apresentarem alto teor de carboidratos e proteínas.” Cf.
Nativas digitais. Disponível em: https://www.unitins.br/nativasdigitais/especie/fava-de-bolota. Acesso em: 02 jul.
2021.

266
“bolotas”, que mais histórias saltavam de sua boca como se as mesmas tivessem
ocorrido há alguns dias atrás. Olhando mais uma vez para esta imagem e
recordando do meu velho, percebo que não apenas o seu caminhar, mas também
sua memória era de elefante. Talvez este elefante seja o meu avô, que exausto de
sua jornada foi em direção de uma faveira de bolota, procurando descansar debaixo
de sua majestosa beleza. Espero, um dia, também alcançar a mesma faveira que ele
descansa e ouvir suas histórias.

Mas como é possível uma imagem despertar tantas lembranças e emoções,


desencadeando um processo de leitura permeado de afetividade, mesmo sendo
fruto de uma produção irracional? Porque, até que se prove o contrário, não é
possível afirmar que a autora da figura que acabamos de ver, uma elefanta chamada
Suda8, tenha se utilizado da razão para fazer uma pintura. O que reforça a ideia de
que toda imagem é passível de leitura, pois o que a torna significante não é seu
produtor ou as intenções do mesmo, mas os elementos que a compõe e as
referências que despertam em cada leitor. A esse respeito, Parsons (1992, p. 29)
afirma que “o sentido da arte pertence, por assim dizer, ao domínio público” e que
as suas “diversas camadas de significação” permitem ao observador/leitor
compreendê-la de modo distinto dos seus criadores.

De acordo com Noronha (2019), fazendo menção a Adolfo Colombres (2011), essa
função de referencial simbólico é muito bem exercida pela arte, ao atuar nas bases
constitutivas de uma cultura, determinando valores sem que para isso seja
necessária a utilização da força. Em suas palavras: “[...] toda produção artística é,
até certo ponto, um ato político, relacionado a discursos e contextos específicos”
(NORONHA, 2019, p. 267). Com isso, temos aqui dois aspectos que não podem ser
vistos separadamente quando se trata da linguagem visual, a estética e a política,
pois, de acordo com Azevedo e Araújo (2015, p. 347), “[...] a separação entre as duas
dimensões justifica ideologicamente as desigualdades sociais, fazendo prevalecer o
código do poder.”

8 Suda é uma elefanta pintura de 15 anos de idade. Seus quadros são comercializados e os valores arrecadados são
destinados para a preservação dos elefantes. Cf. Elephant art. Disponível em:
https://elephantartonline.com/products/elephant-painting-by-suda-5. Acesso em: 02 jun. 2021.

267
Sobre a importância e o “poder” que a linguagem visual exerce no imaginário social,
Dutra et al. (2017, p. 07), fazendo menção às ideias de Santaella (2008), é incisiva ao
afirma que as “imagens não são neutras” e assim como os discursos verbais, elas
também têm a capacidade de influenciar seus leitores “[...] através da pluralidade de
modos de transmitir significados”. Falando em significados, abrimos um parêntese
para acentuar o conceito que cada imagem visual carrega ao ser produzida e
intencionalmente veiculada com o objetivo de atingir um público específico.
Público este, que mesmo em constante movimento é mirado pelas mais variadas
artilharias informativas e tendenciosas. E uma vez atingido, o mínimo que se espera
é uma reação aos efeitos que essa linguagem provoca, pois como nos afirma
Aumont (2002, p. 92), a imagem exerce uma “ação psicológica – positiva ou
negativa” - sobre o espectador. É o que diariamente vemos ocorrer no meio
publicitário, onde a imagem de um modelo, estampado em um outdoor, vende além
de um produto, a garantia de felicidade, beleza e poder.

Mas até que ponto este espectador pode ser afetado, quando o desconhecimento
da linguagem impossibilita a identificação dos códigos e compromete o
entendimento das mensagens transmitidas? Antes de qualquer coisa, é preciso
compreender que todos somos tocados pelas imagens, mesmo que de modo
distinto, pois como nos afirma Barbosa (1998, p. 17), apesar da “[...] incapacidade de
ler essas imagens, nós aprendemos por meio delas inconscientemente.” E esta é
uma questão que muito preocupa, considerando o poder de intervenção que as
imagens exercem na mente humana, como bem nos falou Dutra et al. (2017) e
Aumont (2002). E esta preocupação reside não somente pela inabilidade de ler
imagens, mas ainda assim, pelos riscos de não compreender sua intencionalidade e
ser guiado por ideologias que atentam contra a vida e a dignidade humana.

São exemplos de representações imagéticas, cujas escolhas estéticas e ideológicas


tinham por objetivo exercer forte influência no referencial simbólico, o cartaz
criado pelo partido nazista (figura 02) e a propaganda da marca de cigarros Porto
(figura 03). No primeiro exemplo, Araújo e Heck (2017) explicam que os nazistas, ao
estabelecerem no imaginário social suas ideologias, se utilizaram dos
conhecimentos da linguagem visual para produzir e direcionar imagens com base
no nível de conhecimento da população. Ainda segundo os mesmos, “[...] o partido

268
fez uso de uma série de conjuntos simbólicos, procurando suscitar emoções
intensas e prender os indivíduos à sociedade totalitária” (Ibid., p. 200).

Figura 02 – “Censura” Figura 03 – Cartaz Cigarros Porto

Fonte: Bytwerk, 20229 Fonte: Menina Rapaz, 201210

A figura de Hitler, uma ilustração, é o item chave do cartaz, pois é


aquele que mais atrai a atenção do leitor. Este signo, ao contrário da
maioria das ilustrações trazidas pela propaganda nazista, representa
Hitler de uma forma menos envolvente. O fato ocorre principalmente
pelo olhar distante, que não fita o leitor, sendo assim um signo
indicial dessa situação, pois não estabelece contato com o leitor. Por
outro lado, esse mesmo signo evidencia a ideia de “censura”,
tornando-se, também, símbolo da proibição de fala. A frase que vem
em seguida explica melhor o contexto: “Ele sozinho, entre dois
milhões de pessoas na terra, não pode falar na Alemanha!”. Tal cartaz
se refere ao período na década de 1920 em que Hitler foi proibido de
se manifestar publicamente em grande parte da Alemanha
(BYTWERK, 2001). Percebe-se no texto o tom de absurdo que se
atribui ao acontecimento, sinalizando um protesto ao fato de Hitler
não poder expressar sua opinião às massas. (ARAÚJO; HECK, 2017, p.
201-202)

9 Disponível em: https://research.calvin.edu/german-propaganda-archive/posters1.htm. Acesso em 20 nov. 2022.


10 Disponível em: http://meninarapaz.blogspot.com/2012/01/anuncios-vintage.html. Acesso em: 08 maio 2021.

269
Outra amostra de representação conceitual realizada através da imagem é o cartaz
publicitário de uma marca de cigarros veiculada na década de 1970 (figura 03),
onde, assim como na figura 02, também foram escolhidos elementos estéticos com
o objetivo de criar um referencial simbólico. Insinuando que o produto se destina a
todos que possuem “um trabalho de responsabilidade” e que o consumo do mesmo
auxilia nas tomadas de decisões, seus criadores se apropriaram das relações que se
estabelecem entre um homem vestindo uma camisa branca e o estetoscópio sobre
a mesa. Graças a esse “jogo” simbólico, é possível enxergarmos na “imagem” a
presença de um profissional de saúde fumando antes de tomar uma decisão
importante.

Educação visual: a imagem e o ensino através da imagem

Diante de tamanha importância e de sua extraordinária capacidade de influenciar o


imaginário social, não há como negar a necessidade de uma educação que
oportunize o ensino da imagem. Ensino que provoque mudanças no papel exercido
pelo cidadão comum, deixando de ser um simples observador para se tornar um
leitor, pois segundo Couto (2000, p. 14), “a imagem visual tem valor cognitivo e pede
ao espectador uma leitura, uma investigação significativa que vai além da mera
contemplação espontânea.” Ainda segundo o mesmo, por não ocorrer de forma
instantânea, a leitura de imagem é condicionada ao aprendizado de sua linguagem e
esta, por sua vez, decorre dos processos de alfabetização. Com isso, “temos que
alfabetizar para a leitura de imagem” (BARBOSA, 2012, p. 36).

Nesse ponto a educação visual é imprescindível, uma vez que ler uma imagem não é
o mesmo que percebê-la, mas como nos afirma Dutra et al. (2017, p. 07), fazendo
referência às ideias de Aumont (2002), “trata-se de compreendê-la, interpretá-la, e
para isso é necessário conhecimento dos códigos expressivos.” Em outras palavras,
não basta ter consciência da existência da imagem, é essencial conhecer os
processos de decodificação da mesma, para que se construa uma interpretação
coerente com o texto. Assim como se aprende as letras para se chegar ao
entendimento da linguagem verbal, a leitura iconográfica também parte de um
processo alfabetizador, cujos significados dos elementos básicos são apreendidos
para se chegar ao entendimento dos textos imagéticos.

270
Se trabalhada desde cedo, logo na educação infantil, a alfabetização visual será um
importante aliado na compreensão leitora de textos multimodais e até mesmo nos
processos de ensino da leitura verbal. Pois segundo Barbosa (2012, p. 28), alfabetizar
vai além do ensinar a juntar as letras: “Há uma alfabetização cultural sem a qual a
letra pouco significa. A leitura social, cultural e estética do meio ambiente vai dar
sentido ao mundo da leitura verbal.” A autora afirma que é através do contato com
as artes plásticas, agora visuais, que as crianças desenvolvem a “discriminação
visual”, fundamental no processo alfabetizador. Ainda de acordo com a mesma, as
crianças de seis anos têm dificuldade na distinção das palavras “lata e bola”, por
apresentarem igual composição, ou seja, sequência de letras altas e baixas. “A
criança que trabalha com arte, desenha, trabalha com pintura, rapidamente
percebe a diferença, que é o risco na letra T” (Idem, 2019, texto digital). Somente
uma “visualidade ativada” permite que haja uma distinção das palavras, facilitando a
compreensão dos códigos verbais.

Por isso mesmo, Pillar (1995, p. 36 apud DUTRA et al., 2017, p. 07) defende uma
“alfabetização do olhar” e utiliza como argumentos as funções seletiva, associativa,
organizacional, analítica e construtiva do olhar humano. Sugere ainda, que a mesma
não seja apenas uma apropriação de códigos, mas também de sensibilização,
mediada pelo “[...] contato frequente com as obras de arte e cultura visual.” A
autora nos aponta para um formato de ensino capaz de proporcionar o domínio
técnico da linguagem visual, ao mesmo tempo em que sensifica o ser através do
olhar. Ou seja, oportuniza experiências estéticas por meio da leitura de imagem.

Mas antes de falar desse ensino e do seu formato, defendidos por Pillar, é
importante trazer para esta discussão o conceito de alfabetização, não somente
pelo fato das referências até aqui apresentadas utilizarem este termo, mas também
pelas inferências que o mesmo gera, bem como, a sua distinção entre o letramento,
termo bastante difundido com o advento de estudos relacionados aos textos
multimodais. Como os processos são distintos e, segundo Magda Soares (2004),
existe em nosso país uma confusão quanto ao conceito de alfabetização, falaremos
um pouco sobre os termos e analisaremos suas implicações no ensino da imagem.

Conforme Soares (2004, p. 07), a alfabetização é um “[...] processo de aquisição do


sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica [...]”, tendo seus

271
esforços concentrados no saber ler e escrever, sendo necessário para o pleno
exercício das mesmas o domínio dos códigos de linguagens. Já o letramento, que é
o “[...] desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas
sociais que envolvem a língua escrita [...]” (Ibid., p. 12), não seria apenas saber
decodificar uma linguagem, mas atribuir sentidos durante seu uso em sociedade.
Portanto, caracteriza-se como um processo mais abrangente por apropriar-se
tanto da alfabetização, quanto do emprego de sua linguagem comunitariamente.

Neste sentido, quando se fala em alfabetização visual, fala-se de um processo de


apropriação de códigos específicos da linguagem visual. Fala-se da “[...]
aprendizagem de uma técnica e de certo nível de decodificação” (RIBEIRO, 2010, p.
02), necessários à leitura e produção de imagens. De modo genérico, como nos
apresenta Dutra (et al., 2017, p. 04), alfabetizar “é ensinar a decodificar, ler”, mas não
somente uma leitura isolada, isenta do contato com o meio onde a imagem e o
leitor se inserem. Como alertava Soares (2004), temos aqui um exemplo de
“confusão” de conceitos. Nessa perspectiva de inclusão dos contextos onde se faz a
leitura, percebe-se com maior clareza a amplitude do letramento e com ele o
processo de enculturação visual, pois para aprender a técnica e a prática de uma
linguagem é necessária a vivência dentro de um ambiente onde todos façam uso
dos seus códigos.

Em seu artigo intitulado “Letramento Visual”, Flávia Silvino (2012) apresenta


algumas informações que ajudam na distinção dos termos alfabetização e
letramento visual e o modo como este compreende a leitura imagética. Segundo a
autora, uma das características de quem é letrado visualmente é a capacidade de
observar atentamente a imagem, com o objetivo de compreender os propósitos por
trás da mesma, ou seja, a intencionalidade produtora. Extrapolando os limites de
uma decodificação, o leitor tem autonomia para coletar o máximo de informações
contidas na imagem e interpretá-las à luz do seu contexto, criando suas próprias
inferências, atribuindo sentidos.

No entanto, ninguém nasce alfabetizado, dominando as técnicas de leitura e


produção imagética, muito menos letrado, atribuindo significados à mensagem
decodificada, por isso, faz-se necessário o estudo da gramática visual e sua sintaxe.
Se existe uma gramática própria, específica ao ensino da linguagem visual, e sua

272
relação com a xará verbal não é bem quista, onde seria o local apropriado para o
seu ensino? Falando em ensino, seria porventura, aquele mesmo defendido por
Pillar e capaz de alfabetizar o olhar? E se alfabetiza, também é capaz de letrar
visualmente? Para as três perguntas seguem as respostas: Ensino de Arte! Sim! Sim!
Mais especificamente, é na disciplina de Artes Visuais, uma das linguagens artísticas
que compõe o ensino de Arte, o local adequado para a alfabetização e letramento
visual, por trabalhar sua gramática aliando à educação estética.

A esse respeito, Paola Zordan (2005, p. 02) afirma que as “Artes Visuais, como bem
indica o nome, mostram a importância da visão e daquilo com que a visão se ocupa,
ou seja, as imagens.” Ampliando seu campo de estudo, a disciplina deixou para trás
as nomenclaturas “Belas Artes” e “Artes Plásticas”, abarcando o que, segundo a
autora, vem sendo chamado desde o século passado de “civilização de imagens”.
Com isso, seu ensino estaria centrado em qualquer tipo de imagem, desde as
pinturas rupestres às produções gráficas mais contemporâneas, pois “o que
interessa é a decodificação de seus elementos, dos seus contextos, das múltiplas
forças que as constituem” (Ibid., p. 08).

No entanto, a presença deste ensino na educação exige que o conceito de arte não
se restrinja à experimentação estética, mas que também seja compreendida como
conhecimento e linguagem. Enquanto conhecimento, não por acaso, Barbosa (2012,
p. 08) tem defendido a Arte-educação como “epistemologia da arte”, ou seja, “[...] a
investigação dos modos como se aprende arte na escola de 1º grau, 2º grau, na
universidade e na intimidade dos ateliers.” Enquanto linguagem, e segundo Couto
(2000, p. 17), “se socializada na educação, os indivíduos poderão compreender
melhor as mensagens visuais existentes no meio ambiente e melhor reagir a elas.”
Também corroborando com estes conceitos, Pessoa (2018, texto digital) afirma que:

A arte deve ser entendida como conhecimento e linguagem, e desta


forma sua prática levará os alunos a adquirirem e aprenderem a se
comunicar usando este novo tipo de linguagem. A escrita da arte nas
imagens e obras é feita através de um sistema de representação que
utiliza principalmente: cor, luz, sombra, forma, som, gestos, silêncio,
movimento etc., que são símbolos com os quais o aluno, com alguma
intenção, faz uma leitura e criam uma obra, dando novos significados
a todos estes elementos que foram citados. Ao usar diariamente esta
linguagem para se expressar, o aluno vai iniciando a alfabetização do

273
seu olhar, construindo e aprimorando um repertório de símbolos
visuais e sensoriais que o ajudará a ler o mundo que está ao seu redor
de forma simbólica.

Considerações Finais

Enfim, a humanidade tem produzido uma quantidade significativa de imagens sem


demonstrar preocupação com o nível de compreensão que a maioria da população
tem sobre a linguagem visual. Diante da extraordinária capacidade de influenciar o
imaginário social, faz-se necessário que o estudo da imagem, que vai além de uma
simples identificação dos seus códigos constitutivos, seja oportunizado no ensino
básico de todas as escolas. E como observado neste artigo, a disciplina de Arte é o
local apropriado para a realização deste ensino, uma vez que proporciona o
conhecimento técnico da linguagem, alfabetizando e letrando visualmente, ao
mesmo tempo em que possibilita experiências estéticas por meio de atividades de
leitura de imagens e com estas o desenvolvimento estético.

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Visuais. Revista Linhas (UDESC)., Florianópolis, v. 6, n. 2, 2005. Disponível:
http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1265. Acesso em: 13
maio 2020.

Mini Currículos

Cícero Fernando de Moura Paz


Mestre em Ensino pela Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. Arte-educador do Instituto
Federal do Piauí – IFPI, Teresina – PI. E-mail: cicero.paz@ifpi.edu.br

Hendy Barbosa Santos


Doutorando em Ensino pela Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES. Arte-educador do
Instituto Federal de Rondônia – IFRO, Jaru – RO. E-mail: hendy.santos@ifro.edu.br

Morgana Domênica Hattge


Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professora do Curso
de Pedagogia e do PPGEnsino da Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES, Lajeado – RS. E-
mail: mdhattge@univates.br

276
EIXO B

POÉTICAS ARTÍSTICAS E PROCESSOS DE CRIAÇÃO


AS SUTIS FORMAS DE EXISTIR: UMA ETOONTOLOGIA ARTE TECNOLÓGICA

THE SUBTLE WAYS OF EXISTING: AN ART TECHNOLOGICAL ETOONTOLOGY

Thiago Heinemann Rodeghiero


UnB, Brasil

Suzete Venturelli
suzeteventurelli@gmail.com

Resumo

O presente texto busca produzir estética em obras de arte computacional que, através da
leitura de sensores eletrônicos acoplados a objetos de madeira que se dobram, amalgamam-
se em ecosofias etoontologicas. A partir das questões de trabalho e da análise da produção
artística autoral, pretende-se investigar as ecologias da sensorialidade na arte
contemporânea, buscando fortalecimento nas filosofias pós-estruturalistas.

Palavras-chave: Arte e tecnologia; sensores eletrônicos; ecologias.

Abstract

The present text produces an aesthetic search in computational works of art that, through
the reading of electronic sensors to wooden objects that bend, are amalgamated into
etoontological ecosophies. From the work issues and the philosophy of authorial artistic
production, it is intended to investigate how ecologies of sensoriality in contemporary art,
seeking to strengthen the post-structuralist ones.

Keywords: Art and technology; electronic sensors; ecologies.

Introdução

Parece inegável que seja necessário pensar em possibilidades reapropriativas de


referências sutis para podermos nos orientar no mundo. Consumimos
cotidianamente uma quantidade imensurável de dispositivos e informações oriundas
de sensores que nos condicionam a estar alienados às sutilezas (CRARY, 2016).

278
Inundados de signos com significados já saturados (DELEUZE; GUATTARI, 2012a),
estamos privados de particularidades e imersos em generalidades, colocando-nos
em um estado constante de emergência e, cada vez mais, num tempo
homogeneizado sem variação e sem diferenciação. Como guia que orienta a
produção poética, esta pesquisa tensiona diferenças, desvios de olhares e
percepções que alienam o cotidiano por uma subversão da lógica dos dispositivos
que criam essa alienação, ou seja, faz o olhar se voltar para o que é sutil.

Uma forma de recuperar as sutilezas é a criação de uma etoontologia, uma forma de


pensar a existência amalgamada com as animalidades. Ao não crer mais na
possibilidade de pensar o ser por ele mesmo e encontrar suas zonas borradas das
forças animais que dão vetor às existências, a etoontologia não visa a representar a
forma do homem, mas dizer das suas diferenças e de suas potências.

Se o enfraquecimento dos signos sutis pode ser entendido como o fim do animal que
habita o homem (PELBART, 2019), há de se encontrar formas de tornar-se sensível
aos estímulos tênues em meio às condições de vida enfraquecidas destes. Para tanto,
os trabalhos que suscitam estas questões são objetos de madeira equipados com
sensores eletrônicos que medem diversos tipos de estímulos (gases, temperatura,
umidade, proximidade etc.) e reagem luminosamente. Estas obras buscam pulsões
vibráteis (ROLNIK, 2018) que nos colocam em sintonia com subjetividades, devires e
sensibilidades. Quanto mais distantes estamos de nossas animalidades, mais triste é
a imagem sedentarizada do ser humano que, por estar despontencializado de suas
zonas de vizinhança com suas forças desterritorializantes (DELEUZE; GUATTARI,
2011), não tem suas forças selvagens e sensíveis como virtude.

Sendo assim, esta pesquisa se desenvolve na prática artística computacional e tem


nos sensores eletrônicos sua força para pensar teorias acerca dos problemas
oriundos dos usos tecnológicos de dispositivos que suspendem as sutilezas e
homogeneízam as formas de existência. Para tanto, trazer a discussão a um nível
estético-político-poético é uma forma de colocar a arte contemporânea a discutir
temas pertinentes à contemporaneidade. Pôr em evidência e fazer da prática do
sensível um processo de teorização é também entender como estes conceitos podem
modular as práticas.

279
Este processo não nega ou sobrepõe o entendimento de que estes exageros de signos
e de obstrução dos devires estão ligados a uma mecânica capitalística (e as formas
neoliberais de exploração dos corpos) e à produção de subjetividades (GUATTARI,
2012); o que se coloca é a pungência de pensar outras questões, como as relações
entre produtores e consumidores de signos. Por entender que estes signos
espetaculares se sobrepõem aos signos sutis, a prática desta pesquisa coloca a leitura
de sensores eletrônicos como forma de inserir ao meio novas variações e novas
maneiras de criar, através da estética, pulsões de vida.

Os sensores, de modo geral, automatizam nossos deslocamentos, comportamentos


e existências. Conectados em redes, processados de maneira praticamente
instantânea e funcionando em composição com os nossos corpos, os dados lidos e
escritos são a referência para as existências na contemporaneidade. Não há muitos
que resistam à comunicação instantânea, à orientação geográfica, às publicidades
customizadas, aos algoritmos mediadores de relações interpessoais e aos grandes
volumes de informações disponíveis para consulta imediata que esses meios
disponibilizam. A interação mediada pelas informações que os sensores engendram
se constituem como uma tecnologia que transita entre os diversos âmbitos da
realidade social. É impossível pensar em sociedade, cultura, trabalho ou educação
sem considerar o impacto causado por tais tecnologias.

Trazendo à superfície problemáticas e construindo saberes sobre a tecnologia,


através da pesquisa, não se visa a julgar os usos de dispositivos eletrônicos, mas sim
deixar emergir os problemas que tais usos e aparelhos suscitam, construindo saberes
através das fronteiras transdisciplinares da tecnologia. Isto se dá na construção de
uma visão dos processos por meio das artes tecnológicas, ampliando as abordagens
e potências entre os processos estéticos e técnicos disponíveis. Os trabalhos que
serão colocados a suscitar as problematizações acerca da tecnologia são
dispositivos-objetos que medem a presença e os ambientes e levam a criações de
conceitos e noções (criados conforme as práticas artísticas e os trabalhos os
suscitarão) que darão margens às experimentações estéticas que permeiam a
temática e a investigação.

280
Figura 1: Trabalho Lampejos (2022), exposto no Museu da República (Brasília/DF) no #21.ART. Fonte:
Arquivo Pessoal.

As concepções são inventadas como ferramentas que funcionam e desfuncionam e


colocam a variar as certezas que, até em outros momentos, são guias de referência
de pensamento. Logo, a gênese dessa investigação é propor saberes ecosóficos que,
pelas éticas sutis das animalidades, fazem da intuição uma peça chave para a
descoberta das potências embrionárias que levam a produção artística do
pesquisador a problematizar o momento contemporâneo de progresso. Os trabalhos
e obras criadas nesta pesquisa são meios fluentes, luminescentes e lufantes
engendrados na problemática e temática desta mesma.

Ao colocar os saberes e devires animais como mote, uma ontologia será proposta:
uma etoontologia. Este conceito será construído conforme o aprofundamento das
questões e as práticas artísticas vão se movimentando, fazendo reflexão e
abrangendo os seres não apenas pelos seus sentidos e suas existências centradas em
si. Através da produção artística proposta, pensar-se-ão os meios, trajetos e forças
que façam vetor às práxis dos trabalhos conforme se complexifica para ponderar as
ciências dos seres em amálgamas eletrônico-ferais. Esta noção é estratégica, pois, ao
ser montada e desmontada, será colocada a problematizar a prática artística e

281
tecnológica desenvolvida na pesquisa. Priorizando encontros, comporá junto prática,
pensamento, estética e tecnologia. Com as filosofias pós-estruturalistas, proliferar-
se-á o pensamento como erva daninha (DELEUZE; GUATTARI, 2011), deixando a arte
e a tecnologia discutirem suas problemáticas que elas próprias suscitaram.

Justificativa

Esta pesquisa justifica-se por priorizar uma heterogenia de elementos e matérias que
compõem um território de pesquisa poética calcado na prática. Colocando
problemáticas acerca dos usos dos aparelhos tecnológicos, pensam-se as éticas e
seus efeitos na exploração ambiental e sua insistência do progresso como uma
virtude. Uma proposta é a invenção pela marginalidade das estéticas existentes,
colocando em movimento éticas-germe das potências de hibridização dos meios.
Para tanto, contrapõem-se os desaparecimentos das diferenças que são oriundos da
homogeneização da vida ao fazer das sutilezas o meio e a força de trabalho em arte.

Para as práticas artísticas serem postas como vetor para pensar a proliferação de
criações oriundas dos encontros com o cotidiano, foge-se dos dogmatismos e
enfraquecimentos semânticos. Ao tensionar e encontrar contextos que nutrem e
potencializam a criação de trabalhos, os meios sutis dispostos proporcionam olhares
sensíveis e são a maneira que esta pesquisa se coloca a enfrentar as luzes que não
deixam a noite surgir (CRARY, 2016).

Nossas existências estão sendo cada vez mais moldadas pelas informações recebidas
de sensores eletrônicos (temperatura, umidade, gases, proximidade e som). Nos
deslocamentos, nas relações pessoais e nos objetos cotidianos, estes receptores e
decodificadores de informação estão cada vez mais presentes em nossas vidas. Nas
atividades mais simples estamos produzindo dados e fluxos de informações, criando
uma ampliação do espaço físico e das interpretações e representações das
fisicalidades e materialidades dos dispositivos de interação e imersão.

Colocando em discussão e problematizando os conceitos de vida e natureza, coloca-


se a pensar a potencialidade de apropriação de tecnologias nos campos das artes.
Lúcia Santaella (2003) diz que a bioarte é a confluência da vida artificial com a própria
vida. Neste aspecto, esta pesquisa tensiona a criação de amalgamações das sutilezas

282
e das formas menores de vida. Estas convergências fazem pulsar, através de
estéticas, formas de problematizar as temáticas abordadas nesta pesquisa. Ainda,
segundo Louise Poissant e Ernestine Diebener (2012), uma Vida Artificial é um modo
de simulação comportamental composta de sistemas artificiais que desempenham as
características de um ser vivo. Ao criar modos de arte que reagem às sutilezas,
olhamos para modos de vida e existência que têm como missão serem estéticos-
políticos-vibráteis.

Tais usos de aparelhos tecnológicos fazem e obrigam as existências a seguir um


caminho condicionado à homogeneização. Esse é um dos efeitos da exploração
capitalística que vê na tecnologia uma forma de explorar as vidas. Tais decorrências
instauram cegueiras e deixam os signos sutis enfraquecidos. Essa falsa virtude do
progresso coloca “a consciência de um tempo que não está mais submetido à simples
repetição, mas que está submetido ao desaparecimento” (SAFATLE, 2020, p. 111) em
meio a signos enfraquecidos e monocromáticos. Para ensaiar uma existência com
potência é necessário pensar nas marginalidades, nas vizinhanças, nas brechas que
as sutilezas podem oferecer e nelas criar mesclas, hibridizações, superposições com
os meios que se oferecem, fazer da tecnologia uma alegria ao colocá-la a buscar
outros modos de existir.

Logo, chega-se à pergunta: como a produção poética de objetos que têm sensores
eletrônicos fazem fruir e criar, a partir das ecosofias da sensorialidade,
experimentações poéticas e etoontológicas que problematizam as sobrecodificações
de signos através da percepção de sutilezas. Esta é a inquietação germe a partir da
qual me debruço nas matérias e que teço conexões. Esta é a pergunta que coloca em
movimento a pesquisa e é pensada de forma a ser um guia que não encontra certezas,
mas as formas de colocar a variar, proliferar e experimentar inquietações conforme
avança.

Logo, a hipótese é de que buscar as sutilezas é um movimento possível de não cair


no enfraquecimento ético que cria vidas-politicas-estéticas com subjetividades
precárias e destroçadas de suas forças pulsionais. Nos trabalhos, será
problematizado como os pequenos estímulos podem ser motivo para se fazer pensar
a existência não apenas centrada no homem, lançando a suspeita de que as

283
animalidades faltam e buscando respostas nas pequenas percepções que evidenciam
a homogeneidade dos signos na contemporaneidade.

Essa pesquisa tem como objetivo geral investigar as sutilezas oriundas das recepções
sensoriais eletrônicas oriundas de diversos ambientes através de objetos estéticos,
retomando as questões e práticas tensionadas pelos objetos e instalações
produzidas. Tal objetivo se faz numa abordagem prática e teórica, investigando como
os sensores eletrônicos podem conduzir esteticamente a outras formas de existir.
Não apenas como um guia, mas este objetivo coloca os trabalhos e a arte a pensarem
e darem estofo às questões e aos problemas que estes mesmos desdobrarão.

Poética Artística

A prática artística desta pesquisa é a criação de objetos que têm, nos sensores
eletrônicos, formas de fazer problematizar através das reações à estímulos sutis.
Estes trabalhos são feitos de madeira, parafusos, borboletas, sensores eletrônicos,
fios, leds e placa de prototipagem eletrônica. As formas que estes objetos ganham
depende da montagem, nunca permanecendo da mesma maneira. A madeira cria a
estrutura, os parafusos e borboletas, as articulações e fios, leds e placa de
prototipagem, a corrente que faz fluir a vida do objeto. Pensa-se numa prática
artística que investe na processualidade e potência do próprio fazer como força
motriz e esta processualidade que faz as “operações que determinam a natureza
artística do que vemos” (RANCIÈRE, 2012, p. 15) e do que sentimos. Para esta pesquisa,
haverá a necessidade de aprender técnicas para enriquecer as práticas de trabalho e
de criação. Alguns procedimentos poderão dar outras dimensões aos trabalhos.
Como maneira de fazer poéticas visuais, os procedimentos dos fazeres artísticos se
amalgamam com teoria, problemáticas e reflexões da pesquisa e não assumem
ordenamentos anteriores estabelecidos, mas sim fazem os trabalhos seguir os
rumores que captam signos de processualidade que colocam em movimento o
próprio ato poético. Inventando pela precariedade, esta maneira de fazer assume
uma pulsão do “faz-se fazendo” em composição com o acompanhamento processual.
Fazem-se as obras oriundas destas poéticas com forças (fuçadora, tentacular,
formigueira, bicadora) ao invés de formas, assumindo a experimentação como
maneira de criar-construir.

284
Figura 2: Processo das formas. Fonte: Arquivo Pessoal.

Estes objetos surgem como respostas a uma série de fotografias das zonas banais e
cotidianas das cidades. Através das sombras e das brechas que as fotografias
mostravam, o trabalho se desdobrou, ganhou contornos outros e virou objetos de
madeira articulados com parafusos e borboletas. As fotografias eram o
acompanhamento de caminhadas urbanas e se estendiam na necessidade de fazer
desenquadrar a cidade de seu plano urbanístico retangular, fazendo variar os
caminhos pelos quais os trabalhos se colocavam. A inserção dos sensores veio com
uma forma de fazer estes objetos ganharem, de certa forma, vida. A reação das
leituras que estes receptores eletrônicos fazem é uma resposta às sutilezas
percebidas durante o processo.

Oferecendo um pensamento calcado na prática de um processo artístico, se faz e


traça um plano de consistência que coloca a “elaborar um material cada vez mais
rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais
intensas” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 149). A prática vem, desta forma, como uma
maneira de retirar os privilégios da observação passiva e “indicar a profundeza que a
habita, que a move” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 33), dando outras potências capazes
de atribuir sentidos e não significados. Os trabalhos não ilustram os conceitos
filosóficos por eles suscitados, mas criam condições de possibilidade para que eles

285
emerjam. Logo, é por eles que as ecosofias (as éticas etoontológicas) se montam e
nesta prática encontrar-se-ão modos de “captura, de descentramento, de
multiplicação dos antagonismos e de processos de singularização que surgem [d]as
novas problemáticas ecológicas” (GUATTARI, 2012, p. 14) e farão movimento com a
arte.

As sutilezas são a forma de perceber o mundo numa prática produzida e composta


pelas sensorialidades eletrônicas. O processo envolve apropriar-se de maneiras sutis
de como as animalidades de relacionam com o ambiente e criar rotas para estes
compor estéticas. Os trabalhos deixam emergir a pungência dos signos sutis e se
ocupa em operar espaços e objetos residuais. As sutilezas são “sinais, singularidades,
pedaços, brilhos passageiros, ainda que fracamente luminosos” (DIDI-HUBERMANN,
2011, p. 43) que se colocam como resistência as ofuscantes luzes das mecânicas
capitalísticas. Ter as sutilezas como guia é nunca estar convencido “de que a máquina
cumpre seu trabalho sem resto nem resistência” (DIDI-HUBERMANN, 2011, p. 42).

Ao invés de perseguir o extraordinário, encontra na sutileza os fluxos animais que


transformam os atos triviais em sensibilidades e potências de sentidos. Construída
pelos processos que compõem experiências nas leituras de tais sensores, orienta-se
no meio dos procedimentos de invenção de mundos-vidas, encontrando as potências
pelas forças sutis do cotidiano. Não se recorre a modelos pré-estabelecidos de juízos
predeterminados: prefere-se aquilo que não salta aos olhos. Ao perseguir estes
encontros, as pistas e os signos surgem e outras maneiras de habitar o espaço
ganham consistência.

As intensidades das sutilezas dizem das subjetividades e seus efeitos nas trivialidades
de uma micropolítica dos processos artísticos. Removendo os códigos e juízos,
criam-se alternâncias e possibilidades de dessignificar as certezas classificatórias da
macropolítica (GUATTARI; ROLNIK, 1986). Vivenciando os trajetos sem
preestabelecimentos, faz aderência a encontros singulares que retiram a vida lá de
onde ela é prisioneira.

Desdobrando-se em novas maneiras de montar-fazer-dizer sobre o ordinário, a


poética artística é concebida num investimento das sutilezas como forma de fazer
arte. Os elementos deste território se dispõem em objetos-lugares e, colocados em
variação, desterritorializam/movimentam os traçados comuns, operando matérias e

286
substâncias e dando a elas outros sentidos. Os devires e as animalidades aderem ao
artista-cartógrafo, deixando as suas forças repousarem sobre as sutilezas.

Método

Esta pesquisa se faz aos moldes de uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2010; 2011)
que, superpondo os elementos e matérias num plano (DELEUZE, 2011) a ser
deslocado pelas forças e pelos vetores da arte, se calca na experimentação e na
criação de novas formas de pesquisar. Os conceitos abordados farão composição,
pois “longe de desenhá-los, ele [o pesquisador em artes] os usa e os trabalha”
(LANCRI, 2002, p. 19). O processo da pesquisa visa a “explorar os meios, por trajetos
dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (DELEUZE, 2011, p. 83) pelo seu próprio
fazer poético.

Produzindo subjetividades ao acompanhando-mapeando processos, coletam-


se/produzem-se os dados e se busca na experiência estética uma abordagem
transdisciplinar entre Arte, Filosofia e Política. Dispensando modelos prontos de se
fazer pesquisa, inventa-se, pois, sendo um método que permite que novas existências
possam vazar, cria subjetividades. Buscando redes de conceitos que proliferem e
façam consolidar meios, trajetos e forças, é nas filosofias da diferença que se
produzem ritmos que passam pelas transcodificações e, entre as vibrações dos
meios, criar um território: um “produto de uma territorialização dos meios e dos
ritmos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 127).

Tecendo uma experimentação pelos afectos que pedem passagem na


processualidade da produção artística, buscam-se na produção poética do
pesquisador, nos textos de artista e nas filosofias, as consistências para esta pesquisa.
Ainda, no que diz respeito à poética e às relações entre arte, ecosofia e filosofia,
pretende-se olhar para a pesquisa enredada nos caminhos de uma prática estética-
poética. Para tanto, a causa desta pesquisa é encontrar as forças de uma ética
micropolítica que dispensem as montagens classificatórias definitivas das
macropolíticas. Portanto, a trajetória da pesquisa é calcada na vazão a uma produção
artística não moralizante “da percepção, da afecção, da conversa” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012b, p. 99), da troca, do uso coletivo e da sensibilidade que os processos
serão engendrados. Acredita-se que fazer arte, produzir imagens e fotografar são
287
movimentos de dar vazão às expressões dos pequenos gestos criadores de sensação.
Logo, a hipótese é de que as sutilezas são parte de um movimento possível de não
cair no enfraquecimento ético que cria vidas com subjetividades precárias e
destroçadas de suas forças pulsionais.

Esta pesquisa já se encontra em um meio. Assim, amalgamam-se e movimentam-se


os estudos e as pesquisas teórico-práticas na área das poéticas visuais, dando
destaque na prática da produção de objetos, procedimentos de criação e dos
métodos de produzir arte contemporânea que têm a tecnologia como problemática.
Por um trajeto que se faz pela produção dos trabalhos, conceitua-se o lugar (onde se
buscam os problemas) e o deslocamento (as formas pelas quais encontram as
respostas) como procedimentos relacionais de produção de sentido (os próprios
trabalhos). Abordando questões acerca da sensibilidade eletrônica, criam-se modos
de agenciar com outras matérias (tempo, gesto, corpo no espaço, entre outros).
Através das produções que o projeto tensiona, agenciaram-se conceitos com
produções da arte contemporânea, engendrando novas dúvidas e novos
questionamentos.

Revisão Bibliográfica

Para a criação do conceito de etoontologia, busca-se fundamentação nas ecologias


mentais, sociais e ambientais de Félix Guattari (2012), segundo as quais “trata-se de
se reapropriar de Universos de valor no seio dos quais processos de singularização
poderão encontrar consistência" (p. 55) através de “desdobramentos de devires
animais, vegetais, cósmicos, assim como de devires maquínicos, correlativos da
aceleração das revoluções tecnológicas e informáticas” (p. 20). Estas formas de
colocar o ser em correlação é não somente o foco da pesquisa e de sua prática
artística, mas a maneira pela qual a problematização se desdobra.

Recompondo o olhar e dando consistência às subjetividades destroçadas pelas


degradações ambientais, sociais e mentais, é na ecosofia (ou ecologia ambiental) que
se encontra força para estabelecer relações entre as várias formas que pulsam na
subjetividade dos viventes. A força ambiental então não deve enfrentar sozinha o
capital, pois, segundo o autor, os grupos arcaicos que a defendem “não estão de
modo algum seguros que continuarão a vencê-la” (p. 36) e “a ecologia social deverá
288
trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis” (p. 33) para
poder dar heterogenia na simultaneidade mental “onde o belo coexiste com o feio, o
dentro com o fora, o ‘bom objeto’ com o mau” (p. 38). Cria-se uma cartografia ético-
ecológica para deixar pulsar os vetores que compõem agenciamentos potentes o
suficiente para dar às margens novas lufadas de existência.

Estamos alienados às sutilezas e, segundo Jonathan Crary, perdemos


“paulatinamente as distinções entre dia e noite, claro e escuro, ação e repouso” (2016,
p. 26). Estar diante de um desastre em que o céu não tem mais estrelas e os bosques
não têm mais lampejos é uma das consequências do mundo perpetuamente ligado,
vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. “Com uma oferta infinita e
perpetuamente disponível de solicitações e atrações, o 24/7 incapacita a visão, por
meio de processos de homogeneização, redundância e aceleração” (CRARY, 2016, p.
43), Crary nos diz que as capacidades perceptivas das diferenças sutis estão
comprometidas e nos fazem ir ao triste encontro da ininterrupção dos estímulos.
Logo, o cotidiano está invadido de formas inebriantes de exposição a signos
extraordinários que o irrompe e o invade, mas é desse mesmo cotidiano que se
encontram formas de resistência para se pensar outras formas de resistir à
exploração da vida pelos modelos hegemônicos da contemporaneidade.

Pensar a produção e a prática desta pesquisa é um ato de resistência e tal faz “apelo
a um povo que ainda não existe” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 343). Para tanto, na
arte contemporânea, sobretudo com artistas que investem no cotidiano como
território de ação, o processo é pautado pelo fazer: é uma invenção que produz a
fruição do sensível aos seres. Para Deleuze e Guattari (2010, p.197), “o objetivo da arte
[...] é arrancar o percepto das percepções [...], arrancar o afecto das afecções [...] [e]
extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações” e não certezas ou
significados, mas deixar fruir o inesperado e fazer dos signos uma rede aberta e
conectável.

Ao criar uma poética que tem os sensores eletrônicos como forma e matéria de
trabalho, pensa-se os conceitos de arte computacional. Para Suzete Venturelli (2017,
p. 8), arte computacional é aquela que “toma por base a tecnologia que recorre a
algoritmos matemáticos para aquisição, estocagem, processamento e apresentação
da informação”. Ao colocar as sutilezas como potência, as formas codificadas

289
precisam estar preparadas para reagir aos encontros e acasos que estas lhe
fornecerão.

A arte computacional e suas perspectivas pós-humanas fornece


conceitos novos, incontroláveis pelo mercado, desafio às tradições
contemporâneas da arte, com programas inovadores, protestos contra
o uso das tecnologias para fins bélicos, propondo outras alternativas
de interação humano–máquina, mostrando possível aplicação e
invenção de tecnologias que estimulem a sensibilidade e a
sensorialidade (VENTURELLI, 2017, p. 121)

E para encontrar as relações entre os signos é preciso estar “na contramão de


qualquer antropocentrismo ou controle” (PELBART, 2019, p. 251). Assim, Peter Pal
Pelbart diz que se libertar das amarras do antropoceno é criar formas de vida que
estão prisioneiras. Ao condicionarmos nossas existências às homogeneidades, não
abrimos meios para “que novas combinações, que misturas, que hibridismos” sejam
as formas de encontrarmos outras fronteiras entre animal e homem. Não se trata de
virar as caras para as ferramentas, mas fazer do uso delas potências e “capacidade
de programar, como em Blade Runner” (PELBART, 2019, p. 250) e encontrar saídas
por “onde uma zoopoética nos permite escapar” (PELBART, 2019, p. 249). Ainda, o
autor diz que devir animal pode colocar o homem em zonas de vizinhança com forças
que lhe fazem sair de sua homogeneização conformada.

Quando se fala em estética nesta pesquisa pensa-se numa perspectiva de tornar as


coisas sensíveis. Para Jacques Rancière, é impossível separar a dimensão política da
dimensão estética da existência. Ele diz que a arte faz mutações no tecido sensível
que “misturam sem cessar às de outras esferas da experiência” (RANCIÉRE, 2021, p.
9) e coloca em movimento, formando “os modos de percepção, os afectos e as formas
de interpretação” (p. 9) que afirmam os paradigmas estéticos.

Sendo a estética uma política, ela tem que dar a quem participa de seu processo
maneiras de experimentar e sentir. Para tanto, olhar não diz mais de apenas observar,
mas de “fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio
que nos olha, nos concerne e em certo sentido, nos constitui” (DIDI-HUBERMAN,
2010, p. 31). Ao olhar e ser olhado, o ser experimenta a dimensão estética e política
dos trabalhos de arte.

290
Esta sensibilidade que surge da arte deixa afectar-se, mas isto não quer dizer que é
o mesmo que afetar-se, pois “os afectos são precisamente estes devires não humanos
do homem” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 200), retirando-os do centro do mundo
e fazendo-os ser parte deste. Este movimento é desencadeador de devires que “não
se imita [...] [pois é] uma zona de vizinhança ou de indiscernibilidade [...] através dos
componentes de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 113-114).
Tensionados por estas forças, estes agregados sensíveis, que a arte engendra, dão ao
homem paisagens não humanas: os motivos revolucionários para colocá-lo em
movimento.

As imagens de que trato aqui nesta pesquisa são operações, tal qual Jacques Rancière
(2012, p. 13) diz de Bresson: “são operações que vinculam e desvinculam o visível e
sua significação, ou a palavra e seu efeito, que produzem e frustram expectativas”.
Isto se dá pelo fato de que se produzem sem a necessidade de representar, mas estas
se fazem na “ambiguidade das semelhanças e a instabilidade das dessemelhanças,
operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens circulantes”
(RANCIÉRE, 2012, p. 34). A maneira pela qual se arranja e se produz o processo de
fabricação dessas formas de se fazer ver é da ordem do sensível, dizendo mais do que
afecta do que daquilo que se substantiva.

Trato aqui, nessa pesquisa, de uma micropolítica do fazer artístico imbricado nas
sutilezas como matéria ainda disforme, que carece de formas para ser dita. Há uma
regra de prudência que orienta essa busca: ir ao encontro de outras formas pulsantes
de vida. Para tanto, cria-se uma “força coletiva de criação e cooperação” (ROLNIK,
2018, p. 90) capaz de desidentificar a banalidade, dando outros contornos e forças
que proliferem vida. A micropolítica assume um papel ético, de não deixar
sobrecodificar as matérias que percorre, sem medo de se perder e não classificando
antecipadamente as pulsões em germe que se experienciam. Uma molecularidade é
uma ecologia criadora de resistência não somente ambiental, mas, também, social e
mental (GUATTARI, 2012).

Considerações

Portanto, esta pesquisa se calca no estudo e desenvolvimento de poéticas artísticas


por meio de uma metodologia transdisciplinar e analisa o processo de criação
291
computacional-eletrônico permeado pela trajetória artística do pesquisador,
articulando arte, ciência e tecnologia. Para tal empreendimento e tratando de
métodos computacionais e digitais, a investigação é fruto de uma intervenção urbana
que desdobra-se na pungência de uma interatividade computacional (sensores e
resposta) na criação de vidas artificiais posto a funcionar com as práticas artísticas,
tornando-as parte da poética e das forças dos trabalhos.

Referências

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016
DELEUZE, Gilles. O que as crianças dizem. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011.
Cap. 9, p. 83-90.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 1. São
Paulo: Editora 34, 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 3. São
Paulo: Editora 34, 2012a.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 4. São
Paulo: Editora 34, 2012b.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas, SP: Papirus, 2012.
GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012.
GUATTARI, Felix.; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro:
Vozes, 1986.
LANCRI, Jean. Modestas proposições sobre as condições de uma pesquisa em artes
plásticas na universidade. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (orgs). O meio como ponto
zero. Porto Alegre: Editora UFGRS, 2002, p. 17-33.
PELBART, Peter Pál. Ensaios do assombro. São Paulo: n-1 edições, 2019.
POISSANT, Louise; DIEBENER, Ernestine (Org.). Art et Biotechnologies. Montréal: Presses
de L’Un. du Québec, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. São Paulo: Editora 34,
2021.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1
edições, 2018.

292
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura.
São Paulo: Paulus, 2003.
VENTURELLI, Suzete. Arte computacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.

Mini Currículos

Thiago Heinemann Rodeghiero


Técnico em edição de imagens pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e doutorando em artes
visuais pela Universidade de Brasília (PPGAV). E-mail: rodeghierothiago@gmail.com

Suzete Venturelli
Professora e artista designer computacional da Universidade Anhembi Morumbi (PPGDesign) e
Universidade de Brasília (PPGAV). Pesquisadora do CNPq. Coordena em conjunto com Gilbertto Prado
o LabDAT / UAM. Participa de congressos e exposições nacionais e internacionais. E-mail:
suzeteventurelli@gmail.com

293
ARTE E CULTURA VISUAL NO DESENVOLVIMENTO DA COMPOSIÇÃO VISUAL
“OPERÁRIOS 2022”

ART AND VISUAL CULTURE IN THE DEVELOPMENT OF THE VISUAL


COMPOSITION “OPERÁRIOS 2022”

Ícaro Lênin Maia Malveira


Universidade Federal do Goiás (PPGACV-FAV-UFG/ CRIA_CIBER/ FAPEG), Brasil

Edgar Silveira Franco


Universidade Federal do Goiás (PPGACV-FAV-UFG/ CRIA_CIBER), Brasil

Gazy Andraus
Universidade Federal do Goiás (PPGACV-FAV-UFG/ CRIA_CIBER), Brasil

Resumo
O presente trabalho apresenta uma releitura visual da obra “Operários” (1933), de Tarsila do
Amaral. Partindo de uma experiência de gamearte que implicou no desenvolvimento do jogo
digital Tétrico, a composição visual utilizou a mesma estética do jogo, bem como dos
mesmos elementos gráficos, para estabelecer um diálogo com a artista modernista. Além
disso, a metáfora pandêmica emerge como um tema central tanto no jogo quanto na
composição visual, dando a ver uma realidade que existe para fora do pictórico-imagético,
conduzindo-nos a uma reflexão sobre o momento histórico pandêmico. Tendo em mente os
campos de estudo da Cultural Visual, é nessa seara que se busca fazer uma análise do produto
artístico aqui apresentado, estabelecendo contrastes e similitudes entre linguagens e
momentos históricos.

Palavras-chave: Opacidade. Operários. Pandemia. Transparência.

Abstract
The present work presents a visual reinterpretation of the work “Operários” (1933), by Tarsila
do Amaral. Starting from a game art experience that involved the development of the digital
game Tétrico, a visual composition used the same aesthetics of the game, as well as the same
graphic elements, to establish a dialogue with a modernist artist. In addition, the pandemic
metaphor emerges as a central theme both in the game and in the visual composition,
showing a reality that exists outside the pictorial-imagery, leading us to a reflection on the

294
pandemic moment. Bearing in mind the fields of study of Cultural Visual, it is in this area that
we seek to analyze the artistic product presented here, establishing contrasts and
similarities between languages and histories.

Keywords: Opacity. Workers. Pandemic. Visuality. Transparency.

Introdução

Palavra originária do latim, “operarius”, que derivou por sufixação de “opus”, ou seja,
obra – em língua portuguesa. Da palavra se faz um movimento para a imagem, pois a
reflexão se dá aqui, de uma forma específica, sobre a imagem do operário. Ao trazer
a debate para o âmbito da Arte e Cultura Visual – logo, dando a ela uma dimensão
interdisciplinar e em contexto –, a partir de agora, talvez seja mais acertado falar em
“imagens de operários”. Há a necessidade de instaurar um campo de relações que
gravitam em torno da paridade entre duas imagens que se definem como centrais e
que dão corpo à discussão. A primeira é a pintura a óleo “Operários”, da artista
modernista Tarsila do Amaral, produzida em 1933. A outra, intitulada “Operários
2022”, é uma produção visual criada digitalmente por Ícaro Malveira no ano-título. O
primeiro elo que se traça entre as duas referidas imagens se dá por meio da releitura,
a composição de Ícaro recria a de Tarsila de outra forma. Assim, deslocando
temporalmente a imagem do operário do contexto modernista para o
contemporâneo.

“Operários 2022” usa como referencial de criação gráfica o jogo Tétrico, releitura do
Tetris, que começou a se popularizar na década de 1980. Ao situar os jogos como um
produto dos avanços tecnológicos, é inevitável pensar nesse jogo clássico, criado
desenvolvedor russo Alexey Pajitnov. Inspirado pelos Pentaminós, jogo de quebra-
cabeça que marcou sua infância, Alexey desenvolveu o Tetris nas horas vagas que
tinha no trabalho – no Centro de Informática na Academia de Ciências de Moscou.
Tetris é um quebra-cabeça infinito e de mecânica simples, segundo o próprio Alexey,
“quebra-cabeças refletem a humanidade, quebra-cabeças são metáforas para
pensamentos” (BROWN, 2020, p. 68). O jogador precisa encaixar as peças umas nas
outras, marcando pontos quando forma fileiras completas. Diferente dos
Pentaminós, Tetris tem peças tétrades, formadas por quatro quadrados que se
295
ajustaram em sete diferentes configurações. Apesar disso, a primeira versão do jogo
era formada por sinais gráficos, que definiram a forma do grid e das peças
propriamente ditas.

No contexto dos artistas do modernismo brasileiro, Tarsila do Amaral figura como


um dos principais nomes, tendo integrado o Grupo dos Cinco - junto com Mario de
Andrade, Oswald de Andrade, Anitta Malfatti e Menotti del Picchia. Na década de 30,
a artista visitou a Alemanha e Rússia, influenciada pela política e pela arte desses
países, ao voltar para o Brasil, pintou a obra "Operários" (1933). Esta consiste na
principal obra da chamada "fase social" da artista, veem-se representados o rosto de
56 pessoas, com diferentes matrizes étnicas e raciais, indumentárias e adereços. As
fisionomias destacam-se em relação ao corpo, como que suspensas em uma
composição piramidal. Ao fundo, a paisagem fabril se apresenta, indicando a
emergência da atividade industrial na cidade de São Paulo. A diversidade de operários
remete às grandes ondas de imigrantes que chegavam ao Brasil no período.

A discussão que aqui se propõe, portanto, é analisar a imagem do operário levando


em conta principalmente duas obras já apresentadas, âncoras para o debate que
doravante se inicia, respectivamente: “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral, e
“Operários 2022” (2022), de Ícaro Malveira. O desenvolvimento a seguir comenta o
contexto de produção e as influências de Tarsila para a criação de sua obra,
elencando o cenário socioeconômico no Brasil a partir do operário/trabalhador. Em
seguida, o debate sobre “Operários 2022” é suscitado a partir da relação com o
contexto pandêmico, estendendo-se por uma análise das duas obras a partir dos
conceitos de opacidade e transparência, trabalhados por Emmanuel Alloa (2015).

A Revolução Industrial e a pintura de Tarsila do Amaral

O início do século XX desponta com uma série de acontecimentos que impactam


diretamente o Brasil e o mundo em uma perspectiva socioeconômica e cultural.
Citamos, a exemplo, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a quebra bolsa de valores
de Nova York em 1929, além disso, o mundo está saindo de uma pandemia de gripe
espanhola de escala global, com milhões de vítimas. O período marca a transição da
Primeira República para a Era Vargas, com o declínio da política do café com leite,
após um ascendente desenvolvimento industrial, principalmente nos grandes
296
centros urbanos do eixo Rio-São Paulo. Neste último, desponta o Modernismo como
movimento nas artístico-cultural, Tarsila do Amaral ganha importância nesse
contexto, criando uma arte de cunho nacionalista, antropófago e de cunho social.

No início da década de 1930, período em que manteve um relacionamento com o


militante Osório César, é sabido que Tarsila coadunou com os ideais socialistas e de
esquerda, influência que se refletiu não apenas de forma ideológica, mas também em
seus trabalhos (AMARAL, 2006). É nesse período que se desenvolve a “fase social” da
sua pintura, marcada por obras como “Segunda Classe” (1933), “Operários” (1933) e
“Crianças (Orfanato)” (1935). Dentre elas, “Operários” (1933) ganhou notável destaque,
vindo a constituir-se como um “marco das idéias [sic] de esquerda vigentes entre
artistas e intelectuais a partir de 1930” (AMARAL, 2006, p. 57). Uma experiência
marcante precedeu as obras sociais da artista e que será fundamental para nos ajudar
a entender melhor o que concerne à gênese dessa fase da sua pintura. Referimo-nos
à visita de Tarsila à Alemanha e União Soviética, sobre a qual a pesquisadora Aracy
Amaral destaca as seguintes informações: “Indo de Paris para Moscou via Berlim, em
abril de 1931, a pintora visita, na capital alemã, exposições, freqüenta [sic] o mundo
cultural, caro a ela e ao seu companheiro de viagem, musicista, além de psiquiatra”
(AMARAL, 2006, p. 60). Amaral (2006), no ensaio intitulado “A gênese de Operários,
de Tarsila”, aponta, ainda, aspectos relacionados às influências da obra:

Nessa ocasião, teria visto alguma exposição de Hans Baluschek, ou


visitado o Mãrkisches Museum, onde hoje se encontra a sua pintura e,
quiçá, já estivesse àquela época? Difícil saber. O fato é que quando
vimos na exposição de “Gráfica Russa”, apresentada no Centro Cultural
Banco do Brasil, em São Paulo, uma litografia de V. Kulaguina, datada
de 1930, um cartaz comemorativo do “Dia Internacional da Mulher
Trabalhadora”, montagem em pirâmide de rostos femininos, tendo, ao
fundo, fusos a simbolizar o ambiente de trabalho de indústria têxtil,
imediatamente percebemos uma proximidade com Operários, de
Tarsila, a partir de um recorte que a artista teria feito no cartaz,
adaptando-o à composição que tinha em mente. (AMARAL, 2006, p. 60).

297
Imagem 1. Reprodução da obra “Dia Internacional da Mulher Trabalhadora”, V. Kulaguina, 1930. Fonte:
Aracy Amaral, 2006.

A obra “Dia Internacional da Mulher Trabalhadora”, uma litografia de 1930, de V.


Kulaguina, é descrita na citação acima, também é estabelecida uma relação com a
pintura de Tarsila, ambas se entrelaçam em aspectos comuns no tocante à
composição e à temática escolhida, com a marcante presença das mulheres
operárias. A outra obra mencionada é Proletanerinnen (Operárias), 1900, de Hans
Baluschek, onde também se podem perceber aproximações, sobre os quais Amaral
(2006) faz uma leitura detalhada:

Na pintura de Baluschek, artista alemão que a partir de 1899 entra em


contato com a Secessão Berlinense e adere ao socialismo, percebemos
que o realismo é marcante na projeção quase fotográfica das
fisionomias das mulheres operárias. A mesma pirâmide humana se
ergue da esquerda para a direita (presente também no cartaz de
Kulaguina e no quadro antológico de Tarsila). (AMARAL, 2006, p. 62).

298
Imagem 2. Reprodução da obra “Proletarierinnen (Operárias)”, Hans Baluschek, 1900. Fonte: Aracy
Amaral, 2006.

As fisionomias no quadro de “Operários” (1933), de Tarsila, de um realismo mais


acentuado que aqueles de suas fases anteriores, mostra compleições inexpressivas e
quase melancólicas. Há nitidamente uma diversidade inerente aos rostos
representados, tanto de gênero – homens e mulheres – quanto étnica – pessoas pretas,
asiáticas, caucasianas e pardas. Também é perceptível a variedade de indumentárias
vestíveis. Se por um lado identificamos o terno, por outro há o hijab, a boina e a
vestimenta mais simples com predominância da tonalidade azul. Assim, há um diálogo
com a realidade social e econômica do Brasil, apontando para um período de massiva
imigração e de uma industrialização, após a Primeira Guerra Mundial e com a própria
demanda da exportação cafeeira (GARUTTI; MACHADO, 2019).

“Operários” (1933) e “Operários 2022” (2022)

“Operários 2022” (2022) é uma composição visual feita digitalmente, utilizando


elementos gráficos desenhados por Ícaro Malveira e retrabalhados com ferramentas
de edição de imagem. Atualmente, é comum a busca de alternativas que tenham um
escape ao imbróglio da propriedade intelectual, especialmente através do uso de
ferramentas digitais com código aberto e softwares livres (SANTOS, 2018). Nesse
contexto, foi utilizada ferramenta Canva1 e, principalmente o Gimp, software livre

1
Endereço eletrônico da ferramenta Canva: www.canva.com
299
que permite a edição de imagens através de múltiplas ferramentas. As fisionomias
desenhadas foram salvas em arquivo .png, em seguida, montadas no quadro vertical
amarelo, que remonta à estrutura do grid do jogo Tétrico.

O desenvolvimento que se segue a partir daqui analisa a imagem dos operários nas
duas referidas obras, levando conta a sua visualidade. No contexto dos estudos da
Cultura Visual, identificamos W.J.T. Mitchell como um dos precursores da área. Em
acordo com o pensamento do autor, um dos pressupostos da teoria da visualidade
“aborda o feito da percepção não apenas do ponto de vista fisiológico, mas também
em sua dimensão cultural” (PEGORARO, 2011, p. 47). A visualidade propõe
determinadas práticas sociais através das quais é possível entender a imagem como
capaz de exprimir significado (PEGORARO, 2011), desse modo, é possível entender
que “visualidade refere-se ao registro visual no qual a imagem e o significado visual
operam” (PEGORARO, 2011, p. 47). Assim, ao abordar as imagens dos operários,
buscamos estabelecer uma interlocução de contextos, práticas e relações.

Imagem 3. Reprodução digital das obras discutidas no presente artigo, respectivamente: “Operários
2022”, de Ícaro Malveira. e “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral. Fonte: Acervo pessoal, 2022.

300
É interessante perceber que, em muitos jogos eletrônicos, depara-se o jogador com
dificuldades a serem transpostas, um personagem antagônico, ou artefatos a serem
descobertos e acumulados, dentre uma infinidade de outros desafios. Em Tetris, há
uma diferença nesse quesito, pois “não há um inimigo identificável. A pressão vem
puramente de algo abstrato, da geometria, uma corrida contra a aleatoriedade
implacável que inunda a tela” (VARELLA, 2020, p. 58). Na releitura proposto em
relação ao jogo Tétrico, essas geometrias são substituídas por fisionomias
cartunizadas, que se acumulam em associação com as aglomerações, trazendo, por
meio de analogias, uma metáfora sobre o momento pandêmico. Assim se estabelece
uma relação entre os universos que se apresentam in e outgame. Na composição
“Operários 2022” (2022), a visualidade gráfica do jogo se mantém. Trata-se, no
entanto, de uma obra estática, e não interativa, como é o caso dos games.

Para além do jogo, é importante situar em que pontos se identifica a interlocução


estabelecida também com a obra de Tarsila. A técnica muda, passa da pintura para a
arte digital; o suporte tela/quadro passa à tela do computador; as dimensões são
distintas, uma possui 1,50m x 2,05m e a outra 10cm x 5cm; uma é horizontal a outra
é vertical. A imagem “Operários 2022” (2022) busca a pintura “Operários” (1933), seja
na escolha das fisionomias inexpressivas, seja na sua composição piramidal, em que
as cabeças suspensas, diferentemente da outra, estão completamente descoladas do
corpo.

Não há apenas uma diferença entre as duas, em “Operários 2022” (2022) as


fisionomias se mostram de perfil e não de frente, a diversidade social, étnica e racial
se dilui por meio dos níveis de abstração implicados do procedimento de
cartunização. Dois elementos surgem de uma forma característica na nova versão, a
máscara e a lacuna, como se pode ver nas imagens acima. Apesar das semelhanças e
distinções, as duas obras se comunicam com a dimensão social do seu tempo, seja o
contexto de desenvolvimento fabril, seja a recente pandemia. Postos em relação
esses dois trabalhos de épocas distintas – os anos de 1933 e de 2022 –, entendemos
que as duas temporalidades se ligam e se repelem de acordo com as aproximações e
brechas em si gerados pelas duas obras em estado de encontro. A relação pela
natureza da obra cria uma relação pela natureza do tempo histórico também.

301
Assim, em virtude da relação entre o contexto fabril e o pandêmico nas obras, talvez
caiba pensar por um lado o termo operário, e por outro, um termo mais amplo:
trabalhador. Essa figura que, afinal, no século XXI, tanto padeceu, desestruturou-se
e viu o seu mundo permeado pela instabilidade na pandemia, já não é mais apenas o
indivíduo que tem o seu labor restrito ao âmbito da fábrica. Por trabalhador,
referimo-nos àqueles, a maioria de nós, que se sustem pelo trabalho seja ele qual for,
assalariado ou informal. Durante o período pandêmico, o trabalhador – seja do Brasil,
seja do mundo, portanto, universal – manteve-se como pôde, no difícil exercício do
isolamento, ou na arriscada empreitada de sair na cidade, onde o vírus se espraia.
Quando pomos, na imagem, rostos sem vestimenta nem corpo, o que se propõe é dar
um caráter mais indistinto e universalista para cada figura, o trabalhador pode muito
bem ser o avatar de alguém que optou por não ligar a câmera em uma reunião de
trabalho, por exemplo.

Na obra de Tarsila, embora a roupa utilizada não deixe entrever um ofício, vemos que
é uma indumentária formal, certamente diferente da que se usa no ramerrão da vida
doméstica. Em um mundo pandêmico, as pessoas, que muitas vezes precisaram
trabalhar em casa, adaptadas a uma rotina remota, poderiam muito bem vestir blusa
de mangas da cintura para cima e pijamas da cintura para baixo. Os espaços se
amalgamam, as práticas se aglutinam e muitas diferenças se perdem, casa e
escritório se misturam, roupa de sair e a vestimenta do lar, trabalho e afazeres
domésticos, presença telemática e presença física. Quando pomos lado a lado as duas
imagens de que estamos tratando aqui, surgem suspensões que nos são dadas a
pensar: é a figura suspensa que nasce, entre o operário e o trabalhador, também há
um espaço suspenso entre a fábrica e o mundo/casa que se forma, cria-se algo que
está no entre que o choque das imagens – em suas temporalidades, semelhanças e
diferenças – causa.

Inevitável pensar que questão pandêmica vem atrelada a uma série de tensões, como
a ideologização e politização da doença. As redes sociais têm se mostrado um reduto
de conteúdo negacionista. A recusa ao uso da máscara e a ridicularização desse
utensílio é um dos bastiões de toda uma classe que se alinha a uma posição
governamental. No Brasil, sequer se demarcou estratégias para uma campanha de
prevenção e vacinação contra o vírus. Diferente das fisionomias na obra de Tarsila, a

302
máscara, bem como a sua ausência, surge em “Operários 2022” (2022) como um
reflexo próprio dessa realidade e desses posicionamentos que também entram em
jogo no cenário da discussão sobre a politização da saúde. A máscara como um
utensílio e um ícone que marca a visualidade deste período é prolífica e reverbera
inclusive na arte quando, por exemplo, falamos da apropriação de determinadas
obras por meio da releitura. O perfil do Instagram @plaguehistory2 mostra inúmeras
dessas intervenções em obras importantes da História da Arte, em que se insere a
máscara nas figuras, propondo um deslocamento conceitual/visual. Em uma das
imagens postadas, pode-se ver que esse procedimento também foi feito com a
própria obra de Tarsila.

Na obra da referida artista modernista, os rostos estão dispostos formando uma


composição piramidal sem lacunas. Hoje sabemos que algumas dessas fisionomias
representavam pessoas conhecidas da artista, como Benedito Sampaio, que foi
descrito da seguinte forma: “um antigo administrador das terras dos Amarais, negro
forte e corpulento, cuja figura impressionante Tarsila retratou em destaque no seu
quadro Operários” (MARTINS, 2010, p. 210). Em “Opérários 2022” (2022) não há rostos
conhecidos e o próprio processo de cartunização subtrai o realismo que tornaria
possível essa operação de identificação. Na composição que produzida por Ícaro
Malveira, há lacunas na formação piramidal, de forma que o espaço vazio, aliada à
presença de máscaras em algumas fisionomias, enseja a reflexão sobre o número de
óbitos na pandemia, que na presente data atinge o número superior a 670.000 no
Brasil, além dos milhões de infectados. No contexto nacional, é difícil até mesmo
mensurar o nível de vulnerabilidade do trabalhador por conta uma coleta dados
incipiente e alta taxa de subnotificação (SANTOS et al, 2020, p. 7). Assim permitindo
apenas a elaboração de estudos preliminares e incompletos, o que impacta
diretamente nas políticas públicas.

Ante o enraizamento do negacionismo como marca política e ideológica que


interfere na ordem dos regimes de informação, a realidade é adulterada e mascarada
de diferentes formas. Um acontecimento que se pode mencionar nesse sentido é do

2
Link para o perfil do Instagram @plaguehistory:
https://www.instagram.com/plaguehistory/?igshid=yhwx7ndsrtm4
303
“apagão” do site do Ministério da Saúde, que ficou fora do ar no dia 10/12/20213,
coincidindo com um período de pressão sobre o governo devido à flexibilização de
medidas restritivas e à descoberta de uma nova variante do Coronavírus, a Ômicron.
Em seu ensaio intitulado a “Sociedade da Transparência” (2012), o autor Byung-Chul
Han faz a seguinte reflexão “Tudo deve tornar-se visível; o imperativo da
transparência coloca em suspeita tudo o que não se submete à visibilidade. E é nisso
que está seu poder e sua violência.” (HAN, 2010, p. 18). No contexto nacional, além da
conduta negacionista, identifica-se uma manipulação da transparência, criando gaps
no fluxo nas plataformas de informação de interesse público e de pesquisa. A
impossibilidade de mensurar de forma objetiva e sistemática uma base estatística
sobre vulnerabilidade do trabalhador e sobre saúde pública é apenas uma das
nefastas consequências.

Se a há um poder e uma violência inerente à transparência, como defende Han (2012)


em toda a sua obra, também esses aspectos estão presentes quando nos referimos a
uma manipulação da transparência com vistas a atender interesses políticos. São
incontáveis os escândalos deflagrados pela CPI da COVID 19 – que teve vigência entre
27 de abril de 2021 e 26 de outubro de 2021 – especialmente no que tange à
negligência governamental em relação à compra de vacinas. Torna-se injustificável a
conduta presidencial de produzir aglomerações com a sua presença pública, mas
também de incitá-las verbalmente. Visualmente, a aglomeração é um elemento chave
para entender as obras que aqui se apresentam, se por um lado, mostram a
massificação do trabalho industrial na obra de Tarsila, por outro, apontam a
aglomeração do trabalhador no período pandêmico em “Operários 2022” (2022).
Buscando observar por um outro ângulo, talvez seja importante fazer migrar a
discussão sobre a transparência da política para a imagem em si, que Emannuel Alloa
(2015) tão bem desenvolve em seu ensaio intitulado “Entre a transparência e a
opacidade – o que a imagem dá a pensar”. Ao referir-se à opacidade e transparência
como estratégias, o autor recorre à seguinte explicação:

3
Link com notícia do Jornal do Comércio:
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/politica/2021/12/824301-sites-do-ministerio-da-saude-e-do-
conecte-sus-saem-do-ar-apos-suposto-ataque-hacker.html

304
Se quisermos reformular essas duas estratégias que reintegram as
imagens em termos linguísticos, respectivamente, na ordem dos signos
e na ordem das coisas, se poderia dizer que as teorias da transparência
consideram que a proposição/imagem/ é uma proposição de dois
termos, enquanto as teorias da opacidade assumem que a
proposição/imagem/ é uma proposição de um único termo. Para
mantê-las em transparência, é preciso que toda imagem seja sempre
imagem de alguma coisa, é portanto sempre um x imagem de um y (em
termos formais, a proposição/imagem/ deveria ser escrita (x,y)”). Para
tomá-las como o contrário da opacidade, o ser-imagem coincide com
seu ser-aí e não há necessidade de um termo exterior instituinte da
“imagicidade” (aqui, a proposição/imagem se escreve “imagem (x)”).
(ALLOA, 2015, p. 12-13).

Ora, se por um lado “Operários 2022” (2022) remete ao Tetris em sua genealogia
como obra, por outro, remete à obra de Tarsila do Amaral. Para dizer de um outro
modo, se os operários da composição visual remetem à “intransitividade opaca”
(ALLOA, 2015) das peças geométricas do quebra cabeça infinito que define o referido
jogo eletrônico, também remete à “transitividade transparente” (ALLOA, 2015) da
formação piramidal das fisionomias da pintura à óleo da artista modernista.
“Operários 2022” (2022) torna-se vívida como releitura por suspender-se entre
opacidade e transparência no diálogo de referências que propõe.

Quando os perfis cartunizados foram desenhados para “Operários 2022” (2022), os


desenhos foram traçados de forma simples e numa dimensão muito pequena. Um
traço a mais ou a menos, por descuido acrescentados ou subtraídos, e a imagem
perderia a aparência de rosto para se tornar um borrão de tinta. No processo de
criação, essa foi a tênue linha entre opacidade e transparência na elaboração dos
elementos gráficos. Aqui, não se usa a expressão “fisionomias cartunizadas” à toa. O
artista e pesquisador da área dos quadrinhos Scott McCloud, em sua obra
“Desvendado os Quadrinhos” (2004), comenta que, na arte sequencial, há um certo
grau de abstração icônica para se desenhar um cartum. Quanto maior o afastamento
da representação realista no desenho, maior o grau de abstração icônica requisitada
(MCCLOUD, 2004).

Em “Operários 2022” (2022), os óbitos estão representados pelas lacunas, bem como
pelos personagens que possuem um “x” marcado no lugar dos olhos, portanto,
lidamos com uma associação que intencionalmente desejamos que o observador

305
faça. Os espaços vazios, portanto, carregam um certo nível de transparência, na
medida em que remetem um ícone/fisionomia que lá não está; ou seja, não se trata
apenas de um espaço amarelo não preenchido. A lacuna ganha um significado e há
algo a se dizer sobre isso, pois é nesse momento que a discussão sobre a
transparência na imagem e a manipulação na transparência presente na política se
cruzam. Afinal, a subnotificação de incontáveis casos de COVID levou a ausência de
registros, algo impossível de sanar nas bases de dados. Assim as lacunas na
composição criam uma relação com as lacunas de registro no contexto nacional.
Nessa tensão entre transparência e opacidade, cruza-se uma linha para um lado ou
para outro a partir da interpretação do observador.

Essas relações trabalhadas mostram que a criação de releituras por meio de


apropriações de outras obras possui uma forte potência crítica. Em “Operários 2022”
(2022) foram essas relações, confrontos e tensões que buscamos estabelecer, seja no
âmbito estético, seja no histórico-social. Sobretudo, intentamos trazer a reflexão
para o âmbito da imagem – pensando especificamente no operário/trabalhador em
si – como ela se apresenta e o que se pode pensar a partir dela. Em um mundo em
constante transformação, que vive em uma pandemia que ainda não acabou, esse
debate não se esgota aqui, sendo possível estendê-lo tanto na pesquisa, quando na
prática artística.

Considerações finais

Acreditamos ser importante atualizar a discussão sobre a imagem do operário,


confrontada a partir de diferentes perspectivas. Como recurso, neste trabalho
predomina a insistente atividade de pôr em relação, para isso, a obra “Operários”
(1933) e “Operário 2022” (2022), lado a lado, criam um centro de gravidade onde é
possível discutir sobre questões históricas e contemporâneas: Revolução Industrial,
pandemia, imagem e visualidade, opacidade e transparência, massificação do
trabalho, vulnerabilidade, dentre outras. Ao tomar as duas obras, compreendemos
que há um o valor na operação dialógica que faz surgir elementos em suspensão, uma
figura entre o operário e o trabalhador, que se move em um espaço também suspenso
entre a fábrica e o mundo. Assim, abrindo brechas para entender de forma plural
contextos e transformações sociais a partir do indivíduo que trabalha. Nesse caso,

306
foi preciso ampliar de um ponto a outro as interlocuções que a arte propõe em suas
diferentes linguagens, criando uma ponte entre o jogo eletrônico, pintura à óleo e
composição visual em meio telemático. O choque entre as imagens salienta
similitudes e divergências que, por um ângulo, celebra a figura do
trabalhador/operário ao lançá-lo no protagonismo, por outro, semeia na diferença
a aparição do contemporâneo, seja por meio da máscara como ícone visual, seja por
meio da lacuna, geradora de tensão e desgaste humano. Do processo de criação à
visualidade, aí transita o entrelaçamento conceitual com a transparência e a
opacidade. Não há linha de chegada ou a proposição do fim, resta o labor diário que,
em sua sequência, resulta na vida mesma.

Referências

ALLOA, E. Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a pensar. In


_____(org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, pp. 7-19, 2015.
AMARAL, Aracy. A gênese de Operários, de Tarsila (2004). In: AMARAL, Aracy. Textos do
Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005) - Vol.1: Modernismo, arte moderna e
compromisso com o lugar. São Paulo: Editora 34. 2006.
BROWN, Box. Tetris. São Paulo: Editora Mino, 2020.
GARUTTI, Selson. MACHADO, Rafael Pires. A organização operária no Brasil da Primeira
República (1889-1930): princípios e tendências. PRACS: Revista Eletrônica de
Humanidades do Curso de Ciências Sociais, Amapá, v. 12, n. 2, 2019. Disponível em:
https://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/view/4503. Acesso em: 7 de jul.
2022.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010.
MARTINS, Ana Luísa. Aí vai meu coração: as cartas de Tarsila do Amaral e Anna Maria
Martins para Luís Martins. São Paulo: Editora Global, 2010.
McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: M.Books do Brasil Editora Ltda,
2004.
MENDES, João Maria. Nota sobre a presente versão portuguesa da tradução de Pierre
Klossowski. In: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da sua reprodução mecanizada.
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PEGORARO, Éverly. Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo
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SANTOS, Laymert Garcia dos Santos. “O Futuro do Humano”, in L:
https://www.laymert.com.br/o-futuro-do-humano-entrevista/, 2018.

307
SANTOS, Kionna Oliveira Bernardes; FERNANDES, Rita de Cássia Pereira; ALMEIDA, Milena
Maria Cordeiro de; MIRANDA, Samilly Silva Miranda; MISE, Yukari Figueroa; LIMA, Monica
Angelim Gomes de. Trabalho, saúde e vulnerabilidade na pandemia de COVID-19. Cadernos
de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 12, 2020. Disponível em:
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VARELLA, João. Videogame, a evolução da arte. São Paulo: Lote 42, 2020.

Mini Currículos

Ícaro Lênin Maia Malveira


Doutorando em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal do Goiás (UFG), mestre em Artes pela
Universidade Federal do Ceará (UFC), graduado em Letras/Português pela Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Membro dos grupos de pesquisa Laboratório de Estudos de Investigação em Corpo,
Comunicação e Arte (LICCA/UFC) e Criação e Ciberarte (CRIA_CIBER/UFG). Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa de Goiás (FAPEG). E-mail: icarolmmalveira@gmail.com

Edgar Silveira Franco


É pós-doutor em arte e tecnociência pela UnB, pós-doutor em artes pela UNESP, doutor em artes
pela USP, mestre em multimeios pela Unicamp, arquiteto e urbanista pela UnB e professor
permanente do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de
Goiás, em Goiânia. Edgar Franco é o Ciberpajé, artista transmídia com diversas premiações nas áreas
de quadrinhos e arte e tecnologia. E-mail: ciberpaje@gmail.com

Gazy Andraus
É pós-doutorando pelo PPGACV da UFG, Doutor pela ECA-USP, Mestre em Artes Visuais pela UNESP,
Licenciado em Ed. Artística pela FAAP. Pesquisador e membro do Observatório de HQ da USP, Criação
e Ciberarte (UFG) e Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Também publica artigos e textos no
meio acadêmico acerca das Histórias em Quadrinhos (HQs) e Fanzines, bem como também é autor de
HQs e Fanzines. E-mail: gazyandraus@ufg.br

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REINCIDÊNCIA DE GESTOS: ENORMES QUANTIDADES, INFINITAS DIFRENÇAS.
UM OLHAR SOBRE A INSISTENCIA NA PRODUÇÃO DE ANNA MARIA
MAIOLINO

RECURRENCE OF GESTURES: HUGE QUANTITIES, INFINITE DIFFERENCES. A LOOK


AT INSISTANCE ANNA MARIA MAIOLINO'S PRODUCTION

Luiza Alcântara
Escola de Belas Artes – UFMG, Brasil

Rachel Cecília de Oliveira


Escola de Belas Artes – UFMG, Brasil

Resumo

O artigo lança olhar sobre a produção de Anna Maria Maiolino a partir do gesto de insistir.
Realiza leitura crítica da obra Terra Modelada por meio da insistência, em consonância com
sua trajetória e produção. Também entrelaça os conceitos de insistência, gesto e vestígio aos
de presença e intencionalidade ao aproximar a realização das obras com um modo de estar
no mundo.

Palavras-chave: insistência, gesto, procedimento, presença.

Abstract

The article takes a look at Anna Maria Maiolino's production from the point of view of
insisting. He performs a critical reading of the work Terra Modelada through insistence, in
line with its trajectory and production. It also intertwines the concepts of insistence, gesture
and vestige with those of presence and intentionality, bringing the realization of the works
closer to a way of being in the world.

Keywords: insistence, gesture, procedure, presence.

Anna Maria Maiolino se instalou no Brasil no início dos anos 1960 1, momento de
grande efervescência cultural e de muitas tensões políticas no país. O período é

1
Anna Maria Maiolino nasceu em 1942 em Scalea, Itália. Migrou com sua família para Bari, em seguida para a
309
marcado pela ditadura militar, que se iniciou em 1964 e se radicalizou após o Ato
Institucional nº 5 de 1968. As questões levantas pela vanguarda artística do eixo
Europa-EUA nos anos 1960-70 se assemelhavam com as questões das vanguardas
brasileiras, no entanto foram tratadas de maneira distintas em cada local. Os e as
artistas brasileiras interessadas na arte como acontecimento, situação, processo
investigaram a pureza do objeto, buscaram por uma imagem nacional, alcançaram a
dissolução do objeto ao unir arte e vida, propondo experiências, encontros, ideias,
projetos, instruções para acontecimentos; delas restam documentos, memórias,
relatos, restos, menos o objeto aurático da arte. Uma das principais diferenças a
produção dos artistas brasileiros e a produção europeia e estadunidense é a condição
de corpo em que esses artistas estavam interessados; o corpo do dia a dia, o corpo
que anda no caos da cidade grande, nas favelas, o corpo que respira, que a habita.

É com esse tipo de pensamento sobre a arte que Maiolino dialoga nos primeiros anos
de sua produção e que vemos reverberar ao longo de sua carreira. Em suas obras não
vemos distinção entre o corpo que desenha e o corpo que modela o pão, faz uso de
gestos cotidianos para lidar com a densidade viva do seu contexto e da arte. No
catálogo da recente mostra de retrospectiva da artista (PSIIIUUU..., 2022), há uma
breve citação em que ela nomeia o percurso de sua produção como um caminho em
espiral, passando por “preocupações constantes, o cotidiano, a subjetividade, o
feminino, o político, o ético...” (MIYADA, 2022, p.13). Essas preocupações são
colocadas, ao logo de sua trajetória, como questões por diferentes procedimentos e
diferentes mídias.

O gesto aparece como um ponto central de sua produção. Os trabalhos em vídeo,


fotografia, desenho e escrita, produzidos depois do período em Nova Iorque
(1968/9), trazem sinais do gesto como traço, como presença. As séries de gravura e
de desenho dessa época - Desenhos Objetos, Livros Objetos, Projetos Construídos -
podem ser consideradas gérmen do que viria depois com as argilas. Em entrevista a
Helena Tatay, Maiolino comenta essas séries, em que o rasgar, o cortar, o costurar
são matéria e não só material para a obra:

Venezuela e então mudou-se para o Rio de Janeiro. Desde 2005 reside em São Paulo, Brasil. Maiolino considera-se
uma artista brasileira.
310
O gesto é a manifestação do que existe dentro. Novamente, no gesto
se dá a cópula do dentro e do fora, análoga à relação cheio-vazio.
Ouço-me agora, usando a palavra ‘cópula’, mas não quero dar a ela só
um significado sexual, mas também o de seus sinônimos: ligar, unir…
Uso essa palavra porque aponta para o que se produz, para o fruto
transformado, como é a obra de arte. (Maiolino, 2012, p. 44.)

Vilém Flusser, em seu livro Gestos (2014, p. 83), afirma que o gesto de fazer tem relação
com a cópula descrita por Maiolino. Para ele, o gesto ocorre no encontro entre objeto
e mãos (corpo), como as mãos percebem os objetos, como os compreende e como os
relaciona com outros objetos já conhecidos, para então modificá-los. É no confronto
que as mãos realizam o gesto de fazer, no embate entre a forma e sentido dados pelo
objeto e a forma e os sentidos que as mãos imprimem sobre ele (FLUSSER, 2014, p.
83-85). O fruto transformado é resultado desse confronto, resultado do
preenchimento do vazio das mãos pela matéria. Ao observarmos os objetos que
Maiolino devolve ao mundo, percebemos que ela escolhe manter no objeto sua
resistência, tornando-a uma propriedade intrínseca da matéria em signo, a
resistência deixa de ser apenas uma característica física passando a ser, também, um
valor abstrato. É o que vemos nos desenhos-objetos, em que o papel rasgado é papel
(matéria bruta), e, ao mesmo tempo, imagem. Em que forma e significado não estão
separados.

Figura 1: Anna Maria Maiolino, Espiral, da série Desenhos Objetos, 1975. Fonte: MYADA, 2022, p. 370.

Há nestas obras, mas não apenas nelas, o questionamento da superfície, do espaço,


do suporte. A materialidade do papel serve como base para investigações dos limites
da espacialidade, como frente-verso, dentro-fora, positivo e negativo, ausência e
presença. Maiolino une opostos sem que um complete o outro, ou sem que um anule

311
o outro, mas produzindo o espaço do entre (FRADE; RANGEL; CARNEIRO; SARAIVA,
2011, p. 663). Ela une o que aparentemente convoca uma imagem dicotômica -
repetições com diferenças, o visível por meio do invisível - sem que a obra seja um
amontoado de unidades, mas uma unidade constituída de muitos.

Trabalhos como Sombra do Outro (1993-2005), Ausentes (1993-1996), Uns & Outros
(1996-2005), Outros (2003-2005) desfazem o confronto entre opostos logo no
procedimento de feitura, em que a fôrma (negativo do objeto a ser multiplicado)
apresenta o objeto ausente (o positivo da fôrma). Nestas séries “[o] molde,
geralmente esquecido e descartado, continua ela, ‘é dotado de novo valor pela ênfase
dada às suas propriedades generativas, ao espaço vazio, em que a memória do outro
existe no seu não estar: o positivo-presente em ausência’.” (Maiolino, apud ZECHER,
s/d, n.p.). O que tradicionalmente seria descarte, meio para algo, nestas obras é
colocado como ponto central, sem um status de imagem, mas como integrante de
um procedimento contínuo. Sem a matriz não há gravura, sem fôrma não há molde,
sem passo não há pegada. “O que Anna coloca em questão, através de sua obra, é a
possibilidade da criação de imagens que não representem outra coisa senão o seu
processo de formação” (Doctors in TATAY, 2012, p.161).

Essa proposta pode ser entendida por meio da ideia de insistência, do modo como
foi descrita e praticada por Gertrude Stein. A insistência é a exibição do
acontecimento, o gesto se mostrando e se fazendo junto. Ao lermos sua palestra
Portraits and Repetition (1935), percebemos como a autora expõe seu procedimento
- não descrevendo, fazendo-o. Seu argumento é seu próprio fazer, exibe a operação.
Ao longo de sua fala, do tempo em que lê o texto, percebemos o uso constante de
algumas frases, articuladas de maneiras diferentes, agenciando o movimento do
pensamento, da ação ocorrendo, operando seu fazer. Somos convocados a estar
presente no processo, somos deslocados para o tempo do trabalho. É possível
encontrar este gesto, de trazer à mostra o procedimento de construção das obras,
na produção de Maiolino. Tal gesto, oferece ao outro (experimentador/fruidor) a
ferramenta que marca a superfície, que imprime a matéria e não a imagem pronta.
Em Terra Modelada, a artista expõe de maneira estática (como uma pegada conta de
um passo) todo o processo da obra.

312
Flusser, ao falar sobre o gesto de pesquisa, descreve um modo de fazer que deixa de
ser um conjunto coerente de hipóteses e passa a ser algo como uma estratégia de
vida (FLUSSER, 2014, p.54), passa a ser um modo de estar no mundo. Pois a distância
entre vida e pesquisa quase inexiste, os procedimentos e a busca são os mesmos.
Neste modo de investigação “(...) A realidade é circunstância concreta presente. E o
passado é aspecto do presente: memória disponível ou indisponível (esquecimento)”
(FLUSSER, 2014, p.55). Ao expor partes do procedimento Maiolino cria outras
relações de tempo, que não são apenas memória do passado no presente, mas
presença concreta do gesto que foi, que está sendo. A obra é vestigial, ela conta uma
história sem representá-la.

(...) O pesquisador não está jamais só no mundo, há sempre outros com


ele. Não é sujeito em isolamento esplêndido, como o é o sujeito
transcendente. Os outros que estão na circunstância do pesquisador,
mais ou menos próximos dele, também pesquisam, isto é, medem [o
tempo]. Ao fazê-lo, se reconhecem mutuamente. Mede cada qual do
seu ponto de vista, mas tendem a medir em conjunto. De maneira que
a mathesis da pesquisa, embora não objetiva, tão pouco é subjetiva, mas
tende a intersubjetividade crescente (FLUSSER, 2014, p. 55).

Os gestos que compõem as obras, fruto de um modo de pesquisa, agem sempre com
a intenção de encontrar o outro, movem-se sozinhos acreditando que em paralelo
outros estão se movendo juntos. Esse modo de agir, que pressupõe a participação do
outro, que deixa rastros para que outros possam seguir, acompanhar, medir, etc.
tende à intersubjetividade crescente.

Assim, o vestígio é o registro físico de um acontecimento, aquilo que sobra como


resto de uma presença. Por meio do vestígio podemos articular temporalidades, o
presente (obra) com o passado (gesto). Maiolino traz um procedimento tradicional
da escultura e da gravura (a impressão pelo molde), que requer duas partes: uma
marca e a outra sai marcada, uma doa e a outra recebe. Ela escolhe evidenciar o
contato, a fricção entre as partes, mas faz com que recebamos o entre, o que restou
deste acontecimento. Não vemos a ação no tempo presente, mas seu passado
acontecendo diante de nós. Como quando olhamos para rios e riachos, vemos o
rastro da água no leito, modelando as pedras ou o chão, provocando sulcos.

313
O vestígio em Maiolino além de ser a memória do corpo de quem faz, funciona como
dispositivo disparador da subjetividade de cada um que se relaciona com as obras;
nos reconhecemos neles. Para Frederico Morais2, as obras produzidas com intuito de
sair da finalidade de objeto para alcançar a de acontecimentos, coloca todos que
entrarem em contato com elas como ativadores (MORAIS, 1970, p. 50). Para
experienciar a obra é necessária a ativação da obra, sem se colocar como
participante, como quem rege uma ação sobre ela, a obra não acontece. É com a
ativação, com a experiência/subjetividade que cada experimentador carrega consigo
que os significados e caminhos da obra são traçados. Essa operação de incorporar na
obra a experiência do outro, faz com que a obra não se encerre no artista e que ela
possa se modificar a partir dos sentidos dados por outros (público, crítica).

Nas obras de Maiolino, o experimentador ativa-as por meio dos rastros. Acessamos
a obra pelas diferentes marcas do corpo ausente, temos acesso não a uma marca,
mas a várias. A variação ocorre porque o gesto se repete, insiste estar presente, há
diferenças entre uma e outra obra da série, diferenças entre os gestos que constrói
um e o todo.

O gesto de fazer e o molde de Maiolino, querem marcar presença, marcar a diferença;


não buscam a uniformidade da repetição, o genérico, o indiferente da repetição
industrial. Seu gesto, seu molde, são precisos, mas sem possuir uma identidade. Há
sim um modo, um procedimento ordenador do fazer, mas ele não encerra as diversas
possibilidades de caminhos e de significados. Seu gesto está atrelado à insistência
descrita por Gertrude Stein, em que um gesto é retomado com diferença ao gesto
anterior com intuito de alcançar melhor seu objetivo. Seja os retratos de Stein, seja
os desenhos e as esculturas de Maiolino, insistir é caminho de aprimoramento, é agir
em direção a precisão.

Para isso, Maiolino executa uma transposição do tempo, desloca o tempo de feitura
da obra (elaboração, ateliê) para o tempo do fruidor (exposição, galeria). Sua
insistência nos permite acessar o processo em momento posterior ao seu
acontecimento, isto não ocorre por meio de registros, gravações, e sim pelo

2
Frederico Morais (1936), jornalista, crítico, historiador e curador. Reconhecido por estreitar as relações entre
crítica, fazer artístico e prática experimental.
314
procedimento gerador da obra. Na exposição com a obra "concluída" acessamos sua
construção. O gesto de insistir de Maiolino cria outra temporalidade espacial.

Para Gertrude Stein a insistência tenciona nossa relação temporal com a leitura de
uma obra (de seus textos, e aqui podemos expandir para todo o gesto de insistir,
alcançando os gestos de Maiolino). O que ela propõe é um presente contínuo, estado
em que o agora é percebido a todo instante, pois o ato de insistir dilata o tempo. A
dilatação do tempo ocorre por manter nossa percepção no que está acontecendo,
não é sobre estender os segundos reduzindo sua velocidade. Não é um estiramento
do tempo, pelo contrário, é sobre manter nossa presença no acontecimento, no
eterno agora. Desse modo, o passado e o futuro não interessam como matéria,
mesmo que a insistência crie um volume visual, não é sobre o que já foi feito ou sobre
o que será, e sim sobre o acontecimento em si.

O estado de presença que somos convocados só ocorre porque há a intenção no seu


procedimento. Nos retratos que Stein elabora, a artista não busca representar quem
ela observa, mas trazer para a escrita o que ela captura como essência do ser em
movimento. Retrata aquilo que acontece a cada momento, não o que foi, mas o que
está sendo (STEIN, 1936, p. 174). Os retratos de Stein não descrevem alguém, assim
como os gestos de Maiolino não criam uma imagem de si, não trazem a lembrança
de alguém ou de uma coisa. Da concepção à prática, as imagens de uma obra como
terra Modelada não operam no regime da representação, estão no campo do vestígio.

Stein propõe uma insistência que rompe a representação3. A insistência convoca o


leitor a “suplantar o texto com uma história” (ALFANDARY, 2018, p. 56), a sua história;
insistir convoca ao leitor interessado juntar-se ao gesto, compor junto a ele. É nesse
campo de abertura que Maiolino está operando com Terra Modelada. É, portanto,
tanto o gesto do leitor quanto o gesto da artista. Esta intencionalidade está impressa
no gesto, o objeto modificado manifesta (da matéria aos títulos, dos títulos ao modo
como são expostos) uma estrutura de pensamento, de intenções. Anna Maria

3
Há uma grande tradição de estudiosos que pesquisam questões da representação nas artes, desde Aristóteles até
a arte atual, não é nosso foco aqui. Sobre mímese e Gertrude Stein veja: Isabelle Alfandary, Gertrude Stein: o
problema com a mímese, in: AGUIAR, Daniella, COLLIN, Luci, QUEIROZ, João (org.). Ao vires isto: Gertrude Stein,
tradução e intermidialidade. Curitiba: Kotter Editorial. Cotia: Ateliê Editorial. 2018. 216 p.
315
Maiolino escolhe afirmar presença, aquela que age, por meio das semelhanças e
diferenças nas obras em série.

(...) Esse trabalho [Um, nenhum, cem mil, 1993] com a multiplicidade,
assim como a obra de Pirandello da qual tirei o título, “Uno, nessuno, e
centomila”, discute a identidade. Pois as formas uma ao lado da outra
na obra, afirmam-se e anulam-se na semelhança e na diferença ao se
repetirem. Também em uma praça você é um, nenhum, porque sua
identidade se dissolve, e você é cem mil (MAIOLINO, 2012, p. 53).

Figura 2: Anna Maria Maiolino, Um nenhum cem mil, 1993. Gesso pigmentado. Fonte:
https://pedroambrosoli.files.wordpress.com/2017/04/um-nenhum-cem-milk.jpg?w=500

Sua intenção é, também, que nos identifiquemos nos gestos apresentados, ao mesmo
tempo em que ele nos dissolve na multidão. A insistência traz a ideia de contínuo
para que a obra permaneça aberta às diferenças, ao acontecimento. A ideia de
continuidade ocorre internamente na obra: o mesmo gesto refeito várias vezes; e,
externamente: nas seriações que sugerem prosseguimento. Obras que derivam da
relação com a argila tornam esta intencionalidade mais clara, seja com a própria
argila, com gesso ou concreto. O nome dado às obras são direcionamentos para que
nós acompanhemos seu pensamento: variabilidade dentro da unidade.

A partir do que Stein constrói sobre insistir e repetir, é possível compreender que o
gesto de insistir cria variabilidade, não pela quantidade, vários, mas por aquilo que

316
distingue um do outro. E que, a distinção é o que permite e cria movimento,
possibilidade de continuidade. Em Composition as Explanation (1936 [1926]) a autora
nos diz que a insistência desenha um constante e novo começo que é sempre novo
no momento da experiência. O gesto mantém-se novo, fresco, mesmo que o intervalo
entre a feitura de um e outro seja de anos, é a experiência que ele suscita e apresenta
que o torna sempre novo.

As versões da série Terra Modelada, feita algumas vezes entre os anos de 1993 e 2022
- como: Mais de mil (1995), Ainda mais estes (1996), Poderiam ser mais estes (1997),
Contínuos (2012), Hic et Nunc (2017), Finora (2019) -, demonstram a ideia de
continuidade e de unidade. Os dois últimos nomes, Hic et Nunc e Finora (em
português ‘Aqui e agora’ e ‘Até agora’), mantém a ideia de continuidade e explicita o
processo, mostrando que algo aconteceu até agora. As mãos não encerram o fazer,
apenas interrompem o processo ao se retirarem, criando pausas entre uma
montagem e outra de Terra Modelada. Mais uma vez a obra se assemelha a uma
estratégia de vida, como um elemento do cotidiano que é refeito, por vezes recebe
intervalos maiores ou menores a cada volta, a cada repetição.

O procedimento de Maiolino age como uma estratégia de vida e de pesquisa, destina-


se a criar sentido na medida que se realiza em contato com o outro. Flusser ao tratar
do gesto de fazer afirma que as mãos se retiram do objeto por entenderem o momento
de oferecerem ele ao outro:

Tendo atingido o horizonte da perfeição, o limite da sua aptidão, as


mãos se retiram do objeto, abrem-se em palmas e deixam cair o objeto.
Conhecemos tal gesto. É o gesto da resignação, mas também o do
sacrifício, do oferecer, do pôr à disposição de outrem. As mãos largam
o objeto para que outros possam dispor-se dele, oferecem e sacrificam
o objeto. Publicam o objeto. Expõem o objeto (FLUSSER, 2014, p.94).

As mãos de Anna Maria Maiolino oferecem a obra aberta para que o outro a complete,
expõe o continuum do processo, o que foi feito ‘até agora’, o que está presente no
‘aqui e agora’. Elas marcam o instante, intensificam o momento presente em diálogo
com o processo, passado não distante. Diferente de alguns autores, não vejo sua
escolha pelo procedimento de continuidade, através da repetição de um gesto que
se apaga (tendo em vista que a cada exposição Terra Modelada é desfeita, e que a

317
argila crua volta para seu estado anterior), não como opção pelo inacabado4, e sim
pela insistência. A escolha de Maiolino não é pelo precário, mas pela sutileza do
limite, da borda, do entre. Ela evidencia o processo ao longo de sua trajetória, mas
em vários trabalhos ele é a obra. Trabalhos como Codificações Matéricas (1993-),
Vestígios (2000-), Marcas da Gota X (2000), Indícios (2000), Muitos (2005), e Terra
Modelada demonstram o pensamento de que o processo é obra, mesmo que ele se
repita dentro de uma temporalidade (Maiolino não define o fim, apenas o ponto de
partida), ainda que abordado por materiais e linguagens distintas. Não estamos
lidando com arquivos para entender os procedimentos, porque a obra os carrega e
os exibe. Maiolino trata da repetição, mas sem fragmentar a obra. Ela chama cada
parte de Terra Modelada de segmento. Os segmentos se deslocam a cada montagem,
eles possuem unidade e força por si só; não agem como cacos de um vidro quebrado.
Em entrevista, ela declarou:

Essas esculturas/instalações têm existência parecida com algumas


formas primárias biológicas, que, quando perdem uma parte do corpo,
voltam a crescer depois. Os segmentos podem ser divididos,
subdivididos e retirados do corpo matriz da instalação como outra
escultura independente. Um dia, poderiam ser reunidos todos os
segmentos, recompondo o corpo principal. Além disso, adicionamos os
novos módulos que continuamos fazendo. Com isso, a instalação terá
uma estrutura sempre mutante, adquirindo novas configurações no
espaço (MAIOLINO, 2012, p. 53).

Por meio desta fala percebemos que a artista entende as unidades da obra como um
continuum, os segmentos sugerem o próximo gesto. O uso da repetição sem fim
determinado não é com o intuito de inacabamento, mas de deixar o processo sempre
aberto. Um organismo vivo. Aqui vale retomar a definição de Stein sobre insistência:
modo como cada ser se afirma no mundo, registro da vida, da existência. Para ela
estar vivo pressupõe movimento, uma dinâmica própria de cada ser, que a todo
momento o distingue, o diferencia dos outros e de si.

Com Terra Modelada Maiolino exibe o gesto como conceito. O gesto é visto como
ideia materializada e não como representação, transformando o conceito em motor,

4
Ver Vinícius de Oliveira Gonçalves, O processo de criação de Anna Maria Maiolino: uma discussão referente a
estética do inacabado. 2018.
318
em agente da arte. Vemos a manipulação da argila crua, a massa úmida, sendo
manipulada muitas e muitas vezes; vemos acúmulo da insistência do gesto nas várias
versões da obra. Talvez seja aqui que Maiolino alcance com maior refinamento os
questionamentos e as aberturas propostas à arte nos anos de 1960 e 1970. A obra se
aproxima da arte minimalista no anseio de alcançar uma pureza do material, ao
mesmo tempo em que expõe sua fragilidade de natureza mutável, evidenciada pela
repetição das diferenças. A obra contempla, ainda, a desconstrução do objeto
tradicional de arte proposta pelos neoconcretos, em que o objeto não se encerra nele
mesmo.

Catherine Zegher afirma que a ação de Maiolino de tornar a materialidade explícita


é caminho para alcançar sua intencionalidade: “despertar a percepção da vitalidade
transformadora em tudo, e não apenas no artista” (ZECHER, s/d, s.p)5. Com Terra
Modelada a materialidade não está apenas explicita, em transformação constante (de
massa úmida ao pó, do pó à massa úmida). Maiolino expõe um estado corpóreo e
mental, expõe o processo vital. Há a identificação com o gesto, com o volume na
insistência dos dias, o eterno fazer presente, existente. Neste ponto ela coincide
novamente com a insistência proposta por Stein em que a realidade, a vida cotidiana
é o motor do fazer.

Não é acaso que Maiolino se faz de molde, o corpo se torna matricial. Em Terra
Modelada, recebemos a argila sempre como o positivo e o corpo sempre como o
negativo, aquilo que está ausente.

A palma da mão de Maiolino é o molde de fundição fazendo o que sua


vontade e a ‘vontade’ do material juntas indicam. Na repetição desses
movimentos paralelos está sua arte como quiasma de linhas de
redemoinho entrelaçadas e emaranhadas - uma arte que não apenas
gira em torno de outras linhas, mas é sinuosa e reflexiva sobre si
mesma. Girando e girando, questionando e celebrando, criando sua
própria fabricação porque é feito de uma forma corporal intensa.

5
No original: (...) her purpose to awaken the perception of the transformative vitality in all, and not
only in the artist. ZEGHER, s/d.

319
Assim, também permite uma entrada na reflexividade humana...
(ZECHER, s/d, s.p).6

Refazer o gesto é voltar na marca do próprio gesto, é refletir sobre o fazer de novo e
de novo, não há ambição aqui que não seja conhecer a si mesma, se reconhecer no
processo. Dobra-se por cima de si mesmo. A obra é somente enquanto acontece.

Maiolino propõe com Terra Modelada olhar para o rito da vida, a ação repetitiva dos
dias. Podemos associar o tempo vivido (a quantidade de dias) ao volume da argila
exposta: imensurável; as formas de rolinhos, cobrinhas, semicírculos, semelhantes
ao excremento humano ou ao alimento, como massas de pão e macarrão. Podemos
associar a dicotomia vida-morte pela imagem dada na possibilidade de acrescentar
mais uma peça, refazer mais uma vez, acordar mais um dia, ao mesmo tempo em que
a argila crua endurece, vira pó, e o dia caminha para a noite. Como em um ritual, o
gesto de fazer simboliza, carrega sentido. Ao longo de toda sua produção somos
convocados a olhar o fazer como ritmo. Ela insiste em gesticular no entre, na ação
que não se interrompe, no deslizar da gota de nanquim (Codificações Matéricas), nos
segmentos de argila (Terra Modelada).

6
No original: (....) The palm of Maiolino’s hand is the casting mould doing what her will and the “will” of the material
together indicate. In the repetition of these parallel moves lies her art as chiasm of bodily in-coiling and out-curling
swirling lines—an art that not only turns around other lines but that is sinuous and reflexive about itself. Around and
around it turns, questioning and celebrating its own making because it is made in an intense bodily way. It thus also
allows an entry into human reflexivity…(ZEGHER, s/d.)
320
Figura 3: Anna Maria Maiolino, Here & There, 2012. Documenta de Kassel. Fonte:
http://www.oknostudiophotography.com/portfolio/anna-maria-maiolino-documenta-13/

Flusser coloca que as mãos vão em busca dos objetos, do mundo. Para se realizarem,
pesquisam o mundo com intuito de lhe entregarem novos significados, objetos. Para
ele, a ação das mãos sobre os objetos, sobre o mundo, é entendimento que acontece
a posteriori. Enquanto as mãos agem não buscam o entendimento, buscarem se
realizarem. Na repetição de Maiolino, as mãos modelam em resposta à argila e ao
próprio corpo como molde, mas é ao se retirarem para entrega das formas ao outro,
que compreendem a si mesmas.

321
(...) Na medida na qual as mãos tendem para dentro do objeto, o
entendem sempre mais profundamente, ultrapassam a distinção
ideológica entre sujeito e objeto, e o que descobrem é a concreta
relação do entendimento, da qual sujeito e objeto são extrapolações.
Descobrem que entendimento não é a síntese de sujeito e objeto, mas
que pelo contrário, sujeito e objeto são horizontes extrapolados, e
logicamente posteriores, do entendimento. O gesto do entendimento
desideologiza as mãos, e nesse sentido os desaliena. Mas precisamente
por isso, não é objetivo. A dialética entre mãos e o objeto se revela, no
gesto do entender, ser explicação a posteriori (FLUSSER, 2014, p.89).

É no se retirar, nas pausas entre um fazer e outro que algo acontece. É nessa fresta
de um acontecimento e outro, fim de um gesto e início do outro, que acessamos a
obra. Como na música em que a pausa, junto da duração de cada som, dita um ritmo,
Maiolino propõe uma duração do gesto que à primeira vista parece improvável (de
1993 a 2022, 29 anos agindo por meio do mesmo), mas não impossível. É o próprio
ritmo da vida, volumoso, cheio de camadas, segmentado, às voltas de si mesmo. Um
gesto de se autodescobrir.

Referências

ALFANDERY, Isabelle, Gertrude Stein: o problema com a mímese, in: AGUIAR, Daniella,
COLLIN, Luci, QUEIROZ, João (org.). Ao vires isto: Gertrude Stein, tradução e
intermidialidade. Curitiba: Kotter Editorial. Cotia: Ateliê Editorial. 2018. 216 p.
DOCTORS, Mario, As Nervuras do Devir. In: TATAY, Helena (Org.). Anna Maria Maiolino.
São Paulo. 1 ed.: Cosac Naify, 2012, 272 pp.
FRADE, Isabela; RANGEL, Clarice; CARNEIRO, Elane; SARAIVA, Letícia. Ainda mais estes -
Aspectos processuais na obra de Anna Maria Maiolino. In: E56 ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS (20.: 2011: Rio de
Janeiro) Anais. Rio de Janeiro: ANPAP, 2011. Disponível:
http://www.anpap.org.br/anais/2011/html/ceav.html Acesso em : 15 jan. de 2021.
FLUSSER, Vilém. Gestos / Vilém Flusser. São Paulo: Annablume, 2014.
GONÇALVES, V. de O. O processo de criação de Anna Maria Maiolino: uma discussão
referente à estética do inacabado. Revista Farol, [S. l.], v. 2, n. 19B, p. 91–101, 2020. DOI:
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MAIOLINO, Anna Maria, in: OBRIST, Hans Ulrich, 1968- Hans Ulrich Obrist: entrevistas
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Jan. 2021.

Mini Currículos

Luiza Alcântara
Artista e pesquisadora. Doutoranda em Artes (EBA-UFMG). Seus trabalhos são desenvolvidos em
diversas mídias, mas tem o Desenho como modo norteador do pensamento e da construção de
conhecimento. Interessa-se pela continuidade do Gestos que dão corpo e sustentação a modos de
produção da vida e de trabalho. E-mail: luizaalcantaracavalcante@gmail.com

Rachel Cecília de Oliveira


Rachel Cecília de Oliveira é professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais - UFMG e do Programa de Pós-graduação em Artes da UFMG. É editora chefe da Revista Pós
do PPGArtes UFMG e líder do grupo Experiências Descoloniais. Trabalha a pluralidade da arte
contemporânea nas interseções entre filosofia, teoria, história e crítica das artes. Além disso, atua
como crítica e curadora. E-mail: rachel.cecilia.oliveira@gmail.com

323
A GLAMOROUS OBJECTIFICATION OF COMMUNITY PHOTOGRAPHY: THE
RELATIONSHIP BETWENN VIK MUNIZ AND THE COMMUNITY OF JARDIM
GRAMACHO LANDFILL

UMA GLAMUROSA OBJETIFICAÇÃO DE FOTOGRAFIA EM UMA COMUNIDADE: A


RELAÇÃO ENTRE VIK MUNIZ E A COMUNIDADE DO ATERRO SANITÁRIO DE
JARDIM GRAMACHO

Tom Lisboa
Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil

Abstract

In 2022 it will be ten years since the Jardim Gramacho landfill was closed. This resolution
was celebrated at the United Nations Conference on Sustainable Development (2012) and it
was believed that, from that moment on, a promising modern waste management would be
inaugurated. The closure also almost coincided with the release of the film "Waste Land"
(2010), where directors Lucy Walker and João Jardim documented the creative process of
the series Pictures of Garbage (2008) that photographer Vik Muniz developed with the
cooperation of the community of recyclable waste pickers of that location. Proclaimed for
its “social activism”, the film, today, can be seen from exactly the opposite point of view. The
first part of this article presents a brief retrospective of the work of Vik Muniz and shows
how it succumbs to neoliberal interests. Finally, a comparison between concepts of
community photography, by Mathilde Bertrand, carried out in the United Kingdom, in the
1960s and 1970s, and scenes of "Waste Land", recorded between 2006 and 2008, which
displays testimonies of the pickers will testify the the real nature of this relationship.

Key words: Cinema; Photography; Community.

Resumo

Em 2022 completam-se dez anos que o aterro sanitário de Jardim Gramacho foi fechado.
Esta resolução foi celebrada na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Sustentável (2012) e acreditava-se que, a partir daquele momento, inauguraria-se uma
promissora gestão moderna de resíduos. O fechamento quase coincidiu também com
lançamento do filme "Lixo Extraordinário" (2010), onde a diretora Lucy Walker documentou
o processo de criação da série Pictures of Garbage (2008), do fotógrafo Vik Muniz, junto com
a comunidade de catadores de lixo reciclável desse local. Proclamado por seu “ativismo
social”, o filme, hoje, pode ser visto exatamente pela ótica oposta. A primeira parte deste

324
texto apresenta uma breve retrospectiva da obra de Vik Muniz e mostra como ela sucumbe
aos interesses neoliberais. Por fim, será estabelecida uma comparação dos conceitos de
fotografia em uma comunidade, de Mathilde Bertrand, realizados no Reino Unido, nas
décadas de 1960 e 1970, com análises de cenas de "Lixo Extraordinário" gravados entre 2006
e 2008 e depoimentos dos catadores que, atualmente, atestam a ineficiência dessas
iniciativas.

Palavras-chave: Cinema; Fotografia; Comunidade.

Introduction

In 2019, when the main ideas of this article were written, I was pursuing a Masters in
Photography and Urban Cultures at Goldsmiths, University of London. Encouraged
by my teacher, I could elaborate on any case study that showed a photographer's
relationship with a community. The series Pictures of Garbage (2008), by Vik Muniz,
which had the support of recyclable garbage collectors (pickers) from Jardim
Gramacho, the largest sanitary landfill in the world at that time, ended up being my
choice. It was of great help the documentary Waste Land (2010), by Lucy Walker and
João Jardim, which recorded not only Muniz's creative process, but also the type of
relationship he maintained with the community he was working with. Something had
always bothered me about the behavioral aspects of this photographer toward this
group of people and I decided to tackle these issues in the article to be written.

Recently, the reflections that I brought in this old text gained new contours. In 2022,
Jardim Gramacho has been closed for ten years. In 2012, it was one of the most
celebrated decisions during the opening of Rio 20+, the United Nations Conference
on Sustainable Development. It was believed that, from that moment on, the
beginning of a modern waste management would be inaugurated. The closure also
coincided with the release of the film Waste Land, that brought worldwide notoriety
for this location, especially after being nominated for an Academy Award. Currently,
Jardim Gramacho no longer receives 9,000 tons of garbage a day carried by 600
trucks from the Municipal Urban Cleaning Company, nor does it have the largest
recycling network in Brazil, which brought together more than 2,000 pickers (BRISO,
2022). All that remains is the stench and a certain heat of the methane, due to the
abundance of organic matter rotting underground. Ten years have passed and trees

325
have not been planted, streets have not been paved and hospitals have not been built.
For this reason, the production of the Pictures of Garbage series deserves a new
analysis. Both the government and the promises we see in the documentary
frustrated the expectations of that community. By updating my old article with these
recent events, it seems that a cycle is finally closed and this case study develops a
clearer picture of what happened.

Vik Muniz is one of the most known Brazilian photographers around the world. Over
his career that, in 2022, expands over 33 years, he managed to include his work in
the collections of the major international museums such as the Museum of Modern
Art (New York) and the Victoria and Albert Museum (London). He grew up during the
Brazilian dictatorship and was influenced by artistic movements of left-wing biases
in the 1960s like Cinema Novo (New Cinema) and Cinema Marginal (Marginal Cinema)
that claimed for social awareness and from which he borrowed important part of his
imagery. He moved to the United States of America in the 1980s and near the turn to
the 21st century he started to be perceived as a valuable piece on the realm of art
market with its galleries, critics, marketers, collectors and auctioneers. Due to his
series Pictures of Garbage, he has been widely acclaimed for his skills of working in a
community. However, this alleged activism seems more suitable with the interests of
the neoliberalism era than with community photography concepts that took place in
Britain during the 1960s, for example. According to ArtsHub's Performing Arts Editor
Richard Watts (2019): “There is no outside to neoliberalism. If you believe the end
product of our activity is manufacturing content for the art industry then you will
sink with that particular business model”.

The first part of this essay will introduce the origin of Vik Muniz´s imagery and how
it was reconfigured to fit under the ideals of the neoliberalism. The second will
compare some concepts of photography in the community in Britain during the
1960s and 1970s proposed by Mathilde Bertrand with analysis of scenes of Waste Land
that were recorded between 2006 and 2008. Even though Muniz is not credited for
the direction of the movie, the director herself affirms that he “was the catalyst for
the film – by accompanying him to Jardim Gramacho I was able to gain confidence
of the catadores [pickers]” (GRITTEN, 2011). For this reason, Waste Land is being used
as a reference for this text.

326
Vik Muniz and the reconfiguration of his brazilian references

In one of his many interviews, Muniz states that his appreciation for photos with
double meaning is probably a heritage from his Brazilian background. “I’m a product
of a military dictatorship (…) Under a dictatorship, you cannot trust information or
dispense it freely because of censorship. So Brazilians became very flexible in the use
of metaphors” (KINO, 2010). The dictatorship in Brazil stimulated left-wing artists in
promoting social activism by using imagery mainly based on marginal citizens,
hunger and garbage. These primal influences will appear regularly in his production
with different connotations.

The Metaphor

In fact, his photographs are metaphorical insofar as what we see is exactly what we
fail to see. “I want to create the worst possible illusions (…) to give people a measure
of their own belief” (PHONGSIRIVECH, 2016), he once said. A significant part of his
images are recreations of art historical works, portraiture and landscapes using
eclectic materials such as chocolate, sugar, dust and garbage, that are only visible
when we examine the picture up close. They are alleged “photographic delusions”
(BAKER, 2016) that loose most of their power due to Muniz´s style. He affirms: “I want
the pictures to be beautiful and I want them to be easy to look at” (BENEDICT-JONES,
2000). The historical social work of Lewis Hine against Child Labour produced
between 1908 and 1912, for example, was translated into a cheerful and almost
alienated composition with toys on the background which suppresses the original
social engagement.

The materials

His attraction for the use of garbage, dust and other perishable materials can be
explained by the influence from artistic experiments against the dictatorship that
took place in Brazil during the 1960´s and 70´s. These were attempts to use poverty
and underdevelopment as a resource for powerful artworks. Probably, cinema was
one of fields where these ideas emerged with more significance and innovative low-
budget productions disseminated this new aesthetics. In 1965, the writer and film
director Glauber Rocha published the ‘Aesthics of Hunger’, a manifesto that
327
explained the foundations of the Cinema Novo (New Cinema) movement and its
compromise in forging a national identity far from the imposed imperialist discourse.
For him, hunger was the most distinctive reality of Latin American society and he
proposed its use “not simply as the main subject of its films, but also as a creation
principle for a political cinema committed to the transformation of Latin American
social reality” (HERRERA, 2015). Deus e o Diabo na terra do sol (Black God, White Devil)
is very representative of this period.

Following Cinema Novo, the 1970´s brought the Cinema Marginal and Rogério
Sganzerla, another important Brazilian writer and film director. In 1968, the political
repression in Brazil reached a new level of radicalization with the promulgation of
the AI-5, a decree which suspended several civil and political rights. Some authors
noticed the emergence of formal and narrative transformations in cinema that ended
up being nominated as ‘Garbage Aesthetics’, “a style most appropriate to a Third
World country picking through the leavings of an international system dominated by
First World monopoly capitalism” (STAM, 1995 apud HERRERA, 2015). In O Bandido
da Luz Vermelha (The Red Light Bandit) before the protagonist kills himself in a dump
he states: “When we can't do anything, we fuck up!”.

In WWW (World Map) (2008), a Muniz´s triptych shows us

how geopolitical inequities may be represented through material


difference (…) powerful nations using large, central components:
oversized CPUs and boxy vintage monitors. Poorer nations are built
from trivial stuff, electronic add-ons and peripheral componentry
(SCHIMDT, 2017, p.8)

However, differently than Cinema Novo and Cinema Marginal that “used waste to
indicate the precarity of the working classes [and] (…) to address post coloniality,
poverty, racial oppression, and political strife” (SCHIMDT, 2017, p. 18), Muniz seems
to elevate trash to “an aesthetic recuperation that opens the door to sensual
appreciation” (SCHIMDT, 2017, p.9) and aims only to a responsible profit for himself
and the gallery that represents him. At the same time, reinforce his position of a kind
of neoliberal Super Hero, a position he will regularly assume in his work within
communities.

328
Muniz´s “social activism”

Social activism can be controversial, especially when we notice that it is business


oriented and the photographer puts himself in a superior position inside a group of
people. Normally, Muniz´s plays the role of the ‘saviour’ or the ‘wiser’ and the
relationship lasts while data or material are being collected for his creative needs.
The Sugar Children was inspired by a trip to the Caribbean island of Saint Kitts in
1996. There he befriended a community that worked in a sugar plantation and one
day, looking at the Polaroids taken in that place, he tried to understand what made
children look so luminous while their parents seemed so broken down. “After
realizing the difference was a lifetime spent working with sugar, he used the
glittering grains to draw and form the children’s portraits on black paper and
photographed the results” (KINO, 2010). Besides this, his dedication to social work
has another perspective: the outcome of these encounters follows the principles of
commodity fetishism and market-oriented rules. The dust shines and the garbage
does not smell anymore. It is like if the ‘Aesthetic of Hunger’ was turned into what
the Brazilian film critic Ivana Bentes designated as ‘Cosmetic of Hunger’ an
“antagonism of entertainment versus social critique that had governed Latin
American approaches to filmmaking [during the 1960´s and 1970´s]” (BENTES, 2001
apud McCLENNEN, 2011).

This outlook through Muniz´s Brazilian references since the 1960s and the work he
developed with some communities after moving to US are keys for the understanding
of Pictures of Garbage series. In the next topic we will see how they can be contrasted
with the concepts of photography in the community.

The pictures of garbage of Jardim Gramacho

In the same way that Cinema Novo and Cinema Marginal in Brazilian culture, the
1960s and 1970s in Britain staged social movements that opened the discussion of
Community Arts and Community Photography:

art and activism were both renewed by the recognition that artistic and
cultural expression was central to agendas of social change driven from
below. Art (inclusive of theatre, video, murals, photography, silk-
printing, graphic design) was harnessed as a tool of empowerment in

329
projects which challenged dominant conceptions of legitimate cultural
forms and sought to play a role in forms of political resistance at a local
level. (BERTRAND, 2015, p.3)

Indeed, as noticed by Macnab (2015), the 1970s and 1980s in Britain was a moment
when ‘experimentation went wild’ and community-based photographic projects
proved to be a social and political instrument to fight oppressive vertical power
relations. Moreover, this transformation came along with an educational
commitment in promoting to participants understanding of visual literacy and
showing them how ideas and relationships could be made meaningful. Regarding
this point, paraphrasing Paulo Freire, Su Braden in Committing Photography (1983)
concluded:

To teach those who do not yet know to learn in their own terms it is
first necessary for the teacher to learn from the pupil about the pupil’s
own culture. In this way the pupil perceives that what is being offered
is not a new culture, but a tool with which it will be possible to express
the reality of the cultural world he or she knows. (p.118)

On the other hand, the 1990s brought a wide acceptance of neoliberal agenda and
the institutionalisation of the work in communities. Under this new format, the social
change started to be driven from above (instead of from below) and “lost its radical
edge (…) in a way which fostered consensus and foreclosed contestation”
(BERTRAND, 2015, p.3). Similarly, the same inversion can be noticed in Vik Muniz´s
career. In the beginning, we have the artist that grew up under the Brazilian
dictatorship in the 1960s; witnessed the effort of some artistic movements which
empowered the marginalised population; observed the imagery in circulation based
on dust, garbage and hunger; learned the use of metaphor as a way of expression
and, even though he has never mentioned the educator and philosopher Paulo Freire
as a personal reference, lived in a country where his ideas had started to be
disseminated. In contrast, near the year 2000, after almost two decades living in the
US, Vik Muniz finds himself in the gears of the art industry. If “the neo-liberalisation
of the arts seeks to frame art, creativity and our cultures in strictly economic terms”,
(PRITCHARD, 2019) Muniz began to use social activism in some communities as a
noble façade to increase his value in the stock market and to avoid the label of
producing ordinary consumerist objects. Pictures of Garbage series is the highlight

330
of this phase, and Waste Land will help in the analysis of the relationship of this
photographer with the community of Jardim Gramacho.

In 2006, the magnitude of Jardim Gramacho caught Muniz´s attention. This place was
the largest landfill in the world at the time, with 321 acres, located in Rio de Janeiro.
There he decided to “change the lives of a group of people with the same materials
that they deal with every day” (ALLEN, 2017) only because the material used in his
recent series was garbage. Strangely, the assumption he had of the community he
wanted to help, was that “these are probably the roughest people [the garbage
pickers] you can think of. They're all drug addicts. It's like the end of the line (…) It's
where everything not good goes, including the people” (WASTE..., 2010, 00:09:42-
00:10:01). Differently than Daniel Meadows´ project The Free Photographic Omnibus
that, on autumn of 1973, took one year tour around England taking free portraits and
collecting personal testimonies (MACNAB,2015,p.123), Muniz was not focused in
social connections. Among the approximately 2,500 collectors existing at the time,
he keeps contact with a selected group of about 10 people in this project. The
hyperbolic size of the landfill and the adversity within this community would only
add extra value to the works that would soon be sold in an auction and whose income
would be used to improve the lives of the local population. Waste Land represents
the perfect marketing tool for this endeavour because it comprises all the ingredients
of a spectacular Hollywood movie such as an impressive scenario, an ambitious
achievement and an inspired super hero determined to rescue defenseless citizens.
Questioning his gallerist Fabio Ghivelder during a Skype conversation about the
difficulty of this task, he answered: “I think it would be much harder to think that we
are not able to change the life of these people” (WASTE..., 2010, 00:07:46-00:07:54).

Furthermore, community photography “corresponds to a philosophy of practice


based on collective participation, emphasis on process as much as product, and
accessibility” (BERTRAND, 2015, p. 9). When Muniz arrived in the landfill, he searched
for the director of ACAMJC (Association of Garbage Pickers of Jardim Gramacho),
Sebastião Santos (Tião), and introduces himself as “the Brazilian artist who is the
most - I hate to say this - but who sells and is the most popular overseas” (WASTE...,
2010, 00:19:14-00:19:22). From the beginning, the philosophy of this relationship is
determined to be celebrity based and one that humanity is fabricated to delude a

331
community and entertain future audiences of the movie being made. Despite being
a ‘hero’, the other part he will play throughout all the process is of the ´manager’.
After almost two years of working with them, when he is celebrating with the pickers
the selling of the artwork in London, he hears from one of them: “I want to propose
a toast to my boss” (ibid., 01:17:07-01:17:09). Muniz did not allow himself to be affected
by their issues, culture and feelings beyond the purpose of labour. The voice of the
community was seldom heard. For example, while interviewing Valter, one of the
pickers, he even stopped the conversation with Muniz and said “You did not ask me
but I am going to introduce myself. I like introducing myself with my own voice” (ibid.,
00:26:11-00:26:19).

“Just as the separation of art from everyday life is a product of the capitalist division
of labour, the corporate and plutocratic takeover of the arts is inherently linked to
neoliberal capitalism” (PRITCHARD, 2019). Muniz´s knows how a public auction
affects the art markets and his motivation in undertaking Pictures of the Garbage is
the monetary reward he can obtain from this environment. “I want to make portraits
of the pickers and then sell them, all the money from the sale of the portraits will be
given back to you. You will be able to do some things, to make life easier for the
community” (WASTE..., 2010, 00:19:35-00:19:45). Actually, the backstage of the
construction of the portraits is the best metaphor to illustrate his relationship with
the garbage community. There we see Muniz (and the art market he represents) on
the top of a scaffold supervising the work of the seven pickers he hired as assistants.
Ironically, in one scene where the ACAMJC´s director explains the work of the
pickers, it is impossible not see the resemblance with Muniz´s attitude: “It works like
a stock exchange. They collect whatever the market demands at any given time. So
the recycling wholesalers tell the pickers what they need, and then that´s what they
collect” (ibid., 00:13:14-00:13:26). Additionally, his option for ‘dressing up’ the pickers
as western European paintings like Jacques-Louis David´s The Death of Marat (1793)
and Pablo Picasso’s Woman Ironing (1904), references far from the reality of the
subjects, exemplifies the ‘glamorous objectification’ these people were submitted to.
They were commodified to fit “in a recognizable museological context” (SCHMIDT,
2017, p.17). On the other hand, personalities like the British actress Elizabeth Taylor
and the Brazilian soccer player Pelé were “allowed to be themselves” when their
portraitures were made in previous series.
332
One last aspect to be discussed in this topic is about the authenticity of the outcome
produced between the photographer and the community. Normally, the public
interest for community photography is the originality of some images because “they
provide insights into the quality of everyday life (…) different from the daily stock
media images” (BERTRAND, 2015, p.6). If by one hand, the pickers and the materials
they work every day are in these photographs, on the other hand, their culture,
problems and expectations are suffocated under the mask created by Muniz and the
financial structure that represents him. “Indeed, the entire project begins and ends
with Muniz´s photographs, reinforcing the authorship that provides both the
exposure integral to its success and the limitations for participant involvement”
(REMLAND, 2019).

Conclusion

Taking everything into account, Pictures of Garbage series could not be considered a
photography in the community case. Instead of using his potential as a photographer
to educate a group of people with skills that would “enable creativity and critical
thinking, where the camera becomes a tool for driving and documenting change”
(BERTRAND, 2015), Muniz operates a kind of cultural invasion, where a community
was “neutralised by the stylistic conventions of the dominant culture” (BRADEN,
1983) and interests of the economic groups he represents. In the end, the process
documented in Waste Land resembles a marketing class where we follow an artist
and his strategies to sell his work by the maximum economic value.

In 2019, this paragraph in my old article started like this: “However, it would not be
honest to finish this text without mentioning that Muniz´ goal was achieved and he
raised USD 276.000 (KINO, 2010) with the selling of his artworks, which were entirely
donated to ACAMJC. At the end of the process, if his seven assistants did not improve
their power as a community at least they revaluated the labour itself from a
dehumanized activity to a more creative and pleasurable one that was possible by
their contact with art”. However, the rest of the paragraph will be replaced by what
comes next. Based mainly on information available in 2011, it was rewritten because,
at that time, I could not foretell that even the money raised or the momentary
pleasure of a small group in participating of an artistic process would be an

333
ephemeral achievement. This is what Bertrand (2015) warns us about what would be
a change from “Community Photography” to “Photography in the community”.

On a more general level, a shift in imaginaries of social change, now


framed by a wide acceptance of neo-liberal agendas (in which the
concept of agency is understood as individual and framed by market
forces), has led to even greater marginalisation of radically alternative
discourses

Today, Tião, the protagonist of Waste Land, feels sad for having had the opportunity
to see and live experiences that his companions did not have. But what threw him
into the deep end of depression was something even more disturbing: “I thought I
was to blame for the landfill closing. I cry to this on daily basis. I carry the guilt of
those who believed in a lot of things, a lot of false promises” (BRISO, 2022).

Far from any disappointment, Vik Muniz continues his celebrated international
career, associating his image with other noble causes and social activism. The most
notorious was probably having participated in the creation of the opening ceremony
of the Rio 2016 Paralympics Games.

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Disponível em: < https://www.artshub.com.au/news/features/freeing-the-arts-from-
the-yoke-of-neoliberalism-254094-2356752/>. Acesso em: 10 abril 2019.

Mini Currículo

Tom Lisboa
Tom Lisboa é Doutorando do PPGCom-UTP com Taxa Prosup CAPES, Mestre em Photography and
Urban Cultures, pela Goldsmiths, University of London e Mestre em Comunicação e Linguagens, pela
Universidade Tuiuti do Paraná. Atua como fotógrafo e professor de cinema e fotografia. E-mail:
tom.lisboa@hotmail.com

336
INVENÇÕES DE SALOMÉ: VISUALIDADES E ORIENTALISMO

SALOME'S INVENTIONS: VISUALITIES AND ORIENTALISM

Luiza Domingos Barra


PPGACV-UFG, Brasil

Resumo

Este texto busca registrar uma análise da personagem de origem bíblica Salomé, mais
especificamente na literatura e pintura europeias do século XIX, e cinema do século XX e
XXI. Como levantamento conceitual de uma pesquisa artística, alinha-se à investigação de
cunho prático-teórico do fazer artístico e estudos autobiográficos. As reflexões se apoiam
na perspectiva crítica do Orientalismo histórico e material de Edward Said (2007), e dos
conceitos de visualidade e contravisualidade trabalhados por Nicholas Mirzoeff (2016) para,
assim, discutir o olhar colonizador sobre os corpos femininos ditos “orientais” e o direito
ao olhar, problematizando essas visualidades.

Palavras-chave: Arte; Cultura Visual; Visualidade; Orientalismo; Feminismo.

Abstract

This text seeks to record an analysis of the character of biblical origin Salomé, more
specifically in European literature and painting of the 19th century, and cinema of the 20th
and 21st centuries. As a conceptual survey of an artistic research, it is aligned with the
practical-theoretical investigation of artistic work and autobiographical studies. The
reflections are based on the critical perspective of Edward Said's historical and material
Orientalism (2007), and on the concepts of visuality and counter-visuality worked by
Nicholas Mirzoeff (2016) to, thus, discuss the colonizing view of the so-called "oriental" and
feminine bodies. the right to look, problematizing these visualities.

Keywords: Art; Visual Culture; Visuality; Orientalism; Feminism.

Introdução

A memória da última vez que estive num palco para me apresentar dançando é de
quando tinha quinze para dezesseis anos de idade. Era uma coreografia de grupo,

337
estava com cerca de outras dez meninas e mulheres, meu figurino era bordado em
pedras e miçangas acrílicas nas cores azul claro e preto, e todas nós tínhamos na
mão direita um instrumento musical árabe chamado daf, um pandeiro redondo de
couro e madeira. Lembro-me perfeitamente da música, o ritmo folclórico era
baladi, característico no Líbano e Egito e meu corpo mesmo hoje, dez anos depois,
com algum esforço seria capaz, ainda que não com o mesmo desempenho, de
repetir aquela sequência de passos tão ensaiada. Entretanto, não foram essas as
lembranças que me fizeram abandonar a prática de danças árabes que iniciei
quando criança, aos seis anos de idade.

Percebi que havia um homem desconhecido na plateia que me olhava fixamente, e


com desconforto e medo do olhar que intui me sexualizar, passei a olhar
repetidamente para baixo, conferindo insegura se minha vestimenta estava
cobrindo meu corpo de forma correta; reprimi todos os meus movimentos, errei
várias vezes os passos que deveriam ser sincronizados com as colegas de palco.
Fiquei apavorada durante e depois da performance com a ideia de que, por ter me
dado conta daquele olhar, tê-lo visto, ele poderia interpretar erroneamente como
permissividade ou retribuição. Foi a partir desta dança que cedi à lógica de
reprovação da minha avó materna às apresentações. Ela, que era filha de libaneses
imigrantes e cristãos ortodoxos, sempre dançou comigo e minha mãe em
festividades familiares, mas repudiava qualquer olhar sobre os nossos corpos e
dança que não fossem os nossos próprios. Ela sabia há mais tempo que a dança
oriental, árabe ou do ventre no ocidente transformava, no imaginário, as mulheres
instantaneamente em odaliscas.

Em minha pesquisa, a escrita dessas memórias é um exercício relacionado às


noções de autobiogeografia (RODRIGUES, 2017) e Pesquisa Autobiográfica em Arte
(RODRIGUES, 2021) como articuladoras de perspectivas feministas e decoloniais.
Tais compreensões evocam o senso crítico de lugar e diversidade na busca da
elaboração de pertencimento e identidade na produção artística que aborda minha
ancestralidade árabe. Nesse sentido, o presente artigo é desdobramento teórico
simultâneo aos processos de criação artísticos. A autora Sandra Rey (1996) afirma
que a obra na vitalidade da pesquisa, acentua a necessidade de operar a poética e,
consequentemente, as temáticas que direcionam a criação e investigação da artista.

338
Nesse aspecto, o trabalho de Vagner Godói (2020) organiza a origem e contexto
desta metodologia. Assim, atribuo à minha pesquisa que “o funcionamento da obra
na pesquisa” é tal como para Sandra Rey (2002) o meio e objetivo principal, mas que
“implica um trânsito ininterrupto entre prática e teoria” (REY, 2002, p.125).

Por isso, uma vez que a produção teórica está intrinsecamente ligada ao projeto
poético, entendo que a motivação do meu fazer artístico e a reflexão sobre os
conceitos aqui reunidos, nasce do meu encontro com um artigo da BBC que
anunciava Quem era Salomé, a menina que Santo Agostinho transformou em 'mulher
sem-vergonha'. A publicação é a tradução livre para o português do texto de
Christian-Georges Schwentzel, professor de História Antiga na Universidade de
Lorraine (França), publicado em fevereiro de 2021 no site The Conversation. O autor
tece comparações entre as descrições da personagem bíblica Salomé, filha de
Herodíade, que aparece em Marcos e Mateus no episódio da morte do profeta São
João Batista, primo de Jesus Cristo. O historiador apresenta argumentos que
considera nos primeiros registros bíblicos Salomé como uma menina entre 11 e 12
anos, inata de feminilidade que dança sem adjetivos eróticos, o que foi
antagonicamente narrado por Santo Agostinho, três séculos depois. A dança dos
sete véus, inventada por ele, torna-se um estereótipo erótico até hoje associado e
reproduzido na dança do ventre, mas, antes, a ele possivelmente também se deve a
noção de mulher fatal e perversa, intensamente presente nas representações em
diferentes linguagens da personagem ao longo dos séculos.

Nessa perspectiva, a estudiosa Mireille Dottin-Orsini (1998) contribui ao apresentar


o modo como, historicamente, a figura de Salomé se desprende da iconografia
religiosa “para evoluir sozinha e encarnar o arquétipo da mulher fatal adorada e
execrada, fascinante e terrível, uma deusa de grande beleza e luxúria, diante da qual
João não passa de mero adorno, ou de simples acessório num teatro de horror”
(DOTTIN-ORSINI, 1998, p. 807). Além disso, torna-se necessário considerar a
abordagem Orientalista dos autores Gustave Flaubert (1877) e Oscar Wilde (1891),
que no século imperialista escreveram sobre Salomé, com alta ênfase nos aspectos
eróticos e exóticos da figura feminina, com diferentes modelos de narração, mas
fortes menções aos territórios do Oeste Asiático e Norte da África. Suas obras são
as mais significativas referências das representações de Salomé, tanto para as

339
pinturas orientalistas na Europa do século XIX, como das produções
cinematográficas estadunidenses no século XX.

A Salomé, cujo significado do nome em hebraico é “pacífica”, mas é responsável por


decapitar um homem, é uma dançarina inventada, que para minha pesquisa
artística, será apropriada a reivindicar “o direito a olhar”, como propõe Mirzoeff
(2016). O autor, a partir da definição de visualidade enquanto meio de sustentação
de autoridade e poder, funda o conceito de contravisualidade, assim, propondo
uma descolonização do olhar, a qual farei uso na tentativa de responder à pergunta:
Como as invenções de Salomé reforçam as visualidades estereotipadas sobre a
“mulher oriental”? Para isso, apoio-me na definição de Orientalismo do autor de
origem palestina Edward Said (2007), considerada histórica e material, próxima do
conceito de discurso de Michel Foucault em “Arqueologia do Saber”, em que um
Ocidente, a partir do século XVIII, é autorizado a afirmar, descrever, ensinar,
colonizar e governar um Oriente (SAID, 2007, p. 29).

Ela Não Falava, Eles Olhavam

O complexo imperial da visualidade conectava a autoridade,


centralizada a uma hierarquia civilizacional, por meio da qual aqueles
com a “cultura” dominavam os “primitivos”. (...) Desta forma, a
visualidade tornou-se tanto tridimensional quanto complexamente
distribuída no espaço. Como a civilização ocidental tendia, desde este
ponto de vista, à “perfeição”, ela era sentida como estética, e as
separações engendradas por ela estavam, portanto, simplesmente
certas, embora visíveis apenas para o que Tylor denominou de
“pequena minoria crítica da humanidade”. (MIRZOEFF, 2016, p. 755,
grifos do autor)

A visualidade é situada como “um termo do início do século XIX que faz referência à
visualização da história” (MIRZOEFF, 2016, p. 748). Seria proveniente do visualizar
de informações, ideias, imagens e imaginação que produzem os processos
históricos “perceptíveis à autoridade”. O autor afirma que, sendo um lugar comum
e discursivo para a representação e regulação do real, a visualidade tem efeitos
materiais, a exemplo do olhar, da perspectiva e do panóptico de Michel Foucault
(MIRZOEFF, 2016). Nesse sentido, gostaria de relacionar o Orientalismo teorizado

340
por Said (2007) com o que Mirzoeff chama de “complexo de visualidade”,
considerando que a Europa, com práticas de colonização e imperialismo, passa a
classificar, separar e estetizar o Outro a que nomeia “Oriente”. Assumirei, portanto,
que “a visualidade era considerada masculina, em tensão com o direito a olhar que
tem sido descrito em diferentes situações como feminino, lésbico, queer, ou trans”
(MIRZOEFF, 2016, p. 747) para refletir os discursos que reinventam Salomé durante
os séculos XIX e XX como uma “mulher oriental”.

O título da primeira parte desta reflexão, “ela não falava, eles olhavam” é um
fragmento da dança de Salomé em “Herodíade” de Gustave Flaubert publicado em
1877, em que também somos apresentados de modo detalhado às relações e dilemas
políticos do Rei da Judéia Herodes Antipas. O seu reino, além de descrito
minuciosamente, logo na primeira oração, é situado geograficamente ao leste do
Mar Morto, na cidade de Maqueronte. O escritor menciona os judeus, os árabes,
países como a Itália, o Iêmen e a Síria, e também com precisão as cidades da
Galileia. Porém, aquilo que mais me chama a atenção, é o modo como a relação
entre Herodíade, a rainha e sua filha Salomé é apresentada pelo francês. Flaubert
nos traz Herodíade tendo abandonado sua filha em Roma, ainda criança, para se
casar com o irmão de seu marido. Por isso, quando Salomé aparece, no final da
narrativa, já uma mulher para dançar no banquete, Herodes não a reconhece como
sua sobrinha e enteada. Salomé, por sua vez, descrita exageradamente com
adjetivos e substantivos, seduz em obediência à mãe, e quando está pronta para
pedir a cabeça do profeta, em um prato de prata, quase esquece o nome que foi
instruída a dizer. Said (2007), que é um crítico literário por formação, analisa o
discurso orientalista do escritor francês afirmando substancialmente que “em todos
os seus romances, Flaubert associa o Oriente com o escapismo da fantasia sexual”
(SAID, 2007, p. 263).

O autor explica que o momento mais importante da viagem oriental de Flaubert,


está vinculado à Kuchuk Hanem, uma cortesã egípcia a qual o escritor francês
conhece em Wadi Halfa. Provavelmente, a grande referência para a recriação de
Salomé. Segundo Said (2007), Flaubert tinha conhecimento e, sobretudo,
imaginação sobre almeb, termo designado a priori a mulheres que recitavam poesia
e que depois passa a ser aplicado às dançarinas que também se prostituíam. Há

341
registros de correspondências dele com Louis Colet que anunciam a mulher
ocidental como uma máquina, com “indiferença sentimental” e “sexualidade muda”
que permitiam a esse homem europeu pensar como lhe convinha (SAID, 2007). Isto
é, também criar visualidade, usufruir de autoridade e poder. Assim, Kuchuk Hanem
se torna um modelo, uma ocasião e uma oportunidade:

(...) ela nunca fala de si mesma, nunca representou suas emoções,


presença ou história. Ele falava por ela e a representou. Ele era
estrangeiro, relativamente rico do sexo masculino, e esses eram fatos
históricos de dominação que lhe permitiam não apenas possuir
fisicamente Kuchuk Hanem, mas falar por ela e contar a seus leitores
de que maneira ela era “tipicamente oriental”. (SAID, 2007, p. 33,
grifos do autor)

No filme “Salomé” dirigido por William Dieterle, de 1953, temos o que aparenta ser
uma adaptação que une a versão de Santo Agostinho com a de Gustave Flaubert. A
atriz protagonista é Rita Hayworth, ícone pin-up, que segundo as principais
biografias teria sido a atriz favorita dos militares estadunidenses durante a Segunda
Grande Guerra. No auge do sucesso de sua carreira em Hollywood, caracteriza uma
Salomé branca e loira. Na cena da dança, ambientada no salão do palácio, ela se
revela atrás de uma pilastra de mármore que integra três grandes arcos próprios da
arquitetura romana. Ainda que com rosto coberto por uma bata/véu suspenso com
as próprias mãos, a transparência do tecido preto com azul tem em sua extensão
muitos adornos dourados e pérolas. Seu olhar não abandona o de Herodes em
nenhum movimento da dança dos sete véus. Véus estes que, um por um, de cores
distintas, abandonam seu corpo em giros e gestos das mãos, revelando uma
vestimenta de cor neutra quase próxima ao tom de sua pele, forjando uma nudez.
Nesse sentido, Mireille Dottin-Orsini contribui:

As primeiras mulheres fatais do cinema se fantasiarão de Salomé – e a


Grande Guerra chegará para fuzilar nos fossos de Vincennes uma
dançarina extraviada e bem real, Mata Hari. (...) a Salomé fim-de-
século, além da fatídica bandeja, possui atributos necessários
facilmente identificáveis (jóias, véus, perfumes, lírios ou lótus, pantera
negra, gafanhoto, serpente, noite e lua) e jamais deixa de ser
terrivelmente literária – ou terrivelmente pictórica. Salomé pressupõe
um texto ou uma representação preexistente (...) (DOTTIN-ORSINI,
1998, p. 809).

342
A peça teatral de Oscar Wilde, em francês de 1891, por sua vez, foi recriada no
cinema por Al Pacino em 2013. O gênero literário e a estrutura não são as principais
diferenças entre Wilde e Flaubert. Na obra do escritor de origem irlandesa, temos
personagens como o Sírio, o Capadócio e o Núbio, territórios personificados, que
estão a serviço de Herodes Antipas e interagem diretamente com Salomé. Ela, ao
longo dos diálogos, apresenta-se conveniente, retirando o que diz ou
contradizendo-se de à medida que é confrontada. Salomé está também
imediatamente interessada em Iokanaan, deseja ter seu beijo, elogia seu corpo, e o
profeta, no entanto, a rejeita e reprova tal como faz com a moral de sua mãe,
Herodías. A paixão da princesa pelo profeta provoca a primeira tragédia da
narrativa. O Sírio, encantado por Salomé, em profunda desilusão ao vê-la implorar
por outro homem, tira a própria vida no pátio do palácio. Outro ponto muito
significativo para esta escrita está nas repetidas vezes que Herodías pede que o
Tetrarca pare de olhar para Salomé, afirmando que não gosta do modo como ele
olha sua filha.

Em Wilde, a dançarina não atende um pedido da mãe, como descreve a bíblia ou


Flaubert; neste caso, é a própria Salomé quem tem a ideia de trocar a sua dança
pela cabeça de Iokanaan, como um capricho por ter sido rejeitada por ele. No
entanto, depois recebe a aprovação de Herodías, que se vê vingada das ofensas do
profeta a seu casamento. A dança na literatura teatral é brevemente narrada,
Salomé pede os sete véus e que lhe descalce as sandálias, e em diálogo com os
músicos se movimenta de modo agitado, faz uma pausa, e retorna até parar aos pés
do Rei Antipas fazendo então o seu pedido. No filme de Al Pacino, que o tem na
direção e atuação de Herodes Antipas, o cenário respeita o tablado ou palco teatral.
A contemporaneidade é construída nos figurinos formais dos personagens como
ternos, a fotografia é de alto contraste com a luz vermelha do cenário e o figurino
da dançarina.

A dança realizada pela atriz Jessica Chastain, de pele branca e cabelos ruivos, no
papel de Salomé, não possui sete véus, mas apenas um da mesma cor de sua saia e
blusa, vermelhos. Ela executa exageradamente, ao som de um instrumento de sopro
e percussão, quase de forma agressiva alguns passos estereotipados da “dança do
ventre”, como chacoalhar os ombros, sinuosidades e tremidos com o quadril e

343
barriga. E novamente, aquilo que me é caro: sua Salomé sustenta fixamente o olhar
para aquele que se destina a dança. Quando seu desejo é atendido, e em estado de
êxtase, a dançarina beija a boca da cabeça de Iokanaan já na bandeja de prata.
Antipas dá-se conta do objeto de verdadeiro desejo da sobrinha, e assombrado e
invejoso, manda matá-la. Para Wilde, Salomé é a mulher que mata quando não tem
seus desejos atendidos, ou provoca a morte quando desejada.

Dois Olhos Por Uma Cabeça

A veracidade histórica dessa dança assassina é duvidosa: uma


princesa dançando sozinha num banquete de homens é exemplo
único nos Testamentos e pouco provável na Judéia do século I. (...)
Devemos, portanto, considerar o episódio não como um fato, mas
como um julgamento moral que avilta a corte absoluta de Antipas e
agrava a culpa daqueles que levaram à morte o Precursor,
aproximadamente no ano 29 de nossa era. (DOTTIN-ORSINI, 1998, p.
805)

A pesquisadora Daniela Campos (2016), para analisar as imagens de Alceu Penna na


coluna Garotas Perigosas da revista O Cruzeiro, entre 1938 até 1964, utiliza dos
conceitos de anacronismo e imagem de Didi-Huberman, Aby Warburg, Walter
Benjamin e Serguei Eisenstein. Logo, aprofunda-se no fascínio e definição de Didi-
Huberman e Warburg pelas ninfas. As criaturas mitológicas serão aproximadas às
imagens de Salomé e, consequentemente, às pin-ups de Alceu Penna, pois “ambas
eram objetos de sedução amorosa” (CAMPOS, 2016, p. 100). Além das ninfas, outra
personagem bíblica, citada no antigo testamento é inevitavelmente presente nas
comparações com Salomé: Judith é uma viúva judia que vinga o marido e salva seu
povo ao seduzir para matar Holofernes, um general assírio a serviço de
Nabucodonosor. Porém, ao contrário de Salomé, que não executa sua vítima, Judith
mata com as próprias mãos, usando espada e a ajuda de uma criada, decapitando o
homem durante o sono. Campos (2016) menciona a defesa de Didi-Huberman em
não nos preocuparmos com as equívocas pinturas que colocam Salomé com uma
espada, tal como caracteriza Judith ou mesmo o inverso com relação à bandeja de
prata; pois o que lhes interessa são as “caçadoras de cabeça” (CAMPOS, 2016, p.
102).

344
Diante disso, os corpos dessas mulheres sórdidas e sedutoras, acompanhadas de
cabeças assassinadas, passam a ser lidos na medida em que comportam a reflexão
da morte e do erótico. Para tal, a autora recorre às definições de Bataille, afirmando
que “anterior à imagem do corpo morto é a imagem do erótico. (...) O nascimento
do erotismo atrela-se à quase obsessão pela morte, pelo trágico. São ambos que nos
fazem humanos” (CAMPOS, 2016, p. 104). As pinturas europeias barrocas tanto de
Salomé quanto de Judith, sobretudo nos séculos XVI e XVII, tecnicamente
naturalistas, narram em tom dramático do alto contraste luminoso, o momento em
que essas mulheres conseguem matar, possuindo cabeças e sangue. Ainda, Campos
(2016) nos lembra também que a obsessão por pinturas de decapitação no final do
século XVIII e XIX na França não é mera coincidência. Os movimentos artísticos
Simbolismo, Romantismo e Neoclassicismo, potencialmente desenvolvedores de
pinturas exóticas e eróticas sobre o “Oriente”, testemunham um cenário
imperialista e revolucionário. Acerca disso e de Salomé, Dottin-Orsini retoma em
conclusão que:

(...) sua dança é a linguagem do desejo e a manifestação da beleza


aterrorizante: ela reluz à impotência artística e sexual os poetas que
se identificam com o degolado ou com o tirano enfastiado, cujos
sentidos só ela poderia despertar; ela pode, em última instância,
tornar-se uma representação da obra de arte pela qual só nos resta
morrer. (DOTTIN-ORSINI, 1998, p. 811).

Ao pensar a inocência ou poder das imagens com relação à violência, lembro-me de


Maria José Mondzain (2009) que pergunta se as imagens podem matar. Na
introdução, a autora reflete sobre a queda das torres gêmeas, em 11 de setembro de
2001, nos Estados Unidos, e como o evento colocou em crise o império do visível. A
autora aponta como o presidente promove o “jejum das imagens”. A resposta
aplicada a essa primeira provocativa é dada, ao dizer que colocando a imagem como
centro da investigação e das responsabilidades do ocorrido

(..) aceitaremos ficar prisioneiros do sofisma mortífero que é o do


próprio terrorismo: o islão contra a cristandade, o Oriente contra o
Ocidente, o choque de culturas incompatíveis... O reino da imagem
implicará sempre a morte do outro. (MONDZAIN, 2009, p. 8).

345
No entanto, com a distância temporal do texto de Mondzain, pergunto-me se não
fora justamente nesta armadilha que caímos, já que a “Guerra ao Terror” anunciada
por George W. Bush, junto à mídia ocidental e, sobretudo, a indústria visual norte
americana, dedicaram-se dali em diante a reforçar as visualidades e estereótipos
aos homens árabes, como terroristas, violentos e opressores, em contraponto às
mulheres islâmicas de hijab ou burca como oprimidas que precisam ser salvas
(ABU-LUGHOD, 2012), justificando – até atualmente – práticas de xenofobia,
islamofobia e intervenções militares.

A violência da imagem desencadeia-se quando esta permite a


identificação do infigurável no visível. O que equivale a dizer que a
imagem só se sustenta na dissemelhança, na distância entre o visível e
o sujeito do olhar. Mas será esta distância visível? Se o fosse, deixaria
de ser distância. Existe então no acto de ver um "gesto" invisível que
constitui a distância do ver. Talvez seja instituído pela voz.
(MONDZAIN, 2009, p. 24, grifos da autora)

Essa mensuração de distâncias de Mondzain (2009), soa-me também como aquela


que produz o Orientalismo. Afinal, o imaginado, misterioso, inventado só é possível
a partir da ideia do distanciamento. A partir disso, retorno a Daniela Campos (2016)
para elucidar o que se faz imprescindível para a compreensão de visualidade em
Salomé para esta reflexão: o direito de olhar. Sobre as ilustrações de Penna da
personagem para a revista Cruzeiro a pesquisadora descreve a primeira aparição
considerando que curiosamente, distinta das clássicas apresentações de Cranach,
Salomé não olha para o espectador com seus olhos “sempre belos e maus”. Em um
segundo momento, a coluna de junho de 1941 menciona uma Salomé quase
desconhecida por “menos teor de nudez e sensualidade” e ausência da cabeça
decapitada, mas que novamente não nos olha. (CAMPOS, 2016, p. 109 -110).

Diante disso, em meio às inúmeras imagens pictóricas de Salomé produzidas no


século XIX e meados do século XX, escolho para aprofundamento de análise, duas
obras que não são óbvias ao que mais intensamente este texto aponta criticamente.
Para assim, como em um jogo de sete erros, e não mais a dança dos sete véus,
tentar capturar o complexo de visualidade imperial que se esconde na narrativa e
se faz presente à natureza intrínseca da imagem, como refere Mondzain (2009). Tal
como aponta Dottin-Orsini

346
A figura de Salomé tornou-se tão conhecida quanto banalizada: na
pintura, qualquer mulher nua coberta de jóias era batizada de Salomé;
nos textos ou no palco, qualquer dançarina ou mulher perversa era,
de certo modo, também Salomé. (DOTTIN-ORSINI, 1998, p. 809)

A pintora Ella Ferris Pell realiza sua Salomé (Figura 1) duas décadas depois de Henri
Regnault (Figura 2), mas não seria impossível supor que a artista provavelmente
teve contato com a Salomé do francês, já que por ter sido praticamente a última
obra do pintor, ganha destaque em salões da época. A artista, nascida em Missouri,
nos Estados Unidos, formou-se na Escola de Design para Mulheres em Cooper
Union de Nova Iorque e pode realizar não somente viagens à Europa, como
exposições no Salão de Paris entre 1889 e 1890. Ademais, o dourado e o amarelo
aproximam as Salomés que também possuem seus ombros expostos e, em comum,
seguram a indispensável bandeja que aguarda a cabeça sem vida do profeta.

Acerca das diferenças entre elas, é possível apontar a hibridização de Judith na


pintura de Regnault, que sentada em pose, segura com a mão esquerda sobre a
bandeja apoiada em suas pernas também uma espécie de adaga/espada, como
quem anuncia a ação do assassinato e não somente o pedido da execução. Por fim,
e sobretudo, imprescindivelmente diferenciamos os olhares das figuras. A Salomé
da artista estadunidense, expressa olhar introspectivo, direcionado a uma diagonal
inferior que passa por seu próprio ombro, enquanto Regnault faz a personagem
olhar diretamente para o espectador.

347
Figura 1. Ella Ferris Pell, SALOMÉ, 1890. Figura 2. Henri Regnault, Salomé,
Óleo sobre tela, 52 x 34 cm. Coleção 1870, oil on canvas, 160 x 102.9 cm.
de Sandra e Bram Dijkstra. The Metropolitan Museum of Art.

Junto ao olhar determinado, um meio sorriso dá a ela um ar perverso ainda que


bastante calmo pela sua postura, configura a fatalidade da mulher que mente e
trapaceia para conseguir o que quer. Poderia lembrar Dominique Ingres, quando
realiza “A Grande Odalisca” em 1824, com suas três vértebras a mais, e a faz torcer
seu pescoço em direção ao espectador para lhe ofertar o próprio corpo. Nesses
pontos, as naturezas intrínsecas da imagem precisam ser reconhecidas de modo
distinto, já que partem de diferentes lugares discursivos. A Salomé pintada por uma
mulher no final do século XIX parece guardar seu olhar, como quem sabe dos
perigos que seus olhos oferecem a si mesma e não ao outro. Sobre isso, a teórica
Griselda Pollock (2011) reivindica os nomes de artistas mulheres impressionistas na
Paris boêmia e moderna de Baudelaire. Constatando não só a restrição das
mulheres ao espaço público e ao olhar ativo, mas sobretudo, objetificadas e
impossibilitadas de serem incógnitas diante do olhar flâneur dos homens.

Além disso, o modo como o naturalismo técnico da pintura de Regnault se destaca


em uma ambientalização muito mais preocupada, o tratamento dos tecidos, as
minúcias precisas de adornos com texturas e relevos, pode ser lido por Linda

348
Nochlin (1983). Para ela, o avanço da fotografia a partir do século XVIII contribuiu
para um discurso de realismo científico das pinturas orientalistas europeias, já que
muitos desses pintores registram poucas ou nenhuma viagem ao Oeste Asiático e
Norte da África. O recurso tecnológico teria permitido que esses pintores se
aproximassem de detalhes desnecessários que na pintura ganhavam teor de
convencimento do real, algo que academicamente era vinculado ao prestígio
técnico e estético. Assim, a historiadora utiliza o termo l'effet de carretel de Roland
Barthes, explicando a apreensão de detalhes gratuitos para convencimento do real
nas pinturas. Sobre isso, penso as noções de visualidade de Mirzoeff e a urgente
necessidade de reconhecer e denunciar as visualidades do Orientalismo:

Esse sentido alargado do real, o realista e realismo(s) está em jogo no


conflito entre a visualidade e a contravisualidade. O “realismo” da
contravisualidade é o meio pelo qual se tenta dar sentido à irrealidade
criada pela autoridade da visualidade enquanto, ao mesmo tempo,
propõe uma alternativa real. Não se trata de modo algum de uma
representação simples ou mimética da experiência vivida, mas de
retratar realidades existentes e as contrapõe com um realismo
diferente. (MIRZOEFF, 2016, p. 756, grifos do autor)

Assim, portanto, reivindico aquilo que Edward Said (1986) assume no documentário
“A sombra do Ocidente”, aos 40 minutos, ao dizer: “Através da criação de seus
próprios personagens, seus próprios estereótipos, por suas próprias razões, árabes
estão respondendo e resistindo a todos os estereótipos produzidos no Ocidente”.
Buscar, referenciar e produzir tais contravisualidades é o que me interessa como
artista, não para defender um Oriente “real”, como também pondera Said (2007, p.
15), mas principalmente por ter, como ele, enorme respeito por todos os povos
árabes e mulçumanos.

Esse mergulho teórico e tessitura analítica alinhavaram o processo criativo prático


iniciado com apropriação dos detalhes dessas pinturas e outras também de título
Salomé, de pintores europeus do século XIX e início do XX. Alteradas para o preto e
branco, fragmentos dessas pinturas se misturaram às imagens de meu acervo
pessoal e familiar para criação do livro de artista digital de título “a pacífica”. O
primeiro suporte do trabalho é a plataforma cargo, possibilitando um livro de artista
que comporte vídeos e ferramentas de interação com as imagens; assim, além de

349
registros autorais, somam-se trechos de dança dos filmes árabes “I Love You
Hassan” (1958) do diretor egípcio do Hussein Fawzi e “Where Do We Go Now?”
(2011) da libanesa Nadine Labaki. A sequência de imagens fixas e em movimento,
apresentadas em páginas duplas, acompanham combinações textuais poéticas que
fazem referência a Salomé como parte de uma história contada por outra
personagem árabe: Sahzade, narradora das “Mil e Uma Noites”. A intenção é a
concepção de uma narrativa que desconstruísse e reinventasse uma Salomé a partir
de referências familiares do convívio com as culturas árabes, recorrendo ao direito
de olhar e dançar a partir de corpos libertos de poderes coloniais e patriarcais.

A apresentação desse trabalho na exposição “antes que acabe em nós nosso desejo”,
na grande sala da Vila Cultural Cora Coralina, em Goiânia, no âmbito do Núcleo de
Pesquisa de Práticas Artísticas Autobiográficas – NuPAA/UFG/CNPq, o
transportou para outros suportes: o QR code para a interação com uma das páginas
do livro digital e uma impressão emoldurada. Como um desdobramento e acaso
curioso, duas das imagens utilizadas no formato digital são impressas grudadas uma
na outra, nascidas juntas, mas de tempos diferentes. Um retrato meu na casa de
minha mãe está em comparação à pintura Regnault e estão na companhia de uma
frase-provocação que esconde o convite a olhá-las. Contudo, as profundidades
dessas estórias deixarei para a próxima noite-texto.

350
Figura 3. Luiza Domingos Barra, a pacífica, 2022. Impressão sobre jato de tinta, texto em moldura 30 x
40 cm, QR code, Livro de artista digital (detalhes). Fonte: arquivo pessoal. Livro de artista digital
disponível em: https://apacifica.cargo.site/

Referências

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antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Estudos Feministas, p. 451-470,
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de Mitos Literários, Rio de Janeiro, Editora UnB. 1998. BRUNEL, Pierre
FLAUBERT, Gustave. Herodíade. In: FLAUBERT, Gustave. Três contos, 1877. Tradução Júlia
da Rosa Simões. - Porto Alegre [RS]: L&PM, 2019.
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MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 18, n. 4,
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https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472

351
MONDZAIN, Marie-José. A violenta história das imagens. In: MONDZAIN, Marie-José. A
imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 11-48.
NOCHLIN, Linda. The imaginary orient. Art in America, v. 71, n. 5, p. 118-131, 1983.
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RODRIGUES, Manoela dos Anjos Afonso. Autobiogeografia como metodologia decolonial,
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RODRIGUES, Manoela dos Anjos Afonso. Pesquisa autobiográfica em Arte: Apontamentos
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REY, Sandra.In. BRITES, Blanca et al. O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa
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SALOMÉ. Direção: William Dieterle. Produção de Columbia Pictures, The Beckworth
Corporation. Estados Unidos, 1953.
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SCHWENTZEL, Christian-Georges. Quem era Salomé, a menina que Santo Agostinho
transformou em 'mulher sem-vergonha’. BBC NEWS BRASIL. 4 de Abril de 2021. Disponível
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WILDE, Oscar. Salomé, peça de 1891. Tradução João do Rio - Jandira, SP: Principis, 2021.
A SOMBRA DO OCIDENTE. Direção: Geoff Dunlop. Escrito e narrado por Edward Said
Produção de Land Mark Films. Estados Unidos, 1986. Tradução de Jessica Riley e Débora
Frias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wkYKFsYLhHU

Mini Currículo

Luiza Domingos Barra


Mestranda bolsista FAPEG no PPG em Arte e Cultura Visual (FAV/UFG), na linha de pesquisa
Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Práticas
Artísticas Autobiográficas – NuPAA/UFG/CNPq. Bisneta de imigrantes libaneses, sua pesquisa
percorre os estudos autobiográficos relacionados à ancestralidade árabe e feminismo decolonial.
Possui Graduação em Artes Visuais (IARTE/UFU). E-mail: luiza_barra@discente.ufg.br

352
REVELAÇÕES: PINTURAS DE NEGATIVOS DE FOTOGRAFIA

REVELATIONS: PAINTINGS OF PHOTOGRAPHIC NEGATIVE IMAGES

Marianne Nassuno
Universidade de Brasília, Brasil

Resumo

O texto discute algumas características da poética do sem foco, que se refere a imagens
enevoadas, que não são claramente visíveis, elaboradas com manchas e borrões de cores
esmaecidas. A poética do sem foco é desenvolvida na série Revelações, uma experiência de
tradução de imagens de negativo fotográfico em pintura, que oferecem ao espectador uma
oportunidade para exercício da imaginação. São apresentadas e justificadas as escolhas
feitas durante o processo de elaboração das primeiras pinturas.

Palavras-chave: Sem foco. Pintura. Fotografia. Negativo.

Abstract

The text discusses some features of the no focus poetic, which concerns foggy, not easily
discernible images, composed of stains and blots of faded color. The no focus poetics is
developed in the Revelations series, an experience of translation of images of photographic
negative in painting which offers to the viewer an opportunity for the exercise of
imagination. The choices made during the process of elaboration of the first paintings are
presented and justified.

Keywords: No focus. Painting. Photography. Negative.

Introdução

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a poética do sem foco e apresenta o
processo inicial de elaboração de uma série de pinturas denominada Revelações, que
tem como referência um negativo fotográfico. Analisa uma experiência de traduzir –
para a linguagem da pintura – uma imagem que foi produzida segundo o código da
fotografia.
353
A poética do sem foco refere-se a um fazer e pensar que tem como objeto imagens
embaçadas, que não são imediatamente visíveis, buscando oferecer um contraponto
à onipresença da nitidez entendida como um valor nas imagens cada vez mais
explícitas que nos cercam. Trata-se de imagens que tem como fundamento a mancha
e não a linha, que traduzem uma sensação de vulnerabilidade frente ao imprevisível
e o inesperado.

O interesse na exploração de imagens sem foco tem conexão com minha experiência
de não enxergar bem e usar óculos desde criança. Ao invés de ser uma limitação, a
dificuldade visual me tornou consciente das obscuridades presentes no ato de ver.

As imagens sem foco pretendem alcançar aquilo que Rancière (2017) qualifica como
um “deslocamento”: mudar nosso olhar e a paisagem do possível. Ao contemplar o
sem foco, o observador se torna um co-criador das imagens, se compromete
juntamente com o artista na invenção de um mundo visual mais pleno de significados.

Este trabalho se insere no âmbito da discussão sobre a criação de imagens a partir


de fotografias, apresentando um outro referencial, pelo qual a pintura a partir de
imagens fotográficas não precisa ser, necessariamente, nítida. Partindo-se da
imagem criada no processo fotográfico representada pelo negativo, são abertas
possibilidades de criação de imagens com recursos da pintura que transcendem a
imitação. Nesse sentido, a elaboração conceitual e prática de Revelações representa
uma indagação sobre as imagens que o negativo pode revelar, mais especificamente,
com a utilização de técnicas e recursos pictóricos.

O referencial do sem foco

Imagens sem foco não são abstratas, contêm representações do mundo. Mas,
diferentemente de imagens nítidas, não são delineadas com precisão. As figuras
ultrapassam os limites de seus contornos, aparecem como manchas e borrões e não
podem ser identificadas facilmente. Nelas, a relação figura-fundo é atenuada e as
cores aparecem opacas, menos brilhantes, nubladas, como que encobertas por uma
névoa.

354
Nesta parte, serão destacadas algumas características das imagens sem foco,
importantes para a constituição do referencial do sem foco, que acompanhou a
realização das experiências pictóricas de Revelações.

Não há intenção de apresentar um levantamento exaustivo dos aspectos do sem foco,


nem de relacionar um conjunto coeso e coerente de características. Tampouco, a
ordem de apresentação é indicativa de relevância. A busca é pela identificação de
facetas que contribuam para esclarecer a complexidade do sem foco e apoiem a
reflexão conceitual de Revelações.

O uso de manchas na elaboração de imagens que visam traduzir sensações


vivenciadas pelo artista e não reproduzir a aparência fidedigna da natureza é uma
característica do pitoresco, teorizado por Alexander Cozens (1717-1786) no
Romantismo. No pitoresco, a natureza fornece os estímulos externos que,
convertidos pela subjetividade, são transmitidos e expressos por meio de manchas
pelo artista (Argan, 1992).

As manchas não visam recuperar a noção da figura inicialmente retratada, mas


buscam a experiência subjetiva singular experimentada pelo artista no contato com
o objeto real original, naquilo que ele tem de particular. O artista não se limita à mera
contemplação da natureza, mas procura captar o sentimento geral – de alegria, calma
ou tristeza – que os múltiplos elementos de determinada paisagem lhe transmitem e
que expressa por meio de um conjunto de manchas diversas, mas relacionadas entre
si (Argan, 1992).

Confiança no observador

As manchas também foram utilizadas por Gerhard Richter (1932-), que utiliza como
recurso pictórico uma técnica esfumaçada para retirar o excesso de informação,
aquilo que é excessivo, ou não importante na imagem.

Para o pintor alemão, que realizou pinturas semelhantes a fotografias desfocadas, as


manchas e borrões oferecem mais possibilidades ao olhar do espectador, ampliando
a percepção:

Eu nunca vi algo faltando numa tela borrada. Ao contrário: pode-se ver


muito mais coisas do que em uma imagem nítida. Uma paisagem

355
pintada com exatidão nos força a ver um número determinado de
árvores claramente diferenciadas, enquanto que numa tela borrada
você pode perceber tantas quanto quiser. A pintura é mais aberta
(RICHTER, 2009: 81, tradução livre do original, destaque meu).

As pinturas de William Turner (1775-1851), representante do pitoresco, além de


expressarem, com seus elementos poucos delineados, a subjetividade do artista e as
sensações por ele vivenciadas ao entrar em contato com as cenas ou paisagens,
elemento destacado por Argan (1992) - oferecem ao espectador uma oportunidade
para o exercício da imaginação.

A esse respeito, Olafur Eliasson comenta sobre a obra de William Turner,


especialmente de sua última fase, que elas revelam uma relação de confiança no
espectador:

Nos seus trabalhos mais abstratos, Turner revelava uma crença de que
o observador seria capaz de criar a sua própria narrativa. Isso é muito
radical e diz respeito a acreditar que as pessoas são capazes de ver.
No mundo atual, se você olha nos museus pelo mundo, essa noção de
confiança é muito subestimada. Frequentemente, as instituições
tratam os observadores como se fossem cegos, como se não pudessem
ver nada (The Guardian, 2014, tradução livre do original, destaque
meu).

A confiança no observador implica o reconhecimento de que o observador, ao


contemplar o sem foco, se torna um co-criador das imagens, se compromete
juntamente com o artista na invenção de um mundo visual mais pleno de significados.
O tempo de criação da obra se prolonga até o momento de usufruto da imagem pelo
observador, não se esgotando no ato do artista.

O visível no invisível

A indefinição, aquilo que não está plenamente visível, que não permite a imediata
identificação dos elementos retratados, dando margem a que o observador possa
imaginar também é perseguida no trabalho do fotógrafo Evgen Bavcar (1946-), que
recusa a limitação do olhar definitivo, preferindo imagens que transmitam incerteza
e dubiedade, propondo-se:

356
a refletir o infinito das escuridões do lado de Psyché – necessidade que
se impõe ao olho, órgão de distância – e ao mesmo tempo de lembrar
os espectadores do olhar ferido de Eros, como símbolo da cegueira
transcendental que nos concerne a todos, mesmo no mundo todo
visual (Bavcar, 2015a).

Da mesma forma que no caso de Turner e Richter, pode-se considerar que uma
relação de confiança - de que o observador pode ver, inclusive, o invisível que se
encontra no visível - também se revela na obra de Bavcar. Esse artista é generoso ao
apresentar fotografias que propiciam diversas leituras e oferecem a oportunidade
para diversas apropriações e reflexões “para que não fira[m] o olhar petrificado da
Górgona moderna” (Bavcar, 2015a).

Bavcar (2015) afirma que o invisível se expande à medida que se expande o visível,
indicando que a mera aparência das coisas mais esconde do que mostra. O aspecto
do invisível, que Bavcar procura explorar em seu trabalho, retoma a noção de
subjetividade como característica da imagem sem foco. Embora não possa ser visto,
nem por isso o invisível deixa de ser sentido, tanto pelo produtor da imagem, quanto
pelo observador.

O nevoeiro

Um último aspecto a ser destacado a respeito das imagens sem foco, diz respeito à
sua aparência enevoada, como se uma neblina pairasse sobre elas. A imagem do
nevoeiro é usada por Wisnik (2018) para relacionar uma série de eventos, que
considera como marcos iniciais da época contemporânea, que nasce sob o signo da
falência e da destruição: a explosão das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki,
em 1945; a demolição do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em Saint-Louis, em 1972;
o acidente nuclear de Chernobyl, na antiga URSS, em 1986, que espalhou uma nuvem
de radiação na atmosfera; a demolição do muro de Berlim, em 1989; e a destruição
das Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001; entre outros1. Do
Brasil, ele cita a implosão da via elevada da Perimetral Norte, no Rio de Janeiro, em

1Acredito que a atual pandemia da COVID-19, cuja transmissão ocorre pela circulação do vírus pelo ar, também
pode ser incluída nessa relação.
357
2013, e o incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida em São Paulo,
em 2018.

Segundo o autor, embora as imagens relativas a esses eventos sejam nubladas, não
oferecendo uma distinção nítida dos momentos que ilustram, elas são reveladoras do
real da atualidade, que tem como elemento distintivo uma crescente imaterialidade:
o consumismo e acúmulo desenfreado de objetos, cujo valor não se relaciona à sua
utilidade; a acumulação e circulação excessivas de informações e imagens virtuais no
cyberespaço (na nuvem), que mais obscurecem do que esclarecem a compreensão
dos acontecimentos; e o desenvolvimento de um mercado de produtos financeiros
(derivativos) que não mais tem relação com bens e relações da produção material,
mas são estabelecidos com base nas próprias operações financeiras.

Nesse contexto, o autor defende que, em termos estéticos, a referência imagética da


contemporaneidade é o nevoeiro, o nublamento, a indefinição, em contraposição ao
que denomina a noção moderna de busca do real, do “assalto à coisa em si”2. Para
Wisnik, é “a noção de paixão pelo real que orienta o sec. XX (...) que é atacada pelo
mundo da nuvem, no qual estamos imersos” (2018: 183).

Segundo Wisnik (2018), a noção moderna de busca pelo real representou uma ruptura
com o sistema binário, no qual a representação se contrapõe à realidade e se
manifestou por sete elementos: (1) pela abolição da diferença entre arte e vida; (2)
pelo fim do ilusionismo, tornando aparente o próprio artifício da construção
artística; (3) pela noção de tempo ampliado e (4) pela abolição da perspectiva, que
embutem o reconhecimento do fracasso da ideia de progresso e da promessa de
futuro radioso; (5) pelo desenvolvimento da arte abstrata, que não remete a qualquer
referente externo; (6) pela progressiva perda da aura da obra de arte; e (7) pela
estética da formatividade, pela qual o processo de criação se confunde com a própria
produção da obra3.

2 Wisnick, 2018.
3 “[C]riação, invenção ou ideação não se separam do processo concreto de formalização. Trata-se, portanto, de um
fazer que não copia nem executa algum modelo ou projeto anteriormente idealizado, mas que, enquanto faz,
inventa o por fazer e o modo de fazer. (...) [É], antes de mais nada, um processo ativo e conflituoso de negociação
com a resistência do mundo” (Wisnik, 2018: 181).
358
Embora a questão mereça uma investigação mais aprofundada, os elementos
apresentados por Wisnik (2018), como sendo os meios pelos quais a busca pelo real
modernista opera, podem não ser necessariamente incompatíveis com a imagem do
nevoeiro. O que talvez se possa afirmar é que a busca pelo real modernista - caso ela
envolva uma aspiração por uma maior concretude - não faz sentido, dada a
imaterialidade, o caráter incorpóreo que o nevoeiro evoca.

Nas experiências pictóricas de Revelações, por exemplo, os elementos (3), (4) e (7)
estão presentes. O tempo é expandido porque, considerando a noção de confiança
no observador do sem foco, o processo de criação não se esgota no ato do artista,
mas se estende até o momento de usufruto da obra. A perspectiva é abrandada
porque a relação figura e fundo não é claramente discernível. E, a criação da obra,
excetuando-se o esboço inicial, ocorre concomitantemente com a sua produção.

A série Revelações

Revelações refere-se a experiências pictóricas à tinta a óleo, elaboradas a partir de


imagens de negativos. Considerando as etapas do processo fotográfico, corresponde
à criação de imagens que ocorreria - como evidenciado pela sua denominação - na
fase da revelação.

Segundo González Flores (2011), na fotografia, para a criação de imagens nessa fase,
são utilizados os recursos da sintaxe de impressão. A autora afirma que a sintaxe de
impressão se concentra no processo de passagem de informação do negativo para o
suporte, no qual podem ser criadas infinitas imagens diferentes e não apenas cópias
da imagem original. Considera que o negativo contém apenas uma imagem em
potencial, um ‘vir a ser’ imagem (González Flores, 2011). Dependendo das decisões
tomadas no processo de impressão, as imagens resultantes da revelação podem
assumir diferentes configurações.

O reconhecimento da sintaxe de impressão, evidencia a possibilidade de haver


criação na fase de revelação da fotografia. Tal possibilidade foi reconhecida desde os
primórdios da fotografia pelos pictorialistas, que tinham como objetivo a criação de
imagens que representassem a realidade única do autor, tendo como referência os
padrões da pintura, que representavam a noção do artístico daquele momento
(González Flores, 2011).
359
Revelações é um experimento que explora o potencial imagético do negativo
fotográfico. Da mesma forma que o trabalho dos pictorialistas, ocorre na fase da
sintaxe de impressão. Entretanto, diferentemente desses fotógrafos, que faziam uso
dos recursos próprios da fotografia, em Revelações são utilizados os recursos da
pintura para desenvolver o ‘vir a ser’ do negativo.

A criação de imagens foi feita com o uso de técnicas e recursos da pintura: tinta a
óleo, pincel, suporte e usando as técnicas de veladura e sfumato. Assim, o trabalho
procura explorar uma das imagens potenciais que o negativo contém e se distanciar
do predomínio de elementos técnicos do processo fotográfico na criação da imagem.

As escolhas para a realização das experiências pictóricas de Revelações serão


apresentadas a seguir, bem como as justificativas para a sua utilização.

Imagem do negativo

A utilização de imagens de negativo como referência às pinturas, já é uma escolha


que ocorreu no âmbito conceitual do sem foco. O primeiro conjunto de pinturas da
série Revelações consiste em imagens que tem como referência um mesmo negativo
de um retrato em preto e branco (figura 1).

Figura 1: Negativo utilizado para o primeiro conjunto de pinturas. Fonte: arquivo pessoal

O negativo constitui um elemento visível, que lembra a ocorrência de um processo–


a revelação – que permanece oculto, invisível e fora da visão quando se olha uma
360
fotografia revelada. As imagens potenciais contidas no negativo dependem da
participação ativa do artista para que seu conteúdo se torne visível. Nesse sentido se
assemelham às imagens sem foco, as quais dependem de um observador, que é
também criador, para revelarem seu conteúdo.

Assim, a imagem do negativo também é sem foco: guarda apenas uma vaga lembrança
com o objeto retratado, apresenta manchas e borrões. Constitui um processo
introspectivo que envolve a criação de uma imagem a partir dos indícios visuais que
vão sendo paulatinamente identificados.

A imagem do negativo é composta de manchas, que são percebidas vagarosa e


independentemente e somente fazem sentido quando vistas como um conjunto. É
possível que, a cada novo olhar, elementos inéditos sejam descobertos, possibilitando
novas percepções. As manchas, que independentemente não tem significado, em
conjunto, permitem o desvelamento paulatino da figura ao olhar. Nesse sentido, o
desenvolvimento da pintura, no referencial do sem foco, ocorre a partir de um
assenhoreamento gradual da imagem que vai sendo, aos poucos, adquirindo a
conformação da pintura.

Título da série

O título da série remete ao processo fotográfico, em especial, para o momento de


criação artística na sintaxe de impressão, referido por González Flores (2011), que
ocorre com a transformação do negativo em fotografia.

Embora o próprio negativo represente uma imagem – estranha, nebulosa, que guarda
pouca relação com a fotografia que dará origem - ele precisa ser processado pela
revelação para que a imagem objeto da fotografia apareça.

Observe-se que as fotografias que deram origem aos negativos utilizados em


Revelações não foram tiradas com qualquer pretensão autoral, mas sim documental.
São fotografias contendo pessoas e cenas de âmbito doméstico: instantâneos de
encontros familiares, retratos, feitos com o único objetivo de guardar uma lembrança
desses momentos.

361
Papel do desenho

Em Revelações, o desenho não trata da consolidação do planejamento da execução,


que permite a antevisão das etapas sucessivas do trabalho a ser desenvolvido, mas
apenas de um simples esboço, com referências sobre o posicionamento da(s) figura(s)
e suas partes.

Nesse sentido, considera-se que Revelações diz respeito mais propriamente a um


processo pictórico do que simplesmente às obras dele resultantes. Em Revelações
ocorre o que Wisnik (2018) denomina a estética da formatividade: a concepção da
imagem que está sendo pintada - descontados o posicionamento geral da figura e
seus contornos do esboço inicial – não é prévia: ocorre simultaneamente ao processo
de sua criação. A partir da imagem do negativo, é elaborada uma imagem, cujo único
referencial são as decisões tomadas ao longo de sua execução.

Embora a percepção final da imagem em Revelações deva ocorrer à distância, na visão


do todo, a pintura é executada a partir da identificação de cada mancha
isoladamente.

Diálogo da tradição com a contemporaneidade

Em virtude de a percepção da imagem revelada pelo negativo ser paulatina, uma das
técnicas utilizadas para a pintura de Revelações é a veladura, que consiste na
sobreposição de camadas finas de tinta.

A veladura é uma técnica que permite a realização de experiências com a imagem


que está sendo construída. Possibilita que, a cada camada de tinta aplicada, novos
aspectos percebidos da imagem possam ser incorporados. Em uma camada de tinta
pode-se destacar determinada mancha, que num segundo olhar pode não ser
considerada mais tão importante. O registro acumulado das manchas destacadas nas
diferentes camadas, confere ao final, uma certa densidade à pintura, embora a
imagem pintada continue a ser tão plana como a original.

Na veladura, as diferenças de tom claro e escuro são obtidas por meio da variação na
concentração da tinta adicionada à mistura com o óleo de linhaça e não com a
utilização de misturas com branco ou preto, respectivamente.

362
A atmosfera enevoada da imagem foi alcançada com a utilização da técnica de
sfumato para reduzir, senão eliminar, os limites muito definidos entre as partes claras
e escuras da pintura (figuras 2 e 3).

Figura 2: Revelações I, 2020, 29,7 x 21,0 cm. Fonte: arquivo pessoal

Figura 3: Revelações II, 2020, 29,7 x 21,0 cm. Fonte: arquivo pessoal

363
Considerações finais

Revelações é uma série de pinturas a óleo elaboradas a partir da imagem de um


negativo fotográfico desenvolvida a partir da poética do sem foco. Mais do que um
produto acabado, a série constitui um processo de realização, pois existe a
necessidade da decifragem do negativo para a definição da imagem que se quer
elaborar, criada por camadas finas e sucessivas de tinta. À cada novo olhar e à cada
nova camada de tinta, novas facetas da imagem vão aparecendo.

Em Revelações estão presentes as características do sem foco: as imagens são


construídas a partir de manchas e borrões de cores embaçadas. Nelas procura-se
revelar o invisível da imagem, aquilo que não está clara e facilmente visível, confiando
que o espectador irá fazer uso de sua imaginação para decifrá-la, a partir dos seus
indícios visuais.

São imagens embaçadas, que traduzem uma certa sensação de vulnerabilidade frente
ao imprevisível e o inesperado e, ao mesmo tempo buscam o aguçamento dos
sentidos, em contraposição à onipresença embotadora da nitidez tida como um valor
que nos cerca e revelam o que Wisnick (2018) considera ser o real da
contemporaneidade.

Interessante notar que, justamente a técnica que no Renascimento conferiu maior


realismo à pintura mimética, é o recurso que em Revelações confere o caráter
enevoado, irreal à pintura. Para a obtenção de tal efeito, foi importante a utilização
da cor branca na mistura para obtenção dos tons mais claros. A adição do branco na
mistura com a tinta colorida, além de alterar seu tom, lhe confere um aspecto opaco.
Aplicada com sfumato, gera um efeito enevoado, imaterial.

A utilização das técnicas de veladura e sfumato no processo pictórico de elaboração


de Revelações revela que, embora a imagem sem foco seja borrada, esse borrão não
resulta necessariamente de um ato gestual espontâneo. O sem foco é uma atmosfera
criada mediante a aplicação de finas camadas de tinta, com a utilização de técnicas
tradicionais da pintura a óleo. Em Revelações há um diálogo entre o tradicional e o
contemporâneo, na medida em que técnicas tradicionais da pintura são utilizadas
para a realização de uma imagem que surge no processo fotográfico e evoca o
nevoeiro, referencial da contemporaneidade.

364
Referências

ARGAN, G. C. (1992): Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras


BAVCAR, E. (2015): Entrevista: O verdadeiro valor do tempo in Luz e Sombra em Bavcar,
novembro (mimeo)
BAVCAR, E. (2015a): O espelho dos sonhos in Luz e Sombra em Bavcar, novembro (mimeo),
GONZÁLES FLORES, L. (2011): Fotografia e pintura: dois meios diferentes? São Paulo:
Martins Fontes
The GUARDIAN (2014): Turner Tate show most radical daring work,
https://www.theguardian.com/artanddesign/2014/sep/08/turner-tate-show-most-radical-and-
daring-work, acesso em 18 abril 2018
RANCIÈRE, J. (2017): A imagem intolerável in O Espectador Emancipado. São Paulo: WMF
Martins Fontes
RICHTER, G. (2009): Notes, 1964-65 e Interview with Irmeline Lebeer, 1973 in Text,
Writings, Interviews and Letters 1961-2007. Londres: Thames & Hudson
WISNIK, G. (2018): Dentro do Nevoeiro. São Paulo: Ubu Editora

Mini Currículo

Marianne Nassuno
Mestranda em Artes Visuais pela UnB e doutora em Sociologia pela mesma instituição. Participou do
2º Salão de Artes Degeneradas, Atelier Sanitário, 2022, do 12º Salão de Arte Contemporânea de São
Bernardo do Campo/SP, 2019, e realizou duas exposições individuais: “Instantâneo”, 2016, e
“Reminiscências”, 2012. Publicou os textos “Irrealidades: uma aproximação ao difuso no espaço” e “Um
olhar para a imagem sem foco”. E-mail: mnassuno@gmail.com

365
MEMÓRIAS E AFETOS: UM PENSAMENTO POR IMAGENS

MEMORIES AND AFFECTS: A THOUGHT THROUGH IMAGES

Kassius Brunno Souza


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

O pensamento por imagens, proposto por Didi-Huberman sobre Aby Warburg e seu Atlas
Mnemosyne, é lido aqui como um desdobramento dos conceitos de memória, imagem e
representação, envolvendo também Bachelard e suas poéticas. Este artigo percorre também
os afetos e afetações experienciados por um referencial imagético-narrativo, a história de
William’s Doll, um conto de Charlotte Zolotow, além de trazer à tona como as imagens
produzidas por artistas-pesquisadores atravessam as imagens na cultura visual, dos meios
de consumo, e também das normatividades de gênero – o menino que brinca de boneca.

Palavras-chave: Memórias, Afetos, Cultura Visual, Infância.

Abstract

Though by images, proposed by Didi-Huberman about Aby Warburg and his Atlas
Mnemosyne, is read here as an unfolding of the concepts of memory, image, and
representation, also involving Bachelard and his poetics. This article also explores the
affections and affectations experienced by an imagery-narrative reference, the story of
William’s Doll, a tale by Charlotte Zolottow, in addition to bringing to light how the images
produced by artist-researchers cross the images in the visual culture, of the consumption,
and of gender norms – the boy who plays with dolls.

Keywords: Memories, Affections, Visual Culture, Childhood.

Memória e Afetos

Na mitologia grega, a deusa Mnemosyne era a personificação da memória. Além


disso, era também responsável pela linguagem, creditada com a invenção das
palavras e memorização para preservar a história. Era também mãe das Musas, as
nove irmãs que inspiravam todas as artes, nascidas após um romance de nove dias
com Zeus. Esses mitos, outras fábulas, outros contos, pode nos remeter ao ‘faz-de-
366
conta’, às histórias que escutávamos quando crianças, contadas geralmente pelos
mais velhos, os mais sábios, e que nos arrebatavam para um universo distante, que
cada um criava através da sua própria imaginação. Histórias de criança ou não, nossa
inventividade quando criançolas não tinha limites e nos permitia mergulhos
profundos e voos espaciais, tudo em frações de segundos.

Ao falarmos da brincadeira de criança, podemos falar talvez sobre o lúdico, e todo


esse momento de criação e de devaneios, que por meio de um recreio na escola, ou
mesmo uma ‘ciranda-cirandinha’, possibilita a aprendizagem, trazendo para a
criança o mundo real e alcançável. E por meio desses momentos fantasiosos, ela pinta
e cria sua realidade, refletindo em sua vivência social, em suas interpretações,
invenções e até em seus duelos durante o crescimento e desenvolvimento para a
juventude. Sobre o lúdico e a aprendizagem:

Por meio da brincadeira, a criança elabora conceitos, constrói


conhecimentos, produz e reproduz modelos historicamente datados.
Os conhecimentos produzidos e os conhecimentos repassados para as
crianças, assimilados por meio do brincar, podem auxiliá-las a
aumentar seu repertório de conhecimentos, como os corporais, os
cognitivos, os sociais, entre outros. (LEAL, 2003, p.32).

Segundo Bachelard (2008), a meninice é certamente maior que a própria existência.


Para sentir, através de nossa vida, o afeto que sentimos pela nossa primeira casa, por
exemplo, o sonho é mais intenso que as convicções. É o dom do espontâneo que fixa
as mais distantes saudades. A infância mantém-se viva e poeticamente proveitosa
somente no plano do devaneio, e não no plano dos acontecidos. “Por essa infância
permanente, preservamos a poesia do passado” (p.35), diz o autor.

As imagens nascidas de um devaneio primário, de uma brincadeira de corda, de


elástico, de esconde-esconde, essas imagens da infância, feitas por criança, são
manifestações da infância permanente. Falam da continuidade dos devaneios da
grande infância e dos devaneios do poeta – poeta, aqui, a poética da criança
(Bachelard, 1996). É como uma amálgama entre a criança e o poeta, a imaginação e a
poesia. Nessa existência poética, é aí que se unem mais intimamente a imaginação e
a memória. É nesse laço que o ser infância liga o real ao imaginário, vivendo com toda
imaginação as imagens da realidade.

367
Ainda sobre a imaginação:

Para quem quer saber e, nomeadamente, para quem quer saber como,
o saber não oferece nem milagre, nem descanso. É um saber sem fim:
a interminável aproximação do acontecimento e não a sua apreensão
numa certeza revelada. Não há ‘sim’ ou ‘não’, ‘sabemos tudo’ ou
‘negamos’, revelação ou véu. Há um imenso véu – devido à própria
destruição, bem como à destruição levada a cabo pelos nazis dos
arquivos da destruição-, mas que se dobra, que levanta uma ponta e
nos perturba de cada vez que um testemunho é ouvido por aquilo que
diz através dos próprios silêncios, de cada vez que um documento é
visto por aquilo que mostra através das suas próprias lacunas. É por
essa razão que para saber também é preciso imaginar. (DIDI-
HUBERMAN, 2012, p.112-113).

Quantas narrativas foram criadas durante as brincadeiras, enquanto se escondia para


não ser achado, enquanto pulava para não cair? Cada criança em seu mundinho
particular. Para Bachelard (1996), no devaneio solitário é possível contar tudo para
nós mesmo. Nossas inventividades e ideias fazem parte da construção de quem um
dia seremos, são como bases de nossas construções como indivíduos sociais, dotados
de sensibilidade, inteligência e vontades.

Ao sonhar com a infância:

(...) regressamos à morada dos devaneios, aos devaneios que nos


abriram o mundo. É nesse devaneio que nos faz primeiro habitante do
mundo da solidão. E habitamos melhor o mundo quando o habitamos
como a criança solitária habitas as imagens. Nos devaneios da criança,
a imagem prevalece acima de tudo. As experiências só vêm depois. Elas
vão a contravento de todos os devaneios de alçar voo. A criança
enxerga grande, a criança enxerga belo. O devaneio voltado para a
infância nos restitui à beleza das imagens primeiras. (BACHELARD,
1996, p.97).

Talvez, essas imagens, as imagens das recordações, das memórias, que florescem do
âmago da infância não sejam reminiscências fidedignas, tão verdadeiras quanto
realmente podem ter acontecido. Pode a memória ser fruto da imaginação? Então,
qual seria o limite entre a imaginação e a palavra? A história contada através de
acontecimentos reais, torna-a mais valiosa que as histórias e fábulas vindas da pura
e criativa fantasia de uma criança? “Pode o mundo ser tão belo agora?” (BACHELARD,
1996, p.97).
368
Atlas Mnemosyne

Aby Warburg (1866-1929) foi um historiador de arte e teórico cultural alemão. Fundou
a Biblioteca Warburg, que mais tarde, em 1944, foi transformada no Instituto
Warburg, localizada na Universidade de Londres, Inglaterra, e, de acordo com o
próprio site1, é um dos principais centros do mundo para estudar a interação de
ideias, imagens e sociedade. Segundo Samain (2011), a palavra Mnemosyne está além
de sua grafia gravada no interior da Biblioteca de Hamburgo, assim como também
não somente remete à deusa da memória, pois seria também o nome dado à uma de
suas grandes obras (e paixão) que Warburg, desde 1924, se dedicou na “construção”
– um Atlas de imagens2. De acordo com Didi-Huberman (2013), historiador da Arte e
filósofo francês, principal crítico da obra de Warburg, o Atlas Mnemosyne para
Warburg, segundo seu próprio anseio, é “uma história de Arte sem palavras” ou,
ainda, uma “história de fantasmas para pessoas adultas” (p.72).

O Atlas Mnemosyne, obra inacabada de Warburg, pode ser lido como o pensamento
do seu próprio criador, tendo dedicado o final de sua vida a expor em painéis –
imagens em séries, a série das séries – de seu pensamento. Então, para Didi-
Huberman (2013), não se tratava apenas de recapitular uma imagem, como maneira
de concluí-la, mas de desdobrá-la em todos os sentidos, a fim de descobrir
possibilidades ainda não percebidas em suas significâncias e interpretações.

A escolha das imagens, do número de painéis e o arranjo entre elas, tudo estava em
constante mudança – por isso Warburg colocava as imagens nesses painéis com
prendedores, não eram fixadas ou coladas, permitindo, assim, sua mobilidade e
fluência de pensamento entre si, entre outros pensamentos, entre outras
concordâncias. Segundo Reinado e Filho (2019), para Warburg era importante
documentar o processo, criar uma memória, enquanto a sua criação encontrava seus
próprios arranjos e layouts definitivos. Para Didi-Huberman (2013), Warburg havia
compreendido que devia renunciar a fixar as imagens, assim como um filósofo

1
Site The Warburg Institute: https://warburg.sas.ac.uk/about-us
2
Atlas Mnemosyne é uma obra inacabada de Aby Warburg, construída entre os anos de 1924 e 1929, interrompida
pela morte de seu criador. Trata-se de 63 painéis com mais de 2000 fotos, que pode ser lido como o pensamento
fragmentado de seu autor com imagens da História da Arte, fotografias da sociedade, e desenhos, gravuras de signos
e símbolos da Cosmologia, entre outras visualidades.
369
precisa saber renunciar a fixar suas opiniões. O pensamento é uma questão de
plasticidade, de mobilidade, de metamorfose.

Trabalhando para “abrir a função” memorativa própria das imagens da cultura


ocidental, Didi-Huberman (2013) nos diz que o próprio Warburg afirmava que, desde
o início, havia tentado um trabalho de desdobramento:

(...) pude reunir o material para um atlas de imagens que, por sua
disposição em séries, desdobrará a função dos valores expressivos da
Antiguidade, originalmente imprimidos através da representação da
vida em movimento interno ou externo. Ao mesmo tempo, esta será a
fundação de uma nova teoria da função memorativa das imagens do
homem [eine neue Theorie der Funktion des menschilchen
Bildgedächtnisses]. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.389).

Mnemosyne carrega as características de uma linguagem específica e da


investigação autobiográfica do autor. Para Didi-Huberman (2013, p.390), poderíamos
considerar como um autorretrato fragmentado, com “algumas centenas” de imagens
afixadas nas dezenas de telas em que o pensamento de Warburg – a história mesma
desse pensamento – se reconhece nas circulações, nos relacionamentos entre si. A
real precisão de contestar com o mundo formal de saberes significativos já
determinados, provenham eles do passado ou do presente, caracteriza, para cada
artista preocupado em proclamar seu próprio estilo, uma crise decisiva.

No campo das Artes, artistas-pesquisadores que desenvolvem seus trabalhos e suas


pesquisas a partir de investigações e narrativas autobiográficas tendem a abranger a
imaginação e as afetações vividas, as experiências e vivências, que podem retomar
até a infância, a relação imaginativa e criativa que remetem às lembranças e
memórias pertencentes ao simples ato de rememorar – não que para Warburg for
necessária uma volta à sua infância apenas para mergulhar nos seus fantasmas
imaginários.

As memórias, as lembranças, as vivências, essa construção imagética presente nas


histórias de cada criança, de cada artista, de cada pesquisador. E mesmo assim, por
todo esse devaneio na tentativa de explicação da memória e seus adjetivos, uma
questão chama atenção para quando relacionamos memória, imagens e realidade:
alguma vez, ima imagem da imaginação está próxima da realidade? Construir
imagens da memória se relaciona de que forma com a intimidade, os afetos e as
370
experiências realmente vividas? E como a imagem de um menino brincando com uma
boneca desperta juízos e julgamentos, afetos e desafetos, identificação e
estranhamento, para com que a vê?

A história de nossa infância, de acordo com Bachelard (1996), não é psiquicamente


datada. As datas são reflexões que se baseiam na experiência; vêm dos outros, de
outro lugar, de um tempo diverso daquele que se viveu. Como se nossas memórias,
nossas infâncias, não seguissem um caminho linear, como se não estivessem em uma
prateleira em caixinhas datadas cronologicamente. Todo o devaneio não é jus apenas
ao poder e capacidade da imaginação. Essa não-linearidade nos permite as
incertezas da infância, os mistérios da meninice, assim como as possibilidades da
poética da memória em sua liberdade de realidade ou de realização.

Em relação às caixinhas das nossas memórias:

Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e


guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na casa nova, retornam
as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da
Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações
de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção.
Algo fechado deve guardar as lembranças, conservando-lhes seus
valores de imagens. (...) Evocando as lembranças da casa, adicionamos
os valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos
sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais
que a poesia perdida. (BACHELARD, 2008, p.25).

Com isso, podemos retomar o pensamento a respeito de artistas-pesquisadores com


viés da autorrepresentação, da auto/biografia, visto que nesses devaneios teóricos
sobre a memória, da infância lúdica, das lembranças não-lineares e despretensiosas
vindas de uma simples brincadeira de criança, tem-se pesquisas com abordagens e
experimentações auto ficcionais usadas nas práticas artísticas que permitem
percorrer esses momentos primários, retomam as casas vividas, os quintais
brincados, as memórias sobreviventes, e os objetos e afetos que atravessam e
influenciam na formação desse artista e desse pesquisador. Desde as recordações
contadas, histórias relembradas, todas essas imagens que se formam a partir da
palavra cantada ou até mesmo dos álbuns de fotografias da famílias e outros registros
físicos, tem-se na materialidade da pesquisa que se forma, que se constrói,

371
constantes processos e desdobramentos, passíveis de alterações e/ou
desencantamentos, assim como toda fábula infantil.

Um pensamento por imagens

Após essa exposição a respeito da memória, da infância, do Atlas Mnemosyne, da


poética do espaço e do devaneio, volto o olhar agora para os estudos visuais, para
nos ater ao que quer nos dizer as imagens. Para Godard (1974), “Não existe imagem
simples. Qualquer imagem cotidiana faz parte de um sistema, vago e complicado,
pelo qual”, continua ele, “habito o mundo e graças ao qual o mundo me habita” (Jean
Luc-Godard, filme Aqui e em Qualquer lugar, 1974).

Podemos retomar alguns questionamentos feitos por Samain (2011), após falar sobre
Warburg e seu pensamento por imagens, contextualizado, agora, na
contemporaneidade com os adventos da tecnologia, das mídias sociais, do turbilhão
de imagens diárias que olhamos e que nos olham, assim como das imagens que
produzimos.

Nesse contexto:

Daí, esta questão: como resistir e não apagar as chamas vivas contidas
nas imagens de nosso cotidiano, nesse momento de dilúvio imagético
que nos leva, nos arrasta, nos cega, nos silencia e nos afoga? Como
fazer reviver as imagens dentro de nós? Como reinvesti-las de seus
autênticos valores de uso? (SAMAIN, 2011, p.40).

Pesquisas e produções auto/biográficas trazem imagens, imagens de referência,


imagens de estudos, imagens produzidas, imagens como resultados dos
pensamentos e das práticas artísticas, e que podem dialogar com o que aponta Didi-
Huberman (2012) sobre imagem e palavra:

A dialética deve, assim, ser entendida como uma colisão


desmultiplicada de palavras e de imagens: as imagens chocam entre si
para que surjam palavras, as palavras chocam entre si para que surjam
imagens, as imagens e as palavras entram em colisão para que o
pensamento advenha visualmente. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.177)

372
FIGURA 1 – William’s Doll by Charlotte Zolotow. Foto por Arlee Sebryk (Small Potatoes).

Por mais que nossas lembranças fazem parte de quem somos, ou de como nós
estamos, precisamos moldar a criança de ontem com o adulto de hoje, e tornar os
sentimentos, as lembranças, os sonhos, imagens representáveis, imagens que nos diz
algo, com capacidade de ir além do visível, e se tornarem, também, dizíveis. Se
enquanto vemos uma imagem de um menino que abraça uma boneca (FIGURA 1), e
apenas olhamos a imagem como imagem, como ela se apresenta como imagem em
si, esquecemos de nos preocupar com a voz embutida nela, com o que ela quer nos
dizer, com o que ela pode se tornar a ser, como um veículo de informação,
mensagem, apreciação e de correspondências. Isto é, a linguagem usada nada mais
representa a forma em si, porém o que se quer dizer está além da imagem, está além
da representação, mexe com padrões, com as instâncias moldadas do senso comum.
Para Rancière (2012, p.146), “o irrepresentável existe em função das condições às
quais um tema de representação deve se submeter para entrar em um regime
específico de relações entre mostração e significação”. Enquanto isso:

Quando todas as palavras param e todas as categorias falham – quando


as teses, refutáveis ou não, se encontram literalmente desconcertadas
-, aí pode surgir uma imagem. Não a imagem-véu do fetiche, mas a

373
imagem-dilaceramento que deixa entrever um fragmento do real.
(DIDI-HUBERMAN, 2012, p.108).

Em 1972, Charlotte Zolotow3 presenteia o mundo com um livro encantador, sendo


um dos primeiros a abordar estereótipos de gêneros não tradicionais no universo
infantil – o livro William’s Doll. O livro conta a história de um menino chamado
William, que queria uma boneca para cuidar. Segundo a resenha encontrada na
contracapa do livro, William, o personagem principal, queria mais do que tudo, uma
boneca. E apesar de escutar um vizinho chamar de sissy (maricas, em inglês), ou
mesmo ouvir repreensões do pai e até do irmão, William não desiste do seu sonho.
Então, um dia, ele recebe esse presente tão esperado e descobrimos o motivo de
tamanho desejo: William queria a boneca para aprender a ser um pai amoroso no
futuro.

A leitura desse livro realmente é nos coloca diante de uma sensibilidade e


profundidade que compõe toda a narrativa de um menino alvo de um padrão
normativo esperado por uma sociedade estereotipada. Contrário a isso, a fotógrafa
e pedagoga Arlee Sebryk4, conta em seu site a sua experiência a partir da leitura deste
livro juntamente com seus 03 filhos (meninos). E através de um ensaio (lindo)
fotográfico, ela remonta a história infantil através do olhar majestoso das crianças.

Imagens como as fotos desse ensaio podem ser lidas como afetuosas ou como
aberrações. Tudo depende de quem as vê e as lê. Mas o que teria de tão
desconcertante nessas fotos que poderia gerar alguma repreensão, punição, ou
consequências mais severas, sendo apenas uma criança abraçando uma boneca,
nitidamente dando carinho, atenção, cuidados como o alimento e o aninhar?

Para a realização desse ensaio, a fotógrafa Arlee, em seu site, menciona que
aproveitou o momento antes da soneca com os filhos para a contar a história de
William, juntou três bonecas e alguns brinquedos que pudessem ajudar na
interpretação da leitura. Ela também nos conta que seus filhos ficaram frustrados ao
ouvirem que os vizinhos do personagem William, o chamavam de apelidos maldosos,

3
Charlotte Zolotow (1915-2013) foi escritora, poeta, editora e arte-educadora estadunidense. Possui uma vasta obra
no campo da literatura infantil, com mais de setenta livros publicados.
4
Arlee Sebryk possui licenciatura em Educação Pré-escolar e é fotógrafa.
374
simplesmente por querer uma boneca. Após o encantamento e a expressividade da
autora para construir o protagonista da história como uma criança que apenas queria
cuidar e brincar, finalmente William ganha uma boneca de sua avó, mesmo depois de
seu pai ter lhe presenteado com bola de basquete, trenzinhos e outros brinquedos
comumente relacionados com brincadeiras de meninos.

A experiência de Arlee com seus filhos, após ler a história de William para eles, com
diversos outros registros5 deles cuidando e brincando com as bonecas, evidencia o
quanto a brincadeira é relevante na formação de quem somos quando adultos, assim
como na capacidade do lúdico na aprendizagem, transformando uma brincadeira em
ensinamento. Ao falar com seus filhos sobre a brincadeira – e o que se pode aprender
com ela -, Arlee diz que sentiu a necessidade de explicar também em como os bebês
precisam de amor, cuidado e atenção, e que um dia, se eles quiserem ser pais,
precisarão saber como cuidar gentilmente de seus pequeninos (FIGURA 2).

FIGURA 2 – William’s Doll by Charlotte Zolotow. Fotos por Arlee Sebryk (Small Potatoes).

De fato, hoje vemos o quanto as imagens na nossa cultura são portadoras de


mensagens que vão muito além do que está representado e visível. Para Didi-
Huberman (2012, p.89), “a imagem é feita de tudo: tem uma natureza de amálgama,
de impureza, de coisas visíveis misturadas com coisas confusas, de coisas
enganadoras misturadas com coisas reveladoras, de formas visuais misturadas com
pensamento”.

Seja um atlas de imagens da história, da sociedade, de jornais ou dos cosmos, seja a


imagem produzida de uma prática artística, ou mesmo fotos tiradas com os filhos.

5 Outros registros e o relato da fotógrafa pode ser visto em: https://mysmallpotatoes.com/2012/06/15/weekly-kids-


co-op-williams-doll-by-charlotte-zolotow/
375
Existe uma fusão entre imagem e palavra, entre representação e informação, que vai
além da técnica, da visualidade, da materialidade, e que define a contemporaneidade
e a cultura visual. O ato de ler uma imagem e interpretar sua mensagem está
diretamente relacionado com a “bagagem” que cada indivíduo carrega consigo, tem
a ver com a experiência adquirida, com as informações recebidas e interpretadas.
Provavelmente, muitos ainda vão interpretar a imagem do menino com a boneca
como aberração, como uma criança afetada e que precisa ser punida e repreendida,
porém, felizmente, outros tantos entenderão que é só mais uma criança percorrendo
sua imaginação, aprendendo com o lúdico e, não intencionalmente, educando o
adulto que virá a ser.

FIGURA 3 – William’s Doll by Charlotte Zolotow. Fotos por Arlee Sebryk (Small Potatoes).

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.


BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: Les Éditions de Minuit, 2012.
LEAL, L. L. L. O brincar da criança pré-escolar: estudo de caso em uma escola municipal
de educação infantil. Tese de doutorado. São Carlos, 2003.
376
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
REINALDO, Gabriela; FILHO, Osmar Gonçalves dos Reis. Warburg e Benjamin: o
inacabamento e a montagem como métodos de conhecimento. E-compós (Revista da
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação),v.22,2019,p.1-20.
SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e
Arte. REVISTA POIÉSIS (2011), 12(17), 29-51. https://doi.org/10.22409/poiesis.1217.29-51.

Mini Currículo

Kassius Brunno Souza


Mestrando Bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (FAV/UFG),
estudante de Artes Visuais – Bacharelado (FAV/UFG) e possui graduação em Arquitetura e Urbanismo
(PUC/2015). Integrante do NuPAA (Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas) desde 2020 e foi
artista-residente da Escola de Artes Visuais – Octo Marques (Secult Goiás) em 2020-2021. E-mail:
kassiusbrunno@gmail.com

377
O PENSAMENTO RODANTE E A PRODUÇÃO DAS ARTES VISUAIS DO
ATLÂNTICO NEGRO

ROTATING THINKING AND BLACK ATLANTIC VISUAL ARTS PRODUCTION

Alan Santos de Oliveira


Universidade de Brasília, Brasil

Resumo

A produção nas artes visuais pela perspectiva afrodiaspórica, dentre outras trajetórias,
recebe e dissemina aspectos circulares, espiralares e outras poéticas e/ou estéticas
ancestrais pelos giros, giras, rodopios e rodas dos povos africanos e seus descendentes. São
conhecimentos, fazeres e saberes fundados no que denominamos como “pensamento
rodante”. É a partir das rodas, como potencial motivador e criador, que os povos africanos e
afrodiaspóricos mantém suas formas comunicacionais e filosóficas. Neste trabalho,
apontamos algumas dessas conexões que formulam o pensamento rodante, tendo as artes
visuais como produção original destas formas de conhecimentos. Trata-se de uma pesquisa
avançada e alcançada em uma tese doutorado, mas não conclusiva. Nossa metodologia se
deu por: a) observações e vivências nas rodas de capoeira, nos xirês; b) em leituras e escutas
que propiciaram diálogos e aprendizados no contexto acadêmico, mas que ultrapassam as
barreiras desse universo colonizado para uma transdisciplinaridade descolonizadora. Dessa
forma, apresentamos uma breve exposição do pensamento rodante, de onde ele parte e
como este pensamento se torna permeavél em artistas afrodiaspóricos elencado para este
artigo.

Palavras-chave: Pensamento rodante; circularidade; visualidades; Diáspora africana.

Abstract

Production in the visual arts, from an Afro-diasporic perspective, among other trajectories,
receives and disseminates circular, spiral and other ancestral poetics and/or aesthetics
through the gyres, gyres, twirls and circularities of African peoples and their descendants.
They are knowledge, actions and knowledge based on what we call rotating thinking. It is
from the wheels, as a motivating and creative potential, that African and Afro-diasporic
peoples maintain their communicational and philosophical forms. In this work, we point out
some of these connections that formulate the rotating thinking, having the visual arts as the

378
original production of these forms of knowledge. This is advanced research and achieved in
a thesis, but not conclusive. Our methodology was based on: a) observations and experiences
in capoeira circles, in xirês; b) in reading and listening that provides dialogue and learning in
the context of academic, but that go beyond this colonized universe as a universe to a
transdisciplinarity. In this way, we present a brief exposition of the rotating thinking, where
it starts and how this thinking becomes permeable in Afro-diasporic artists listed for this
article.

Keywords: Rotating thinking; circularity; visualities; african diaspora.

Entrando na roda

As produções estéticas africanas e afrodiaspóricas, em sua amplitude e historicidade,


recebem influências de elementos circulares ou desenvolvem-se plenamente pelos
círculos. Produzem rodas e giros, e fundam uma forma de pensamento que
denominamos como “rodante”. Essa configuração de construir e criar é confirmada
quando percebemos que “o simbolismo dos círculos, usado em muitos rituais, é
elogiado na arte e em outras formas de expressão cultural para enfatizar o significado
de sua continuidade 1” (ANDRADE, 2009, p. 629. Tradução nossa)
76F

As culturas que se acenderam pelos povos afro-atlânticos, principalmente pela


religiosidade, inauguraram estéticas próprias dentro dos caracteres gerais da arte
em outros territórios fora do continente africano. Podemos situá-las nas invenções
da diáspora como sugestões descolonizadoras imbuídas neste pensamento rodante.
Elas seguem um ritmo particular dos sentimentos de memória, da oralidade e da
escrita, entre diferentes impressões africanas, que conduzem a outras possibilidades
de representação no cenário artístico. Como profere Stuart Hall:

Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica,


profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e
locais; em sua rica produção de contranarrativas e; sobretudo em seu
uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem
permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias
do mainstream, elementos de um discurso que é diferente – outras

1 Trecho original: “The symbolism of circles, used in many rituals, is praised in art and other forms of cultural
expression to stress the significance of their continuity”.
379
formas de vida, outras tradições de representação. (HALL, 2003, p.
380).

Um exemplo dessa peculiaridade seria que essas invenções, por vezes, são
construídas a base de muita dor, mas feitas, em grandes proporções e contrastes,
com alegria. As características próprias e relevantes levantadas por Stuart Hall são
questões de criatividades exercidas perante dificuldades extremas, tanto no
continente quanto na diáspora, em que os povos africanos tiveram que se reinventar
para preservar conhecimentos, com toda a dureza da colonização. A base religiosa
negra foi, sem dúvida, um alento para formar mestres do conhecimento criativo,
diante das impossibilidades.

Sabemos que boa parte das artes visuais brasileiras seguem uma perspectiva estética
com bases nessas religiosidades (do candomblé, da umbanda...) mesmo por artistas
não-negros(as) como Carybé (1911-1997), Mário Cravo Neto (1947-2009), Lina Bo Bardi
(1914-1992), entre outros(as). Entre os(as) artistas negros(as), de diferentes
linguagens (música, poesia, literatura, cinema...) isso é mais evidente: eles(as)
adotaram em suas pesquisas, representações e significados como as estéticas nagô,
bantu, quilombola e outras vertentes africanas que integram o complexo cultural
brasileiro. Entretanto, são esses(as) artistas que, devido ao silenciamento e
apagamento decorrente da colonialidade, merecem um olhar mais atento neste
trabalho. Tentamos enxergar neles(as) a relação das circularidades africanas: do
tempo espiralar (MARTINS, 2002), do ideograma proverbial sankofa2 e outras formas
circulares que se fundem na ideia de pensamento rodante (OLIVEIRA, 2021) que
propomos.

Em nossa pesquisa de doutorado intitulada Círculos, espirais e rodas: itinerários do


pensamento rodante (2021), a partir da leituras em obras e catálogos dedicado às artes
visuais negras, visita à exposições, entrevistas e outras reflexões, percebemos que as
produções dos(as) artistas negro-africanos(as) do continente e da diáspora
introduzem os círculos, as espirais e as rodas, em maior ou menor grau de alusões.
O encantamento das rodas, as formas geométricas, os dispositivos e evocações (ao

2 Ideograma proverbial do alfabeto Adinkra dos povos akan, que hoje habitam entre Gana e Costa do Marfim. O
ideograma é circular e remete ao provébio: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”. Define-se como
a sabedoria de ir ao passado, trazer ao presente e construir um futuro.
380
retorno) pela sankofa/reversibilidade são recorrentes nessas produções estéticas
que vão desde os rituais às experiências artísticas de diferentes linguagens. Tanto no
interior dos terreiros (do candomblé, do samba, da capoeira...) como nas produções
do teatro, da dança, do cinema, da literatura e nas artes visuais, como iremos mostrar
adiante, os círculos estão presentes promovendo “consciência de harmonia com as
forças grandes, sem intenção apriorística, mas de retorno, de criatividade e de
continuidade recíprocas. Espiral que também gira para trás e para fora do tempo
social” (ROSA, 2019, p. 42).

Portanto, o encontro das artes visuais no processo da diáspora negra se dá em rodas


e em encruzilhadas de campos (artísticos, espirituais, acadêmicos...) de
conhecimento e de processos (de pesquisas, de vivências, de criações...) que se
conectam e que fluem (ou submergem) no território do Atlântico Negro. Este oceano
amplo, nomeado por Paul Gilroy (2001), abriga não só as similaridades entre as
culturas africanas e afrodiaspóricas como demarca portos de conhecimentos. Para
Tiganá Santana:

Esse atlântico-linguagem das correntes cruzadas inventa outras


correntes e destinações, ou, ao menos, tem podido adir camadas outras
a certas tendências históricas. Inventaram-se candomblés, palos,
chulas, candombes, ferramentas, agriculturas, edificações, rosários,
moçambiques, cânticos de trabalho, pontos riscados, imagens,
enunciações, performances e inteligências. (SANTANA, 2021, p. 84).

O Atlântico Negro delimita cruzamentos que fluem, entre a África, a América e a


Europa. As produções artísticas do continente africano variam na história e são
contextualizadas, ressignificadas e preservadas em outras localidades, e têm sempre
algo a exprimir.

Sendo onipresente na escrita africana e nas diversas inscrições afrodiáspóricas,


podemos perceber que o símbolo circular e outras formas associadas ao círculo
perpassa por diferentes criações estéticas, que também se difundiram em espirais e
rodas no contexto cultural das tradições e que vão inspirar produções artísticas
visuais no continente e na diáspora africana.

Dessa forma, de maneira exemplar, vale compreender como que se dá esta


organização circular pensando a partir do corpo. No ensaio Performances do tempo

381
espiralar (2002), Leda Maria Martins observa que diversas grafias foram introduzidas
e ressignificadas na diáspora africana, por diferentes povos que aplicaram suas
formas de escrita na oralidade, na gestualidade e nas inscrições corporais, seja
diretamente na pele, seja nas vestimentas ou nos adornos que relevam o corpo.

Nas iniciações ocorridas no candomblé, é comum que os iniciados passem por


diversas ordenações complexas, como ingestão de alimentos específicos, banhos,
inscrições corporais que os caracterizarão como um novo ser. Nas “saídas de iaô”
(apresentação dos iniciados) nos terreiros iorubanos, é comum visualizar pinturas e
desenhos no corpo dos iniciados, que caracterizam pequenos pontos esféricos. O orí
(cabeça) raspado, indica a presença da circularidade que se complementa com os
colares, braceletes, tornozeleiras, brincos de argolas e panos (ojás, pano-da-costa...)
que atam circularmente o corpo. Ou seja, essa circularidade se apresenta
constantemente e, voltamos a dizer, projeta-se nas artes visuais por meio de um
pensamento rodante.

Se no candomblé, pinturas corporais pontilhadas, redondas ou espiraladas são feitas


a partir de giz 3 e tinturas, as mesmas técnicas parecem ser utilizadas em diversos
92F

povos do continente africano, como lundas de Angola, os surma mursi da Etiópia,


entre outros. Tais signos há séculos utilizam corpos como suporte, mas também
circulam em obras de artes afrodiaspóricas como esculturas, tecelagens,
perfomances e pinturas tradicionais ou contemporâneas.

Os povos lundas, habitantes da região bantu-kongo, hoje localizada em Angola,


próximo à fronteira República Democrática do Congo, assim como seus vizinhos mais
próximos (bakongos, quiocos...), utilizam essas técnicas de pinturas circulares e são
reconhecidos por suas produções gráficas em diferentes suportes (corpos, madeiras,
esteiras, areia...).

3Os iorubás costumam utilizar o giz a partir do ẹfun, um mineral branco consagrado à Oxalá. No Brasil a Pemba é
utilizada para desenhar corpos e pontos (no chão) nos rituais da Umbanda.
382
Figura 1 – Lundas

Fonte: Redinha (1966).

Os círculos dos povos lundas grafados em seus corpos, se assemelham à técnica do


artista visual estadunidense Aaron Douglas, que produziu diversas pinturas na
primeira metade do século XX. Integrando o movimento Harlem Renaissance, boa
parte de suas obras são marcadas por referências ao continente africano, como
esfinges, máscaras e círculos concêntricos, que aparecem como marcas d’água. Esses
círculos sugerem sempre a ideia de retorno e ligação à ancestralidade.

A obra intitulada Into Bondage, de 1936, traz a imagens de africanos escravizados que,
acorrentados, seguem em fileiras a caminho dos navios negreiros, para embarque
rumo às Américas, no período do tráfico. Numa análise mais detalhada da obra,
vemos um dos personagens ser atravessado por uma luz que parte de uma estrela
pairada no céu. Aaron Douglas mostra o sentido de liberdade — nunca alcançado, em
sentido pleno, para os negros do território estadunidense; a estrela-guia trata-se da
North Star, ou a Estrela do Norte, que servia de orientação para escravos fugitivos
em direção ao Norte dos Estados Unidos, uma vez que a região Sul foi o centro da
colonização escravista naquele país entre o século XVII e o século XVIII.

Como se denotasse vibrações ou camadas invisíveis, Into Bondage está impressa por
círculos, como aqueles vistos nos corpos lundas. A obra de Aaron Douglas privilegia
elementos ancestrais, conectando-se com a história dos negros nas américas,
tornando-se, portanto, para além do emblema circular, uma experiência reversível e
o exercício do pensamento rodante nas artes visuais.

383
Figura 2 - Aaron Douglas – Into bondage - Oléo sobre tela, 153,5 x 154 cm (1936)

Fonte: Histórias Afro-atlânticas Vol. 1 (2018)

Essa comunicação é amplamente movimentada pelo suporte do corpo na espiral do


tempo. Como ilustra Leda Maria Martins:

Assim, as coreografias das danças negras mimetizam essa circularidade


espiralada, quer no bailado do corpo, quer na ocupação espacial que o
corpo em voleios sobre si mesmo desenha. Por meio dessa evocação
constitutiva, o gesto e a voz da ancestralidade encorpam o
acontecimento presentificado, prefigurando o devir, numa concepção
genealógica curvilínea, articulada pelos rituais, cerimônias festivas e
mesmo fúnebres. Aqui nesses terreiros, o movimento coreográfico
ocupa o espaço em círculos desdobrados, figurando a noção ex-
cêntrica do tempo. Em outras palavras: o tempo, em sua dinâmica
espirada, só pode ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do
hiato que o corpo em volteio ocupa. O corpo, sob signo da
reminiscência, dança o tempo, sendo também ele, o corpo, espirais. Um
saber, uma sapiência. (MARTINS, 2020, p. 12).

São estas perspectivas que tentamos enxergar, quando tratamos de outras


particularidades inscritas nas produções artísticas afrodiaspóricas. Mesmo oriundas
das tradições, elas não deixam de ser desafiadoras, decoloniais e questionadoras na
contemporaneidade.

384
Uma volta ao mundo: artes visuais negras e pensamento rodante na diáspora

A espiral, essência potente dos conhecimentos dos povos bantu, em diálogo com a
contemporaneidade, continua a ser inscrita nas obras de artistas africanos(as). Esse
é o caso das instalações e outras obras da artista e pesquisadora moçambicana Anésia
Manjate.

As obras de Manjate tecem experimentos com materiais diversos, compondo, como


ela mesmo menciona, uma descontextualização do meio em que vive, para propor
“um espaço de reflexão cultural sobre a tradição na contemporaneidade” (MANJATE,
2017, p. 72). Algumas das suas instalações formam cenários circulares, que debatem
estas questões e convidam o público a compreender melhor as tradições
moçambicanas. Explanando um pouco mais, em suas próprias palavras, a artista
explica 4 sua interação com a tradição:
93F

É o que me move como artista, expressar os meus sentimentos/ideias,


crítica social, um pouco de ativismo social, dar voz a cultura
moçambicana através da pesquisa sobre a influência da
tradição/cultura na criação artística, onde busco elementos da
tradição/cultura para expressar as minhas ideias, se olharmos para as
obras “mulher changana calada”, “círculo do amor”, “cultivando a paz”,
“laços”, “conselho de anciãs”, “concentração de ideias”, “Diálogo afro”,
“Dialogo intercultural”, entre outros, os elementos da tradição/cultura
estão muito presente. A minha obra trata assuntos ligados a cultura e
como esta cultura está cravada na criação artística. (MANJATE, 2021).

A obra Passaste por aqui? de 2004, é um bom exemplo. Trata-se de uma instalação
espiralar, desenhada com conchas de caracol (também espirais) sobre pratos de
cerâmicas arriados ao chão. Como uma dádiva aos ancestrais, transmite a imagem
do infinito. Os materiais utilizados são de uso das práticas tradicionais
moçambicanas. Como preceito, os curandeiros moçambicanos utilizam as conchas
de caracol para portar medicamentos naturais. Na diáspora, os moluscos que
habitam estes casulos igualmente são utilizados nos cultos das religiões afro-
brasileiras. Vale lembrar que os pratos de cerâmica, tal como na diáspora, são

4 Entrevista concedida pela artista Anésia Manjate, especialmente para esta pesquisa, em 28 de junho de 2021.
385
comumente utilizados para a realização de oferendas, geralmente com expectativas
de algum retorno, performando a circularidade das trocas.

Figura 4 – Anésia Manjate – Instalação Passastes por aqui? (2006)

Fonte: Blog ma-schamba 5 94F

Ao ser questionada sobre o atravessamento dos círculos nas tradições africanas e,


especialmente em sua obra, Manjate assim nos respondeu:

Sim, os círculos fazem parte das tradições africanas, se formos a ver a


criança nasce numa casa (palhota) de planta circular e com cobertura
de um cone recheado por uma composição de elementos que criam um
ritmo e movimento que descrevem círculos, espirais, que modelam
logo a partida a percepção visual muito interessante. Os utensílios
domésticos, as peneiras, as panelas de barro aos instrumentos musicais
como a chigovia, a nbira, o batuque, todos estes elementos. Os círculos
representam consenso, frontalidade, amor, persistência, força,
coragem e solidariedade; as reuniões comunitárias são feitas nos
encontros familiares com uma fogueira no centro, no momento do
nkarigana wa nkaringana (conto de estórias), os anciãos reunidos com
os seus netos contando estórias, nas brincadeiras/jogos, nas
comemorações, são feitas de baixo de uma arvore em que ocorre a
cerimônia tradicional. Muitas vezes quando estou a criar ela surge
espontaneamente. (MANJATE, 2021).

A artista, curadora e pesquisadora afro-portuguesa Grada Kilomba, vem trabalhando


com instalações e performances que questionam as perversidades da colonialidade

5
Disponível em: https://ma-schamba.blogs.sapo.pt/tag/an%C3%A9sia+manjate.
386
como o racismo, o machismo, a branquitude e outras violências que permeiam nossas
vidas. Suas produções superam a conceitualidade e sua dinâmica de trabalho procura
recusar a linearidade da razão eurocêntrica e da colonização do conhecimento
quando a artista adentra, também, em processos circulares. Em uma conferência 6 95F

realizada em 2019, a convite da Pinacoteca de São Paulo, por ocasião de uma


exposição individual nesse espaço, ela proferiu abertamente sobre sua proposta
descolonizadora e transdisciplinar pelo viés circular:

O que eu fiz sempre foi uma outra forma de conhecimento que é


transdisciplinar, que conecta com muitos formatos diferentes e com
muitos pensamentos diferentes, que é uma coisa mais redonda, mais
circular, eu diria. Isso para mim é exatamente também o que é a
descolonização do conhecimento. É quando nós abandonamos
desobedientemente, desobedecemos às disciplinas clássicas e
começamos a construir linguagens, que desobedecem a estas várias
disciplinas, mas que criam novas disciplinas e formatos. Isso é a
descolonização, para mim, do conhecimento. (KILOMBA, 2019).

A proposta de Kilomba demarca a proposta de outros(as) artistas negros e negras


contemporâneos(as) brasileiros. Desalinhar-se do cânone, trazer outras perspectivas
e conhecimentos, promover novos olhares e conquistar espaços elitizados para
questionar esses mesmos espaços.

No Brasil, a produção visual da arte negra contemporânea (para não se fincar no


modernismo) ̶ antes mesmo da virada do século que vai impulsionar a agência
identitária ̶ é marcada por dois artistas simbólicos nesse universo
rodante/espiralar/ancestral: Mestre Didi e Rubem Valentim. Ambos buscaram
conhecimento nos fundamentos das religiões de matriz africana no Brasil para a
produção de seus trabalhos. Pelas artes visuais, esses dois artistas obtiveram êxito
pelas criações originais, sagradas, confeccionadas a partir da estética nagô
(OLIVEIRA, 2019).

Deoscoredes Maximiliano dos Santos, conhecido popularmente como Mestre Didi,


nasceu em Salvador (Bahia), em 1917. Filho de Maria Bibiana dos Santos, Mãe Senhora,
a terceira yalorixá do Terreiro Axé Opô Afonjá da Bahia. Mestre Didi cresceu dentro

6
Disponível no canal da Pinacoteca no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=ovSKrDLs9Ro.
387
de todos os preceitos possíveis da religião dos orixás e do culto aos egunguns 7. Além 97F

de obter intenso conhecimento religioso e espiritual, foi escultor, escritor e


pesquisador dos imaginários e das culturas africana e afro-brasileira.

As obras de Mestre Didi evocam aspectos da cultura jeje-nagô e particularizam


técnicas bastante específicas, que, embora mergulhem no imaginário de diversos
orixás, simbolizam principalmente os fundamentos da gênese e do renascimento do
todo, da Grande Roda. Por isso, seu trabalho está mais centrado nas divindades:
Omolu, o orixá da terra; Nanã, orixá do barro, dos primórdios da existência e da
regeneração e Oxumarê, a divindade Dan dos povos fon situados na Costa Oeste
africana. Também ligada à existência do planeta Terra, Dan é representado pelo
arco-íris e pela serpente que circula a Grande Roda, abocanhando sua própria cauda.

As esculturas de Mestre Didi correspondem, portanto, ao círculo da existência. A


maioria dos seus trabalhos correspondem a esculturas serpenteadas, confeccionadas
com fibras de palmeiras, tecidos, búzios, miçangas e cabaças, entre outros materiais,
que reunidos, compõem pilares de uma escola inaugurada pelo Mestre na Bahia.
Geralmente são obras que expandem as ferramentas 8 desses orixás, como o xaxará,
98F

de Omolu e o ibiri, de Nanã. Com design variante, colagem de tecidos e miçangas que
trabalham as cores e a montagem das peças anexadas, como cabaças, as obras trazem
a circularidade tanto no imaginário do contexto impregnado no mistério e na magia
desses orixás, como nas formas serpenteadas desenhadas circularmente.

Rubem Valentim, assim como Mestre Didi, também nasceu em Salvador, no ano de
1922. Graduado em Odontologia e Jornalismo, preferiu dedicar-se mesmo na
produção de artes visuais, principalmente nas técnicas de pintura, desenhos,
gravura, serigrafia e escultura, identificadas nos territórios da abstração, no
concretismo e no construtivismo.

As obras de Rubem Valentim são potentes desenhos geométricos, que configuram


expansões tridimensionais dos signos das divindades cultuadas no candomblé e dos
pontos riscados 9 da umbanda. As cores têm representações ligadas aos orixás, bem
101F

7
Egunguns são ancestrais nobres, cultuados em cerimônias e espaços específicos.
8
As ferramentas dos Orixás, são símbolos materiais, utilizados como acessórios em suas manifestações nos xirês.
Espadas, cajados, espelhos e outras ferramentas são distribuídas de acordo com as divindades.
9
Desenhos composto de signos mágico-simbólicos (círculos, flechas, estrelas, cruzes...) riscados ao chão com giz
388
como suas ferramentas ou narrativas listadas nos mitos (itans) imaginários da
religiosidade afro. A ideia do artista se fundamentava diretamente em suas raízes.
Para ele tornava-se essencial inserir o contexto afro no Brasil, enquanto paisagem e
história. Em outra esfera, seu trabalho pulsa o pensamento rodante afrodiaspórico,
mira o contexto ancestral e foge de determinadas regras fincadas nos conceitos da
arte euro-ocidental.

Em 2019, o Museu Nacional da República, em Brasília, promoveu a exposição


Simbólico Sagrado, reunindo obras de Mestre Didi e Rubem Valentim. Distribuídas
pelo grande salão da exposição, os visitantes puderam conferir as semelhanças
votivas entre os dois artistas em suas criações. A proposta da exposição teve
certamente a ideia de reunir essas similaridades entre Didi e Valentim que visam, de
acordo com a curadora Thais Darzé, “(...) defender, preservar, difundir e elevar a
cultura e o legado dos povos africanos, pensando numa identidade genuinamente
brasileira” (DARZÉ, 2019, p. 5). Porém, não somente isso: a proposta promoveu
também homenagem a dois artistas modernos que ultrapassaram as fronteiras do
cânone artístico e que realizaram outra busca em suas produções, aquela inscrita na
decolonialidade. Como novamente afirma a curadora, em relação a essa teoria:

A meu ver, esses dois artistas são exemplos dos resultados desse tipo
de pensamento no Brasil. Ambos nos fazem questionar a hegemonia
tanto das teorias, como dos poderes institucionalizados e dos espaços
ocupados por essa temática no sistema tradicional das artes. (DARZÉ,
2019, p. 05).

Vale ressaltar que, ao visitar a exposição, encontramos diversas circularidades


impressas e aplicadas nas gravuras, pinturas e esculturas de Rubem Valentim, bem
como na sutileza trabalhada na espiritualidade de terreiro de Mestre Didi em suas
esculturas. Mas outra situação nos impressionou: a sensibilidade da curadora, ao
distribuir circularmente, as esculturas destes dois artistas no centro do salão da
exposição, formando uma grande roda. Como o símbolo circular é emblemático no
candomblé, que foi a fonte primordial de estudos e influências para ambos os artistas,

(Pemba) nas cerimônias e rituais da Umbanda. Cada signo corresponde a uma certa entidade e é uma forma de
convidá-la a se manifestar no Terreiro. O signo também corresponde a um cântico específico, que é entoado no
momento do riscado.
389
encontramos nesta instalação exposta, mais uma vez, a expressão dos círculos nas
artes visuais afro-brasileiras e do pensamento, pela experiência curatorial.
Entendemos, portanto, que o pensamento rodante circula também por outras vias
dos processos artísticos além da produção dos artistas.

(In) conclusões: desfazendo a roda

Não há como encerrar um processo infinito, tal qual Guimarães Rosa, propomos
rodar e rodar. Entretanto, podemos observar neste breve exposto, que essa
manifestação das rodas, dos giros, dos círculos, das espirais e outros elementos
associados frequentam intimamente às produções das artes visuais negras: seja por
artistas africanos ou da diáspora. E nem sempre são manifestados pela configuração
geométrica (embora muitas produções pesquisadas tenhamos encontrado os
círculos concêntricos), mas pela valorização ancestral que também é circular.

Se os processos formativos e criativos de diversos artistas são desenvolvidos por


meio da academia, de cursos livres ou pela autodidática, compreendemos que nas
obras de artistas negros negras, além dessas ascensões cognitivas, pulsam relações
mais profundas, apreendidas no meio afro-religioso onde o círculo e as rodas são
fortemente abraçados. Nesse balaio de mistérios, encontros, acolhimentos e
rotatividade de valorização ancestral, se sobressai o pensamento rodante, que
influência produções culturais como as artes visuais, um campo também
disseminado por essa filosofia particular dos povos africanos e afrodiaspóricos.

Referências

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Encyclopedia of African religion. California: SAGE Publications, 2009.
DARZÉ, Thais. Simbólico Sagrado (texto curatorial) In: Simbólico Sagrado: Mestre Didi e
Rubem Valetim. (Catálogo). Brasília: Museu Nacional da República – Secretaria de Cultura e
Economia Criativa, 2019.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio
de janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidade e Mediações Culturais. Editora UFMG, 2003.

390
KILOMBA, Grada: RIBEIRO, Djamila. Roda de conversa Grada Kilomba e Djamila Ribeiro.
São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ovSKrDLs9Ro. Acesso em 20/jan/2020.
MANJATE, Anésia Zefanias Filipe. A tradição na arte contemporânea moçambicana: um
contributo artístico através de instalações compostas por esculturas. Évora: Universidade
de Évora - Mestrado em Práticas Artísticas e Artes Visuais, 2017. Dissertação de Mestrado.
Disponível em: http://www.rdpc.uevora.pt/handle/10174/22898. Acesso em 22/mai/2021
______. Entrevista concedida a Alan Santos de Oliveira. 28 jun. 2021. (Via correio
eletrônico).
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela, ARBEX,
Márcia. (Org.). Performance, exílio e fronteiras: errâncoas territorias e textuais. Belo
Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG, Poslit, 2002.
OLIVEIRA, Alan Santos de. A Criatividade nagô pela produção estética-cultural nas artes
visuais: Mestre Didi e Dalton Paula. In: SEABRA, Lavínia (Organizadora). Processos
contemporâneos: da ideia à publicação. Goiânia: Gráfica UFG, 2019.
______. Círculos, espirais e rodas no mundo afro-atlântico: itinerários do pensamento
rodante. 2021. 236 f., il. Tese (Doutorado em Comunicação)—Universidade de Brasília,
Brasília, 2021.
PEDROSA, Adriano; TOLEDO, Tomás. Histórias afro-atlânticas [Vol. 1] catálogo. São Paulo:
MASP; Instituto Tomie Ohtake, 2018.
REDINHA, José. Etnossociologia do Nordeste De Angola. Braga: Editora Pax, 1966.
ROSA, Allan Santos da. Pedagoginga, autonomia e mocambagem. São Paulo: Pólen, 2019.
SANTANA, Tiganá. A capoeira do pensamento. In: OLIVEIRA, Antonio Leal de; RIBEIRO,
Marcia; DEL REY, Laura. (Orgs.) Cajubí: ruptura e reencanto. São Paulo: Incompleta, 2021.

Mini Currículo

Alan Santos de Oliveira


Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Especialista em Processos e
Produtos Criativos pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV-UFG).
Mestre e doutor em Comunicação, pela linha de pesquisa Imagem, Estética e Cultura Contemporânea
do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). E-mail:
alansanoli@gmail.com

391
FOTOGRAFIA EXPERIMENTAL: DO ÍNDICE GENUÍNO AO ÍNDICE
DEGENERADO

EXPERIMENTAL PHOTOGRAPHY: FROM GENUINE INDEX TO DEGENERATE INDEX

Josias de Andrade Santos


PPGAV-EBA-UFBA, Brasil

Resumo

Este artigo surgiu como fragmento da dissertação que está em andamento e reflete sobre a
fotografia experimental e os seus desdobramentos a partir de uma autorreflexão sobre a
série fotográfica "Impressões", trabalho de rua onde proponho - através de configurações
não convencionais em programas de edição de imagens, e que apoia-se no conceito de Índice
do filósofo norte-americano Charles S. Pierce, e no trabalho “A salvação do belo” do filósofo
sul-coreano Byung-Chul Han - uma fotografia distanciada ou mesmo desconectada do seu
objeto real como consequência de um índice degenerado, ainda que em algumas imagens
seja possível identificar elementos figurativos referentes à cena capturada. Como resultado,
apresentarei fotografias que encarnam a ausência da objetividade, e podem produzir um não
reconhecimento imediato dos espaço, das pessoas, e dos objetos dados, além de uma
construção fotográfica utópica que busca levantar questões acerca dos limites do fazer
fotográfico e da própria fotografia enquanto expressão historicamente ligada a um índice
genuíno e, por extensão, conectada ao documento histórico-jornalístico que, como sabemos,
nos libera do pensamento subjetivo e criativo.

Palavras-chave: Fotografia; artes; fotografia experimental; fotografia degenerada.

Abstract

This article arise as of an essay fragment still in progress on the experimental photography
and yours possibles outspread by a self-reflexion of the photographic series "Impressions",
street photos where I propose - across of the unconventional configuration in edit apps, and
that is based on the concept of Index of the North American philosopher Charles S. Pierce,
and on the work “The salvation of the beautiful” of the South Korean philosopher Byung-
Chul Han, a photograph that is distanced or even disconnected from its object as a
consequence of a degenerate index, although in some images it is possible to identify real
figurative elements to the captured scene. As a result, I will present photographs that
embody the absence of objectivity, and can produce an immediate non-recognition of space,
people, and given objects, in addition to a utopian photographic construction that seeks to

392
raise questions about the limits of photographic making and photography itself as an
expression historically linked to a genuine index and, by extension, connected to the
historical-journalistic document that, as we know, frees us from subjective and creative
thinking.

Keywords: Photography; arts; experimental photography; degenerate photography.

Em 1933, na Alemanha nazista, acontecia a primeira de uma sequência de exposições


que denunciavam obstinadamente a degeneração artística.

Ora, tal estado (comum às obras de arte de vanguarda, segundo Adolf Hitler)
representava a condição humana degenerada dos artistas que as produziam e
também dos que as apreciavam, e nesse caso, todos os degenerados eram judeus e
bolcheviques.

Tomando a degeneração como princípio, o líder nazista conseguiu estabelecer um


“novo valor” para o belo na arte, e este assentava-se no retorno à figuração, e numa
suposta perfeição das proporções idealizadas pela influência do helenismo e da
renascença italiana.

Temos registro o suficiente para afirmar que sabemos o resultado de tal pensamento
e ação “anti-degenerativa”: milhões de obras destruídas que, antes do aniquilamento,
foram utilizadas como propagandas que comparavam os trabalhos artísticos com a
realidade manicomial vigente à época e, com isso, direcionavam os discursos a uma
suposta destruição da alma humana que era ocasionada pela obra de arte moderna e
de vanguarda.

Quase 90 anos após esse período violentamente reacionário da história da


humanidade, não é raro encontrar afirmações (em especial quando tratamos da
fotografia experimental) que acenam aos mesmos valores que dominaram a
Alemanha hitlerista.

Diante da reflexão anterior podemos nos questionar acerca desse belo que se
mantém no mundo da arte e que, convencionalmente, a fotografia não consegue se
desvencilhar; e na sombra desse pensamento nasce outra questão: que outro ideal
de beleza engendrou tanta destruição e morte na história do mundo ocidental?

393
Não podemos perder de vista que as lembranças são bússolas que apontam caminhos
que devemos ou não trilhar. Com isso em mente, aliando o pensamento à “lógica do
índice, isto é, a representação por contiguidade física do signo com o seu referente,
que faz com que a fotografia se afirme como marca de ‘um real’ [...]” (FABRIS, 2013, p.
30), tentamos especular sobre essa arbitrariedade que envolve o fazer fotográfico, e
como a degeneração torna-se uma importante vertente dentro da experimentação
capaz de emancipar a fotografia do seu caráter indicial genuíno.

Para melhor compreendermos a degeneração, pressupomos que a ideia do belo


“reflete um imperativo social universal.” (CHUL-HAN, 2019, p. 07), e esse imperativo
levanta questionamentos, caso olhemos atentamente, acerca das intenções que
apontam tal objetivo.

Será que na nova modernidade, nesse mundo pós-contemporâneo o princípio basilar


é o “nada entregar para ser interpretado ou descodificado?” Seria a “marca do agora”
o like que, em muitas situações, tornou-se um “gerador de sentimento de satisfação”?
Byung Chul-Han, filósofo sul coreano radicado na Alemanha, em suas reflexões sobre
o belo, traz como endosso às suas críticas que:

Segundo Gadamer, a negatividade é essencial para a arte. Ela é a sua


ferida [...] Nela tem algo que me abala, me revolve, me põe em questão,
a partir do que surge o apelo Você tem que mudar sua vida [...] A obra
de arte pressupõe que algo choque. Ela derruba o observador. (CHUL-
HAN, 2019, p. 14-15, grifo do autor).

Vale ratificar que, na dissertação, enquanto construíamos o pensamento da imagem


recalcada, evidenciou-se a sua natureza de “expressão extrema” que prolifera na
escuridão e produz imagens estranhas e assustadoras à superconsciência:

A psicanálise pode nos ensinar ainda outras coisas importantes sobre


a ação do recalque nas psiconeuroses. Por exemplo, que o
representante pulsional se desenvolve de forma mais desimpedida e
com maior riqueza quando, por meio do recalque, é retirado da
influência consciente. Ele então prolifera, por assim dizer, na escuridão
e encontra formas de expressão extremas. Estas, ao serem traduzidas e
apresentadas ao neurótico, não só terão que lhe parecer estranhas, mas
também irão assustá-lo, ao lhe espelharem a imagem de uma força
pulsional extraordinária e perigosa. (FREUD, 2004, p. 176, grifo nosso).

394
A imagem experimental, fruto desse superrecalque e habitante da escuridão do
superinconsciente, carrega em si uma estranheza que não pode ser imediatamente
reconhecida por essa superconsciência devido à sua condição “metafórica/indireta
e não mais objetiva/figurativa. Ou seja, a operação imanente dessa super
inconsciência é a degeneração das formas, das histórias e imagens na esperança de
estabelecer uma comunicação marcada pela alteridade.

Nos aproximamos do segundo século de existência da fotografia e, até então,


acompanhamos os avanços tecnológicos, as práticas que combinam dispositivos e
linguagem fotográfica na busca de novas estéticas e formas de contar histórias,
incorporamos cada vez mais as tendências experimentais. Porém, ainda assim,
continuamos alimentando todo um repertório imagético que aponta,
frequentemente, para um objeto do real que confere à fotografia um caráter indicial
praticamente inquestionável nos debates sobre as imagens técnicas desde os tempos
de Benjamin e que, costumeiramente, ganha desdobramentos semelhantes nas
discussões contemporâneas.

Conhecemos as motivações jornalísticas/documentais que favoreceram tal


instituição visual, e podemos facilmente reconhecer a importância dessa prática
figurativa comprometida com a realidade objetiva, principalmente quando trata de
registros etnográficos, só para citar um segmento de aplicação.

Entretanto, parece razoável levantar as seguintes questões: cabe assimilar e


reproduzir essa postura puramente indicial às práticas fotográficas artísticas
contemporâneas? Todo registro fotográfico necessita apresentar um
comprometimento com o real para ganhar o valor de documento?

Podemos afirmar sem sombra de dúvidas que toda fotografia é, também, um registro
documental.

A questão que levantamos passa a levar em consideração muito mais a instituição


que deseja obter tal registro, do que o próprio documento em si, por exemplo: Não
seria uma fotografia em longa exposição ou estroboscópica uma outra representação
do mundo das sensações, um outro “revelar de um inconsciente ótico”?
Acrescentamos que, sendo o documento “qualquer escrito ou impresso que fornece
uma informação ou prova, usado para esclarecimento de algo.” (MICHAELIS ON-

395
LINE, 2015), logo, se aplicada às artes e áreas afins, certamente estaremos em posse
de um registro artístico com valor documental. Mas a quem interessa esse “tipo
fotográfico” e quais entidades o reconheceria como documento e com quais
intenções?

Sendo assim, tentaremos apresentar algumas considerações e exemplos práticos


para tentar estender os limites do pensamento fotográfico nas discussões
contemporâneas.

Índice, índice genuíno e índice degenerado

Para construir o pensamento aqui abordado precisamos entender dois conceitos da


semiótica peirceana sobre o índice. Mas primeiro, temos que assegurar o
entendimento fundamental sobre o signo em Charles Sanders Peirce.

Para o pensador, o signo é “qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu
interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de
modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim
sucessivamente ad infinitum.” (PEIRCE, 2017, pg. 74). Peirce segue apontando uma
relação triádica do signo composta pelo representamen, o interpretante e o objeto;
sendo o primeiro um “substituto do objeto”, o segundo uma “força psíquica" que
apreende e compreende essa “aparição”, e por fim o objeto que seria “a coisa” real.
Ele também afirma que um signo é um ícone, um índice ou um símbolo, e sinaliza
sobre o índice, que é a parte que nos interessa aqui, que:

Um índice é um signo que de repente perderia o seu caráter que o torna


um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse
caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de
um molde com um buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o
tiro não teria havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha
alguém ou não a capacidade de atribuí-lo a um tiro.” (PEIRCE, 2017, pg.
74).

Encontramos nos trechos acima a definição primordial de um signo como índice que,
como fica explícito, necessita sempre de um objeto para que tenha essa classificação.
Esta seria, segundo o autor, uma característica marcante da fotografia,

396
“especialmente as do tipo “instantâneo” [...] pois sabemos que, sob certos aspectos,
são exatamente como os objetos que representam.” (PEIRCE, 2017, pg. 65).

Porém, Peirce segue apresentando outras duas classificações de índice que encerra
essa parte da nossa reflexão, a saber “se a Secundidade for uma relação existencial,
o índice é genuíno. Se a Secundidade for uma referência, o índice é degenerado.”
(PEIRCE, 2017, pg. 66). Sendo assim, o índice pode ser genuíno ou degenerado. Deste
modo, para ser considerado um índice genuíno faz-se necessária uma relação
existencial, enquanto o índice degenerado necessita de uma referência, sendo que,
uma possível definição de “referência” pode ser uma “alusão a certa obra; menção a
um determinado fato ou trecho.” (MICHAELIS ON-LINE, 2015); e para o verbete
“alusão”, temos que, pode ser uma “Referência a alguma pessoa, coisa ou fato, de
modo vago e indireto. Figura em que se faz apreciação indireta de uma pessoa ou de
um ato ou estado seu, mediante referência a alguma coisa que os relembre.”
(MICHAELIS ON-LINE, 2015, grifo nosso).

Após essa breve consideração sobre o índice, os exemplos trazidos, e principalmente


a apresentação dos índices genuíno e degenerado, como podemos insistir (enquanto
artistas-fotógrafos) numa representação indicial puramente genuína, de caráter
figurativa, e com valor semelhante ao jornalístico numa área do saber que diz prezar
pela subjetividade e emancipação do pensamento, da imaginação e da criatividade?

Buscando compreender essa insistente permanência numa fotografia com relação


existencial, vamos refletir no próximo tópico sobre essa formação estética que
parece oferecer “o belo” às imagens figurativas na fotografia.

O belo degenerado

Depois de tratarmos da fotografia e do índice, devemos levar em consideração que,


a dissociação do índice genuíno de uma imagem fotográfica traz consequências
estéticas que demandam, também, uma reformulação na ideia que carregamos
secularmente sobre o belo, falando especificamente das imagens técnicas.

É importante relembrar neste momento, recorrendo a Walter Benjamin, que “A


natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente
porque substitui um espaço preenchido pela ação consciente do homem por um

397
espaço que ele preenche agindo inconscientemente.” (BENJAMIN, 2012, p.100); e por
que essa ressalva é importante na nossa discussão?

Comecemos ratificando a ideia de uma fotografia desconectada ou afastada do seu


objeto imediato, com uma natureza de índice degenerado que apenas alude a um
suposto objeto, e que resulta como obra de arte, consequentemente, uma fotografia
degenerada que é produto de um aparelho que opera de maneira distinta do olho
humano chegando a capturar o resultado de uma inconsciência, no caso
exemplificado pelo autor, frações de um movimento, mas podemos estender ao
movimento “fantasmagórico” (quando capturado sem corpo sólido), ocasionando a
ausência de uma referência lógica e imediata, desprovida de um chão que a sustente
se levamos em consideração as estruturas tradicionais que persistem em justificar o
fotógrafo, como alertou Benjamin, e a fotografia1, diante do mesmo tribunal que estes
haviam derrubado, mas que, ainda hoje, esses “inquisidores” rearranjam e justificam
padrões visuais que inviabilizam qualquer representação que não passe pelo crivo do
figurativo convencionado, ou que não atendam às urgências do Capital.

Como ponto de partida dos pensamentos aqui expostos, temos três fotografias,
apresentadas a seguir, que foram feitas com a única intenção de aproximar
conscientemente a fotografia contemporânea ao índice degenerado aqui proposto.

1
Benjamin menciona apenas o fotógrafo. Acrescentamos a fotografia por se tratar especificamente da
fotografia degenerada que, sendo razoável, já não pode ser julgada com os valores da fotografia
tradicional.

398
Figura 01: Acervo pessoal. Amanhã, série “Impressões”, 2022.

399
Figura 02: acervo pessoal. Portal, série “Impressões”, 2022.

Figura 03: acervo pessoal. Grande colisor de rotinas, série “Impressões”, 2022.

400
Os trabalhos acima são frutos de um vagar pelo cotidiano ordinário, mas que
oferecem um resultado que chamarei de extraordinário.

A partir deste ponto, quando referirmos à ideia do belo nas ocorrências fotográficas
degeneradas torna-se necessário ir além do que é óbvio na superfície imagética. Isso
porque, como já apontamos que os valores mudam quando se institui outras
possibilidades de representação, cabe pensar nas impressões causadas
imediatamente, e também posteriormente, além dos seus desdobramentos possíveis
a partir de uma estética que não oferece facilmente um ponto de ancoragem que
favoreça a leitura imediata da fotografia.

Todas as imagens acima carregam fragmentos de uma realidade. Todavia, a que


realidade nos referimos? Afinal, pode uma pessoa sentar-se sobre a brancura? O
vermelho pode transmutar-se em portal? Ou um grande colisor de rotinas pode ser
encontrado num caminho qualquer? Constatamos, assim, que perguntas como “Qual
a localização? Quem é a pessoa retratada? ou Quais os elementos que compõem a
imagem?” parecem não ter muito sentido no contexto da fotografia degenerada. Isso
porque, isentando-se de um compromisso com a “verdade do real”, a fotografia
degenerada reclama para si um outro valor de informação e especulação, e uma outra
beleza, a beleza de um belo que brilha “não a presença do brilho imediato, mas a
presença da lembrança fosforescente [...] essencial para o belo.” (HAN, 2019, p.102); o
brilho de uma verdade objetiva é “inessencial” à imagem degenerada.

As fotografias apresentadas neste trabalho apelam às lembranças e intentam exigir


uma duração diante delas, uma permanência que Byung-Chul Han aponta da
seguinte maneira:

Lembrança e duração não se dão com o consumo. O consumo vive uma


vida estilhaçada. Ele destrói a duração para sua maximização. A onda
de informações, a consequência do corte apressado que obriga os
olhos à ingestão apressada, não permite lembrança demorada. As
imagens digitais não conseguem fazer a atenção ficar presa
permanentemente. Elas despejam rapidamente seus estímulos visuais
e desaparecem. (HAN, 2019, p.103)

Tendo em vista o caráter desreferencializado das imagens aqui expostas, e


relacionando com o trecho supracitado, torna-se mais compreensível o objetivo

401
dessa fotografia degenerada: é um tipo fotográfico que apela às lembranças e ao
permanecer diante da imagem e atuando com ela para gerar informação e sensações
novas que não atendem às necessidades de consumo, antes, visa reforçar a
subjetividade e a capacidade de interação consigo mesmo, com o objeto exposto, e
com o sujeito que propôs a fotografia em exposição; ou seja, “O belo não é a presença
imediata e atual das coisas [...] são as correspondências secretas entre as coisas e as
representações que ocorrem através de um longo espaço temporal.” (HAN, 2019,
p.105).

Conclusão

Tentamos demonstrar neste breve trabalho que o valor de documento, por vezes,
está mais atrelado ao seu valor de uso que ao seu valor simbólico e subjetivo, e que o
artista-fotógrafo pode emancipar-se do fotojornalismo pela simples compreensão de
que a arte fotográfica, assim como ocorreu na pintura e na escultura, não necessita
de uma relação direta ou indireta com a realidade para ter algum valor,
principalmente o valor documental que foi estabelecido pelos meios jornalísticos e
museológicos.

Propomos uma nova compreensão do belo pelos caminhos da lembrança e da


duração que em nada se relaciona com o estilhaçamento da vida de consumo e que,
por isso mesmo, faz-nos perceber que “A beleza é vacilante, atrasada. Belo não é um
brilho momentâneo, mas uma fosforescência quieta.” (HAN, 2019, p.107).

O caminho que percorremos volta o nosso olhar para dentro, para um lugar de brilho
discreto, que carrega uma relação com o real índice de cada significante que trabalha
contra uma força industrial secular, e traça, pela fotografia degenerada, um caminho
sem chão, um gesto sem corpo, uma matéria valiosa sem valor efetivo de mercado, e
uma função sem utilidade imediata, mas com uma força tão emancipadora que torna
tudo ao redor índice possível para qualquer trabalho fotográfico experimental.

402
Referências

ALUSÃO. In: Michaelis on-line, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo:
Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/alusao/. Acesso em: 12/05/2022.
ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Direção: Peter Cohen. Trilha sonora: Richard Wagner.
1991 (lançamento mundial). Documentário (120 min.)
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio
Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 99-100.
DOCUMENTO. In: Michaelis on-line, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São
Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/documento/. Acesso em: 11/05/2022.
FABRIS, Annateresa. A epifania das aparências: a visão surrealista. In: FABRIS,
Annateresa. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas
históricas, volume 2. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2013, p. 30.
FREUD, S. (1915). O Recalque. In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente.
Coordenação geral da tradução Luiz Alberto Hanns. v. 1. Rio de Janeiro: Imago ed., 2004, p.
176
HAN, Byung-Chul. A beleza como reminiscência. In: HAN, Byung-Chul. A salvação do belo.
Tradução: Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019, p. 102-103-105-107.
HAN, Byung-Chul. O liso. In: HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Tradução: Gabriel Salvi
Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019, p. 07.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução: José teixeira Coelho Neto. São Paulo:
Perspectiva, 2017, p. 65-66-74.
REFERÊNCIA. In: Michaelis on-line, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São
Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/referência/. Acesso em: 12/05/2022.

Mini Currículo

Josias de Andrade Santos


Bacharel em artes, mestrando no PPGAV da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia,
assina como Dodias. Atua na área da fotografia-vídeo experimental e os seus desdobramentos no
cotidiano ordinário e extra-ordinário. E-mail: falecomdodias@gmail.com

403
“NA MINHA FAMÍLIA, NÃO!” – A INFLUÊNCIA E A UTILIZAÇÃO DE
IMAGENS COMO PULSÃO PARA VIOLÊNCIA DO TOTALITARISMO NO
BRASIL

“NOT IN MY FAMILY!” – THE INFLUENCE AND USE OF IMAGES AS A DRIVE FOR


TOTALITARIAN VIOLENCE IN BRAZIL

Cristiano de Oliveira Sousa


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Este artigo tem o objetivo de abordar a utilização de imagens como pulsão para violência do
conservadorismo brasileiro. A justificativa é discutir o papel da relação sujeito-espectador e
ações impulsionadas por violências visuais contra a diversidade de pensamentos imposta por
uma política autoritária. A metodologia utilizada foi uma análise crítica sobre três imagens
publicadas em redes sociais juntamente com uma pesquisa junto a autores apresentados na
disciplina de Arte e Cultura Visual: Perspectivas Teóricas e Práticas da Universidade Federal
de Goiás, além de autores abordam a dialética de comportamento humano e social como
Freud e Trevisan, matérias jornalísticas e artigos de pesquisadores da relação imagem-
sujeito.

Palavras-chave: Imagem, Violência, Pulsão, Política, Totalitarismo.

Abstract

This article aims to address the use of images as a drive for violence in brazilian
conservatism. The justification is to discuss the role of the subject-spectator relationship
and actions driven by visual violence against the diversity of thoughts imposed by an
authoritarian policy. The methodology used was a critical analysis of three images published
on social networks along with a survey of authors presented in the discipline of Art and Visual
Culture: Theoretical and Practical Perspectives of the Federal University of Goiás, in addition
to authors approaching the dialectic of human behavior and such as Freud and Trevisan,
journalistic articles and articles from researchers of the image-subject relationship.

Keywords: Image, Violence, Drive, Politics, Totalitarianism.

404
Introdução

O que é imagem? Segundo Mitchell (2019, p. 50) “o sentido literal da palavra imagem
é uma representação gráfica, pictórica, um objeto concreto e material, e que noções
como imagens mentais, verbais ou perceptivas”. Mais importante do que definir o seu
significado, é discutir o seu sentido e como esses significados vão se transformando
ao longo do tempo. Qual é a intenção de quem as produz? O sentido da imagem como
representação da linguagem é fundamental na representação como forma de
comunicação visual. De acordo com Stuart Hall (2016)

Representação é produção do sentido pela linguagem. Na


representação, argumentam-se os construtivistas, nós usamos signos,
organizados em linguagens de diferentes tipos, para nos comunicar
inteligivelmente com os outros. Linguagens podem usar signos para
simbolizar, indicar ou referenciar objetos, pessoas e eventos no
chamado mundo “real”. (HALL, 2016. p. 43)

Conforme Orietta Marquina (2016) “Así lo visual, como práctica social que se instala
en la realidad, organiza la vida cotidiana desde una doble perspectiva: los esquemas
personales de visión y los juicios visuales."(p. 9). Dessa forma, a cultura visual, que é
consequência direta da modernização e da tecnologia, se torna também uma dupla
perspectiva: Os esquemas de visão promovidos pelos discursos hegemônicos, e a
formação dos julgamentos visuais em decorrências desses mesmos discursos.

Como a influência e a utilização das imagens como pulsão para violência repercute
atualmente no Brasil? Segundo Mondzain (2009, p. 19) “Quando se diz de uma
imagem que ela é violenta, está-se a sugerir que esta pode agir diretamente sobre
um sujeito, à margem de toda a mediação da linguagem.” A imagem, portanto, tem
uso político, como ressalta Mitchell (2019, p. 62):

Por que temos essa compulsão de conceber a relação entre palavras e


imagens em termos políticos, como uma luta por território, uma
disputa de ideologias rivais? [..] mas uma resposta curta pode ser
fornecida aqui: o relacionamento entre palavras e imagens reflete, no
âmbito da representação, significação e comunicação, as relações que
postulamos entre símbolos e o mundo, signos e seus significados.
(MITCHELL ,2019. p. 62).

405
Segundo Didi-Huberman (2012), “As imagens tomam parte do que os pobres mortais
inventam para registrar seus tremores (de desejo e de temor) e suas próprias
consumações.” (DIDI-HUBERMAN, 2012. p. 210). A imagem tem como função geral
gerar conhecimento, mas, pode também ser utilizada com uma função específica na
dialética, portanto, a imagem não é violenta e sim o uso que se faz dela.

A representação pictórica lgbtfóbica como pedagogia cultural

A pedagogia cultural é ampliada além do âmbito escolar, é utilizada também no


intuito contemporâneo nas redes sociais para implementação de conceitos. Segundo
Steinberg (2001, p. 14) “Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é
organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas,
brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc.” Assim as instâncias
culturais ensinam conhecimentos, valores e habilidades, nas construções de
verdades ou de inverdades, para o bem ou para o mal.

Segundo Crary (2012, p.16) “obviamente, um observador é aquele que vê. Mas o mais
importante é que é aquele que vê em um determinado conjunto de possibilidades,
estando inscrito em um sistema de convenções e restrições.” Na sociedade
contemporânea as tecnologias emergentes de produção de imagem encontram nas
redes sociais seu principal habitat e também sua principal ferramenta, já que são
recursos majoritários na visualização, através da popularização da internet.

Em 2022, em Goiás, o parlamentar Deputado Amauri Ribeiro, publicou na rede social


Instagram uma imagem de uma mão com aspecto monstruoso, envolta a uma
bandeira LGBTI+ impedida de alcançar uma representação de família, com a frase
“Tá dado o recado”. O contexto da imagem, como bem argumenta Freud (1907, p.
109), simboliza um exemplo em que “a religião é a neurose obsessiva universal e que
é utilizada como ferramenta da barbárie em prol da crueldade.”

Figura 1: Imagem postada no stories do aplicativo Instagram do Deputado Amauri Ribeiro, Partido
Patriota – GO, onde uma mão monstruosa enrolada em uma bandeira colorida LGBTI+ é “impedida” de
alcançar um símbolo de família por uma mão branca.

406
Fonte: https://www.instagram.com/deputadoamauriribeiro/

A imagem utilizada pelo deputado cria um mecanismo de controle e, conforme


Winnie Bueno (2020, p. 73), “São utilizadas pelos grupos dominantes com o intuito
de perpetuar padrões de violência e dominação que historicamente são constituídos
para que permaneçam no poder. Neste caso, uma reafirmação de controle político,
em prol dos afoitos pelo conservadorismo:

Sobre o episódio, além de explicar o teor da postagem, o deputado Amauri Ribeiro


assume que publicou a imagem, mas nega que seja homofóbico. Ele disse que não foi
a primeira vez que havia divulgado a ilustração:

Na minha publicação, eu não falei nada dessa viadada (sic). Lá tem uma
mão do mal por cima da família. E a outra mão, como se fosse de Deus,
está segurando aquela. O mal se agrega a tudo. Não tem nada a ver com
homofobia. Eu não sabia que viado (sic) tem bandeira, que homem tem
bandeira, que mulher tem bandeira. Cada um dá o que quer, faz o que
quer. Não sou homofóbico, nem machista e também não sou racista.
Tenho nojo dessas pessoas que se fazem de vítima. Se acham
superiores. Não gosto de excessos. (MARQUES, Jornal Opção, 2022)

Ao se defender, Amauri atribui a repercussão da divulgação à época das eleições, e


pontua:

407
Já postei isso outras vezes. Ninguém fez nada. Mas agora é época de
campanha e os caras querem ganhar votinhos, querem aparecer, dar
um de salvador da pátria. Detesto esse tipo de gente que se faz de
vítima para ganhar holofote. Se soubesse que aquelas cores que
estavam lá eram bandeira de viado (sic), olha que eu teria postado do
mesmo jeito porque eu também não quero que essa ideologia de
gênero, essa porcaria, adentre na minha família. Volto a dizer que não
sou homofóbico. Em meu gabinete têm homossexuais. Quando fui
prefeito, de oito, três secretários eram homossexuais. Se eu fosse
homofóbico, não colocaria nenhum homossexual para trabalhar
comigo. (MARQUES, Jornal Opção, 2022)

A violência do discurso é permitida no contexto contemporâneo, com justificativas


relacionadas a “ideologia de gênero”, sem culpas e expiações, seguido pelo discurso
da normalidade da agressão imagética, já que se desconhece a diferença entre as
múltiplas imagens do bem e o próprio bem.

A violência do visível e a religião

No jornal capixaba A Gazeta, no dia 08 de julho de 2022, foi publicada a reportagem


Outdoor de igreja com mensagem homofóbica gera revolta em Aracruz, pela jornalista
Viviane Maciel. O artigo gerou várias manifestações nas redes sociais como
representada na Figura 2. A justificativa da instituição nesta mesma publicação é que
a bíblia é a única proteção contra o ataque do ativismo LGBTQIA+, o que parece ser
injustificado no país que mais mata pessoas LGBTI+ no mundo, conforme relatório
do último Trans Murder Monitoring, realizado pela organização Transgender Europe
(TEU, 2021).

408
Figura 2: Imagem postada no Instagram Brasil Fede Covid. A igreja Pibara de Aracruz, no Espírito Santo,
instalou um outdoor que mostra uma família se protegendo de uma “chuva de arco-íris”, acompanhada
de uma mensagem contra o ativismo.

Fonte: https://www.instagram.com/p/Cfxce-eF Trf/. Acessado em 1 de julho de 2022.

As duas imagens apresentadas mostram como são as estratégias da violência do


visível, muitas vezes buscando o desaparecimento da diversidade e, assim, a
aniquilação da voz. O interesse é que esse assunto não deve ser discutido ou
manifestado junto às ações que eles consideram um “abuso” aos seus ideais
imagéticos. Contribui para o intuito de aniquilação do diferente, como aponta
Mondzain (2009):

Contudo, enquanto instituição temporal que quer adquirir um poder e


conservá-lo, a Igreja agiu como todos os ditadores, produzindo
visibilidades programáticas, feitas para comunicar uma mensagem
unívoca. Assim, a imagética (imagerie) serve as operações de
incorporação, a imagem é absorvida corno uma substância com a qual
o incorporado se identifica, com a qual se funde, sem réplica e sem
palavra. (MONDZAIN, 2009. p. 36).

A igreja impõe o seu discurso comunitário como mais importante do que o


pensamento e a palavra de cada um. É a representação de uma imagem de controle,
e reforça o domínio sobre o sujeito como símbolo estrutural que deseja controlar um
comportamento voltado à submissão e dominação. Segundo Bueno (2020):

As imagens de controle são a dimensão ideológica do racismo e do


sexismo compreendidos de forma simultânea e interconectada. São
utilizadas pelos grupos dominantes com o intuito de perpetuar padrões
409
de violência e dominação que historicamente são constituídos para que
permaneçam no poder. (BUENO, 2020. p. 73).

No entrecruzar da ilusão religiosa com o mercado das ilusões do político, está a


massa sobre a qual tanto a Igreja quanto o Estado exercem o poder. Instituições
religiosas exploram, da mesma forma, o sentimento de desamparo de cada indivíduo
da massa como garantia da unidade, e assim atacar aos que não fazem parte dessa
mesma unidade e ameaçam a “força do todo”.

Para Mitchell (2019), “Não deveria surpreender que uma tradição religiosa obcecada
por tabus contra imagens esculpidas e idolatria desejasse enfatizar um sentido
espiritual e imaterial da noção de imagens.”, (MITCHELL, 2019. p. 50-51). Por isso, a
imagem do arco-íris incomoda tanto quando representa a diversidade e o brilho da
resistência de gênero e sexual contra as imposições da cisheteronormatividade.

A Imagem como reforço de estereótipos

No livro A personagem homossexual no cinema brasileiro, Moreno (2001) reafirma o


contexto do cinema e sua estética, onde a questão LGBTI+ é vista apenas como uma
caracterização grotesca, assexuada, cômica, marginalizada ou exacerbada. O autor
também observa “Um tom exacerbado no tratamento de seu gestual, chegando até a
uma espécie de carnavalização destes personagens” (MORENO, 2001. p. 27)

Essa visão não é restrita apenas ao audiovisual. Nossos corpos, nossos gêneros e
nossas orientações com suas particularidades, formam nossa identidade ou nossas
identidades. A forma que a expressamos no meio social em que vivemos, resulta na
relação que estabelecemos com a sociedade.

Dentro dessa perspectiva, se faz necessário e urgente oferecer reflexões que


permitam ampliar as discussões sobre as narrativas e construir outras que fogem das
imposições realizadas pelo um sistema patriarcal, hetero, binário e cisgênero.

Trevisan (2019), ao pensar sobre as patrulhas da moral e da família, defende o


ativismo como forma de resistência:

O pensamento político ocidental sempre abrigou uma corrente a essa


identificação pura e simples do poder supostamente familiar em todos
os âmbitos, inclusive culturais, sendo, portanto, uma necessidade

410
desenvolver olhares pautados nas diversas narrativas LGBTI+,
contribuindo para que os direitos desses corpos possam quebrar os
domínios da visualidade que existem para o sustento da autoridade
autocrática. (TREVISAN, 2019. p. 471).

A ideia é que quanto mais desigualdade, pior a convivência. No entanto, a igualdade


de gênero não existe, no senso comum, a associação do feminino como fragilidade
ou submissão, serve para justificar preconceitos, conforme resume em uma frase, a
filósofa americana Judith Butler: “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o
destino” (BUTLER, 2003, p. 26).

A Imagem pode matar?

Na Figura 3, o guarda municipal Marcelo Arruda está sorridente em sua festa que
utiliza diversos mecanismos visuais para representar, através das imagens, a sua
posição política. Marcelo foi assassinado por um sujeito que não o conhecia.
Conforme, o site Rede Brasil Atual, o jornalista Eduardo Maretti informa na
reportagem “Assassino de Marcelo Arruda é indiciado por homicídio qualificado, mas
a polícia não vê motivação política”, que o agente penitenciário Jorge Guaranho,
bolsonarista – ou seja, ligado ao bolsonarismo, um fenômeno político de extrema-
direita –, assistiu às imagens do evento por meio das câmeras de vigilância
localizadas no recinto, de forma informal, com a cumplicidade de outra pessoa que
tinha acesso às imagens e, assim, decidiu “atacar”.

Há risco de vida em uma simples decoração com uma eídola que remete uma posição
política? As imagens são motivo de punição por subverter a ordem dominante?

O motivo do ataque foi incentivado por um governo que instiga o ódio e o ataque à
educação e à cultura, em prol do poder e, consequentemente, imagens de decoração
de uma festa com temática da esquerda, podem significar a morte, porque
incomodaram. Segundo Rancière (2005) “já não é visto com bons olhos querer mudar
o mundo para torná-lo mais justo” (p. 1), nesse sentido, essa barbárie que levou à
morte um indivíduo que apenas comemorava seu aniversário junto a familiares e
amigos, representa significativamente esta frase.

Conforme ressalta Marquina (2016, p. 8) “Lo visual se constituye en enlaces entre los
sujetos y tamiza las relaciones con los Otros. Crea estereotipos sobre los cuales

411
construimos al Otro y funciona como filtros para reconocerlo” (MARQUINA, 2016. p.
8). A ação assassina realizada a partir da visualização das imagens, foi causada
simplesmente pelas relações do sujeito com as imagens de uma festa de aniversário
temática. A natureza intrínseca da imagem, motivou uma ação de violência e
exercício de poder, por parte de um sujeito que se sentiu autorizado a ser o “defensor
da visão do totalitarismo”.

Figura 3: Imagem postada no instagram Brasil Fede Covid na festa de aniversário do guarda municipal
Marcelo Arruda, que comemorava 50 anos, e acabou em tragédia na cidade de Foz do Iguaçu, no
Paraná. Líder sindical e um dos principais nomes do PT na cidade, Arruda promoveu o evento com a
temática relacionada ao partido. O agente penitenciário federal Jorge José da Rocha Guaranho invadiu
o local de carro gritando “Bolsonaro” e “mito” baleou Arruda.

Fonte: https://www.instagram.com/p/Cf1Xv9kLBWi/

Para Mondzain (2009), a imagem não é intrinsecamente violenta, não pode, por si,
matar. O modo como é recebida e utilizada são os fatores que revestem de perigo o
universo visual.

Supondo que a imagem induz passividade, como pode ela levar a


cometer um acto? Se, pelo contrário, coloco a hipótese de que não a
recebo passivamente, a imagem deixa de estar na origem dos meus
actos, mas sim eu mesma, enquanto sujeito livre da minha acção. Logo,
se existe crime, ele não é cometido pela imagem, mas pela mão que o
perpetrou. (MONDZAIN, 2009. p. 41).

O ato, portanto, é de questão política e não imagética. A relação entre a violência e o


visível está associada com o pensamento e a palavra. No campo das visibilidades tais
412
relações hoje, aparecem predominantes no âmbito das redes sociais e da própria
repercussão de todas as imagens geradas a partir desta ação.

O que deve ser feito? Desafios das molduras do olhar

Nosso desafio no desenvolvimento do olhar é buscar identificar o que é de fato


essencial que representa o “ser humano” na representação da imagem artística.
Segundo Rancière (2005) “A experiência estética se mantém, daí por diante, entre
uma natureza e uma humanidade, ou seja, entre duas naturezas e duas
humanidades.” (RANCIÈRE, 2005 p. 8). Deve-se buscar, então, através da arte, um
mecanismo de resistência contra a imagem criminosa.

O fato é, que as imagens conseguem trazer questões específicas e interessantes


pertinentes à nossa existência, não são apenas coisas para representar, possuem uma
dimensão política, como observado por Didi-Huberman (2017)

Eu comecei como historiador da arte, ou seja, como um apaixonado


pela beleza. E um dia me dei conta de que toda análise de uma imagem
tem uma dimensão política, e toda imagem tem uma dimensão política.
Então, tentei ser mais preciso, porque a dimensão artística sempre está
em dialética com algo mais temível, mais perigoso. (DIDI-HUBERMAN,
2017. p.12).

Assim, como ela é utilizada é toda a questão que estamos apresentando aqui, em um
mundo repleto de falsas notícias disseminadas pela internet. Além da dimensão
puramente estética não podemos em nenhum momento deixar de ignorar a
dimensão política presente nos processos da cultura visual e da humanidade. A
política da imagem e da visualidade na contemporaneidade está associada ao poder
da mídia e das redes sociais. A imagem nunca é “somente” uma imagem, já que está
sempre a serviço de um interesse.

Nosso papel como ser humano é combater o uso da imagem como pulsão de fake
news, de mentiras e de técnica de dominação. Que sejamos uma família, como
vagalumes que iluminam a escuridão do ódio, do fascismo, da ignorância e da falta
de empatia. É preciso usar a imagem artística como transcrição humana em prol do
respeito à vida, é aquela que foge da ignorância da alienação, “Para que a arte seja
arte é preciso que seja política.” (RANCIÈRE, 2005, p. 4).

413
O que se propõe e que façamos então o uso da imagem como catarse contra a
doutrinação fascista e cruel criada por interesses de poderosos como uma
ferramenta de representação positiva e contrária ao medo e repressão do ser em
situações onde estar com uma indumentária ou representar uma condição humana,
seja imageticamente um risco à integridade física.

É preciso galgar, portanto, uma atitude de coragem, crítica aos movimentos


conservadores, como bem lembrado por Foucault:

A ontologia crítica de nós mesmos certamente deve ser considerada


não como uma teoria uma doutrina ou mesmo um corpo permanente
de saber que se acumula; ela deve ser concebida como uma atitude, um
ethos, uma vida filosófica na qual a crítica do que somos é, só tempo a
análise histórica dos limites que nos foram impostos e uma
experimentação com a possibilidade de irmos além deles. (FOUCAULT
apud SPARGO, 2006. p. 63-64)

Essa coragem remete também, além de registros de manifestações, a denúncia


pública de situações onde a imagem é utilizada como falsas notícias e instrumento
de controle e incentivo ao ódio. Não devemos nos calar, ou “passar pano” para
imagens que podem promover ações que representem ataques a grupos específicos
ou que promovam informações incorretas. É preciso estar atento ou atenta a essas
publicações no sentido de legitimar a realidade.

Segundo Freud (2013), “A observação nos ensina serem os seguintes os destinos da


pulsão: A reversão em seu contrário. O retorno em direção à própria pessoa. O
recalque. A sublimação.” (FREUD, 2013. p. 36). Qual é o destino da pulsão no ataque
ao diverso? Essa é uma questão que devemos sempre pensar e considerar. Como
ativista dos direitos LGBTI+ e dos direitos humanos percebo que muitas vezes o ódio
provém do medo do diverso, ou da “liberdade” do ser e do estar promover este
encontro consigo mesmo. Representar e ser o ou a “diferente” é muito de pessoas
que tentam a todo custo seguir o caminho “imposto” pela “moral e pelos bons
costumes”, ora se sou infeliz, o outro também deve ser.

É preciso produzir contrapartidas culturais contra a desinformação, conforme


ensina Fernando Hernández (2011 “a contribuição principal da perspectiva da cultura
visual é propor (argumentando seu sentido) uma mudança do foco do olhar e do lugar
de quem vê.” (HERNÁNDEZ, 2011. p. 35). Precisamos, portanto, produzir através da
414
arte e cultura visuais mecanismos de questionamentos, como existem a anos é
preciso disseminar a “anarquia” do ato de pensar, questionar os padrões.

O ato principal dessas manifestações de ação cultural é ser resiliente. E acreditar na


produção artística como uma luz no fim do túnel da ignorância. A sobrevivência da
arte como exemplo de esperança, no que poderíamos ser como “seres humanos”
representa a empatia, criatividade, solidariedade e ser resistência frente a ações
totalitárias.

Sejamos então como vaga-lumes, brilhando e resistindo nesta época de fascismo,


ódio e intolerância, onde até mesmo a arte é apropriada e utilizada como ferramenta
de ódio e de repressão, mas que não simboliza a verdadeira essência da diversidade
e do sentido de humanidade.

Referências

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Collins. Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CRARY, Jonathan. A modernidade e o problema do observador. In: Técnicas do
observador. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 11-32.
DIDI-HUBERMAN, Georges; ENGLER, Verónica. “As imagens não são apenas coisas para
representar”. Entrevista com Georges Didi-Huberman. Instituto Humanitas Unisinos,
2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/568830-as-
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huberman.
DIDI-HUBERMAN, Georges. As imagens não são apenas coisas para representar. Entrevista
com. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo:
Editora 34, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Belo Horizonte, Editora
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando As Imagens Tocam O Real. PÓS: Revista do Programa
de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 206-219, 30 nov. 2012. Disponível em:
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FREUD, Sigmund. Acciones obsesivas y practicas religiosas. In: Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu, v. 9, 1976, p. 97-110.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos São Paulo: Autêntica, 2013.
415
HALL, Stuart. Cultura e Representação Stuart Tradução: William OLIVEIRA e Daniel
MIRANDA. Editorial: PUC-Rio: Apicuri. Rio de Janeiro, Brasil, 2016.
MACIEL, Viviane. Outdoor de igreja com mensagem homofóbica gera revolta em Aracruz.
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MARETTI, Eduardo. Assassino de Marcelo Arruda é indiciado por homicídio qualificado,
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MARQUES, Eduardo. Deputado Amauri Ribeiro é denunciado na polícia por cometer
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MONDZAIN, Marie-José. A violenta história das imagens. In: A imagem pode Matar.
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MORENO, Antônio. A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro. Niterói RJ, EduFF
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RANCIÈRE, Jacques. Será Que A Arte Resiste A Alguma Coisa. In: LINS, Daniel (Org).
Nietzsche e Deleuze. Arte e Resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Rio de
Janeiro Forense, 2005.
SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer. Rio de Janeiro: Pauzlin; Juiz de Fora: Ed. UFJF,
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STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Jon (Orgs.). Cultura infantil: a construção corporativa
da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
TEU - Projeto de investigação TvT. Trans Muder Monitoring / Observatório de Pessoas
Trans Assassinadas (TGEU, 2020) https://transrespect.org/en/map/trans-murder-
monitoring/ Acesso em: 20 ago. 2021.
TREVISAN, José Silvério. Devassos no Paraíso. Rio de Janeiro, RJ Editora Objetiva, 2018.

Mini Currículo

Cristiano de Oliveira Sousa


Mestrando em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. Produtor Audiovisual. E-mail:
cristianosousa@discente.ufg.br

416
SILÊNCIOS MEKHANTRÓPICOS: A POÉTICA TRANSMÍDIA, COLABORATIVA E
EXPERIMENTAL DA OBRA EU HOJE CHOREI MINHA MORTE

MEKHANTROPIC SILENCES: THE TRANSMEDIA, COLLABORATIVE AND


EXPERIMENTAL POETICS OF THE WORK EU HOJE CHOREI MINHA MORTE

Frederico Carvalho Felipe


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Este trabalho é parte extraída da minha tese-criação, na qual penso sobre formas como
lidamos com a tecnologia e as sombras (JUNG, 2015). Tais conceitos me auxiliam na busca
por processos de criação do universo ficcional transmídia intitulado MekHanTropia, no qual
represento artisticamente aspectos da minha subjetividade (memória, percepção,
imaginação, emoções, desejos, medos, sonhos, entre outros), em tempos obscuros de
necropolítica, pandemia, neofascismo, pós-verdades, psicopolítica (HAN, 2018) e dataísmo.
Reflito sobre os regimes de verdades instituídos nesse universo pela linguagem binária e suas
consequências maniqueístas e totalitárias na narrativa distópica do álbum Eu hoje chorei
minha morte (2022). Investigo e experimento formas de representar a destruição e os
caminhos de resistência contracultural e autoconhecimento, aliando prática e teoria pela
arte colaborativa e experimental. Pela fragmentação transmídia, vislumbro narrativas
oníricas transcendentais.

Palavras-chave: Psicopolítica. Representação. Transmídia. Processos de Criação.

Abstract

This work is part of my creation thesis, in which I think about ways we deal with technology
and shadows (JUNG, 2015). Such concepts help me in the search for processes of creation of
the fictional transmedia universe entitled MekHanTropia, in which I artistically represent
aspects of my subjectivity (memory, perception, imagination, emotions, desires, fears,
dreams, among others), in dark times of necropolitics, pandemic, neo-fascism, post-truths,
psychopolitics (HAN, 2018) and dataism. I reflect on the regimes of truths instituted in this
universe by binary language and its manichean and totalitarian consequences in the distopic
narrative of the album Eu hoje Chorei Minha Morte (2022). I investigate and experiment with
ways to represent the destruction and some paths of countercultural resistance and self-
knowledge, combining practice and theory through collaborative and experimental art.
Through transmedia fragmentation, I glimpse transcendental dream narratives.

Keywords: Psychopolitics. Representation. Transmedia. Creation Processes.


417
Introdução

Crio com intencionalidade poética um universo ficcional transmídia intitulado


MekHanTropia1, que também dá nome à minha tese-criação (em processo de
elaboração). Nesse universo, pelo deslocamento conceitual de temas cotidianos
projetados à uma dimensão ficcional extraordinária, investigo formas de representar
caminhos de resistência e transformação contracultural, aliando prática e teoria pela
arte colaborativa e experimental. Atuo de maneira lúdica a partir de métodos
criativos calcados na premissa do it yourself (DIY)2, exaltando o pensamento crítico,
o autoconhecimento, a arte e a vida como importantes meios de lidar com a
destruição institucionalizada atual.

MekHanTropia: controle, consumo e individualismo

O universo transmídia de MekHanTropia se aloca narrativamente em um futuro


hipotético com alta dependência tecnológica, tendência tecnocrata, consumista,
narcisista, negacionista e neofascista enquanto representação. Nesse universo, as
redes sociais, em função do sistema, cooptaram os rituais e passaram a atuar como
elemento ordinário de comunidade simulada. Apesar das redes trazerem algumas
características ritualísticas (DONNARUMMA, 2022)3, como: a “repetição”, cotidiana e
constante, mas sem reconhecimento e intensidade, tornando-se, assim, rotina de
caça por estímulos; a “regularização”, através das interfaces e do controle de dados;
“recortes temporais”, porém sem o tempo como uma construção ritual habitável, mas

1
O termo “MekHanTropia” vem sendo desenvolvido e aprofundado em minha tese-criação como um conceito
poético, no intuito de explorar a representação para o processo de transformação do Homem (antropo) em Máquina
(mekhos) nesse universo. Esse conceito visa nossas relações sociais e com o meio natural, aproximando-o ao
conceito de “misantropia” – aversão ao ser humano e à natureza humana de forma geral ou a falta de sociabilidade
– bem como as dispersões causadas pela tecnologia, acentuadas em tempos pandêmicos.
2
Do it yourself, do inglês “faça você mesmo” (Tradução nossa). O termo remete ao movimento sócio-musical punk-
rock, iniciado na década de 1970, e à disseminação de ideais minimalistas, anarquistas, anticonsumismo e
anticapitalista. Atualmente, o termo abarca outras definições relacionadas que, por vezes, fogem da intenção
original, significando até o oposto, em alguns casos alusivos à ideia de empreendedorismo e hiperprodutividade
mercadológica.
3
O estudo sobre os rituais, de Barry Stephenson em sua obra Ritual: A Very Short Introduction (2015), é citado por
Marco Donnarumma em palestra on-line sobre seu trabalho “Amygdala”, no quinto dia do evento CIACT-07: 7º
Congresso de Arte, Ciência e Tecnologia e Seminário de Artes Digitais (10 jun. 2022). A palestra se inicia a partir da
minutagem 06:15:30 do vídeo no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Rg7t8metUGI&t=4s
Acesso em: 14/10/2022.
418
desintegrado em sucessões de estímulos fugazes impermanentes; “Atitude específica
(enquanto performance)”, no caso a manifestação de engajamento emocional, quanto
maior em uma postagem, maior a reação a ela.

Todavia, tais características não se completam enquanto transcendência, pois as


redes não atingem a profundidade de “elevação e conexão com o sagrado” por serem
ações ritualizadas que não se baseiam na “invocação de cosmologias comuns”.
Segundo Byung-Chul Han (2021), atualmente ao invés de usarmos as coisas, as coisas
que nos usam.

Hoje não consumimos meramente as coisas, mas também as emoções


com as quais são carregadas. Coisas não se pode consumir
infinitamente, emoções, contudo, sim. Inauguram todo um novo
campo de consumo infinito. A emocionalização e a estetização, que a
acompanha, da mercadoria são regidas pela coação de produção. Têm
que potencializar o consumo e a produção. Com isso, o estético fica
colonizado pelo econômico (HAN, 2021, pp. 14-15).

Tecendo um comparativo com o meu universo ficcional, as ações rituais instituídas


nos fluxos digitais binários das redes alienam de maneira extremista e maniqueísta a
sociedade em MekHanTropia, pois não abrangem zonas cinzas transbinárias4 de
nuances típicas da existência, exaltando o individualismo e atuando, precisamente,
na erosão do senso de comunidade. Neste contexto, a ideia de “ter” (no sentido de
“comprar”) é mais importante que a ideia de “ser” e “estar” (no sentido de “fruir”) no
mundo. Han (2021) coloca que os rituais são práticas simbólicas de “encasamento”
com o mundo e isso vem se perdendo cada vez mais.

Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os


valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma
comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma
comunicação sem comunidade. A percepção simbólica é constitutiva dos
rituais. (...) O símbolo serve (...) ao reconhecimento. (...) ‘Reconhecer
avista o permanente no fugaz’. (...) O mundo hoje está muito desprovido

4
O termo “transbinarismo” vem da ideia de acessar complexidades típicas da existência para lutar contra o
“Binarismo Anticósmico” imposto pela linguagem digital binária (“0” e “1”), pensado pelo Ciberpajé Edgar Franco.
Disponível em: https://ciberpaje.blogspot.com/2021/10/veja-como-foi-se-voce-nao-acompanhou.html Acesso em:
26/09/2022. O conceito foi também utilizado no álbum Renovaceno (2021), de Edgar Franco.
419
de simbólico. Dados e informações não possuem força simbólica.
Assim, não admite reconhecimento (HAN, 2021, pp. 9-10).

As redes sociais, nesse universo, são válvulas de escape ilusórias instituídas para
aliviar a tensão social dos “bovíduos mekhantropos”5. Contudo, reúnem a
comunidade em torno de performances narcísicas que fomentam o individualismo,
o ódio e a intolerância, em uma reprodução acentuada do ego, distanciando os
indivíduos dos grupos sociais e fechando-os em suas telas egóicas, o que aniquila o
senso de diversidade, empatia e comunidade como tal. De acordo com Han (2021),
“os valores também servem hoje como objetos de consumo individual. (...) Mudar o
mundo pelo consumo seria o fim da revolução” (p. 15), e é isso o que ocorre em meio
à hiperinformação mekhantrópica.

Han (2021, p. 18) coloca que hoje há uma “percepção serial” que é “extensiva”, ao
contrário da “percepção simbólica” que é “intensiva”, não produzindo, na
comunicação digital pelas redes, relações, mas conexões sem sentimentos de
comunidade. Isso, segundo ele, acelera a percepção e se torna um hábito a serviço
do sistema neoliberal, que “elimina deliberadamente a duração para obter mais
consumo”. Nessas condições, há um direcionamento ao não pertencimento e à
impermanência crítica e reflexiva de fruição, uma vez que, para habitar
simbolicamente, a duração e os afetos são essenciais.

Em MekHanTropia olhar para dentro é um ato de resistência a um regime que explora


a ilusão de liberdade como meio de dominação. O olhar interior só cabe ali se
exercido narcisicamente em função do ego. Os afetos e emoções são “efêmeros como
estados de um indivíduo isolado para si” (HAN, 2021, p. 25). Logo, o autoconhecimento
integrativo das sombras e a relação com o “outro”, com a diversidade, representa
uma distorção sobre a psicopolítica (HAN, 2018) instituída.

Além das redes, a autoexposição e a autovigilância também se destacam como


elementos desse sistema, regulando o pensamento e o comportamento das pessoas
ao estabelecer concepções relacionadas à hiperprodutividade e à

5
Denominação atribuída aos indivíduos de MekHanTropia.
420
hipercompetitividade como ideais de felicidade pela positividade da motivação,
inovação, empreendedorismo e otimização.

Por meio desses recursos, o sistema cria e oficializa “regimes de verdades”,


naturalizando práticas e discursos de acordo com seus interesses. Padroniza as
mentes, elimina a subjetividade e esvazia as vidas de valores a partir da linguagem
digital binária maniqueísta imposta subliminarmente. Isso se dá numa condução dos
desejos em função do autoconsumo perpetrado sobre o tempo de vida, explorando
ideias torpes de “liberdade”, “felicidade” e “conveniência” e simplificando nuances
que são complexas em essência.

Arendt busca uma interpretação peculiar do conceito kantiano de ‘mal


radical’ que teria surgido justamente com um sistema em que todos os
homens se tornavam igualmente supérfluos. A radicalidade desse mal
não seria algum tipo de recusa deliberada da lei moral, provocando
assim a corrupção de todas as máximas, como diria Kant; mas sim em
um mal absoluto diante da possibilidade do fim da pluralidade entre os
seres humanos na face da Terra, a partir do momento em que estes se
tornam supérfluos. Segundo Arendt, os seres humanos se tornariam
supérfluos quando estes têm sua dignidade humana atingida de um
modo que perdem sua capacidade de agir contra esse mal radical
(SEGUNDO, 2021, pp. 27-28).

Portanto, o universo poético de MekHanTropia seria uma dimensão digital onde


processos humanos elementares como a imaginação, a memória e a percepção são
distorcidas e padronizadas intencionalmente pelo digital, tornando o pensamento
algo descartável. “O like exclui toda revolução” (HAN, 2022, p.17). A capacidade de agir
em oposição ao sistema é anestesiada por uma ilusão de realidade centrada nas redes
e fluxos digitais. A “ação social” de transformação, transcendência e revolução é
substituída pelo “curtir” e “compartilhar”, gerando uma percepção de “liberdade”
ilusória e alienada em meio ao simulacro das bolhas de concordância instituídas pelos
algoritmos que escondem a destruição mundial.

Com seu dataísmo, o regime de informação revela traços totalitários.


Aspira ao saber total. Mas o saber total dataísta não é alcançado pela
narração ideológica, mas pela operação algorítmica. (...) Contos e
narrativas dão lugar às contas algorítmicas. (...) Algoritmos, não
importa o quão inteligentes possam ser, não são capazes de eliminar a
experiência da contingência de maneira tão eficaz quanto uma

421
narrativa o é. (...) O dataísmo (...) não transcende a imanência do que
está dado, ou seja, os dados (...) pois é um totalitarismo sem ideologia
(HAN, 2022, pp. 20-21).

Exalta-se não a diversidade social, mas o narcisismo individualista e autocentrado,


em uma coação por autenticidade e performance. Fechados nas próprias telas, “cada
um se produz. Cada um cultua o self, na medida em que é o sacerdote de si mesmo”
(HAN, 2021, p. 31). O “outro” – inclusive as próprias sombras (JUNG, 2015) –, é negado
caso não traga concordância com suas convicções egóicas.

A falta de diálogo, empatia e a ascensão da intolerância são algumas consequências


do dataísmo e do narcisismo amalgamado nessas “auto(pseudo)verdades absolutas”,
ou seja, na “pós-verdade” crescente que perverte o pensamento cartesiano e institui
uma lógica do “acredito logo é verdade (e estou certo)”, algo parecido com o
maniqueísmo fundamentalista.

Mídias sociais se assemelham a uma igreja: Like é amém. Compartilhar


é comunicação. Consumo é redenção. A repetição como dramaturgia (...)
dá ao todo o caráter de uma liturgia. (...) Consumo e identidade se
tornam a mesma coisa. A identidade é, ela própria, uma mercadoria.
Nós nos imaginamos em liberdade, enquanto nossa vida está submetida
a uma protocolização total para o controle psicopolítico do
comportamento (HAN, 2022, pp. 18-19).

Sonhar é ainda um ato subversivo em MekHanTropia, por ser um portal de acesso ao


inconsciente que foge, em partes, do controle do sistema. Pelos sonhos os
personagens acessam e trafegam por estados extraordinários da mente de maneira
lúdica, escapando da rigidez instituída pela “Realidade Validada” (ASCOTT, 2003)
desse universo.

Segundo Ascott (2003), temos três realidades (RVs): a “Realidade Virtual”, que
abrange a ideia de interação e imersão entre nossas conexões sensoriais e os
ambientes que habitamos ou vislumbramos tecnológicamente. A “Realidade
Validada”, calcada na visão ordinária de mundo e no que acreditamos ser o modelo
de realidade estabelecido por axiomas oriundos de nossa formação sociocultural,
ignorando ou descredibilizando, muitas vezes, visões que extrapolam tais modelos. E
a “Realidade Vegetal”, que pode ser entendida “como a transformação da consciência
pela tecnologia vegetal” (ASCOTT, 2003, pp. 277-278), operando de forma

422
transcendente e visionária sobre a mente. A ideia de “Realidade Vegetal” pode
também ser relacionada ao acesso ao inconsciente pela ancestralidade, pelos sonhos,
por ENOC6, pela meditação, etc.

Destarte, em MekHanTropia não há mais diferenciação sobre os limites entre as


realidades ascottianas. Questionamentos geralmente permeiam os inconscientes de
alguns personagens da obra, escapando do controle do sistema pelos sonhos, pelos
delírios, pelos devaneios, pela imaginação, pela arte, por narrativas fantásticas,
lendas, mitologias, etc. Será que o ato de sonhar nesse universo não seria também
uma simulação maquínica, como os denominados “sonhos elétricos” de Philip K.
Dick?

Segundo Sidarta Ribeiro (2019, p. 99), “o sonho é a possibilidade de imaginar os


futuros em potencial através de um mecanismo capaz de prospectar a experiência
pregressa e formar novos conglomerados psíquicos, juntando ideias antigas de forma
nova”. Como pelos sonhos a psique humana se transforma e, nessas transformações
acontecem ressignificações sobre a percepção, as memórias e a imaginação. Assim,
o sonho orgânico é perigoso ao sistema mekhantrópico, pois foge do seu controle
dataísta.

A memória humana é uma narração, uma narrativa para a qual o


esquecimento é essencial. A memória digital, por outro lado, é uma
adição e acumulação sem intervalos. Os dados armazenados são
contáveis, mas não narráveis. (...) A memória é um processo dinâmico e
vivo em que diferentes períodos de tempo interferem e se influenciam
mutuamente. Está sujeita a transcrições e reagrupamentos constantes.
(...) Assim, não existe o passado que se mantém igual e é recuperável na
mesma forma. A memória digital se constitui de momentos presentes
indiferentes ou, por assim dizer, de momentos zumbis (HAN, 2018, pp.
92-93).

Os dados arquivados pela memória do sistema são guardados e nunca “esquecidos”,


ou seja, não há ressignificação e transformação, mantendo todos como reféns em
uma sociedade binária, extremista, esvaziada de simbolismos populares e
hipervigiada, em essência, pela transparência e positividade narcísica de cada um.

6
Sigla utilizada para “Estados não-ordinários de consciência”. Também há a utilização da sigla EAC: “Estados
Alterados de Consciência”.
423
Nesse dataísmo habita o totalitarismo neofascista oculto de MekHanTropia. As
perspectivas são manipuladas de acordo com conveniências, gerando regimes de
verdades (ou pós-verdades) induzidos por simulações acerca dos fatos ocorridos,
instituindo implicitamente pensamentos e emoções binárias que acentuam
distúrbios psicoemocionais.

Projeções e representações poéticas transbinárias

Enquanto autor, tento boicotar o sistema totalitário instituído de MekHanTropia, em


uma proposta de jornada fragmentada, na busca por integração simbólica e
libertação do imaginário, em especial o meu. Como uma espécie de embaixador
transdimensional, articulo questões entre a minha realidade validada e a realidade ali
representada nesse universo. Produzo relações mais fortes e empáticas com o
mundo ao sair de mim mesmo pela imaginação, adentrando nos pensamentos dos
personagens e pensando perspectivas diferentes.

Essas relações alteram o funcionamento de ambos os universos. Na minha vida, me


transformo ao contactar a pluralidade arquetípica dos personagens, em um processo
de autoconhecimento sobre questões arraigadas em meu pensamento. Em
MekHanTropia, essa ação me coloca também como um personagem, no caso
autointitulado “O Acimador”7, um ser onírico de múltiplas faces que consegue acessar
diferentes dimensões espaço-temporais e dialogar com seres e entidades banidas de
MekHanTropia (como o Cão Breu, por exemplo), tecendo elos entre os sonhos
(elétricos?) dos personagens.

Tento usar a transmídia para criar de maneira ciberpunk8, abrindo lacunas de


projeção psíquica e diálogos entre as obras. Nesse percurso, interajo com outros
artistas, tecnologias e universos, interseccionando tempos e espaços, me
apropriando, desapegando, hibridizando, ressignificando e experimentando

7
Uma brincadeira com a palavra “embaixador”, deslocando o que está “embaixo” para o que está “acima” dos
personagens, no caso “eu” como autor.
8
Emprego tal denominação como uma forma de agir poeticamente, de dentro para fora do próprio sistema,
utilizando suas ferramentas para contestá-lo.
424
processos artísticos, mágickos, científicos e filosóficos sobre minhas poéticas e
narrativas.

Eu hoje chorei minha morte: Poéticas Artísticas e Processos Criativos Ritualísticos

Em Eu hoje chorei minha morte9, lançado em 26 de março de 2022 (dia do meu


aniversário de 40 anos), penso sobre um deslocamento conceitual a um futuro pós-
mekhantrópico devastado pelas máquinas10, com o planeta já quase sem vida. A obra
me surge como um portal magicko ritualístico de passagem e percepção sobre o
universo que crio. A morte como um processo natural da vida em oposição à ideia
distópica de existência eterna das máquinas como extensões humanas a nos servir,
o que provoca a destruição e desconexão do ser humano com planeta e com as outras
espécies.

A capa contém a imagem de uma abelha perdida com a silhueta de prédios


desfocados ao fundo. O intuito é representar a extinção da vida e o contraste entre
o natural e o artificial, a natureza e a urbanidade, a carne e o concreto, o vivo e o
morto. A foto (como também o título) traz ainda, enquanto intencionalidade poética,
uma relação entre o silêncio e o ruído, ponto nevrálgico da obra.

“Em qualquer lugar que seja, o que mais ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, ele
nos perturba. Quando paramos para ouvi-lo, descobrimos que é fascinante” (CAGE,
2019, p. 3). Assim, enxergo a imagem da capa como a representação do silêncio
absurdo da devastação. Uma terra arrasada, simbolizada pela melancólica abelha na
luta pela vida, emitindo parcos ruídos de agonia em meio a cidade devastada, já sem
ruído algum. O silêncio distópico do cotidiano ordinário de MekHanTropia permeado
por ruídos extraordinários presos nos fluxos maquínicos de simulação.

As músicas foram compostas e gravadas a partir de um ritual meditativo pessoal, no


qual deixo fluir os sons pelas imagens que me surgem na mente em meditação. Nessa
relação, o silêncio ocupa um espaço considerável e é abordado tanto pelas músicas

9
Disponível em: https://fredecf.bandcamp.com/album/eu-hoje-chorei-minha-morte Acesso em: 26/09/2022.
10
Em MekHanTropia, o olhar dos personagens é convocado para dentro, para a reflexão e autotransformação num
contexto de simulacro e simulação (BAUDRILLARD, 1991). Essa busca estabelece conexões com a figura lendária do
Cão Breu, um ser fantástico que induz uma atenção às sombras junguianas (JUNG, 2015) como meio de individuação,
uma espécie de força metafísica oriunda do processo de autoconhecimento transbinário (FRANCO, 2021).
425
com suas pausas (que dão abertura à participação dos ruídos ambientais), quanto
pelas letras que tratam da importância, intencional ou não, que a impossibilidade de
silêncio tem na existência.

[Na] música nada acontece além de sons: aqueles que estão escritos e
aqueles que não estão. Os que não são escritos aparecem na partitura
sob a forma de silêncios, abrindo as portas da música para os sons que
podem acontecer no ambiente. (...) Não há tal coisa como um espaço
vazio ou um tempo vazio. Há sempre algo para ver, algo para ouvir. Na
verdade, por mais que se tente fazer silêncio, não conseguimos (CAGE,
2019, pp. 7-8).

Quanto aos processos, a obra remete aos surrealistas, os quais tinham como
característica a livre associação e o automatismo psíquico na busca pela integração
da mente de maneira mais espontânea possível, acessando elementos do
inconsciente e sem a preocupação com a recepção ou racionalização da obra. A
fruição da vida em constante movimento pela atenção meditativa à respiração e ao
que me rodeia, bem como as livres associações fortuitas do meu repertório cultural,
orientam a essência do processo de criação em sua origem e, em seguida, no contato
com as tecnologias (digitais ou não).

Há uma aproximação temática racional posterior com as trágicas mortes


decorrentes da necropolítica que nos ronda e provoca destruição, uma vez que são
temas que me cercam atualmente. Tais composições são ainda uma forma de
ressignificar emoções do luto pela perda do meu avô paterno em fevereiro de 2022,
o que me desvelou reflexões sobre os ciclos, movimentos e transformações da
existência.

Além disso, um direcionamento conceitual narrativo das letras e ordenação das


faixas foi pensado com a intenção de alocar a obra no universo de MekHanTropia. O
álbum narra uma imersão na mente de um ser humano em processo de
mekhantropomorfização, ou seja, se transformando em fluxos e cancelando suas
características orgânicas animais. Neste processo, o tempo e o espaço são alterados
e se mesclam com resquícios de ludicidade que ainda restam. Sua percepção
existencial se modifica adentrando os fluxos digitais e não mais as intencionalidades
fenomenológicas originais. Essa narrativa tem influência poética dos seres
“Extropianos” do universo da Aurora Pós-Humana de Edgar Franco, “seres

426
abiológicos, resultado da transferência da consciência para chips de computador”
(FRANCO, 2013, p. 24).

As parcerias estabelecidas na obra expandem e tocam outras reflexões e universos,


elevando a narrativa a novas expansões por portais de ressignificação sobre as
formas pelos conteúdos. As fragmentações transmidiáticas operam em um
movimento no qual o conteúdo subjuga a ferramenta ao não colocá-la como centro
primordial da expressão artística. Como coloca Léo Pimentel (citando Andreia M. de
Oliveira): “o aperfeiçoamento técnico não consiste em dominar a técnica, mas abri-
la à sua indeterminação, questioná-la em sua função. Caso contrário, a técnica
adquire uma importância maior do que o conteúdo que se quer veicular por meio
dela.”11

Musicalmente, as faixas trazem ambiências experimentais que flertam com a


psicodelia, trilhas de horror e ficção científica, dark, industrial, rock (décadas de 60,
70 e 80) e folk. Todas as faixas possuem contrastes entre elementos acústicos e
eletrônicos, característica poética das minhas produções nesse universo ficcional,
que, apesar das dualidades, formam tudo a mesma coisa: o universo onírico de
MekHanTropia, um “uno” que abarca dimensões transcendentais e não se limita a
representar as coisas como elas são em nossa realidade validada, mas possibilidades
de ser, estar e sentir. Nesse universo uma cor pode ser um personagem ou uma
emoção, uma fumaça ou reflexo pode ser um cenário, uma música pode ser um
pensamento ou um sonho, um jogo pode ser um oráculo, um conto pode ser um
delírio, um vídeo pode ser uma congruência entre o futuro e o passado.

A primeira faixa, Scienter (Ps&co Ataq), indica alguns experimentos científicos


mekHanTrópicos e suas consequências nessa realidade distópica apresentada. Seres
hibridizados absurdos são descritos pela letra criando um ambiente de ficção
científica horripilante, uma espécie de Ilha do Dr. Moureau futurista. Pensei em uma
sonoridade que remetesse à grupos como Kraftwerk, Joy Division e Bauhaus. Quis

11
Citação presente no cartaz de abertura de exposição em 15/01/2022 na Ecce Monstra: Microgaleria de
Audiovisualidades em Brasília-DF. Disponível em: https://eccemonstra.blogspot.com/2022/01/04-assim-abrimos-
2022.html Acesso em: 13/10/2022.
427
usar uma voz robotizada cercada de ruídos, sirenes e sintetizadores para trazer um
ar de estranheza e angústia já no início do EP.

A segunda faixa, MekHanTotens TranZinários, surgiu de uma experiência poética de


expansão transmidiática, em parceria com o artista e pesquisador Gazy Andraus, a
partir de seu artezine “3D-Imagens, vol. III”12. Na obra original, Gazy reflete sobre
aspectos da mente humana, sobre a informação, a representação, comportamentos
e aspectos analíticos e cognitivos, com questionamentos sobre a natureza do “real”
e do “virtual”. Os versos também exaltam a importância do silêncio para a integração
e renovação da alma. Assim, me veio à mente a música “Echoes” da banda Pink Floyd,
que trabalha bastante a questão das pausas e contrastes.

Narrativamente, o eu-lírico parte em busca de autotransformação e


autoconhecimento por meio dos sonhos (elétricos?). Ao ouvir a voz de Gazy gravada
com eco, imaginei um mestre ancião transdimensional tentando explicar a essência
da psique humana e da realidade. Assim, o sistema mekhantrópico asculta essas
informações e implanta esse conhecimento como simulação, numa estratégia de
fisgar os indivíduos pela percepção, memórias e imaginação a partir de totens de
significação, ludibriando e induzindo, através das vontades e representações, as
pessoas ao consumo e, consequentemente, à destruição do habitat e das relações. A
palavra “totem” é repetida por múltiplas vozes e vezes em estéreo, durante toda a
música, para dar essa impressão de cooptação e padronização de toda a sociedade
de MekHanTropia.

As músicas, em geral, trazem uma certa relutância do eu-lírico pela transformação e


a esperança de que, ao sair da situação protética para uma experiência imersiva total
na máquina, deixaria de ser um escravo. Tal esperança se mostra um triste engano,
uma vez que o renascimento digital padronizado se impõe. A ideia ilusória de que
com a transformação da vida em dígitos continua-se “vivo” mesmo após a morte,
some diante do hiperfluxo das redes, da implacável finitude e do todo devastado.

O videoclipe e a faixa MekHanTropomorfização13 especula um pouco sobre esse


conceito, em uma representação sobre a aniquilação do animal interior subjetivo do

12
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=khORiOQXkXM Acesso em: 13/10/2022.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lYwyKhMOkVY&t=5s Acesso em: 13/10/2022.
428
personagem. Enquanto isso, a “hiperconectividade” e a “hiperinformação” o guiam a
um sistema instituído em função do “hiperconsumo” e da “hipercomparação”
fundada no medo e na produtividade, o que atrofia cada vez mais sua imaginação.

A faixa O Oitavo passageiro pós-mekHanTrópico, foi inspirada num conto insurgente


do Amante da Heresia. Segundo ele, o “oitavo passageiro” nasceu após a leitura do
livro de ficção científica "2021". O livro contém sete contos escritos por sete autores
de ficção científica inspirados em sete ilustrações do artista multimídia Edgar Franco
(a.k.a. Ciberpajé). A narrativa original é um pequeno relato, em primeira pessoa, da
rede neural convolucional Deep Dream, cujos olhos nos encaram da tela fazendo uso
de uma imagem para tal. A imagem escolhida pelo Amante da Heresia, vinda das
profundezas intensas e imaginativas do Ciberpajé, foi o seu Cthulhu, apropriado pelo
Amante da Heresia e reapropriado por mim junto ao texto/relato escrito, com ruídos
dissidentes em uma espécie de “MekHanTropofagia Pós-Humana”14.

Inseri risadas, batimentos cardíacos, efeitos de voz, sintetizadores, samplers e


barulhos diversos para trazer um aspecto transdimensional industrial e psicodélico
darkwave à faixa, que ficou com uma ambientação hibridizada, cyberpunk
lovecraftiana, como se o eu-lírico estivesse definitivamente mekHanTropomorfizado
e preso ao binarismo digital, embora tentasse ainda buscar por nuances coloridas
transbinárias em meio ao deserto binário em preto e branco que o envolve.

Adiante, surge o cenário de um mundo tenebroso com a melancólica e apocalíptica


In the world of bones, com influência de Tom Waits, Neil Young, Bob Dylan e Mark
Lanegan, a música aborda os ciclos, as finitudes, as dores e a solidão de um mundo
repleto de zumbis tecnológicos tecnocratas. A faixa O Acimador/Cani Buiu Mantra
apresenta um ambiente de nuances transcendentais progressivas. A música faz
alusão aos rituais, numa tentativa do eu-lírico escapar daquela condição olhando
para dentro de si e rompendo com suas teimosias e apegos. É uma representação do
incognoscível que ainda habita o personagem, em uma viagem pelos labirintos do
que restou de seu inconsciente, representado por mim enquanto seu criador (O
Acimador). A faixa conta com a participação do Ciberpajé uivando e tocando
instrumentos percussivos, o que representa uma tentativa ritualística de contato e

14 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xTiKmYVDBeM&t=11s Acesso em: 13/10/2022.


429
imersão do eu-lírico em suas profundezas, já mekhantropomorfizado tentando
evocar o Cão Breu (Cani Buiu).

Por fim, Resquícios de Carbono e Silício (do lado de dentro) traz reflexões sobre como
o eu-lírico se percebe nessa nova condição, num cenário no qual sua subjetividade
não é mais possível. Ele crê que tudo que pensa e vê é absurdo, mas não entende que
ele não pensa e o que ele ali vê não possui carga simbólica de significação. O
videoclipe15 traz algumas memórias humanas fragmentadas do personagem se
hibridizando com os algoritmos mekHanTrópicos.

Elucubro nessa obra o sentimento de liberdade recorrente, porém cada vez mais
inexistente e preso ao dataísmo de MekHanTropia. Pela transmídia, tento trafegar e
romper, nos “entre-espaços oníricos” digitais, com o status quo e seus aspectos
imperativos de transparência institucionalizada. De forma transbinária, busco
provocar encontros ritualísticos de criação nos quais o sagrado é a arte e a
transmutação. Pela pulverização narrativa de diferentes cosmogonias, a opacidade
de subjetividades interseccionadas emerge como estratégia de resistência do
conteúdo contra as ferramentas translúcidas do sistema. Triturar a telecracia
teleológica e implodir a MekHanTropia pelos tráfegos oníricos transmidiáticos, pelo
autoconhecimento e pelos encontros poéticos colaborativos alheios ao mercado.

Referências

ASCOTT, Roy. Quando a Onça se Deita com a Ovelha: a Arte com Mídias Úmidas e a Cultura
Pós-biológica. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte e Vida no Século XXI: Tecnologia,
Ciência e Criatividade. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p.273-284.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’água, 1991.
CAGE, John. Silêncio: conferências e escritos de John Cage. Trad. Beatriz Bastos, Ismar T.
Neto. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
DONNARUMMA, Marco. “Amygdala”, apresentação de trabalho no 7º Congresso de Arte,
Ciência e Tecnologia e Seminário de Artes Digitais (CIACT-07). YouTube. Belo Horizonte, 10
jun. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Rg7t8metUGI&t=4s Acesso em:
14/10/2022.
FRANCO, Edgar. Renovaceno. Brasil: Editora Merda na Mão, 2021.

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OTKrBC7FfsM Acesso em: 13/10/2022.


430
FRANCO, Edgar. Um Breve Panorama do Momento Tecnológico e Artístico Atual. In:
FRANCO, Edgar; COUTO, Mozart. BioCyberDrama Saga. Goiânia: Editora UFG, 2013, p.11-
47.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad.
Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Trad.
Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2021.
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S.
Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022.
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur.
Trad. Lorena Richter. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. 1ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
SEGUNDO, Wander. A sociedade de consumidores e a perversão do Animal Laborans: uma
análise de Hannah Arendt sobre nossos tempos sombrios. Belo Horizonte: Editora
Dialética, 2021.

Mini Currículo

Frederico Carvalho Felipe (a.k.a. Fredé CF)


Artista multimídia. Doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual
da Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor de Artes, Audiovisual, Fotografia, Ling. Visual, L.I.V.,
Storytelling e Transmídia. Membro dos grupos de pesquisa “Representação da Alteridade no Cinema,
na Animação e Novas Mídias”, coord.: profa. Dra. Rosa Berardo; e “Criação e Ciberarte (Cria_Ciber)”,
coord.: prof. Dr. Edgar Franco. E-mail: fredcfelipe@gmail.com

431
“MARIPOSAS DO LUXO”:
PROCESSO DE CRIAÇÃO DA RELEITURA ILUSTRADA

“MARIPOSAS DO LUXO”:
PROCESS OF CREATION OF THE ILLUSTRATED REREADING

Isabelle Barreto
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

O projeto tem como objetivo primário fazer a releitura ilustrada da crônica “As Mariposas
do Luxo”, presente no livro A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio. Como objetivo
secundário o projeto pretende resgatar este livro de João do Rio, com seu texto
jornalístico, e a cidade do Rio de Janeiro da primeira década do século XX representada
nesta obra.

Para resultar neste produto com o presente projeto busca-se articular uma pesquisa de
caráter teórico, histórica e iconográfica e também uma de desenvolvimento prático,
demonstrando o processo de criação e a poética visual da releitura ilustrada.

Palavras-chave: desenho, ilustração, webcomic, João do Rio.

Abstract

The project's primary objective is to make an illustrated rereading of the chronicle "As
Mariposas do Luxo", present in the book A Alma Encantadora das Ruas, by João do Rio. As a
secondary objective, the project intends to rescue this book by João do Rio, with its
journalistic text, and the city of Rio de Janeiro from the first decade of the 20th century
represented in this work.

To result in this product with the present project, we seek to articulate a theoretical,
historical and iconographic research and also a practical development, demonstrating the
process of creation and the visual poetics of the illustrated rereading.

Keywords: drawing, illustration, webcomic, João do Rio.

432
Introdução

O flanar, atividade que provém do flanêur, figura descrita por Baudelaire no século
XIX, como aquele que observa a cidade, sem pressa e sem destino, é atividade
característica de João do Rio, que percorre a cidade do Rio de Janeiro observando-a
e a seus tipos humanos. Tais observações do cotidiano urbano servem de material
para suas crônicas-reportagens publicadas em jornal e posteriormente reunidas no
livro A Alma Encantadora das Ruas, em 1908. As crônicas se passam no Rio de
Janeiro da primeira década do século XX, época repleta de mudanças urbanas com
o objetivo de conferir ar de metrópole ao Rio, então capital federal, e inseri-la na
modernidade e cosmopolitismo no molde das capitais europeias de então.

O presente artigo descreve o processo de criação e a poética visual da releitura


ilustrada da crônica “As Mariposas do Luxo”, de João do Rio, presente naquele livro.
Tal releitura é realizada através de uma webcomic, a qual consiste numa parte do
projeto de mestrado desenvolvido pela autora deste artigo.

O objetivo primário do projeto é fazer a releitura ilustrada de parte do livro A Alma


Encantadora das Ruas e o objetivo secundário é resgatar este livro de João do Rio,
com seu texto jornalístico e a cidade do Rio de Janeiro da primeira década do
século XX representada na obra.

O projeto é um trabalho de resgate, de memória do Rio de Janeiro e de suas


histórias através das releituras de textos de João do Rio, utilizando-se da linguagem
do desenho, direcionado aos que amam a cidade e se ressentem de sua situação
atual.

Metodologia

Para este projeto utiliza-se a metodologia da pesquisa-criação, a qual é uma


"atividade de pesquisa ou abordagem que constitui uma parte essencial de um
processo criativo ou disciplina artística e que fomenta diretamente a criação de
obras literárias/artísticas" (SSHRC, 2011b). Os projetos de pesquisa-criação
costumam integrar um processo criativo, uma componente estética experimental
ou um trabalho artístico como parte do estudo. São investigados temas que para

433
serem abordados necessitam ter uma prática criativa, como a produção de um
vídeo, performance, filme, trabalho sonoro ou texto multimídia.

Na articulação entre pesquisa e criação podem ocorrer quatro subcategorias, a


saber: a pesquisa para criação, a pesquisa pela criação, a apresentação criativa da
pesquisa e a criação como pesquisa (CHAPMAN & SAWCHUK, 2012). Na segunda
subcategoria, a pesquisa pela criação, os dados de pesquisa são obtidos a partir de
criações artísticas, tais como obras de arte interativas, performances, experiências,
dados estes que podem ser usados para entender diferentes dinâmicas.

No presente projeto inicia-se com a pesquisa para criação, quando é realizado um


levantamento histórico contextualizando a primeira década do século XX no Rio de
Janeiro; a pesquisa iconográfica de ilustrações, fotografias e impressos da mesma
época; a pesquisa de técnicas de desenho e ilustração. A partir desta fase inicial de
pesquisa segue-se para uma primeira etapa de criação, quando são realizados os
primeiros rafes das personagens, as ideias iniciais da releitura da crônica “As
Mariposas do Luxo”. Partindo-se desta primeira etapa de criação, são estabelecidas
lacunas que precisam ser preenchidas no trabalho e, para tanto, há um movimento
alimentando-se novamente a pesquisa, retornando-se para uma outra fase desta.
Tal lacuna é, por exemplo, a necessidade de mais pesquisa iconográfica para os
desenhos e pesquisa de cores. Faz-se assim a subcategoria da pesquisa-criação: a
pesquisa pela criação. No projeto aqui desenvolvido não se utiliza as articulações
entre pesquisa e criação: a apresentação criativa da pesquisa e a criação como
pesquisa.

Cabe ressaltar que nem sempre em um só projeto se utiliza todas as subcategorias,
podem ocorrer apenas uma ou várias delas, podendo se articular entre si e coexistir
em um mesmo trabalho. Pode-se dizer, ainda, não ser fácil a separação entre estas
articulações e que as mesmas podem ocorrer de forma contínua e simultânea, não
necessariamente numa sequência linear.

Contexto histórico

Inicialmente pesquisa-se o contexto histórico da época em que o livro A Alma


Encantadora das Ruas é escrito, qual seja, o início do século XX, quando o Rio de
Janeiro vive sua Belle Époque.
434
A Belle Époque, “os belos tempos”, é uma maneira de pensar e agir relacionada à
busca pela renovação e a modernidade.

De modo geral, o termo Belle Époque relaciona-se ao imaginário da


ruptura e à ação das vanguardas defensoras de uma nova estética.
Além disso, subentende uma imagem idealizada da França
representada por Paris, capital cultural do mundo (...). Na realidade a
Belle Époque é uma categoria retrospectiva, tendo sido criada às
vésperas da Primeira Guerra Mundial como uma reação nostálgica ao
século XX (VELLOSO, 1988).

Na França tal categoria retrospectiva corresponde ao período histórico


denominado de Terceira República (1870-1914), uma época em que vigora uma
instável paz armada. Neste momento a burguesia vive um otimismo e euforia,
usufruindo de uma sociedade abastada, com conforto e luxo, amante do supérfluo,
porém, em contraste a isso, a classe trabalhadora é empurrada a viver na periferia
das cidades e torna-se cada vez mais empobrecida. Com a industrialização e
expansão das cidades, problemas sociais são agravados, com o aumento da
criminalidade e do consumo de álcool e drogas.

Paris é a capital cultural do mundo e sua influência também se faz sentir no Brasil e,
em especial, no Rio de Janeiro e nas suas mudanças ocorridas no início do século
XX. A elite carioca busca se sofisticar e imitar os estrangeiros, especialmente a
capital francesa.

No Rio de Janeiro, a Belle Époque vai dos primeiros anos da República e se estende
até 1922. A cidade sofre diversas transformações para poder desempenhar o papel
de cidade-modelo europeia nos trópicos e passar a ser centro irradiador para o
resto do país das transformações que estão ocorrendo pelo mundo.

O Rio passa a ditar não só as novas modas e comportamentos, mas


acima de tudo os sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade,
o estado de espírito e as disposições pulsionais que articulam a
modernidade como uma experiência existencial e íntima (SEVCENKO,
2003).

É uma época complexa que tem como marcas a velocidade, o movimento e a


supremacia da técnica. A percepção da população das cidades é modernizada
devido ao advento de novos artefatos técnicos tais como a eletricidade, o cinema,

435
os automóveis. A eletricidade passa a substituir a tração animal nos bondes, a
iluminação elétrica passa a substituir a iluminação a gás.

A Avenida Central, aberta com o projeto de reurbanização de Pereira Passos,


introduz na cidade a atmosfera cosmopolita e muda os hábitos dos moradores da
cidade. Influencia o comércio, com suas vitrines de cristal repletas de produtos em
geral franceses, como o são, também, as roupas e as maneiras de agir dos
consumidores que a passam a frequentar. Esta avenida larga, com vitrines
reluzentes, com fachadas de arquitetura eclética, é o cenário propício para o desfile
da nova sociedade republicana, como se depreende deste trecho extraído da
Revista Fon-Fon, 1909:

Às nove horas da noite (...) a Avenida regurgitava e a iluminação era


profusa, dir-se-ia o laboratório gigantesco de um eletricista maníaco,
tão forte, tão demasiada até era a irradiação das lâmpadas! (...)
Carruagens, pessoas, automóveis, tudo tumultuava numa ebriedade
de viver!

Outra rua que merece ser mencionada é a do Ouvidor, tema da crônica selecionada
para este projeto, com seu comércio refinado e mercadorias importadas, cafés,
livrarias, joalherias, torna-se um local de ver e ser visto.

O livro A Alma Encantadora das Ruas

Neste contexto é escrito o livro A Alma Encantadora das Ruas, de autoria de João do
Rio, impresso pela primeira vez em 1908, no Rio de Janeiro, pela Editora Garnier.
Consiste numa coletânea de 37 crônicas sobre as ruas da cidade do Rio de Janeiro e
sua diversidade de tipos humanos. O livro é dividido em cinco partes, sendo a
primeira e a última conferências proferidas pelo autor em 1905. Tais partes são: “A
Rua”, “O que se vê nas ruas”, “Três aspectos da miséria”, “Onde às vezes termina a
rua”, “A musa das ruas”. As crônicas, publicadas originalmente no jornal Gazeta de
Notícias e na revista Kosmos, entre 1904 e 1907, são posteriormente reunidas neste
livro.

436
A pesquisa iconográfica

Após uma pesquisa inicial do contexto histórico segue-se a pesquisa iconográfica,


na qual são selecionadas fotos do início do século XX e, em especial, dos fotógrafos
Augusto Malta e Marc Ferrez, as quais servem de referência para o desenho das
personagens, cenários e ambientação da obra.

Outra referência iconográfica utilizada são os trabalhos de Kathe Kolzowatz,


desenhista e gravadora alemã, que retrata a guerra, pobreza no início do século XX.
A importância da pesquisa das suas gravuras e desenhos para o presente trabalho é
usar a carga dramática que ela utiliza em suas obras como referência para o
desenho das personagens do projeto.

A produção da releitura da crônica “As Mariposas do Luxo”

Na crônica “As Mariposas do Luxo”, João do Rio descreve moças jovens, “operárias
que mourejaram todo o dia”, percorrendo a Rua do Ouvidor em toda sua extensão,
atraídas pelas mercadorias de luxo expostas em suas vitrines sem, porém, poder
adquiri-las. “São as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca.”
Compara a atração delas pelos objetos nas vitrines iluminadas, se aproximando e
depois recuando, sem ter como comprá-los, com o movimento do vôo das
mariposas, atraídas pelas luzes, se queimando ao se aproximarem delas e se
afastando das mesmas.

Para a releitura da crônica “As Mariposas do Luxo” opta-se pela linguagem das
histórias em quadrinhos, definidas como “imagens pictóricas e outras justapostas
em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma
resposta no espectador” (MCCLOUD, 2005). Dentro desta linguagem, escolhe-se as
histórias em quadrinhos digitais, ou seja, as webcomics, cujas obras têm sido cada
vez mais utilizadas e aberto fronteiras entre as mídias digitais. Segundo FRANCO
(2012), estas são trabalhos que unem um (ou mais) dos códigos da linguagem
tradicional das HQs no suporte papel, com uma (ou mais) das novas possibilidades
abertas pela hipermídia. A definição exclui, portanto, HQs que são simplesmente
digitalizadas e transportadas para a tela do computador, sem usar nenhum dos
recursos hipermídia.

437
Figura 1 - Comparação do formato da Rua do Ouvidor (à esquerda foto de Marc Ferrez, circa 1890) com
o formato da webcomic em tela infinita da releitura de “As Mariposas do Luxo” (desenho à direita).

Entre os elementos que caracterizam as webcomics como tal estão a animação, a


diagramação dinâmica, a trilha sonora, os efeitos sonoros, a narrativa multilinear, a
tela infinita e a interatividade (FRANCO, 2012), sendo que nem todos precisam
existir simultaneamente para fazer jus a tal termo. Na releitura de “As Mariposas do
Luxo”, no presente projeto, encontram-se estas duas últimas características, com a
tela infinita de rolagem vertical remetendo à forma de uma rua, dado que a
narrativa da crônica trata de personagens percorrendo a Rua do Ouvidor em toda a
sua extensão (Figura 1). Já a interatividade ocorre com a opção do interator rolar a
tela avançando ou retornando na narrativa e, ainda, sair da webcomic por meio de
links, permitindo-se percorrer outros caminhos dentro do projeto.

A webcomic com a releitura de “As Mariposas do Luxo” possui o percurso da leitura


da tela infinita realizado de cima com a rolagem para baixo. Esta possibilidade de
438
diagramação e narração permitida pela tela infinita é nomeada pelo quadrinista e
estudioso de quadrinhos Scott McCloud como the infinite canvas (2005, p. 72).

O roteiro da história em quadrinhos

Figura 2 – Início da webcomic, com o lettering, quadro 1 com a panorâmica da Rua do Ouvidor, e
quadro 2 com vista em perspectiva da mesma rua e seu casario e, ainda, personagens saindo e
entrando no local, demonstrando a mudança de classe social que a frequenta em determinado horário.

439
A elaboração do roteiro da webcomic é feita em paralelo com seu primeiro esboço.
No início da história em quadrinhos é usado um plano aberto para informar o leitor
sobre o local onde se desenrola a história, situando-o com uma panorâmica de
parte da Rua do Ouvidor vista de cima (Figura 2).

Nas partes inicial e final da história em quadrinhos da crônica há uma marcação de


mudança da classe social das pessoas que frequentam a Rua do Ouvidor,
principiando com a classe mais abastada saindo da rua, passando para a classe
trabalhadora entrando nesta no quadro 2 (Figura 2) e retornando para a primeira
classe no quadro 44. Segundo o texto de João do Rio “(...) Os relógios acabaram de
bater, apressadamente, seis horas. (...) os nomes condecorados da finança e os
condes do Vaticano e os rapazes elegantes e os deliciosos vestidos claros
airosamente ondulantes já se sumiram (...) Há um hiato na feira das vaidades: sem
literatos, sem poses, sem flirts. Passam apenas trabalhadores de volta da faina e
operárias que mourejaram todo o dia.”

Figura 3 – Três quadros da webcomic demonstrando mudança de enquadramentos.

Para os enquadramentos usados na narrativa visual há alternâncias entre o


enquadramento fechado e o aberto, entre o plano médio e o primeiro plano,
chegando até ao primeiríssimo plano e ao plano detalhe (Figura 3). Esta alternância
de enquadramentos faz paralelo entre o movimento do vôo das mariposas se
aproximando da luz atraídas pelo seu brilho e se afastando da mesma ao se
queimarem com seu calor, e o caminhar das jovens operárias se aproximando das
vitrines da Rua do Ouvidor, demonstrando interesse nas mercadorias ali exibidas e
se afastando das mesmas, por não terem como comprar o que está exposto. Ou

440
seja, tenta reproduzir visualmente através da variação de enquadramentos o
movimento de aproximação e afastamento do vôo das mariposas e das moças
olhando as vitrines.

Faz-se, ainda, durante o projeto, pesquisa para compreender termos citados no


texto de João do Rio, os quais atualmente não são mais utilizados, mas que
caracterizam as personagens, como “broches montana” (tipo de joia), “fio de uma
chatelaine” (broche preso à roupa com utensílios pendurados por fios) e “bandós”
(forma de pentear cabelos femininos na qual são presos repartidos ao meio, com
risca ao longo da cabeça até a nuca, e se arredondam com relevo dos lados da
testa). A Moça Alta Triste e a Moça Baixa Triste são desenhadas com este penteado
e a primeira é descrita no texto da crônica com “cabelo em bandós, sem chapéu,
com pentes de ouro falso, dedo com anel” e ainda “a mais alta alisa instintivamente
os bandós”.

As ilustrações e desenhos da releitura

WILLIAMS, em seu Manual de Animação, define que “desenhar bem não é copiar a
superfície mas sim realçar e suprimir aspectos da personagem de forma a captar o
tipo de realidade que uma câmera não consegue” (2016, p. 34), e tal ensinamento se
segue na caracterização das personagens deste projeto, utilizando as referências
fotográficas e transpondo o espírito da época para a linguagem do desenho.

Para ilustrar esta história em quadrinhos a opção foi pelo uso do desenho feito à
mão, com traço contínuo, solto e sem rascunho prévio. Como se o ilustrador
estivesse desenhando na rua e vivenciando as cenas narradas ao vivo, na época em
que a crônica foi escrita. Este recurso alude ao caráter de reportagem da crônica de
João do Rio, que não fazia um jornalismo de gabinete, mas sim a partir do que
vivenciava em seu percurso pelas ruas. Para o desenho dos cenários da Rua do
Ouvidor presentes nos quadros da webcomic usa-se principalmente a referência de
fotos de Augusto Malta e Marc Ferrez, organizadas em painéis de referência.

No desenho dos cenários inspirados em tais fotos incluem-se as fachadas dos


casarios representando as lojas da Rua do Ouvidor, como a vista superior no quadro
1 e a vista em perspectiva do quadro 2 (Figura 2). Os desenhos das fachadas, assim
como os de parte das personagens, são realizados como se estivessem inacabados,
441
com a estética de esboços, reforçando a ideia de simularem terem sido feitos na
rua, paralelamente ao desenrolar da narrativa.

Outra utilização de foto, desta vez de Augusto Malta, para recriar cenários da
webcomic, é seu registro, de 1924, do bonde no Rio de Janeiro, inspirando o desenho
do quadro 50 com este veículo e a população que o frequenta.

Figura 4 – Em cima, foto de Augusto Malta do magazine Parc Royal e abaixo, quadro 17 da webcomic
com cenário da vitrine inspirado na loja de modas.

A utilização de fotos como referência para os desenhos ocorre, ainda, para a


decoração das vitrines e os objetos ali expostos nas lojas de modas, artigos de luxo,
livrarias. Um exemplo disto é a foto de Augusto Malta do magazine Parc Royal, cuja
decoração da vitrine serve de inspiração para o cenário da loja de modas do quadro
17 da webcomic (Figura 4). Neste desenho da vitrine aparecem o robe Empire

442
branco, tecidos, manequins e chapéu com pluma, conforme descrito por João do
Rio: “Param, passos adiante, em frente às enormes vitrinas de uma grande casa de
modas. As montras estão todas de branco, de rosa, de azul; desdobram-se em
sinfonias de cores suaves e claras, dessas cores que alegram a alma. E os tecidos
são todos leves — irlandas, guipures, pongées, rendas. Duas bonecas de tamanho
natural — as deusas do “Chiffon” nos altares da frivolidade — vestem com uma
elegância sem par; uma de branco, robe Empire; outra de rosa, com um chapéu cuja
pluma negra deve custar talvez duzentos mil réis.” Cabe esclarecer que a palavra
‘montra’, presente no texto, é uma denominação antiga significando vitrine, não
sendo mais utilizada atualmente no Rio de Janeiro.

A colorização

Figura 5 – Quadros com cores no fundo indicando a passagem do tempo, do final da tarde para a noite.

As cores numa narrativa visual exercem papel importante e são utilizadas visando
determinados fins. Uma das funções do uso da cor nesta narrativa é indicar a
passagem do tempo. Assim, para o fundo da webcomic, aplica-se: rosa claro (1)
(CMYK 4-11-5-0) para o final da tarde; lilás claro (2) (CMYK 19-25-0-0) em seguida;

443
após, lilás escuro (3) (CMYK 52-47-0-0); e finalmente o azul escuro (4) (CMYK 73-
68-31-17) para a noite (Figura 5).

A técnica utilizada na execução dos desenhos

Figura 6 – Etapas de execução do desenho da personagem “Moça alta triste”. Da esquerda para a
direita: traço a lápis grafite; pintura com tinta guache; a pintura é fotografada e há o tratamento e
pintura digital de detalhes no Photoshop; sobreposição do traço grafite na pintura.

O material usado para desenhar as personagens é o lápis grafite 5B e 6B sobre papel


branco 90 gramas, por permitir um traço contrastado (Figura 6). Este contraste faz
paralelo entre as oposições presentes na própria história: a classe alta e a classe
baixa; o luxo das mercadorias nas vitrines e a pobreza das personagens; os planos
abertos e os primeiríssimos planos. Cabe ainda ressaltar que as personagens são
desenhadas com suas feições carregadas de brasilidade caracterizando as mesmas.

O processo de execução da técnica do desenho das personagens compõe-se das


seguintes etapas (Figura 6): desenho das personagens com lápis grafite preto 5B e
6B sobre papel branco; esse desenho é escaneado em alta resolução com 300 DPI e
separado o traço no Photoshop; é realizada a pintura com tinta guache sobre papel
Arches satinado 300 gramas; fotografia das pinturas e seu tratamento no Photoshop.
Outras personagens nos quadros da webcomic são realizadas apenas com o traço
em grafite preto e a pintura digital, otimizando o tempo de trabalho. Por fim, há o
recorte de borda branca nas personagens destacando-as, criando uma hierarquia

444
visual entre as personagens e os cenários, além de remeter o estilo da ilustração à
ideia de colagem, de algo feito à mão. Deixou-se a sobreposição do traço à grafite e
a pintura sem se encaixar perfeitamente, reforçando a ideia de um desenho feito ao
vivo, durante o desenrolar da narrativa.

A identidade visual da webcomic

Para o logotipo da webcomic opta-se por um lettering feito à mão, com desenho de
letras irregulares e tracejadas (Figura 2), como se estivesse sendo escrito nas ruas,
ao vivo com o desenrolar da narrativa, seguindo o mesmo conceito do desenho das
personagens. A moldura é inspirada no movimento Art Noveau, sendo assimétrica e
possuindo linhas sinuosas, inspiradas em formas orgânicas. A colorização é
realizada digitalmente no programa Illustrator.

Considerações finais

A técnica de desenho escolhida cumpre a função e se adequa ao conceito do


projeto, assim como o processo criativo para a elaboração da webcomic.

Dado o exposto, em relação ao seu objetivo primário de fazer uma releitura


ilustrada de parte do livro A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio, o projeto
cumpre sua função em relação à crônica selecionada, podendo, posteriormente, se
estender para outros textos do mesmo livro.

Quanto ao objetivo secundário, também é atingido, qual seja, de o projeto resgatar


aquele livro de João do Rio, com seu texto jornalístico e a cidade do Rio de Janeiro
da primeira década do século XX representada na obra.

Referências

CHAPMAN, Owen; SAWCHUK, Kim SOBRENOME. Research-creation: intervention, analysis


and “family resemblances”. Canadian Journal of Communication, Canadá, volume 37, p. 5-
26, 2012.
WILLIAMS, Richard. Manual de animação: Manual de métodos, princípios e fórmulas para
animadores clássicos. São Paulo: Senac, 2016. p. 34.

445
MC CLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo, M. Books do Brasil Editora,
2015.
O’DONNELL, Julia. De Olho na Rua. A cidade de João do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
2008.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. www.dominiopublico.gov.br. Rio de Janeiro,
1908. Disponível em: <http://goo.gl/y2l7Uu>. Acesso em: 17 agosto 2019.
SSHRC. (2011b). Funding. Disponível em: http://www.sshrc-crsh.gc.ca/funding-
financement/programs-programmes /definitions-eng.aspx#a22 Acesso em: 20 setembro
2019.
VALERY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Mini Currículo

Isabelle Barreto
Ilustradora, designer, pesquisadora associada da UFRJ, membro do Núcleo de Mídias Criativas -
NUMID/UFRJ e Mestre em Mídias Criativas pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, PPGMC/ECO/UFRJ. E-mail: contactisabellebarreto@gmail.com

446
AS ENTIDADES DEMONÍACAS DA LUXÚRIA DE LILLITH:
O BLACK METAL COMO PERFORMANCE TRANSMÍDIA

THE DEMONIC ENTITIES OF LUXÚRIA DE LILLITH:


BLACK METAL AS TRANSMEDIA PERFORMANCE

Alysson Plínio Estevo


Universidade Federal de Goiás, país

Resumo

A transmídia para criação artística de bandas de black metal, tem ampliado o contato dos
públicos. A banda Luxúria de Lillith utiliza formas de interatividade, performance on line e
videoclipe 360º. O problema envolve a inteligência artificial (AI) para criação de novas
entidades sombrias para a banda em sua performance. O objetivo foi experimentar da
digitalização das ilustrações de ‘hostis infernais’ e coletar estes processos artísticos da banda
black metal para nova indumentária de suas apresentações. Trata-se uma revisão de
literatura e dados etnográficos de uma banda que entrelaça horror, ficção e performance.
Os resultados mostram que a banda busca dialogo com objetos concretos, emissores e
receptores, signos e significantes, experimentando da evolução transmídia de comunicação,
reinventando o modo de fazer, neste contato da banda com seus públicos pós-pandemia por
Covid-19.

Palavras-chave: Black metal, Luxúria de Lillith, Performance e Transmídia.

Abstract

Transmedia for the artistic creation of black metal bands has expanded public contact.
Luxúria de Lillith band uses forms of interactivity, online performance and 360º video clips.
The problem involves artificial intelligence (AI) for creating new shadow entities for the band
in their performance. The objective was to experiment with the digitization of the
illustrations of 'hostile infernal' and to collect these artistic processes of the black metal band
for a new outfit for their presentations. It is a review of literature and ethnographic data of
a band that intertwines horror, fiction and performance. The results show that the band
seeks dialogue with concrete objects, transmitters and receivers, signs and signifiers,
experimenting with the evolution of transmedia communication, reinventing the way of
doing it, in this contact of the band with its post-pandemic audiences by Covid-19.

Keywords: Black metal, Luxúria de Lillith, Performance and Transmedia.

447
Breve histórico da Luxúria de Lillith: Uma banda black metal em terras sombrias

A cena cultural do Underground1 envolve movimentos criativos e inovadores, alheia


aos modismos e caminha pela fuga de padrões sociais conservadores. É uma cultura
relacionada à música, às artes plásticas e à literatura. Tem alcançado os mais diversos
espaços na cultura contemporânea e consolidando-se entre as gerações de inúmeras
nações, no campo da música, da dança, dos espetáculos e da arte cinematográfica.

No campo da música, o underground acumula diversos gêneros secundários.


Destacam-se o funk, reage, blues, rock roll, punk, heavy metal, thrash metal, black
metal, death metal, grindcore, doom metal, dark metal, opera rock, dentre tantos ‘sub-
estilos’. As produções artísticas, fundamentadas nestes gêneros, contribuíram e
geraram uma diversidade de peças midiáticas com produções impressas e digitais
desde fitas K7’s, EP’s, LP’s2, CD’s e DVD’s (CAMPOY, 2007).

No ano de 1960, emergem o rock independente e o heavy metal. Na época, foram


lançados os primeiros discos em estilo de rock alternativo e psicodélico, tanto na
Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América. No Brasil, a música underground
teve início no ano de 1980, e, especificamente, na cidade de Goiânia-GO formaram-
se diversos grupos musicais no estilo, o que incitou nos jovens determinados atos de
rebeldia e anarquismo, características estas de manifestações contraculturais em
tempos de censura e ditadura (OLIVEIRA, 2007).

No interior da cultura underground, o estilo black metal3, já presente na cidade de


Goiânia-GO desde os anos de 1980, fez brotar, em 1998, a banda Luxúria de Lillith.
Esta, gradativamente, tornou-se referência nacional entre o público apreciadores da
música extrema. Suas produções sonoras são distintas, ríspidas com passagens
rápidas e refrões marcantes. O som da bateria, com bumbos duplos Blast beat4 gera

1
O underground refere-se a expressão utilizada pela cultura que foge de padrões comerciais. E está fora dos
modismos e da mídia convencional. Desde de 1960 vem sendo interpretada como ‘cultura’, cena e movimento
espalhados pelo mundo, entre artistas criativos e inovadores (OLIVEIRA, 2007 p.106-127).
2 Os discos de vinil no underground possuem valores inestimáveis por colecionadores, simbolismos estéticos e
artísticos encontrados nas lojas, leilões e feiras de Lp’s, são raridades entre os fãs de discos de rock e heavy metal,
gerando economia global e consumo entre os anos de 2010 e 2020.
3
Black metal. Vertente extrema do heavy metal que surgiu nos anos 1980 e expandiu ao longo dos anos,
caracterizada por pegadas rápidas, vocais rasgados, guitarras distorcidas e uso de blast beats. Trata-se de um estilo
sombrio, às vezes cru e agressivo incorporando temas como: satanismo, anticristianismo e paganismo (CAMPOY,
2007).
4 Blast beat, foi um termo utilizado para chamar a ‘metranca’ um padrão rítmico de bateria que faz uso de
448
profundo impacto no público durante as apresentações por suas estéticas mórbidas,
em ambientes escuros ou pouca luminosidade. A música veloz, carregada com vocais
rasgados, abordam temas religiosos, políticos, eventos catastróficos e guerras,
estilos sociais e hábitos comportamentais. Dentre as produções da banda podem ser
destacadas: “Os Ritos Noturnos da Luxúria” (1998); Primeira Demo-Ensaio “Luxúria
de Lillith” em formato k7 (1999); Segunda Demo “Delícias Devassas Orgias” (2001); EP
“Sarau dos Vampiros” (2002); Terceira Demo “O Início da Tentação” (2003); “As
Porphírias” promo-cd e a Demo “live in” “Noite da Profanação” (2004).

Seguindo a trajetória da banda Luxúria de Lillith, ocorre, no ano de 2005 o


lançamento do álbum oficial, o primórdio no gênero black metal da cidade de
Goiânia-GO, intitulado “A Volúpia Infernal”. Em 2006, a banda registra a demo live in
Baurú-SP “Oculta Força Diabólica”, em 2007 lança o segundo álbum oficial
“Sucumbidos pela Carne”, já em 2009 lança uma coletânea “Opus 1 - 99”, em 2011
lança um promo-cd chamado “Rascunho do Fim”, em 2012 lança um EP “Mundo de
Cadáveres”, em 2013 um single-cd “Olhe para mim Criança de Satã”, em 2014 lança
seu terceiro álbum oficial, intitulado também “Mundo de Cadáveres”. Em 2016 o
álbum conceitual intitulado: “Lilitus” e a criação da ‘ópera black metal intitulada
“Gehennom” e precursor no videoclipe 360o black metal. Tais produções acarretaram
contribuições culturais consideradas inéditas no Brasil, Estado de Goiás e na cidade
de Goiânia.

Além de participar de coletâneas nacionais e internacionais, a banda realizou


inúmeros shows em território brasileiro e outras turnês internacionais nas Américas
e Europa. Explorando a arte do vídeo, cinema expandido e a construção de ficções
para performances em palcos, a arte visual da banda abriu caminhos para outras
bandas e artistas locais da ‘cena’ underground goianiense.

baquetadas rápidas alternadas ou coincidentes na caixa e no chimbal ou ride, a ‘metranca’ tem suas raízes no punk
hardcore, tornando-se o elemento-chave nos gêneros grindcore, death metal e black metal. E foi no Brasil que tudo
isso começou, por D.D. Crazy da banda Sarcófago, de Minas Gerais. Considerado, talvez, o primeiro a ter tocado a
‘metranca’.
449
Figura 1 – Luxúria de Lillith – Gehennom, 2018.

A capa do álbum Gehennom5 na figura (1) faz referência à Íblis6, uma personificação
que representa a união dos espíritos malignos de Jahannam, personalidade similar
ao Diabo da cristandade. Íblis se apresenta com elementos do ocultismo, sentado de
pernas cruzadas acima do mundo, possui tentáculos, olhar pervertido, energiza uma
pedra de sangue que emite luz e calor, como um portal entre mundos paralelos e dos
humanos, permitindo-lhe persuadir a humanidade e testá-la. A banda lançou no
início do ano de 2020 o álbum em formato digital e físico em ‘CD’ com a gravadora
Mutilation Records Brasil.

O álbum ‘Gehennom’ é resultado reflexivo ao longo de 22 anos de banda e resultado


de inúmeras persistências que iniciou antes mesmo da era digital. A banda
movimentou atividades através de cartas manuscritas, fanzines, revistas, jornais, fitas
k7’s e seus gravadores, como forma de reprodução musical, recursos da época para
a disseminação da obra. As cartas eram caracterizadas pelas escritas desenhadas,
tipografias estilo góticas, muitas com símbolos satânicos e ocultistas, ver figura (2).

5
Gehennom. Jahannam em árabe: ‫جهنم‬, etimologicamente relacionada ao hebraico Gehennom e ao grego γέεννα é
um dos nomes para o conceito islâmico de Inferno.
6
Íblis é um Djinn, uma criatura feita de fogo e fumaça criada por Allah deus islâmico, mas, que se rebela e recusa-se
a obedecê-lo, criando sua legião de demônios, e como nos mitos do cristianismo, é condenado a reinar no inferno.
450
Nascia ali os entrelaçamentos da banda com o black metal brasileiro, interligando
adeptos da ideologia ao seu trabalho.

Figura 2 – A construção das relações artísticas da carta manuscrita, 2003.

A mediação entre os correspondentes da banda, envolvia a escrita manuscrita, papéis


especiais e coloridos, centenas de envelopes, permeadas de símbolos e poesias,
tipologias e tipografias, bordas queimadas com isqueiro, envelopes
preferencialmente de cor preta ou vermelha. Para Sant’Anna e Custódio (2017) um
rizoma de conexões entre visibilidades, práticas e técnicas. O suporte material das
cartas distribuiu a mais genuína relação do cenário black metal, que aproximou as
relações de forma artesanal. Pela representatividade, pela renovação permanente,
mesmo que contestada, e sim, pelo surgimento e consentimento a olhar, opondo-se
à autoridade da visualidade (MIRZOEFF, 2016).

Manifestações poéticas transmidiáticas da performance black metal

A relação entre os aceitos a ‘cena’ do black metal, se conectam entre palavras e


linguagens tribais, poesia das visibilidades visíveis, buscando atingir formação visual
e sócio-histórica, mapeando força ideológica, muitas vezes difusa, instável, e pontos
singulares entre os modos de ver.

451
O formato digital ganhou expressões artísticas no início dos anos 2000, as bandas de
black metal iniciaram seus primeiros registros digitais e centenas de obras
conceituais entre as bandas do gênero. Bandas como Behemoth, produziu o
videoclipe “Decade Ov Therion” do álbum “Satanica” em 1999, mostrando a influência
artística e cinematográfica, aspectos temáticos, ideológicos e teológicos. Behemoth
se tornou um dos maiores nomes do black metal mundial no ano de 2014. Outra banda
emblemática e performática, que transformou o comportamento de seus públicos,
foi à banda Cradle of Filth com o videoclipe “From Cradle to Enslave” em 1999 e
lançado em formato EP, trouxe em sua poética, elementos mitológicos do ocultismo,
vampirismo e tendências do romantismo gótico ‘mainstream’ para os adeptos mais
radicais do estilo. Porém, o black metal acelerou batidas deixando de lado o
romantismo, por uma agressividade cada vez mais ‘blast beat’, uma ‘metranca’ cada
vez mais forte.

As interpretações do black metal ganharam visibilidade e em constante mutação


midiática, uma terceira geração7 do black metal surgiu, cultura de poder entre bandas
que se destacaram com produções cada vez mais cinematográficas: Mayhem,
Immortal, Emperor, Gorgoroth, Enthroned, Dimmu Borgir, Satyricon, Tsjuder, Impaled
Nazarane entre outras. Percebe-se uma grande corrida pela qualidade sonora, visual
e estética da cena. Criando obras cada vez mais impactantes no panorama black
metal.

Os adeptos do black metal se apropriaram de uma parcela considerável e estratégias


independentes de suas produções (CAMPOY, 2007). A identidade do headbanger8 em
Goiânia se estabeleceu entre a tensão e a disputa da hegemonia de um segmento
específico da música, e o choque cultural com o sertanejo goianiense, gospels,
rappers, emos, roqueiros, punks, grunges, metaleiros, etc. As primeiras hordas9 de black
metal surgiram em 1987 com ‘Blame God’, ‘Corpus Christ’, ‘Maytréia’ e ‘Homicídio’.

7
As gerações do Black Metal: 1a geração (1980-1992): Venom, Bathory, Celtic Frost, Mercyful Fate, Possessed. 2a
geração (1993-2003): Mayhem, Dark Throne, Enslaved, Emperor, Dark Funeral, Entrhoned, Marduk, Gorgoroth. 3a
geração (2004-2014): Cradle of Filth, Dimmu Borgir, Behemoth, dentre outras (CAMPOY, 2007).
8
Headbanger também chamado de metalhead é a denominação da cultura de fãs de heavy metal e suas variantes.
Essa cultura surgiu por volta de 1970 na Inglaterra e nos Estados Unidos, chamados assim por praticarem
headbanging que vem do próprio gênero musical (MORAES, 2013).
9
Horda. Termo utilizado para definir as bandas de black metal entre seus apreciadores. Horda ou legião, como se
refere aos demônios ou seres que não obedecem às regras sociais, políticas e religiosas vigentes.
452
Depois vieram os: ‘Cheol’, ‘Malkbeth’. E, posteriormente ‘Lua Negra’, ‘Luxúria de
Lillith’, ‘In Dominium’, ‘Héia’, ‘Imperius Profanus’ e ‘Sanatás’. Em constante processo
de identidades, estes artísticas são encarados como figuras atípicas e estranhas,
“primando por musicalidade agressiva e atitude radical” complementa Jorge (2008)
ao se referir o surgimento de bandas de black metal em territórios da herança
sertaneja e dos cânticos religiosos do catolicismo e protestantismo.

As distorções e sons do black metal extrapolam padrões poéticos, artísticos e


musicais pelas novas formas midiáticas. Assim para conduzir a investigação, temos
em mente algumas questões iniciais: Essa imersão nas produções transmídias e o
musical da banda goiana teria influenciado sua ampla conquista em seus primeiros
anos. A banda Luxúria de Lillith constituída por essas experiências no black metal
contribuiu para sua ascensão e visibilidade sociocultural dentro de um estilo musical
emblemático fora de seu território, construindo sentidos de uma chamada arte e
visualidade obscura através da experiência.

Os adeptos da cena black metal aderiram uma imagem constituída de roupas pretas
e maquiagens pesadas, escuras e cheia de adornos, cintos e braceletes de couro, o
que levou esse gênero musical, aderir peso em vestimenta visual, signos do satanismo
e ocultismo. Esta banda que constrói universos ficcionais está construindo
performances teatrais como objeto artístico e produzindo avanços epistemológicos
transmidiáticos, explorando ferramentas digitais, Inteligência Artificial (IA), e,
reflexões para criação de novas poéticas visuais e processos de criação.

Os artistas das bandas de black metal ao decorrer da pandemia e pós-pandemia por


Covid-19, reinventaram sua forma do fazer artístico, recuando para sua localidade e
ausentando-se de suas apresentações presenciais teatrais. Em busca de um novo
meio, em busca de novos sensores, novas experiências musicais, ampliando suas
temáticas para além da bolha ideológica. Analisando sua etnografia e seus impactos
visuais, e, para então regressar as performances impactantes da banda Luxúria de
Lillith e o encontro com seus públicos.

453
Universos ficcionais, poéticas obscuras e a Inteligência Artificial (IA)

Para a lógica dos mundos ficcionais, afirma Sant’Anna e Custódio (2017) aglomerando
o imaginário, a memória e a fantasia, apreendeu-se o visual como foco no processo
do sentido construído no interior de um contexto cultural. Conceitos que entrelaçam
com a pesquisa exploratória da banda Luxúria de Lillith que começou a se apresentar
em 1998, documentando centenas de poesias, letras, escritas, fotografias, produções
gráficas, apresentações de palco, videoclipes, interatividade 360º, e por fim as
performances ficcionais, implícitas das multiplicidades, e, alcançando turnês
mundiais.

Segundo Franco (2022) a todo instante dezenas de CD’s conceituais de bandas de


rock e heavy metal são despejados no mercado tendo como conteúdo temas de ficção
científica. Desde o surgimento, fenômeno literário, ficção e inspiração nas narrativas
de viagens a mundos de fantasia e na ficção científica, muitas bandas lançaram obras
muito criativas com estes novos meios transmidiáticos.

Existe um diálogo entre a banda performática e a ficção científica nas interrogações


dos humanos e das configurações espaço-tempo realizadas a partir de mudanças
fictícias no saber tecnocientífico, enquanto na fantasia e no horror os elementos
dominantes são o saber mágico, religioso ou sobrenatural, complementa Oliveira
(2004). Para Pegoraro (2011 p.42) “todo campo de estudo em estágio embrionário, em
construção, as divergências, as críticas e os questionamentos são tão ou mais fortes
que as certezas que ele lança em seu caminho”.

As bandas que carregam os adereços do black metal enfrentam o impacto de suas


visualidades na sociedade conservadora, com alcances globais nas mídias digitais, as
artes aplicadas se multiplicam em diversas formas de interação cibernética
possibilitando interpretações e preconceitos. As entidades demoníacas da banda
Luxúria de Lillith são personagens ficcionais representados pelos músicos nos palcos
e nos videoclipes que contribuíram para o avanço da pesquisa visual e proposta da
investigação. Referenciando-se aos textos de Pegoraro (2011) evidenciando este
paradigma da anomalia em vigilância pelo novo espetáculo, sendo capaz de criar
outras compreensões no processo de formação e ‘re-formação’ de grupos sociais.

Segundo Franco (2022) é no contexto da cibercultura que passamos a conviver com


essas criaturas híbridas, no atual dinamismo da ficção científica, não só do imaginário
454
popular, mas, entre pesquisadores de todos os âmbitos, desde as ciências sociais até
os projetos industriais ditos de ponta.

Murray apud Souza (2012 p.70) descreve: “passaremos dos prazeres da imersão e da
agência navegação para experiências cada vez mais ativas e transformadoras”. A
partir do processo criativo e dos recursos midiáticos, aquilo que um dia foi imaginado
agora se torna possível e bem real. O black metal como poética artística, desmonta
as ideologias da experiência visual, e escancara suas visualidades exageradas cada
vez mais liberta de restrições. Para Pegoraro (2011) a autonomia da experiência visual
liberta, porque existem meios e técnicas da imagem, caracterizando a construção
discursiva, textual ou institucional de imagens.

As articulações de consumo entre o black metal e a mídia, segmentou sua visibilidade,


deixou lacunas da interpretação complexa e recente, focaram inter-relações, e
buscaram transcender a imersão do espectador para o ambiente black metal. Para
Jorge (2008) a mídia já não se constitui exclusivamente como um canal onde as
músicas circula.

Os artistas do black metal se aventuram lentamente nos processos da hipermídia.


Franco (2004) afirma que a hipermídia possibilitou trabalhar através de links
clicáveis, e isso favoreceu ao usuário o trânsito por uma teia de possibilidades e com
isso rompendo, a linearidade narrativa. Aos olhos de seus apreciadores muitos já
conheceram tais ‘novas possibilidades midiáticas’ no black metal. Ou seja, “outras
aberturas tecnológicas foram responsáveis pelos fenômenos de convergência dos
meios expressivos das chamadas narrativas híbridas” (FRANCO, 2004 p.163).

Existe no black metal uma “atenção estética. Quando é satisfeita, possui singularidade
gerando prazer tingido de emoção e estímulo do cérebro límbico e não existe
nenhuma estrutura neural que lhe seja afetada” (COUCHOT, 2012 p.95). Para Mirzoeff
(2016) é questão de visão, para o olhar mútuo, cada um inventa o outro, do contrário
ele falha, irrepresentável, que reivindica autonomia, não individualismo ou
voyeurismo, pela subjetividade e coletividade, mas, o direito a olhar e a invenção do
outro. O que torna o black metal algo a ser reinventado a cada momento em qualquer
lugar de um mundo cada vez mais digital, acredita-se que seja possível através dos
fenômenos criativos. Para Franco (2020) a construção do universo ficcional em suas
transmídias. Descreve Couchot (2012 p.95) que neste ciclo a “atenção-prazer-

455
atenção-prazer... surge o sentimento estético: uma emoção reprocessada pelas áreas
corticais do encéfalo e reforçada no nível das representações (ideias, discursos,
juízos)”.

Para Machado (2007 p.72) o pensamento da convergência dialoga entre os núcleos da


poética e suas narrativas híbridas digitais. Na imersão das pinturas cadavéricas
exclusivas do black metal estes codificam e transmitem mensagens em seus
videoclipes musicais, influenciando não somente os processos e resultados do
trabalho artístico, como também no comportamento humano (JORGE, 2008). “O
underground apropriou-se do caráter universal da numeração, permitindo a
reprodutibilidade ad infinitum sem perda de qualidade” (PLAZA, 1990 p.78).

Figura 3 – Fotografia representada pela Inteligência Artificial (IA)

A definição de novas mídias é controversa e atualiza constantemente. Como descreve


na Figura 3, a imagem do artista black metal combinada com elementos digitais é
criada por uma IA disponibilizada pelo ‘wombo art create’. As palavras-chave: black
metal, apocalipse e inferno, geraram uma imagem única do artista, que poderia ter
sido construída pela mão humana, mas, trata-se de uma imagem digital. Essas
mudanças tecnológicas promoveram transformações significativas descreve Souza
(2012). Relatar estes processos relacionam-se com o trabalho autobiográfico como
456
objeto de exploração estética e performática. Guerreiro (2011 p.126) descreve: “uma
operação de controle sobre algo partilhado por mais pessoas, trata-se da
manifestação de um desejo de controlo da realidade, da criação de um efeito para si
e só depois para os outros”.

O black metal não obedece a padrões e regras econômicas, não se enquadra nos
processos de linguagem e rotinas, o que favorece a exploração das práticas musicais
de uma maneira muito particular. Um diálogo poético entre black metal e a
‘Inteligência Artificial’, por singularidades, exploração de meios, criação de imagem
a partir do acúmulo dos bancos de dados imagéticos e pela independência de suas
ações, possibilitam a manifestação.

Por fim, considera-se que a manifestação artística do black metal que existe letra,
canção, música, melodia, harmonia e ritmo, estruturadas por elementos como as
estrofes, pontes e refrões, e claro vozes rasgadas e guturais, tiveram um papel
fundamental na consolidação de tribos urbanas e no processo de influência industrial
(JORGE, 2008). E agora, através das IAs, novas produções artísticas de qualquer
ordem temática pode ser criada sem a interferência humana, inteligência esta, que
cria a partir de qualquer fala, voz, cantos, músicas, sonoplastias, imagens, efeitos e
vídeos, a nova melodia, as novas entidades demoníacas, o novo discurso das artes,
carregada de elementos subjetivos, capazes de sensibilizar qualquer ser humano que
vivencie a imersão e a provocação de seus sentidos.

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em Arte e Cultura Visual. Goiânia – GO. 249p.
TAVARES, Bráulio. O Que É Ficção Científica, São Paulo: Brasiliense, 1992.

Mini Currículo

Alysson Plínio Estevo


Possui graduação em Design pela PUC-Goiás (2010). Mestre em Arte e Cultura Visual pelo Programa
de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG). É designer,

459
músico, compositor, produtor musical, promotor de eventos, desenvolveu projetos de design gráfico
para artistas, músicos, bandas, programadores, empresas e instituições. Atualmente doutorando do
PPGACV – FAV. UFG. E-mail: alyssondrakkar@gmail.com

460
POÉTICAS EM CIBERPERFORMANCE: UM ESTUDO DE CASO SOBRE
“JARDINS ESQUECIDOS”

POETICS IN CYBERPERFORMANCE: A CASE STUDY ON JARDINS ESQUECIDOS


.

Doutora Rosimária Sapucaia


CIAC-Universidade do Algarve, Portugal

Doutora Inês Guerra Santos


Universidade da Maia, CIAC/CITEI, Portugal

Doutora Célia Vieira


Universidade da Maia, CIAC/CITEI, Portugal
.

Resumo

Este artigo aborda um estudo de caso sobre a ciberperformance “Jardins esquecidos”,


apresentada em 2020, pelo Teatromosca, em parceria com a Câmara de Oeiras em Portugal.
A obra foi identificada como caso de estudo, no decurso de uma das entrevistas realizadas
no âmbito do projeto de pesquisa CyPeT, financiado pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT), em curso no CIAC. Nele buscamos identificar e analisar iniciativas
criativas promovidas por artistas, grupos artísticos e comunidade académica portuguesa no
âmbito das artes performativas, tendo como eixo condutor os processos criativos,
estratégias, a experiência estética e de interação social da audiência, em contextos de
performance à distância, objetivando explorar a teoria e prática da ciberperformance, com
o intuito de desenvolver um novo modelo pedagógico para a sua inclusão nos currículos do
ensino superior. Jardins esquecidos fez parte do projeto “Modos de ver”, uma iniciativa
realizada no Parque do Poetas, que conta a história dos amores e desamores de um pescador
de Oeiras. A obra foi elaborada com recurso às tecnologias digitais e por meio de imagens,
texto, som e poemas, recorrendo ainda a cartas, fotografias objetos e memórias, numa
performance em que espectadores e atores se confundem entre ficção e realidade, numa
participação ativa e coletiva. Partindo de um enfoque teórico sobre as poéticas do cotidiano
e a ciberperformance, neste texto aprofundaremos os conceitos de fruição artística, de
processo criativo e de envolvimento da audiência na obra, tendo como base a análise da
performance e os trechos da entrevista realizada com o diretor artístico.

Palavras-chave: ciberperformance; poéticas do cotidiano; processo criativo; Jardins


esquecidos.

461
Abstract

This article addresses a case study on the cyberperformance “Jardins esquecidos”, presented
in 2020, by Teatromosca, in partnership with the Câmara de Oeiras in Portugal. The work
was identified as a case study, during one of the interviews carried out within the scope of
the CyPeT research project, financed by the Foundation for Science and Technology (FCT),
under way at CIAC. In it, we seek to identify and analyze creative initiatives promoted by
artists, artistic groups and the Portuguese academic community in the field of performing
arts, having as a guideline the creative processes, strategies, the aesthetic experience and
social interaction of the audience, in contexts of performance at a distance, aiming to
explore the theory and practice of cyberperformance, in order to develop a new pedagogical
model for its inclusion in higher education curricula. Jardins Esquecidos was part of the
“Modos de ver” project, an initiative carried out at Parque do Poetas, which tells the story of
the loves and dislikes of a fisherman from Oeiras. The work was created using digital
technologies and through images, text, sound and poems, also using letters, photographs,
objects and memories, in a performance in which spectators and actors are confused
between fiction and reality, in an active and collective participation. . Starting from a
theoretical focus on the poetics of everyday life and cyberperformance, in this text we will
deepen the concepts of artistic fruition, creative process and audience involvement in the
work, based on the analysis of the performance and excerpts from the interview carried out
with the artistic director

Keywords: cyberperformance; everyday poetics; creative process; Forgotten gardens.

Introdução

Nos últimos anos, as artes performativas têm sentido a necessidade de recorrer às


tecnologias digitais, seja pela produção de gravações de peças de teatro, arquivos de
arte, ensaios ao vivo em casa, ou mais especificamente criando performances para a
Internet, alterando as práticas estabelecidas e criando novas oportunidades de
inovação em toda a economia criativa. A expansão da ciberperformance, o acesso e
efetiva utilização das tecnologias digitais no contexto das artes performativas foram
reforçados no cenário pandêmico dos últimos 2 anos. Nesse período, tivemos um
aumento exponencial das experiências artísticas online nas variadas plataformas e
redes de comunicação social. Diante desse panorama, tivemos novos desafios que
exigiram e continuam a exigir um esforço renovado de investigação direcionada para
a realidade artística e académica no contexto online. Assim, surgiu em Portugal o

462
Projeto “CyPeT-Desenvolvimento de um modelo pedagógico novo para o ensino de
ciberperformance no ensino superior”, um projeto em curso, acolhido pelo Centro
de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), da Universidade do Algarve em
parceria com a Universidade da Maia e Universidade Aberta, financiado pela (FCT),
que visa explorar a teoria e prática da ciberperformance, a partir dos ângulos criativo,
performativo e comunicacional, com o objetivo de desenvolver um novo modelo
pedagógico para incluir a ciberperformance nos currículos dos cursos das artes
performativas do ensino superior português.

Na primeira fase do projeto, realizamos entrevistas, que foram direcionadas para


artistas e grupos artísticos, de modo a analisar as dificuldades, desafios, estratégias
e vantagens encontradas na performance online, de modo a mapear futuramente as
observações das práticas de ciberperformance que decorreram em simultâneo com
a formulação do modelo teórico em construção. Neste artigo, daremos conta da
relação entre as poéticas do cotidiano e a ciberperformance, mais especificamente,
detalharemos o processo criativo da obra “Jardins esquecidos”, cujo estudo de caso
é apresentado ao longo do texto. A ciberperformance em causa foi evidenciada por
uma das entrevistas realizadas no âmbito do projeto.

A escolha recaiu sobre o estudo de caso, quer por se considerar que este pode servir
de base a outras experiências, quer pelo feedback extremamente positivo que obteve
em termos de recetividade do público.

A obra “Jardins esquecidos, que foi transmitida em 2020 pelo Teatromosca, em


parceria com a Câmara de Oeiras, Portugal, trouxe justamente para o ambiente
cibernético a ciberperformance que aborda uma narrativa em torno da vida de um
pescador e uma professora de Oeiras; pessoas comuns que fizeram parte da história
local, em cenários reconhecíveis pelos moradores daquele lugar. Essa junção de
elementos transformou-se em identificação e os indivíduos sentiram-se convidados
a participar ativamente na obra, justamente pela intimidade com o contexto, a
poética do cotidiano online.

Poéticas do Cotidiano: A Arte de envolver-se na simplicidade dos dias

Entendemos como "poética" o conceito ligado à aceção clássica, não como sistema
de regras restritas e coercitivas (a “Ars Poética” como norma absoluta), mas como
463
programa operacional, projeto artístico em que o artista se propõe realizar tal como
é entendido, explícita ou implicitamente. (Eco, 1991). Dessa forma, percebe-se o
quanto a poética em torno da obra é importante, pois retrata os conflitos da sua
época e, para além da técnica, centra-se em reflexões. (Sapucaia, 2022).

Ao relacionar poética e cotidiano, busca-se desvelar essa arte existente no dia-a-dia;


tudo o que se passa no cotidiano é rotina e, nessas atividades diárias, muita arte é
construída e vivida. Conforme Lima (2004, p.10), “o cotidiano revela diversas
atividades exercidas sobre um território, onde se desenvolvem as diferentes práticas
sociais e suas respectivas socialidades através dos tempos.” O autor ainda reforça a
definição de Agnes Heller (1972) que afirma que a vida cotidiana é a vida do homem
inteiro, e, assim, não podemos dissociar o cotidiano da história da sociedade, pois os
fatos históricos nascem no cotidiano, remetem para a ideia de repetição. Contudo,
esse espaço não é só de reprodução, mas de produção de sentidos.

Barreira (2010), por sua vez, faz referência entre o cotidiano e as cidades
contemporâneas, desde a expressiva rapidez ao olhar efémero. “Quando Barreira fala
das banalidades, percebemos que se refere às coisas simples, mas para a arte o mais
banal pode se tornar inspiração e expressão.” (Sapucaia, 2022, p.163). Trazer Arte para
o cotidiano ou o cotidiano para arte permite-nos fazer reflexões sobre nossa vida e
ajuda os fruidores a também repensar as trajetórias, pois, “as rotas do cotidiano são
caminhos denunciadores dos múltiplos meandros da vida” (Pais, 1993, p. 109). Nesse
caso, as poéticas do cotidiano buscam analisar através da rotina, relembrar, refletir
e denunciar sobre essa vida diária. É um convite a uma paragem, mesmo que se esteja
em movimento. Nesse sentido, o ambiente cibernético, principalmente no campo das
redes sociais, vive na atualidade e regista um movimento intensificado pela pandemia
Covid’19, entre 2020-2021, quando as partilhas do cotidiano e da arte realizada em
casa, durante o confinamento, possibilitaram a resistência artística e o maior
envolvimento do público com os artistas e o fazer arte na sua simplicidade.

A Ciberperformance e as Poéticas na obra “Jardins Esquecidos”

Por ciberperformance denominamos a obra que acontece numa plataforma em rede


ou num mundo virtual e é transmitida em tempo real, podendo utilizar elementos
pré-gravados nos seus processos de criação. Quando indicamos “em tempo real”, nos

464
referimos à experiência do “ao vivo” entendida por meio da copresença entre
performers e audiência simultaneamente, marcada pela relação entre quem produz
o conteúdo e quem recebe (Lupinacci, 2020). A ideia desse tipo de performance
online transmitida em mundo virtual foi nomeada inicialmente por Helen Varley
Jamieson, em 2000, quando utilizou pela primeira vez o termo ciberformance, sendo
que publicou mais tarde, mais precisamente em 2008, a tese “Adventures in
Cyberformance: experiments at the interface of theatre and the internet”, em que
desenvolvia o assunto. Outras autoras que também utilizaram o termo
ciberformance são Papagiannouli (2011), Gomes (2013) e Duarte (2016), incorporando
neste género uma das características da ciberarte pontuada por Piérre Lévy (1999): a
“criação colectiva”, pois o trabalho é desenhado de forma aberta para ser participado
através da interação e da transformação.

Duarte (2016) destaca que o corpo que Stelarc declara obsoleto (1995) na
ciberformance se desmaterializa e sofre uma mutação ontológica. Nas releituras de
obras ou reenactments, não há sangue, cheiro, nu, arma de fogo, esperma ou contato
físico. O que a autora observa, na sua abordagem sobre a ciberformance, é que a
prática da performance em ambientes virtuais estabelece-se como canal expressivo
com limites borrados, indefinidos e elásticos. Consequentemente, a incorporação
dessa nova realidade, que atualiza o virtual a partir de encontros, carrega na sua base
a “Cyberformance Manifesto” de Jamieson (2008). Sobretudo Duarte (2016) afirma
que a ciberperformance é inacabada, a sua existência é nutrida pela atualização do
enunciado pelo espectador; acontece ao vivo, artista e público compartilham o
tempo; é situada no ciberespaço, podendo acontecer em diversas plataformas
virtuais; é geograficamente distribuída, podendo estar concomitantemente em
lugares físicos e virtuais; tem atitude; é digital; transparente, não tenta simular a
realidade e é engenhosa, ao utilizar os recursos tecnológicos disponíveis.

A desmaterialização da comunicação, a presença telemática e as colaborações entre


engenheiros e artistas deram origem a uma grande variedade de obras performativas.
Nesta intersecção entre a Ciberformance e a Performance digital, muitas
nomenclaturas são utilizadas, como indicou Gomes (2013), contudo, optamos por
utilizar nessa investigação o termo “Ciberperformance”, já utilizado por Causey em
2006 (principalmente nas ligações entre performance pós-humana e pós-orgánica)

465
e atualizado por Najima (2020), de modo expandido, e buscamos incluir
performances que acontecem na internet nas suas mais diversas formas e espaços.
Foi eleita para estudo neste artigo a obra “Jardins esquecidos”, não apenas por estar
justamente neste limbo entre a ciberperformance e as poéticas que envolvem
processos criativos onde o fruidor imerge através do design tecnológico em
realidades virtuais, mas também por ser criado o elo arte/tecnologia na simbiose do
tangível, na simplicidade das relações próximas entre a narrativa da obra e a história
de cada um dos participantes.

Estudo de caso: ciberperformance “Jardins Esquecidos”

A ciberperformance “Jardins Esquecidos” fez parte do projeto “Modos de ver” (figura


1), uma parceria entre a Companhia Teatromosca1 e a Câmara de Oeiras (que
encomendou e financiou o projeto). Estreou no dia 5 de junho de 2020, às 21h00 e
esteve em cartaz ao longo de dois meses, todas as sextas e sábados até 25 de julho
de 2020. Tinha uma duração aproximada de 120 minutos, e participação gratuita,
limitada a 40 espetadores por dia, mediante inscrição prévia na sessão Zoom,
plataforma onde a performance era transmitida. Partindo de ligações entre obras e
autores nacionais (portugueses) e internacionais, criou um espetáculo que conta a
história dos amores e desamores de um pescador de Oeiras. A obra foi construída
com recurso às tecnologias digitais, e, por meio de documentos autênticos, tais como
objetos, cartas, fotografias, postais, entre outros, narra “uma intrincada narrativa em
torno da vida de um pescador e uma professora de Oeiras, uma história romanceada
que, progressivamente, se vai complexificando, à medida que cada espetador vai
sendo convidado a “submergir”2 na história deste casal que viveu em Portugal nas
décadas de 1950 e 1960”.

1
Site da companhia: https://teatromosca.weebly.com/.
2 Texto disponível em https://www.tveuropa.pt/noticias/producao-multissensorial-do-teatromosca-a-partir-

do-parque-dos-poetas-em-oeiras/, consulta realizada em 16/06/22.


466
Figura 1- Cartaz de divulgação e vídeo “teaser” “Jardins esquecidos” Disponível
respectivamente em https://canelaehortela.com/teatromosca-apresenta-modos-de-ver-
parque-dos-poetas-jardins-esquecidos-em-oeiras/ e
https://www.youtube.com/watch?v=vI9pkDZkT34&t=45s.

Ao mesmo tempo que a narrativa é contada, os espectadores são “transportados”


pelos caminhos do Parque dos Poetas, em Oeiras, onde as imagens de “jardim” e
“paisagem” são exploradas de modo a associarem-se a noções como crença, poder,
ordem, expressão cultural, expressão pessoal ou identidade. A ciberperformance
desafia-os a encontrarem nas suas casas, nos seus objetos pessoais, mobília, cheiros
e nas memórias, o cenário e os adereços deste espetáculo em que público e
performers se confundem, colocando em causa o papel de uns e de outros durante
os processos de criação e realização da obra. Apresenta-se de seguida, um pequeno
trecho do texto apresentado:

Da memória vão saindo clarões, de lá saem fantasmas, do não-lugar


onde dorme tudo o que é passado. As memórias vão-nos atravessando,
como comboios em perpétuo movimento… nunca chegam realmente a
parar. Não há estação terminal. Não é possível edificar um monumento.
A nossa memória não é um museu. É um saber que se perde. (MODOS
DE VER: Parque dos Poetas – Jardins Esquecidos.3

Através de imagens, textos, sons e poemas de alguns dos poetas representados no


parque, a obra artística desenvolvida não se reduziu apenas a um espetáculo
transmitido em live streaming, mas constituiu, efetivamente, uma performance

3Trecho da obra “Jardins esquecidos” Disponível em https://canelaehortela.com/teatromosca-apresenta-


modos-de-ver-parque-dos-poetas-jardins-esquecidos-em-oeiras/.
467
multimédia, ou ciberperformance, conforme nossa definição, que recorre aos
recursos digitais para criar um elaborado jogo, como uma mise-en-abyme4, em que
espectadores e atores se unem, em que ficção e não-ficção nem sempre se
distinguem.

Figura 2- Produção multissensorial do Teatromosca a partir do Parque dos Poetas em


Oeiras. Foto: DR. Disponível em https://www.tveuropa.pt/noticias/producao-
multissensorial-do-teatromosca-a-partir-do-parque-dos-poetas-em-oeiras/.

A ciberperformance leva-nos a repensar o conceito de performance na medida em


que obriga a considerar o dispositivo tecnológico simultaneamente como mediador
e agente ativo da obra artística. Em entrevista com o Diretor artístico Pedro Alves,
realizada em 31 de maio de 2022, às 10:00, por meio da plataforma Zoom,
perguntamos sobre sua visão em relação ao processo criativo, o grau de
interatividade com o público através das ferramentas digitais e o feedback da
audiência. E, no seu depoimento, afirma:

Um dos exemplos mais marcantes, aconteceu no espetáculo “Jardins


esquecidos”, que foi encomendado pela Câmara de Oeiras, onde
estivemos em cena por dois meses. Começamos por criar o
espectáculo durante o confinamento e quando terminamos já tinha

4 Trata-se de um formato de histórias dentro de histórias, narrativas que contam outras narrativas. Pode ser
traduzido do francês como “narrativa em abismo”; essa característica metaficcional promove uma reflexão literária
através de duplicações. Um exemplo clássico é encontrado naquela que é talvez a mais estudada obra de William
Shakespeare, Hamlet, quando o protagonista da peça cria uma peça para desmascarar seu tio. (Parisi e Azerêdo,
2016, p.168).
468
sido decretado que as pessoas podiam sair de casa, já havia[m] sido
levantadas as restrições, tanto que tivemos a última sessão com algum
público na sala, muito exclusivo e online. No final de todas as sessões,
após a representação, nós conversávamos com o público e havia muitas
trocas; algumas pessoas se emocionavam muito e partilhavam que
tinha sido uma experiência fantástica, totalmente diferente de outros
espectáculos a que tinham assistido online e que tinham assistido a
alguns durante o período. E inclusivamente tivemos pessoas que nos
transmitiam que a performance tinha sido de tal modo tocante,
entusiasmante, diferente...que, mesmo que não tivesse durante um
confinamento, as pessoas teriam apreciado da mesma forma, porque
reconheciam o valor artístico e a qualidade da proposta.

A participação do público, tanto no compartilhamento de objetos presentes em suas


casas, como nas sessões após cada performance, tornou “Jardins esquecidos” uma
obra partilhada. Nessa perspectiva, a casa é um excelente espaço para problematizar
as relações público e privado, aprofundando, assim, as narrativas da pessoalidade
(Cavalcanti 2022). Desgranges (2002) considera que as profundas alterações
provocadas pelo modo de vida da contemporaneidade colocam em cheque
proposições artísticas modernas e requisitam dos artistas novos procedimentos
estéticos que se adequam com a percepção e sensibilidade do espectador da
atualidade.

Em seguida, na mesma entrevista, questionamos Pedro Alves sobre o


desenvolvimento online da obra e a relação com a tecnologia digital, procurando
saber se apenas foi meio de reprodução ou se fez parte do próprio processo:

Em relação à movimentação de atores/relação com a câmara, ao início,


sentimos muita estranheza, íamos discutindo isso com a equipa da
companhia, sobre a necessidade de adaptar e de mudar a forma de
pensar e de atuar; em vez de atuar para uma plateia mais vasta, atuar
diretamente para a câmara, como se estivéssemos a falar diretamente
para cada um dos espectadores. Também junto das outras equipas que
vinham atuar no auditório, nós íamos tentando sensibilizá-las para isso
mesmo, que, para aquele tipo de representação, tinham que mudar o
foco, que agora era representar para a câmara como se nós
pudéssemos estar a representar diretamente para os espectadores um
por um.

Em consonância com as estratégias adotadas pela companhia, Issacsson (2021)


afirma, em relação às plataformas digitais, consideradas tanto como meio de difusão

469
da performance, quanto como ferramenta de comunicação das personagens, que o
eixo dramático e a contracenação direta entre personagens/participante se
concretiza por meio do olhar dos atores voltado para a câmara, proporcionando uma
ambiguidade de destinatários, pois, nessa circunstância a câmara é, ao mesmo
tempo, o ator parceiro e o espectador. Nos palcos virtuais, a entrada e a saída de
cena acontecem no abrir e encerrar das janelas de comunicação.

Criar a obra de arte para o meio em que esta será exibida faz parte do conceito da
ciberperfomance, uma vez que, as performances são encenadas especificamente
para apresentação diante da webcam e para explorar um meio em que o público
pode participar plenamente e interativamente na apresentação através dos diversos
recursos disponíveis, por exemplo, ao abrir os seus microfones e participar em falas
e cenas. Cada obra exige que a sua execução seja pensada para esse ambiente virtual,
para esse espaço-tempo específico e para as possíveis interações que esta audiência
poderá realizar. O meio digital incorpora extensões tecnológicas, mas estas nunca
são meros acréscimos: «elas alteram as nossas sensibilidades e capacidades, as
nossas noções de si e de outros, as nossas noções de privacidade e de propriedade,
e as nossas orientações no espaço e no tempo" (Anton, 2016, p. 256). Como descreve
Pedro Alves,

Na altura fizemos uma transmissão do espectáculo em direto [...] Logo


a seguir, porque a experiência correu mesmo muito bem, tivemos
bastante Público (quase que tivemos mais de 1000 pessoas a assistir ao
espectáculo), então, nós combinamos logo que iríamos começar a
desenvolver performances e transmiti-las online. Escolhemos a
plataforma Zoom para o fazer; assim, começamos a fazer ensaios,
alguns presenciais e outros online. Os espetáculos… nós enquadramos
num ciclo que chamamos “Quarentena antena” em que
representávamos perto de 8 ou 10 performances originais com textos
existentes e algumas delas textos inéditos. Eram pequenas
performances, umas de 15 minutos, outras de 5 minutos, outras de 30
minutos para diferentes públicos, desde os públicos infantis e familiar
até aos públicos gerais. Nós fomos criando essas performances que
ocorriam na maior parte dos casos a partir das casas dos atores. Em
alguns momentos, foi engraçado, por exemplo, houve duas ou três
performances que eram feitas simultaneamente a partir de duas casas
diferentes, portanto, os atores estavam cada um em sua casa e
representavam de dois espaços diferentes. Também fizemos um
espetáculo a partir de um carro na via pública [...].Já no final do
primeiro confinamento, criamos outro espetáculo que era transmitido
470
a partir do nosso auditório e as pessoas estavam em casa e contribuíam
para o espetáculo ligando as câmaras dos telemóveis ou dos
computadores. Comunicavam entre si e forneciam materiais,
contavam as histórias, mostravam as casas, partilhavam as suas
memórias e por assim diante.

No relato do diretor artístico, vemos as tentativas realizadas e o processo trilhado


para chegar ao resultado da obra “Jardins esquecidos”. No âmbito do Projeto Cypet
efetuamos entrevistas com artistas e inquéritos com Instituições de ensino superior
portuguesas, o que nos fez criar um panorama acerca de projetos e obras online
desenvolvidas entre 2020 e 2021. Na globalidade dos resultados, esta obra destacou-
se porque, além da poética envolvida, todo o processo criativo e mesmo a entrevista
realizada com o grupo refletem muito bem o cenário mundial vivido durante esses
anos. O grupo investigado destaca ainda que teve boas experiências porque já estava
a preparar-se para o mercado mundial, pois já tinham muitos bons equipamentos.
Quando o desafio surgiu, só tiveram que adquirir mais e investir em formação de
pessoal, mas estavam um passo à frente dos artistas que desenvolviam a sua atividade
alheios às dinâmicas da performance digital e da ciberperormance. Além disso,
mostram clara consciência que a ciberperformance implica alterações no próprio
processo criativo não se limitando a uma mera transposição do modelo presencial.

Conclusões

A utilização das poéticas do cotidiano foi intensificada nos últimos dois anos, em
virtude da crise pandémica. As casas tornaram-se espaço de fruição; plataformas
digitais e redes sociais, palcos virtuais. O estatuto de visibilidade dos sujeitos alterou-
se, criando uma inversão do interesse entre o público e o privado, entre o particular
e o coletivizado (Arruda, 2021).Criou-se um efeito de zoom, que divulga, curte e
partilha o privado.

Apresentamos ao longo do artigo a ciberperformance “Jardins esquecidos”, através


do estudo poético, visual e performático elaborado pela companhia Teatromosca, no
Parque dos Poetas, em Oieras, Portugal. Esta obra nos permitiu concluir que o meio
digital exige dos artistas novos procedimentos estéticos que se adequem com a
perceção e sensibilidade do espectador contemporâneo. Dito de outra forma, as
ciberperformances necessitam de ser nativas, pois apenas transpor performances
471
elaboradas do meio presencial para o online não é o suficiente; o envolvimento da
audiência demanda elementos de participação ativa; o investimento em
equipamentos e formação de pessoal é imprescindível para adquirir compentências
digitais específicas para a ciberperformance; “as transmissões online têm potencial
para exploração de novas formas de interação com as audiências” (Gomes, 2021, p.11).
Nesse sentido, os resultados são parciais, o projeto exploratório CypeT será
desenvolvido até junho de 2023 e espera-se que, até lá, os resultados estejam todos
concluídos, com o modelo pedagógico de ciberformance, em execução, e que este
possa ser um contributo para uma nova modalidade de operacionalização nas artes
performativas, tanto do ponto de vista artístico como académico.

Referências

ARRUDA, Robson Lima de. O fenômeno das lives como estratégias de solidariedade,
entretenimento e monetização durante a pandemia. Temática - NAMID/UFPB, ANO XVII.
N. 08. ago/2021.
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Philosophies, 1(2), 126-132, 2016.
BARREIRA, I. A. F. A pressa nossa de cada dia: tempo e espaço na vida urbana moderna.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 41, nº 2, jul/dez, 2010.
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London: Routledge, 2006.
CAVALCANTI, Rodrigo. Teatro pandêmico: experiências performáticas na
contemporaneidade das lives e ideias para quando for possível (com) partilhar presença.
SESC, Perrnambuco, 2022? Disponível em https://www.sescpe.org.br/wp-
content/uploads/2020/07/Teatro-Pandemico-por-Rodrigo-Cavalcanti.pdf UFPE, acesso
em 27 de set, 2022.
DESGRANGES, Flávio. O Espectador e a Contemporaneidade: perspectivas pedagógicas.
Sala Preta (USP), São Paulo – SP, v. 2, n. 2, p. 221-228, 2002.
DUARTE, Sara. Ciberformance, Second Life e Synthetic performances. Ouvirouver:
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ECO, Umberto. Obra Aberta: Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São
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GOMES, Clara. Ciberformance: a performance em ambientes e mundos virtuais. Tese
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GOMES, Inês Maria Sequeira. A digitalização do teatro em Portugal e a pandemia de
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Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2018.

472
ISAACSSON, M. Teatro e tecnologias de presença à distância: invenções, mutações e
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SAPUCAIA, Rosimária. Quintal dos sons: Um caminho para a imersão sonora. Tese
(Doutoramento em Média-Arte Digital) - Universidade Aberta em associação com a
Universidade do Algarve, Lisboa, 2022.

Mini Currículos

Rosimária Sapucaia Rocha


É investigadora no CIAC- (Centro de Investigação em Arte e Comunicação) - Universidade do Algarve,
no Projeto EXPL/ART-PER/0788/2021 – CyPeT - "Desenvolvimento de um modelo pedagógico novo
para o ensino de ciberperformance no ensino superior; Doutora em Média-Arte Digital pela
Universidade Aberta/Universidade do Algarve (2022); Mestre em Artes-UFBA; Pós-graduada em
Gestão Integrada (FNMV); Graduada em Música- (Unis) e Pedagogia (Unimontes). E-mail:
rosysrocha@gmail.com

Inês Guerra Santos


Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade do Minho, Mestre em Estudos Económicos
e Sociais pela mesma Universidade e Doutorada pela Universidade de Salamanca (2009) exerce
funções docentes na Universidade da Maia como Professora Associada no Departamento de Ciências
473
da Comunicação e Tecnologias da Informação. Integra diferentes Projetos de Investigação a nível
nacional e internacional. É investigadora integrada no CITEI/CIAC. E-mail: iguerra@umaia.pt

Célia Vieira
Professora associada da Universidade da Maia (Porto, Portugal) e investigadora do CIAC (Centro de
Investigação em Arte e Comunicação), onde integra a equipa do Projeto CyPeT. Doutora em Literatura
Comparada pela Universidade do Porto, possui numerosas publicações nos domínios da literatura
comparada (domínios português, francês e espanhol), das humanidades digitais e dos estudos
intermédia. E-mail: cvieira@umaia.pt

474
EM BUSCA DE UMA PERSONALIDADE:
LAFAYETTE ASILS JONES E O TESTE LAPI

IN SEARCH OF A PERSONALITY: LAFAYETTE ASILS JONES AND THE LAPI TEST

Ana Laura Matos Torquato


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

O presente artigo pretende apresentar a obra de web arte “Lafayette Asils e o Teste LAPI”,
bem como realizar uma breve contextualização sobre o fenômeno da popularização dos
testes de personalidade e crenças, além de uma introdução ao conceito de web arte e as
criações artísticas conhecidas como “mentira de artista”. O artigo explicita os processos de
criação da obra, os softwares utilizados, suas intenções e recepção.

Palavras-chave: Arte e Tecnologia; Crenças; Processos de Criação.

Abstract

This article intends to present the webart “Lafayette Asils e o Teste LAPI”, as well as to
provide a brief background on the phenomenon of the popularization of personality tests
and other beliefs while also introducing the concept of webart and the artistic creations
known as “artist's lie”. The article explains the webart’s creation processes, the softwares
used, its intentions and reception.

Keywords: Art and Technology; Beliefs; Creative Processes.

Existem anseios que parecem nos acompanhar desde o início dos tempos. A
necessidade humana de encaixar-se em grupos, de prever o futuro e de responder a
questões fundamentais que continuam a assombrar a humanidade: Quem somos?
Para onde vamos? Qual o sentido da nossa existência?

Em tempos incertos e de crise estas preocupações se fortalecem e cada vez mais


buscamos consolo e respostas imediatas. Durante estes momentos caóticos as
religiões tradicionais e milenares parecem não fornecerem respostas suficientes aos
475
anseios de grande parte da população, que procura soluções concretas e um alívio
da dor imediato, bem como previsões para um futuro muito próximo. Crenças como
a astrologia estão mais populares do que nunca, principalmente entre os mais jovens
(VYSE, 2016). Segundo Vyse (2016):

Estudos anteriores mostraram um interesse crescente em astrologia e


outras crenças ocultistas durante períodos de estresse econômico e
político, como na Alemanha durante a década de 1930 [...] Da mesma
forma, o programa NOVA “Secrets of the Psychics”, no qual James
Randi demonstrou o Efeito Barnum, foi produzido em resposta a um
aumento no interesse pelo paranormal na Rússia, após a queda do
Muro de Berlim e o colapso da União Soviética. (VYSE, 2016).

Há também um forte movimento de endeusamento ou criação de ídolos (sejam estes


políticos, artísticos ou religiosos) que se fortalecem criando dicotomias entre
supostos “bem” e “mal”, como notou-se durante a pandemia de COVID-19 no Brasil
(PIEPER, MENDES, 2020, p.14). Observa-se também o crescimento de palestras
motivacionais ou coaches, que podem realizar o papel de um novo guru ou guia
espiritual, defendendo a ideia do suposto poder do pensamento positivo ou de ações
sem embasamento científico que dizem ter o poder de até mesmo curar doenças
(MORAES, 2020).

Atualmente pode-se notar um fenômeno paralelo e curioso que também tenta


atender a estes anseios: a grande disponibilidade e popularização de testes de
personalidade online que supostamente conseguiriam definir com precisão não
somente a personalidade de um indivíduo, mas também qual seria sua carreira ideal,
seu posicionamento político preferido ou como buscar o parceiro perfeito,
justificando e explicando possíveis falhas e qualidades em suas atitudes. A
identificação com testes de personalidades e em crenças baseadas em
autoidentificação como a astrologia é explicada pelo fenômeno da psicologia
conhecido como “Efeito Barnum” ou “Efeito Forer”. Seu nome foi cunhado pelo
psicólogo Paul Meehl em referência ao ilusionista norte-americano Phineas Taylor
Barnum. De acordo com Bunchaft e Krüger:

O Efeito Barnum ou Forer, também conhecido como efeito da


validação subjetiva ou da validação pessoal, consiste na aceitação de
descrições de personalidade vagas e gerais como exatas e verdadeiras.

476
[...] Forer [...] demonstrou [...] que as pessoas tendem a aceitar como
precisas descrições pessoais de personalidade, ainda que estas sejam
formuladas de uma forma vaga, genérica e ambígua, sendo
direcionadas à maioria da população. Assim, muitas pessoas tendem a
aceitar descrições de caráter vago e geral de personalidade como
unicamente aplicáveis a si próprias sem perceber que as mesmas
descrições poderiam servir a praticamente qualquer outra pessoa.
(2010).

Um exemplo já consolidado destes testes é o MBTI (Myers-Briggs Type Indicator) ou


Indicador do Tipo Myers Briggs. O MBTI, baseando-se nas teorias de Jung sobre tipos
de personalidade, afirma que consegue definir a personalidade de qualquer indivíduo
com precisão, mesmo não obtendo nem a aprovação de neurocientistas e psicólogos
ou qualquer comprovação científica (PITTENGER, 1993). O teste MBTI teoriza que
cada personalidade individual se encaixa em um dos 16 “tipos”; estas dezesseis
categorias são baseadas em quatro características de personalidade, cada uma
consistindo em duas preferências opostas (PITTINGER, 1993, tradução nossa). Ainda
assim, o MBTI consolidou-se como um dos testes mais populares de personalidade,
com uma comunidade que continua crescendo a cada ano e mostrando-se um
negócio extremamente rentável, com lucros de até 20 milhões de dólares
(STROMBERG e CASWELL, 2015).

Além do consolidado teste MBTI, outros testes que analisam o perfil do usuário e
determinam sua personalidade como filtros do Instagram e quizzes do site de
entretenimento e notícias “Buzzfeed” também se popularizaram entre os usuários de
redes sociais. Segundo a professora, psicóloga e colaboradora do Laboratório de
Pesquisa em Avaliação Psicológica (LPAP) da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), Nathalia Piacentini, "[fazer testes] normalmente é uma forma de reafirmar
uma imagem que a gente já tem e quer que os outros também tenham da gente"
(POLLO, 2020).

Uma pesquisa da publicação Insider realizada com o público estadunidense mostrou


que mais de um terço dos norte-americanos entrevistados usa testes de
personalidade para tomar decisões em casa ou em sua vida pessoal, com pessoas
jovens constituindo a maior parte desta parcela. Um terço dos entrevistados também
relatou tomar decisões baseadas no teste MBTI, e destas, 3 em cada 5 disseram
acreditar fielmente nos resultados (GAL e HICKEY, 2019).

477
Estas ferramentas geralmente possuem perguntas ou respostas bem-humoradas,
servindo apenas para o entretenimento do usuário, sem a proposta de embasamento
científico ou acadêmico. Os filtros de Instagram podem ser criados por qualquer
usuário da rede, enquanto os testes do site Buzzfeed são desenvolvidos apenas por
jornalistas e redatores do site. Os testes do Buzzfeed destacam-se por conter, muitas
vezes, resultados e perguntas que beiram a aleatoriedade1. Ainda assim, os testes
constituem o número mais expressivo de acessos e interações do site, conforme
observa-se na (FIGURA 01)

FIGURA 01 – Gráfico Comparando o Número de Acessos de Artigos e Quizzes do Site de


Entretenimento Buzzfeed

Fonte: DINO, 2016. 2

1
Alguns títulos de testes disponíveis observados no momento da escrita do artigo: “Que Cavalo de Troia é você?”,
“Você vai escolher uma celebridade para cada letra do alfabeto e nós vamos revelar se você vai ser rico”, “Julgue
estes relógios e diremos se você é uma pessoa atrasada”, “Qual camisinha você seria?”. Disponível em: <
https://buzzfeed.com.br/feed/quiz >. Acesso em: 10 de jul. 2021.
2
Disponível em: < https://www.terra.com.br/noticias/dino/como-os-quizzes-e-testes-de-personalidade-estao-
sendo-utilizados-para-aumentar-o-envolvimento-com-o-publico-on-
line,b78af369131fb57d564c82ad7ebde25a1v5u70si.html >. Acesso em: 11 de jul. 2021.
478
Com base nestas observações, surgiu então a ideia de desenvolver uma obra de arte
interativa que teria como intuito debater a respeito da necessidade humana de
encaixar-se em grupos e insistentemente procurar respostas para seus persistentes
anseios e limitações.

Cabe aqui realizar uma breve contextualização sobre arte telemática, em especial
sobre a web arte e suas categorizações. A arte telemática (termo usado para designar
redes de comunicação mediadas por computadores entre indivíduos distantes
geograficamente) possui registros que datam desde o início dos anos 70, com
trabalhos artísticos envolvendo aparelhos telefônicos, televisivos ou até mesmo em
serviços como o Minitel, um dos precursores da internet.

Roy Ascott em seu texto “Existe Amor No Abraço Telemático?” (2009) faz uma
definição concisa sobre o futuro da arte durante a era das tecnologias telemáticas e
a relação desses sistemas com o artista, prevendo também a influência das novas
tecnologias sobre o comportamento humano. Comentando sobre o artista nesta
nova era da telemática, Ascott defende que o observador no sistema telemático seria
um participante, já que o significado da obra seria definido pela interação entre o
observador e o sistema. O artista, segundo ele, se transforma em emissor e
originador de significados neste modelo, assumindo o mesmo patamar do criador e
do mundo (p. 306). Ascott argumenta que a cultura telemática é social e
compartilhada, ampliando a capacidade do indivíduo para a coletividade e para um
entendimento global de outras culturas, pensamentos, pontos de vista e sociedades.
A arte telemática dependeria, então, do próprio passado do espectador, que precisa
reconhecer o meio no qual foi desenvolvida a obra para poder compreendê-la em
sua totalidade. O autor conclui salientando que a tecnologia dos sistemas telemáticos
não é mais vista como uma ferramenta que amplia o espectro das artes, mas como
um novo veículo de expressão e comunicação incorporado à nossa realidade, que
urge para uma nova comunicação interdisciplinar e uma nova forma de ver o mundo.

Uma terminologia talvez mais “recente” e popular para Arte Telemática seja a palavra
“web arte”. Segundo Fábio de Oliveira Nunes (2000), o significado de web arte é
complexo e ainda em definição, dependendo, muitas vezes, da preferência do próprio
espectador. Nunes explica:

479
A grosso modo, podemos dizer que um site de Web Arte disponibiliza
um canal de experiências visuais, sonoras ou temporais com o
visitante. Ao criar um trabalho de arte para a rede, parte-se do
princípio de estabelecer relações com a sensibilidade do internauta,
tornando a navegação, uma experiência insólita, cômica, hermética,
repetitiva, labiríntica, estética etc. Aqui existe uma busca de resultados
subjetivos, intimamente ligados com a experiência do visitante
vivenciada no trabalho [...] que serão resultado direto da ação do
repertório visual do interpretante. Assim, a leitura de típicos trabalhos
de Web Arte que se utilizam de elementos do universo computacional
[...] dependerão da existência das informações deste universo no
repertório visual do visitante. Em outras palavras, se ele não conhecer
do que exatamente se trata, sua leitura irá correr o sério risco de não
ser satisfatória e ficar somente no nível estético ou de composição
estrutural das imagens. (NUNES, 2000)

Uma definição simplificada do termo seria, ainda conforme NUNES (2010) “[...]
podemos então definir como web arte aquela produção que é pensada levando em
consideração o campo de significados e as especificidades da Internet.” (p.28). Com
isso, pode-se afirmar que a web arte é, em essência, uma arte global, já que para o
contato entre o espectador e a obra não depende de presença física e, sim, de uma
conexão em rede Nunes determina três categorias para a web arte, sendo elas:

Sites Metalingüísticos – caracterizados pela discussão centrada na


linguagem do meio e nas características intrínsecas à telemática,
distúrbios de informação, iconografia computacional, entre outros
códigos e simbologias típicas do universo informático. Sites Narrativos
– caracterizados pelo discurso narrativo hipertextual, uso do verbal
como parte integrante dos elementos de composição, imagens e atos
com sequências preestabelecidas, animações com início e término
definidos, entre outras características que levam a tona propostas que
existem independentemente da rede, mas que foram especialmente
concebidas para a sua disseminação utilizando este meio e suas
possibilidades. Sites Participativos - caracterizados pelo processo
como foco principal: uso de tecnologias e dispositivos de ação em
tempo real, alterações via rede de espaços ou elementos reais,
visualização e interação com imagens ao vivo, entre outras
características que tornam o espectador um verdadeiro co-autor do
trabalho. (FON, 2000, apud FRANCO, 2015, p.2490)

De acordo com a categorização de Nunes, a obra abordada no artigo adequa-se à


segunda categoria (Sites Narrativos), já que as questões levantadas não dependem

480
exclusivamente do meio em que foram desenvolvidas e nem dependem de sua
interação com público para ocorrerem.

Desenvolvimento

Baseando-se no livro de Fábio Fon, “Mentira de Artista” (2016), que fala a respeito de
personagens e obras de arte criadas com o intuito de “enganar” o espectador,
decidiu-se, então, criar um guru ou coach fictício que teria desenvolvido um teste
“definitivo” de personalidade com eficácia acadêmica e cientificamente comprovada,
inspirado em especial pelos testes MBTI. As chamadas “mentiras de artista” podem
ser datadas ao menos desde 1917 com Marcel Duchamp e seu célebre “A Fonte”,
assinado por “R. Mutt”. A Fonte de Duchamp não carrega, por si mesma, a
característica de obra de arte; é seu contexto que assim a torna. Sobre a obra de
Duchamp e sua relação com as mentiras de artista, FON disserta:

Umas das contribuições da Fonte (1917) para a arte seria nos fazer
perceber que acima do elemento presente em si – uma peça de
finalidades sanitárias – está o contexto que o legitima enquanto objeto
artístico. O urinol não foi originalmente concebido para ser arte. É
esperado ver produtos deste tipo em algum showroom de artigos para
banheiros – seu contexto original. Tudo muda quando é apresentado
em um contexto de arte, perdendo, desta maneira, sua função original.
Quando um artista desloca um objeto de um ambiente não artístico
para um ambiente de arte realiza uma apropriação artística. Pois bem,
o que estamos percebendo será justamente um movimento de sentido
oposto: o artista volta-se para levar suas criações (que por ele criadas,
são arte) para o olhar não artístico, ou mais especificamente, para um
olhar desprendido das reais naturezas artísticas das ações. (FON, 2016,
p.32)

O ato de transformar um objeto do cotidiano ou ação comum também faz parte da


criação da mentira de artista. Subverter o espaço ou contexto de um sistema, seja
este real ou virtual, e com isso mobilizar atenções e fazer ver além daquilo que se
aparenta; “uma mentira de natureza poética, uma incursão estratégica que leva em
conta o contexto como um sistema em que atua” (FON, 2016, p.34). Ainda sobre a
definição e as características sobre as mentiras de artista, Fábio FON continua:

[...] O que estamos chamando de mentiras de artista são criações


miméticas. Estas criações constituem uma estratégia de criação
481
mimetizando elementos de um determinado contexto de atuação e/ou
assumindo comportamentos e aparência circunstancialmente
esperados. A ideia de mimetismo justamente busca dar suporte a uma
forma de enxergar estas manifestações artísticas em sua
complexidade, mantendo aquilo que é essencial em todas as ações: o
ato de se passar por aquilo que não são, tal como na natureza. Esta
noção ampliada de mimetismo é capaz de abrigar uma gama de
diferentes criações: as que parodiam aquilo que já existe, as que lançam
rumores, as que se baseiam em personas, mas, especialmente aquelas
que não se encaixam em nenhuma das circunstâncias anteriores: as
que lidam com a necessidade de uma atenção diferenciada para serem
efetivamente compreendidas. (2016, p.38)

Para desenvolver a obra foram necessárias algumas reflexões acerca dos métodos
utilizados pelas ferramentas anteriormente citadas no texto para escolher o médium
apropriado para sua realização.

O Personagem

A interpretação de personas ou personagens fictícios criadas por artistas não é


recente, e já foi realizada por escritores e poetas no decorrer da história (como
Fernando Pessoa e seus heterônimos). Segundo Fábio FON, “Em regra, esta prática
proporciona um estado de “despersonalização” – para usar um termo recorrente
para definir os heterônimos de Pessoa – desvinculando-se da personalidade do
artista e emulando uma nova. (2016, p.100).

Para criar o personagem da obra foram observados perfis e sites de coaches e gurus
online, bem como o gênero, idade e linguagem utilizada por estes indivíduos e
grupos. Observou-se que a grande maioria era composta de homens brancos que
utilizavam jargões como “autoconhecimento”, “gratidão”, “resiliência” e mensagens
motivacionais.

Outro desafio era decidir o nome deste personagem. Como forma de ironia e para
explicitar o charlatanismo deste guru fictício, foi criada uma amálgama com nomes
de gurus, líderes religiosos e falsos profetas: Lafayette (proveniente do nome do
criador do conjunto de crenças conhecido como Cientologia, Lafayette Ron
Hubbard) Asils (anagrama para “Silas”, primeiro nome do pastor líder da Assembleia

482
de Deus Vitória em Cristo) Jones (baseado no segundo nome do fundador da seita
Templo dos Povos, James Warren "Jim" Jones).

A aparência de Lafayette seria a de um homem de meia idade e branco, condizente


com o perfil da maioria dos líderes religiosos e coaches analisados. Para obter o rosto
de Lafayette foi utilizado o site “This Person Does Not Exist”, que gera rostos
artificiais utilizando uma base de dados e um programa baseado na linguagem
phyton. Após algumas tentativas, o rosto de Lafayette estava definido (FIGURA 03).

FIGURA 03 - Rosto do Personagem Lafayette Asils Jones, Gerado Pelo Site “This Person Does Not Exist”

Fonte: Imagem gerada randomicamente pelo site This Person Does Not Exist 3 (2021)

Para além do nome e do rosto de Lafayette, era necessário também criar uma história
e personalidade para o personagem para torná-lo mais “real”. Decidiu-se então que,
para haver uma maior validação de suas teorias e crenças era preciso que Lafayette
tivesse também uma formação acadêmica prestigiosa, provando assim,
supostamente, sua competência e sucesso. Lafayette foi transformado então em um
estudioso de crenças e religiões, graduado em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP), com especialização em Missiologia pelo Centro Presbiteriano de Pós-
Graduação Andrew Jumper (CPAJ) e PHD em Religious Studies pela Universidade de

3
Disponível em: < https://thispersondoesnotexist.com/>. Acesso em: 10 de jul. 2021.
483
Stanford. Foram escolhidas instituições prestigiadas e reconhecidas por seus
estudos sobre religião. Outros pontos principais da personalidade e passado de
Lafayette seriam:

- Nascido em 12 de janeiro de 1970 na cidade de Governador Valadares (MG);

- Atualmente reside na cidade de Los Angeles (EUA);

- Tornou-se um estudioso da mente e personalidade humana após a crise econômica


de 2008 após perceber um grande distúrbio nas energias humanas;

Para a “concretização” da existência de Lafayette criou-se também um perfil na rede


social Facebook em seu nome, com postagens descontraídas que revelam ainda mais
sobre a personalidade e pensamentos do guru.

Para elaborar o teste de personalidade foi necessário criar também uma associação
ou instituto fictício em nome de Lafayette para salientar seu perfil de empreendedor,
intelectual e visionário. Foi criada então o Instituto LAI (Lafayette Asils Institution),
uma “instituição dedicada à expansão e autoconhecimento da mente humana”. Para
maior validação da Instituição, criou-se também um site (FIGURA 05) contendo mais
informações a respeito dos princípios e metas do LAI e seu criador, bem como um
blog com explicações a respeito do teste e reflexões de Lafayette. Foram utilizados
termos recorrentes em sites e redes sociais de coaches e outras instituições com
preceitos motivacionais, além do desenvolvimento de logotipos do Instituto e seu
respectivo teste de personalidade. Na seção “Sobre” do website é possível saber mais
sobre a proposta do Instituto:

O Lafayette Asils Institution (LAI) foi criado em 2012 com o intuito de


estudar a mente humana para melhorar as relações sociais e propor
uma abordagem focada em autoconhecimento pleno baseada na
espiritualidade inata do Homem. Nossa missão é beneficiar a todos que
buscam o autoconhecimento baseados na ciência e espiritualidade.
Nossos valores são baseados em três pilares: Amor, Harmonia e
Autoconhecimento. O Amor sendo a base para todo a intuição humana,
a Harmonia como balança entre a espiritualidade e a ciência, e o
Autoconhecimento para transcender e atingir o melhor estado
psicológico possível.

484
FIGURA 05 – Captura de Tela do Site do Lafayette

Fonte: Elaboração da Autora (2021)

Após a finalização do website do Instituto Lafayette Asils, deu-se início ao processo


de criação do teste de personalidade, parte central da obra.

O Teste

O intuito do teste seria o de brincar com a necessidade de encaixar-se em grupos e


a popularidade e fascínio causados por testes online, muitas vezes sem qualquer
alegação de comprovação científica ou real definição de personalidade. Como ironia
ao teste MBTI, surgiu o LAPI (Lafayette Asils Personality Interpreter ou Interpretador
de Personalidade Lafayette Asils), um teste que se autoproclamaria como um
“interpretador definitivo”:

Em 2012 foi criado também o renomado teste LAPI (Lafayette Asils


Personality Interpreter) após uma série de pesquisas e reflexões sobre
a intuição humana. O teste utiliza o sistema LAI®, que garante uma
eficácia de 98% na definição de qualquer personalidade. 4

4
Trecho sobre o teste LAPI retirado do site “Lafayette Asils Institution”. Disponível em: <
https://lafayetteasils.wordpress.com/ >. Acesso em 10 de jul. 2021.
485
O teste conteria cerca de 20 perguntas e 10 resultados diferentes, ambos misturando
perguntas e respostas geralmente encontradas em testes de personalidade com
resultados e indagações aleatórias ou nonsense. As perguntas iniciais questionariam
o usuário a respeito de seus gostos e preferências. O teste começaria
insuspeitamente comum, com perguntas e respostas esperadas em testes da
categoria, e então se tornaria progressivamente mais estranho, com perguntas que
propositalmente pareceriam beirar a aleatoriedade. Os resultados, por fim, não
teriam qualquer lógica ou sentido, e suas descrições tentariam ao máximo emular os
resultados do teste Myers-Briggs (MBTI), contendo desde a proporção (fictícia) de
pessoas com aquela personalidade quanto descrições realistas a respeito de gostos
ou preferências do usuário, bem como possíveis personagens, atores, cientistas e
artistas que compartilhariam da mesma personalidade do usuário. Para o
desenvolvimento do teste foi escolhida a plataforma Involve.me, um website voltado
para a criação de interações personalizadas entre usuários por meio de quizzes. O
site oferece também coleta de dados gratuitamente de todos os usuários que
completarem o teste, assim como seus respectivos nomes e e-mails.

Os possíveis resultados para o teste seriam: Rocha Vulcânica, Calota Polar, Urso
Pardo, Ferro, Tijolo, O Amigo Extrovertido, Baú de, Madeira, Mesa de Vidro, Copo
Reutilizável e Abajur. Os títulos foram escolhidos para transparecerem a
aleatoriedade e falta de sentido no teste, contradizendo assim a própria descrição
afirmando precisão comprovada de 98% encontrada no início do questionário. O
detalhamento das personalidades, porém, seria extremamente parecida com a
explicação encontrada em outros testes de personalidade, conforme pode-se
observar na descrição da personalidade “Ferro”:

Personalidade Ferro: A personalidade Ferro é uma das mais raras


(apenas 5% da população), criativas e exploradoras
personalidades existentes. Para os indivíduos de personalidade Ferro,
o difícil é ficar parado. As pessoas de personalidade Ferro adoram
explorar: lugares novos, objetos, paisagens e novas comunidades. Para
estas pessoas, explorar e criar é viver. Seu processo de criação
geralmente envolve tentativa e erro, e isso as tornam especialistas no
que se propõem a fazer. Enigmáticos por natureza, os indivíduos de
personalidade Ferro podem parecer reservados e tímidos de início,
mas não se engane: pessoas Ferro tem um grande coração e não se
limitam a regras impostas pela sociedade. Pessoas Ferro famosas:

486
Beyoncé (artista) Hillary Clinton (política) Chandler (personagem da
série Friends) Nicola Tesla (inventor).5

Após a definição das perguntas e resultados o teste foi publicado oficialmente em 13


de junho de 2021 e divulgado no Site do LAI (Lafayette Asils Institution). No dia 15 de
junho de 2021 o teste foi aplicado com os alunos da disciplina Arte e Tecnologia da
Universidade Federal de Goiás (UFG) depois de breve explicação e exposição a
respeito do personagem. No mesmo dia, o teste foi divulgado nas redes sociais de
Lafayette Asils.

Resultados

O teste LAPI mostrou-se eficaz na sua proposta de gerar uma identificação por parte
do usuário além de sensações de estranheza e desconforto durante a aplicação do
questionário. Durante a aplicação do teste muitos usuários acharam que havia um
“problema” com as perguntas e respostas muitas vezes desconexas; outros relataram
sentirem-se confusos com qual opção deveriam escolher. Durante a primeira
aplicação durante a disciplina os usuários receberam algum auxílio e encorajamento
para continuarem a responder o teste. Em usuários não assistidos, porém, não
existiram testes incompletos, revelando que a assistência não é necessária para a
completude do questionário.

Até o final do ano de 2021, 25 pessoas haviam preenchido completamente o teste.


Destas, 29.2% (7 submissões) receberam o resultado “Rocha Vulcânica” e outros
29.2% (7 submissões) receberam o resultado “O Amigo Extrovertido”; 12.5% dos
usuários (3 submissões) obtiveram o resultado “Ferro”; as personalidades “Urso
Pardo” e “Abajur” constaram 8.3% (2 submissões) cada, enquanto os resultados “Baú
de Madeira”, “Calota Polar” e “Mesa de Vidro” empataram sua porcentagem com uma
submissão cada (4.2% dos usuários); as personalidades “Tijolo” e “Copo Reutilizável”
não pontuaram.

Nas perguntas propositalmente confusas e/ou não tradicionais que continham


respostas que variavam de “concordo muito” a “discordo muito”, os usuários

5
Descrição encontrada no resultado “Ferro” do teste LAPI. Disponível em: < https://lapi.involve.me/lapi >. Acesso
em: 11 de jul. 2021.
487
geralmente optavam pela opção neutra (“não concordo e não discordo”). Quando os
usuários encontravam respostas conflitantes ou sem sentido foi possível observar
uma propensão pela escolha da primeira resposta disponível; já em respostas que
envolviam nomes de animais ou cores os usuários dividiram-se, optando,
presumivelmente, por suas preferências pessoais. Os usuários dividiram-se mais ao
final do questionário, com respostas diversas com o mesmo número de submissões.
Estes resultados condizem com a sensação de estranheza possivelmente sentida pelo
usuário, bem como uma possível “resignação” ou curiosidade ao final do
questionário.

Conclusão

Ao observar a reação do público e os resultados da aplicação do teste, conclui-se que


o trabalho foi bem-sucedido ao fomentar uma discussão e uma reflexão acerca dos
testes de personalidade e sua suposta precisão em identificar preferências ou
atitudes do usuário, bem como a identificação de padrões no discurso de coaches,
gurus e palestrantes motivacionais, expondo possíveis traços de charlatanismo neste
ramo. Conforme explica Fábio FON (2016) sobre as mentiras de artistas:

Sob o ponto de vista da arte, todas estas ações adotam um tom


provocativo típico das propostas conceituais. Provocar é uma maneira
eficiente de mobilizar nossa atenção e, a partir daí, gerar reflexões. Os
artistas dispostos a isso querem o público longe de uma posição de
conforto, lançando-o em meio a incertezas, incômodos e
questionamentos, recusando a indiferença em seu envolvimento. (p.95)

Além do caráter muitas vezes bem-humorado da obra, a principal proposta durante


o seu desenvolvimento era gerar um debate sobre nossa necessidade de
autodefinição e credulidade. Lafayette Asils Jones pode não existir, assim como a
veracidade de seu teste LAPI e de seu Instituto, mas as provocações e estranheza
sentidas pelo público são tão reais quanto o poder de suas crenças.

488
Referências

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2009.
BUNCHAFT, Guenia; KRÜGER, Helmuth. Credulidade e efeito Barnum ou Forer. Temas em
Psicologia, v. 18, n. 2, p. 469-479, 2010.
FRANCO, Edgar. CANAL 666 BR: PARA (DES) HIPNOTIZAR AS MASSAS–PROCESSO
CRIATIVO EM WEB ARTE. 24º Encontro Da Associação Nacional De Pesquisadores Em
Artes Plásticas, V. 16, 2015, p. 2485-2499.
GAL, Shayanne; HICKEY, Walt. We're a nation of Gryffindors and Rachels — here's how
Americans really answer those addictive personality quizzes, 2019. Disponível em: <
https://www.insider.com/the-great-american-personality-quiz-2019-2#and-they-take-
stock-in-their-results-13 >. Acesso em: 12 de jul. 2021.
MORAES, Madson de. Coach quântico diz mudar vibração das pessoas, só não convence
cientistas, 2020. Disponível em: <
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/01/07/a-febre-dos-coaches-quanticos-
que-prometem-reprogramacao-energetica.htm >. Acesso em: 12 de jul. 2021.
NUNES, Fabio Oliveira. Mentira de Artista. São Paulo: Cosmogonias Elétricas, 2016.
NUNES, Fábio Oliveira. O que é Web Arte? 2000. Disponível em: <
http://www.fabiofon.com/webartenobrasil/texto_qehwebarte.html >. Acesso em: 10 de
jul. 2021.
NUNES, Fabio Oliveira et al. Web Arte no Brasil: algumas poéticas e interfaces no universo
da rede Internet. 2003.
PIEPER, Frederico; MENDES, Danilo. Religião e necropolítica. Religião em tempos de Crise,
p. 11, 2020.
PITTENGER, David J. Measuring the MBTI… and coming up short. Journal of Career
Planning and Employment, v. 54, n. 1, p. 48-52, 1993.
POLLO, Luiza. Como a psicologia explica a popularidade dos filtros 'quem você parece',
2020. Disponível em: < https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/02/13/a-
psicologia-explica-a-popularidade-dos-filtros-com-quem-voce-se-parece.htm >. Acesso
em: 12 de jul. 2021.
STROMBERG, Joseph; CASWELL, Estelle. Why the Myers-Briggs test is totally
meaningless. Vox, 2015. Disponível em: <
https://www.vox.com/2014/7/15/5881947/myers-briggs-personality-test-meaningless
>. Acesso em: 12 de jul. 2021.
VYSE, Stuart. Why Are Millennials Turning to Astrology?. Skeptical Inquirer, 2016.
Disponível em: < https://skepticalinquirer.org/exclusive/why-are-millennials-turning-
to-astrology/ >. Acesso em: 11 de jul. 2021.

489
Mini Currículo

Ana Laura Matos Torquato


Licenciada em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Mestra em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e atualmente doutoranda pelo programa de Arte e
Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás (UFG). É ilustradora, artista visual e pesquisadora,
com obras expostas em âmbito nacional e internacional. Possui pesquisa na área de visualidades, jogos
eletrônicos e representações visuais. E-mail: torquato.analaura@gmail.com

490
SER (CENÁRIO): UM DIÁLOGO SOBRE PESQUISA ACADÊMICA E PRODUÇÃO
ARTÍSTICA

BE (SCENARIO): A DIALOGUE ON ACADEMIC RESEARCH AND ARTISTIC


PRODUCTION

Laura dos Santos Goulart


UNESC, Brasil

Resumo

O artigo relata o processo de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso de Artes Visuais


– Bacharelado realizado em 2017, no qual teve como finalização uma produção artística.
Como um corpo sujeito pode ser integrado ao espaço/cenário urbano como arte? A pesquisa
parte desse questionamento, desenvolve-se cartograficamente, criando desdobramentos a
respeito do corpo e da cidade na tentativa de compreende-los como elementos confluentes.
A produção final tornou-se um híbrido de conceitos, ideias e técnicas para refletir sobre as
ruínas na cidade, o corpo e o modo como a urbanização influencia na vida do sujeito e na
construção da memória de uma sociedade.

Palavras-chave: Cidade. Corpo. Ruínas. Arte contemporânea.

Abstract

The article reports the research process of the Visual Arts Course Completion Work -
Bachelor's degree carried out in 2017, in which an artistic production was finalized. How can
a subject body be integrated into the urban space/scenario as art? The research starts from
this questioning, develops cartographically, creating unfoldings about the body and the city
in an attempt to understand them as confluent elements. The final production became a
hybrid of concepts, ideas and techniques to reflect on the ruins in the city, the body and the
way urbanization influences the subject's life and the construction of a society's memory.

Keywords: City. Body. Ruins. Contemporary art.

Ser(cenário): Um caminho formativo se apresenta

A presente pesquisa parte da tentativa de perceber a vida em pequenos detalhes: no


que poderia ter sido, no que foi, no que vai acontecer, na imaginação. Ter a

491
capacidade de olhar o entorno e mais que isso: perceber de fato o que faz de nós
cidadãos que constroem o espaço que habitamos e que, dessa maneira, tem
capacidade para mudar o percurso da história e do futuro da cidade que vivemos. A
partir disso, pesquiso os lugares abandonados no espaço urbano na tentativa de
refletir sobre as semelhanças entre o corpo e a cidade, entre o sujeito e o espaço em
que ocupa e assim, compreender como os espaços em ruínas na cidade dizem muito
sobre a sociedade que habita aquele lugar. Então, se faz necessário reviver antigos
questionamentos e trabalhos para lembrar onde estava, o que já foi dito e pesquisado
e para onde se pretende caminhar; partindo dessa ideia, faço o movimento de
relembrar um pouco sobre o meu Trabalho de Conclusão de Curso realizado para
obtenção do grau de Bacharela em Artes Visuais, em 2017 pela Universidade do
Extremo Sul Catarinense (UNESC). É uma pesquisa que caminha comigo até hoje,
permanece viva e participa mesmo que indiretamente de cada novo trabalho que
realizo; nela trago os espaços invisibilizados pela comunidade para tentar identificar
e entender sobre o processo de descarte de um lugar e a partir disso realizar uma
produção artística que expresse esses incômodos e devaneios poéticos que
suscitaram no meio do percurso. Canton comenta no seu livro Espaço e Lugar (2009,
p.24) que esse esquecimento da sociedade pelo antigo se dá pelo:

[...] impulso modernista da busca desenfreada pelo novo, busca que


construiu a arquitetura moderna, a arte abstrata, a poesia concreta,
mas que também derrubou edifícios históricos e rastros simbólicos do
passado na tentativa de apagar a memória, gradualmente ameaçada
por uma quantidade meteórica de novidades e informações que nos
levam cada vez mais a um estado de torpor, de semiamnésia.

É possível relacionar corpo e cidade a ponto de vê-los como


interdependentes? Ambos são elementos vinculados um ao outro e influenciam na
sua construção. Corpo e cidades são conceitos que estão unidos, em convergência,
“múltiplas são as complementaridades entre rosto e cidade.” (PEIXOTO, 2004, p.73).
Os lugares em ruínas na cidade são espaços que já foram cenários para inúmeras
histórias e construções de identidade, como um local como esse é simplesmente
deixado lado a ponto de se transformar em ruínas? Olgária Matos (1998, p.83)
comenta sobre o instante único das ruínas:

492
As ruínas contrariam o devir abstrato do tempo, compensando a
sistemática tripartição – antes, durante, depois – pela dinâmica pas
encore (ainda não) e jamais plus (nunca mais). [...] Instante único, elas
atestam um tempo antes do qual nada foi consumado e depois do qual
tudo está perdido.

Paralelo a isso, a pesquisa também traz questões obre o conceito de corpo feminino
e como se dá a construção de identidade do indivíduo dentro de uma sociedade que
dita as regras de como agir. Dessa forma investigo como meu corpo sujeito pode ser
integrado ao espaço/cenário urbano como arte, trazendo a paisagem da cidade e do
corpo juntos: tornando-os um só, corpo e lugar.

A cartografia da pesquisa
Faço a escolha metodológica mergulhando nos estudos da cartografia, uma vez que

Encontramos na cartografia, um método formulado por Gilles Deleuze


e Félix Guattari (Deleuze e Guattari, 1995; Guattari,1986), um caminho
que nos ajuda no estudo da subjetividade dadas algumas de suas
características. Em primeiro lugar, a cartografia não comparece como
um método pronto, embora possamos encontrar pistas para praticá-
lo. Falamos em praticar a cartografia e não em aplicar a cartografia,
pois não se trata de um método baseado em regras gerais que servem
para casos particulares. A cartografia é um procedimento ad hoc, a ser
construído caso a caso [...] (PASSOS; BARROS, 2015, p.76)

Portanto, a pesquisa não segue uma linha linear de pensamento, ela vai se criando e
(re)criando no decorrer de sua construção, seguindo um objetivo, mas sabendo que
este pode variar e ser alterado no meio do percurso. A cartografia é um método em
que a pesquisa acontece no processo do conhecimento do espaço, do tema a ser
pesquisado, da vontade de achar soluções; aberto aos acasos e desvios que podem
aparecer.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma


orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo
prescritivo, por regras já prontas, nem com objetivos previamente
estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já
que a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir
mão da orientação do percurso da pesquisa. (PASSOS; BARROS, 2015,
p.17)

493
Os desdobramentos desse texto são pistas encontradas no percurso da pesquisa a
partir de experimentações rizomáticas, seguindo o conceito de rizoma de Deleuze e
Guattari, onde discutem que “[...] o rizoma conecta um ponto qualquer com outro
ponto qualquer [...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele
cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.32)
e assim desterritorializo o trabalho de fronteiras fechadas e precisas. Começo
pensando sobre o fluxo constante das nossas vidas que dialoga com o fluxo da cidade,
o movimento desenfreado de acontecimentos que ocorrem quase que
imperceptíveis, o dia a dia que passa sem nem notarmos. Onde se encontra a essência
do ser humano, da natureza, da cidade, do viver? É um emaranhado de episódios que
sobrepomos uns em cima de outros sem nem percebermos. A produção realizada ao
final na pesquisa parte da ideia de habitar e sentir um espaço abandonado na cidade,
fazendo com que o sujeito se torne o próprio lugar, acontecendo assim a união do
ser e do cenário, trazendo uma vida nova para esses espaços da cidade cartografados
pelo abandono. Na produção utilizo a cidade e seus elementos como cenário para
meu corpo fazer morada, levando em conta que:

A construção da arte é construir imagens da cidade que sejam novas,


passem a fazer parte da própria paisagem urbana. Quando parecíamos
condenados a imagens uniformemente aceleradas e sem espessura,
típicas da mídia atual, reinventar a localização e a permanência.
Quando a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se
com o desmedido das metrópoles como uma nova experiência de
escalas, da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir
a cidade. (PEIXOTO, 2004. p.15)

Redesenhar, reinventar e desvendar a cidade contemporânea, nesse tempo de caos,


fluxo constantes de pessoas e informações, o que fica de paisagem na cidade? Onde
está o papel e a potência da arte neste emaranhado de acontecimentos diários?
Paralelo a isso, redescobrir o corpo, percebê-lo como meu e também pertencente de
um fluxo contínuo comum que faz dele um indivíduo social no ambiente urbano. Um
ser que também tem um movimento constante, que recebe e fornece múltiplos
pensamentos e sensações diferentes e que como a cidade, muda a cada segundo.

MATESCO (2009, p.31) comenta que "o sujeito moderno é definido por sua própria
representação: o corpo enquanto forma torna-se a morada do “eu” como um espelho
de reconhecimento”, este corpo aparece na produção na forma de autorretrato, na
494
tentativa de me autoconhecer para assim poder reconhecer o todo a minha volta. O
meu corpo, aqui entendido como um objeto de arte, chega na forma de projeção em
um prédio abandonado, se transformando num corpo que participa e se torna o
lugar, tão largado e sem movimento quanto o próprio espaço. É no momento de
conciliação entre meu corpo e o espaço onde realizo a produção final, que utiliza a
técnica da fotoperformance.

[...] nessa linguagem que chamamos de fotoperformance, a


performance perde esse caráter de contato, se distancia do público
para confundir ainda mais o processo fotográfico, ao mesmo tempo
que lhe reforça o caráter ficcional, ela traz a potência do corpo que
vivencia, que experimenta, e já é a priori fictícia, uma vez que esta
experiência é artificialmente disparada. (PAOLIELLO, 2016, p.52)

A fotografia congela o momento, registra uma cena, torna um segundo em eterno. Já


a performance é uma arte efêmera onde o artista utiliza do corpo como suporte
principal para a sua produção, ela acontece num instante, sem repetição. A
fotoperformance, é uma contaminação onde não existe só um ou outro e sim o
híbrido das duas técnicas resultando numa terceira, por fim resta apenas o registro,
entendendo que:

Uma das características presentes tanto nesses vídeos quanto nas


fotografias é o aspecto performativo que eles engendram, através das
ações empreendidas pelo artista diante da câmera, instaurando seu
próprio corpo como matéria artística, eleito, muitas vezes, como lugar
de desdobramento das categorias escultura e pintura. (MELIN, 2008,
p.49)

Faço a escolha pela fotoperformance pois na produção, utilizo meu corpo como
objeto de trabalho e me entrego total para o momento da produção, que é efêmera;
realizada apenas para ser registrada.

O registro que duplica o processo funciona como testemunho que


desloca e ressignifica a origem, distingue e condensa as diferentes
figuras do trabalho efêmero. A ação coloca corpos em relação, mas a
imagem mostra o trabalho da ausência dos corpos. (COSTA, 2014, p.42)

Assim, a performance tem um único espectador: o obturador da câmera, o que fica é


o registro performático daquele corpo no espaço abandonado.

495
Espaços de memória

A arquitetura conta histórias, de uma época, de um momento ou de uma família, de


uma civilização que vivenciou e obteve experiências naqueles lugares, “a arquitetura
da cidade é ao mesmo tempo continente e registro da vida social” (ROLNIK, 2004,
p.18). Para onde vão essas memórias quando o seu cenário é largado? Quebrado?
Invisibilizado? De alguma forma todas essas histórias são esquecidas também.

Por ser o local onde nasci e cenário de boa parte das minhas lembranças, escolho
utilizar a cidade de Torres – Rio Grande o Sul como o lugar de pesquisa. Então
começo identificando e mapeando alguns espaços em abandono; neste artigo trago
apenas o espaço (Figura 1) utilizado na produção artística, mas é importante
comentar que a pesquisa de TCC foi realizada em 2017, cerca de 10 lugares em ruínas
foram mapeados e todos continuam da mesma forma até os dias atuais.

O espaço escolhido para fazer a projeção foi construído na década de 50 e largado


após alguns anos, ainda em construção. Por meio dos espaços em abandono como
esse, é possível desvendar a comunidade que habita aquela cidade, refletindo sobre
uma sociedade que vê as coisas como simples objetos a serem jogados fora, “[...] as
relações de moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo é máquina e a vida
íntima foge por todos os lados” (BACHELARD, 2000, p.45).

496
Figura 1 – Prédio abandonado na cidade de Torres/RS, 2017.

Fonte: Acervo da Pesquisadora.

O lugar em ruínas da cidade é como um vestígio deixado pelos indivíduos que por ali
passaram e criaram memórias, como se dá esse processo de abandono de um lar, de
um comércio, de uma escola? A tentativa aqui é de retomá-los, senti-los e habitá-los,
trazer o meu corpo para participar desse espaço como um todo, conhecer suas
histórias e memórias cravadas nas paredes e criar novos laços.

Eu-corpo-cidade-corpo

A cada devaneio poético, rascunho da produção, leituras ou apenas no refletir a


respeito da pesquisa, ambos os conceitos de corpo e cidade, muitas vezes tão
distantes, se encontram de uma forma que fica difícil separá-los novamente. Eu sou
o corpo que habita a cidade, o meu corpo é a cidade, a cidade sou eu. A cidade é
resultado de uma tentativa de organizar uma sociedade que já vivia em conjunto, mas
que, hoje, criou sua própria vida independente, “fruto da imaginação e trabalho

497
articulado de muitos homens, a cidade é uma obra coletiva que desafia a natureza”
(ROLNIK, 2004, p.7-8).

A pesquisa vai se criando sozinha e eu me recriando junto com ela de forma


cartográfica, livre de regras estabelecidas. Assim é o modo como o corpo e a cidade
deveriam ser vistos: sem distinções e julgamentos, deixando-os livres para existirem.
Esse modo de ver a pesquisa e o mundo segue a ideia do corpo sem órgãos (CsO),
conceito criado por Deleuze e Guattari (1996) e que contempla a ideia de recusar a
organicidade das coisas, na tentativa de se distanciar da ideia de que o organismo foi
feito para funcionar de uma forma exata e estabelecida, sem mudanças. Os autores
questionam por qual motivo tal órgão não pode funcionar como ele quer naquele
momento, sem poder se livrar de regras já impostas àquele corpo, “percebemos
pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos
não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a
essa organização dos órgãos que se chama organismo” (DELEUZE; GUATTARI, 1996,
p.21). O trabalho segue a ideia do CsO pois recusa a organicidade do processo que já
era estabelecido, acontece na experiência, na vivacidade. Percorre e cria novo
caminhos, sem princípios pré-estabelecidos.

Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado
por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o
CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde
aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O
CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium
ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e bem está no
espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau - grau que
corresponde às intensidades produzidas. (DELEUZE; GUATTARI, 1996,
p.13)

Nesse movimento de recusar a organicidade, de entender que um corpo constitui


multiplicidades, faço a escolha de me retratar sem roupas para questionar porque
algo tão natural, quanto o corpo nu, despido de tudo o que uma sociedade impõe,
possa ser motivo de espanto ou aversão, Matesco (2009, p.24-25) comenta que "a
sexualidade dos corpos, sobretudo do corpo feminino, no entanto, sempre foi um
problema para o nu. Mesmo em sua origem grega, a nudez masculina e a feminina
não tinham o mesmo estatuto". De onde vêm esses padrões impostos sobre nós
dizendo como nosso corpo tem que ser e como devemos mostrá-lo? “[...] a imagem
498
ideal do corpo que se procura em geral atingir muitas vezes não é nada mais do que
a imagem cultural que supostamente devemos aceitar” (MARZANO-PARISOLI, 2004,
p.47). Questiono então sobre esse ideal que é modificado constantemente, envolto
de tantos estereótipos criados por outros e que acaba se alterando a cada novo
padrão imposto pela sociedade. O que resta quando tiramos as amarras, os
julgamentos e as roupas?

Trago a projeção para mostrar, poeticamente, a ação de um corpo habitando o espaço e


pertencendo a ele, assim a imagem projetada ocupa o lugar e o utiliza como morada por
segundos e então, como diz Matesco (2009, p.37), “não se trata mais de um corpo visto, mas
sentido” resultando em um corpo sendo o cenário por completo.

Desdobramentos do processo criativo

No trabalho e na produção artística final é difícil pensar os conceitos que contemplo


separados uns dos outros: eu, corpo e cidade uniram-se a cada novo passo que a
pesquisa avançou. Eu sou o corpo que habita a cidade, o meu corpo é a cidade, a
cidade sou eu. Penso sobre essas interações mediante o movimento constante da
cidade, como ela se organiza, como vive independentemente de outros
acontecimentos, pessoas ou tempo e como o espaço urbano reflete os sujeitos que
nela vive.

Não há fisionomia que não acolha uma paisagem desconhecida, não há


paisagem que não desenvolva um rosto. Qual rosto jamais evocou o
mar e a montanha, qual paisagem jamais remeteu ao rosto que
completaria suas linhas e traços? Não haveria um momento em que se
evidenciasse a semelhança mimética que se instaura entre o indivíduo
e a cidade que ele habita? (PEIXOTO, 2004, p.73)

Corpo e cidades são conceitos confluentes e uma cidade repleta de lugares


desprezados pela comunidade, resulta em cidadãos que já não se comprometem com
o entorno e com as mudanças da cidade, já que apenas olham para si sem entender
que o todo tem relação direta com a construção de sua identidade. A produção final
(Figura 2) foi intitulada Ser(cenário). A imagem projetada é a fotografia do corpo que
habitou esse espaço largado; esse corpo, para poder tornar-se o espaço como um
todo, precisa primeiramente se desfazer de tudo, de regras, de sentimentos, de
vestimentas e da própria identidade, ele precisou estar livre para ser o cenário.
499
Entendendo que se trata de uma atividade de entrega, de um corpo utilizado como
objeto, livre principalmente da sexualização que o corpo feminino carrega.

Figura 2 - Ser (Cenário), 2017.

Fonte: Acervo da pesquisadora.

O que fica é o registro desse corpo habitando o lugar, assim a obra tem a
possibilidade de continuar através do tempo e do esquecimento.

São modos de a obra se desdobrar, de deslocar e produzir


condensações de figuras e de significações do real que retorna. A obra
inscreve suas visibilidades em corpos, espaços naturais, objetos
cotidianos, mas também em partituras e registros. A partitura, o evento
e o registro tomam a obra sob perspectiva de funções e relações de
visibilidades variadas. (COSTA, 2014, p.44)

Através do registro fotográfico, a produção permanece aberta a novos significados e


novos olhares, tornando-se atemporal. A imagem final retrata um corpo que
vivenciou e se moldou ao espaço, que foi o cenário, que sentiu o abandono. Através
da projeção meu corpo residiu o espaço abandonado e de alguma forma habitou e

500
integrou-se ao lugar e assim (re)criou sua própria história em um cenário que só
restavam ausências. “A arte na cidade contemporânea só pode aludir ao que ali nos
escapa, ao que ali não tem lugar. (...) fotografar o invisível, o que não tem registro, o
que não se pode reter. Deter ausências.” (PEIXOTO, 2004, p.51).

A produção final foi o resultado de uma pesquisa realizada de forma cartográfica,


com vários caminhos e desvios que permanecem em aberto, deixando alguns
conceitos de lado e sem seguir regras; meu corpo deixou de se importar com isso. A
cidade e o corpo foram o objeto de arte e juntos se tornaram um só.

Um caminho (in)conclusivo

Esta pesquisa se desdobrou e tomou rumos que nem eu mesma percebi, vejo minha
escrita um pouco dura e concisa, porque a senti e vivi como vivo a cidade e a sua
movimentação, escura como as ruas da cidade, como as veias do corpo. Meu corpo
foi a produção e se transmutou para um corpo que já não é só mais esse corpo físico,
mas um corpo movido as situações diárias, ao espaço que habita, ao todo a sua volta
e a poética. Ele sentiu e foi a cidade, experienciou e se tornou o espaço, o cenário.

Quis redescobrir a cidade como um corpo que possui vida independente e que assim
como os indivíduos, prende-se a regras e a estereótipos. O corpo e a cidade tornam-
se descartáveis na medida em que vivemos uma vida rasa, imersos a situações
cotidianas que passam despercebidas, abandonando pessoas, objetos e lugares;
deixando de lado as histórias de uma família, de um grupo, de toda uma sociedade.

A cidade cinza, sólida, incômoda e repleta de lugares esquecidos tem muito o que
dizer, se soubermos escutar e apreciar os pequenos sentidos que ela suscita. Para
isso, é importante parar e analisar o entorno, perceber o que e como acontecem as
cenas do dia a dia, de que forma a cidade se movimenta e se transforma a cada
instante. Entender que em um novo passo, um caminho que é coletivo se constrói e
se forma através dos encontros e dos lugares de passagem. “Escuta-se a cidade como
se fosse uma música tanto quanto se a lê como se fosse uma escrita discursiva”
(LEFEBVRE, 1991, p.57). É necessário interpretar os caminhos e as paisagens do
ambiente urbano como se lê e interpreta um texto, como se imagina e elabora uma
escrita.

501
Esta pesquisa me fez redescobrir aspectos da cidade contemporânea, revivi diversos
sentimentos e angústias que me instigam a continuar investigando a paisagem da
cidade. O que fica, além do registro da performance realizada, é experiência que meu
corpo teve no decorrer, nas deformações da pesquisa, nos desvios e nos acertos, no
caminhar da cidade, no adentrar os lugares carregados de história. Corpo e cidade
confluíram-se numa atividade poética na busca de desvendar ambos, de se abrir para
novos caminhos. Entre interferir no espaço e se deixar senti-lo, o corpo residiu o
cenário, a imagem que se teve foi uma imagem empírica que trouxe todas as questões
de abandono e de vazio nela. A cidade contemporânea, cinza, sólida e incômoda se
transpôs na produção final.

Referências

BACHELARD, Gaston; DANESI, Antônio de Pádua. A poética do espaço. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
CANTON, Katia. Espaço e lugar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 71 p.
COSTA, Luiz Cláudio da. A gravidade da imagem: arte e memória na contemporaneidade.
Rio de Janeiro: Faperj, 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 01. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 03. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
MARZANO-PARISOLI, Maria Michela. Pensar o corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.
MELIN, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2008.
MATOS, Olgária. Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Palas Athena,
1998.
PAOLIELLO, Daniela Tavares. Corpo em queda: o perder-se como potência criativa. 2016.
105 f. Dissertação (Mestrado em Artes), Linha de Pesquisa: Processos Artísticos
Contemporâneos. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie
wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3712119> Acesso em: 31 maio 2017.
PASSOS, E.; BARROS, R.B. A cartografia como método de pesquisa intervenção. In: PASSOS,
E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-
intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

502
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. 3. ed. ver. e amp. São Paulo: SENAC/SP,
2004.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 4. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

Mini Currículo

Laura dos Santos Goulart


Mestranda em Educação pelo PPGE da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Formada
em Artes Visuais Bacharelado em 2017 pela mesma Universidade. Com produções artísticas que
refletem sobre os conceitos de corpo, cidade e ruínas, utilizando de técnicas como a performance,
fotografia, intervenção e videoarte. E-mail: Laura_goulart@unesc.net

503
DO CONTO AO FILME: UMA REFLEXÃO SOBRE A TRANSPOSIÇÃO DA
NARRATIVA ESCRITA PARA O CINEMA DE ANIMAÇÃO

FROM TALE TO FILM: A REFLECTION ON THE TRANSPOSITION OF WRITTEN


NARRATIVE TO ANIMATION CINEMA

Dustan Oeven Gontijo Neiva


PPGACV-UFG, Brasil

Resumo

Este artigo é um recorte da pesquisa que desenvolvo no doutorado do Programa de Pós-


Graduação em Arte e Cultura Visual, na linha de Poéticas Visuais e Processos de Criação.
Nele, abordo a questão da transposição de obras literárias para o audiovisual,
particularmente, para animação. Parto de um diálogo teórico sobre a adaptação de obras da
literatura para o cinema, recorrendo a autores como Roland Barthes, Robert Stan e Ismail
Xavier, entre outros e desenvolvo uma reflexão sobre um curta-metragem em animação que
produzi, utilizando o procedimento da análise fílmica e, ainda, comparando o filme com o
conto original do qual ele deriva.

Palavras-chave: Narrativa; Adaptação Fílmica; Animação.

Abstract

This article is a part of the research that I am developing in the doctoral program of the
Postgraduate Program in Art and Visual Culture, in the line of Visual Poetics and Creation
Processes. In it, I address the issue of transposing literary works to the audiovisual,
particularly for animation. I start from a theoretical dialogue on the adaptation of works of
literature for cinema, using authors such as Roland Barthes, Robert Stan and Ismail Xavier,
among others, and develop a reflection on a short animated film that I produced, using the
procedure of analysis and also comparing the film with the original tale from which it derives.

Keywords: Narrative; Filmic Adaptation; Animation.

Introdução

Narrar histórias, criar e contar mitos que explicam suas origens e organizam a vida
social é uma ação que permeia a história da humanidade em suas diversas sociedades

504
e culturas. As formas como as narrativas se desenvolvem variam entre os seres
humanos. Para Barthes,

A narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou


escrita pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada
de todas essas substâncias. Está presente no mito, na lenda, na fábula,
no conto, na novela, não epopeia, na história, na tragédia, no drama, na
comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de
Carpaccio) no Vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait
divers, na conversação (BARTHES, 2008, p. 19)

Narrar é o processo de contar uma história, ou seja, uma ação que se desenvolve em
um tempo e espaço determinados. A narrativa supõe também a existência de
personagens que praticam essa ação. Para Walter Benjamin (1987), a necessidade da
troca de experiências entre os seres humanos é a base da narrativa. A existência da
narrativa é definida pela sequência de acontecimentos de interesse humano, como
afirma Bremond:

Toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de


acontecimentos de interesse humano na unidade de uma mesma ação.
Onde não há sucessão não há narrativa, mas, por exemplo, descrição
(se os objetos do discurso são associados por uma continuidade
espacial), dedução (se eles estão implicados) em efusão lírica (se eles
evocam por metáfora ou metonímia), etc. Onde não há integração na
unidade de uma ação não há narrativa, mas somente cronologia,
enunciação de uma sucessão de fatos não coordenados. Onde enfim
não há implicação de interesse humano (onde os acontecimentos
relacionados não são produzidos nem por agentes, nem sofridos por
pacientes antropomorfos) não pode haver narrativa, porque é somente
por relação com o projeto humano que os acontecimentos tomam
significação e se organizam em uma série temporal estruturada.
(BREMOND, 2008, p. 118)

A partir da modernidade, o cinema tornou-se uma das formas mais difundidas de


narrar histórias. Desde suas origens, a narrativa fílmica utiliza o recurso da adaptação
de obras literárias. A correspondência entre livros e filmes é uma discussão
recorrente nas discussões sobre as adaptações cinematográficas, habitualmente
embutidas da ideia de que o livro é melhor que o filme. Porém, tanto a literatura
quanto o cinema operam com a narrativa.

505
Uma obra literária tem dois aspectos: história e discurso, conforme com Todorov
(2008). A história refere-se aos acontecimentos e personagens que o vivenciaram, na
ficção ou na realidade. O discurso é a forma que o narrador leva ao receptor o
conhecimento dessa história. Xavier (2003) propõe decompor a narrativa em fábula,
que diz respeito à história contada, com seus personagens e sequência de
acontecimentos em um tempo e um espaço determinado, e Trama, que é o modo que
essa história e personagens são apresentados ao receptor. “Uma única fábula pode
ser construída por meio de inúmeras tramas com formas distintas de dispor os dados
de organizar o tempo” (XAVIER, 2006, pg. 65).

Ao longo de sua existência, o ser humano desenvolveu variadas formas de contar suas
histórias: as narrativas orais, a escrita, as imagens fixas e em movimento. A passagem
de um meio de contar uma história para outro é um processo constante. A
transcrição de narrativas produzidas originalmente nas formas oral ou escrita para
meios visuais permitiu o acesso a amplo número de pessoas a obras que são mais
conhecidas e reverenciadas que as originais. Jakobson (1969) compreende a
interpretação de signos verbais por meio de signos não-verbais como tradução
intersemiótica ou transmutação. Essa tradução é um processo que envolve
transformações da fonte original, a linguagem verbal, a obra literária até a recepção
em linguagem visual, representada pelo filme. Esse processo de transmutação revela
a interpretação dos signos verbais da obra original pelo criador da obra derivada.

Entretanto, a adaptação cinematográfica de obras da literatura sempre foi motivo de


muita discussão entre produtores, críticos e público em geral. Quando se fala de
adaptações de livros para filmes, a questão da “fidelidade” é recorrente em tais
discussões. Para o conhecedor da criação original, existe uma série de expectativas
de como ela será representada no filme. Uma obra literária é uma expressão artística
que opera com um sistema de signos verbais, escrito, que possibilita a quem o acessa
uma determinada compreensão. Conforme Anna Maria Balogh (1996, pg. 39), “Cada
obra literária, essencialmente plural e, portanto, ambígua, poderia ter um número
ponderável de leituras e, portanto, de possibilidades de tradução”. Portanto, o texto
literário é uma obra polissêmica, que possibilita diferentes interpretações.

Para Hélio Guimarães (2003), a ideia de fidelidade se respalda na suposição de existir


uma interpretação “única” ou “correta” da obra literária e, portanto, quem a adapta

506
deve captar e transmitir esse sentido para outra linguagem, como a audiovisual. De
acordo com esse autor, “Essa visão nega a própria natureza do texto literário, que é
a possibilidade de suscitar interpretações diversas e ganhar novos sentidos com o
passar do tempo e a mudança das circunstâncias” (GUIMARÃES, 2003, p, 95)

A adaptação fílmica de um conto ou livro é uma interpretação dessa narrativa escrita


que estabelece uma outra obra, no caso imagética. A forma de contar uma história
no livro é com signos verbais. O escritor compõe sua narrativa, a partir dos recursos
da linguagem escrita para situar as ações dos personagens em um intervalo de
tempo, em determinado lugar. No filme, a história é contada com imagens. De acordo
com Pellegrini, (2003, pg. 18): “A diferença entre a literatura e o cinema, nesse caso, é
que, na primeira, as sequências se fazem com palavras e, no segundo, com imagens”.
Um escritor utiliza somente as palavras para elaborar uma ambientação espaço-
temporal, caracterizar seus personagens, descrever as ações, criando assim a
sequência narrativa. O cineasta compõe sua narrativa, combinando linguagem verbal,
linguagem sonora e visual. De acordo com Johnson:

Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com


toda sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo
menos cinco materiais de expressão diferentes: imagens visuais, a
linguagem verbal oral (diálogo, narração, letras de música), sons não
verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria língua escrita
(créditos, títulos e outras escritas). (JOHNSON, 2003, p. 42).

Um filme possui um conjunto de elementos que desenvolvem uma linguagem própria


para articular a narrativa. Para adaptar um livro, os cineastas podem usar vários
componentes dessa linguagem: enquadramento, atuação, narração, continuidade,
montagem. Em sua análise da adaptação cinematográfica de Madame Bovary, Robert
Stan afirma que:

Enquanto Flaubert menciona uma sonata de Scarlatti que fez Emma


sonhar, um cineasta como Chabrol tem a opção de incluir a sonata na
trilha sonora, fazendo com que não apenas seu personagem comece a
sonhar, mas também o espectador, sem precisar sequer utilizar a
expressão fazer sonhar. (STAN, 2008 p. 239)

Para Johnson (2003), a questão da fidelidade é um falso problema, que remete a


condições específicas. “Não é um problema para o espectador que não conhece a

507
obra original. De modo geral, também não é um problema quando se trata de uma
obra literária pouco conhecida ou valorizada” (JOHNSON, 2003, p. 41). Hoje em dia,
pode-se ver essa conexão em filmes de super-heróis, por exemplo. As mudanças que
os filmes trazem nas características de um personagem famoso, como o Homem-
Aranha são questionadas pelos fãs dos quadrinhos. Porém, os filmes foram bem
recebidos pelo público de não leitores ou leitores casuais dessas histórias em
quadrinhos, como atesta o sucesso de bilheteira e a abundância de sequências. Ao
considerar as adaptações cinematográficas, a perspectiva de diálogo entre
linguagens é salientada por Xavier,

Livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não tem


exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de
esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas
com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro,
mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele
expressos. (XAVIER, 2003, p. 62)

Também para Stan (2006), a adaptação cinematográfica é vista como um “diálogo


intertextual”, que não prioriza um meio em detrimento de outro, mas considera as
particularidades do meio utilizado, assim como as características socioculturais de
cada criação.

O texto original é uma densa rede informacional, uma série de pistas


verbais que o filme que vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar,
subverter ou transformar. A adaptação cinematográfica de um
romance faz essas transformações de acordo com os protocolos de um
meio distinto, absorvendo e alterando os gêneros disponíveis e
intertextos através do prisma dos discursos e ideologias em voga, e
pela mediação de uma série de filtros: estilo de estúdio, moda
ideológica, constrições políticas e econômicas, predileções autorais,
estrelas carismáticas, valores culturais e assim por diante. (STAN, 2006,
p.50)

Do conto ao filme

Analisar filmes é fazer uma leitura detalhada do seu conteúdo textual, visual e sonoro.
Para Jacques Aumont (2002), um filme é uma representação visual e sonora, que pode
ser lido a partir dos elementos que o constituem, tais como: enquadramento, campo,
relações entre as cenas, banda sonora, montagem entre outros. De acordo com esse
508
autor, “o cinema oferece uma imagem figurativa onde, graças a um certo número de
convenções, os objetos fotografados são reconhecíveis” (AUMONT, 2002, p. 90).

Vanoye e Goliot-Lété (1994), sublinham que a análise de um filme começa na


decomposição dos seus elementos constituintes.

Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido


científico do termo, assim como se analisa, por exemplo, a composição
química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos. É
despedaçar, desconstruir, desunir, extrair, separar, destacar e
denominar materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”,
pois se é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto do texto fílmico
para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de elementos distintos do
próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo
distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser
mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os
desígnios da análise. (VANOYE E LÉTÉ, 1994, p. 15)

Martin (2003) considera o cinema como uma linguagem cujas propriedades


essenciais para elaboração de sentido são a imagem em movimento e o som. A
interpretação de um filme deve ser feita a partir dos elementos que compõem a
linguagem cinematográfica.

É preciso aprender a ler um filme, a decifrar o sentido das imagens


como se decifra o das palavras e o dos conceitos, a compreender as
sutilezas da linguagem cinematográfica. Quanto ao mais, o sentido das
imagens pode ser controvertido, assim como o das palavras, e
poderíamos dizer que há tantas interpretações de cada filme quantos
forem os espectadores. Consequentemente, se o sentido da imagem é
função do contexto fílmico criado pela montagem, também o é do
contexto mental do espectador, reagindo cada um conforme seu gosto,
sua instrução, sua cultura, suas opiniões morais, políticas e sociais,
seus preconceitos e suas ignorâncias. (MARTIN, 2003, p. 27)

Baseado nessas considerações, passo a descrição e análise do filme em animação


Mágoa de vaqueiro, que produzi adaptando o conto homônimo de Hugo de Carvalho
Ramos. A análise realizada aqui, busca identificar nos elementos fracionados da
estrutura do filme, ou seja, nas sequências e planos, as relações do curta-metragem
com a obra da qual ele deriva.

509
Mágoa de Vaqueiro

Ano: 2006 – Duração: 6 min. Formato: digital. Direção: Dustan Oeven e Moisés Cabral.

Sinopse: A animação narra a história de um senhor, abandonado pela filha, sua única
companhia; a melancolia e saudade do velho é demonstrada em sua relação com os
objetos a sua volta e a casa.

O conto de Hugo de Carvalho Ramos começa com a descrição do fim de uma festa e
com a fuga da filha do dono da fazenda com o rapaz chamado Zeca Menino. Ao ouvir
um canto de galo, o compadre Ambrosino comenta “– Carijó que assim canta, é que
fugiu moça de casa”. Quando os festeiros vão embora e o fazendeiro, intrigado,
chama sua filha, que não responde. Então, ele arromba a porta do quarto da moça e
ao vê-lo vazio e arrumado, deduz que ela foi embora.

Figura 1 - Sequência de frames do filme Mágoa de Vaqueiro. Digital HD. 2006. Arquivo do autor.

510
Ao adaptar o conto, optei por reduzi-lo ao que achei essencial, que é o abandono do
fazendeiro por sua filha. A desilusão do velho frente a esse abandono e o
reconhecimento de sua impotência diante dos fatos.

Nessa primeira sequência de tomadas do filme (Fig. 1), o primeiro fotograma é de uma
casa à noite, com as luzes acesas. Nas imagens posteriores, vemos um cenário típico
de fazenda onde uma moça entrega uma xícara a um velho que está jogando cartas.
Então a garota se espreguiça e boceja, demonstrando sono. Na foto seguinte, o velho
beija a testa da moça. Nesta foto, a imagem lentamente escurece e desaparece,
indicando a passagem do tempo. Como se nota, o início do filme é muito diferente
do início do conto. A proposta dessa essa introdução é expressar a serenidade e o
carinho que existe entre o fazendeiro e sua filha. Na cena seguinte, o velho sopra
carvão do fogão para avivar o fogo. Ouve-se um canto do galo, anunciando o
amanhecer. O velho olha com o canto do olho e parece pensar em algo. O que ele
estranha é a ausência da filha no café, como fica demonstrado na tomada seguinte,
em que o velho bate várias vezes em uma porta de madeira e, não obtendo resposta
a arromba. A rotina do personagem é pontuada por uma trilha suave até o
estranhamento que ocorre pela filha não ter se levantado. Nesse momento, a trilha
assume um tom de suspense e tornando-se mais intensa quando o velho força a porta
do quarto da filha. No conto, o anúncio da fuga da filha é dado pela fala do compadre
Ambrosino sobre o canto do galo, o que provoca inquietação no velho. No filme,
ouve-se o canto do galo, que junto à quebra da rotina provoca suspeitas no velho. A
trilha sonora desempenha um poderoso papel na narrativa do filme, nesse instante.

Em outro momento do conto, o narrador descreve a seguinte cena:

A cama estava como na véspera a vira, quando lá entrara para apanhar


a bandeira do santo; a colcha de chita bem esticada, fronhas dos
travesseiros intactas, sem vinco ou ruga duma cabeça que ali
repousasse alguns instantes; e o rosário das orações como sempre,
dependurado na cabeceira. Da Mariazinha, porém, nem vestígio.
(RAMOS, 1984, p. 34)

O abandono e perplexidade do fazendeiro diante do acontecido, bem como seu


ressentimento são expressos nesse trecho do conto:

511
Fugira, a malvada! E com quem, Santa Maria, com o Zeca Menino
certamente, um perdido de pagodeiras e do truque, brigão vezeiro nas
redondezas, sujeito que além da garrucha e da besta de sela, só tinha
por si essa estampa escorreita de mestiço madraço e preguiçoso! E por
que, Virgem Maria, se ele nunca se intrometera no namoro, até
satisfaria a vontade de ambos, dando o consentimento; ele que, mal da
idade, com tão pouco se contentava – vê-la sempre de sorriso à boca
ao batente da porta, quando viesse das malhadas, e a tigelinha de café
bem requentada, quando partisse pela manhã para as labutas do
campo! (RAMOS, 1984, p.34)

Figura 2 - Sequência de frames do filme Mágoa de Vaqueiro. Digital HD. 2006. Arquivo do autor.

De acordo com Martin (2003), a montagem é a organização dos planos do filme em


determinada ordem e duração que estabelece o curso dramático do filme. Nessa
sequência (Fig. 2), o plano detalhe do papel sobre a cama vazia é um indício da quebra
da rotina. Posteriormente há um plano do velho lendo o bilhete. Na leitura do bilhete,
há uma fusão para uma cena em flashback, da fuga da filha. No texto de Ramos, a fuga
é descrita logo em seu início. No filme, esse trecho da história é contado com o
recurso do flashback. O flashback possibilita ao espectador ver a cena da fuga, mas é

512
também um como ponto de virada na atitude psicológica do velho, que a depreende
pelos indícios: o bilhete, a janela aberta. O quadro seguinte apresenta o velho com
semblante transtornado amassando o bilhete o jogando no chão raivosamente. Em
seguida ele vai para a sala e contempla as fotos de família. Em outra tomada, irado,
ele pega a estátua de Nossa Senhora Aparecida, ameaçando jogá-la ao chão,
desistindo, no entanto. A movimentação do personagem revela o simbolismo em cada
elemento que o compõe o cenário: o altar caseiro, espaço de desespero ou
consolação; as fotos de família demonstrando os pertencimentos e perdas; o relógio,
que marca o tempo, mas sobretudo, do transcurso da própria vida.

A raiva pela partida da filha e pela ofensa a honra da família é descrita por Ramos:

E arrepelava a grenha, num pasmo mudo agora, como se nem pensar


naquilo valesse mais a pena, tão absurda parecia a desgraça que se lhe
abatera sobre o casebre. Ah! Não ter dez anos para menos, não virasse
já os sessenta bem puxados, tivesse o pulso a rijeza de outrora e partiria
sem detença, no rosilho troncho, pronto a tirar a desforra merecida da
afronta! Mas o corpo já não dava de si e ele bem sabia quão boa
estradeira era a mula ruana em que haviam partido. Àquela hora, já
transpunham a mata funda, rumo do Paranaíba e talvez das terras
mineiras do Triângulo, bem longe da sanha e da ojeriza impotente de
seu amor paterno ludibriado. (...)
E num desalento, amparou-se ao cupinzeiro que erguia o seu cone
crivado à frente da palhoça, a olhar emudecido, em desespero
O sertão abria-se naquela manhã de junho festivo, na glória fecunda
das ondulações verdes, sombreado aqui pelas restingas das matas,
escalonado mais além pelas colinas aprumadas, a varar o céu azul com
suas aguilhadas de ouro;(...)
Ele ficara mudo, olhos apalermados, virado o rosto para a volta da
estrada, de cuja orla subia um nevoeiro luminoso, que o mormaço solar
irisava.
Ali permaneceu horas a fio, o sol já dardejando a prumo, indiferente à
canícula, mãos túrgidas engalfinhadas na barba intonsa, boca
contorcida numa visagem estranha de mágoa, a olhar longe, muito
longe, para além das colinas longínquas e do céu anilado. (...)
Morrera, ouvindo os ecos que lá iam do aboiado, a rolar,
magoadamente, de quebrada em quebrada. (RAMOS, 1984, p.35)

513
Figura 3 - Sequência de frames do filme Mágoa de Vaqueiro. Digital HD. 2006. Arquivo do autor.

A cena (Fig. 3) começa com um plano detalhe um laço de corda. Na tomada seguinte,
o velho está com esse laço na mão, saindo apressado de casa. Em seguida, o velho,
parado de costas em primeiro plano, observa a cerca da fazenda e o horizonte. Nesse
momento, sua mão deixa o laço cair. No próximo take, um plano detalhe revela as
lágrimas escorrendo pelo rosto do fazendeiro. A tomada subsequente é um plano em
plongée, com o velho se debruçado sobre a porteira da fazenda. Essa cena é uma
animação feita com a posição da luz principal, que representava o sol. A sombra do
velho desloca seu ângulo, demonstrando a passagem do dia. A tomada final do filme
é o fazendeiro em plano médio, caído sobre a cerca ao mesmo tempo em que imagem
some em fusão para o preto.

Os elementos visuais evidenciam os sentimentos descritos no texto de Ramos: a raiva


e a incapacidade do personagem de alcançar seu intento de recuperação da filha e a
reparação da ofensa sofrida. A determinação de trazer a filha de volta é mostrada ao
pegar o laço. A perda dessa determinação se revela quando ele solta o laço. O plano
geral o mostra de costas contemplando a vastidão do sertão além da cerca de sua
fazenda, evidenciando sua insignificância diante do mundo.

De acordo com Martin (2003), O plano em plongée apequena o sujeito em relação ao


mundo. Aqui também possibilitou que se utilizasse a luz como recurso narrativo. O

514
velho apoiado na cerca, enquanto a luz é animada, salienta seu isolamento e
impotência diante da situação. Sua sombra é como um quadrante solar, marcando o
decurso do dia e também a vida que se esvai do velho senhor. A imagem é do
crepúsculo, do fim do dia e também da vida do fazendeiro.

Considerações finais

Uma obra literária propicia múltiplas leituras e a sua transposição para o meio visual
é apenas uma dessas leituras. Livro e audiovisual possuem elementos diferentes para
compor uma narrativa. Enquanto o texto tem apenas a linguagem verbal, o filme,
além da linguagem verbal, trabalha com imagens e áudio. Uma adaptação fílmica de
uma obra literária é uma leitura própria do autor do filme, na qual ele estabelece um
diálogo com a obra original. Esse diálogo é influenciado pelo meio sociocultural. A
relação desse leitor/autor com a obra é permeada por sua própria história de vida,
sua formação cultural, opções ideológicas e afetos.

Para a adaptação do conto Mágoa de vaqueiro foram escolhidos os momentos da


história que transmitiam a relação de amor do velho com sua filha, a dor da perda, o
crepúsculo da vida. A supressão de alguns personagens e diálogos presentes no conto
foi uma opção definida pela concepção da narrativa audiovisual, que surgiu do
diálogo com a leitura do texto de Hugo de Carvalho Ramos.

O recurso da análise fílmica e da comparação entre o texto escrito e a animação


permite percebermos que adaptar uma obra original é fazer escolhas. As escolhas
refletem a percepção de quem faz a adaptação do texto original.

Referências

AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas. Papirus, 2002.


BALOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções e transmutações. Da literatura ao cinema.
São Paulo. Editora USP. 1996.
BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da
narrativa. Petrópolis. Editora vozes.2008.
BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte”. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol.1. 3ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987, pp.137-164.

515
BREMOND, Claude. A lógica dos possíveis narrativos. In: Análise estrutural da narrativa.
Petrópolis. Editora vozes.2008.
GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação
de Os maias. In: Literatura, cinema e televisão. São Paulo. Itaú cultural.2003
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo. Editora Cultrix. 1969.
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso Vidas secas. In:
Literatura, cinema e televisão. São Paulo. Itaú cultural.2006
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo. Editora brasiliense. 2003.
PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In:
Literatura, cinema e televisão. São Paulo. Itaú cultural.2003,
RAMOS, Hugo de Carvalho. Mágoa de vaqueiro. In: Tropas e boiadas. Goiânia. Editora UFG
1998
STAN, Robert. A literatura através do cinema. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2008
STAN, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade a intertextualidade in: Ilha do
Desterro Florianópolis nº 51, p. 019- 053 jul./dez. 2006. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/2175-8026.2006n51p19
TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: Análise estrutural da
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XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema In:
Literatura, cinema e televisão. São Paulo. Itaú cultural.2003
VANOYE, Francis e GOLIOT-LETÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, SP.
Papirus. 1994.
Referência de filme
Magoa de vaqueiro. Direção: Dustan Oeven e Moisés Cabral. 2006. Digital HD. Disponível
em: https://vimeo.com/manage/videos/705584932 senha: ramos

Mini Currículo

Dustan Oeven Gontijo Neiva


Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV-UFG); Mestre em Arte
e Cultura Visual (PPGACV-UFG); possui Especialização em Antropologia Social – UFG; Graduação em
Comunicação Social (Radialismo) - UFG e Artes Visuais – UFG. Produtor Cultural no Instituto Federal
de Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Produtor e diretor de filmes de animação. E-mail:
dustanoeven@gmail.com

516
O METATEXTO NO FILME VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA

THE MEATEXT IN THE FILM YOU HAVEN´T SEEN ANYTHING YET

Ândrea Sulzbach
Universidade Tuiuti do Paraná - UTP, Brasil

Resumo

Este trabalho possui como objeto de estudo a linguagem teatral presente no filme Vocês
Ainda não Viram Nada (Vous N'avez Encore Rien Vu de Alain Resnais, 2012) e a
intertextualidade contida na construção da estrutura cenográfica e representativa. O
objetivo geral é verificar os elementos presentes no processo criativo, no referido filme,
apoiados na Nouvelle Vague francesa. Os objetivos específicos versam sobre o
aprofundamento das interconexões percebidas, tendo como desdobramento principal a
presença das Artes Cênicas. A metodologia comparativa enfoca o contraponto entre a
encenação teatral e a cinematográfica. A hipótese é de que a apropriação da linguagem
teatral como intertexto proporciona um cinema reflexivo que é concebido como metatexto
no filme do corpus. A análise geral dos elementos cênicos se apoia nas definições de Jean-
Jaques Roubine para a análise teatral e Jacques Aumont nos fundamentos cinematográficos.
No que se refere ao conceito de intertextualidade Julia Kristeva complementa o referencial
teórico.

Palavras-chave: Cinema. Teatro. Intertextualidade.

Abstract

This work has as object of study the theatrical language present in the film You Haven´t Seen
Anything Yet (Vous N'avez Encore Rien Vu Alain Resnais, 2012) and the intertextuality
contained in the construction of the scenographic and representative structure. The general
objective is to verify the elements presented in the creative process, in that film, supported
by the French Nouvelle Vague. The specific objectives - presence on the deepening of the
perceived interconnections, having as to see the main unfolding of the Performing Arts. The
comparative methodology focuses on the counterpoint between theatrical and
cinematographic staging. The hypothesis is that the appropriation of theatrical language as
an intertext provides a reflexive cinema that is conceived as a metatext in the corpus film.
The general analysis of the scenic elements supports Jean-Jaques Roubine's definitions for

517
theatrical analysis and Jacques Aumont's cinematographic foundations. With regard to the
concept of intertextuality, Julia Kristeva complements the theoretical framework.

Keywords: Cinema.Theater. Intertextuality

Introdução

O diálogo entre o cinema e o teatro ocorre desde a criação das primeiras imagens
em movimento. Essa intertextualidade apresentou diferentes graus de aproximação
de acordo com o momento histórico e evolutivo no qual estavam inseridos. Em seu
início, grande parte das películas se desenvolvia a partir do teatro de atrações, que
prevalecia no intertexto. Com o avanço da linguagem cinematográfica, as antes
consideradas simples imagens em movimento se transformam em filmes,
provenientes da criação de variadas concepções técnicas e narrativas.
Enquadramentos, movimentos de câmera, elipses e diversos outros recursos
cinematográficos geram uma nova forma de se fazer arte.

O propósito deste trabalho é analisar o diálogo entre essas duas linguagens, cinema
e teatro, presentes no corpus.

Nouvelle Vague

A teoria de autor foi desenvolvida por um grupo de críticos que participaram do


Cahiers Du Cinema, transformando-a, segundo Peter Wollen (1984), na revista de
cinema mais importante do mundo. Esses críticos acreditavam que o cinema
americano merecia ser estudado em profundidade, principalmente filmes de autores
que haviam sido rejeitados e com isso condenados ao esquecimento.

Havia também um movimento cineclubista, ligado à Cinemateca de Paris, que


aprofundou os estudos nesse campo ao exibir os filmes de Hollywood e com isso
perceber as dimensões históricas, principalmente na linguagem cinematográfica, ao
analisar com isso, de acordo com Wollen, as carreiras de cada um dos cineastas e
suas especificidades. “A teoria de autor não se limita à fácil aclamação do realizador

518
como o autor principal de um filme. Implica ainda uma operação de decifração; revela
autores que ninguém tinha como tal” (WOLLEN, 1984, p.79).

De acordo com Kemp (2011, p. 248), o que iniciou como uma reunião de críticos jovens
que possuíam um interesse em comum se transformou num grupo de cineastas que
redefiniram o cinema moderno.

Ainda que imaturos, os primeiros filmes de Godard, Rivete e Rohmer


marcaram uma mudança na estética, transportando a ação dos
estúdios para locações reais. Isso foi possível graças aos avanços
tecnológicos, com câmeras portáteis de alta qualidade mais baratas e
películas cinematográficas mais rápidas então já disponíveis, o que
permitia o acesso a quase qualquer lugar e filmagens sem o auxílio de
iluminação. A Nouvelle Vague começou oficialmente com Nas garras do
vício (1958), dirigido por Claude Chabrol (1930-2010), mas foram Os
incompreendidos (1959), de Truffaut, e Acossado (1960), de Godard, os
filmes que causaram as maiores ondas. (KEMP, 2011, p. 248-249)

Há polêmica sobre qual filme originou a Nouvelle Vague. “Em 1946, no curta 24 Heures
de la Vie d´Un Clown, Jean-Pierre Melville já utilizava métodos que se tornaram
frequentes com a Nouvelle Vague” (MERTEN, p.164, 2003). De acordo com Merten,
entre os precursores encontram-se Roger Vadin com E Deus Criou a Mulher, Louis
Malle Ascensor para o Cadafalso e Claude Chabrol Nas Garras do Vício, realizados
entre os anos de 1956 e 1958.

Os cineastas pertencentes à Nouvelle Vague abordaram uma vertente diferente do


cinema francês formal da época, conhecido como cinéma du papa (cinema do papai)
(BERGAN, 2010, p.110). O “Cinema do papai” eram filmes produzidos em estúdio, com
maquiagem e iluminação impecável.

A corrente cinematográfica Nouvelle Vague francesa se propõe a percorrer o


caminho oposto ao cinema vigente até então em seu país. Godard cortava seus filmes
de modo que as cenas pulassem diretamente para a ação, de acordo com Kemp,
criando o corte brusco que interrompia o fluxo da edição invisível do cinema
convencional. Esse seria mais um item oposto ao cinema clássico que segue a
montagem que se pretende invisível. Godard percorre uma via contrária, em que
“denuncia” sua montagem de forma a gerar um cinema de opacidade. A edição
elíptica servia para chamar a atenção para a relação entre as imagens e o próprio
meio.
519
O cenário como personagem também caracteriza esse movimento. “As cenas
panorâmicas por trás dos créditos estabelecem o fato de que a Paris da história de
Antoine não é apenas um pano de fundo, e sim uma personagem que interfere na
narrativa” (KEMP, 2011, p.249).

A Nouvelle Vague influenciou cineastas de diversos países como Reino Unido e Japão.
E segundo Bergan (2010) possibilitou uma abertura do cinema independente
americano. Com câmera na mão; improviso, (Godard “soprava” o texto nos atores,
que não tiveram permissão para decorar suas falas), esse movimento possibilitou
novas estéticas ao cinema, Jacques Rivette (Paris nos pertence) aplica o conceito de
encenação apoiada em elementos do Teatro e Agnès Varda com La pointe courte
(1955) inspira-se em Bertolt Brecht.

Alain Resnais, com o seu filme Hiroshima meu amor (1959), torna-se, juntamente com
os cineastas Godard e Truffaut, um dos principais representantes desse movimento.
Resnais, segundo Pigaud e Sanson (1969, p.179) exprime a fugacidade das imagens do
sonho. Sua encenação expõe sutilmente o comportamento dos personagens frentes
aos seus tateamentos, hesitações, na imprecisão de suas recordações.

Em O ano passado em Marienbad (1961), Resnais aborda a memória e identidade, e


insere elementos oriundos da encenação teatral, um exemplo seria quando os
personagens ficam congelados durante a cena do salão, enquanto os atores estão
destituídos de movimento a câmera percorre o espaço.

Os filmes da Nouvelle Vague, segundo Merten (2003), eram confessionais, narravam


sobre jovens parisienses da pequena-burguesia, seus amores e frustrações. O sexo é
mostrado como manifestação suprema da comunicação humana e o hedonismo
como algo inerente ao homem, apesar de que o filme de Truffaut, Os
Incompreendidos, não aborda essa vertente erótica.

A despeito de não ser bem recebida no seu início, a Nouvelle Vague se consagra como
um movimento cinematográfico importante. “O cinema da Nouvelle Vague não era
explicitamente político, no sentido de não ter uma intenção didática ou qualquer
preocupação política mais óbvia. Olhando para os primeiros filmes de Godard, por
exemplo, é difícil decifrar uma posição política” (WOLLEN, 1996, p.76). No entanto,
de acordo com Wollen, mais no final dos anos 60 Godard desenvolve filmes com
engajamento político.
520
Em Godard, a recente Nova Esquerda encontrou um diretor cujas
raízes estavam nos filmes de Hollywood e na cultura popular – música,
anúncios, jornalismo – mas que veio a expressar as preocupações
políticas dos anos 60 através de meios cinematográficos de modo mais
provocativo que qualquer cineasta. (WOLLEN, 1996, p. 76)

No entanto, mesmo ao demonstrar uma preocupação política, Godard, de acordo


com Aumont (2012), não chega a desenvolver em seu cinema um papel ideológico.

De acordo com Wollen, com filmes como A Chinesa, Godard virou-se contra
Hollywood e a indústria dominante, representada pelos estúdios Billancourt, e
trocou a película 35 mm por 16 mm.

Figura 1: Cena do filme A Chinesa (1967).

Na figura 1, podemos perceber que as ilustrações ao fundo compõem o espaço


diegético e se impõem como personagens. A cenografia no cinema neorrealista se
apresenta, muitas vezes, como figura dramática, na Nouvelle Vague francesa essa

521
forma de se trabalhar o cenário é revitalizada através de uma composição
contemporânea através de ilustrações que referenciam a Pop Art.

Em 1968, o movimento que nasceu como vanguarda acaba por ser assimilado pela
vertente a qual propunha se opor e a Nouvelle Vague é inserida no cinema
mainstream.

O metatexto em vocês ainda não viram nada

O filme Vocês Ainda Não Viram Nada é extraído de duas peças de teatro do
dramaturgo francês Jean Anouilh, a mais conhecida Eurídice (1942) e Cher Antoine ou
L’Amour Raté (1969), a primeira se desdobrando como o texto dentro do texto do
segundo (FURTADO, 2012).

Eurídice pertence ainda à fase inicial da obra de Anouilh enquanto Cher Antoine é um
dos seus últimos trabalhos. “Ao editá-los juntos, Resnais busca mais uma ponte, uma
passagem entre a exuberância da criação inicial e a reflexão da fase tardia, o jovem
dramaturgo respondendo ao apelo do velho” (FURTADO, revistacinetica,2012). À
exemplo da encenação dos atores em Vocês Ainda Não Viram Nada em que um grupo
de jovens encenam uma versão de Eurídice no vídeo enquanto outro casal, com idade
avançada, interpreta a mesma cena frente ao vídeo exibido, as encenações são
sobrepostas, o ator iniciante com o experiente, o velho e o novo. Intertextualidade
presente que unida a um metatexto1 se encontra não apenas em seu formato de
representação e cenário, mas atinge uma expansão maior alcançada pela diferença
de gerações entre os atores, o tempo, bastante abordado nos trabalhos de Resnais,
explorados em suas diversas facetas.

A explosão do espaço2, conceito desenvolvido por Roubine, altera a relação


espectador e ator. A partir do século XVII, o palco italiano se estabelece como

1
Concebido também como metatextualidade relação crítica, ou seja, o comentário da obra por outro texto: artigo
crítico, análise escrita ou audiovisual. (Aumont e Marie, p. 171)
2
De um ponto de vista empírico, o espaço é apreendido, antes de tudo, pelo nosso corpo, que nele se desloca, e
pelo sentido do toque. A noção de espaço fílmico será, portanto, definida de modo diferente - o plano: o espaço do
campo é comparável a um espaço pictórico; a cena: o espaço da cena é um espaço homogêneo, e a questão é de
sua coerência ao longo dos diferentes planos que compõem a cena; a sequência: é o espaço fílmico o qual mistura
considerações perceptivas e psicológicas. Leva-se em conta a narrativa definida pelos acontecimentos (Aumont e
Marie, p.104).
522
principal recurso para as apresentações de espetáculos teatrais, e essa preferência
perdura até a metade do século XX. Antonin Artaud, teórico do teatro considerado
um vanguardista, foi quem primeiro iniciou questionamentos quanto à utilização
condicionada do palco italiano. De acordo com Roubine, “Artaud foi sem dúvida um
dos que primeiro compreenderam, nos anos de 1920, que a invenção de um novo
teatro implicava a transformação das relações entre plateia e espetáculo; ou seja, em
última análise, a explosão do palco” (ROUBINE,1998, p.87).

Essa explosão de espaço pode ser percebida em Vocês ainda não viram nada, em que
os atores do filme contracenam com os atores do vídeo, os quais estão representando
uma peça de teatro, enquanto no filme a representação se dá primeiro como uma
mera lembrança do texto já produzido há muitos anos pelos atores, para em seguida
encontrarmos os mesmos inseridos em outro espaço, se transportando para o
cenário de uma estação de trem; para um quarto de hotel. Seriam somente
memórias? Não se sabe com certeza, mas o que fica claro aqui é a explosão do espaço
dentro de um metatexto. A personagem Eurídice do filme contracena com o Orfeu
do vídeo, vídeo esse que a princípio a atriz estava apenas assistindo. Essa
representação simultânea lembra mais um fator defendido no teatro por Artaud
apontada por Roubine. “ ...o espetáculo – e podemos reencontrar aqui uma das ideias
de Artaud – desenrolar-se-ia simultaneamente em vários tablados.” (Roubine,1998, p.
105) Essa ideia inicial de Artaud, de abordar novas formas de se ocupar o palco, vai
além do espaço cênico, trabalha também o tempo. Esse tempo em camadas dentro
de vários espaços nos é apresentado em Vocês ainda não viram nada, no qual o
movimento de um mesmo personagem acontece através de vários atores em uma
sequência linear da história, mas não do espaço.

O filme Vocês ainda não viram nada traz uma narrativa que em alguns momentos é
difícil identificar em qual camada ocorre a encenação, ou seja, é uma peça de teatro,
um vídeo ou filme? Essa intertextualidade, que de acordo com Kristeva pode ocorrer
também de forma fragmentada ou difusa, está muito presente no filme e aqui se
desenvolve entre três mídias: cinema, vídeo e teatro.

Em Vocês ainda não viram nada os espaços não se encontram, eles coexistem, não se
está falando do “enquanto isso...” e sim de “ao mesmo tempo que isso”. De acordo

523
com Pierre Samson3, Resnais tenta provocar o espectador, através da fluidez
fascinante do ritmo combinado com a violência das intenções. “Com isso
compreende-se melhor o fato de que, em seus filmes, os gestos são exagerados, as
entonações insólitas, a cronologia despedaçada. (PINGAUD e SANSON,1969, p. 170).
Resnais afirma que seu objetivo é de se dirigir ao espectador em estado crítico e que
para conseguir isso, tem que fazer um cinema natural (SANSON, p.170).

Um dos elementos utilizados para alcançar esse processo é a criação de um espaço


em contínua expansão, tal qual um labirinto. “O labirinto: constantemente
encontramos essa estrutura do espaço nos filmes de Resnais. O labirinto é ao mesmo
tempo um mundo infinito e um espaço entre quatro paredes” (SANSONS, 1969, p.
175). O centro, de acordo com Sansons, não está em lugar nenhum, e não existe
lugares, e sim apenas lugares de passagem, que pertencem ao tempo e ao imaginário
do cineasta.

Se ele escolhe nos mergulhar num labirinto de passagem é porque a


duração, propriamente dita, é apenas uma metáfora: o essencial está
no nosso esforço de remontar no tempo [...], de conceber o mundo não
mais como fatal, mas sim como transformável ao nos inscrevermos na
história. Dessa forma, é-lhe impossível contar histórias unívocas,
deixar-se flutuar ao longo da narração. (PINGAUD e SAMSONS, 1969,
p. 176)

Esses labirintos podem ser percebidos em Vocês ainda não viram nada, onde ocorre
também uma representação coletiva, a voz de um mesmo personagem é dada há
vários atores, Resnais não proporciona somente uma explosão do espaço imagético,
mas também narrativo, espaço esse que se ocupa somente de cenas internas. Em
momento algum o filme se desenvolve em ambientes exteriores. Essa encenação se
torna fragmentada, termo que na contemporaneidade é chamado de teatro das
possibilidades, o qual trabalha o espaço-tempo através de sua narrativa, que possui
como um dos seus representantes Armand Gatti, francês com grande destaque na

3
Pierre Samson, juntamente com Bernard Pingaud, é autor do livro Alain Resnais ou a criação no
cinema (1969), o qual possui artigos nos quais os autores assinam individualmente, outros que são
desenvolvidos em conjunto. Esse livro é o resultado de várias entrevistas com profissionais
(roteiristas; atores; diretor de fotografia entre outros) que trabalharam durante anos com Resnais,
principalmente nos filmes: Hiroshima meu amor (1959); O ano passado em Marienbad (1961); Muriel
(1963) e A guerra acabou (1966) (nota do autor).
524
dramaturgia teatral da atualidade, ele sugere: “[...] Uma dramaturgia em que o
espaço-tempo gera simultaneamente várias dimensões e épocas para dar conta do
homem que se cria de maneira perpétua” (RINGAERT, 1998, p.127). Gatti foi um dos
primeiros a fragmentar a percepção tradicional do tempo e do espaço no teatro.
Ryngaert comenta uma experiência4 de Gatti, o qual convida um grupo de garis da
cidade de Paris para assistir a uma de suas peças de teatro, intitulada La vie
imaginaire de Véboueur Auguste G. [A vida imaginária do gari Auguste G.] (Seuil, 1962).
Ao final do espetáculo Gatti indaga aos garis sobre a temporalidade da peça.

Como eu lhes perguntasse se as diferentes formas de temporalidade


não os tinham incomodado (a mistura dos tempos era, na verdade, o
que mais se criticara), eles conversaram e me deram esta resposta, que
acho excelente [...]: não sabemos se entendemos direito, mas é isso:
alguns de nós têm televisão, no noticiário nos mostram coisas que
aconteceram ontem, outras que aconteceram hoje, em Paris, Moscou,
Londres, e tudo isso em sequência; é isso sua temporalidade? - É isso.
(RYNGAERT, 1998, p. 127)

Essa fragmentação da narrativa, presente no teatro francês contemporâneo, também


é percebida no filme Vocês ainda não viram nada, com recursos de encenação que
podem ser aplicados tanto no teatro como no cinema.

Resnais, de acordo com Ryngaert (1998), define a si mesmo como um encenador,


desenvolve de forma extremamente meticulosa cada passo da concepção de seus
filmes e na elaboração da sua decupagem5.

Tudo é retomado do começo ao fim, frase por frase, vírgula por vírgula,
geralmente numa cidade do interior ou em um retiro tranquilo. É o
momento do tormento, no qual Resnais não deixa passar nada. O
momento também – sob todos os aspectos decisivos – onde se esboça
a passagem do texto para o espetáculo. (PINGAUD e SAMSON, 1969, p.
59)

Resnais não segue a teoria de autor de acordo com os princípios desenvolvidos


dentro do movimento da Nouvelle Vague. Segundo Pingaud e Samson, o cineasta não

4
Esse texto Ryngaert (1998) extraiu de uma entrevista concedida por Armand Gatti publicada no periódico La Nefcm
1967.
5
No sentido técnico, decupar quer dizer dispor o cenário em duas colunas, fazendo com que as imagens
correspondam ao texto. (Pingaud e Samson, 1969, p.59)
525
altera uma vírgula sem o consentimento do roteirista. Sua autoria é trabalhada na
montagem onde sua obra finalmente se estabelece e os elementos característicos de
seus filmes poderão ser claramente identificados.

Conclusão

A linguagem cinematográfica e a teatral possuem limites distintos. Mesmo assim,


possuem algumas convergências. Esse trabalho afirma a possibilidade de uma
intertextualidade entre esses dois segmentos artísticos que, ao longo da pesquisa,
foram percebidos como possíveis diálogos. Essa dualidade entre o cinema e o teatro
pode acontecer sem tornar o filme, que dela se apropria, rudimentar, quando rompe
com certos padrões presentes no cinema hegemônico, ao aplicar em sua estrutura
diferentes relações entre conteúdo e obra quando seleciona as Artes Cênicas como
complemento da encenação.

O filme Vocês ainda não viram nada intertextualiza com o teatro contemporâneo
através de um texto fragmentado e um cenário que explode o espaço, dois itens
criados primeiramente no teatro francês por teóricos e dramaturgos que
contribuíram ou estão a contribuir com a linguagem teatral, como por exemplo
Antonin Artaud, grande teórico do teatro e um dos primeiros a pensar um palco com
representações simultâneas. A representação simultânea presente em Vocês ainda
não viram nada, traz uma encenação peculiar ao optar por multiplicar o número de
atores para representar um mesmo personagem, momento em que dialoga com
diferentes gerações de atores e mídias distintas:

vídeo, cinema e teatro se encontram presentes ao mesmo tempo, como recurso


narrativo dentro de uma encenação intertextualizada e absorve elementos da
arquitetura visual do cinema moderno a partir da Nouvelle Vague francesa.

Referências

AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Textos e Grafia, 2008.


AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2012.
BERGAN, Ronald. ...ismos para entender o cinema. São Paulo: Globo, 2010.

526
FURTADO, Filipi. Casa de ficções, palavras de fantasmas. Cinética. Cinema e crítica. 2012.
ISSN 1983-0343. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/voces-ainda-nao-
viram-nada-vous-navez-encore-rien-vu-de-alain-resnais-franca-2012-2/. Acesso em:
22/04/14.
MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
2003.
PINGAUD, Bernard; SAMSON, Pierre. Alain Resnais ou a criação no cinema. Tradução de
T.C.Netto, São Paulo: Documentos, 1969.
PÚBLICO.
RYNGAERT, Jean Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
WOLLEN, Peter. Signos e significação no cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1984.
KEMP, Philip; FRAYLING, Sir Christopher. Tudo sobre cinema. São Paulo: Sextante, 2011.
Filmografia
Vocês ainda não viram nada. Direção: Alain Resnais.Elenco: Sabine Azéma, Lambert Wilson,
Jean-Noël Brouté, Anne Consigny, Mathieu Amalric, Pierre Arditi, Michel Piccoli, Hippolyte
Girardot, Denis Podalydès, Vimala Pons, Sylvain Dieuaide. França, 2012 - 11.

Mini Currículo

Ândrea Cristina Sulzbach


Diretora e Produtora de Audiovisual no Setor de Comunicação da Secretaria de Educação do Paraná-
SEED. Doutoranda em Comunicação e Linguagens - Estudos de Cinema e Audiovisual (UTP), Mestre
em Comunicação e Linguagens (UTP), Especialista em Cinema e Vídeo (UNESPAR), bolsista
PROSUP/CAPES – UTP. E-mail: andreasulzbach@hotmail.com

527
METODOLOGIA DE ANIMAÇÃO PARA DESIGNERS E ARTISTAS

ANIMATION METHODOLOGY FOR DESIGNERS AND ARTISTS

Flávio Gomes de Oliveira


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

A proposta principal deste trabalho é fazer um pequeno levantamento do modelo


metodológico de Design, e estudar, a possibilidade de se criar um modelo metodológico
para produção de animações a partir dos modelos de Design, desta forma, estabelecendo
um caminho viável para produção de animações autorais, experimentais ou artísticas.

Palavras-chave: Animação, metodologia, animação artística, animação experimental.

Abstract

The main purpose of this work is to make a small survey of the methodological model of
Design, and to study the possibility of creating a methodological model for the production
of animations from the Design models, in this way, establishing a viable way for the
production of authorial, experimental or artistic animations.

Keywords: Animation, methodology, artistic animation, experimental animation.

Metodologia em Design

Uma das principais premissas do Design é o uso de um processo metodológico. Ao


longo do desenvolvimento dos estudos de Design, temos o surgimento de vários
processos metodológicos aplicados para produção de projetos. O método ou a
metodologia de Design, não é uma fórmula pronta para produção de um projeto, é
um tipo de caminho a se seguir para produção de um tipo de projeto específico.
Segundo MUNARI (2008), "O método para o design não é nada absoluto nem
definitivo. É, portanto, algo que se pode modificar, caso se encontre outros valores
objetivos que melhorem o processo."

528
O principal objetivo deste estudo é apresentar um caminho para produção de
animações por designers ou artistas, imaginando um processo para se obter uma
animação do tipo autoral, o tipo de animação feita por uma pessoa ou por um grupo
pequeno de produtores.

Antes de apresentar a proposta metodológica específica para animação é


importante entender um pouco como funciona os processos metodológicos de
Design. Um dos primeiros processos metodológicos de Design conhecidos é o
método de Horst Tittel (SIQUEIRA, 2014), a proposta deste método, é distribuída em
6 etapas bem específicas apresentadas a seguir:

• Estabelecimento e compreensão do problema;


• Coleta de informações;
• Análise das informações;
• Desenvolvimento de conceitos de soluções alternativas;
• Avaliação e reavaliação das alternativas;
• Testar e implementar.

Em geral, os métodos de design vão seguir basicamente este mesmo padrão, na


primeira fase, busca-se definir o problema que se quer solucionar, na segunda
etapa, vamos coletar as informações necessárias para produção do projeto, seja por
meio de entrevistas, briefing, etc. A terceira etapa consiste em confrontar os dados
coletados com o problema para entender o universo deste projeto. Na quarta parte,
começamos a rascunhar propostas conceituais e propostas de alternativas para
solução do problema, baseado especificamente, nos dados coletados e no objetivo
de solução do problema. Na quinta etapa é necessário avaliar as alternativas
encontradas na fase anterior, para verificar se atendem aos objetivos do projeto,
por fim, com a melhor alternativa encontrada, serão feitos os testes de uso e a
implementação do projeto.

Um dos métodos mais conhecidos no Brasil, é com certeza o método de Bruno


Munari (2008), provavelmente pela popularidade do livro "Das coisas nascem
coisas", apesar de apresentar algumas fases a mais, o método de Munari possui uma
grande semelhança com o método de Horst Tittel. O método de Munari possui 11
etapas e também é uma proposta de fases lineares, conforme mostrado a seguir:
529
• Definição do Problema;
• Componentes do Problema;
• Coleta de dados;
• Análise dos dados;
• Criatividade;
• Materiais e Tecnologia;
• Experimentação;
• Modelo;
• Verificação;
• Desenho de Construção;
• Solução;

Podemos perceber que o problema foi decomposto em duas fases, as fases 1 e 2,


Munari incluiu uma fase após a parte de criatividade, exclusiva para levantamento
de materiais e tecnologias necessários para fundamentação da proposta, sendo que
esta fase é seguida de uma fase de experimentação de materiais. A fase de Testar e
Verificar de Horst Tittel, aparece diluída em outras três fases no modelo de
Munari, Verificação, Desenho e construção e Solução.

Existem vários outros processos metodológicos de Design, métodos lineares e


métodos não lineares, dentre eles, vale citar os métodos de Bruce Archer, Gui
Bonsiepe, Ambrose & Harris, dentre outros. Em todos estes processos vamos
perceber essa relação de fases que levam à solução do problema. (SIQUEIRA, 2014)

Metodologia de Produção de Animação

Quando falamos de animação, existem vários autores que buscam propostas


metodológicas para produção de vídeos, tanto curta metragens, quanto episódios
animados, vídeos comerciais e até longa metragens. Um método bem interessante é
o proposto por Sergi Càmara (2005), um método que se baseia em etapas de
produção, mais ou menos como apresentado abaixo:

• Storyboard;
• Criação e construção de personagens;
• O Layout;

530
• A animação;
• A arte final.

O maior problema deste tipo de metodologia é que estes processos são pensados
para etapas específicas do processo de animação, neste, especificamente, parte-se
do princípio que já existe um roteiro, funciona bem quando temos uma equipe
grande trabalhando em um projeto e equipes menores em cada etapa.

A proposta que busco apresentar aqui, se baseia em um método que possibilite que
o animador, artista, designer ou animador independente possa partir de um
problema e chegar na solução do problema, o filme finalizado. Não quero com isso
fazer panfletagem pela animação independente e desprezar os processos
comerciais que empregam vários profissionais na construção de filmes diversos de
animação. A proposta deste trabalho é incentivar a animação experimental ou
autoral como forma de manifestação artística ou até mesmo solução de problemas
mais simples no âmbito da animação.

Desta forma, é importante entender que um processo de animação possui várias


etapas e subetapas, um processo metodológico deve levar isso em consideração e
começar pelo destrinchamento destas etapas maiores, cada uma destas super
etapas, vai possuir uma série de subetapas, neste sentido, vamos primeiramente
mapear as etapas maiores do processo de produção, basicamente, podemos dividir
estas etapas em cinco partes:

• Roteiro;
• Conceitos;
• Criação do universo ficcional;
• Animação;
• Finalização.

Roteiro

A parte do roteiro inclui uma série de processos, desta forma, é interessante


olharmos para as metodologias de roteiro que temos atualmente, pessoalmente,
gosto muito de trabalhar com a perspectiva de Syd Field (2001), a grosso modo, esse
método se divide nas seguintes etapas:

531
• O assunto;
• Construção dos personagens;
• Divisão dos três atos;
• Final e início;
• Pontos de virada (Plot ponts).

O assunto é o que DOC Comparato (2000) coloca como Storyline1 ou a ideia, é um


assunto, comparando com a metodologia de Design, seria algo como um problema.

A construção dos personagens é um tipo de abordagem que vamos ver nos dois
autores citados, é um processo que faz parte de basicamente todo processo
metodológico de construção de roteiros, o que pode ser modificado é o momento
em que esse processo entra dentro da linearidade do método.

A divisão em atos é uma fase muito utilizada por roteiristas, em geral, se divide o
filme em 3 partes, a primeira é a apresentação do enredo e dos personagens
principais, a segunda consiste no desenvolvimento da história e a última ou terceiro
ato representa o desfecho da história, o final.

Existem alguns autores que desdobram esses Atos em vários fragmentos, como por
exemplo, a proposta do professor de literatura Joseph Campbell (1949), que propõe
uma fórmula composta de 17 etapas para criação de qualquer tipo de roteiro
(CATALBIANO, acesso em 02/10/2022).

Um herói escapa do mundo comum para uma região de maravilhas


sobrenaturais. Forças extraordinárias são encontradas, e uma vitória
decisiva é conquistada: o herói volta dessa misteriosa aventura com o
poder de conceder bênçãos a seu semelhante. (CAMPBELL, Apud
CATALBIANO, acesso em 02/10/2022)

O final e início é uma alusão à solução do problema, a proposta é pensar em como a


história vai começar e como vai terminar, desta forma, fica fácil preencher o
desenvolvimento, em síntese, criamos um esboço do primeiro ato e um esboço do
último ato.

1 Storyline - A história toda em uma linha, na realidade é um conceito de construção de histórias a partir de um
parágrafo que resume o começo, meio e fim da história.
532
Por último os pontos de virada, o ponto de virada é quando acontece algo com o
personagem que o faz mergulhar na história ou sair de um problema, é o que
modifica um ato, resumindo, o roteiro terá o primeiro ato, um ponto de virada, o
segundo ato, outro ponto de virada e o terceiro ato. É claro que esse esboço é
apenas uma representação, a história pode ter mais de dois pontos de virada.

Com isso, podemos pensar em uma subdivisão do roteiro da seguinte forma:

• Assunto ou problema - Levantamento de dados a respeito do assunto ou


problema que se quer desenvolver;
• 3 Atos - Construir um Storyline sobre a história que se quer contar,
pensando, principalmente em início, desenvolvimento e final, sendo que o
início e o final serão pensados primeiro, e o desenvolvimento ou segundo ato
no final;
• Desenvolvimento dos personagens - com a base da história traçada, é
necessário desenvolver melhor os personagens, características físicas,
psicológicas, tipo de figurino, etc;
• Pontos de virada - Os pontos de virada vão dar vida ao roteiro, serão a base
para se criar o segundo ato;
• Desenvolvimento do roteiro - Corresponde a parte da escrita do roteiro e
formatação de acordo com o modelo escolhido;
• Decupagem do roteiro - Distribuição do roteiro em cenas ou planos;
• Storyboard - Montagem do quadro de cenas ou storyboard, um quadro com
ilustrações de cada cena que será produzida.

Conceitos

A parte dos conceitos, que vamos encontrar muito, dentro da bibliografia do


cinema, como Concepts, consiste em desenvolver, visualmente, a história que se
quer contar, desenhar os personagens, desenhar cenários, criar ilustrações para
objetos ou detalhes de elementos que vão compor a visualidade da animação.

Em geral, nesta etapa, decidimos qual será o tipo de técnica utilizada para
produção da animação e qual será o apelo estético dos personagens e detalhes da
animação.

533
Para facilitar o processo de produção, podemos subdividir essa etapa nas seguintes
fases:

• Pesquisa de proposta estética ou painel semântico - um processo onde


vamos buscar em vídeos, ilustrações ou animações, imagens que tenham
relação com o universo que pretendemos criar;
• Esboço de personagens - esboçar de forma inicial, os personagens, com o
objetivo de testar a proporcionalidade, verosimilhança, cores e detalhes
gráficos diversos;
• Esboço dos cenários - esboçar propostas visuais diversas para os cenários e
objetos de cena, com o objetivo de fornecer recursos gráficos para
construção dos mesmos.

Criação do Universo Ficcional

A criação do universo ficcional envolve toda a parte de criação da estética final dos
personagens, dos cenários e de todos os objetos e paisagens que serão utilizados no
vídeo, existem vários autores que tratam especificamente desta etapa,
subdividindo-a em outras várias etapas, para facilitar, aqui será proposta a seguinte
subdivisão:

• Criação dos personagens baseado nos conceitos e nas características


apresentadas pelo roteiro;
• Criação dos cenários;
• Criação dos objetos e detalhes.

Animação

A parte de animação vai depender muito da técnica escolhida, mas, em geral, deve
ser feita respeitando o que foi programado na etapa do storyboard, porém, na
maioria dos casos é comum animar-se cenas que ocorrem no mesmo cenário ou
com o mesmo personagem juntas, para facilitar a manutenção das propriedades
estéticas dos personagens. Nesta etapa é importante decidir algumas questões de
ordem prática:

534
• Formato de tela - formato do recorte de tela, temos vários disponíveis, desde
formatos quadrados a retângulos específicos para o cinema ou para TVs
convencionais.
• Tamanho de tela - aqui, decidimos o tamanho da imagem, por exemplo, se
vamos montar uma animação no formato Full-HD, sabemos que a tela terá
1920 x 1080 px.
• Velocidade de interpolação de quadros ou frame rate - a quantidade de
quadros por segundo, isso é importante para saber como o vídeo será
renderizado posteriormente, em geral trabalhamos com 24 ou 30 quadros
por segundo, porém é comum a produção de animações com 12 ou 15
quadros por segundo ou até mais de 40 quadros por segundo.
• Coloração da animação - é nesta etapa que decidimos como será a cor final
de um filme de animação, podendo ser preto e branco, colorido,
monocromático, etc.

Finalização

A finalização também é uma etapa que subdividi em várias outras, em geral, nesta
etapa, já temos todas as cenas capturadas e convertidas em vídeo ou quadros, aqui
vamos juntar essas etapas, colocar som na animação, exportar e distribuir. A
conformação final da etapa seguirá a seguinte proposta:

• Edição e montagem - apesar da edição e montagem parecerem a mesma


coisa, são diferentes, a montagem vai começar no Storyboard, quando o
animador ou roteirista cria um fluxo específico para contar uma história. A
edição será a atividade física de colocar uma cena após a outra, escolher o
momento do corte e encaixar os elementos não animados, textos, logotipos,
etc.
• Efeitos sonoros ou foley - são os sons ou ruídos que ajudam a dar vida ao
filme, o som de um carro passando, um objeto caindo, uma pessoa
caminhando, etc. Nesta etapa, podemos optar por produzir estes sons ou
buscar em bancos de sons específicos, porém é uma etapa muito importante
para o processo de animação.
• Trilha sonora - a trilha sonora não é um elemento obrigatório em um filme,
porém é importante pensar nela, podemos optar por compor a trilha,

535
contratar uma trilha que já existe ou mesmo buscar uma trilha em um destes
bancos de áudios.
• Elementos textuais - em geral o filme possui pelo menos um título ou nome,
é um elemento textual que deve ser inserido, além do título do filme, é
importante pensar nos créditos, nas legendas quando necessário e nas
informações diversas a respeito de autoria e distribuição do filme animado.
• Renderização ou exportação - é importante ter consciência da aplicação
prática do filme para se definir como será feita a exportação do mesmo, esta
etapa envolve dois tipo de conhecimento, o tipo de Codec2 que será usado e
o tipo de extensão3 que será utilizada.
• Distribuição - está é a última etapa do processo de produção do filme, como
o mesmo será distribuído, se será em uma plataforma de stream4, ou na
forma de arquivo, em festivais, em redes sociais, enfim, envolve o processo
de publicar o filme na destinação final dele.

Considerações finais

Por fim chegamos ao nosso modelo metodológico, é importante ressaltar que ele
não apresenta algumas fases importantes que estão presentes em processo de
animação feitos por equipes em estúdios como a parte de elaboração do argumento
ou do roteiro literal na etapa do roteiro, ou mesmo, a fase de criação do storyteling
ou mesmo do animatic5, etapas importantes para construção de uma animação
maior. Como foi dito, esse modelo não pretende abranger todo tipo de animação e
sim, animações autorais ou artísticas, animações feitas por grupos pequenos ou por
um animador apenas.

Segue a seguir, uma representação gráfica do processo metodológico final:

ROTEIRO

Assunto ou problema

2 CODEC - tipo de software que vai gerar o arquivo de vídeo, em geral é um programa que vai compactar as
imagens do vídeo para que seja possível exibi-lo em equipamentos ou softwares de exibição de vídeos.
3 Extensão - tipo de extensão de arquivo que será utilizada para exibição do filme, ela está diretamente ligada ao
software que irá fazer a leitura do arquivo, apesar de na atualidade, um leitor de vídeo possibilitar a leitura de
vários arquivos, quando estes arquivos foram criados, basicamente, existia um player para cada tipo de extensão.
4 Stream - plataformas de distribuição de vídeos como o YouTube, Netflix, etc.
5 Montagem de um vídeo com as imagens do storyboard, é possível que tenha foleys e trilha, para testar o tempo
de duração das cenas.
536
3 Atos

Desenvolvimento dos personagens

Pontos de virada

Desenvolvimento do roteiro

Decupagem do roteiro

Storyboard

CONCEITOS

Pesquisa de proposta estética ou painel semântico

Esboço de personagens

Esboço dos cenários

CRIAÇÃO DO UNIVERSO FICCIONAL

Criação dos personagens

Criação dos cenários

Criação dos objetos e detalhes

ANIMAÇÃO

Formato de tela

Tamanho de tela

Velocidade de interpolação de quadros ou frame rate

Coloração da animação

FINALIZAÇÃO

Edição e montagem

Efeitos sonoros ou foley

Trilha sonora

Elementos textuais

Renderização ou exportação

Distribuição

537
Apesar deste processo já ter sido testados algumas vezes por mim, seja em projetos
pessoais, projetos comerciais ou mesmo em sala de aula como proposta
metodológica para estudantes da área de animação, o mesmo ainda é uma proposta
inicial, cabe aqui algum estudo sobre os impactos de uso e os resultados obtidos,
proposta que deve pleitear a continuidade desta pesquisa.

Acredito que a animação tem se tornado uma forma de manifestação artística e de


comunicação muito efetiva e vem sendo usada com certa frequência por Designers
e Artistas, este trabalho visa apresentar uma possibilidade metodológica que pode
servir de caminho para o desenvolvimento de trabalhos animados por estes
profissionais.

Referências

CAMÀRA Sergi. O Desenho Animado. Lisboa, Editora Estampa, 2005.


CATALBIANO, Gilseppe. Storytelling Estratégico: onde negócios e histórias se encontram
— Campbell, Vogler e a clássica Jornada do Herói. Disponível em:
https://rockcontent.com/br/blog/storytelling-estrategico-e-a-classica-jornada-do-
heroi/. Acesso em 02 de outubro de 2022.
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro / Doc Comparato. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo, Ed. Martins Fontes. 2008.
SIQUEIRA, Otávio Augusto Guerra. CUNHA, Lauriene de Sousa. PENA, Rodrigo de Sá
Freitas. CORRÊA, Bruno de Souza. AMORIM, Moacyr Ennes. Metodologia de Projetos em
Design, Design Thinking e Metodologia Ergonômica: convergência metodológica no
desenvolvimento de soluções em Design. Volta Redonda, RJ. Cadernos UniFOA, v. 9 n. 1.
2014.

Mini Currículo

Flávio Gomes de Oliveira


Professor do Curso de Design Gráfico e do Curso de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da
Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, graduado em Artes Visuais com
habilitação em Design Gráfico, mestrado em Arte e Cultura Visual, Doutor em Arte e Cultura Visual
pela FAV/UFG, pesquisa, principalmente, animação, automação na arte e arte tecnologia. E-mail:
flaviogomes@ufg.br

538
ENVOLVER-SE NO PROCESSO CRIATIVO DE UMA ARTE SEQUENCIAL COMO
DESENVOLVIMENTO DE UMA ECOLOGIA DE SABERES

ENGAGE IN THE CREATIVE PROCESS OF A SEQUENTIAL ART AS DEVELOPMENT


OF AN ECOLOGY OF KNOWLEDGE

Maria Aparecida Alves da Silva


Universidade Federal de São Carlos, Brasil

Hylio Lagana Fernandes


Universidade Federal de São Carlos, Brasil

Resumo

A Arte Sequencial (AS) pode possibilitar o ensino/aprendizagem a partir de seu processo de


produção, o percurso realizado desde a criação do roteiro, das personagens, cenários,
disposição dos desenhos nos quadrinhos exige a mobilização de conhecimentos prévios e
outros adquiridos a partir das necessidades apresentadas na construção de uma AS,
principalmente quando essa AS é direcionada para a divulgação científica (DC). Nesse
sentido, o processo de criação se torna muito mais complexo, pois adaptar conceitos
científicos para uma linguagem artística, é uma tarefa difícil. No entanto, o presente
trabalho tem como objetivo discutir o processo criativo na produção de AS - em especial as
histórias em quadrinhos (HQ) - apresentado por estudantes de Biologia, como resultado de
uma Ecologia de Saberes. A construção metodológica se faz especificamente a partir da
produção de HQ, e análise do envolvimento dos estudantes no processo criativo da HQ. Os
resultados apresentados demonstram uma mobilização de saberes prévios e outros
adquiridos no processo, além de um compartilhamento desses saberes em favor da
manutenção do grupo. Portanto, o que denota uma demonstração de conhecimentos que é
própria do grupo na produção da HQ, versando sobre códigos e símbolos pertencentes a
área de Biologia combinados com a linguagem das HQ e a habilidade no manuseio das
tecnologias digitais, sugerindo uma Ecologia de Saberes desenvolvida pelo grupo.

Palavras-chave: História em Quadrinhos; Processo Criativo; Ensino de Ciências;


Tecnologias Digitais.

Abstract

Sequential Art (AS) can enable teaching/learning from its production process, the path
taken from the creation of the script, characters, scenarios, arrangement of drawings in
comics requires the mobilization of prior knowledge and others acquired from of the needs
539
presented in the construction of an AS, especially when this AS is directed towards
scientific dissemination (DC). In this sense, the creation process becomes much more
complex, since adapting scientific concepts to an artistic language is a difficult task.
However, the present work aims to discuss the creative process in the production of AS
(especially comic books (HQ)) presented by Biology students, as a result of an Ecology of
Knowledge. The methodological construction is made specifically from the production of
comics, and analysis of the students' involvement in the creative process of the comics.
The results presented demonstrate a mobilization of previous knowledge and others
acquired in the process, as well as a sharing of this knowledge in favor of the maintenance
of the group.Therefore, which denotes a demonstration of knowledge that is typical of the
group in the production of the comic, dealing with codes and symbols belonging to the
area of Biology combined with the language of the comics and the ability to handle digital
technologies, suggesting an Ecology of Knowledge developed by the group.

Keywords: Comic; Creative process; Science teaching; Digital Technologies.

Introdução

Atualmente, recorrer a métodos inovadores para o ensino e aprendizagem se


tornou fundamental, pois vivemos em uma época onde ensinar significa envolver o
aluno no processo de ensino/aprendizagem, tornando-o responsável pela sua
aprendizagem. Os professores devem ter em mente que, para captar a atenção dos
seus alunos, é preciso investir em estratégias que propiciem a participação e o
interesse de quem deseja atingir.

É, dessa forma, que a criatividade se torna um tema imprescindível para os dias


atuais, vivemos em uma época que é importante desenvolver a habilidade de ser
criativo, seja expressando artisticamente ou nos desafios da vida cotidiana.

Ademais, que o momento presente não combina com a visão ultrapassada dos
alunos sentados em suas carteiras, todas enfileiradas, o professor em pé, na frente,
ou sentado, explicando de maneira expositiva os conteúdos, sejam eles de ciências
ou linguagens. Essa é uma era tecnológica, na qual os alunos têm acesso a todos os
tipos de tecnologias, estão conectados em redes, o acesso às informações se dá de
maneira simples, basta clicar na tela, e um mundo se abre, sendo criativos, as
possibilidades serão infinitas. Portanto, a escola e os professores se encontram no
centro dessas discussões, na medida em que se veem diante dos desafios postos
pelas tecnologias. Considerando o novo perfil dos alunos e as demandas advindas
540
dessas tecnologias, há a necessidade de estimular nos estudantes o potencial
criativo, pois, ele não é para poucos ou os escolhidos como se acreditava no
passado, hoje sabe-se que se trata de uma habilidade, e como tal, é desenvolvida.
Dessa forma, as metodologias de ensino são tão importantes quanto o que ensinar
(conteúdos). Segundo Moran (2015) para se ter estudantes comprometidos com
sua aprendizagem, cabe aos professores adotar metodologias que envolvam os
alunos, as atividades propostas têm de ser complexas, com tomadas de decisão e
possam avaliar seus resultados, apoiados em metodologias relevantes. Ademais,
para o autor, em referência aos alunos: “se queremos que sejam criativos, eles
precisam experimentar inúmeras novas possibilidades de mostrar sua iniciativa”
(MORAN, 2015).

Nesse sentido, as HQ, enquanto ferramenta metodológica, contribui para a


experiência de aprendizagem e ensino como sendo uma possibilidade
transformadora, justificando o seu uso como metodologia de ensino envolvente,
que traz o estudante como protagonista de sua aprendizagem e promove a
criatividade por meio da autoria. É dentro dessa perspectiva que o trabalho busca
discutir o processo criativo desses estudantes, pois é por meio desse processo de
criação que o potencial dos estudantes se eleva, na busca de superar limitações e
resoluções de problemas para atingir o objetivo final.

Trabalhar com AS envolve abertura, pois não dá para ter tudo planejado de
antemão, a arte não acontece de maneira cronometrada, Salles (2006 e 2013) afirma
que no processo de criação artística não há como estabelecer um ponto inicial nem
final, assim como, não dá para prever os resultados. Criar uma obra de arte não é
um processo estático. As formas de registro da produção, o percurso do processo é
outro ponto importante, Salles (2006 e 2013) define como pistas deixadas pelo
artista, que denunciam como ocorreu o pensamento criativo; que pode acontecer
por meio de inspirações de ideias, ou seja, algo que possa estimular o potencial
criador, uma música, um filme, um livro, uma imagem, uma cena na rua, no
mercado, na vida cotidiana, tudo serve como inspiração. Infelizmente, não desce
dos céus ou vem das águas as musas inspiradoras, nem anjos tocando harpas, não
há nada de divino no processo criativo, ele acontece por meio dos recursos que
possa desenvolver, aprender e apreender.

541
Nesse sentido, e considerando os problemas associados a desmotivação ou
desinteresse dos estudantes verificado em aulas monótonas, em que eles não estão
no centro da aprendizagem, é que surgiu a necessidade de pensar uma forma de
trazer metodologias inovadoras, de um jeito atrativo, utilizando a linguagem das
HQ. As quais utilizam as imagens e a escrita, são visuais e acessíveis para um
público mais amplo, entendendo essa linguagem como uma AS, que na definição de
Eisner (2005) “é uma série de imagens dispostas em sequência”, ou seja, essas
imagens possuem uma narrativa, contam uma história por meio de imagens e
escrita (às vezes não há sequer necessidade da escrita).

Portanto, o objetivo da presente proposta é discutir o processo criativo na


produção de AS - em especial as HQ - apresentado por estudantes de Biologia,
como resultado de uma Ecologia de Saberes.

O trabalho que se segue é um recorte de um projeto de pesquisa maior no qual


pretende-se analisar as HQ como espaço de tradução de saberes na divulgação
científica. A importância dessa abordagem metodológica justifica-se por meio da
hipótese de que esses estudantes desenvolvem uma Ecologia de Saberes através da
artesania das HQ.

A importância deste projeto está, principalmente, no exercício da criatividade


praticado por estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas, a partir de um
trabalho de produção de HQ cujo conteúdo se desenvolve através do rigor dos
conceitos científicos. Apesar de utilizar uma linguagem acessível e uma narrativa
que possibilita uma compreensão melhor dos conceitos, pois, rompe com o
formalismo científico. Essa combinação propicia o acesso ao conhecimento
científico pelas pessoas, promovendo a divulgação destes.

Ademais, que a AS é reconhecida por muitos pesquisadores sobre o tema, como um


produto da indústria cultural, um meio de comunicação em massa, não deixando de
lado, o fato de ser também uma forma de se expressar artisticamente.

O primeiro grupo de licenciandos a trabalhar com as histórias em quadrinhos

Durante a pandemia de Covid 19, as aulas passaram a ser remotas, por meio da
Plataforma digital Google Meet.

542
Assim, no início de março de 2021, com o desenvolvimento da disciplina “Prática e
Pesquisa em Ensino de Ciências e Biologia 2”, iniciou-se o projeto. A disciplina foi
ministrada para estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas; durante às aulas
foram tratadas temáticas referentes ao uso das linguagens imagéticas no ensino de
biologia e realizado atividades com fotografia e desenho – neste momento foi
trabalhado a linguagem das histórias em quadrinhos. De acordo com Eisner (2005,
p. 10) as HQ são definidas a partir da sua “disposição impressa de arte e balões em
sequência, particularmente como é feito nas revistas em quadrinhos.” Segundo
McCloud (1995) “Histórias em quadrinhos são imagens pictóricas e outras
justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a
produzir uma resposta no espectador” (p. 9). Portanto, o desenvolvimento das aulas
a partir dos quadrinhos, oferecem uma variedade grande de recursos,
principalmente, no que refere ao processo criativo. Dessa forma, no período de
março a junho de 2021, quando a metade do mundo ainda estava sob a ameaça
mortífera da pandemia virótica causada pelo Covid-19, foi quando se realizou a
primeira disciplina que utilizou a metodologia das HQ para ensinar conceitos de
ciências aos estudantes.

A proposta apresentada aos licenciandos era de pensar um material de divulgação


científica, utilizando a linguagem das HQ, com objetivo de informar sobre a
pandemia de uma maneira mais abrangente, trazendo os aspectos técnicos sobre a
biologia (sistema imunológico, vacinas), mas que trouxesse os aspectos culturais,
sociais e ambientais associados à pandemia. À medida que as aulas seguiram
delineou-se diversos pontos para abordagem, os estudantes se dividiram em duplas
ou trios para realizar a atividade, e a princípio foi pensado uma narrativa maior na
qual todas as histórias menores se convergissem em uma única história. Dessa
forma, a disciplina contava com um total de 30 estudantes inscritos, mas nem todos
os trabalhos estão descritos aqui, por causa do limite de páginas permitidas no
artigo. Então, para a atividade foi sugerido que se dividissem em duplas ou trios, no
qual cada grupo ficou encarregado de pensar um roteiro, personagens e cenários
para depois unir tudo em uma única história.

543
O processo criativo dos licenciandos

Os licenciandos iniciaram as atividades a partir da leitura de uma HQ sobre Dengue


desenvolvida pelo professor orientador e outro grupo de estudantes alguns anos
atrás e que foi utilizada para inspirar a atividade da HQ sobre a pandemia. Em
seguida a leitura, iniciaram o processo de criar os roteiros, que foram pensados a
partir dos tópicos gerados nas aulas anteriores, desde o desequilíbrio ambiental,
aspectos sociais, culturais até se chegar à pandemia, tudo a partir de uma visão
sistêmica.

Na aula seguinte, uma semana depois, eles deveriam trazer os roteiros a partir dos
tópicos escolhidos pela dupla ou trio para ser socializado com os demais. Nesse
primeiro momento foram descritos acontecimentos, ambientes no roteiro e a
caracterização completa das personagens. A etapa final da criação envolveu a arte
dos desenhos, digitalização, redação dos textos e colorização da obra.

Para este trabalho apresentamos as ideias iniciais de cada dupla/trio:

O primeiro roteiro a ser apresentado recebeu a denominação: Tópico 1 - Economia,


Vacinas e Empregos (trio de licenciandos). Os estudantes criaram as personagens
com um humor escrachado, dentre elas, o Presidente, os cientistas, o vírus Covid
(personificado), os empregos (personificados) e o Supervacina.

Na história a personagem do Presidente aparecia inerte em todos os quadrinhos,


sem fazer nada, com os olhos vendados, ouvidos tapados, enquanto o vírus Covid
assolava a população e os empregos, porém com a ajuda de cientistas uma vacina –
Supervacina - seria desenvolvida e conseguiria combater o vírus da Covid, salvando
a população e os empregos. E o presidente continuava sentado sem fazer nada,
negando tudo o que estava acontecendo. No final, a população junto com o
Supervacina expulsa o presidente que permitiu que o vírus da Covid avançasse
ceifando a vida de muitas pessoas.

No relato dos autores do roteiro, eles referem que ao escreverem a parte da


personagem do Presidente: “queríamos deixar os quadrinhos com um aspecto
surreal, por isso colocamos em todos os quadrinhos uma personagem que não fizesse
nada e estivesse somente com uma cara de bobo, gerando um incomodo!”

544
Quanto a caracterização dos personagens, como eles eram fisicamente e
psicologicamente, os autores pensaram em trazer o surreal para os quadrinhos,
além do humor escrachado, representado pela figura do Supervacina, personagem
inspirado em outro super-herói escrachado, Capitão Presença de autoria de
Arnaldo Branco (As Aventuras do Capitão Presença, 2006).

O segundo roteiro apresentado tinha como denominação, Tópico 2: Lixo


Hospitalar (estudante individualmente).

A HQ foi pensada, principalmente, demonstrando o uso de objetos hospitalares


(seringas, máscaras, algodão, frascos, luvas, etc) sendo descartadas (incineração,
descarte inadequado em praias, parques e ruas, etc) por humanos e o “uso” desses
mesmos objetos, no sentido negativo, por animais. Em um dos quadrinhos o
desenho representa um ser humano entubado, sem ar, com um tubo de ar nas vias
respiratórias, e no outro quadrinho, o desenho de uma tartaruga com uma máscara
descartável em sua via respiratória, ambos com o mesmo título “Falta de ar” ou
“Sufocamento”. No quadrinho seguinte, o desenho de uma pessoa sem máscara
inalando uma nuvem de vírus, no próximo quadrinho, uma ave inalando a fumaça de
um incinerador de lixo hospitalar, ambos com o título “Inalar”.

A autora pensou a seguinte disposição dos quadrinhos e desenhos:

Quadrinho 1: “Falta de ar”, ser humano entubado x tartaruga sufocando com


máscara;

Quadrinho 2: “Inalar”, ser humano inalando nuvem de vírus x ave inalando fumaça
do incinerador;

Quadrinho 3: “Agulha”, braço sendo vacinado x animal de rua sendo furado por
agulha/seringa em lixo de terreno baldio;

Quadrinho 4: “Testagem”, uma pessoa fazendo um teste descartável de Covid x um


rato roendo o teste abandonado na rua;

Quadrinho 5: “Isolamento social”, uma pessoa isolada doente, em uma multidão x


ave com o bico preso em uma luva hospitalar, isolada do restante das aves;

Quadrinho 6: “Proteção facial”, uma pessoa colocando uma máscara no rosto x um


coral com várias máscaras presas;

545
A autora pensou em realizar 10 quadrinhos no total, com a diagramação na vertical,
de duas colunas e 5 linhas, cada quadrado do mesmo tamanho ou dividido em 2
grupos o total de quadrinhos, para uma melhor visualização da página.

O rascunho do storyboard foi feito no computador, porém o projeto final será feito
à mão em papel e colorido digitalmente, pois McCloud (1995) fala da importância
das cores nos quadrinhos, o autor explica que “as cores objetificam os sujeitos e
que os leitores conseguem ter mais consciência da forma dos objetos do que em
preto e branco” (p.189). Dessa forma, foi pensado a importância de colorir, pois,
ainda segundo McCloud (1995) as cores assumem um poder icônico na mente do
leitor: simbolizando as personagens.

Segundo a criadora do roteiro, “a ideia surgiu a partir de reportagem do Repórter


Record Investigação (TV RECORD, 2021) que assisti sobre o descarte de lixo hospitalar
inadequado na Bahia, testes de Covid sendo encontrados nas ruas, máscaras
encontradas na praia...eu fiquei pensando em todos esses meios de proteção sendo
usados por nós de forma benéfica, mas que num contraponto, esse material pode
matar outros seres vivos, provocando um efeito em cadeia, do mesmo jeito que resolve
alguns problemas, pode causar outros.”

A próxima apresentação é o Tópico 3: Origem do vírus (trio de estudantes).

Os criadores pensaram em personificar o vírus, e ele mesmo se apresentar; falar


dos outros de sua espécie Coronavírus; Covid 19, Sars-Cov-2, explicar a origem do
Corona, mas não falar a verdade de como ele surgiu; e, sim, falar sobre as hipóteses
levantadas pelos cientistas:

Hipótese 1: É “possível ou provável” que a origem tenha sido contágio direto de


animal para humano;

Hipótese 2: É “provável ou muito provável” que tenha existido um animal


intermediário entre um animal infectado e o homem;

Hipótese 3: É “possível” que o vírus tenha atingido o ser humano por meio de
produtos alimentícios;

Hipótese 4: É “altamente improvável” que o vírus tenha atingido o ser humano


devido a algum incidente em laboratório;

546
Em relação a caracterização da personagem, eles pensaram em colocá-lo
diretamente dialogando com o público leitor, humor obscuro (o personagem é do
mal), e deixa em evidência seu caráter. Sua aparência física é arredondada com
espículas em toda a sua superfície, tonalidade verde, Ramos (2019) diz que “o
recurso da cor é utilizado para caracterizar o personagem, ou seja, para dar
destaque em relação aos demais” pensando no sentido de trazer mais informação
sobre o personagem, as cores escolhidas geram uma sensação que pode ser boa ou
incomoda; olhar penetrante, malvado, arqueado em grande parte das cenas, um
sorriso irônico.

Pensamos a construção da personagem com um humor obscuro, o vírus se utiliza de


gírias utilizadas por nós humanos, falando de uma maneira que não é séria, fazendo
“piadinhas” a respeito de sua origem; e ele diz que sabe como surgiu, mas não vai falar
porque não gosta de dar nada de mão beijada para ninguém, e aí, ele descreve sobre as
teorias que os cientistas estão investigando; e tudo o que ele fala é no ton de “deboche”.
Ele diz que é mal! Têm um momento em que ele diz que não é legal! Pensamos em uma
personalidade tóxica para o vírus, até mesmo porque ele está causando tanto mal, é
porque ele não é bonzinho, fofinho! A ideia é quando ele falar sobre a família dele,
desenhar os outros vírus no quadrinho!

Um dos licenciandos relata que no momento em que estava escrevendo o roteiro


teve a preocupação de pensar como seria que os outros participantes estavam
escrevendo o roteiro deles, pois, em seu roteiro; o vírus se dirigia diretamente ao
leitor estabelecendo uma conversa.

Tópico 4: Sistema Imune, suas células e anticorpos (dupla de licenciandas).

O processo de criação envolveu uma extensa e diversa pesquisa sobre células e


sobre o próprio sistema imunológico (ABBAS, LICHTMAN e POBER, 2008; BARARDI,
CAROBREZ e PINTO, 2010; LOPES e AMARAL, 2011; MURPHY e WEAVER, 2017). A
concepção artística foi primeiramente idealizada baseando-se na obra Cells at
Work ou Hataraku Saibō (SHIMIZU, 2015), assim como puxando inspirações da obra
Guia Mangá Biologia Molecular (TAKEMURA, 2012), a partir destas influências, a HQ
foi formulada com a personificação de células.

A história se passa no sistema imunológico de um corpo humano e (conta com um


narrador onisciente) os leitores viajantes são guiados nele. Eles percorrem o
547
sistema linfático, no trajeto têm-se informações sobre os sistemas inato e
adaptativo, e as células que fazem parte deles assim como exploram outros órgãos
do sistema. Este tour guiado é finalizado com a demonstração da atuação dos
anticorpos.

As personagens desenvolvem a trama e dão vida ao que é transmitido, destacando


as próprias explicações não-verbais e a fácil distinção entre personagens.

Quanto à imunologia, existem diversas células muito importantes e complexas a se


aprender, assim como suas formas variadas cria-se células pouco
antropomorfizadas, baseadas nas referências e, ao mesmo tempo, pouco fiéis à sua
forma real.

A estratégia utilizada foi formas geométricas e cores chamativas para facilitar sua
identificação de célula individual e melhor caracterizar, evidenciando as diversas
células de defesa por todo o fundo dos quadrinhos.

As células retratadas são as principais células para o entendimento básico do


sistema imunológico: dendrítica, linfócitos T e B, monócitos, macrófagos,
neutrófilos, basófilos, mastócitos, eosinófilos e natural killer. Para isto, referenciou-
se em Murphy e Weaver (2017); Lopes e Amaral (2011).

Além da criação iconográfica descrita, foram criadas representações de outras


moléculas que leucócitos utilizam para interação intercelular. Estas são
representadas como ferramentas utilizadas. Algumas células foram retratadas com
a mesma cor devido à similaridade originária. Os anticorpos foram caracterizados
como robôs com formato similar a imunoglobulina M.

São abordados alguns órgãos ligados à imunologia: baço, gânglios linfáticos, timo e
medula óssea; eles são representados como cidades ativas, com características
específicas, Oliveira (2008) explica que é importante dar atenção ao cenário, pois a
escolha de um modo de ver a cena cria uma aproximação com o leitor, nesse
sentido, criar uma boa organização dos cenários.

Os vasos contêm caracterizações distintas: os linfáticos, representados como


metrôs enquanto os vasos sanguíneos, por terem maior pressão, são retratados
como toboáguas velozes. Apesar desta simbolização, os capilares são mais estreitos
e possuem menor fluxo, enquanto as artérias possuem um fluxo bem maior e são

548
representadas maiores e mais grossas, a fim de diferenciação entre elas e veias, e
todos recebem cores distintas.

A quinta apresentação, Tópico 5: Questões Sociais (trio de estudantes).

Um dos problemas mais graves da pandemia, foi a capacidade de disseminação do


vírus entre a população pobre. Devido as condições estruturais em que estão
inseridos, o que facilitava a disseminação. Desde o fato de ter mais pessoas
habitando na mesma casa, o trajeto realizado de casa até o trabalho e a volta,
transporte público lotado, facilitando a disseminação do vírus. Dessa forma, esse
tópico da HQ pretende focar nas questões apresentadas, e, principalmente,
evidenciar como observamos um cenário de hierarquização da doença. Ademais,
que esse é um vírus que inicialmente teve sua propagação entre as camadas da
população de classe mais alta, e em seguida começou a se propagar nas classes
baixas; onde as condições foram mais propícias, com a diferença, de fazer mais
vítimas. Assim, criamos a personagem Maria (empregada doméstica), trabalha na
casa de Carlos (pessoa bastante afortunada). Carlos estava infectado
(assintomático) e não sabia, não usava máscara, mesmo quando Maria estava por
perto realizando as tarefas domésticas. Maria, apesar de usar máscara foi
contaminada num momento que Carlos tossiu em sua direção. Para complicar,
Maria utiliza o meio de transporte público para se locomover de casa para o
trabalho e do trabalho para casa, onde existe a possibilidade de contaminar outras
pessoas. Para além, Maria irá levar o vírus para casa, contaminando o marido e os
quatro filhos que estão em casa, pois o marido e os filhos não saem de casa, as
crianças estão em aula remota e o marido está desempregado.

O sexto roteiro apresentado era o Tópico 6: Medicamentos equivocados, no caso


Ivermectina (trio de licenciandas).

A história inicia com o primeiro quadrinho mostrando um homem sentado lendo


uma notícia de jornal sobre o medicamento Ivermectina. No quadrinho seguinte o
mesmo homem toma o medicamento Ivermectina. O quadrinho seguinte, mostra o
homem conversando com outra pessoa infectada na rua, os dois estão sem
máscaras, pois estão protegidos pelo medicamento Ivermectina. No quadrinho
subsequente, já mostra o homem com os sintomas da Covid 19. Na sequência,
demonstra o vírus fazendo o seu caminho pelo sistema respiratório. No outro

549
quadrinho, as células do sistema imunológico são acionadas. No próximo
quadrinho, o vírus penetra o pulmão. Enquanto isso, no outro quadrinho, mostra o
medicamento Ivermectina sendo absorvido no estômago e caindo na corrente
sanguínea em forma de molécula. No quadrinho seguinte, a molécula do
medicamento Ivermectina encontra uma célula do sistema imunológico, ela fica
confusa, sem saber o que aquelas coisas são. Seguindo para o próximo quadrinho, a
molécula de Ivermectina chega até o pulmão, mas descobre que não possui a
“ferramenta” certa para deter o vírus; já que sua especialidade são os protozoários.
O próximo quadrinho, mostra o fígado não dando conta e suando. No seguinte
quadrinho, o fígado entra em colapso por causa da quantidade excessiva do
medicamento Ivermectina. Passando para o quadrinho seguinte, mostra o fígado
com hepatite, o pulmão em colapso e as células preocupadas com o aumento da
temperatura corporal. E, para concluir, o último quadrinho mostra depois de alguns
dias, o homem no quarto de hospital se recuperando, o médico chega e ele fala para
o médico que não sabia que a hepatite era um dos sintomas da Covid; e o médico
explica que não é, que a causa da hepatite foi o excesso do medicamento
Ivermectina que ele tomou.

Em relação a todas as HQ, após os roteiros, os estudantes desenvolveram o


desenho inicial e foram feitos vários outros rascunhos por outras pessoas do
mesmo grupo e, então, elas foram novamente desenhadas à caneta preta e
escaneada para que fosse colorida digitalmente.

O processo de colorização contou com ajuda de tutoriais em plataformas da


internet como o YouTube e tutoriais do próprio software utilizado, o Krita, além, de
utilizar outras plataformas, como o Canvas. Os desenhos foram pintados e depois
foram adicionados efeitos como luz e sombra para uma melhor dimensionalidade
do desenho. Ademais que Ramos (2019) refere que as cores fazem parte dos
quadrinhos, apesar de pouco estudado na linguagem destes. Segundo o autor, as
cores “são signos plásticos que contêm informação ora mais relevante para a
compreensão do texto narrativo, ora menos” (RAMOS, 2019, p.87), reforçando que
as cores são importantes na caracterização dos personagens. Um processo
semelhante foi desenvolvido para cada um dos desenhos dessa HQ, mas

550
infelizmente, nem todos os roteiros conseguiram se desenvolver completamente
devido a finalização da disciplina.

Considerações finais

Considerando o objetivo inicial de discutir o processo criativo na produção de AS -


em especial as HQ - apresentado por estudantes de Biologia, como resultado de
uma Ecologia de Saberes.

Podemos concluir que o trabalho com a HQ foi complexo, pois traduzir um


conteúdo de biologia que é muito específico, acaba por delimitar e perde muito da
liberdade artística; mas o recurso visual que os quadrinhos proporcionam torna
possível traduzir informações de forma não-verbal, como sugerem Toledo et al.
(2016); Mehes e Maistro (2012). Dessa forma, no tópico sobre o sistema imunológico
para facilitar a compreensão do leitor, foram feitos ajustes para que todas as células
fossem apresentadas inicialmente.

O processo criativo desenvolvido pelos licenciandos contou com o


desenvolvimento de conhecimentos tecnológicos em desenho e em pintura digital,
tais como luz e sombra, ajustes técnicos, edições de imagem e de detalhamento;
para melhor aproveitamento dos quadrinhos, ou seja, demonstraram que para a
criação de uma HQ é necessário desenvolver ou ter conhecimentos de narrativa,
ilustrações e diagramação. Houve também a carência de material para referenciar o
trabalho com a perspectiva e tridimensionalidade de alguns personagens
principalmente em relação ao cenário onde o vírus atuou, ou seja, o organismo.

Além, do que a HQ começou com uma ideia simples e muito padronizada e durante
reuniões de criação, ocorreram uns “estalos criativos” por parte de alguns
licenciandos, que se mostraram mais envolvidos no processo, esses “estalos
criativos” que seriam uma junção de lembranças de repertório prévios com ideias
mais recentes, ali discutidas. A liberdade do processo de criação juntamente com o
repertório do grupo culminou em uma nova complexidade de ideias, ou seja, uma
Ecologia de Saberes desenvolvida por esse grupo específico; e, desta forma,
conseguiu-se criar uma HQ com maior profundidade de detalhes e conteúdo, sem
perder seu foco lúdico. A pesquisa se apoiou na perspectiva das Epistemologias do

551
Sul de Boaventura Souza e Santos (2009) que parte da ideia de que a reflexão
epistemológica não se deve basear em conhecimentos abstratos, e sim, na prática
de conhecimentos e resultarem em impacto em outras práticas sociais; dessa forma
esse trabalho foi pensado a partir dessa prática da arte sequencial por um grupo de
estudantes que acarreta em um conhecimento - uma ecologia de saberes do grupo
– que impacta numa nova forma de fazer DC. Uma proposta descolonizadora, que
nasce da valorização e integralização dos saberes científicos e ancestrais, que
promovem um diálogo horizontal entre conhecimentos, denominada de Ecologia de
saberes, que é também um “conjunto de intervenções epistemológicas” (SANTOS,
2009, p. 7)

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https://www.revistas.ufg.br/interacao/article/download/41819/22066 . Acesso em: 12
out. 2022.

Mini Currículos

Maria Aparecida Alves da Silva


Doutoranda em Educação, Universidade Federal de São Carlos - campus Sorocaba. Rod. João Leme
dos Santos, km 110, Itinga, Sorocaba. E-mail: maasilva@estudante.ufscar.br

553
Hylio Lagana Fernandes
Doutor em Educação, Professor Adjunto do Departamento de Ciências Biológicas, Universidade
Federal de São Carlos - campus Sorocaba. Rod. João Leme dos Santos, km 110, Itinga, Sorocaba. E-
mail: hylio@ufscar.br

554
SONHAR, RELATAR, PROGRAMAR, PERFORMAR: DIRETRIZES ENCADEADAS
PARA SURGIMENTO DE IMAGENS E ALGUNS INCÔMODOS

DREAMING, REPORTING, PROGRAMMING, PERFORMING: CHAINED GUIDELINES


FOR IMAGES EMERGENCY AND SOME DISTURBANCE

Bruna Mazzotti
PPGAV/EBA/UFRJ/CAPES & NuPAA/FAV/UFG/CNPq, Brasil

Resumo

Neste trabalho, primeiramente, objetivo exibir e refletir sobre os caminhos tomados até a
realização do trabalho “Recompensa” (2022) – uma performance orientada para câmera. A
estratégia para o alcance dessa visualidade foi através da sugestiva de um sonho, do qual
resultou em um relato de sonho, tendo posteriormente derivado para um programa de
performance, até chegar na realização da performance para a câmera. Assim, durante
minha investigação de mestrado, tomei os verbos: sonhar, relatar, programar e performar
enquanto estratégia para fazer emergir trabalhos. Entretanto, incomodei-me com a
dependência da performance em relação ao sonho e busquei outras formas de ser para a
pesquisa: Se meus sonhos guiam minhas performances, como performances podem guiar
meus sonhos? Ocasionando, portanto, na realização de performances para a câmera que
vieram por outros motivos que não o onírico, para posteriormente influenciarem sonhos
meus. Um desses trabalhos foi “Seis Faces” (2022). Assim, busco uma reciprocidade entre a
performance e o sonho, invertendo a lógica consecutiva outrora trabalhada. Tudo foi
possível por duas frentes: a pesquisa performativa (HASEMAN, 2010; PAVIS, 2017) e o poder
do Eros (HAN, 2017).

Palavras-chave: sonho; relato de sonho; programa performativo; arte da performance.

Abstract

In this work, firstly, I aim to show and reflect on the paths taken to the realization of the
work “Recompensa” (2022) – a camera-oriented performance. The strategy for achieving
this visuality was through the suggestiveness of a dream, which resulted in a dream report,
having subsequently derived to a performance program, until reaching the realization of
the performance for the camera. Thus, during my master's research, I took the verbs: to
dream, to report, to program and to perform as a strategy to make works emerge.
However, I was bothered by the dependence of performance on the dream and sought
other ways of being for the research: If my dreams guide my performances, how can

555
performances guide my dreams? Occasioning, therefore, the realization of performances
for the camera that came for reasons other than the oneiric, to later influence my dreams.
One of these works was “Six Faces” (2022). Thus, I seek a reciprocity between the
performance and the dream, inverting the consecutive logic previously used. Everything
was possible on two fronts: performative research (HASEMAN, 2010; PAVIS, 2017) and the
power of Eros (HAN, 2017).

Keywords: dream; dream report; performative program; performance art.

Prenunciações

Este estudo é um recorte de minha dissertação de mestrado. Estimo reportar que,


por um lado, realizo performances a partir da sugestiva das imagens advindas de
sonhos que tenho ao dormir; e, por outro, faço performances com o intuito de que
elas influenciem espontaneamente em minha narrativa onírica.

Assim, este artigo é composto de três seções. Na primeira parte, detalho como
ocorre a ação consecutiva de minha prática artística: sonho; depois relato o que lá
aconteceu para amigos; esse reportar é então transmutado em um programa
performativo; e, por fim, realizo uma performance através dessas diretrizes. Há,
portanto, um caminho: sonhar, relatar, programar, performar. No entanto, cresce
um incômodo: a performance se torna dependente do sonho para sua realização.
Por sua vez, no segundo tópico, demostro como comecei a investir em outro modo
de trabalho: na inversão da posição dos verbos para programar, performar, sonhar
e relatar – ao exibir dois trabalhos que posteriormente influenciaram a narrativa de
sonhos meus. Por fim, o último bloco é constituído de algumas percepções,
apontamentos e encaminhamentos.

Antes de prosseguir, ressalto que a investigação está conectada com a metodologia


da pesquisa performativa – também conhecida como performance como pesquisa,
prática como pesquisa, pesquisa de ateliê e outras nomeações: caracteriza-se por
um modo de fazer pesquisa em que artistas, ao invés de apontarem desde cedo um
problema, em conjunto com uma hipótese para ser contestada ou confirmada, não
pensam de imediato os caminhos para atacar uma determinada problemática, mas,
de outro modo, fazem da prática artística um disparador de problemas e, ao mesmo
tempo, encontram soluções que derivam dela (HASEMAN, 2010). Portanto, ao invés

556
de instituir oposição entre teoria e prática, onde primeiro haveria um levantamento
teórico, seguido de um trabalho prático e, depois, a tradução desse trabalho prático
em palavras, há um outro movimento: teoria e prática se misturam – não se sabe
exatamente quando termina um e começa outro (PAVIS, 2017). Nesse sentido, o
fazer artístico e as inferências que faço a partir dele são responsáveis pela
remodelação constante do percurso investigativo – propondo: hesitações, avanços,
respostas, dúvidas, impasses, soluções e interrogações.

Nesse sentido, tomei o sonho como uma origem e a performance como um destino.
Mas, na medida em que vim pesquisando, os trabalhos que fiz, juntamente com
determinados sentimentos que tive ao elaborá-los, foram responsáveis por gerarem
em mim uma urgência: era necessário fazer uma inversão, dobra, reorganização.
Assim, desejei que performances não fossem submissas aos sonhos, mas me
preocupei em instituir uma relação erótica entre ambos: Eros não é subjugação,
mas cooperação (HAN, 2017). Dessa forma, em determinado momento, já não fez
sentido separar e conter cada uma dessas instâncias – sonho e performance – em
seus determinados lugares, estanques. Quero ser uma espécie de mediadora que
põe um de frente para o outro, ao invés de um após o outro, um com o outro, ao
contrário de um sobre o outro. Levei a cabo, então, essa espécie de casório. Mas
toda junção pressupõe uma separação anterior. Tratarei dela a seguir.

Do sonhar ao relatar, do relatar ao programar, do programar ao performar ....

Em certa noite, fiz uma performance no interior da Galeria do Largo1, localizada na


Praça São Sebastião, em Manaus. Saí de lá e me sentei na calçada para descansar.
De imediato, inúmeras pessoas que desaprovaram meu trabalho fizeram o seguinte:
imobilizaram meu corpo, agarraram meu cabelo, despejaram fezes de rato na minha
garganta e saíram em disparada. Eu tentava vomitar, cuspir, mas era extremamente
difícil! Vieram duas pessoas em minha ajuda, dizendo para que eu não engolisse ou
encostasse a língua nos dejetos, mas como isso seria possível?

1 Imagens e localização do edifício: https://goo.gl/maps/Zw5oML6iah4Tcuv97.

557
Isso me aconteceu em sonho. Tal fenômeno, dentre várias outras funções,
compensa nossa situação em um definido momento da vida (JUNG, 2021). Por
exemplo: se um indivíduo possui mania de grandeza, seus sonhos tenderão para
mostrar sua pequenez – por outro lado, também pode ocorrer a exacerbação da
característica de grandeza (IJEP, 2020). Acredito que meu sonho ora relatado tem
mais a ver com essa segunda maneira, pois, na época do sonhado, eu estava
experimentando muita insegurança e autocrítica – algo bem ressaltado na narrativa
onírica em questão.

O decorrer de um sonho pode ser comparado com um filme de duração variada,


muitas vezes de início indefinido, que se desenrola em um fim conclusivo (RIBEIRO,
2019). Dele, nós, sonhadores, somos protagonistas – mas não possuímos controle
sobre seus eventos imprevisíveis, erráticos e fluídos: em seu vasto arco de
possibilidades inverossímeis, na intrusão de elementos de uma lógica outra e
associações incomuns, atuamos como se fosse em improvisação, sem
conhecimento do roteiro e direção, em meio a cortes abruptos, descontinuidades e
transmutações de exímia naturalidade – uma pessoa e ou um lugar se transforma
em outro – tudo que evoca em nós distintos sentimentos: euforia, medo, surpresa,
alegria, frustrações, decepções e por aí vai (ibid.)

No sonho que relatei há pouco eu senti medo. Muito medo. Um pavor extremo de
ser intoxicada e morrer. Um pavor tão grande que me fez palpitar forte o coração,
tendo como consequência o acordar. Fiquei sabendo, também por Sidarta Ribeiro
(2019) que para sonhar com emoções tão devastadoras assim, precisamos primeiro
vivenciá-las na vigília. Ainda assim, não consigo me lembrar de alguma outra
experiência que tenha me deixado tão apavorada quanto essa.

Também tenho entendido o sonho enquanto um acontecimento, nem menos, nem


mais importante que a vigília, mas uma vivência que se encontra par a par com ela,
em mesmo grau de importância. Assim, podemos até retirar da vigília o poder de
ser a única detentora da realidade (FELINTO, 2017), afinal, as imagens advindas dos
sonhos, apesar de não possuírem a materialidade física, a concretude palpável que
temos enquanto despertos, são perceptíveis e deixam impressões tão ou até mais
fortes quanto aquelas vivenciadas no tempo em que estamos acordados (SADDI,
2011). Nesse sentido, ver todas as situações evocadas por um sonho, é também

558
vivenciar essas evocações: são circunstâncias que no momento sonhado estão
acontecendo – diferentemente de serem imaginadas (ibid.) Dito de outro modo:
quando nos encontramos no estado de sonhar, nesse mundo totalmente autêntico,
o sonho, esse organismo psíquico, essa realidade viva sob forma espacial, nos
circunda inteiramente a cada noite, é um acontecimento no espaço (BOSNAK,
1994).

Algumas vezes, também me acontece de sonhar coisas que depois me ocorrem.


Essas experiências me fizeram sublinhar uma segunda postura do sonho: sua
função premonitória – a possibilidade de antecipar acontecimentos de um futuro
porvir. Pois o sonho possui atitudes, pensamentos e impressões dos dias
antecedentes, dos dias correntes e dos dias que ainda virão: orientam-nos (JUNG,
2021). Assim, ele não é uma experiência banal que acontece durante o dormir: é guia
(KRENAK, 2019).

Nesse sentido, fui movida por um desejo de relatar meus sonhos para elaborar
trabalhos artísticos no campo da performance. Guiar-me através de suas imagens
para gerar outras imagens. Mas devo ressaltar que o relato de sonho já não é o
sonho em si: a diferença é tão grande quanto a distinção entre uma reportagem no
jornal e o acontecimento real ora descrito por ela (BOSNAK, 1994). O registro é
importante enquanto um sustento para a memória pois, quase sempre, é por ele
que chegamos novamente na história do sonho – podemos até sentir certeza de
que lembraremos dele até o fim de nossas vidas, mas, pouco tempo depois, ele
desaparece facilmente da recordação (ibid.).

Gostaria, portanto, de fazer um paralelo do sonho e do relato com o escrito “O Fogo


e o Relato” de Giorgio Agamben. Vejo o onírico como um sinônimo do fogo, da
faísca, da flâmula, da fogueira, do segredo: “verdadeira e irreparavelmente,
misterioso, verdadeira e absolutamente indisponível” (AGAMBEN, 2018, p. 36) – não
se pode tocá-lo em sua imensidão. Pode-se, no entanto, fazer que ele se mostre
parcialmente de outro modo – através do relato: aquele que contempla ao mesmo
tempo a “perda e comemoração do mistério, extravio e reevocação da fórmula e do
lugar” (AGAMBEN, 2018, p. 30). Assim, o sonho só passível de acesso – parcial,
sempre parcial – por mim e por outrem através do relato – tendo a língua, como
Giorgio escreve, o papel de sonda que adentra esse mistério.

559
Transmutei o relato de sonho que iniciei no primeiro parágrafo deste texto para um
programa performativo, ou seja: um elencar de ações das quais serão vistas apenas na
execução de uma performance (FABIÃO, 2013). As diretrizes: 1) Ajustar a câmera em um
tripé, de modo com que a lente fique apontada para baixo; 2) Ajoelhar-me de modo com
que meu rosto seja enquadrado de forma central pela câmera; 3) Depositar arroz doce
em minha boca, até atingir o limite de lotação; 4) Permanecer parada com a comida na
boca ou cuspir o alimento? – tendo a última ordem como imprecisa.

Frente a essa dúvida de como proceder e dar um fechamento, ressalto que essas
instruções não possuem a intenção de definir a totalidade de uma performance,
tampouco objetivam o controle de suas relações para o alcance das imagens, mas
enunciam uma série de ações basais para o fazer da ação (CABRAL, 2021). Tais
escritos são guias para trabalhos em potencial e não podem ser vistos como
estruturas rígidas justamente porque, agindo enquanto detonadores criativos, esses
guias podem ser traídos, rasgados, dobrados, com a ordem de enunciados trocada,
tendo ações excluídas, bem como podem vir a ocorrer ações imprevistas no
decorrer da execução, além percursos alterados por parte dos materiais que se
comportam de modo diferente do esperado, e ainda ações que são modificadas
pelas pessoas que estão ao entorno – participando dela (CASTANHEIRA, 2018). O
programa se demorou alguns meses em meu caderno e em minha imaginação até
se derivar em uma performance orientada para a câmera (Fig. 1):

Figura 1. Bruna Mazzotti. Recompensa, 2022. Performance para a câmera 2, 4 minutos e 3 segundos.
Apartamento da artista, Sertãozinho (SP).

2
Disponível em: https://youtu.be/vB6cVCk-jhs. Acesso em: 25 nov. 2022.

560
A origem da performance é situada nos primeiros ritos da humanidade – mas seu
entendimento enquanto linguagem artística foi no contexto do século XX, nas
vanguardas modernas, através das imagens que surrealistas e dadaístas elaboraram
(SIMÃO, 2021). Mobilizando profissionais das diversas áreas do saber – poesia,
música, dança, teatro e artes visuais – as primeiras ações que começavam a
delinear o que viria a ser chamado de performance, surgiram do incômodo de que a
arte havia se separado da vida, com a vontade de união entre artista, obra e público
(ibid.).

A performance, pois, introduz uma descontinuidade, ou seja, um acontecimento, no


curso da vida (SIMÃO, 2021) – assim como o sonho. É um evento unívoco, que
nunca se repetirá outra vez, pois mesmo que siga um programa fixo, a ação
executada irá fazer conjunção com outros fatores mobilizadores, tais como os
corpos de quem executa, observa e interage, o clima, o espaço, e quaisquer outras
diferenças que possam permear as tentativas de repetição (BRITES, 2017).

Feita a performance, o resíduo das imagens permanece nas telas mentais de quem a
presenciou, sendo capaz de rondar os sonhos, lembranças e conversas por semanas
ou meses – dito de outro modo: ela começa na pele e nos músculos, é projetada
sobre a esfera social e retorna às psiquês (GÓMEZ-PEÑA, 2013). Ademais, podemos
tratar a performance enquanto evocadora de um território com fronteiras
movediças, onde contradições, ambiguidades e paradoxos não são apenas tolerados
– mas estimulados (ibid.) – similar ao sonho.

Essa linguagem não se trata apenas utilização do corpo como parte constituinte da
obra em uma ação ao vivo, visto por uma audiência em um tempo e espaço
específicos, das quais deixam remanescentes, como objetos, fotos, vídeos e relatos
escritos por quem presenciou a ação – mas também existem: performances que se
recusam a deixar qualquer tipo de registro físico ou digital, vivendo nas memórias e
nos relatos orais de quem presenciou e-ou fez a ação; além de performances
totalmente orientadas para a câmera, em fotografias e vídeos, sem público
concomitante à realização do trabalho (MELIM, 2008) – como é o caso do trabalho
“Recompensa” (2022) que trouxe para este artigo.

Ao afirmar que performances e sonhos convergem por serem acontecimentos,


encontrei um vazio ao me perguntar: se sonhos podem ser premonitórios, que

561
premonições as performances evocam? Três exemplos: uma mulher3 fez para si
uma roupa com notas de 10 reais e se pôs a passear entre as ruas – a depender dos
encontros, as notas eram retiradas com maior ou menor velocidade, até revelar sua
nudez. Um homem4 se inseriu em saco de lixo e ali dançou demasiadamente até que
a superfície de plástico foi desmembrada dele. Uma outra mulher5 colocou em
caixas transparentes coisas que podemos encontrar em praias, criando uma praia
portátil e, ensinando através de fotografias, como cada material pode ser utilizado.
Performeiros, portanto, são anunciadores de suas preocupações consigo, com os
seus e com o mundo. Cada uma delas e deles pode mover e solta imagens conforme
seus desejos, medos, aspirações. Acredito que esses trabalhos são um tanto
oraculares.

Sonho e performance: coexistentes e cooperativos

Percebo em meu trabalho um movimento contíguo: do sonho ao relato, do relato à


seleção de uma ou duas imagens enquanto sugestivas de trabalho, das sugestivas à
programação de uma performance e, por fim, a pronta ou esperada execução dos
trabalhos programados. Dito de outro modo, o sonho deseja um relato, o relato
deseja o possível trabalho, o trabalho possível deseja estar com outrem. Também
me chama atenção o fato de tudo terminar em “ar”, como se esses
encaminhamentos fossem uma condição de sobrevivência: sonhar, relatar,
programar, performar.

Fico a refletir que meu trabalho guiado por sonhos é cheio de lacunas e
desobediências: um relato é incapaz de retomar todas as coisas do sonho, um
programa não põe em voga todas as coisas do relato, uma performance não segue à
risca o programa, o vídeo não remonta todas as coisas de uma performance – mas

3 Veja mais em: https://www.anasantosnovo.com/MELINDROSA-1. Acesso em: 29 set. 2022.


4Um fragmento da performance está disponível em: https://www.numeridanse.tv/en/dance-videotheque/gente-
de-la. Acesso em: 29 set. 2022.
5 Imagens disponíveis em: https://www.instagram.com/p/CayKiJPlG3I/?utm_source=ig_web_copy_link; Acesso
em: 29 set. 2022.

562
deixa para que possamos divagar com ele acerca do que está fora do
enquadramento.

Fui levada a desejar que a pesquisa não se encerrasse em trabalhos de performance


guiados por sonhos, pois me incomodava o fato de que a performance dependia do
sonho para ocorrer. É nesse sentido que determinei outros modos de existência
para a prática artística. Por exemplo, tenho elaborado dezenas de programas de
performance que não vieram por motivações oníricas. Ao invés de descartar essas
instruções ou deixá-las para depois do mestrado, prefiro perguntar: se meus
sonhos guiam minhas performances, como minhas performances podem guiar
meus sonhos? Investir nessa forma de reciprocidade parece fundamental. Assim,
apresentarei “Seis faces” (2022) e o relato de sonho influenciado pelo trabalho.

Figura 2. Bruna Mazzotti. Seis faces6. Performance para a câmera / para o cubo. 5,5 x 5,5 x 5,5 cm. 2022.

Enquanto eu fazia psicoterapia com minha querida analista Isa Carvalho, imaginei
um certo cubo: minha face estava impressa nas seis faces, em cada rosto uma
expressão facial diferente da outra. Senti muita vontade de trazer esse objeto para
as minhas mãos e duvidei muito de como fazer isso até decidir: impressão UV.

Sendo assim, segui as diretrizes: 1) ficar de frente para a câmera; 2) ativar


tempororizador e modo de disparo contínuo; 3) fazer caras e bocas. Houveram por
volta de 16 capturas, escolhi 6. Assim como na minha imaginação, é possível fazer

6
Para ver o trabalho em sua tridimensionalidade: https://youtu.be/Mim_7OxgI70. Acesso em: 25 nov. 2022.

563
rotações veticais e horizonais, embaralhando as fotos. Depois disso, fiquei semanas
dormindo com o cubo na cabeceira da cama ou junto ao meu travesseiro, até que
sonhei com ele:

Consegui sonhar com o cubo!!!! (...) recebo a notícia de que uma


pessoa, que era minha amiga mas que hoje em dia não é mais, a Bia,
marca um casamento pra mim com uma pessoa que eu não conheço.
Eu fico desesperada porque não queria romper com aquilo que eu
estava construindo com o [meu namorado:] José. No sonho eu tenho a
sensação que o casamento não podia ser desfeito. Eu ia ver o convite
do casório e era um cubo, cada face do cubo tinha o rosto de um
convidado ou convidada, e de dentro dele saía tipo um holograma,
mostrando, mesmo com apenas 6 faces, outros convidados e
convidadas. Abaixo da foto de cada pessoa, tinha uma folha com
pauta, a5, com escritos a mão daquela pessoa. Inclusive, tinha uma
foto do futuro esposo: ele vestia vermelho e estava sentado numa
cadeira gamer. Não lembro do rosto dele. Ele tinha cabelo liso e
grande. Na escrita dele dizia que ele não me conhecia, mas estava
muito feliz porque iria casar comigo. Nessa hora eu acordei de tanta
raiva kkkkk. Ah: o cubo também parecia feito de materiais escolares.
Ele era colorido: cada pessoa uma cor (MAZZOTTI, 2022b, n. p.)

Breves culminações

Nesta investigação, sublinhei duas posturas acerca do sonho: são acontecimentos e


são premonitórios – descobrindo, em prática, leitura e observação, que a
performance também age como tal. Pensando nesse coincidir, decidi abraçar meu
incômodo com o encadeamento que atribuí ao meu fazer – sonhar, relatar,
programar, performar – para buscar outras existências de trabalhos em
performance: responsáveis por guiarem sonhos – ao invés de serem guiadas por
eles.

A realocação fundamental dos verbos direcionadores para programar, performar,


sonhar, relatar – faz com que a performance saia de uma posição subordinada ao
sonho, para que, assim como ele outrora a guiou, ela agora o guia. E ainda há
muitos trabalhos que gostaria de fazer nesse sentido da inversão.

Adicionalmente, “Recompensa” (2022) e “Seis Faces” (2022) foram feitos em uma


mesma ambiência: a sala do apartamento que tenho habitado. A mesma parede
bege aparece tanto nas imagens em movimento de um, quanto nos registros
564
congelados de outro. Esse fundo é, curiosamente, uma muralha e tijolos que separa
o refúgio doméstico da escada que dá acesso à área externa. A maioria dos
trabalhos que empreendi em minha pesquisa nos dois últimos anos foi feita em
casa, e mais especificamente, na sala de estar que também é de jantar. Pergunto-
me se algum dia me dará vontade e sonho de colocar o corpo na rua. Ao que parece,
estou bem próxima disso.

Referências

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escrita arte e livros. São Paulo: Boitempo, 2018.
BOSNAK, R. Breve curso sobre sonhos: técnica junguiana para trabalhar com os sonhos.
São Paulo: Paulus, 1994.
BRITES, M. Corpo-caderno: performance, registro e cicatrizes. 26º Encontro da ANPAP.
Campinas, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017a. Anais do 26º Encontro da
ANPAP. Disponível em:
<http://anpap.org.br/anais/2017/PDF/S12/26encontro______BRITES_Mariana.pdf>.
Acesso em: 27 de maio de 2022.
CABRAL, B. Performance – empreendimentos [i]mobiliários. In: Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 279-297. jan.-jun. 2021. Disponível em:
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maio de 2022.
CASTANHEIRA, L. Performance Arte: modos de existência. Curitiba: Apris, 2018.
FABIÃO, E. Programa performativo: o corpo-em-experiência. Ilinx-Revista do LUME, n. 4,
2013. Disponível em:
https://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276. Acesso
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FELINTO, É. “Oneirotexto”: Notas Sobre Sonho, Criação Artística e Literatura (com um
apêndice sobre o Dicionário Kazar). In: Desterros, terreiros: pós cadernos 2 / PPGAV
UFRJ. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2017. P. 51-65. Disponível em:
https://www.academia.edu/43748549/DESTERROS_TERREIROS_PÓS_CADERNOS_02_
COLETÂNEAS. Acesso em: 29 de maio de 2022.
GÓMEZ-PEÑA, G. Em defesa da Arte da Performance. In: Antropologia e performance:
ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.
HAN, Byung-chul. A Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017.
HASEMAN, B. Rupture and Recognition: Identifying the Performative Research Paradigm.
In: BARRETT, E.; BOLT, B. (Orgs.). Practice as research: Approaches to creative arts
enquiry. New York: LB Taurus, 2010.
565
IJEP. Sonhos: Jung, Taoismo e Neurociência - IJEP Convida Sidarta Ribeiro. Youtube, 15 de
outubro de 2020. Disponível em: https://youtu.be/qpHfmsrO6tM. Acesso em: 29 de maio
de 2022.
JUNG, C. G. Sonhos. Petrópolis: Vozes, 2021.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MAZZOTTI, Bruna. [Relato de sonho: Convite de casamento]. WhatsApp: [Conversa com
Casimiro de Paula]. 4 de julho de 2022. 10:08. 1 mensagem de WhatsApp, 2022.
MELIM, R. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
PAVIS, P. Dicionário da performance e do teatro contemporâneo. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2017.
RIBEIRO, S. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. Editora Companhia das
Letras, 2019.
SADDI, M. Desenhos no Céu: sonho e poesia. In: 20º Encontro de Pesquisadores em Artes
Plásticas - ANPAP: Subjetividade, Utopias e Fabulações, 2011, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
UERJ/Rede Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011. Disponível em:
http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/maria_luiza_saboia_saddi.pdf. Acesso
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SIMÃO, L. V. Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão. Arte &
Ensaios, vol. 27, n. 41, p. 298-314, 2021. Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8593-1223. Acesso em: 27 set. 2021.

Mini Currículo

Bruna Mazzotti
Mestra em Artes Visuais através do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Escola de Belas
Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ); especialista em Ensino de Artes
Visuais (Colégio Pedro II); e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas
(FAARTES/UFAM). Integrante do Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas
(NuPAA/FAV/UFG/CNPq). E-mail: bruna_mq@live.com

566
ARTE ÉTICA, OBTUÁRIOS E ENVOLVIMENTO

POÉTICAS ARTÍSTICAS E PROCESSOS DE CRIAÇÃO

ETHICAL ART, OBITUARIES, AND INVOLVEMENT

ARTISTIC POETICS AND CREATIVE PROCESSES

Maria Cândida Ferreira de Almeida


Universidad de los Andes, Colômbia

Resumo

Neste artigo, procuro tecer algumas aproximações com o tema do silêncio na filosofia como
forma de pensar as artes visuais, como expressões capazes de provocar a contemplação, o
silêncio e o envolvimento. Embora para muitos a arte não tenha compromisso ético,
princípio que há muito se repete em todos os lugares, na filosofia esse compromisso é
fundador e, além disso, uma preocupação permanente. Para Platão, que também foi poeta,
como voz autoral, a quem foi dada autoridade no âmbito da cultura para falar sobre as coisas
mais importantes da vida, ele deve ter sua voz considerada responsável e passível de
interrogatório ético do exame filosófico. Antes que a estética moderna construísse uma voz
autoral sem compromisso com a ética, a arte estava a serviço do bem, porque era serviçal da
beleza. A abordagem do silêncio a partir tema da filosofia se dá, aqui, como forma de indagar
se a arte visual é capaz de provocar a contemplação e o silêncio e assim conduzir seus
destinatários à ética e ao compromisso com o bem, a partir dos conceitos de obituário,
envolvimento e ética trazidos para o campo da arte.

Palavras-chave: Ética, obituário, envolvimento

Abstract

In this article, I try to weave some approaches to the theme of silence in philosophy as a way
of thinking about the visual arts, as expressions capable of provoking contemplation, silence
and involvement. Although for many arts has no ethical commitment, a principle that has
long been repeated everywhere, in philosophy this commitment is founding and, moreover,
a permanent concern. For Plato, who was also a poet, as an authorial voice, who was given
authority within the culture to speak about the most important things in life, he must have
his voice considered responsible and subject to the ethical interrogation of philosophical
examination. Before modern aesthetics built an authorial voice without commitment to
ethics, art was at the service of good, because it was the servant of beauty. The approach to
silence based on the theme of philosophy takes place here as a way of asking whether visual

567
art is capable of provoking contemplation and silence and thus leading its recipients to ethics
and commitment to goodness, based on the concepts of obituary, involvement and ethics
brought to the field of art.

Keywords: Ethics, obituary, involvement

Voltar à contemplação

Como uma obra visual envolve o espectador? Provocada pelo gesto deste seminário,
retorno a um caminho iniciado há muito tempo, mas não totalmente percorrido, que
buscava responder como o trabalho visual se apresenta à contemplação. Quero
pensar, especificamente, no envolvimento do observador com o objeto escultórico
que se apresenta à sua frente. Naquele primeiro momento de tais reflexões, recorri
aos conceitos de silêncio e contemplação para tratar do envolvimento do observador
com a obra; nesta nova versão, volto apenas à contemplação para melhor desenvolver
linhas propiciadas pelas noções de envolvimento e de obituário para o campo da arte,
atravessadas pelo problema da ética do olhar, como foi desenvolvido por Karina
Marín e pela contemplação, extraída da filosofia de Gisele van der Walde.

Aproximando-me do que pode ser dito ou formulado como "envolvimento", na


apresentação de Platão do processo que leva ao Bem (primeira função da filosofia em
sua proposição ética), há três analogias utilizadas pelo filósofo: a de linha de
envolvimento, do sol e da caverna. Nesse retorno a Platão, me interessa enfatizar a
possibilidade de pensar a imagem, a experiência visual, para alcançar o bem do
filósofo grego como interpretado por Von der Walde (2001, p. 70), já que as analogias
do sol e da caverna estão carregadas de formulações explicitamente visuais e
sugerem que o envolvimento consiste em uma espécie de visão intelectual e não em
um processo discursivo (2001, p. 70). Chegamos à contemplação, pois para Von der
Walde a impossibilidade de falar do bem leva a uma analogia com as imagens visuais:

A revelação final não é apresentada nem na forma corporal nem na


forma de discurso, raciocínio (logos) ou ciência (episteme), mas é uma
experiência direta de contemplação (211d) através da visão (211e). A
culminação do caminho de ascensão é, portanto, uma experiência não
discursiva, passando do campo mediado da fala e da audição para a
experiência direta da visão. (VON DER WALDE, 2001, p. 58)
568
E ainda: "A própria impossibilidade de falar do bem, que obriga Sócrates a fazer uma
analogia com o sol, indica a dificuldade de colocar o bem em nível discursivo" (VON
DER WALDE, 2001, p. 58), mas, o mais importante, não impede de expô-lo em termos
visuais.

A contemplação dos signos externos e dos sentidos pode ser um primeiro passo para
o envolvimento; nesta concepção, “envolvimento” será apenas o que for internalizado
e permanecer "na alma" como memória, livre da lembrança da escrita. Além disso,
isso só acontecerá se o envolvimento for “verdadeiro”, isto é, sobre o que realmente
é, "só a contemplação da ideia última e suprema que se vê, mas não se diz” (VON DER
WALDE, 2001). O caminho de Giselle von der Walde rumo ao silêncio passou pelo
silenciamento do discurso – oral ou escrito; o caminho que quero enfatizar aqui leva
à contemplação, primeiro como modo próprio da imagem visual e, segundo, como
produtora de envolvimento. Não quero dizer que a potência da contemplação não
esteja presente em seu livro. Na página 129, Von der Walde nos lembra que a luta pela
sobra das palavras é permanente, uma vez que o objetivo da observação direta e não
mediada do que é em si, se coloca contra esta finalidade; "todo diálogo, interior ou
exterior, é supérfluo" (VON DER WALDE, 2002, p. 129): "Estar diretamente diante do
mais sublime elimina todas as palavras e toda justificativa oral ou escrita, pois este é
apenas um passo intermediário e não um fim" (VON DER WALDE, 2002, p. 129).

Nesse contexto, a morte de Sócrates é o lugar para realizar essa experiência:


primeiro, porque esta cena não destaca somente a força de estar diante de uma
morte, ela é também um ritual filosófico – “onde as palavras e os silêncios são
fundamentais”, nas palavras de Platão: “Porque ouvi dizer que se deve morrer em
silêncio ritual” (117e apud VON DER WALDE, 2001, p. 129). Qualquer ritual deve ser
contemplado, muitas vezes em silêncio; da mesma forma, Von der Walde nos ensina
que a palavra “eufemia”, utilizada por Platão nesta passagem, refere-se ao silêncio
religioso, que não é a ausência de palavras, mas sim a manutenção e o respeito de
palavras e gestos apropriados antes do ritual (VON DER WALDE, 2001, p. 129).

Quero propor meu ponto, inserir a minha voz na reflexão da filósofa: a contemplação,
os gestos apropriados, o silêncio acabam realizando o que podemos pensar ser
propriamente a morte: o último gesto do humano diante de seu desaparecimento
físico. Para entender essa descrição da morte contemplada de Sócrates como uma

569
performance, recorremos às reflexões sobre essa arte que enfatizam os termos
“transições” e “traços” de movimento como fundamentais para pensá-la. Nessa
perspectiva, o importante é o que acontece entre pontos no espaço, no processo e
não é um objetivo final. Enquanto movimento corporal, este gesto implica
simultaneamente presença e ausência, acontecimento e desaparecimento, incluindo
em si a sua própria negação. Diferente de várias poses (“presenças”) aglutinadas em
uma sequência própria da dança, por exemplo, esse movimento pode ser entendido
como uma performance ou algo que só existe no atravessar do tempo, como
constantes evaporações:

Esse movimento é uma produção do fato de que estamos, de fato,


morrendo. Também em termos mais concretos, em termos de nossa
própria constituição bioquímica, a cada instante somos
substancialmente outro corpo. Devemos ter em mente que a cada
movimento (descanso latente) ou repouso (movimento latente),
reescrevemos/relemos os traços do passado no futuro, tocando a
última ação com a nova coisa que fazemos, mas a viagem não é uma
linha que traçamos atrás de nós como quando esquiamos. Essas linhas
escrevem o passado enquanto o último gesto, diante da morte, está no
futuro. (FERNANDES, 2006, s. p.)

Ou, repetindo a perspectiva de Von der Walde: quando estamos diante do mais
sublime, faltam as palavras e toda justificativa oral ou escrita se torna vã, pois, como
sabemos, a linguagem é um passo intermediário e não um fim (VON DE WALDE 2002,
p. 129).

Ou, sustentar o olhar como propõe Karina Marín, tratando não da morte, mas de
outro incômodo – os corpos dissidentes:

Sustentar o olhar como o que antecede a um momento de construção


de sentidos, mas, por sua vez, como o que sucede depois de dois
instantes necessários, determinados pela aparição dos corpos
dissidentes e, imediatamente, por sua capacidade de criar comoção
nos espaços que ocupam. (MARÍN, 2022, p. 21)

Nessas perspectivas, a contemplação será sempre contígua ao silêncio, como


acessório – siamês e símile –, por isso "a luta pelas palavras que sobram é constante",
pois o objetivo é a observação direta e não mediada" (VON DE WALDE 2002, p. 129).
No entanto: “a culminação da sabedoria, que é a contemplação do mais sublime, é

570
possível na vida efêmera, é a centelha, um instante”. Consola a promessa de que “se
os ditos encantamentos são verdadeiros, a promessa e a esperança que resta para o
filósofo, após a morte, é a possibilidade de contemplá-los eternamente (VON DE
WALDE 2002, p. 128)”.

Fixada na tela, por exemplo, a pintura figurativa pode ser a presença da morte ou do
incômodo. Estamos diante da vida silenciada, do corpo imóvel, embora emulando o
movimento do que estava vivo. Boris Kossoy, tratando da fotografia, explica que olhar
para a imagem será sempre um acesso à segunda realidade, a do documento, a da
representação elaborada. É um acesso ao mundo da aparência, um mundo que
preserva as formas de um objeto ou cenário ou as feições de um indivíduo recortado
no espaço, paralisado no tempo, um mundo imaterial, então intangível” (KOSSOY,
2007, p. 43). É esta perspectiva do “imaterial” que propiciou a busca por um registro
do sublime, a possibilidade desse tipo de matéria remeter ao imperceptível, imaterial,
impalpável abriu caminho para o etéreo, sutil, enfim, para o anímico.

A centelha que se acende após o silêncio e a contemplação costuma dar lugar à


crença na força e na vida dos objetos, principalmente os estéticos; frequentemente,
sob um efeito afetivo, constituímos um sentido para a obra de arte a partir de nossa
experiência vivida, de um reconhecimento e, posteriormente, de uma familiaridade
que nos conecta com o objeto observado, e que suplanta a existência da morte ali
presente. Para Von der Walde, Sócrates não negaria “a possibilidade do
conhecimento nesta vida”, pois afirma a “esperança de que coisas maravilhosas sejam
reservadas para aqueles que levaram uma vida filosófica no além” (VON DER WALDE,
2001, p. 126). Nosso olhar informado ou intuitivo para a obra de arte, sendo seguido
por uma experiência-faísca, preenche esta vida, a única que conhecemos. Depois de
um fulgor estético, podemos comparar o que somos com o que fomos; nessa
comparação, devemos valorizar a repetição propiciada pelo gozo estético como
possibilidade de nos envolver com a obra e nos afastar da nossa insignificância
causada pela ideia de morte, que paradoxalmente pode estar aí. Esta aproximação à
contemplação da morte ou àquilo que nos interpela é “pensada desde a própria
experiência”, como explica Marín, quando nos damos conta de que “as imagens nos
governam para provocar reações imediatas e fugazes” (MARÍN, 2020, p. 17).

571
Arte ética, obituários e envolvimento

Com base na ética, devemos nos perguntar: é a arte política? Ou mesmo arte é
política pública? A resposta é sempre “sim”, porque sempre foi assim. A política é a
arte de gerir pessoas, e os objetos estéticos sempre foram ativados para esta agência.
No entanto, a partir do século XIX, o sistema da arte fez um enorme esforço para
separar essas duas agências – arte e política – até mesmo criando o conceito de
“panfletária”, para se referir a obras que reivindicassem explicitamente uma posição
política ou fossem pedagógicas demais.

Em 2012, a Bienal de Berlim foi totalmente dedicada à política – todos os trabalhos


estavam dentro de uma plataforma de reivindicação. Mas a obra que mais chama a
atenção, para quem conhece a cultura colombiana, é a de Antanas Mockus,
matemático, professor universitário, reitor, prefeito, candidato, político criativo ou
antipolítico, ativista, que não indica ser um “artista”. Ele mesmo ironiza o convite e a
aceitação de participar de uma bienal de arte. "A obra" é um dispositivo visual que
apresenta estatísticas administrativas, reflexões políticas, comparações de índices
sociais, econômicos e urbanos entre diferentes cidades do mundo. Outros trabalhos
da exposição são da mesma fatura: banners, cartazes, grafites compõem o espaço
expositivo. Vídeos com manifestações soavam como as ucranianas do Femen e
outros menos famosos na imprensa. Finalmente, na Bienal de Berlim, sob o título
“Esqueça o Medo”, a política volta a ser arte, como a velha persuasão barroca.

Muitas exposições têm dado visibilidade para o material panfletário como objeto
artístico. Vi presencialmente exposições assim no Museo de Arte Contemporánea da
UNAM, México, ou virtualmente, na França e Inglaterra. Essa quebra de limites foi
amplamente anunciada em vários eventos, mas não podemos dizer que é definitiva a
aceitação do panfleto, a faixa ou a pichação política como obra de arte. Ou, ao revés,
pensar a própria manifestação como performance artística, como as Femen, cujos
registros da performance ou da prisão estavam expostos na Bienal de Berlin (2012),
mas que podemos pensar que todas as manifestações promovidas pelos corpos
falantes que se presentam como “Femen” em diferentes partes do mundo,
provoquem uma experiência estética, um incômodo à ordem pública e um incômodo
maior ainda ao olhar.

572
Fig.1 This March the 8th is dedicated to FEMEN'S feminism

A arte política dedica-se a problemas contingentes, mas que são, no momento da


criação e exibição, o mais importante da vida. Seu projeto é fazer com que o
observador se preocupe com sua comunidade, com o planeta, com os destinos da
humanidade e aja para o bem. O artista quer que este mundo, o único que
conhecemos, seja um bom lugar para reproduzir a vida. São muitos os erros e
ignorâncias que alimentam esses trabalhos, pois, como adverte o padre Antônio
Vieira, só há uma maneira de saber e acertar enquanto, para errar, são infinitas.
Conhecer o caminho errado pode nos ensinar o caminho certo – que pode até não
existir, mas deve ser procurado.

Contemplar a morte envolver-se com a vida

Na Documenta de Kassel (13) havia obras explicitamente políticas e obras que


chamarei de “obituários”, pois seu estar no mundo é determinado pelo fim: anunciam
uma morte. É claro que essas obras são “clássicas” no sentido moderno: são formas
fechadas, acabadas, nas quais predomina a vontade do autor (e, claro, a disposição
sob a vontade do curador).

Também em 2012, aconteceu a Beaufort, uma exposição de arte trienal sem o


prestígio da Bienal de Berlim e da Documenta de Kassel. Sem repercussão na

573
imprensa ocidental, essa exibição tem a sugestiva proposta de ser exposta ao mar. A
concepção é de obituários monumentais, dispostos à beira-mar, em praias tranquilas
da Bélgica. Ninguém ali quer ir além da tranquilidade do verão, da aposentadoria, da
vida organizada. Assim, as obras são elogios fúnebres que não servem mais para
alimentar o defunto, mas para celebrá-lo, não são inteiramente vazias, mas sua
confecção não pede uma complementação, nem sequer pede uma verdade – só pede
beleza, contemplação e silêncio sem faíscas.

Fig. 2 Christophorus Gerhard Lentink, Beaufort, 2003

Temos então uma proposta de distinção: artistas que nos querem comover/envolver
nos fazem atuar, ou pelo menos nos indignar, e artistas que procuram a nossa
contemplação distante. Embora existam curadores, historiadores, críticos apegados
a cada um desses gêneros, é difícil fazer uma defesa irrestritamente vitoriosa de cada
uma dessas propostas. A reflexão propostas em grandes, e por isso, fisicamente
cansativos eventos também pode ter seu componente obituário, pois o observador
acaba avançando, enfrentando outra provocação, aderindo a outro projeto assim que
caminha para outra sala, para outra galeria, para outra proposta.

Algumas vezes a experiência permanece, mesmo que imaterial, ou pelo menos,


enquanto o som funciona, nas obras sonoras. Parte dessas obras não são obituárias;
são enxertos plantados na memória do observador, são pura experiência de vida e só
574
existem se houver observador. Se a sala estiver vazia, não haverá obra, pois em muitas
delas as máquinas que mediam param de funcionar quando não há ninguém no
espaço de exposição. Ao exigir uma interação, será que quebram o silêncio, mantêm
a contemplação e garantem o envolvimento? Pois eles podem, enquanto fruição
estética, funcionar como a solução platônica do diálogo.

As obras de obituário existem sem observador, como a árvore que cai na floresta,
como o meio corpo gigante do Christophorus criado para Beaufort. Se um dia a praia
ficar completamente vazia de humanos, até de animais, ela estará lá, triunfante, como
as grandes obras de Anish Kaapor. A Nuvem, por exemplo, seguirá situada na praça
de Chicago, refletindo o céu, mesmo que a bomba de nêutrons elimine a todos. O
obituário é classicamente criado independentemente do observador. A
impossibilidade de interagir é recusar-se ao diálogo, uma das formas de silenciar;
mesmo que sejam puro silêncio e contemplação, sua contiguidade é com a morte.

A exposição Cuerpos que [se] miran: nuevas representaciones de la discapacidad


2017-2018, com a curadoria de Karina Marín e Paulina León, convida ao envolvimento
não só o observador “normal”, sem nenhuma dissidência corporal, mas também a
estes que utilizam recursos como o tato e a audiodescrição para se envolverem com
as obras expostas. Além da acessibilidade oferecida a visitante raros, as obras foram
feitas por artistas que dela participaram; são aqueles que, no entender das curadoras,
oferecem um dispositivo de representações que “tem como fim questionar as
maneiras pelas quais as imagens da discapacidade têm circulado durante séculos,
reforçando estereótipos” (MARÍN, LEÓN, 2018: 8). As obras ali expostas nos
interpelam por meio de um olhar incomodado ao envolvimento com outra dimensão
do humano sem privilégios. Como avisa Nicolás Sandoval no seu “Manifiesto Albino”:

Sou uma irmandade na condição marginal com todo corpo não


hegemônico: sou o negro, sou o apátrida, sou a mulher, sou o travesti,
sou o mendigo, sou o louco, sou o aleijado, sou o deficiente, sou o
discriminado, sou o fracassado, sou o monstro, sou o que a cultura não
quer ou espera, sou o outro. Somos uma comunidade dispersa, mas
vibrante, consciente de seu poder. (SANDOVAL, 2017-2018, s. p.)

Nos vemos envolvidos por meio de um olhar que finalmente questiona “nossos
modos de olhar-nos, em tempos que parece que sabemos ver (MARÍN, 2020, p. 20)”.
Somos convidados a olhar corpos que foram durante muito tempo encobertos sob o
575
discurso de “loucura, patologia, ternura, caridade, pobreza e monstruosidade”, como
nos recorda Marín (2020, p. 20), que no presente nos desafiam a construir um olhar
estético para a vulnerabilidade, e que nos envolvem no instante do encontro quando
explodem como imagem diante de nós, como as performances de Lisa Bufano. Estas
nos abarcam, nos provocam admiração e nos levam a compreender nosso
envolvimento com outro modo de estar no mundo, de olhar a arte no mundo.

Fig. 3 Lisa Bufano e Sonsheree Giles: performance, YBCA, 16/09/2012

Referências
FERNANDES, Ciane. AtraveRsando corpos: Dança e Contemporaneidade no Evento
Conexões Sul 2006. Disponível em: www.revista.art.br/site-numero06/apresentação.htm.
Acesso em: 05/2008
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Atelier, 2007.
MARÍN, Karina. Sostener la Mirada: apuntes para una ética de la discapacidad. Quito:
Festina Lente/Cara de Luna, 2020.
MARÍN, KARINA; LEÓN, Paulina. Miradas que se entre cruzan. Cuerpos que se miran:
Nuevas representaciones de la discapacidad 2017-2018. Catálogo. Cuenca, 2018.

576
SANDOVAL, Nicolás. Manifiesto Albino. BY-NC-SA 2017 - 2018 Disponible en Interdicta
plataforma de performance. Disponível em: https://interdicta.cl/manifiestos/manifiesto-
albino. Acesso em: 08/2022
VON DE WALDE, Gisele. Filosofía y Silencio. Formas de expresión en el Platón de la
madurez. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, Ediciones Uniandes, 2001.
Imagens:
Fig.1 This March the 8th is dedicated to FEMEN'S feminism In:
https://www.nssgclub.com/en/lifestyle/29189/this-march-the-8th-is-dedicated-to-
ukranian-feminism/image:402917
Fig. 2 Beaufort 01 02030 04 (Catálogo) Gent: Borgerhoff & Lamberigts, 2012.
Fig. 3. Lisa Bufano e Sonsheree Giles: performance, YBCA, 16/09/2012. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/audreypenven/7994921626/in/photostream/

Mini Currículo

Maria Candida Ferreira de Almeida


Doutora em Estudos Literários pela UFMG (1999). Lidera o grupo de Estudos Comparados de Artes,
Universidad de los Andes (Bogotá). Em 2017 publicou o livro Encajes ético, étnico y estético: arte y
literatura de negros (2017). No campo das artes visuais publicou os artigos Cerámica: transformación
y libertad sobre/con tierra. (PENSAMIENTO), (PALABRA) Y OBRA, (2020) e Las formas de lo real o ¿en
cuáles circunstancias la palabra hace ver? LA PALABRA (2019). E-mail: mferreir [at] uniandes.edu.co

577
EIXO C

EDUCAÇÃO, ARTE E CULTURA VISUAL


6 LANCES DE DADOS SOBRE FEMINISMOS

6 CASTS OF DICE ABOUT FEMINISMS

Isabel Almeida Carneiro


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ana Valéria de Figueiredo


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Alea jacta est. A sorte está lançada. Muitas vezes são estas as palavras que alguns
participantes proferem antes de começar a lançar os dados para as jogadas. E os jogos podem
ser também transportados para lugares diversos, dentre esses, a sala de aula. Partindo dessas
ideias, o presente texto tem como objetivo central apresentar algumas reflexões ao leitor
sobre um percurso do ensino de artes a partir da descrição de um processo de passos
didatizados em aulas da licenciatura em artes visuais com a ideia de jogos que formam teias
de conhecimento. Buscamos os jogos como possibilidades práticas de aulas em espaços-
tempos que articulam diversas perspectivas, dentre elas, o feminismo. Não se trata de uma
metodologia do ensino de artes, mas possibilidades de trabalho didático-pedagógico numa
perspectiva freireana da educação como prática da liberdade. Descrevemos em etapas as
possibilidades de realização propostas a partir de uma palavra que se desdobra em produção
artística/pedagógica.

Palavras-chave: Ensino de Artes. Jogos didáticos. Licenciatura em Artes Visuais.

Abstract

Alea jacta est. Luck is cast. these are often the words that some participants utter before
starting to roll the dice in games. And the games can also be transported to different places,
amongst these, the classroom. Based on these ideas, the present text has as its main
objective to present readers to a path of teaching arts based on the description of a process
of didactic steps, in classes of the degree in visual arts, with the idea of games that form webs
of knowledge. We research games as practical possibilities for classes in space-times that
articulate different perspectives, among them, feminism. It is not a methodology for teaching
the arts, but possibilities for pedagogical work in a Freirean perspective of education as a
practice of freedom. We describe in stages the possibilities of carrying out proposals from a
word that unfolds in artistic and pedagogical production.

Keywords: Arts Teaching. Didactic games. Degree in Visual Arts.

579
Iniciando o jogo

Alea jacta est. A sorte está lançada. Muitas vezes são estas as palavras que alguns
participantes proferem antes de começar a lançar os dados para as jogadas. E os
jogos podem ser também transportados para lugares diversos, dentre esses, a sala de
aula.

Partindo dessas ideias, o presente texto tem como objetivo central apresentar
algumas reflexões ao leitor sobre um percurso do ensino de artes a partir da
descrição de um processo de passos didatizados em aulas da licenciatura em artes
visuais com a ideia de jogos que formam teias de conhecimento. Buscamos os jogos
como possibilidades práticas de aulas em espaços-tempos que articulam diversas
perspectivas, dentre elas, o feminismo. Não se trata de uma metodologia do ensino
de artes, mas possibilidades de trabalho didático pedagógico numa perspectiva
freireana da educação como prática da liberdade.

Os jogos funcionam com regras simples: uma palavra, uma imagem e um texto por
aula sobre autoras e artistas feministas, propondo um revisionismo histórico pautado
nas produções de obras teórico artísticas. As palavras, imagens e textos não se
fecham entre si, pois criam redes de relações. Criação de redes complexas de
pensamentos através de jogos. Redes de conhecimento sobre a teoria feminista, de
saberes que resultam em metodologias para a elaboração de planos de aula, capazes
de formar uma teia de inter-relações que extrapolam as questões de gênero.

O mais importante, ao se tratar do movimento feminista, é criar um ambiente como


uma sala de aula, aberta a críticas e desconstruções metodológicas em busca por
outras epistemologias, mais ao sul, mais transgressoras, antir-raciais,
antilesbofóficas, antipatriarcais. “Um dos aspectos mais afirmativos do movimento
feminista tem sido a formação de um ambiente intelectual alimentado por um fluxo
contínuo de críticas e trocas dialéticas” (hooks, 2017, p. 18).

Indo do mais imediato ao mais profundo; palavras, imagens e textos se circundam e


criam relações entre elas e para fora do círculo. Palavras-imagens-textos. Como elas
se traduzem? Qual é a hierarquia de saberes entre elas? Palavras que não apenas
descrevem imagens; imagens que são muitas vezes anteriores às palavras. Que
respostas obterão nossas provocações? O que se elabora para uma aula de artes? Por
que o saber deve partir da experiência e não o contrário? Fale-se ao invés de saber-
580
fazer um fazer-saber. Capacidade de propiciar experiência que promova outras
epistemologias, esse seria o principal sentido do ensino da arte, a arte que só tem
sentido na sua transmissão: a obra de arte tem em sua essência uma função
pedagógica.

Nos jogos propostos em sala de aula estão presentes questões do acaso e da


tradução, um manto de amplas pregas (BENJAMIN, 2002, p.50) que não dão conta do
objeto traduzido segundo a imagem emblemática de Suzana Kampf Lages (2002) para
a tarefa e a melancolia do tradutor diante de certa opacidade de seu objeto/ diante
daquilo que se esconde nas dobras da linguagem. Um campo fechado de
possibilidades gerando uma aleatoriedade, algo controlado, mas que sofre a ação do
acaso. A escolha de cada palavra, texto, imagem, passa por uma aleatoriedade
definida previamente pelas possibilidades de relação com o estabelecido. Algumas
resultam em relações distantes, outras bem próximas.

Inventário de práticas

Os jogos trabalham com a ideia de diário, recorte e colagem de temporalidades


inconciliáveis, temporalidades históricas que são irreconciliáveis na ordem do
fragmento, que temporariamente se superpõem e depois voltam a seus lugares de
origem.

Fragmento, fragmentum: resto, pedaço de um todo que foi desfeito e quebrado. A


cada semana elegemos uma palavra, uma imagem e um texto como um jogo de dados,
com a temática feminista que se tangenciam e criam possibilidades e ideias artístico-
pedagógicas. Assim, a tarefa é uma resposta por semana no formato de plano de aula.
Os textos e imagens se relacionam entre si. São bússolas para tentar entender a obra.
Como elas se relacionam. Vejamos a seguir algumas proposições:

1º lance de dados. Imagem: Piano Cromático de Catherine Arnaud (2013). Texto:


A noção de fragmento (JACQUES, 2004). Palavra: fragmento.

O Piano Cromático de Arnaud (2013) é uma tentativa de tradução entre pintura e


música. Visualidades e sonoridades que se intercambiam pela estrutura do
fragmento. Formam entre essas duas linguagens um mesmo anteparo, que é ao

581
mesmo tempo visual e sonoro. Constituem assim uma equivalência através das
partituras que são ao mesmo tempo música e pintura. Imagem e som no mesmo
corpo físico tratado como forma de fragmento, que tenta abarcar o todo em partes.

O Piano Cromático transforma pinturas em música. Arnaud cria um sistema à base


de compreensão de ar e cada cor é tocada de uma determinada maneira. Existe a
tradução entre notas e cores, entre tons e acordes. As conexões com a ideia de
fragmento são complexas. Por isso pensamos em termos de equivalências entre a
dimensão sonora e visual no estratagema da colagem. Kolla [grego]. Montare [latim].
Colagem: ato de montar, de colocar uma coisa sobre a outra.

Fragmento como a tentativa de abarcar o todo, mas em partes. O fragmentário se


remete a múltiplas temporalidades, que se sobrepõem, mas que não se amalgamam,
não se tornam uma única coisa, revelam suas identidades originárias na estrutura da
colagem “em função do contínuo estado de incompletude [...] Porque se transformam
continuamente” (JACQUES, 2004, p. 34).

O fragmento é temporal tanto na obra de Arnaud quanto na construção teórica de


Paola Jacques (2004). A temporalidade é a chave da fragmentação, dessa vontade
contemporânea de quebrar, despedaçar. Adversidade na captura de objetos
cotidianos. A eleição do acaso e da aleatoriedade é fundamental na construção desses
objetos. Em cada objeto recolhido investe-se na busca de um “encontro fortuito,
sobre uma mesa de dissecação, entre uma máquina de costura e um guarda-chuva”
(LAUTRÉAMONT, 1869, p. 101). Arquitetura desabada e o inacabamento na ordem do
fragmento. Equivalência de materiais e espaços, a noção de fragmento, o todo e a
parte, o ouriço e a pérola.

Para se pensar em equivalência, a autora Paola Jacques (2004) nos remete à


arquitetura das favelas, o inacabado, que nunca termina, sempre recomeça, não tem
fim: uma estética do precário. Coisas e pedaços, fragmentos dispostos uns sobre os
outros com uma lógica própria. Equivalência de materiais, papelão, madeira, plástico,
capa. Uma estrutura precária e temporária, pois o tempo é o que formula esse desse
tipo de arquitetura. Estrutura que inspirará Hélio Oiticica na construção dos seus
Parangolés (c.1967).

Quando sonoridades e visualidades ganham um mesmo corpo na obra de Arnaud


(2013) inscreve-se uma relação de complementariedade. Composição, sobreposição,
582
reajustamento de partes. Partes que formam um abrigo como o Parangolé. Abrigo
como a primeira arquitetura, aquilo que protege, a roupa se torna o primeiro abrigo
do humano.

2º lance de dados. Imagem: frame do vídeo Blood sign #2/ Body Tracks (1970) de
Ana Mendieta. Texto: La Frontera (ANZALDÚA, 2016). Palavra: fronteira.

Na obra de Ana Mendieta temos a inscrição feita com sangue Blood sign#2 /Body
Tracks (1970). O entendimento da obra é direto, sem subterfúgios, imediata: trata-se
de um corte nos pulsos (cujo sangue se torna a matéria do desenho). Após o ato há o
sangue; matéria do desenho, sangue e desenho. Gesto e materialidade que remetem
a história da pintura e do desenho e de nossa ancestralidade mais primitiva. Desenho
com sangue remete à pintura e a sua história. Depois da última pintura de cavalete
de Ad Reinhardt, o que resta senão a pintura com sangue e as inscrições rupestres
que nos levam diretamente à sua biografia e a morte da sacada1.

Mendieta viveu em um estado fronteiriço entre sua nacionalidade cubana e a cultura


americana com a qual travou batalhas de adaptação e de aceitação social; viveu sob
a sombra da intolerância e do não pertencimento. A série Siloueta (1970) na qual a
artista imprime a silhueta de seu corpo em superfícies diversas (areia, terra, folhas)
que remete à história de Butades e da origem da representação.2 A fronteira se refere
à Bordlands (2016) de Gloria Anzaldúa que fala da experiência da borda, da margem,
da fronteira como uma linha divisória. Essa relação entre texto e imagem não foi
aleatória, mas sim propositadamente um campo fechado de possibilidades neste
caso.

Como consciência da fronteira, Ana Mendieta reclama um espaço próprio, mestiço,


uma própria arquitetura feminista. Constrói sua obra no momento que há a
emergência das mulheres feministas nas artes, mulheres que sempre se
posicionaram e agiram politicamente, mas não se consideravam panfletárias. O

1 Um dos boatos que circundam sobre a morte de Ana Mendieta é que ela teria sido jogada da sacada do
apartamento deles pelo artista plástico Carl André. Esse fato nunca foi comprovado.
2Plinio o velho, narra a fábula de uma jovem chamada Dibutade (ou Butades) que ao saber que seu amado partiria
para a guerra, e com receio de não retornasse mais, contorna seu rosto na esperança de suprir a sua ausência, de
poder retê-lo junto a si através da fixação de sua imagem.
583
mundo incipiente das artes visuais mal conseguia entender as ações artísticas de
Mendieta. Esse corpo terra, esse corpo sendo corpo.

Anzaldúa resgata as Ginosociedades presentes, partilha do sensível, do campo comum


e de amor entre mulheres, traz à luz epistemologias esquecidas como as sensações,
percepções sensoriais, retorno ao corpo, dos sentimentos: fala de língua selvagem,
idioma secreto e terrorismo linguístico.

Nunca mais me vão fazer sentir vergonha por existir. Tenho minha
própria voz: índia, espanhola, branca. Tenho em mim minha língua de
serpente, minha voz de mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta.
Vencerá a tradição do silêncio. Como mestiça, não tenho país, como
lesbiana não tenho raça e como feminista não tenho uma cultura
(ANZALDÚA, 2016, p. 41).

A fronteira entre os Estados Unidos e o México é uma ferida aberta onde o Terceiro
Mundo3 quer ascender ao Primeiro e sangra. E antes que se forme uma crosta, volta
à hemorragia, à saliva vital de mundos que se fundem para formar um terceiro país,
uma via alternativa possível, uma cultura de fronteira. As fronteiras estão desenhadas
para definir os lugares que são seguros e os que não são. Governos as erguem para
distinguir de um lado nós e do outro, eles; um lado daquelas vidas que importam e o
outro lado, das vidas que não importam. Uma fronteira é uma linha divisória que
aparta e discrimina.

O trabalho de Mendieta promove uma necessidade de norte, toda sua obra está
pautada na borda, na franja da diferença. A necessidade de fazer parte fomenta uma
relação ambígua desgastante. Ao mesmo tempo em que está fora, que permanece e
vivencia o lugar de outsider, enquanto artista transita na fronteira do pensamento
entre a ação artística e o gesto político; entre o acolhimento e a repulsa. Blood
sign#2/ Body Tracks (1974) é uma obra de fronteira, que está do lado de fora do
expressionismo abstrato, do lado de fora do minimalismo, da arte branca ocidental

3 Termo geopolítico da Teoria dos Mundos surgido no período da Guerra Fria para denominar os países que não
estavam polarizados nem com os Estados Unidos e nem com a Rússia; muitos desses países eram ainda colônias
nesta época. Atualmente a expressão se refere mais aos aspectos econômicos dos países chamados “em
desenvolvimento” em detrimento dos países de Primeiro Mundo que têm melhores condições econômicas e de
serviços e benefícios que impactam positivamente a qualidade de vida.
584
heteronormativa, que a tensiona e talvez por isso mesmo permaneça à margem dos
acontecimentos, na borda.

3º lance de dados. Imagem: Isilumo Siyaluma de Zaneli Muholi (2006). Texto:


Lesbofeminismo, Karina Vergara Sanches (2015). Palavra: comunitária.

As relações são promovidas pelo acaso, como relacionar coisas que não criam
relações imediatas entre elas. Zaneli Muholi pinta com sangue menstrual e mistura
pigmentos naturais e menstruação. Em seu trabalho as questões do tempo e do
efêmero são fundamentais. Promove espaços exclusivos de mulheres em que une
cores e odores da terra. Sua obra traz o plano terreno, telúrico e a contaminação.
Transgressões e transbordamentos, problematizando a borda. Insurgindo com a
borda do suporte do papel. Obras que falam de mulheres lésbicas mortas. Isilumo
Siyaluma de Zaneli Muholi utiliza o sangue menstrual nas pinturas.

O texto de Karina Vergara (2015) aponta para a necessidade de criação de espaços


exclusivos de mulheres, espaços seguros no quais nós, mulheres, possamos resgatar
nossas forças ancestrais. A obra de Muholi traz a ancestralidade do gesto, pigmento
de sangue e origens tribais. Ao mesmo tempo imemorial e abjeto, pois sangue
menstrual é lido como “sujeira”. Como o sangre livre pode nos remeter a
temporalidades esquecidas... Ginosociedades dizimadas, o matriarcal. Sociedades
horizontais que tecem relações que emergem do sangue. A obra de Zaneli Muholi
tem a força política de resgatar memórias de mulheres lésbicas negras mortas. Sua
obra denuncia o lesbocídio. Crimes de ódio contra lésbicas como os estupros
“corretivos”. A obra tem uma urgência: proteger vidas através de seus ensaios
fotográficos.

4° lance de dados. Possibilidades estreitadas pela relação óbvia de texto e


imagem. Imagem: Sessão do Conselho de Estado de 1922. Texto: “Entre
convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica
feminina”, Ana Paula Simioni (2002). Palavra aleatória: colagem.

Em sua tese de doutorado, Ana Paul Simioni investiga as carreiras artísticas femininas
no universo acadêmico, as dificuldades encontradas em se estabelecerem como
artistas profissionais durante todo o século XIX. A autora fala da quase inexistência

585
de pintoras que faziam gênero pintura histórica, de grandes formatos e com a
projeção para o mundo. Muitas mulheres eram relegadas às artes menores de
pequenos formatos produzidas em um ambiente doméstico.

A partir da tese Profissão Artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884-1922,


Simioni (2004) nos apresenta argumentos sobre a emergência e a formação
específica de mulheres artistas como Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de
França, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto e Georgina de Albuquerque.

Georgina de Albuquerque foi a primeira mulher a dirigir a Academia Nacional de Belas


Artes (1952). Sua obra contestava a legitimidade da própria Academia, como a demora
na entrada das mulheres na escola. Foi uma das primeiras e únicas alunas
reconhecidas em sua época, tendo a oportunidade de realizar pintura história, um
gênero de pintura almejado, e por isso exclusivamente masculino. O gênero da
pintura histórica requereria grandes espaços para sua realização, principalmente
espaços externos. Essa externalidade da obra não era própria das mulheres,
cabendo-lhes espaços internos, domésticos. Às mulheres só seria possível realizarem
trabalhos de dimensões pequenas, que circulassem no espaço da casa, do ambiente
íntimo burguês. A tradição do Gineceu. “Ocupavam um nicho reservado aos trabalhos
domésticos, nos quais se percebia um certo refinamento, um “gosto”, mas não a
mesma seriedade e profissionalismo característico das produções verdadeiramente
“artísticas”. (SIMIONI, 2004, p. 03)

Georgina estudou o cânon do desenho de observação nu na Academie Julian em Paris


(1906). Pode assim realizar o gênero da pintura histórica. Era uma rara oportunidade
concedida a mulheres participar das aulas de modelo vivo e esse fato foi fundamental:
o estudo de modelo vivo fez com que Georgina pudesse realizar sua obra premiada
Sessão do Conselho de Estado (1922), tornando-se célebre em suas obras pela
pincelada do quadro, uma fatura diferenciada para construção de suas pinturas. A
obra em questão escolhida pelo tema. Nela, uma mulher é retratada não como uma
heroína, mas como uma intelectual; um exemplo de mulher republicana. A obra
retrata Dona Leopoldina, aconselhada por José Bonifácio e incumbida de enviar a
carta sobre a independência do Brasil à D.Pedro. A artista coloca uma mulher na tela,
porém cercada de homens que vão decidir o destino do país.

586
Relacionando a tese de Simioni a outro texto Por que não existiram grandes artistas
mulheres? de Linda Nochlin (2016), podemos partir do questionamento do porque
não temos registrado na história da arte grandes artistas mulheres, como se elas não
tivessem existido. E temos algumas respostas tais como: para que houvesse grandes
mulheres artistas elas precisariam de grandes formações, precisariam criar uma
existência no mundo da cidade, da pólis, participarem plenamente do mundo
artístico. Teriam que se incluir e ser incluídas no fluxo do sistema que constrói
grandes artistas, construção, no caso das mulheres, atravessada por uma formação
ampla e qualificada como a formação de Georgina de Albuquerque na Academie Julian
em Paris.

A implicação mútua entre contexto histórico, produção de arte, entre a ordem social
sustentada pelas instituições de poder e a produção de saber. A partir disso seria
possível a emergência de artistas mulheres no mercado de arte. Colagem de tempos
históricos dissonantes: a imbricação entre produção, circulação, oportunidades,
inserção, atributos necessários para a emergência de grandes artistas que veio a
ocorrer muito recentemente. Numa época em que falar de “grandes artistas” não
seria mais possível, pela própria construção do sistema e mercado de arte pós-
moderno, Georgina furando o tempo impõe a figura feminina na composição
acadêmica.

5° lance de dados. Imagem: Bastidores de Rosana Paulino (1997). Texto: O que é


lugar de fala? de Djamila Ribeiro (2019). Palavra: vibrátil.

A linguagem como mecanismo de manutenção de poder é um argumento da ordem


do discurso e sua produção e recepção: quais grupos são convocados a falar e quais
não são? Djamila Ribeiro começa no texto “Lugar de fala” (2019) citando o discurso
da ativista afro-americana Sojourner Truth (1843) quando das lutas feministas pelo
direito ao voto. Esse discurso põe o dilema “a universalização da categoria mulher”
(RIBEIRO, 2019, p. 19-20). Sojourner não era uma mulher universal que clamava pelo
direto ao trabalho, como as outras mulheres brancas que reivindicavam seu lugar no
mundo do trabalho e do sufrágio universal. Pois as mulheres negras já trabalhavam
como escravas nas lavouras, nas plantações. Sojourner se pergunta: “afinal, eu não
sou mulher?” A categoria mulher não dizia a respeito das mesmas vivências de grupos

587
de mulheres negras e brancas. O discurso de Sojourner buscava restituir
humanidades negadas através do feminismo negro.

O privilégio social pode ser entendido como o mesmo que privilégio epistêmico. E
esse ponto ressalta a importância do lugar de fala. “Lugar de fala” é a tradução da
palavra em inglês standpoint e é um conceito feminista. Problematiza que não é só o
negro pode falar de racismo, que só a mulher pode falar de sexismo, mas fortalece a
criação de um discurso de grupos subalternizados, para que possam se representar
por eles mesmos.

Grupos subalternizados muitas vezes não têm direito a voz por estarem num lugar
no qual suas humanidades não foram reconhecidas por grupos hegemônicos, por
serem atribuídos ao pertencimento da categoria daqueles que não importam. A
categoria daqueles que não importam é o que Rosana Paulino resgata em sua obra
Bastidores (1997).

“Lugar de fala” não é um lugar individual segundo Patrícia Hill Collins, citada por
Ribeiro (2019): fala, não como emissão de voz, mas como a importância de grupos
subalternizados tomarem o lugar, por exemplo, nas universidades, nas empresas, nos
lugares de poder. Não apenas como uma representação, mas de fato um quantitativo
de pessoas negras nesses espaços. “Não é uma visão essencialista de que somente o
negro pode falar de racismo” (RIBEIRO, 2019, p. 64), mas sim experiências comuns ao
invés de ação individual. Reduzir a teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala
somente às vivências seria um grande erro, ou pelo menos, uma inadequação nesses
termos.

Essa visão essencialista pode cecear as diversas manifestações e denúncias. Como


explica Collins citada por Ribeiro (2019, p. 67), “o fato de uma pessoa ser negra não
significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do
racismo”, e também não a impede de ter sofrido o racismo na pele.

Obviamente que esses indivíduos reacionários pertencentes a grupos


oprimidos estão legitimando opressões ao proferirem certos discursos,
sem sombra de dúvida. Porém, o que ocorre, geralmente, é a tentativa
de deslegitimar a luta antirracista, antimachista ou anti-LGBTT fóbica
ou a própria teoria do ponto de vista feminista ou lugar de fala, com
base na existência de indivíduos como esses, como se homens brancos

588
heterossexuais não fossem o grupo responsável e beneficiado por essas
opressões (RIBEIRO, 2019, p. 68).

A discussão é estrutural e não pós-moderna como rótulo, com o risco de reduzir o


ponto de vista às experiências individuais em vez de refletirem sobre o locus social.
Nesse sentido, “a teoria do ponto de vista feminista e o lugar de fala nos faz refutar
uma visão universal de mulher e de negritude, e outras identidades, assim como faz
com que homens brancos, que se pensem universais, se racializem” (RIBEIRO, 2019,
p. 69).

Paulino quer construir outras epistemologias. O silêncio de “bastidor”, a máscara da


Anastásia: mulher negra - acusada de questões identitárias – pós-moderno. Quando
ousa falar, é acusada de falar de um certo lugar, tornando sua força como imóvel e
atada. Citando Simone de Beauvoir: “ou seja, ser é ter-se tornado, é ter sido tal qual
se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto
é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores” (BEAUVOIR, 2009, p. 18).

É a partir dessa ideia beauvariana que Linda Nochlin (2016) busca equacionar “por
que não houve grandes artistas mulheres”. A participação nos meios artísticos, a falta
de material de apoio intelectual, o não pertencimento às redes de discussão e
produção criam a impressão que não houvesse grandes artistas e que tornavam as
mulheres inferiores, pois segundo Beauvoir “ser é torna-se”, é o que se manifesta, e
no caso das mulheres artistas isso não foi possível. E como as identidades são
construídas?

Essa insistência em não se perceberem como marcados, em discutir


como as identidades foram forjadas no seio das sociedades coloniais,
faz com que pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no
argumento de que somente elas pensam na coletividade, que pessoas
negras, ao reivindicarem suas existências e modos de fazer político e
intelectuais, sejam vistas como separatistas ou pensando somente
nelas mesmas. Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por
todos, insistem em falarem pelos outros, quando, na verdade, estão
falando de si ao se julgarem universais (RIBEIRO, 2019, p. 31).

A obra de Rosana Paulino carrega a acusação de trazer as questões identitárias,


identidade de um grupo, na verdade é uma crítica à descendência construtiva, a tal
origem construtiva. Na imagem Bastidores vemos um sensível documento que

589
transborda as linhas identitárias individuais e ganha um forte apelo ao grupo
subalternizado de mulheres negras. Temos a dicotomia entre identidade e universal.
Os que criticam os modos de ver “identitários” julgam sempre estar falando
“universalmente”, como parece ser a prerrogativa de alguns artistas concretistas,
neoconcretistas e contemporâneos.

Muitas vezes essas são estratégias para deslegitimar discursos com base em
exemplos individuais, como: “o outro” que se forma pela diferença, como aponta
Beauvoir (1980); “o outro do outro” de Kilomba (2017) que também poder ser o
outsider whitin de Collins (2016) o “estrangeiro de dentro”, como termo que poderia
caber sobre a obra de Paulino.

[...] o objetivo principal ao confrontarmos a norma, não é meramente


falar de identidades, mas desvelar o uso que as instituições fazem das
identidades para oprimir ou privilegiar. O que se quer com esse debate,
fundamentalmente, é entender como poder e identidades funcionam
juntos a depender de seus contextos e como o colonialismo além de
criar, deslegitima ou legitima certas identidades. Logo, não é uma
política reducionista, mas atenta-se para o fato que as desigualdades
são criadas (RIBEIRO, 2019, p. 27).

Pensar em conjunto a condição subalterna, questão que não se põe no mundo


isoladamente, mas em conjunto e coletivamente, com articulações entre o particular
e o universal muitas vezes invisíveis a olho nu, mas que solicitam um olhar apurado
e atento em seu acompanhamento e intervenção.

6° lance de dados. Imagem: Rupi Kaur . Texto: Ensinando a transgredir: a


educação como prática de liberdade, de bell hooks (2017). Palavra: acaso.

Como aponta hooks (2017), a participação de todos, a experiência de vida dos alunos,
o interesse no outro e na fala de outro, foram conquistas das salas de aula das
feministas. A autora ressalta nesse fluxo a necessidade de os professores fecharem
um “compromisso ativo comum processo de autoatualização que promova seu
próprio bem-estar” (hooks, 2017, p. 28), e entende o ato de ensinar como um aspecto
de curadoria, sendo o professor como uma espécie de médico ou curador. hooks
insiste na não dissociação entre mente e corpo, bem como que não há separação
entre a sua vida e o ato de ensinar: a sala de aula como uma terapêutica, segundo

590
Freire, referência na obra da autora. hooks relata que, ao ter contato com a pedagogia
crítica na obra de Paulo Freire, encontrou “um mentor e um guia, alguém que
entendia que o aprendizado poderia ser libertador” (HOOKS, 2017, p. 15).

Ambiente em sala de aula para que as mulheres possam falar. Interesse pelo outro. O
ato de ensinar como ato de “escuta”: bell hooks relata que na época do
segregacionismo nos Estados Unidos, em escolas exclusivamente de crianças negras,
suas professoras, mulheres negras, tinham responsabilidade ética com os alunos
negros, uma dimensão política, de incentivar aqueles alunos na luta antirracista
como uma potência e fazer da educação uma prática de liberdade (HOOKS, 2017).

A autora ressalta que as salas de aula feministas eram o único espaço onde as práticas
pedagógicas eram questionadas e que esses espaços não deveriam ser lugar de tédio,
porque o tédio não é o equivalente à seriedade. Faz parte de uma luta constante
conquistar o entusiasmo, é um processo formativo: “o entusiasmo é gerado pelo
esforço coletivo” (HOOKS, 2017, p. 18). E nessa luta se pratica o interesse pelo outro,
pela escuta das múltiplas vozes, pelo coletivo a fim de manter a dinâmica da aula
como espaços participativos de compartilhamento.

Este standpoint (RIBEIRO, 2019) como mulher, incentivava muitas vezes que as
estudantes mulheres falassem, pois prioritariamente são os homens que falam; que
se sentem à vontade de falar. E continua: “me preocupava com um aprendizado que
fizesse sentido. Que a escuta estivesse atenta às questões e as demandas das alunas.
Criar um ambiente seguro em que as mulheres pudessem falar surgiu do meu próprio
entendimento da importância do feminismo, a minha condição de mulher”(ibidem).

Criar um ambiente em que as críticas e as epistemologias pudessem ser colocadas


em xeque. Enxergar que a auto atualização faria sentido na formação de futuros
professores e professoras. O debate crítico sobre o lugar da mulher no sistema das
artes. O que poderíamos resgatar; revisar; questionar.

hooks aponta encaminhamentos que trazem reflexões sobre a sala de aula


feminocentrada, pensando as questões da mulher. Para ela, “a sala de aula continua
sendo o espaço que oferece as possibilidades mais radicais da academia” (hooks, 2017,
p. 23). Radical, raiz. Práticas que se realizam no solo fértil da construção coletiva do
conhecimento.

591
À guisa de considerações finais

A escolha dessas autoras e teóricas para a construção da sequência de encontros-


aulas aqui apresentada foi um exercício de pensar o que nos põe a andar e as diversas
possibilidades de trabalhar questões que nos movem na contemporaneidade trazidas
por elas. Existem ainda alguns poucos espaços nos quais repensamos epistemologias
outras que emergem dessas vozes muitas vezes subalternizadas, esquecidas ou
silenciadas.

Cabe-nos perguntar e refletir: quais são esses lugares de conhecimento onde


negamos essas vozes que sistematicamente são colocadas num lugar, numa caixa?
Seria possível que essas obras possam ser vistas de outro ângulo? Sim. Acreditamos
que sim e igualmente temos a pretensão de criar espaços de trabalho coletivo que
potencializem as vozes que falam há tempos, mas que muitas vezes não as ouvimos
encarapitadas em teorias hegemônicas e oitivas blindadas...

Estudar outras epistemologias para além daquelas ritualizadas academicamente se


faz urgente, necessariamente urgente... Tecidas e re-tecidas, as histórias das
mulheres que fazem e fizeram a educação como prática para a liberdade vêm sendo
registradas ao longo de tantas escritas. Nesse sentido, ao eleger os jogos como
possibilidades de encontros em sala de aula dialogando com as obras de artes e texto,
buscamos uma virada epistemológica estabelecendo outros diálogos possíveis de
serem lidos, construídos e reconstruídos com os licenciandos de artes visuais.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Bordlands/La frontera: The New Mestiza. Madrid: Capitán Swing
Libros, 2016.
BARROS, Roberta. Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira. Rio de
Janeiro: Ed. do Autor, 2016.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 2009.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: Escritos sobre mito e linguagem. Tradução:
Suzana Kampf Lages. São Paulo: Editora 34, 2000.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do
pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99- 127, 2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.

592
HOOKS, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2017.
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva. Rio de Janeiro: Casa de Palavra, 2004.
KILOMBA, Grada. A máscara. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, 2017, n 11, pp. 26 – 31.
Disponível em: https://piseagrama.org/a-mascara/ Acesso em: 16 maio 2021.
LAUTRÉAMONT, Conde de. Cantos de Maldoror. São Paulo: Iluminuras, 2018.
LAGES, Suzana Kampf. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: EDUSP, 2002.
LORDE, Audre. Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo. Tradução de Renata.
Géledes, 19 maio 2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/os-usos-da-raiva-
mulheres-respondendo-ao-racismo/ Acesso em: 05 out. 2022.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições
Aurora, 2016. Disponível em: http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ensaio6.pdf Acesso em:
03 out. 2022.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
SANCHES, Karina Vergara. Porque e para que lutamos as lesbofeministas? México, 23 de
junho 2017. Disponível em:
https://www.mujerpalabra.net/creadoras/karinavergara/index.htm. Acessado: 10 de out 2022.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; MICELI, Sérgio. Profissão artista: pintoras e escultoras
brasileiras entre 1884 e 1922. 2004. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Disponível
em: https://repositorio.usp.br/item/001390253 Acesso em: 30 set. 2022.

Mini Currículos

Isabel Almeida Carneiro


Artista-pesquisadora vinculada à linha “Arte, sujeito, cidade” do Programa de Pós- graduação em Artes
da UERJ. Vice-líder do grupo de pesquisa Cnpq- PAVIS- Grupo de pesquisa em Artes e Visualidades.
Professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Doutora (2015)
EBA//PPGAV/UFRJ. E-mail: bebelcarneirogmail@gmail.com

Ana Valéria de Figueiredo


Professora Adjunta no Instituto de Artes e PPGArtes UERJ. Líder de Pesquisa dos Grupos PAVIS UERJ
(Pesquisa em Arte e Visualidades) e GEPA UNESA (Estratégias Pedagógicas de Aprendizagem). Doutora
em Ciências Humanas-Educação (PUC-Rio). Desenvolve ensino, pesquisa e extensão nas áreas da
Pedagogia das Visualidades, Arte-Educação, Cultura Lúdica. E-mail:
anavaleriadefigueiredo@gmail.com

593
ARTE CONTEMPORÂNEA FEMININA: REFLEXÕES SOBRE O
DIREITO DE OLHAR
FEMININE CONTEMPORARY ART: REFLECTIONS ON THE RIGHT TO LOOK

Fabiana Lopes de Souza


UFPel, Brasil

Maria Cecilia Lorea Leite


UFPel, Brasil

Resumo

O presente texto, de caráter bibliográfico, apresenta discussões sobre os conceitos de


visualidades e contravisualidades e suas relações com gênero, educação e arte
contemporânea. A fundamentação teórica é pautada nos referencias de Nicholas Mirzoeff
(2011; 2016) que evidencia a necessidade de oposição às visualidades hegemônicas a partir da
“reivindicação do direito de olhar”, ou seja, das contravisualidades. Apresenta-se ainda os
trabalhos de duas artistas contemporâneas brasileiras, Sallisa Rosa e Élle de Bernardini que
tratam de questões referentes às opressões de gênero, classe, raça e sexualidade. Essas
produções artísticas, podem ser vistas como contravisualidades que promovem a criticidade
quanto aos regimes discursivos das visualidades e possibilitam o descondicionamento do
olhar que por muito tempo ficou aprisionado nas produções artísticas masculinas. Dessa
forma, destaca-se a necessidade de práticas educativas que promovam a ruptura com as
visualidades e seus discursos, com os estereótipos e os preconceitos. Para isso, é
imprescindível o conhecimento das produções artísticas femininas buscando favorecer
múltiplas compreensões sobre as visualidades contemporâneas, com vistas a um mundo
mais plural.

Palavras-chave: Arte contemporânea. Contravisualidades. Gênero. Visualidades.

Abstract

This bibliographic text presents discussions on the concepts of visualities and


countervisualities and their relations with gender, education and contemporary art. The
theoretical foundation is based on the references of Nicholas Mirzoeff (2011; 2016) that
highlights the need to oppose hegemonic visualities from the “claim of the right to look”, that
is, countervisualities. It also presents the works of two contemporary Brazilian artists, Sallisa
Rosa and Élle de Bernardini, who deal with issues related to the oppression of gender, class,
race and sexuality. These artistic productions can be seen as countervisualities that promote

594
criticality regarding the discursive regimes of visualities and enable the deconditioning of
the gaze that was imprisoned for a long time in male artistic productions. Thus, the need for
educational practices that promote a rupture with visualities and their discourses, with
stereotypes and prejudices, is highlighted. For this, knowledge of female artistic productions
is essential, seeking to favor multiple understandings of contemporary visualities, with a view
to a more plural world.

Keywords: Contemporary art. Countervisualities. Gender. visualities.

Visualidades e contravisualidades

Pensando a partir da noção de visualidade, as imagens “[...] podem ser entendidas


como discursos (FERRARI, 2012, p.116) que refletem nas percepções que temos sobre
nós mesmos e sobre o mundo. Essas percepções estão ligadas a relações de poder,
necessitando questionamentos sobre as práticas de olhar, visto que “estamos em
uma sociedade que produz cada vez mais imagens que nos ensinam e nos formam”
(FERRARI, 2012, p.119).

Ou seja, as imagens são produtoras de sentidos e interferem na formação das


subjetividades. “As imagens não apenas nos cercam, mas também nos configuram,
não apenas as interpretamos, mas as construímos, as criamos. Por isso, fazem parte
do processo cultural, constituem o nosso universo simbólico [...]” (ARDÈVOL;
MUNTAÑOLA, 2004, p.13, tradução nossa).

Sobre a noção/conceito de visualidade, o crítico de artes, Hal Foster, no prefácio do


livro Vision and Visuality de 1988, apresenta os termos visão e visualidade que
aparecem no título. Apesar da visão ser compreendida como operação física e a
visualidade como fato social, as duas não se opõem.

A visão é social e histórica, e a visualidade envolve o corpo e a psique.


Mas também não são idênticas: aqui, a diferença entre os termos
sinaliza uma diferença dentro do visual – entre o mecanismo da visão
e suas técnicas históricas, entre o dado da visão e suas determinações
discursivas – uma diferença, muitas diferenças, entre como vemos,
como somos capazes, permitidos ou feitos para ver, e como vemos esse
ver ou o invisível nele. Com retórica e representações próprias, cada
regime escópico procura fechar essas diferenças: fazer de suas muitas
visualidades sociais uma visão essencial, ou ordená-las em uma
hierarquia natural de visão (FOSTER, 1988, p. ix, tradução nossa).
595
A visualidade está ligada às determinações discursivas e ao modo como somos
levados a ver, sendo necessário considerar que “os observadores não são apenas um
par de olhos; eles têm mentes, corpos, gêneros, personalidades e histórias”
(WALKER; CHAPLIN, 2002, p.4, tradução nossa).

Além disso, é preciso considerar o contexto em que estamos inseridos. Ao naturalizar


certas ideias e valores,

nossa história/trajetória cultural vai configurando, gradativamente,


nosso modo de ver o mundo, ou seja, predispondo-nos a vê-lo de
determinadas maneiras. Mas o ato de ver não acontece num vazio
cultural; ao contrário, sempre acontece em contexto, e o contexto
orienta, influencia e/ou transforma o que vemos (MARTINS;
TOURINHO, 2011, p.54).

Mirzoeff (2011; 2016) diz que o surgimento da palavra visualidade foi em 1840, na
língua inglesa, quando Thomas Carlyle, utilizou esse conceito no texto On Heroes,
Hero-workship, and the Heroic in History, para se referir à visão colonialista que tinha
sobre a liderança heroica e a história.

O autor apresenta uma modalidade da visualidade a partir do que Foucault (1999)


conceituou como a “nomeação do visível”, um processo que nomeia, categoriza e
define. Mirzoeff (2016) utiliza como exemplo o trabalho escravo no período colonial
e a prática da plantation e traça um paralelo entre a nomeação do visível e a forma
de organização do trabalho, no qual a prática da plantation acontecia

[...] desde o mapeamento do espaço da plantação até a identificação de


técnicas de cultivo (com finalidades exclusivamente econômicas -
cashcrop), e a precisa divisão do trabalho necessária para sustentá-las.
Depois, a visualidade separa os grupos assim classificados como forma
de organização social. Tal visualidade segregava aqueles que
visualizavam para impedir que estes ganhassem coesão como sujeitos
políticos, como trabalhadores, povo ou nação (descolonizada).
Finalmente, faz parecer certa esta classificação separada e, portanto,
estética (MIRZOEFF, 2016, p.748).

Essa classificação segregadora é vista como a ideal e faz parte de “uma estética do
adequado, do dever, do que é sentido para ser correto, e portanto, agradável e, em
última instância, até mesmo belo” (MIRZOEFF, 2016, p. 748). A produção de uma

596
organização social, a partir da classificação, da separação e da estética é denominada
por complexo de visualidade.

Assim, Mirzoeff (2011; 2016), ao tratar sobre a visualização da história e a legitimação


da hegemonia ocidental, reivindica o direito de olhar e não apenas ver a realidade. O
direito de olhar envolve uma questão de autonomia do sujeito, é um direito de
contrapor-se as visualidades que são conectadas as relações de poder. “A autonomia
reivindicada pelo direito de olhar é, portanto, oposta pela autoridade da visualidade.
Visualizar é a produção de visualidade, ou seja, a construção dos processos da
“história” perceptíveis à autoridade” (MIRZOEFF, 2011, p.3, tradução nossa).

A reinvindicação do “direito de olhar” é chamada por Mirzoeff (2011; 2016) de


“contravisualidade”, na qual o realismo é o meio pelo qual se procura dar sentido a
irrealidade criada pela autoridade da visualidade.

A partir da noção de contravisualidade e sua relação com a educação, Abreu, Álvarez


e Monteles (2019) observam que:

Os discursos hegemônicos fazem parte dos conteúdos disciplinares e


são reforçados pelos arranjos das narrativas visuais hegemônicas.
Nesse caso, o “direito de olhar” e de educar usando as
contravisualidades coloca em evidência a importância de pensar em
outros processos de mediação, de metodologias e práticas pedagógicas
que permitam conexões para além das análises semióticas e cuja
discussão abre janelas para pensar o cotidiano, as temáticas
emergentes, as divergências socioculturais e econômicas, a
diversidade, representatividade, entre outras temáticas (2019, p.840).

No “direito de olhar e de educar usando as contravisualidades”, o presente texto 1


centra-se nas contribuições da Arte contemporânea, mais especificamente quando
trata de temáticas que envolvem as questões de gênero e possibilitam reflexões sobre
as condições das mulheres na sociedade. Essas obras defendem a “reinvindicação do
direito de olhar”, ou seja, podem ser vistas como contravisualidades que possibilitam

1
Recorte da tese de doutorado intitulada “Imagens e questões de gênero no currículo: um estudo com professoras
de Artes Visuais”, apresentada em 01 de julho de 2022 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Pelotas. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

597
o descondicionamento do olhar, que por muito tempo ficou aprisionado nas
narrativas visuais hegemônicas.

Com isso, algumas discussões sobre o campo das artes visuais se fazem pertinentes,
pois é um campo de conhecimento que ainda é preponderantemente dominado e
reconhecido pela presença dos homens, mesmo que contemporaneamente as
mulheres tenham obtido maior visibilidade. Embora este fato possa estar em
constante debate, é notável a maior incidência da divulgação de imagens e obras
criadas por artistas homens, principalmente quando se trata dos cânones ocidentais.

“Na história da arte ocidental, os corpos femininos são um tema recorrente,


construindo e consolidando através de pinturas e esculturas um olhar masculino
sobre a imagem das mulheres em obras [...]” (LOPONTE, 2002, p.285). As mulheres,
provavelmente devido à sua aparição como modelos de desenhos, pinturas, gravuras
e outras artes, são mais reconhecidas por serem retratadas e menos, como
protagonistas e autoras das obras de arte. “[...] elas são sempre apêndices de alguém:
filha de, esposa ou amante de, mãe de... Elas e suas realizações precisam ser
justificadas a partir da sua relação com outros” (LOPONTE, 2002, p. 288).

A historicidade é marcada por relações binárias e hierárquicas que invisibilizam a


participação das mulheres nos diferentes eventos e acontecimentos produtores de
fatos sociais, culturais e políticos, dentre outros. Dessa forma, torna-se evidente a
reformulação dos pensamentos centrados em verdades e que ainda colocam o
masculino em posição superior ao feminino.

Arte contemporânea feminina: ressignificando as práticas educativas

O debate sobre o papel da mulher na sociedade, na chamada segunda onda do


feminismo, inevitavelmente compreendeu o campo das artes, fazendo com que os
preceitos que colocavam as artistas mulheres como inferiores aos artistas homens
fossem revistos. Desse modo, inspiradas pelo pensamento feminista a partir da
década de 1970,

grupos de mulheres artistas, sobretudo nos EUA, mas também em


países europeus, lutaram por objetivos mais gerais como repensar as
políticas de criação artística e de reconhecimento social, assim como
promover a participação de mulheres na arte, também criando imagens

598
que pudessem expandir críticas ao significado de ser mulher num
sistema patriarcal (TVARDOVSKAS, 2013, p. 30).

Tratando especificamente do contexto brasileiro, mesmo que algumas mulheres


artistas já houvessem demonstrado interesse nos temas do feminismo antes do
período da ditadura militar2, somente em seu final é que o feminismo começou a
constituir-se nas artes visuais.

Assim, nos anos de 1980 e 1990 surgiram artistas, que embora não se denominassem
feministas, destacaram temas da arte contemporânea a partir de uma poética
feminina voltada para reinventar as narrativas sobre o masculino e o feminino, e com
isso descontruir estereótipos (TVARDOVSKAS, 2013).

A partir das relações existentes entre arte feminina contemporânea brasileira,


gênero e feminismo(s), percebe-se a importância tanto das produções dos anos 70
(período de reivindicação pela igualdade de gênero) como das produções mais atuais,
em que as temáticas inter-relacionam as opressões de gênero, classe e raça e
sexualidade. Ademais, concorda-se com Tvardovskas (2013, p.21) quando a autora
reitera que “diferentes artistas contemporâneas têm captado e recriado algumas das
importantes problemáticas feministas de nossa época, produzindo discursos na
cultura que são valiosos espaços de compreensão sobre a atualidade”.

No que se refere as práticas educativas com imagens, é preciso refletir sobre a


necessidade de desconstrução dos pensamentos fixos e estereotipados, visto que o
interior das escolas é repleto de visualidades, como: folhas xerocadas, cartazes,
imagens de livros didáticos (e nisso inclui-se as reproduções artísticas ocidentais),
entre outras, que direcionam e condicionam o olhar das/os professoras/es e
estudantes.

2
A ditadura militar brasileira, que se estendeu de 1964 a 1985, passou por diferentes etapas que configuraram
cenários culturais bastante particulares. Em seus anos iniciais houve ainda uma relativa liberdade de expressão, mas
a partir de 1968 até 1972, viu-se o período mais violento e repressivo do autoritarismo. Nesse momento a população
foi obrigada a conviver com a promulgação arbitrária de vários Atos Institucionais (AIs) que cercearam direitos civis
e com práticas de perseguição, tortura e assassinato de militantes políticos e de opositores ao regime. Com o AI-5 e
o recrudescimento do regime, muitos artistas, políticos esquerdistas, intelectuais e acadêmicos são forçados ao
exílio por ter sido presos, por correr o risco de o ser, ou pela truculência que havia tornado intolerável permanecer
no país (TVARDOVSKAS, 2013, p.50).
599
Da mesma forma, inclui-se as visualidades que permeiam o cotidiano vivenciado fora
da escola, tendo em vista que a educação da cultura visual

nos convida a ponderar sobre o imaginário social como se fosse uma


instalação de assuntos sociais que afetam noções, conceitos, opiniões,
valores e apreciações da arte. O resultado é que o estudo crítico da
representação visual na cultura do cotidiano é capaz de engajar a
arte/educação em uma práxis de justiça social (DIAS, 2011, p.68).

Além disso, focaliza-se a importância de levar para a escola, para as aulas de Artes
Visuais, o conhecimento da produção artística das artistas mulheres, pois de acordo
com Coutinho e Loponte

[a] pouca visibilidade feminina recaiu nas escolas e em seus aparatos.


Ao privilegiar a produção masculina, os programas para o ensino de
arte não admitem ou fazem timidamente o discurso politizado das
artistas. Essa é uma das contradições que ainda impregnam os espaços
escolares e os colocam em defasagem a outros segmentos sociais que
apontam, atualmente, maiores avanços no que diz respeito à atuação
efetiva e presença das mulheres (COUTINHO; LOPONTE, 2015, p.186).

É preciso priorizar que as artistas sejam apresentadas, por meio de suas obras (em
forma de reproduções de imagens) nas aulas de Artes Visuais, motivando as/os
estudantes, ao conhecimento da produção feminina/feminista e artística
contemporânea. Pois é necessário “romper com o sistema de reprodução dos
códigos e significações dos discursos dominantes sobre as representações
identitárias e trazer à superfície artistas e imagens que não fazem parte dos discursos
oficiais” (ABREU, 2015, p.3928).

Diante do exposto, e compreendendo a importância das temáticas que envolvem


artes visuais, cultura visual e gênero, busca-se destacar, a seguir, dois trabalhos de
duas artistas contemporâneas brasileiras que nos possibilitam refletir sobre a
“reinvidicação do direito de olhar” (MIRZOEFF, 2011; 2016).

A artista Sallisa Rosa, de origem indígena, nasceu em Goiânia, GO, em 1986. Dedica-
se a investigações contemporâneas de imagens e temas que a atravessam, como a
sua própria identidade, o universo feminino, o futuro, a ficção e a descolonização.
Seus trabalhos evidenciam a trajetória e resistência dos povos indígenas, na luta por
demarcação de terras e pelo protagonismo das mulheres indígenas na militância nos

600
movimentos contemporâneos, que tornam evidente a existência de indígenas
urbanos na população do país (LEME; PEDROSA; RJEIILLE, 2019).

No vídeo “Rede” (Figura 1), Sallisa Rosa apresenta uma sequência de imagens
produzidas com o celular e que circulam nas redes sociais. Nessas imagens, mulheres
indígenas aparecem em redes (sozinhas ou coletivamente) em vários e diferentes
contextos: na aldeia, ao ar livre, com animais etc. A rede e a identidade indígena são
os elementos em comum no repertório de imagens, mas o trabalho de Sallisa Rosa se
fundamenta em torno daquilo que se move, que se transforma (DINIZ, 2019).

Figura 1: “Rede” (Vídeo 03'11''), 2019.


Fonte: VAIVÉM, 2019 (coleção da artista).

De acordo com a artista, a “Rede” (em primeira pessoa, no vídeo) é quem narra a
história das constantes violações ontológicas que tem sofrido, reafirmando sua
dimensão política:

“fui representada por alheios

julgada como objeto

recebi corpos que não me

pertencem

caí em definições coloniais

foi exotizada, desprovida,

inoportuna

tantas vezes

601
cercada por paredes frias

mas não embalei sonhos a toa

hoje estou aqui para dizer que não

sou mais um objeto.

às vezes me sinto dividida

com uma crise de identidade

sou um lugar de movimento que se

forma com o corpo

independente de onde eu estiver

armada

sou eu que sustento o corpo.

o que sustenta o corpo é a

identidade”

Sallisa Rosa procura trazer reflexões sobre o longo processo de colonização do Brasil,
e a “Rede”, enquanto sujeito, exige, uma iconografia crítica (DINIZ, 2019). Essa
produção da artista se aproxima das ideias propostas pela autora María Lugones
(2014), sobre as relações entre colonizador e colonizado/a, e a dicotomia hierárquica
da modernidade colonial que distingue o “humano” e o “não humano”.

Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as


escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas –
como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem
europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/ agente,
apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização,
heterossexual, cristão, um ser de mente e razão (LUGONES, 2014,
p.936).

A “Rede”, como sujeito, afirma que foi representada por alheios (os colonizadores, homens
brancos europeus) e julgada como objeto, recebeu esses corpos, que não lhe pertenciam,
caindo em definições coloniais (o “objeto” de dormir dos “não humanos”).

602
Lugones (2014) apresenta ainda o conceito de Walter Mignolo (2000)3 sobre
“diferença colonial” para se pensar sobre a colonialidade de gênero. Assim, a
diferença colonial se refere ao espaço onde a colonialidade de poder é exercida.

Ver a colonialidade é ver a poderosa redução de seres humanos a


animais, a inferiores por natureza, em uma compreensão esquizoide de
realidade que dicotomiza humano de natureza, humano de não-
humano, impondo assim uma ontologia e uma cosmologia que, em seu
poder e constituição, indeferem a seres desumanizados toda
humanidade toda possibilidade de compreensão, toda possibilidade de
comunicação humana (LUGONES, 2014, 946).

Sallisa Rosa, assim como Lugones (2014), destaca a necessidade de um pensamento


de(s)colonial, especialmente no que se refere a gênero, mostrando através de sua
arte que é preciso rever a história. A “Rede” não é um simples objeto, mas sim um
“lugar”, que simboliza e marca identidades.

A partir de uma concepção contrassexual, a artista, bailarina e mulher transexual,


Élle de Bernardini, nascida no ano de 1991, em Itaqui, RS, apresenta obras voltadas
para sua biografia. A artista vive e trabalha em São Paulo e suas obras contemplam
performances, vídeos, fotografias, pinturas e instalações e abordam questões
referentes a gênero, sexualidade, identidade, biopolítica e relações de poder e
controle sobre o corpo pelo sistema. A artista questiona os limites binários impostos
socialmente (masculino e feminino; loucura e sanidade; arte e pornografia) (LEME;
PEDROSA; RJEIILLE, 2019).

A série de foto-performances, “A Imperatriz” (Figura 2), possui inspiração em figuras


femininas que exerceram poder na história mundial, como: Elizabeth I, Cleópatra,
Nefertiti, dentre outras. Bernardini descreve que esse trabalho surgiu de um desejo
por preencher uma lacuna histórica de pessoas transexuais na história da arte. Em
conformidade, Abreu (2010) aponta que:

A heterossexualidade segue sendo o padrão que impõe a conduta ideal


das identidades sexuais e, como não podia ser diferente, a família, os
processos de ensino, os discursos institucionais e as práticas do

3
Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges and Border Thinking. Princeton: Princeton
University Press, 2000 (LUGONES, 2014). Histórias Locais / Projetos Globais: Colonialidade, Conhecimentos
Subalternos e Pensamento de Fronteiras. Princeton: Imprensa da Universidade de Princeton, 2000 (tradução nossa).
603
cotidiano são os pilares que conduzem, ditam e normalizam os papéis
e as regras sexuais. No entanto, contraditoriamente, a
homossexualidade, a bissexualidade, os intersexuais, os travestis, o
transformista, a androgenia e a ambivalência, são sujeitos cada vez
mais visíveis, mas, ainda, marginalizados nos lugares onde circulam,
mediam e estabelecem suas relações (ABREU, 2010, p.200).

Bernardini afirma que a obra faz com ela exponha seus privilégios de aparência
feminina, branca e de classe média, sem esquecer que é uma pessoa transexual, que
passa por mecanismos de “aceitação e rejeição”, inscritos nos corpos a partir de
códigos que envolvem a aparência (raça, gênero, orientação sexual) e riqueza (classe
social). Além disso, para a artista, a questão de ser uma pessoa transexual a coloca na
margem do sistema, mas quando se veste de “Imperatriz”, percebe o tratamento
diferenciado por parte das pessoas e o seu corpo transexual é anulado (BERNARDINI,
2019).

Figura 2: “A imperatriz sentada” Foto-performance, 2018.


Fonte: ARTSOUL, 2022.

Considerações Finais

A educação da cultura visual busca questionar e ressignificar as práticas educativas,


visto que os discursos dominantes que se apresentam através dos recursos visuais,
controlam e determinam como deve ser a conduta ideal de professoras/es e
estudantes, estabelecendo normas e padrões a serem seguidos.

604
Com isso, destaca-se no presente texto, a necessidade de educar a partir das
contravisualidades, ou seja, a partir das produções artísticas contemporâneas
femininas que possibilitam uma ruptura de pensamento através de atos considerados
subversivos, favorecendo dessa forma uma nova apreensão das visualidades.

Sobre os trabalhos das duas artistas, percebe-se que Sallisa Rosa apresenta o
protagonismo das mulheres indígenas, no movimento de resistência e luta pelos
direitos dos povos indígenas; e ainda destaca a necessidade de se rever a história
desses povos, a partir de um pensamento de(s)colonial. Já o trabalho da artista Élle
de Bernardini propõe questionamentos sobre o modelo de gênero binário, a partir
de uma proposta contrassexual, que situa os corpos e não as oposições e divisões
impostas socialmente.

Assim, as produções artísticas, apresentadas neste texto, viabilizam a “reivindicação


do direito de olhar” sobre as opressões de gênero. Além disso, apontam para a
necessidade e importância da reinvenção das práticas educativas, evidenciando que
o ensino das Artes Visuais, ao contemplar aspectos da educação da cultura visual,
promove a criticidade quanto aos regimes discursivos das visualidades.

Referências

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contemporaneidade. Visualidades. v 8, n 1, p.191-205, 2010. Disponível em:
https://revistas.ufg.br/VISUAL/issue/view/1144 Acesso em: 13 set. 2022.
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desde a perspectiva crítica feminista e da cultura visual. In: Anais do 24º Encontro
Nacional da ANPAP: Compartilhamentos na Arte: Redes e conexões. Santa Maria, 2015. p.
3927-3942. Disponível em:
http://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s12/carla_de_abreu.pdf Acesso em: 13 set.
2022.
ABREU, Carla Luzia de; ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina; MONTELES, Nayara Joyse Silva. O
que podemos aprender das contravisualidades? In: Anais do 28 Encontro Nacional da
ANPAP: Origens. Goiânia: ANPAP, 2019. p. 831-846. Disponível em:
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Silva_831-846.pdf Acesso em: 13 set. 2022.

605
ARDÈVOL, Elisenda.; MUNTAÑOLA, Nora. Representación y cultura audiovisual en la
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ARTSOUL. Entrevista com Élle de Bernardini. Disponível em:
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BERNARDINI, ÉLLE de. A imperatriz, 2019. Disponível em:
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COUTINHO, Andréa Senra; LOPONTE, Luciana Gruppelli. Artes visuais e feminismos:
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DIAS, Belidson. O i/mundo da educação da cultura visual. Brasília: Pós-graduação em arte
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DINIZ, Clarissa. Redes. In: V132 VAIVEM. Curadoria e organização editorial: Fonseca. São
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LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis,
SC, 22(3): 935-952, set.-dez., 2014.
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MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (orgs.). Educação da cultura visual: conceitos e
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MIRZOEFF, Nicholas. The right to look: A Counterhistory of Visuality. Durham: Duke
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https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472 Acesso em:
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606
TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de
mulheres no Brasil e na Argentina. 2013. Tese (Doutorado-PPGH) - Universidade Estadual
de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2013.
V132 VAIVEM. Sallisa Rosa, vídeo: Rede. Curadoria e organização editorial: Fonseca. São
Paulo: Conceito, 2019. 320 p.
WALKER, John; CHAPLIN, Sarah. Una introducción a la cultura visual.1 ed. Barcelona:
Ediciones Octaedro, 2002.

Mini Currículos

Fabiana Lopes de Souza


Doutora em Educação (PPGE/FAE/UFPel). Mestra em Artes Visuais (PPGAV/CA/UFPel). Especialista
em Artes com área de concentração em Artes Visuais e Licenciada em Artes Visuais pelo Centro de
Artes/UFPel. E-mail: fabiana.lopess2013@gmail.com

Maria Cecilia Lorea Leite


Doutora em Educação (UFRGS). Mestrado em Educação (PUC/RS). Graduação em Direito (UFPel) e
Licenciatura em Letras (UCPel). Realizou estágio pós-doutoral na Université Paris 8. Professora da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação (UFPel). Líder do grupo de
pesquisa: Laboratório Imagens da Justiça (CNPq). E-mail: mclleite@gmail.com

607
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS – AS ARTESANIAS NA AGENDA DA PESQUISA
EM ARTE E EDUCAÇÃO

DECOLONIAL PEDAGOGIES – CRAFTS ON ARTE EDUCATION RESEACRH AGENDAS

Leda Guimarães
PPGACV/UFG, Brasil

Eliane Maria Chaud


FAV/UFG, Brasil

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo apresentar sobre como projetos de extensão e de
pesquisa sobre saberes e práticas artesanais tem pautado agendas docentes no que concerne
à formação para a pesquisa no contexto da Faculdade de Artes Visuais da UFG. As diversas
experiências aqui apresentadas tiveram como objetivo propiciar uma formação mais crítica
de estudantes de artes visuais que vá além das formas de artes regularmente estudadas no
currículo. O texto faz menção a projetos e planos de iniciação científica realizados em
diferentes épocas, que revelam uma busca de atravessar conteúdos curriculares
hegemônicos colocando na agenda docente o artesanato, trabalhos manuais e demais
manifestações populares. Ao longo desse processo, temos dialogado com autores (as) que
discutem sobre arte e cultura popular tais como Barbosa (2010), Frota (2005), Guimarães
(2018), Richter (2003), Rodrigues (2012) na busca de um ensino da arte político, uma vez que
este traz em seu bojo códigos estéticos fundados na separação entre arte das elites, arte
erudita e arte do povo. Nas questões decoloniais, dialogamos com Gomez (2019) e Achinte
(2014) dentre outros que discutem a estética como a base dos processos de colonialidade.

Palavras-chave: Artesanias e saberes populares. Iniciação Científica. Docência e Pesquisa.


Decolonialidade.

Abstract

The present work aims to indicate how an extension and research projects on craft and
handmade work knowledge has guided teaching regarding agendas for research in the
context of the Faculty of Visual Arts of UFG. The various experiences presented here aimed
to provide a more critical training of visual arts students that goes beyond the forms of arts

608
regularly studied in the curriculum. The text mentions projects and plans of scientific
initiation carried out at different times, which reveal a search to cross hegemonic curriculum
contents by placing handicrafts and other popular manifestations on the teaching agenda.
Throughout this process, we have dialogued with authors who discuss about art and popular
culture such as Barbosa (2010), Frota (2005), Guimarães (2018), Richter (2003), Rodrigues
(2012) in the search for a teaching of political art, since it brings in its bulge aesthetic codes
based on the separation between art from elites, erudite art and people's art. In decolonial
issues, we dialogued with Gomez (2019) and Achinte (2014) among others that discuss
aesthetics as the basis of coloniality processes.

Keywords: Artisans and popular knowledge. Scientific Initiation. Teaching and Research.
Decoloniality.

Contextualizando a discussão

Fomentar, discutir e propor ações que envolvam práticas artesanais tem sido o
desafio no qual temos investido em nossas docências no contexto da Faculdade de
Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, atravessando diversos momentos de
maior ou menor aceitação e compreensão do tema no universo da arte.

Os contextos de produção artesanal voltam a ser discutidos na contemporaneidade


como fonte de saberes pedagógicos que englobam formas de conhecimento que
passam por sistemas comunitários, colaborativos e ecológicos nos quais as mulheres,
têm protagonizado tanto formas de sustentabilidade financeira, como ambiental e
cultural. Esses apontamentos dialogam com os estudos decoloniais produzidos na
América Latina onde os saberes dos povos originários tem sido a base para
movimentos de resistência aos processos de colonização. Para Goméz (2019) essa
opção consiste em um conjunto de práticas históricas que foram invisibilizadas
durante cinco séculos e que atualmente começam a emergir no mundo do século XXI
quando assistimos a um processo complexo de reconfiguração da denominada
ordem mundial (2019, p. 10).

O autor também afirma a estética como a base dos processos de colonialidade onde
estão diversas dicotomias de valorações artísticas, culturais, as quais por sua vez,
implicam na constituição do que tem ou não valor pedagógico. Para lidar com esses
conflitos e seus desdobramentos pedagógicos, temos um projeto de pesquisa na UFG
que busca envolver estudantes da Licenciatura em Artes Visuais em projetos de

609
iniciação científica que investiguem temas relacionados a esses conflitos,
promovendo a decolonialidade dos saberes em seus processos de formação
enquanto futuros(as) docentes.

Um dos propósitos desse texto é o de indicar, por um lado, a longevidade de um


interesse de pesquisa atrelado à produção artesanal entendendo seu potencial para
a formação docente de professores de artes visuais, e, por outro lado, apontar como
esse interesse tem gerado ao longo de 20 anos, projetos de extensão e projetos de
pesquisa, Trabalhos de Conclusão de Curso, dissertações e teses. Nesse texto escrito
de forma coletiva, focaremos nos projetos de extensão e nos projetos de iniciação
científica (PIBIC) apresentados e desenvolvidos no âmbito da FAV reunindo discentes
tanto do bacharelado quanto da licenciatura em Artes Visuais.

Em 2000, tivemos o primeiro projeto de iniciação científica com o intuito de mapear


comunidades artesãs no estado de Goiás identificando formas de produção, ensino
e aprendizagem dos seus saberes-fazeres. Esta pesquisa se debruçou com mais
profundidade na produção de panelas das mulheres da Cidade de Goiás. Naquele
tempo, a aprovação desse projeto causou muita estranheza por parte de professores
que acreditavam que o assunto de certa maneira profanava o caráter vanguardista
que se buscava com a ênfase na arte contemporânea como base do currículo. Apesar
das resistências, o projeto avançou com bolsistas que vieram da área de design
gráfico, resultando no belo catálogo Objetos Populares de Goiás (GUIMARÃES et al.,
2002) com foco na produção de cerâmica das paneleiras com as quais convivemos ao
longo de dois anos.

610
Figura 1: Página do Catálogo A natureza Feminina do Cerrado onde se vê interior de casas das artesãs
pesquisadas. Arquivos das autoras.

Nos anos de 2004/2005, retornamos à cidade de Goiás Velho e expandimos o


contato com as artesãs, para além das ceramistas, conversando com fazedoras de
colchas de retalho, bonecas, flores e também de panelas. O Projeto Artes e atos
goianos - A natureza feminina do cerrado, foi realizado no ano de 2005 na Cidade de
Goiás e teve apoio do Programa de Extensão do MEC – Proext da UFG. Participaram
deste projeto 9 mulheres com diferentes modos de produção em cerâmica, bonecas
de pano e corda, colchas de retalhos de pano, bonecos farricocos, enfeites com
sementes do cerrado. A pesquisa teve como foco a produção artesanal e a cultura
popular, os saberes tradicionais ressaltando sua importância na construção da
identidade histórica e cultural da Cidade de Goiás. Durante um ano, identificamos
artistas artesãs, documentando sua produção e registrando suas formas de conceber
e realizar seus trabalhos. Também registramos as formas de aprendizagem, como e
com quem cada uma daquelas mulheres tinha aprendido e se tinham preocupações
com a continuidade do processo. Outro aspecto que chamou a atenção das
pesquisadoras na época, foi a “estética do cotidiano” visível nas suas residências. De
acordo com Certeau:

Um lugar habitado pela mesma pessoa durante um certo tempo esboça


um retrato semelhante, a partir de objetos (presentes ou ausentes) e

611
dos costumes que supõem. O jogo das exclusões e das preferências, a
disposição do mobiliário, a escolha dos materiais, a gama de formas e
de cores (1994, p. 204).

O espaço doméstico foi percebido como componente fundamental na criação das


diferentes produções que foram mapeadas. Uma estética particular que possibilita a
organização de memórias, gestos, gostos, valores (CHAUD; GUIMARÃES, 2005). Esses
detalhes podem ser vistos no catálogo “A natureza feminina do cerrado” com fotos e
reflexões do processo. Além disso, produzimos postais e vídeos, no intuito de
divulgar o trabalho das artesãs. Alguns anos se passaram e retomamos as ações de
investigação em relação aos saberes e práticas artesanais em Goiânia. Em 2015,
desenvolvemos o projeto “Poéticas Compartilhadas: mulheres e afetos no bairro
Itatiaia, com a participação de senhoras da chamada "melhor idade". O bairro está
localizado próximo ao Campus II da Universidade Federal de Goiás, vizinhança que
motivou nosso desejo de gerar aproximações por meio de ações artísticas.

No decorrer do convívio com esse grupo, relacionamos as práticas do crochê ao


cuidar de plantas, atividades características do cotidiano daquelas mulheres,
propondo uma ação na qual fossem construídas peças de crochê com elementos
orgânicos tais como flores e folhas, a serem utilizadas em uma construção coletiva
de uma colcha ou manta.

Os pedaços de crochê também serviram para a elaboração de lambe-lambe1


(impressões em papel) para uma intervenção poética no bairro com os lambes
produzidos. Assim inicia um projeto que buscou não somente uma intervenção
extensionista da universidade em relação à comunidade, mas, principalmente, o
fazer/aprender juntos, ações colaborativas nas quais todas as pessoas envolvidas
ensinassem e aprendessem, compartilhando seus saberes.

ͳ•ƒ†‘ƒ’”‹ À’‹‘ ‘‘’”‘’ƒ‰ƒ†ƒ˜‡”ƒ —Žƒ”‰”—†ƒ†‘‡Ž‘ ƒ‹•’ï„Ž‹ ‘•ǡ‘lambe-lambe foi apropriado


por artistas na produção de —ƒ‡•’± ‹‡†‡pôster artístico, também ‘Ž‘ ƒ†‘‡espaços públicosǤ‘†‡
‘–‡”ˆ”ƒ•‡• —”–ƒ•ǡ’ƒŽƒ˜”ƒ•†‡‘”†‡ǡ‹ƒ‰‡•ǡ‡– Ǥ

612
Figura 2: Reunião das peças de crochê. Fonte: Arquivos das autoras.

Em 2020, a pandemia exigiu outras formas de investigação, que não fossem


presenciais. Nossa atenção se voltou para as possíveis maneiras de re-existências das
artesãs e daí surgiu o projeto “Pedagogias artesãs: arte, educação e decolonialidade”.
Em 2021, a então licencianda Kárita Paul de Melo Pedra conduziu o plano de trabalho
“Pedagogias artesãs e processos de visibilidade em tempos de pandemia”, no intuito
de mapear espaços virtuais de registro e reflexão sobre as práticas artesanais. A
pesquisa nas redes sociais encontrou em diferentes lugares do país um número
grande de artesãs organizadas em associações, como por exemplo: o coletivo de
Mulheres Indígenas e Negras Quilombolas (Goiânia, GO); Associação Mulheres
Coralinas (Goiás, GO), Associação Comunitária das Mulheres de Curralinho
(Morrinhos, CE), Associação da Central de Compras das Bordadeiras de Teresina
(Teresina, PI), dentre muitos outros. Observamos que a data de criação da maioria
dos perfis digitais de comunidades artesãs se deu no período pandêmico.

Constatamos que a utilização das redes sociais tem se tornado cada vez mais
necessária, envolvendo a cooperação e a busca por novas aprendizagens sobre o
funcionamento dos dispositivos tecnológicos virtuais. Esse fato, ressalta a percepção
de que a atividade do artesanato não se resume apenas na produção, mas também

613
na circulação de processo pedagógicos, agora bem evidentes nas plataformas
digitais.

As buscas pelos coletivos de artesãs e por artesãs que trabalham individualmente se


deram, em parte, pela rede social Instagram, grupos com outras características
surgiram nesse contexto, como por exemplo, o Coletivo de Mulheres Indígenas e
Negras Quilombolas (@mulheresindigenasequilombolas). Colocamos como exemplo
a descrição do grupo em sua página oficial do Instagram:

O coletivo de Mulheres Indígenas e Negras Quilombolas vem com a


intenção de nos apoiar, um espaço de escuta, reivindicações, afeto e
cura. Nossos laços se estreitaram em abril de 2019 com o desejo de
participar do Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília e da I Marcha
mulheres indígenas que teve como tema “Território nosso corpo, nosso
espírito”. Foi necessário nos organizar enquanto coletivo, fazer
reuniões, para conseguir um ônibus. Nos aproximamos para buscar
vias de participar desse movimento de luta pela terra. Nosso grupo foi
fortalecido por esse desejo, assim fundamos nosso coletivo.
Financiamento coletivo aberto pelo grupo:
www.vakinha.com.br/vaquinha/apoiem-asartesas-indigenas-e-
quilombolas (Coletiva de Mulheres Indígenas e Negras Quilombolas,
2020).

Após uma triagem e levantamento de associações, coletivos e criadoras


independentes, realizamos entrevista com uma artesã da Cidade de Goiás. Desta
entrevista, obtivemos material para aprofundarmos em questões que até então
investigamos teoricamente, a saber, a intrínseca relação da aprendizagem dos
saberes artesanais com o âmbito econômico e de subsistência, as dinâmicas da
organização comunitária como estratégia de manutenção da produção e da venda
dos artefatos, perpassando também a discussão acerca dos códigos estéticos
fundados na separação entre arte das elites, arte erudita e arte do povo. Em 2021,
ainda em pandemia e sem poder ir a campo de forma presencial, o projeto se renova
e uma nova bolsista é selecionada com um novo plano de trabalho com o título
“Pedagogias artesãs: arte, educação e decolonialidade”. A pesquisa nas redes
continuou com a investigação de perfis de artesãs e comunidades, através da
plataforma digital Instagram, utilizando Hashtags (tais como #artedopovo;
#artepopular; #artesanatogoias) como instrumento de pesquisa, encontrando perfis
divulgadores de peças artesanais, associações, comunidades e colecionadores. Para

614
a entrevista, foram selecionados dois grupos: a comunidade de louceira “Chã da pia”
em Areias, Pernambuco, e a olaria “Terra de Vênus”, em Goiânia. A justificativa para
essa seleção foi justamente a recorrência da relação afetiva das artesãs com o
processo das artesanias, as questões da hereditariedade dos saberes artesanais
(processo pedagógico de ensino-aprendizagem intergeracionais) e a venda das peças
artesanais como sustento de famílias (tais recorrências são utilizadas nesses perfis
com a função de fomentar valores socioculturais e afetivos às peças, legitimando o
trabalho das artesãs). No perfil da comunidade de louceiras “Chã da pia”, em Areias
(Pernambuco) há a apresentação das peças, dos processos, fotografias de casas-
atelier da comunidade e a apresentação de algumas das artesãs contando suas
histórias e saberes no envolvimento das artesanias (com ênfase no ensino-
aprendizagem na relação mãe e filha).

Nesse contexto de pandemia e pesquisa em redes sociais, as aproximações reais não


foram favorecidas. Se por um lado, conseguimos mapear um grande número de perfis
ligados ao artesanato, à arte popular, aos coletivos e associações, por outro, as
tentativas de marcar conversas (mesmo que online) não foram muito bem-sucedidas.
Ao contrário do campo, quando a aproximação se fez mais direta, onde os pedidos
para gravar se davam após os primeiros entrosamentos, os contatos via Instagram
podem ter gerado desconfianças de várias ordens. Ainda estamos refletindo sobre
essas dificuldades como dados importantes para a pesquisa.

Considerações finais

Para Rodrigues (2012) “[...] o primeiro grande entrave no caminho da arte parece ser,
ainda a dicotomia entre arte e artesanato. Dicotomia antiga, porém, que ata os pés
da arte e não a deixa caminhar para frente, e a frente é a valorização das diferentes
formas existente no mundo” (p. 86). Nas instâncias de formação de profissionais para
o exercício, seja da profissão de artista ou artista/docente, a história da arte, nos
seus diferentes tempos históricos, tem como base os preceitos europeus de beleza e
de valor estético. Não é que as outras formas não aparecem eventualmente nos
currículos, a questão é como aparecem. Geralmente, são tratadas como expressões
exóticas e folclorizadas.
A pesquisa é importante tanto para reivindicarmos espaço, como para evitarmos uma

615
visão romântica e homogênea desses contextos. Para Goméz (2019) antes de tudo, é
necessário atentar para o que consiste na opção decolonial.

Esta opción es la conceptualización de un conjunto de prácticas


históricas que fueron invisibilizadas durante cinco siglos y que
actualmente empiezan a emerger en el mundo del siglo XXI, cuando
asistimos a un proceso complejo de reconfiguración del denominado
orden mundial. Desde la perspectiva decolonial el análisis no se realiza
desde alguna disciplina, sino desde la historia de la colonialidad, desde
la exterioridad producida por la modernidad/colonialidad (2010, p. 10).

O autor também afirma a estética como a base dos processos de colonialidade. Nesse
processo, estão diversas dicotomias de valorações artísticas, culturais, as quais por
sua vez, implicam na constituição do que tem ou não valor pedagógico no conteúdo
do campo da arte. Assim, temos dentre outros, a dicotomia entre arte e artesanato,
que tem sua gênese na concepção das “belas artes” em detrimentos dos ofícios.

No entanto, não podemos criar uma visão romântica e homogênea desses contextos.
A produção artesanal é ampla e diversa, está em contextos urbanos, suburbanos, em
comunidades rurais. Também, são muitos os conflitos presentes nos processos,
desde a interação com o turismo, com os processos de educação nos quais,
geralmente, esses saberes não estão presentes, com o desinteresse das novas
gerações pelas atividades de pais, mães e avós, rompendo um ciclo de formação
familiar e comunitária. Também estão presentes, como em qualquer outro contexto,
os conflitos identitários, sociais, étnicos, as questões de gênero, e muito mais.
Saberes e fazeres se reinventam, são modificados dentro de cada contexto e lutam
por espaços de afirmação, existência e resistência.

Lira et al. (2019) ao contextualizarem o estudo da cerâmica produzida no quilombo


de Conceição das Crioulas, distrito de Salgueiro, em Pernambuco, apontam para três
aspectos que podem servir como exemplos para ratificar os argumentos aqui
colocados. Primeiro, identificam como o local, deve a sua existência a processos
históricos de lutas e resistência de seis mulheres negras que ali fixaram residência e
iniciaram a luta pela conquista de suas terras e o enfrentamento pela demarcação e
titulação das mesmas. O segundo, é que essas mulheres constituíram o seu lugar no
mundo por meio do trabalho produzido com as mãos, incluindo aí a cerâmica. O
terceiro aspecto, é que a comunidade vai se afirmando na continuidade dessa luta

616
pelos direitos da terra, nas formas de produção e trabalho, e na luta por escolas com
uma pedagogia própria, conectada com seus tempos e modos de fazer e existir.

Sabemos que não existe neutralidade na escolha de temáticas e de processos


investigativos. Achinte (2014, p.152) chama a atenção para três pontos fundamentais
para nosso processo de trabalho na articulação das dimensões da arte, docência e
investigação que tem várias implicações para pensarmos os desdobramentos das
investigações que temos realizado ao longo desse tempo: a) a necessidade de se rever
o que entendemos por arte em nossos tempos, partindo da problematização do
eurocentrismo como processo hegemônico; b) a investigação apresenta para o
docente várias interrogações a respeito do seu trabalho como docente e sua relação
com o ensino de artes e; c) interpela os processos investigativos quanto o sentido
que a investigação há que manter com relação à educação de forma mais ampla e
com o ensino de artes em particular (tradução nossa). Ou seja, os caminhos
metodológicos foram sendo redesenhados ao longo do processo afetados pela inter-
relação entre docência, processos de criação e processo pedagógicos numa
perspectiva crítica, considerando diferente saberes e pontos de vista sobre
aprendizagens artísticas.

Investigar formatos e contextos de pedagogias artesãs justifica-se em um curso de


formação de professores em Artes Visuais, que tem nos seus propósitos a formação
docente crítica, voltada para a diversidade e para o desenvolvimento de
competências multi, inter e transculturais. Retomando Gomez (2020), podemos dizer
que a investigação de pedagogias artesãs, pode ajudar a fragilizar muros curriculares
que sustentam as distâncias epistêmicas que barram formas artísticas, culturais e
pedagógicas ligadas a processos artesanais historicamente excluídos do universo da
chamada alta cultura.

Esa proximidad cultural es el resultado de la voluntad de acercamiento


de los Estados, las instituciones y los artistas de la periferia a la cultura
de los estados del centro, desde donde se trazan los términos de la
espacialización. Y cuando pareciera que la distancia epistémica y
estética se puede abolir completamente, que es posible para la periferia
acceder a la cultura, al desarrollo, a la historia del arte, o al progreso,
entonces se hace visible el muro de diferencia colonial o imperial
(GOMEZ, 2020, p. 8).

617
Concordando com Ortiz-Ocaña (2017, p. 95), para o fato de que:

“[…] es necesario no ignorar las urgencias que nos convocan y las


emergencias que nos invitan a la resistencia epistemológica a partir de
la desobediencia epistémica. Hoy es un imperativo decolonizar la
educación, transitar hacia la decolonialidad del currículo y proponer
un currículum decolonial”.

Acreditamos que pedagogias artesãs, podem nos oferecer pistas para exercícios de
ensino-aprendizagem menos colonizados, atravessando nossas subjetividades e
formas de ensino-aprendizagem nas artes e culturas visuais.

Referências

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desafíos decoloniales de nuestros días: pensar en colectivo.- 1a ed. - Neuquén : EDUCO -
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BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. Uma questão de política cultural: mulheres artistas,
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o que ensinar. Portal aprendiz, São Paulo, 12 ago. 2016. Disponível em:
https://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/08/12/pioneira-da-arte-educacao-ana-mae-
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CIRILLO, José; KINCELER, José Luiz; OLIVEIRA, Luiz Sérgio (Organizadores). Outro ponto
de vista: práticas colaborativas na arte contemporânea. Vitória: PROEX/UFES, 2015.
CHAUD, Eliane Maria. Poéticas Compartilhadas. Mulheres e afetos no bairro Itatiaia. Edição
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CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano: 1. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
COLETIVA DE MULHERES INDÍGENAS E NEGRAS QUILOMBOLAS. Descrição do grupo.
Goiânia, 12 abr. 2020. Instagram: @mulheresindigenasequilombolas. Disponível em:
https://www.instagram.com/mulheresindigenasequilombolas/. Acesso em: 23 nov. 2022.

618
GÓMEZ, P. P. Decolonialidade estética: geopolíticas do sentir, do pensar e do fazer. Revista
GEARTE, [S. l.], v. 6, n. 2, 2019. DOI: 10.22456/2357-9854.92910. Disponível em:
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https://periodicos.ufba.br/index.php/rcvisual/article/view/5977. Acesso em: 31 ago.
2021.

Mini Currículos

Leda Guimarães
É professora/pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de
Artes Visuais da UFG, onde trabalha com formação docente nos cursos das Licenciaturas presencial
e à distância. Ex-coordenadora do PPG em Arte e Cultura Visual. Foi presidente da FAEB no período
2017/2018. E-mail:leda_guimaraes@ufg.br.

619
Eliane Chaud
É Professora da Faculdade de Artes Visuais da UFG, curso de Bacharelado. Pesquisa processos de
criação, poéticas compartilhadas, arte em comunidade. E-mail: elianechaud@gmail.com.

620
BEIRANDO CAMINHOS PARA O ENSINO DAS ARTES VISUAIS EM UMA
PERSPECTIVA DESCOLONIAL

NEARING WAYS TO TEACH THE VISUAL ARTS IN A DESCOLONIAL


PERSPECTIVE

Daniella Villalta
Escola Vira Virou, Brasil

Resumo

Esse é um estudo exploratório a partir de uma breve, e ainda parcial, revisão de literatura
sobre teorias não coloniais para o ensino das artes visuais. Em grande parte, é fruto de
questionamentos surgidos ainda durante minha pesquisa de doutoramento sobre a
produção de imagem nas culturas amazônicas, e as implicações do apagamento dessa
narrativa visual na história arte, e que agora se desdobram nas práticas de ensino das Artes
Visuais para os anos iniciais do ensino Fundamental. O objetivo principal é organizar um
quadro teórico de referência inicial, a partir de conceitos que orientem uma prática de
ensino descolonial para a Arte, frente à permanência de temas, conteúdos e atividades
centradas na cultura europeia ou norte-americana. De maneira mais específica, espero
beirar caminhos capazes de deslocar a ênfase dada à arte Ocidental e seus cânones - tomados
com única fonte relevante de referências no ensino das Artes -, para outras culturas
colocadas em situação periférica, e que apesar de seu apagamento histórico e
marginalização, são fontes de conhecimento e experimentação estética fundamentais para
a formação de indivíduos capazes de relacionar a produção artística com análise, informação
histórica e contextualização tão necessárias ao alargamento de seu repertório visual e
favorecendo sua compreensão da diversidade cultural que insiste e persiste em se consolidar
como prática política no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: Ensino. Artes Visuais. Descolonialidade.

Abstract

This is an exploratory study based on a brief, and still partial, literature review on non-
colonial theories for teaching the visual arts. In large part, it is the result of questions that
emerged during my doctoral research on the production of image in Amazonian cultures,
and the implications of the erasure of this visual narrative in art history, and which now
unfold in the teaching practices of Visual Arts for the early years of elementary school. The
main objective is to organize an initial theoretical framework, based on concepts that guide

621
a decolonial teaching practice for Art, in view of the permanence of themes, contents and
activities centered on European or North American culture. More specifically, I hope to go
along paths capable of shifting the emphasis given to Western art and its canons - taken as
the only relevant source of references in the teaching of the Arts -, to other cultures placed
in a peripheral situation, and that despite their historical and marginalization, are
fundamental sources of knowledge and aesthetic experimentation for the formation of
individuals capable of relating artistic production with analysis, historical information and
contextualization so necessary to expand their visual repertoire and favoring their
understanding of the cultural diversity that insists and persists in consolidating itself. as a
political practice in the contemporary world.

Keywords: Teaching. Visual arts. Decoloniality.

Introdução

O ensino de Artes Visuais vem sendo marcado há alguns anos por mudanças
conceituais e metodológicas e tem sido um desafio que instiga e exige mudanças de
percepção em relação aos seus temas e às suas práticas, sobretudo em tempos atuais,
quando há uma urgência social, política, ética e moral a respeito de processos que
descolonizem os campos de conhecimento em favor da visibilidade de
conhecimentos diversos que compõem o tecido social. Essas transformações no
ensino também refletem como a disciplina científica da História da Arte tem passado
por mudanças significativas, seja do ponto de vista de seus objetos de estudo, seja
pelas teorias e métodos que orientam suas análises. À medida em que crescem os
esforços significativos de pesquisadores no sentido de incorporar narrativas mais
complexas e diversas sobre trocas artísticas globais, aumenta também a inclusão de
novos objetos aos cânones da área e uma consequente revisão de pressupostos
teórico-metodológicos para o tratamento de tradições artísticas singulares
localizadas fora da perspectiva hegemônica europeia ou norte-americana. No caso
do Brasil, essas transformações da disciplina buscam corrigir os lapsos deixados pela
exclusão de parte significativa da cultura visual de seu próprio território, uma vez
que a construção do campo da história da arte por aqui se fez via tradição europeia.

Assim como a academia, a escola é, historicamente, espaço de manutenção da


hegemonia de saberes comprometidos com a colonialidade e ambas precisam ser
descolonizadas, trazendo-se para o centro das discussões outras culturas, suas
622
narrativas e epistemologias, artes e estéticas invisibilizadas pela força do projeto
colonial em desqualificar o diverso como ilegítimo, folclórico ou ingênuo.

É certo que os Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram um peso


equivalente para a Arte em termos de importância como disciplina, mas isso não
resolveu nem de longe os problemas de seu ensino, uma vez que não recomendam a
pluralidade, mas são instrumento de homogeneização dos temas. Outro aspecto é a
própria formação dos professores, que ainda carece de estímulos e aprofundamento
para garantir minimamente a organização de uma prática docente que seja capaz de
favorecer o conhecimento sobre Artes Visuais que relacione a produção artística com
análise, informação histórica e contextualização (BARBOSA, 2012; MOURA, 2019).

Para ampliar minha compreensão sobre a colonialidade no ensino da arte, recorro a


autores que expliquem a insurgência do termo de(s)colonial no contexto latino-
americano, como acirramento da crítica aos termos anteriores utilizados para
discutir os sinais de falência dos projetos da modernidade, ou seja, os problemas pós-
coloniais ou pós-modernos. Também me apoio em pesquisas realizadas no campo da
Arte Educação para me situar quanto às práticas para a identificação das dinâmicas
da colonialidade na formação e instrumentalização desses conhecimentos, para
então poder encaminhar os processos da prática descolonial e assim, possivelmente
transformar os parâmetros de percepção e leituras de mundo predominantemente
europeus ou norte-americanos que ainda vigoram na construção dos repertórios
imagéticos da arte.

A exemplo das possibilidades de desenvolvimento de um projeto descolonial para o


ensino das artes nos anos iniciais do Fundamental, trago para esse estudo um
desenho das ações que tenho desenvolvido nos espaços de aprendizagens
disponíveis na escola Vira Virou e que, apesar de ser um projeto experimental, em
construção, tem favorecido trocas práticas que considero importantes para a
transformação dos repertórios dos estudantes, dos colegas professores e auxiliares
de classe, fortalecendo a noção que orienta os princípios da escola que em suas
palavras se esforça

para construir uma proposta pedagógica genuinamente brasileira.


Assim, além dos conhecimentos e referências mundiais que
tradicionalmente compõem o currículo escolar, buscamos acrescentar

623
à grade de conteúdos os conhecimentos de origem Ameríndia e
Africana dos povos que constituem nossa identidade brasileira.
Ampliamos assim as referências em nosso currículo, buscando uma
alfabetização cultural mais rica para nossas crianças (Disponível em
https://www.viravirou.com.br/nossos-diferenciais).

Nesse sentido, reconheço o privilégio de desenvolver esse projeto em um ambiente


que pronuncia e acolhe a diversidade, gerando uma comunidade de aprendizagem
ativa e transformadora.

A descolonização da história da arte como começo de conversa

A partir de pesquisas no campo das Artes Visuais observei os problemas da


hegemonia do pensamento ocidental sobre outras visões de mundo, suas produções
artísticas e expressões culturais. Interessada em estudar a produção artística
amazônica durante meu doutoramento, não encontrei respaldo teórico na História
da Arte para construir meu objeto. Apesar de a arte amazônica, nos últimos quarenta
anos, ter ultrapassado as fronteiras de seus locais de produção atendendo à demanda
de um mercado estrangeiro vorazmente interessado em culturas tradicionais, seus
conhecimentos, medicinas e em sua arte, ela não aparece na literatura especializada,
a não ser quando enquadrada na categoria de arte ingênua, naïf ou algo do gênero.
Para dar sequência à pesquisa, recorri à Antropologia da Arte, campo que já está
avançado nas discussões sobre outros mundos, culturas e cosmovisões possíveis.
Assim, quando ingressei no ensino das Artes Visuais para o ensino Fundamental, já
trazia comigo a convicção de que não se pode saber sobre sua própria identidade
cultural, estudando massivamente referências alheias à sua própria cultura. E quanto
a isso, não há novidade, pois desde a década de 1980 pesquisadores como Ana Mae
Barbosa tratam do problema, mas a necessidade de discussão de práticas
pedagógicas que transformem de fato o cenário colonizado do ensino das Artes
Visuais continua premente e certamente levará mais alguns anos para ganhar
contornos descoloniais mais nítidos e permanentes.

Estar inserida em uma comunidade escolar que repercute as artes e as culturas


brasileiras é uma oportunidade para a prática docente orientada pela abordagem das
relações entre a produção artística, contextos históricos e territórios culturais
singulares, distintos e diversos em relação ao modelo de ensino pautado pelo

624
pensamento colonial. Ou seja, uma prática docente capaz de construir um
conhecimento do fazer artístico que seja atravessado pela multiplicidade de culturas
e seus diversos contextos históricos, cujas referências estéticas possam ser ricas
para as experiências de aprendizagem no campo das Artes Visuais, especialmente no
contexto da cultura brasileira, mas por outro lado, não restrito exclusivamente a ele.

Quanto à noção de diversidade cultural, o termo aponta a busca relativamente


recente pela imaginação de caminhos de rearticulação contra hegemônica dessa
diversidade enquanto fundamento das lutas dos diversos povos e de projetos de
integração regional alternativos e emancipadores, desde saberes e
experiências outras, locais e comunitárias e não exclusivamente recortada na
concepção eurocêntrica de ser e estar no mundo. Mas, segundo BARBOSA (2019),

para definir a diversidade cultural, nós temos que navegar novamente


através de uma complexa rede de termos. Alguns falam sobre
multiculturalismo, outros sobre pluriculturalidade, e temos ainda o
termo mais apropriado - interculturalidade. Enquanto os termos
"multicultural" e "pluricultural" significam a coexistência e mútuo
entendimento de diferentes culturas na mesma sociedade, e o termo
"intercultural" significa a interação entre as diferentes culturas. Isto
deveria ser o objetivo da educação interessada no desenvolvimento
cultural. Para alcançar tal objetivo, é necessário que a educação
forneça um conhecimento sobre a cultura local, a cultura de vários
grupos que caracterizam a nação e a cultura de outras nações
(BARBOSA, 2019. p. 15).

Portanto, promover a interculturalidade é fundamento de uma educação que valoriza


conhecimentos diversos e divergentes, sem os quais não é possível compreender sua
própria identidade cultural.

Arte e educação: estéticas descoloniais para o sentir, o pensar e o fazer

Os processos descoloniais vêm atravessando as diversas áreas do saber e não é


diferente para a Educação e a Arte. Nesses campos, tais processos envolvem a
identificação das dinâmicas da colonialidade que formaram e instrumentalizaram
esses conhecimentos, permitindo finalmente que se fale em descolonialidades, no
sentido de retirar da formação cognitiva e emocional dos outros povos a inculcação
de parâmetros de percepção e leituras de mundo que reforçam a colonialidade.

625
Primeiro foi preciso reconhecer a colonialialidade para então formular seu antídoto
conceitual e prático. Esse conceito não nasce na Europa, que antes lançou outros
termos para explicar os processos contemporâneos, como pós-modernidade ou pós
colonialidade, já desde os anos de 1950. SALES e CABRERA (2021) ressaltam que o
termo pós-colonial aponta para duas vertentes:

a primeira diz respeito ao processo de descolonização dos países do


“Terceiro Mundo” na segunda metade do século XX e quer dizer por
isso libertação, emancipação e independência do imperialismo e do
colonialismo. A outra vertente diz respeito ao pós-colonial como uma
ampla corrente epistêmica, intelectual e política.

Com o “giro colonial”, a partir da década de 1990, organizado por intelectuais latino-
americanos estabelecidos nos Estados Unidos, acontecendo em paralelo na América
Latina, a proposta foi então, radicalizar o enfrentamento e a crítica em relação aos
estudos pós-coloniais e pós-estruturalistas, cujos argumentos continuavam
fundados no pensamento eurocêntrico e que estavam sendo ventilados na Europa.
MIGNOLO (2017) dá um sentido de insurgência, ou levante, à proposta descolonial ao
afirmar não apenas a crise da modernidade como projeto universal de civilização,
mas apontando que esse projeto entrou em colapso a partir da força reativa surgida
em várias partes do mundo e se projetando na produção de artistas que percebem
sobremaneira, o poder da imagem na construção e desconstrução de pensamentos
hegemônicos.

A ocidentalização do mundo não é mais possível, porque um número


cada vez maior de pessoas está resistindo a ser integrada nela. Ao
contrário, as pessoas começam a reexistir. Isso significa imaginar um
modo de viver suas /nossas vidas em vez de doar nossos corpos e
nosso tempo a corporações, nossa atenção e nossa inteligência à
insuportável mídia dominante, e nossa energia aos bancos […].
Respostas de diferentes tipos e níveis têm se tornado visíveis, incluindo
o aparecimento de projetos de des-ocidentalização […] (MIGNOLO,
2017, p. 6).

LEÓN (2019), aponta que a crítica colonial permite compreender a relação estrutural
entre práticas significativas – que podem ser discursivas, visuais ou corporais - e
estruturas de poder globais decorrentes. Como afirma,

626
a crítica decolonial tem sua origem no debate sobre as matrizes de
poder geradas pela colonização nos campos do conhecimento, da
cultura, das representações e em sua constante reestruturação, ao
longo das diferentes ondas de modernização e ocidentalização pelas
quais a América Latina passou (LEÓN, 2019 p. 61).

Para esse estudo usarei o termo descolonial, e à propósito da variação dos prefixos
des ou decolonial, conforme explicam QUINTERO, FIGUEIRA E PAZ CONCHA (2019),

Não há consenso quanto ao uso do conceito decolonial/ descolonial,


ambas as formas se referem à dissolução das estruturas de dominação
e exploração configuradas pela colonialidade e ao desmantelamento de
seus principais dispositivos. Aníbal Quijano, entre outros, prefere
referir- -se à descolonialidad, enquanto a maior parte dos autores
utiliza a ideia de decolonialidad. Segundo Catherine Walsh (WALSH,
Catherine (org.). Interculturalidad, Estado, sociedad: luchas
(de)coloniales de nuestra época. Quito, Universidad Andina Simón
Bolívar/Abya -Yala, 2009), a supressão do “s” não significa a adoção de
um anglicismo, mas a introdução de uma diferença no “des” castelhano,
pois não se pretende apenas desarmar ou desfazer o colonial
(QUINTERO, FIGUEIRA E PAZ CONCHA, 2019. p.16).

A partir do que foi dito, é clara a necessidade de pensar modos de retirar a


exclusividade da perspectiva ocidental, etnocentrada especialmente no continente
europeu, e mais recentemente norte-americano, deslocando o olhar para as bordas
onde estão as fontes diversas de referências para a formação de repertório visual dos
estudantes dos anos iniciais do ensino Fundamental, e oferecendo elementos para o
conhecimento e o reconhecimento de sua própria identidade cultural a partir do
ensino das Artes Visuais. Quanto a isso, HOMI (1989) apud BARBOSA (2019), esclarece
que

"1. Identidade é ser para si mesmo e para o outro; consequentemente,


a identidade é encontrada entre nossas diferenças." 2. A função das
artes na formação da imagem da identidade lhe confere um papel
característico dentre os complexos aspectos da cultura. Identificação
é sempre a produção de "uma imagem de identidade e transformação
do sujeito ao assumir ou rejeitar aquela imagem reconhecida pelo
outro HOMI, 1989. p.139 apud BARBOSA, 2019. pp. 15 e 16)".

Basta atentar para a realidade para perceber que estão em disputa modos de
entender o mundo. Um deles se concentra na visão de um mundo único, outro o

627
entende como sendo múltiplo, onde outros mundos são possíveis para além da
organização capitalista da vida social. Isso implica diretamente na percepção de que
existem outras manifestações culturais, artísticas e técnicas legítimas, originais e
consistentes como expressão de visões de mundo singulares, diferentes e
divergentes, isto é, fora da zona de convergência cultural que organiza o mundo de
visão única.

Para GOMEZ (2019), o lugar onde a descolonialidade pode ser operacionalizada é


justamente no campo da educação, onde as artes, as humanidades e os fazeres,
muitas vezes excluídas ou colocadas em espaços reduzidos, podem encontrar um
lugar de criação não subordinado aos modelos coloniais.

A síntese de MOURA (2019), explica que

Pensar uma Arte/ Educação decolonial não implica deslegitimar os


conhecimentos em arte na perspectiva europeia (diferente de uma
perspectiva eurocêntrica); implica, necessariamente, legitimar os
saberes em arte de matriz latino-americana. Não se trata de um olhar
incauto e desconexo que pensa a arte e os saberes dessa região
inseridos na Educação, mas da compreensão desde o lugar de
enunciação, América Latina, e, pela consciência política, da
potencialização de questionamentos anti-hegemônicos e anti-
hierárquicos em favor do pensar/ fazer/ ser/ sentir decolonial
(MOURA, 2019. p. 33).

Não se trata, portanto, de excluir da cultura visual dos estudantes a arte europeia ou
norte-americana, mas sim levar à construção de um conhecimento alargado sobre
as múltiplas estéticas que se constroem no mundo e de como elas se estruturam
historicamente. O caminho é descontruir referências coloniais impressas na
formação da identidade cultural dos outros povos com práticas que nos levem a
desaprender, e isso configura a descolonização das mentes a partir de uma pedagogia
entendida como prática reflexiva do sentido de ser humano, conforme coloca ALBAN
(2009). Ou seja, uma pedagogia que permita a expressão sem ataduras, interdições
ou apequenamentos das diversas culturas, para que se possa desarmar aquilo que
nos restringe a alma.

No campo das teorias, essa breve revisão de literatura, introdutória e ainda reduzida,
me permite pensar de maneira reflexiva minhas práticas no ensino das Artes Visuais.
Acredito que como ponto de partida, é fundamental organizar um planejamento
628
capaz de ser um mapa para encontrar jeitos de promover experiências e trocas
práticas que mobilizem o interesse, o entusiasmo e a curiosidade dos estudantes, ao
mesmo tempo em que alimentam minha prática docente com novas percepções
sobre as possibilidades que dão ritmo às situações de aprendizagem da Arte e da
Cultura.

Arte, Educação e Cultura nas brechas: planejar o ensino das Artes Visuais em uma
escola brasileira da infância.

Ana Mae Barbosa, desde a década de 1980, questionava a universalidade


dos códigos hegemônicos em favor da pluralidade como princípio
articulador do conhecimento e chamava a atenção para o “respeito à
diversidade: diversidade dos códigos culturais; diversidade biológica,
gerando as expectativas de equilíbrio ecológico; diversidade de
interpretações e de leituras da arte (BARBOSA, 1998. p.11)”. Para ela, a
chave dessa transformação está na educação como lugar de
desenvolvimento de diferentes códigos culturais. Além disso, pontua
que a arte na educação, como expressão pessoal e como cultura, é um
importante instrumento para a identificação cultural e o
desenvolvimento da percepção e imaginação, da apreensão da
realidade do meio ambiente, do desenvolvimento da capacidade crítica
e favorecendo a análise da realidade percebida de modo a transformá-
la criativamente. E a partir desse ponto de vista é que considero
fundamental uma prática docente que priorize a arte como elemento
de expressão cultural, capaz de ensinar sobre a pluralidade das
culturas, considerando que caracterizam a sociedade ou o grupo social,
seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A
arte, como uma linguagem presentacional dos sentidos, transmite
significados que não podem ser transmitidos através de nenhum outro
tipo de linguagem, tais como as linguagens discursiva e científica
(BARBOSA, op. cit. p. 16)”.

É preciso considerar a arte como elemento de relação das diferentes culturas com a
vida cotidiana, não apenas do ponto de vista da experiência estética ou dos lugares
de legitimação, como os museus, já que esses não são conceitos universais para todas
as culturas, mas como um princípio ético que orienta sua existência no mundo, como
o fazem os povos ameríndios, por exemplo. Sendo assim, o planejamento anual da
disciplina de Artes foi baseado na relação entre os temas da arte brasileira - em sua
diversidade nos tempos e espaços da formação da cultura brasileira -, e seus
repertórios visuais (as obras artísticas em si) com os contextos (tempo e espaço) de
629
sua criação, procurando aproximar os estudantes da biografia dos artistas, da cultura
de onde falam, de seus modos de viver e produzir arte, de suas diversas técnicas,
materiais e expressões estéticas. Importante ressaltar que o planejamento foi
orientado em sintonia com os principais temas abordados pelos professores
regentes, especialmente quanto aos temas relacionados às culturas africanas e
ameríndias, fazendo das atividades de Arte, instrumentos de estudo de outras
expressões culturais e estéticas.

Planejamento anual da disciplina 2022

Plano trimestral Artes Visuais 2022 Mar/Abr/Mai

Ementa: Linguagens artísticas, estéticas e seus conhecimentos. Arte como


linguagem. Elementos e linguagens das artes visuais. História da Arte para sair da
colonialidade. Conhecimento e desenvolvimento de técnicas e materiais através das
práticas artísticas. Objetivo geral: apresentar os elementos das linguagens das artes
visuais, envolver continuamente a interação entre diferentes sistemas necessários
para a comunicação e expressão. Objetivos específicos: Promover o olhar não
colonial para a produção artística, dar a conhecer um panorama das artes visuais
explorando a produção artística de pintores, escultores, tecelões, gravadores,
bordadeiras, artistas digitais, desenhistas e ilustradores brasileiros e estrangeiros.
Metodologia: aulas expositivas a partir da história da arte em uma perspectiva que
possa colocar no centro do processo de aprendizagem as artes da América Latina, do
Brasil, de sua cultura popular, mas incluindo as relevantes produções da arte
ocidental europeia, que são muito mais disponíveis, mas não únicas para a formação
de um pensamento sobre a arte, processos e práticas em artes visuais e pesquisa
discente.

2º trimestre (junho a agosto)

Ementa: Arte Popular Brasileira. A arte popular e a Cultura. Arte ou artesanato? Arte
Popular contemporânea no Brasil. Artistas, linguagens, materiais e técnicas da arte
popular. Objetivo geral: oferecer a partir da cultura e da arte do Vale do
Jequitinhonha, um lugar (território) de pesquisa e conhecimento em Arte Popular, e
promover a partir disso, o acuro da capacidade de invenção e criação artística para

630
os estudantes. Objetivos: oferecer subsídios para a construção de conhecimentos e
significações sobre a arte popular e suas diversas formas de expressão. Levar a
conhecer mestres e mestras da cultura e da arte popular brasileira. Favorecer o
desenvolvimento da percepção estética e das habilidades motoras através de
atividades de criação artística, ampliar o repertório de referências sobre a produção
de arte no Brasil.

3º trimestre (setembro a novembro)

Ementa: O que é Arte. Arte como patrimônio histórico e cultural da humanidade. Arte
como produto da história e da multiplicidade das culturas humanas. Arte como
linguagem e sistema simbólico de representação. Apreciação significativa da Arte. A
arte em sua diversidade: artes latino-americanas, artes africanas, artes aborígenes
da Austrália e arte brasileira. Colonização e arte. Quem conta a história da arte? A
arte brasileira em relação à arte europeia. A arte moderna no Brasil. O que foi a
Semana de 22? Objetivos: reconhecer conteúdos, estilos e conceitos de Arte,
ganhando instrumentos para o próprio fazer artístico. Estimular a reflexão dos
estudantes e favorecer o entendimento do fenômeno artístico como objeto de
cultura por meio da história e como conjunto de relações formais. Criar condições
para o fazer artístico, para a apreciação significativa da Arte e do universo a ela
relacionado e para a reflexão e contextualização das diversas produções artísticas.

Beirando caminhos

De modo mais específico, e acompanhando os interesses letivos da comunidade


escolar de forma global, o eixo central da disciplina de Artes se orientou pelo estudo
da arte popular brasileira produzida no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais,
ainda que não exclusivamente. A partir da experiência de campo realizada junto aos
artistas do Vale em julho de 2022, propus para o final do 2º trimestre e início do 3º
trimestre, o aprofundamento de experiências de relação entre história, contexto e
produção artística, desenvolvendo uma pesquisa afetiva junto aos estudantes, no
sentido de afetá-los com as descobertas da viagem. Para isso, organizei a exposição
de peças de arte popular relacionando-as com a história (e imagem) dos artistas que
a produziram, seus contextos, explorando a variedade de suas técnicas e dos
materiais. A sequência abaixo, descreve os temas e suas abordagens. Algumas já
631
foram trabalhados nas diferentes séries de acordo com a faixa etária e suas
habilidades e competências, outras ainda estão em curso e alguns pontos talvez não
sejam abordados exatamente como planejados, já que o planejamento é vivo e
pode/deve ser alterado a partir das demandas dos estudantes e dos professores
regentes em vistas de um projeto integrado de estudo e aprendizagem. Eixos
organizadores:

1. Museu vivo. Compartilhamento de informações sobre a arte e a cultura do


Vale, observação e manuseio das peças de arte trazidas. Cerâmica, tapeçaria,
bordado, cestaria, entalhe em madeira e escultura em ferro. Artistas do Vale:
biografia, materiais, técnicas e produção artística.
2. A cerâmica e a pintura com tintas de terra em Lira Marques. Animais
imaginários inspirados nos Animais do Meu Sertão, de Lira Marques.
Experiências de ateliê: Desenho e pintura com giz pastel sobre papel
especial. Produção de livreto artesanal de imagens de animais imaginários
das turmas de 1º ano.
3. Tintas de terra. Experiências de ateliê: pintura das peças de argila trazidas do
Vale com tintas de terra produzidas pelos estudantes dos 4os e 5os anos.
4. Do algodão ao fio, do fio ao tecido: fiadeiras e tecelãs. Manuseio do algodão
em sala de aula, as cores naturais do algodão, plantas usadas para tingir fios.
Depoimentos de Dona Selma e das tecelãs de Berilo. Vídeos da fiação e da
tecelagem. Fotos dos teares e das peças produzidas.
5. As bordadeiras e os fios que contam histórias. Experiência de ateliê:
desenhos a partir de um bordado. Bordar um desenho simples com pontos
elementares: alinhavo. Obs.: as agulhas de bordar têm as pontas bem
arredondadas.
Algumas considerações finais

Utopias à parte, essas reflexões fazem parte do meu cotidiano e acredito que seja
mesmo possível transformar mentalidades a partir do ensino da Arte e da Cultura
como práticas descoloniais. Não considero tarefa fácil ou simples, mas não há mais o
que esperar para promover mudanças na educação, para desalinhar o que está dado,
trazendo para a frente da cena novas simetrias para dar visibilidade a outros
conhecimentos imprescindíveis ao bem viver. Apoiada nas teorias, conceitos, termos
e práticas que se organizam como contradiscurso, aposto na opção política da
descolonialidade como uma via oportuna para a educação na América Latina, por ter
sido fruto das inquietações dos pensadores latino-americanos na crítica ao binômio
632
modernidade/colonialidade, ao qual todos os outros povos foram submetidos e do
qual agora têm a chance de se desvencilhar. E nesse sentido, compreendo a
importância da Arte e da Cultura como lugares de engajamento social coletivo, como
instrumentos de conhecimento e reconhecimento das diversas identidades
culturais, artísticas, estéticas, éticas e políticas. Do ponto de vista das minhas
experiências docentes na escola Vira Virou, tenho tido uma oportunidade
estimulante ao poder desenvolver a concepção, as atividades e as práticas de ensino
com liberdade de cátedra, dentro de um ambiente onde há respeito e diálogo,
elementos fundamentais para horizontalizar as relações entre pares e garantir que o
essencial para situações de aprendizagem instigantes, críticas e transformadoras.
Considero oportuno ressaltar a importância da constituição de espaços para a
construção do conhecimento em Artes. Como foi dito, as transformações no ensino
das Artes trouxeram novos desafios às práticas da comunidade escolar. Isso também
me leva a pensar nos espaços de aprendizagens específicos da Arte, sejam eles Sala
de Artes ou Ateliê, e sobre qual a necessidade desse espaço para a o desenvolvimento
de estudos, técnicas e processos. A sua constituição é importante do ponto de vista
das trocas práticas mais duradouras e consistentes? Em que medida? Não só meu
senso comum indica essa importância, como há diversas pesquisas que se dedicam a
essa problemática, embora não caiba nos propósitos desse artigo, uma discussão
aprofundada sobre o tema. Assim como existem os laboratórios constituídos para os
estudos de robótica, por exemplo, legítimos e a serviço do pensamento científico e
crítico tão fundamentais para uma educação transformadora, me parece bastante
natural que haja espaços constituídos para uma disciplina que reúne tantos materiais
diferentes e comporta tantos recursos didáticos possíveis como é o caso do ensino
da Arte. Até quando, apesar dos avanços na educação, continuaremos a pelejar pelo
processo contínuo de construção de conhecimento em ambientes adaptados? Qual
a prioridade dada aos espaços de desenvolvimento contínuo das Artes nas escolas?
Como criar condições para a formação de um espaço de aprendizagem permanente
para as artes? Essas perguntas básicas, que ainda são discutidas na teoria e
lentamente implementadas na prática das escolas, apontam a permanência deste
tópico utópico: assegurar a existência plena de um ateliê que atenda às necessidades
das atividades de pesquisa e desenvolvimento de práticas mais contínuas, menos
entrecortadas pelas questões do tempo limitado de aula, que permita a organização

633
prévia das mesas com materiais, que contenham um espaço para secagem das peças
produzidas, que contemple algum espaço para a exposição dos trabalhos. Espaço
estimulante e capaz de acolher a expansividade infantil e que seja propício para uma
relação professor/estudante menos tensa e mais rica do ponto de vista da educação,
das experiências e das trocas práticas; onde seja permitido circular, onde se possa
comunicar de maneira eficiente ao estudante as orientações sobre a atividades a
serem realizadas, evitando o desperdício do tempo em exaustivas repetições feitas
em alto volume e melhorando com isso o aproveitamento do espaço de
aprendizagem, tornando-o mais acolhedor e construtivo do ponto de vista da
aprendizagem teórica e prática das artes. Isso também é descolonizar, apoiando e
legitimando o campo da Arte Educação dentro das comunidades escolares como
lugar de formação e transformação de agentes sociais críticos, e ao mesmo tempo,
sensíveis.

Referências

BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez
Editora, 2012.
____ Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Artes, 1998.
ESCOLA VIRA VIROU. https://www.viravirou.com.br/nossos-diferenciais acessado em
20/09/2022.
GÓMEZ, Pedro Pablo. Decolonialidad estética: geopolíticas del sentir el pensar y el hacer.
Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 369-389, maio/ago. 2019. Disponível em
http://dx.doi.org/10.22456/2357-9854.92910 acessado em 17/09/2022.
HOMI, R. Bhabha. Remembering Fanon: self, psycle and colonial condition. ln: KRUGER,
Barbara e MARIANI, Phil. (ed.) Remaking history. NewYork: Dia Foundation, 1989. Apud
BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Artes, 1998.
LÉON, Christian. Imagem, mídias e telecolonialidade: rumo a uma crítica decolonial dos
estudos visuais. Revista Epistemologias do Sul, v. 3, n. 1, p. 58-73, 2019. Disponível em
https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/2437/2125 acessado em
17/09/2022.
MIGNOLO, Walter. Arte y estética em la encrucijada descolonial. Buenos Aires: Edciones del
Signo, 2009.
____ Colonialidade: o lado mais escuro da Modernidade. RBCS Vol. 32 n° 94 junho/2017:
e329402. DOI 10.17666/329402/2017
MOURA, Eduardo Junio Santos. ARTE/EDUCAÇÃO DECOLONIAL na América Latina.
Cadernos de Estudos Culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 31-44, jan./jun. 2019. Disponível
634
em https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/9689 acessado em
18/09/2022.
SALES, Michele; CABRERA, Jorge. GIRO DECOLONIAL NAS ARTES VISUAIS por uma arte
contemporânea como lugar do Outro. Disponível em
https://www.academia.edu/45658730/GIRO_DECOLONIAL_NAS_ARTES_VISUAIS_por
_uma_arte_contempor%C3%A2nea_como_lugar_do_Outro. Acessado em 21/09/2022.

Mini Currículo

Daniella Villalta
Mestre em Comunicação Social. Doutora em Artes Visuais pela EBA/UFRJ, 2019. Professora de Artes
no ensino Fundamental, anos iniciais. Pesquisadora em Arte e Cultura Brasileira. E-mail:
danvita@gmail.com

635
AS INTENÇÕES EDUCATIVAS E OS PROCESSOS DE APRENDIZAGENS SOBRE
AS IDENTIDADES ‘QUILOMBOLAINDÍGENAS’ DA TIRIRICA DOS CRIOULOS

EDUCATIONAL INTENTIONS AND LEARNING PROCESSES ABOUT


'QUILOMBOLAINDIGENOUS' IDENTITIES OF TIRIRICA DOS CRIOULOS

Aia Oro Iara (nome civil: Larissa Isidoro Miziara)


Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), Tocantinópolis/TO, Brasil

Alecksandra dos Santos


Escola Indígena Manoel Miguel do Nascimento, Organização Especial Escolar Indígena Pankará,
Carnaubeira da Penha/PE, Brasil

Resumo

Neste artigo, compartilhamos a nossa Investigação Ação Participativa realizada no


‘quilomboindígena’ Tiririca dos Crioulos/PE, que envolveu diferentes plataformas de
comunicação e artefatos culturais. Partimos de problemáticas pautadas pelas professoras,
jovens e liderança da comunidade, no que se refere às necessidades de formação para
adaptação às aulas on-line. No decorrer do trabalho, são apresentadas as nossas intenções
educativas e os caminhos inventados para investigar, por meio da arte e da cultura visual, os
processos de aprendizagens sobre as identidades ‘quilombolaindígenas’. Além disso, são
analisados artefatos midiáticos da Tiririca dos Crioulos, no processo de produção de sujeitos
interessados na troca entre os saberes e formatação de si, e o modo como isso produz
impactos sobre nossas realidades.

Palavras-chave: “quilomboindígena”; interculturalidade crítica; pedagogias culturais.

Abstract

In this article, we shared our Participatory Action Research carried out in the
quilomboindígena Tiririca dos Crioulos/PE, involving different communication platforms
and cultural artifacts. We start from problems raised by teachers, young people and
community leaders about the training needs to adapt to online classes. We verified our
educational intentions and the paths invented to investigate, through Art and Visual Culture,
the learning processes about quilombolaindigenous identities. In addition, we analyzed the
productivity of the media artifacts of Tiririca dos Crioulos in the production of individuals
interested in the exchange between knowledge and self-shaping, producing impacts on our
realities.

Keywords: “quilomboindígena”; critical interculturality; cultural pedagogies.

636
Neste artigo, compartilhamos reflexões do quarto capítulo da tese “Imagens da
Diferença e Narrativas de si: tecendo pedagogias tiririqueiras e crioulas com um
‘quilomboindígena’” (Miziara, 2022), que foi escrita a partir de processos
colaborativos, através de uma Investigação Ação Participativa (IAP), como foi
explicado por Marín (2013), em diálogo com Orlando Fals Borda, e que trata sobre a
Tiririca dos Crioulos.

A pesquisa foi realizada ao longo dos anos de 2020 e 2021, em formato on-line,
envolvendo diferentes plataformas de comunicação e artefatos culturais, com
mediação de Aia Oro Iara, em conjunto com jovens, professoras/es e liderança da
Tiririca dos Crioulos.

A Tiririca dos Crioulos é uma comunidade com 200 habitantes, autodenominada um


‘quilomboindígena’, desde 2010, que se localiza no sertão de Itaparica, estado de
Pernambuco, Brasil.

O termo “quilomboindígena” foi elaborado inicialmente por Vera de Mané Miguel,


liderança comunitária, a qual criou o termo “quilombo-indígena”. Posteriormente, o
termo foi reafirmado também em nossos processos de formação, durante os quais
nos demos conta da dicotomização do Estado brasileiro — no que se refere ao
direcionamento das políticas indígenas e quilombolas—, que gerencia as categorias
“indígenas” e “quilombolas” a partir de justificativas essencializadas sobre as
identidades da Tiririca dos Crioulos, para negar-lhe direitos. Soma-se a isso a
desarticulação dos movimentos sociais.

Para a recuperação da memória coletiva, o método de IAP permitiu que houvesse


inserção dos participantes no processo social que envolve a comunidade, por meio
do engajamento das metas de transformação social. Para isso, partimos das
problemáticas pautadas pelas professoras/es e pela liderança, no que diz respeito às
necessidades de formação para a adaptação das professoras/es às aulas on-line,
demandadas em função da pandemia do coronavírus, a qual teve início em 20201.

1A comunidade, que até 2017 não tinha acesso à internet, foi forçada a adaptar as aulas presenciais da escola para
as crianças da pré-escola e do ensino fundamental, além de ter de inserir toda a sua comunidade escolar no processo
de inclusão digital.
637
Por considerar, como explica Andrade (2016), que as pedagogias culturais são
aprendizagens que ocorrem em diferentes espaços sociais da cultura, durante a IAP,
foram utilizados grupos de WhatsApp, formulários e reuniões on-line, e houve
criação de acervos, oferta de oficinas, bem como realização de curadoria e de
exposição. De acordo com a autora, esses espaços sociais de aprendizagem chamam
atenção para as intenções educativas que os envolvem. Ela explicou como podemos
exercer essas intenções a partir da elaboração de ambientes e apontou caminhos
para instigar e possibilitar aprendizagens (ANDRADE, 2016).

Neste artigo, portanto, verifica-se as intenções educativas e os caminhos para


investigar os processos de aprendizagens sobre as identidades
‘quilombolaindígenas’. Também se analisa a produtividade de artefatos midiáticos
‘quilombolaindígenas’ da Tiririca dos Crioulos, no processo de produção de sujeitos
interessados na troca entre os saberes e formatação de si, e o modo como isso
produz impactos em nossas realidades.

De acordo com Andrade (2016), a mídia educa a partir de artefatos culturais, como
imagens, vídeos, músicas e redes sociais. Ela ainda destaca que certos ensinamentos
podem ser naturalizados, impactando nossos modos de ser e de agir. Se torna,
portanto, necessária a elaboração de espaços pedagógicos que nos permitam
estabelecer discussões e formulações críticas sobre as nossas práticas culturais.

No decorrer da pesquisa, foram trabalhadas indagações como: “Quais são as


intenções educativas e os caminhos para investigar processos de aprendizagens
sobre as identidades negras, indígenas e quilombolas?” e “De que forma as relações
estabelecidas por nós, mulheres tiririqueiras, podem proporcionar aprendizagens
em relação a nós, aos outros e ao mundo?”

Ainda em diálogo com Andrade (2016, p.108), ao considerarmos a ênfase nas imagens
como papel central na sociedade contemporânea, desenvolvemos uma pedagogia
focada nas autoimagens da Tiririca dos Crioulos, com o objetivo de criar narrativas
que pudessem ocupar ou não a cena pública.

Para isso, dialogamos com Mirzoeff (2016), o qual considera que as visualidades e as
contravisualidades são critérios estéticos, isto é, imagens e narrativas históricas
colocadas em circulação e com as quais podemos nos educar em relação a
determinadas interpretações e construções de realidades. Ao considerar as
638
visualidades como narrativas que educam a nossa a capacidade de ver a Tiririca dos
Crioulos, reparamos como foram naturalizadas as autoridades da região e outras
formas de violência. Já as contravisualidades são as imagens da Tiririca dos Crioulas
que reivindicam reconhecimento social a partir da nossa concepção, por exemplo, o
próprio conceito de “quilomboindígena”.

Nesse sentido, a seguir, será apresentado o modo como os caminhos educativos


deste estudo foram tecidos.

Utilizamos os formulários do GoogleDrive para facilitar o levantamento de dados


sobre as condições materiais das professoras/es e dos jovens, no que se refere ao
acesso e à relação com a internet2. Tais formulários colaboraram para a auto-
organização da equipe em relação aos diferentes artefatos culturais trabalhados
durante as atividades. Além disso, mediante a necessidade de facilitar a comunicação
durante a pesquisa, foi criado um grupo de WhatsApp, já que, como foi mencionado,
considerando-se que a mídia educa, alguns ensinamentos podem ser naturalizados
em plataformas como esta, impactando nossos modos de ser e de agir.

Diferentemente do WhatsApp, as reuniões on-line apresentadas a seguir


funcionaram como espaços pedagógicos que nos permitiram estabelecer discussões
e formulações críticas sobre as práticas culturais.

Após a primeira reunião on-line3, construímos, conjuntamente, um cronograma de


oficinas baseado nas intenções educativas das professoras e da liderança, a partir das
necessidades que surgem em relação ao uso da internet para a educação escolar
local, bem como organizamos um acervo de imagens para as professoras/es
gerenciarem suas atividades.

O processo de formação sugerido no cronograma inicial não foi concluído, em função


de que tivemos uma outra demanda de interação com o projeto “Arqueologia da
ignorância: vocabulário para catástrofes” (FAC/GO-2018), que nos direcionou para a
realização de algumas reuniões, com foco na produção de materiais com intenção

2 De 13 participantes, entre professoras e jovens estudantes, apenas três possuem um computador e um celular
para acessar a internet e facilitar o acompanhamento das aulas e reuniões ligadas à educação escolar. As demais
(dez participantes) possuem apenas um celular.
3As reuniões foram realizadas por meio da plataforma Google Meet, utilizando o e-mail institucional, o qual
possibilitou algumas gravações.
639
educativa de elaborar uma oficina destinada às professoras/es e artistas, e para a
realização de curadorias de imagens, cujas descrições serão compartilhadas a seguir.

Considerando os impactos eficazes da indústria cultural, a partir dos conglomerados


midiáticos, nos quais circulam padrões de consumo, em diferentes espaços,
conforme foi explicitado por Andrade (2016), e considerando também a disputa por
narrativas históricas e de projetos de mundo-vida, as mulheres tiririqueiras
movimentam o regime de visibilidade da comunidade, que compreende, de acordo
com Albuquerque (2011), o processo de tornar visíveis as identidades para dentro e
para fora do grupo.

Nas reuniões, trabalhamos com fotos antigas, tecendo as histórias que conhecemos.
Nesse contexto, foram destacadas experiências com as quais foi possível cruzar as
crenças relacionadas ao complexo ritual local.

Assim, trocamos informações a partir da observação de imagens das


antepassadas/os da Tiririca dos Crioulos, com a intenção educativa de nos
posicionar frente ao invisível da vida, apontando significados importantes para a
comunidade, como a manutenção da etnicidade que envolve os novenários, a
realização de rituais póstumos relacionados aos orixás e antepassadas/os, assim
como a manutenção do Centro Espírita Preto Velho Cazuá do Velho Xangô.

Compreendemos que as reuniões on-line favoreceram o desenvolvimento de


práticas pedagógicas as quais possibilitaram que nossos discursos e práticas
culturais fossem colocados em discussões críticas, criando-se, assim, condições para
que pudéssemos exercer papéis políticos e éticos, estando envolvidos na tarefa de
nos educar para a cidadania responsável e crítica.

Apresentamos os artefatos culturais no canal “Do Buraco ao Mundo/Tiririca dos


Crioulos”4, disponível na plataforma YouTube, onde foi ressaltada a importância da
gestão compartilhada de autoimagens para a mobilização social das/os
moradoras/es envolvidas/os no processo da pesquisa. Foram expressas, nesse
sentido, as vontades de se ver e de sermos vistas.

4
Link para acesso ao canal: < https://www.youtube.com/channel/UCqVp9sQDN9PQYus_T9mvi_g >
640
Em suma, compreendemos que as autoimagens das/os moradoras/es da Tiririca
dos Crioulos, produzidas por colaboradoras/es e moradoras/es da comunidade, nos
apresentam formas de pertencimento e de reconstrução da nossa memória coletiva,
expressando a vontade de reconhecimento social em nossas formas de ser, de saber,
de fazer e de viver.

No processo pedagógico, a relação com o nosso território foi trabalhada com as


crianças da escola por meio da produção de desenhos e de pinturas. Acreditamos
que os artefatos culturais ‘quilombolaindígenas’ trazidos para as reuniões atuaram
como tecnologias culturais, as quais estão implicadas na produção de significados
presentes na formação e na regulação de nossas identidades e desejos, em
consonância com o que explica Andrade (2016).

A postura de Aia Oro Iara nas reuniões foi de oferecer espaços de escuta, às vezes de
silêncios, capazes de criar condições para as falas. Nesse contexto, nos atentamos
para a divisão do espaço-tempo de mediação, assim como para a construção de
significados nas tomadas de decisões dos processos. Tecemos, nas nossas
observações, significados nas relações com os artefatos culturais e na construção da
nossa memória coletiva, observando a institucionalização dos discursos e as
curadorias colaborativas que surgiram espontaneamente através dos nossos
apontamentos.

Foi assim que os artefatos culturais ‘quilombolaindígenas’ da Tiririca dos Crioulos


foram sendo curados por nós e posteriormente serviram para a criação do acervo
digital constituído a partir de imagens trocadas pelas jovens e pelas professoras no
grupo de WhatsApp, assim como por aquelas que foram solicitadas nas reuniões.

Foi então organizado um acervo5 para facilitar o acesso aos materiais educativos e às
imagens que foram produzidas no contexto da ação “Do buraco ao mundo”; acervo
este que está disponível para as/os professoras/es gerenciarem suas aulas,
pesquisas e outras atividades.

5 O acervo será gerido pelas professoras e jovens durante as aulas. No entanto, a inclusão digital ocorre de forma
lenta. Até o momento de escrita da tese, havia pouca interação das professoras e jovens com o acervo do drive, o
que, segundo elas, ocorria em função da sobrecarga de trabalho.
641
Em reunião6, definimos coletivamente o e-mail <
tiriricaumquilomboindigena@gmail.com>, a pessoa responsável para a verificação de
segurança e os materiais de composição do acervo a serem inseridos no drive.

A partir do inventário dos artefatos culturais disponíveis no acervo do Google Drive,


verificamos a atuação da Tiririca dos Crioulos na produção de práticas e saberes que
impactam na construção de nossas realidades.

A importância de ter um acervo na internet foi ressaltada pela liderança, Vera de


Mané Miguel, que declarou sonhar acordada e destacou a importância de resguardar
fotos de pessoas antigas como um importante passo para que, no futuro, todos
possam conhecer seus antepassados.

Tal preocupação tem relação com a garantia e a permanência da memória coletiva,


através da realização de um projeto decolonial, e com a importância dos artefatos
culturais ‘quilombolaindígenas’ nesse processo.

Ao criarmos um drive com o acervo da comunidade, nos demos conta da data de


nascimento de Manuel Miguel do Nascimento7, nascido em 22 de agosto de 1922, e
de seu centenário de nascimento, celebrado neste ano de 2022. Assim, a memória
social foi reconstruída com a organização do acervo, ao permitir a visualização da
história a partir dos artefatos culturais.

Simultaneamente à execução do cronograma de reuniões, fomos convidadas/os para


participar da programação de oficinas promovidas pelo projeto “Arqueologia da
ignorância: vocabulário para catástrofes”, financiado pelo Edital de Fomento das
Artes Visuais do Fundo de Arte e Cultura de 2018, lançado pelo governo do Estado de
Goiás8.

A proposta inicial do projeto era dar visibilidade ao fechamento das escolas do


campo, fato ocorrido com maior intensidade a partir de 2016.

6 A partir do compartilhamento de guias e de telas na plataforma do Google Meet, os procedimentos foram


realizados de forma conjunta com as participantes.
7
Importante liderança já falecida, a qual atuou na consolidação de uma narrativa étnica que permitiu a conquista
de direitos sociais.
8
O projeto foi realizado com professoras/es da universidade e do ensino básico, outras/os educadoras/es, artistas
interessadas/os nas trocas de saberes, na Educação do Campo, Indígena e Quilombola Diferenciada.
642
Esta situação foi vivida pela Tiririca dos Crioulos em 2010, quando a prefeitura de
Carnaubeira da Penha/PE fechou a escola quilombola, localizada no centro da
comunidade, em função de a Tiririca declarar publicamente seu parentesco com o
povo indígena Pankará9.

Na segunda versão do projeto “Arqueologia da ignorância: vocabulário para


catástrofes”, foram reconhecidas as escolas vivas e promovidas, no segundo
semestre de 2021, formações com Glicéria Tupinambá (BA), Mestre Joelson, do
MST/BA, Mestre Nego Bispo (PI), Givânia da Silva, de Conceição das Crioulos (PE),
Tiririca dos Crioulos (PE) e Pai Hélbio (GO)10.

Vale ressaltar o reconhecimento que este convite representa para a Tiririca dos
Crioulos, ao lado de outras lideranças e mestras/es que estão na programação e que
têm reconhecimento nacional e internacional.

A participação no projeto ocorreu a partir da oferta de uma oficina, denominada


“Piseiro na escola”11, em que elaboramos um roteiro, sugerido pelas professoras e
jovens e inspirado na configuração das nossas reuniões.

A nossa oficina demonstrou assim que a educação escolar não está restrita à escola,
mas envolve também a comunidade, em todas as suas atividades e itinerários
formativos, tais como pessoas sábias, relações interculturais críticas, materiais e
imateriais, humanas e não-humanas, realizadas dentro e fora da Tiririca dos Crioulos.
Também percebemos as pedagogias decoloniais em nossas formas de aprender e de
ensinar, que emergem da superação de problemas sociais concretos, como a
elaboração das identidades ‘quilombolaindígenas’, a partir da arte e da cultura visual,
na composição de narrativas e de obras artísticas educativas.

9
A situação foi amenizada com a transferência provisória da escola para a Casa Grande, prédio próprio construído
por Mané Miguel e sua esposa Isaura. Tal experiência foi relatada por Vera de Mané Miguel. Deste acontecimento,
iniciou-se uma série de processos de institucionalização da Tiririca com o povo Pankará e o Estado, para a
estadualização da escola, em parceria com a Organização Escolar Especial Indígena Pankará (OEEIP), e abertura dos
processos de regularização fundiária dos Território Indígena Pankará (T.I. Pankará) e da Área Remanescente de
Quilombo da Tiririca dos Crioulos (A.R.Q. Tiririca).
10
Todas/os as/os convidadas/os fazem parte de grupos indígenas, quilombolas e de terreiro. Além de serem
instruídas/os na tradição oral, algumas e alguns têm formação acadêmica.
11
A oficina teve 30 participações, sendo 15 representantes da Tiririca – as/os professoras/es, coordenadora da
escola, jovens estudantes do Ensino Médio, duas lideranças mais velhas, Aia e Caju; e 15 pessoas de fora da
comunidade, entre professoras/es do ensino básico e de universidades e artistas.
643
A nossa participação neste projeto também ocorreu por meio de uma curadoria de
imagens do nosso acervo, para a realização do “Cine-Oráculo” — uma exibição do
encontro entre os arquivos da Tiririca dos Crioulos com os arquivos das oficinas do
“Vocabulário para catástrofes”. A professora Dra. Carolina Fonseca, conhecida como
“Cacá”, do curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), orientou sobre o “Encontro de Arquivos como oráculo”:

“Uma imagem guia do nosso processo é o ‘arquivo como oráculo’, que


ganha corpo em muitas aberturas dos nossos encontros, sobretudo na
transmissão dos vídeos partilhados no início da oficina. Os vídeos são
edições instantâneas, randômicas e automatizadas por um dispositivo
de edição, executados a partir de um programa de combinação de
variáveis de tempo, de duração e de intervalo, criado por Filipe Britto,
artista envolvido no processo desde 2016. Um conjunto de imagens dos
arquivos dos mestres e mestras das oficinas e das expedições pelas
escolas fechadas são lançados dentro desse dispositivo e ele faz girar,
cortar, sobrepor, entremear, ritmar, atravessar as imagens oriundas
desses dois acervos. A edição acontece apenas no tempo presente, não
há registro e nem um formato final desse processo de combinação de
imagens, ela só acontece enquanto assistimos. A experiência, para nós,
lampeja sentidos do oráculo como mítica que nos arremessa num devir
de símbolos, guianças e forças a nos dar caminho, passagem e
comunicação entre mundos”.

Por meio da interação dos nossos arquivos com o “Cine-oráculo: encontro de


arquivos” e com o referido projeto, compreendemos nossas autoimagens como
possibilidade para elaborar o passado e projetar o futuro, reconhecendo o papel
pedagógico deste artefato cultural, o Cine-Oráculo, como um instrumento através
do qual nos localizamos historicamente, analisamos nossos ambientes e formulamos
planos futuros. O oráculo também é uma estratégia para obtenção de orientações e
de conhecimentos, a partir de práticas adquiridas na relação entre o invisível e o
visível da vida, para realizarmos transgressões de algumas dificuldades, por meio dos
ensinamentos que surgem a partir das interpretações de imagens.

A curadoria de imagens da Tiririca compartilhada no cine-oráculo foi definida por


nós, durante nossas reuniões on-line e durante a organização do acervo no Google
Drive. Foram incluídas as imagens do cotidiano compartilhadas pelas jovens e pelas
professoras no grupo de WhatsApp, na ação “Do buraco ao mundo”, além de imagens
das reuniões presenciais realizadas durante a pesquisa de campo da tese.
644
Uma outra etapa de nossa participação no referido projeto foi de realizar mais uma
curadoria de imagens para a produção de uma arte a ser projetada, em parceria com
o projeto ‘Projetemos’12, em grandes centros urbanos, assim como para ser divulgada
em formato de outdoor, a ser instalado nos municípios próximos à comunidade. A
proposta de produção de um outdoor foi acatada com entusiasmo pela comunidade,
devido ao apagamento da presença quilombola pela gestão municipal de Carnaubeira
da Penha. A situação ocorreu durante um evento público, no qual o prefeito
enalteceu apenas a presença indígena no município, e o fato foi relatado por Vera de
Mané Miguel, no grupo de WhatsApp. Em síntese, a omissão da presença étnica na
região foi uma estratégia histórica para deslegitimação dos direitos sociais. Além
disso, parte dos recursos destinado às comunidades quilombolas ocorrem por meio
do município; portanto, se a gestão municipal não reconhece a presença quilombola
na região, também não destina aos quilombolas os recursos que são seus por direito.

Refletindo sobre como seria a instalação de um outdoor em Carnaubeira da Penha;


qual seria a sensação e seu impacto social; bem como o que representaria esta
instalação para a comunidade, ressaltamos a importância de mostrar à Tiririca dos
Crioulos, através de imagens, que nós existimos! Também destacamos a importância
de nos mostrar por meio de imagens, no engajamento da luta por direitos: “uma coisa
é dizer que eu sou e não ser uma pessoa de luta, que a gente possa mostrar quem a
gente é através da nossa luta e de nossas imagens”. Isso significa nos mostrar através
de imagens, como forma de engajamento político, e criar contravisualidades,
reivindicando autonomia da autoridade e do poder instituído. Por fim, merecemos
ser vistas e reconhecidas, a partir de nossas maneiras de ser, de estar, de fazer e de
viver no mundo. Ao ressaltarmos o aspecto positivo da visibilidade, como se ter o
espaço fosse uma garantia do reconhecimento social, ressaltamos, por outro lado, a
importância de avaliar o impacto social da instalação do outdoor nos municípios
próximos da Tiririca dos Crioulos13 , onde se cruzam trajetórias inimigas dos grupos

12
Projetemos é uma rede nacional de projecionistas livres.
13Um exemplo de como a visibilidade pode se tornar perigosa, de acordo com o que foi trabalhado por Mirzoeff
(2016), são os efeitos da participação e da visibilidade das mulheres indígenas na Conferência Mundial do Clima
(COP26), realizada no segundo semestre de 2021, quando foram registrados casos de violência contra as lideranças.
Além disso, também ocorreu a violência do uso massivo das imagens das mulheres indígenas do Brasil como marca
do evento, o que, ao mesmo tempo, limitou e negou a participação delas nas tomadas de decisões.
645
étnicos da região — como as grandes famílias proprietárias de fazendas, que
historicamente disputaram poder na tomada dos territórios tradicionais.

Realizamos a curadoria com fotos das pessoas fundadoras da comunidade e das


lideranças, aquelas que possuem reconhecimento sobre seus saberes, bem como
com imagens do complexo ritual local, que envolve os novenários, o toré, a gira e os
terreiros. E ainda: fotos de crianças em 2012, que atualmente são jovens e estão
concluindo o ensino médio; além de desenhos e pinturas produzidas pelas crianças
nas aulas de artes da escola, demandas de pesquisa das/es professoras/es, no
contexto da ação “Do buraco ao mundo” (2014-2017).

Ao refletirmos sobre os perigos da visibilidade da comunidade na região por causa


do outdoor, uma foto do Canzuá do Velho Xangô, com imagens de entidades da
umbanda, foi avaliada como sendo uma possibilidade de não criarmos uma narrativa
consensual com a população regional envolvente. Infelizmente, a ocultação da
imagem revela um contexto de racismo religioso na região, demonstrado através do
fato de que buscamos resguardar nossas práticas religiosas.

Como já foi exposto, as ações pedagógicas empreendidas para a gestão


compartilhada de autoimagens e memórias ‘quilomboindígenas’ da Tiririca dos
Crioulos envolveram diferentes artefatos culturais e pedagogias culturais. Ao
refletirmos sobre as formações, percebemos algumas intenções educativas e
caminhos inventados, alternativos ao caráter monocultural e ocidentalizante.
Destacamos a criação de espaços para a nossa autorrepresentação como mulheres e
jovens negras, indígenas, quilombolas e pardas. Também foi destacada a perspectiva
intercultural crítica envolvida nos encontros, contexto em que foi possível
desenvolver algumas reflexões sobre as experiências de luta da Tiririca dos Crioulos
entre diferentes gerações e grupos sociais. Tais processos reflexivos sobre as
pedagogias de luta colaboram com a produção de nossa memória crítica sobre a
Tiririca dos Crioulos e os grupos étnicos da região, os quais enfrentam discriminação
racial e processos de silenciamento. Os processos de coautorias que nos envolveram
nas decisões, dentro das ações pedagógicas e artísticas, definidas por meio do

646
diálogo, podem ser um caminho alternativo ao caráter monocultural e
ocidentalizante.

Destacamos das experiências a formação que ocorreu por meio do cruzamento entre
diferentes formas de aprender e de ensinar artes, a partir de espaços diversos das
pedagogias culturais, que nos possibilitam o engajamento nas produções culturais
do cotidiano e agenciamentos simbólicos. Compreendemos que as formas de
aprender e de ensinar artes na Tiririca dos Crioulos envolve: 1) a educação escolar, a
partir da gestão do regime de visibilidade; 2) os novenários de santas e santos
católicos (e outros rituais locais), que tramam diversas experiências de
arte/educação e cuidado envolvendo diferentes gerações e fluxos materiais; e
destacamos 3) as práticas que permeiam o movimento social indígena e quilombola,
no processo mais amplo de interação com a sociedade, visando a melhoria das
condições de vida da comunidade, a partir da negociação de imagens da diferença e
da visibilidade da Tiririca dos Crioulos na cena pública.

Ao reconhecermos a importância dessas práticas, que possibilitam trânsitos entres


os domínios de saberes, nossas experiências se tornam um solo fértil para o
surgimento de novas epistemologias ‘quilombolaindígenas’ da Tiririca dos Crioulos.
Nós, mulheres tiririqueiras, transitamos entre domínios de saberes como águas
moventes que nutrem o solo duro e seco do eurocentrismo, proporcionando
aprendizagens em relação a nós, aos outros e ao mundo. Além disso, ao considerar o
desenvolvimento das relações pedagógicas que surgiram de nossas relações
interculturais críticas, percebemos que as interações artísticas e educativas
colaboram com as práticas e com a teorização sobre a diferença. Ao empreender as
imagens e outros artefatos culturais ‘quilombolaindígenas’, acreditamos que nossas
estratégias, práticas e metodologias, realizadas com os nossos artefatos culturais,
produzem saberes e práticas voltadas para o combate à discriminação racial, de
gênero e das relações baseadas na falsa democracia racial.

Portanto, as relações interculturais podem ser consideradas como estratégias de


sobrevivência e de produção de conhecimento, que foram desenvolvidas pela Tiririca
dos Crioulos há dois séculos, a contar das relações estabelecidas entre negros e
indígenas fundadores da comunidade, e desde então se atualizam. Além disso, ao
considerarmos as intenções educativas que envolveram os critérios de nossas

647
curadorias de imagens, concluímos que as pedagogias culturais ocorreram com a
intenção de subverter as relações de opressão sob as quais vivemos, expressando a
estratégia de ocultação das identidades para a criação de consenso entre diferentes
atores sociais. Esta prática foi desenvolvida pelos grupos étnicos da região, no século
XIX, como uma forma de resistência ao genocídio. Portanto, dentro do regime de
visibilidade da Tiririca dos Crioulos, certas imagens, principalmente aquelas
relacionadas ao complexo ritual que envolve as referências afro-brasileiras, se
tornam visíveis apenas para o contexto local, mas permitem maior compreensão
sobre a passagem entre a visibilidade e a invisibilidade, e sobre as práticas e estudos
da cultura visual envolvidas no aspecto invisível da vida.

Referências

Livro
ALBUQUERQUE, M. A. dos S. O regime imagético Pankararu (tradução intercultural na
cidade de São Paulo). 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. Disponível
em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/95460. Acesso em: 21 jan. 2022.
ANDRADE, P. D. de. Pedagogias Culturais: uma cartografia das reinvenções do conceito.
2016. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul, 2016. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/143723. Acesso em: 21 jan. 2022.
MIZIARA, L. I. Imagens da diferença e narrativas de si: tecendo pedagogias tiririqueiras e
crioulas com um "quilomboindígena". 2022. 190 f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura
Visual) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.
Capítulo de livro
MARÍN, P. C. Memoria coletiva: hacia um proyecto decolonial. In: WALSH, C. (org.).
Pedagogías decoloniais: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re) vivir. Quito:
Catherine Walsh Ed., 2013. p. 69-103. (Pensamento decolonial, t. 1).
Artigo publicado em periódico
MIRZOEFF, N. O direito a olhar. Educação Temática Digital, Campinas, v. 18, n. 4, p. 745-768,
nov. 2016. DOI 10.20396/etd.v18i4.8646472. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472/14496.
Acesso em: 21 jan. 2022.

648
Mini Currículos

Aia Oro Iara (nome civil: Larissa Isidoro Miziara)


É doutora em Arte e Cultura Visual (PPGACV FAV/UFG), mestra em Antropologia Social,
(PPGA/UFPB- 2016) e Bacharela em Artes Visuais (Belas Artes/SP -2008). Professora no curso de
Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). E-mail:
aiaoroiara@mail.uft.edu.br

Alecksandra dos Santos


É coordenadora pedagógica do Núcleo VI da Educação Escolar Especial Indígena Pankará (OEEIP). Foi
presidenta da Associação Remanescente do Quilombo Tiririca (AREQUETI) e coordenadora da ação
“Do Buraco ao Mundo”. Graduada em Pedagogia e Especialista em Psicopedagogia, pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESBA), e Especialista em Educação Intercultural, pelo Instituto
Federal de Floresta (IF/Floresta). E-mail: alecksandrapankara@gmail.com

649
“COMO ASSIM?” – IRONIA PARA CUTUCAR E FOMENTAR O DEBATE
ANTIRRACISTA

"LIKE THIS?" – IRONY TO NICK AND FOSTER THE ANTI-RACIST DISCUSSION

Rosa Barbosa
IFSP, Brasil

Gabriel H. E. da Costa
IFSP, Brasil

Resumo

O projeto de pesquisa ARTivismo Antirracista e Processos de Criação, discute as questões que


atravessam a luta antirracista no cotidiano escolar a partir da produção artística. As
investigações teórico-epistemológicas subsidiam processos de criação e,
consequentemente, uma investigação teórico-artística afrocentrada que desencadeia um
percurso formATIVO que resulta em visualidades. A dinâmica dos conceitos tratados
depreende-se do enegrecimento das referências teóricas e artísticas mobilizadoras das
discussões. O percurso metodológico constitui, portanto, uma cartografia. O projeto objetiva
apropriar-se da arte contemporânea, reconhecendo-a como possibilidade de formação
cultural, percepção estética artivista e interdisciplinar com produção e exibição de uma série
de produções artísticas das/os pesquisadoras/res. O texto aqui apresentado descreve o
processo de discussão teórica, produção, circulação e as repercussões de uma das
visualidades produzidas.

Palavras-chave: Visualidades; Enegrecer as referências; Processos de criação.

Abstract

The research project ARTivism Anti-racist and Processes of Creation, discusses the issues
that cross the anti-racist struggle in everyday school life from the point of view of artistic
production. Theoretical-epistemological investigations subsidize creation processes and,
consequently, an afro-centered theoretical-artistic investigation that triggers a formative
path that results in visualities. The dynamics of the treated concepts can be seen from the
blackening of the theoretical and artistic references that mobilized the discussions. The
methodological path constitutes, therefore, a cartography. The project aims to appropriate
contemporary art, recognizing it as a possibility for cultural training, artivist and

650
interdisciplinary aesthetic perception with the production and exhibition of a series of
artistic productions by the researchers. The text presented here describes the process of
theoretical discussion, production, circulation and the repercussions of one of the visualities
produced.

Keywords: Visualities; Blacken the references; Creation processes.

Por onde andamos

O projeto de pesquisa ARTivismo Antirracista e Processos de Criação, vigente em 2022


no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) campus avançado Ilha Solteira, desdobra-se
do projeto de pesquisa ARTivismo Antirracista ativo em 2021. Ambos os projetos,
tiveram concedida uma bolsa de iniciação científica via Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica do IFSP (PIBIFSP).

Na primeira etapa do projeto (2021) as pesquisas voltaram-se para a produção


artística afro-brasileira. Quem produz? Como produz? O que está materializado nos
circuitos artísticos? Quais as dissidências? Foi em meio à complexa trama que
constitui o conceito que a pesquisa permitiu pensar e (re)descobrir a pluralidade de
camadas da chamada arte afro-brasileira, além de viabilizar (re)conhecer artistas das
diferentes linguagens artísticas (dança, música, teatro, artes visuais).

Na edição de 2022 as atividades do projeto partem do levantamento artístico,


conceitual e estético realizado na primeira etapa, para ampliar as discussões acerca
da luta antirracista no cotidiano escolar a partir da produção artística. As
investigações teórico-epistemológicas subsidiam processos de criação e,
consequentemente, uma investigação teórico-artística afrocentrada que
desencadeia um percurso formATIVO que resulta em visualidades.

É importante ressaltar que a discussão sobre o que constitui a arte afro-brasileira é


complexa. Renata Felinto e Alexandre Bispo (2014) afirmam que a arte afro-brasileira
trata-se uma produção afro-orientada, isto é, inspirada em temas, problemas e
experiências nacionais das/os afrodescendentes. Contudo, é necessário distinguir
arte no sentido geral e arte afro-brasileira, sem negar que a arte é uma forma de
conhecimento intimamente relacionada à experiência social das pessoas. A arte afro-

651
brasileira é um conceito e não deve ser reduzida à atividade artística das/os artistas
categorizadas/os como afro-brasileiras/os.

Kabengele Munanga (2018, p. 113) ao pensar a arte afro-brasileira, assevera que "não
é uma questão meramente semântica, pois envolve uma complexidade de outras
questões que remetem à história do escravizado africano no Brasil, ora à sua
condição social, política e econômica, ora à sua cosmovisão e religião da nova terra".
As reflexões não escondem as limitações e devem suscitar críticas que enriqueçam o
debate das ideias sobre a substância da arte afro-brasileira e de sua contribuição na
construção da identidade nacional.

A dinâmica dos conceitos tratados depreende-se das referências teóricas e artísticas


mobilizadoras das discussões. O percurso metodológico constitui, portanto, uma
cartografia que, de acordo com Martin-Barbero (2004) permite a interlocução entre
distintas áreas do conhecimento, especificamente, com a arte. A proposta é
aventurar-se na explorAÇÃO, permitindo fluidez na pesquisa. "Mas quem disse que a
cartografia só pode representar fronteiras e não construir imagens das relações e
dos entrelaçamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos?" (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 12). Esse processo transforma e provoca a "mudar o lugar desde donde se
formulam as perguntas" num jogo de aproximação e distanciamento que permita
"'ver' junto com as pessoas, e 'contar' às pessoas o já visto" (p. 32, grifo do autor).

O projeto é um exercício teórico-estético-artístico que objetiva apropriar-se da arte


contemporânea, reconhecendo-a como possibilidade de formação cultural,
percepção estética artivista e interdisciplinar com produção e exibição de uma série
de produções artísticas das/os pesquisadoras/res.

Desvelando o cotidiano

A política educacional brasileira ancora-se em uma perspectiva comprometida com


o todo social, a igualdade na diversidade – social, econômica, geográfica, cultural,
articulada a outras políticas – de trabalho e renda, de desenvolvimento setorial,
ambiental, social e mesmo educacional (BRASIL, 2008). De acordo com as Leis nº
10.639/03 e 11.645/08, para que as questões étnico-raciais não fiquem à margem e

652
sejam encaradas com a devida seriedade faz-se necessário promover e ampliar as
ações e o debate acerca do racismo estrutural que alicerça o país.

É diante de desafios dessa amplitude e com a finalidade de construir uma educação


antirracista que reconhecemos o artivismo (arte + ativismo) como necessário,
corroborando a efetividade de uma ciência que seja social e cultural,
permitindo/construindo a iniciação científica de pesquisadoras/es que defendam
perspectiva semelhante naquilo que tange à compreensão do que tem valor de
ciência. As razões de ordem teórica e prática que mobilizaram a pesquisa
desenvolvida em 2021 persistem. Emergem inquietações e buscas teórico-
metodológicas para pensar e construir a experiência artística na perspectiva da
educação antirracista, considerando as possibilidades e desafios que estão
diretamente associadas ao contexto dos processos pedagógicos dentro do campus
onde atuamos.

A fundamentação teórica para a qual nos voltamos – a intelectualidade negra


brasileira, ajuda no enfrentamento ao desafio apontado por Sueli Carneiro (2018, p.
11) de que a "permanente disputa pela verdade histórica que se esconde atrás das
narrativas construídas pelos opressores" é o que povoa as experiências vividas no
dia-a-dia e na escola. Por isso, a proposta de análise interpretativa, investigação
histórica e elaboração poética/artística procura confrontar o racismo com a história
da arte brasileira.

É importante ressaltar que reconhecemos a sociedade brasileira estruturalmente


racista, como dito por Silvio Almeida (2019, p. 21). Significa que o racismo integra a
organização econômica e política da sociedade, por esse motivo sua manifestação é
normalizada socialmente. “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para
a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social
contemporânea”. Materializa-se como discriminação racial, o que define seu caráter
sistêmico. Não se separa de um projeto político e transcende o âmbito da ação
individual já que é parte da ordem social. Pensá-lo como parte da estrutura não retira
a responsabilidade individual, ao contrário, ao compreendê-lo estrutural e não como
ato isolado, nos responsabilizamos por combatê-lo agindo e mobilizando a luta
antirracista.

653
O racismo estrutural configura, portanto, modos de organização social que
atravessam gerações, mantendo inalterada a hierarquia das relações de dominação.
"Esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a
um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter
seus privilégios" (BENTO, 2022, p. 18). Cida Bento completa afirmando que esse pacto
da branquitude possui o componente narcísico, de autopreservação, como se o
"diferente" ameaçasse o que é considerado "normal", "universal".

O discurso europeu sempre destacou o tom da pele como a base


principal para distinguir status e valor. As noções de "bárbaros",
"pagãos", "selvagens" e "primitivos" evidenciam a cosmologia que
orientou a percepção eurocêntrica do outro nos grandes momentos de
expansão territorial da Europa. [...] o olhar europeu transformou os não
europeus em um diferente e, muitas vezes ameaçador, outro. (BENTO,
2022, p. 28)

Nesse sentido, Adilson Moreira (2019, p. 29) lembra o quanto é interessante observar
como as representações culturais sobre pessoas negras motivam atos racistas,
embora pessoas brancas pensem que são apenas meios aceitáveis de aproximação
social. Ofensas raciais são popularmente chamadas de "piadas" e/ou "brincadeiras" e
ocorrem em todos os lugares – "o humor não é uma mera reação reflexa, mas sim
produto do contexto cultural".

o humor racista não possui uma natureza benigna, porque ele é um


meio de propagação de hostilidade racial. Ele faz parte de um projeto
de dominação que chamaremos de racismo recreativo. Esse conceito
designa um tipo específico de opressão racial: a circulação de imagens
derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma
de humor, fator que compromete o status cultural e o status material
dos membros desses grupos. (MOREIRA, 2019, p. 31, grifo nosso)

Os mecanismos do racismo recreativo se utilizam do humor para manifestar a


hostilidade racial, e esta é uma estratégia que permite a manutenção do racismo
protegendo a imagem social das pessoas brancas. Ao refletir todos esses elementos
confirmamos o quanto o racismo assume diferentes formas e em diferentes
momentos históricos. Nesse viés, um bloco de discussões/atividades do projeto,
dedicou-se ao aprofundamento das perspectivas do racismo recreativo que,

654
recorrentemente, se materializa no cotidiano educativo, social, cultural e
institucional.

Na perspectiva da história da arte, reconhecemos o quanto o processo de


globalização deixa marcas em todas as dimensões da experiência humana, o que
muda significativamente a própria arte, seus objetos de estudo, suas teorias e
métodos. Essa realidade intricada requer, cada vez mais, uma visão crítica sobre a
história da construção do campo teórico, conceitual, estético e pragmático. O
movimento do interesse crescente pelas tradições artísticas africanas e afro-
brasileiras, é central para as discussões às quais nos propomos, além disso suas
interações com as tradições europeias, os marcadores da branquitude, da
masculinidade, da cisheteronormatividade.

Inspirando-se em uma história da arte de tradição europeia, a


construção do campo da história da arte no Brasil criou narrativas que
frequentemente excluíam uma parte significativa da cultura visual do
seu próprio território. A realidade visual do país inclui, evidentemente,
produtos de encontros de diferentes culturas ao longo do tempo. Entre
elas, as manifestações culturais dos vários povos deslocados à força do
continente africano. (AVOLESE; MENESES, 2020, p. 8)

O projeto correlaciona a produção artística com a política antirracista, produzindo


trabalhos que materializam em formas verbais e/ou não verbais a realidade do
cenário social no Brasil. Esse jogo, permite analisar aspectos que lidam diretamente
com as questões raciais e o racismo estrutural implementado no país. Nosso papel é
fomentar a discussão que é responsabilidade coletiva.

A trama artística/criativa

Os exercícios estético/interpretativos e a elaboração poética/artística pressupõe


(re)pensar ações/táticas individuais e coletivas, inter e transdisciplinares, contando
com um processo de (re)significação e (re)construção de possibilidades pedagógicas,
fazendo transcender a experiência, por ora imediatista da arte nas escolas técnicas
de nível médio, tornando possível sua apropriação significativa, construtora de
conhecimento sensível e cognitivo das/os sujeitas/os que dela usufruem.

655
A experiência artística considera o espaço da arte numa sociedade dominada por
uma estetização difusa, que tende a apagar os limites entre cotidiano e
extracotidiano (PILOTTO, 2005, p. 8). Frente à preocupação com os modos de
materialização da arte na contemporaneidade, inseridos e compreendidos como
bens culturais e sociais, observamos com mais proximidade alguns aspectos
identificados neste contexto atual que estabelecem o seu remodelamento,
especialmente no diz respeito às obras de formação cultural na perspectiva
antirracista.

Ao trabalhar comparativamente ao que já se vem discutindo (sobre o racismo) e


transcendendo na prática artística-criativa da pesquisa, o imediatismo da construção
dos conhecimentos e oportunidades de vivências estéticas cada produção artística é
desdobramento dos trabalhos investigativos desenvolvidos.

A idealização do trabalho/visualidade, decorreu da necessidade de materializar as


expressões racistas naturalizadas no ambiente escolar. A discussão sobre as
possibilidades técnicas e estéticas, ajudaram a definir a viabilidade plástica para
representar essa crítica às expressões racistas. No diálogo, optamos pelo
desenvolvimento temático/conceitual do racismo recreativo, recorrendo à ironia.

A seleção das imagens partiu da ênfase no termo "macaco" – recorrentemente


utilizado como "chacota" racista – o qual animaliza sujeitas/os, retrocedendo-as/os
no tempo, classificando-as/os como atrasadas/os histórica e socialmente. Esta
alusão de animalizar e classificar corpos como primitivos os inferioriza em relação
àqueles corpos, tidos como universais, ou seja, corpos brancos, especialmente os
masculinos.

O levantamento de imagens que pudessem ser associadas às famílias primitivas de


forma simplificada, objetivou representar a "evolução" cronológica, em termos
darwinistas, dos seres vivos. No jogo estético, há uma divisão dos seres irracionais e
racionais, onde a imagem que, teoricamente seria do macaco feoi substituída pela
imagem de um corpo negro, uma mulher.

656
Figura 01 – Escala Evolutiva, Gabriel Henrique, 2022. Detalhe do acabamento.

Fonte: Acervo do projeto. Fotografia: Rosa Amélia

A disposição dos elementos, a composição, não é ocasional, sim relacional com todo
o contexto acima descrito. O propósito da arte contemporânea de desarranjar a
ordem estabelecida das coisas, como dito por Paula Braga (2021, p. 196) talvez esteja
aqui ligando-nos e oferecendo-nos "um entendimento de arte como uma rede densa,
multidimensional, cujos nós são estados de invenção". A materialização do racismo
recreativo, por sua vez, constitui a multidimensionalidade da narrativa visual. Como
demonstrado na visualidade e na relacionalidade entre todos os elementos.

O processo de criação levou em conta cada uma das escolhas. Na sequência


descrevemos cada elemento da visualidade, o que faz parte de um processo
interpretativo que envolve subjetividades e escolhas políticas.

657
Figura 02 – Escala Evolutiva, Gabriel Henrique, 2022.

Fonte: Acervo do projeto.

O papel pardo como suporte, denota a autoidentificação estipulada pelo Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1960, que inclui a designação pardo
(branco/a; indígena; amarelo/a; preta/o e parda/o). É a partir dessa inserção que
pretos e pardos afirmam identidades e constroem a categoria negros. Como
retomada histórica e conceitual é preciso conhecer como a identidade racial
desencadeia as desigualdades sociais no Brasil.

Escala Evolutiva – *famílias primitivas, são expressões que remetem à evolução dos
seres vivos, segundo a Teoria da Evolução das Espécies do naturalista inglês Charles
Darwin, que em 1895 publicou o livro no qual expôs sua teoria acerca da
determinação da seleção natural sobre a evolução biológica. O título original do livro
é On the origin of species by means of natural selection.

658
Diversas áreas do conhecimento interpretaram e ressignificaram as
teorias de Darwin. Argumentos tidos como fundamentais, e que muitas
vezes de fato o eram, na teoria darwinista passaram a fazer parte das
análises em diferentes perspectivas. O impacto da teoria foi grande;
sua recepção gerou adesões e repulsas, marcadas por grande polêmica
tanto no espaço científico quanto fora dele; a apropriação e
ressignificação dos princípios darwinianos muitas vezes foram feitas
no intuito de justificar questões de cunho social. [...] Sobre a expressão
darwinismo social o pesquisador álvaro Girón Sierra afirma que o
darwinismo foi social desde o início, haja vista a pluralidade de leituras
feitas da teoria do naturalista inglês. (CARULA, 2016, p. 95).

A seta que aponta rumo a ordem crescente de "evolução" histórica, aponta para a
categoria que socialmente é entendida como "mais evoluída" da escala. Lembramos
que a evolução designa a adaptação dos seres vivos às alterações ocorridas no meio
ambiente, amplamente discutida no século XVIII, marco histórico das teorias raciais.
A provocação em termos visuais faz pensar nessas teorias "enquanto resultado de de
um momento específico, é preciso, também, entendê-las em seu movimento singular
e criador, enfatizando-se os usos que essas ideias tiveram em território nacional".
(SCHWARCZ, 1993, p. 23). E é no sentido de "evolução" humana que o tema racial se
transforma em argumento para o estabelecimento das diferenças sociais.

As figuras – peixe, anfíbio, réptil e humanas, aludem à simplificação da chamada


"evolução" das espécies, até chegar ao ser pensante e "civilizado" (indivíduo branco).
A narrativa é de uma história social dessas ideias

na qual tenham lugar tanto a dinâmica de reconstrução de conceitos e


modelos como o contexto em que essas teorias (raciais) se inserem,
que lhes confere ainda novos significados. Assim interessa
compreender como o argumento racial foi política e historicamente
construído, assim como o conceito raça, que além de sua definição
biológica acabou recebendo uma interpretação sobretudo social.
(SCHWARCZ, 1993, p. 23-24, grifo da autora)

As descrições que aparecem logo abaixo das imagens, assim como as datas referem-
se ao aparecimento de cada uma das espécies na cronologia evolutiva. Ressalta-se
que há uma ironia na substituição imagética do macaco (que caracteriza a
diferenciação dos mamíferos bípedes dos pensantes, ditos civilizados) com o corpo

659
negro, especificamente feminino. Trata-se da fotografia Mina Nago, de Augusto
Stahl, C. 1865 (ERMAKOFF, 2004, p. 244).

Feitas no século XIX em diversas partes do mundo, as fotografias


tinham o objetivo de apoiar estudos científicos comparativos sobre a
raça humana. Acreditava-se, então, que a observação sobre eventuais
diferenças físicas entre as diversas raças poderia comprovar
cientificamente teorias sobre superioridade racial – hoje consideradas
preconceituosas. (ERMAKOFF, 2004, p. 251).

Na imagem a legenda é acompanhada da afirmação "até os dias de hoje"


escancarando a referência às teorias racistas que mesmo refutadas cientificamente,
no século XIX, ainda encontram pessoas adeptas na tentativa de justificar a suposta
inferioridade da população negra.

Termos, datas, suporte, elementos visuais como a seta e a disposição das imagens e
expressões. Tudo foi discutido e planejado a fim de estarem posicionadas de modo a
incomodar leitoras e leitores da visualidade. Afinal, quaisquer pessoas ao se
depararem com o trabalho, podem (e devem) se questionar sobre a naturalização de
expressões racistas no ambiente escolar, na vida em sociedade.

660
Uma pausa, respira. As reverberações

Figura 02 – Escala Evolutiva, Gabriel Henrique, 2022.

Fonte: Acervo do projeto.

Em razão das conotações e denotações do material visual produzido,


planejamos a exposição do trabalho. Consideramos que as imagens são pontos de
partida, não meras chegadas. O intuito com a mostra foi colocar em circulação as
imagens, o cartaz foi o disparador para que, como comunidade acadêmica
pudéssemos discuti-las, inquietar, desviar, provocar, engajar e ironizar de maneira
disruptiva. "Quando encaro essa imagem, esse olhar negro, algo em mim se
despedaça. Eu preciso recolher os pedaços e cacos de quem sou e começar tudo
outra vez – transformada pela imagem." (hooks, 2019, p. 42)

O local escolhido foi um dos corredores da escola, mobilizando as pessoas que


circulam pelo espaço escolar à leitura do trabalho. Pensamos que, como gatilho de
reflexões a visualidade devesse inquietar muitas pessoas, que tensionam as relações

661
raciais, mas além disso, nos colocamos também frente ao grupo que mesmo diante
da materialização do racismo, pelas imagens, não se incomoda, porque diante de toda
a estrutura racial engendrada no país, já naturalizou o racismo ao ponto de não mais
reconhecê-lo.

A partir da fixação na parede, às vésperas de um fim de semana, obtivemos resultados


inesperados, logo no início da semana subsequente. O trabalho foi retirado da parede
por conta das discussões fomentadas e do descontentamento de um grupo de
discentes. Curioso é que a retirada foi feita por uma pessoa do corpo docente.

Frente à notificação sobre a eventualidade, questionamos, antes de mais nada, o


papel da arte, sua efetividade e seu reconhecimento como campo de saberes. Afinal,
a arte tem a potencialidade de nos tirar do lugar, mas, nesse caso, ela mesma foi
retirada, o que revela muito de como os espaços acadêmicos funcionam e como as
reverberações são reveladoras do sistema educacional estruturalmente racista no
qual nos inserimos.

Diante disso, ampliamos a discussão acerca do projeto e do trabalho, dialogamos com


todas as pessoas que se sentiram 'ofendidas'. Apresentamos a intencionalidade e
refletimos sobre o desencadeamento. Como proposto por bell hooks (2019),
tensionamos a disposição de pensar as imagens de forma crítica e reconhecemos que
devemos estar dispostas/os a correr riscos. "Seus modos de olhar devem ser
fundamentalmente alterados. Eles devem ser capazes de se engajar na luta da
militância negra pela transformação das imagens" (hooks, 2019, p. 41).

Na dialogicidade, é possível (re)pensar o contexto histórico-científico, (re)ver as


referências que constituem nossas abordagens, reconhecendo que são
prioritariamente brancas, masculinas, hegemônicas e eurocêntricas. Todas as
repercussões aprofundaram emergências conceituais, apontaram para o
desconhecimento da potencialidade do racismo recreativo, e evidenciaram o quanto
as pessoas negras possuem consciência dolorosa sobre os circuitos institucionais.
Todo o trabalho aponta para a urgência da adesão de alidas/os não negras/os nessa
luta que é de todas as pessoas.

662
Considerações possíveis

Desejamos que as pessoas, no ambiente escolar, não passem despercebidas diante


de imagens. Pessoas brancas que circulam pelo campus e não se atentam a esse tipo
de narrativa, reforçam o usufruto do lugar de privilégios, com corpos não
racializados. Pessoas brancas que se questionam sobre a visualidade demonstram
afeto e mais que isso, caracterizam seu status quo e podem estar em meio ao
processo de transformação racial, buscando e construindo táticas de
desaprendizagem do racismo, incutido em seus corpos e vidas.

No caso de pessoas negras, discutimos o quanto de dor e brutalidade essa


materialização acarreta, especialmente para as pessoas que já sofreram esse tipo de
violência. Esse mesmo grupo, se não se sentir incomodado, escancara a naturalização
do racismo estrutural e coloca em pauta muitos outros elementos que precisam ser
amplamente debatidos cotidianamente nas instituições de ensino.

Referências

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BISPO, Alexandre Araujo; FELINTO, Renata. Arte afro-brasileira para quê? 2014. Disponível
em:http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/arte-afro-brasi- leira-para-que.
Acesso em: 19 jul. 2021.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96. Brasília: Editora do
Brasil, 1996.
BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9. 394, de 20 de
dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília.
BRAGA, Paula. Arte contemporânea: modos de usar. São Paulo: Elefante, 2021.
BULHÕES, Maria Amélia. Arte contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte-MG: Letramento, 2018.
CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução
Marcelo Brandão Cipolla. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo.Travessias latino-americanas da
comunicação na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

663
MUNANGA, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é, afinal? In: PEDROSA, Adriano;
TOLEDO, Tomás (org. editorial). Histórias afro-atlânticas: vol. 1 catálogo. São Paulo: MASP:
Instituto Tomie Ohtake, 2018. p. 113-124.
MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2019.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA Liliana da (orgs.). Pistas do método da
cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020.
PILLOTTO, Silvia Sell Duarte. (Org.). Processos curriculares em arte: da universidade ao
ensino básico. Joinville, SC: Editora Univille, 2005.
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 4 ed. revista.
Campinas, SP: Autores Associados, 2012.

Mini Currículos

Rosa Amélia Barbosa


Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de São Paulo, Campus
Avançado Ilha Solteira (IFSP/IST). Doutora em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). Mestra em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Graduada em Artes Visuais e Pedagogia. Orientadora PIBIFSP. Engajada nas lutas antirracistas e
antissexistas e na construção de uma pedagogia libertária. E-mail: rosa.barbosa@ifsp.edu.br

Gabriel Henrique Estevão da Costa


Estudante do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de São Paulo, Campus
Avançado Ilha Solteira (IFSP/IST), cursando o terceiro ano do Curso Técnico em Edificações
Integrado ao Ensino Médio. Bolsista PIBIFSP do projeto Artivismo Antirracista e processos de criação
pela mesma instituição. E-mail: gabriel.estevao@aluno.ifsp.edu.br

664
CONTRAVISUALIDADES E AUTONOMIA DESDE O BRASIL

CONTRAVISUALITIES AND AUTONOMY SINCE BRAZIL

Marília Claudia Favreto Sinãni


Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre as práticas de dominação por trás das
táticas de contrainsurgência que vêm sendo difundidas nos meios de comunicação para
legitimar narrativas hegemônicas e totalitárias que classificam e separam a sociedade. Desde
o Brasil, propõe questionamentos acerca dos processos de dicotomização, problematiza a
situação política atual para discutir os impactos que a guerra de informação-visualizada vem
causando na construção e consolidação de visões de mundo, marcadas pela desinformação
e pela naturalização da violência. Compreende que as imagens atuam como veículos da
memória, sendo capazes de formar subjetivamente os/as indivíduos. Apresenta exemplos de
contravisualidades para buscar novas formas de transformar visualmente e socialmente o
mundo, e aponta a educação como um caminho para superar os discursos pautados na
visualidade autoritária, contribuindo para a construção da autonomia.

Palavras-chave: Cultura Visual; Decolonialidade; Isolamento social.

Abstract

This article aims to reflect on the practices of domination behind counter-insurgency tactics
that have been disseminated in the media to legitimize hegemonic and totalitarian narratives
that classify and separate society. Since Brazil, it proposes questions about the
dichotomization processes, problematizes the current political situation to discuss the
impacts that the information-visualized war has been causing in the construction and
consolidation of world views, marked by misinformation and the naturalization of violence.
It understands that images act as vehicles of memory, being able to form subjectively
the/individuals. It presents examples of counter-visions to seek new ways to visually and
socially transform the world, and points to education as a way to overcome discourses based
on authoritarian visuality, contributing to the construction of autonomy.

Keywords: Visual Culture; Decoloniality; Social isolation.

665
Desde o Brasil, meu local de inserção, percebo que houve um crescimento
significante de produção de imagens, de 2017 até agora. Contudo, durante o
isolamento social em 2020, parece que as imagens (estáticas e/ou em movimento)
tomaram conta das mídias, revelando sua tamanha facilidade em comunicar as
plurais vivências de mundo. Quando entramos em nossas redes sociais, nos
deparamos com múltiplas visões de mundo sobre variados assuntos; temos acesso a
um grande acervo imagético e fontes de consulta que estão a nossa disposição para
pesquisa; temos a possibilidade de nos comunicarmos por imagens e textos curtos
de forma rápida e fácil; e, ao mesmo tempo que encontramos contravisualidades que
refletem a resistência diante de problemáticas sociais, também somos expostos a
propagação de Fake News que naturalizam narrativas hegemônicas e autoritárias. Ou
seja, as imagens estão sempre nos atravessando, subjetivamente e objetivamente.

Protagonistas nos meios massivos de comunicação, as imagens atuam como


construções sociais que, de certo modo, são também responsáveis por formar
percepções de mundo. Mas, e quando essas imagens trazem as chamadas Fake News
ou apresentam apenas uma visão de mundo sobre o todo? Estamos, de fato,
vivenciando uma guerra de informação-visualizada? Seriam as contravisualidades
uma alternativa possível para confrontar as narrativas hegemônicas? Neste artigo,
busco provocar reflexões acerca do contexto brasileiro, apresentando imagens e
revisitando momentos em que as táticas de contrainsurgência (MARINI, 2018;
MIRZOEFF, 2016) parecem estar presentes em nosso cotidiano.

As discussões e os questionamentos aqui apresentados são construídos a partir das


contribuições de pesquisadores/as da área da cultura visual, educação e
decolonialidade que visam problematizar os discursos dicotomizadores e
hegemônicos na sociedade.

Imagens e construções sociais

Quando acessamos as nossas redes sociais, é possível perceber que houve um


aumento na produção de imagens, que vêm sendo criadas e difundidas de formas
cada vez mais rápida, com o objetivo de retratar fragmentos da realidade, individual
e/ou coletiva. Somos, a todo tempo, convidados a visualizar diferentes contextos e
vivências de pessoas que se comunicam por meio de imagens. Se observarmos o

666
contexto brasileiro, esse crescimento significante tornou-se ainda mais evidente
durante o isolamento social provocado pela pandemia do Corona vírus. De acordo
com Xavier (2020, p. 15)

Durante o isolamento social, começamos a interagir com o mundo e


com as pessoas por meio de telas digitais; a internet passou a ser um
dos principais veículos de conexão entre as pessoas, utilizando a arte
como meio. Nunca se produziu e se consumiu tantas imagens. As redes
sociais já eram utilizadas para comunicação através de imagens, mas
no contexto pandêmico, estão se tornando cada vez mais espaços
virtuais de mobilização e produção de arte e cultura que, por serem no
formato on-line, levam imagens em movimento ou estáticas para cada
pessoa, apesar de distância entre elas, rompendo as fronteiras físicas.

O que as futuras gerações conhecerão dos efeitos da pandemia de coronavírus no


mundo, por exemplo, será, em grande parte, construída a partir das diferentes
formas como ela foi retratada nos meios de comunicação. Produziu-se um grande
acervo de imagens que refletem distintas visões de mundo acerca do isolamento
social. Por um lado, foram produzidas imagens que traziam a hashtag #fiqueemcasa1
em formato de apoio ao isolamento social como prevenção aos riscos de exposição
ao coronavírus. Do outro, encontramos produções imagéticas que construíram
narrativas através de discursos políticos que iam contra o isolamento social, a partir
da justificativa de estar em defesa da economia no país, reforçadas pela hashtag
#OBrasilNãoPodeParar2. Vemos duas visões de mundo sendo difundidas, na qual se
produzem imagens, estáticas e em movimento, capazes de criar duas narrativas
distintas sobre um mesmo fato, fortalecendo um processo de dicotomização entre
prevenção vs. economia. Parto deste exemplo para trazer a importância das imagens
na construção social e histórica de mundo, considerando que:

Enquanto atividade social, as imagens representam as formas como os


seres humanos compartilham suas experiências, abrindo
possibilidades para que as pessoas criem novas significações ou

1
#FIQUEEMCASA: Campanha de CartaCapital pede união contra coronavírus. CartaCapital, São Paulo, 19 de jun. de
2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/saude/fiqueemcasa-campanha-de-cartacapital-pede-
uniao-contra-coronavirus/>. Acesso em: 12 out. 2022.
2
BOLSONARO lança vídeo com o slogan #oBrasilNãoPodeParar. Poder 360, [s.l.], 27 de mar. de 2020. Disponível em:
<https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-lanca-video-com-slogan-obrasilnaopodeparar/>. Acesso em:
12 out. 2022.
667
atribuam outros sentidos ao que veem e percebem, ou ao que
conhecem. (ABREU & ÁLVAREZ, 2019, p. 832).

Compreendendo as imagens como produtos culturais, acredito que elas constroem


sentidos e significações, atuando também como veículos da memória (JELIN, 2001).
Se, de acordo com Jelin (2001), a memória é produzida quando os sujeitos
compartilham uma cultura e tentam materializá-la na história, as imagens são
produtos culturais que compartilham a pluralidade de experiências vividas
subjetivamente, construindo narrativas para a ativação do passado na sociedade.

É cada vez mais comum vermos mais imagens do que textos como meios de
comunicação porque “las imágenes han jugado un papel crucial en la comunicación
intercultural: son un lenguaje proliferante de códigos y mensajes tácitos que se
despliegan en múltiples sentidos, sin formar un trayecto rectilíneo o unidimensional”
(RIVERA-CUSICANQUI, 2015, p.73). No mundo digital, pós-isolamento social da
pandemia do coronavírus, as imagens vêm se tornando cada vez mais complexas de
serem definidas e interpretadas. Circulam por diversos meios e acabam até por
perder a sua autoria e resolução. Os/as espectadores/as têm ao seu dispor um
imenso acervo imagético, publicam e/ou compartilham imagens que podem ter sido
criadas por eles/as ou não, realizando intervenções que produzem novos sentidos e
discursos (MIRZOEFF, 2016).

Voltando ao nosso exemplo de discursos através de hashtags, expressos em imagens


criadas durante a pandemia, podemos compreender que uma das funções da imagem
seriam a de apropriação e expressão da realidade social porque criam narrativas no
imaginário popular e formam a nossa visão sobre o que se passa ou se passou no
mundo (MERLINSKY & SERAFINI, 2020, p. 20).

Contrainsurgências e contravisualidades no Brasil

Quando observamos de forma crítica o contexto brasileiro atual, é possível


identificar o aumento de táticas de contrainsurgências nas imagens que vêm sendo
produzidas e compartilhadas nas redes sociais? Marini (2018) nos traz o conceito de
contrainsurgência para apontar um movimento contrarrevolucionário. Sustentado
por táticas que aderem aos métodos militares de luta e atrelados aos interesses da

668
burguesia monopolista, veem a luta política como uma guerra, de uma forma que o
oponente é sempre considerado um inimigo, um vírus que precisa ser derrotado.

[...] a contrainsurgência considera o movimento revolucionário como


algo externo à sociedade em que se desenvolve; em consequência, vê o
processo revolucionário como subversão provocada pela infiltração do
inimigo. O movimento revolucionário é visto como um vírus, um agente
infiltrado de fora que provoca no organismo social um tumor, um
câncer, que deve ser extirpado, eliminado, suprimido, aniquilado.
(MARINI, 2018, p. 3).

Junto ao aumento de produção de imagens, não podemos negar o crescimento de


doutrinas de contrainsurgência no país. O que se viu no fortalecimento do
movimento antivacina3 durante a pandemia e do movimento anti-esquerda4
reforçado pela extrema direita no Brasil, por exemplo, parecem colocar qualquer
ação de busca pelos direitos do povo como um vírus maior do que o próprio SARS-
CoV-25. O direito à saúde de qualidade com acesso gratuito e a luta pela democracia
e por direitos iguais, muitas vezes, são divulgados nas mídias como ações de
insurgência que precisam ser contidas. De certo modo, as mídias acabam por atuar
como ‘sistemas educativos’, devido ao largo alcance pelos meios massivos de
comunicação, e introjetam no povo os projetos do sistema autoritário (DUSSEL,
1980).

Um ponto interessante a se trazer para pensar as táticas de contrainsurgência são os


processos de dicotomização que se estendem até os dias atuais. Pensando o contexto
brasileiro, temos como herança uma história condicionada pelos processos de
colonialismo e pela instauração da colonialidade. Entendendo o conceito de
colonialismo como um processo de invasão territorial/cultural realizado no passado
histórico (CESAIRE, 1978), e a colonialidade como um vínculo histórico-cultural entre
o passado colonial e o presente que resulta da experiência moderna – forjada pelos

3
LÚCIA, Isadora; FERNANDES, Laura. Movimento antivacina no Brasil: entenda esse fenômeno e seu fortalecimento
durante a pandemia. Lamparina UFOP, Ouro Preto, 24 de agosto de 2021. Disponível em:
<https://sites.ufop.br/lamparina/blog/movimento-antivacina-no-brasil-entenda-esse-fen%C3%B4meno-e-seu-
fortalecimento-durante>. Acesso em 11 out. 2022.
4
LONGO, Ivan. Discurso anti-esquerda de Bolsonaro é o mesmo dos nazistas, aponta historiados alemão. Revista
Fórum, [s.l.], 06 de abril de 2021. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/politica/2019/4/6/discurso-anti-
esquerda-de-bolsonaro-mesmo-dos-nazistas-aponta-historiador-alemo-54726.html>. Acesso em 11 out. 2022.
5
Vírus responsável por causar a COVID-19.
669
homens ocidentais – que utiliza da universalidade do conhecimento para justificar a
separação entre superior vs. inferior na sociedade (QUIJANO, 2010), carregamos em
nossas visões de mundo um histórico de produção de dicotomias que reforçam a
diferença e a separação sub ontológica entre os seres humanos. Considerando a
nossa construção histórica, compreendo que a contrainsurgência é também uma
forma de promover a separação no âmbito social e vêm sendo utilizada na
manipulação de imagens que visam ensinar que a luta de classes é como uma guerra,
naturalizando, assim, os processos dicotomizadores, visto que “o objetivo da contra
insurgência não é criar estabilidade, mas naturalizar o desequilíbrio de forças que se
manifesta na guerra e, assim, perpetuar-se a si própria” (MIRZOEFF, 2016, p. 761).

Tomemos como exemplo a polarização política no Brasil e a constante produção de


Fake News6 que são compartilhadas e desmentidas a todo instante pelos meios de
comunicação. São tantas imagens circulando, com tantas informações e
desinformações, que geram instabilidade ao ponto de tornar-se difícil saber quem
está falando a verdade. Se as imagens já não exigem tanto do espectador, mas, ao
mesmo tempo, forma opiniões nos sujeitos, quais fontes são confiáveis ou não?
Estamos em uma espécie de guerra visual de informações. É possível refletirmos que
o aumento excessivo de produção de imagens também promoveu a doutrina de
contrainsurgência, criando uma guerra de informação-visualizada que, para Mirzoeff
(2016, p. 763) “é agora um meio para mapear o caos, localizando lugares a serem
separados e convertê-los em alvo.” Ao mesmo tempo que as imagens fazem parte de
nosso cotidiano, muitas delas podem não exigir tanto do espectador, sendo
construídas ininterruptamente a partir da frase axiomática “chispem, não há nada
para ver aqui” que restringe o direito a olhar e consolida uma política autoritária e
incoerente (MIRZOEFF, 2016, p. 763).

A contrainsurgência reproduz uma visualidade autoritária e hegemônica como um


projeto que classifica e separa os grupos, formando o que Mirzoeff (2016) chama de
complexo de visualidade, sendo que:

6
São notícias falsas disseminadas nos variados meios de comunicação, sendo manipuladas para causar
desinformação de quem lê. Teve um aumento significativo no ano de 2016 quando as “Fake News” foram utilizadas
durante a corrida presidencial nos Estados Unidos com o objetivo de enganar o eleitor. No Brasil, foi um fenômeno
presente nas eleições de 2018, promovendo a disseminação de notícias forjadas que favoreciam discursos de ódio
e mentiras na internet.
670
Complexo aqui significa a produção de um conjunto de organizações
sociais e processos que formam um dado complexo, como o complexo
plantation, e a economia psíquica de um indivíduo, tal como o
complexo de Édipo, embora eu não tenha espaço para desenvolver esse
ponto do argumento aqui. A imbricação resultante entre mentalidade
e organização produz uma visualizada disposição estratégica de corpos
e um treinamento das mentes, organizada para sustentar a segregação
física entre governantes e governados e a aquiescência mental e tais
arranjos. O complexo resultante tem volume e substância, formando
um mundo vivo que pode ser visualizado e habitado. (MIRZOEFF, 2016,
p. 752).

Quando Mirzoeff (2016) fala de visualidade, se refere a uma prática discursiva


utilizada na regulação da realidade para efeitos de dominação, apontando três
complexos visuais no decorrer da história: plantation, imperial e militar-industrial. O
complexo de plantation, praticado no comércio transatlântico de escravos entre
1660 e 1685, diz respeito à fiscalização das atividades dos escravizados por parte do
capataz – nomeado pelo soberano – na tentativa de restringir o direito a olhar e
imaginar dos subalternizados. Um outro domínio da visualidade, que ocorreu entre
1857 e 1947, foi o complexo imperial que se preocupava com a separação e
hierarquização dos indivíduos, classificando-os como “civilizados” e “primitivos”,
“pessoas com cultura” e “pessoas sem cultura”, “superior” e “inferior”, construído a
partir de um viés colonizador. Por fim, o complexo militar-industrial é aquele que
iniciou a partir de 1945 e dura até os dias atuais, tendo a contrainsurgência como
reflexo, tornando-o cada vez mais intensificado (MIRZOEFF, 2016).

Observando o nosso contexto, as imagens que propagam Fake News em prol do


movimento anti-vacina e do movimento anti-esquerda, por exemplo, seriam táticas
de contra insurgência elaboradas para forjar construções visuais sobre o social e
promover cada vez mais a separação e a subalternização do povo? Quais as formas
de problematizar as táticas de contrainsurgência que vêm sendo difundidas nos
meios massivos de comunicação?

Para ir de encontro com esses questionamentos, podemos pensar sobre as


contravisualidades. Se as táticas de contrainsurgência visam introjetar narrativas e
discursos para a dominação, “as contravisualidades têm a potencialidade de exagitar
os significados atribuídos às imagens circundantes, criando processos de
agenciamento e subjetivação surgidos dessas tramas que conduzem os olhares e as
671
existências” (ABREU & ÁLVARES, 2019, p. 832). As contravisualidades problematizam
os processos de classificação e separação reproduzidas pela visualidade hegemônica
e autoritária de que falamos anteriormente, buscando formas de reivindicar a
autonomia do direito a olhar que, para Mirzoeff (2016, p. 749):

O direito a olhar não é, portanto, um direito relativo à declaração de


direitos humanos ou defesa de pautas. O direito a olhar é uma recusa a
permitir que a autoridade suture sua interpretação do sensível para
fins de dominação, primeiro como lei e, em seguida, como estética.

Essa busca por autonomia confronta a naturalização das narrativas hegemônicas e


dos discursos que tentam nos incutir como ‘verdades absolutas’ de caráter
contrarrevolucionário. Assim como a grande produção de imagens no período do
isolamento social escancarou a difusão de táticas contrainsurgentes nos meios de
comunicação, as contravisualidades também encontraram espaço para confrontar
essas narrativas. Encontramos imagens que atuam como forma de resistência às
práticas de dominação, denunciando a desinformação, desnaturalizando a violência
e abrindo espaço para discussões cada vez mais críticas sobre a importância da
imagem em nossa formação.

Da imagem (Figura 1) que problematiza a fala do atual presidente “A gente lamenta


todos os mortos, mas é o destino de todo mundo” (BOLSONARO, 2020, s/p.), à
imagem digital criada para denunciar os efeitos negativos desencadeados pela
campanha #OBrasilNãoPodeParar que foi contra o isolamento social (Figura 2),
percebe-se que os discursos contrainsurgentes que tentam minimizar e naturalizar
as violências e as mortes ocasionadas pela Covid-19 são revisitados, apropriados e
transformados em imagens que podem ser vistas como exemplos de
contravisualidades, trazendo de volta à memória coletiva o peso catastrófico que
estas falas tiveram no Brasil, principalmente entre os mais pobres.

672
Figura 1: Intervenção parietal em Pelotas/RS, autor desconhecido. Fotografado por Marília Sinãni.
Fonte: Arquivo Pessoal.

673
Figura 2: O Brasil não pode parar? Desenho digital, Marília Sinãni, 2022.
Fonte: Arquivo Pessoal.

Pensando a importância das contravisualidades, as duas imagens (Figura 1 e 2)


convidam-nos a retirarmo-nos da posição de meros espectadores passivos, abrindo
possibilidades para que possamos criar significações e sentidos, construindo uma
autonomia na forma como vemos e vivenciamos o mundo (STRECK et al., 2010).
Reivindicam o direito a olhar e ver-se como sujeito histórico que têm o direito de
sentir, de agir sobre aquilo que vê, de interpretar e criar contranarrativas para além
da hegemonia das contrainsurgências e da reprodução da visualidade autoritária que
classifica os seres como subalternos.

Se Dussel (1980) já nos alertava sobre os meios massivos de comunicação serem um


dos mecanismos que formam o povo, Mirzoeff (2016) afirma que a educação, desde
muito tempo, é um meio de superar as classificações e buscar libertar-se das
674
narrativas hegemônicas que vêm sendo difundidas pelas mídias. É por meio da
educação que nos percebemos como sujeitos históricos, tomando consciência
daquilo que somos e daquilo que vivenciamos (DUSSEL, 1980).

As imagens estão nas redes sociais e os/as educandos/as estão em contato com elas
a todo tempo. As imagens que trazem narrativas hegemônicas estão nas redes sociais
e na própria sala de aula. Porém, como essa guerra de informação-visualizada vem
sendo recebida pelos alunos? E o contato direto com as propagações de Fake News,
como interfere na forma que as pessoas veem o mundo? Não podemos negar que as
imagens produzidas a serviço da contrainsurgência podem alienar aqueles/as que
entram em contato com elas.

Nós, professores que trabalham com imagens, precisamos promover discussões


acerca de sua capacidade para moldar a nossa forma de construir a realidade que
vivemos e partilhamos. Vai além de mediar processos de leitura de imagens.
Considerando as contribuições dos estudos das culturas visuais, parto da ideia de
que “seu foco não está tanto na “leitura” das imagens, mas nas formas como
aprendemos a construir social e subjetivamente modos de ver e de interpretar nossa
relação com os “outros”. (ABREU & ÁLVAREZ, 2019, p. 832). Reconheço que elas
podem ser interpretadas de diversas formas, sendo responsáveis pela formação de
subjetividades e pela fundamentação de discursos capazes de consolidar diferentes
visões de mundo. Estamos falando aqui de buscar formas de tomar consciência de
que existem regimes de visualidade que tentam adestrar o nosso olhar para, assim,
nos dominar e limitar nossos direitos.

Proponho que pensemos as contravisualidades como uma alternativa pedagógica


porque confrontam as narrativas totalitárias reproduzidas nos meios de
comunicação e que se estendem até os conteúdos trabalhados em sala de aula como,
por exemplo, imagens que reafirmam o mito de que o Brasil foi ‘descoberto’ ao invés
de invadido, porque traz para o âmbito escolar discussões que valorizam o cotidiano
e as percepções dos/as educandos/as sobre o que vem acontecendo no mundo. Na
luta pelo direito de olhar, buscamos a valorização da educação por meio de imagens.
Considerando a perspectiva das contravisualidades e conhecendo a potência das
imagens, traçaremos caminhos para uma educação crítica e decolonial porque o
mundo da imagem é um mundo capaz de comunicar e tocar a sensibilidade popular

675
melhor do que a palavra escrita. A imagem se aproxima da experiência de mundo
dos/as educandos/as porque é capaz de comunicar aquilo que se vive, portanto,
precisamos aprender a interpretar as narrativas para ampliarmos a nossa percepção
e exercermos nossa presença de mundo.

Referências

ABREU, C. L. de; ÁLVAREZ, J. S. O.; MONTELES, N. J. S. O que podemos aprender das


contravisualidades? In. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em
Artes Plásticas, 28º, 2019, Cidade de Goiás. Anais. Goiás: ANPAP, 2019. Disponível em:
<http://anpap.org.br/anais/2019/PDF/ARTIGO/28encontro______ABREU_Carla_Luzi
a_de_e_%C3%81LVAREZ_Juan_Sebasti%C3%A1n_Ospina_e_MONTELES_Nayara_Joyse
_Silva_831-846.pdf>. Acesso em 10 out. 2022.
BOLSONARO: ‘A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo. Uol
Notícias, São Paulo, 02 de junho de 2020. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/bolsonaro-
a-gente-lamenta-todos-os-mortos-mas-e-o-destino-de-todo-mundo.htm>. Acesso em 13
out. 2022.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso Sobre o Colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.
DUSSEL, Enrique. La pedagógica latinoamericana. Bogotá: Nueva América, 1980.
HERMÍNIO, Beatriz. Fake News: origem, usos atuais e regulamentação. Instituto de
Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, São Paulo, 12 de abril de 2022.
Disponível em: < http://www.iea.usp.br/noticias/fake-news-origem-usos-atuais-e-
regulamentacao>. Acesso em 11 out. 2022.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Siglo XXI de España Editores S. A.: Madrid,
2002.
MARINI, R. M.; CASTELO, R. O Estado de Contra-Insurgência. Revista de Estudos e
Pesquisas sobre as Américas, [S. l.], v. 12, n. 3, p. 1–15, 2018. DOI:
10.21057/repamv12n3.2018.31528. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/20985. Acesso em: 13 out.
2022.
MERLINSKY, M. G.; SERAFINI, P. Arte y ecología política. Buenos Aires: CLACSO, 2020.
MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, SP, v.
18, n. 4, p. 745-768, nov. 2016. ISSN 1676-2592. Disponível em:
<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472>. Acesso
em: 10 out. 2022.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. CLACSO,
2010. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-
sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em 09 set. 2021.

676
RIVERA-CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia
andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
STRECK, R. Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, José Jaime (Orgs). Dicionário
Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

Mini Currículo

Marília Claudia Favreto Sinãni


Professora e artista visual, possui Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (2019), atualmente, é estudante regular e bolsista CAPES no Mestrado Acadêmico em
Educação do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail:
profmariliasinani@gmail.com

677
#REEXISTIR: MIDIAEDUCAÇÃO CONTRAVISUAL PARA DESCOLONIZAR
MODOS DE VER
#REEXISTIR: CONTRAVISUAL MEDIAEDUCATION TO DECOLONISE
WAYS OF SEEING

Ludmilla Pollyana Duarte


UNIRIO, Brasil

Resumo

Este trabalho traz diálogos epistemológicos entre os campos da Educação, Comunicação e


da Cultura Visual para pensar na descolonização dos modos de ver, reflexões que compõem
parte inicial de uma tese de doutorado em andamento, ligada ao grupo de pesquisa XXX de
uma universidade pública brasileira. Para tal, refletimos sobre artefatos midiáticos de
(re)existência conectados a movimentos sociais latentes na América Latina, estes altamente
propagados na Cultura Visual contemporânea em rede, como os memes da internet. Por fim,
vislumbramos atravessamentos com o pensamento decolonial e práticas pedagógicas
contravisuais na midiaeducação. Bricolagens que nos fazem problematizar a emergência de
resistir às práticas culturais do ver colonial para que sujeitos e sujeitas, historicamente
invisibilizados, possam (re)existir, ou seja, resistir para existir.

Palavras-chave: (Re)existir; Midiaeducação; Contravisual; Decolonial.

Abstract

This work brings epistemological dialogues between the fields of Education, Communication
and Visual Culture to think about the decolonization of ways of seeing, reflections that make
up the initial part of an ongoing doctoral thesis, linked to the XXX research group of a
Brazilian public university. To this end, we reflect on media artifacts of (re)existence
connected to latent social movements in Latin America, these highly propagated in
contemporary Visual Culture in the network, such as internet memes. Finally, we envision
crossings with decolonial thinking and counter-visual pedagogical practices in media
education. Bricolages that make us problematize the emergence of resisting the cultural
practices of the colonial view so that historically invisible subjects and subjects can (re)exist,
that is, resist in order to exist.

Keywords: (Re)exist; Media education; Contravisual; Decolonial.

678
Cultura Visual e Mídiaeducação

Num mundo digital em constante transformação, com visualidades e narrativas


altamente propagadas e mutáveis, aprendemos em coletivo, através das interações
sociais, sejam elas presenciais ou virtuais: “Aprendemos a decifrar o mundo e a
comunicar sentido nele. As diferentes linguagens, entres elas a não verbal (incluindo
a corporal, pictórica, iconográfica, etc.), são adquiridas nos terreiros culturais e
sociais em que nos movemos e crescemos” (CAMPOS, 2013, p. 42). A capacidade de
propagação, representação e comunicação dos artefatos midiáticos em rede, pode
estar ligada não apenas com os repertórios individuais e coletivos dos sujeitos. Mas
em como os saberes e conhecimentos acontecem, são trocados e assimilados,
especialmente se pensarmos na fluidez e rapidez comunicacional dos nossos tempos.
Crary (2012) ao analisar a história das representações para entender o lugar do
observador, defende que para compreensão da visualidade contemporânea é
fundamental pensar como e onde se situam as rupturas dos modelos clássicos de
visão. Se refere aos movimentos de vanguarda europeus do início do século XX, que
buscaram questionar e propor novos modos de ver, pensar e de representar o
mundo. O modelo clássico consagrado da antiga grécia ao renascimento sofreu
rupturas significativas que vão muito além das formas, linhas e cores, ou da aparência
das imagens em si “ao contrário, foi inseparável de uma vasta reorganização do
conhecimento e das práticas sociais que, de inúmeras maneiras, modificaram as
capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano” (CRARY, 2012, p.
13).

Segundo Campos (2013) e Crary (2012) as representações nos dizem sobre questões
históricas, sociais e nos aproximam dos sujeitos. Por isso, Campos considera que a
ideia original da obra renascentista se torna difusa na atualidade. Pois no
renascimento estava atrelada aos anseios científicos e iluministas próprios dos
grupos de intelectuais e produtores de saberes da época. Dessa maneira, as
representações nos aproximam da forma que os sujeitos veem o mundo e sobretudo,
da forma que se organiza o pensamento sobre o mundo. Sendo assim, “uma
representação visual é sempre, invariavelmente, uma representação social”
(CAMPOS, 2013, p. 20). Levantamos reflexões inclinadas para o campo educacional
para pensar nas representações altamente visualizadas no nosso cotidiano em rede,

679
como os artefatos midiáticos chamados de memes. Será que tais considerações
postas pelos autores acima, são válidas para os artefatos midiáticos em rede? O que
os artefatos midiáticos dizem dos saberes da atualidade? Devemos considerar essas
visualidades nas práticas pedagógicas? Reflexões que segundo Fernando Hernández,
estão no cerne da Cultura Visual pois, a própria expressão “refere-se a uma
diversidade de práticas e interpretações críticas em torno das relações entre as
posições subjetivas e as práticas culturais e sociais do olhar” (HERNÁNDEZ, 2007, p.
22).

Um dos caminhos intencionados aqui é refletir na educação para as mídias, como


potência para romper bolhas de afinidades e estimular olhares plurais, diversos e
críticos sobre si e o mundo. Hernández vê na sua abordagem crítica e performativa
para educação, educadores como mediadores, estes que devem proporcionar
momentos aos estudantes para problematizar, criticar, relacionar, e de produzir
sentidos com/através ou contra as visualidades que os afetam diariamente. E assim
como educadores são mediadores, as imagens também “são mediadoras de valores
culturais e contém metáforas nascidas da necessidade social de construir
significados” (HERNÁNDEZ, 2002, p. 133). E é fundamental “reconhecer essas
metáforas e seu valor em diferentes culturas, assim como estabelecer as
possibilidades de produzir outras, é uma das finalidades da educação para
compreensão da cultura visual” (ibidem, p. 133). E olhares críticos perante a cultura
visual exigem posturas atentas aos processos hegemônicos de dominação como traz
Teresinha Sueli Franz no “instrumento de mediação e análise crítica de uma imagem”
(2006). Na qual destaca a importância das mediações tanto da educação como na
análise de imagens, propõe que uma das finalidades da educação para compreensão
crítica de imagens e da arte, é justamente fazer novas perguntas e “justapor
diferentes interpretações contra as idéias universalistas de verdade que a arte
ocidental impõe a situar as práticas de medicação entre arte e seus públicos dentro
de uma análise que explora as tão frequentemente ignoradas relações complexas de
poder” (FRANZ, 2006, p. 7). Franz acredita que as imagens do cotidiano deveriam ser
mais valorizadas nos estudos visuais na escola, pelo poder que possuem de moldar
não apenas visões de mundo, mas como as pessoas atuam nele, especialmente

680
pensando nessas relações complexas de poder que envolvem segundo ela, gênero,
raça e classe.

Fernandes e Cassino (2020) no artigo “Infância, Cultura Visual e Educação”, trazem o


contexto do digital em rede que permeia vivências diárias de aprendizados, ou seja,
de mediações que educam e moldam modos de ver para além da escola, pois o
estudante “mais que na escola, é nos meios audiovisuais, que aprende, faz conexões,
experimenta empatia pelas novas tecnologias, se expressa, apreende o mundo e se
coloca como participante ativo desse mundo, constrói subjetividades e modos de
ver” (FERNANDES; CASSINO, 2020, p. 17). Destacamos aqui a potência dessas
mediações em rede tecidas pelas dimensões visuais das telas, pois estão intimamente
ligadas às subjetividades e consequentemente, no modo que vemos ou não o mundo.
Por isso, a educação não pode ficar alheia a esses múltiplos processos de mediações
que configuram aprendizagem. Na atualidade, termos como midiatização ou
midiaeducação têm se popularizado, mas quando nos referimos a esses termos de
que mídia estamos falando? Precisamos fundamentar aqui o entendimento do
conceito de mídia e o faremos através de saberes interdisciplinares entre Cultura
Visual, Educação e Comunicação. Buscamos em Martín-Barbero as concepções
críticas para ampliar nossas lentes epistemológicas e descoloniza-las, afinal “A
comunicação se tornou para nós questão de mediações mais do que meios, questão
de cultura e, portanto, não só de conhecimentos mas de reconhecimento”. (MARTÍN-
BARBERO, 1997, p. 16,). Ao defender o reconhecimento da esfera cultural nas
mediações, levanta a emergência de uma reapropriação histórica da modernidade
latino-americana, dessa forma, Martín-Barbero vai além de um deslocamento
metodológico ou epistemológico, soma ao seu olhar resistência às visualidades
dominantes (ou colonizadoras) em seu campo. Ou seja, percebe nas mediações uma
aproximação com os processos culturais, mas também histórico-sociais que
envolvem os fenômenos em rede. Questões que compõem a ideia de midiaeducação
na América Latinca, Fantin (2006) aponta que nos países do norte global a ideia de
midiaeducação foi forjada pensando na educação com/através das mídias, ao passo
que “nos países latino-americanos seu percurso esteve fortemente ligado aos
movimentos sociais, sendo crescente no contexto brasileiro sua discussão em
universidades, escolas e outras instituições da prática social” (FANTIN, 2006, p. 1).

681
Nesse sentido, mais que investigar as imagens em si, investigamos os modos de ver.
Mais que investigar os meios em si, investigamos as mediações. E ainda, pretendemos
mais do que refletir sobre a educação para mídias, refletir nas visões críticas ante as
mediações que se estabelecem em rede.

A ideia primordial de rede na Internet advém da metáfora da rede, que são


entrelaçados de fios, agrupamentos sociais compostos por dois elementos: 1)
pessoas, coletivos ou instituições, os nós da rede, chamados de atores; e suas 2)
conexões, ou seja, interações e laços sociais, o entrelaçamento da rede. As dinâmicas
sociais e padrões de comunicação são formados, portanto, a partir das relações entre
as interações sociais, que permitem ao sistema social adaptação e produção de
comportamentos (RECUERO, 2008). Dessas dinâmicas em rede nos importa, mais
uma vez destacar, as mediações, que compoẽ a ideia de mídia social e educação para
as mídias aqui tratadas. As mídias sociais abrem caminhos cada vez mais amplos para
uma cultura participativa, com traços significativos de produção de conteúdos. Para
Campos (2013, p. 63), “as mídias abastecem com conteúdos indispensáveis o
quotidiano de bens simbólicos (e materiais) que serão convenientemente filtrados,
assimilados, adaptados e usados em articulação com os horizontes sociais e culturais
do público”. Jenkins (2014) analisa que esta dinâmica é consciente e ativa nas redes,
onde os atores escolhem a todo momento entre conteúdos diversos, das esferas mais
íntimas até às de mercado, sendo assim, “Eles não apenas retransmitem textos
estáticos, mas também transformam o material por meio de processos ativos de
produção ou por meio de suas próprias necessidades sociais e de expressão”
(JENKINS, 2014, p. 355). Com base nessas considerações sobre mídia/mediação
levantamos reflexões sobre as potências do meme enquanto artefato midiático,
Chagas (2020) infere que ao constituírem variações de si, os memes constituem
também são mídias. Visto seu enorme poder de estabelecer mediações, tanto que sua
própria geração e sobrevivência no caldo cultural nas redes depende dessa
capacidade.

Pois, para além das mediações na sua propagação, o meme é co-criado, então a sua
produção é um convite à participação e a construção coletiva, na qual o indivíduo se
fortalece na coletividade dos imaginários e ideais envolvidos naquela criação. Nesse
sentido o que define os memes não são sua linguagem, pois ele pode ser audiovisual,

682
áudio, imagético e textual como no caso analisado: hashtags. O principal fator para
definir um meme é sua capacidade de ser coproduzido sem perder sua identidade
original ao se propagar com facilidade, e na medida em que se propaga, ganhar novos
sentidos. Nessa direção, Chagas pontua que memes são elementos fundamentais na
linguagem digital e que nem sempre servem ao humor, mas também sendo agentes
de conteúdos de grande seriedade e importância no campo político social. Citamos
o caso das hashtags #meuamigosecreto e #metoo que “não são cômicas, elas servem
de válvula de escape para compartilhar depoimentos íntimos e acabam criando redes
de solidariedade e reconhecimento em torno delas, o que é típico de um meme.”
(CHAGAS, 2017). Podemos considerar que este artefato midiático cria emoção,
envolvimento, requer processos flexíveis de coprodução, estados de humor e modos
de ver em sintonia. Pode mover construções coletivas de sentidos e de resistências.
Portanto, possui potência para somar em movimentos contra-hegemônicos, ou seja,
contravisuais que podem ser exploradas na midiaeducação, especialmente na
descolonização das práticas culturais do ver.

Descolonizar modos de ver

A contravisualidade enquanto potência contra-hegemônica para pensar na educação


e na midiaeducação, talvez seja o ponto de encontro entre a abordagem latina-
americana engajada em resistir à colonialidade, no nosso caso, às visualidades da
colonialidade. Para Mirzoeff, essa potencialidade de ver e representar o mundo
por resistência, ou apesar dos domínios da visualidade vigentes, é a chamada
contravisualidade. Nessa direção a contravisualidade dá conta de representar
realidades invisibilizadas pelas irrealidades hegemônicas criadas pelas visualidades
(MIRZOEFF, 2011). Dado que “A visualidade endereça-nos para um processo
complexo e multifacetado, em que tornam parte não apenas dimensões relativas à
percepção e à cognição humanas, mas igualmente variáveis de ordem histórica,
social e cultural” (CAMPOS, 2013, p. 153). Esta dinâmica, entre a irrealidade da
autoridade da visualidade e os realismos da contravisualidade, pode ser entendida
pelos processos de percepção de mundo que permitem que certos conhecimentos,
ou informações, sejam propagados na medida em que outros são apagados, ambos
naturalizados pelas visualidades.

683
Por entender que a prática cultural do ver, historicamente torna visíveis ou
invisibilizam determinados sujeitos e saberes, e que, a subversão da lógica de poder
da colonialidade perpassa pelas dimensões teórica/ética/estética/política.
Traçamos diálogos possíveis entre autora britânica e feminista Gilian Rose (2016)
sobre domínios hegemônicos das Visualidades e a autora feminista latinoamericana
Rita Segato (2011) que estuda Colonialidade e Decolonialidade com recorte de gênero
e raça. Bricolagens epistemológicas de uma tese de doutorado em andamento com
campo de estudo, sobre Midiaeducação Contravisual e os modos de
ver/transgredir/reexistir em rede no contexto de desinformação na pandemia de
covid-19. Ao possuirmos a capacidade fisiológica de ver, outras camadas de sentido
são acionadas a todo instante, atribuindo ao olhar, necessariamente, interpretações,
decodificações, análises sensíveis que se relacionam ou acionam outros sentidos
como audição, tato e olfato, a fatores como subjetividade, cultura, recortes sociais e
históricos. A visualidade, por outro lado, se refere a como a visão é construída de
várias maneiras (Rose, 2016) como vemos ou somos ensinado a ver determinadas
coisas de determinadas maneiras e não vemos outras, pois as visualidades não são
dadas ou naturais, são constituídas pela cultura visual. Ou seja, parte significativa do
que percebemos nas visualidades produzem visões específicas da diferença social -
de hierarquias de classe, raça, gênero, sexualidade e assim por diante” (ROSE, 2016,
p. 23). A visualidade portanto, é constituída por mediações de processos - em grande
parte- hegemônicos capazes de naturalizar, visibilizar, valorizar determinadas
culturas e sujeitos na medida que inviabiliza, desvaloriza e nega o outro. Este outro
que não vemos, sofre apagamentos enquanto sujeito da cultura, sujeito do saber,
produtor de conhecimento -é percebido no corpus da pesquisa em diálogo com
Rose, dentro das questões de gênero e raça. Ao passo que Rose levanta esses
questionamentos na cultura visual, ela parte de um contexto europeu hegemônico -
daí a inquietação pela busca de epistemologias latinoamericanas com modos de ver
contra-hegemônicos para dialogar com o campos Cultura Visual na descolonização
do ver.

684
Rita Segato1 pensa junto ao escritor peruano Aníbal Quijano a “colonialidade e a
invenção de raça como precondição indispensável para entender a ordem mundial
moderna”. (SEGATO, 2013, p. 37) em todas suas esferas, especialmente nas questões
de gênero, raça e classe. E especialmente nos caminhos epistemológicos e na
emergência de romper com a invisibilização dos saberes outros que nega
determinados sujeitos enquanto sujeitos do conhecimento. Nesse sentido, ao lermos
e estudarmos apenas autores europeus constitui não apenas um currículo centrado
nos saberes europeus mas em todo uma lógica de organização do conhecimento e
na percepção de quem são os detentores dele. Afinal, o eurocentrismo engendra uma
forma de racismo epistemológica, tanto que para Segato (2013) o eurocentrismo e
racismo epistemológico são gestos da colonialidade. Por isso a importância de
descolonizar fundamentações teórico-metodológicas dos campos de estudos, das
pesquisas acadêmicas e consequentemente, a trajetória desses pesquisadores.

Considerarmos que há uma perspectiva decolonial no campo da Cultura Visual,


especialmente atrelados às visualidades dominantes pois, segundo Segato tal
“perspectiva teórica não se refere apenas à América Latina, mas a todo o poder
hegemônico global” (SEGATO, 2013, p. 37). Ora, se a colonialidade refere-se às
hegemonias globais e as visualidades configuram como somos ensinados a ver
através de processos hegemônicos, faz-se necessário questionar como estamos
vendo, o que estamos vendo e principalmente o que não estamos vendo para refletir
em como aprendemos a ver- dinâmicas que constituem nossa percepção da
realidade.

Para pensar nessas questões trouxemos o caso do artefato midiático #reexistir,


tanto para levantar reflexões acerca das visualidades como das epistemologias na
midiaeducação. Afinal o olhar do pesquisador envolve necessariamente tais aspectos,
que intimamente relacionados, produzem conhecimentos e aprofundamentos em
diferentes campos e práticas culturais. Entendemos que o termo (re)existir, verbo
intransitivo que significa tornar a existir; restabelecer-se; reaparecer (aquilo que
havia terminado ou desaparecido), ganha novos sentidos de luta contra-hegemônica

1 Pesquisadora argentina, professora da Universidade de Brasília, ativista pelos direitos das mulheres e das
populações indígenas. Possui um vasto estudo sobre a colonialidade, fenômeno que torna o colonialismo um
processo fluido e contínuo que estrutura todas as relações de poder desde seu advento até a contemporaneidade.

685
na cultura visual contemporânea. Numa primeira aproximação representa agendas
de movimentos sociais, especialmente o feminismo negro, o movimento negro e a
luta indígena. Destacamos que para estes grupos o sentido de (re)existir é somado ao
da resistência justamente por serem ativismos sociais latentes nas sociedades latino-
americanas. Grupos historicamente invisibilizados que na luta social forjam suas
existências na resistência coletiva. Dessa maneira, tornam-se visíveis, ou seja,
(re)existem! E esse processo de (re)existência dialoga com Mirzoeff ao considerar
que “a cultura visual não depende das imagens em si mesmas, mas da tendência
moderna de plasmar em imagens ou visualizar a existência” (MIRZOEFF, 2003, p. 23).
Sendo assim, à medida que as mídias potencializam que esses grupos sejam
visualizados, suas lutas também são e, portanto, resistem e se fortalecem através
delas. Consideramos que é esse o caso da hashtag reexistir, pois através dela atores
se conectam às diferentes formas de ativismo em torno de uma mesma bandeira e
fortalecem as afins. Isso acontece pela hashtag ser memética e adquirir novas
camadas de sentido dependendo do momento histórico ou dos arcabouços culturais
envolvidos no instante da sua publicação em rede. No entanto, a hashtag é um meme
com trajetória digital diferenciada por se tratar de um link entre publicações que
dialogam entre si, por isso, algumas não chegam a configurar um meme. A
configuração memética requer que a hashtag tenha tanto potencial de propagação e
representatividade na sua co-criação que poderá ser lido de maneira relacional,
portanto, quando uma pessoa escreve #elenao, #niunamenos ou #reexistir após
uma imagem, um vídeo ou um texto está co-criando através da mediação deste
artefato e necessariamente participando de uma manifestação de cunho político-
social. Na figura 1 abaixo, desenhamos correlações da #resistir às demais
contravisualidades que são endereçadas através dela. Para tal, inserimos dois
volumes literários que possuem no seu título o verbo estudado aqui, produções
acadêmicas que apontam para quadro da educação latino-americana articulado com
os movimentos sociais na luta por bandeiras de justiça social para as minorias. É aqui
que marcamos nossa reflexão epistemológica para compreendermos que os saberes
e conhecimentos, produzidos pelos grupos historicamente invisibilizados, são uma
via significativa para descolonizar o ver. Este modo de ver que é moldado
culturalmente, entre linhas e letras segue os desenhos que o rodeiam a fim de
decodificá-los, e sobretudo, com a criticidade necessária, ressignificá-los.

686
Precisamos ler mais, ouvir mais, apreciar mais, admirar mais, debater mais as
produções e coproduções invisibilizadas nas historiografias, nos livros didáticos e
nos currículos escolares e assim, levantar questionamentos sobre os processos
cotidianos que fazem a manutenção dessa estrutura de poder do ver colonizado. E
mais, precisamos continuar atravessando as manifestações populares de resistência
com as manifestações do saber, vislumbrando a possibilidade de que a ideia de
conhecimento não seja algo fechado e circunscrito às universidades e aos meios
intelectuais da sociedade. Pois a invisibilização dos sujeitos enquanto sujeitos do
saber, perpetua uma das dimensões da colonialidade, como aponta Quijano, que é a
colonialidade do saber. Aqui refletimos sobre a potência dos artefatos midiáticos
nessa articulação cada vez mais conectada e sensível, para que esses
questionamentos epistemológicos que levantamos, de fato, gerem exercícios nos
modos de ver o mundo. Mundo que se desenrola em expansão nos ecrãs eletrônicos
arquitetados por plataformas digitais do mercado econômico, que nos mapeiam
através de algoritmos alimentados pelos nossos dados e lidos por inteligência
artificial, processos com objetivos escusos que vão do consumo à possíveis
vigilâncias, inquietações que não cabem no escopo deste trabalho porém fazem parte
do nosso contexto digital em rede.

Para que possamos ver às demais contravisualidades presentes na figura 1 a seguir,


abrimos tais questões: Você já visualizou a #reexistir? Em qual publicação? O
contexto dialogava com as considerações postas neste trabalho? Dialogavam com as
imagens abaixo? Caso não tenha tido contato com essa hashtag, quais artefatos
midiáticos você costuma visualizar no seu cotidiano? Eles dialogam com as imagens
correlacionadas à #resistir? Sabe dizer alguma motivação para essas
contravisualidades não terem sido visualizadas antes? Postos esses
questionamentos, podemos dizer que o cerne dessas visualidades são pessoas
racializadas em posições de poder e protagonismo, representadas ao centro e em
angulações de engrandecimento. Destacadas ora por suas subjetividades brilhantes
ora por sua potência coletiva, pois há sempre a ideia de luta popular intrínseca.
Quando perguntamos sobre o que vemos ou não vemos nas nossas vivências
cotidianas, nos referimos mais sobre essa representatividade do saber e do poder do
que aos elementos da linguagem visual em si.

687
Figura 1. Contravisualidades da hashtag reexistir

Fonte: Imagem criada pela autora

Perguntamos sobre a prática cultural exercida a partir da linguagem visual capaz de


correlacionar tantas outras linguagens e sentidos, em especial, na subversão das
estruturas hegemônicas. E colocar em foco as potencialidades pedagógicas nesse
exercício crítico constante ante aos modos de ver que são apreendidos
culturalmente. Ao passo que aprendemos a ver, somos capazes de reaprender, rever
e resistir às irrealidades das visualidades que nos circundam e nos moldam nossas
existências.

688
Considerações Finais

Compreendemos que a cultura visual é sobre o que é visível, abarcando também o


que é invisível ou se oculta de nossa visão, porque vemos algumas representações e
não outras (Mirzoeff, 2016). E que vivemos em regimes de visualidades hegemônicas
que moldam o nosso ver a todo instante (Rose, 2016), dessa maneira afetam nossa
percepção de mundo (Campos, 2012), refletindo não apenas como as visualidades são
constituídas mas também toda uma sistematização dos saberes (Crary, 2012). E,
consequentemente, nas práticas culturais e sociais do olhar na educação
(Hernández, 2007). Há, portanto, uma ideia do saber intimamente ligada ao poder,
engendrados na colonialidade com dimensões política/epistemológica/estética
(Segato, 2013). Nesse sentido, trazemos as contravisualidades na perspectiva
decolonial para pensar na descolonização dos modos de ver através da
midiaeducação.

Midiaeducação que na América latina é atravessada pelo engajamento comprometido


com os movimentos sociais e lutas populares (Fantin, 2006), possui uma significativa
interação ativista nas mídias sociais, sendo o artefato midiático #reexistir um
exemplo discutido neste trabalho. Pois articula as dimensões estudadas ao tornar
visíveis sujeitos e agendas historicamente invisibilizados, os conectando e
potencializando a coletividades dessas lutas. No entanto, para tais lutas e sujeitos se
tornarem visíveis, resistirem e (re)existirem é preciso que o ver seja descolonizado.
É preciso colocar o campo da Cultura Visual no centro do debate sobre educação
para as mídias, afinal, as mediações visuais moldam o ver e sobretudo, a atuação no
mundo (Franz, 2006). Consideramos a hashtag trazida aqui e às demais produções
endereçadas por ela como contravisualidades, que criam movimentos das ruas às
redes digitais de resistência às desigualdades sociais, de gênero e raça. Assim como
resistem à irrealidade produzida constantemente pela colonialidade por meio das
visualidades, ao produzirem representações outras do saber e do poder, para que
existências plurais possam #reexistir.

689
Referências

CAMPOS, Ricardo. Introdução à cultura visual. Abordagens e metodologias em ciências


sociais, Lisboa, Mundos Sociais, 2013.
CRARY, Jonathan.Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX; Tradução
Verrah Chamma; org. Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
CHAGAS, Viktor. Humor, engajamento e fake news: como os memes afetam a educação?
Lunetas. Publicado em 17.12.2018 no site https://lunetas.com.br/memes/ acessado em
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______.Fazendo as pazes com memes -Usar a alfabetização midiática para garantir que a
vida pública não se torne apenas uma piada maçante. 10/08/2020
https://doi.org/10.21428/6ffd8432.ac155a53
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FERNANDES, Hoffmann Adriana; CASSINO, Helenice. Infância, Cultura Visual e Educação.
In: Revista childhood & philosophy, Rio de Janeiro, v. 16, jul. 2020, pp. 01 – 19. doi:
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FANTIN, Mônica. Mídia-educação: conceitos, experiências, diálogos. Brasil-Itália.
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FRANZ, Teresinha Sueli e GRALIK, Thais Paulina. Instrumento de Mediação e Análise
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HERNÁNDEZ, Fernando. Cambios en las artes visuales y en la educación. In: Jornadas
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JENKINS, Henry FORD, Sam; GREEN, Joshua. Cultura da conexão: criando valor e
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MIRZOEFF, Nicholas. An introduction to visual culture. London/New York: Routledge,
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2008. ISSN 1807-8583. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/4265>.
Acesso em: 11 ago. 2021
SEGATO, Rita. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por
demanda. Prometeo Libros; Cidad Autonoma de Buenos Aires, 2013.

690
Mini Currículo

Ludmilla Pollyana Duarte


Doutoranda com bolsa CAPES no PPGEdu/UNIRIO; Integra o Grupo de pesquisa CACE-
Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação(FAPERJ)/UNIRIO; Mestre em educação pela UNIRIO
na linha de pesquisa "Práticas educativas, Linguagens e Tecnologia"/PPGEdu. Graduada no curso de
Licenciatura Plena em Belas Artes/ UFRRJ. E-mail: ludmilla.duarte91@gmail.com

691
ACERVOS VISUAIS FAMILIARES E REVERBERAÇÕES EDUCATIVAS

FAMILY VISUAL COLLECTIONS AND EDUCATIONAL REVERBERATIONS

Beatriz de Jesus Sousa


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

O presente artigo objetiva refletir sobre a potência de acervos visuais familiares na produção
de sentidos relacionados a conhecimentos ancestrais e relações de gênero. Reconhecendo-
os como pedagogias culturais, este estudo realiza incursões em narrativas visuais e verbais,
explorando imagens e depoimentos acionados a partir de uma miniatura representativa da
renda de bilro, selecionada por ativar memórias afetivas sobre saberes ligados ao trabalho
de mulheres em Pinheiro - MA. É salientada a importância de estudos críticos apoiados na
abordagem autobiográfica, como um suporte metodológico para o desenvolvimento de
pesquisas que valorizem a memória e as narrativas orais. Assim, por meio de imagens de
acervos familiares, é possível tentar compreender o processo de constituição de sujeitos e
sujeitas que geralmente ficam à margem dos espaços e discursos oficiais e, desse modo,
contribuir para a implementação de uma arte/educação decolonial.

Palavras-chave: Memória. Gênero. Arte/educação decolonial. Acervos visuais familiares.

Abstract

The present article aims to reflect on the power of family visual collections in the production
of meanings related to ancestral knowledge and gender relations. Recognizing them as
cultural pedagogies, this study conducts incursions in visual and verbal narratives, exploring
images and testimonials triggered from a representative miniature of bobbin lace, selected
for activating affective memories about knowledge related to the work of women in Pinheiro
- MA. The importance of critical studies supported by the autobiographical approach is
highlighted, as a methodological support for the development of researches that value
memory and oral narratives. Thus, by means of images from family collections, it is possible
to try to understand the process of constitution of subjects and subjects that generally
remain on the margins of official spaces and discourses and, in this way, contribute to the
implementation of a decolonial art/education.

Keywords: Memory. Gender. Decolonial art/education. Family visual collections.

692
Introdução

O presente texto reflete sobre a potência dos acervos visuais na análise da produção
de sentidos relacionados a conhecimentos ancestrais e relações de gênero. Esta
proposta sustenta-se na pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Programa
de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás
(PPGACV-UFG), sob orientação da professora Leda Guimarães.

Compreendendo a importância da implementação de uma arte/educação


decolonial, recorro à presente escrita como um exercício de análise que apresente a
possibilidade de valorização de acervos visuais não institucionalizados, presentes no
cotidiano, e repletos de sentidos que podem ser compreendidos como desveladores
de relações sociais de gênero e potencializadores de ações educativas.

Parto da compreensão do acervo enquanto pedagogia cultural, um espaço de


aprendizagens e uma ferramenta conceitual, que me proporcione questionar o
cotidiano, observar as aprendizagens informais, pensar os sentidos flutuantes e os
processos de significação e ressignificação das memórias.

Para tanto, inicialmente recorro a uma descrição da imagem ativadora, explico o


contexto em que ela foi vista e discorro sobre as lembranças que emergem nesse
processo, relacionando a narrativa a outras imagens pertinentes. Alinhavando a
contribuição de autores e autoras de áreas afins, reflito acerca das lembranças
evocadas e me coloco nesse processo de significação, tentando capturar elementos
importantes para uma arte/educação decolonial.

Em apenas uma mirada: lembranças de mulheres, mães, trabalhadoras...

A elaboração deste trabalho foi permeada por muitas questões, inquietações de


várias pessoas e épocas. Tenho pensando frequentemente nos significados dos
gestos de guardar, nas pessoas que selecionam seus artefatos e nos critérios usados
para escolher onde, como e por que reservar um espaço para aquele objeto/imagem
de memória. Os sentidos produzidos, as memórias ativadas, as pessoas envolvidas e
o valor agregado podem representar aspectos fundamentais para a compreensão do
potencial desses acervos familiares em uma proposta de arte/educação decolonial.

693
O doutorado no PPGACV/UFG tem oportunizado estudos teóricos e práticos que
ampliam a perspectiva metodológica do trabalho, bem como tornam mais complexa
a sua análise. Assim, vejo que parte deste estudo se reporta à capacidade humana de
se emocionar, de se deixar afetar e de expressar o que sente. Apoiada em Larrosa
(2003), percebo que se trata de pensar e escrever a partir de uma razão emocionada
capaz de tocar e transformar a sociedade, rompendo a rigidez acadêmica que
desconsidera os sentimentos e a experiência artística.

Didi-Huberman (2021) discorre sobre as emoções como um movimento para fora de


si, como um fenômeno que atinge toda a sociedade e que tem um poder de
transformação:

Uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um
movimento que consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos?
Mas se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como
um gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção
nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz
uma série de coisas que nem sequer imaginamos. (DIDI-HUBERMAN,
p. 26, 2021)

Portanto, seria improvável que, em um estudo que trata de afetos guardados, a


emoção não comparecesse e nos tocasse, deslocando nossos pensamentos,
convidando a uma reflexão e transformando algo, ainda que não tenhamos a
consciência desse processo. Então, para este momento, recorro a uma imagem que
me pertence, faz parte da minha história de pesquisadora, arte/educadora,
maranhense, de classe trabalhadora e ligada às manifestações culturais do interior
do estado:

694
Figura 1 – Miniatura de almofada de renda de bilro / São Luís – Maranhão

Fonte: Acervo pessoal (2022)

A fotografia acima (figura 1) é a representação de uma miniatura de almofada usada


na produção da renda de bilro, prática artesanal bastante presente no Maranhão 1.
Sua composição está centralizada, sendo que o artefato fotografado é constituído
por uma forma arredondada, coberta com juta crua e apoiada em uma fibra de
formato anelado, cujos contornos servem de sustentação para a referida almofada.
Desproporcionalmente ao seu tamanho e na parte direita da imagem, estão fixados
um pedaço de papel e espinhos que servem de base para os fios amarelos, azuis,
verdes e brancos, em tons bem claros. É formada uma trama com as linhas coloridas
a partir da posição das agulhas no papel, que serve de modelo. Apoiados na base da
almofada e superpondo-se de acordo com a ordem das linhas, há 5 bilros, em cuja
extremidade são amarradas as linhas, sendo cada fio enrolado em um bilro diferente.

1
Sousa (2006, p. 42) explica que as rendas de agulhas surgiram desde a pré-história e foram se diferenciando de
acordo com a sua técnica e matéria-prima empregada. A renda de bilros foi criada aproximadamente no século XV,
também sendo conhecida como renda da terra, renda de almofada e renda de birro. Essa técnica “se utiliza de
pequenas bobinas de madeiras, denominadas bilros, com a finalidade de enrolar os fios e facilitar os movimentos
das rendeiras. [...]. Portanto, o bilro e a almofada, por caracterizarem este tipo de renda, são utilizados na sua
denominação, qual seja, renda de bilro ou renda de almofada.”
695
Escolhi esta imagem porque ela funcionou como um ativador de memórias afetivas,
ao ser observada sorrateiramente por minha mãe, Maria da Graça Sousa, enquanto
ela realizava uma costura na sala, onde guardo e exponho essa miniatura, comprada
como lembrança do município de Raposa, local que visitei várias vezes para realizar
a pesquisa “Mulheres que tecem histórias: uma abordagem sobre a produção da
renda de bilro na Raposa a partir do trabalho feminino”, em 2006, como trabalho de
conclusão da especialização em História do Maranhão, pela Universidade Federal do
Maranhão. (SOUSA, 2006)

Em um instante de atenção, seus olhos percorreram aquele pequeno artefato e lhe


proporcionaram uma viagem no tempo, fazendo lembrar de muitos fatos da sua
história, desde a infância, até a idade adulta. Essa experiência reafirmou o potencial
das imagens na produção de sujeitos que elaboram significações, visto que “um
quadro, uma escultura, seja o que for, desencadeiam, graças à materialidade daquilo
que são feitos, pensamentos sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os homens”.
(MARESCA, 2012, p. 42)

Em apenas uma mirada, diversas lembranças foram ativadas e me tocaram como se


eu estivesse lá, assistindo de longe e aprendendo sobre as mulheres da minha família.
A imagem me fez pensar no que ela via e naquilo que eu não conseguia perceber,
porque a história reservou muitos silenciamentos no que diz respeito às mulheres2.
É, portanto, uma relação entre visualidades e contravisualidades, perpassadas por
questões sociais, políticas, econômicas, religiosas, étnicas e de gênero. (MIRZOEFF,
2016)

Interessante pensar que a imagem mostra apenas o objeto através do qual a renda é
produzida, mas não apresenta o sujeito da ação. Essa ausência representa, para mim,
o ocultamento e a desvalorização de muitas mulheres, ainda vítimas de jornadas de
trabalho sacrificantes, baixa remuneração e violência. De algum modo, essa análise
me faz pensar que tenho sido atraída por pesquisas que giram em torno das culturas

2Buscando romper esse silenciamento, Barbosa (2019) reúne uma série de artigos em torno dos temas: mulheres
na aprendizagem do design e mulheres que influíram na história do ensino da arte no Brasil, além de dedicar uma
seção para entrevistas e declarações sobre mulheres.
696
populares, da produção artesanal e das relações sociais de gênero, com foco nas
mulheres. (SOUSA, 2003; SOUSA, 2006; SOUSA, 2015)

À luz da contribuição de Rachel Mason (2001) sobre a autobiografia e a história de


vida como método, tomando como eixo condutor as reflexões a partir de imagens e
objetos que foi recolhendo por marcarem a sua trajetória, proponho uma análise que
se dedique a pensar os sentidos cambiantes proporcionados pela experiência de falar
sobre e através de artefatos guardados e relacionados a conhecimentos ancestrais.

Pensar as condições de possibilidade para que certos sentidos sejam criados e certas
práticas reproduzidas é um desafio incomensurável. Contudo, aventuro-me nessa
jornada, como se estivesse em uma arena aberta de combates, armada de
questionamentos, mas desejando não ser paralisada por eles nesse território tão
amplo que é a cultura visual. (MARTINS, 2012)

Memórias de um caminhar silencioso

A distensão provocada pela experiência do trabalho com as mãos deve ter permitido
que a minha mãe caminhasse silenciosamente pelos trajetos da sua memória,
acompanhada de muitas presenças fortes, de lugares, pessoas e processos de
aprendizagem que são também experiências de constituição da sua identidade. De
algum modo, a sua concentração no ponto, a relação entre a mão, o olhar e o cérebro,
trouxe à tona o poder da imagem como pedagogia cultural.

Para chegar a essa conclusão, recorri ao mapeamento conceitual realizado por


Andrade (2016) e compreendi a pedagogia cultural como um conceito produtivo, uma
ferramenta teórica, um dispositivo, uma invenção que faz pensar, que regula
condutas e que modifica modos de ser em diversos espaços. Desse modo, reconheci
que em apenas uma mirada, o silêncio do pensamento foi interrompido por uma força
geradora de memórias relacionadas a aprendizagens do cotidiano.

Assim, ao olhar os espinhos da almofada (figura 1), imponentes, fortes e agressivos no


formato e potência, mas também expressivos na sua beleza e materialidade, mamãe
lembrou de quando não se usava alfinetes e mencionou o espinho da rosa cuia,
variedade de flor que tem as pétalas curvas, lembrando a forma da cuia, objeto

697
bastante utilizado para carregar água e outros materiais3. Nesse momento, fui fisgada
pela sua lembrança e dediquei uma atenção cuidadosa, pois percebi que havia ali um
processo de ressignificação iniciado por um objeto de memória.

Imaginar a rosa cuia me fez lembrar da minha infância na Enseada, em Pinheiro-MA,


onde meus irmãos e eu passávamos as férias e os finais de semana com a minha irmã
Felizia Angela Sousa, a nossa bisavó e as nossas tias-avós, que acolheram e educaram
mamãe e muitas outras crianças. A casa onde moravam era uma modesta construção
em uma área de mata, que no passado era bastante extensa e fechada, mas que hoje
agoniza no meio do desmatamento provocado pela construção de condomínios
residenciais e comércios. Havia grande variedade de árvores e até mesmo uma lagoa
que era palco de alegria e aventuras, como registra a imagem seguinte:

Figura 2 – Fotografia de banho na lagoa da Enseada / Pinheiro – Maranhão

Fonte: Acervo pessoal

Desse modo, pareço ter revivido aquele momento, como se eu estivesse nessa
fotografia. E, entre brincadeiras e aprendizagens, fui me aproximando de

3A cuia é fruto da Crescentia Cujete (árvore-de-cuia), uma planta cujo fruto arredondado é utilizado para criação de
muitos utensílios, enfeites e remédios (NOGUEIRA, 2019). Nessa árvore de galhos tortuosos que se espalham e até
rastejam, com folhas verdes escuras, tivemos muitas experiências e brincadeiras. Recordo-me com saudade desse
tempo.
698
conhecimentos ancestrais que, por meio de um artefato com valor afetivo, foram
relembrados e me conduziram à elaboração de imagens mentais de momentos que
vivi e de outros que não testemunhei, mas senti como se estivesse lá. Para Halbwachs
(2004, p. 30) “Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembranças
pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos
sós”.

O silêncio de mamãe foi rompido, mas estava ativo na produção de sentidos, que
repercutiram em mim de um modo que estou me dedicando a pensar nesse processo
e escrever sobre isso. Acerca dessa questão, Orlandi (2007) esclarece que o silêncio
é contínuo, repleto de sentidos e faz parte da constituição do sujeito. Ele é fundador,
pois torna possível toda significação. Portanto, sentindo-me inserida nessa história,
fui atraída pelas lembranças de saberes que vêm sendo transmitidos há gerações e
que se relacionam diretamente com a presença do trabalho manual e das artes
visuais na nossa família. Sempre me questiono acerca dessas questões e das nossas
ancestralidades.

Vejo uma atitude filosófica no meu interesse que é significativa para o processo de
construção do conhecimento, visto que a admiração e o espanto diante das palavras
de mamãe foram sucedidos por questionamentos relacionados à ligação desse saber-
fazer e de constituição do seu ser. Didi-Huberman (2021) ao discorrer sobre o título
da sua conferência “Que emoção! Que emoção?”, proferida em 13 de abril de 2013,
em Paris, deixa pistas sobre essa ação:

O ponto de exclamação responde pelo primeiro de todos os gestos


filosóficos, o de se espantar diante de algo, de alguém, de uma
experiência [....]. Mas esse primeiro gesto de espanto não seria
filosófico até o fim se não se prolongasse por meio da formulação de
uma pergunta: que emoção? Ponto de interrogação que poderia
facilmente se transformar em uma série sem fim de pontos de
interrogação: o que se entende por emoção? Que tipo de emoção? Por
que a emoção? Por quais razões (o plural é importante, não há jamais
uma única razão capaz de explicar as coisas da nossa vida)? [...] (DIDI-
HUBERMAN, p. 10-11, 2021)

Nessa perspectiva, perguntei-me sobre as circunstâncias dessa lembrança, quais os


significados e motivações para a realização da renda de bilro na minha família, quem
699
fazia, como era esse processo, além de outras questões. Contudo, hoje, sabendo que
é uma prática quase inexistente nessa região, gostaria de compreender os
dispositivos que operaram no sentido de que certas produções artesanais, dentre as
quais vale destacar a rede de dormir, a cerâmica e a renda de bilro, fossem
gradualmente abandonadas ou desvalorizadas4. De fato, há necessidade de pesquisas
que possam responder a essas questões.

Por hora, dentro dos limites teste trabalho, restrinjo-me a essas reflexões e retorno
a algumas reminiscências advindas do contato com a imagem dos apetrechos usados
na confecção da renda de bilro. Por meio desse artefato, mamãe, emocionadamente,
reconstituiu aspectos de uma série de conhecimentos, aprendidos no seu cotidiano,
que destacaram o papel das mulheres na transmissão dos saberes.

Vale destacar a interseccionalidade de marcadores de identidade, como classe e


gênero, quando foram apontadas aprendizagens relativas ao ofício de lavar roupas,
que era uma tarefa bem executada e avaliada por aqueles que encomendavam o
serviço.

“Mãe”, como chamávamos a minha bisavó (Felizia Rosa Sousa), era “lavadeira boa dos
brancos”, afirmou mamãe (SOUSA, 2022). Acerca desta atividade, sua rememoração
salientou a satisfação de Mãe em ensiná-la e destacou uma série saberes, por mim
desconhecidos. Dentre eles, ressalto a curiosidade que me tomou ao ouvir que fezes
de boi eram usadas para “fazer um verde” na água onde as roupas eram colocadas de
molho. Mas era necessário conhecer o lugar onde encontrar, bem como o tipo certo
de fezes que desempenhariam a função de auxiliar na remoção da sujeira. Sobre isso,
ela destacou que aprendeu e por isso sempre era solicitada a ir buscar embaixo da
mangueira, onde dormiam os bois, “um cocô novo”, com uma forma bem definida.
Outro conhecimento importante fez referência à jataúba, uma árvore de folhagem
densa e madeira forte, cujas folhas eram usadas como uma palha para ensaboar as

4
No relatório final apresentado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, na Universidade
Federal do Maranhão, em 2017, sobre a produção artesanal no município de Pinheiro, Beatriz da Silva Ferreira de
Lima salienta que “[...] as peças de cerâmica, que eram encontradas até poucos anos atrás, deram espaço para
objetos de plásticos, vendidos a um preço muito mais cômodo, segundo a lógica capitalista. [...] A produção de redes
em Pinheiro está cada vez mais difícil de encontrar, como foi constatado após grande busca por meio de
informações. Logo, as referências que foram achadas dizem respeito a casos como o de Dona Maria dos Remédios:
famílias que se ocupavam de práticas artesanais, mas as tradições não foram repassadas para as futuras gerações.
700
roupas. O mesmo efeito era alcançado com as folhas de jardineira, que também
deixavam uma agradável fragrância. Havia ainda a folha do anil que ajudava na
limpeza das roupas. A fonte desses recursos era a vegetação do terreno onde
residiam. Ao analisar esse relato, compreendi os significados associados a essa
atividade para a minha mãe, pois ainda hoje uma tarefa que se dedica a realizar, ainda
que não seja necessária, é a lavagem das roupas no banco do quintal, usando um
pequeno pedaço de madeira roliça, chamado buraçanga, para auxiliar no processo de
sovar as roupas ou espremer os punhos das redes de dormir. Pela sua descrição,
havia um grande carinho entre elas que se refletia em gestos como atender ao pedido
de Mãe, antes de ir lavar, para amarrar um pano em cada um dos seus dedos, visto
que ao redor das unhas havia lesões ocasionadas pelas mãos continuamente
molhadas.

A imagem seguinte pode revelar elementos desse contexto captado como uma
experiência que marcou significativamente o processo de constituição dessas
mulheres. Nela, é visível a presença da minha bisavó, de perfil, carregando uma cuia
presa em cordas, provavelmente usadas para pegar água no poço. A idade é percebida
pelas marcas do tempo, que curvam sua coluna, diminuem sua massa muscular e
enrugam sua pele, mas, apesar da idade avançada, não retiram a disposição para o
trabalho, a qual pode ser notada na tensão do braço e da mão que segura o objeto. O
ambiente é preenchido por construções de madeira e cobertas de palha, no primeiro
plano e, ao fundo, uma casa de pau a pique. Também é possível reconhecer a
presença da vegetação, objetos de cerâmica, um pato e alguns elementos no chão de
terra.

701
Figura 3 – Fotografia de Mãe carregando cuia / Pinheiro – Maranhão

Fonte: Acervo pessoal

Esses elementos podem ser facilmente percebidos. Contudo, existem aspectos não
representados graficamente, mas presentes na imagem. Há sinais de classe e gênero
que podem ser reconhecidos nessa família liderada e mantida por mulheres
trabalhadoras, cujo dia é marcado pelos afazeres domésticos e por atividades
remuneradas, como costura e venda de bordados, doces, coco babaçu quebrado,
entre outros. O trato dos animais, a lavagem de roupas, a produção de alimentos, a
feitura de cerâmica, renda, bordados e a docência são atividades do cotidiano,
transmitidas pelo exemplo, observação e repetição.

Desse modo, percebo que sou educadora, a minha mãe também e duas das minhas
tias-avós eram docentes. A minha avó materna trabalhava com cerâmica, fazia rede
no tear, costurava, cuidava da casa e educava os filhos. Diante de tantas observações,
pergunto-me sobre os obstáculos que precisaram enfrentar em uma sociedade
patriarcal e misógina como a nossa.

Embora esse ponto mereça mais atenção e pesquisa, as condições que possibilitaram
a emergência do referido contexto podem ser observadas no estudo que realizei
sobre as mulheres que tecem redes de dormir em São Bento – MA (SOUSA, 2015).
Nesse trabalho, constato a regulação das identidades de gênero através de
dispositivos disciplinares e pedagogias culturais.

702
Ao abordar a constituição de corpos marcados pelo trabalho, constato que o
matrimônio age como um dispositivo de poder que regula as condutas e cria efeitos
de gênero que repercutem na distribuição das tarefas e nas representações sobre o
valor do trabalho artesanal. De modo geral, o trabalho dos homens é percebido como
de maior valor e importância para a manutenção da família, ao passo que o trabalho
doméstico não remunerado e as atividades artesanais são vistas como de menor
importância.

Essas observações foram possíveis porque me permiti realizar um estudo que


tentasse compreender a constituição das identidades de gênero a partir da produção
das redes de dormir. Neste momento, percorro um caminho mais intimista, porém
também caracterizado por marcadores de identidade que foram percebidos no
estudo anterior.

Considerações Finais

Finalmente, vale salientar que através das narrativas apresentadas neste texto,
realizo ponderações pautadas nas lembranças da minha mãe e destaco a importância
do lembrar associado ao envelhecer. Logo, ao se posicionar dizendo “eu acho que,
assim, a gente vai envelhecendo e vive de lembrança [...]” (SOUSA, 2022), ela
reconhece a importância da memória para a significação do seu presente.

Nesse sentido, vejo que ela evidencia uma necessidade de falar sobre o passado e que
nesse processo está ressignificando as suas memórias e pensando também o futuro.
Para Orlandi (2007, p. 70), a linguagem se constitui na passagem “das palavras ao
silêncio e do silêncio às palavras”. Desse modo, a linguagem é

Movimento permanente que caracteriza a significação e que produz o


sentido em sua pluralidade. Determinado ao mesmo tempo pelo
contexto e pelos contextos no plural, esse movimento, esse
deslocamento, inscrito na constituição dos sentidos, tem uma relação
particular com a subjetividade: o sujeito desdobra o silêncio em sua
fala. No discurso há sempre um “projeto”, um futuro silencioso do
sujeito, pleno de sentidos. (ORLANDI, 2007, p. 70)

Portanto, este estudo pretende contribuir na medida em que se coloque como um


lugar de enunciação de outros discursos que contribuam para uma abordagem capaz

703
de reverberar em práticas educativas que busquem uma arte/educação decolonial
(MOURA, 2019). Atualmente, deparo-me com elementos da minha história e
formação, desafiando-me a pensar na autobiografia como um apoio metodológico
para a pesquisa e recorro à contribuição de Rodrigues (2017) quando explica que

[...] as escritas e atos autobiográficos, quando situados criticamente,


podem oferecer uma metodologia de confronto à colonialidade e,
portanto, indicar caminhos que conduzam ao “vir a ser” decolonial.
Chamo tal metodologia de “autobiogeografia” e sugiro que ela seja
utilizada em diversas práticas com o objetivo de estimular o
florescimento de uma consciência imigrante que, por sua vez, possa
revelar pontos de origem e rotas de dispersão capazes de reposicionar
sujeitas e sujeitos no e com o mundo de forma liberadora,
transformadora e, portanto, cheia de sentido. (RODRIGUES, 2017, p.
3160)

Assim, partindo do depoimento da minha mãe a partir de uma imagem do meu acervo
pessoal, faço o exercício de pensar uma abordagem que valorize memórias afetivas e
razões emocionadas. Por isso almejo compreender a importância de imagens para o
desenvolvimento de pesquisas que valorizem a memória e as narrativas orais. Penso
que essas representações funcionam como uma importante ferramenta
metodológica para a compreensão dos sentidos e da constituição de sujeitos e
sujeitas que geralmente ficam à margem dos espaços e discursos oficiais

Referências

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conceito. 2016. 210 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
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design, educação. São Paulo: Cortez, 2019.
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação e Realidade, 28(2), jul/dez, p.
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LIMA, Beatriz da Silva Ferreira de. A produção artesanal no município de Pinheiro.
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704
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MARTINS, Alice Fátima. Arena aberta de combates, também alcunhada de Cultura Visual:
anotações para uma Aula de Metodologia de Pesquisa. In: MARTINS, Raimundo;
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MASON, Rachel. Por uma Arte – educação Multicultural. Campinas, SP: Mercado de
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MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, SP, v.
18, n. 4, p. 745-768, nov. 2016. ISSN 1676-2592. Disponível em:
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MOURA, Eduardo Júnior Santos. Arte/Educação Decolonial na América Latina. Cadernos
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que assistiu ao “Terreiro em Festa”. São Luís, 2003. 112 f. Trabalho de conclusão de curso
(Graduação em Educação Artística) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2003.
_____. Mulheres que tecem histórias: uma abordagem sobre a produção da renda de
bilro na Raposa a partir do trabalho feminino. 2006. 106 f. Trabalho de conclusão de curso
(Especialização em História do Maranhão) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís,
2006.
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Bento – MA. São Luís: EDUFMA, 2015.
SOUSA, Maria da Graça. Depoimento (10 jul. 2022). São Luís: 2022.

Mini Currículo

Beatriz de Jesus Sousa


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de
Goiás (UFG) e docente do Colégio Universitário da Universidade Federal do Maranhão
705
(COLUN/UFMA). Integra o Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação. Especialista em História do
Maranhão, mestra em Cultura e Sociedade e licenciada em Educação Artística/Artes Plásticas, pela
UFMA. E-mail: beatriz_jesus@discente.ufg.br

706
CULTURA SURDA EM MUSEUS: O LUGAR DE FALA NA
MEDIAÇÃO DE SURDOS

DEAF CULTURE IN MUSEUMS: THE PLACE OF SPEECH IN DEAF MEDIATION

Sabrina Denise Ribeiro


Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Resumo

O objetivo deste artigo é expor a importância do protagonismo surdo em museus. A autora


deste artigo trabalha como educadora surda e faz a parte de equipe do Programa Educativo
para Públicos Especiais (PEPE) no Núcleo Ação Educativa no museu Pinacoteca, localizado
na cidade de São Paulo, há quatorze anos, portanto, tem propriedade para afirmar que é
melhor para o público surdo ser atendido por um(a) educador(a) surdo(a). Quando o surdo é
atendido por um ouvinte, mesmo que este saiba se comunicar em Libras (Língua Brasileira
de Sinais), a mediação fica incompleta pois muitos códigos da comunicação se perdem na
interação e o intérprete de Libras ouvinte não domina totalmente o vocabulário necessário
para repassar as informações, o pensamento, as abstrações, o sentimento entre outras
especificidades que só o membro da cultura surda conhece. Este artigo é constituído
basicamente por duas partes. A primeira parte aborda dois trabalhos fundamentais no
protagonismo surdo no Brasil: a participação de surdos na nomeação das obras em Libras do
escultor Aleijadinho na cidade de Congonhas, em Minas Gerais, e a elaboração do videoguia
do Museu Pinacoteca na cidade de São Paulo. A segunda parte aborda o Museum of Deaf
History, Arts and Culture and the William J. Marra Museum na cidade de Olathe, Kansas,
EUA, que tem se dedicado exclusivamente à Cultura Surda desde 2001. O objetivo destas
duas abordagens é mensurar o quanto a presença de educadores, artistas, curadores e
profissionais surdos nos museus contribuem fortemente para o fortalecimento do
protagonismo surdo em ambientes culturais, como direito garantido na legislação brasileira.

Palavras-chave: Cultura Surda; Mediação em Museus; Libras (Língua Brasileira de Sinais);


Protagonismo Surdo.

Abstract

The purpose of this article is to expose the importance of deaf protagonism in museums. The
author of this article works as a deaf educator and is part of the team of the Educational
Program for Special Publics at the Educational Action Nucleus at the Pinacoteca Museum for
fourteen years, therefore, she has the property to say that it is better for the deaf public to
707
be attended by a deaf educator. When the deaf person is assisted by a hearing person, even
if he knows how to communicate in Libras (Brazilian Sign Language), the mediation is
incomplete because many communication codes are lost in the interaction and the hearing
Libras interpreter does not fully master the necessary vocabulary to pass on information,
thoughts, abstractions, feelings, among other specifics that only the member of the deaf
culture knows. This article basically consists of two parts. The first part addresses two
fundamental works in the deaf role in Brazil: the participation of deaf people in the naming
of works in Libras by the sculptor Aleijadinho in the city of Congonhas, in Minas Gerais. And
the elaboration of the video guide of the Pinacoteca Museum in the city of São Paulo. The
second part addresses the Museum of Deaf History, Arts and Culture and the William J. Marra
Museum in the city of Olathe, Kansas, USA, which has been exclusively dedicated to Deaf
Culture since 2001. The objective of these two approaches is to measure how much the
presence of deaf educators, artists, curators and professionals in museums strongly
contribute to the strengthening of deaf protagonism in cultural environments, as a right
guaranteed in brazilian legislation.

Keywords: Deaf Culture; Mediation in Museums; Libras (Brazilian Sign Language); Deaf
Protagonism.

A escritora e atriz francesa surda Emmanuelle Laborit, em sua obra “O Grito da


Gaivota” explica a importância para a pessoa surda ter contato com outros surdos
desde criança e, assim, poder construir sua identidade surda. E como, a partir daí,
passa a entender e interpretar o mundo em sua volta. Defende ainda a importância
do mediador surdo nas relações com outros surdos, servindo de referência para que
estes se sintam representados e incluídos nos diferentes setores da sociedade,
incluindo as artes (LABORIT, 2000).

O surdo tem um jeito próprio de aquisição de conhecimento que passa por canais
diferentes dos ouvintes. Fazer com que o jovem surdo tenha interesse pela arte e, ao
visitar um museu, ele saiba admirar uma obra de arte, é preciso que haja um trabalho
diferenciado com este (CRUZ, 2016). Muitas pesquisas já foram feitas nesse campo
em relação à educação escolar do surdo, ao processo de aquisição de conhecimento
do surdo e aos avanços da psicologia e da neurologia em relação aos processos de
desenvolvimento cognitivo do surdo (SACKS, 1998). Poucas pesquisas focam no
aprendizado do surdo dentro do museu mediado por um educador surdo. Este artigo

708
tem o objetivo de ser um começo de uma pesquisa apontando para caminhos
possíveis de fazer com que a arte seja compreendida e apropriada pelo público surdo.

Antes de tudo, torna-se importante explicar a definição de Cultura Surda. Segundo


a professora surda Dra. Karin Lilian Strobel da Universidade Federal de Santa
Catarina, Cultura Surda se define sob três aspectos: pessoas surdas que veem o
mundo de maneira diferente e com experiência visual; surdos que compartilham
experiências com os outros surdos e, com isto, origina a identificação como
pertencente a um grupo distinto e minoritário e grupos de pessoas que
compartilham uma língua, valores culturais, hábitos e modos de socialização
próprios (STROBEL, 2016).

De acordo com Chaveiro e Barbosa (2005),

Conviver no universo das pessoas com deficiência envolve uma


mudança de paradigmas, e, para os surdos, essa mudança ocorre
quando são aceitos e respeitados e a LIBRAS possibilita ao surdo a
interação social e intelectual, permitindo o acesso ao conhecimento
científico e a integração interpessoal (CHAVEIRO e BARBOSA, 2005, p.
418).

O número de surdos que visitam e frequentam museus no Brasil sempre foi muito
baixo. Até o ano de 2003, quando não tinha educador surdo na Pinacoteca, por
exemplo, o número de visitantes surdos atendidos era de 50 por ano. A partir do
momento em que a autora deste artigo começou a trabalhar como educadora surda
na Pinacoteca, em 2008, o número de visitantes surdos aumentou de 50 para 200 por
ano até 2015 (OLIVEIRA, 2015). Em março de 2020, com a pandemia do coronavírus,
a Pinacoteca fechou temporariamente, reabrindo em outubro de 2020 com público
reduzido, sem a presença dos educadores.

A entrada da autora deste artigo na Pinacoteca como educadora estimulou o


incentivo de políticas públicas voltadas à educação ao disponibilizar transporte para
estudantes surdos de escolas municipais para visitarem o museu pois sabiam que
seriam recebidos por uma educadora surda.

A maioria dos educadores surdos e/ou ouvintes intérpretes de Libras tem vínculo
frágil com as instituições, o que não garante a presença constante destes
profissionais e, portanto, não estimula a presença do público surdo em museus e

709
exposições. A mobilidade dos surdos enquanto cidadãos em espaços culturais
depende exclusivamente da presença de um educador surdo ou intérprete de Libras
nestes lugares. Como ressalta Menezes e Santos (2006),

Salienta que a Lei Federal nº 10.436, de 24 de abril de 2002, "reconhece


a Língua Brasileira de Sinais LIBRAS como meio legal de comunicação
e expressão, e torna obrigatória sua adoção, pelo poder público em
geral e por empresas concessionárias de serviços públicos". Esse
reconhecimento é como uma forma de garantir atendimento e
tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva.
(MENEZES e SANTOS, 2006, p.98).

Quando o acolhimento é feito por um educador também surdo, este público se


apropria mais do espaço pois tem a garantia de que todos as simbologias, metáforas
e códigos, serão traduzidos para a Cultura Surda de forma completa.

A hipótese do objeto deste artigo é: se houver de fato um protagonismo surdo nos


museus, em toda a sua plenitude: exposição de artistas surdos, para público surdo e
com educadores surdos, possibilitará a melhor consolidação da cidadania surda,
tanto no sentido de desinvisibilizar artistas surdos, como de garantir emprego
qualificado para profissionais surdos e ainda, estimular a frequência do público surdo
em museus e demais espaços culturais?

Ana Mae Barbosa defende que a arte não é apenas um direito básico, mas
fundamental na educação de um país que se desenvolve. Arte não é enfeite, arte é
cognição, é profissão, é uma forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a
realidade, o imaginário, e é conteúdo. E como conteúdo, representa o melhor do ser
humano. Para Barbosa (2012, apud Cruz 2016) os três modos de se relacionar com a
arte de forma articulada a uma aprendizagem integral são: “interpretando as pistas
visuais da imagem, compreendendo seu contexto histórico e produzindo respostas a
estes estímulos dentro de uma linguagem artística” (p. 61). Ou seja, uma abordagem
triangular da arte para a formação plena do educando (BARBOSA, 1991).

Este artigo vai abordar também uma experiência de grande relevância para o público
surdo. Trata-se de um museu criado pela comunidade surda, para a comunidade
surda, que também atende a comunidade ouvinte e causa grande impacto positivo
na sociedade do entorno. É o Museum of Deaf History, Arts and Culture and the
William J. Marra Museum, na cidade de Olathe, no estado do Kansas, nos Estados
710
Unidos da América. O único museu do mundo dedicado exclusivamente à história,
arte e cultura surda, com acervo da cultura surda e onde os profissionais que ali
trabalham são todos surdos.

Mas antes, este artigo vai explanar sobre dois projetos importantes no Brasil que
ajudaram e ajudam a minimizar a barreira da informação cultural para os surdos e
avançar na acessibilidade para estimular maior inclusão cultural, social e
conhecimento do patrimônio histórico. A participação de surdos na nomeação das
obras em Libras do escultor Aleijadinho na cidade de Congonhas, em Minas Gerais e
a elaboração do videoguia do Museu Pinacoteca na cidade de São Paulo.

Em 2018, uma pesquisa realizada pela professora e pesquisadora Milene Barbosa,


tradutora e intérprete de Libras do Instituto Federal de Minas Gerais, mostrou a
importância de uma educação em Libras voltada para surdos sobre as obras de
Aleijadinho. As pessoas surdas, nascidas na região de Congonhas (MG), cidade onde
está o conjunto de esculturas “Os Doze Profetas” de Aleijadinho, não sabiam a
história nem o significado destas obras. Elas achavam que era uma homenagem a
algumas pessoas que viveram na cidade. Isso porque na escola onde estudaram, as
aulas de artes não havia explicação em Libras para os alunos surdos poderem
entender.

A pesquisa de Milene Barbosa mostrou a importância de os surdos participarem


como protagonistas da construção de um vocabulário novo voltado para temas
dominados pelos ouvintes. Os surdos que participaram desta pesquisa produziram
um inventário em Libras sobre o conjunto da obra de Aleijadinho, participaram de
uma formação completa de monitoria para se tornarem mediadores responsáveis
pelo atendimento ao público surdo que visitar a cidade de Congonhas (IFMG, 2018).

No mundo dominado pela oralidade, os ouvintes se tornam “donos” das informações


e produtores do conhecimento sobre os surdos, enquanto os próprios surdos ficam
na margem, na periferia e privados do conhecimento, tendo seu protagonismo
invisibilizado.

Projetos como este, da pesquisadora Milene Barbosa, do Instituto Federal de Minas


Gerais, ajudam a mudar este cenário pois, ao potencializarem talentos surdos
invisibilizados, colocam os surdos no papel de produtores e multiplicadores do
conhecimento, fortalecendo assim o protagonismo surdo.
711
Design Inclusivo: o videoguia do acervo da Pinacoteca

A tecnologia assistiva chegou nos museus e espaços culturais de diversas formas:


videoguia em Libras (tipo um aparelho e sinalização em Libras e legenda em
Português, vídeo com legenda para surdos), QR Code, dentre outros que possibilitam
o acesso dos surdos à informação.

Em 2012, a autora deste artigo, que já trabalhava como educadora surda na


Pinacoteca, foi convidada pela instituição para contribuir na produção do Videoguia
(Figura 1). O conteúdo começava com a história da Pinacoteca, em seguida, sugeria
um roteiro em forma de Mapa (Figura 2) pelas obras, totalizando 30 minutos
aproximadamente. O videoguia contava com a descrição de 17 salas e era retirado
gratuitamente na recepção do museu. Em 2018 o videoguia foi desativado por
limitações técnicos e obsoletas.

Figura 1 (Fotografia da própria autora)

Figura 2 (Fotografia da própria autora)

712
Em 2021, potencializado pela pandemia de Covid-19, a Pinacoteca adotou um novo
recurso de acessibilidade para surdos: vídeos explicativos acessíveis por QRCode. Os
vídeos foram atualizados pela mesma educadora. São 23 leituras de obras do acervo
da Pinacoteca, com explicação em Libras, legenda em português e voz em português.

O vídeoguia é acessível a partir do celular do próprio visitante através de QRCodes


disponibilizados num mural. (Figura 3)

Figura 3 (Fotografia da própria autora)

Recursos como este, possibilitam a visita autônoma dos surdos, sem precisar da ajuda
de um educador(a) surdo(a) e/ou intérprete de Libras.

Não é todo acervo da Pinacoteca que pode ser acessado pelo QRCode. Atualmente
somente 23 obras do acervo permanente são acessíveis ao público surdo por esse
recurso. Além do acesso limitado ao acervo permanente, o recurso do videoguia via
QRCode também não abrange as exposições temporárias, já que elas precisam ser
atualizadas periodicamente. Espera-se que futuramente todas as obras do acervo da
Pinacoteca e de exposições temporárias sejam acessíveis ao público surdo utilizando
esse recurso do QRCode pois garante maior autonomia e qualidade de informação
ao visitante surdo.

713
O Museum of Deaf History, Arts and Culture and the William J. Marra Museum e
o movimento artístico Deaf View/Image Art (De’VIA)

Um bom exemplo de protagonismo surdo pleno e total é o Museum of Deaf History,


Arts and Culture and the William J. Marra Museum localizado na cidade de Olathe, no
estado do Kansas, nos Estados Unidos da América.

A história do Museum of Deaf History, Arts and Culture and the William J. Marra
Museum se entrelaça com a história do movimento artístico Deaf View/Image Art
(De’VIA) que “alimenta” os núcleos que formam o museu: história, arte e cultura.
Tanto o museu como o De’VIA são importantes referências do protagonismo e da
decolonização de artistas surdos, possibilitando a estes a expressão das várias formas
de arte presentes na identidade e na cultura surda, que priorizam a experiência
visual, em favor da língua de sinais, do ativismo surdo, contra a opressão e imposição
do modelo ouvinte ou do ouvintismo.

Um pouco da história do Museum of Deaf History, Arts and Culture and the
William J. Marra Museum

Fundado como Kansas Educational Foundation, em 25 de março de 1988, depois que


um grupo de surdos e ouvintes em Kansas (EUA) notou uma placa da rodovia que
levava à cidade de Olathe, no estado de Kansas, que sinalizava a localização da Kansas
School for the Deaf (KSD). O grupo resolveu visitar o local e passou a divulgá-la a
outros surdos. A escola passou a atrair a atenção de um grande número de pessoas,
surdas e ouvintes, que se dirigiam até a KSD para pedir informações sobre a escola,
sua história e a cultura dos surdos. Este número expressivo de pessoas interessadas
no tema, inspirou o grupo de surdos e ouvintes na cidade de Olathe a criar um espaço
que, além da escola, abrigasse um centro de informações sobre a cultura surda.

Em 1992, a Kansas Educational Foundation expandiu seus objetivos e atividades, e


estabeleceu um centro próximo da KSD para atender à crescente demanda do
público surdo e ouvinte da região. Os moradores da cidade de Olathe abraçaram a
causa e receberam apoio do Kansas Heritage Trust (agência estadual de fundos do
Kansas), que conseguiu levantar o dinheiro necessário para a construção do novo
prédio da sede.

714
O museu abriu as portas pela primeira vez ao público em 29 de setembro de 2001, e
com exposições de artistas surdos em 2005. A Kansas Educational Foundation foi
renomeada mais tarde como Deaf Cultural Center Foundation em 2009, quando o
Conselho Diretor se certificou que o novo nome se encaixava melhor no novo papel
que estavam assumindo como um centro de recursos, atividades sociais e eventos
para surdos e seus familiares e amigos.

O nome foi alterado novamente em 2017 para Museum of Deaf History, Arts & Culture
(MDHAC) porque Conselho Diretor buscava expandir seus horizontes além da cidade
de Olathe, e dar visibilidade para a vibrante história, arte e língua da cultura surda.

William J. Marra Museum

O William J. Marra Museum funciona dentro Museum of Deaf History, Arts and
Culture.

William J. Marra (1907-1992) foi um surdo que dedicou sua vida, entre outras
atividades, à coleta, organização e preservação de informações, documentos,
artefatos históricos, fotografias, pinturas, relíquias, entre outros objetos
relacionados aos surdos.

Marra nasceu e foi criado em Kansas City, se formou na Kansas State School for the
Deaf e na Gallaudet University. Foi professor na Kansas School for the Deaf por 38
anos, aposentando-se em 1976.

O primeiro William J. Marra Museum foi inaugurado em 20 de setembro de 1986


dentro da Kansas School for the Deaf, tornando-se uma fonte de orgulho para a
comunidade surda.

No ano de 2009 o Museum of Deaf History, Arts and Culture recebeu dentro das suas
dependências o novo William J. Marra Museum, passando a chamar-se, então,
Museum of Deaf History, Arts and Culture and the William J. Marra Museum.

O MDHAC é um museu voltado totalmente para a cultura e comunidade surda, desde


os funcionários, voluntários, curadores e artistas que lá expõem. É um espaço do
protagonismo surdo garantido e tem apoio da comunidade ouvinte também.

715
Pelas informações que estão no site, todo o trabalho do museu é gerido e
movimentado por surdos e para o público surdo, seus familiares e amigos. O
protagonismo surdo é uma característica forte do Museum of Deaf History, Arts and
Culture and the William J. Marra Museum, que vive de doações de pessoas comuns e
grandes fundações.

O museu está constantemente com exposições de artistas surdos em evidência,


porém, no período da pandemia da Covid-19, as visitas presenciais foram suspensas
e apenas atividades on-line continuaram sendo ofertadas. Em 2022, as atividades
voltaram de forma híbrida. As visitas presenciais ocorrem apenas aos sábados,
mediante agendamento e limite máximo de pessoas. Nos demais dias palestras,
oficinas, debates e workshops ocorrem de forma online. O fato do museu se dedicar
exclusivamente à comunidade surda não impede a visita de ouvintes. Mas é bom
ressaltar que todos os funcionários do museu são surdos e a língua prevalente é a de
sinais.

Considerações Finais

As iniciativas de inclusão em museus são determinantes para potencializar o


protagonismo surdo. A presença de educadores surdos e ouvintes fluentes em Libras
garantem o cumprimento da função social dos museus e contribuem no
fortalecimento da identidade surda. (TOJAL; OLIVEIRA; COSTA; RIBEIRO;
CHIOVATTO, 2012).

As ações desenvolvidas pela Pinacoteca a partir da contratação de uma educadora


surda e da disponibilidade de QRCode que acessam vídeos em Libras e com legendas
em português; o trabalho da pesquisadora Milene Barbosa na formação de surdos
como mediadores culturais em Congonhas, Minas Gerais; e a existência de um Museu
específico para surdos, o Museum of Deaf History, Arts and Culture and the William J.
Marra Museum em Kansas, nos Estados Unidos, são exemplos de como tratar o surdo
com cidadania e respeito, pois oferece às pessoas surdas condições diferenciadas
para alcançar a igualdade no direito de acessar de forma completa as atividades e
produções artísticas e culturais.

716
Vale ressaltar a importância das parcerias entre as instituições culturais, a iniciativa
privada e as organizações não-governamentais para a concretização das ações que
fortaleçam a participação dos surdos como agentes do processo, e não somente
como público beneficiário das ações.

Projetos que tiram os surdos da invisibilidade, formando-os para serem donos da sua
história, fortalecem o protagonismo surdo e garantem seu lugar cidadão no mundo.

Para que estas ações sejam bem sucedidas é fundamental incluir e sensibilizar as
pessoas ouvintes para as reais necessidades dos surdos. Por isso a Libras deve ser
ensinada também como segunda língua dos ouvintes nas escolas. Assim, a
comunicação e inserção do surdo na sociedade se efetiva.

Identificar e compreender a diversidade artística é uma das dimensões fundamentais


na vida em sociedade e na promoção da cidadania. Nunca é demais repetir: ser surdo
é ser estrangeiro no seu próprio país.

Referências

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.
CHAVEIRO, Neuma; BARBOSA, Maria Alves. Assistência ao surdo na área de saúde como
fator de inclusão social. Rev Esc Enferm USP, n. 39, v. 4, p. 417-22, 2005.
CRUZ, Andreza Nunes Real da. Aula de arte para com surdos: criando uma prática de
ensino. Dissertação de Mestrado em Artes. Universidade Estadual Paulista (UNESP) “Júlio
de Mesquita Filho”. São Paulo, 2016.
INSTITUTO FEDERAL DE MINAS GERAIS. Obras de Aleijadinho em Congonhas ganham
terminologia em Libras. Ministério da Educação, Belo Horizonte, 20 set 2018. Notícias.
Disponível em: <https://www.ifmg.edu.br/portal/noticias/obras-de-aleijadinho-em-
congonhas-ganham-terminologia-em-libras>. Acesso em: 20 jun 2021
LABORIT, Emmanuelle. O Grito da Gaivota. 2ª Ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.
MENEZES, Ebenezer Takuno de. SANTOS, Thais Helena dos. “LIBRAS (Língua Brasileira de
Sinais)”. Dicionário Interativo da Educação Brasileira. Educa Brasil. São Paulo: Midiamix
Editora, 2006.
MUSEUM OF DEAF HISTORY, ARTS AND CULTURE AND THE WILLIAM J. MARRA
MUSEUM. Disponível em: < https://www.museumofdeaf.org/>. Acesso em: 09 out 2022
OLIVEIRA, Margarete. Cultura e inclusão em museus: processos de formação em
mediação para educadores surdos. 2015. 191 f. Dissertação (Mestrado em Museologia pelo
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia), Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2015.

717
SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 4. ed. Florianópolis: UFSC,
2016.
TOJAL, Amanda Fonseca; OLIVEIRA, Margarete; COSTA, Maria Christina; RIBEIRO, Sabrina
Denise; CHIOVATTO, Mila. A inclusão de públicos especiais em museus: o programa
educativo para públicos especiais da Pinacoteca do Estado de São Paulo. In: IBRAM -
Instituto Brasileiro de Museus. Educação museal: experiências e narrativas. Brasília:
IBRAM, 2012, p.24-31. Prêmio Darcy Ribeiro 2010.

Mini Currículo

Sabrina Denise Ribeiro


Graduada em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes (2004), Pós-graduada em Arte Educação
pelo Centro Universitário SENAC (2019) e Mestranda em Design pela Universidade Anhembi Morumbi,
em São Paulo. Atua como Educadora Surda no Museu Pinacoteca em São Paulo, Brasil, desde 2008.
Tem experiência como educadora na área da mediação e arte educação em museus, oficinas e
instituições. E-mail: sabrinaderi@uol.com.br

718
IMAGENS DO CORPO E DA CIDADE: REFLETINDO SOBRE PRÁTICAS
EDUCATIVAS NO CAMPO DAS ARTES

IMAGES OF THE BODY AND THE CITY: REFLECTING ON EDUCATIONAL


PRACTICES IN THE FIELD OF ARTS

Pedro Simon Gonçalves Araújo


Universidade Federal de Goiás - FAV, Brasil

Resumo

O presente artigo discute mediações entre imagens do corpo e sua relação com práticas
educativas em espaços de ensino de artes a partir de uma experiência pedagógico-afetiva
realizada com alunos do curso de Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Goiás –
Campus Aparecida de Goiânia, durante minha pesquisa de doutorado. A investigação de
cunho qualitativo, utiliza a abordagem narrativa-autobiográfica para articular os conceitos
de corpo, imagem, memória e cidade em sintonia com estudos do corpo e da cultura visual.
Tomo como primordiais, os conceitos de ‘corpomídia’, ‘corpografia’ e performance, que
ancorados teoricamente nos princípios da educação da cultura visual, dialogam com imagens
e saberes estéticos-afetivos vinculados a dança e colocam em perspectiva subjetividades e
potências do corpo em espaços de ensino.

Palavras-chave: Corpo, Imagem, Cidade, Dança, Educação da Cultura Visual.

Abstract

This article discusses mediations between body images and their relationship with
educational practices in arts teaching spaces based on a pedagogical-affective experience
held with students of a Dance Degree course at the Federal Institute of Goiás - Aparecida de
Goiânia Campus, during my doctoral research. This qualitative investigation uses narrative-
autobiographical approach to articulate concepts of body, image, memory and city in line
with studies of body and visual culture. I take as primordial the concepts of of ‘corpomedia’,
‘corpography’ and performance, which theoretically anchored in the principles of visual
culture education, establishes dialogical relationships with images and dance aesthetic-
affective knowledge, putting in perspective body’s subjectivities and its potentials in
teaching spaces.

Keywords: Body; Image; City; Dance; Visual Culture Education.

719
Introdução

O presente artigo tem como objetivo reunir algumas das reflexões da minha pesquisa
de doutorado, realizada entre os anos de 2018 e 2022. Esta pesquisa teve como
motivação inicial inquietações artístico-afetivas suscitadas pelo processo criativo da
coreógrafa e bailarina Pina Bausch, experiência que vivi na Alemanha em 2014. A ação
de percorrer o espaço urbano de Wuppertal, cidade personagem das criações de
Bausch, propiciou meu encontro com uma cidade que, simbolicamente, representa
muito mais que muros, ruas, praças, instituições e vielas por estar caracterizada
como espaço de trocas e afetos na área da dança. A partir dessa experiência
cresceram as inquietações propostas nesta investigação diante de uma tomada de
consciência da potência dos espaços e suas reconfigurações como interface de
percepções do corpo enquanto constructo bio-sociocultural. Busquei no campo da
cultura visual, aliado a práticas educativas e processos de mediação, suporte para o
desenvolvimento desta pesquisa que teve como questões iniciais: Como integrar
afetações em corpos por imagens e cidades a metodologias de ensino? De que
maneira incluir corpos e espaços aos processos educativos? Qual a influência do
corpo para a perspectiva crítica do ensino de artes? Destaco, nessas inquietações, a
relação entre corpos, imagem, memória e cidade, tendo como pano de fundo
processos educativos discutidos a partir de uma abordagem crítica.

O campo transdisciplinar da cultura visual, ao aprofundar a investigação sobre as


imagens e sua relação com sujeitos, incita novas visões estéticas e culturais, abrindo
espaço para uma abordagem crítica. Tratar imagens e visualidades de modo crítico e
reflexivo é estratégia que contribui para ampliar, aprofundar experiências e produzir
conhecimento em um processo de empoderamento dos sujeitos. Nesse contexto,
imagens e visualidades propiciam uma compreensão crítica da interação entre
processos identitários e experiências vividas, que favorecem uma relação dialógica
entre imagens, corpos, cidade e narrativas.

Através do corpo experimentamos e percebemos o universo que nos cerca em um


processo contínuo de mútua afetação e codeterminação. Esse processo nos mantém
em estado de permeabilidade e provisoriedade, predispostos ou, talvez, vulneráveis
ao entorno com o qual nos relacionamos e por meio do qual acessamos informações
que nos influenciam e constituem.

720
Nesta investigação, examinei questões referentes ao corpo como interface de
apreensão do mundo configurando uma forma de resistência a abordagens
positivistas que ainda hoje persistem em currículos, práticas pedagógicas e
experiências educacionais em espaços formais e não formais de ensino. Práticas de
inibição e privação do corpo marcaram a minha trajetória e experiências vividas
como aluno ao longo da formação básica. A privação de liberdades individuais,
especificamente aquelas relacionadas ao corpo, de acordo com Foucault (1987),
impede que os processos de formação nos acolham por inteiro e, de maneira
arbitrária, vigia, pune e restringe. Diante desses argumentos, vejo o corpo como
recipiente e expressão de expectativas que incluem dores, amores, tristezas e
desejos, como interface de mundos plurais que configuram subjetividades e
individualidades, indispensáveis à formação de sujeitos críticos nos espaços de
ensino.

A pesquisa de campo teve como ponto de partida o convite a estudantes do curso de


Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Goiás (IFG), Campus Aparecida de
Goiânia, a participarem de uma experiência pedagógico-afetiva que teve início em
março de 2019 e contou com a participação de quatro alunas e três alunos. Os
encontros semanais realizados durante um período de quatro meses se revelaram
um espaço de acolhimento para a realização de experiências individuais e em grupo
cujo objetivo era ajudar a compreender como memórias pessoais e suas relações com
a cidade se inscrevem e impactam o corpo. Exercícios de gesto e movimento bem
como as narrativas visuais e textuais criadas pelos sujeitos da pesquisa criaram
trânsitos, possibilidades de rememorar situações, momentos e episódios vividos no
decorrer de suas trajetórias de vida, revisitando, mesmo que parcialmente e
momentaneamente, percepções sobre as relações cidade-corpo.

Perscrutando o projeto corpo, memória e cidade

Presente no IFG em 2019 como colaborador do Projeto de Incubadora Artística (PIA)


no curso de Licenciatura em Dança, abri-me a uma experiência estimulada por
encontros e reverberações dos espaços nos corpos, um processo afetivo e dialógico
que incorpora cidades, memórias e histórias de vida. O projeto “Corpo, Memória e
Cidade: construindo narrativas na relação com o urbano” embasou-se em vivências

721
pessoais anteriores, em grupos e escolas de teatro, cursos e workshops de dança, no
encontro com a arte de Pina Bausch e, especialmente, seu processo de criação.

As experiências dos alunos foram privilegiadas desde o primeiro encontro do grupo,


havendo espaço para uma partilha e escuta atentas enquanto pilares desta
investigação coletiva permeada por histórias de vida, relatos e inquietações pelas
imagens e cidades. Conexões entre corpos, cidades e imagens, fundamentaram-se
na relação estabelecida entre os alunos e as cidades de Goiânia e Aparecida de
Goiânia, duas cidades que se tornaram múltiplas a partir dos diferentes olhares e
apreensões dos espaços e conhecimentos construídos pelas experiências vividas.

A abordagem narrativa e autobiográfica escolhida para realizar esta investigação


advém do meu interesse em compreender, mesmo que parcialmente, inquietações
que entrecruzam nossos processos de formação deixando marcas e pegadas que
impactam de várias maneiras a trajetória de cada um de nós. Retomar ou revisitar
experiências vividas é algo desafiador. Hernández (2017, p. 53) nos convida a refletir
sobre a pesquisa narrativa ao afirmar que “[...] não é apenas o conhecimento que gera
[sentido], mas a capacidade do pesquisador para dar conta de maneira minuciosa e
exigente, daquilo que fundamenta as decisões que vai tomando e das relações que
estabelece no processo de escritura”.

A minha escolha pela abordagem autobiográfica encontra suporte nas palavras de


Souza (2004, p. 27) ao argumentar que o conhecimento possibilitado pela narrativa
“inscreve-se como um processo de formação porque remete o sujeito numa
pluralidade sincrônica e diacrônica de sua existência” colocando-o “frente à análise
de seus percursos de vida e de formação”.

Em um primeiro momento, a partir do início do primeiro semestre de 2019, foram


realizados três encontros semanais, de duas horas, em dia e horário definidos pela
coordenação do curso e de acordo com a disponibilidade dos estudantes. Esses
encontros tiveram como objetivo familiarizar os participantes com autores e
conceitos envolvendo questões relacionadas ao Corpo, a Cidade, incluindo
discussões sobre Memória e Imagem. Durante os encontros, os participantes foram
estimulados a elaborar um “diário de campo”, um registro com anotações,
impressões e percepções, observações e críticas sobre as discussões realizadas pelo
grupo.

722
Os textos e autores discutidos nos três primeiros encontros foram: “Por uma teoria
do corpomídia ou a questão epistemológica do corpo” (GREINER; KATZ, 2005);
“Corpografias Urbanas” (JACQUES, 2008); “O que são os estudos da performance”
(TAYLOR; STEUERNAGEL, 2015). Os textos estudados e discutidos durante o trabalho
de campo tiveram como foco os conceitos de ‘corpomídia’, de ‘corpografias urbanas’
e o conceito de performance.

As discussões sobre imagem e memórias tiveram como foco obras audiovisuais.


Foram exibidos dois vídeos sobre processos criativos da pesquisadora Luanna
Jimenes. A performer utiliza objetos, imagens, palavras e situações do cotidiano em
suas criações. Assistimos, também, o filme “O Lamento da Imperatriz” (1990) da
coreógrafa e diretora Pina Bausch, que apresenta o corpo e a cidade em estado de
mútua afetação em meio a uma dança-performance cotidiana. A leitura dos textos
bem como a exibição dos vídeos e do filme contribuíram para contextualizar a
proposta do projeto, ou seja, para situar os participantes da pesquisa de campo em
relação aos objetivos e a fundamentação.

Na segunda etapa do trabalho de campo os colaboradores foram convidados a


percorrer, através da memória e do corpo, espaços, locais e lugares da cidade que
considerassem importantes na sua trajetória/formação enquanto indivíduos.
Espaços que, de algum modo ou, por alguma razão, considerassem significativos em
relação ao modo como se percebem hoje como habitantes da cidade, locais e lugares
que tenham deixado marcas no corpo. Os estímulos e informações enviados por e-
mail e no grupo de WhatsApp, revelavam, a cada dia, memórias de pessoas, de
sentimentos, experiências em relação a lugares da cidade. Assim, durante três
encontros, foi possível registrar vivências corporais que permeavam lugares
“públicos” e “privados” da cidade: igreja, escola, casa de infância, casa da avó. Nos
três encontros seguintes solicitei que construíssem um diário visual da cidade.
Complementando a atividade corporal os colaboradores foram incitados a construir
narrativas escritas, fotográficas e em desenho como uma maneira de reforçar,
intensificar a experiência ao traduzi-la para outras mídias.

Com os registros da segunda etapa concluídos – percorrer espaços, locais e lugares


da cidade que considerassem importantes na sua trajetória/formação identitária e
corporal via memória, registros e narrativas – os colaboradores passaram a

723
apresentar para o grupo os locais, lugares e trajetos registrados. Em rodas de
conversas, cada estudante revelou, identificou e detalhou para o grupo os lugares
escolhidos, revisitando imagens, vivências e sentimentos, compartilhando
reminiscências afetivas e experiências vividas pelo corpo e com o corpo nos espaços
da cidade. Foram necessários três encontros para que os colaboradores da pesquisa
trocassem ideias, visualizassem imagens e observassem o percurso escolhido por
cada colega. Durante esses três encontros desenvolvemos uma espécie de
refinamento da pesquisa de movimento iniciada nas etapas anteriores. Essa etapa
culminou com a construção de células coreográficas que, posteriormente, foram
apresentadas pelos participantes em lugares escolhidos por eles. Eles tiveram
liberdade para traduzir, por meio de movimentos corporais, percepções,
sentimentos e afetos vividos ao percorrerem e/ou revisitarem os espaços/percursos
urbanos escolhidos.

Na quarta etapa do trabalho de campo os estudantes foram convidados a confrontar


ou, aproximar as partituras corporais, narrativas escritas e cartografias desenhadas
no espaço urbano, ou seja, no local que haviam escolhido para elaborar o percurso
proposto na quarta etapa e que motivou a elaboração delas. O intuito dessa atividade
foi despertar a atenção de pedestres e transeuntes para a realização das partituras
corporais sendo realizadas no espaço urbano que lhes deu origem. Foi, também, uma
maneira de suscitar o interesse, a curiosidade e, talvez, até mesmo alguma reflexão
daqueles pedestres e transeuntes que foram surpreendidos com a
dança/performance. Uma maneira de ressaltar que os espaços urbanos importam
porque são parte da experiência vivida dos habitantes da cidade e, em alguma medida
e de diferentes modos, moldam a experiência dos indivíduos. Nesse sentido e
contexto, dança e performance caminham juntas porque podem ressignificar
espaços urbanos, propiciar uma reapropriação de locais, lugares da cidade caros aos
seus moradores. Foram realizadas seis performances individuais, cinco em Aparecida
de Goiânia e uma em Goiânia. Uma performance coletiva foi realizada na cidade de
Goiânia.

724
Desvendando narrativas, memórias, imagens e cidades

Diversos foram os impactos vividos pelos alunos durante a pesquisa de campo. A


partir das relações e experimentações construídas com elementos imagéticos,
imaginários e físicos das cidades, novos corpos e questionamentos foram acionados.
Ao se abrirem a um encontro consigo mesmos, a partir de suas histórias, memórias
e cidades, os alunos construíram rotas para a investigação e experimentação de seus
caminhos de formação como artistas e educadores. Fizeram nascer diversas
corporalidades através de uma síntese “dos processos vividos pelo corpo na cidade,
que se expressa numa espécie de cartografia de experiências produzida pelo e no
próprio corpo, como resultante das suas interações com e na cidade” (BRITTO, 2013,
p. 37).

A partir do material produzido na pesquisa de campo, três categorias de análise


emergiram: Memórias e Histórias de Vida; Cidades (In)visíveis; Corpo, Educação e
Dança, que serão brevemente expostas em seguida.

Memórias e histórias de vida

Desde o primeiro encontro o projeto foi permeado por palavras, ideias,


questionamentos e provocações que funcionaram como estímulo para suscitar nos
alunos reflexões, dúvidas e enfrentamentos sobre aspectos de suas histórias de vida.
O artifício da livre expressão foi um caminho utilizado pelos alunos na construção de
novos sentidos e aprendizados que nos ajudaram a tatear e buscar compreender
ideias, pensamentos e memórias. Em seus diários de campo, revelaram, também,
mesmo que parcial ou timidamente, a maneira como estavam vivenciando o processo
deflagrado no decorrer das atividades da pesquisa de campo ou, como estavam
percebendo e acolhendo as experiências.

Bondía (2002, p. 21), ao comentar sobre a pertinência do nosso contato e do uso das
palavras, explica que “quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de
como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos
as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como
vemos” ou sentimos aquilo que nomeamos. Em sintonia com Bondía, posso dizer que
por meio das palavras os alunos eram capazes de expurgar um pouco do que estavam
sentindo, ensaiando uma tomada de consciência talvez um pouco mais clara através
725
da experimentação e do estudo da relação corpo-movimento numa perspectiva
artística.

Memórias prazerosas assim como memórias desagradáveis surgiram ao longo das


atividades realizadas durante a pesquisa de campo, contribuindo para desnudar
situações subjetivas e aspectos de identidades que emergiam como obstáculo a ser
enfrentado. Como apontam Castro e Berté (2019, p. 271), “o processo de rememorar,
através da reflexão sobre as experiências, faz do corpo lugar de trânsito contínuo
entre aquilo que foi, que pode ser, que deixou de ser, que busca ser”. O corpo,
enquanto abrigo de identidades e estrutura viva, tornava-se um mapa para projetar
alternativas às perguntas e dúvidas que surgiam durante as reflexões.

A percepção da memória e suas reminiscências como elementos formativos dos


indivíduos e suas identidades emergiam à medida que os alunos se permitiam o
trabalho de perscrutar bagagens e vivências presentes em seus corpos, movimentos
e gestos. Ao nos permitirmos o estado de exercício de percepções no contato com o
universo extracorpóreo, nossos órgãos do sentido se deixam permear,
transformando-nos em um todo sensível e aberto ao que nos chega.

As memórias e vivências rememoradas contribuíram para suprir lacunas na


compreensão da identidade aos alunos. Através do corpo e das imagens, evocaram
reflexivamente momentos/situações da subjetividade de suas existências,
acontecimentos, afetos e pessoas.

Aos poucos as memórias vão sendo ressignificadas, estimuladas por novas


informações e experiências. O corpo em movimento configura e (re)configura
elementos internos, pedaços, fragmentos de subjetividades. Segundo Katz e Greiner
(2005, p. 130), “como fluxo [que] não estanca, o corpo vive no estado do sempre
presente, o que impede a noção de corpo recipiente” diante de inúmeros
atravessamentos por novas informações e vivências que o impactam continuamente.

Algumas memórias, quando acessadas, ganham novos significados carregados de


mais sentidos. Castro e Berté (2019, p. 270), apoiados em Greiner (2005),
compreendem a memória como um processo de recategorização. A autora “[...]
enfatiza que os momentos, imagens e experiências que nos compõem se tornam
memórias, em um contínuo processo de (re)criação, (re)categorização,
(re)formulação, (re)significação”.
726
Em contato com suas memórias, os alunos se permitiram, por meio do corpo e da
dança, trazer à tona sentimentos e sensações que emergiram estimulados por
movimentos que propiciaram valiosas compreensões sobre si mesmos e diversas
fases de suas vidas, como a infância, que marcou boa parte dos relatos. Ao fazer e
pensar a dança como caminho de expressão, a estamos tratando como linguagem,
“uma das línguas nas quais o corpo se manifesta” e por meio da qual “a visualidade se
destaca” (KATZ; GREINER, 2012, p. 04). Para as autoras, “a dança existe na visualidade
que materializa. Quando se diz que a dança ‘expressa uma verdade interior’, se diz,
também, que a dança traz à luz uma ‘verdade interior’ que vive em algum quarto
escuro do corpo” (idem).

Ao longo de alguns meses de trabalho, os alunos passaram a conviver com outras


noções e concepções de memória. De algo afastado e esquecido no tempo e na
mente, gradativamente passaram a conceber a memória como algo latente no corpo,
passível de ser acionada e reconfigurada no presente, componente subjetivo que atua
no processo de ressignificação do eu, do eu-corpo. Um corpo que, de acordo com
Porpino (2010, p. 04) é, também, “território bio-cultural de memória” e que através
da dança é capaz de “retomar o passado [para] criar o presente”.

Cidades (In)visíveis

A maioria dos alunos participantes da pesquisa nunca havia trabalhado a cidade como
tema, conforme proposto na pesquisa de campo. As experiências anteriores apenas
abordavam a cidade como referência criativa, sem, todavia, possibilitar uma relação
direta com seus espaços ou aprofundar as relações já existentes. Enquanto
pesquisador considero a cidade um espaço onde acontece e se constitui a
experiência humana, portanto, daí o meu interesse em realizar uma pesquisa que
possibilitasse, via diálogo e atividades compartilhadas, um contato direto entre os
alunos e os territórios urbanos. Iniciamos o trabalho de campo desconstruindo e
reconstruindo noções do que seria a cidade.

As cidades, para os alunos, representavam espaço de transformação, de sentimentos,


espaço de alegria, solidão, casa e existência. Representavam, também, multiplicidade,
lugar de um povo, de liberdade, de expressão. Noções sobre “o que é e representa a
cidade” abrigavam o modo como se sentiam e eram afetados por ela, a interação de
727
cada um com seus espaços e lugares. Para Oliveira (2016, p. 106), “os lugares
interessam menos por eles mesmos e mais por sua interação com quem os pratica e
os encontros advindos dessa prática”. Entretanto, um ponto destacado por vários
alunos era a ausência de registros atuais da cidade, bem como registros de uma
memória mais vívida da cidade do período da infância, algo recorrente nas rodas de
conversa e nas entrevistas.

A ausência de afetos construídos na relação com a cidade durante a vida adulta


gerava ruídos, uma percepção truncada, travada em relação a esse espaço no
presente, havia um distanciamento, um estranhamento, uma espécie de crise da
noção de cidade. Essas percepções eram atribuídas à rotina corrida do dia a dia e às
dificuldades e problemas que a compõem, ideia sustentada por Sennett (2020, p. 16-
17) ao afirmar que “a condição física do corpo em deslocamento reforça essa sensação
de desconexão com o espaço”. A rotina, a correria e as apreensões tornam difícil
observar os trajetos, perceber os espaços, ou seja, se observar e se perceber na
cidade.

A partir dos elementos trazidos para discussão, foi possível estabelecer uma ligação
entre o distanciamento presente na realidade dos alunos e outros dois elementos: a
expansão radical do processo urbano, pontuado por Harvey (2014), e o processo de
espetacularização urbana. Ambos estão relacionados a transformação das cidades e
suas relações com os indivíduos, gerando, segundo Jacques (2005, p. 16), “uma
diminuição da participação popular, mas também da própria experiência física
urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística”.

A forma como se deu o processo de constituição das cidades contribuiu para o


processo de fragmentação dos indivíduos e dos espaços. Tendo como prioridade o
capital, a industrialização e os interesses de poucos, gradativamente diminuiu os
espaços públicos comuns e o direito à cidade, situação que para Pilon (2018) passa a
ser uma questão fundamental na atualidade. Ao problematizar a ausência de acesso
aos espaços públicos tocamos em temáticas políticas, ambientais, sociais e culturais
que estão conectadas e se retroalimentam a cada movimento.

O processo de ativação e reencontro dos corpos com seus espaços de direito se deu
de maneira paulatina e as imagens tiveram um papel relevante para que aos poucos
os alunos pudessem se reconectar às suas cidades porque as “imagens acionam um

728
processo de mediação entre percepção, pensamento e realidade externa” (MARTINS,
2009a, p. 3722). Foram diversos os registros realizados pelos alunos, não apenas
através de dispositivos ópticos, câmeras, celulares, mas, também, de dispositivos da
memória e dos sentidos - olfativo, auditivo, tátil. Os registros visuais (Figura 49)
foram importantes para ajudá-los a apreender aspectos da realidade, a fazer
aproximações com suas “cidades”, registros carregados de múltiplos sentidos,
memórias e narrativas acionados a partir das perspectivas e vivências de cada um
com aqueles espaços.

Segundo Jacques (2005, p. 24), imagens e construções narrativas são registros de


uma “relação inevitável entre o corpo físico e o corpo da cidade, que se dá através do
andar, através da própria experiência física – corporal, sensorial – do espaço urbano”.
O contato com a cidade, a possibilidade de perceber e sentir as marcas que ela havia
deixado em cada um, os despertou para um olhar mais sensível. Aos poucos, ao longo
dos encontros, os alunos participantes da pesquisa conseguiam cruzar lugares da
memória com lugares do presente, lugares de afetos construídos ou com os afetos a
construir.

A pesquisa de campo ajudou os alunos a olhar a cidade não apenas como cidadãos,
mas, também, como artistas e provocadores de novas percepções como uma maneira
de explorar espaços e lugares a partir de caminhadas, danças e performances, ou
seja, uma abertura para novos encontros e atrevessares. Assim, a cidade trouxe algo
que vai além das definições e conceitos que encontramos nos livros. Trouxe outras
perspectivas sobre o que de fato acontece quando a cidade não está sendo
observada. Espaços e lugares foram retomados através de visitas individuais e em
grupo, numa tentativa de estabelecer com novas apropriações por meio da
performance, da dança, do corpo.

Corpo, educação e dança

Os relatos dos alunos sobre suas experiências gradativamente foram tornando


evidente uma percepção limitada do corpo e sua relevância para a educação,
sobretudo relatos relacionados a vivências no ensino de dança. Mesmo se tratando
de uma disciplina diretamente ligada ao corpo, aos poucos foram emergindo
resquícios de padrões e práticas associadas a visões cartesianas, concepções rígidas,
729
pouco flexíveis de abordar os processos de ensino. Visões que exalavam abordagens,
por vezes longínquas, dos “corpos dóceis” de Foucault (1987), competentemente
analisadas por Silva (2015, p. 20), e em sintonia com os princípios teóricos do
‘corpomídia’ nas escolas, com as reflexões sobre corpos apartados de suas
existências, doutrinados por padrões, cerceados por instâncias e circunstâncias que
perpassam a história da educação no nosso país.

Ainda enfrentamos nas práticas educativas uma normatização, uma tentativa de


controle dos corpos, reflexo de biopoderes locais nos quais os sujeitos são alvo ao
mesmo tempo em que se tornam instrumento das relações de poder, ou seja, da
biopolítica. Ao afastar o indivíduo de sua corporalidade, do seu próprio corpo, ele se
torna um mero depositário de conteúdos e o educador, depositante, conforme afirma
Paulo Freire (1997). Segundo Strazzacappa (2001, p. 69) “é o movimento corporal que
possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo
e serem sentidos. No entanto, há um preconceito em relação ao movimento” que
afasta o homem do seu caráter crítico e criativo, o afasta das relações com o mundo,
abordagem que numa perspectiva humanista e libertadora da educação é
inconcebível.

O corpo na educação é um lugar de possibilidades, um lugar de acesso ao que nos


faz, ao que nos atravessa, uma vitrine para que processos internos se mostrem. Ao
nos afastarmos de uma perspectiva “reducionista da intelecção”, como observa
Nóbrega (2005, p. 09), acessamos uma via que nos ajuda a perceber o mundo e a nós
mesmos, acessamos episódios da nossa trajetória, momentos da nossa historicidade,
momentos sociais e políticos que nos formam. Através da liberdade do movimento
geramos uma mente também mais livre. O movimento é capaz de reordenar nosso
organismo e criar sentidos, ao passo que a percepção é um acontecimento e
experiência que se dá pelo corpo. A ênfase do corpo nos processos de ensino pode
funcionar como antídoto à uma ‘racionalidade’ por vezes silenciosa, oculta, porém,
opressora, que inibe o protagonismo criativo da mente e impossibilita uma melhor
compreensão do corpo. O contato com o corpo e pelo corpo, abordando os
indivíduos como sujeitos no mundo, amplia a exploração da própria existência ao
habilitar outros saberes que perpassam os movimentos e sentidos, criando condições
para transformações nos indivíduos.

730
Considerações Finais

Abordar e vivenciar a cidade, suas imagens, espaços e lugares, provocação proposta


pela coreógrafa Pina Bausch, é uma maneira de integrar o corpo ao cotidiano urbano
que nos atravessa, de desenvolver uma visão crítica sobre os ambientes que nos
rodeiam. É, também, uma maneira de analisar suas diversas manifestações buscando
aguçar o olhar dos alunos para questões/problemas que podem contribuir para a
formação docente no contexto de uma sociedade na qual as relações sejam mais
igualitárias e as práticas pedagógicas mais inclusivas.

Referências

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Brasileira de Educação, ANPED, São Paulo, n.19, p. 20-28, jan/abr. 2002.
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TAYLOR, Diana; STEUERNAGEL, Marcos (Org.). Performance Studies. Duke University
Press, 2015.

Mini Currículo

Pedro Simon Gonçalves Araújo


Doutor em Arte e Cultura Visual pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da
Universidade Federal de Goiás. Professor substituto na Universidade Federal do Amapá – Licenciatura
em Artes Visuais. E-mail: araujops3@gmail.com

732
ATRAVESSAMENTOS ENTRE GÊNERO E BRINCAR: PROVOQUE COMO
ESTRATÉGIA NAS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO

CROSSINGS BETWEEN GENDER AND PLAY: PROVOQUE AS A STRATEGY IN


RESEARCH IN EDUCATION

Beatriz Girão Enes Carvalho


Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil

Vagner Matias do Prado


Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Resumo

Artefatos culturais podem ser produções como revistas, livros, filmes que geram
representações e discursos que circulam e originam significados e subjetividades. Artefatos
culturais como pedagogias culturais, produzem conhecimento e aprendizagens, dando
significado a discursos, veiculando representações, incitando às pessoas a produção de
identidades sociais e culturais e são de extrema relevância na constituição dos corpos
infantis e seus comportamentos, entre eles as relações de gênero. A construção dos gêneros
se dá através e inúmeras práticas sociais e situações nas quais a criança faz parte, entre elas
o brincar. Assim, pretendemos discutir sobre pesquisas em cultura visual relacionando
manifestações do brincar e as relações de gênero, potencializando discussões sobre
produções imagéticas como instrumentos capazes de reforçar ou subverter padrões de
comportamentos tipificados. Além disso descrever o conjunto de procedimentos
PROVOQUE como uma importante estratégia para essas pesquisas. Importante destacar que
pedagogias culturais e pedagogias visuais são desdobramentos possíveis em pesquisas
dentro da educação, pois produzem saberes que impactam no processo de construção de
subjetividades e, não raro, não ganham destaque para serem problematizadas nos currículos
“ditos” formais. Mesmo que os artefatos culturais caminhem para o reforço de padrões
tipificados de gênero, muitas vezes expressos nas manifestações do brincar de meninas e
meninos, os mesmos podem ser utilizados como fonte de discussão. Tal fato, permite
questionar e problematizar estratégias de subversão e transformação, que permitam
desvelar múltiplas expressões de gênero que fogem a binarismos. Pensamos que o conjunto
de procedimentos PROVOQUE pode contribuir com essas discussões na educação, no
âmbito da cultura visual, analisando as visualidades a partir dos estereótipos encontrados. É
uma estratégia que produz caminhos, mas não se fecha, mostrando-se flexível as
características do pesquisador e dos artefatos culturais pesquisados.

Palavras-Chaves: brincar; relações de gênero; artefatos culturais.

733
Abstract

Cultural artifacts can be productions such as magazines, books, films that generate
representations and discourses that circulate and originate meanings and subjectivities.
Cultural artifacts such as cultural pedagogies, produce knowledge and learning, giving
meaning to discourses, conveying representations, encouraging people to produce social
and cultural identities and are extremely relevant in the constitution of children's bodies and
their behaviors, including gender relations. The construction of genres takes place through
numerous social practices and situations in which the child is a part, including playing. Thus,
we intend to discuss research in visual culture relating manifestations of play and gender
relations, enhancing discussions about imagery productions as instruments capable of
reinforcing or subverting typified behavior patterns. In addition, describe the set of
PROVOQUE procedures as an important strategy for these researches. It is important to
highlight that cultural pedagogies and visual pedagogies are possible developments in
research within education, as they produce knowledge that impact the process of building
subjectivities and, often, do not gain prominence to be problematized in “so-called” formal
curricula. Even if cultural artifacts tend to reinforce typified patterns of gender, often
expressed in the manifestations of girls and boys playing, they can be used as a source of
discussion. This fact makes it possible to question and problematize strategies of subversion
and transformation, which allow revealing multiple expressions of gender that escape
binarisms. We think that the set of PROVOQUE procedures can contribute to these
discussions in education, within the scope of visual culture, analyzing visualities from the
stereotypes found. It is a strategy that produces paths, but is not closed, showing the
characteristics of the researcher and the cultural artifacts researched to be flexible..

Keywords: play; gender relations; cultural artifacts.

Primeiras Aproximações

Muitas vezes as crianças se privam de experiências e delimitam seus processos


lúdicos em virtude de muitos atravessamentos, entre eles as manifestações de
gênero. As brincadeiras e brinquedos passam a ser de menina ou de menino e não
apenas de crianças. As imagens vinculadas nas propagandas de brinquedos, os
programas voltados as crianças, muitas vezes reforçam padrões tipificados.

As infâncias atuais já nasceram se relacionando com diversas tecnologias e meios


imagéticos. Hoffmann e Cassino (2020) nos fazem refletir pontuando que

734
(...) sobre os modos de recepção dos sujeitos mais jovens, podemos
afirmar que estamos diante de uma geração que, mais que na escola, é
nos meios audiovisuais, diante das telas, que aprende, faz conexões,
experimenta empatia pelas novas tecnologias, se expressa, apreende o
mundo e se coloca como participante ativo desse mundo, constrói
subjetividades e modos de ver. (HOFFMANN; CASSINO, 2020, p. 16).

As crianças vivenciam o caminho do consumo intenso, no qual a aquisição permeia


ou até precede as ações de brincar. Os brinquedos mais “desejados” são aqueles cujas
imagens circulam pela mídia, seja televisão ou internet. Brougère (2006) refere o
impacto da cultura do consumo nas infâncias, e a inevitabilidade desse mergulho,
pontuando que não é possível imaginar indivíduos que estejam fora de um contexto
social e cultural.

Investigar esses produtos reconhecidos como artefatos culturais nos leva a


compreensão das infâncias e de seus atravessamentos. Para a perspectiva pós-
estruturalista, conforme já destacado por Guacira Lopes Louro na década de 1990
(LOURO, 2014), o objeto de investigação em tela, por exemplo, traz sentidos e
significados que impactam no processo de produção de subjetividades, ao
(re)produzirem representações sobre expectativas esperadas para crianças a partir
das relações, por exemplo, entre gênero e o brincar.

Com isso, pretendemos discutir a importância de pesquisas em cultura visual


relacionadas com as manifestações do brincar e as relações de gênero,
potencializando as discussões sobre as produções imagéticas como instrumentos
capazes de reforçar ou subverter padrões de comportamentos esperados para
crianças. Além disso descrever o método PROVOQUE (BALISCEI 2019; BALISCEI,
2020) como uma importante estratégia para essas pesquisas.

De Quais Infâncias Estamos Falando? Das que Brincam...

A infância, aqui nesse estudo é tratada como um processo sócio-histórico e cultural,


com diversos atravessamentos, sendo a infância vista como construto social, como
processo que se modifica histórica e culturalmente. Fabiana de Oliveira e Gabriela
Guarnieri de Campos Tebet referem que

735
(...) as crianças devem ser entendidas como atores ou sujeitos sociais
que interagem com o mundo, com as coisas, com as palavras, com a
arte, etc.. Dessa forma, produzem culturas a partir da sua singularidade
e na relação com o adulto, e com aquilo que podemos chamar de “o
fora” (entendido como aquilo que está fora da criança, o exterior).
(OLIVEIRA; TEBET, 2010, p. 39).

Manoel Jacinto Sarmento (2005; 2007) aponta que a infância sempre foi marcada pelo
aspecto de negatividade. Pelo que não é, pelo que não tem, exprimindo-se na idade
de menoridade, aquela que não se defende, não pensa adequadamente e não tem
valores, mas na verdade a infância se constitui não pela ausência, mas pela presença
de características que são comuns a todas as crianças. Sarmento (2005) apresenta a
sua compreensão de infância como uma categoria social do tipo geracional própria,
com seus fatores de homogeneidade, no entanto sem uma concepção
uniformizadora da infância, considerando as diferenças e desigualdades que a
atravessam. Nesse sentido Sarmento defende o conceito de infâncias e não de
infância.

Os estudos de Sarmento (2005) e William Corsaro (2011) nos fazem compreender que
as crianças, dentro das muitas infâncias, reproduzem processos da cultura dos
adultos, mas também produzem seus próprios processos a partir de uma postura
ativa e protagonista, interpretando o mundo que veem de forma singular, inventiva
e criativa. Nesse sentido o brincar é a principal atividade da infância que permite os
processos criativos mais complexos. As crianças brincam porque existem! A criança
se entrega ao brincar pelo prazer dessa ação e existe por causa dela. Nesse sentido,
o “ser” criança, ao brincar propõe, capta, reinventa, significa e ressignifica o mundo.

O brincar não é a única atividade da infância, estando a criança muitas vezes exposta
ao universo do trabalho, da escola e de atividades diversas ao longo do seu dia no
entanto é a mais importante delas, sendo elemento fundamental para a formação da
cultura. Para Johan Huizinga (2000) o brincar é a ação pela qual a civilização surgiu
e se desenvolveu sendo um elemento dado existente antes da própria cultura,
acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de
civilização em que agora nos encontramos.

De forma geral, Gilles Brogère (2002) aponta que o brincar nasce, nos primeiros jogos
dos bebês com suas mães. Nasce nessas relações, não nasce com a criança biológica,

736
mas sim da criança social, o brincar é aprendido, produzido culturalmente, é uma
atividade dotada de uma significação social. Dessa forma temos a cultura com cerne
da compreensão das infâncias e o brincar como ação primordial da cultura das
infâncias.

O Gênero que me atravessa

Nessa discussão podemos incluir as questões de gênero como uma das experiências
formativas das crianças por meio do brincar. Segundo Guacira Lopes Louro (2014) o
termo gênero não é determinado por uma característica biológica, mas se configura
como uma construção social e histórica que vai além da questão biológica dos corpos.
Ser homem e ser mulher não são identidades naturais e isentas de atravessamentos
culturais. Joan Scott (1995) aponta o gênero como elemento constitutivo das relações
sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, marcada pelas
representações simbólicas, pela fixação normativa binária que acontece na família,
mas também em todo o ambiente a volta, como escola, trabalho, mídias.
Compreendemos que o brincar como atividade cultural será marcado pelas relações
de gênero.

Nesse sentido, autoras como Louro (2008) e Claudia Vianna e Daniela Finco (2009)
argumentam que as relações dos gêneros se dão através de inúmeras práticas socias
e situações, das quais as crianças fazem parte. As crianças são treinadas, desde muito
pequenas, a terem em seus corpos “marcadas” as diferenças de gênero, aprendendo
o que “pode ou não pode” fazer.

João Paulo Baliscei e Ana Carla Vagliati (2021) analisaram 38 jogos de ciências,
pretendendo problematizar as representações de ciência e feminilidade em suas
embalagens. Identificaram representações socialmente relacionadas a
masculinidade como, por exemplo, a utilização das cores azul, cinza e verde e/ou
imagens de meninos na caixa. Nos jogos que apresentavam imagens de meninas,
sempre vinham acompanhadas das de meninos e mantidas em segundo plano.
Apenas um dos jogos teve a imagem de uma menina em destaque e o predomínio das
cores rosa e lilás na caixa. Por meio destas análises, Baliscei e Vagliati demonstram
que jogos direcionadas ao público infantil, muitas vezes utilizados por crianças em

737
situações do brincar, podem se configurar como artefatos culturais que reforçam
padrões tipificados de gênero.

Mesmo que os artefatos culturais caminhem para o reforço de padrões tipificados de


gênero, muitas vezes expressos nas manifestações do brincar de meninas e meninos,
os mesmos podem ser utilizados como fonte de discussão. Tal fato, permite
questionar e problematizar estratégias de subversão e transformação, que permitam
desvelar múltiplas expressões de gênero que fogem a binarismos.

Pesquisar em Educação e Visualidades

É importante destacar que pedagogias culturais e pedagogias visuais são


desdobramentos possíveis em pesquisas dentro da educação, pois produzem saberes
que impactam no processo de construção de subjetividades e, não raro, não ganham
destaque para serem problematizadas nos currículos “ditos” formais.

Os estudos de João Paulo Baliscei (2021), Bianca Salazar Guizzo, Jane Felipe, Dinah
Quesada Beck (2013), Guacira Lopes Louro (2008), Henry A. Giroux (2011), Joanalira
Corpes Magalhães e Paula Regina Costa Ribeiro (2013), Constantina Xavier Filha
(2014), Jéssica Fiorini Romero e João Paulo Baliscei (2021), consideram artefatos
culturais revistas, livros, filmes, televisão, mídia, brinquedos e outras produções que
geram representações e discursos que circulam e originam significados e
subjetividades.

Nessa linha pensamos no campo da Cultura Visual, que segundo Fernando


Hernández (2020) se apresenta como uma trama teórico-metodológica, com
referências, entre outros, com estudos pós-estruturalistas e estudos culturais. Isso
porque a ênfase do trabalho se sustenta nas posições subjetivas que produzem as
imagens, quais são os significados para os sujeitos que produzem e visualizam essas
imagens, muito mais do que na leitura das imagens em si. O autor refere ser um
campo de estudo transdisciplinar ou adisciplinar cuja preocupação se alicerça nas
práticas culturais que se relacionam com a forma e ato de olhar como com os efeitos
sobre quem olha. (HERNÁNDEZ, 2020).

Assim Irene Tourinho e Raimundo Martins (2020) referem que o campo de estudo,
da Cultura Visual,

738
(...) além do interesse de pesquisa pela produção artística do passado,
concentra atenção especial nos fenômenos visuais que estão
acontecendo hoje, no uso social, afetivo e político-ideológico das
imagens e nas práticas culturais que emergem do uso dessas imagens.
Ao adotar essa perspectiva, a cultura visual assume que a percepção é
uma interpretação e, portanto, uma prática de produção de significado
que depende do ponto de vista do observador/espectador em termos
de classe, gênero, etnia, crença, informação e experiência cultural.
(TOURINHO; MARTINS, 2020, pos. 701).

Clifford Geertz (2008) aponta a cultura como uma teia de significados que o homem
mesmo teceu. Somos parte produtor e parte obra, somos parte espectador e parte
artista. Somos modificados a cada experiência que nos atravessa, assim como nos
propõe Jorge Larrosa (2011).

A experiência supõe, como já vimos, que algo que não sou eu, um
acontecimento, passa. Mas supõe também, em segundo lugar, que algo
me passa. Não que passe ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer
dizer, em mim. Experiência supõe, como já afirmei, um acontecimento
exterior a mim. Mas o lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em
minhas palavras, ou em minhas ideias, ou em minhas representações,
ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas
intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade)
onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar. (LARROSA,
2011, p. 6).

Vivenciar e ser atravessado pelas experiências, permitir-se parar, pensar, absorver,


rever, subverter e recusar, são processos importantes segundo Larrosa (2011). Tudo
importa em suas relações. As imagens produzem e reproduzem discursos a partir de
sua relação com o outro. Pablo Petit Passos Sérvio (2014) traz a discussão de Hal
Foster (1988) sobre os objetos da cultura visual.

O que Foster chama de “visual” está dividido em dois planos. Esses


planos não atuam de modo separado, mas tampouco são idênticos. 1)
visão trata da percepção como operação física, trata de seus
mecanismos e dados; e 2) visualidade trata da percepção como fato
social, suas técnicas históricas e determinações discursivas. Enquanto
a visão foca na parcela biológica da experiência visual, o corpo e a
psique, a visualidade trata da parcela cultural da experiência visual,
aquilo que é aprendido social e historicamente. (SÉRVIO, 2014, p. 197).

739
Nesse sentido o autor propõe como visão o que é capitado pelos sentidos, aquilo que
se vê, as imagens. Visualidades a visão através da cultura. Para Sérvio (2014) a cultura
influencia a nossa experiência visual, de formas diversas e muitas vezes difíceis de
perceber. O que captamos com os olhos e como captamos as imagens, o que nos
chama atenção como nos relacionamos com o que vemos, como os processos visuais
nos moldam ou nos impulsionam a discussão e transgressão, tudo tem relação com
a cultura. Para Sérvio (2014), é indispensável para a análise de experiências visuais em
profundidade, considerarmos o contexto histórico e local nos quais estamos
inseridos.

As imagens são algo além delas mesmas, enquanto estética e forma, “as imagens e
outras representações visuais são portadoras e mediadoras de significados e
posições discursivas que contribuem para pensar o mundo e para pensarmos a nós
mesmos como sujeitos”. (HERNÁNDEZ, 2020, pos. 383). O que pode ou não ser visto
e quem pode ou não ver são questões importantes para se pensar na Cultura Visual.
As imagens, bem como as experiências visuais estão circunscritas em uma lógica de
poder e controle, prescrevendo o comum e a normalidade e o tabu ou anormal, e
ainda quem pode ou não ser visto. (SÉRVIO, 2014). Adriana Hoffmam e Helenice
Cassino (2020) apontam que

Assim, os repertórios visuais vão se constituindo como cultura e


constituindo os sujeitos e com isso sua cultura. (...) não são apenas
repertórios imagéticos que conformam a cultura visual, mas tudo o que
vem junto com esse repertório, como o momento histórico, as
possibilidades tecnológicas, os discursos produzidos, as ideologias e
relações de poder. (HOFFMANN; CASSINO, 2020, p. 5).

Pensemos sobre as questões que diferenciam as infâncias, mas também pontuamos


a importância das visualidades na sociedade atual. Irene Tourinho e Raimundo
Martins (2010) trazem como objetivo em seu texto justamente pensar sobre essa
diversidade, apontando que pretendem “situar algumas características das culturas
de infâncias na sua relação com imagens, ressaltando a pluralidade e diversidade
dessa relação e a inadequação de pensa-la como um bloco único, monolítico e fixo.”
(TOURINHO; MARTINS, 2010, p. 37). O que nos remete a diferentes infâncias e
diferentes formas de exposição e de interação com as visualidades e da relação com
outros marcadores sociais como gênero, classe, raça/etnia por exemplo.

740
Pensar sobre as imagens e a forma como elas se relacionam com as crianças, ou
melhor a forma como as crianças se relacionam com as imagens. Dentro das
discussões da cultura visual, é importante estudarmos as visualidades e nesse sentido
pensarmos em uma perspectiva crítica que vai além das imagens. As imagens não
devem ser deixadas de lado, podem ser o ponto de partida ou o meio do caminho,
mas não a linha de chegada. A cultura visual se preocupa mais com os receptores do
que com os produtores das imagens. Muito mais do que representar os sujeitos e os
grupos, os artefatos e imagens instituem os modos de vermos os outros e de nos
relacionarmos com o mundo. (CUNHA, 2010, p. 135).

As/os autoras/es adensam esse debate ao compreenderem os artefatos culturais


como pedagogias culturais ou pedagogias visuais (GUIZZO, FELIPE, BECK, 2013;
BALISCEI, 2021). Demostram o quanto esses formatos reproduzem representações
diversas sobre gênero, infância, “raça”, etnia, classe social, cabendo serem analisadas
a luz de referenciais teóricos que possibilitem compreendê-las de uma maneira
aprofundada, como essas representações são produzidas, reproduzidas, reiteradas e
também subvertidas e resignificadas e impactam o contexto social.

Os estudos de Baliscei, por exemplo, utilizam os filmes da Disney como foco para
analisar essas representações, considerando os filmes como artefatos culturais.
Baliscei (2021) analisa três personagens femininas do filme “Os Incríveis” e “Os
Incríveis 2” do universo cinematográfico da Disney, discutindo estereótipos de
feminilidade e os “papeis” atribuídos a mulher representados nos filmes, como
possibilidades de apresentar o impacto e as representações que ali aparecem.
Podemos somar a análise de Baliscei as reflexões de Xavier Filha (2014), ao analisar
livros infantis. A autora aponta que “os artefatos culturais produzem significados,
ensinam determinadas condutas às meninas e aos meninos e estabelecem a forma
“adequada” e “normal” de viver a sexualidade, a feminilidade ou a masculinidade.”
(XAVIER FILHA, 2014, p. 155).

Os estudos de Baliscei, de certa forma adentram também, no que Henry A. Giroux


(2011) já problematizava no capítulo “Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da
Disney” em que discute sobre os filmes “Bom dia, Vietnã” e “Uma linda Mulher”,
ambos da empresa de cinema Touchstone que pertence ao grupo Disney. Os filmes
não são voltados ao público infantil, mas, a análise do autor, nos ajuda a pensar nesses

741
materiais como artefatos culturais que produzem representações que educam os
sujeitos por atuarem como pedagogias culturais. Giroux aponta que ambos os filmes
produzem representações sobre posições sociais de gênero, classe, raça, reforçando
um padrão excludente, sexista e racista. Enfatiza ainda o papel dos agentes culturais
hegemônicos como a televisão e o cinema, na construção de pedagogias influentes
no século XX, tendo, as mídias eletrônicas, um enorme alcance global.

Nessas reflexões levantamos o papel dos artefatos culturais como pedagogias


culturais, que segundo autores como Guizzo, Felipe, Beck (2013), Baliscei (2021) e
Romero e Baliscei (2021), produzem conhecimento e aprendizagens, dando
significado a discursos, veiculando representações. Os processos educativos não se
limitam apenas as escolas ou as intervenções propostas nas escolas, mas as diversas
produções imagéticas , como televisão, cinema ou propagandas também são
expressões da cultura popular e produzem aprendizagens. Importante que nos
atentemos a eles de forma crítica e analítica.

PROVOQUE como Estratégia para Pesquisas em Educação e Visualidades

A partir das discussões anteriores trazemos aqui o PROVOQUE ou Problematizando


Visualidades e Questionando Estereótipos, que é um conjunto de procedimentos
para análise de produções imagéticas, proposto por João Paulo Baliscei (2018; 2019;
2020). Segundo o autor esses procedimentos foram criados com o objetivo de
“orientar as investigações visuais críticas e inventivas, identificando e
desestabilizando estereótipos que insistem em validar algumas representações e
desprezar outras”. (BALISCEI, 2020, p. 65). Assim, a ênfase do PROVOQUE é dada aos
estereótipos1.

Segundo o autor, PROVOQUE é composto por cinco etapas que são: Flertando,
Percebendo, Estranhando, Dialogando e Compartilhando. A primeira etapa,
Flertando, se relaciona com o primeiro momento de estabelecer relação com as
imagens visuais, aqui entendidas como o artefato cultural selecionado, a fotografia,

1
Baliscei (2020) adota no PROVOQUE o conceito de estereótipo baseado nas discussões dos Estudos Culturais, de
autores como Tomaz Tadeu da Silva (2006) e Stuart Hall (2012). Baliscei aponta que, nessa perspectiva, o estereótipo
“é criado para ser lido com rigor e para provocar fixações identitárias, segundo modelos restritos e superficiais”.
(BALISCEI, 2020, p. 68). É algo que anula diferenças, evidencia hierarquias, reduz a complexidade do outro, mantem
a ordem social e simbólica que sempre privilegia a diferença entre o normal e o patológico, pervertido, inaceitável.
742
o filme, a série e outros. É o primeiro contato por início descompromissado, de flerte,
namoro com as imagens. Envolve a busca, com um aspecto mais subjetivo e pessoal,
entre tantas possiblidades daquilo que mexe com a pesquisadora ou com o
pesquisador.

Baliscei (2020) descreve Flertando como sendo composta por duas ações analíticas.
A primeira, é a composição do corpus de análise, formada pela escolha de imagens
que:

a) excitem o debate e a exposição de opiniões; b) provoquem


incômodos, desequilíbrios e estranhamentos; c) integrem a cultura
visual, sendo, portanto, populares e acessíveis aos indivíduos; d)
(re)produzam estereótipos; e) ou, ainda, que promovam
questionamentos e desestabilizações das representações
convencionais contidas nos estereótipos. (BALISCEI, 2020, p. 72).

A segunda ação analítica caracteriza-se pela descrição dos critérios adotados nessa
seleção. Dessa forma o autor pontua importante o relato sobre os motivos da escolha,
e os contextos históricos, culturais e afetivos que a atravessaram. No caso das
imagens que possam ser selecionadas posteriormente, cabe a justificativa dos
critérios de exclusão e de seleção que foram considerados para a nova composição
do corpus de análise.

A segunda etapa Percebendo, assim como a anterior, também se vale de duas ações
analíticas distintas: a apresentação visual e a apresentação verbal, sem ordem
específica de realização. Na apresentação visual deve-se chamar atenção de
representações específicas das imagens selecionadas. O autor recomenda que a
utilização de mais de uma imagem, combinando-as ou confrontando-as. Para as
imagens estáticas, a combinação oportuniza o debate, comparação, relação entre
elas, evidenciando estereótipos que elas compartilham ou não.

Já na apresentação verbal das imagens a apresentação do corpus de análise pode ser


feita com informações quanto à procedência das imagens, quanto às narrativas que
elas sugerem e até mesmo mediante a sua descrição visual. Esse procedimento
mostra-se importante não apenas pela descrição propriamente dita, mas como uma
forma de atenção a detalhes que podem passar despercebidos e que tenham
importância na discussão.

743
A terceira etapa, Estranhando refere-se à formulação e o lançamento de perguntas
que sejam capazes de problematizar os estereótipos oferecidos pelas imagens, no
nosso caso, as relações de gênero tipificadas. A partir dessas perguntas, o/a
pesquisador/a “podem “estranhar” os estereótipos reincidentes e suspeitar daquilo
que é apresentado como natural ou como única possibilidade”. (BALISCEI, 2020, p.
75, destaques do autor). Assim, nos atentando também para as relações de gênero
que subvertam os padrões heteronormativos, apresentadas nas imagens.

A quarta etapa Dialogando, propõe o exercício do novo olhar sobre o material


selecionado, transformando e ampliando as formas de significar as imagens,
responder aos questionamentos de Estranhando, pesquisar para fundamentação das
investigações e por último confrontar os “estereótipos identificados nas imagens
com teorias, conceitos, dados, livros, documentos, reportagens, artigos,
dissertações, teses ou outras produções que versem sobre a temática e que
possibilitem evidenciar as relações de poder que atravessam a produção visual”.
(BALISCEI, 2020, p. 76). No nosso caso podemos pensar em confrontar as imagens
com os estudos da Sociologia da Infância e Estudos do Gênero. Nessa etapa cabem
processos que discutam o estereótipo ou que contribuíam para sua desestabilização,
que possam caminhar para a subversão de padrões. As imagens de estereótipos
podem se somar as imagens que produzam significados outros dos comumente
estabelecidos.

A última etapa, Compartilhando, se refere a socialização das vivências


proporcionadas pelo PROVOQUE, que podem acontecer de formas diversas,
repercutindo em outras ações, produções ou quaisquer formas de registro. Podem
ser

produções artísticas, cursos e oficinas de análise de imagens, rodas de


conversa, exposições das imagens investigadas, planos de aula,
apresentações em eventos científicos, slides, portfólios de
documentação e registro, cartazes e painéis coletivos, relatos de
experiências, artigos e livros. (BALISCEI, 2020, p. 78-79).

O PROVOQUE em seu formato de proposta compõe com os estudos da cultura visual


importantes para a educação.

744
Continuamos a Construir

Mesmo que os artefatos culturais caminhem para o reforço de padrões tipificados de


gênero, muitas vezes expressos nas manifestações do brincar de meninas e meninos,
os mesmos podem ser utilizados como fonte de discussão. Tal fato, permite
questionar e problematizar estratégias de subversão e transformação, que permitam
desvelar múltiplas expressões de gênero que fogem a binarismos. Pensamos que o
conjunto de procedimentos PROVOQUE pode contribuir com essas discussões na
educação, no âmbito da cultura visual, analisando as visualidades a partir dos
estereótipos encontrados. É uma estratégia que produz caminhos, mas não se fecha,
mostrando-se flexível as características do pesquisador e dos artefatos culturais
pesquisados.

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em Revista, Curitiba, Brasil, Edição Especial n. 1/2014, p. 153-169.

Mini Currículos

Beatriz Girão Enes Carvalho


Professora adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro (UFTM). Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED)
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Sexualidade
e Performatividades – GPESP. E-mail: bgecarvalho@hotmail.com

Vagner Matias do Prado


Professor adjunto da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Líder do Grupo de Pesquisa Educação, Sexualidade e Performatividades
– GPESP. E-mail: vagner.prado@ufu.br

747
É PROIBIDO MENINO USAR ROSA: EDUCAÇÃO DAS ARTES VISUAIS E
DESOBEDIÊNCIA DE IMAGENS E DISCURSOS NATURALIZADOS

BOYS SHOULDN’T WEAR PINK: VISUAL ART EDUCATION AND

DISOBEDIENCE OF NATURALIZED IMAGES AND SPEECHES

Lobna Essabaa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil

Resumo

O presente artigo é fruto de um trabalho de conclusão de curso e tem como centralidade


refletir, a partir de uma lógica não normativa e desobediente, as possíveis e as já existentes
relações entre a disciplina de artes visuais, docência e a temática gênero e sexualidade na
escola. A partir da análise de cenas escolares e da legitimação de narrativas, junto de
artistas disparadoras como Jota Mombaça, surgem esboços para a desnaturalização de
imagens e discursos pré-estabelecidos, que invadem e habitam a escola, com arte e
educação. Não obstante, a construção desse trabalho se deu em diálogo com o pensamento
de autoras como Borre, Louro e hooks, cujas reflexões contribuem para a ampliação do
tema no contexto da educação das artes visuais.

Palavras-chave: Educação das Artes Visuais; gênero; sexualidade; desobediência;


normatividade.

Abstract

This article is the result of a course conclusion work and its centrality is to reflect, from a
non-normative and disobedient logic, the possible and existing relationships between the
subjetc of visual arts, teaching and the gender and sexuality topic in school. From the
analysis of school scenes and the legitimation of narratives, together with artists such as
Jota Mombaça, sketches emerge for the denaturalization of pre-established images and
speeches, which invade and settle in the school, with art and education. Nevertheless, the
construction of this work took place in dialogue with the thinking of authors such as Borre,
Louro and hooks, whose reflections contribute to the expansion of the theme in the
context of visual art education.

Keywords: Visual art education; gender, sexuality; disobedience; normativity.


748
É proibido menino usar rosa: Educação das Artes Visuais e desobediência de
imagens e discursos naturalizados

Figura 1. Compilado de imagens disparadoras. 1

O que me traz até aqui

A partir da legitimação de narrativas pessoais e das inquietações que discursos e


imagens pré-estabelecidos reproduzidos em ambientes escolares me causam como
artista, educadora e pesquisadora, surgiu a necessidade de entender o papel do
professor de artes diante visualidades e falas naturalizadas, tensionando a própria
ideia de um papel a ser alcançado pelo professorado. Esses discursos e imagens
invadem e habitam o ambiente escolar, muitas vezes sem serem problematizadas
ou questionadas, sendo assim, pensar em como se dão essas relações entre
docência e questões de gênero e sexualidade me parecem urgentes em um

1
Essa pesquisa pode ser acessada na íntegra, com todas as imagens que a compõe e demais informações no
endereço: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/235924. Das imagens selecionadas para compor a abertura do
artigo encontram-se, da esquerda para direta: “La salle de classe” de Hicham Benhoud, 2002; “Auditório para
questões complicadas” de Guto Lacaz, 1989; “adriano bafônica e Luiz frança she-há” de Bia Leite, 2013; “Ninguém
Canta Parabéns Pra Jesus Cristo No Natal” de Ana Frango Elétrico, 2017; “Cascas de Boneca” da Lia Menna Barreto,
2006; e “Feet Under Fire” de Lungiswa Gqunta, 2017.
749
momento em que percebo as reverberações conturbadas desse assunto, desde a
infância, no cotidiano dos estudantes e agentes da educação como um todo, assim
como na minha própria trajetória e de meus pares. Essa pesquisa se propõe a traçar
algumas brechas, caminhos, papéis e incertezas em torno das temáticas de gênero
e sexualidade vislumbrando a desobediência de imagens e discursos naturalizados
que a educação das artes visuais pode oferecer. Para isso, no campo metodológico
me ancoro nos estudos narrativos, nos estudos da cultura visual, na realização de
entrevistas com professoras/es e nos referenciais artísticos e teóricos que me
atravessaram na graduação. O compilado de imagens que abre o artigo são algumas
das que me impulsionaram a escrever e pensar esta escrita e estão
significativamente atreladas a ela e a mim, se relacionando de várias formas com as
questões aqui postas e, são colocadas também para brincar com a própria ideia de
imagens que invadem o ambiente escolar.

É proibido menino usar rosa

“Seria a segunda ou terceira vez em que eu via aquela menina naquela


escolinha. Era uma menina com muita opinião e tinha seus três anos
de idade. Cheguei na sala de aula junto de meu colega Pedro e, para
essa história, é importante descrevê-lo: na época ele usava cabelos na
altura do ombro, pretos, lisos e presos numa espécie de coque que
deixava alguma parte ainda solta, uma barba cheia, uma camiseta rosa
clara sem estampa e, acredito que, para baixo meias coloridas, um
jeans e um par tênis comum. Eis que essa menina, personagem tão
icônica para essa história, olha para Pedro, analisando-o de cima para
baixo e pergunta, quase como se falasse sozinha, indagando a si
mesma mas olhando nos olhos de Pedro:

- Tu é menino ou menina? Pausa.

Pedro responde: - Eu sou menino.

A menina volta a olhar para Pedro, dessa vez olhando diretamente para sua camiseta e depois
voltando a olhá-lo.

- Mas tu sabia que é proibido menino usar rosa?

Pedro responde: - Aé? Ninguém me avisou…”

750
“A declaração “É uma menina! ou “É um menino” também começa uma espécie de
“viagem”, ou melhor, instala um processo que, supostamente, deve seguir um
determinado rumo ou direção”. (LOURO, 2018, p. 15). Nós aprendemos a ser homens
e mulheres. Os papéis de gênero se afirmam e cambaleiam de acordo com o que
falamos sobre esse espectro, o que produzimos dentro das feminilidades,
masculinidades e fora delas. Para Louro (2003, p. 35) “a construção de gênero é
histórica e está em constante mudança, sendo assim, estamos construindo gênero”.
São algumas das perguntas que me deixam inquieta: Todas as imagens que invadem
a escola são responsabilidade da disciplina de artes visuais? Como os docentes têm
lidado com questões de gênero e sexualidade? Como elas costumam aparecer?
Quais são alguns dos papéis do professor de artes visuais diante das imagens que
invadem a escola? E, por último, quais são as possíveis estratégias que podemos
traçar para, a partir da educação das artes visuais, convidar à construção e
desconstrução de visualidades desviantes das normas? Não caberia aqui responder
a todos esses questionamentos, porém entendo eles como norteadores para minhas
reflexões. A cena que inicia este trabalho foi fruto de uma ação educativa realizada
em uma escola de educação infantil de Porto Alegre em 2019, a partir da disciplina
Educação em Artes Visuais para a Infância, ministrada pela Professora Dra. Aline
Nunes, que também orientou esse trabalho de conclusão de curso2. Eu e meu
colega Pedro Dalla realizamos uma micro-prática que envolvia o estudo de pontos e
linhas através de algumas atividades de desenho e corpo. Especificamente em
relação ao diálogo sobre gênero com a menina de 4 anos, nos questionamos qual
seria o papel do professor de artes visuais nessa situação. Entendo que “a cultura
visual exerce um papel de ponte entre o universo visual de fora da escola (do
aparelho de vídeo, dos videoclipes, das capas de CD, da publicidade, até a moda e o
ciberespaço, etc) com a aprendizagem de estratégias para decodificá-lo,
interpretá-lo e transformá-lo na escola” (HERNÁNDEZ, 2000, p.52). Imagino que o
motivo pelo qual a menina de 4 anos tenha falado e agido de tal maneira tenha sido
o fato de que Pedro, possivelmente, não correspondeu à algumas normas de

2
O presente artigo é recorte de um trabalho de conclusão de curso do curso de Licenciatura em Artes Visuais na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizado no ano de 2021, sob orientação da Prof. Dra. Aline
Nunes da Rosa.
751
masculinidade pré-estabelecidas por ela, isto é, o que é ser homem, no sentido de
comportamento, aparência, trejeitos, etc. São muitas as possibilidades possíveis de
colocar em relação ao porquê de tais palavras saírem da boca de Maria. Tal
acontecimento gerou em mim, como estudante, primeiro, um sentimento parecido
com revolta e, em seguida, curiosidade.

No final, o que nos parece certo é que para a menina Maria existia
uma regra: rosa é de menina e azul é de menino, e você fugindo disso
pode ter seu gênero questionado. Indo um pouco mais a fundo, nos
asseguramos de outra coisa: Maria não carrega consigo essa fala por
acaso, ou seja, não advém de uma percepção individual daquela
criança. Essa compreensão se constrói na medida mesma em que
aquela criança se coloca em relação com um mundo de artefatos
culturais que indicam o que é e como é ser menina e menino.
(NUNES; ESSABAA; 2021, p. 9).

Não cabe aqui o meu afastamento como pesquisadora em busca de algum tipo de
imparcialidade. As questões que vão aparecer aqui me atravessam e já estão
dissolvidas em mim. Porém, cabe à pesquisadora se recompor e, sobretudo,
atentar-se, “não é fácil dar nome a nossa dor, torná-la lugar de teorização” (hooks,
2017, p. 102). Afirmo, novamente, não é por estarmos adultos, por sermos
professores formados, por conseguirmos teorizar sobre determinadas questões,
que elas se encontram em um lugar de paz dentro de nós, muitas vezes e muito
pelo contrário, e talvez seja aí que mora a vontade de continuar escrevendo,
estudando e teorizando.

Habitando a escola a partir de cenas e narrativas

Para esse processo de naturalização e desnaturalização que me disponho, utilizei


como estratégia a legitimação de narrativas de professoras/es e estudantes para
analisar os simbolismos impregnados, assim, traçando formas de nos despirmos
deles, “La dimensión personal es un factor crucial en los modos en que los
profesores construyen y desarrollan su trabajo” (BOLÍVAR; DOMINGO;
FERNÁNDEZ, 1998, p. 12), por isso, a necessidade de ouvir o que as professoras têm
a dizer. Essas situações pormenores do dia a dia me mobilizam, me enchem os
olhos e apresentam potenciais educativos e artísticos, relacionando-se com a ideia
de uma retroalimentação da prática docente com a artística. Considerando que “as
752
metodologias baseadas no paradigma construcionista como é o caso da
“investigação baseada nas artes”, têm como finalidade compreender o mundo
complexo da experiência vivida do ponto de vista daqueles que a vivem”
(SCHWANDT, 2006; VAN MANEN, 2003, apud OLIVEIRA, 2013, p. 3), a metodologia
dessa pesquisa se deu a partir da articulação do fazer, analisar, ouvir, do relato, da
interpretação, com o uso de uma linguagem que permeia os entrelugares e se
interessa pelos deslocamentos dos sujeitos envolvidos, e com o uso de algumas
referências e orientações da investigação baseada nas artes, mas principalmente,
dos estudos narrativos. Para a coleta dessas narrativas e para entender as questões
“o que é a aula de artes para gênero e sexualidade?” e “quem é o professor de artes
para gênero e sexualidade?”, foram elaboradas perguntas com fins investigativos
para serem aplicadas para professoras de artes visuais brasileiras da educação
básica (sem recorte de região ou estado). Os convites foram enviados por e-mail e
as perguntas foram colocadas em um formulário virtual, assim, as professoras
tiveram um espaço para escrever livremente suas respostas e me encaminharem
quando concluírem, junto do termo de consentimento livre e esclarecido, que lhes
garante ciência com relação ao que pretende o estudo e anonimato aos
participantes, isso tudo se deu virtualmente, pelo contexto de pandemia que me
encontrava. As perguntas foram pensadas para coletar um panorama de como as
questões que aqui interessam aparecem na formação dos professores e no
ambiente escolar, como e se os discursos e imagens invadem e habitam o ambiente
escolar, quais estratégias os professores usam/buscam e, também, como as
professoras se sentem. Se aventurar e, de certa forma, depender das narrativas
alheias para a construção de uma pesquisa, à primeira vista, me pareceu inseguro,
como se por alguns momentos eu estivesse colocando nas mãos de outros o meu
trabalho. Quando falamos de uma pesquisa narrativa, por isso penso que me
aproximei dos estudos narrativos, naturalmente, nos compreendemos como parte
da pesquisa, “num sentido amplo, podemos dizer que a narrativa tem como foco
compreender a experiência humana, busca que sempre envolve ações cognitivas e
afetivas, sem distingui-las”. (MARTINS; TOURINHO, 2009, s./n. apud FORTE, 2019,
p. 10). A curadoria dos trechos aqui selecionados diz respeito a minha emotividade e
a minha pessoa também, por mais que não sejam histórias minhas, a partir desse
momento, de alguma forma, passam a ser.

753
Um lugar incômodo

Começo a pensar no papel dos professores de artes, especificamente, com o


entendimento de que discursos e imagens são grandes agentes da produção de
nossas identidades e, sendo o ambiente escolar um reflexo da cultura (o que
acontece fora da escola não se acaba ao entrar nela), é importante ressaltar que não
entramos na escola como sujeitos descorporificados, isto quer dizer, como afirma
bell hooks (1999, p. 145):

(...) Treinadas no contexto filosófico do dualismo metafísico


ocidental, muitas de nós aceitamos a noção de que há uma separação
entre corpo e a mente. (...) Além do domínio do pensamento crítico, é
igualmente crucial que aprendamos a entrar na sala de aula “inteiras”
e não como “espíritos descorporificados”. (hooks, 1999, p. 147).

Em sala de aula, por mais que o tempo possa parecer suspenso de alguma forma (e
é bom que seja), nossos corpos e as relações de poder não deixam de existir, "à
medida que a sala de aula se torna mais diversa, os professores têm de enfrentar o
modo como a política da dominação se reproduz no contexto educacional” (hooks,
2017, p.56). Quando bell hooks diz que devemos entrar “inteiras” na sala de aula, ela
se refere também aos nossos sentimentos e subjetivações. Luciana Borre (2010, p.
165) por sua vez, diz que as crianças não só vivenciam a cultura visual, mas também
interagem e corporificam os discursos por ela produzidos e transmitidos, por isso a
importância de perceber os alunos com sensibilidade, atenção e com um olhar
questionador, e por isso, também, a importância do corpo nesse debate. A sala de
aula é esse espaço onde estão presentes problemáticas da sociedade, muitas vezes
em forma de imagens, comportamentos e discursos, “as práticas educativas
respondem a movimentos sociais e culturais que vão além dos muros da escola, que
as práticas do ensino de artes (...) constituem reflexos de problemáticas na
sociedade, na arte e na educação” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 34). Parto do ponto de
vista de onde acredito que o que é trazido pelos alunos para dentro da escola deve
ser central para pensarmos nossas práticas educativas. Ao pensar em uma
educação não fragmentada por disciplinas, como sugere Hernández com os
projetos de trabalho, neste contexto a cultura escolar adquire a função de refazer e
renomear o mundo (HERNÁNDEZ, 1998, p. 28) a partir da interpretação dos alunos
sobre os significados mutáveis das coisas. Ele pontua algumas perguntas
754
disparadoras para o estudo de um fenômeno na perspectiva de projetos de
trabalho, do tipo: como se produziu esse fenômeno? Qual é a origem dessa prática?
Sempre foi assim? Como o percebiam as pessoas de outras épocas e lugares? Como
se explicam essas mudanças? Por que se considera determinada interpretação
como natural? (HERNÁNDEZ, 1998, p. 28). Essa última me interessa muito e diz
muito apenas com uma indagação: sobre como discursos se constroem e se fixam
no imaginário coletivo, como é possível trabalhar gênero e sexualidade dentro da
escola sem necessariamente entrar nos assuntos temidos, para não dizer
abominados. Hernández fala sobre como a perspectiva da educação por projetos de
trabalho exclui a ideia de representação única da realidade. Quando falo de uma
vivência normativa, não é com a intenção de desvalidá-la, mas sim com a
necessidade de entender que a heterossexualidade e as performances de gênero
atribuídas ao sexo são uma realidade, uma interpretação possível lida como
realidade única, “a normatividade dos gêneros está estreitamente ligada articulada
a manutenção da heterossexualidade” (LOURO, 2018, p. 90). Existe uma ideia de que
se você afasta alguma coisa, mantém distância, ela se torna invisível, some. É
comum vermos professores deixarem de lado algumas temáticas de suas aulas por
darem muito trabalho (isto pode ser sair de um planejamento já estruturado, às
vezes usado por anos, podendo até estar desatualizado), por demandar um
deslocamento por parte do docente para estudos dos quais, por não existir tempo
ou disposição (sabemos que o tempo de planejamento dos professores é escasso,
muitas vezes acontecendo em brechas dispersas ou fora do horário de trabalho) ou
por questões ideológicas. Seja quais forem os motivos para determinadas temáticas
ficarem de lado, a última coisa que fará elas sumirem é afastá-las. Faço um paralelo
com a presença de pessoas que não performam o que é socialmente prescrito a
elas, pessoas não normativas, LGBTs, etc. Podemos pensar que “paradoxalmente, ao
se afastarem, fazem-se ainda mais presentes”. (LOURO, 2018, p. 17), justamente, por
estabelecerem esse limite, o proibido, errado, “ficam à deriva, - no entanto torna-se
impossível ignorá-los.” (LOURO, 2018, p.17), se tornam mais evidentes estes limites e
como se estruturam. A discussão de gênero e sexualidade dentro da escola pode ser
algo que se assemelha com o próprio corpo daquele que não performa ou vive a
heteronormatividade. A autora Guacira Louro fala da “invenção” do termo
homossexual para marcar e categorizar um sujeito, agora, reconhecido por

755
determinado tipo de prática na metade do século XXI e consequentemente, seu
lugar, “categorizado e nomeado como desvio da norma, seu destino só poderia ser
o segredo ou a segregação - um lugar incômodo para permanecer.” (LOURO, 2018,
p.16). Sendo assim, entendo que aproximar-se ou experienciar o desvio - da forma
que for - diante uma realidade tão engessada, é incômodo. Em uma situação na qual
nos deparamos com alguma imagem ou discurso que aborda gênero e sexualidade
no ambiente escolar, por exemplo, e nos vemos tendo que dar respostas para os
estudantes ou agir de alguma forma, como pude observar nos relatos das
professoras que se iniciam no capítulo seguinte, muitas vezes pode ser um lugar
incômodo para se permanecer.

Alguns discursos e imagens ambulantes

“As coisas precisam ser encaradas como fazendo parte da vida, e a


escola está na vida das pessoas. Ainda não há um tratamento natural e
nem todos sabem lidar com isto, tanto alunos, professores, dirigentes,
servidores, pais. Vê-se de tudo: negação, desconforto, “curas” e,
também, aceitação.” (Maria, 63 anos, fragmento retirado de
entrevista, 2021).

A partir daqui, me debrucei sobre os escritos das professoras. Os nomes citados


aqui são fictícios para resguardar a identidade das participantes. De início, tentei
não criar expectativas em relação ao que eu encontraria quando abrisse o
documento com as respostas do formulário. Após meses evitando olhar para esses
escritos, eis que não me deparo com nada novo. As professoras, em sua grande
maioria, não tiveram contato com o tema gênero e sexualidade na sua formação no
ensino superior e tampouco em outros ambientes, como no próprio espaço escolar.
Porém, houve um consenso em relação à presença desta temática na escola, sendo
apontada pelas professoras como “um tema que deve ser discutido na escola”
(Laura, 55 anos), mas também, com algumas ressalvas como “Acho importante
acontecerem essas discussões, mas é fundamental que o profissional esteja
preparado para ouvir, acolher e aconselhar” (Bruna, 40 anos). Todas as professoras
concordaram, de uma forma ou outra, em relação a importância da presença destes
assuntos e discussões no ambiente escolar, porém, especificamente sobre a
presença dos mesmos na aula de artes visuais, correspondendo a questão 6 da

756
entrevista “Você considera a aula de artes visuais um espaço possível e/ou
propenso à abordagem do tema gênero e sexualidade dentro da escola? Por quê?”,
as respostas foram divergentes. De um modo geral, todas consideram a aula de
artes um espaço possível, porém nem todas apontaram que ele seria o mais
propenso. Nas respostas, foi indicada outra disciplina que normalmente acolhe o
assunto: “Pode ser abordado, mas normalmente esse tema fica com os professores
de ciências, mas não teria problema” (Luana, 63 anos). Também, foi indicado que o
assunto seria responsabilidade de todas as disciplinas do currículo “Todas as
disciplinas são propensas à discussão do tema, não apenas a de Artes Visuais”
(Bruna, 40 anos). As outras três professoras, ainda em relação à questão 6,
apontaram para à ideia de que a aula de arte é o espaço mais propenso para discutir
gênero e sexualidade na escola, pelos motivos de que “Nas aulas de artes sempre
existe um espaço mais livre para discussões, pela própria característica
interdisciplinar que a arte possui.” (Laura, 55 anos). Para Maria (63 anos), “(...) a arte
sempre fura o bloqueio da normalidade, pois infiltrada na vida, nas emoções, nas
perdas e ganhos, aflições do mundo e do ser humano” e Raquel diz (30 anos)
“acredito que a arte abra portas para inúmeras temáticas e que cada um faz
conexões diferentes que com os trabalhos e conteúdos abordados, sendo assim
permite que esses temas sejam trabalhados de maneira mais natural e não
estereotipadas”. Diante todas essas declarações, de início vamos considerar a ideia
de que a temática de gênero e sexualidade caberia, principalmente, para a aula de
ciências, quais são as implicações destes temas serem trabalhos exclusivamente por
disciplinas como biologia? A importância é indiscutível, porém não podemos deixar
de lado outros aspectos que esse assunto demanda na sala de aula. Gênero e
sexualidade estão na biologia, mas também estão na história e filosofia, na arte, na
química e nas linguagens de modo geral. A temática não se encerra em uma
disciplina, ela está presente e perambula pelo ambiente escolar nas mais variadas
formas - imagens, discursos, ideias, vontades, violência, amor - e não cabe em um
currículo. Quando a professora Laura diz que “as coisas precisam ser encaradas
como fazendo parte da vida e a escola está na vida das pessoas”, entendo que
estamos falando sobre não ter como deixar alguns assuntos do lado de fora da
escola, simplesmente porque eles não estão. E por isso, também, que chamo as
imagens e discursos de ambulantes. Ambulante é aquele que vive se locomovendo,

757
de um lugar para outro, sem lugar fixo, se adaptando aos contextos para
permanecer, sendo expulso quando não é bem-vindo e ao mesmo tempo, presente
em meio à multidão, fazendo-se impossível de não ser notado. Também, cabe
pensar, a partir das declarações das professoras, o porquê de se esperar que a aula
de artes seja um espaço mais propenso para abordar essas temáticas, uma vez que
os licenciandos não recebem uma formação voltada às questões de gênero e
sexualidade. Como observamos aqui, apenas uma das entrevistadas comentou
sobre o assunto ter surgido durante o período de graduação. Todas as professoras
entrevistadas pareceram, através de sua escrita, pouco à vontade e/ou demasiado
cuidadosas com a temática. A partir daqui, será apresentada uma cena. Ela inicia-se
com um relato retirado das entrevistas e, a intenção não é tirá-lo de contexto, mas
sim colocar uma lupa sobre este acontecimento para que ele possa ser analisado a
partir de seus detalhes e complexidades.

Não era brincadeira de menino

CENA 3 “Um aluno meu do pré gostava muito de brincar com as


bonecas da sala, mas muitas já estavam velhas e mal cuidadas,
perguntei se ele tinha bonecas para brincar em casa ou se gostaria de
ter. Ele falou que não tinha mas que sim gostaria... No momento da
saída conversei com a mãe sobre o assunto e perguntei se eu poderia
dar uma boneca para ele, a mãe disse que o pai não deixava que ele
brincasse pois não era brincadeira de menino.” (Raquel, 30 anos).

Raquel é licenciada em artes visuais e trabalha na rede municipal, e também não


obteve contato com a discussão sobre gênero e sexualidade na graduação. A
criança é mutante, é lugar de incertezas e negar essas características é negar a
própria infância. Esta cena é um clássico, e não me refiro apenas aos meninos
quererem brincar com bonecas, mas aos pais não permitindo.

As normas regulatórias voltam-se para os corpos para indicar-lhes


limites de sanidade, legitimidade, moralidade ou coerência. Daí
porque aqueles que escapam ou atravessam esses limites ficam
marcados como corpos - e sujeitos - ilegítimos, imorais ou
patológicos. (LOURO, 2018, p. 76).

758
A lógica heteronormativa prescreve objetos dos quais cada gênero deve se
relacionar ou repudiar, “padrões de gênero são demarcados pela cultura visual que,
atualmente, atende a um mercado de consumo cada vez mais específico para
meninas”. (NUNES, 2010, p. 176). A criança que ousa se comportar de maneira
desviante ao que é pré-estabelecido para seu gênero, muitas vezes é alvo de
nomeações desse tipo: é chamada de doente, errada, mal-educada. Ela é intolerável.
Ao digitar no Google Imagens “brinquedos para meninas” nos deparamos com
diversas imagens cor de rosa e roxas, objetos como maquiagens em miniatura,
utensílios de cozinha e muitas bonecas. Já, se digitarmos “brinquedo para meninos”
encontramos muitos brinquedos em vermelho, verde, preto, cinza, amarelo, azul e
as temáticas são carros, ferramentas de construção, super-heróis, armas... Os
brinquedos, principalmente nesta fase, são de extrema importância para o trabalho
pedagógico, pois afetam diretamente as crianças e podem ser utilizados de
maneiras valiosas. Para além de que sala de aula é também lugar de brincar, o
brincar assemelha-se à arte, pois se trata da criação deste espaço suspenso, de
construção de realidades paralelas. Impedir a criança de explorar livremente o
mundo do campo imaginário é impedi-la de se desenvolver de maneira plena.
Domesticar o corpo de criança que, ao escolher um brinquedo, não está fazendo
nada para além de escolher um brinquedo, é violento. Não é à toa que carregamos
conosco traumas relacionados a gênero e sexualidade diretamente ligados à fase da
infância. O reconhecimento de atributos dados como masculinos e femininos e o
entendimento da construção deles ao longo dos anos nas diferentes culturas é um
passo para que os questionamentos e as problematizações comecem a surgir em
sala de aula. Os próprios conteúdos curriculares de artes visuais nos permitem
explorar de diversas maneiras as relações que estabelecemos com nossos corpos e
com diferentes artefatos culturais.

Educação das Artes Visuais como ferramenta para uma desobediência

Percebo, muitas vezes, as artes visuais diante do currículo escolar como uma
disciplina deslocada da realidade da maioria dos alunos, escanteada das outras,
onde são poucas as brechas destinadas para interdisciplinaridade de uma forma
não engessada, ou que trate as artes visuais como um campo de estudo válido e
uma disciplina, de fato. Isso porque, ao longo da graduação, a partir das minhas
759
vivências em sala de aula e entrevistas que realizei com diversos professores e
professoras para além das que se encontram aqui, os alunos têm uma relação muito
distante com a arte, ou com o que eles entenderam que é arte ao longo de suas
vidas. Para mim, ao longo do processo formativo, foi importante entender que a
arte pode ser inútil. E, por mais que esta seja uma discussão longa e filosófica na
qual não pretendo me estender, foi importante em um âmbito pessoal. Era algo que
tirava meu sono: o que é arte? Para que serve? Ninguém parecia ter essa resposta
ou ninguém queria me dar. Ninguém parecia saber me responder o que era ou -
olhando agora - a resposta nunca me era suficiente. Eu me agarrava em muitos
argumentos para ter, na ponta da língua, respostas sobre motricidade, exercitar a
imaginação, funções terapêuticas, noções de corpo e espaço, senso estético, as três
perguntas sobre arte que caem no Enem e sei lá mais o quê. Tudo para justificar,
para quem me perguntasse e para mim mesma, a importância da disciplina de artes
visuais na escola. Entendi que a arte pode não significar nada, não dizer nada, não
servir de nada para o sistema. Falo tudo isso para dizer que, me parece que foi
necessário entender que a arte pode não servir de nada para nada, para que eu
pudesse entender como ela seria e poderia ser útil para mim. O projeto de
redistribuição de violência de Jota Mombaça, fala principalmente sobre mudança de
postura perante o mundo (MOMBAÇA, 2021, p.79). Quando pensamos na função das
artes através da história cultural humana sendo de construção da realidade, de
representações do mundo, do mundo real ou sobre mundos imaginários (Efland,
2004, p. 229. apud. HERNÁNDEZ, 2007) relaciono diretamente com a ideia de usar a
arte como uma ferramenta para a construção de realidades possíveis de
respirarmos e afirmarmos a vida. Jota Mombaça, auto denominada uma artista não-
binária, bicha, preta e nordestina possui em seu trabalho artístico e teórico um
diálogo firme com a ideia de criação de realidades de resistência e arte, uma vez
que a realidade que habitamos nos exige tal postura. Para Jota, redistribuir a
violência significa, estando diante de um cenário com uma política de extermínio de
corpos desviantes, um ato de autocuidado. Trata-se de armar-se com lâminas
afiadas, sem intenção de iniciar uma batalha, mas sim de estar preparada para uma
guerra que já foi declarada. Para romper com essas políticas de extermínio e
dominação, políticas que excluem, maltratam, desrespeitam, invalidam e eliminam
corpos desviantes, que distribuem imagens e discursos violentos, entendo nomear

760
a norma um caminho necessário: “Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma
redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é
o que não se nomeia, e nisso consiste o seu privilégio” (MOMBAÇA, 2021, p. 75).
Sendo a norma aquilo que não se nomeia, o padrão (branco, cisgênero,
heterossexual), essa não nomeação marca um privilégio no que diz respeito a ser
entendido como o rumo possível para se viver, o único rumo existente. Ao trazer à
tona situações pré-estabelecidas ditas “normais” nomeando-as, estaríamos
expondo as estruturas que nutrem a norma e o padrão. “Nomear a norma é
devolver essa interpelação e obrigar o normal a confrontar-se consigo próprio,
expor os regimes que o sustentam bagunçar a lógica de seu privilégio (...)”
(MOMBAÇA, 2021, p.76). Mas o que pretendo, eu, ao trazer o conceito de
redistribuição da violência para a educação das artes visuais? A arte contemporânea
se mostra um lugar possível de explorar a partir de visualidades desviantes, se
mostrar um lugar seguro para experimentar fora de uma lógica obediente. Penso
que, se plantarmos, a partir de uma realidade que entende que gênero não diz
respeito à genitália e sexualidade não diz respeito a gênero, colheremos frutos mais
afetuosos. Retomando, então, alguns pontos aqui inicialmente apresentados, como
o fato de estarmos construindo e podermos construir gênero, dou início a uma
ideia de que, a partir das propostas de luta com arte apresentadas pela artista Jota
Mombaça, podemos considerar usar a educação das artes visuais como uma
ferramenta de desobediência das regras normativas, “uma disposição
antinormalizadora nos incitará a tentar perceber por onde o processo de
normalização passa, por onde se infiltra e como se infiltra. Isso pode significar
desnaturalizar e, então, desconstruir tal processo” (LOURO, 2018, p. 101). A
educação das artes e a arte têm o potencial de enaltecer e legitimar corpos
desviantes. Nesta lógica, a educação das artes visuais pode ser entendida como uma
ferramenta ou como o próprio espaço para se armar para essa guerra já declarada
e, assim, (des)construir as regras prescritas para gênero, sexualidade e outras
normas no ambiente escolar. A artista, ainda falando sobre o projeto de
redistribuição de violência, enfatiza o quanto esse espaço de autocuidado e de
defesa é construído coletivamente, por vezes de maneira caótica e às pressas
(afinal, estamos em guerra), “Isto aqui é uma barricada! Não uma bíblia.”
(MOMBAÇA, 2021, p. 83). Quando penso em coletividade e construção de lugares de

761
resistência, penso em quando Jota Mombaça conta, sem dar muitos detalhes, de
uma vez em que realizou uma residência artística desastrosa com outras artistas.
Diante do caos e do desastre, Jota escreve: “Descrita de tal modo, pode parecer que
a experiência foi, na verdade, um desastre, mas ocorre que, se foi um desastre, não
é de um ponto de vista moral que eu agora a considero: não escrevo aqui para
diagnosticar o bem ou o mal de uma experiência coletiva desastrosa, mas para
perguntar que forças, que densidades, que movimentos de vida, afinal, tal encontro
propicia?” (MOMBAÇA, 2021, p. 25)

As professoras de arte que aqui foram entrevistadas não tiveram uma formação
relacionada às questões de gênero, sexualidade e docência atreladas. Porém, com a
análise dos comportamentos delas diante dessas situações e temáticas no ambiente
escolar e, também, fora dele, afirmo um acolhimento por parte dessas docentes.
Isso parece se dar em função da disciplina de artes visuais e dos estudos das artes
visuais - que por vezes podem ser muito engessados e normativos - mas que por
outro lado, já tem em suas discussões um caminho bem consolidado que acolhe
essas temáticas, e segue em direção a naturalização de imagens e discursos
desviantes. Trabalhar com arte contemporânea e cultura visual na escola significa,
para além das questões disciplinares, colocar o estudante em frente às questões
que já o permeiam fora da escola. A disciplina de artes visuais não é e não deve ser
o único lugar que recebe imagens na escola, porém existe certa responsabilidade,
uma vez que possa faltar esse espaço em outros lugares da escola ou simplesmente
porque tratar destas questões não deve ser negado. Para gênero e sexualidade na
escola, os professores e professoras de artes visuais podem ser mediadores,
ajudantes, ouvintes, acolhedores…

Para gênero e sexualidade na escola, a disciplina de artes visuais pode ser um


abrigo. Pode ser um espaço para receber. Pode ser um lugar para nos arriscarmos.

Referências

BORRE, Luciana. A cultura visual nas tramas escolares: a produção de feminilidade nas
salas de aula. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Cultura Visual e Infância:
quando as imagens invadem a escola. Santa Maria, UFSM, 2010.

762
FORTE, Marcelo. Processos metodológicos na investigação de um professor-artista.
Revista Digital do LAV, Santa Maria, 2019.
HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da Cultura Visual – Proposta para uma nova narrativa
educacional. Porto Alegre: Editora Mediação, 2007.
HERNÁNDEZ, Fernando.Transgressão e Mudança na Educação: Os Projetos de Trabalho.
Porto Alegre: Artmed, 1998.
hooks, bell. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, Guacira Lopes (Org). O
corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 145-156.
hooks, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática de liberdade. / bell hooks;
tradução de Marcelo Brandão Cipolla - 2.ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2017.
LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo,
gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018
(Argos).
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
NUNES, Aline; Essabaa, Lobna. Educação em Artes Visuais para a Infância: narrativas para
pensar questões de gênero na educação infantil. Florianópolis: AAESC, 2021.
OLIVEIRA, Marilda O. de. Contribuições da perspectiva metodológica “investigação
baseada nas artes” e da a/r/tografia para as pesquisas em educação. UFSM/RS, 2013.

Mini Currículo

Lobna Essabaa
Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mestranda
no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação na Linha de Pesquisa Arte, Linguagem e
Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES. E-mail:
lessabaa@gmail.com

763
UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA TRABALHAR QUESTÕES DE GÊNERO NO
ENSINO MÉDIO POR MEIO DAS TIRINHAS DE LAERTE

A DIDACTIC HIGH SCHOOL PROPOSAL TO WORK ON GENDER MATTERS


THROUGH LAERTE COMIC STRIPS

Márcia Soares Santana


Centro Universitário de Goiás (UNIGOIÁS) / Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Brendaly Santos de Freiras Januário


Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Renato de Oliveira Dering


Centro Universitário de Goiás (UNIGOIÁS) / Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Resumo

O artigo aborda uma proposta didática para trabalhar questões de gênero no ensino médio
por meio de tirinhas de Laerte. Apresenta-se a biografia e obra de Laerte Coutinho
relacionado com a Matriz Colonial de Poder, em que a imposição da cis heteronormatividade
é uma norma que controla os corpos e a representatividade de Laerte, enquanto mulher
travesti/trans está presente em sua obra e traz possibilidades de provocar fissuras na
colonialidade do ser e, por consequência, a visualidade do discurso dominante em torno da
questão de gênero é rompida por meio das tirinhas apresentadas e a contravisualidade se faz
presente com a presença de lugar de fala de Laerte. A análise das tirinhas, numa perspectiva
teórica interdisciplinar, propicia educar para a diversidade, alcançando, assim, a oitava
competência do Plano Nacional de Educação (2014-2024). A metodologia empregada é
qualitativa, de abordagem etnográfica interpretativa com base nos estudos da Cultura Visual,
da Sociologia, Filosofia, com respaldo no texto escrito e nas tirinhas como fontes de pesquisa.

Palavras-chave: Imagens. Contravisualidade. Representatividade. Colonialidade.

Abstract

The article addresses a didactic proposal to work on gender issues in high school through
Laerte's comic strips. It presents the biography and work of Laerte Coutinho related to the
Colonial Matrix of Power, in which the imposition of cis heteronormativity is a norm that
controls the bodies and the representation of Laerte, while a transvestite/trans woman is
present in her work and brings possibilities of provoking fissures in the coloniality of being
and, consequently, the visuality of the dominant discourse around the issue of gender is
764
broken through the comic strips presented and the counter-visuality is present with the
presence of Laerte's place of speech. The analysis of the strips, in an interdisciplinary
theoretical perspective, provides education for diversity, thus reaching the eighth
competence of the National Education Plan (2014-2024). The methodology used is
qualitative, with an interpretive ethnographic approach based on the studies of Visual
Culture, Sociology, Philosophy, supported by the written text and comic strips as research
sources.

Keywords: Images. Countervisuality. Representativeness. Coloniality.

Introdução

O tema abordado no presente artigo versa sobre uma proposta didática para
trabalhar questões de gênero no ensino médio por meio das tirinhas de Laerte
Coutinho. A pesquisa tem como objetivo apresentar, contextualizar e discutir
tirinhas de Laerte, numa abordagem triangular, para que, assim, se possa refletir
sobre a visualidade e contravisualidade em torno de questões de gênero.

Primeiro, apresenta-se a vida e a obra de Laerte Coutinho. Será discorrido de que


forma o processo de envelhecimento que a ilustradora se encontra, reflete em
estigmatizações sociais pelo fato do seu processo de transição ter ocorrido próximo
aos 60 anos, da mesma forma a colonialidade do ser será abordada trazendo
questionamentos sobre a invisibilidade social que Laerte Coutinho padece, pelo fato
de se reconhecer enquanto travesti/mulher, pessoa transgênero.

Outro ponto importante que será apresentado, é sobre o personagem de Laerte


intitulado de Hugo, que posteriormente torna-se Muriel, personagens relevantes na
história da ilustradora, visto que são uma extensão de sua vivência. A análise das
tirinhas apresentadas envolve uma abordagem interdisciplinar, num olhar que
decompõe a imagem e propõe uma rasura no discurso da colonialidade do ser, da
visualidade em torno da questão binária, cis heteronormativa. Assim, propomos ser
utilizadas como instrumento didático para discutir identidade de gênero no ensino
médio, atendendo, assim, a oitava competência disposta no Plano Nacional de
Educação (2014-2024).

A pesquisa é qualitativa, pois se refere à cultura, costumes e se discute marcadores


de gênero numa perspectiva interdisciplinar, com sustentação teórica nos estudos

765
de Cultura Visual, Sociologia e Filosofia. A metodologia empregada é etnográfica
interpretativa sobre a arte de Laerte Coutinho, cartunista e chargista, em que se
parte da apresentação e discussão a respeito das visualidades e contravisualidades
presentes nas tirinhas objeto de análise, numa abordagem decolonial.

A colonialidade do ser e a representatividade de Laerte

Laerte Coutinho nasceu em São Paulo em 1951. Ao longo de sua vida, realizou cursos
livres de desenhos, pinturas e teatro na Fundação Armando Álvares Penteado. No ano
de 1969, ingressou na Universidade de São Paulo (USP), na área de comunicação, a
fim de cursar música e, posteriormente, jornalismo. Entretanto, não concluiu o
curso. Sua carreira profissional iniciou na revista Sibila, com o personagem Leão, no
ano de 1970. Na mesma época, foi uma das responsáveis pela criação da revista Balão
e pela fundação da empresa Oboré, uma assessoria responsável em produzir
materiais de comunicação para os sindicatos. Laerte também atuou na redação de
inúmeros programas da Rede Globo, dentre eles: a TV Pirata, Sai de Baixo, TV
Colosso, além de atuar nos scripts na área cinematográfica (COUTINHO, on-line).

Nota-se que Laerte Coutinho é uma ilustradora com experiência na produção


audiovisual. Para além dessa área, é também referência no país na confecção de
histórias em quadrinhos, charges, cartoons e desenhos de humor, recebendo
inúmeras premiações, como o Prêmio Ângelo Agostini, o Troféu HQ Mix e a Ordem
do Mérito Cultural. No plano pessoal, destaca-se as mudanças que ocorreram na
vida de Laerte, que, nos anos de 2010, concedeu uma entrevista à folha de São Paulo
(2004) declarando que gostava de usar saia e se identificava como cross-dressing1.
Entretanto, interrompeu essa mudança por conta da morte de seu filho. Foi em 2009
que retornou a usar roupas femininas, declarando-se travesti e pessoa transgênero,
iniciando sua etapa de transformação aos 59 anos.

Apesar de se sentir realizada, sua transformação provocou desdobramentos. Assim,


além de ser discriminada por se identificar com o gênero feminino, houve a questão
do envelhecimento que remonta a construção histórica e traz uma visão depreciativa

1
“Pessoa que, frequentemente, usa roupas ou ainda acessórios do que não é socialmente estabelecido para o seu
gênero, sem se identificar como travesti ou transexual.” (SEPÚLVEDA; FREIRE, 2021, p.39)
766
para essa etapa do curso da vida de uma mulher trans em um país ainda muito
preconceituoso sobre essas duas questões. De acordo do Henning (2014) em diálogo
com Ariès (1978), somente ao final do século XVII é que se percebeu a necessidade de
delimitar as fases da vida por conta do processo de escolarização. Henning (2014),
juntamente de Hareven (1999), aborda ainda que somente no século XX houve a
difusão das atribuições sociais respectiva a cada idade. Diante disso, iniciou-se a
delimitação de idade a cada fase da vida, juntamente com as responsabilidades e
modelos a se submeterem conforme a etapa em que o indivíduo se encontra. Logo, o
que se verifica é que a etapa da velhice é vista como um processo de decadência,
trazendo um olhar estereotipado para essa fase, como tentativa de regulamentar a
maneira que o velho deve se portar. Caso ele não se comporte com os padrões
relativos à sua idade cronológica, poderá ser rechaçado perante o meio social.

Interseccionalizando a velhice com a questão trans, para as travestis esse processo


se torna ainda mais rigoroso, visto que, conforme Oliveira (2017), para elas, a
feminilidade está intrinsecamente associada a jovialidade. Assim, continua suas
reflexões ao afirmar que é comum que as travestis mais velhas sejam hostilizadas
pelas “ninfetas” (as mais novas) como “bichas velhas” e “mariconas”, como forma de
depreciá-las e ridicularizá-las acerca da perda de sua feminilidade. Nessa relação que
se estabelece, a idade mais avançada também está afeta outras questões de
identidade desses corpos trans.

Podemos perceber essa violência etária em relação à transformação de Laerte


Coutinho, visto que, ao analisarmos as suas entrevistas, é habitual relacionarem sua
velhice com a sua transformação e, algumas vezes, até uma fetichização de seu corpo.
Por conseguinte, podemos nos deparar com perguntas e afirmações que levam à sua
depreciação: Você se considera uma senhora safada? Você é uma senhora ousada?
(pelo fato de estar utilizado uma minissaia). Pressupõe-se que esses adjetivos e
adereços não fizessem parte da vivência das pessoas que estão em processo de
envelhecimento, logo, há uma espécie de regulamentação para os corpos dentro de
um padrão normativo que atinge todos os corpos, sendo mais ardiloso aos corpos
trans.

Do mesmo modo, Laerte Coutinho nota essas imposições comportamentais a seu


estilo de vida, assim sendo, valendo-se de seu instrumento de trabalho e seu humor

767
marcante dispõe de suas ilustrações e sua representatividade para demonstrar a sua
liberdade e o desejo de poder usar a vestimenta que se sente confortável. Como
ocorre com o documentário Laerte-se (2017), disponível na Netflix. No audiovisual,
Laerte discorre o seu desejo em usar um vestido curto de lantejoula e, no final do
vídeo, complementa: “eu gostei muito de vestir aquilo, mas eu tava inegavelmente
velha, é estranho”.

Nesse envolto, percebe-se que, por meio desses padrões impostos, há uma intenção
de coerção social, (re)produzindo uma hegemonia cultural com o intuito de controle
dos sujeitos. Logo, aqueles que não se adequarem aos padrões estabelecidos, tendem
a ser silenciados, até excluídos, do meio social padrão. Pela colonialidade, entende-
se que toda a estrutura social da modernidade está baseada em um dado modelo,
subjacente ao processo de colonização. Este modelo promove, delineia e mensura
categorias aos corpos a fim de impor uma dominação sobre eles, verticalizando a
forma de eles estarem em sociedade. Instituiu-se, assim, um padrão hegemônico de
poder, que perdura na modernidade, com a intenção de controlar corpos e saberes
que não se adequaram ao modelo imposto, estabelecendo uma Matriz Colonial de
Poder (MCP) (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2021).

Ao notarmos essa tentativa de controle, compreendemos a conceituação de Quijano


(1992), que estabelece que a MCP está sistematizada por meio de uma visão do
colonizador sob os povos classificados como dominados. “Deste modo, a
colonialidade promove uma dominação nos modos de conceber o conhecimento,
bem como uma dominação sobre os modos de produzir e significar saberes”
(DERING, 2021, p. 25). Dessa maneira, sujeitos sociais, como a ilustradora Laerte
Coutinho, que se autodenomina como travesti/pessoa transgênero, ocupam um
lugar de invisibilidade e exclusão.

Esse modelo excludente está ancorado na dicotomia opressor/oprimido, já analisada


por Freire (1975). Na análise do autor, o sujeito opressor, por meio de narrativas
intrínsecas à sociedade, promove a reprodução de discursos que, quando
socialmente aceitos, excluem corpos e saberes. “Em sua alienação, os oprimidos
querem a todo custo parecer-se com o opressor, imitá-lo, segui-lo.” (FREIRE, 1975, p.
32). Trata-se de uma espécie de cultura do silêncio, normalizada e normatizada, de
modo que, perante o corpo social, há aqueles que são detentores da palavra e, em

768
contrapartida, existem aqueles que são destituídos do direito deste direito, sendo
silenciados e descredibilizados para que não usurpem o poder e estremeçam as
estruturas consolidadas da MCP. Portanto, a visão opressor/oprimido é aplicada
também para mulheres trans e travestis, como tentativa de silenciá-las e invisibilizá-
las.

Dessa maneira, Laerte Coutinho está inserida em múltiplos sistemas de opressões,


de modo que, há uma segregação pelo fato de seu ser ocupar o indizível, visto que,
somente são considerados e legitimados as pessoas pertencentes ao modelo binário.
Logo, a sua idade institui ainda mais opressões e marginalizações, destituindo-a de
qualquer posição de igualdade perante a Matriz Colonial de Poder.

Resistência e contravisualidade nas tirinhas de Laerte

Discutir o termo visualidade nos remete a Mirzoeff (2016, p. 746), que afirma ser: “um
termo do início do século XIX que faz referência à visualização da história”. A
discussão da visualidade não se volta apenas para a capacidade de percepção visual
do mundo, mas também envolve a capacidade de descortinar as relações sociais e
culturais. Assim, por meio da visão, é possível discutirmos o que vemos, como vemos
e o que é permitido que possamos ver. A autoridade do visualizador dita o discurso
do que pode ser visto e como isso deve ser interpretado. Naturalizam-se também,
por meio disso, situações de dominação. Mirzoeff (2016) faz uma referência ao
panopticismo de Michel Foucault, em que o exercício de poder propõe uma vigilância
contínua sobre o indivíduo no modelo de uma sociedade de controle, que o castigo
a correção e recompensa estão presentes na disciplina dos corpos como elemento
de uma tecnologia de controle (FOUCAULT, 2009).

A visualidade dita o lugar do subalterno e provoca uma reivindicação do direito a


olhar, uma fissura, um rompimento de uma visão dominante em torno da cultura, dos
fatos sociais e históricos. O direito ao olhar reivindica discutir o que sustenta as bases
de dominação da autoridade e descortinar o registro do que ocorre socialmente, seja
através das imagens, dos códigos linguísticos. Tem-se, assim, que as técnicas de
construção de uma visualização ocorrem por meio da classificação, separação e
estetização. Logo, é nomeado e definido aquilo que é visível; em seguida, separa-se,
organiza e categoriza os sujeitos, com o intuito de provocar uma segregação e, por
769
fim, após classificar e separar, esteticamente se apresenta, o que parece ser o correto
sob o olhar da autoridade, para ser cumprido e visualizado. Ao pensarmos sobre a
sexualidade, o discurso da colonialidade de gênero sustenta o complexo da
visualidade do padrão binário homem/mulher, cisgênero e heterossexual. Há uma
imposição de um discurso hegemônico baseado na ideia de o gênero é natural e
associado a uma questão de ordem biológica.

Butler (2007) adverte que a reiteração das normas de gênero, que denomina de
citacionalidade, possibilita a disseminação do discurso de que o gênero é natural,
inquestionável, estático. Com o intuito de contestar esse discurso, traz a discussão
da performatividade de gênero, justamente para desconstruir as identidades de
gênero binárias impostas, pelo fato de ser uma prática regulatória dos corpos e
propor que o gênero é fluído e se modifica conforme o contexto histórico em que
está inserido (HADDAD; HADDAD, 2017). Ainda segundo Butler (2003, p. 25), o gênero
é “o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é
produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura”. Percebe-se, portanto, que o gênero
é uma construção social, cultural sobre a superfície dos corpos, não sendo estático,
imutável, como impõe o discurso da colonialidade.

A colonialidade prevê que há um controle político e econômico do ser que sustenta


a continuidade do sistema colonial, pois a subjetividade, o conhecimento, o ser
humano são dominados em favor do sistema capitalista de produção (QUIJANO,
1992). Assim, uma minoria exerce o poder e o controle de uma maioria subalterna,
em que há a ilusão de uma modernidade empregada pelo uso da tecnologia, que
acaba por explorar o trabalho, controlar os corpos e a colonialidade do saber.

Nesse sentido, o que temos é que a colonialidade do ser dita o lugar do


subalternizado, impede a sua condição como ser humano pensante que possa
questionar o seu lugar de fala. Essa colonialidade se revela no controle da
subjetividade, sexualidade e papeis de gênero. A colonialidade do ser e do saber
propiciam a manutenção da Matriz Colonial de Poder (MIGNOLO, 2003). Para
discutirmos a visualidade por meio das imagens e propormos a contravisualidade em
questão de gênero, partimos da análise de duas tirinhas retiradas da obra de Laerte
Coutinho (COUTINHO apud BULLA, 2018, p.39 e CASTRO, 2016, p. 116), com os

770
personagens Hugo e Muriel, com o intuito de apresentar possibilidades de
rompimento da colonialidade e visualidade.

Figura 1 – Personagem Hugo em tirinhas de Laerte Coutinho

Fonte: BULLA (2018, p.39)

Hugo é uma personagem criada por Laerte Coutinho que, nessa tirinha, se olha no
espelho e percebe sua feminilidade por meio da performance, utilizando um
espartilho para ficar mais esbelto e coloca um vestido, que remonta à vestimenta
feminina do século XVIII (HISTORIA HOJE, on-line), com vestido rodado, com
armação, anágua, nos tons verde e rosa, romantizando o seu modo de vestir. Ao se
olhar no espelho, ele provoca uma reflexão juntamente com sua imagem projetada.
Bulla (2018, p.40) comenta que esta

é a última tirinha onde Hugo se veste com roupas femininas e é a


última em ele usa um espelho no livro Hugo para Principiantes. As
próxi mas vezes em que Hugo se veste, novamente, com roupas
femininas e, por fim, dá início a seu processo de incorporação de sua
persona Muriel...

Essa tirinha é um marco na obra de Laerte, pois, por meio de sua obra, ela apresenta
a sua travessia de gênero e, a partir do momento que propõe refletir sobre sua
feminilidade nessa tirinha, passa a apresentar Muriel, uma personagem travesti.

771
Figura 2 – Personagem Muriel em tirinhas de Laerte Coutinho

Fonte: Coutinho (apud Castro, 2016, p. 116)

A contravisualidade é uma recusa ao discurso da visualidade e, por consequência, à


colonialidade. Ela busca o reconhecimento do outro, que na presente análise, de um
corpo trans, que através de sua performance e identidade sustenta o seu lugar de
fala, esclarecendo a diferença entre gênero e orientação sexual. A narrativa
contravisual da tirinha associada às imagens provocam uma fissura na colonialidade
do ser. A personagem Muriel apresenta uma dúvida persistente da questão de
gênero: a vestimenta, a performance traduz o exercício da sexualidade? Muriel
esclarece que não, pois são coisas distintas. O gênero é performativamente
construído e pode ocorrer em qualquer corpo. A estilização do corpo, gestos, postura
provocam a ilusão de um gênero permanente, mas o corpo é uma superfície sobre a
qual a cultura atua (RODRIGUES, 2012). Abreu, Alavarez, Monteles (2019) esclarece
que buscar a compreensão da imagem envolve alcançar os significados da imagem,
que não se esgotam nela. É desvelar um micro realidade, que no caso, a performance
de Muriel e buscar o que está além da imagem, na busca de ressignificar um contexto
sócio-histórico-cultural.

Gênero e sexualidade a partir das tirinhas de Laerte

Ao introduzirmos os contextos em que estão inseridas as tirinhas de Laerte Coutinho


em relação aos conceitos de gênero e sexualidade, faz-se necessário tratarmos do
personagem que mais se adentra nessas conceituações, sendo ele a figura de
Hugo/Muriel. O processo de criação de Hugo se deu por volta de 1995, inicialmente
o personagem era um jovem audacioso, apaixonado por tecnologia e que possuía
vício em pornografia. Nesse tempo, Hugo sempre se deparava com situações cômicas

772
no seu dia a dia, juntamente com sua namorada Beth. Por conta de problemas
financeiros, Hugo precisou se caracterizar com roupas e acessórios femininos, com
a intenção de despistar a máfia, a quem ele devia dinheiro e é nesse momento que
entra em cena a Muriel.

Contudo, à medida que Hugo começa a adotar feições femininas, ao longo das
tirinhas de Laerte é possível notar que o personagem se sente confortável em trajar-
se como uma mulher, visto que, é possível observar que quando Hugo está com trajes
femininos, ele está contente e como ele mesmo diz: “cheia de vida, na flor dos meus
encantos”. Desse modo, o personagem mergulha completamente na sua nova
identidade, demonstrando para sua namorada que é algo passageiro e somente com
a intensão de despistar os seus credores, entretanto, ao longo da narrativa
percebemos que mesmo que a máfia tenha desaparecido, a sua identidade se torna
permanente, devido ser um desejo íntimo de Hugo se vestir dessa forma.

Outro ponto relevante a se destacar, é o fato de que quando Hugo está se montando
com roupas femininas, sempre está diante do espelho, como se fosse uma nova
descoberta. Posteriormente, esse cenário é modificado, o espelho é retirado e Hugo
“dá a vida” a Muriel, visto que há uma descoberta de seus desejos e a aceitação de
sua nova identidade.

Figura 3 – Gripe Muriel

Fonte: COUTINHO (2022, on-line)

Diante desses fatos, podemos salientar que uma amiga próxima de Laerte a
questionou se ela não possuía os mesmos desejos que Hugo, ou seja, antes da
transformação do personagem e da nomeação de Muriel. Assim, Laerte Coutinho
narra que essa percepção de sua amiga sobre as suas pretensões, lhe deu coragem
773
para iniciar a mudança que tanto almejava, logo, essa identidade feminina de Laerte
ocorreu em torno da mesma época da transformação de Hugo para Muriel.

Portanto, percebe-se que Muriel é a correspondência dos desejos de Laerte, por


conseguinte é a extensão de sua existência. Da mesma maneira que Hugo se
identificava no espelho quando estava transformado, Laerte narra que ocorreu essa
identificação quando pela primeira vez se depilou e conseguiu enxergar o seu corpo
como um corpo feminino, entrando em estado de êxtase pela felicidade de se
vislumbrar em uma identidade feminina, consumando os seus desejos e sendo
conforme a entrevista que realizou para o jornal Unidade (2018) “Eu sou uma mulher
possível, sou o que queria ser!”.

As tirinhas de Laerte como instrumento didático para educação em diversidade


sexual e de gênero no ensino médio

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não aborda os termos gênero e


sexualidade, o que consideramos um retrocesso, nesse assunto, a sua aprovação.
Entretanto, o Plano Nacional de Educação (PNL 2014-2024), em seu artigo 2º, prevê
a implementação de programas e políticas educacionais destinadas a combater
“todas as formas de discriminação” existentes nas escolas, entre elas, as que se
referem às desigualdades de gênero, de raça, de orientação sexual e de identidade
de gênero e, ainda, dispõe a promoção dos direitos humanos e da diversidade na
educação brasileira. Assim, o ambiente escolar deve ser acolhedor em torno das
diversidades existentes e o ensino de artes propicia buscar em diferentes períodos
históricos formas de expressão artística que propiciem a reflexão dessa inclusão. O
PNL irá orientar a elaboração dos projeto político pedagógico das escolas, que será
o direcionador do plano de ensino do(a) docente. Dentre as competências gerais da
BNCC, destaca-se o autoconhecimento e autocuidado. Segundo a BNCC (2018 , p. 50)
a arte “é, também, propulsora da ampliação do conhecimento do sujeito relacionado
a si, ao outro e ao mundo”. É no fazer artísitico associado à pesquisa e aprendizagem
que o jovem pode ressignificar as suas vivências, experiências e compreender melhor
a sociedade.

As tirinhas de Laerte, nesse contexto, são uma forma de comunicação de fácil acesso
e com humor. Trata-se de um gênero textual que se originou das Histórias em

774
Quadrinhos (HQ), em menor tamanho, publicado com frequência em jornais e
revistas. A linguagem nas tirinhas é de simples interpretação textual, o que disperta
o interesse dos discentes com seu conteúdo carregado de humor e/ou crítica social
(ARAÚJO, 2018). Os corpos das personagens Hugo/Muriel indicam os papeis de
gênero que exercem, através das vestimentas, acessórios, uso ou não de maquiagem,
tamanho do cabelo, sapatos e postura. A linguagem nas tirinhas apresenta num
primeiro momento, no caso de Hugo, a reflexão em torno da peformance feminina e
o exercício da sua feminilidade; já na tirinha com Muriel, a autora propõe discutir a
diferença entre gênero e orientação sexual. Apresentar a biografia da autora também
é recurso para entender a sua obra e a transição das personagens, que também
retratam a travessia de gênero da autora. Situar o lugar de fala de Laerte é
proporcionar uma fissura na colonialidade do ser; é sair da condição de subalterno e
propor através de sua arte o respeito do seu lugar no mundo e naturalizar a
representação social.

O público do ensino médio pode participar do processo criativo, quando o educador,


a priori, propõe a apresentação de tirinhas que abordem as temáticas de gênero e
sexualidade e suscita a reflexão, discussão sobre a temática, num viés sociológico,
filosófico e artístico. A abordagem triangular, por assim ser, propcia a liberdade a(o)
professor(a) de apresentar, apreciar, contextualizar e refletir sobre a imagem, numa
perspectiva dialógica (RIZZI; SILVA, 2017). A própria aparência das personagens dita
o gênero que exercem, pois, na nossa educação, recebemos uma séria de
informações acerca de vestimentas, cores, comportamento que ditam as regras dos
gêneros dominantes (masculino/feminino). Num segundo momento, os(as)
discentes possam participar de uma oficina criativa com desenho livre e/ou colagens
a respeito da temática apresentada.

Considerações

Nota-se a relevância e representatividade de Laerte Coutinho perante o meio social,


de modo que, através de sua arte rompe com conceitos estigmatizados, trazendo a
consciência ao leitor por meio do humor. Similarmente, notamos a importância e
visibilidade que Hugo/Muriel têm em relação à vida da ilustradora, sendo uma
extensão de sua vivência, semelhantemente, a personagem torna-se uma inspiração

775
para luta de inúmeras mulheres trans e travestis invisibilizadas por esse “CIS-tema”.
Decompor a imagem, numa proposta de visualizar para além da imagem, num
contexto sócio-histórico-cultural, possibilita ver o que encontra por trás do discurso
da visualidade e aguça apresentar possibilidades de enfrentamento perante a
autoridade e se posicionar de forma crítica face a conceitos, estereótipos que num
momento nos apresentam como sendo ‘naturais’, mas que são construídos
socialmente.

A abordagem Triangular em torno das tirinhas de Laerte possibilita o


desenvolvimento de um pensamento crítico frente ao tema e ao apresentar,
contextualizar, refletir e propor uma oficina criativa com os(as) discentes do ensino
médio, eles passam a protagonizar as vivências, experiências e/ou projetam no
imaginário aquilo que pensam, valoram e essa expressão artística possibilita uma
rasura na colonialidade do ser e visualidade dominantes.

Referências

ABREU, Carla Luzia de; ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina; MONTELES, Nayara Joyse Silva. O
que podemos aprender das contravisualidades?, In: ENCONTRO NACIONAL DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019.
ARAÚJO, Raquel Evelly Vieira de. Análise de propostas didáticas em torno do gênero
tirinha: contribuições ao professor a partir do aplicativo mundo gaturro. Monografia
(Licenciatura em Letras) – Universidade Federal de Campina Grande. Cajazeiras – PB, 2018.
BULLA, Vera Maria. Tirinhas, Alívio Cômico e a Identidade de Gênero em Transição: Hugo
e Muriel no Mundo Imaginário de Laerte. In: TRANSVERSO, anao 6, n. 6, dezembro 2018.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_____. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do 'sexo'. In: LOURO, Guacira
Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007,
p. 151-172.
CASTRO, Aline F. de. Travesti é resistir: lutas, microlutas e resistência nas tirinhas de
Muriel. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós Graduação em Comunicação na
Universidade Paulsita. São Paulo, 2016.
COUTINHO, Laerte. Manual do Minotauro. São Paulo, 2022. Disponível em:
https://laerte.art.br/tag/muriel/; acesso em 22 de set. de 2022.
DERING, Renato de Oliveira. A prova de redação do Enem: manutenção da colonialidade
por meio do ensino de produção textual. (Tese de Doutorado em Letras e Linguística)
776
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, Brasil, 2021.
DE OLIVEIRA, Lorena Hellen. Travesti envelhece, não vira purpurina! [manuscrito]: Um
olhar interseccional sobre a(s) velhice(s) na experiência de travestis em Belo Horizonte.
(Dissertação de mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de Minas
Gerais). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, 2017.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
HADDAD, Maria Irene Delbone; HADDAD, Rogério Delbone. Judith Butler:
performatividade, constituição de gênero e teoria feminista. In: V Seminário Internacional
Enlaçando Sexualidades, 2017.
HISTÓRIA HOJE. Moda e beleza femininas – do século XVI aos anos 70 (ilustrado).
Disponível em: https://historiahoje.com/moda-e-beleza-femininas-do-seculo-xvi-aos-
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MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos
e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG,
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MIRZOEFF, Nicholas. Direito a olhar. Disponível em:
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OLIVEIRA, Elizabeth de Souza; LUCINI, Marizete. O Pensamento Decolonial: Conceitos para
Pensar uma Prática de Pesquisa de Resistência. In: Boletim Historiar, vol. 08, n. 01,
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QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de
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RIZZI, Maria Christina de Souza Lima; SILVA, Maurício da. Abordagem Triangular do Ensino
das Artes e Culturas Visuais: uma teoria complexa em permanente construção para uma
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2022.
RODRIGUES, Carla. Performance, gênero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de J.
Derrida. In: Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n.10 - abr. 2012 -
pp.140-164, ISSN 1984-6487
SEPULVEDA , Denize; CORREA, Renan; FREIRE, Priscila. Gêneros e sexualidades: noções,
símbolos e datas. Rio de Janeiro: Ed. dos Autores, 2021.

777
Mini Currículos

Márcia Soares Santana


Mestre em Direito Agrário/UFG, Advogada e Doutoranda em Arte e Cultura Visual – PPGACV/UFG.
É professora adjunta na Universidade Federal de Goiás (UFG) e no Centro Universitário de Goiás
(UNIGOIÁS). E-mail: marcia.soares@ufg.com

Brendaly Santos de Freiras Januário


Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de Goiás (UNIGOIÁS); Mestranda no Programa de Pós
Graduação em Sociologia (UFG). E-mail: brendalysantos@hotmail.com

Renato de Oliveira Dering


Pós-doutor em Estudos de Linguagens pelo Posling/CEFET-MG. Tem interesse nas áreas de: estudos
sobre decolonialidade, letramentos, Enem e BNCC de Língua Portuguesa. E-mail:
renatodering@gmail.com

778
PEDAGOGIAS CULTURAIS E PEDAGOGIA QUEER: (POSE)ICIONANDO
POSSIBILIDADES ARTÍSTICAS E EDUCATIVAS EM DANÇA

CULTURAL PEDAGOGIES AND QUEER PEDAGOGY: (POSE)IZING ARTISTIC AND


EDUCATIONAL POSSIBILITIES

Crystian Danny da Silva Castro


Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil

Resumo

O presente texto busca refletir acerca do entrecruzamento das pedagogias culturais e da


pedagogia queer na direção de pensar processos artístico-pedagógicos contemporâneos
para educação em dança. Sendo assim, analisa-se a série televisiva Pose bem como dois
importantes elementos que atravessam sua narrativa – a ball culture e a dança voguing –
enquanto produtos das pedagogias culturais, disparadores de processos de subjetivação e,
portanto, produtores de modos de aprender/ensinar atrelados a questões que envolvem à
comunidade LGBTQIAPN+ e as experiências de corpos queer. A luz da educação da cultura
visual, Pose pode instigar modos de ver e ser visto perante as imagens constituintes das
biografias visuais de diferentes sujeitos, produzindo processos artísticos, educativos e
políticos que estejam alinhados à diversidade e a um pensamento dialógico, autônomo e
emancipatório para as práticas artístico-pedagógicas em dança.

Palavras-chave: Pedagogias Culturais. Pedagogia Queer. Dança Voguing. Educação.

Abstract

The present text seeks to reflect on the intersection of cultural pedagogies and queer
pedagogy in order to think contemporary artistic-pedagogical processes for dance
education. Therefore, the Pose television series is analyzed as well as two important
elements that cross its narrative – ball culture and voguing dance – as products of cultural
pedagogies, triggers of subjectivation processes and, therefore, producers of
learning/teaching modes linked to issues involving the LGBTQIAPN+ community and the
experiences of queer bodies. In the light of visual culture education, Pose can instigate ways
of seeing and being seen in the face of the images that constitute the visual biographies of
different subjects, producing artistic, educational and political processes that are aligned
with diversity and a dialogic, autonomous and emancipatory thought for artistic-pedagogical
practices in dance.

Keywords: Cultural Pedagogies. Queer Pedagogy. Voguing Dance. Education.


779
Introdução

Como as imagens podem ser elementos para pensar/construir distintas


subjetividades dos sujeitos/corpos? Que aspectos pedagógicos podem ser acionados
a partir de diferentes imagens que perpassam o imaginário dos corpos na construção
de suas identidades e biografias visuais1? O que podem as imagens quando atreladas
a processos artístico-pedagógicos sob uma perspectiva queer? Como pensar a
educação a partir destas concepções? Tais perguntas apresentam-se como
disparadoras para refletir o poder performativo das imagens, desde uma perspectiva
educativa da cultura visual (VALLE, 2014), buscando analisar de que modo a série
Pose2, o contexto da ball culture e a dança voguing podem ser compreendidos pelas
óticas das pedagogias culturais e pedagogias queer, desde um viés artístico-
pedagógico em dança.

O cunho pedagógico de tais artefatos culturais, que numa lógica hegemônica e


tradicional de ensino estariam apartados dos materiais/conteúdos curriculares, são
acolhidos e potencializados a fim de compreender como se relacionam com as
vivências dos(as/es)3 corpos e de que forma podem ampliar práticas pedagógicas que
estejam conectadas a um fazer-pensar dialógico e interessado nas
subjetividades/diversidades, evidenciando uma abordagem pedagógica queer. Dessa
forma, propõe-se refletir acerca de abordagens educativas em dança que estejam
enredadas pelas imagens de Pose e, da mesma forma, atravessada por distintas
visualidades que constituem as biografias visuais de corpos LGBTQIAPN+, a fim de
pensar uma práxis pedagógica que valorize a experiência queer na produção do
conhecimento e de subjetividades plurais.

1
O conceito de biografias visuais (CUNHA: 2008) considera a coleção de imagens, de diferentes procedências, que
fazem parte da cultura visual e das experiências estéticas/afetivas dos sujeitos, sendo significativas em seus
processos de subjetivação.
2
Série televisiva estadunidense criada em 2018 por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals e
produzida/transmitida pelo canal FOX. Composta do maior elenco de pessoas queer da história, a trama acompanha
as vivências da comunidade LGBTQIAPN+ nos anos 1980/1990, especialmente no contexto underground da ball
culture.
3
Utilizo de pronomes neutros principalmente para designar pessoas que se identificam como gêneros não-binários.
Esta abordagem se referencia nos estudos de Márcia Tiburi, na obra “Feminismo em comum: para todas, todes e
todos” (2018).
780
(Pose)icionando visualidades: Pose e ball culture enquanto pedagogias culturais

O campo das Pedagogias Culturais, conforme Hernández (2014), se fundamenta no


hibridismo de referências como os Estudos Culturais, a Cultura Visual, o
Construcionismo e as Pedagogias Críticas articuladas à Educação, deslocando a
compreensão do pedagógico enquanto saber disciplinar em relação às Ciências da
Educação e vinculando-o à cultura e à ação política. Este descentramento do
pedagógico do espaço/instituição escolar formal para difundir-se no amplo
território cultural, impele outras perspectivas educativas alinhadas a elementos que
expandem as formas de compreender/sentir/perceber o mundo e produzir
conhecimento. Nesse sentido, e amparado por diversos(as/es) autores(as) (GIROUX,
1999; AGUIRRE, 2009; HERNÁNDEZ, 2014, entre outros/as/es), entendo uma gama
de artefatos – filmes, séries, programas de televisão, danças, festividades, etc. – que
permeiam a vida dos sujeitos como produtos/fazeres/saberes culturais possíveis de
serem vistos pelas lentes das pedagogias culturais, pois operam de modo a
estabelecer relações políticas, estéticas, sociais que, ao fim e ao cabo, educam.

Nesse sentido, a série Pose, entendida aqui enquanto um artefato visual das
pedagogias culturais, apresenta múltiplas compreensões de
mundo/realidades/corpos que estão fora dos parâmetros heteronormativos
vigentes socialmente e, por isso, transgridem as representações tradicionais, abrindo
um leque de possibilidades para pensar os corpos dissidentes. Revela questões
políticas, sociais, culturais, estéticas e afetivas que perpassam a comunidade
LGBQTAIPN+ dos anos 1980 e 1990, mas que também estão conectadas aos contextos
do nosso tempo, produzindo diálogos e problematizações que atravessam de forma
(per)formativa as experiências dos corpos.

Assim, a série promove imagens que estão imbrincadas à uma perspectiva educativa
da cultura visual, pois buscam “inserir e incorporar no fazer artístico a discussão do
lugar/espaço das imagens [...] e seu potencial educativo na experiência humana”
(TOURINHO; MARTINS, 2011, p. 57), invencionando modos de tramar ficção e
realidade. Ao aludir às vivências de corpos queer desde o contexto underground dos
Estados Unidos e criar identificações afetivas perante as personagens e a história
criada, Pose amplia os nexos de sentido que partem de sua narrativa ao passo que
lança luz a distintas questões contemporâneas ali re(a)presentadas.

781
Dentre as tantas questões que compõem a série, destaco, a seguir, o
desenvolvimento da ball culture, enquanto uma possibilidade de pedagogia cultural.
Conforme Gusmão (2021), os ballrooms foram bailes criados, organizados e
difundidos pelas comunidades LGBTQIAPN+, negra e latino-americana em trechos
guetificados da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, se consolidando como
espaços de celebração da vida destes sujeitos. Compostos por desfiles/competições
temáticos, os bailes também se tornaram locais de resistência destes corpos
socioculturalmente marginalizados e invisibilizados pela heteronormatividade,
permitindo que forjassem possibilidades de ser e existir constantemente renegadas
em outros contextos.

No último episódio da terceira e última temporada de Pose, a protagonista Blanca


Evangelista discorre sobre a importância dos balls na formação de suas identidades
enquanto corpos queer e, deste modo, para o fortalecimento da comunidade
LGBTQIAPN+ no que diz respeito a legitimação de suas existências de forma digna.
Ela diz: “[os bailes] era onde podíamos ser tudo que não nos deixavam nesse mundo”
e complementa, ao refletir acerca das competições em que desfilavam categorias
aludindo a executivas ou modelos, por exemplo: “não fingíamos quando desfilávamos
nestas categorias, nos preparávamos [...] nós nos afirmamos”. Com esta fala, é
possível perceber o modo como os bailes foram ambientes fundamentais para o
construir nexos coletivos de pertencimento e empoderamento daqueles sujeitos. Um
espaço profícuo, repleto de arte e resistência, em que aqueles corpos podiam
compartilhar seus sonhos e projetos de vida sob o prenúncio de serem respeitados e
legitimados nos demais contextos em que se inseriam.

A ball culture também apresenta outros dois elementos muito importantes: a


transgressão dos sistemas de gênero e sexualidade e as Houses (casas), espaços
físicos/afetivos formadas por LGBTQIAPN+ mais velhos, chamados de “pais” e
“mães”, que abrigavam jovens homossexuais e transexuais expulsos de suas casas e
promoviam lugares de acolhimento e representação (SANTOS, 2018). Portanto, para
além dos locais onde aconteciam os bailes/competições, a compreensão de ball
culture se dilata para diferentes percepções atreladas às realidades de pessoas
LGBTQIAPN+, negras e latino-americanas, permitindo a pluralidade de
reflexões/problematizações acerca do universo queer.

782
A maneira como os bailes eram realizados, sobretudo na relação de produção de
subjetividades, o enfrentamento aos regimes visuais/culturais heteronormativos, as
práticas artísticas e de criação dos desfiles e todas as dinâmicas de
representatividade ali cultivadas, indicam que é possível compreender estes
ambientes como sendo pedagógicos. Ao passo que reuniam sujeitos, histórias e
formas de ser/criar uma cultura underground, os balls/ball culture projetavam,
subvertiam e proclamavam existências diversas: educavam, portanto, sobre a gama
de aspectos que envolviam aquelas comunidades, permitindo que aprendessem
sobre si mesmos e seus pares a partir do que ali vivenciavam.

A partir desta compreensão de Pose e da ball culture enquanto pedagogias culturais,


é possível perceber como tais artefatos pertencem a nichos multifacetados da
cultura e não somente aqueles legitimados e institucionalizados pelos cânones
artísticos e as hegemonias sociopolíticas e econômicas. Ao contrário disso, flertam
com elementos da cultura pop e das culturas de massa, constituindo um cerne
produtivo ligado aos sujeitos em suas práticas cotidianas, proliferando visualidades
que, à luz da cultura visual, mobilizam a experiência do ver, do ser visto e de dar-se
a ver a partir das imagens, incitando, assim, noções de representatividade. Portanto,
constroem sentidos e significados imbuídos de uma potência queer
questionadora/disruptiva e se fazem pedagógicas porque dão a ver a diversidade de
realidades dos corpos.

Corpo-imagem-movimento: a dança voguing como pedagogia cultural

O desenvolvimento da dança Voguing, de acordo com Gusmão (2021), nasce no


contexto das balls como um estilo de dança desenvolvido pela sobreposição de poses
criadas, tendo como referência visual, as modelos fotografadas especialmente na
revista de moda “Vogue”. Tais movimentações permitiam a(o/e) performer-
dançarina(o/e) “tornar corpo” determinados arquétipos do feminino presentes nas
poses das modelos, inspirando as gestualidades características de cada indivíduo.
Dessa forma, percebo que voguing pode ser entendido como um produto artístico-
cultural e político que se constitui na relação corpo-imagem e nas diversas
pedagogias culturais que (co)incidiam com o ambiente dos bailes.

783
Tais corpos, ao dançarem suas identificações perante as poses das revistas, também
fomentam processos de subjetivação que são tramados pelas imagens e evidenciam
um dado paradoxo: “ser” pela ação mimética e um “tornar-se” pela ruptura dos
padrões que instauram diferenças naturalizadas dos corpos (GUSMÃO: 2021). Em
Pose, este limiar performativo das imagens, sobretudo na criação da dança voguing,
pode ser observado a partir da figura 1:

Figura 1. Montagem de frames da série Pose

Pose (2018). Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals, Estados Unidos.

A imagem acima é uma montagem composta por dois frames de distintos momentos
da personagem Angel Evangelista em Pose. No primeiro frame, na parte superior da
montagem, após ser aprovada em um concurso de beleza (fato bastante explorado
na trama em virtude do preconceito sofrido por ela, por ser uma mulher transsexual),
a imagem de Angel aparece compondo uma campanha de cosméticos, em três
fotografias onde a personagem posa com as mãos próximas ao rosto, como se o
emoldurasse. No segundo frame, Angel participa de um ballroom e realiza
movimentos de voguing ao estender uma das mãos, como se segurasse um estojo de
maquiagem, enquanto a outra posa de baixo do rosto. Em ambas as imagens é
784
possível perceber semelhanças e alusões entre a ação de maquiar-se, por exemplo,
ou de construir poses, que estão no cerne da relação corpo-imagem presente na
dança voguing.

Angel, ao ocupar estes dois espaços, irrompe com as fronteiras que segregam a ball
culture em relação a distintos contextos considerados regulares e legitimadores,
como a moda/passarelas/capas de revista e, assim, assume protagonismo com a
imagem de si mesma, em um ambiente até então figurado por corpos
heteronormativos4. Sendo a campanha publicitária também um modo de pedagogia
cultural, a imagem de Angel propicia uma outra forma de compreender e subverter
a lógica dominante de exclusão dos corpos LGBTQIAPN+ dos espaços de poder e,
consequentemente, representatividade. Assim, ao presentificar-se enquanto
visualidade em um contexto majoritariamente composto por imagens “idealizadas”
das modelos, Angel dilata o próprio universo criativo da dança voguing aos instaurar
uma dada relação de ver e ser visto (TOURINHO, 2011), neste caso, ver-se enquanto
artefato e discurso.

No diálogo estabelecido entre o modo como nos vemos perante os artefatos que
consumimos e como tais imagens também refletem quem somos, Angel produz a
possibilidade de ser referência (desde sua vivência como corpo queer) para a
construção da dança voguing, ou seja, ver e ser vista nas capas de revista, no
movimento voguing e nos interstícios artísticos e políticos que sua
presença/imagem pode causar, provocando modos de proclamar-se em sua
(in/ex)tensa diversidade. Esta narrativa, ainda que fictícia, traz à tona perspectivas
que convergem com o entendimento de que a dança voguing torna-se também uma
forma de pedagogia cultural que ensina/educa/inspira os corpos, a partir da dança,
não apenas como entretenimento, mas como movimento que inscreve seus corpos e
discursos em sua própria cultura, sendo motivo de experimentação e
empoderamento.

Estes apontamentos acerca da série Pose, da ball culture e dança voguing, como
elementos das pedagogias culturais, também possibilita pensar as (co)incidências

4
A heteronormatividade diz respeito à uma dada posição de sujeito dominante (em sua maioria a posição do homem
branco, heterossexual e de classe média) que padroniza os corpos desde uma perspectiva normativa, excluindo
corpos que fogem a tais parâmetros (LOURO: 2008).
785
que transitam nestes artefatos. Dentre elas, destaco o caráter transgressor e
problematizador da perspectiva queer, a qual discutirei a seguir.

Por uma pedagogia queer: enredando Pose, ball culture e a dança voguing às
práticas artístico-pedagógicas em dança

A perspectiva/teoria Queer apresenta-se como pensamento crítico produzido pela


ótica queer, ou seja, um modo de compreender as relações de gênero e sexualidade
atuantes a partir de “uma forte crítica às identidades sexuais”, questionando “a
ordem social e cultural responsável pela produção de um discurso que as qualifica
como aceitáveis/normais ou abjetas/patológicas” (COUTO JÚNIOR, 2016, p. 251). Os
estudos queer assumem, como uma de suas questões fundamentais, o entendimento
de que a sexualidade e o gênero são categorias culturais, históricas e socialmente
construídas, possibilitando dilatarmos nossas formas de perceber os processos de
construção das identidades dos sujeitos. As múltiplas identidades não-normativas
que assumem seus espaços de existência e passam a emergir publicamente,
enfrentando os dogmas machistas e patriarcais que ressoam na heteronormatividade
compulsória, evidenciam o caráter fluído e diverso das concepções de gênero e
sexualidade.

Nos âmbitos e dinâmicas educacionais, por sua vez, autoras(es) como Guacira Lopes
Louro (2001), Tomaz Tadeu da Silva (2007), Dilton Coulto Junior (2016) e
outras(os/es) pesquisadoras(es) apontam em seus estudos a necessidade de
analisarmos, discutirmos e, sobretudo, agirmos a partir de uma perspectiva queer
frente às premissas pedagógicas heteronormativas alicerçadas e reproduzidas nos
mais distintos ambientes de educação. Este movimento questionador à lógica
compulsória da heterossexualidade vai produzir estratégias metodológicas e
artísticas que convergem com um pensamento subversivo, inclusivo e afeito à
diversidade, entendido enquanto uma pedagogia queer. Um olhar pedagógico queer
para as práticas formativas/educativas dos corpos pode ser a chave para
questionarmos a exclusão de corpos e experiências queer e a naturalização da
heteronormatividade, permitindo que diferentes possibilidades de compreender
corpo-sexo-gênero-orientação sexual sejam abordadas e vivenciadas.

786
Nesse sentido, identifico que Pose, a ball culture e a dança voguing constituem-se
como pedagogias culturais encharcadas por abordagens queer. Subvertem as lógicas
dominantes da heteronormatividade e das formas de produzir conhecimento,
constituem ambientes inclusivos para múltiplos corpos e vivências e potencializam
a naturalidade da diversidade humana. Ensinam/educam pelo viés da
problematização, do encontro por vezes desconcertante com novas estéticas, do
enfrentamento às condutas normativas e excludentes das hegemonias, da
sensibilidade aos processos subjetivos e identitários plurais. Fazem pedagogia queer.

Pelo viés artístico-pedagógica em dança, sobretudo considerando a presença


visceral do corpo no processo de construção/criação, pensar uma pedagogia queer
é basilar para entendermos os efeitos/afetos de corpos dissidentes na produção de
danças que estejam alinhadas a um pensamento freireano (FREIRE, 2015),
interessadas em provocar rupturas, questionar os padrões (cis)tematizadores e
reguladores do movimento, transgredir as práticas que enrijecem e negligenciam os
modos de criar/ensinar/aprender, em prol de uma experiência de dança de fato
acolhedora e humanizadora. Propor danças que sejam plurais, inclusivas, que
ampliem seus repertórios e abracem diferentes corpos, experiências, visões de
mundo e saberes não hegemonizados é tarefa que considero fundamental para todo
educador/artista da dança. Principalmente, àqueles que tenham em suas agendas o
compromisso com a transformação social, pois é na abertura para o desenvolvimento
de outras lógicas e modos de educar/criar artisticamente que será possível vermos
o mundo por lentes um tanto mais revolucionárias.

Ao refletir acerca da dança voguing e seu contexto underground, o movimento


contracultural por ela estabelecido irrompe o desejo para que uma pedagogia queer
seja operada a partir da dança, pois vislumbra a potência da arte de mover-se
enquanto, também, uma analogia a mobilidade do pensamento, das ações
pedagógicas, das estéticas não-dominantes. Posicionar-se, fazer pose, como um ato
de resistência para se posicionar politicamente, enquanto corpos/visualidades que
agenciam novos caminhos para a arte e a educação em dança.

Portanto, Pose – ao apresentar as tantas realidades da ball culture e de voguing –


entrega ao mundo, de forma crítica e poética, imagens e narrativas que constituem
diferentes biografias visuais, mas que permanecem invisibilizadas na cultura

787
dominante, apagadas das memórias coletivas e, assim, marginalizadas também nos
espaços educacionais. Imagens que, a partir do viés educativo da Cultura Visual,
podem ser dispositivos para acionar metodologias, práticas, modos de pensar/agir
em consonância com uma criação artístico-pedagógica em dança que reflita a
diversidade, a valorização dos corpos, as discussões acerca de gênero e sexualidade,
o reconhecimento de múltiplas epistemologias, a abertura para práticas dialógicas e
autônomas, e uma série de outras características fundamentais para pensar o campo
da educação, de modo mais abrangente, na contemporaneidade. Sobretudo, porque

a perspectiva educativa da cultura visual nos convida a abandonar


dogmas e relações hierárquicas para desenvolver um posicionamento
crítico, experimentar contextos mutáveis e plurais ao pensar e propor
as visualidades que participam dos nossos entornos sociais (VALLE,
2020, s/p.).

Compreender tais artefatos também como modos de pedagogia queer potencializa


seus usos enquanto elementos formativos, na direção de construir um trabalho
educativo desenvolvido desde princípios políticos, sociais e culturalmente
referenciados. Deflagrando, portanto, a existência das diversidades e dos modos
plurais de construir conhecimento que abrangem conteúdos, materiais e referências
advindas de nichos e contextos muito mais amplos que os pautados pelas formas de
pedagogia tradicionais (GIROUX: 1999), e conferindo aos corpos possibilidades de se
verem nas imagens que consomem e que conformem suas biografias visuais. Neste
sentido, fomenta-se que tantos outros corpos encontrem em si e em suas formas de
ver e constituir/consumir imagens, suas próprias identificações e, assim,
desenvolvam modos de fazer-pensar arte/dança, tal como Angel e os caminhos
criativos da dança voguing.

Ademais, a pedagogia queer busca não somente inserir no currículo a correta


compreensão das identidades de gênero e sexualidades, mas principalmente:

questionar os processos institucionais e discursivos, as estruturas de


significação que definem, antes de mais nada, o que é correto e o que
é incorreto, o que é moral e o que é imoral, o que é normal e o que é
anormal. A ênfase da pedagogia queer não está na informação, mas
numa metodologia de análise e compreensão do conhecimento e da
identidade sexuais (SILVA, 2007, p. 108).

788
Com isso, entendo que pensar a educação desde uma perspectiva pedagógica queer
e da prática em dança requer a luta por ações formativas inclusivas, que respeitem
as vivências dos corpos LGBTQIAPN+ e de demais sujeitos marginalizados
socialmente e que atuem no enfrentamento e problematização das normas de gênero
e sexualidade naturalizadas. Bem como também invistam na ampliação dos modos
de construir conhecimento desde epistemologias não-dominantes, refletindo acerca
do reconhecimento de múltiplas formas de ensinar/aprender alicerçadas em
aspectos afetivos e culturais que valorizem os corpos e produzam sujeitos críticos,
sensíveis e autônomos.

Referências

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TOURINHO, I. Educação na cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa, Santa Maria:
Editora da UFSM, 2009.
CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Cultura visual e infância. In: Anais da 31ª Reunião da PED.
Out., 2008. p. 102-132.
COUTO JUNIOR, Dilton Ribeiro do. Gênero, sexualidade e a teoria queer na educação:
colocando em questão a heteronormatividade. In: Atos de Pesquisa em Educação.
Blumenau, v. 11, n.1, p.250-270, jan./abr. 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª Ed -
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
GIROUX, Henry. (1999). A cultura popular como pedagogia do prazer e significado:
descolonizando o corpo. In: GIROUX, H. Cruzando fronteiras do discurso: novas políticas em
educação. Porto Alegre: Artmed.
GUSMÃO, Roney. Memória, corpo e cidade: voguing como resistência pós-moderna. E-
book. Santa Maria, RS: Ed. UFSM, 2021.
HERNÁNDEZ, Fernando. Pedagogias Culturais: o processo de (se) constituir em um campo
que vincula conhecimento, indagação e ativismo. In: MARTINS, R.; TOURINHO, I. (Orgs).
Pedagogias Culturais. Santa Maria: Editora da UFSM. 2014.
LOURO, Gucaira Lopes. (2008). Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. In:
Pro-Posições, v. 19, n. 2 (56) - maio/ago., p. 17-23, 2008.
__________. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, G. L. (organizadora). O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
POSE. Direção: Ryan Murphy; Brad Falchuk; Steven Canals. Som/Imagem. FX, 2018.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sy4HJsOSMVs>. Acesso em: 23 jan.
2022.

789
SANTOS, Henrique Cinta. A transnacionalização da cultura dos Ballrooms. Dissertação
(mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
Campinas, SP, 2018.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. 2. ed. Belo Horizonte. Autêntica, 2007.
TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2018.
TOURINHO; Irene. As experiências do ver e ser visto na contemporaneidade: por que a
escola deve lidar com isso? In: MENDONÇA. R. (Coord.). TV Escola/Salto para o futuro:
cultura visual e escola. Ano XXI, Boletim 09, ago., 2011, p. 9-14.
TOURINHO, Irene; MARTINS, Raimundo. Circunstâncias e ingerências da Cultura Visual. In:
MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. (Org.). Educação da cultura visual: conceitos e
contextos. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2011. p. 51-68.
VALLE, Lutiere Dalla. Cultura visual e Educação: cartografias afetivas e compreensão crítica
das imagens. In: Rev. Cad. Comum, v.24, n. 1, Santa Maria, 2020
VALLE, Lutiere Dalla. Aprendendo a ser docente através de filmes: possíveis trânsitos entre
cinema e educação. In: MARTINS, R.; TOURINHO, I. (Orgs). Pedagogias Culturais. Santa
Maria: Editora da UFSM, 2014.

Mini Currículo

Crystian Danny da Silva Castro


Docente do curso técnico em Dança da Escola Técnica de Artes (ETA) da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL). Doutorando em Educação, Mestre em Artes Visuais e Licenciado em Dança,
formações realizadas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Membro pesquisador do
MIRARTE – Grupo de Pesquisa em Arte, Cultural Visual e Educação (UFSM). E-mail:
crystiandcastro@gmail.com

790
“É HORA DE MORFAR!”: ATIVANDO AS SUBJETIVIDADES NAS

CONSTRUÇÕES DO OLHAR A PARTIR DA FRANQUIA POWER RANGERS

“IT'S MORPHING TIME!”: ACTIVATING SUBJECTIVITIES IN THE CONSTRUCTIONS


OF THE GAZE FROM THE POWER RANGERS FRANCHISE

Marcos Felipe Fidelis Araújo


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Lilian Ucker Perotto


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Em busca de compreender como as pedagogias culturais atuam da infância para a vida adulta
a partir das imagens, me alinho ao campo de estudos da cultura visual, para refletir sobre a
conformação do olhar a determinadas visualidades midiáticas. Lanço-me sobre a série Power
Rangers para averiguar as possíveis construções desse olhar, em busca de um
posicionamento crítico ativando o conceito de subjetividade na interpretação de imagens,
como forma de resistir aos discursos que interpelam e conformam os sujeitos a
determinadas identidades por meio das articulações do capitalismo estético.

Palavras-chave: Cultura Visual; Identidade; Power Rangers; e Subjetividade.

Abstract

Seeking to understand how cultural pedagogies act from childhood to adulthood based on
images, I align myself with the field of studies of visual culture, to reflect on the conformation
of the look to certain media visualities. I launch myself on the Power Rangers series to
investigate the possible constructions of this gaze, in search of a critical position activating
the concept of subjectivity in the interpretation of images, as a way of resisting the
discourses that challenge and conform the subjects to certain identities through the
articulations of aesthetic capitalism.

Keywords: Visual Culture, Identity, Power Rangers and Subjectivity.

791
Aberturas para o campo de investigação

A partir do campo dos estudos da cultura visual, tenho desenvolvido pesquisas cujo
foco é despertar um olhar crítico sobre os artefatos culturais que têm contribuído a
constituição das minhas subjetividades enquanto sujeito e professor no campo do
ensino das artes visuais. Para isso, levo em consideração as contribuições das
pedagogias culturais, que compreendem o “alargamento do que pode ser
considerado pedagógico e quais lugares da cultura praticam pedagogias, ou seja,
formas de regular os sujeitos, de conduzir a conduta, de orientar modos de ser e viver
no tempo presente.” (ANDRADE, 2016, p. 28).

A partir desta colocação, busco compreender a relação infância e vida adulta desde
a perspectiva das aprendizagens que constroem o olhar de sujeitos sobre si e seu
entorno, para questionar como as formas de ver da infância se mantém ao longo da
vida dos sujeitos, por meio das articulações do capitalismo estético (LIPOVETSKY,
2015).

Em busca de compreender como as pedagogias culturais atuam da infância para a


vida adulta a partir das imagens, me alinho ao campo de estudos da cultura visual, a
partir do qual considero a experiência do ver como uma prática cultural, social,
histórica e localizada, ao que Hernández se refere como posicionalidade, “o que nos
situa num lugar a partir do qual vemos a nós mesmos e a partir do qual se define
nosso modo de fazer e pensar” (2014, p. 330).

Desta forma a experiência de ver não pode ser considerada universal, para tanto,
coloco em perspectiva neste trabalho minha posicionalidade enquanto visualizador
e sujeito inserido em uma rede de significações que me possibilita determinadas
formas de ver o mundo, de uma perspectiva que me conecta às produções culturais
que me apego desde a infância, para pensar principalmente as “posições subjetivas
que produzem as imagens.” (HERNÁNDEZ, 2014, p. 335-336).

Entre os anos de 1993 e início dos anos 2000, a série estadunidense Power Rangers
ocupava um espaço importante nas redes de televisão de vários países, sendo
considerada uma das principais atrações do público infanto-juvenil no mundo. Foi o
“programa de televisão infantil de maior audiência” (BELLAFANTE, 1993 apud
MCLAREN; MORRIS, 2004); alcançando “99% do público entre 2 e 11 anos de idade”
(WARRICK, 1994 apud MCLAREN; MORRIS, 2004). Da Europa aos EUA, o show se
792
tornou um fenômeno televisivo e de venda de brinquedos, do qual o Brasil não foi
colocado de fora.

Esses dados não abarcam a realidade brasileira, mas da mesma forma nos tornamos
consumidores dessas produções. A série foi amplamente transmitida aqui de 1995 até
2010, nos canais de TV abertos. Ainda que a fase mais profícua no Brasil tenha durado
entre o grande público somente quinze anos, a trama da série e os personagens
cativaram as crianças de diferentes gerações durante o tempo em que foi
transmitida, conquistando o mercado de brinquedos e sendo fonte de inspiração
para as brincadeiras do seu público. Como uma produção cultural de tamanha
proporção, podemos considerar sua influência na construção de determinadas
formas do olhar, levando em consideração os efeitos “que o visto tem em quem vê”
(HERNÁNDEZ, 2011, p. 35).

Recordo-me como o consumo dessa série influenciou meu cotidiano durante a


infância, nas brincadeiras que eu me propunha a fazer e participar, nas cores das
roupas que eu vestia, que de alguma forma me conectava com os personagens,
possibilitando que eu me visse representado neles.

O que ainda captura meu olhar são as formas de representar os personagens, as


cores, os trajes, as posições que os sujeitos ocupam dentro das estruturas
construídas em torno de suas imagens. Essas representações ensinam sobre o
mundo e qual lugar cada sujeito, a depender de suas particularidades, deve ocupar
na sociedade. Neste ponto, me aproximo do que diz Stuart Hall (1997) sobre como a
representação atua simbolicamente para classificar o mundo e as nossas relações em
seu interior.

A maneira como compreendemos a representação no pós-estruturalismo não se dá


sobre a ideia de buscar “formas apropriadas de tomar o ‘real’ presente – de apreendê-
lo o mais fielmente possível por meio de sistemas de significação.” (SILVA, 2017, p.
90), nem como a imagem de algo invisível, mental ou interior. A representação, como
uma imagem, não é uma transparência, mas “como qualquer sistema de significação,
uma forma de atribuição de sentido” (SILVA, 2017, p. 90).

A visão entendida também como um sistema de significação nos aproxima do


conceito de visualidade que para Pegoraro (2011, p. 47) “refere-se ao registro visual
no qual a imagem e o significado visual operam”. Desta forma, a visão como uma
793
construção cultural “é aprendida e cultivada, não simplesmente dada pela natureza
e que, por conseguinte, tem um percurso histórico que precisa ser avaliado.”
(PEGORARO, 2011, p. 48). Assumir estas visualidades do passado recente, responsável
por formar uma geração de sujeitos que cresceu a consumindo, é assumir também
suas repercussões no presente.

Dessa forma, me preocupo em como olhar para essas imagens que cativaram o meu
olhar paralelo ao de uma geração. Quais sentidos essas imagens produzem? Como
abordá-las? Ademais das discussões da transparência e opacidade da imagem,
concordo com Alloa (2015, p. 16) quando ele diz que:

as imagens são suspensas […] o que elas dão a ver está suspenso, sem
que essa suspensão possa ser objeto de uma substituição sintética, o
que aparece em imagem resiste à generalização, mas excede sempre,
no seu aparecer, a um espectador, sua simples redução ao artefato
individual.

A imagem se excede diante do olhar do espectador, tornando-a relevante na


compreensão das visualidades que abrangem as formas de ver dos sujeitos. As
visualidades colocam em campo as subjetividades dos que a elas se apegam, logo, as
construções de sentido se dão nas relações entre quem vê e o que é visto. Tais
possibilidades de visualização são o resultado das circunstâncias que as
possibilitaram.

Tal discussão nos aproxima das ideias de Lipovetsky (2015) ao tratar das formas como
o capitalismo se apropria das subjetividades em prol de seu desenvolvimento. O autor
aponta uma mudança estrutural no capitalismo contemporâneo, que passa a ser
regulado não mais apenas pela lógica de produção padronizada em massa, mas é
marcado por uma “inflação estética”, cujo foco está na sedução dos “prazeres dos
consumidores por meio das imagens e dos sonhos, das formas e dos relatos.” (p.42).

Recentemente, um episódio da 29ª temporada de Power Rangers me chamou atenção


e, neste artigo, buscarei pelos sentidos despertados por esta cena que convocou meu
olhar de forma imediata. Após compreender quais circunstâncias possibilitaram a
visualização da imagem que pretendo abordar posso enfim buscar os sentidos que
emergem a partir dela. A imagem em questão ativa o conceito de subjetividade e é a
partir de sua compreensão que seremos capazes de explorar os “sentimentos que

794
estão envolvidos no processo de produção da identidade” (WOODWARD, 2017, p. 56),
assim como explicar as razões pelas quais nos apegamos a determinadas
representações.

Gender-flip e a representação desde Super Sentai à Power Rangers

É válido ressaltar que Power Rangers teve início em 1993, como adaptação de uma
série de programas japoneses para o público Ocidental. Tais séries são compostas
por “cenas de ação ao vivo de super-heróis trajando roupas metálicas de spandex e
capacetes de combate” (MORRIS; MCLAREN, 2004, p. 187), conhecidos por Super
Sentai, com início em 1975 e inserido em um gênero chamado Tokusatsu, que são
“filmes e seriados japoneses em live-action (produções audiovisuais com atores,
como o cinema tradicional) que fazem uso intenso de técnicas de efeitos visuais e de
efeitos especiais.” (MANZ, 2013, p. 7).

Antes de entrarmos propriamente na série Power Rangers, é preciso então


compreender que as cenas e narrativas veiculadas nesta, são adquiridas do programa
japonês, como uma forma de aproveitar as gravações originais. Super Sentai segue
um modelo de representação no qual

(...) cinco super-heróis adolescentes, vestindo uniformes colantes


coloridos, refletindo códigos que os japoneses relacionavam com sexo
e características de personalidade. Enquanto o azul escuro é uma cor
exclusiva de homens e rosa de mulher, amarelo e verde são cores
unissex. O vermelho que no ocidente é considerada uma cor ‘feminina’,
é uma cor considerada masculina e que indica a liderança - portanto o
líder do grupo era o Ranger Vermelho (...). (SATO, 2007, p. 320 apud
MANZ, 2013, p. 15-16).

No trecho destacado, a autora chama atenção para a relação cor-gênero, e os


choques entre a percepção japonesa e a ocidental, que não são assim tão distantes.
As visualidades na qual a série original se baseia reúnem as características
particulares de vários sujeitos sob a homogeneização da identidade, criando
principalmente uma relação cor-gênero que, pelo mecanismo da repetição, reforça
esses padrões com o passar do tempo.

O processo de normalização é uma das formas mais sutis pelas quais o poder se
manifesta nesse campo, onde segundo Silva (2017) “A identidade normal é ‘natural’,
795
desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como
uma identidade, mas simplesmente como a identidade.” (p. 83). Exemplo perceptível
seria a atribuição das cores rosa e azul a meninas e meninos, respectivamente.

Assim, a tendência exercida pelo sistema normativo para a construção da identidade


é para a fixação, entretanto, ela está sempre escapando, de forma que “a fixação é
uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade.” (SILVA, 2017, p. 84). Apoio-
me em Silva (2017) para questionar quem tem o poder de representar as identidades,
pois, quem detém tal poder, é também capaz de determiná-las. Para o autor:
“Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os
sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação.” (2017, p. 91), pois estão
intimamente ligados ao poder.

Entender como se estrutura Super Sentai é fundamental para atingir as construções


de sentido que surgem desse processo de “adaptação” para o público ocidental, que
segue baseado numa lógica semelhante de representação. Neste processo de
adaptação, as narrativas se alteram, ganham e perdem sentidos a partir das
necessidades dos produtores de atender as supostas expectativas dos espectadores,
criando também outras visualidades, assim como outras possibilidades dos sujeitos
se posicionarem (HERNÁNDEZ, 2011).

A repetição desses modelos de representação ao longo das temporadas foi se


consolidando entre quem acompanhava a série, a noção de cor atrelada ao gênero,
onde cada personagem, baseado em sua cor, ocupava um papel pré-determinado na
história. Foi somente a partir da 16ª temporada de Super Sentai, intitulada Kyouryu
Sentai Zyuranger (1992), que Power Rangers começou a ser produzido. Como
consequência do processo de adaptar a série japonesa para um novo público, que é
também mais amplo, os produtores norte-americanos tiveram o desafio de
representar uma multiplicidade de sujeitos. Mas, como isso foi feito?

796
Figura 1: Mighty Morphin Power Rangers (1993) – primeira série da franquia Power Rangers. Disponível
em: http://3.bp.blogspot.com/-YW1LIAjL6dk/T8-
5KzRWGoI/AAAAAAAAEG0/2kVrLO4I0Gg/s1600/Power+Rangers.jpg. Acesso em: 11 Ago 2022.

A primeira temporada de Power Rangers, conhecida como Mighty Morphin Power


Rangers (1993), traz uma configuração muito semelhante à citada anteriormente,
onde o vermelho é o líder, o azul e rosa, são interpretados respectivamente por um
homem e uma mulher. Ocorrendo uma variação com a presença dos Rangers verde
e preto, interpretados por homens e da Ranger amarela, que diferente do original
japonês é interpretada por uma mulher, processo conhecido no cinema como
gender-flip, que é uma adaptação do gênero dos personagens quando se passa uma
determinada produção para outra mídia.

O vermelho, como previsto, ocupa o centro e, as mulheres ficam atrás dos


personagens masculinos principais, com a adição do Ranger Verde, que na série
americana ganhou posição de destaque e se coloca ao fundo com as mãos para cima,
como que exercendo poder sobre os demais. Da mesma forma que na série japonesa,
em sua contrapartida, na versão norte-americana é perceptível como se refletem os
códigos de representação, onde

[...] eles são codificados por cor para revelar marcas de identidade
tradicionalmente raciais e sexuais: rosa, para a mulher caucasiana;
amarelo, para a mulher asiática (agora afro-americana); preto, para o

797
homem afro-americano (agora anglo-coreano); e vermelho, branco e
azul, para os homens brancos. (MORRIS; MCLAREN, 2004, p. 188).

As escolhas visuais feitas para cada personagem revelam, para Morris e McLaren
(2004), uma estratégia adotada a princípio como uma forma de proporcionar uma
imagem de “consciência igualitária para o programa” (p. 187), o que permitiria aos
produtores esquivarem-se das críticas feitas em relação ao conteúdo violento
veiculado na série, sob o disfarce da luta em prol do bem e da justiça.

No entanto, com o passar dos episódios, tais representações não foram bem
recebidas, é por isso que vemos no trecho citado, os destaques das mudanças feitas
para amenizar essas representações estereotipadas, que só aconteceram a partir da
segunda temporada, destacando as trocas dos atores que interpretavam os Rangers
preto e amarelo; assim como a troca do Ranger Verde pelo Branco (que não aparece
na Figura 1).

Uma diferença crucial entre Kyouryu Sentai Zyuranger e a temporada de Power


Rangers em questão é que no original japonês, o amarelo é um homem e na versão
americanizada, é interpretado por uma mulher, que podemos perceber, ainda
segundo Morris e McLaren (2004), como uma tentativa de trazer representatividade
e equilíbrio para a equipe, se aproveitando também da oportunidade de atrair o
público infantil feminino. Tal fato se faz perceptível pela ausência da saia na
personagem, diferente de sua outra companheira que faz uso dessa peça em seu
traje.

O processo ao qual já nos referimos, o gender-flip, pode significar “inversão de


gênero”, que geralmente ocorre na adaptação de uma mídia para outra, sejam
quadrinhos, cinema, TV, entre outros. Esse processo se tornou comum ao longo das
várias temporadas de Power Rangers, o que em algumas ocasiões produziu uma
diferença entre as mulheres da equipe, quando uma geralmente é vista como sendo
mais feminina que a outra, a julgar pela presença ou não da saia no uniforme, assim
como pelo corpo mais masculinizado do ator japonês que ainda pode ser visto nas
cenas de luta que são reaproveitadas.

Como a concepção sobre a cor amarela, na perspectiva japonesa, não está


necessariamente atrelada a um gênero (assim como o verde, que é também uma cor
unissex), é possível perceber outras configurações ao longo dos anos. Variações
798
também passaram a ocorrer no elenco da série Power Rangers, onde o papel do
protagonista passou também a ser interpretado por atores não-brancos, rompendo
com algumas formas de representação raciais que já eram alvo de críticas desde a
primeira temporada.

Tal pressuposto de igualdade, no qual a série tenta se basear, é visto por Morris e
McLaren (2004) como uma oportunidade de capturar as subjetividades desses
sujeitos mulheres e não-brancos, para adotar a ideologia hegemônica, racista,
patriarcal, colonial e militarista, que atravessa as narrativas e visualidades da série
que são “transmitidas através da estrutura profunda e da nuance das relações em vez
de através de narrativas lineares, concretas.” (MORRIS; MCLAREN, 2004, p. 188).

Segundo Lipovetsky(2015), tal estratégia de dominação através das imagens,


subverteu a própria lógica capitalista

não mais sistema econômico racional, mas máquina estética produtiva


de estilos, de emoções, de ficções, de evasões, de desejos, e tudo isso
não mais, como acontecia antes, para uma elite social restrita, mas para
o conjunto dos consumidores: o capitalismo artista não cessa de
construir universos ao mesmo tempo mercantis e imaginários. (p.49)

Em suma, “a igualdade baseia-se em até que ponto as mulheres e as pessoas de cor


têm a oportunidade de adotar a ideologia euro-americana dominante” que induzem
a práticas de consumo (MORRIS; MCLAREN, 2004, p. 188), contribuindo para a
manutenção da supremacia branca, que não é “um bloco hegemônico reservado
apenas a pessoas com pele branca” (p. 188), mas que precisa recrutar através dos
discursos da representação esses sujeitos que vão lutar em prol de suas causas,
sustentando sua ideologia militarista dominante de condescendência “à autoridade,
sacrifício e martírio.” (p. 190), que deve ser praticado somente por aqueles que foram
subalternizados.

Compreendemos então, que a representação que se sumariza em uma identidade é


tanto uma construção simbólica quanto social (WOODWARD, 2017), onde passa a
adquirir sentidos a partir de uma determinada ideologia, que conforma as
subjetividades dos indivíduos a um sistema de representação, processo denominado
por Althusser (1971) de “Interpelação”, no qual os indivíduos são transformados em
sujeitos por meio da inserção em uma ideologia que os captura. Dessa forma:

799
Ele concebe as ideologias como sistemas de representação, fazendo
uma complexa análise de como os processos ideológicos funcionam e
de como os sujeitos são recrutados pelas ideologias, mostrando que a
subjetividade pode ser explicada em termos de estruturas e práticas
sociais e simbólicas. Para Althusser, o sujeito não é a mesma coisa que
a pessoa humana, mas uma categoria simbolicamente construída.
(ALTHUSSER, 1971, p. 146 apud WOODWARD, 2017, p. 61).

Os modelos de representação ligando gênero e cor a características sociais, raciais e


de personalidade, possibilitam determinadas formas de ver e compreender as
relações sociais a partir destes lugares, que podem conformar os sujeitos (SÁNCHEZ
MORENO, 2007 apud HERNÁNDEZ, 2011, p. 36), além de “confirmar-nos, como
apontava John Berger (2000), ele descobre o que somos e o que devemos ser.” (Idem),
criando assim padrões pré-determinados para que os sujeitos apenas se adequem e
os reproduzam.

Subjetividade, Agenciamento e Novas Visualidades

Figura 2: Power Rangers Dino Fury (2021) - Episódio 04 “Novos recrutas" Imagem capturada de
https://www.youtube.com/watch?v=FohXD0F72T0&t=65s. Acesso em: 11 Ago 2022.

Desta maneira, é necessário possibilitar aos sujeitos uma educação crítica que os
permita questionar tais sistemas. Hernández (2011) nos apresenta possíveis

800
questionamentos para nos posicionarmos diante das imagens: “O que vejo de mim
nesta representação visual? O que diz esta imagem de mim? Como essa
representação contribui na minha construção identitária – como modo de ver-me e
ver o mundo?” (p. 38). Tais perguntas vieram à tona assim que me deparei com esta
imagem, não porque me vejo representado nela, mas por ela mexer com as
concepções já enraizadas sobre a série.

Na cena em questão, os personagens acabam de “morfar” pela primeira vez, nome


dado ao ato de transformar-se em Ranger, pelo qual eles adquirem as roupas e
poderes para lutar. Nesta temporada é utilizado o mesmo recurso do gender-flip das
temporadas anteriores, mas com a Ranger verde, que pela primeira vez na história
da franquia é interpretada por uma mulher (diferente de Super Sentai, onde já
ocorreu outras vezes).

A cena chama atenção pois no momento em que se transforma, a Ranger verde surge
vestindo uma saia, e em seguida diz: “Um sonho que virou realidade! Espere um
segundo… Saia? Não é bem o meu lance”, e arranca a peça de roupa, como vemos na
Figura 2, onde a personagem segura-a em suas mãos. A fala em questão chama
atenção pois a personagem exprime sua realização em finalmente ter se tornado uma
Ranger e em seguida toma uma atitude que questiona a representação de gênero a
ela atribuída por meio de seu uniforme.

Tal ato pode ser visto como uma ruptura não só para a personagem, mas com os
sistemas de representação visuais vigentes na franquia desde seu início. Mesmo que
outras personagens femininas não usassem saia, pois suas contrapartidas japonesas
eram também interpretadas por homens, esta foi a primeira vez dentro de Power
Rangers que se evidenciou tal fato e rompeu-se com esse modelo. Podemos perceber
neste ato da personagem, como é colocado em campo suas subjetividades, que não
podem ser contidas pela identidade que a conformara.

A subjetividade da personagem sugere a compreensão que ela tem de si, dos


pensamentos e emoções que constituem tal concepção (WOODWARD, 2017). A ação
de resistência é a revelação de um corpo que não quer se adequar, mas impor seus
desejos e, ao impor-se, cria rupturas nas visualidades hegemônicas, nas formas
estabelecidas de representar o visível.

801
Podemos compreender essa ruptura como um ato de agenciamento, onde a
personagem assume “uma consciência crítica que conduz a ações assentadas para
resistir processos de superioridades, hegemonias e dominação” (DIAS, 2011, p. 62).
Dentro do universo da série, a personagem busca se representar da forma como se
compreende, rejeitando, a partir da compreensão de si, as formas de representação
que se impuseram previamente.

O ato de arrancar a saia pode ser visto como uma ruptura com os sistemas
hegemônicos de representação feminina e LGBTQIA+, visto que posteriormente na
temporada a personagem assume-se também como homossexual, de uma forma que
foi considerada idealmente ‘natural’ pelo público, o que rendeu à série um GLAAD
Award1, prêmio da Gay & Lesbian Alliance Against Defamation, conferido à série como
forma de reconhecer e homenagear as representações justas, rigorosas e inclusivas
da comunidade LGBTQIA+.

Como parte integrante desta comunidade me sinto profundamente tocado pela


emergência de novas visualidades que contemplem as subjetividades de múltiplos
sujeitos, que geralmente não se veem representados na mídia, assim como eu
enquanto criança nunca encontrei disponíveis modelos de representação que
abarcasse minhas subjetividades. A repercussão da visualidade proposta pela série
provoca em mim uma reverberação política, pois autoriza e legitima processos de
mudança e ressignificação social, que até então têm sido considerados tabu tanto em
programas adultos e principalmente nos infantis.

Afunilando perspectivas

A série Power Rangers, inicialmente reconhecida e criticada por reforçar


estereótipos de gênero e raça ligados à cor e posições sociais, após quase 30 anos,
nos surpreende com uma representação que rompe em partes com essas
visualidades. Tais sistemas de representação são responsáveis por perpetuar
determinadas formas de construção do olhar que conformam os sujeitos a modelos
visuais e discursivos, assim como as ideologias que os atravessam.

Ao perceber na tela a imagem de um corpo que na maioria das vezes é excluído das
representações, cuja existência é ignorada ou profundamente estigmatizada,

ͳ‹•’‘À˜‡Ž‡ǣ δδŠ––’•ǣȀȀ–™‹––‡”Ǥ ‘Ȁ‰Žƒƒ†Ȁ•–ƒ–—•Ȁͳͷʹʹ͹ʹͺͷ͸ͻͷʹͲʹ͵ͶͷͲʹεεǤ ‡••‘ǣͻ —ŽʹͲʹʹǤ


802
voltamos então ao pensamento de Hernández, que nos diz: “ao nos aproximarmos
das imagens e suas representações, não se trata de lê-las como se fossem um
exercício de decifração, mas de explorar os modos de relação nos quais elas nos
colocam” (HERNÁNDEZ, 2014, p. 336).

Apesar de considerar os avanços adquiridos a partir da emergência dessas novas


visualidades, não devemos esquecer sobre o que Morris e McLaren (2004) apontam
ser uma estratégia do programa representar esses corpos que antes estavam
ausentes, tendo em vista que Power Rangers “fornece um espaço discursivo para a
formação do cidadão guerreiro falo-militar” (p. 196), podemos perceber nessa
inclusão uma forma de Interpelação desses corpos para adotarem a ideologia
patriarcal em prol da manutenção desse sistema?

Ao não contar com exemplos críticos que desafiam “o mundo das relações sociais
capitalistas patriarcais” (MORRIS; MCLAREN, 2004, p. 195) que forneçam alternativas
e perspectivas de oposição, os sujeitos se tornam reféns dessas construções visuais
ao buscarem formas de se compreender e representar, sendo capturados por tais
modelos. Se a princípio percebemos um avanço nessas outras formas de
representação, devemos ficar atentos às “inquestionáveis articulações da ideologia
neo-imperialista do programa.” (idem).

A imagem analisada neste trabalho foi responsável por aproximar antigos fãs da série,
que veem seus antigos heróis assumirem novas formas, e de alguma maneira
mobilizar não somente outros olhares, que a partir do capitalismo artista “cria valor
econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como um sistema
conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento.”
(LIPOVETSKY, 2015, p. 43), neste caso, ligadas às memórias de infância do seu antigo
público e na formação de um novo.

Presumir a inocência dessas construções, por se tratarem de um programa infantil é


um posicionamento que não condiz com os interesses da cultura visual. Para tanto
neste artigo, me atentei aos discursos que são suscitados a partir das visualidades
veiculadas pela série Power Rangers e quais sentidos críticos podem ser tecidos a
partir daí. Nessa chave, me coloco como um desses sujeitos que são provocados por
essas visualidades, as quais desejo compreender o apego do meu olhar a elas, em
consonância à uma geração.

803
Referências

ALLOA, E. Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a pensar. In


_____(org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 7-19.
ANDRADE, Paula Deporte de. Pedagogias culturais: Uma Cartografia Das (Re)Invenções Do
Conceito. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016.
DIAS, Belidson. O I/Mundo da Educação em Cultura Visual. Brasília: Programa de Pós-
Graduação em Arte da UNB, 2011.
HALL, S. The work of representation, in: HALL, S. (org.). Representation: cultural
representations and signifying practices. Londres: Sage/The Open University', 1997.
HERNÁNDEZ, Fernando. A cultura visual como um convite a deslocalização do olhar e ao
reposicionamento do sujeito. In: MARTINS, Raimundo. TOURINHO, Irene. (Org.). Educação
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__________. Pedagogias Culturais: o processo de (se) constituir em um campo que
vincula conhecimento, indagação e ativismo. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene
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LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. O capitalismo artista. In: ____. A estetização do
mundo. Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2015, pp.
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MANZ, N. Metáforas políticas no gênero tokusatsu: A metamorfose dos signos na mídia
japonesa. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, São Paulo. 2013.
MORRIS, Janet; MCLAREN, Peter. Power Rangers: a estética da justiça falo-militarista. In:
KINCHELOE, Joe L.; STEINBERG, Shirley R. (org.). Cultura infantil: a construção
corporativa da infância. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004. cap. 6, p. 179-200.
PEGORARO, Éverly. Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo
emergente. Domínios da imagem, Londrina, ano IV, n. 8, p. 41-52, maio 2011, pp. 40-52.
SATO, Cristiane A. Japop: o poder da cultura japonesa. São Paulo: Ed. NSP-Hakkosha, 2007.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 3ª. ed.
Petrópolis: Vozes, 2017. p. 73-102. ISBN 978-85-326-2413-0.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais.
3ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 7-72.

Mini Currículos

Marcos Felipe Fidelis Araújo


Licenciado em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
Mestrando em Arte e Cultura Visual pela mesma instituição. E-mail: fmarcos@discente.ufg.br

804
Lilian Ucker Perotto
Doutora em Arte e Educação pela Universidade de Barcelona (Espanha). Professora adjunta na
Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (Brasil), atuando nos cursos de
Licenciatura em Artes Visuais, modalidade presencial e a distância e no programa de pós-graduação
em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais. Atualmente é coordenadora do curso de
Licenciatura em Artes Visuais UAB, modalidade a distância. E-mail: lilianuckerperotto@ufg.br

805
QUANDO IMAGENS PODEM SER (PRÉ)TEXTOS:
METODOLOGIAS HIPERVISUAIS E O ENSINO DE ARTES

WHEN IMAGES CAN BE (PRE)TEXTS:


HYPERVISUAL METHODOLOGIES AND ART EDUCATION

Juan Sebastián Ospina Álvarez


Pesquisador Independente, Colômbia

Alice Fátima Martins


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

No presente manuscrito apresentamos os principais resultados e reflexões do projeto de


iniciação científica intitulado “Quando imagens podem ser (pré)textos: metodologias
hipervisuais e o ensino de artes”. Esta pesquisa buscou, através dos relatos de estudantes em
fase de estágio supervisionado em artes visuais, compreender de que forma as imagens
aparecem na prática e vida docente e os modos como é possível desenvolver estratégias
metodológicas que contribuam ao desenvolvimento de ações para, com e desde as artes
visuais.

Palavras-chave: metodologias hipervisuais; imagens; ensino de artes visuais; estágio


supervisionado.

Abstract

In this manuscript, we present the main results and reflections that arised from the scientific
initiation project entitled "Quando imagens podem ser (pré)textos: metodologias
hipervisuais e o ensino de artes" (When images can be (pre)texts: hypervisual methodologies
and art education). This research aimed, through the reports of students during their
supervised internship in visual arts, to understand how images appear in teaching practice
and life, as well as the ways in which methodological strategies can be developed to support
actions for, with and from the visual arts.

Keywords: hypervisual methodologies; images; visual arts teaching; supervised internship.

806
Das primeiras palavras...

Propusemos este trabalho de pesquisa na área da licenciatura em artes visuais, por


meio do programa institucional de bolsas de licenciatura – PROLICEN da
Universidade Federal de Goiás, tendo como principal objetivo problematizar o
trabalho com imagens na educação enquanto (pré)textos para a construção de
saberes fronteiriços, colaborativos e solidários; esboçando assim possíveis ações
metodologias de ensino no campo das artes visuais.

Como objetivos específicos nos propusemos: configurar um espaço dialogal em


ambiente digital para compartilhar com estudantes e docentes do curso de Artes
Visuais/Licenciatura modalidade presencial e EaD; considerar possibilidades de
desenvolvimento de metodologias hipervisuais para o ensino de artes visuais na
educação básica; estabelecer conexões entre o curso de formação inicial de
professores de artes e os contextos nos quais atuarão profissionalmente.

Este projeto nasceu no ano de 2020 e começamos a executá-lo no mês de setembro,


época em que muitas incertezas derivadas da pandemia provocada pelo COVID-19
estavam presentes em todos os âmbitos das nossas vidas. Ainda nesse período,
acreditávamos que com o processo de vacinação, o qual tem se arrastado, haveria
uma possível retomada presencial das atividades educativas no começo de 2021.
Contudo, somente no primeiro semestre de 2022 algumas ações de formação,
extensão e pesquisa formas retomadas e outras ainda continuam sendo
desenvolvidas desde nossos lares e através das telas de nossos computadores e
celulares.

Assim, nos deparamos frente a dois grandes desafios: o próprio advindo do


desenvolvimento da pesquisa e, de outro lado, resgatar experiências relacionadas aos
estágios supervisionados em tempos em que habitamos a escola de forma digital, e
quando assuntos do lar, tais como sons, espaços e imagens das famílias e das casas,
ocuparam e ocupam frequentemente as telas de aulas, reuniões e encontros.

Nesse sentido, a pandemia trouxe consigo vários desafios não só em relação ao


convívio social, mas também no tocante aos estágios supervisionados das
licenciaturas, fase de formação escolhida como foco nesta pesquisa. Estas mudanças
ganharam relevo não somente pelo fato de as imersões nas escolas não estarem
acontecendo presencialmente, mas de modo geral pelas dinâmicas e os processos
807
burocráticos que nos permitiram realizar as práticas docentes nas diversas
plataformas digitais usadas nas instituições receptoras. Ressaltamos que estes
desafios se apresentaram tanto para os discentes como para as docentes formadoras
que em muitos momentos tiveram que focar nas análises de experiências presenciais
ocorridas até o segundo semestre de 2019, mas sem perder de vista a potência do
trabalho que vem sendo desenvolvido de forma remota.

O estágio supervisionado em artes visuais

Na Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, tanto na sua


modalidade presencial como a distância, as e os estudantes realizam quatro estágios
supervisionados, um a cada semestre a partir do quinto período do curso. Cada
estágio é uma disciplina obrigatória que se torna pré-requisito para realizar o estágio
seguinte. Cada fase é uma imersão no ambiente escolar em que, na companhia de um
ou uma docente, os e as estagiárias buscam adquirir experiência na sala de aula.

O curso estabelece parcerias com instituições municipais e estaduais em que, na


maioria das vezes, egressos ou participantes de projetos de formação da faculdade
atuam como professores regentes. E neste quesito já percebemos rasgos de
solidariedade, pois ditas trocas têm como principal retorno a contribuição na
formação das futuras gerações de docentes na área de artes visuais, assim como as
trocas com quem estão se formando.

Cada um dos estágios é planejado pensando no desenvolvimento de competências


docentes como a observação, planejamento, avaliação e condução de ações
pedagógicas dentro e fora da sala de aula. Um dos conteúdos principais dos estágios
é o universo metodológico que envolve a área de artes visuais, nomeadamente para
a interpretação e produção de imagens propriamente ditas.

Passando de métodos focados na leitura de imagens, como os propostos por Abigail


Housen e Michael Parsons, até abordagens mais críticas como as propostas por
Douglas Kellner e com uma grande ênfase na abordagem triangular sistematizada
por Ana Mae Barbosa (2002), estas referências perpassam e marcam a formação de
docentes em artes visuais desta unidade acadêmica.

808
Agora, conforme elencamos no início deste texto, nos interessou, nesta pesquisa,
pensar nas metodologias hipervisuais, ou seja, aquelas que realizam um processo de
deslocamento da imagem puramente visual para as visualidades enquanto
construções que carregam de sentido os símbolos e também as palavras. Pensamos
o hipervisual precisamente como um movimento metodológico, e por que não
epistemológico, que acontece quando partimos do material da imagem para o
imaterial das visualidades e suas cargas culturais. O assunto do hipervisual, em outras
palavras, do visual ampliado, tem sido trabalhado por nós há alguns anos desde
projetos de educação não-formal. Nesta oportunidade, escolhemos verificar suas
possíveis inserções na formação de formadores em artes visuais.

Delineamos o hipervisual desde o tripé das imaginações, as reflexões e as mediações


(ÁLVAREZ; MARTINS, 2020). Na pesquisa que desenvolvemos anteriormente, o foco
para exercitar o hipervisual eram as conversações (Figura 1). Mas nesta pesquisa não
tínhamos certeza se seriam as palavras o modo como o hipervisual viria a contribuir
no fazer docente. Foi justamente isso que nos levou a realizar o campo com as
docentes participantes.

Figura 1. Estrutura das Conversações Hipervisuais

Fonte: (ÁLVAREZ; MARTINS, 2020)

No hipervisual, as imaginações não se referem somente aos processos de criação


mental de cenários ideais, mas sim da produção material e mental de imagens
cotidianas; as reflexões derivam dos processos de escuta crítica, escuta esta que se

809
torna fundamental nos processos intersubjetivos e de caráter solidário; e, por fim, as
mediações que são oportunidades para pensar os usos das imagens, pensamentos e
palavras a fim de provocar assuntos das artes visuais e desde as artes visuais.

Rastreando o hipervisual nos estágios supervisionados em artes visuais

Para realizar o rastreamento da presença e/ou ausência de ações hipervisuais no


estágio supervisionado em artes visuais decidimos recorrer a estudantes das
modalidades a distância e presencial e uma das docentes do curso. Em um primeiro
momento lhes contamos sobre o projeto e realizamos o convite para estas pessoas
participarem da pesquisa. Assim, conformaram o grupo de pesquisa duas estudantes
da modalidade a distância, duas estudantes da modalidade presencial e a docente a
quem já tínhamos encaminhado o convite, no primeiro momento.

Devido ao esgotamento que muitas e muitos de nós estamos vivenciando em relação


à participação em lives e encontros síncronos, optamos, na etapa seguinte, por
aplicar um questionário aberto de forma individual para as participantes, desta forma
não houve uma reunião grupal marcada e cada pessoa acessou e respondeu as
perguntas de acordo com sua disponibilidade horária.

Percebemos, através das falas das entrevistadas, os modos como nas práticas
formativas relativas ao estágio supervisionado, principalmente em tempos de
pandemia, foram aproveitadas as metáforas para promover exercícios de reflexão,
autorreflexão e registro poético da experiência docente. Nestes casos, as palavras
metaforizadas viraram visualidades que, no encontro intersubjetivo, lembram da
construção de sentido no pensar e fazer artístico. E neste ponto, sentido é uma noção
que vai ao encontro do conceito visualidade, pois como já salientamos
anteriormente, são as visualidades as que oferecem sentido às imagens dentro e fora
dos espaços acadêmicos e do próprio circuito da arte.

Essas metáforas são ilimitadas, cada estudante de estágio e cada docente em


processo de formação poderia usá-las para acordar, nas e nos seus interlocutores,
relatos sobre os aprendizados a partir das imagens e artes visuais e traduzi-los, ainda
que este verbo não fosse o mais adequado, da linguagem visual para a escrita. Quiçá,

810
neste ponto, o verbo adequado seja expandir, ou seja, realizar um exercício de
“hipervisualização”.

Logo, após a coleta dos depoimentos, criamos categorias para analisarmos as


experiências destas docentes em formação e docentes em torno do papel das
imagens enquanto pré-textos para pensarmos em metodologias hipervisuais. Ditas
categorias foram: memórias visuais; imagens-vida cotidiana; visualidades do estágio
supervisionado; metodologias visuais; e metodologias hipervisuais.

Principais achados...

Ainda que no curso de licenciatura em artes visuais, como seu próprio nome indica,
o foco são as imagens, as palavras e o trabalho intertextual não devem depender
unicamente do universo da história da arte clássica ou arte chancelada com A
maiúsculo, como acostumamos escutar no nosso círculo acadêmico. Sobre essa
expansão das imagens, a docente de estágio entrevistada apontou o seguinte:

não é a imagem quem define a minha aula. Penso no contexto e nos


discentes, levo em consideração os documentos oficiais. Não acredito
em metodologia fixa para todos os contextos. As imagens são
relevantes e faz-se necessário pensá-las criticamente, pois não há uma
imagem ingênua. Trabalho com as imagens e não em função delas, as
imagens estão atreladas às narrativas [Docente, março de 2021].

As imagens, como vimos no depoimento da docente, não podem ser nossa única
matéria prima quando trabalhamos a arte como um campo de conhecimento que se
conecta com a vida das sociedades, com sua cultura visual, pois a virada pictórica
nos ensina que o ensino de artes não é apenas um espaço para a produção material
de imagens (MITCHELL, 2015). E, justamente, para encararmos esta forma de
construir conhecimento desde artes visuais precisamos ter especial cuidado nas
metodologias que usamos para construir nossas aulas, pois estas metodologias
definem os modos como nos aproximamos ao saber e ao fazer, sendo algumas mais
descritivas, interpretativas ou críticas como aponta no seguinte depoimento umas
das estagiárias entrevistadas,

Não sei se uma metodologia para ensino das artes visuais deveria se
focar apenas em ser descritiva, interpretativa ou crítica. Me parece que

811
esses três modelos devem existir. Uma vez que não há crítica sem
descrever o que vemos e sem a interpretação que parte do
conhecimento do artista que fez a obra ou das nossas próprias
experiência que projetamos na obra observada. Uma metodologia de
ensino deve partir da observação, analise (pelos contrastes e
semelhanças) e a reflexão [Docente em formação 1, março de 2021].

Novamente encontramos nas palavras das entrevistadas a noção de reflexão, a


necessidade de planejar ações pedagógicas que mais do que tentar descobrir os
sentidos dos signos, estejam encaminhadas a descobrir o sentido das imagens que
são apresentadas conforme o desenvolvimento dos períodos e, também, sendo de
bastante importância, o sentido destas imagens na vida dos e das interlocutoras. Daí
que as imagens do cotidiano se tornem tão relevantes no processo de compreensão
e compartilhamento do sujeito que apreende conosco.

Essa reflexão hipervisual, caso possamos chamá-la desse jeito, ou seja, aquela que
além do interesse sobre o material se volta para o papel autor e do intérprete, está
cheia de perguntas, de curiosidades compartilhadas, como apontou outras das
estagiárias,

Como professora fico imaginando. E se essa leitura fosse feita assim ou


assim? Amo os porquês, eles dão a impressão que sempre há algo a
fazer, pra aprender. Trazendo aqui um pensamento subjetivo sobre a
criação de uma metodologia do ensino das artes visuais, eu usaria como
respaldo o método crítico. Por quê? Ele coloca sua opinião logo de cara,
quando propõe caminhos para o estudo que leva o aluno a construir
visualidades. Acrescentar o "algo" nosso, com o "algo" vosso e ver
construir a partir daí. Fazer um diálogo crítico e com essência. As
imagens? Seriam o foco central, não apenas as imagens estáticas. As
imagens transitórias também. As imagens falam por si mesmas, elas
criticam, constroem, entoam músicas, poemas, tristezas. Não há como
fazer uma dicotomia, mesmo no silêncio elas falam. As palavras teriam
a função poética. Descrever as imagens em forma de poesia, a função
da imagem no espaço artístico, sensações vividas a partir das palavras.
Fazer o encontro! [Docente em formação 2, março de 2021].

Vemos nos depoimentos das nossas interlocutoras um interesse e a necessidade do


trabalho com a palavra, não só uma palavra que descreva, mas principalmente uma
palavra que narre criticamente e convide à partilha, um uso poético da palavra.

812
Nas vivências cotidianas, os e as docentes se deparam com inúmeras imagens que
acordam inquietações e que podem ser levadas para dentro de sala de aula, como
comentou umas das docentes em processo de formação. Agora, é importante que
estas imagens sejam avaliadas a priori e seja definido um roteiro flexível que inclua
contextualização relacionada com a área de artes visuais e a estruturação de
perguntas ou práticas norteadoras.

Atualmente, dentro do contexto de pandemia, fico muito tempo em


frente às telas estudando e interagindo socialmente por meio de redes
sociais que estão bombardeadas de imagens e texto em formato de
"meme". É impossível não ter contato com elas. Também, utilizo para
expressar figuras de linguagens, discussões e até mesmo como lazer.
Penso que a circulação de imagens em redes sociais, que têm esse foco,
acaba por incentivar essa dinâmica da construção de diálogos, nem
sempre gerados dentro dos campos de estudos, mas cabe a quem
utiliza fazer a contextualização dos fatos, assim como utilizar para
promover esses diálogos, situações ou tarefas [Docente em formação
4, março de 2021].

Assim, não se trata apenas da “espectacularidade” das imagens que acompanham os


momentos atuais e sim das conexões que podemos estabelecer para provocar outras
ações e, ao mesmo tempo, a condução do envolvimento discente em prol de um
conhecimento situado na área de artes visuais e engajado no respeito de opinião e
na contextualização do potencial artísticos desses artefatos visuais, ou seja, um
conhecimento que não seja apenas interpretativo mas também crítico, tal como
apontou outra das docentes entrevistadas. De acordo com ela, quando perguntamos
como seria uma metodologia hipervisual, esta diz o seguinte:

Utilizaria interpretativo e crítico, porque penso que ambos caminham


juntos. Entraria muito no modo do ver e ser visto tanto nas imagens
como nas palavras [Docente em formação 5, março de 2021].

Nas palavras citadas acima constatamos um ensinamento que os estudos de cultura


visual têm trazido para o ensino de artes visuais, o deslocamento do foco do artefato
artístico, seja este uma imagem em duas ou três dimensões, para o papel do
intérprete ou do sujeito que no seu contato com dito artefato cria sentidos, daí que
sejam tão importantes as imagens do cotidiano tanto dos e das discentes quanto do
corpo docente.

813
Inclusive, entendendo a memória como uma potente energia capaz de traduzir os
arquivos visuais, textuais, sonoros, e de forma geral qualquer tipo de arquivo, em
“ações entre-tempos”, compreendemos nas falas das nossas interlocutoras a
potência que o relato sobre uma imagem, quando pensada como destarte para a
produção de outras imagens, possui. Não se trata apenas de descrever o quê havia
nela, mas sim os momentos, as pessoas e, principalmente, o modo como ela pode
inserir-se no fazer docente.

Para exemplificar o assunto memória recorremos ao depoimento da docente em


formação 1 quem nos conta suas lembranças sobre imagens e como as mesmas
podem ser caldo de cultivo para pensar em ações e metodologias no ensino de artes
visuais,

Moro numa cidadezinha de interior onde as pessoas produzem suas


próprias propagandas, anúncios, e é muito comum ver imagens as
quais vou chamar de "desenhos letrais" espalhados nos muros e
paredes de casas. As chamo de desenhos letrais" porque são escritas
desenhadas aleatoriamente. Os diálogos construídos com elas são a
partir da percepção da desigualdade social inscritas no analfabetismo
impresso nelas. Por outro lado, diálogo com a força de vontade de cada
construtor ali encarnado. São pessoas simples que concretizam um
feito em busca de uma realização. Essas imagens eu faço e as guardo,
uso como exemplos na dinâmica de salas incentivando leituras e
estudos [Docente em formação 1, março de 2021].

Neste ponto retomamos um assunto já tratado que refere a uma das competências
que ainda deverá ser mais explorada no campo de estágio supervisionado, a
transposição do cotidiano extramural para o cotidiano escolar, a compreensão do
potencial pedagógico de imagens que podem “puxar” assuntos chaves e necessários
de serem tratados na aula. A partir da fala da nossa colaboradora sobre as “imagens
letrais”, e como exemplo, poderiam surgir tópicos como arte conceitual, pop art,
artes gráficas, técnicas de representação, entre tantos outros.

Ao pensarmos em metodologias, enquanto os modos como podemos estruturar e


promover uma ação, ora mais analítica e ora mais técnica, não devemos perder de
vista que os planos de ensino na área de artes visuais percorrem pelo
desenvolvimento de competências tanto teóricas e reflexivas quanto práticas. Nesse

814
sentido, percebemos a necessidade incluir abordagens que possam levar a discentes
e docentes a executar diversos modos de se debruçar nos conteúdos.

Agora, sabíamos de início que o processo de pensar em metodologias hipervisuais


resultaria em uma força tarefa incrementada pelas limitações da pandemia e, ainda,
que isto não buscava demonstrar uma única forma de levar o hipervisual para dentro
da sala aula. Para tal fim também nos apoiamos nos depoimentos das nossas
interlocutoras que foram fundamentais nesta empreitada. Deste modo, na tabela
abaixo (Tabela 1) rascunhamos uma estratégia para o desenvolvimento de
metodologias neste viés e colocamos algumas perguntas ou questionamentos que
podem servir como pontapé para uma tarefa docente hipervisual e solidária.

Metodologias Hipervisuais

Eixo do Insumos Objetivos e Perguntas


Estratégias
Hipervisual Metodológicos conteúdos da aula norteadoras

Imaginações Memórias 1. Qual é o assunto 1. Na sua tarefa 1. Use a ou as

Visuais principal da aula que docente há alguma imagens para


será ministrada? memória visual que introduzir o
Reflexões Imagens do possa guiar o assunto da aula.
2. Qual competência
Cotidiano processo? Qual?
busca ser desenvolvida 2. A partir das

Visualidades durante a aula? 2. Quais imagens conexões criadas


do cotidiano entre o assunto
do Estágio 3. O objetivo da aula
podem fortalecer a da aula e a
responde diretamente
Supervisionad compreensão visual imagem, peça às e
à competência?
o do assunto que será aos estudantes
4. Os materiais tratado na aula? trazer imagens
Mediações Metodologias bibliográficos, dos seus
3. Quais conceitos
Visuais tecnológicos e físicos cotidianos que
estas imagens
permitem o reforcem o tema.
compartem com as
desenvolvimento do
imagens propostas 3. Mediante
assunto e objetivo da
no material exercícios como
aula?
bibliográfico? redes de imagens
estabeleçam
4. Existe alguma
conexões entre a
visualidade ou
imagem inicial e
lembrança da sua
as imagens
fase de estágio que
trazidas pelos e
seja importante
pelas estudantes.
resgatar e usar
nesta aula?

815
5. Existe um 4. Permita que as
método de ensino palavras também
de artes visuais que tomem conta da
atende atividade,
efetivamente a palavras técnicas
proposta da aula? e palavras
Qual? Por quê? cotidianas.
Existe outro
5. Peça para que
método auxiliar?
os e as estudantes
criem uma
narrativa escrita
ou visual em que
se incluam e que
use como base a
rede de imagens.
Para ditas
narrativas
também pode ser
proposto o uso de
uma metáfora.

6. Depois peça
para os e as
estudantes
comentar seus
projetos e escutar
de modo atento
às exposições dos
e das demais a fim
de aprender na
escuta e na
diferença.

Tabela 1: Metodologias hipervisuais

Fonte: Elaboração própria.

Encerrando as imaginações...

Ainda que as tecnologias digitais tenham favorecido a coleta de informações para as


pesquisas nos diversos campos do conhecimento, em um período como o que
passamos, marcado pelo isolamento derivado da pandemia pelo COVID-19,
percebemos certo esgotamento provocado pelo excesso de atividades síncronas e

816
desaproveitamento das atividades assíncronas e híbridas que oportunizam o ensino
remoto e à distância.

Um dos desafios que tivemos para a análise das entrevistas foi observar como o
hipervisual, especificamente as práticas metodológicas que vão para além do
material das imagens, poderia ser abordado no estágio enquanto fase de formação
docente. Pois como já salientamos muitas das abordagens usadas estão atreladas a
uma leitura descritiva e de reflexão individual, mas no caso da pesquisa que nos
propusemos nos interessa principalmente aquilo que se troca ao redor das
visualidades.

Começamos esta pesquisa com outro grande desafio de pensar as metodologias de


ensino em artes visuais relacionadas com uma poética da solidariedade, de modo
específico metodologias que primam pela escuta e pela construção de conhecimento
visual e de mundo baseado nas experiências individuais e comuns, experiências estas
que buscam nas trocas um crescimento que vai além do acadêmico propriamente
dito.

Tal como aponta Paulo Freire (2018) “a solidariedade tem que ser construída em
nossos corpos, em nossos comportamentos, em nossas convicções”. Nesse sentido,
o fazer e o sentir solidário apareceram nas entrevistas realizadas a estagiárias e uma
docente de estágio como norte para pensar em contribuições nos modos de ensino
de artes visuais marcados pela criação de espaços em que o dar não implica o
receber, espaços onde o “meu” é trocado pelo “nosso”, onde “minha experiência” não
se torna lugar blindado e se torna pré-texto para construção de “caminhos nossos”.

Muitas inquietações apareceram ao longo destes meses de pesquisa, especialmente


quando nos perguntávamos como se estruturaria uma metodologia hipervisual e
como aproveitar as contribuições das docentes entrevistadas para rabiscar modelos
que pudessem inspirar práticas com um viés mais solidário no campo das artes e
tencionar fronteiras no que se refere às interseções com áreas mais próximas da vida
sociocultural dos e das discentes.

As imagens normalmente são pensadas como lugar da subjetividade, do eu que as


interpela, e sobre isso não temos como discordar, mas percebemos, também, como
essas imagens são pontos de encontro do intersubjetivo, ou seja, onde o eu encontra-
se com o nós. Portanto, é necessário continuar trabalhando no abandono de lógicas
817
tradicionais e da construção do conhecimento individual para partir para a
construção do conhecimento coletivo, aquele que é feito na prática e se torna saber
coletivo e solidário.

Temos assim, desafios de educar uma população cada vez mais diversa, mas também
cada vez mais focada na sua própria configuração de diferença, inclusive umas
diferenças que apagam as outras. “O humano” como lugar de interdependência,
torna-se um viés do lado humano da figura docente, e não quer dizer aquela que
amolece, mas sim aquela que necessita das demais pessoas em sala ou em campo
aberto para se configurar como tal.

Na visão de Freire (2018), a solidariedade consiste em um projeto de libertação no


qual é possível perceber que as mudanças advêm de um projeto em que tanto
oprimidos quanto opressores reconhecem as diversas relações de poder estão
presentes, daí que seja tão importante escutarmos as imagens e visualizarmos as
falas, ou seja, precisamos realizar um trabalho hipervisual que se concretize desde os
estágios e, ainda, consolide-se na tarefa docente.

A solidariedade, nesta pesquisa a pensamos principalmente desde as ações


pedagógicas, como uma constante que percebemos deveria estar presente em um
ensino de artes que se propõe produzir conhecimento não só para a área dos estudos
visuais, mas também desde a área visual para o social. Não se trata apenas de ações
morais nem de altruísmo, mas sim de espaços onde o intersubjetivo permita a
convivência das várias visões de mundo em que nenhuma se sobreponha à outra, e
sim se complementem nas trocas de símbolos, exercitando assim o hipervisual ou
expandindo o apenas visual.

De forma concreta, refletir sobre metodologias hipervisuais nos leva a exercícios em


que além de pensar nas imagens a partir da sua produção, consumo e trânsitos, é
importante cavilar de modo acentuado as conexões desses artefatos com práticas
em que memórias, vida cotidiana e fazer-docente estejam presentes e em que os
saberes encontrem noções como empatia e flexibilidade, em que nenhum discurso
seja apagado pelos suprematismos, inclusive os derivados da arte eurocêntrica.

Caminhando para o final do nosso texto, trazemos o seguinte questionamento:


poderíamos, acaso, falar de um olhar solidário? Cabe lembrar que o olhar não se trata
apenas de uma ação fisiológica lançada sobre o mundo das imagens, mas
818
principalmente um construir cultural daquilo que é visto, um olhar que implica
deslocamentos pelas superfícies materiais, mas também um olhar que se desloca do
eu para o nós. Sobre a pergunta acima ainda achamos prematura uma resposta e
justamente essas dúvidas nos colocam no compromisso de dar continuidade à
pesquisa em outros momentos, mas uma única certeza temos, o ensino-
aprendizagem separado gramaticalmente por um traço não está separado
substancialmente e justamente a solidariedade é uma das forças que o conectam e
faz com que dos substantivos apareçam como indissociáveis.

Referências

ÁLVAREZ, J. S. O; MARTINS, A. F. Conversaciones hipervisuales, esbozos de una tecnología


social para la educación de la cultura visual. Revista educação, artes e inclusão. v.16, p.57 -
81, 2020.
BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FERNANDES DE ANDRADE, E. N., & VINICIUS DA CUNHA, M. (2016). A contribuição de John
Dewey ao ensino da arte no Brasil. Espacio, Tiempo y Educación, 3 (2), 301-319, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Solidariedade. 3ª Edição. Rio de Janeiro/São Paulo: 2018.
GAZTAMBIDE-FERNÁNDEZ, R. Descolonização e a Pedagogia da Solidariedade. Revista
Teias, 20(59), 8-38. 2019.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa
Cruz do Sul, v.19, n. 2, pp 04 – 27, jul-dez. 2011.
LIBANEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez Editora, 2006.
MITCHELL, J. T. O que as imagens realmente querem? In: ALLOA, Emmanuel (Org.). Pensar
a imagem. Tradução coordenada por Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Mini Currículos

Juan Sebastián Ospina Álvarez


Doutor em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás -UFG (2018). Mestre em Design e
Criação Interativa (2013) e Bacharel em Design Visual pela Universidad de Caldas, Colômbia (2009).
Licenciado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (2021). Pesquisador do grupo DICOVI
(Diseño y Cognición en Ambientes Visuales y Virtuales) da Universidad de Caldas. Atua como designer
no CriaLab da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: diseno.sebas@gmail.com

819
Alice Fátima Martins
Professora titular da Universidade Federal de Goiás, no curso de Licenciatura em Artes Visuais.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
Tecnológico CNPq. E-mail: profalice2fm@ufg.br

820
CONTAÇÃO DE ESTÓRIA: UMA FERRAMENTA DIALÓGICA PARA O ENSINO
DA HISTÓRIA ARTE

STORY TELLING: A DIALOGICAL TOOL FOR TEACHING ART HISTORY

Regilene Aparecida SARZI- RIBEIRO


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Brasil

Luana Cristina Gonçalves SIMÕES


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Brasil

Resumo

Este artigo busca investigar a possibilidade de contextualizar a história da arte através da


prática da contação de estória, sendo ela uma ferramenta sensibilizadora para o ensino
básico. Como caminho metodológico realizamos uma revisão da literatura e de obras
disponíveis acerca do tema contação de estórias para a arte educação. Foram selecionados
os autores que investigam o cenário contemporâneo da arte educação, Ana Mae Barbosa
(2008, 2010), Newton Duarte (2001), e Gilka Girardello (2016), desse modo, propomos um
diálogo entre a utilização da narrativa e da contação de estória e o ensino da arte, observando
uma ferramenta potencial de ensino. Para esse propósito utilizamos François Dosse (2009),
Eliana Yunes (2016) e Fayga Ostrower (2014). Durante buscas entre Janeiro e Fevereiro de
2022, em plataformas de vídeos e mídias virtuais, tais como YouTube e Instagram, não foram
encontradas biografias animadas sobre artistas contemporâneos, quanto ao que se refere
material literário, o acervo se demonstrou maior, porém o acesso não se demonstra
financeiramente acessível. Os resultados apontam aproximação entre as reflexões de
Barbosa (2008 e 2010), Ostrower (2014) e Dosse (2009) ao expor, em suas respectivas áreas
de conhecimento, maneiras de afetar através da biografia, compreendendo-a um veículo
para o ensino dialógico com a história da arte. Diante deste cenário propomos a adaptação
de biografias com a finalidade de proporcionar o contanto lúdico da arte, utilizando a
possibilidade expressiva através da contação de estória e da oralidade.

Palavras-Chave: Contação de estória; História da Arte; Arte Educação; Abordagem


Triangular

Abstract

821
This article seeks to investigate the possibility of contextualizing the history of art through
the practice of storytelling, which is a sensitizing tool for basic education. As a
methodological path, we carried out a review of the literature and available works on the
topic of storytelling for art education aimed at elementary school. The authors who
investigate the contemporary scenario of art education, Ana Mae Barbosa (2008, 2010),
Newton Duarte (2001), and Gilka Girardello (2016) were selected. potential teaching tool, for
this purpose we used François Dosse (2009), Eliana Yunes (2016) and Fayga Ostrower (2014).
During searches between January and February 2022, on video platforms and virtual media,
such as YouTube and Instagram, animated biographies about contemporary artists were not
found, as for literary material, the collection was greater, but access was not it is affordable.
The results point to an approximation between the reflections of Barbosa (2008 and 2010),
Ostrower (2014) and Dosse (2009) when proposing, in their respective areas of knowledge,
ways to affect through biography, understanding it as a vehicle for dialogic teaching. with
the history of art. Given this scenario, we propose the adaptation of biographies in order to
provide the playful contact of art, using the expressive possibility through storytelling and
orality.

Keywords: Storytelling; Art History; Art Education; Triangular Approach

Introdução

O ensino da Arte proposto por Ana Mae Barbosa entre 1987 e 1993 é denominado
Abordagem Triangular, a qual originou-se das mudanças ocorridas no cenário
educacional nas décadas finais do século XX. Para a sistematização desta proposta,
Ana Mae Barbosa sofreu influências de Paulo Freire ao frequentar o curso
preparatório para professores primários no Instituto Capibaribe em Recife e
posteriormente nas práticas da Escolinha de Arte de São Paulo.

Baseando-se nestas experiências propõe-se uma prática contextualizada e reflexiva


das linguagens artísticas com potencial de produzir sentido no estudante. A Proposta
Triangular segundo Barbosa (2011) começou a ser sistematizada em 1983 no Festival
de Inverno de Campos de Jordão, em São Paulo e foi intensamente pesquisada
entre1987 e 1993 no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e
na Secretaria Municipal de Educação sob comando de Paulo Freire e Mário Cortela.
As propostas anteriores a Paulo Freire e Ana Mae Barbosa baseavam-se
essencialmente na expressão livre do aluno e as experiências acontecidas neste
período foram evidentemente significativas gerando visibilidade no contexto
educacional artístico, pois os alunos foram estimulados a expressão dos sentimentos
822
e emoções. No contexto atual ainda existe reminiscências enraizadas na visão arcaica
comum para o campo da Arte Educação, que relega o ensino da Arte Educação ao
simples valor recreativo.

Os desafios práticos enfrentados para que a Abordagem Triangular aconteça são


diversos. Destacamos, entre eles, a necessidade de formação continuada para os
educadores, a revisão de práticas educacionais, as dificuldades de acesso aos
materiais de apoio disponíveis para discentes e docentes, os quais são questões que
contribuem para que ainda seja comum práticas descentralizadas dos valores
reflexivos ou crítico-históricos. A Abordagem Triangular requer a constante
atualização docente, aliando os conhecimentos à necessidade de cada prática. Não é
um modelo fechado, mas uma ferramenta dialógica e eclética. Para a completude dos
eixos do triângulo: contextualizar; criar e apreciar é necessário a interconexão entre
os três. Neste artigo buscamos explorar a possibilidade da contação de estórias como
ferramenta para um dos pilares citados acima, a contextualização.

Na história da arte ocorre uma relação essencial entre conteúdo e linguagem. A


prática da criação tende a ser satisfatória para o estudante, mas a contextualização
e fruição tem seu valor diminuído diante de uma discussão frágil. Por isso necessitam
de abordagens lúdicas para as primeiras fases do ciclo básico, sendo necessário
sensibilizar as crianças respeitando e adequando os conteúdos, para que possam
desenvolver capacidades no estudante, com a finalidade de propiciar o diálogo entre
diversos aspectos culturais e sociais da história humana. De acordo com o
Referencial curricular nacional para a educação infantil (BRASIL, 1998) durante a
prática educativa diversos acontecimentos e questões se apresentam durante as
aulas, cabe ao educador orientar as reflexões, ainda que estas transcendam o
planejamento. As estórias lúdicas auxiliam esse cotidiano escolar, ao expor situações
complexas dos acontecimentos da vida de maneira poética para a criança.

Para contextualizar a arte contemporânea, o educador necessita do olhar atento e


preparado para trabalhar elementos e conceitos abstratos, a filosofia, o contexto
histórico e temas tabus. Deste modo, a prática alfabetizadora para a linguagem da
arte exige o contato da criança com o cenário atual, de modo que o estudante
desenvolva suas hipóteses e capacidades críticas pelo mundo que o rodeia, permeado
constantemente pelas mídias. Nesse universo saturado pela imagem, informações,

823
vídeos e interações é necessário pensar o uso das ferramentas tecnológicas e
midiáticas para o contexto da educação. São muitos os recursos que podem ser
explorados conforme a necessidade pedagógica. Vídeos, podcasts, plataformas
interativas, softwares, animações, produções audiovisuais e a gamificação, são
ferramentas e possibilidades de introduzir o universo lúdico necessário e
indispensável para sensibilizar a criança.

Existem fragilidades no trabalho com a história da arte em sala de aula pois a


tendência dos alunos é a de perceberem a arte como um universo distante,
dispensável e sem sentido, não gerando a mobilização esperada. É nesse momento
que se entende o potencial da narrativa como ferramenta geradora de sensibilidades
através da possibilidade de acessar o inconsciente criando conexões e
reconhecimentos. A contação de estória pode abranger diversas linguagens, desde o
teatro, o cinema e a literatura e mesmo que estas não estejam sempre presentes na
contação de estórias, estão atravessando os multimeios, despertando interesse e
encanto. O uso da contação de estórias aparelhada pelas linguagens do audiovisual
como forma de acrescentar emoções, não é recente. As linguagens narrativas têm
seu embrião conectado a esta prática ancestral. Novos tempos e novas tecnologias
pedem novos meios de contar, de aproximar e de impactar os olhos saturados, sem
menosprezar as formas clássicas, sempre portadoras de beleza e importância.

E por este motivo pretendemos aqui enaltecer a possibilidade do uso da contação de


estória como metodologia para o conhecimento das biografias de artistas presentes
no curso da história da arte. Ao narrar a história de vida dessas personalidades
sensibilizamos os discentes promovendo identificação e reflexão para um diálogo
que levará a contextualização de obras e artistas nas aulas que envolvam a História
da Arte.

Para a produção deste artigo, realizamos uma breve revisão da literatura buscando
propostas contemporâneas para o ensino da arte para alunos do primeiro ciclo do
ensino fundamental. Foi investigado na plataforma YouTube, no dia 24 de janeiro de
2022, produções sobre contações de estórias, produtos audiovisuais e materiais
narrativos desenvolvidos para o ensino da história da arte. No dia 22 de janeiro de
2022, na base de dados da plataforma do Google Acadêmico, pesquisamos termos ou
palavras-chaves, em português e inglês, a saber: Contação de Estória, Arte-

824
Educação, História da Arte e Contação de Estória, Storytelling, Storytelling and Art
Education, Art History, Art Education. Foram encontrados dez trabalhos, dos quais
selecionamos seis. As referências encontradas se mostraram essenciais para compor
a discussão. Com o recorte definido, selecionamos os autores que se mostraram
relevantes, dividindo-os em três assuntos para o artigo.

Na primeira secção abordamos o ideal contemporâneo para a arte-educação,


composto pela reflexão do pensamento de Ana Mae Barbosa. Na segunda seção
abordamos a biografia como ferramenta capaz de afetar o aluno e para o
desenvolvimento foram utilizados os conceitos de François Dosse, Fayga Ostrower e
Gilka Girardello. Na terceira parte propomos refletir sobre as origens da contação de
estórias e sua utilização na arte educação, abordamos os autores Walter Ong, Edil
Silva Costa e Ana Mae Barbosa.

A partir das considerações finais pretendemos pensar a potência narrativa que a


História da Arte carrega em suas personalidades e acontecimentos e a possibilidade
de transmissão através de contações de estórias lúdicas, capazes de afetar as
crianças nesse universo. Refletimos os caminhos históricos da prática da contação
oral e a relação com a literatura, reafirmamos seu caráter expressivo corporal e vocal
ao propor diálogo entre biografia, processo de sensibilização e apreensão da arte a
partir da interconexão com os multimeios.

Resultados e Discussão

Segundo Barbosa (2011) com a introdução da educação artística no currículo escolar


em 1970, a aula de arte se tornou um espaço de vazão dos sentimentos, considerando
o contexto brasileiro político da época. Com as mudanças ocorridas posteriormente
a dicotomia entre razão-emoção continuou sendo reproduzida. A partir da
concepção pós-moderna do ensino da arte, a arte não é mais concebida como uma
norma sistematizada ou unicamente expressão, mas sim um fato cultural. Sobre a
necessidade do ensino atual da arte na escola, a pesquisadora Barbosa, afirma:

A arte de hoje exige um leitor informado e um produtor consciente, a


falta de uma preparação de pessoal para entender arte antes de ensiná-
la é um problema crucial, nos levando muitas vezes a confundir
improvisação com criatividade. (BARBOSA, 2008 p. 15)
825
Com esta exigência aumenta a necessidade de uma exploração do mundo das
imagens provenientes da história da arte, estas muitas vezes geradoras de símbolos
do mundo contemporâneo que se revelam através de discursos e acontecimentos
históricos, carregando narrativas através de códigos. Um fator de mudança das
necessidades educacionais contemporâneas é a influência da cultura visual na
sociedade. Segundo Barbosa (2011) no caso dos estudantes, a presença do visual em
suas vidas está gerando uma distância abismal entre a capacidade do estudante e a
do próprio educador, ainda pouco habituado ao mundo da imagem.

A formação continuada para professores é um assunto recorrente e cada vez mais


urgente no atual cenário da sociedade da informação, pois é exigido do professor um
papel de interlocutor encarregado da tradução, mantendo a sensibilidade poética da
obra de arte. Outro fator para a concepção contemporânea do ensino da arte é a sua
interatuação com questões sociais e políticas, que não deve mais produzir um sujeito
passivo. Agora as linguagens híbridas se configuram em narrativas capazes de
abordar temas controvertidos ou que chamam atenção para aspectos presentes na
sociedade. Assim, a proposta de produções narrativas, acessíveis e que abordem
questões da arte, contribuem para o aluno e para o professor na condução de ambos
à informação, sem cair no campo da prática sem reflexão.

Durante as pesquisas foi observado relatos de experiências de profissionais


compostos por suas práticas realizadas em escolas. Dentre os relatos destacamos o
uso do teatro de animação, máscaras e objetos em oficinas e projetos escolares com
os mais diferentes objetivos, como apreciação estética, expressão pessoal do
estudante e a dramatização para exemplificar conteúdos de diversas áreas do
conhecimento. Sobre o interesse na construção de bonecos e experimentações
lúdicas, cabe considerar o que Amaral (2011) reata como algo significante para o
ensino, pois o uso do teatro de bonecos é uma ferramenta pedagógica utilizada por
professores mesmo antes da pedagogia da Escola Nova no século XX, responsável
pela defesa do ensino da arte como processo.

O uso do teatro explora possibilidades expressivas e narrativas para o aluno, podendo


a contação de estória estar presente voltada para a explanação histórica da arte a
partir de obras narrativas, em especial o utilizando o potencial das biografias. A
contação de estórias pode ser um meio catalisador nesta tarefa, pois seu acesso é

826
fácil e lúdico, sendo financeiramente acessível e utilizado ao mesmo tempo como
veículo para a prática artística. As explorações contemporâneas desta linguagem são
muitas, incluindo a própria intersecção com o vídeo e a tecnologia.

Acerca do poder gerador imagético da estória, o escritor Antonin Artaud (1974 apud
AMARAL, 2011, p.192) defende a força com que o teatro é empregado ao despertar
imagens do inconsciente humano e isso se deve principalmente as imagens visuais
que são geradas através das sensações. Assim a imagem comunica antes mesmo da
palavra. A palavra provém do pensamento e a imagem é parte do pensar, ao
verbalizar palavras, imagens são geradas sendo constante o jogo entre oralidade e
imaginação.

Esse mútuo estímulo entre narrativa verbal e imagética pode ajudar-


nos a refletir sobre os fenômenos contemporâneos ligados à criança e
a cultura. Que formas de educar, por exemplo podem tirar o maior
partido desse rico e múltiplo movimento da imaginação: da palavra à
imagem e de volta à palavra? Do ponto de vista da leitura e da narração
de histórias, como podemos aproveitar a onipresença da imagem
midiática na vida das crianças e dos jovens para enriquecer suas
experiências estéticas verbais? (GIRARDELLO, 2016 p. 536)

Tudo é estória. Do nascimento à partida de uma personagem, por exemplo, é possível


entender a sua trajetória, a partir da qual o ouvinte ou leitor se posicionam entre as
personagens, realocando os acontecimentos à sua própria jornada, acompanhando e
comparando as aventuras, inspirando e aprendendo através da simbiose entre
imagem, palavra e narrativa. O ser humano consome, deseja e reinventa narrativas
seja na oralidade das conversas cotidianas ou na exploração de games e aparatos
tecnológicos imersivos, nos quadrinhos ou no cinema é sempre a estória refazendo
a existência e vice-versa.

Desta maneira cabe dizer que toda narrativa é em algum momento bibliográfica pois
há sempre algo comumente compartilhado entre personagem e escritor-contador.
Dosse (2009) emprega a nomenclatura de gênero impuro e híbrido à biografia,
definindo o desafio do biógrafo como um montador de universos perdidos. Para o
autor, a expectativa do futuro é um dos fatores que determina o caráter romanesco
da história biografada. Entre as considerações acerca da tarefa de recriar um
universo, Dosse (2009) diz não ser prudente se abarrotar com o inútil, mas observar

827
como um artista os acontecimentos significativos da vida a ser recriada que muitas
vezes se encontram à margem.

Numa sociedade na qual o tempo é comprimido, se faz necessário questionar qual é


o espaço da contação de estórias na contemporaneidade e se ainda é possível afetar
os ouvintes na escola, local dedicado à troca e a socialização. Por isso é necessário
chamar a atenção de olhos apressados para envolver e conectar histórias com
estórias. E aqui se encaixa a potência da biografia, já que o ato de contar histórias
está entrelaçado ao início da história da humanidade desde o Homo Sapiens e o
constante desejo de compartilhar o que sabe e de aprender com o outro. Acerca
deste exemplo, Girardello (2016) tem em uma de suas práticas para crianças, a
transformação de enredos de filmes em contações de histórias. A pesquisadora
também relata a potencialidade de trazer para próximo dos jovens algum contexto
que seja de difícil acesso para eles, aproximando-os das sensibilidades
contemporâneas através dos enredos escolhidos:

O ato de contar histórias de filmes é uma forma de mídia-educação no


sentido de evocar uma leitura de filmes tenta a pormenores e de
apostar nos diálogos e trânsitos entre as linguagens contemporâneas,
as artes, as mídias e as formas artísticas. É um exercício de mediação
cultural no sentido que Jesús Martín-Barbero dá ao conceito, ou seja,
o de apropriação e recriação dos conteúdos das mídias por meio da
participação criadora no âmbito da recepção. (GIRARDELLO, 2016, p.
541)

Assim a prática da contação de histórias é entendida como uma ferramenta potente,


trazendo diversas linguagens à vida através da oralidade, podendo aproximar a
história da arte do estudante, de sensibilizar e aproximar personagens e vidas que
podem transformar, transmitir e produzir reflexões entre arte-sociedade-mídia.
Segundo Ostrower (2014) a sensibilidade é inerente à constituição do homem, não é,
ou não deveria ser, um privilégio dos artistas. São inúmeros graus de sensibilidades
e áreas diferentes que podem ser ativadas em determinadas situações, pois todo ser
humano é potencialmente sensível e segundo Ostrower (2014), a sensibilidade é um
fenômeno social e que quando há conexão com algum aspecto cultural, potencializa
a ação criadora.

828
As dificuldades encontradas neste sistema de ensino vigente, apesar das mudanças
ocorridas nas últimas décadas, fazem com que professores e gestores da educação
sejam questionados ao proporem o ensino de conteúdos sensíveis ou outras formas
expressivas, afinal e de forma irônica defende-se que o tempo é curto demais para
ser ocupado com a arte. E ainda, o lugar da vida social no qual atividades sensíveis
deveriam acontecer é na escola, onde o aluno passa grande parte de seu tempo
trocando experiências. No contexto escolar, o ato de contar uma estória cultiva o
aprendizado antes mesmo que se tenha consciência disso. Uma história bem contada
pode valer mais que mil tentativas de explicar um assunto.

O século XXI e o grande contato de crianças com uma variedade de filmes e


animações é um demonstrativo do poder desta prática imortal e ancestral. Refletir,
propor ou debater um assunto, após ter sido impactado por uma personagem que
também sente, atravessa aventuras e chega a um objetivo, é o mesmo caminho
esperado de uma boa aula. Um bom filme ou livro são aqueles que persistem mesmo
depois do seu fim, indo e voltando na memória, enquanto os acontecimentos
cotidianos se articulam a eles. É assim que se deseja que a aula aconteça.

Ao propor um ensino através do contato narrativo e teatral das biografias


presentes na história da arte, é possível observar o potencial deste gênero. Dosse
(2009), explora a grandiosidade de se narrar uma história que de fato existiu,
buscando nas entrelinhas de documentos e relatos os acontecimentos capazes de
suscitar emoções, relevâncias, diferenças e semelhanças com o receptor de tal
história. Por se tratar de um gênero que permeia os aspectos, características e
acontecimentos de personagens reais, Dosse (2009) emprega o adjetivo “gênero
difícil”, o qual deve ser balanceado entre a veracidade, a criatividade e a busca pelo
interessante, chegando ao reconhecimento de quem entra em contato.

Por sua ambição de ficar o mais perto possível da vida verdadeira, a


biografia é um gênero difícil: exigimos dela os escrúpulos da ciência e
os encantos da arte, a verdade sensível do romance e as mentiras
eruditas da história. (DOSSE, 2009, p.60)

Lejeune (2012) reflete sobre onde se situa o espaço biográfico e como ele se
desenvolve na modernidade e classifica essa esfera de produção como algo relevante
e necessário na sociedade. Defende que assim como outros gêneros literários, diários

829
e entrevistas a biografia tem seu lugar e a autora faz uma aproximação entre os
autorretratos nas artes visuais. Na história da Arte existem períodos que exigem
interpretações complexas e ao que se refere a artistas, vidas pessoais e
acontecimentos únicos merecem a atenção de contadores e de professores que
podem investigar e retirar da palavra escrita dos livros, a expressividade das
miudezas capazes de sensibilizar. Ao focalizar a arte contemporânea, existem
personalidades e linguagens passíveis de evocar reflexões sobre acontecimentos
atuais, priorizando a interpretação e criticidade lúdica sobre as necessidades sociais.
Assim como há nas entrelinhas de uma biografia, lugares escondidos que merecem
atenção. Girardello discorre a respeito:

Muito do que faz alguém narrar bem é a atenção às histórias potenciais


que pipocam, flutuam e se espreguiçam ao redor, além da vontade de
compartilhar os pequenos e grandes prazeres e as pequenas e grandes
emoções que aquilo provoca. É o desejo de ser um elo na corrente do
sentido e mistério que nos liga uns aos outros através da distância e do
tempo. (GIRARDELLO, 2016, p. 533)

De acordo com o Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (BRASIL,


1998), a linguagem oral e escrita são bases fundamentais para a educação infantil. O
referido documento afirma que estas linguagens devem promover experiências
significativas de aprendizagem, ampliando o modo de ver e construir o repertório no
mundo. Ainda segundo o mesmo documento, as crianças têm um grande potencial
para as explicitações verbais, desenvolvimento da fala e da capacidade simbólica, o
que contribui significativamente para seus recursos intelectuais.

Conta-se uma biografia a todo momento. Em qualquer estória há um sujeito,


o qual pode de fato ter existido ou não. O professor Walter Ong chama a cultura
escrita de Oralidade Secundária (ONG, 1998), pois toda informação escrita, mesmo a
eletrônica, provém de informações anteriormente faladas e a linguagem oral será
sempre o berço de qualquer história. Mas o fato é que a aquisição de uma linguagem
escrita culminou na imortalização da palavra, sendo esta potencializada e continuada
através da televisão, do rádio, computadores e demais mídias que vieram a seguir. As
narrativas tradicionais já não acontecem da mesma forma, como afirma Costa (2016).
As abordagens e necessidades são distintas, mas se mantém presente ao se adequar
aos novos multimeios e as problemáticas sociais atuais.

830
As narrativas tradicionais chegam até nós, crianças e adultos do século
XXI, não da mesma forma que chagaram aos antepassados. Mas,
embora as instituições de transmissão tenham se modificado, assim
como a sociedade e as relações pessoais, o papel social das narrativas
se mantém, adequando-se ao novo contexto (COSTA, 2016, p. 38).

Ao contar uma estória tal como ela foi no passado, sem retirar do seu núcleo fatos
comuns a todas as épocas e sentimentos humanos, existe a tendência de causar certa
incompreensão e afastamento por aquele que entra em contato, pois a narrativa
precisa do contexto para existir e do jogo simbólico para demonstrar sua ideia. A
imagem, quando observada nas aulas de História da Arte tem poder em si mesma,
mas relacionada às estórias e à acontecimentos dramatizados e expressivos, ela
envolve e surte efeito. A imagem-movimento aliada à narrativa tem potencial, como
profere Ong:

Os códigos, em última análise, precisam ser explicados por algo mais


do que desenhos, isto é, ou em palavras ou em um contexto
inteiramente humano, humanamente compreensível.) Um registro
escrito, no sentido de uma escrita genuína, tal como entendido aqui,
não consiste em meros desenhos, em representações de coisas, é a
representação de uma elocução, de palavras que alguém diz ou se
imagina que diz. (ONG, 1998, p.99)

De fato, o ensino da arte necessita incluir uma gama extensa de linguagens,


acompanhando as necessidades dos estudantes, como esclarece Lanier, “as artes
devem incluir muito mais que o óleo da moldura dourada e o mármore sobre o
pedestal dos museus” (LANIER, 1963 apud BARBOSA, 2011, p.84). A partir das diversas
mudanças sobre o ensino da arte ocorridas desde a década de 1960 nos Estados
Unidos, o mesmo caminhava para a defesa da prática educacional baseada na
concepção adequada da experiência, assim é necessário fornecer experiências que
ajudem a criança a refletir sobre arte. Quanto ao lugar de importância ocupado pela
história da arte no ensino, Barbosa ressalta:

A história da arte ajuda a criança a entender alguma coisa de tempo e


lugar, pelo quais todos os trabalhos artísticos se situam: nenhuma
forma de arte existe em um vácuo descontextualizado. (EISNER, 1988
apud BARBOSA, 2011, p.85)

831
Segundo Duarte (2001) existe a ilusão de que o conhecimento teórico não é essencial
dentro da complexa rede dos acontecimentos pós-modernos. No entanto, há de se
atentar ao cuidado de não matar a importância da história, apesar da complexidade
de suas redes, pois enquanto houver sociedade, existirá história. Barbosa (2010)
ressalta que muitas pessoas acreditam que o universo da arte abrange apenas a auto
expressão. Entretanto a autora ressalta que toda expressão é produtora de conteúdo,
já que para se expressar artisticamente, primeiramente é necessário expressar
alguma coisa.

A linguagem escrita e a aquisição dos seus diversos códigos são absolutamente


essenciais. É nela que reside a possibilidade de conhecer milhares de personagens
na história da arte e retirar dos enredos, aquilo que se reconhece em qualquer ser.
Existe muito desse universo a ser biografado, dramatizado e explorado a partir das
diversas mídias e tecnologias disponíveis. Como diz a pesquisadora Eliana Yunes ao
parafrasear Paulo Freire:

Os poderes da linguagem falada deveriam lembrar-nos de algumas


fraquezas da linguagem escrita. A esta falta expressividade primordial
da palavra falada. Sabemos todos que a passagem do oral ao escrito o
fixa e o conserva, dando-lhe certa estabilidade preciosa à história e à
própria literatura. No entanto, enfraquece a comunicação com uma
demanda de interpretação, que o texto tem para com a vida, com o
modo que nos toca. De algum modo era o que estava na Célebre visão
de Paulo Freire, pois o mundo do texto só faz sentido se lhe aportamos
algo do texto do mundo¹³. (YUNES, 2016, p. 296)

Não há novidade na apropriação por parte do cinema ou do teatro nas diversas


biografias de artistas, músicos e poetas. A biografia seduz o público, mas se defende
aqui a exploração aguçada desse universo da história da arte, a investigação da
personagem por detrás da obra, a obra e o contexto, aliando estória, artefato e
biografia. Considerando a vasta produção artística contemporânea é raro o olhar de
biógrafos e cineastas para esta área. Existem sim produções notáveis, mas em geral
desbravam nomes clássicos da Arte, sendo raro algumas destas pensadas ao público
infantil. O ensino da arte crítico-histórico tem muito a ganhar quando o olhar se
voltar para estas possibilidades narrativas do cenário artístico contemporâneo. Aqui
foi escolhida a técnica da contação de estórias como ferramenta para compor a

832
discussão e espera-se com isso levantar novos caminhos expressivos e tecnológicos
para que o aluno seja imerso nesse universo.

Considerações Finais

A proposta deste trabalho foi analisar a importância da contação de estória no


contexto da arte educação, ressaltando esta ferramenta como prática capaz de
explorar e contextualizar a história da arte nos aspectos: social, filosófico, estético e
artístico. A Abordagem Triangular como proposto por Ana Mae Barbosa, uma das
mais importantes bases da arte educação contemporânea, norteou a necessidade
desta discussão, levantando uma maneira de conduzir estudantes às possibilidades
da arte. Portanto, o pensamento de Ana Mae Barbosa (2011 e 2008), Ostrower (2014)
e Dosse (2009) se relacionam ao propor, em suas respectivas áreas de estudo,
maneiras de afetar através da contextualização necessária para a arte e sua prática,
observando a potência da biografia como veículo para o objetivo desta discussão.

O exemplo da pesquisadora Gilka Girardello e o longa de animação “Com amor Van


Gogh” de 2017 são experiências relacionadas a proposta deste artigo. No primeiro
caso, a pesquisadora defende a exploração de recontar filmes oralmente, levando em
consideração a fusão entre o que a criança assiste e como ela reconta o que foi
apreendido. A estratégia envolve trazer cenas e fatos inéditos junto da sua narrativa,
recebendo o significado especial de suas próprias expressões. A animação de 2017
inspirada na vida do pintor Van Gogh provoca êxtase naqueles que assistem,
convertendo o espectador ao labirinto pessoal do artista e do cenário político da
época. O caminho traçado e os resultados apontados pela pesquisa sugerem novos
experimentos para a explanação dos diversos contextos artísticos contemporâneos
e, de igual forma, ressaltou que a exploração da união de linguagens é pertinente e
relevante, o que possivelmente no futuro será analisado de modo empírico por
educadores.

Em suma é concebível traçar uma proposta em direção a união entre a História da


Arte e a contação de estórias, sobretudo se tomarmos como apoio a Abordagem
Triangular, conforme defendemos neste artigo.

833
Referências

BARBOSA, Ana Mae. Mudanças e Inquietações no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2008.
BARBOSA, Ana Mae. (org.) Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais.
São Paulo: Cortez, 2010.
BRASIL, Brasil. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil /Ministério da
Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. — Brasília: MEC/SEF, 1998
COSTA, Edil. O Contador de Histórias Tradicionais: Velhas e Novas Formas de Narrar. In:
MEDEIROS, Fabio; MORAES, Taiza (org.). Contação de Histórias: Tradição, Poéticas e
Interfaces. Ed. Sesc SP, 2016.
DOSSE, François. O Desafio Bibliográfico: Escrever Uma Vida. São Paulo: USP, 2009.
GIRARDELLO, Gilka. Recontar Filmes (e outros cenários do Encontro Narrativo). In:
MEDEIROS, Fabio; MORAES, Taiza (org.). Contação de Histórias: Tradição, Poéticas e
Interfaces. São Paulo: Sesc SP, 2016.
LEJEUNE, Philippe. O Pacto Autobiográfico. Paris: Seuil ,1975.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas, SP: Papirus, 1998.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: EditoraVozes,
2014.
TAHAN, Malba. A arte de ler e contar histórias. Rio de Janeiro: Conquista, 1961.
YUNES, Eliana. Contação de estória, oralidade, escrita e pensamento. In: MEDEIROS, Fabio;
MORAES, Taiza (org.). Contação de Histórias: Tradição, Poéticas e Interfaces. Ed. Sesc SP,
2016.

Mini Currículos

Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro


Pós-doutorado em Artes, pelo Instituto de Artes da UNESP/SP. Doutora em Comunicação e Semiótica
pela PUC/SP. Coordenadora do PPGMiT - Programa da Pós-graduação em Mídia e Tecnologia (MP.
Quadriênio 2021-2025), professora Doutora permanente da Faculdade de Arquitetura, Artes,
Comunicação e Design da UNESP/Bauru/SP. E-mail: regilene.sarzi@unesp.br

Luana Cristina Gonçalves Simões


Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, mestranda
no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia, na de Arquitetura, Artes e Comunicação
(FAAC/ UNESP – Câmpus Bauru). Atua como professora de arte na escola SESI, e na educação pública
da cidade de Bauru. E-mail: luana.goncalves@unesp.br

834
PRÁTICA DOCENTE E FORMAÇÃO DISCENTE:
ENVOLVENDO IMAGENS, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE VIDA

TEACHING PRACTICE AND STUDENT EDUCATION:


INVOLVING IMAGES, MEMORIES AND LIFE EXPERIENCES

Gustavo Chaves Machado


UFG, Brasil

Luiz Carlos Pinheiro Ferreira


UnB, Brasil

Resumo

O artigo apresenta recortes de experiências vivenciadas ao longo do primeiro semestre de


2022, com discentes do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Goiás, nas disciplinas de Educação e Artes Visuais e Educação e Cultura Corporal.
Nestas disciplinas, foram realizadas atividades nos espaços formais e espaços não formais,
com o intuito de articular ideias e inquietações acerca das possibilidades pedagógicas
envolvendo imagens em diferentes espaços de ensino e aprendizagem. Além da aproximação
e relação entre esses ambientes formativos, também fizeram parte das ementas das
disciplinas, os campos de estudo da pesquisa narrativa e da cultura visual, com o intuito de
salientar a importância das histórias de vida e da relação das imagens no processo formativo,
crítico e reflexivo de estudantes inseridos no campo da educação.

Palavras-chave: Prática docente, Formação discente, Memórias, Experiências

Abstract

This paper presents fragments of experiences lived during the first semester of 2022 with
Pedagogy students of the Faculty of Education of the Universidade Federal de Goiás, Brazil,
in the following subjects: Education and Visual Arts, and Education and Body Culture. In
them, activities were carried out in formal and non-formal spaces, in the aim of articulating
ideas and concerns about pedagogical possibilities involving images in differents teaching
and learning environments. In addition to the approximation and relationship between these
educational contexts, the fields of study of narrative research and visual culture were also
part of the summary of the subjects, in order to point out the importance of life stories and
the relationship of images in the educational, critical and reflexive process of students
inserted in the field of education.

Keywords: Teaching Practice, Student Education, Memories, Experiences

835
Observações iniciais

A partir de experiências de campo em um Curso de Pedagogia na Faculdade de


Educação da Universidade Federal de Goiás, este artigo apresenta o recorte que
expõe aproximações entre o campo da arte e o campo da educação, destacando
possibilidades pedagógicas na formação de sujeitos que vivenciam experiências na
formação docente, sejam por estágios ou na atuação efetiva em espaços escolares.
Nesse aspecto, também salientamos a importância de abrir diálogos com o tema
(en)volver do V Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual,
considerando o interesse na ocupação de diferentes espaços de ensino, nas ações
coletivas e na proclamação de outras e novas inquietações para a reflexão do
constante exercício de provocar sujeitos através da educação. Este exercício abre
espaço para considerar, de acordo com a proposta do seminário, que volver não quer
dizer necessariamente retroceder, voltar atrás, mas, sim, propor novas percepções a
partir de revisitações, que no caso da articulação entre o campo da arte e da
educação, requer (re)pensar práticas, memórias e fazeres na formação de sujeitos.

Essas observações foram possíveis, devido ao estudo e a participação da pesquisa


narrativa e da cultura visual como campos do conhecimento que aproximam
experiências de vida e imagens do cotidiano na formação de diferentes sujeitos, tanto
de discentes quanto docentes, principalmente com temáticas “[...] que envolvem a
formação de professores e os processos de desenvolvimento profissional” (AIMI E
MONTEIRO, 2020, p. 2). Ainda, de acordo com Paul Duncum (2011, p. 22), perspectivas
curriculares sobre arte, imagens do cotidiano e educação, deveriam “[...] basear-se
na natureza da cultura visual, especificamente nas experiências dos alunos relativas
a ela e integradas ao conhecimento do professor”. Por isso, vale ressaltar que o
interesse por esses campos de estudo esteve presente, de forma participativa, nas
ementas das próprias disciplinas de Educação e Artes Visuais e Educação e Cultura
Corporal1 e, principalmente, nos repertórios compartilhados pelo corpo discente.

1
As ementas das disciplinas podem ser encontradas pelo endereço eletrônico:
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/2/o/2018PPC_Pedagogia_%281%29.pdf?1518023839. (FE/UFG). Vale
ressaltar que a coordenação da área de artes da Faculdade de Educação foi solicita e abriu espaço para a discussão
e acréscimo de textos voltados para os campos da pesquisa narrativa e cultura visual.
836
Provocações a partir de imagens, memórias e experiências de vida

Destacamos que pontos como o ato de rememorar momentos da infância dos e das
estudantes do Curso de Pedagogia foram discutidos em sala de aula, considerando a
importância da trajetória de vida a partir da pesquisa narrativa, que “[...] anuncia-se
como uma possibilidade de entender e de compor sentidos sobre a experiência [...]”
(AIMI E MONTEIRO, 2020, p. 2-3). Além disso, também consideramos a relação das
imagens do cotidiano e imagens de arte que fizeram – e fazem – parte dos
respectivos repertórios de cada integrante, bem como, da figura docente, que
contribuíram nesses processos pedagógicos e dialógicos (DUNCUM, 2011) em sala de
aula de forma recorrente.

Quando destacamos, enquanto docentes, essa aproximação de aspectos


memorialísticos envolvendo ações, imagens e situações de períodos da infância,
buscamos direcionar inquietações sobre as trajetórias dos sujeitos inseridos no
Curso de Pedagogia, confrontando-os sobre como chegaram até essa graduação e
área de trabalho. Quando consideramos aproximar aspectos memorialísticos com
imagens e situações que configuram experiências de infância, pautamos nossa
percepção a partir dos estudos que transitaram por tais questões. Dessa forma, os
estudos de Ferreira (2017), ampliaram o entendimento, sobretudo, ao abordar o seu
percurso no campo da arte, onde

[...] essas lembranças permitem compreender o meu interesse pelo


campo das artes; e, também, significar com mais nitidez, tanto do
ponto de vista pessoal quanto profissional, minha relação com a arte,
com meu processo formativo e autoformativo (FERREIRA, 2017, p. 79).

Assim como foram partilhadas as referências de Ferreira (2017) que, por meio da
pesquisa narrativa, pôde observar com atenção determinados caminhos que o
fizeram chegar até o campo da arte, enfatizamos que essas mesmas escavações
acerca das lembranças da infância e adolescência, também foram provocadas em sala
de aula com estudantes do Curso de Pedagogia, pois

O fragmento narrativo acontece como algo que possibilita


compreender minha experiência associando-a às relações entre
presente e passado. Como um arqueólogo que escava os escombros
para encontrar resquícios, pedaços e fragmentos que possam,
837
metaforicamente, ajudar-me a reconstruir o edifício simbólico que
representa o sujeito (FERREIRA, 2017, p. 79).

Durante o processo de diálogo e estudos no primeiro semestre de 2022, o corpo


discente compartilhou lembranças que, até então, foram estipuladas como
importantes sobre situações de vida que contribuíram na construção e no caminho
para o campo da educação e docência. Desse modo, o processo narrativo, conduzido
pelos resquícios de experiências vivenciadas, nos permitiu pensar que “a narrativa
acentua a importância das lembranças, aguça a capacidade de reviver na memória
momentos relevantes, sobretudo para resgatar minúcias imprescindíveis ao
conhecimento de si” (FERREIRA, 2017, p. 79). Ou seja, observamos que em um dos
momentos da disciplina de Educação e Artes Visuais, foi articulado em sala de aula,
enquanto provocação docente, a discussão sobre narrativas autobiográficas a partir
de diversos objetos e artefatos visuais de ordem pessoal que estavam atrelados ao
sujeito docente. Após o intervalo da aula, depois da apresentação de fragmentos
teóricos, a turma de estudantes retornou para sala de aula, onde se surpreenderam
com a diversidade do conteúdo que estava sob a mesa (figura 1).

Figura 1. Registro de aula expositiva baseada na pesquisa narrativa. Acervo particular. 2022.

838
Na imagem existem dois momentos que envolvem aspectos provocados pela
pesquisa narrativa e, também, pela cultura visual. No lado esquerdo da imagem é
possível observar a mesa com cobertor estendido e diversos objetos e, ao lado
direito, uma estudante com duas bonecas Abayomi. No primeiro momento da
disciplina, como mencionamos anteriormente, discutimos em sala de aula aspectos
envolvendo percursos de vida e referências de diversos ambientes que
compreendem a formação de sujeitos pelas experiências narrativas e de imagens do
cotidiano. Foram apresentados objetos relacionados com a vida do sujeito docente,
objetos que fizeram parte das lembranças da infância, adolescência e da vida adulta
também. A turma de estudantes ao se deparar com a mesa e os objetos, fez o primeiro
contato por meio da visão e do tato. Durante o processo, foi possível escutar
comentários sobre diversos assuntos e lembranças advindas da própria turma.
Naquele momento, os discentes estavam vivenciando o exercício de rememorar
situações de suas respectivas vidas a partir dos objetos de outra pessoa. Um exercício
dialógico e responsivo entre os discentes, pois os objetos foram escolhidos
respeitando-se a particularidade de cada sujeito. Nesse contexto dialógico e
reflexivo, a turma de estudantes comentou o motivo das escolhas e o que cada objeto
despertava em termos de lembrança e afetividade, e como poderiam configurar
aquela discussão por um viés educativo. Observamos que, ao realizar esse exercício,
efetivamos uma forma de salientar a importância de encarar com atenção imagens
que envolvem os ambientes em que circulamos, os lugares que frequentamos e os
caminhos que percorremos, principalmente pela dimensão narrativa que “[...] é
apresentada como possibilidade de expor referências de como é a relação da imagem
que transita, estabelece diálogos e faz percursos em determinados contextos sociais
e campos do conhecimento” (MACHADO, 2021 p. 59). Por isso, também aproximo
algumas observações de Raimundo Martins (2012) para reiterar que essa inquietação
é presente em nosso cotidiano, pois vivemos em um mundo cercado por imagens que
estabelecem diferentes conteúdos tanto em espaços formais, não formais e
informais, assim, percebemos que

Professores e alunos estão diariamente expostos à cultura visual e,


como tal, são vulneráveis às imagens e objetos que os cercam.
Trabalhar pedagogicamente com essas imagens, temas e questões
ajuda a entender como e porque certas influências são construídas, e a
desenvolver uma compreensão crítica em relação às representações e
839
artefatos da cultura visual. Ajuda, sobretudo, a vivenciar e aprender um
sentido de discernimento e autocrítica (MARTINS, 2012, p. 288).

Após esse momento, foi pedido em sala de aula que cada estudante levasse no
encontro posterior, objetos que tivessem alguma relação com a trajetória de vida,
com algum momento do passado ou que representassem algum vínculo ou interesse
particular. Foi nesse exercício que uma das estudantes da turma apresentou em sala
de aula algumas bonecas Abayomi2 (figura 1) que ela mesma confeccionava,
geralmente em momentos oportunos e na ausência de atividades obrigatórias da
rotina diária. É possível verificar essa produção ao lado direito da imagem. No
exercício, a estudante relatou que essas bonecas representavam parte de sua
história, envolvendo o ambiente familiar e, em especial, destacando as mulheres
negras e a relação da maternidade, além da sensação de que despertavam resistência
e afeto.

Nesse sentido, como destaca Ferreira (2017), o uso da pesquisa narrativa foi
determinante para causar inquietações e aguçar lembranças que fizeram com que os
sujeitos se debatessem com seus próprios caminhos, aproximando recortes de suas
vidas, experiências escolares e situações pessoais que, assim, fizeram parte da
discussão em sala de aula e das reflexões para esse pensamento de escolha
acadêmica ganhar forma naquele instante. Assim, questões do tipo: “Como foi o
caminho que percorri até o Curso de Pedagogia?” e “Quais lembranças artísticas tenho
comigo e que fizeram parte da minha vida até aqui?” ganharam espaço entre as
discussões com o corpo discente e aproximam a ideia de que a pesquisa narrativa é
formada de “[...] histórias vividas e contadas” (CLANDININ E CONNELLY, 2011, p. 51).

Experiências corporais e pedagógicas através do brincar

Durante a disciplina de Educação e Cultura Corporal, as relações entre brincadeiras


e imagens do período da infância ganharam destaque com uma das turmas do Curso
de Pedagogia. Por meio dos pressupostos teóricos da pesquisa narrativa e da cultura
visual, embarcamos em uma viagem carregada de memórias afetivas envolvendo

2
Acesse o endereço eletrônico: https://www.agazeta.com.br/colunas/ziriguidum/artesa-revela-a-real-historia-das-
bonecas-abayomis-que-serao-tema-de-desfile-0322 e saiba mais informações.
840
momentos que fizeram parte da vida da turma de estudantes. A disciplina promoveu
discussões envolvendo o corpo e processos subjetivos, estabelecendo conexões com
a infância e ambientes formativos, bem como práticas direcionadas aos jogos, a
dança, ao teatro e a ginástica, por exemplo. Antes mesmo de iniciar o semestre letivo,
cogitei possíveis situações metodológicas para desenvolver com a turma. Inclusive,
a ideia de atuar em ambientes não formais foi recorrente, considerando que o
conceito de brincar seria um dos pontos centrais em sala de aula.

Assim, a temática proposta da disciplina percorreu discussões em sala de aula,


sempre com abordagens de aspecto teórico e prático. Dividida em duas etapas, o
primeiro momento da disciplina contemplava referências teóricas sobre o corpo,
espaços de ensino e aprendizagem e brincadeiras. O segundo momento contemplava
dinâmicas que tinham como pauta os movimentos corporais e brincadeiras de cunho
pedagógico, pois, de acordo com Tânia Fortuna (2013, p. 80), “como a brincadeira é,
por excelência, ação, devido à sua condição de atividade fundamental do ser, ela é,
também, por extensão, aprendizagem”. Dessa forma, bem como aconteceu com a
turma de Educação e Artes Visuais, na experiência com esses outros sujeitos,
também relacionamos leituras complementares da pesquisa narrativa e da cultura
visual com foco nas referências memorialísticas da infância e adolescência e de
imagens que contextualizavam aqueles momentos relatados pelos sujeitos em sala
de aula.

Ao longo do semestre, essas provocações sobre ações pedagógicas por meio de


brincadeiras foram ganhando cada vez mais espaço, com intensidade e compromisso
por parte do grupo discente, assim,

Mais do que ser um instrumento de aprendizagem, a brincadeira é


aprendizagem propriamente dita: ela não apenas contribui para a
construção das estruturas de conhecimento, ou, eventualmente, leva à
aprendizagem de conteúdos específicos; ela é, ela mesma,
aprendizagem, porque a ação é o que a define, e a ação é a unidade
mínima tanto do desenvolvimento, quanto da aprendizagem
(FORTUNA, 2013, p. 80-81).

Desse modo, foram elencados grupos em sala de aula, a partir de uma divisão
equilibrada e com o intuito de que cada um deles fosse responsável por organizar

841
uma ou mais brincadeiras nos dias pré-definidos e fora do espaço acadêmico (figura
2).

Figura 2. Encontro com discentes na Oficina Cultural Geppetto. Acervo particular. 2022.

Considerando o repertório adquirido através das leituras bibliográficas inseridas nas


ementas da disciplina e das dinâmicas que eram articuladas nos encontros na
Faculdade de Educação, os grupos deveriam retomar o exercício de aproximar a
infância da vida adulta por meio de brincadeiras e buscar sentidos de ensino e
aprendizagem com essas propostas. O local escolhido para a realização das
brincadeiras foi a Oficina Cultural Geppetto, no Setor Pedro Ludovico Teixeira, na
cidade de Goiânia – GO. Ao todo, foram seis grupos responsáveis por três encontros
nas sextas-feiras à noite, que aconteceram nas duas últimas semanas de julho e na
primeira semana de agosto de 2022.

A experiência de realizar brincadeiras, principalmente, fora do espaço formal da


Faculdade de Educação, provocou a turma de estudantes de diferentes modos.
Expectativas, entusiasmos e recordações foram parte de todo o processo, permeado
por ideias elaboradas com base nas leituras em sala e nas vivências do período da
infância. Brincadeiras como “vivo ou morto”, “estátua” e “batata quente” foram
realizadas, além de outras que ganharam novas possibilidades e adaptações para o
atual momento e o ambiente em que estávamos inseridos. Durante esses momentos,
vários comentários acerca das brincadeiras se aproximavam das lembranças de
Getúlio Chartier e Irene Tourinho (2008, p. 1096), que recordavam de “[...] como
muitas crianças se juntavam na calçada, excitadas e impacientes na expectativa da
tão esperada hora do dia em que iniciaríamos as brincadeiras”. Para essa turma de
pedagogia, a disciplina de Educação e Cultura Corporal nas sextas-feiras à noite foi,

842
assim, um momento de expectativa dessa tão esperada hora, que articulou
entrosamento, aprendizado, recordação e o brincar, sobretudo, como forma de
ludicidade.

Pesquisa narrativa e cultura visual: diálogos pedagógicos

De acordo com Martins (2012, p. 285), “[...] imagens são agentes de socialização ou,
dizendo de outra maneira, agentes sociais da educação”. Por isso, realizar ações de
discussão sobre as imagens do cotidiano e lembranças do período da infância em sala
de aula, foi algo importante para fomentar o exercício de pensar nas próprias
experiências pedagógicas do corpo discente, não apenas para a disciplina de artes,
mas também para outras áreas do conhecimento. Juntamente com fragmentos
teóricos, em especial, pela perspectiva da pesquisa narrativa e da cultura visual,
foram compartilhados exemplos sobre como eram as observações dessas turmas de
discentes, tanto da disciplina de Educação e Artes Visuais quanto de Educação e
Cultura Corporal, sobre o campo da arte, pois consideramos de acordo com Martins
(2012, p. 288), que

Na cultura visual, para trabalhar a formação de alunos não apenas


como uma iniciação, mas, principalmente, como processo de
conhecimento, é necessário criar vínculos com aspectos ou momentos
de vivências significativas que se constroem nas experiências vividas e
podem se refletir de maneira surpreendente no percurso educativo
dos estudantes.

Nesse contexto, por meio dos diálogos atrelados entre a cultura visual e a pesquisa
narrativa, foi possível realizar discussões acerca dos diferentes espaços para se
trabalhar com educação e artes visuais. Comentários, depoimentos e relatos dos mais
diferentes contextos foram expostos sobre o processo de atuação de imagens em
nossa sociedade e nos lugares em que os sujeitos das turmas do Curso de Pedagogia
se encontravam inseridos. Fazer o exercício de escuta frente as experiências do
corpo discente com diferentes imagens, como aconteceu nas visitas em espaços
expositivos, é uma forma, de acordo com Ferreira (2015, p. 232), de ter subsídios para
“[...] imbricar diálogos entre imagens da arte e outras visualidades”, considerando
interpretações e pontos de vista para que repertórios sejam ampliados e as

843
escavações de si também aconteçam para uma reflexão sobre processos formativos
(FERREIRA, 2015).

Nesse sentido, algumas abordagens com algumas indagações, inquietações e


observações aconteceram quando a turma de discentes esteve presente no Centro
Cultural da UFG, visitando a exposição do grupo Âmbar, “Com os pés plantados nas
nuvens” (figura 3).

Figura 3. Encontro com discentes no Centro Cultural da UFG. Acervo particular. 2022.

Durante a visita ao Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás, o contato com


a exposição permitiu que o grupo de estudantes compartilhasse consigo mesmo e
com a figura docente, algumas interpretações acerca das obras artísticas inseridas
na exposição. A partir dessas relações provocadas pelas imagens em um espaço de
arte, por meio das perspectivas da cultura visual, aproximo algumas contribuições
de Martins (2012, p. 287), pontuando que

Por esta razão, a cultura visual também pode ser entendida como um
modo de ver, perceber, pensar e dar sentido ao mundo. Deve ser
compreendida como uma abordagem que inclui todos os artefatos
visuais, formas e modos de pensar que frequentam e povoam nossa
percepção na vida cotidiana.

Na ocasião, essa turma de discentes foi recebida por parte do elenco artístico do
grupo Âmbar e puderam ter ideia de como aconteceram os procedimentos de
pesquisa e produção das obras expostas naquele momento. Ainda que essas

844
informações sobre o processo poético da exposição tenham sido compartilhadas
com os sujeitos discentes, isso não foi um impedimento para que outras ideias e
inquietações ganhassem forma pela relação espectador-obra (MARTINS, 2012).
Assim, as visualidades puderam ser apreendidas, pensadas e vistas por diferentes
ângulos, sentidos e percepções, de acordo com o modo de olhar de cada sujeito.

Mais uma vez, a participação tanto teórica quanto prática da pesquisa narrativa e da
cultura visual foram de suma importância nesse momento, pois, permitiram aos
estudantes diferentes olhares e percepções sobre si mesmos e sobre o mundo,
resultando que novos caminhos reflexivos fossem apresentados.

Considerações finais

Trazer referências do passado que fizeram parte da vida de sujeitos, sejam elas por
meio das lembranças, dos artefatos visuais ou na contação de histórias, mais do que
uma abertura ao diálogo, deve ser algo respeitado e direcionado nas diferentes fases
da trajetória escolar, principalmente, se levarmos em conta, a gama de imagens que
atuam em nossos cotidianos (DUNCUM, 2011) e provocam diversas interpretações e
influências nos processos de ensino e aprendizagem.

Além das mensagens televisivas e dos anúncios publicitários inseridos em outdoors


pelas vias públicas, a proliferação de imagens também é veiculada pelos aparelhos
smartphones de forma fugaz, pois “em nenhum outro momento da história da
humanidade foi possível comunicar-se instantaneamente com outras partes do
mundo mediante o apoio de imagens de alta resolução (DUNCUM, 2011 p. 17). Por isso,
essa abordagem metodológica vivenciada com os estudantes do Curso de Pedagogia,
culminou numa série de movimentos de viés arqueológico, estabelecendo conexões
afetivas e subjetivas relacionadas a infância (FERREIRA, 2017), seja por meio de
imagens de um desenho animado, de capas de revista ou de uma visita com a escola
em um espaço expositivo, por exemplo. A questão é que imagens, sejam de qual
contexto for, acompanham nossas trajetórias, bem como na formação acadêmica e
em outras áreas da nossa vida. Portanto, essas experiências com imagens e
lembranças desencadeiam sensações e relações das mais diferentes formas e
contribuem no processo formativo de diferentes sujeitos.

845
Referências

AIMI, Deusodete Rita da Silva; MONTEIRO, Filomena Maria de Arruda. Pesquisa narrativa:
reflexões sobre produções dos últimos 14 anos. Educação em perspectiva (online), Viçosa,
MG, v. 11, n. 00, 2020, p. 1-15. Disponível em:
<https://periodicos.ufv.br/educacaoemperspectiva/article/view/8403>. Acesso em:
Agosto de 2022.
CHARTIER, Getúlio Corrêa; TOURINHO, Irene. Corpo, memória e educação: diálogos entre
brincadeiras e subjetividades. In: 17º Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pesquisadores em Artes Plásticas, 2008, Florianópolis. Anais. Panorama da Pesquisa em
Artes Visuais. Florianópolis: ANPAP/UDESC, 2008. v. 2. p. 1094-1104.
CLANDININ, JEAN; CONNELLY, Michael. Pesquisa narrativa: experiências e história na
pesquisa qualitativa. Tradução: Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores,
ILEEL/UFU – Uberlândia: EDUFU, 2011.
DUNCUM, Paul. Por que a arte-educação precisa mudar e o que podemos fazer. In:
MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene (org.). Educação da cultura visual: conceitos e
contextos. Santa Maria: UFSM, 2011, p. 15-30.
FERREIRA, Luiz Carlos Pinheiro. Narrativas autobiográficas: entre lembranças,
experiências e artefatos. Revista brasileira de pesquisa (auto)biográfica, Salvador, v. 02, n.
04, p. 75-87, 2017.
FERREIRA, Luiz Carlos Pinheiro. Mo(vi)mentos autobiográficos: historiando fragmentos
narrativos de experiências de vida docente e discente em Artes Visuais. 2015. Tese
(Doutorado em Arte e Cultura Visual) – Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal
de Goiás, Goiânia, 2015.
FORTUNA, Tânia Ramos. Brincar é aprender. In: GIACOMONI, Marcello Paniz; PEREIRA,
Nilton Mullet (org.). Jogo e ensino de história. 1ª ed. Porto Alegre: Evangraf, 2013, p. 64-98.
MACHADO, Gustavo Chaves. A questão das imagens: aproximações entre publicidade,
artes visuais e cultura visual a partir de uma trajetória formativa-narrativa. 2021.
Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade de Brasília,
Brasília, 2021.
MARTINS, Raimundo. Rumos e rotas da imagem e da arte na educação. Instrumento:
revista em estudo e pesquisa em educação, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, jul./dez. 2012, p. 285-
291. Disponível em:
<https://periodicos.ufjf.br/index.php/revistainstrumento/article/view/18776/9886>.
Acesso em: março de 2021.

Mini Currículos

Gustavo Chaves Machado


Mestre em Artes Visuais (PPGAV/UnB). Especialista em História Cultural (FH/UFG). Graduado em
Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda (UniAraguaia) e graduado em

846
Licenciatura em Artes Visuais (FAV/UFG). Professor substituto no Curso de Pedagogia da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Goiás (FE/UFG). E-mail: gustavo_machado@ufg.br

Luiz Carlos Pinheiro Ferreira


Doutor em Arte e Cultura Visual (PPGACV/UFG), Mestre em Educação (PPGE/ UFF). Licenciado em
Educação Artística com Habilitação em História da Arte (UERJ). Professor Adjunto da UnB e
credenciado no PPGAV/UnB. E-mail: pinferreira@unb.br

847
EXPRESSÃO AUDIOVISUAL, DOCÊNCIA NO ENSINO MÉDIO E O TÉDIO DA

ESCRITA
AUDIOVISUAL EXPRESSION, HIGHSCHOOL TEACHING AND THE BOREDOM OF

WRITING

Renato Naves Prado


Universidade Federal de Goiás; Instituto Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Exercer a docência no ensino médio guarda semelhanças e diferenças em relação a outras


etapas do ensino formal. Dentre os desafios específicos está o comportamento de
adolescentes expostos ao mundo contemporâneo em que o ciberespaço é praticamente
ubíquo nas regiões em que se tem acesso à internet, o que gera certa concorrência pela
atenção das turmas. A linguagem audiovisual é um vernáculo da cultura digital e a escola
precisa ser um organismo contemporâneo, imersa na realidade social ao mesmo tempo em
que é uma ponte para o passado e as heranças culturais. À docência cabe o desafio constante
de renovar as práticas de sala de aula sem substituir o que já se sabe, sendo o domínio e o
interesse por linguagens populares como o audiovisual e outras, uma possibilidade de
exercício de didáticas contemporâneas. Este artigo propõe uma reflexão geral sobre o
exercício docente a partir da crítica à monotonia didática, do estado de inacabamento da
profissão, da necessidade e da coragem de ser contemporâneo e, em particular, da utilização
da linguagem audiovisual em sala de aula como veículo de expressão tal qual é a linguagem
escrita.

Palavras-chave: Docência; Linguagem Audiovisual; Didática; Ensino Médio; Ciberespaço.

Abstract

Highschool teaching in Brazil has similarities and differences to others stages of formal
education. One specific challenge is the behavior of teenagers that are exposed to the
contemporary world were the cyberspace is practically ubiquitous in regions that has
internet accesses, which leads to certain split attention problems in classrooms. Audiovisual
language is a digital culture vernacular and schools needs to be a living organism immersed
in social relations and, at the same time, a bridge to the past and cultural heritage. Teaching
must be up to the constant challenge of renovating classroom practices without replacing
what is already know, being the mastery and interest in popular languages such as
audiovisual and others, a possibility to practice contemporary didactics. This article

848
proposes a general reflection about teaching practice from the critic of didactic monotony,
state of incompleteness of the profession, the necessity of being contemporary and, in
particular, the usage of audiovisual language in classroom as an expression vehicle such as
writing language.

Keywords: Teaching; Audiovisual Language; Didactic; Highschool; Cyberspace.

No Instagram, pra seus fãs, fazem


Tik Tokers aos milhões, fazem
Façamos, vamos filmar.

No whatsapp, as avós, fazem


Na política com mentiras, fazem
Façamos, vamos filmar.

Prolixos e desajeitados, fazem


Sem treinamento adolescentes, fazem
Façamos, vamos filmar.

Qualquer dia, nesta vida ou algum outro plano etéreo, pagarei alguma penitência por
afirmar a tediosa condição da escrita. Logo eu que antes de qualquer outra
possibilidade profissional, ainda na infância, quis ser escritor. Devo esse impulso
infantil, em parte, ao exercício que a professora passou na terceira série. Nele,
teríamos que escrever uma história em dupla, num livro feito de folhas A4 dobradas
ao meio. O feitio do exercício me encheu de alegrias e pensei que seria muito bom
ser escritor. Minha mãe leu e disse que estava legal, mas que eu usava muitos “num”
ao invés de “em um”, como fiz propositalmente ali atrás, ao melhor espírito de
infância.

Essa tergiversação aparentemente errática não é obra do acaso. Aqui, rememorar


experiências escolares na condição de aluno e de docente é um método utilizado
para guiar a criatividade e a reivindicação que apresentarei mais adiante, com sorte,
de maneira a causar mais reflexões do que desafetos. Isso porque carrego ainda o

849
sentimento de que minha experiência escolar foi usurpada pela monótona rotina
predominante nos 12 anos de ensino básico. Não por acaso, na maior parte de minha
vida tive a certeza de que professor era uma profissão que não exerceria. Era uma
certeza bem forte.

A opção por uma linguagem que goze de alguma irreverência ácida é aqui uma
estratégia para propor a extirpação da chatice na escola, com a pretensão de, quem
sabe, atrair a atenção espontânea das pessoas amontoadas em salas de aula, não
porque elas sejam obrigadas a estarem ali, mas porque elas de fato enxergam alguma
interessância na experiência.

É assim que tentarei convencer a audiência desta singela comunicação de haver um


princípio da pedagogia da autonomia de Freire (2019) que não só libera mas
praticamente incentiva as aventuras metodológicas da didática docente.
Obviamente, não me cabe fazê-lo de maneira puramente caótica, visto que Saviani
(2012) nos recomenda ser parte do ofício docente a disponibilidade para ajudar o
alunado a passar de uma visão sincrética (caótica) do todo estudado a uma visão
sintética do assunto. Por isso, evidenciarei as aventuras em relação ao uso de
diferentes linguagens para enriquecer e tornar mais interessante a experiência da
sala de aula.

A fim de contar-lhes de maneira quase imperceptível que as conjunturas expostas


adiante provêm da tese em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em
Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob o título de
Audiovisual e Docência: base teórica e proposta metodológica, justifico que a
exemplificação se dará a partir do incentivo ao uso da linguagem audiovisual em sala
de aula. Aproveito para ressaltar que espero, no futuro, oferecer maior respaldo
metodológico e técnico a colegas docentes que optarem por essa aventura em
especial.

Técnico Integrado em Sinuca

A monotonia da escrita não é uma sentença automática de desprazer. Até por isso,
tento imprimir aqui um ritmo mais descontraído mesmo tendo plena consciência da
importância do seminário e, por consequência, do risco que corro em investir em tal

850
estilo. Acontece que, à exceção da escola primária, parece haver certa concepção de
que só um ambiente sério e austero é capaz de gerar conhecimento de verdade. Essa
percepção não advém de uma regra que esteja escrita nas políticas educacionais ou
nos Planos Pedagógicos de Curso, ela simplesmente vai se repetindo diante de
nossos olhos ao longo da vida acadêmica até parecer natural.

As bibliotecas, por exemplo, que considero como verdadeiros templos, se utilizam da


monotonia e do silêncio como estratégia de uso do espaço coletivo e funcionam
muito bem. Às vezes vou à biblioteca motivado tão somente pelo silêncio. Ali, quando
seus olhos encontrarem as letras nas páginas, haverá um nível de ruído amigável para
que seu cérebro ative sua imaginação a fim de criar e/ou decodificar toda sorte de
imagens, músicas, diálogos, ideias, conceitos, barulhos e sei lá mais o quê. E quando
você levanta um pouco a cabeça, se sente cúmplice de tantas outras pessoas que
entendem e apreciam a condição de silêncio e leitura.

Monotonia e seriedade são, no entanto, coisas diferentes. Ambas podem ser


estratégias válidas, mas a segunda é frequentemente mal interpretada como se sua
existência fosse antagônica à alegria. O problema para a educação só surge,
realmente, quando se vivencia tais condições em múltiplas aulas, umas encavaladas
nas outras, sobre temas diferentes e durante anos(!). É de se pensar se instituições –
lembrando que instituições são fundamentalmente aglomerados de pessoas – não
fazem parecer mais difícil do que deveria.

Retomemos a rememoração que nos interessa em particular. Cursei o ensino médio


em três escolas diferentes, quatro se contar que passei um dia em uma delas. Por
mais que soubesse da importância dos estudos e não tivesse problemas sociais que
me impedissem de estudar, não conseguia me interessar pela escola como me
interessava por outros tipos de relações sociais. Não chegava a me preocupar com
notas porque não enfrentava dificuldades de aprendizagens, desde que tentasse
aprender, ou seja, quando era preciso algum estudo para controlar a média escolar,
conseguia a contento. Outro dia olhei meu boletim escolar e vi como minhas notas
finais eram medíocres, à exceção de alguns assuntos mais interessantes que
naturalmente levantaram as notas de alguns bimestres. Como bom hipócrita, só
mostrei ao meu filho mais velho esse desempenho após ele ter concluído seu ensino

851
médio, estudando como nós lhe pedimos. Às vezes meus filhos tiram mais notas dez
na média em um semestre do que tirei em toda minha carreira estudantil.

O mais velho, por exemplo, cursou o curso técnico integrado em edificações. A filha
do meio cursa nesse momento o técnico integrado em áudio e vídeo. O mais novo,
se tudo der certo, também fará um curso técnico de sua preferência. Indico a eles o
curso técnico por dois motivos básicos, o primeiro porque achei a experiência do
curso regular extremamente desinteressante, e ainda acho, o segundo porque sou
docente na instituição de educação profissional e tecnológica e sei do potencial
dessa formação diversificada para a autonomia discente, independentemente se
optarão por uma profissão completamente diferente do curso técnico que fizeram.

À minha época, era mais interessante pensar nas partidas de sinuca que travaria mais
tarde com os amigos das escolas reunidas, um termo que inventei agora para
conceituar a reunião interescolar que fazíamos ali. Obviamente que a sinuca é um
dos vários vetores que nos agregavam, e também o que mais se encaixa para os
propósitos seriamente descontraídos dessa escrita. As questões relativas à sinuca
eram, às vezes, tão urgentes que eventualmente precisavam ser resolvidas no horário
da sala de aula, motivo pelo qual minha mãe teve que fazer visitas pedagógicas à
escola.

Credito, obviamente, à monotonia e à seriedade exacerbadas da escola o


desinteresse de minha parte já que, fora dali, era engajado em músicas sobre
contextos sociais e outras questões relativas a filosofia e sociedade. Não é exagero
dizer que aprendi de bom grado com artistas, ao passo que na escola aprendia porque
precisava estar lá. Mesmo sabendo que o estágio evolutivo do ser humano que
denominamos de adolescência tem suas particularidades, as pessoas vão para a
escola e, além disso, elas obviamente gostam de fazer coisas estimulantes, são dois
fatos distintos. Então, por que docentes não se desdobram para conseguir cativar
essa atenção energética? Será o medo de parecer menos sábios? Tentarei me
aprofundar nesses questionamentos mais adiante.

Aprender com a própria história pode não ser um método infalível. Nada garante que
um curso técnico será menos monótono, ou que algo que se faça vai necessariamente
conseguir a atenção engajada por prazer na sala de aula. O problema é não ter forças
para tentar, ou pior, escolher o mais fácil dos caminhos ao jogar toda

852
responsabilidade de desempenho para a turma. Depois os conselhos de classes
mostram que determinadas disciplinas têm um perfil parecido de desempenho
coletivo que vai de medíocre a péssimo, do 1º ao 3º ano, turma após turma, ano após
ano. Coincidência? Talvez.

A pergunta que coloco é: o que fará sua aula ter um nível de interesse que os
indivíduos de sua turma não precisarão contar os minutos para deixarem o recinto
em busca de algo que realmente lhes interesse? Permita uma síntese mais direta: o
que você fará para sua aula ser melhor do que uma partida de sinuca? Esse
questionamento precisa ser feito a si mesmo quotidianamente, em todo
planejamento de aula. Sim, porque a monotonia e a seriedade mal compreendida
sequestraram a experiência escolar e impuseram essa condição hostil de tédio em
200 dias letivos anuais, acrescidos dos dias que precisam ser dedicados a resolver
questões pedidas nos dias letivos, permitindo a alegria apenas no, não por acaso,
almejado respiro do intervalo do lanche, nos fins de semana e nas férias. E se nas
férias sentimos alguma falta da escola, normalmente estamos a pensar nas amizades,
nossas companheiras de situação estudantil.

A liberdade inacabada de Freire

Em Pedagogia da Autonomia, Freire (2019) nos coloca a importância inegociável de


respeitar os sujeitos – termo que o autor usa exaustivamente – da sala de aula e,
portanto, lecionar de maneira a sempre incluir a ética e o respeito à autonomia
discente. A autonomia falada pelo autor se refere à liberdade de aprender e de
expressar suas opiniões mesmo quando estas forem contrárias à maioria ou, no caso,
à autoridade pedagógica representada pela figura docente. Trata-se de combater
uma postura antiautoritária, que suprime o direito estudantil de pensar e
desenvolver suas ideias.

Freire (2019) diz que é importante que a figura docente tenha consciência – e é
precisamente esta palavra utilizada – de seu inacabamento. O estado inacabado se
refere à óbvia, porém aparentemente “esquecida” condição de não saber tudo, de não
dominar todos os conhecimentos sequer de sua área, e de estar em paz com essa
condição, já que é a condição natural. A docência tampouco, ainda segundo o autor,
necessita esconder suas opiniões e posições, bastando que as explique de maneira
853
respeitosa, a fim de construir um diálogo sincero com a sala de aula. Diálogo que,
diga-se de passagem, é uma das bases da relação pedagógica proposta por Freire ao
longo de suas obras.

Saber-se inacabado é algo extremamente libertador. Afinal de contas, porque haveria


você de temer dizer a expressão “não sei” em sala, estando na condição de docente?
E mais, porque hesitaria em pedir que a classe te ensinasse alguma coisa que você
desconhece e que ela já demonstrou proficiência? A insegurança do inacabado pode
se tornar sua força, basta estar seguro do que se sabe e desconfiado do que não se
sabe – já que por não saber, apenas desconfiamos.

Ao juntarmos diálogo e inacabamento, a relação educativa pode se tornar uma arena


de propostas de trabalho, de caminhos de aprendizagem, um ambiente estimulante.
Você sabe para onde precisa conduzir determinadas aprendizagens, mas não me diga
que acredita que haja apenas um caminho para se chegar lá! E se achar que é assim,
bom, talvez esteja na hora de tentar aprender com quem não sabe o caminho.

Poucas perguntas no ensino médio são mais clássicas do que “professor, quando vou
usar isso na minha vida?”. Já me vali dela na condição de estudante, já enfrentei ela
na condição de professor e já sofri com ela na condição de pai quando a prole tentou
mandar essa a fim de não fazer as tarefas escolares. Confesso que talvez seja uma
pergunta de resposta mais complicada para certas áreas do conhecimento, mas se
você que é docente não souber responder, bem, vale no mínimo uma reflexão do
porquê você dá aula disso.

Questionar a utilidade de uma disciplina ou conteúdo reflete tão somente a busca


por uma explicação lógica que justifique o sofrimento imposto. Nada mais natural,
convenhamos, provavelmente é uma pergunta advinda da profundeza de nosso
espírito. Lógico que a preguiça associada a atividades além-classe que ecoam na
cabeça adolescente têm sua parcela na causa, mas o sintoma maior é esse: o que eu
ganho com isso? Porque notas em si não são lá verdadeiros prêmios, eis aí uma ideia
colocada na nossa cabeça. Prêmio é algo de comer, de vestir, um lugar para nadar,
um livro, uma rede para deitar, sei lá, algo nesse estilo. Nota é nada mais do que uma
avaliação externa que pode nos servir como referência de autoavaliação.

Como docentes, no entanto, não podemos perder de vista nossos objetivos: conduzir
e avaliar a aprendizagem. Parece simples porque é simples. O que não é
854
necessariamente simples, é que precisamos fazer isso com pessoas e disso advém
toda sorte de sociabilidades diferentes. Há colegas que dizem “não estou aqui para
estimular ninguém” ou coisas do tipo, e não estão totalmente errados. A não ser, é
claro, que você seja uma pessoa que se importe com os resultados de seus cursos.

O que tento manifestar é que, embora cativar a atenção discente não seja um dever
docente, é quase impossível construir uma relação saudável e estimulante se não
houver respeito mútuo e diálogo em sala de aula. Só se consegue resultados através
do diálogo ou da coerção. O posicionamento desse texto é, obviamente, pelo diálogo.

Retomo a questão do inacabamento para expressar que a figura docente não precisa
recear se aventurar no universo contemporâneo de sua sala de aula para conseguir
compreender suas linguagens, seus jeitos e suas motivações. Você não precisa,
obviamente, mudar sua linguagem e seus modos, o que você precisa – com o perdão
da ênfase imperativa em precisar – é compreender e ser compreendido. É óbvio que
a classe compreende que você é diferente, de outra geração e etc., mas você também
já foi jovem e agora desempenha um papel específico. Dessa forma haverá
compreensão mútua e, em alguns casos, até admiração e empatia.

Aqui abro a porta das linguagens, relembrando o manifesto anti-monotonia já


exposto no primeiro tópico. Aventurar-se em diferentes maneiras de construir o
conhecimento pode ser uma das alternativas para a criação de didáticas dialógicas.
Afinal, o que queremos é que discentes aprendam e, para que avaliemos a
aprendizagem, precisamos que expressem o que compreenderam. A prova é uma
maneira de fazer isso, trabalho escrito é outra. Mas será que pode o conhecimento
ser expressado em forma de rap? Ou talvez em vídeo, teatro, fotos, pintura, blog,
intervenção?

A seguir nos aprofundaremos na utilização da linguagem audiovisual, mas deixo


evidenciado que o faço pela natureza da tese de doutorado que empreendo, com
esperança de que colegas se aventurem por quaisquer áreas de seus inacabamentos.

Do que eu falo quando falo de audiovisual em sala de aula

Há 20 anos, quando habitava o ensino médio quotidianamente, tive algumas


experiências audiovisuais. A mais interessante envolvia a peregrinação de uma

855
espécie de estante de metal, similar ao que seria um hack de sala de estar, com
rodinhas em seus quatro pés. A televisão, não maior do que 29 polegadas, no formato
4 por 3 (quase um quadrado), ficava numa posição mais alta para que toda turma
pudesse enxergá-la. Abaixo da TV havia um aparelho de VHS ou DVD, convivi com os
dois, e não havia nenhum aparato especial de som, apenas os amplificadores da
própria televisão. O mais incrível é que dificilmente, com toda essa tecnologia, um
docente solicitava o aparato para passar um material de curta duração. Pelo
contrário, a peregrinação do aparelho ficava bem demarcada porque acontecia por
dois ou três encontros seguidos, até que acabasse o filme de longa-metragem.

Vale ressaltar que muitas escolas, ainda em 2022, não dispõem de projetor, som e
afins, pelo contrário, há ainda muita precariedade material. A descrição, no entanto,
é para demarcar que nem todo avanço tecnológico representa diversificação
didática. Veja bem, não há nenhuma diferença, pedagogicamente falando, em se
passar um filme em VHS ou na mais nova tecnologia digital – a não ser que o
conteúdo seja sobre engenharias eletrônicas e/ou softwares que permitem a fruição
audiovisual. Se a questão é ver um conteúdo audiovisual e depois debatê-lo ou
contextualizá-lo historicamente ou começar algum outro tipo de dinâmica, pouco
importa a tecnologia utilizada.

A tentação de pensar que novas tecnologias substituirão velhas maneiras de se fazer


é próprio de um discurso que glorifica novidades, que não por acaso são altamente
lucrativas. É preciso reconhecer, sobretudo em termos educativos, que tecnologias
não ensinam por si só. Elas podem facilitar, desde que sejam dominadas pelas pessoas
envolvidas e estejam acessíveis, mas não são as tecnologias que conduzem a
aprendizagem, ainda mais quando pensamos na avaliação qualitativa processual.

Certa feita, numa aula de fotografia que dei em universidade, desenhei algumas
coisas no quadro e parti para a conversa com estudantes. Nada mais clássico e
obsoleto, alguém poderia pensar, certo? A questão é que eu observava que o comum
era que ao chegar em sala, apagavam-se as luzes e havia um diapositivo (slide)
conduzindo a aula. Era possível ver essas dinâmicas em outras aulas porque as salas
tinham janelinhas nas portas. Se você andasse pelo corredor às 19:10 – as aulas
começavam às 18:45 –, veria que quase todas as salas estavam com as luzes apagadas,
seguindo o mesmo padrão. Nesse dia as luzes ficaram bem acesas e nós manuseamos

856
câmeras, houve uma grande sabatina de perguntas após a explicação inicial. Ao final,
um discente manifestou que nem lembrava mais o que era uma aula sem slide e
agradeceu por ter dado uma aula das antigas, muitos colegas concordaram. A questão
então não era o estilo de aula em si, clássica ou inovadora, mas a quebra de um padrão
monótono e previsível.

Quando falo de linguagem audiovisual em sala de aula, falo de usá-la de maneiras


diferentes. Mais especificamente com a liberdade para qualquer integrante da sala
de aula fazer uso quando achar que aquilo que quer expressar será melhor colocado
através da linguagem audiovisual. Não estou me referindo, por exemplo, à lei 13.006
de 2014 que obriga duas horas de cinema nacional no ensino básico e nem estou
criticando sua eficácia. O que pretendo é trazer à tona que o audiovisual como
veículo de expressão permite, além da posição de audiência que nos acostumamos
desde a infância, a posição de realização. Realizar um vídeo envolve planejamento,
observação e escuta, além disso, pode envolver pesquisa, diálogo, síntese de
discurso, registro de processos e relato de resultados finais. Basta que haja
capacidade para conduzir o uso da dessa linguagem em sala de aula, já que a figura
docente é quem se encarrega de fazê-lo.

Produzir conteúdo audiovisual já foi algo complicado, que dependia de equipamentos


caros e pessoas com alto nível de especialização técnica. Hoje esse tipo de exigência
audiovisual só está nas grandes produções que envolvem orçamentos voluptuosos
ou em profissionais de mercado que vendem serviços de cobertura audiovisual.
Comunicar-se através da linguagem audiovisual é parte do quotidiano do quinhão da
civilização mundial que tem acesso a um smartphone e à internet.

À docência cabe dois caminhos óbvios, compreender um pouco mais do feitio de uma
peça audiovisual para contribuir mais profundamente com as conduções em sala de
aula ou, caso tenha mais interesse em outras linguagens, não restringir o uso da
linguagem audiovisual pelo alunado, uma vez que este já é íntimo do universo
audiovisual. O fazer é, obviamente, uma técnica pedagógica poderosíssima, e o
audiovisual permite realizar alguma coisa mesmo sobre os assuntos mais abstratos.

Soa determinista dizer que à docência só cabe dois caminhos. Mas em verdade, o que
coloco é que docentes não podem se limitar só à linguagem escrita e as maneiras
clássicas de dar aula. Não é um clamor de substituição de velhas maneiras e muito

857
menos de caracterizá-las como obsoletas. É, antes de mais nada, um clamor pela
diversificação. Que se aproveite os diferentes tipos de expressão, de inteligências, de
construção do conhecimento e de avaliação. Mesclar as metodologias sempre que
possível, saber conduzir uma sala de aula embaixo de uma árvore ou num laboratório
especializado. Tornar a educação interessante, surpreendente, e, quem sabe,
encontrar a universalidade numa abordagem vernacular. Ensinar sem esquecer de
onde vem, aonde está, com quem dialoga e como está o mundo.

Não é que eu goste de complicar as coisas, elas é que gostam de ser complicadas
comigo

Nosso tempo é amplamente afetado pelo princípio dos efeitos sociológicos de se ter
uma civilização, ou pelo menos uma parte considerável da população mundial, imersa
no ciberespaço. Mirzoeff (2016) nos alerta que embora já saibamos o que as ferrovias
e a invenção do cinema no século XIX fizeram ao mundo, estamos apenas começando
a tomar consciência dos impactos do ciberespaço.

O “mundo” das redes sociais na internet carrega uma carapaça de acesso gratuito,
de possibilidade interativas, de publicação e divulgação de conteúdos, de criação de
comunidades e de experiências compartilhadas que, em tese, nos levaria para frente
nas relações humanas. Embora as redes sociais digitais possam ter um pouco disso,
elas também são espaços privados de grandes empresas listadas em bolsas de
valores, submetidas à financeirização, cujo o modelo de negócio depende
diretamente da quantidade de tempo que cada usuário ativo dedica a suas entranhas
de conteúdos quase incalculáveis de proporções milenares (pelo menos em termos
quantitativos), dos anúncios e, de uma maneira geral, da quantidade de negócios que
a plataforma é capaz de gerar.

Não é catastrofista pensar que um dia, e é mais provável que seja uma questão de
quando isso irá acontecer do que se irá acontecer, uma das colossais redes que
conhecemos irá desaparecer levando consigo todas as memórias digitais ali contidas,
inclusive as suas que, uma vez ali, não são mais somente suas, de acordo com a
política de cada plataforma, que assinamos sem ler ao criarmos nossos perfis nelas.

Sabemos, em nossa coletividade, que a disputa pela verdade nunca foi tão ferrenha
quanto agora em que temos muito mais meios de saber o que se passa na cabeça das
858
pessoas em escala mundial. Se antes apenas pessoas “selecionadas” tinham suas
ideias e opiniões massivamente difundidas, agora a paisagem de conversações no
ciberespaço é muito mais caótica e imprevisível. Não nos cabe aqui o
aprofundamento nas questões de exame da verdade, mas é possível reconhecer que
existe certa desorientação sobre as questões globais e que é realmente difícil
distinguir o que é do que não é em breves e desatentas olhadas.

Tratar, portanto, a questão da utilização da linguagem audiovisual por docentes


colocando as facilidades tecnológicas contemporâneas como parte da justificativa
não é fechar os olhos para os alicerces da experiência no ciberespaço. É, na verdade,
uma tendência oposta. Agamben (2009) nos fala que é preciso coragem para ser
contemporâneo porque para sê-lo, é preciso olhar para as questões obscuras de seu
tempo, é preciso estar na contramão daquilo que é facilmente indicado como o
interesse global, é preciso desenvolver a crítica.

Apropriar-se da expressão em linguagem audiovisual é instrumentalizar-se, no


sentido de apropriação científica e cultural colocada por Saviani (2012) em sua
proposta pedagógica, do vernáculo utilizado pelas forças que dominam o mundo.
Articular-se através do discurso é a base da independência intelectual e crítica de
uma pessoa, pelo que se a figura docente – e assim voltamos para nossa questão
pedagógica em torno da figura docente – está a serviço de uma educação que
promova emancipação intelectual e crítica, é preciso tratar as questões
contemporâneas, inclusive das linguagens predominantes.

Compreender como um material audiovisual é confeccionado, compreender os


meandros de seu urdimento, saber o poder da edição de vídeo na associação de
imagens e sons para criação de sentidos é parte fundamental para a interpretação
dos abundantes conteúdos audiovisuais que lidamos todos os dias. Da mesma
maneira que sabemos das intencionalidades carregadas pelas palavras numa poesia
que diz “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” (Belchior, 1976), é preciso
que seja mais perceptível a intenção da(s) pessoa(s) responsável(is) por criações
audiovisuais. Interpretar as linguagens é, basicamente, a maneira como nós
enxergamos a própria realidade. Não estou a dizer que toda interpretação bem feita
levará a conclusões iguais. O que digo é que diagnóstico e prognóstico são duas
etapas diferentes para se tratar problemas. As discordâncias sobre o prognóstico

859
podem ter variações virtualmente infinitas e experimentais, mas sem um diagnóstico
preciso, os melhores prognósticos podem ser ineficazes ou pior, podem contribuir
para o agravamento do problema.

A linguagem audiovisual precisa passar a ser reconhecida como parte abundante na


sociedade e, por consequência, como componente importante na educação. Que as
pessoas irão interagir a partir da linguagem audiovisual, com ou sem reflexão crítica,
é um fato que observamos, questão a partir da qual pergunto: a escola deve contribuir
para essa sociabilidade a partir do audiovisual? Ou ainda: o que a escola tem a ganhar
com o reconhecimento da linguagem audiovisual como forma de expressão e
aprendizado?

Acredito que estas sejam questões relevantes em nosso horizonte. Mais do que
respondê-las de maneira aligeirada, convém mantê-las consigo, fazer experimentos,
notar as respostas das turmas, avaliar os ganhos e o desempenho daquele quinhão
da turma que parecia desinteressado, que tinha baixos rendimentos, que tinha baixa
autoestima. Fazer a parte do trabalho docente que tenta encontrar soluções, que
tenta estimular o prazer da aprendizagem e a formação de pessoas autodidatas,
capazes de refletir sobre suas individualidades e sobre suas coletividades.
Reconhecer-se como docente inacabado e seguir tentando aperfeiçoar os métodos
de ensino.

Considerações finais

Em que pese a indicação da linguagem escrita como alicerce de práticas pedagógicas


monótonas, pouco diversas e condutora de certos tipos de seriedades infrutíferas,
julguei mais importante salientar a eterna e quotidiana busca por aperfeiçoamento
didático que, acredito, deva fazer parte do exercício profissional da atividade
docente. Primeiro porque, como docentes, somos primeiramente aprendedores que
passaram à condição de ensinadores, e convém não esquecer que sem aprendizado
não há ensino. Segundo porque a cada nova turma, nossa distância etária em relação
ao alunado aumenta, estamos cada vez mais longe da juventude e de seu olhar para
o mundo mediado pelas novidades em geral que tendem a capturar sua atenção.

860
É imperioso sermos contemporâneos e, ao mesmo tempo, pontes para o passado. Tal
qual as civilizações que têm a sabedoria de reconhecer na condição anciã a metáfora
de uma biblioteca. Ignorar os vernáculos da contemporaneidade é se desinteressar
pelo universo das pessoas que constituem a sala de aula, local em que o interesse
precisa ser mútuo e a prática, dialógica.

O destino final do sistema educacional precisa ser relembrado constantemente:


contribuir para formação de pessoas com autonomia intelectual e capacidade crítica
em diversas áreas do conhecimento. Não se pode confundir a profissão docente com
a de adestramento de animais domésticos. Assumir o estado de inacabamento
docente, o diálogo com a sala de aula e os múltiplos universos subjetivos que ali
habitam, pode e deve ser o ponto de partida do percurso pedagógico que levará a
aprendizagem na medida que aumenta o interesse de discentes em aprender.

Para o uso da linguagem audiovisual em sala de aula, é preciso encarar que as


possibilidades didáticas são muito mais abundantes se a considerarmos como veículo
de expressão, de documentação, de elaboração, em suma, como suporte para o fazer
pedagógico. A escola tem mais a ganhar se aproximando do mundo do que se
distanciando dele. O audiovisual é vernacular no ciberespaço e esta condição já é
justificativa suficiente para sua presença ativa e crítica nas instituições de ensino.
Local em que a figura docente exerce um papel fundamental.

Referências

AGANBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
Brasil. Lei Nº 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8º ao art. 26 da Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13006.htm
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de
Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.
MIRZOEFF, Nicholas. How to See The World: an introduction to images, from self-portraits
to selfies, maps to movies, and more. Nova Iorque, EUA: Basic Books, 2016. (E-book)
SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.
Sujeito de Sorte. Compositor: Belchior. Álbum: Alucinação; Phonogram – LP/CD/K7, 1976.

861
Mini Currículo

Renato Naves Prado


Mestre em Comunicação, Arte e Cultura; doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG; Docente no
Instituto Federal de Goiás; Especialista em Educação a Distância; Graduado em Fotografia. E-mail:
rnprado@gmail.com

862
JOSAFÁ DUARTE E CURSO UQ+DOC: EPISTEMOLOGIA PARA UM
CINEMA POPULAR

JOSAFÁ DUARTE AND UQ+DOC COURSE: EPISTEMOLOGY FOR A POPULAR


FILMMAKING

Paulo Passos de Oliveira


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Resumo

Este artigo tem duplo objetivo: 1) Fundamentar o estudo sobre o cinema popular de Josafá
Duarte, morador de Forquilha, zona norte do estado do Ceará, Brasil. 2) Oportunizar a
interlocução desse trabalho no Ceará com ação de Extensão da Universidade das Quebradas
(UQ), realizada no Rio de Janeiro, que visa ao intercâmbio de saberes e práticas. Um dos
elementos que define o cinema popular é a estrutura em grupo colaborativo – equipe de
trabalho orientadas pelo regime de solidariedade. Parte-se do pressuposto de que, no
interior do grupo colaborativo de Josafá Duarte – o Cinecordel – há uma dinâmica de ensino
e de aprendizagem, definida com o conceito aprenderensinar, no escopo das Pedagogias
Culturais – área transdisciplinar para pensar as práticas culturais como oportunidades
educativas. Pretende-se, portanto, investigar como a produção de cinema popular, feita pelo
colaborativo de Duarte, promove formas de aprendizado que são, em parte, autodidata e,
ainda, grupodidata – conceito que marca a construção dos saberes cooperados, no interior
ou no trânsito entre grupos. A atividade de extensão realizada no seio da UQ, em parceria
com o Museu de Arte do Rio (MAR), é feita a partir do curso chamado UQ+DOC, ministrado
para moradores de comunidades periféricas, que toma como base as referências observadas
nos trabalhos do cineasta cearense. Com duração de 60h, o curso gratuito tem 11 alunos,
todos maiores de 18 anos, e ensina noções de realização de documentários. O curso
proporciona a produção de filmes feitos com baixos recursos, visando à inclusão social, à
democratização do conhecimento, e à ampliação do cinema popular. Os filmes resultantes
serão apresentados em mostra a ser realizada no MAR.

Palavras-chave: Josafá Duarte, Cinecordel, Grupodidata, Extensão Universitária

Abstract

This article has two aims: 1) To be the basis for the study of popular filmmaking of Josafá
Duarte, who live in Forquilha, northern state of Ceará, in Brazil. 2) To make a dialogue
possible between this work to be carried out in Ceará and an extension action by the
Universidade das Quebradas (UQ), Rio de Janeiro, which aims to interchange of knowledge
863
and practices. One of the defining elements of popular filmmaking is the structure of
collaborative group – work team guided by the solidarity regime. It is based on the
assumption that, within the group of Josafá Duarte - Cinecordel -, there are teaching and
learning dynamics defined in the learnteach concept (aprenderensinar), within the scope of
Cultural Pedagogies (Pedagogias Culturais) - a transdisciplinary area in which cultural
practices are seen as educational opportunities. We therefore intend to look into how the
production of popular cinema, made by Duarte's collabs, promote learning forms that are
partially self-taught or even group-taught (grupodidata) - a concept that marks the
construction of cooperative knowledge, either within or among groups. The extension
activity carried out at the UQ, in a partnership with the Museu de Arte do Rio (MAR), will
start with a course named UQ+DOC, offered living in poor communities and based on
references seen in Duarte’s works. The free-of-charge 60-hour course offer 11 spots for
people aged 18 and over who want to learn documentary-making notions. It will make it
possible to produce low-budget movies, with an aim at social inclusion, democratization of
knowledge, and dissemination of popular filmmaking. The resulting movies will be aired on
an exhibition at MAR.

Keywords: Josafá Duarte, Cinecordel, Group-Taught, Extension Action

Introdução

Este trabalho parte da narrativa de vida de Josafá Duarte, 62 anos (completados em


2022), líder comunitário e pequeno agricultor, produtor cultural e cineasta, que vive
no pequeno distrito de Salgado dos Mendes, no município de Forquilha, na zona
norte do Estado do Ceará, região Nordeste do Brasil. Ele aprendeu a fazer cinema
com um propósito original: conscientizar politicamente sua população com relação
aos seus direitos e deveres como cidadãos políticos. O ato de fazer cinema é
vinculado à sua biografia.

Aos 17 anos, migrou com seus pais e irmãos para a “Baixa da Jumenta”, comunidade
pobre localizada na região da Parangaba, em Fortaleza, capital do Estado. Ao longo
dos anos, foi desenvolvendo atividades sociais: fundou associação de moradores,
criou grupo de teatro, organizou mutirões... a liderança política o aproximou do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)1, onde passou a militar. Em

1
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) é um movimento social que começou suas atividades no
Brasil, nos anos 80 do séc. XX. Este grupo questionava o modelo de reforma agrária imposto pelo governo militar
864
1997, diante da difícil realidade socioinstrumental da população do lugar em que vivia,
cadastrou 40 famílias e, com o apoio do MST, ocuparam a Fazenda Lagoa Grande,
latifúndio improdutivo localizado no município de Pentecoste, a 90 km de Fortaleza.
O objetivo era conseguir desapropriar a área e relocar as famílias cadastradas,
fazendo valer a reforma agrária2. No entanto, problemas com antigos moradores do
latifúndio fizeram ele optar por retornar ao seu distrito de origem. O ano era 2002.

De volta a Salgado dos Mendes, em 2006, a militância política de Duarte o levou a


produzir filmes, com o objetivo de “conscientizar politicamente” os moradores de
sua comunidade. Mesmo sem conhecimento técnico sobre o “fazer” cinematográfico,
o líder social encontrou nos filmes os veículos ideais para transmitir suas ideias sobre
cidadania.

Com maior acesso a ferramentas de gravação e de edição de audiovisual, e com a


ascensão das plataformas de hospedagem de vídeos, inúmeros autores podem
realizar, em grupo, seus filmes e contar as suas histórias. Muitos estudiosos do
audiovisual vêm produzindo pesquisas sobre estes fazedores de cinema, suas obras
e seus contextos de produção e de difusão. Os livros Catadores de sucata da indústria
cultural (MARTINS, 2013) e Outros fazedores de cinema: narrativas para uma poética
da solidariedade (MARTINS, 2019), ambos de Alice Fátima Martins, são apenas dois
exemplos de publicações. Este artigo deriva e avança sobre a minha tese de
doutorado Josafá Duarte e o Cinecordel: O Cineasta Cabra da Peste Contra o Dragão
de Roliúdi, (OLIVEIRA, 2019), defendida no Programa de Pós-Graduação em Arte e
Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (PPGACV/UFG).

Acredito que os mecanismos de produção do cinema de Josafá Duarte oferecem


importante subsídio para desenvolver ferramentas para o ensino sobre cinema.
Quando do meu ingresso no pós-doutorado (realizado no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia em parceria com o Programa Avançado de

(1964-1985), que priorizava o processo de “colonização” de terras devolutas em regiões inóspitas, relegando famílias
inteiras à própria sorte, e que, muitas vezes, se estabeleciam em terras impróprias para o cultivo.
2
A reforma agrária abrange a totalidade das medidas que têm como função distribuir de forma mais justa a terra, a
partir da estruturação da posse e uso, para atender aos princípios de justiça social e permitir a agricultura familiar
ou cooperada. As terras destinadas à reforma agrária são as improdutivas (latifúndios privados que não alcançam o
grau de produtividade exigido por lei) e as devolutas (terras públicas sem nenhuma destinação específica). Hoje, o
MST luta para que a reforma agrária seja cumprida como previsto no artigo 184 e seguintes da Constituição Federal.
865
Cultura Contemporânea, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro), busquei
aprofundar conceitos basilares da pesquisa de doutorado, com o objetivo de levar
para sala de aula o que aprendi com o cineasta cearense.

Inserido no bojo da cultura, o cinema popular (termo utilizado por Josafá para definir
os seus filmes) surge como possibilidade de discutir a sua força como prática
pedagógica. Parto dos conceitos aprenderensinar e grupodidatismo – no âmbito das
Pedagogias Culturais –, baseados na pesquisa de doutorado, para o desenvolvimento
da pesquisa de pós-doutorado, que desaguou no curso/oficina UQ+DOC. Esta
experiência está sendo desenvolvida através do programa de extensão Laboratório
de Tecnologias Sociais Universidade das Quebradas (UQ):

programa de pesquisa e extensão que desenvolve metodologias de


troca de conhecimentos entre artistas, ativistas, produtores culturais
das periferias externos à universidade e pesquisadores, professores e
alunos da e externos a UFRJ (“Universidade das Quebradas”, [S.d.]).

O curso UQ+DOC proporciona debate na dinâmica pedagógica sobre a utilização de


articulações culturais inovadoras, e visa à ensinar noções de iniciação ao
documentário. Tenho buscado construir, desde abril de 2022, um curso-experiência,
um curso-troca, com 11 alunas e alunos, todos moradores de comunidades
periféricas e de favelas do Rio de Janeiro.

O Museu de Arte do Rio, locus onde é ministrado o curso, é uma entidade parceira da
Universidade das Quebradas. O MAR abrigará a mostra com os filmes resultantes do
UQ+DOC.

Este artigo cumpre um duplo objetivo: 1) apresentar a vida e a obra de Josafá Duarte,
bem como os conceitos que delas derivam, e que geraram o curso no Rio de Janeiro;
2) expor os resultados parciais do curso UQ+DOC, que está em fase de produção dos
filmes.

O cineasta do sertão: vida e obra

O cinema de Josafá Duarte resulta de sua atividade política. E o momento de virada


como líder social está vinculado à ocupação da Fazenda Lagoa Grande, em 1997. Não
foi uma tarefa fácil. Josafá era mediador dos conflitos que surgiam. No entanto, as

866
relações com as famílias assentadas eram mais fáceis do que as tensões que se
desenvolveram com antigos funcionários da fazenda. A ocupação não foi aceita por
antigos capatazes do lugar. Os problemas aumentaram com a mistura do gado bovino
dos ex-empregados com o rebanho dos novos moradores, obtido com financiamento
do Incra3. Como represália, Duarte foi ameaçado de morte. Ele morava no
assentamento Lagoa Grande havia cinco anos. Lá, construiu sua casa, e colaborou
para o desenvolvimento do lugar: fundou escola, ajudou a construir casas em regime
de mutirão, dentre outras atividades. Depois de ficar sob guarda da Polícia Federal
por 10 dias, ele decidiu que deveria voltar para Salgado dos Mendes, distrito onde
nasceu.

Ao retornar à terra natal, em 2002, optou por se manter distante da liderança


comunitária. Assim permaneceu por mais quatro anos. No entanto, diante dos
desmandos da política local, e da compra de votos, decidiu ajudar sua comunidade.
Em 2006 fundou um jornal feito em casa: o Sociedade Salgadense. Neste veículo
(feito em um computador caseiro, quase sem apoio financeiro), expunha as
demandas da população salgadense, cobrava ações governamentais e denunciava
desmandos dos políticos locais. O impresso chegou a repercutir junto à Prefeitura
Municipal e à Câmara Municipal de Forquilha. No entanto, o autor do jornal se
deparou com um problema social: grande parte da população adulta de sua região
era analfabeta, portanto, não tinha acesso às informações escritas no veículo. Foi
então que Josafá decidiu fazer filmes:

Aí eu comecei a fazer o cinema, que eu vi que era algo que podia atingir
mais e ir mais longe [...] E é isso que eu tenho feito até hoje. Lutar pra
que a comunidade melhore, pra que fique mais politizada não só no
meu distrito, mas no meu município, e através do cinema eu tenho
visto que isso está acontecendo [...] Tanto a gente ajuda o eleitor
quanto o político. No final, a gente sai ajudando a gente mesmo pra que
as coisas tendem melhorar (DUARTE, J., 2013).

3
Incra é a sigla do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, autarquia federal criada para executar a
reforma agrária e permitir o ordenamento fundiário. Dentre suas principais ações, o órgão monitora conflitos
agrários, promove educação no campo, consolida assentamentos rurais, e indeniza territórios quilombolas. Segundo
o MST, atualmente, o Governo Federal, sob a gestão Bolsonaro, não tem se dedicado à reforma agrária, e o número
de famílias acampadas aguardando a regularização fundiária cresceu de 80 mil para 90 mil em um ano (PUPO, 2022).
867
Seu primeiro filme, A história de um galo assado (2006), foi realizado com uma câmera
VHS emprestada, e decupado “na ordem que se filma”. Ele não tinha, ainda, noções
de edição. Esta obra marcou a formação de seu grupo colaborativo, o Cinecordel. O
título do grupo une as palavras “cinema” e “cordel”, forma de literatura popular de
origem portuguesa, muito presente na região Nordeste do Brasil. Este nome
homenageia, ainda, o pai do diretor, que, aos 91 anos, também é cordelista.

A comunidade passou a se envolver com os trabalhos do diretor: um companheiro


manipula a câmera, uma prima cuida da maquiagem, a esposa prepara o café, e quase
todos atuam na frente das câmeras. Segundo o cineasta, cerca de 150 pessoas, do
total de 500 moradores de Salgado dos Mendes (“IBGE”, 2010), já teriam participado
dos filmes do produtor (“Plenário”, 2015). Todos os colaboradores exercem suas
funções como voluntários, sem receber nenhum ganho financeiro. Os custos de
produção – que se resumem a um lanche, ou ao combustível que abastece o veículo
do diretor, usado para o transporte da equipe – normalmente, são cobertos por
Duarte, que não costuma receber patrocínios relevantes.

Depois de editados por Josafá, os filmes são postados no canal do cineasta no


YouTube, onde obtêm grande número de visualizações. Em entrevista realizada em
2017, a esposa Noélia Duarte (sua maior apoiadora na empreitada cinematográfica),
informou que Josafá Duarte havia recebido 100 dólares, convertidos para reais,
depois que Por debaixo dos panos (2010), seu filme mais famoso, atingiu 100 mil
visualizações (DUARTE, N., 2017).

O cinema do realizador forquilhense é majoritariamente constituído por comédias,


que obedecem a estruturação da narrativa clássica: histórias lineares, contadas em
curtas, médias e longas-metragens, coloridas, com eventos constituídos em ordem
cronológica, sem flashbacks. As tramas possuem personagens bem demarcados,
definidos numa perspectiva binária, entre “bons” e “maus”, decentes e corruptos,
protagonistas e antagonistas, sem espaço para contestações, dúvidas ou
contradições. As histórias convergem para um final, onde, quase sempre, o político
corrupto é preso, e o cidadão comum acaba vencendo.

O trabalho realizado pelo cineasta cearense rendeu frutos. Hoje, com mais de 40
produções realizadas, Josafá viu crescerem ao seu redor outros cineastas: Ronaldo
Roger, Aureliano Shekinah, Paulo Talento, Djalma Prado, e o jovem Carlim, são

868
exemplos de realizadores que fizeram – ou ainda fazem – parte do Cinecordel, e hoje
possuem seus próprios grupos colaborativos.

Os dos cineastas de Forquilha ganharam notoriedade. Equipes de reportagem da TV


Cidade – afiliada da Rede Record (ROGER, 2013) – e repórteres da TV Verdes Mares
– afiliada da Rede Globo (“Bom Dia Ceará | Cineasta faz com que Forquilha seja
reconhecida como capital do cinema popular cearense | Globoplay”, 2018) –
veicularam reportagens com o cineasta do sertão. Filmes do diretor de Salgado dos
Mendes foram exibidos em TVs locais.

Depois de 11 anos produzindo cinema, o reconhecimento público foi, em parte,


alcançado: No dia 21 de junho de 2017, o Diário Oficial do Estado do Ceará trouxe a
sanção do então governador Camilo Santana (PT) à lei 16.266, de 20 de junho de 2017,
de autoria do deputado estadual Moisés Braz (PT), que atribui a Forquilha o caráter
de “Capital Cearense do Cinema Popular” (BRAZ, 2017). No entanto, ainda hoje os
cineastas forquilhenses não recebem nenhum tipo de apoio, incentivo ou premiação
dos governos estadual ou municipal para desenvolverem ou exibirem seus filmes.

O curso UQ+DOC

Os filmes produzidos por Josafá Duarte trazem consigo relevantes informações


culturais: sotaques dos personagens, expressões idiomáticas, paisagens reveladas,
regionalismos etc., independente do gênero cinematográfico – comédia, drama etc.
– em que são veiculadas. Para além, revelam soluções criativas e criadoras de
produção, diante do parco orçamento e da limitação de equipamentos, e permitem
ampliar a coesão do grupo.

Inserido no bojo da cultura, o cinema popular surge como possibilidade de discutir a


sua força como prática pedagógica. Forma de comunicação, agrega em todo o seu
processo elementos de aprendizagem, que são desenvolvidos pelos agentes que o
compõe: criação, produção e circulação. Em cada etapa é possível desenvolver um
processo pedagógico. O aprendizado não se circunscreve exclusivamente ao
conteúdo dos filmes prontos e enunciados. Ele acontece, antes de tudo, nos sujeitos
que produzem os filmes, e nas relações que configuram internamente no grupo
colaborativo.

869
Investigar a prática cinematográfica de Josafá Duarte me levou ao encontro da
proposta de trabalho desenvolvida no interior do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia (PPGSA) e do Programa Avançado em Cultura
Contemporânea (PACC), ambos da UFRJ. Encontrei na parceria entre os dois
Programas a oportunidade de conjugar minha vivência de alguns anos como
professor de Antropologia, com a tradição dos estudos sobre a Cultura Visual 4, que
faz parte da tradição de estudos do PACC. Para além, foi possível articular estas áreas
disciplinares com a o projeto de Extensão do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea: a Universidade das Quebradas.

A Extensão Universitária forma, com o Ensino e a Pesquisa, o tripé em que se baseia


o Ensino Superior no Brasil. Ela é reconhecida pela Constituição Federal de 1988. De
acordo com o Art. 43 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Educação Superior deve “promover a
extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e
benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica
geradas na instituição” (LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 2017, p.
33). Desta maneira, a Extensão Universitária proporciona a integração entre a
Universidade e a comunidade em que ela está inserida. A Universidade das
Quebradas foi criada neste contexto.

O projeto da UQ nasceu em 2009. A Universidade das Quebradas é definida como:

um laboratório de tecnologias sociais, baseado no estímulo à troca


entre saberes e práticas de criação e produção de conhecimento,
articulando experiências culturais e intelectuais produzidas dentro e
fora da academia. A metodologia utilizada é experimental e flexível,
baseada no conceito de ecologia de saberes, desenvolvido por Felix
Guattari e Boaventura de Souza Santos. Por ecologia de saberes
entendemos o equilíbrio sistêmico entre as diversas formas de saberes
vernaculares e acadêmicos (científicos e técnicos) e a longa trajetória
histórica de silenciamento de certos saberes não formais por outras

4Cultura visual deve ser aqui compreendida para além do caráter disciplinar, mas transdisciplinar, como um campo
de estudo que tem como referentes reflexões e materiais da arte, produções da arquitetura, da história, psicologia
cultural, antropologia, estudos de gênero, dos mídia, dentre outras áreas. Portanto, ela não se define em autores,
agentes e artefatos, mas em torno de referenciais e significados no corpo da cultura (OLIVEIRA, 2019, p. 29).
870
formas dominantes de conhecimento (“Universidade das Quebradas”,
[S.d.])

É deste terreno que brota o curso UQ+DOC: independente – ou na ausência – de


políticas sociais e culturais universalizadas e acessíveis. Acredito que a “ecologia dos
saberes” (SANTOS, 2006) – ponto metodológico fundamental no projeto da
Universidade das Quebradas – não está baseada apenas na troca de saberes entre
professor “titulado” e estudantes, mas também na participação de outros agentes
que construíram seus saberes no ato próprio de fazer cinema. Por isso, convidei para
orientação da oficina aos alunos a componente da Universidade das Quebradas,
Sandra Lima, moradora de uma comunidade nos entornos do Museu de Arte do Rio.
Sandra atua como produtora cultural e documentarista, e conhece a realidade dos
moradores de favelas vizinhas à Praça Mauá, no Centro do Rio, público a quem é
dedicado o curso UQ+DOC. Ela trouxe para a nossa equipe seu filho, Raphael Kepler,
jovem músico, que também trabalha com produção cultural – é podcaster, escritor, e
editor de audiovisual e de músicas. Ambos conhecem as artimanhas de realização de
filmes com baixos recursos financeiros, tecnológicos e com equipe pequena, que
grava em regime de solidariedade. Ambos já foram a campo gravar, com equipamento
próprio da Sandra – câmera, microfones e um drone – imagens para um dos
documentários que já está em produção.

O curso UQ+DOC se baseia em três conceitos-base: aprenderensinar e


grupodidatismo, ambos inseridos no âmbito das Pedagogias Culturais. O
aprenderensinar, desenvolvido pela professora Nilda Alves (2003), conjuga o ato de
ensinar com o efeito de aprender; este conceito, aporta, ainda, o pressuposto da
quebra de hierarquia entre os dois atos, e a possível concomitância para o
acontecimento de ambos. Todo processo de mediação parte de uma relação
com/para o outro. Desta forma, aprenderensinar em grupo traz a dimensão de um
“autodidatismo em equipe”, que ocorre em tempo/espaços coletivos. Trata-se da
procura por soluções em grupo a questões que acontecem no âmbito de todos. Lara
Satler explica o sentido de “grupodidatismo”:

Por grupodidatismo compreendo a necessária presença do grupo na


construção de saberes. Nesse sentido, [é fundamental], diante de
autodescobertas, a proposição das mesmas em grupo. Assim, o sentido
de grupodidatismo está na construção de saberes cuja validação se dá

871
pela cooperação entre os sujeitos do grupo seja por intermédio de
comentários que confirmem as descobertas pessoais, seja por aqueles
que as questionem ou as ponham à prova. De qualquer modo, foi no
grupo que os saberes se consolidaram durante essa investigação
(SATLER, 2016, p. 129).

No curso UQ+DOC, as aulas partem do princípio de que há o que pode ser definido
como “culturalização da educação”. Este “mergulhar na cultura” é encontrado na
pedagogia de Paulo Freire. Trata-se de “uma tarefa comum e necessária [para
pensar] na capacidade de transformação e no potencial das pedagogias culturais
como novos espaços para outra cidadania” (RODRIGO; COLLADOS, 2014, p. 39). O
debate sobre o aspecto político das pedagogias culturais permite confrontá-la com
os aspectos intra e extramuros da instituição escolar, portanto, abre as portas para
o diálogo com a pedagogia crítica desenvolvida pelo pedagogo pernambucano
(FREIRE, 2001, 2005, 2011a, b).

Os aspectos descritos acima são responsáveis, portanto, pela definição de eixos


fundamentais para o curso de Extensão UQ+DOC, ministrado no bojo da UQ. Dentre
as bases norteadoras, pode-se apontar: 1) a importância da biografia dos estudantes
no âmbito de suas vivências sociais. É da vida que partem os interesses, visões de
mundo e experiências para a constituição dos temas e de abordagens dos
documentários. 2) O cinema popular surge como canal de expressão, no qual alunos
do curso UQ+DOC podem contar suas histórias. 3) As histórias de vida dos alunos
tomam forma em sala de aula, local em que experiências pessoais convergem com a
história de suas comunidades. 4) Os grupos de trabalho formados em sala de aula
obedecem à dinâmica interna de trabalho decidida por seus componentes, sem
perder de vista o caráter colaborativo dos grupos observados em campo. 5)
Aprendizados inerentes à prática das produções cinematográficas dos alunos do
curso UQ+DOC serão discutidas em sala de aula durante a etapa de realização e de
orientação sobre a realização dos documentários. Acredito que o aprendizado dos
grupos deve ser compartilhado com a turma, em um aprendizado “entre grupos”. De
fato, busco a enunciação e a troca do que foi definido anteriormente como
grupodidatismo. 6) O último eixo de referência parte da ideia de que o cinema
popular pode ser entendido como “libertador”, na medida em que traz implicações
na esfera pedagógica, e que busca por uma sociedade mais justa.

872
Diante das bases norteadoras, o conteúdo do UQ+DOC foi montado a partir de
quatro unidades temáticas: 1) “História do Cinema”, momento em que os aprendentes
conheceram a origem do cinema, discutiram sobre o que é o documentário, e o
paradoxo realidade x ficção. 2) “Narrativa”, módulo que apresenta a classificação dos
tipos de documentário, sua relação com a técnica, e a produção brasileira
contemporânea. A cada aula, os alunos assistiram a um documentário, cujo conteúdo
foi relativo ao tema do encontro. 3) Em “Gramática Cinematográfica”, os alunos
foram apresentados às regras cinematográficas: formas de enquadramentos,
movimentos de câmera, composição de quadro, iluminação, narrativa etc. 4) A última
parte do curso é de orientação. Os aprendentes desenvolveram roteiros, e já estão
em fase de produção de documentários em curta, média e longa-metragem. Os
filmes estão sendo feitos sob supervisão dos professores, que orientam cada fase de
realização.

Os 11 aprendentes – sete homens e quatro mulheres, moradores de comunidades de


baixa renda – estão produzindo sete filmes, com temáticas que abrangem o
documentário performático e a moda. O trabalho de produção vem sendo
desenvolvido em regime colaborativo. É importante ressaltar que, dos 11
aprendentes, oito possuem diploma superior obtido por universidades públicas.
Todos possuem maior ou menor grau de envolvimento com alguma manifestação
artística. Dentre as formas de arte praticadas pelos integrantes do grupo discente,
há carnavalesco, designers de moda, grafiteiros, músicos, pintora, dançarinos e
performers. Neste grupo, atualmente, dois designers de moda, um grafiteiro e uma
dançarina conseguem ser remunerados pela arte que produzem.

Na fase final do curso – desenvolvimento da oficina – inspirado pelas “palavras


geradoras” de Paulo Freire (2011a), busquei “imagens geradoras”, a partir das quais os
filmes poderiam surgir. Evitei, assim, propor que os aprendentes pensassem em
“temas” de documentários, mas que imagens deflagrassem o início do processo. Ao
longo das aulas, eles puderam trocar informações sobre suas vidas e seus trabalhos,
incluindo as atividades artísticas que praticam. As imagens geradoras surgiram em
uma “tempestade de ideias” (ou brainstorming, termo referenciado em língua
inglesa), com rodadas de definição de imagens, que eram citadas por cada
aprendente, escritas em um quadro branco. Ao final, pedi que cada aluno fizesse

873
associações entre as palavras elencadas, atribuindo sentido às imagens. Assim,
surgiram cenas dos documentários, usadas, na maior parte, para a abertura ou
encerramento dos filmes. Sugeri, então, que a partir das cenas, pensássemos no
desenvolvimento das narrativas.

Considerações finais

A narrativa de vida de Josafá Ferreira Duarte, presente neste texto, tornou possível
revelar como o protagonista deste artigo se coloca perante o mundo e a sua
sociedade. Em acordo com o sociólogo Wright Mills (1959) afirmo que as biografias
individuais estão relacionadas com seus processos históricos. Os sujeitos não ficam
impunes à vida social, mas também não são inertes diante dela.

Para Raymond Williams (1965), a cultura acontece em um modo de vida total, por
onde circulam valores e significados, presentes na sociedade. A cultura precisa ser
reinventada pelos excluídos das instituições dominantes, pertencentes às elites
econômicas. O trabalho do Cinecordel, liderado pelo cineasta forquilhense, se
enquadra neste processo de reinvenção das formas de enunciação e comunicação,
no âmbito da cultura visual, de uma sociedade.

A “cultura visual” emerge como um campo transdisciplinar, que trata a imagem como
sendo inserida no âmbito da cultura. A finalidade da “cultura visual” é desenvolver
estudos que possibilitem colocar em evidência a “relevância que as representações
visuais e as práticas culturais têm dado ao ‘olhar’ em termos das construções de
sentido e das subjetividades no mundo contemporâneo” destacando o
conhecimento, bem como a criticidade em torno do visual (HERNÁNDEZ, 2018, p. 27).
É neste contexto em que emerge o campo das Pedagogias Culturais, no qual estão os
conceitos aprenderensinar e grupodidatismo, sempre em diálogo com a pedagogia
crítica do Professor Paulo Freire. Acredito que a “educação emancipadora” está
vinculada à maneira como o educando passa a compreender seu “lugar no mundo”.
Este “lugar” associa-se diretamente à visão política e à classe social à qual pertence
o estudante. Dito isso, é possível afirmar que toda forma de educação, em si, é
política, pois o tipo de formação que ela proporciona refletirá uma determinada
posição dos agentes envolvidos perante o mundo, que poderá ser conservadora
(“bancária”) ou libertária.
874
O resultado da relação estabelecida entre o set de filmagem do “cinema popular” e a
sala de aula é o curso-experiência UQ+DOC, que está em fase de desenvolvimento
dos filmes em sistema colaborativo. A previsão é de que os sete filmes estejam
concluídos em dezembro, mês em que haverá uma mostra das produções no Museu
de Arte do Rio. Os documentários farão parte do acervo do Museu e da Universidade
das Quebradas.

O projeto que vem sendo desenvolvido aponta para duas direções. Nós – eu, Sandra,
Raphael e alguns aprendentes – já começamos a desenvolver uma ideia de projeto de
manter o grupo colaborativo para novos projetos de filmes em 2023. Também existe
a ideia embrionária de o curso UQ+DOC ser ministrado pelos alunos atuais em suas
comunidades.

Referências

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Disponível em: <http://moisesbraz.com.br/forquilha-e-oficialmente-a-capital-cearense-
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FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011a.
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875
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<http://cinecordel.blogspot.com.br/>. Acesso em: 05 set. 2022.
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<https://universidadedasquebradas.pacc.ufrj.br/>. Acesso em: 05 set. 2022.
WILLIAMS, R. The long revolution. Harmondsworth, UK: Penguin Books, 1965.

Mini Currículo

Paulo Passos de Oliveira

876
Realiza Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, em parceria
com o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, ambos da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. É colaborador no projeto de extensão Universidade das Quebradas. Doutor em Arte e Cultura
Visual pela Universidade Federal de Goiás, com doutorado sanduíche na Universidade de Aveiro
(Portugal). E-mail: paulopassosdeoliveira@gmail.com

877
CRIAÇÃO DE FILMES E PRODUÇÃO ESTÉTICA DE JOVENS

NOS COTIDIANOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA

FILM MAKING AND AESTHETIC PRODUCTION OF YOUNG PEOPLE IN THE


EVERYDAY LIFE OF A PUBLIC SCHOOL

Edivan Carneiro de Almeida


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Aldo Victorio Filho


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

Os cotidianos (CERTEAU, 2012) escolares são constituídos por uma diversidade inapreensível
e rebelde de práticas e invenções marcadas por burlas, resistências e transgressões às
tentativas de determinação engendradas pelas estratégias de governabilidade e de
prescrição curricular. Os espaçostempos escolares são permeados de invenções (CERTEAU,
20012) e produções estéticas (SHUSTERMAN, 1998; HERMANN, 2010) realizasdapensadas nas
práticas, permeadas nas táticas, desenvolvidas na convivência de estudantes e professores.
Neste trabalho, apresentamos parte de uma pesquisa de doutorado em que realizamos uma
cartografia audiovisual (DELEUZE, GUATARRI, 1995) das experiências de criação artística de
estudantes em uma escola pública de ensino médio no semiárido baiano. Apoiando-nos
também nos estudos da cultura visual, questionamos quais imagens de escola são produzidas
hegemonicamente e que outras imagens existem e podemos identificar nos seus cotidianos.
A partir da cartografia, dos vídeos criados pelos estudantes interlocutores da pesquisa sobre
suas experiências nas oficinas de criação artística na escola, percebemos que a produção de
filmes nas oficinas do projeto Produção de Vídeos Estudantis aporta à escola de onde
reverbera em outros espaçostempos, uma poética de imagens-sons diversos de
espaços/ambientes, acontecimentos, histórias, problemas, práticas e invenções realizadas
por diferentes pessoas da comunidade e pelos próprios estudantes dentrofora da escola. São
histórias e roteiros que entrelaçam imagens-vozes-sons em produções poéticas sobre/nos
cotidianos da escola e da comunidade sob perspectiva de jovens em uma cidade pequena, no
encontro e interesse pela arte cinematográfica. Essas criações audiovisuais afetam os
estudantes, a escola e a comunidade, nos permitindo pensar as oficinas de produção de
filmes como modos de “criação de si” e de criação da escola como obra de arte (DIAS, 2011).

Palavras-chave: Arte. Criação de filmes. Estética. Cotidianos escolares.

878
Abstract

The everyday life (CERTEAU, 2012) of schools is constituted by an inapprehensible and


rebellious diversity of practices and inventions marked by circumventions, resistances and
transgressions to the attempts of determination engendered by the strategies of
governability and curricular prescription. The school space-time is permeated with
inventions (CERTEAU, 2012) and aesthetic productions (SHUSTERMAN, 1998; HERMANN,
2010) performed in the practices, permeated in the tactics, developed in the coexistence of
students and teachers. In this paper, we present part of a doctoral research in which we
conducted an audiovisual cartography (DELEUZE, GUATARRI, 1995) of the experiences of
artistic creation of students in a public high school in the semi-arid region of Bahia. Based
also on studies of visual culture, we have questioned what images of school are produced
hegemonically and what other images exist and we can identify in their daily lives. From the
cartography, from the videos created by the students who participated in the research about
their experiences in the workshops of artistic creation at school, we realised that the
production of films in the workshops of the Student Video Production project brings to
school, from where it reverberates in other space-time, a poetics of diverse sound-images
of spaces/environments, events, stories, problems, practices and inventions carried out by
different people in the community and by the students themselves, inside and outside of
school. These are stories and scripts that interweave images-voices-sounds in poetic
productions about/in the everyday life of the school and the community from the
perspective of young people in a small town, in the encounter and interest for the
cinematographic art. These audiovisual creations impact the students, the school and the
community, allowing us to think of the filmmaking workshops as ways of "creating oneself"
and the school creation as a work of art (DIAS, 2011).

Keywords: Art. Filmmaking. Aesthetics. Schools’ everyday life.

Perambulações de uma pesquisa

As experiências pessoais, profissionais e acadêmicas vividas como professor em uma


escola pública de Ensino Médio, no sertão da Bahia, Brasil, há quase três décadas, de
modo especial (na última década) com a realização de oficinas de criação artística e
a produção de imagens dos acontecimentos cotidianos dessa escola, nos moveu a
realizar esta pesquisa de doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (com bolsa CAPES). Com ela buscamos
compreender alguns processos de produção artística e estética de estudantes
(jovens) em uma escola pública e como eles interferem na formação de seus corpos

879
(pessoais e coletivos, físicos e simbólicos), bem como na produção de um imaginário
coletivo sobre a escola e na criação de singularidades de seus cotidianos e de seus
currículos (entendendo que neles vários percursos entrecruzam-se, interesses e
energias diversas são ativadas).

Neste trabalho, apresentamos parte da pesquisa na qual buscamos produzir uma


cartografia audiovisual das experiências de criação artística na aludida escola
pública, tendo como inspiração a noção de rizoma e cartografia (DELEUZE;
GUATARRI, 1995). Aproveitando nossas experiências com as oficinas de criação
artística realizadas na escola, decidimos elaborar a produção dessa cartografia
também por meio de oficinas de criação de imagens.

A metodologia da pesquisa, compreendida como processo de criação, se deu com a


produção de uma cartografia audiovisual em que convidamos um grupo de
estudantes a criarem vídeos sobre suas experiências nas oficinas de criação artística,
entendendo que o mapa, como parte de um rizoma, “[…] é aberto, é conectável em
todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente” (DELEUZE; GUATARRI, 1995, p. 21), permitindo entender os fluxos,
percursos e a potência dos possíveis nas práticas dos sujeitos em seus cotidianos.

Nessas oficinas de criação audiovisual, ocorridas entre os meses de fevereiro e março


de 2022, participaram catorze estudantes com os quais desenvolvemos dois
movimentos: primeiro, realizamos oficinas-encontros virtuais (devido às
(im)possibilidades provocadas da pandemia de Covid-19, em que a escola funcionava
de modo remoto), nas quais proporcionamos aos convidados o contato com
fotografias, vídeos, sons e textos produzidos nas/sobre as oficinas/atividades de
criação artística, reunidos no site https://www.criarteceaco.pictures/, ativando
suas memórias e motivando-os à criação de vídeos sobre suas experiências; no
segundo movimento acompanhamos os interlocutores da pesquisa, via um grupo de
WhatsApp, estimulando-os e auxiliando-os na produção dos vídeos sobre suas
experiências nas oficinas de criação artística vividas na escola, esperando que
apresentassem se, de algum modo, aquela específica experiência escolar marcara
suas vidas, a formação de seus corpos – compreendendo que não temos um corpo, e
sim, somos um corpo (LE BRETON, 2007) – e as demais significações de tais oficinas
nos cotidianos da escola.

880
Além das conversas nas oficinas e no grupo de WhatsApp, realizamos um Sarau dos
Projetos Artísticos, quando os onze vídeos produzidos pelos participantes da
pesquisa foram apreciados por eles juntamente com outros estudantes envolvidos
nas atividades de criação artística e com professores-realizadores das oficinas.
Assim, tanto os vídeos produzidos pelos estudantes quanto aqueles que registraram
as oficinas-encontros da pesquisa e o Sarau de apreciação, compuseram a cartografia
audiovisual das experiências de criação artística na escola, um conjunto de imagens-
expressões que indicam possibilidades de compreender como os estudantes
perceberam tais experiências em suas vidas e na escola, as marcas dos percursos que
delineiam singularidades nos seus modos de existência.

A partir dessas imagens, fragmentos do imaginário dos estudantes, alcançamos


algumas leituras de como eles percebem o processo de criação nas oficinas, desde
os primeiros instantes: da apreciação-fruição de obras de arte, passando pelas
conversas sobre as possibilidades de criação e pela partilha de experiências entre si
e com os mediadores (professores e artistas convidados) das oficinas, até a
apresentação-fruição das suas produções nos saraus, festivais e exposições.

Assim, ao puxarmos e entrelaçarmos, com os estudantes, os fios das experiências que


juntos vivemos na escola, tecemos o tema e a metodologia desta pesquisa.
Construímos uma territorialidade própria, um abrigo transitório, um espaçotempo
para que nossas memórias perdurassem um instante necessário a revolver nosso
imaginário, possibilitando mergulhar no interminável fluxo das práticaspensamentos1
[águas] dos corpos (LE BRETON, 2007) [rio] que somos [e não que temos], vivos,
incompletos, inquietos e insinuantes. Corpos que vão compondo-se e fortalecendo-
se a cada passo dado, a cada movimento desenvolvido, a cada gesto e pensamento
produzido no acontecimento das experiências, sempre em
fluxo/trânsito/passagem, implicando em novos e imprevisíveis percursos-devires.

Encorajados pelas perspectivas do trabalho pós-investigativo que nos impele a


empreender “uma ontologia crítica de si mesmos, fazer experiências com o que ainda
está por vir, convocar os povos ainda por vir” (ST. PIERRE, 2018, p. 1059), buscamos

1 Usamos palavras conjugadas inspirados em pesquisas brasileiras nos/dos/com os cotidianos escolares, realizadas
por Nilda Alves, Inês Oliveira, Carlos Eduardo Ferraço dentre tantos, em que buscamos nos desviar epistemológica
e politicamente dos binarismos que marcam as concepções modernas de ciência e filosofia do conhecimento.
881
compreender o que foi nos tornando sempre outros sem o temor de perdermo-nos,
procuramos viver uma aventura/experiência arriscada e dolorosa que nos exige
abertura ao imprevisível, desconstrução e autocriação frente ao estranho, uma
produção poética-artística-estética que integra o “movimento de interpretação da
vida [...] que nos retira da conformidade com o familiar, abrindo espaço para uma
alteridade antes desconhecida” (HERMANN, 2010, p. 123-124).

Outras ins-pira-ções que nos moveram na investigação

Dentre tantos outros pensamentos que nos atravessaram na realização da pesquisa


e deste trabalho, destacamos nossa compreensão de que os cotidianos (CERTEAU,
2012) escolares também são constituídos por uma diversidade inapreensível e
rebelde de práticas e invenções marcadas por burlas, resistências e transgressões às
tentativas de determinação engendradas pelas estratégias de governabilidade e de
prescrição curricular. Percebemos os espaçostempos escolares como permeados de
produções estéticas (SHUSTERMAN, 1998; HERMANN, 2010) e de invenções
(CERTEAU, 20012) engendradas por meio de práticas permeadas de táticas
realizasdapensadas entre estudantes e professores nesses cotidianos.

Inspirados nos estudos da Sociologia dos Cotidianos, especialmente em Michel de


Certeau (2012) e em pesquisadores brasileiros do campo, direcionamos nossa
atenção para a produção dos “consumidores” – professores, estudantes, gestores,
demais profissionais da educação, pais, entre outros – que habitam/praticam as
escolas e desenvolvem táticas de resistência e invenções ao realizarem usos e
apropriações da produção sociocultural hegemônica, daquilo que é determinado
pelas políticas públicas de educação, burlando suas estratégias com “maneiras de
fazer”, que “constituem as mil práticas pelas quais os usuários se apropriam do
espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (CERTEAU, 2012, p. 41).

Sob essa perspectiva, enveredamos pela produção saberesconhecimentos,


coletivamente, entendendo que cada corpo em sua integralidade orgânica, sensitiva
e pulsante, vive com outros corpos com quem compartilha e compõe redes intensas
e interativas de experiências sensoriais e cognitivas. Redes nas quais são criados
sentidos, percepções, conceitos e formas de expressão que fluem em trocas
constantes, compartilhando modos de viver, compreender e atuar no mundo,
882
enfrentando relações de poder, muitas vezes, assimétricas, hierarquizadas e
conflitantes que afetam qualquer experiência. De modo resistente à hierarquização,
buscamos alçar conhecimentos como rizoma, que se dá pelos princípios da conexão
e heterogeneidade: “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer
outro [...] diferente da árvore ou da raiz, que fixam um ponto, uma ordem”.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15).

Os estudos dos cotidianos nos quais nos apoiamos, nos impulsionam a percursos
investigativos na direção oposta à tendência homogeneizante, na produção de
visualidades sobre as práticas como devir, como possibilidade de resistência e
invenção operadas pelos sujeitos que atuam nesses cotidianos afirmando diferença
(DELEUZE, 2006), desencadeando processos de singularização dos/nos
acontecimentos e, portanto, das experiências formativas e dos currículos escolares
que são praticadopensados (OLIVEIRA, 2012) na relação entre todos os envolvidos nos
cotidianos da escola. Esses currículos não coincidem com as prescrições
estabelecidas em instâncias superiores de governo e nem sequer com os
planejamentos feitos no âmbito da escola, como o “Projeto Político-Pedagógico”, o
“Plano de Curso” e até mesmo o “Plano de Aula”.

O conjunto das experiências formativas que compõem os currículos é um


acontecimento que se realiza no encontro da pluralidade de sujeitos, com o que cada
um, inevitavelmente, traz para os espaçostempos da escola, estabelecendo diálogos,
interações corporais e trocas afetivas que acontecem nas salas-de-aula assim como
nos corredores, pátios, banheiros, sala da rádio, sala de informática, biblioteca etc.,
uma rede infindável de saberesconhecimentos, pensamentos e modos de vida.

Desse modo, percebemos as escolas como um campo fértil do encontro de diversos


modos de existência, de práticas que fluem intensa e incontrolavelmente entre os
corpos que aí habitam. Nesse encontro coletivo coexistem várias escolas (VICTORIO
FILHO; SILVA; NASCIMENTO; SILVEIRA, 2017): a escola dos alunos, dos professores,
dos gestores, dos pais etc., produzindo conhecimentos e aprendizagens “[…] a partir
de agenciamentos coletivos que se produzem em meio à multiplicidade e a processos
de relações não hierárquicas” (FERRAÇO; CARVALHO, 2012, p. 145),
saberesconhecimentos e trocas de experiência enredados que fluem, nos diversos
sentidos, entre o vivido na escola e fora dela.

883
Outras noções que marcam a pesquisa que trazemos neste trabalho vêm dos estudos
sobre da Cultura Visual. A partir destes salientamos que a produção de
conhecimentos e a produção poética, artística ou não, comportam modos e
experiências de produção estética que, sob muitos aspectos, favorecem à existência
da diversidade de corpos, de abrigos identitários, de modos de ser/viver, de
maneiras plurais de ver-ouvir-sentir-pensar-agir e criar mundos, na medida em que,
como anteriormente afirmado, os modos de assimilação, apreensão ou gozo fugaz
das ofertas infinitas do mercado são, de uma maneira ou de outra, singulares.
Certamente que, a produção estética, que também edulcora discursos midiáticos,
serve desse modo à homogeneização, hierarquização e eliminação violenta de
determinados corpos e de modos de vida, incentivando a discriminação, legitimando
a inferiorização de uns frente a outros que se instituem superiores. Desse modo, a
Cultura Visual inclui imagens que promovem a exploração e até a aniquilação de
muitas existências, induzem maneiras de perceber, de dizer e de afirmar verdades
que se pretendem absolutas e inquestionáveis, práticas antigas de favorecimento aos
mandatários das sociedades capitalistas.

Os estudos visuais não enfatizam a leitura das imagens, mas a compreensão das
posições subjetivas de quem as produzem, bem como os seus efeitos nos sujeitos
visualizadores:

[...] as imagens e outras representações visuais são portadoras e


mediadoras de significados e posições discursivas que contribuem para
pensar o mundo e para pensarmos a nós mesmos como sujeitos. Em
suma, fixam a realidade de como olhar e nos efeitos que têm em cada
um ao ser visto por essas imagens. (HERNANDEZ, 2011. p. 32-33)

Hernández (2011, p. 46) destaca que diante de “um mundo dominado pelos
dispositivos da visão e pelas tecnologias ao olhar”, necessitamos “explorar nossa
vinculação com as práticas do olhar, as relações de poder em que somos colocados
e questionar as representações que construímos em nossas relações com os outros,”
assim como no questionarmos se estamos “vendo com os nossos próprios olhos”, se
percebemos nossa implicação com os modos de ver que interessam aos grupos que
dominam a sociedade e impõem maneiras de ver, imagens de um mundo que lhes
interessa instituir, manter e controlar. Nesse sentido, nas pesquisas nos/dos/com
os cotidianos de escolas públicas questionamos as imagens de escola produzidas
884
hegemonicamente e que outras imagens são escamoteadas ou mesmo podemos
constatar que emergem desses cotidianos.

Considerar os estudos da cultura visual e a produção de imagens em nossas


pesquisas consiste em uma possibilidade de alargar os modos de produção de
conhecimentos para além das linguagens verbais, já que as imagens (assim como o
mundo) não são totalmente capturáveis pelos discursos ou narrativas linguísticas.
Uma imagem não “vale mil palavras”, ela não pode ser totalmente capturada pela
palavra, sua presença, seu olho sobre quem a olha é instaurador de sentidos
imprevisíveis, que escapam às intenções e mesmo à percepção de quem a produziu.
Sentidos resultantes de sua incidência/provocação sobre o nosso olhar num instante
determinado, podendo se transformar a cada momento/época em que voltamos a
olhá-la. Afinal, ao contemplar uma imagem visual, cada um o faz com os mesmos
fundamentais recursos que lança mão em experiências diversas: sua história, seu
repertório de saberes e experiências, seus afetos e demais posses únicas, singulares
de cada sujeito.

É preciso considerar que as mudanças contemporâneas provocadas pela


popularização dos dispositivos de produção e veiculação de imagens fizeram com
que tal produção passasse de um privilégio das pessoas das camadas sociais
economicamente mais abastadas (através de grandes empresas de mídia de massa)
para algo à disposição de quase todas as pessoas, provocando rupturas nos modos
de vida na contemporaneidade. Além disso, “Lo visual, en su imbricada relación con
las tecnologías de la comunicación y la información (TIC), rompe con las barreras
entre lo culto y lo popular, entre lo científico y lo cotidiano” (MARQUINA, 2016. p. 95-
96). Para Marquina (2016), as atuais tecnologias digitais de comunicação
contribuíram para neutralizar os circuitos elitistas de produção e circulação de
informações e imagens tornando-as mais democráticas, afetando nossas formas
cotidianas de percepção, produzindo as visualidades como parte da vida cotidiana.

Ao pensarmos nossas pesquisas com imagens nos/dos/com os cotidianos escolares,


nos questionamos sobre as possibilidades de sua utilização na criação de modos de
investigação, buscando escapar ao equívoco de tratá-las como uma representação
cabal da realidade, como mera ilustração ou mesmo como um recorte do real que
condensa informações e sentidos fixos que servem de exemplos a serem

885
apresentados, descritos no texto de uma pesquisa. Ao focalizarmos o uso-produção
de imagens em pesquisas consideramos “que toda imagem (um desenho, uma
pintura, uma escultura, uma fotografia, um fotograma de cinema, uma imagem
eletrônica ou infográfica) nos oferece algo para pensar: ora um pedaço de real para
roer, ora uma faísca de imaginário para sonhar.” (SAMAIN, 2012, p. 22).

Consideramos que as imagens exercem um poder de “ideação”, são tentativas de


representação, sempre parcial, das coisas do mundo em que, “mais do que as outras
representações (a fala, a escrita), sua natureza estetizante esconde sua capacidade
de dissimulação ou, simplesmente, de não se revelar por completo.” (SAMAIN, 2012,
p. 32).

É nesse potencial de dissimulação, em seu silêncio e obscuridade, na incompletude,


na incapacidade de serem totalmente compreendidas, decifradas, que reside a força
provocante e criadora das imagens. A impossibilidade de aprisioná-las numa
compreensão única e irredutível nos impulsiona a criar variados sentidos sobre um
instante da vida ou um fragmento do mundo que elas capturam, atraem nossa
atenção e provocam nossa percepção, nossas emoções, sentimentos e pensamentos.
É a capacidade que as imagens têm de nos provocar que nos motiva a arriscar a
inclusão da Cultura Visual na deambulação conceitual da pesquisa: uma aposta no
devir, na imprevisibilidade, no impensado e na busca pelo desconhecido.

A produção e o consumo de imagens-sons-mensagens pelas pessoas na vida


cotidiana, constituem intermináveis processos de produção estética que anelam a
cultura visual ao imaginário, este, por sua vez, formado pelo “conjunto de imagens e
todas as criações do pensamento humano – que engloba a produção poética,
artística, mas também a científica, filosófica, ideológica etc., – quanto por relações
de imagens” (DURAND, 1997, p. 18).

Produção poética e audiovisual em oficinas de criação artística

Percorrendo as imagens-sons-textos-conversas que compuseram a cartografia


audiovisual (os vídeos produzidos e as conversas nas oficinas) da pesquisa,
fragmentos do imaginário dos estudantes, podemos compreender como eles
percebem o processo de criação artística nas diferentes oficinas, desde o momento

886
de apreciação das obras, passando pelas conversas sobre as possibilidades de
produção escolhidas livremente (temáticas, características, modos de criar), bem
como pela partilha de experiências entre eles e os orientadores das oficinas
(professores e artistas convidados), até os momentos de apresentação de suas
criações nos saraus, festivais e exposições.

Vendo-ouvindo as imagens-sons produzidos na cartografia, destacamos que as


oficinas de criação artística são organizadas a partir do envolvimento voluntário dos
estudantes e professores e que suas realizações marcam rupturas dos limites que
delineiam o dentro e o fora dos espaçostempos que constituem a escola oficial, na
medida em que práticas diferentes da programação formal concorrem e conflitam
com esta, pois os participantes se ausentam das aulas, marcando suas preferências e
prioridades. As oficinas, geralmente, ocorrem em diversos espaços da escola, a
exemplo da “sala da rádio”, sala de vídeo, sala de informática, salas sem uso, além de
corredores e pátios (especialmente a área externa), descolando-se das atividades
costumeiras das salas-de-aula. Uma escola que se impõe no corpo de outra escola,
operações que surtem efeitos significativos para alunos e professores, dentre estes
efeitos a evidência da urgência da aceitação e incorporação de mudanças efetivas
nos processos educacionais escolares, visto que tais mudanças já se efetivam nas
práticas cotidianas da maioria dos estudantes e de alguns professores.

As práticas de criação ainda são desvinculadas das atividades disciplinares, do


currículo escolar convencional. Elas reúnem estudantes interessados de diversas
turmas e de turnos diferentes, às vezes (por sugestão dos alunos) ocorrem em turnos
e dias em que não há aula na escola (noturno e feriados). Outro aspecto que se
destaca é que as oficinas são realizadas com a participação de artistas da cidade,
especialmente de ex-alunos (que participaram delas quando estudante), favorecendo
a troca de experiências diversas entre os estudantes, artistas e professores
organizadores, proporcionando várias aprendizagens relacionadas a cada
modalidade artística desenvolvida: produção musical, literária, audiovisual, pintura
de telas, fotografia etc.

Salientamos ainda que os alunos participam das atividades pelo desejo de produzir
algo destinado à apreciação estética pública (em vez de algo a ser avaliado pelo
professor) e que obras por eles produzidas movimentam a escola desde a realização

887
das oficinas e dos ensaios (especialmente no mês de julho) até o acontecimento dos
festivais, dos saraus e das exposições (em agosto, “Mês do Estudante”), momentos de
festa, de fruição estética e de grande ebulição nos cotidianos da escola, quando os
estudantes apresentam suas produções para toda a comunidade escolar, atraindo a
participação de pais, ex-alunos e outras pessoas da cidade onde a escola está
inserida.

Imagem 1: Oficinas de criação vídeo, Projeto Vídeos Estudantis, 2018.

Direcionando nossos olhares/ouvidos, neste trabalho, para a produção de


filmes/vídeos nas oficinas do Projeto Produção de Vídeos Estudantis (PROVE), que
resultaram na realização de cinco edições do Festival de Filmes Estudantis na escola
(desde 2014), entramos em contato e somos afetados por modos de ver
(HERNANDEZ, 2011) produzidos pelos estudantes sobre algumas experiências,
histórias, temáticas, desejos, preocupações e percepções que lhes envolveram
durante o ensino médio, buscando produzir visualidades sobre elas.
Compreendemos que as produções dos estudantes interferem na formação de seus
modos de existência e percepção de mundo, considerando que “[...] as imagens e
outras representações visuais são portadoras e mediadoras de significados e
posições discursivas que contribuem para pensar o mundo e para pensarmos a nós
mesmos como sujeitos.” (HERNANDEZ, 2011, p. 32-33).

888
Imagem 2. Filme: Aos nossos olhos (PROVE, 2013)
Disponível em: https://youtu.be/0BQiSoPxO2A

A criação dos filmes possibilita aos estudantes escolherem assuntos e produzirem


imagens-visualidades que apresentam traços de seus imaginários sobre diversos
aspectos da realidade e experiências vividas, inclusive sobre a/na escola, de maneira
nem sempre percebida por nós professores e pelas demais pessoas da comunidade.
Os filmes atravessam a escola com uma poética de imagens-sons de
espaços/ambientes, de acontecimentos, histórias, dificuldades/problemas
enfrentados, práticas e invenções realizadas por diferentes pessoas e pelos próprios
estudantes dentrofora da escola.

A exibição dos filmes no Festival realizado na escola e sua publicização na


comunidade2 promove experiências de intervenção artística-estética que nos afetam
e possibilitam ver-ouvir-pensar a partir das perspectivas dos alunos, destacando
práticas desenvolvidas, percursos trilhados, espaços habitados, gestos realizados,
sons/ruídos ocorridos, atitudes e sentimentos desencadeados frente às práticas,
formas de existência e experiências vividas dentrofora da escola, movimentando
corpos, produzindo performances-formação.

São histórias, textos e roteiros que entrelaçam imagens-vozes-sons (ruídos e trilhas


sonoras) em produções que narram os cotidianos da escola e da comunidade sob a
perspectiva de jovens durante seus percursos no ensino médio, em uma cidade
pequena do semiárido baiano, desenvolvendo o conhecimento e domínio da arte

2 Além de realizar o festival na escola, nos últimos anos ele foi transmitido pela internet e disponibilização no
YouTube e divulgação dos links nas redes sociais, atingindo centenas e até milhares de visualizações.
889
videográfica. Organizados em pequenas equipes, esses jovens ocupam, ao mesmo
tempo, os papeis de roteiristas, diretores, atores/repórteres, cinegrafistas,
compositores de trilhas sonoras e editores de vídeo, de modo colaborativo,
explorando as experiências que cada um tem, mas especialmente se aventurando na
exploração e realização de diferentes papéis e tarefas que ainda não realizaram em
suas vidas.

Imagem 3: Festival de Filmes Estudantis na escola, 2022.

Dentre outros tantos efeitos, as atividades de criação artística têm movimentado os


estudantes e a escola para fora do município para participar das etapas regional e até
estadual dos festivais, proporcionando aos alunos envolvidos uma experiência
pública mais ampla, levando ao convívio com estudantes de outras escolas públicas,
destacando-os, com a escola, dentrofora da cidade.

Essa agitação vai ganhando volume ao passo que cada obra (filme, música, poema,
tela, álbum) é produzida nas oficinas e começa, ali mesmo, a ser apreciada entre os
estudantes, mexendo com seus sentimentos, gerando murmúrios e expectativas que
eclodem em um clima de entusiasmo, festa, alegria e gozo estético coletivo,
observáveis nos festivais-saraus-exposições, momentos que marcam a história
pessoal de cada um dos estudantes, da comunidade escolar e da comunidade
externa, contribuindo, na perspectiva nietzschiana, para a “criação de si” e da escola
(seus currículos) como “obras de arte” (DIAS, 2011) coletivas.

890
Produzir cartografias audiovisuais dessas experiências nos possibilita o acesso ao
imaginário escolar, constituído pela dinâmica das várias imagens que produzimos
dela e de nós mesmos e pela perspectiva dos vários sujeitos imbricados em seus
cotidianos. Percebemos assim, um pouco de como “nos tornamos nós mesmos” e
como a escola “se torna o que é” uma escola pública produzida pelo encontro
coletivo, pela efetiva autoria de cada estudante e de seus coletivos e pelas práticas
minúsculas, micropolíticas, dos que nela vivem e não apenas pelas macropolíticas
governamentais.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim


Ferreira Alves. 19 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2 ed.
Rio de Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1, Tradução
de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed 34, 1995.
DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
DURAND, Gilbert. Estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete Magalhães. Lógicas de currículos em redes
e projetos. In: FERRAÇO, C. E., CARVALHO, J. M. (org.). Currículos, pesquisas,
conhecimentos e produção de subjetividades. Rio de Janeiro: DP et Alii, 2012, p. 143-160.
HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética.
Coleção Fronteiras da Educação. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2010.
HERNÁNDEZ, F. A cultura visual como um convite à deslocalização do olhar. In: MARTINS,
Raimundo; TOURINHO, Irene (org.). Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos.
Santa Maria/RS: Ed. da UFSM, 2011. p. 31-49.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
MARQUINA, Orietta. La cultura visual desde el campo social de la mirada. Lima, Peru:
Conexxión, n. 5, 2016. p. 88-101. Disponível em: http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/
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SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
ST. PIERRE, Elizabeth Adams. Uma história breve e pessoal da pesquisa pós-qualitativa: em
direção à “pós-investigação” em direção à “pós-investigação”. Práxis Educativa, Ponta
Grossa, v. 13, n. 3, p. 1044-1064, set./dez. 2018. Disponível em: https://revistas2.
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891
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular.
São Paulo: Editora 34, 1998.
VICTORIO FILHO, Aldo.; SILVA, Pâmela Souza da; NASCIMENTO, Rodrigo Torres do;
SILVEIRA, Victor Junger. Alunos ensinam professores a ser professores na escola que não é
mais escola. Educação. Santa Maria. v. 42, n. 3, p. 597-614, set./dez. 2017.

Mini Currículos

Edivan Carneiro de Almeida


É professor de Artes no Ensino Médio na Rede Estadual de Educação da Bahia/Brasil. Doutorando em
educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (ProPED), Faculdade de Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), integra o grupo de investigação em Estudo Culturais em Educação,
Arte e Saúde. E-mail: edivan.ichu@gmail.com

Aldo Victorio Filho


É professor de Artes e Cultura Visual no Programa de Pós-graduação em Educação (ProPED) e no
Instituto de Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Doutorado em Educação
pela UERJ, coordena o Instituto de Arte e o grupo de investigação em Estudo Culturais em Educação,
Arte e Saúde. E-mail: aldovictorio@gmail.com

892
O EU E O MONSTRO: A IMAGEM DO OUTRO DENTRO DO CINEMA DE
HORROR

ME AND THE MONSTER: THE OTHER’S IMAGE INSIDE HORROR CINEMA

Pablo Petit Passos Servio


UFMA, Brasil

Carlos Vinicius Moreira de Brito Santos


UFMA, Brasil

Resumo

O cinema é um campo de estudo amplo, em que podemos escolher analisar tanto suas
técnicas e características plásticas quanto narrativas. Assim, buscamos estudar o cinema
através da perspectiva da Cultura Visual, fazendo um recorte dentro do gênero do horror.
Este artigo busca refletir sobre a imagem do monstro dentro do cinema de horror e em como
ele se relaciona com o estudo da Cultura Visual. Assim como, também, busca compreender
principalmente como a imagem do outro é incorporada dentro dessa personagem tão
importante para o gênero, a grande ameaça dessa narrativa fílmica.

Palavras-chave: Horror, Cinema, Cultura Visual.

Abstract

Cinema is an open field of study, in which we can choose to analyze the techniques, visuals,
or its narratives. In that way, We chose to study cinema through the Visual Culture subject,
using the horror genre. This article seeks to understand the monster image in the horror
movies and how it relates to the Visual Culture studies. It also seeks to comprehend how the
“others” image is incorporated in those characters that are so important to the genre as the
big threat in the filmic narrative.

Keywords: Horror, Cinema, Visual Culture.

893
Introdução

O audiovisual e em especial o gênero do horror, tem um espaço muito importante


dentro da minha formação acadêmica e vida pessoal. Acredito que a arte é capaz de
traduzir os sentimentos humanos, que não são exclusivamente positivos como a
felicidade e a alegria, mas também aqueles que conseguem nos deixar aflitos e
angustiados. Este segundo aspecto é aquele que me interessa como campo de estudo
e acredito não existir objeto melhor do que o horror para exprimir essa faceta da
humanidade.

Meu primeiro contato com o gênero foi através do meu fascínio com o desenho
Scooby Doo quando criança. Apesar de conhecido por um desenho infantil de
mistério, é inegável sua proximidade com o horror, graças a sua fórmula narrativa
que trazia sempre um monstro da semana. Mesmo esses monstros sendo
apresentados como criaturas sobrenaturais, ao final do episódio é revelado que não
se passava de alguém por trás de uma máscara. Essa característica acaba por se
traduzir também dentro do cinema de horror, onde por mais que fantasmas,
assassinos e outras criaturas nos provocam medo e pavor, o verdadeiro horror dessas
histórias sempre é de natureza humana.

A ficção é um produto da mente humana a qual insere, conscientemente ou não,


elementos sociais dentro das suas narrativas. Robert Stam defende a capacidade do
cinema em representar os dramas, problemas e regras de uma sociedade através de
uma visão subjetiva sobre o ser humano e como ele interage com o meio, mostrando
como isso se torna uma preocupação em determinadas escolas. “Para os surrealistas,
o cinema tinha a capacidade de transcender de liberar o que convenientemente era
reprimido, de mesclar o conhecido e o desconhecido, o mundano e o onírico, o
cotidiano e o maravilhoso” (STAM, 2000, p. 73). No caso do Horror, isso se transcreve
em inserir questões que não são assuntos confortáveis e fáceis de serem abordados.
“o horror tem o potencial de suscitar questões culturais e políticas, de crítica e de
estética, e com frequência é alvo de moralismos e até mesmo de censura”
(MARKENDORF; RIPOLL, 2017, p. 8). Logo, estudar sobre o horror envolve descobrir
sobre os medos, angústias e problemas que envolvem o período em que o filme é
produzido. Sendo assim, a imagem do monstro é responsável por apresentar esse
incômodo.

894
Embora sua presença não seja mais obrigatória no gênero, a imagem do monstro é
fortemente vinculada ao horror e possui um papel essencial nas tramas em que
aparece. Ela é a responsável por responder a pergunta: Do que temos medo? Ian M.
Baldwin estuda sobre a origem do monstro dentro do cinema do horror e a natureza
da sua caracterização. "O significado desses primeiros filmes de terror exaltarem a
importância da deformidade e do grotesco e da aterrorizante maquiagem para o
cinema de horror americano” (BALDWIN, 2000, p. 34, tradução nossa). Claro,
vampiros, lobisomens e mortos-vivos conseguem tirar noites de sono por sua
aparência horrenda e aspecto sobrenatural, mas também podem estar
representando medos mais profundos dentro de uma camada social. O monstro é
tudo aquilo que abominamos e repreendemos dentro da nossa cultura, sendo assim,
em outras palavras, o vilão da história e o errado.

Tomaz Tadeu da Silva debate como criamos relações binárias entre aquilo que somos
ou não. Essa relação se dá através do sistema de identidade, aquilo em que nos vemos
representados, e a diferença que nos distancia de nós. “Afirmar a identidade significa
demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica
fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles"
(SILVA, 2000, p. 82). Essa relação se dá através de um sistema de oposição como se
aquilo que sou o outro não poderá ser também. Isso constrói uma dinâmica em que
constantemente caracterizamos o outro com atributos negativos. “Ela não é o que
eu sou. As afirmações sobre a diferença também dependem de uma cadeia, em geral
oculta, de declarações negativas sobre outras identidades” (SILVA, 2000, p. 75).
Assim, o Eu se torna o desejável, o bom e o correto, enquanto o Outro é aquele quem
desvia da curva, sendo aquele que é fora do normal, uma anomalia. “Nesta
perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se
define a diferença” (SILVA, 2000, p. 75)

O monstro é uma ameaça sobrenatural, algo que ameaça o bem estar e a integridade
moral daqueles que o rodeiam. Frequentemente é caracterizado como o
desconhecido, oriundo de uma superstição antiga, de uma terra distante ou uma
cultura exótica. Em Drácula (1931) e A Filha de Drácula (1936) o monstro não só são
vampiros, mas também uma ameaça estrangeira que não corresponde ao padrão
heteronormativo do ocidente. Em A Noiva de Frankenstein (1935), A Filha de Drácula

895
(1936) e Sangue de Pantera (1942) o monstro é a sexualidade feminina que é
apresentada como uma ameaça ao homem dentro da hierarquia social. O monstro é
aquilo que uma sociedade considera como ameaçadora e que apesar de reprimida e
marginalizada, tem o poder necessário para destruir suas vítimas. Cada época e lugar
possui um monstro diferente que marca a história do gênero, e por isso se torna
importante estudar essas imagens: Para entender como representamos o outro.

Cinema e linguagem

Como linguagem, o cinema exerce a função de comunicação através de seus


elementos de iluminação, direção e enquadramento, por exemplo. O processo fílmico
é também um processo social, visto que reflete uma visão que envolve toda uma
equipe de gravação. “O cinema, em particular, é um meio curiosamente potente para
confrontar e investigar os problemas básicos dos humanos da nação e do mundo:
guerra, raça, sexo, e drogas” (LANIER, 1972, p. 19). Percebemos isso por meio das
escolhas presentes dentro do filme, em como as imagens dos personagens são
percebidas pelo público, e se simpatizamos com eles ou não. Pode ser, por exemplo,
um recurso narrativo para pensarmos nas relações dentro de nossa própria
sociedade.

Quando pensamos no gênero do horror, vale ressaltar que por se tratar muitas vezes
de criaturas fantasiosas e sobrenaturais dentro de uma trama não-naturalista, não
significa dizer que o gênero não representa a realidade de forma alguma. É certo
dizer que vampiros, lobisomens e fantasmas não são parte de nosso mundo tangível
e são, de fato, produtos dos nossos sonhos, mais especificamente pesadelos.
“Antonin Artaud em um texto de 1927 foi ainda categórico. ‘Se o cinema não é feito
para traduzir sonhos ou tudo o que, na vida consciente, se assemelha ao sonho’”,
afirmou, “então o cinema não existe” (STAM, 2000, p. 75). Esses mesmos monstros
que existem somente em nossas imaginações acabam por se tornarem
representações de questões muito mais complexas que envolvem a nossa sociedade.

A cultura visual é o campo em que pesquisamos sobre imagens em um contexto


sociocultural, e em como representamos nós mesmos e os outros. A imagem se torna
um discurso, que, por meio das linguagens dentro de um mundo globalizado, é
repetida à exaustão, reforçando ideais e estereótipos. Aqui, faremos um recorte
896
dentro do audiovisual, levantando os principais conceitos dentro da cultura visual
aplicados nesta área, para refletir sobre a imagem do monstro a partir dessa lógica.

A imagem que é inserida dentro dos filmes não cria somente uma narrativa para as
personagens, mas também permite inserir dentro do universo cinematográfico
debates sobre como representamos determinados grupos. “Quando ensinamos as
crianças sobre o significado simbólico dos artefatos - na nossa e em outras culturas
- devemos estar dispostos a conversar com elas sobre a vida e não somente sobre a
arte” (CHAPMAN, 1978, p. 99). Hays Code, por exemplo, foi um conjunto de regras
que ditou como os filmes entre os anos de 1930 e 1968 deveriam representar
determinados assuntos. Em seus princípios gerais, encontra-se em primeiro lugar
que: “Nenhum filme deve ser produzido de forma que irá ferir os princípios morais
daqueles que o veem. Dessa forma, a simpatia do público não deve ser voltada para o
lado do crime, do errado, do mal ou do pecado”. Dessa maneira, analisar um
personagem não implica somente em discutir o filme em si, mas também na
construção da imagem de determinados grupos dentro da sociedade. Visto que
caracterizar um personagem como “queer”, por exemplo, naquele contexto estaria
automaticamente colocando-o dentro do papel de antagonista. É importante ter em
mente como a imagem desse grupo foi representada dentro desses filmes e como
isso se tornou um reflexo da sua narrativa histórica. “Na medida em que a imagem
passa a ser compreendida como signo que incorpora diversos códigos, sua leitura
requer o conhecimento e a compreensão desses códigos” (SARDELICH, 2006, p. 453).

“As imagens não cumprem apenas a função de informar ou ilustrar, mas também de
educar e produzir conhecimento” (SARDELICH, 2006, p. 459). Personagens de um
filme são fragmentos de uma sociedade, tanto pelo que representam quanto por
quem são representados. Eles emitem um discurso e nunca são esvaziados de
contexto ou simbolismo. “Ler uma imagem historicamente é mais do que apreciar o
seu esqueleto aparente, pois ela é construção histórica em determinado momento e
lugar, e quase sempre foi pensada e planejada” (SARDELICH, 2006, p. 457). Estudar
uma obra visual envolve levar em conta uma data e local de produção, assim como
estabelece uma visão sobre aquilo que é representado.

No mundo da arte, por exemplo, encontramos, dentro dos museus, a imagem da


mulher em muitas pinturas famosas. No entanto, essas imagens foram pintadas em

897
sua maioria por artistas homens, e a quantidade de mulheres dentro desse espaço é
reduzida. “Se pode afirmar que a arte ocidental negou às mulheres sua participação
na história, representando-as como objetos e espelhos das expressões mentais
masculinas” (ABREU, 2015, p. 3829). A imagem mais propagada da mulher dentro
dessas instituições é aquela que o outro, o homem, tem sobre ela. Como uma artista
representa o seu eu dentro de uma pintura é diferente de como um artista homem o
faz. Um exemplo clássico dessa discrepância da sua imagem são as pinturas de
mesmo nome Judith Beheading Holofernes, feitas por Caravaggio (1598-1599 ou 1602)
e Artemisia Gentileschi (1620-1621). Ambas as pinturas retratam a mesma história na
qual o general Holofernes, que invadia uma cidade, é assinado por uma viúva, Judith,
e sua criada Abra, moradoras da cidade invadida.

Na pintura de Caravaggio, Judith, responsável por cortar o pescoço do general,


mantém distância do corpo e aparenta ter receio em relação ao ato, uma vez que
aparenta estar se afastando do corpo, assim como sua expressão facial franzindo a
testa. Em uma analogia seria como se ela estivesse lavando a louça sem querer se
molhar. Já na pintura de Artemisia Gentileschi, Judith aparenta estar decidida a
matar, não há receio, horror ou arrependimento em seu rosto. Até mesmo sua criada
ganha um papel mais ativo, segurando Holofernes, se tornando assim não somente
uma espectadora, como na pintura de Caravaggio. Com este exemplo, busco mostrar
como existe uma diferença entre como eu me represento e como eu represento o
outro. “As mulheres foram representadas para reforçar a posição social do sujeito
“homem”, retratadas desde o âmbito doméstico e privado, associadas à submissão, à
castidade e à passividade” (ABREU, 2015, p. 3830). No cinema, ainda encontramos um
número muito inferior de diretoras mulheres em relação aos homens. Se olharmos
para o início dos sets de filmagem, não encontramos nenhuma. Isso serve para
qualquer grupo diferente da identidade “natural”. Logo, encontramos muito mais
uma visão do homem sobre a mulher. Isso não significa que sejam más
representações, somente representações diferentes. Podemos olhar para essas
imagens de forma crítica, para observar se existem problemas na forma que
representam esse grupo, “porque o que vemos forma parte e ao mesmo tempo
produz um discurso que regula não apenas o olhar, mas quem olha” (HERNANDEZ,
2011, p. 36).

898
“O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de
atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade
que supostamente apenas estamos descrevendo” (SILVA, 2000, p. 93). Os diretores e
produtores não desconhecem o poder que as imagens carregam de exercer
determinado discurso dentro de seus filmes. Uma peça audiovisual é parte da visão
de mundo desses profissionais, que são capazes de utilizar a imagem como
ferramenta para propor mudanças na forma como o seu eu ou os outros são vistos,
podendo tornar os vilões simpatizantes. Proporcionar a certos grupos papéis
diferentes daqueles que reforçam estereótipos permite questionar suas imagens
dentro da sociedade e seus lugares dentro dela. Como era muito comum nos filmes
de Hollywood, mulheres negras não recebiam muito além do que um papel de
empregada em um filme. Até a conquista de um Oscar de melhor atriz (Halle Berry,
em “A Última Ceia”, 2002), existiu um longo processo de debate e questionamento
sobre o seu papel dentro da sociedade e que lugares ela pode ocupar.

No processo de criação de imagens, seja em um filme, pintura ou publicidade, existe


uma relação em como esses artefatos são interpretados, tanto pelo público, quanto
pelo autor. “Na psicologia da forma, a imagem constitui percepção, já que toda
experiência estética, seja de produção ou recepção, supõe um processo perceptivo.
A percepção é entendida aqui como uma elaboração ativa, uma complexa experiência
que transforma informação recebida” (SARDELICH, 2006, p. 453). Dessa forma, a
imagem consegue adquirir significado, tanto pelo receptor que procura nela
correspondências com seu cotidiano, quanto pelo seu produtor, que busca
comunicar uma mensagem. Pensar como as imagens se relacionam dentro dessa
dinâmica e que local ocupam dentro daquilo que propõem nos permite elaborar
teorias sobre que impacto elas têm sobre nós.

Por exemplo, a cultura visual se embasa em projetos como estudos


afro, sociologia crítica, estudos culturais, estudos de filme e mídia,
nova história da arte, estudos pós-coloniais, antropologia visual,
estudos sobre a mulher e teorias como semiótica crítica (TAVIN, 2008,
p. 19).

Buscamos nas imagens uma forma de representar um conceito. O que é ser mulher,
homem, criança, adolescente ou adulto? Podemos encontrar nas imagens uma série

899
de caracterizações que são repetidas à exaustão ao se representar determinado
artefato. Dentro de determinado grupo social, somos então acostumados a olhar para
esses artefatos de forma específica. A maneira que representamos esses conceitos é
traduzida em nossa cultura visual, que observa nossos padrões. “Essa proposta ampla
e aberta enfatiza que o campo de estudos não se organiza a partir de nomes de
artefatos, fatos e ou sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à
noção de mediação de representações, valores e identidades” (SARDELICH, 2006, p.
466).

O cinema se comunica a partir de imagens que reforçam determinados


comportamentos. Desde a televisão às salas de cinema, encontramos no audiovisual
modelos do que devemos ser, fazer ou evitar. As imagens presentes nos filmes e
novelas têm um papel de educação social. Quem está sendo representado e como
são questões que são levantadas dentro da nossa cultura visual a fim de repensar as
relações dentro dela. “A representação reiterada de determinados temas e/ou
grupos sociais acabam por naturalizar e simbolizar um determinado grupo social
e/ou um tema como normal, aceitável'' (SARDELICH, 2006, p. 469).

Dessa forma, observamos como o uso de imagens dentro do audiovisual pode ser
responsável por estabelecer padrões, assim como repensar esse espaço. Por
exemplo, dentro das publicidades de maquiagem um produto associado fortemente
à construção do belo feminino que até pouco tempo era dominado pelo padrão
estético: Mulheres cis, brancas e magras. Esse padrão excluía corpos diferentes de
dentro das publicidades onde não se encontrava representatividade da mulher negra,
trans ou não magra. Hoje, encontramos uma diversidade maior dentro das modelos
que inclusive não se limita mais a mulheres, adotando drag queens, modelos não
binários e homens para aparecerem em suas publicidades. A imagem escolhida
nessas propagandas conta narrativas diferentes. Ao escolher um padrão de beleza,
você comunica que seu produto é o meio para alcançar esse ideal de quando a
maquiagem se torna um caminho para alcançar o belo. Já nas publicidades mais
recentes, a narrativa é que você já possui sua beleza, a maquiagem é somente um
meio para enfatizá-la.

900
O outro por trás da máscara do monstro

O horror certamente não é um gênero apreciado por todos. Ele pode ser gráfico,
perturbador ou aflitivo, provocando sensações que classificamos como ruins. Além
disso, por muitas vezes, os monstros nesses filmes são descritos como “esse bicho
feio” ou “coisa do demônio", o que os deixa em um lado completamente oposto ao
dos galãs do cinema que, com sua bela face e carisma, atraem multidões para as salas
de cinema. O gênero se distancia daquilo que chamamos de belo. Se os protagonistas
de romances servem como modelo para uma sociedade, o monstro é o oposto, ou
seja, tudo aquilo que é repreendido, incorreto e abominado.

No cinema, é muito importante que nos solidarizemos com as personagens. Por meio
da empatia, conseguimos tomar suas dores e casos, fazendo com que a história se
conecte conosco. Em outras palavras, é importante que você consiga se ver no lugar
daquelas personagens. Dentro da cultura visual, essa identificação se dá pelo
processo de semelhança e diferença. A partir de um sistema classificatório,
identificamos objetos e formamos grupos com os quais podemos nos relacionar.
Quem consome um filme busca nos seus personagens alguém com quem consiga se
identificar, assim como quem produz busca também se representar. Essa
personagem parece comigo? Passou pelas mesmas dificuldades que eu? Reage como
eu reagiria a essa situação? Essas são perguntas inconscientes que nós fazemos para
que consigamos nos relacionar com o filme.

Da mesma forma que procuramos nos identificar com o mocinho da história,


buscamos distância do vilão. Isso implica em estabelecer características diferentes
para cada um. Se o protagonista é honrado, bom e respeitável, seu antagonista não
pode compartilhar das mesmas qualidades, pelo contrário, afirmar uma qualidade
enquanto identidade caracteriza o outro como o oposto. “Nesta perspectiva, a
identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a
diferença” (SILVA, 2000, p. 75). Se eu sou bom, aquele que se opõe a mim não pode
ser também, logo ele é o errado, o maldoso e ruim. Identificação não é somente dizer
o que sou, mas também o que não sou. “Da mesma forma, as afirmações sobre
diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações
sobre a identidade” (SILVA, 2000, p. 75). Um conceito está ligado diretamente ao
outro através da oposição. “Nossa autoimagem é formada, em parte, através da inter-

901
relação visível com o eu dos outros” (CHAPMAN, 1978, p. 94). Nosso sistema de
representações é criado através de classificações de forma que afirmar, por exemplo,
que sou branco, logo, não sou pardo, nem preto, nem amarelo ou indígena. Se sou
heterossexual, logo não sou homossexual, bissexual, pansexual, demissexual, etc.

“Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o resultado de atos de criação
linguística significa dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem” (SILVA,
2000, p. 75). Identificar essas afirmações faz com que realizemos posicionamentos a
respeito sobre o nosso e os outros grupos sociais. “Quem sou eu? Quem é o outro?
Como eu vejo o outro? O outro é meu inimigo?” são perguntas a serem levantadas.
Com a tendência de se pôr como protagonista, o “eu” tende não só a vilanizar quem
não compartilha de suas mesmas categorias, mas também hierarquiza os grupos,
sendo eles divididos por questões étnicas, raciais, de gênero ou sexualidade. “Ela não
é o que eu sou. As afirmações sobre a diferença também dependem de uma cadeia,
em geral oculta, de declarações negativas sobre outras identidades” (SILVA, 2000, p.
75). Se eu, homem, sou forte, seguro e esperto, o outro, neste caso, a mulher, é tida
como frágil, histérica e emotiva. Longe de ser uma verdade, o exemplo demonstra
como a imagem é construída de forma que haja um superior, dando características
que não precisam ser negativas, mas ganham esta carga para sustentar uma
ideologia, a misoginia. “A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso
significa que sua definição-discursiva e linguística está sujeita a vetores de força, a
relações de poder” (SILVA, 2000, p. 81).

Em filmes como A Filha de Drácula (1936) observamos nitidamente a imagem do


homem como um "homem da ciência", através do Dr. Garth, um médico calmo que
sempre comanda suas decisões através da razão. Já o monstro da história, a
Condessa, é uma mulher que é atormentada pela presença de seu pai, traduzida na
forma do vampirismo, que busca alcançar uma normalidade e se libertar de seus
desejos. A sexualidade feminina aqui é tida como uma maldição que deve ser tratada.
Outra possível leitura é de que a maldição também represente a homossexualidade,
uma vez que o interesse pelas vitimas mulheres é tem um destaque maior na trama.
A busca incessante da Condessa por uma cura é feita através de sua dependência do
Dr. Garth, pois acredita que somente este homem seja capaz de curar sua maldição
e os males de sua mente. A narrativa possui um paralelo interessante com um

902
discurso anti-LGBT muito reproduzido, o de que "você ainda não encontrou o
homem/mulher certo". O Dr. Garth é o modelo de homem de seu tempo, se existe
alguém que a faça alcançar o padrão heterossexual tem de ser ele. Tanto a
sexualidade feminina quanto a fuga da heterossexualidade são tidas como atributos
do mal, do não natural e daquilo que foge do padrão. O vampirismo aqui é
aterrorizante pois “a vampira lésbica, além de ser um arquétipo de fantasia gótica,
pode ser usada para expressar um medo masculino fundamental de que a ligação
feminina exclua os homens e ameace a supremacia masculina” (ZIMMERMAN, 1981).

“Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o


que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte
separação entre "nós" e "eles" (SILVA, 2000, p. 82). O sistema de representações que
é construído em uma sociedade também pode ser responsável por uma segregação.
Se me considero superior, vejo o outro como pior e em alguns casos podendo até ser
prejudicial à sociedade. A imagem do outro pode se tornar indesejada e, até mesmo,
pode ser criado um sentimento de aniquilação em busca de construir uma sociedade
homogênea. O nazismo, por exemplo, almejava construir uma sociedade com
identidade homogênea, livrando-se do outro, em sua maioria judeus. O outro pode
ser também como uma anomalia, ponto de vista muito presente em discursos
homofóbicos e transfóbicos. “A identidade normal é ‘natural’, desejável, única. A força
da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas
simplesmente como a identidade” (SILVA, 2000, p. 83). Um grupo no topo da
hierarquia social se vê como unidade de medida e, a partir dele, diferencia os outros.
“Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, ‘étnica’ é a música
ou a comida dos outros países” (SILVA, 2000, p. 83). Dessa forma, não classifico o
outro como indígena, preto, pardo ou amarelo, mas sim como uma pessoa de cor. O
outro não é homossexual, bissexual, pansexual ou demissexual, ele é gay.

Em Sangue de Pantera (1942), conseguimos observar muito bem a separação entre o


eu, bom e correto, e o outro monstruoso. Aqui, o protagonista e o monstro se tornam
um. Irena é uma jovem imigrante sérvia nos Estados Unidos que busca se encaixar
nos padrões americanos, porém seu único impedimento é uma maldição oriunda de
sua terra natal que a transforma em uma feroz pantera quando sob efeito de fortes
emoções. Existem então os dois lados de Irena, aquele visto com bons olhos pela

903
sociedade, que a protagonista busca fortemente solidificar como o predominante, e
o felino perigoso, nosso monstro. A imagem da pantera é mencionada no próprio
filme como algo maligno e oriundo do diabo, e tudo o que essa segunda metade
representa pode ser lida como um ataque aos modelos tanto de mulher quanto de
cidadão americano. O tropo de uma divisão do indivíduo entre uma parte boa e uma
monstruosa pode ser rastreada desde o início do gênero do horror. Em O Médico e
o Monstro (1941), o Dr. Jekyll também é dividido em duas personalidades, uma
socialmente aceita e integrada, enquanto a outra é monstruosa e apresentada como
uma segunda identidade, Hyde. Em ambos os casos citados observamos que embora
seja a mesma personagem com comportamentos diferentes, há dentro dos seus
respectivos filmes uma separação como se estas partes fossem entidades diferentes.
Alguém não pode ser um membro funcional da sociedade e um monstro ao mesmo
tempo. Existe Irena boa esposa e modista e existe a pantera feroz. Existe o bom
senhor Dr. Jekyll e o terrível Hyde.

Estruturalmente, o que está envolvido na ficção espacial é um processo


de multiplicação, ou seja, um personagem ou conjunto de caracteres é
multiplicado em uma ou mais novas facetas, cada uma representando
outro aspecto do eu, geralmente um que é escondido, ignorado,
reprimido, ou negado pelo personagem que foi clonado (CARROLL,
1981, p. 21, tradução nossa).

A uma clara separação entre as personalidades, uma é boa que se mescla na


sociedade e outra é má, uma ameaça para ela. A transformação pode ser vista como
aquilo que a sociedade permite ou não. Existe o medo de se transformar, se tornar
profano e cometer um pecado, nunca mais retornando a sua forma normal. “O lobo
era sagrado para Odin, o gato para sua esposa Freya. Mágicos homens se
transformam em lobos, mulheres em gatos” (JONES, 1931, p. 137, tradução nossa). Em
Sangue de Pantera (1942), o lobisomem é adaptado para um gato grande, a pantera,
sua contraparte feminina, que apesar de não ser idêntico ao mito compartilha de sua
mesma simbologia. “Na Armênia, as mulheres pecadoras são punidas tendo que
passar sete anos como lobisomens do sexo feminino” (JONES, 1931, p. 147, tradução
nossa).

904
Conclusão

No cinema do horror, a relação entre identidade e diferença pode ser tida na relação
do filme com o monstro. Por estarmos constantemente diante de uma ameaça, o
gênero tende a incorporar a imagem do monstro com qualidades negativas. A
capacidade do cinema como linguagem de inserir temas sociais dentro de sua
narrativa apresenta o monstro como o outro. Dentro da lógica do Hays Code, se o
monstro é o vilão, ele é o personagem carregado das qualidades negativas impostas
por uma identidade, que devem ser punidas por seu desvio. Ele é tido como o vilão,
construído não para cativar a audiência, mas sim para provocar seu espanto, alguém
para torcer contra. Com isso são construídos monstros como Drácula (1931), a
Condessa (A Filha de Drácula 1936) e Irena (Sangue de Pantera 1942) que de forma
mais aberta ou através de códigos abordam o estrangeiro, a homossexualidade e a
sexualidade da mulher como ameaça em seus respectivos filmes.

O horror e o desconhecido, ou o estranho, mantêm sempre uma


relação muito estreita, de modo que é difícil pintar um retrato
convincente do esfacelamento das leis naturais ou da estranheza ou
singularidade cósmica sem destacar a emoção do medo (LOVECRAFT,
2009, p. 151).

O diferente pode ser, por muitas vezes, vilanizado. Principalmente quando esse se
demonstra como ameaça à hierarquização dentro da sociedade, ameaçando os status
da identidade dominante. Tomando como exemplo o autor Lovecraft, que possui a
fama de representar outras culturas como cultistas de deuses pagãos, adoradores de
seres monstruosos e praticantes de atividades suspeitas. Não brancos em seus livros
compartilham muito com uma visão imperialista de que o outro, não europeu, é
exótico e primitivo. Importante salientar também que o vampiro Drácula (1931) não é
descrito como belo e, sim, como “fascinante”, o que aponta uma curiosidade em
relação ao outro, tão parecido, mas tão exótico. Além disso, filmes como King Kong
(1933) e Anaconda (1997) mostram como o medo do desconhecido, da outra cultura,
pode ser representado por meio da imagem do monstro, uma força bruta e
descontrolada que habita ambientes hostis aos quais nenhum homem (branco) já
pisou e agora, inserido na sociedade, se tornam uma força destrutiva. Os filmes de
monstro não só repetem os estereótipos de suas épocas, mas muitas vezes são

905
cientes disso e conseguem subverter a trama, adicionando algo novo que por muitas
vezes questiona os tropos reforçados.

Tendo o Conde Drácula como exemplo, a imagem do vampiro então não é a de um


homem branco como muitos podem achar. A própria escolha de designar este papel
a Béla Lugosi, um ator de origem romena, terra do mito de Drácula, demonstra o
conhecimento da equipe de filmagem do contexto do vampiro. “Embora menos
traumática que a diáspora ou a migração forçada; a viagem obriga quem viaja a
sentir-se "estrangeiro", posicionando-o, ainda que temporariamente, como o outro”
(SILVA, 2000, p. 88). Drácula é então um estrangeiro que se estabelece em uma nova
cidade e consegue prestígio social mesmo não se alinhando ao padrão dela, seja por
não ser da mesma etnia e compartilhar das mesmas crenças ou por não se restringir
aos padrões de sexualidade dessa sociedade. Por isso o monstro assusta, ele não
precisa se encaixar dentro dos moldes para ter poder. Dentro das relações
hierárquicas estabelecidas uma mulher que desafia a autoridade masculina em uma
relação, como em A Filha de Drácula (1936) e Sangue de Pantera (1942), ou um
estrangeiro que ameaça a existência dos nativos somente pela sua presença, em
Drácula (1931), são caracterizados como monstruosos, um mal que deve ser
exterminado para manter a prosperidade. A sexualidade da mulher é constantemente
tida como monstruosa, a possibilidade de rejeição, de não dependência e iniciativa
vinda de uma mulher só poderia ser explicada através do sobrenatural, diagnosticada
pelo homem da ciência como uma doença da mente, desvio de caráter. Para uma
mulher nesses filmes, sentir desejo é algo que é recriminado não somente pela
sociedade, mas também por si mesma, visto que uma ideia de normalidade imposta
pelo patriarcado já está difundida na sociedade e assim internalizada pela mulher
monstro. “Então, neste ponto, saímos de uma discussão propriamente sobre a
psicopatologia feminina e invadimos a questão da mulher, como sujeito que possui
uma castração corporal como referência para sua sexualidade e que está inserida
numa sociedade com normas culturais estabelecidas”. (DOMINGUES, 2014, p. 125)

Para além de uma análise semiótica, a análise de um filme, seus personagens,


cenários e direção são capazes de nos instigar a questionar as imagens que
consumimos dentro de um contexto sociocultural. “Para tanto pensar o lugar do
corpo dentro desse discurso é importante para analisarmos as posições que são

906
produzidas sobre nós e nos quais o sujeito discursivo se submete a construção
imagética do tempo em que se encontra” (MARINHO, MILANEZ, 2015, p. 6). Assim,
analisar como a imagem do monstro é representada, levando em conta seu contexto,
como ele é transcrito visualmente e como se relaciona com a imagem do outro é
relevante para discutirmos o nosso meio. Assim, propor a leitura de imagens, não
somente em filmes, tem seu espaço dentro do ensino por “favorecer a mudança de
posicionamento dos sujeitos de maneira que passam a constituir-se de receptores
ou leitores visualmente críticos” (HERNANDEZ, 2000, p. 38).

Referências

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Culture, 1919-1932 (Undergraduate honors thesis, University of Redlands). 2008. Disponível
em: https://inspire.redlands.edu/cas_honors/113
CARROLL, Noel. “Nightmare and the Horror Film: The Symbolic Biology of Fantastic
Beings.” Film Quarterly, vol. 34, no. 3, 1981, pp. 16–25. Disponível em:
www.jstor.org/stable/1212034. Acesso em: 27 jul. 2021.
CHAPMAN, L. H. Approaches to Art in Education. New York: Harcourt Brace Jovanovich,
1978.
DOMINGUES, Mariana Rosa Cavalli. Estudo Epistemológico da Teoria Freudiana da
Feminilidade. Unilasalle, Canoas, v. 1, n. 25, p. 123-132, abr. 2014.
HERNANDEZ, Fernando. Cultura, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
JONES, Ernest. The Connections between the Nightmare and certain Medieval
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LANNIER, V. Objectives of teaching art. Art Education, 25(3), 15-19, 1972.
LOVECRAFT, Howard Phillips. Notas sobre a escrita de contos fantásticos. In: ______. O
chamado de Cthulhu e outros contos. São Paulo: Hedra, 2009.
MARINHO, M. I. T. ; MILANEZ, Nilton . Marcas do poder: imagem, corpo e abjeção no amor
entre mulheres em filmes de horror. In: IV Colóquio de Estudos em Narrativa - CENA, 2016,
Uberlândia. Anais do CENA. Uberlândia: EDUFU, 2015. v. 2.
MARKENDORF, Marcio ; RIPOLL, L. (Org.) . Expressões do horror - escritos sobre cinema
de horror contemporâneo. 1. ed. Florianópolis: Biblioteca Universitária Publicações, 2017. v.
1. 197p.
SARDELICH, M. E. . Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa. CADERNOS DE
PESQUISA (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. IMPRESSO), v. 36, p. 451-472, 2006.

907
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(Org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. 1ed.Petrópolis: Vozes,
2000, v. 1, p. 73-102.
STAM, Robert. Introdução À Teoria Do Cinema. Campinas: Papirus Editora, 2000.
TAVIN, Kevin M. Antecedentes Críticos da Cultura Visual na Arte Educação nos Estados
Unidos. Goiânia: 2008.
ZIMMERMAN, Bonnie. Daughters of Darkness: Lesbian vampires. 1981. Disponível em:
https://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC24-25folder/LesbianVampires.html .
Acesso em: 12 jun. 2022.

Mini Currículos

Pablo Petit Passos Servio


Professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Mestre
e Doutor em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail:
pablo.servio@ufma.br

Carlos Vinicius Moreira de Brito Santos


Graduado no curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail:
cvbritoo@hotmail.com

908
ATELIÊ DA MATA: ESCOLA DE MAGIA E ENSINO DAS ARTES VISUAIS NA
CHAPADA DIAMANTINA

ATELIÊ DA MATA: SCHOOL OF MAGIC AND VISUAL ARTS TEACHING IN


CHAPADA DIAMANTINA

Benjamin Marins Costa


Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Lutiere Dalla Valle


Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Resumo

No presente artigo, parte-se de um relato de experiência para pensar e propor experiências


artísticas enredadas pela fantasia em diálogo com a natureza no contexto do projeto
intitulado Escola de Magia (2021) no Vale do Capão, realizado na Chapada Diamantina/Bahia.
O projeto foi desenvolvido no Ateliê da Mata, espaço de arte e educação que tem como uma
de suas metodologias o desenvolvimento de projetos a partir do interesse das crianças
participantes. A Escola de Magia foi cocriada junto a sete crianças que frequentavam o Ateliê
e que tinham interesse em aprender como fazer uma varinha mágica. Para o
desenvolvimento do projeto, realizamos uma pesquisa no campo das artes visuais, tendo
como referências a cultura visual, arte contemporânea, conhecimentos da sabedoria popular
e estudos sobre magia, ciência e mitologia. A justificativa do seguinte trabalho se deve à
importância de ouvir o que as crianças querem aprender e das potências que podemos
encontrar ao oferecer ferramentas para que elas realizem suas invenções.

Palavras-chave: Arte, Educação, Cultura Visual e Magia.

Abstract

In this paper, we start from an experience to think about a artistic experiences recorded by
fantasy in dialogue with nature in the project entitled Escola de Magia (2021) in Vale do Capão
carried out in Chapada Diamantina/Bahia. The project was developed at Ateliê da Mata, art
and education space that has as one of its methodologies the development of projects based
on the interest of the participating children. The “Escola de Magia” was co-created with
seven children who attended the Atelier and were interested in learning how to make a magic
wand. For the development of the project, we carried out research in the field of visual arts,
with references to visual culture, contemporary art, knowledge of popular wisdom and

909
studies on magic, science and mythology. The justification of the following work is to the
importance of listening to what children want to learn and the potential that we can find
when offering tools for them to do their inventions.

Keywords: Art, Education, Visual Culture and Magic.

Introdução

Estávamos todos em torno da fogueira quando Indra pergunta: ‘– Como


se faz uma varinha mágica?’ As crianças dessa roda gostavam de Harry
Potter, banho de cachoeira e filmes de terror. Nessa tarde, que
estávamos os oito numa meia lua ao redor da fogueira, muitas ideias
estavam surgindo e eu, tentando anotar com a caneta tudo o que era
falado. A cada dois meses nós fazíamos esse ritual: sentar numa roda
para escrever nosso novo projeto. (Fragmento do Diário de um dos
Autores).

Nesse trecho do diário de bordo, podemos localizar o início da presente pesquisa que
segue em andamento. Desde sua fundação, o Ateliê da Mata oferecia inúmeras
possibilidades de articulação com o campo das artes visuais. Entretanto, como
relatado, optou-se pelo tema “magia”, pois apresentava-se de modo latente em
muitas conversas e brincadeiras das crianças do Vale do Capão, vilarejo localizado no
interior da Chapada Diamantina. Esse Vale, localizado entre grandes montanhas no
território da Bahia, foi escolhido como abrigo para muitas pessoas que buscavam
estar em contato com a natureza e com o “misticismo”. As crianças que frequentavam
o Ateliê da Mata eram filhas e filhos dessas pessoas que procuravam um estilo de vida
alternativo ao que é oferecido nas grandes cidades. Parte dessas famílias eram
estrangeiras, o que contribuiu para criar um ambiente cosmopolita na região.
Durante os dois anos atuando no Ateliê da Mata, foram desenvolvidos mais de vinte
projetos com mais de sessenta crianças, que eram cocriadoras das pesquisas. Nesse
período, foi possível conhecer grande parte das crianças do Vale do Capão e trabalhar
diretamente com elas, experimentando diferentes metodologias para a criação dos
projetos.

Quando uma das crianças perguntava como se fazia uma varinha mágica,
questionava-se o grupo sobre seu interesse em iniciar uma pesquisa sobre magia,

910
visto que esse assunto estava sempre presente nas brincadeiras. O interesse unanime
configuraria nosso novo projeto: como enredar práticas artísticas, saberes populares,
fantasia e criação junto às infâncias ali presentes?

Imbuídos desta pergunta, para esta escrita, optou-se por sistematizar o texto a partir
de três partes: “O ambiente da pesquisa”, “Um breve estudo sobre magia” e “A
pesquisa junto às crianças”. Na primeira parte, “O ambiente da pesquisa”, nos ajuda
a situar percursos pessoais entorno a criação do Ateliê na Mata na Chapada
Diamantina e como esse ambiente e história de vida de um dos proponentes se
atravessam. Em “Um breve estudo sobre magia”, são apresentados alguns conceitos
da obra Esboço de uma teoria geral da magia, do antropólogo francês Marcel Mauss.
Esse estudo contribuiu para iniciar pesquisas sobre magia no âmbito acadêmico e
complementar os estudos sobre magia na cultura popular. Para finalizar, em “A
pesquisa junto às crianças”, apresentamos parte do processo da pesquisa, no qual
utiliza-se a metodologia de aprendizagem por Projetos de Trabalho (HERNÁNDEZ,
1998).

O ambiente da pesquisa

O Ateliê da Mata

O Ateliê foi um sonho realizado na Chapada Diamantina no ano de 2020. Durante um


curto período de férias no Vale do Capão foi possível experimentar e reconhecer
neste espaço o potencial para a criação de um projeto que vinculasse arte e cultura
popular pelo viés da experiência mística. Nos primeiros meses, foram ofertadas
oficinas de artes visuais para crianças de seis a nove anos. Inicialmente, projetos que
conectavam práticas artísticas com os elementais da natureza. Após alguns meses de
atividades e com demandas de criar novas turmas, decidiu-se alugar um sítio e
fundar o Sítio Educarte. Juntamente com o querido amigo e novo sócio, André
Chantre, eram oferecidas aulas de alfabetização e matemática durante as manhãs e,
às tardes, diferentes cursos de artes visuais. Tendo como inspiração o educador
Paulo Freire, o poeta Manoel de Barros, o ateliê Reggio Emilia e a Escola da Ponte,
fundou-se o Ateliê da Mata, um espaço de arte e educação entre a mata atlântica, o
cerrado, a caatinga, as montanhas, rios e cachoeiras da Chapada Diamantina – espaço
dedicado aos indígenas brasileiros e todos os guardiões da natureza.

911
Durante as tardes, as crianças desenvolviam projetos artísticos a partir dos seus
interesses e o Ateliê se configurava como espaço de ensino e aprendizado não-
formal, no qual as crianças frequentavam no contraturno das atividades escolares.
Eram seis turmas diferentes, com projetos específicos para cada grupo e com uma
média de sete crianças por tarde. Em um dos encontros com o grupo de quinta-feira,
realizamos uma fogueira para decidir qual seria o nosso novo projeto. Uma das
crianças sugeriu que gostaria de aprender a fazer uma varinha mágica, e, com grande
entusiasmo, definiram nosso projeto.

O Despertar da criança interior: encontros

Para todos os lugares que vou, levo minha criança interior ao meu lado.
Quando era pequeno, gostava de ficar no meu quintal brincando com
as plantas, os animais e desenhando a natureza. Aos sete anos e com
muito interesse por magia, criei minha primeira varinha mágica com
um pedaço de madeira que encontrei debaixo de laranjeira. Como
meus pais eram evangélicos e não gostavam muito de feitiços e
bruxarias, eu escondia meus objetos mágicos numa caixa dentro do
meu guarda-roupa. Na caixa, além da varinha mágica, guardava
pedaços de borboletas que encontrava no quintal, besouros mortos,
flores secas e uma bola de cristal que construí com um pequeno globo
de vidro que achei no armário da minha mãe. Recordo que toda vez que
ventava muito, gostava de ir para a frente da casa com minha varinha
fingindo que manipulava o ar. Eu acreditava ser um bruxo dos ventos e
das invenções (Fragmento do Diário de um dos Autores).

Quando Indra, em torno da fogueira no Vale do Capão, sugeriu que gostaria de


aprender a fazer uma varinha mágica, ativou memórias muito especiais. Trabalhar
com crianças é um constante olhar para a infância interior que de algum modo
permanece conectada, sentimento que poderia estimular a criação de espaços que
gostaríamos de ter acessado quando crianças. Espaços onde as crianças encontrem
ferramentas para materializar seus projetos e sonhos, com respeito e cuidado.
Atualmente, percebe-se um afastamento das crianças de uma natureza ancestral e
consequentemente delas mesmas. Neste contexto, parece-nos relevante questionar
sobre o que podemos aprender com a natureza, talvez começando pelos saberes
ancestrais relacionados às plantas, suas propriedades: o que podemos aprender
com/ a partir das plantas? O que vejo de mim ao olhar para uma fogueira no centro

912
de uma roda, como faziam nossos ancestrais? O que se aprende em uma roda de
afetos e experiências sensíveis com a natureza?

Após Indra sugerir que fizéssemos uma varinha, Antara disse que gostaria de fazer
poções mágicas. Novas ideias foram surgindo e decidimos criar uma Escola de Magia.
Com sugestões de todos, elaboramos oito encontros de três horas e meia e divididos
por temáticas: criação de varinhas mágicas; alquimia, herbologia e poções; animais
de poder e os povos nativos brasileiros; dança e movimento; o poder do som: feitiços
musicais; geometria sagrada: culturas egípcias e maia, Joseph Campbell: a jornada do
herói e mitologia para crianças, encerramento com a construção do livro de artista e
magia. Durante dois meses realizamos oito encontros com a participação de dois
convidados especiais: a professora de música Carolina Endi para o encontro de
feitiços musicais e o engenheiro e professor André Chantre para o encontro sobre
geometria sagrada.

Escola de Magia

Desde o início do projeto tivemos o cuidado para respeitar o campo subjetivo das
crianças e de não trazer crenças pessoais como verdades. “A magia é, por definição,
objeto de crença” (MAUSS, 1974, p. 60). Para isso, nos deslocamos pelo caminho dos
questionamentos e não das conceitualizações, para que, entre elas, pudessem ser
elaborados significados valorizando suas narrativas e processos imaginativos. Nesta
linha de problematizações, incitamos o grupo: o que é magia? O que é um bruxo?
Magia pode ser ensinada? O que é uma poção? Começamos criando uma lista das
referências de bruxos e bruxas, feiticeiros e feiticeiras do imaginário das crianças.
Surgiram nomes como Harry Potter, Hermione Granger, Dumbledore, Maga
Patológica, Malévola, Rainha malvada da Branca de Neve, Úrsula, Feiticeira Branca,
Merlin, e quando questionados se eles conheciam alguma bruxa ou bruxo brasileiro,
Júlia grita bem alto “– A minha mãe!! Minha mãe disse que é uma bruxa e acho que
ela pode ir para a lista”.

De modo geral, podemos observar que no imaginário dessas crianças, moradoras do


interior da Chapada Diamantina, as maiores referências de bruxos e feiticeiras
surgem da literatura e do cinema internacional. Apesar do projeto ter sido criado
coletivamente e as crianças terem consciência de que não iriamos aprender a voar
913
ou fazer objetos flutuarem, percebemos o desafio de pensar encontros criativos que
estimulassem a imaginação e que permitissem que elas acessassem outras
referências, subsidiando-se em seus cotidianos. Neste interim, os primeiros desafios
dilemas ao escrever o projeto foram: como apresentar os pequenos movimentos da
vida como potências mágicas? Como reconhecer que pequenos feitiços e poções,
como criar um chá para curar uma gripe, podem ser tão incríveis quanto os efeitos
especiais produzidos por magos de Hollywood? Que visualidades e mitologias
poderíamos utilizar para ampliar o repertório das crianças sobre magia, feitiços e
referências de bruxas e bruxos? Ao começar a sistematização do projeto,
percebemos que seria uma viagem coletiva de autoconhecimento, onde
acessaríamos nossos bruxos e bruxas interiores.

Um breve estudo sobre magia

Para desenvolver o conceito de magia, trazemos como referência o trabalho “Esboço


de uma teoria geral da magia”, do antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950), com
colaboração de H. Hubert. No texto, os autores realizam um estudo sobre as magias
de diferentes sociedades, como as de algumas tribos australianas, de sociedades
melanésias, do antigo México, Índia, duas nações de raízes iroquesas, a Cherokee e a
Huron, e estudos das magias gregas e latinas e a história da magia na Idade Média.
Para os autores, foi importante realizar um estudo com diferentes culturas para
chegar mais próximos de elementos essências:

[...] devemos nos propor estudar sistemas o mais heterogêneos


possível. Será o meio de estabelecer que, por mais variáveis que sejam,
segundo as civilizações, suas relações com as outras classes de
fenômenos sociais, a magia ainda assim contém em toda parte os
mesmos elementos essenciais, e que, em suma, ela é em toda parte
idêntica. (MAUSS, 1974, p. 55).

Ao longo do texto, o autor assume a complexidade de uma definição sobre o que é


magia, e a distingue entre agentes, atos e representações, em que

[...] chamamos mágico o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo


quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as
ideias e as crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos

914
atos, em relação aos quais definimos os outros elementos da magia,
chamamo-los ritos mágicos. (MAUSS, 1974, p. 55).

O autor ainda distingue os ritos mágicos dos ritos religiosos, trazendo como pontos
de distinção, os agentes que realizam as magias, os locais escolhidos pelos agentes e
a relação com o público: “O isolamento, como o segredo, é um sinal quase perfeito
da natureza íntima do rito mágico. Este é sempre obra de um indivíduo ou de
indivíduos que agem de modo privado; o ato e o ator são cercados de mistério
(MAUSS, 1974). Mauss afirma que, enquanto o rito religioso é realizado, à luz do dia e
com um público, o rito mágico os evita. Até mesmo quando o mágico precisa realizar
seus encantos em frente ao público, o realiza com murmúrios ou falas baixas e quase
identificáveis. Após pontuar algumas diferenças entre os ritos, o autor propõe uma
definição provisória para rito mágico e magia: “Percebe-se que não definimos a magia
pela forma de seus ritos, mas pelas condições nas quais eles se produzem e que
marcam o lugar que ocupam no conjunto dos hábitos sociais.” (MAUSS, 1974, p. 61).

Quem é o mágico?

O autor compreende como mágico o agente dos ritos mágicos, sendo ele um
profissional ou não. Ao diferenciar o mágico dos ritos mágicos, Mauss identifica que
não especialistas podem conduzir magias. Isso acontece, por exemplo, com o auxílio
de receitas caseiras e também na medicina mágica. Pessoas que não são especialistas
podem, momentaneamente, assumir o papel de mágicos. É como se o rito
transformasse temporariamente a pessoa.

Além disso, quem se serve de uma fórmula mágica julga possuir em


relação a ela, ainda que seja das mais banais, um direito de propriedade.
O camponês que diz ‘a receita de minha avó’ está qualificado, desse
modo, a servir-se dela; o uso da receita confina aqui com o ofício.
(MAUSS, 1974, p. 62).

Segundo a Igreja da Idade Média na Europa cristã, não havia magia sem mágico,
sendo assim, todo aquele que se envolvia com magias recebia as punições. Para além
dos não especialistas, o mágico iniciado tem qualidades especificas “Não é mágico
quem quer: há qualidades que distinguem o mágico do comum dos homens. Umas
são adquiridas, outras congênitas; há algumas que lhe são atribuídas, outras que ele

915
possui efetivamente.” (MAUSS, 1974, p. 62). O autor cita ainda características físicas
que também foram atribuídas aos mágicos, que inclusive foram usados no período da
Inquisição como perseguição. Destaca-se o olhar: “Dizem que, em seus olhos, a
pupila comeu a íris, que a imagem se produz invertida” (MAUSS, 1974, p. 62). O “mau
olhado” do mágico era temido nesse período.

Mauss pontua que em diferentes culturas as mulheres foram reconhecidas como


mais aptas às magias do que os homens e que em períodos como a menstruação,
gestação e menopausa, as virtudes mágicas são intensificadas. Além das questões de
gênero, os autores associam o exercício de certas profissões à magia: “[...] como a de
médico, de barbeiro, de ferreiro, de pastor, de ator, de coveiro, não há dúvida que os
poderes mágicos são atribuídos não a indivíduos, mas a corporações.” (MAUSS, 1974,
p. 66). O barbeiro está associado à magia por tocar nos resíduos corporais, o coveiro
por lidar com a morte e o pastor por lidar com animais, plantas e astros.

Ainda sobre grupos, Mauss identifica que, para algumas culturas, os estrangeiros
constituem um grupo de feiticeiros. Para algumas aldeias australianas, todas as
mortes que acontecem dentro das tribos são causadas por uma tribo vizinha. “Um
dos nomes dos feiticeiros, na índia védica, é o de estrangeiro. O estrangeiro é
sobretudo quem habita um outro território, o vizinho inimigo. Pode-se dizer que,
desse ponto de vista, os poderes mágicos foram definidos topograficamente.”
(MAUSS, 1974, p. 68). Ao se referir às crianças com práticas de mágica, Mauss afirma
que:

As crianças são com frequência, na magia, auxiliares especialmente


requisitados, sobretudo para os ritos divinatórios. Às vezes, inclusive,
fazem magia por conta própria, como entre os Dieri australianos, como
na índia moderna, quando se sujam com a poeira recolhida nas pegadas
de um elefante, cantando uma fórmula apropriada. (MAUSS, 1974, p.
66).

Mauss aprofunda ao longo do livro as percepções sobre o mágico, os atos, as


iniciações, os coletivos e sociedades, as crenças e ritos. Compreende a magia como
fenômeno social e busca situar entre outros fenômenos sociais. No seu estudo sobre
magia de distintas regiões do mundo, encontra similaridades e ressonâncias entre
diferentes culturas. A magia é também uma arte do fazer e inventar e sobre esse
aspecto que buscamos tecer relações entre o fazer mágico e as práticas artísticas:
916
A magia prepara imagens, feitas de pasta, argila, cera, mel, gesso, metal
ou papel machê, papiro ou pergaminho, areia ou madeira etc. A magia
esculpe, modela, pinta, desenha, borda, tricota, tece, grava; faz
bijuteria, marchetaria, e não sabemos quantas outras coisas. Esses
diversos ofícios lhe fornecem suas estatuetas de deuses ou de
demônios, seus bonecos de feitiço, seus símbolos. Ela fabrica
manipanços, escapulários, talismãs, amuletos, objetos que devem ser
considerados, todos, apenas como ritos continuados. (MAUSS, 1974, p.
90).

Pesquisa junto às crianças

Para a realização dessa pesquisa, utilizou-se a metodologia de aprendizagem por


projetos, tendo como referência o livro Transgressão e mudança na educação: os
projetos de trabalho, de Fernando Hernández. Os projetos de trabalhos são uma
proposta de planejamento de ensino e aprendizado e organização curricular.
Hernández (1998, p. 22), ao definir o termo “projeto”, afirma que se refere:

[...] ao uso que arquitetos, designers, artistas... fazem de ‘projeto’, como


um procedimento de trabalho que diz respeito ao processo de dar
forma a uma ideia que está no horizonte, mas que admite modificações,
está em diálogo permanente com o contexto, com as circunstâncias e
com os indivíduos que, de uma maneira ou de outra, vão contribuir para
esse processo.

Quando uma das crianças questiona como se faz uma varinha mágica, muitas
respostas surgem como: “em rituais de bruxaria”, “com magia”, “com madeira de
árvores encantadas”. Ao perceber um grande interesse das crianças pelo assunto,
decidimos que esse seria o nosso novo tema-problema para o projeto de trabalho.
“Esse tema-problema, pode partir de uma situação que algum aluno apresente em
aula, ou pode ser sugerido pelo docente.” (HERNÁNDEZ, 1998, p. 83). E assim, a partir
dessa temática, surgem os primeiros dilemas da nossa pesquisa: Existe um material
específico para se construir uma varinha mágica? Rituais podem ser inventados?

Com a pesquisa baseada em projetos de trabalho, é comum surgirem novas questões


que o educador nunca tenha sequer pensado, pelo fato de abordar temas
transdisciplinares, pois

Trabalhar na sala de aula por projetos implica uma mudança de atitude


do adulto. Essa atitude o converte em aprendiz, não só frente aos temas
objeto de estudo, e sim diante do processo a seguir e da maneira de
917
abordá-lo, que nunca se repetem, que sempre adquirem dimensões
novas em cada grupo. (HERNÁNDEZ, 1998, p. 83).

No primeiro dia do encontro, em que criamos as varinhas mágicas, as crianças se


espalharam pelo sítio e foram pegar pedaços de madeiras e gravetos. As cinco
meninas do grupo escolheram pequenas varinhas e os dois meninos, escolheram
grandes cajados. Eles decidiram que Jaguar, o gato morador do Ateliê da Mata, seria
o responsável em colocar os poderes nas varinhas e cajados. Após passarem as
varinhas e cajados pelo Jaguar, entre carinho e risos, os objetos do cotidiano
ganharam poderes. Antes de finalizarmos o nosso encontro, pedimos que as crianças
trouxessem para a nosso próximo encontro exemplos de personagens, seres e
pessoas que soubessem “manipular” os elementais da natureza, água, terra, fogo e ar.

Na sequência, realizamos o encontro: Poções, Herbologia e Alquimia. No primeiro


momento da tarde, as crianças realizaram um levantamento das plantas medicinais
que haviam no sítio do Ateliê da Mata. Conhecemos um pouco das propriedades de
cada planta e os métodos de secagem e extração das folhas. No segundo momento,
compartilhamos informações sobre a história da alquimia e os principais elementais
da natureza. No terceiro momento, realizamos um inventário de imagens das
referências de personagens, seres e pessoas que sabiam “manipular” os elementais
da natureza, exercício proposto no último encontro.

Sobre o fogo, as crianças trouxeram referências de dragões, fênix, curupira, o


personagem Sasuke da série de animação Naruto e Charizard do desenho Pokémon.
Para o elemento água surgiram as sereias, ondinas, a personagem Katara da
animação Avatar, Oxum e Yemanjá, o deus grego Poseidon e Moana, animação da
Disney. Sobre ar, surgiram as fadas, Saci do folclore brasileiro, Tempestade da Marvel
Comics e Aang da série Avatar. Para o elemento terra, surgiram os duendes, gnomos
e elfas.

Ao trazerem esses seres mágicos, que “manipulavam” diferentes elementos, podiam


encontrar inspirações para criar suas poções. Cada criança criou a sua poção mágica
com os materiais encontrados na natureza: água do rio, pedaços de pedras, terra,
carvão, plantas, pedaços de insetos mortos, penas, flores, poeira, ar e frutas. Nesse
processo de criações, surgiram diferentes tipos de poções: poção de cura, das fadas,

918
do amor, do gelo, da fortuna, do teletransporte e um veneno mortal. Que elementos
estariam associados ao amor? Quais ingredientes preciso para me teletransportar?

Durante nossos encontros na Escola de Magia nos conectamos com expressões


muito genuínas das crianças, que aconteciam além de desenhos e pinturas. A
metodologia que cada criança inventou para criar suas poções, assim como os
assuntos que motivaram suas pesquisas, nos remetiam também às obras de Marina
Abramovic, Helio Oiticica, Ai Wei Wei, Ligia Clark, Joseph Beuys, Jodorowski e
Ernesto Neto. Segundo Dalla Valle (2021, p. 169):

Muitos dos materiais utilizados por artistas contemporâneos


subvertem a composição hierárquica das linguagens tradicionais e vão
além do desenho, da pintura e da escultura. Talvez pensar na
concepção de um ‘desenho expandido’, ‘pintura expandida’, ‘ambientes
de aprendizagem potencial’. Neste ponto, sinalizo algumas alternativas
pedagógicas, tais como investir na produção dos repertórios visuais
que habitam os planejamentos; ampliar as possibilidades de abordar
determinados temas e conteúdos, bem como experimentar materiais
não convencionais para a produção artística.

Ao criarem seus objetos de poderes, como varinhas mágicas, amuletos e poções, as


crianças, além de estarem desenvolvendo técnicas para a criação e resolução de
problemas (quais elementos preciso utilizar para deixar minha poção verde-escura-
cintilante? Como posso adicionar um cristal na minha varinha mágica? Como posso
deixar meu amuleto impermeável para que eu possa usar na chuva?), estão criando
objetos que fazem sentido para elas, mesmo que momentaneamente. Para finalizar o
encontro, cada criança desenhou um rótulo para sua poção. Em outros projetos
anteriores, desenvolvemos com o mesmo grupo projetos de desenhos, esculturas e
gravuras. Neste sentido, percebeu-se a importância de trabalharmos com a
diversidade de linguagens e materiais, para que as crianças possam se apropriar
desses elementos para as suas criações.

Os materiais ‘em si’ não têm o poder de espontaneamente provocar


pesquisas sobre diferentes usos e/ou disparar os imaginários infantis;
é imprescindível que as professoras criem situações para que as
crianças explorem os materiais, suportes e instrumentos, ampliem
repertórios, tendo os fazeres da Arte como referência. (CUNHA, 2021,
p. 23).

919
Após esses dois encontros, desenvolvemos mais seis até a finalização do projeto.
Iniciamos com a criação de varinhas, no qual foi inventado um ritual para “colocar
poderes” nos objetos do cotidiano, passamos pelas poções, em que nos apropriamos
da força dos elementos da natureza para criarmos alquimias, descobrimos nossos
animais de poder, através de um jogo de carta. Recebemos convidados, conhecemos
mitologias, obras de artes e encerramos com uma aula de costura, no qual
encadernamos os materiais produzidos em aula num livro de magia. Entramos em
contato com a arte, a cultura visual e as sabedorias populares por diferentes
abordagens, mas sempre tendo o lúdico como norteador do projeto.

Conclusão

Quando Indra lançou o desafio de Como criar uma varinha mágica”, não tínhamos
ideia de que tudo o que seria acionado com essa pergunta. Ao escolhermos um
problema e o transformamos em pesquisa, abrimos muitos caminhos de trabalho. A
pergunta espontânea trouxe outros questionamentos, como: O que faz um objeto do
cotidiano se tornar mágico? Como diferentes culturas abordam a magia? Quem
trabalha com magia na contemporaneidade? Como a mídia representa os bruxos e
bruxas? E mais importante do que responder todas essas perguntas, foram as
oportunidades do processo coletivo, das provocações suscitadas, das conexões
estabelecidas com distintos saberes (da cultura erudita e sabres populares)
diferentes percepções e abordagens sobre uma mesma temática.

A diversidade e as possibilidades de respostas para uma mesma pergunta instigam a


pensar sobre como ampliamos nossos conhecimentos ao nos colocarmos como
ouvintes.

Ao retomar a pergunta lançada no início desta escrita “como enredar práticas


artísticas, saberes populares, fantasia e criação junto às infâncias ali presentes?”,
poderíamos arriscar argumentando que se faz importante uma observação atenta
sobre as crianças, suas brincadeiras, sonhos, dilemas e desejos. Quando trazemos
para o centro dos encontros suas referências visuais, temos a possibilidade de
ampliarmos os repertórios (estéticos, culturais) a partir de algo que faça sentido para
elas.

920
Por meio dos conhecimentos das bruxas medievais, dos egípcios, dos maias ou das
crianças dos Vale do Capão, descobrimos que podemos inventar diferentes
metodologias para realizar nossas criações. Reconhecemos que, enquanto
educadores, valorizarmos os pequenos movimentos e diferentes métodos de criação,
como acariciar uma varinha mágica num pelo de um gato.

E tão importante quanto os estudos que realizamos, foram as artes dos nossos
encontros. Os risos, rituais inventados, conflitos negociados e lanches
compartilhados. Em determinados momentos, percebia que arte e magia eram
“desculpas” para nossos encontros nas quintas-feiras. Assuntos para enriquecer
nossos afetos. Cenários que criamos para nossas histórias. Diários que inventamos
para nossas memórias.

Referências

CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Cenas pedagógicas em Arte: desafios, recriações e
mudanças a partir da Arte Contemporânea. In: CARVALHO, Rodrigo Saballa; CUNHA,
Susana Rangel Vieira da (org.). Arte Contemporânea e docência com crianças: inventários
educativos. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 21-41.
HERNÁNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e
Antropologia. São Paulo: EPU, 1974.
DALLA VALLE, Lutiere. Arte Contemporânea e repertório visuais: dispositivos pedagógicos
para a educação infantil e séries iniciais. In: CARVALHO, Rodrigo Saballa; CUNHA, Susana
Rangel Vieira da (org.). Arte Contemporânea e docência com crianças: inventários
educativos. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 163-176.

Mini Currículo

Benjamin Marins Costa


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Licenciado em Artes Visuais pela UFSM, com estudos na Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto/Portugal. Membro pesquisador do grupo de pesquisa MIRARTE e fundador do
Ateliê da Mata na Chapada Diamantina. E-mail: benjaminmarins@yahoo.com.br

921
Lutiere Dalla Valle
Doutor em Artes Visuais e Educação, Mestre em Artes Visuais e Educação: um enfoque
construccionista, ambos pela Universidad de Barcelona, Espanha. Mestre em Educação pela
Universidade Federal de Santa Maria. Especialista, Licenciado e Bacharel pela mesma universidade
onde atua como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo
de Pesquisa em Arte, Cultura Visual e Educação: Mirarte. E-mail: lutiere@dallavalle.net.br

922
OS APYÃWA E SUAS IMAGENS: IRAXAO E O ANTROPOCENO

THE APYÃWA (TAPIRAPÉ) AND THEIR IMAGES: IRAXAO AND ANTHROPOCENE


.

Paula Grazielle Viana Dos Reis


IFMG Campus Ouro Preto, Brasil

Resumo

Ao focar a produção imagética feita entre os Apyãwa (Tapirapé) durante o trabalho de campo
de Charles Wagley ([1977]1988), Herbert Baldus (1970) e Vandimar Marques (2016) justifica-se
por permitirem traçar as continuidades e descontinuidades da tradição Apyãwa (Tapirapé),
quem os relaciona e os mobiliza para fabricação de corpos e pessoas envolta com as
variações sazonais. Isto é, levando em consideração também quem, quando, onde e como.
Assim, o filme documentário Traços Tapirapé (2016) e as fotografias antigas e atuais criam o
encontro. Deste encontro algumas perguntas para o andamento do estudo com materiais
audiovisuais, bem como algumas questões ao ver esse documentário e no vislumbramento
em também fazer um filme etnográfico entre esse povo indígena. Disto, algumas notas
etnológicas do que são as visualidades ameríndias, sobretudo, entre os Apyãwa (Tapirapé).

Palavras-chaves: Apyãwa, imagem, corpo e arte.

Abstract

Focusing on the imagery produced between the Apyãwa (Tapirapé) during the fieldwork of
Charles Wagley ([1977] 1988), Herbert Baldus (1970) and Vandimar Marques (2016) is justified
by allowing the continuities and discontinuities of the Apyãwa tradition (Tapirapé), who
relates them and mobilizes them for the fabrication of bodies and people enveloped with
seasonal variations. That is, taking into account also who, when, where and how. Thus, the
documentary film Traços Tapirapé (2016) and the old and current photographs create the
meeting. From this meeting some questions for the progress of the study with audiovisual
materials, as well as some questions to see this documentary and the glimpse into also make
an ethnographic film among these indigenous people. Of this, some ethnological notes of
what are the amerindian visuals, mainly, between Apyãwa (Tapirapé).

Keywords: Apyãwa, image, body and art.

923
Considerações iniciais

Este trabalho acadêmico versa sobre as relações entre imagem e escrita envoltas aos
indígenas falantes do Tupi-guarani, especialmente, os indígenas que foram alvo de
uma depopulação drástica na primeira metade do século XX por conta, sobretudo,
do etnocídio e/ou genocídio e/ou ecocídio. Assim, no caso, da dissertação de
mestrado (antropologia social) pude me vincular aos indígenas Xetá e no doutorado
(antropologia social) aos indígenas Apyãwa. Mesmo sendo uma antropóloga negra, os
resultados deste trabalho foram organizados em uma tese intitulada Da etnografia
clássica à auto-antropologia visual Tapirapé: a festa-ritual-sazonal Iraxao (REIS,
2021), que demonstra já no título que não sobrevoei a etnografia feita, recentemente,
por Koria Yrywaxã Tapirapé (2020), o primeiro antropólogo indígena, que defendeu
em setembro de 2020 sua dissertação de mestrado A construção/formação do corpo
e da pessoa entre o Apyãwa – resguardos, alimentos para os espíritos e transição
alimentar, que contou com a orientação da professora e antropóloga Joana Aparecida
Fernandes Silva, quando Yrywaxa foi discente contemplado pela política de cotas no
ingresso e permanência no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás. Nem mesmo me detive, apenas, ao estudo das duas
etnografias contemporâneas feitas de alguma forma no escopo da antropologia entre
os Apyãwa, como se autodenominam os Tapirapé, por Maria Júlia Andrade (2009) e
Vandimar Marques Damas (2016) e sim partir, sobretudo, das imagens que nos
traduzem algo das relações entre os Apyãwa e Inỹ desde as etnografias clássicas de
Herbert Baldus (1970) e Charles Wagley ([1977]1988) até a auto-antropologia visual
feita por Koria Yrywaxã Tapirapé e demais pesquisadores indígenas Tapirapé.

O intuito com este artigo é chamar a atenção para a singularidade desta etnografia
que foi possível de ter sido feita entre os indígenas, no caso, do doutorado com os
Apyãwa. Esta etnografia é uma continuidade com a pesquisa etnográfica iniciada em
2012 com as imagens envolta aos indígenas falantes das línguas tupi-guarani, que, no
caso, durante o curso de mestrado em antropologia social, pude me dedicar aos Xetá.
Atualmente levar a sério os dilemas éticos no fazer antropológico é reconhecer os
dilemas éticos postos nas etnografias clássicas e constitutivos das ciências, no caso,
da antropologia.

924
E quando se pensa em ciência antropológica se pensa em etnografia e quando se
pensa em etnografia pode ser destacado as imagens e os sons que a constituíram e a
partir de quais relações foi possível dizer que isto se expressou ou se vinculou. Ou
seja, o efeito disto se concretizou com a parceria e os compartilhamentos feitos com
Koria Yrywaxã Tapirapé, que compartilhou comigo os filmes e fotos que fez das
festas-rituais-sazonais me oferecendo uma auto-antropologia visual de duas destas
festas, Iraxao e Tawã.

Isto significa que revisitei as etnografias clássicas com as balizas do cinema seja
quando participei dos momentos de compartilhamentos do filme Traços Tapirapé
(DAMAS, 2016) entre casas em Tapi'itãwa situada na Terra Indígena Urubu Branco
seja quando puder participar da feitura de filmes e fotografias acerca da festa-ritual-
sazonal Iraxao.

Este artigo está dividido em duas partes. Nesta primeira parte “Caminhos”, apresento
algumas razões para elucidação da festa-ritual-sazonal Iraxao a partir das
etnografias clássicas dos antropólogos estrangeiros Herbert Baldus e Charles Wagley
seja pelas imagens que são possíveis de serem destacadas quando se parte das
relações entre imagem e escrita para evidenciar as relações estabelecidas entre os
Apyãwa eInỹ. Seja para destacar a contribuição dos índios Tapirapé e Karajá quando
estabeleceram relações com estes antropólogos e o que foi possível tecer, portanto,
sobre o fazer antropológico e sobre a história da incipiente antropologia brasileira.
Na segunda parte “As traduções”, ressalto como foi o processo de compreensão das
relações entre os Tapirapé e os Karajá durante a festa-ritual-sazonal Iraxao. Seja com
cotejamento da etnografia e do filme documentário Traços Tapirapé dirigido por
Vandimar Marques (2016) sobre a Festa Iraxao, que ocorreu em 2014; seja com as
etnografias dos antropólogos Eduardo Soares (2016) feita entre os Karajá seja com a
etnografia de Patrícia Rodrigues (2008) entre os Javaé; seja a partir da etnografia feita
no âmbito da linguística por Eunice de Paula defendida em 2012. Como também, a
partir dos registros audiovisuais feitos por Koria Yrywaxã Tapirapé (2019;2020) e com
os textos escritos tanto por Yrywaxã (2020) como por Karaxipa Tapirapé (2009), que
foi o anfitrião da festa Iraxao, que participei em 2017 à convite do pesquisador,
fotógrafo e cineasta Vandimar Marques Damas.

925
Caminhos

Bom, nesta primeira parte é importante dizer que os primeiros trabalhos


antropológicos que foram feitos entre os indígenas Tapirapé mesmo com todos os
dilemas éticos presentes nestas obras foram revisitados à luz dos vínculos e relações
que estabeleci com os Tapirapé durante a etnografia (INGOLD, 2005). Portanto, parto
das duas etnografias clássicas, ou seja, que se desdobram em três se considerarmos
dentro do escopo de uma antropologia da imagem e do som. A primeira etnografia
clássica intitulada Tapirapé: tribu tupi no Brasil Central foi publicada em 1970 pelo
antropólogo Herbert Baldus, a segunda e a terceira etnografias clássicas foram
escritas pelo antropólogo Charles Wagley, porém, o que demonstro com esta tese é
que existem diferenças entre a versão publicada em 1977, em inglês, Welcome of
tears: the Tapirapé indians of Central Brazil para a versão traduzida para a língua
portuguesa e publicada em 1988, Lágrimas de Boas-vindas: os índios Tapirapé do
Brasil Central. Em linhas gerais, uso o termo clássicas não só pelo pioneirismo destes
trabalhos para antropologia ou por conta do trabalho de campo entre os Tapirapé ter
ocorrido majoritariamente ainda na primeira metade do século XX pelos dois
antropólogos estrangeiros, a saber, o alemão, teuto-brasileiro, Herbert Baldus e o
estadunidense Charles Wagley. E sim porque pude revisitar estas etnografias a partir
de um olhar singular seja quando pude multiplicar a rede de pessoas envolvidas no
âmbito da incipiente ciência antropológica feita entre os índios Tapirapé e Karajá
seja quando destaquei a relação entre imagem e texto presentes nestas duas
etnografias clássicas, pois pude demonstrar de forma destacada a partir das fotos e
citações uma produção sobre os Tapirapé que não ficou restrita apenas a esses dois
antropólogos estrangeiros. Ou seja, foi importante dizer também sobre a presença
pioneira de uma antropóloga feminista e estrageira nos fins da década 1920 entre os
indígenas Tapirapé, Karajá e Javaé. Bem como, dos trabalhos dos antropólogos
brasileiros, no caso, Eduardo Galvão e Harald Schultz entre os índios Tapirapé.
Sendo que Schultz também esteve entre os Karajá e Javaé e fez fotos e filmes entre
eles. Sem deixar de mencionar a incipiente institucionalização da antropologia
brasileira nas universidades a partir do momento que ressaltei as parcerias e
colaborações que existiram entre os pesquisadores e instituições estrangeiras com
os pesquisadores e instituições brasileiras. A título de exemplo, as colaborações
dadas pelo antropólogo estrageiro William Lipkind da Universidade de Colúmbia ao

926
antropólogo Herbert Baldus através de cartas, quando Baldus esteve vinculado ao
Museu Paulista e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. As contribuições
logísticas que Lipkind forneceu ao seu colega de instituição Charles Wagley durante
a sua etnografia entre os Tapirapé. Seja com as colaborações presentes nas
etnografias clássicas de Baldus e Wagley com os artigos produzidos pela antropóloga
estrangeira Judith Shapiro, também da Universidade de Columbia acerca de seu
trabalho de campo entre os índios Tapirapé no tempo da seca nos anos de 1966 e
1967. Tais artigos, publicados no Boletim do Museu Paraense Emílio Goldi em 1968,
foram amplamente referenciados tanto por Baldus como por Wagley em suas obras,
que foram publicadas apenas na década de 1970. Seja com a parceria estabelecida
tanto por Baldus como por Wagley com os missionários cristãos (dominicanos,
adventistas e Irmãzinhas de Jesus) estabelecidos na região do rio Araguaia, com a
administração pública, notadamente, com o SPI, que também tinham instaurado na
época postos indígenas entre os Karajá, Javaé e Tapirapé, sobretudo, com a
participação em uma das expedições organizadas pelo SPI em 1957 aos indígenas
Tapirapé que contou com a presença do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira
(1959). Como também, com a mídia local e com os cineastas e fotógrafos que
estiveram entre os índios Tapirapé e Karajá neste mesmo período de feitura do
trabalho de campo destes dois antropólogos.

Este artigo parte daí, pois estas duas etnografias clássicas, que foram produzidas
num contexto de depopulação drástica entre os índios Tapirapé, que no início do
século XX tiveram uma população entre 1.000 a 1.500 indígenas e em 1947 foram
reduzidos a 47 pessoas. Estes livros não foram objeto de estudo nas disciplinas
obrigatórias de antropologia no curso de ciências sociais, que cursei na UFMG nem
mesmo durante o curso de mestrado e doutorado em antropologia social, já na pós-
graduação da UFMG. Também, estas duas etnografias não foram objeto de estudo
das disciplinas optativas correlacionadas à Linha de Pesquisa: Etnologia indígena e
de Povos Tradicionais do PPGAN, na qual esta pesquisa está vinculada. Neste sentido,
para pensar os Tapirapé está sendo indispensável perpassar por essas duas
etnografias, que se desdobram em três se considerarmos dentro do escopo de uma
antropologia da imagem e do som. A primeira etnografia clássica intitulada Tapirapé:
tribu tupi no Brasil Central foi publicada em 1970 pelo antropólogo Herbert Baldus,

927
a segunda e a terceira etnografias clássicas foram escritas pelo antropólogo Charles
Wagley, porém, o que demonstro com esta tese é que existem diferenças entre a
versão publicada em 1977, em inglês, Welcome of tears: the Tapirapé indians of
Central Brazil para a versão traduzida para a língua portuguesa e publicada em 1988,
Lágrimas de Boas-vindas: os índios Tapirapé do Brasil Central. Tais diferenças
podem ser consideradas objetos de estudo dentro do que se ficou convencionado na
história da antropologia como antropologia visual. Sendo assim, quando pude
comparar estes três livros tais diferenças predominantemente têm a ver com as fotos
publicadas em cada livro e consequentemente com as relações entre imagem e texto.
Ao mesmo tempo que tais comparações também permitiram congregar as
semelhanças existentes nestas três etnografias quando se dá destaque para relação
entre texto e imagem. Este método de pesquisa, é importante reiterar, que não é algo
inovador, pois já vem sendo realizado dentro do escopo de uma antropologia da
imagem como fez o antropólogo Etienne Samain nos anos 1990. Samain (1995) em um
artigo publicado na revista Horizontes Antropológicos, que reuniu pesquisas em torno
da antropologia visual, indicou este caminho quando também realizou um estudo no
escopo da antropologia visual com a etnografia clássica de B. Malinowski. Digo,
também, pois Samain fez uma pesquisa etnológica entre os Kamayurá, povo falante
de uma língua tupi-guarani e que vivem, atualmente, no Xingu.

Acreditamos que ler essas etnografias clássicas de Baldus e Wagley poderia tornar-
se obrigatório em alguma disciplina obrigatória ou optativa dos cursos de graduação
em ciências sociais e antropologia oferecidos no Brasil como em disciplinas da pós-
graduação por diversas razões que esta tese de forma implícita tenta apontar. Por
agora, apenas no escopo de uma antropologia da imagem e do som, é importante
dizer que diferentemente de Etienne Samain, não pude realizar uma análise tão
detida ao que tange o uso das fotos como resultados de um trabalho de campo tal
qual foi feito pelo antropólogo Malinowski (1977) quando tirou as fotografias entre os
nativos trobriandeses e quando ofereceu para o leitor na escrita desta etnografia o
conhecimento antropológico adquirido a partir deste trabalho de campo numa
correlação fechada em si mesma e intrincada entre foto e texto como é o caso da
etnografia Argonautas, que Malinowski publicou em 1922. Se ambos os antropólogos,
a saber, Baldus e Wagley usaram a fotografia como método de pesquisa durante o

928
trabalho de campo na principal aldeia tapirapé - Tapi’itãwa - que atualmente está
situada na Terra Indígena Urubu Branco, na Amazônia legal. Também foi nesta aldeia
que eu pude fazer fotografias e filmes durante a festa-ritual-sazonal Iraxao em 2017
a partir de uma conversa prévia com o chefe indígena Carlos Xario’i que nos
autorizou a realizar essa etnografia. Como também, foi nesta aldeia que Koria
Yrywaxã Tapirapé realizou fotos e seu filme-ritual durante a festa-ritual-sazonal
Iraxao em 2019 e 2020.

Então, se Baldus e Wagley podem ser considerados como os precursores na


realização de fotos durante as festas-rituais-sazonais dos índios Tapirapé (VIANA
DOS REIS, 2020), porém, ambos, na escrita acerca do que compreenderam sobre
estas festas-rituais-sazonais não ficaram restritos numa correlação intrincada entre
foto e texto para a produção do conhecimento antropológico acerca dos índios
Tapirapé e é notável perceber ao ler suas obras uma ampliação na correlação entre
imagem e escrita quando esses dois antropólogos fazem conexões mais amplas no
tempo e no espaço. Em outros termos, para demonstrarem as relações entre os
Tapirapé com os antigos Tupi quando estabeleceram profundas correlações entre
suas imagens com os dados presentes nas duas etnografias clássicas e produzidas
neste contexto da incipiente institucionalização da antropologia brasileira, a saber,
as pesquisas antropológicas de Alfred Metráux e Florestan Fernandes sobre os Tupi
antigo, especialmente, sobre os Tupinambá foram fundamentais. Seja quando Baldus
e Wagley indicaram as historicamente relações sociais entre os índios Tapirapé e os
índios Karajá, Javaé e Xambioá. Ou seja, com os vizinhos dos índios Tapirapé que
vivem na região do médio rio Araguaia, um importante afluente do rio Amazonas.
Nota-se que tanto Baldus como Wagley verificaram de alguma forma histórica ou
etnograficamente as relações entre o que denominaram como a tribo Tapirapé e a
tribo Karajá. Em linhas gerais, é importante elencar como ocorreu isto:

• A participação dos Karajá como guias nas expedições e viagens aos índios
Tapirapé organizadas pelos brancos. Ou seja, os Karajá foram os guias para
diversas pessoas que foram até os índios Tapirapé.
• Em alguns elementos constitutivos da festa-ritual-sazonal Iraxao
identificados como oriundos dos Karajá, no caso, as máscaras (Aruanã feita de
folhas de palmeiras) e os maracás (chocalhos).

929
• Comparações entre os aspectos cosmológicos Tapirapé e Karajá que estes
antropólogos ouviram dos Tapirapé durante a etnografia.

Tanto Baldus como Wagley não formulam qualquer hipótese sobre as origens destas
festas e rituais apesar de perceberem semelhanças também na dança e nos cantos
tanto nas festas feitas pelos Tapirapé como nas festas realizadas pelos Karajá. Tais
imagens são construções lacunares e fragmentadas e aparecem de uma forma ampla
como constatações ou como projeções das possíveis relações entre os Karajá, Javaé
e Xambioá com os Tapirapé no mínimo desde o século XVIII. Baldus (1970) foi quem
mencionou que tais relações podem ser verificadas desde o século XVIII com a
análise dos documentos escritos e cartoriais. Por sua vez, Charles Wagley afirmou
que tais relações podem ser mencionadas como ocorrido desde o século XIX, a partir
das histórias que lhes foram contadas pelos Tapirapé durante sua etnografia.

Herbert Baldus (1970) muito por conta de sua concepção difusionista do fazer
antropológico se deteve mais em fazer tais correlações e isto pode ser verificado ao
longo da etnografia nas relações que emergem entre imagem e escrita, mas também
entre texto e foto. Pois, Baldus não se restringiu em publicar, apenas, as suas
fotografias para composição de seu livro e sim usou fotos feitas por missionários,
fotojornalistas e fotógrafos dos museus etnográficos depositários de muitas coleções
etnográficas e objetos etnográficos adquiridos pelos antropólogos quando fizeram
suas etnografias entre os indígenas. Tal ampliação no escopo do uso das fotos para a
construção de imagem acerca dos Tapirapé fez com que eu mesma fosse aos
arquivos, acervos e coleções etnográficas no intuito de consultar esses documentos
e saber mais acerca destes fotógrafos. Wagley também enumerou as pessoas que
estiveram entre os Tapirapé nas primeiras décadas do século XX, apesar de não usar
nenhuma foto que não tenha sido feita por ele ou no âmbito de seu trabalho de
campo, pois na lista das fotos não há menção acerca da autoria das fotos, porém
quando fiz o estudos das fotos publicadas tanto na versão em inglês como na versão
em português existem fotos que foram feitas do próprio Wagley em campo e ele não
diz quem foi o fotógrafo. Certamente, podem ter sido os próprios Tapirapé ou sua
esposa, a brasileira formada em biblioteconomia na Universidade de Colúmbia,
Cecília Wagley ou algum companheiro que foi à campo com ele como, no caso, o

930
jovem antropólogo Eduardo Galvão. Tal discussão acerca da autoria das fotos não foi
negligenciada neste estudo uma vez que pude consultar pela internet uma coleção
etnográfica organizada pela Universidade da Flórida sobre as fotografias feitas por
Wagley entre os índios Tapirapé e que não foram publicadas em nenhuma das
versões do livro em inglês de 1977 e em português em 1988. Se eu não encontrei
nenhuma publicação no âmbito da antropologia que tivesse tomado o livro de
Herbert Baldus e a coleção etnográfica de Herbert Baldus composta de fotografias
que este antropólogo fez em 1935 e 1947 entre os índios Tapirapé, Karajá e Javaé
organizada pelo Laboratório de Imagem e do Som da USP. Neste sentido, essas fotos
de Baldus, que são imagens de arquivo foram pouco pesquisadas. Ainda nos primeiros
anos desta pesquisa notei a multiplicidade de dados e agentes com os quais Baldus
estabeleceu relações para dizer algo acerca da história e das relações sociais
estabelecidas pelos Tapirapé. Diferentemente, do estudo dos livros e das coleções
etnográficas de Charles Wagley que pude contar com o artigo de Richard Pace de
2014ab que trouxe dados acerca da coleção etnográfica da Universidade da Flórida e
da existência de um arquivo pessoal de fotos sob cuidado dos familiares de Wagley e
indicações sobre os autores das fotos sobre os Tapirapé correspondentes aos
companheiros de Wagley em campo como Antenor Leitão e Eduardo Galvão, bem
como uma análise do conteúdo das fotos de forma a elencar os principais temas
retratados nestas imagens, como por exemplo, os rituais. De fato, as festas-rituais-
sazonais, não aparecem nas fotos que consultei dos missionários cristãos, nas fotos
correlacionadas ao primeiro filme documentário Tapirapés de 1934, nas fotos feitas
pelo fotojornalista Mario Baldi, nas fotos presentes nos Acervos do SPI. Porém, há
fotos sem menção de autoria que remetem ora aos missionários adventistas ora a um
recorte de jornal de 1932 com duas máscaras e em suma de foto posada para câmera
de 1934 como uma equipe de brancos do lado de um índio Tapirapé e de uma câmera
que faz parte da coleção etnográfica de Herbert Baldus do Lisa sem menção de
autoria. Tais imagens de arquivo nos sinalizam algo do contexto destes encontros
dos brancos com os índios Tapirapé apenas mencionados rapidamente por Charles
Wagley. Dentre estes encontros, anteriores aos trabalhos de campo de Baldus e
Wagley, há, então, não apenas a menção das missões cristãs - realizadas pelos
dominicanos, batistas e adventistas, mas também algo sobre a chegada e as visitas da
primeira antropóloga estrangeira Elizabeth Steen e da equipe de cineastas e

931
fotojornalistas, como também pude ver e demonstrar com as fotos. No caso, primeiro
as que foram publicadas por Baldus, depois outras que encontrei ao realizar imersões
no websites com acervos e coleções etnográficas digitalizadas como visitando tais
arquivos e museus e consultando tais documentos fotográficos. Mesmo que lacunar
e como fragmentos digo sobre a primeira antropóloga branca, estrangeira vinculada
a uma universidade dos Estados Unidos acerca de duas ou três expedições que
realizou ao médio rio Araguaia a partir de uma rede de colaboradores que a conecta
por exemplo com a cientista Bertha Lutz do Museu Nacional e presidente da FBPF -
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino passando pelo SPI até as parcerias com
os missionários adventistas que estavam instalados na região desde a década 1920.
Também perpasso alguns detalhes acerca da possível inexistência dos artigos, livros,
fotos e filmes que a antropóloga feminista Steen fez durante essas expedições. Ao
que tudo indica, no caso, a tese da historiadora Ordália Araújo mencionou que apenas
existe um livro infanto-juvenil sobre os índios do Araguaia escrito por Steen. De toda
forma, eu pude apenas verificar no ciberespaço alguns artefatos que essa
antropóloga coletou entre os Karajá e os Tapirapé e enviou para o Museus
etnográficos fora do Brasil no início da década 1930 e hoje é possível ver as fotos
digitais destes objetos etnográficos no Museu Nacional das Culturas do Mundo.
Também pude verificar alguns documentos oficiais relacionados com o CFE, órgão
criado em 1933 para fiscalização das expedições científicas e artísticas realizadas no
Brasil. No caso, atualmente, tais documentos foram organizados pelo MAST e no
dossiê relacionado a Steen pelo CFE há apenas a menção da presença desta cientista
em 1936 na região do médio Araguaia a partir de um recorte de jornal de Goiânia
intitulado A caçadora que deu a notícia sobre sua expedição, bem como documentos
emitidos pela polícia e pela SPI para o CFE que noticiaram a expedição desta cientista
na região, bem como o documento emitida pelo CFE que não autorizou Steen
realizar sua expedição entre os índios em 1936.

As traduções

Na segunda parte deste artigo, que é sobre as imagens da festa-ritual-sazonal Iraxao,


foi possível verificar as relações entre os Tapirapé e Karajá de forma salutar com o
cinema. Como já dissemos, tais relações puderam ser verificadas na história e na

932
etnografia, especialmente, no que tange a cosmologia e as atuais relações sociais,
como, no caso, da festa Iraxao. Nós sabemos que as aldeias e as Terras Indígenas dos
Tapirapé e Karajá estão localizadas na região do médio Rio Araguaia e tanto a
etnografia como a arqueologia, em suma, a antropologia nos fornecem dados
significativos para pensar as relações entre tais indígenas.

É importante dizer que é possível verificar os nomes Tapirapé e Karajá em diversos


documentos produzidos pelos brancos desde o século XVII correspondentes à região
de florestas tropicais e cerrado no médio rio Araguaia. Porém, sabemos desde Baldus
(1937) que os Tapirapé se autodenominam Apyãwa e com as etnografias
contemporâneas que os Karajá, os Javaé e os Xambioá, se autodenominam, Inỹ.

Dizer acerca da grafia do termo Iny sem til no y e Iny com til no y não é apenas uma
convenção da linguística é chamar a atenção para as sutis diferenças de sentido de
como os Karajá, os Javaé e os Xambioá, falantes de uma mesma língua pertencente
ao tronco linguístico Macro-Jê concebem quem são humanos e quem não são ou
estão num estado de ambivalência e ambiguidade quando os humanos estão em
relação com os afins virtuais, com os espíritos ou sobrenaturais.

Neste sentido, para circunscrever ainda mais, as imagens fotográficas e fílmicas


produzidas sobre e pelos índios Tapirapé (Apyãwa) e sua relação com os índios Karajá
(ou Iny) foi preciso dialogar com as etnografias contemporâneas produzidas entre os
índios Karajá e Javaé, escritas pelos antropólogos Eduardo Nunes e Patrícia
Rodrigues, respectivamente.

Iny, com til, é o nome pelo qual os povos Karajá, Javaé e Ixybiòwa se autodenominam,
pois embora falem uma língua comum e possuam um fundo cosmológico-cultural
comum, são povos que têm poucas relações matrimoniais entre si e quase nunca
compartilham o mesmo território, embora sejam vizinhos. Muito embora os três
povos (Karajá, Javaé e Ixybiòwa) se considerem Iny, com til, historicamente eles
sempre ocuparam nitidamente regiões distintas.

No livro “Pesquisas indígenas na Universidade” publicado em 2010, o pesquisador


indígena Xario’i Carlos Tapirapé (2010) menciona que na Terra Indígena Urubu
Branco continha uma população de 620 indígenas. Neste mesmo ano ocorreu o
Censo Indígena organizado pelo IBGE, que produziu um mapa, onde foi possível

933
inferir uma população de 1.000 a 5.000 indígenas Tapirapé vivendo nas três terras
indígenas situadas na Amazônia. Sabemos que a Terra Indígena Urubu Branco,
homologada em 1998, é predominantemente habitada pelos índios Tapirapé, porém
quando estive em Tapi’itãwa fui hospedada em uma casa de uma casal Inỹ-Apyãwa. A
primeira terra indígena homologada para os índios Tapirapé, que no caso ocorreu em
1983 é a terra indígena Tapirapé-Karajá composta de aldeias dos índios Karajá e
Tapirapé. Ainda há a Terra Indígena Araguaia onde vivem índios Javaé, Karajá e alguns
Tapirapé. Quem nos diz sobre a presença dos Tapirapé na Terra Indígena Araguaia é
o antropólogo André Toral (2018b) no verbete presente no website do Instituto
Socioambiental a partir de dados da DSEI-SESAI de 2014, porém ele menciona o
número total de 760 indígenas do povo Apyãwa. Eduardo Nunes (2016) contabilizou
a população de 3.226 para os Karajá a partir de dados da DSEI e não se esquivou em
mencionar sobre os casamentos entre Karajá e Tapirapé. Patrícia Rodrigues (2018)
diz que a população Javaé está em torno de 1.484 se for considerado os dados da
SESAI, porém chama atenção para organização dos DSEI e pela maneira de descrever
os indígenas atendidos não por etnia e sim por aldeia e que os casamentos
interétnicos podem ocultar a etnia da pessoa atendida, no caso, dos Tapirapé se
estiverem vivendo numa aldeia do povo Javaé ou Karajá. Para o verbete do ISA, o
antropólogo Manuel Ferreira Lima Filho (2014) identificou 3.768 Karajá por ter
considerado as aldeias situadas nas Terras Indígenas localizadas no estado de Goiás,
Tocantins, Mato Grosso e Pará. Em 2016, o ISA noticiou um trabalho oriundo dos
dados presente no site do IBGE e correlacionados com o Censo Indígena de 2010 do
IBGE, que mencionou para os índios Tapirapé uma população total de 1.106 pessoas.
A pungência dessa imagem de recuperação sociodemográfica dos índios Tapirapé
está intrinsecamente correlacionada com as imagens fotografadas por Herbert
Baldus e Charles Wagley acerca das festas-rituais-sazonais. Também fotografadas e
filmadas por Koria Yrywaxã Tapirapé. Entretanto, a imagem técnica e tradicional
feita por Baldus e Wagley difere das imagens de Koria Yrywaxã quando o foco são as
festas.

As danças, o cauim, as máscaras e os maracás são alguns dos elementos destacados


tanto nas fotos de Baldus e Wagley como as feitas por nós quanto por Yrywaxã. Nas
etnografias clássicas tais elementos são comparados com dados etnográficos feitos

934
pelos cronistas, colonizadores e missionários, quinhentistas e seiscentistas que nos
remetem aos Tupi antigos, os Tupinambá como destacam para as históricas relações
sociais estabelecidas entre os Tapirapé e seus vizinhos, de forma mais reiterada com
os índios Karajá. O que ressoa de forma curiosa é que por mais que Baldus e Wagley
tenham feito seus trabalhos de campo entre os índios Tapirapé e apenas
esporadicamente tenham visitado os índios Karajá e Javaé tendem a dizer de alguma
forma uma possível origem seja dos cantos seja das danças seja das máscaras seja
dos maracás como Karajá. São passagens curtas, mas que ora e outra demonstram
que são afirmativas oriundas das imagens tradicionais e técnicas que esses
antropólogos elaboraram a partir de suas referências teóricas.

Assim, quero chamar a atenção sobre a importância do compartilhamento de filmes


e fotos feitos (QUEIROZ; REIS, 2018), especialmente, sobre esta festa que realizei
entre os Tapirapé, mas sobretudo, sobre a compreensão que tive desta festa-ritual-
sazonal com a parceria feita com Koria Yrywaxã Tapirapé que nos disse que essa festa
é feita para os espíritos dos Karajá. Se o Iraxao acontece conforme o calendário do
tempo tapirapé, que é composto de um ciclo ritual que perpassa as duas estações do
ano, a saber, o tempo das chuvas ou inverno amazônico e o tempo da seca ou o verão
amazônico. No caso, a festa-ritual-sazonal Iraxao, ocorre na estação denominada
como inverno amazônico, ou seja, no tempo das chuvas, nos primeiros meses do ano.
Esta festa ocorre por meio de uma performace ritual (CAIXETA DE QUEIROZ, 2009),
na qual se fazem presentes, de forma destacada, os espíritos (axigas) do povo Karajá.
Se a máscara Iraxao é semelhante a máscara Aruanã feita pelos Karajá tais máscaras
podem sim sinalizar acerca de trocas existentes entre Karajá e Tapirapé que
ocorreram em um dado tempo e espaço. Neste sentido, com a auto-antropologia
visual feita pelo antropólogo Koria Yrywaxã Tapirapé, foi fundamental para a
tradução da imagem do Iraxao em pleno antropoceno, especialmente, em um filme
documentário “Apyãwa (Tapirapé): rarywa Iraxao” (TAPIRAPÉ, REIS et al., 2020) com
compartilhamento da direção veiculado em fóruns e festivais de cinema e publicada
na janela “De perto e de longe” do meu website pessoal “Alguma cosmopolítica entre
os índios Xetá e Tapirapé”, ver em: www.etnologiaindigena.wordpress.com

935
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WAGLEY, Charles. Lágrimas de boas-vindas: os índios Tapirapé do Brasil Central. São
Paulo; Belo Horizonte: Edusp; Editora Itatiaia Limitada, 1988.

Mini Currículo

Paula Grazielle Viana Dos Reis

937
Doutora e mestre em Antropologia, área de concentração antropologia social, linha de pesquisa
Etnologia indígena e de Povos Tradicionais pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Minas Gerais. Possui graduação (licenciatura) em Ciências Sociais (2007) e
graduação (bacharelado) em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Atua principalmente nos seguintes temas: povos
indígenas, etnografia, fotografia, cinema, gênero, história e educação. E-mail:
paulaviananp@gmail.com

938
ENSINO DE ARTE PÓS-ABISSAL: POSSÍVEIS PERSPECTIVAS PARA O
DESENVOLVIMENTO DA ECOLOGIA DE SABERES NA EDUCAÇÃO EM ARTES A
PARTIR DO MUNICIPIO DE FRANCISCO MORATO

POST-ABYSSAL ART TEACHING: POSSIBLE PERSPECTIVES FOR THE


DEVELOPMENT OF THE ECOLOGY OF KNOWLEDGE IN ARTS EDUCATION FROM
THE MUNICIPALITY OF FRANCISCO MORATO

Erick Henrique Santos Souza


UNESP, Brasil

Resumo

A presente reflexão teórica é subsidiada pelas observações iniciais suscitadas no cotidiano


escolar e nas leituras e análises etnográficas que estão sendo realizadas na pesquisa de
mestrado no programa PROF-Artes do Instituto de Artes da UNESP. Utilizando o contexto
social das escolas de Francisco Morato, o presente artigo irá refletir sobre as possíveis
relações entre abordagem triangular de Ana Mae Barbosa e a Cultura Visual de Hernandez
no processo de construção de um Ensino de Arte que contribua com a construção de um
Ensino promotor da Ecologia de Saberes, conceito apresentado por Boaventura de Sousa
Santos. Será apresentado a partir desses autores e subsidiando-se na comunidade escolar
de Francisco Morato, o potencial das camadas populares e a viabilidade de pensar a
construção de um conhecimento decolonial em sala de aula.

Palavras-chave: Ensino de Arte. Pós Abissal. Contexto.

Abstract

This theoretical reflection is supported by the initial observations raised in the school
routine and in the readings and ethnographic analysis that are being carried out in the
graduate research in the PROF-Artes program of the Institute of Arts of UNESP. Using the
social context of Francisco Morato's schools, this article will reflect on the possible
relationships between Ana Mae Barbosa's triangular approach and Hernandez's Visual
Culture in the creation process of an Art Teaching that contributes to the construction of a
teaching that promotes of the Ecology of Knowledges, concept presented by Boaventura de
Sousa Santos. It will be presented from these authors and subsidizing in the school
community of Francisco Morato, the potential of the popular layers and the viability of
thinking about the construction of a decolonial knowledge in the classroom.

Keywords: Art teaching. Post-abyssal. Context.

939
Introdução

O presente artigo buscará problematizar possíveis pautas acerca das observações


iniciais do projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido no Instituto de Artes da
UNESP através do programa de Mestrado Profissional Prof-Artes em Artes Visuais.

A partir de reflexões em sala de aula, o artigo discorrerá acerca de uma possível


construção de Ecologia de Saberes a partir da perspectiva de Boaventura Sousa
Santos definida como práticas pós-abissais de conhecimento, e a partir disso, tecer
diálogos com o Ensino de Arte em sala de aula.

Desse modo, o intuito do escrito será suscitar reflexões teóricas sobre estratégias
aplicadas a realidade das escolas públicas do município de Francisco Morato que
possibilitem o pensamento de um Ensino de Arte pós-abissal.

Aliado a essa premissa, serão elencadas questões teóricas fundamentais a partir dos
escritos publicados por Fernando Hernandez e as possibilidades decoloniais
presentes na perspectiva da abordagem triangular de Ana Mae Barbosa, autores
basilares nas reflexões iniciais da pesquisa e no desenvolvimento do presente artigo.

Para refletir sobre a ideia de um Ensino Libertador, a presente reflexão irá subsidiar-
se nas ideias de Paulo Freire demonstrado a atualidade de suas proposições.

Na primeira proposição do artigo, serão refletidas as concepções dos tipos de


avaliação na escola e suas maneiras não dialógicas com a realidade escolar do Brasil,
sendo destoado de tais análises, o papel da social que a escola pública brasileira
exerce. Com ênfase no município de Francisco Morato, serão evidenciadas outras
características da cidade que também devem ser destaque ao contextualizar o
município, para além de perspectivas estereotipadas ou fatalistas. Singularidades que
partem da cultura na comunidade e podem servir como subsídio na construção do
conhecimento em sala de aula.

Já na segunda ideia, o presente artigo buscará subsídio teórico na análise sobre


Cultura Visual e suas implicações e potencialidades na aprendizagem de estudantes
oriundos de camadas populares. Dando destaque a prática do Ensino de Arte, será
versada a relação entre cânone e popular e a potencialidade em quebrar tais
polaridades no processo de aprendizagem.

940
Em diálogo com essa questão, será problematizado na terceira proposta de reflexão
a relação Cultura Visual e Abordagem Triangular no chão da escola pública, nesse
subtítulo será referido às potencialidades, desafios e necessidades da construção de
um Ensino de Arte que perpasse pela ideia de uma Ecologia de Saberes.

Contextualização a partir de Francisco Morato

O ponto de partida da pesquisa que está sendo desenvolvida e motiva as reflexões a


serem dispostas nesse artigo, perpassa pelo contexto social do município de
Francisco Morato- SP e o reflexo que tal realidade impacta nas escolas localizadas
no município. Utilizando o modo de contextualização o município de Francisco
Morato como uma “cidade dormitório” 1e vulnerável socioeconomicamente. Tal
questão pode ser evidenciada ao analisar dados do IBGE em que elementos como a
falta de saneamento básico para 48,2% da população da cidade e o 17% de vias
urbanizadas para munícipes, evidenciam tal realidade. Ao correlacionar tais dados
com observações oportunizadas em sala de aula, é possível perceber que o caráter
social da cidade é refletido nas escolas do município, principalmente as escolas
localizadas em espaços mais afastados da região central de Francisco Morato. O que
reflete na rotina, nos objetivos e na logística de funcionamento das escolas da cidade.

Desse modo, a educação do município é levada para além dos aspectos ditos
“pedagógicos”, se ocupando com demandas de assistência básica para diversos
estudantes, para posteriormente pensar no aspecto pedagógico escolar, questão
comum em diversas escolas localizadas em periferias do Brasil e pautas de debates
sobre a função social da escola. Parafraseando Graciani (2015), a partir de mudanças
nas Leis de Diretrizes e Bases do Brasil ao longo de mudanças de modelos de governo,
o papel da educação e sobretudo da escola, foi ressignificado, tal como pode ser
observado no respectivo parágrafo da LDBEN.

(...) VIII- atendimento ao educando, em todas as etapas de educação


básica, por meio de programas suplementares de material didático-

1
“Cidade Dormitório” é a alcunha dada a municípios que historicamente servem como alojamento social do
trabalhador, apesar de residir na cidade, sua força de trabalho e tempo é empregada no grande centro, gerando
despertencimento do morador com a cidade que reside e dificultando a arrecadação de renda dos munícipes, já que
não é empregada diretamente na cidade.

941
escolar, transporte, alimentação e assistência a saúde”. (LDBEN,1996,
Art. 4, Inciso VIII, redação dada pela lei n:12.796, de 2013).

Mesmo com diversos desafios que as ações necessárias de assistência que a escola
promove, em casos como Francisco Morato, alguns instrumentos de mensuração da
qualidade da educação demostram que além da assistência aos estudantes, a
aprendizagem tradicional também representa qualidade. Ao analisar os dados do
Sistema de Avaliação Básica SAEB, por exemplo, é possível observar que a cidade de
Francisco Morato em 2021 atingiu o objetivo de 5.05, demonstrando uma crescente
em relação ao ano anterior que foi mensurado e próximo a meta nacional de 5.8, o
que demonstra que mesmo com outras questões, os educadores do município além
de todas as demandas necessárias de cuidado aos estudantes não deixam de pensar
em maneiras de ensinar com qualidade em diálogo com o currículo estabelecido.

Porém a cerne desse artigo apresenta a necessidade de refletir sobre a possível


transcendência da tradicional cultura positivista e desleal com a realidade escolar
brasileira para outros modos de entender a Educação, principalmente em municípios
com o perfil da cidade objeto da reflexão. Os atuais instrumentos de mensuração
consolidados desde 1997 resumem o “sucesso” ou “fracasso” na educação a partir de
análises simplórias resumindo-as a provas de Língua Portuguesa e Matemática. Tal
questão é problematizada, pois entende-se o espaço escolar como um todo
complexo, cercado de desafios e potencialidades que fogem do que denomino
“Complexo de PISA”. Entende-se que pensar o ambiente escolar é levar em conta a
singularidade da Escola Pública Brasileira e não resumi-la a dados estatísticos
destoantes de sua realidade. Sobre isso, apresenta Graziela Dantas Graciani em sua
dissertação.

(...) Parece acertado então, deduzir que a instituição escolar desenvolve


outras funções além do trabalho didático pedagógico. Deste modo ela
deve ir além do trabalho pedagógico em si, trabalhar conjuntamente
com a sociedade e a família, na promoção de ações que potencializem
processos de socialização e consolidação de valores e vínculos. (2015,
p.45).

A partir do exposto, percebe-se a realidade das escolas no município de Francisco


Morato - em destaque para relações que podem dialogar com o Ensino de Arte – com

942
potencial para desenvolver uma Educação além de uma perspectiva Abissal de
conhecimento, intitulada por Boaventura de Souza Santos (2010) como
conhecimento Pós-Abissal, que, de acordo com o autor,

(...) pode ser sumariado como um aprender com o Sul usando as


epistemologias do Sul. Confronta a monocultura da ciência moderna
com uma ecologia de saberes. E uma ecologia, porque se baseia no
conhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos. (...) e
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua
autonomia. (2010, p. 54).

A partir disso, podem-se elencar através da experiência que mesmo com tais
desafios, ao seu estilo, a comunidade consegue ressignificar algumas percepções do
espaço ao seu redor, através de conhecimentos tradicionais e contemporâneos da
cultura pertencente à população, seja por heranças oriundas da vida no campo ou
dos contextos urbanos. Essas sabedorias podem contribuir com a aprendizagem da
comunidade não negando a ciência moderna, mas observando outras perspectivas
que direcionam-se ao Sul.

Os conhecimentos que se julgam pós-abissais, em primeira análise, estão presentes


nos conhecimentos de ervas, nas brincadeiras tradicionais que resistem nos bairros,
na prática de empinar pipa, nos conhecimentos de práticas como a capoeira e no
gosto pela cultura do Hip-Hop passado de geração em geração entre famílias
oriundas de periferias. Desse modo, acredito que tais elementos influenciam e
constroem uma cultura visual repleta de potenciais na vida dos estudantes.

Ademais pode-se perceber que ao destacar tais questões, infere-se a reflexão da


possibilidade de contextualizar o município, como um espaço de potência, um
ambiente que não se resume aos desafios sociais em que estão inicialmente, não
inseridos como aponta Paulo Freire (2019), mas condicionados. Os munícipes não se
resumem ao reflexo da mazela capitalista com as periferias, mas também é munida
de perspectivas usuais a construção de uma nova sociedade. Com tal afirmação não
se busca uma análise piegas, mas realista de que a comunidade é repleta de
conhecimentos prévios que podem contribuir com aprendizagens significativas
dentro e fora da escola. Conhecimentos válidos passíveis a contribuir com a

943
construção do conceito denominado por Santos como Ecologia de Saberes, que na
acepção do autor

(...) tem como premissa a ideia da diversidade epistemológica do


mundo, o reconhecimento da existência do mundo, o reconhecimento
da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do
conhecimento científico. Isto implica renunciar qualquer
epistemologia geral. Em todo o mundo, não só existem diversas formas
de conhecimento da matéria, sociedade, vida e espirito, como também
muitos e diversos conceitos sobre o que conta como conhecimento e
os critérios que podem ser usados para valida-los. (2010, p.56).

Ao analisar tal posição defendida pelo autor, salienta-se que o município de Francisco
Morato é repleto de sabedorias que podem contribuir com uma perspectiva pós-
abissal de conhecimento. Epistemologias que podem contribuir com a aprendizagem
dos mais variados tipos no espaço escolar e na comunidade, podendo definir o
espaço da cidade como um ambiente de potência para além de suas questões sociais
enxergadas por muitas análises fatalistas. Tal questão pode ser essencial na
construção de um imaginário pós-abissal de conhecimento na sociedade.

Ecologia de Saberes em sala de aula: a perspectiva pós-abissal em diálogo com a


Cultura Visual dos Educandos

Na perspectiva da valorização das epístemes das camadas populares, acredito que ao


fazer um recorte reflexivo sobre a sala de aula, no respectivo contexto de Francisco
Morato, o Ensino de Arte pode ser um dispositivo potencializador de uma ecologia
de saberes.

O Ensino de Arte em sua essência tem o potencial de contribuir com aprendizagens


significativas no espaço escolar, parafraseando Read (2016), essa área do
conhecimento contém a potência de alavancar as idiossincrasias dos indivíduos. O
respectivo autor, a partir dessa premissa, defende que a perspectiva da Arte deveria
ser o objetivo da Educação. Infere-se que o Ensino de Arte atrelado a Cultura Visual
em diálogo com a abordagem triangular, pode contribuir com elementos que
evidenciem com a leitura de mundo dos estudantes, possibilitando suscitar
pensamentos que desenvolvam uma perspectiva pós-abissal de aprendizagem.

944
Ao analisar as possibilidades de uma perspectiva pós-abissal de aprendizagem no
Ensino de Arte, recorremos como fundamento à premissa da Cultura Visual. Sobre a
cultura visual, Fernando Hernandez explica que esta

converge uma série de propostas intelectuais em termos das práticas


culturais relacionados ao olhar e as maneiras culturais de olhar a vida
contemporânea, especialmente sobre práticas que favorecem as
representações de nosso tempo e levam-nos a repensar narrativas do
passado. (HERNANDEZ, 2007, p.22).

A perspectiva do autor sobre um olhar diferenciado as práticas culturais realizadas


pelo povo, podemos considerar possibilidades de pensar um Ensino de Arte que
contribua com um alfabetismo visual crítico elaborado pelos estudantes, o que
favoreceria a construção crítica de uma aprendizagem em Arte. Tal premissa
apresentada dialoga com a reflexão de Fernando Hernandez, quando o autor se
refere à cultura visual como movimento que

orienta à reflexão e as práticas relacionadas à maneira de ver e


visualizar as representações culturais e, em particular, refiro-me às
maneiras subjetivas e intrasubjetivas de ver o mundo e a si mesmo.
(2007, p.23).

A partir desses apontamentos, acreditamos que pensar um Ensino de Arte Pós-


Abissal correlacionando o alfabetismo Visual dos estudantes na construção da
aprendizagem a partir de seus conhecimentos e imaginários prévios, que parta da
realidade do educando na sociedade para a realidade do educando dentro do
ambiente escolar e em consonância com os conhecimentos do educador, poderar-
se-á desenvolver um processo que se referindo as ideias de Freire (2019) se denomina
Dodiscência.

Assim sendo, o primeiro ponto estratégico que atribuímos para refletir sobre um
conhecimento pós abissal no Ensino de Arte, perpassa pela ideia de levar em
consideração no planejamento da construção de aprendizagem, as culturas
vivenciadas pelos/as estudantes fora do ambiente escolar, que apesar de parecer
algo corriqueiro, na cultura escolar ainda é visto como dicotômico entre outras
maneiras de conhecimento.

945
A partir dessa perspectiva, poderemos pensar caminhos iniciais de Construção de
conhecimentos que suscitem o diálogo em consonância com os conhecimentos
tradicionais, nas escolas, o que nos possibilita denominar tal movimento como
práticas relacionadas à ecologia de saberes.

Práxis: Abordagem Triangular na construção pós-abissal no chão de escola.

Quando refletimos a perspectiva da potencialidade da Cultura Visual dos estudantes


em sala de aula, tal como a relação da realidade do estudante com o Ensino
Tradicional entende-se que tal diálogo é um caminho viável para a busca da
construção de um Ensino de Arte crítico. Tal premissa na perspectiva da Educação é
defendida por Freire em diversos de seus escritos, tal como a Pedagogia do Oprimido,
Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Esperança. Contudo a cultura da Educação
escolar no Brasil, em suma, através de documentos curriculares, apresenta o
paradigma de não olhar tal potencialidade como dispositivo primordial na
construção da aprendizagem em contextos oriundos das periferias. Acredita-se que
tal questão se dá por uma perspectiva positivista do currículo, que está condicionada
a uma reflexão superficial em prol apenas de avaliações quantitativas, gerando o que
Paulo Freire identifica como “educação bancária”, definida pelo autor como ação que
sugere a polaridade leitura de mundo do estudante e conhecimento convencional
escolar, sugere ainda, de acordo com Freire,

(...) uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente


no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores
e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo
especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes”. A
consciência como se fosse alguma sessão dentro dos homens,
mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo
que irá enchendo de realidade. (2014, p. 87).

Ao correlacionar tal problemática ao Ensino de Arte nas escolas públicas, e aqui


consideramos, em especial, aquelas localizadas no município de Francisco Morato, é
possível perceber que essa visão “bancária” de conhecimento pode ser dialogada com
o paradigma da cópia e do desenho, herança neoclássica, imposta no Brasil durante
as missões Artísticas Francesas, que resume o Ensino de Arte a ter sua função
resumida à reprodução fidedigna de modelos em diversos contextos.
946
Essa ideia resumiu o Ensino de Arte a uma disciplina voltada apenas ao Ensinar o
domínio do desenho e da cópia de modelos estabelecidos, práticas que podem
dialogar com a prática bancária abordada por Freire, contribuindo com desafios que
o Educador encara ao lecionar Arte em sala de Aula. Contudo ao recorrer às
transformações das possibilidades de pensar o Ensino de Arte no país, podem-se
elencar outras abordagens que transcendam essa ótica em sala de aula, sobre essa
questão destaca-se abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa como possível
sistema que pode possibilitar outras formas de ensino e aprendizagem em Arte.

O Ensino de Arte subsidiado pela premissa do Ver, Contextualizar e Produzir,


apresentou nos anos de 1980 um novo panorama para pensar o Ensino de Arte em
diversos contextos, inclusive no espaço escolar, na produção de um conhecimento
que apresente a Arte para além da prática ou cópia. Ao refletir sobre a questão, Maria
Christina Souza Lima Rizzi defende que a Abordagem Triangular

postula que a construção do conhecimento em arte acontece quando


há o cruzamento entre experimentação, codificação e informação.
Considera como sendo seu objeto de conhecimento, a pesquisa e a
compreensão das questões que envolvem o modelo inter-
relacionamento entre arte e público. (2014, p. 335).

Em seus escritos, subsidiando-se na leitura de imagem, Ana Mae Barbosa pensa o


Ensino de Arte a outros panoramas, para além da perspectiva do desenho, almejando
desenvolver elementos que contribuam com o fazer estético, a produção e a reflexão
dos estudantes sobre a Arte.

A partir dessa afirmação, acredita-se que a abordagem triangular também é um


caminho passível de contribuir com a construção de um Ensino de Arte pós-abissal.
Os três eixos (leitura, contextualização e o fazer artístico) presentes na abordagem
sistematizada por Ana Mae Barbosa, aposta no Ensino de Arte desde uma perspectiva
cultural que possibilite outras formas de ler e interpretar a imagem, de pensar a Arte,
seja ela arte instituída ou não. Elencar tais reflexões possibilita perceber um diálogo
direto entre a perspectiva da Abordagem Triangular e a Ecologia de Saberes
discorridas nesse trabalho.

Ao correlacionar tal premissa com a realidade dos sujeitos da pesquisa, percebemos


que no aspecto prático do cotidiano escolar, pensar o Ensino de Arte subsidiado nas

947
reflexões dos autores aqui apresentados, pode contribuir com a ideia de um Ensino
pós-abissal de aprendizagem.

Refletindo sobre os pontos aqui destacados, acreditamos que no chão de escola,


aliado aos conceitos citados, cabe ao Educador à utilização de seus conhecimentos
prévios em diálogo com os dos estudantes, entendendo que educar está além do
professar, perpassa pela consciência do inacabamento e do respeito à autonomia do
educando, tal como apresenta Freire (2019).

A partir disso, pode-se concluir que a construção de uma perspectiva de Ensino de


Arte pós-abissal é possível e faz-se presente no contato com as vertentes que
problematizam um Ensino de Arte que valorize conhecimentos prévios e parta da
prática do educando, assim como no planejamento do Educador e nas suas
estratégias de ensino. Caso o Educador leve em consideração a realidade e a
possibilidade de contribuição do estudante, tal aula se colocará como espaço
inacabado, viável de um Ensino considerado Pós-Abissal e construtor de uma
Ecologia de Saberes.

A percepção que o entrave que o educador encontrará abordando essas visões de


Educação presentes em sua prática, será a resistência da cultura enrijecida presente
no espaço escolar do Ensino Tradicional.

Acreditamos que buscar abordar uma prática do conhecimento Pós-abissal no


Ensino de Arte no contexto escolar, - aqui apresentado através do município de
Francisco Morato – pode-se constituir uma ação de nadar contra a corrente, em prol
de uma educação plenamente decolonial, um caminho não inédito, mas sempre
viável.

Conclusão

As viabilidades dos conteúdos da pesquisa estão sendo versadas a partir de


experiência em sala de aula e de observações que estão sendo realizadas na
metodologia etnográfica de pesquisa, tais reflexões que puderam ser pensadas até o
momento, apresentaram a possibilidade de um Ensino de Arte que seja pós-abissal
em salas de aula do município de Francisco Morato, perspectiva de aprendizagem

948
que valoriza a cultura presente nas periferias e sua possível relação de diálogo com
os conteúdos impostos nos currículos e documentos oficiais.

Desse modo, através da observação do cotidiano do sujeito da pesquisa e subsidiando


nos autores citados, acreditamos no potencial que o Ensino de Arte atrelado a uma
Ecologia de Saberes pode conter na Educação.

Considerando o processo do discente de Freire (2019) - aprendizagem mútua entre


conhecimento do educando e do educador - na construção de aprendizagem,
acreditamos também que a estratégia de sistematização de um conhecimento pós-
abissal perpassa pelo subsídio teórico-prático do alfabetismo visual dos estudantes
e da abordagem Triangular. Ambas as abordagens dialogam com a reflexão teórica
de pensar a sala de aula e carregam podendo colaborar com a práxis no chão de
escola.

Já em relação aos entraves de aplicar tal concepção de conhecimento crítico, reitero


a dificuldade que essa ideia tem ao ser aplicada a cultura tradicional escolar. Refém
de cobranças quantitativas impostas por avaliações oficiais e em alguns momentos,
imersa com uma ideia “bancária” de aprendizagem, apresentar outros olhares de
desenvolver a o conhecimento na escola chocando com sua rotina convencional,
pode ser um caminho complexo em algumas realidades, mesmo que o potencial do
outro lado da linha de Santos (2011) esteja tão próximo, nesse caso, geograficamente.

Porém a presente pesquisa e as ideias apresentadas nesse artigo não almejam ocupar
um espaço de progenitora de uma vertente pedagógica, pois compreendemos que
iniciativas em diversos contextos escolares já usam a ideia pós-abissal na prática
educativa, mesmo que denominando essa questão com outra nomenclatura ou até
mesmo não denominando, mas estando implícito em seus planos de aula e ações na
rotina.

A partir disso, nosso objetivo é que ao longo da pesquisa, através da observação


enográfica em sala de aula e se subsidiado em autores que dialogam com
perspectivas decoloniais de aprendizagem, consigamos sistematizar algumas dessas
iniciativas feitas por professores e estudantes, buscando estratégias que contribuam
com a proposta de evidenciar as potências dentro de contextos periféricos, para que
os criadores desse conhecimento pós-abissal vejam seus conhecimentos prévios

949
como força motriz no planejamento e estratégias de aprendizagem, se relacionando
com o conhecimento oficialmente instituído, em Ecologia de Saberes.

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Dissertação (mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
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SANTOS, Boaventura, MENESES, Maria (org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez
Editora, 2011.

Mini Currículo

Erick Henrique Santos Souza


Graduado em Artes Visuais- Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande- FURG.
Atualmente é Mestrando em Artes Visuais pelo programa PROF-Artes no Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Atua como professor de Arte na rede
municipal de Educação de Francisco Morato. E-mail: erickart45@gmail.com

950
ANÚNCIOS DE RESISTÊNCIA NO REINO DA SALA DE AULA

ANNOUNCEMENT OF RESISTANCE IN THE KINGDOM OF THE CLASSROOM

Giovanna Carolina Silva


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Artigo desenvolvido na disciplina Pedagogias Culturais e Visualidades, no Curso de Pós-


Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV), da Universidade Federal de Goiás (UFG). Tem
como partida um relato de experiência docente em turmas do ensino médio, vivida pela
autora em uma escola estadual na Cidade de Anápolis, Goiás. No escrito o relato é exposto
conectando conceitos como: A experiência (LARROSA, 2011), a imagem irrepresentável
(RANCIERE, 2012), relações de poder, pastoreio social e governabilidade (FOUCAULT, 2001),
opressão e libertação (FREIRE, 1987).

Palavras-chave: Relato de Experiência. Docência. Artes Visuais. Poder.

Abstract

Article developed in the discipline Cultural Pedagogies and Visualities, in the Postgraduate
Course in Art and Visual Culture (PPGACV), at the Federal University of Goiás (UFG). It starts
with an account of teaching experience in high school classes, lived by the author in a state
school in the city of Anápolis, Goiás. In the writing, the report is exposed connecting
concepts such as: The experience (LARROSA, 2011), the unrepresentable image (RANCIERE,
2012), power relations, social pastoralism and governability (FOUCAULT, 2001), oppression
and liberation (FREIRE, 1987).

Keywords: Experience Report. Teaching. Visual Arts. Power.

Foi a intenção inicial deste artigo, discorrer sobre uma experiência pessoal que muito
me modificou como docente. Uma vivência de três dias como professora. Minha
primeira oportunidade de exercer esta função na disciplina de Artes Visuais no
ensino médio, em turmas do sexto ao nono ano, com alunos de idade entre sete e

951
quatorze anos. O episódio aconteceu na cidade de Anápolis, Goiás. Em uma escola
estadual, em fevereiro de 2022.

Com o caminhar da escrita contei, especialmente com a companhia dos autores


Larrosa, (2011), Rancière, (2012), Foucault, (2001) e Freire, (1987). O texto que era para
se tratar especificamente do relato se desenvolveu de forma a modificar o sentido da
experiência vivida por mim. Durante a condução de (re)contá-la, ao longo da escrita,
acompanhada da leitura de obras dos referenciais acima citados, o tema inicial,
baseado em um relato de um trauma “licenciado em artes visuais” passou a ganhar
outras vozes. Percepções outras, de mim e do fato em si, compreendidas no decorrer
da narrativa.

Acredito, baseada em Melo, Murphy e Clandinin (2016, p. 565), ser este artigo uma
investigação narrativa, “[...] estudo da experiência entendida narrativamente [...]”
onde o investigador está “[...] centrado no viver e contar, revivendo e recontando as
histórias das experiências que compõem a vida das pessoas, tanto individual quanto
social [...]” (MELLO, MURPHY e CLANDININ, 2016, p. 581, apud CLANDININ E
CONNELLY, 2000, p. 20); sendo, metodologicamente, também identificável dentro
da proposta do método caminho, onde, conforme Ribeiro (2015, p. 195), “[...] as
situações são projetáveis, porém, provisórias, passíveis das emergências próprias de
qualquer trajeto antes não percorrido. [...]”. Aqui, no caminhar da escrita, foram
geradas conforme a autora (2015) "novas zonas de sentido” em relação ao
acontecimento relatado.

Serão articulados, ao fato relatado, saberes abrangendo: o conceito de experiência –


dentro deste os princípios de alienação, subjetividade, reflexividade e transformação
(LARROSA, 2011); o destino das imagens - dentro da compreensão das imagens
presentes e ausentes (RANCIERE, 2012); modelos de ensino e aprendizagem numa
perspectiva de governabilidade, poder, condução de condutas, técnicas de pastoreio
e resistência (FOUCAULT, 2001); opressão e libertação (FREIRE, 1978).

Por cerca de dez anos exerci a função de docente do ensino superior como bacharel
em Arquitetura e Urbanismo em várias instituições de ensino. Apercebia-me
preparada para essa nova oportunidade, porém durante três dias de vivência neste
inédito espaço escolar a imagem do exercício da docência foi em mim
desestruturada.

952
Abordando o conceito de experiência, Larrosa (2011, p. 5) a compreende como “isso
que me passa”. Partindo de um olhar cuidadoso para com as palavras “isso” e “me”, o
autor entende “isso” como algo que é exterior ao eu, que não tem ligação com ideias,
sentimentos, projetos ou intenções pessoais. Passa do lado de fora. Já o “me” tem
relação íntima com o indivíduo em que a experiência perpassa. Sobre o “isso”, que é
exterior a mim, o autor apresenta como sinônimos os princípios de alteridade,
exterioridade e alienação.

Para o princípio de alienação, Larrosa (2011) justifica sua aproximação conceitual com
a palavra “isso” dentro da frase “isso que me passa”, afirmando que o mesmo perpassa
a condição de:

[...] ser alheio a mim, quer dizer, que não pode ser meu, que não pode
ser de minha propriedade, que não pode estar previamente capturado
ou previamente apropriado nem por minhas palavras, nem por minhas
ideias, nem por meus sentimentos, nem por meu saber, nem por meu
poder, nem por minha vontade, etc. (LARROSA, 2011, p. 6).

Ligando o princípio da alienação ao cerne da expressão experiência, percebo-o,


como algo que necessariamente deve estar fora de quem passa a experiência, para
que faça sentido experienciar e a partir de aí modificar aquele que experimenta.
Dessa maneira, a “alienação não deve ser apropriada, mas deve manter-se como
alienação” (LARROSA, 2011, p. 6).

Voltando a refletir sobre a palavra “me” acredito que ela supõe um lugar íntimo. Um
recinto interior ao indivíduo que a experiência (verbo aqui conjugado no presente,
na busca de uma ação “vívida”) de forma cíclica. Ciclo constituído da ação e da reação
que acontecem no sujeito que passa a experiência. Este ciclo, Larrosa (2011)
denomina de princípio de subjetividade, reflexividade ou transformação. Descreve-
o como um movimento de ida e volta:

Um movimento de ida porque a experiência supõe um movimento de


exteriorização, de saída de mim mesmo, de saída para fora, um
movimento que vai ao encontro com isso que passa, ao encontro do
acontecimento. E um movimento de volta porque a experiência supõe
que o acontecimento afeta a mim, que produz efeitos em mim, no que
eu sou, no que eu penso, no que eu sinto, no que eu sei, no que eu
quero, etc. Poderíamos dizer que o sujeito da experiência se exterioriza

953
em relação ao acontecimento, que se altera, que se aliena. (LARROSA,
2011, p. 7).

Há de se ressaltar que a experiência aqui exposta acontece de modo substancial,


quando o sujeito do ciclo está “[...] aberto, sensível, vulnerável ex/posto [...]”
(LARROSA, 2011, p. 7), e que ela acontece de forma diversa; diferente em cada um. Em
mim, em relação ao comportamento dos alunos testemunhado em sala de aula,
percebi o “princípio da alteridade”, onde o “isso” que me passou estava
compreendido de forma exterior a mim, alienado à minha propriedade, que não pôde
estar antecipadamente apropriado “[..] nem por minhas ideias, nem por meus
sentimentos, nem por meu saber, nem por meu poder, nem por minha vontade [...]”
(LARROSA, 2011, p. 6). Observei estudantes, em maioria, desatentos, desinteressados,
cuja imagem era intocável. Eu como espectadora, na ânsia de ser a imagem vista, fui
imagem ausente. Na experiência, estive imbuída de exterioridade e uma sensação de
alienação bilateral em relação aos alunos. O que para Larrosa (2011) é necessário para
que a experiência aconteça de modo integral.

Ponderando o termo “me”, como indivíduo, professora, dentro do “princípio de


subjetividade” movimentei-me, e movimento-me, saindo de mim mesma. Movimento
de “[...] ida [...] ao encontro com isso que passa, ao encontro do acontecimento [...] e
de volta [...] que produz efeitos em mim, no que sou, no que penso [...] (LARROSA,
2011, p. 7), em como via, vi e vejo minha imagem docente.

Ranciere (2012, p. 10), enquanto disserta sobre o destino das imagens, reflete dentro
da pergunta “[...] diante de que sinais se pode reconhecer sua presença ou ausência?
[...]. Compreendo que o autor está considerando a presença ou ausência tanto das
imagens como do espectador. Como licenciada, na tentativa de exercer a função de
educadora obtive a percepção de exercer uma imagem ausente. Percebi, além da
ausência de minha autoimagem, a ausência da imagem do espectador - lugar
sugerido nesta oportunidade aos alunos.

Para Rancière (2012, p. 11-12) o sentido de alteridade, em relação às imagens pode ser
compreendido não somente à sua materialidade, depende, pois, de sua relação entre
“[...] o todo e as partes, entre uma visibilidade e uma potência de significação e de
afeto que lhe é associada, entre as expectativas e aquilo que vem preenchê-las [...]”.
Associando os pontos de vista dos autores Larrosa (2011) e Rancière (2012) no que

954
concerne a ‘alteridade’, é possível compreender que ambos partem do entendimento
de ir além. Relacionando essa compreensão ao sentido do que possa ser a imagem,
percebo como condição de sua existência e de sua significação, que a mesma existe
quando seu campo de alcance e de contato vai além de sua abrangência material ou
visível, quando ultrapassa os sentidos de significação e toca as relações sensíveis e
subjetivas, individuais e ou coletivas.

Em relação às definições de imagem, Rancière (2012, p. 15-16) ressalta que “[...] a


imagem não é uma exclusividade do visível. Há um visível que não produz imagem,
há imagens que estão todas em palavras [...]”. É nesse campo, da imagem invisível, da
imagem em palavra, que proponho este relato de experiência.

Mesmo passando por um curso de licenciatura, que me deu como aporte relações
horizontais de ensino e aprendizagem, esperava ser vista. Esperava dos alunos o
lugar de espectador. O que me revela com clareza que ainda percorro a experiência
docente imbuída de uma expectativa de relação vertical. Onde o professor ‘detentor
do conhecimento’ seja visto, exerça uma imagem de autoridade, respeitabilidade,
poder ou governabilidade.

Foucault (2001, p. 164), traz dentro da problemática da governabilidade alguns


apontamentos úteis a serem aqui desenvolvidos, empreendendo relacioná-los à
circunstância experienciada descrita anteriormente. Seriam os seguintes: “[...] o
problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com
que método [...]”.

Enquanto retoma a obra ‘O Príncipe'1, Foucault (2001) expõe um aspecto da


governabilidade relacionando-a à condição de principado. O autor apresenta como,

Corolário deste princípio: na medida em que é uma relação de


exterioridade, ela é frágil e estará sempre ameaçada, exteriormente
pelos inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu
principado e internamente, pois não há razão a priori, imediata, para
que os súditos aceitem o governo do príncipe. (FOUCAULT, 2001, p.
164)

1
O Príncipe: Obra literária escrita por Nicolau Maquiavel, publicada em 1532.
955
No exercício da experiência docente, encontrava-me exterior aos alunos. Era a
primeira vez que me viam, e também a primeira vez que os via. Não havia razão
anterior para que os “súditos”, alunos, aceitassem o governo do "príncipe" a
professora. Uma relação que exibe, de modo raso, o princípio da exterioridade,
Larrosa (2011), será fadada ao insucesso. De certo que para a existência da condição
de experiência se faz necessária a distância. Porém, para que aconteça uma conexão
entre os atores da relação ensino x aprendizagem, se faz necessária a passagem da
condição de alteridade para a subjetividade. Do movimento de “ida” e “volta”, do
habitar, tanto dos ‘súditos’ quanto do ‘príncipe’ em seus contextos. “[...] para que os
súditos aceitem o governo do príncipe [...]” (FOUCAULT, 2001, p. 164).

Mesmo diante da explanação acima, baseada em Larrosa (2011), Foucault (2001), e em


certa medida também Rancière (2012); anseio por compreender melhor a relação de
poder e ou governabilidade esperada ainda hoje no ambiente escolar.

De volta ao relato da experiência vivida, trago uma lembrança: Na escola, sempre que
tocava o sinal do intervalo de quinze minutos, no período matutino ou vespertino,
tempo esse incapaz de me restabelecer tanto física como emocionalmente, tinha a
oportunidade de adentrar à sala dos professores. Encontrando meus ‘pares’, era
sempre ‘orientada’ com uma frase de efeito do tipo: “Professor bom é aquele que
domina a sala de aula!”; “A professora ‘fulana’ é que é boa, tem total domínio sobre os
meninos!”; “Você tem que manter os alunos sentados e quietos!”; “Pra você conseguir
atenção deles, tem que gritar!”...

Não era assim que me imaginava, ou me enxergava como docente. As palavras


‘domínio’, ‘quietos’ e ‘gritar’ eram contrárias aos meus planejamentos didáticos, aos
conceitos de aprendizagem horizontal que havia acabado de aprender, admirar e
propor no ensino superior. Não era, até então, necessário exercer poder, domínio,
condução de condutas … não era necessário gritar.

As técnicas de pastoreio, embriagadas de um cunho religioso histórico, ainda


estavam ali, na sala dos professores, sendo ensinadas e repassadas como
comportamento necessário para que se sucedesse o ensino. Como romper com essas
‘técnicas’? Como praticar resistência nesse lugar onde se valoriza o domínio das
condutas? Seria minha sensação de ser ‘imagem invisível’ um anúncio de resistência
dos “súditos” no reino da sala de aula?

956
No intuito de encontrar respostas a estas perguntas, sondo algumas pistas deixadas
por Foucault (2001). Citando La Mothe Le Vayer, o autor (2001) diz que:

[...] existem basicamente três tipos de governo, cada um se referindo a


uma forma específica de ciência ou de reflexão. O governo de si
mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente
uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o
Estado, que diz respeito à política. [...] A arte de governar, tal como
aparece em toda esta literatura, deve responder essencialmente à
seguinte questão: como introduzir a economia − isto é, a maneira de
gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da
família − ao nível da gestão de um Estado? [...] (FOUCAULT, 2001, p.
165).

Encontra-se na explanação de Foucault (2001, p. 165) indícios de que os


comportamentos por mim averiguados na escola tem relação direta com os ‘tipos de
governo’. O “governo de si mesmo” poderia ser relacionado à minha necessidade de
ser vista, de ter ‘moral’ sendo esse substantivo alinhado ao sentido de honra, aquela
mesma do príncipe de Maquiavel, de “[...] governar adequadamente uma família [...]”,
sendo a família relacionada neste caso ao grupo de pessoas incluídas no ambiente de
sala de aula. Em relação ao governo como "ciência de bem governar o Estado”, busco
relações outras, históricas, do cárcere intelectual adotado pelas primeiras missões
católicas, de domínio de condutas pelo privilégio do saber científico e das
manipulações exercidas pelos diversos sistemas de governo. E também há de ser
relacionado o governo na escola, composto um sistema hierárquico que vem sendo
em boa parte uma ‘reprise’ de bases jesuíticas que tinham relação estreita com a
coroa portuguesa. É certo que as escolas passaram por diversas mudanças ao longo
do tempo, mas também é válido refletir sobre a estagnação moldada pelas carteiras
em fila, alunos que devem permanecer sentados e professores exaustos à frente de
um conjunto de discentes organizados em layout2 ortogonal.

Foucault (2001, p.165) verifica a governabilidade em duas perspectivas, a ascendente


e a descendente. Quanto à continuidade descendente o autor a revela “[...] no sentido
em que, quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar

2
Layout: expressão aqui empregada como uma figura de linguagem relacionada à planta de layout dos projetos de
arquitetura, que consistem de uma vista superior de um ambiente com objetivo de demonstrar a organização dos
espaços contendo mobiliários e garantindo otimização do fluxo dos usuários no local.
957
suas famílias, seus bens, seu patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam
como devem. [...]”. Percebo ainda hoje uma busca de similitude para com o panorama
descendente no sistema organizacional escolar. Há, nas falas ditas na sala dos
professores, uma busca por esta “continuidade descendente”. Há uma busca de “[...]
algo sólido a que se apegar [...]” (BERMAN, 1986, p. 12), eventualmente uma
necessidade de preservar um padrão educacional existente em prol de sensações de
pertencimento e equilíbrio … Talvez, seja neste sistema, para muitos de seus
componentes humanos, repetir; recolher-se no conhecido, no lugar “sólido”, em
lugar de relativizar-se, deixar o “sólido” se “desmanchar no ar”.

Em relação ao “governo do Estado”, Foucault (2001, p. 165) revela uma relação de


vigilância e controle para com “[...] os habitantes, às riquezas, aos comportamentos
individuais e coletivos [...] tão atenta quanto a do pai de família [...]”. Atento-me,
mediante minha experiência relatada, para com a semelhança identificável no
contexto de 'governamentalidade' escolar. Os ‘habitantes’ do ‘principado’ ainda
induzem e são induzidos mediante vigilância e controle.

Quanto ao “governo das coisas”, Foucault (2001, p. 166), mencionando um escrito de


La Perriére, usa da metáfora do governo de um navio, para ponderar na amplitude
que pode vir a ser o ato de governar, quando o ‘comandante’, além de “[...] se ocupar
dos marinheiros, da nau e da carga [...]” percebe que “[...] governar um navio é
também prestar atenção aos ventos, aos recifes, às tempestades, às intempéries, etc.
[...]”. Na experiência vivida como ‘comandante’ das turmas onde ministrei algumas
aulas, não houve tempo, ou atenção para com as turbulências passadas e ou
presentes nos ‘tripulantes’. De longe, invisível e cega - em paráfrase com Didi-
Huberman (2012) deixei de acercar meu rosto à chama da imagem dos alunos que
poderiam estar gritando “não vês que ardo”?

Essas “chamas ardiam”. Algumas com indiferença e desinteresse, outras com


inquietação - alunos que se movimentavam no ambiente a todo tempo, outros ainda
com agressividade. Recordo-me, com pesar, de ter presenciado uma briga entre dois
alunos, não consegui saber a motivação. Havia ainda alguns poucos interessados, um
deles gritava do fundo da sala: “Deixa a professora falar!”... Sem muito sucesso. Pude
notar também alguns bem sensibilizados, deixando escapar algumas lágrimas em

958
suas carteiras. Estes foram alguns “gritos” que pude ouvir, algumas imagens que
consegui ver.

Imersa nesses “clamores”, de forma simultânea aos que havia ouvido dos pares -
colegas professores - que me orientavam como receita para uma boa aula o domínio,
o silêncio e a quietude dos alunos, momento alinhado à minha expectativa de como
deveria se dar a experiência - uma relação horizontal para com os alunos; em pânico;
sem conseguir me direcionar; fui “menos”. Gritei. Pedi que se sentassem e
permanecessem quietos. Oprimi. Não pretendia praticar a opressão indicada pelos
colegas, pois vinha de uma formação que indicava caminhos de aproximação, por
outro lado não consegui aproximar-me. Sobre a opressão, Freire (1897) aponta que:

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não


instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser
mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem
os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos,
ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não
se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato,
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em
ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos –
libertar-se a si e aos opressores. (FREIRE, 1987, p.16-17).

Teriam sido os “gritos” que escutei dos estudantes, uma luta, reação, prática de
resistência, ou busca de “[...] recuperar sua humanidade [...] (FREIRE, 1987, p. 16) em
sala de aula? É possível que estes venham sendo oprimidos por um modo de aprender
e ensinar aproximado das “técnicas de pastoreio” (Foucault), e por essa razão, não
ter sido possível estabelecer um ‘reinado’ harmônico entre o 'príncipe' e seus
‘súditos’?

Na vivência relatada, oprimi e fui oprimida. Não foi possível restaurar a humanidade
ou propor a liberdade indicada por Freire (1987). Receio que a “falsa generosidade",
evidenciada pelo autor (1987) quando a indica como atuação do opressor, ainda reside
nas conversas de intervalo em muitas salas de professores. Não porque estes queiram
oprimir, mas, talvez por se sentirem mais seguros nesse modo estabelecido e
conhecido de ensinar. Eventualmente, porque seja mais seguro agarrar-se em “algo
sólido” (Berman, 1986), do que se propor “desmanchar no ar”.

959
Há de se ressaltar que na mesma ‘sala dos professores’, pude também perceber, em
alguns docentes o desânimo, o cansaço e ainda a desistência de si e por consequência
do outro. Há o adoecimento psicológico tanto de professores quanto de alunos.
Neste sentido intuo que participei de uma experiência onde foi possível perceber a
ação e a recepção opressora tanto na perspectiva discente quanto docente. Em busca
de compreender esta circunstância, encontro em Freire (1987) a seguinte elucidação:

[...] os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela,


tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu
pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação
concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser
homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre
estiveram e cuja superação não lhes está, clara, é ser opressores. Estes
são o seu testemunho de humanidade.[...] (FREIRE, 1987, p. 17).

Suponho que as opressões aqui apresentadas, nasçam fora da escola. Venham de um


‘pastoreio’ social, que acaba por atingir os ambientes escolares em toda sua
complexidade. Assistida novamente por Rancière (2012, p. 10) refletindo sobre o
destino das imagens, quando este apresenta a pergunta: “[...] diante de que sinais se
pode reconhecer sua presença ou ausência? [...]” considero que há uma ligação entre
o ‘pastoreio’ citado por Foucault (2001) e a presença ou ausência das imagens
indicadas por Rancière (2012). A convergência suposta teria sentido ao agregar ao
substantivo ‘imagem’ um retrato social, que se pode contemplar como ausente em
relação à invisibilidade do “outro”. Ao distanciamento da libertação individual
possibilitada por uma ação de liberdade coletiva.

Que destino vem levando a imagem social do “outro” sendo pastoreada pelos diversos
condutores de conduta, que com suas práticas de governamento se distanciam do
“reinado” do coletivo, por uma visibilidade restrita? Não estariam os ‘condutores’ ou
‘pastores’ sendo também ‘conduzidos’ e ou ‘pastoreados’?

Considero valiosa a explanação de Freire (1987), quando esclarece que os oprimidos


em condição dual de opressores,

[...] Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser


[...] São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como
consciência opressora [...] Sua luta se trava entre serem eles mesmos
ou serem duplos. Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de

960
si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem
prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores.
Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos
opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no
seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo
(FREIRE, 1987, p. 19).

Sofro um doloroso “parto” no experimento da docência. Inclusa na dicotomia da


condição de opressora e oprimida, em busca de libertar-me dela, e a partir daí
auxiliar na libertação do outro, passo pelo trauma da mudança. Pelo parto que me
conduz à condição de outra - dentro do sentido da experiência de Larrosa (2011) -
pelo “[...] movimento de volta porque a experiência supõe que o acontecimento afeta
a mim, que produz efeitos em mim, no que eu sou, no que eu penso, no que eu sinto,
no que eu sei, no que eu quero [...]” (LARROSA, 2011, p. 7). Careço de destacar o que
descreve Freire (1987 p. 19), sobre esse ‘parto’: ‘[...] O homem que nasce deste parto é
um homem novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-
oprimidos, que é a libertação de todos [...]”. Na condição da “libertação de todos”, a
imagem coletiva passa a obter a “[...] visibilidade e uma potência de significação e de
afeto que lhe é associada [...]” (RANCIERE, 2012, p. 11-12), torna-se ação libertadora.

Freire (1987, p. 12), logo em suas primeiras palavras da obra “Pedagogia do Oprimido”,
faz uma dedicatória “ Aos esfarrapados do mundo, e aos que neles se descobrem e,
assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.” Logo
quando dei início a esse descrito, nutria um impulso de falar sobre meu ‘trauma’ -
como denominei a experiência relatada por um tempo. Em busca de uma definição
do que vem a ser um trauma encontro:

O termo “trauma” é usado para definir ou descrever as lesões causadas


por um evento que gera um ferimento de maneira inesperada, ou seja,
envolvem danos causados por acidentes diversos, violência ou
agressões, que podem ocasionar feridas graves e afetar órgãos, de
modo que precisam ser tratados de forma ágil por especialistas.
(BOSSONI, 2021 n.p)

Sim, houve, em mim, uma lesão, um ‘trauma’. Este pôde ser validado pela noite de
pânico entre o segundo e o terceiro dia de aula; bem como pelo choro engolido antes
de entrar em cada turma no terceiro e último dia de experiência. Mas não houve
acidente, violência ou agressão, nem da parte dos ‘súditos’, do 'príncipe' para com ele

961
mesmo, nem de nenhum indivíduo pertencente ao ‘reino’ escolar. Havia ali, naquela
experiência, uma professora descobrindo-se ‘esfarrapada’, que na ânsia de ser
imagem vista, não conseguiu lutar em conjunto com os demais ‘esfarrapados’, mas
que compreende, a necessidade de com eles lutar. Fico no reconhecimento do
“pouco saber de mim”, e instalo-me no contexto dos homens que vivem a “[...] trágica
descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam.
Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.[...]” (FREIRE, 1987, p. 16).

Referências

BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. São


Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1986.
BOSSONI, Alexandre. O que é um trauma, quais os tipos, e como tratá-lo?
santapaula.com.br, 2021. Disponível em: https://www.santapaula.com.br/blog/o-que-e-
trauma-quais-os-tipos-e-como-trata-
lo/#:~:text=O%20termo%20%E2%80%9Ctrauma%E2%80%9D%20%C3%A9%20usado,trat
ados%20de%20forma%20%C3%A1gil%20por. Acesso em: 30, jul. 2022.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Revista do programa de
Pós-Graduação em Artes da escola de Belas Artes da UFMG, v. 2, n. 4, p. 204-2019, nov.
2012, Disponível em:
https://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/60. Acesso em: 08,
mai. 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
16 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. Disponível em:
https://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfisica_do_Poder_-
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HERNANDEZ, Fernando. Pedagogias Culturais: o processo de (se) constituir em um campo
que vincula conhecimento, indagação e ativismo. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO,
Irene (orgs.). Pedagogias Culturais. Santa Maria; Ed. Da UFSM, 2014.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Revista Reflexão e Ação, Santa
Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 04-27, jul./dez. 2011. Disponível em:
https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444 . Acesso em: fev. 2021.
MELLO, D.; MURPHY, S.; CLANDININ, D. J. Introduzindo a investigação narrativa nos
contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores

962
narrativos. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 01, n. 03, p. 565-
583, set/dez. 2016.
RANCIÈRE, J. Se o irrepresentável existe. In: ____ O destino das imagens. Contraponto,
2012, pp. 119-150.
RIBEIRO, O. C. Criatividade na pesquisa acadêmica: método-caminho na perspectiva de
uma fenomenologia complexa e transdisciplinar. Revista da UFG. v. 5, n. 1, jan./jun. 2015, p.
189-215, Artigo 89 Dossiê ECOTRANSD: Ecologia dos saberes e Transdisciplinaridade.
Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/teri/article/view/36356/18709. Acesso: em
ago. 2021.

Mini Currículo

Giovanna Carolina Silva


Arquiteta e Urbanista graduada pela UEG, Licenciada em Artes Visuais pela UFG. Especialização em
Gerenciamento de Obras e Projetos - Edificações pela UNIP. Espacialização em Docência
Universitária pela Faculdade Católica de Anápolis. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades:
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado pela UEG. Doutoranda no Programa de Pós-graduação
em Arte e Cultura Visual da UFG. E-mail: giovanna.carolina@discente.ufg.br

963
RELATO DE EXPERIÊNCIA NA TURMA DO MATERNAL: PROPOSTA DE
ATIVIDADE DE ARTE COM ARGILA

EXPERIENCE REPORT IN THE MATERNAL CLASS: CLAY ART ACTIVITY PROPOSAL

Leila Katia de Sousa Farias


IFPA/Brasil

Cássia Morais Santos


IFPA/Brasil

Mariluzio Araújo Moreira da Silva


IFPA/Brasil

Resumo

As artes visuais na Educação Infantil despertam olhares. O trabalho com argila proporciona
o experimentar a textura, usar a criatividade e expressar sentimentos e sensações. Neste
espaço lúdico e acolhedor da primeira etapa da educação básica, a criança vai se
expressando, criando e se relacionando com seus pares, contribuindo, dessa forma, para a
produção de conhecimento e sua formação integral. Neste ínterim, este texto tem por
objetivo compartilhar uma experiência de ensino com argila, vivenciada na Educação Infantil
em uma turma do Maternal. Ressaltando sobre o contexto da Educação Infantil com base na
BNCC, a prática pedagógica envolvendo arte, as reações das crianças durante a atividade
desenvolvida, bem como as contribuições desta experiência pedagógica para o
desenvolvimento das crianças. Trata-se de uma pesquisa – ação, de abordagem qualitativa,
tendo como técnica de pesquisa a observação participante. O texto está fundamentado nas
contribuições de Diehi (2020), BNCC (2017), Sarmento (2002) e Lemos (2018). Desta feita, a
prática pedagógica na Educação Infantil deve levar em consideração as experiências das
crianças provenientes do âmbito familiar, bem como ampliar as mesmas, a fim de que os
indivíduos experimentem, criem, se relacionem entre si e se desenvolvam durante o
processo educativo. Estes sujeitos, são produtores de conhecimento, através da
interatividade, ludicidade, fantasia do real e reiteração, são capazes de reproduzir e ampliar
seu repertório cultural. Diante disso, no que tange a experiência com a argila na turma do
maternal, as crianças puderam manter o contato com este material advindo da natureza,
interagiram com seus pares, ampliaram seu repertório cultural por meio desta atividade
artística lúdica e prazerosa.

Palavras-chave: Artes visuais. Argila. Prática Pedagógica. Educação Infantil.


964
Abstract

Visual arts in Early Childhood Education arouse looks. Working with clay allows you to
experiense this texture, use creativity and express feelings and sensations. In this playful and
welcoming space of the firt stage of basic education, children express themselves, create
and relate to theis peers, this contributing to the production of knowledge and their integral
formation. In the meantime, this text aims to share a teaching experience with clay, lived in
Early Childhood Education, in a Maternal class. Emphasizing the contexto of Early Childhood
Education based on the BNCC, the pedagogical practice involving art, the reaction based
reactions of children during the activity developmet of children. It is na action research, with
a qualitative approach, using participant observation as a research technique. The test is
based on the contribution of Diehi (2020), BNCC (2017), Sarmento (2002) and Lemos (2018).
Thus, the pedagogical practice in Early Childhood Education must take into account the
experiences of children from the family environment, as well as expand them, so that
individuals experince, create, relate to each other and develop during the educational
process. These subjects are knowledge producers, through interactivity, playfulness, real
fantasy and reiteration, they are able to reproduce and expand their cultural reportoise.
Therefore, regarding the experience with clay in the kindergarten classe, the children were
able to keep in touch with this material from nature, interacted with their peers, expanded
their cultural repertoire through this playful and pleasurable artistc activity.

Keywords: Visual Arts. Clay. Pedagogical Practice. Child Education.

Introdução

De acordo com Sanches (2019), as experiências enquanto profissionais da educação,


quando compartilhadas entre pares, podem auxiliar em suas demandas.

[...] Quando socializo a minha experiência, abro a possibilidade de


ajudar na demanda do outro. E vice-versa. A experiência do outro, no
mínimo, pode me inspirar a pensar na minha demanda de um modo
que, até então, eu não havia percebido [...] (SANCHES, 2019, p. 95).

Deste modo, o compartilhamento de experiências pedagógicas é relevante, a fim de


que novas ideias de experiências educacionais possam ser conhecidas e angústias de
professores venham ser compartilhadas e sanadas, para que dificuldades envolvendo
a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos possam ser superadas.

965
Neste contexto, este artigo é de caráter descritivo, mas ao mesmo tempo reflexivo,
sobre a experiência pedagógica com argila, tendo como público crianças, entre 2
anos e meio a 3 anos e 11 meses de idade, público-alvo da Educação Infantil, primeira
etapa da Educação Básica. Tal proposta surgiu a partir de uma inquietação sobre as
contribuições da experiência pedagógica com argila para o desenvolvimento das
crianças. Assim, primeiramente serão apresentadas discussões concernentes ao
contexto da Educação Infantil entrelaçadas com a Base Nacional Comum Curricular
– BNCC, bem como à prática pedagógica do professor para esta etapa da educação,
envolvendo as Artes Visuais e, por último, será discorrido sobre a experiência da
atividade com argila em uma turma de Maternal de uma escola particular do
município de Belém/Pará.

Diante disso, de acordo com a BNCC, documento de caráter normativo, criado com
o objetivo de definir o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os educandos:
crianças, jovens e adultos, devem desenvolver ao longo de todas as etapas e
modalidades da educação básica, é prescrito que a Educação Infantil faz parte da
educação formal e atende a faixa etária de 0 a 5 anos, no entanto, nesta etapa de
ensino, a educação é obrigatória para os 4 e 5 anos de idade.

O documento ressalta a concepção do cuidar e educar como indissociáveis do


processo educativo, e afirma que muitas vezes a separação entre a criança e a família
ocorre no ingresso na escola. E que, portanto, o professor precisa acolher esta
criança, considerando seus saberes e relacionando-os e ampliando-os no contexto
escolar, analisando o desenvolvimento de cada criança e do grupo, sem o objetivo de
promoção ou classificação para etapas posteriores.

A Educação Infantil atua de forma a complementar a educação familiar, logo seu


objetivo é de ampliar o universo de experiências, conhecimentos e habilidades das
crianças, possibilitando a construção de novas aprendizagens através de
experiências pautadas nos eixos estruturantes das práticas pedagógicas na Educação
Infantil que são as interações e as brincadeiras, garantindo, assim, os direitos de
aprendizagens voltados para esta etapa de ensino: conviver, brincar, participar,
explorar e conhecer-se.

A BNCC faz apontamentos voltados para a educação das crianças, considerando suas
singularidades e direcionando as práticas dos professores para campos de

966
experiências que devem ser garantidos na Educação Infantil: o eu, o outro e o nós;
corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento
e imaginação; espaços, tempos quantidades, relações e transformações.

Diante disso, as práticas pedagógicas dos professores da Educação Infantil devem


ser voltadas para ações que possibilitem a valorização das diferenças em sala de aula,
a transformação social, diferentes vivências educacionais que possibilite o
experimentar, criar e explorar, por parte dos alunos, mediadas por meio das
interações e brincadeiras, capazes de garantir os direitos de aprendizagens das
crianças.

Neste contexto, o trabalho docente na Educação Infantil, deve ser realizado de forma
intencional, que considere o aluno como um produtor de conhecimento, que
problematiza, questiona e reflete, que participa, se envolve e compartilha saberes.
Na esteira deste raciocínio, com base nas contribuições de Freire (2011, p. 24), “ [...]
ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar as possibilidades para a sua
produção ou a sua construção”.

Na Educação Infantil, os conhecimentos advindos das crianças devem ser


considerados e valorizados. Estas produzem conhecimento em meio às relações
sociais atreladas às suas diferentes culturas. Assim, Sarmento (2002), destaca que o
conceito de infância vem se modificando ao longo do tempo, e que hoje existem
várias infâncias, nas quais precisam ser conhecidas e valorizadas, já que as crianças
são seres sociais portadores de novidades extraídas da sociedade. Ou seja, a infância
é um entre-lugar, considerada o espaço entre a realidade vivida pelos adultos e o que
é recriado pelas crianças. Ou seja, crianças produzem saberes no meio cultural do
qual pertencem.

Desse modo, este autor dito acima argumenta sobre as culturas da infância,
referindo-se a representações da sociedade reproduzidas de forma infantil pelas
crianças. “[...] O mundo da fantasia das crianças constitui, na expressão vulgar dos
adultos, o reconhecimento, no senso comum, dos modos de construção de
significado pelas crianças” (SARMENTO, 2002, p. 11 e 12). Assim, as culturas da
infância são reproduzidas a partir da cultura da sociedade, por meio de quatro eixos
estruturadores: a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração.

967
Quanto ao eixo da interatividade, o autor afirma que a criança se envolve em várias
atividades envolvendo o social, tais como a família e a escola. Logo, em meio a
interação com os seus pares, a criança vai apreendendo valores e estratégias que
corroboram para a sua formação pessoal e social.

Em relação a ludicidade, é afirmado que o ato de brincar é típico da criança. E através


desta dinâmica prazerosa, este indivíduo assimila e recria a realidade, e desperta a
fantasia. A brincadeira proporciona a aprendizagem da sociabilidade, porque nas
interações entre as crianças, com uso de objetos ou não, elas aprendem uma com as
outras.

No que diz respeito à fantasia do real, é discorrido que a criança constrói a visão do
mundo por meio da fantasia, atribuindo significado às coisas. A criança é fantasiosa,
ela vive isto na sua infância de forma a entender e a dar sentido às coisas. Ademais,
este autor defende que através da relação entre a realidade e a fantasia, em meio a
situações dolosas, a fantasia se encontra na base para dar sustentação, às crianças,
aos embates das situações problemas vivenciados na sociedade. Assim, são utilizados
termos e narrativas imaginosas, a fim de amenizar tais vivências.

E por último, no eixo da reiteração, Sarmento (2002) aborda as continuidades e


rupturas nas relações entre as crianças. Relações estas que se por algum momento
soou desagradável durante as brincadeiras, o começar de novo é possível, e de forma
leve. As crianças têm essa facilidade de reinventar e recriar, começando tudo de
novo.

Entrementes, mesmo na Educação Infantil, as crianças são capazes de produzir


conhecimentos, reproduzir culturas e apresentar conhecimentos provindos do seu
ambiente familiar, em meio às relações social nas quais elas estão inseridas. Logo, o
professor precisa ampliar essas experiências educativas, tal como é estabelecido na
BNCC, bem como possibilitar a troca de saberes entre os alunos por meio dos eixos
estruturadores das culturas da infância.

Diante desta discussão, as experiências educativas envolvendo a arte na educação


Infantil, devem ser voltadas para inserção da criança na cultura, ampliando suas
experiências culturais provindas da família, e possibilitando com que estas se
expressem, participem e interajam a partir do que é proposto.

968
Diehi (2020), argumenta sobre a relação entre educação, cultura e a arte. Logo, a
educação e arte estão presentes na cultura. Para esta autora, “a arte promove
interações perceptivas, experimentais, criativas, críticas e participativas,
apresentada em determinados grupos artísticos [...]” (DIEHI, 2020, p.2).

Desta forma, a autora defende uma arte que possui um diálogo intercultural com a
educação, pois através dela, os indivíduos expressam sua subjetividade e apreendem
saberes adquiridos das trocas de experiências nas relações sociais.

Paralelo a isso, no que se refere ao manejo da argila, no campo das Artes Visuais, tal
proposta educativa pode ser voltada para atividades que estimulam a plasticidade
como recurso pedagógico, bem como, assunto curricular com base na área que
estuda, experimenta e desenvolve pesquisas no ensino e aprendizagem.

Pensar didaticamente que a argila pode ser um processo de experimentação para


entender como se inicia a criação de uma peça de cerâmica, a utilização dessa prática
como recurso didático-pedagógico para os mais variados níveis de ensino, assim
como áreas de atuação, é de grande relevância para a prática educacional.

Nas Artes Visuais, dentro das práticas plásticas, a argila é pensada como base para
compreensão dos processos que levam a produção da cerâmica, sendo a argila parte
terrosa e crua, que precede a cerâmica. Esta, por sua vez, é a finalização do seu
processo de construção da forma tridimensional de um objeto, que ao ser exposta a
queima da peça, gera o resultado final da queima da argila: a peça de cerâmica.

No que diz respeito ao uso da argila nas práticas pedagógicas na Educação Infantil,
temos a possibilidade de inserir as crianças no processo de experimentação como
forma de aprendizagem com o estímulo ao contato com a argila e sua plasticidade
como proposta de aprender através da prática, do fazer e experienciar o material.

A atividade com argila proporciona uma experiência lúdica por meio da proposta das
Artes Visuais na Educação Infantil, em consonância com os cinco campos de
experiência nesta etapa de ensino. Ademais, no campo das Artes Visuais, são
apresentados cinco processos passíveis de serem considerados em atividades
educativas de aula/oficina e/ou atividade com argila, que são:

1- Processo de contato com argila: breve explanação de como modelar e limpeza.

2- Processo de experimentação: pensar a forma, modelagem e criação.

969
3- Processo de criação: criação de peças testes para análise do processo criativo.

4- Processo de reflexão: pensar as criações, tempo de produção e relações com a


cerâmica.

5- Processo de relato da prática: conversa, troca e orientações entre docentes e


discentes.

A partir disso, tem-se um breve roteiro que auxilia na elaboração de um plano de


aula, oficina ou projeto de atividades pedagógicas com argila para práticas educativas
na educação básica, a partir da perspectiva do ensino em Artes Visuais.

Levando em consideração o processo de ensino e aprendizagem envolvendo as Artes


Visuais, tem que se levar em conta alguns materiais de apoio como, livros didáticos,
imagens, exemplos de peças, vídeos, assim como o suporte teórico do professor que
irá propor essa prática, tais como artigos que abordam o tema, livros de Artes que
expliquem a importância histórica dessa prática, até mesmo, exemplificações,
relações e correlações pertinentes a essa prática, adequando a forma de explicar e
exemplificar de acordo com a faixa etária/série.

A proposta supracitada leva em consideração uma construção norteadora de ensino


com argila com base em reflexões em torno do ensinar e pensar práticas pedagógicas
em artes visuais. No entanto, paralelo a isso, na Educação Infantil as atividades
envolvendo o manejo da argila são direcionadas ao experimentar este material
provindo da natureza, a fim de que a criança conheça esta textura, explore-a e se
expresse a partir desta experiência lúdica e pedagógica.

Concernente ao ensino-aprendizagem voltado para uma educação atrelada aos


sentidos e aos saberes advindos do cotidiano,

Estudando Duarte Júnior (2001) senti-me provocada a pensar na


necessidade de uma educação estética que se ocupe com nossos
sentidos e valorize o saber sensível que está em nosso cotidiano, uma
vez que nossos saberes são múltiplos, e aprendidos no cotidiano. O
aluno leva estes saberes para dentro da sala de aula, e vejo que o
arte/educador deve valorizar este saber agregando a ele o
conhecimento intelectual”. (Lemos, 2018, p. 2).

970
A partir da citação acima, é possível reafirmar que o alunado é detentor de
conhecimentos, os quais são trazidos para o ambiente escolar, e o professor deve
valorizá-los e incrementá-los com o conhecimento intelectual. Neste sentido,

Acredito que a escola não deve ser um espaço apenas do conhecimento


intelectivo, mas também de um saber sensível. Essa compreensão
revela uma concepção de educação como um processo formativo do
ser humano que colabora no desenvolvimento dos sentidos e
significados fundamentais para apropriação de uma sensibilidade que
permita uma percepção mais apurada do mundo, sendo essa
sensibilidade adquirida por meio de um processo que o próprio sujeito
estabelece nas suas relações e que o faz desenvolver seus sentidos
(Lemos, 2018, p. 3).

Com base no exposto, tanto os saberes provenientes dos alunos, quanto o


conhecimento intelectivo adquirido no espaço escolar são importantes. O
conhecimento é produzido em meio a trocas de saberes. Desse modo, no que tange
à prática pedagógica do professor da Educação Infantil, este precisa valorizar as
experiências advindas do ambiente familiar e ampliar tais experiências a partir de
práticas pedagógicas relevantes capazes de atrair a curiosidade e interesse das
crianças em participar do que está sendo proposto.

Em se tratando de atividade pedagógica com a argila, ao ser proposta em uma


perspectiva de recurso didático, esta é capaz de atrair os olhares curiosos das
crianças, o interesse em participar da dinâmica educativa, nas quais são passíveis de
estimular percepções sensíveis através do experienciar e explorar o material
argiloso.

Referente a turma do Maternal, foi proposto uma atividade com argila cinza 1, na qual
as crianças iriam manter o contato com a natureza, iriam explorar, se comunicar e
conhecer-se, como um ser social e de direitos, a partir desta experiência de trocas
de saberes com seus pares e com o meio ambiente, tal como é previsto na BNCC.

A BNCC orienta que para a Educação Infantil a prática pedagógica do professor


precisa estar orientada com uma intencionalidade educativa.

1
A argila é um mineral proveniente do solo. Quando misturada em água, ela fica lisa, macia e maleável. A
encontramos em diferentes cores: preta, branca, vermelha, verde e cinza.

971
Essa intencionalidade consiste na organização e proposição, pelo
educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao
outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com
a cultura e com a produção científica, que se traduzem nas práticas de
cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas
brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na
aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas (BRASIL,
2017, p.39).

Desta feita, além de todo o envolvimento com o material advindo da natureza e sua
relação com o outro, nesta atividade foi solicitado que as crianças fizessem
esculturas com a argila, pois no livro didático havia uma atividade de artes
envolvendo uma boneca de barro confeccionada do povo indígena Karajá, bem como
sobre brinquedos confeccionados a partir de diferentes materiais como: massinha de
modelar, papéis coloridos, rolhas e canudos. Desta forma, a atividade com argila iria
complementar todo este assunto já abordado com as crianças em sala de aula. Tal
proposta de atividade surgiu pelo fato da professora da turma haver viajado para
Santa Bárbara, município do Estado do Pará, e ter visto a margem do igarapé, muita
argila. Então, seu pensamento foi o de desenvolver uma atividade de arte com argila,
devido a abundância de matéria prima, e a prática proposta ser algo que está em
consonância com a BNCC.

A proposta da prática manual, que promove o contato com a plasticidade do


material, permite às crianças colocar a mão na massa, quando o assunto é variedade
de material utilizado em sala de aula. Tendo realizado as atividades do livro didático,
no momento da execução da atividade de arte com argila, foram postos os aventais
nas crianças, a turma foi dividida em grupos e a argila foi colocada no prato de isopor
e entregue para cada criança. Em seguida, foi falado sobre os cuidados em manipular
o material, bem como o que deveriam criar, a proposta foi a de fazer esculturas com
a argila, tal como o povo indígena Karajá realizava, no entanto, nenhuma escultura
foi apresentada.

As crianças receberam o material com seus olhares curiosos e manipularam a argila


verbalizando “é mole”, “legal”, “gostei”, “tá suja minha mão”. Outros ao pegarem na
argila logo disseram “tia lava minha mão”. Após o relato com o primeiro contato com
o material, as crianças demonstraram interesse por essa proposta de atividade.
Durante a experiência, apenas uma criança demonstrou não querer sujar as mãos,

972
inviabilizando a experimentação manual com a argila, apesar dos vários convites
feitos para participar da atividade.

Apesar das crianças não terem desenvolvido esculturas, a experiência prática contou
como processo de experimentação, um primeiro contato com o material e a proposta
de uso como recurso didático em sala de aula. Essa proposta conta como relevante
para o planejamento de aula, o esforço, a confiança por parte dos profissionais da
educação envolvidos, já que as crianças tiveram um momento propício para
experimentar, se expressar e interagir com seus pares, mantendo o contato com um
material proveniente da natureza e relacionado a cultura.

Considerações Finais

Em vista do que foi apresentado, o professor da Educação Infantil precisa propor


experiências educativas capazes de ampliar as experiências provenientes do
ambiente familiar. Ademais, estas devem valorizar o protagonismo do aluno, a
criação, experimentação, expressão e interação dos sujeitos.

A proposta de atividade de arte com argila nesta etapa de ensino, tem o objetivo de
promover o contato da criança com este material proveniente da natureza, conhecer
e explorar a sua textura, bem como se relacionar com seus pares por meio da
interatividade, ludicidade, fantasia do real e reiteração, reproduzindo e recriando a
cultura a qual estão inseridos.

Através das atividades lúdicas e prazerosas, a criança fita seus olhares ao que está
sendo proposto e participa ativamente na construção do saber. Então, vale a pena o
professor da Educação Infantil refletir e avaliar suas práticas pedagógicas, com o
intuito de que compreenda o que está sendo realizado com sucesso, o que precisa
ser melhorado, o que propor para as crianças pequenas, bem como aproveitar
situações nas quais possam corroborar com sua prática pedagógica em sala de aula.

Neste contexto, é necessário que o professor avalie os caminhos que o aluno


percorre em direção à aprendizagem e seu desenvolvimento. Os direitos de
aprendizagem e desenvolvimento precisam ser garantidos na Educação Infantil,
entrelaçados com os eixos norteadores, as interações e as brincadeiras, bem como
com os campos de experiência. Assim, as crianças irão participar ativamente das

973
experiências propostas, irão contribuir para produção de conhecimento e irão se
constituir enquanto seres sociais e de direitos.

Referências

ALVIN, Iago Rodrigues. Bonecas Karajá: a mais bela representação indígena brasileira da
figura humana. Opção,05 de out. de 2022. Disponível em:
https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/bonecaskaraja-mais-bela-
representacao-indigena-brasileira-do-homem-41703/. Acesso em: 05 de out. de 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC, SEB, 2017.
Argila e os benefícios para a pele. Beleza e saúde. Cuidados com a pele, 26 de Abril de 2022.
Disponível em: https://belezaesaude.com/argila/ . Acesso em: 01 de out. de 2022.
DIEHI, Viviane. Educação propositora: experiências de educadorartistas. Curitiba: CUR,
2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.
SANCHES, Emília Cipriano. Saberes e afetos do ser professor. São Paulo: Cortez, 2019.
SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2º modernidade.
Braga, Portugal: CEDIC - Centro de Documentação e Informação sobre a Criança. Centro
de Estudos da Criança. Universidade do Minho, 2002. Disponível em:
http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/menu_base_text_trab.htm. Acesso em:
01/10/2022.
LEMOS, Denise Castanha de Avila de, ZAMPERETTI, Maristani Polidori. Experiências com
argila na educação das artes visuais em contexto de estágio. Revista Seminário de História
da Arte, ISSN 2237-1923 VOLUME 01, Nº 07, 2018.

Mini Currículos

Leila Katia de Sousa Farias


Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Pós-graduada (Lato Sensu) em
Educação Especial e Inclusiva pelo Instituto Carreira. Pós-graduanda (Lato Sensu) em Linguagens e
Artes na Formação Docente pelo Instituto Federal do Pará - IFPA. E-mail: Leilakatia123@gmail.com

Cássia Morais Santos


Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará - UFPA. Pós-graduanda (Lato Sensu)
em Linguagens e Artes na Formação Docente pelo Instituto Federal do Pará - IFPA. E-mail:
kakauminoguex@gmail.com

974
Mariluzio Araújo Moreira da Silva
Graduação em Educação artística - habilitação em Música pela UFPA. Especialização em Educação
Musical pela UEPA. Mestrado e Doutorado em Antropologia pela UFPA. Docente efetivo do IFPA e
Perito da Polícia Científica do Pará. Desenvolve pesquisas sobre educação, saúde e suas relações com
a violência. E-mail: marioenea@bol.com.br

975
INFÂNCIAS, NARRATIVAS E VISUALIDADES: O QUE NARRAM AS CRIANÇAS
NO INSTAGRAM E WHATSAPP?

CHILDREN, NARRATIVES AND VISUALITIES: WHAT DO CHILDREN REVIEW ON


INSTAGRAM AND WHATSAPP?

Érica Rivas Gatto


Unirio e Colégio Pedro II, Brasil

Resumo

No cenário atual, as relações das crianças com as telas, principalmente com os dispositivos
móveis, nos instigam a pensar sobre as infâncias contemporâneas. A partir de um grupo de
crianças, de suas visualidades compartilhadas no Instagram e interações em um grupo no
aplicativo de conversa WhatsApp, o presente estudo investiga o que é viver as infâncias e ser
criança na atualidade, pelos olhares das próprias crianças através de suas narrativas e
práticas realizadas no contexto da Cultura Visual. Ao compreender que as infâncias
perpassam por acontecimentos que por vezes nos escapam, que podem ser invisibilizados,
mesmo nas pesquisas com crianças, o estudo provoca reverberar a autoria das crianças, que
recriam e atribuem sentidos outros às narrativas e às visualidades presentes na sociedade.
Partindo do pressuposto de que as visualidades contemporâneas atuam nas nossas relações
e elaborações de conhecimentos sobre o mundo, são traçados como objetivos gerais para o
estudo: Refletir sobre as experiências, visualidades e relações alteritárias das infâncias
através de narrativas das crianças no Instagram e WhatsApp, destacando considerações
sobre os modos pelos quais as crianças narram com visualidades sobre seus cotidianos e
dialogam nesses espaços, bem como perceber a influência da Cultura Visual no imaginário
infantil. Diante dessas reflexões algumas questões emergem, dentre elas: Quais assuntos
estão presentes nas narrativas das crianças nas redes? Esses temas aparececem a partir das
relações tecidas nas redes sociais, e de que modo? Surgem a partir das relações com os seus
seguidores e/ ou das experiências cotidianas? Afinal, que crianças são essas que interagem
nos espaços do Instagram e WhatsApp? Como as narrativas e as relações de alteridade
constituem a infância das crianças da pesquisa e constroem, através das suas visualidades, a
imagem de infância delas?

Palavras-chave: Narrativas, Visualidades, Crianças, Cultura-Visual.

976
Abstract

In the current scenario, children's relationships with screens, especially with mobile devices,
instigate us to think about contemporary childhoods. From a group of children, their
visualities shared on Instagram and interactions in a group on the WhatsApp chat
application, the present study investigates what it is like to live childhood and be a child
today, through the eyes of the children themselves through their narratives. and practices
carried out in the context of Visual Culture. By understanding that childhoods go through
events that sometimes escape us, that can be made invisible, even in research with children,
the study causes reverberation of children's authorship, who recreate and attribute other
meanings to narratives and visualities present in society. Assuming that contemporary
visualities act in our relationships and elaboration of knowledge about the world, the
following general objectives are outlined for the study: Reflect on childhood experiences,
visualities and alteritarian relationships through children's narratives on Instagram and
WhatsApp, highlighting considerations about the ways in which children narrate visually
about their daily lives and dialogue in these spaces, as well as perceiving the influence of
Visual Culture on children's imagination. In view of these reflections, some questions
emerge, among them: What issues are present in the narratives of children on the networks?
These themes appear from the relationships woven in social networks, and in what way? Do
they arise from relationships with their followers and/or from everyday experiences? After
all, who are these children who interact in the spaces of Instagram and WhatsApp? How do
narratives and alterity relations constitute the childhood of the research children and build,
through their visualities, their childhood image?

Keywords: Narratives, Visualities, Children, Visual Culture.

Introdução

O tema da pesquisa que investigo perpassa o meu cotidiano de estudos e docência


há algum tempo: a infância contemporânea. O interesse em pesquisar com as
crianças desde o mestrado está relacionado ao universo no qual estou imersa desde
2007. No mestrado1 investiguei como crianças na faixa etária de 10 a 12 anos do 5º
ano do ensino fundamental, estabeleciam relações com o cinema e os tipos de

1
GATTO, Érica Rivas. Narrativas das crianças com os filmes: reflexões sobre infância e consumo a partir do cineclube
MEGACINE. Dissertação apresentada em 2013, com a orientação da professora doutora Adriana Hoffmann
Fernandes. Disponível em: https://docs.google.com/file/d/0B-sE2Ar37CoNNEltUFFtQVR2dlU/edit?resourcekey=0-
jsXLL9avBCnYinHt3L8IsA
977
narrativas que produziam pela participação no cineclube, criado na escola em
conjunto com os próprios sujeitos da pesquisa: o Megacine.

O estudo repercutiu tanto na minha formação enquanto pesquisadora da infância,


quanto na vida daquelas crianças, que continuaram com o cineclube na escola. Ao
propor a pesquisa, percebemos que o cinema como dispositivo constrói sonhos que
atravessam o imaginário infantil e, através da leitura dos filmes, os debates
“valorizam a imaginação da criança", como afirma Juliana, criança mediadora desta
pesquisa.

Desde então, meu olhar está voltado para as relações das crianças e suas narrativas
com as imagens e as tecnologias. Me intrigava e inquieta até hoje perceber o quanto
as tecnologias e as imagens atuam como mediadoras nas relações das crianças, e
como possibilitam outras narrativas e diálogos com seus pares e adultos. Outro
ponto que merece destaque é a relação afetiva entre os sujeitos e as imagens que
constituem suas infâncias.

O estudo que propus para o Doutorado constrói-se no diálogo com a pesquisa


institucional2 do grupo CACE3, grupo de pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura
e Educação da UNIRIO. Após a finalização desse período de pesquisas com o cinema,
os achados dos estudos do grupo apontaram a necessidade de abrir novas frentes,
investigando as imagens e visualidades para além do cinema como campo de
pesquisa.

Segundo Hoffmann (2015) “Os achados da pesquisa institucional4 trouxeram novas


necessidades de investigação (...)”. Vários sujeitos pesquisados apontaram que
assistem filmes no computador, na TV e os acessam em dispositivos móveis. Outro

2
Atualmente, o projeto de pesquisa que norteia os estudos do grupo intitula-se “A visualidade da cultura
contemporânea e a educação: estudos sobre os modos de viver/ produzir a imagem”. Dentre os principais objetivos
deste atual projeto de pesquisa do grupo Cace, destacam-se “(...) estudar, refletir e registrar de que modo a presença
maciça da imagem em todos os espaços e telas tem trazido questões para a educação e os modos como lidamos e
vivemos com as imagens bem como o que (des)produzimos e (des)aprendemos com e sobre elas no contexto atual”.
3
Para maiores informações, acessar o site: https://caceunirio.wixsite.com/cace e outros canais do grupo, como o
Youtube, https://www.youtube.com/channel/UCq3SX7sPbClzWZIriXZWA-A/videos e o Instagram,
https://www.instagram.com/cace.unirio/.
4
Pesquisa institucional realizada entre os anos de 2010 e 2013, intitulada “O cinema e as narrativas de crianças e
jovens em diferentes contextos educativos”.
Para maiores informações sobre o projeto, acessar o site do Grupo de Estudos e Pesquisa Comunicação, Audiovisual,
Cultura e Educação (CACE) http://caceunirio.wixsite.com/cace/projeto-institucional
978
aspecto surgido nas pesquisas foi o de crianças e jovens lidarem com as práticas nas
telas fazendo “tudo” ao mesmo tempo. Assim, ver um filme, estar no Facebook e ouvir
música em concomitância fazem parte do cotidiano dos sujeitos. A presença da
imagem cada vez mais presente fez o grupo ampliar os estudos para perceber melhor
o contexto da Cultura Visual. Por esse motivo, nesse novo estudo me propus a
perceber as práticas das crianças no contexto da Cultura Visual.

É relevante destacar que, embora não usássemos o conceito de Cultura Visual nas
pesquisas, as questões visual e cultural já faziam parte das reflexões, mas de outra
forma, com foco nos estudos de cinema e educação. Nesse momento, o novo projeto
institucional já procura ver a questão da visualidade na cultura de forma mais ampla,
pois foi se mostrando mais claramente nas diferentes pesquisas realizadas pelo
grupo a partir do vínculo que os sujeitos demonstravam construir com a imagem.

Desde os estudos do mestrado perguntava-me sobre como as crianças narram-se


e/ou narram suas experiências cotidianas na contemporaneidade, e a partir de então
passei a interessar-me pelas relações das crianças com a imagem. Hoje esse foco
volta-se para o diálogo com a Cultura Visual. Como aponta Cunha (2009, p. 138)
“Mesmo tendo encontrado muitas respostas para minhas preocupações nos estudos
culturais, eles não me respondiam sobre as questões específicas do universo visual e
os modos como estão sendo produzidos nossos olhares sobre o mundo através das
imagens”. Nesse contexto, o estudo da Cultura Visual apresenta-se com essa
demanda que os estudos culturais deixaram em aberto. Focar o olhar em como
percebemos o mundo através das imagens, passa a ser cada vez mais importante na
atualidade.

Como aprendiz e curiosa que sou nas redes sociais, sempre convivi com crianças
também nesses espaços e continuei interessada nos caminhos percorridos por elas,
por ver suas postagens e imagens compartilhadas. Cabe ressaltar que, ao falar de
imagens neste estudo, compreendo o que está para além do que nossos olhos veem,
ou seja, atrelando ao conceito de visualidade.

979
Desta forma, em lugar de narrarem a partir das visualidades produzidas apenas por
outros, vemos que na contemporaneidade as crianças contam suas práticas
cotidianas, através de suas narrativas no Instagram e WhatsApp5.

Nesse sentido, no doutorado, o foco foi perceber e refletir sobre as infâncias


contemporâneas; como é ser criança nos dias de hoje, nos espaços de redes sociais,
como é o caso do Instagram e WhatsApp, bem como conhecer o olhar pela
perspectiva das próprias crianças, que acessam os dispositivos móveis
(principalmente o celular) e que estando conectadas de diferentes formas, narram
com visualidades e as compartilham no Instagram e WhatsApp, ao seguirem, terem
seguidores, curtirem, fazerem stories6 e narrarem-se nos seus feeds7. Através desses
caminhos, participam das relações de alteridade8 (entre seus pares e com os adultos),
se conectando mais ou menos através dos dispositivos e trazendo algumas questões
que permeiam as reflexões que fazem parte dessa pesquisa.

Na construção da pesquisa, cada escolha é um novo caminho a seguir e esse trajeto


transforma-se ao longo do percurso. Diante dessas reflexões algumas questões
emergem, dentre elas: Quais assuntos estão presentes nas narrativas das crianças nas
redes? Esses temas aparecem a partir das relações tecidas nas redes sociais, e de que
modo? Surgem a partir das relações com os seus seguidores e/ ou das experiências
cotidianas?

Afinal, que crianças são essas que estão nesses espaços? Como as narrativas e as
relações de alteridade constituem a infância das crianças da pesquisa e constroem,
através das suas visualidades, a imagem de infância delas? Mais do que dizer apenas

5
Segundo o site do próprio WhatsApp, “Mais de dois bilhões de pessoas, em mais de 180 países, usam
o WhatsApp para manter o contato com amigos e familiares, a qualquer hora ou lugar. O WhatsApp é gratuito e
oferece um serviço de mensagens e chamadas simples, seguro e confiável para celulares em todo o mundo. E sim,
o nome WhatsApp é um trocadilho com a frase "What's Up" em inglês. Sujeita à cobrança de dados.”
6
No site do Instagram há a seguinte definição: “O recurso Stories é uma forma rápida e fácil de compartilhar
momentos e experiências. Use texto, música, figurinhas e GIFs para dar vida à sua história”. Disponível em:
https://about.instagram.com/pt-br/features/stories. Acesso em 25 de maio de 2021.
7
O feed do Instagram reúne as publicações do perfil e serve como um resumo do que é compartilhado.
8
Entendo alteridade com a perspectiva da relação com o outro e quando me refiro ao outro, não falo somente de
outro corpo, outra voz, outras experiências, mas de sua presença no mundo, com suas narrativas e visualidades.
Conforme anuncia Skliar, “Não, não é reconhecer o outro. O outro é anterior a todo reconhecimento” (2019, p. 76).
980
como usam, o que busco é pensar a partir do que as crianças trazem e de suas
práticas para ver e perceber as implicações desse contexto para a infância atual.

Um outro olhar para a pesquisa em tempos de pandemia- a potencialidade da


infância que há em mim...

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da


complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque
devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também.
(ANZALDÚA, 2000, p. 232).

Instigada por Anzaldúa penso o porquê sou levada a escrever. Embora a pesquisa
tenha iniciado e tenha finalizado o seu campo no período anterior a pandemia de
COVID-19, as conversas com o material do campo, com as narrativas das crianças,
acontecem no contexto da pandemia e seguramente alteram o cenário do estudo.

O ano de 2020 inicia quando o medo e as incertezas começam a pairar sobre nossas
vidas, atividades e projetos. A sensação inicial foi paralisante. Afinal, como falar de
pesquisa com as narrativas das crianças nesse momento tão complexo? Como
escrever uma tese diante de tanto luto?

Sobretudo, um outro olhar foi direcionado às nossas vidas e narrativas. Um repensar


das práticas cotidianas, que antes passavam desapercebidas pela correria do nosso
dia a dia, ampliou possibilidades do olhar também para o ato da escrita. Escrever,
nesse momento, é um compromisso, convite para ler e sentir, ato de escrita orgânica,
de colocar as tripas no papel (ANZALDÚA, 2000).

Culturas, visualidades e infâncias

O direito a olhar não é meramente uma questão de visão. Ele começa


em um nível pessoal com o olhar adentrando os olhos de alguém para
expressar amizade, solidariedade, ou amor. (MIRZOEFF, 2016, p. 746)

Com os olhos nós olhamos a vida. Olhamos as águas rolando entre


pedras, peixes, algas. Olhamos as terras generosas onde vivem animais,
frutos sementes (...). Olhamos o mundo e sentimos sede, fome e

981
sonho. Com os olhos olhamos nossos irmãos e eles nos olham. Tem
olhares que nos acariciam. Tem olhares que nos machucam. Olhar
dói. (Se vemos alguém chupando limão, sentimos dores no canto da
boca.) (...) Olhando, imaginamos mistérios. Olhar é fantasiar sobre
aquilo que está escondido atrás das coisas. Quando olhamos nós
acordamos alegrias, tristezas, saudades, amores, lembranças, que
dormem em nossos corações. Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro.
(Bartolomeu Campos de Queirós, 2009, p. 8 e 9)

Como destaca Campos (2013, p. 35) “a imagem não é uma mera mimetização da
realidade, mas algo que incorpora a subjetividade daquele que manipula a máquina”.
Instagram, WhatsApp, Youtube, Tik tok, dentre outros aplicativos, redes sociais e
aplicativos de conversa, ampliam as possibilidades visuais e refletem sentidos,
propiciando aos sujeitos verem e serem notados. Desta forma, como pontuam
Cassino e Hoffmann (2020, p. 1) “(...) as imagens tem papel fundamental no modo
como as crianças dão significado ao mundo e a si mesmas, considerando que os
modos de ver e de serem

O modelo sensorial ocidental valoriza principalmente a visão, no entanto percebe-se


que “mesmo as atividades que recorrentemente classificamos como visuais,
raramente o são na íntegra, resultando antes de uma confluência de processos
multifacetados de índole sensorial” (CAMPOS, 2013, p. 38). Para compreender a
relação que se relaciona à Cultura Visual, Sérvio (2014) faz uma distinção entre visão
e visualidade sem, no entanto, desvinculá-los um do outro. A visão, para ele, está
relacionada ao ato de ver. Já a visualidade está relacionada à maneira como esse olhar
é construído. Perante a discussão das diferenças entre os conceitos de visão e
visualidade a partir do diálogo com Hal Foster (1988), Pablo Sérvio (2014, p. 197)
explica que “Enquanto a visão foca na parcela biológica da experiência visual, o corpo
e a psique, a visualidade trata da parcela cultural da experiência visual, aquilo que é
aprendido social e historicamente”. Por conseguinte, Ricardo Campos (2012) em
diálogo com Nicholas Mirzoeff (2003), trata da visualização da existência, visto que a
vida contemporânea transcorre nas telas. O pensamento de Hernández (2005)
complementa o pensamento dos autores ao trazer para a reflexão que isto não quer
dizer que são realidades opostas, dado que a visão também é social e histórica e a
visualidade é ativa, participativa e envolve o corpo. Sobretudo porque a visão não se
separa das questões históricas sobre a construção da subjetividade.

982
Nessa perspectiva, faz-se necessário refletir sobre o que fica à margem da Cultura
Visual, das visualidades, o que motiva questionar como é a questão da Cultura Visual
para quem não vê com os olhos, entendendo-o como “máquina de captação de
natureza ótica” (Campos, 2013, p. 40). Margareth Olegário (2020) discursa sobre essa
questão no Seminário Internacional Visualidades e Narrativas na Educação,
promovido pelo CACE, quando afirma que fica à margem da Cultura Visual “Tudo que
não é audiodescrito ou que a imagem não consegue traduzir por ela mesma”. A
pesquisadora continua dizendo que “sobretudo no contexto da pandemia, nem
sempre pessoas cegas e com baixa visão, tem a possibilidade de ter acesso às imagens
ou porque não tem recursos tecnológicos.”

É estranho o nosso realismo. Quando a criança pequenina começa a


aprender a brincar de esconde- esconde rimos porque, fecha os olhos,
certa de que, ao fazê-lo, os outros deixam de vê-la porque ela deixou
de vê-los. Fechando os olhos, porém, ela exprime nossa crença
ancestral de que a visão depende de nós, muito mais do que dependeria
das coisas (CHAUÍ, 1988, p. 32).

Entendendo que a visão é a consequência de processos culturais e que desta forma,


estudar aspectos da Cultura Visual é também refletir sobre o que é invisível na
sociedade contemporânea, Mirzoeff afirma na citação inicial deste capítulo que “O
direito a olhar não é meramente uma questão de visão” (2016, p. 746). Da mesma forma,
Chauí (1988) nos lembra, ainda no final da década de 80 do século XX, palavras que
dizemos no cotidiano em relação a um suposto “poder mágico” dos olhos, como nas
expressões “amor à primeira vista”, “ponto de vista”, “o que os olhos não veem, o
coração não sente”, dentre outras que atribuem ao olhar um poder de ausência de
concretização. A autora complementa afirmando que “É aos olhos que propriamente
pertence o ver (CHAUÍ, 1988, p. 39)”. Desta forma, que sentidos o olhar pode
provocar? Quais são as “raízes” dos olhos de que Bartolomeu nos fala na epígrafe
acima? Somente com os olhos é possível ver e sentir o mundo?

Na atualidade, a Cultura Visual é associada à tecnologia (Campos, 2013). Entretanto,


compreende-se que pesquisar um aspecto da cultura que é visual, das visualidades,
entende que a Cultura Visual não começa com as tecnologias ou mesmo com as
visualidades contemporâneas. Duncum (2011) trata das expectativas e demandas da
sociedade em relação à propagação de imagens, destacando que, ao mesmo tempo

983
que resulta de novas tecnologias, também é incentivada pelas necessidades
econômicas e sociais.

As crianças operam recriando-a e atribuindo outros sentidos às narrativas, às


visualidades presentes na sociedade contemporânea. Nessa perspectiva e como
aponta Corsaro (2011), as crianças produzem suas próprias culturas infantis. Segundo
Corsaro (2011), o termo pares refere-se a um grupo de crianças que compartilha o
cotidiano. Através das interações entre elas, nas criações de suas narrativas e nas
relações cotidianas com seus pares, as crianças criam, recriam, reinventam e
produzem suas culturas de pares.

As culturas infantis, produzidas nas interações, no divertir-se, nas narrativas tecidas,


constituem-se nas práticas e relações alteritárias das crianças com seus pares e com
os adultos, produzindo outros sentidos para as relações sociais. Desse modo, como
se constituem as culturas da infância no contexto da Cultura Visual? O que dizem as
crianças? O que podemos pensar?

Os Estudos da Cultura Visual buscam entender melhor como o contexto


contemporâneo se constitui e nos ajudam a desnaturalizar a imagem. Desnaturalizar
é colocá-la em destaque, pensar sobre a mesma e como participa das diferentes
situações, refletindo sobre o significado de sua presença nos nossos modos de ser
atuais, como nos diz Paula Sibilia (2016). Dessa forma, as imagens produzidas e
compartilhadas pelas crianças no Instagram, suscitam outros modos de sociabilidade
e de construção do pensamento por elas no mundo contemporâneo. Girardello
(2008) afirma que “A subjetividade da criança vai sendo constituída no cruzamento
de inúmeros “sistemas de modelização”. A família, seus pares, a escola, narrativas
contemporâneas em diferentes mídias, constituem alguns desses sistemas com os
quais as crianças dialogam.

Nessa perspectiva é importante observar que este estudo propõe-se a observar as


narrativas das crianças e suas experiências de infância com específicas redes sociais.
Sabe-se que com a intensificação da visibilidade e conexão proporcionadas
principalmente pelos dispositivos portáteis, o compartilhar dos momentos
cotidianos em visualidades das experiências vivenciadas, tornou-se parte das
atividades diárias tanto das crianças quanto dos adultos, principalmente no cenário
pandêmico. Embora o campo da pesquisa não ocorra no momento da pandemia de

984
covid-19, as conversas com o material e a conclusão desse estudo, encerram-se
nesse período. Nesse contexto, o que esse movimento significa? Que infâncias são
essas que se constituem nessa cultura digital imersa na visualidade?

De acordo com Mirzoeff “A Cultura Visual não depende das imagens em si, mas da
tendência moderna de imaginar ou visualizar a existência'' (2003, p. 5-6). O que
significa imaginar ou visualizar a existência na atualidade para os que acessam as
redes sociais frequentemente? As provocações em quem vê as imagens, relacionam-
se com o contexto social e com as visualidades que esses sujeitos carregam consigo.

Nessa lógica e ao considerar que na contemporaneidade as visualidade assumem as


funções de apresentar realidades e elaborar narrativas, Mirzoeff (2003, p. 24) afirma
que “[...] a cultura ocidental tem privilegiado o mundo verbal de forma sistemática,
considerando-o a mais alta forma de prática intelectual e qualificando as
representações visuais como ilustrações de ideias de segunda ordem”. O fato é que
este debate em torno da diferença entre imagens e palavras é improdutivo e o crucial
é reconhecer a importância das narrativas e visualidades como partes integrantes de
qualquer cultura e, mais ainda, das culturas que se constroem hegemonicamente
com base em imagens que vendem produtos no mundo capitalista global.

Conforme Mirzoeff (2003), a Cultura Visual é uma estrutura interpretativa e fluida,


centrada na compreensão dos sujeitos em relação aos meios visuais de comunicação.
Interpretar as narrativas visuais não é uma habilidade inata ao ser humano, mas uma
capacidade aprendida. E, afinal, que estratégias, habilidades ou usos essas crianças
fazem nesse contexto da Cultura Visual? Como participam desses espaços em rede
em que a imagem é preponderante na construção de narrativas e de trocas entre
seus pares? Como as infâncias constituem suas culturas na visualidade?

Reflexões sobre o caminhar: encontros e conversas com as infâncias e as


narrativas que nos transbordam...

Figuras 1 e 2: Visualidades das crianças da pesquisa

985
Fonte:“print screen”s produzidos pela autora.

(...) há uma distância entre o que supomos sobre o que as crianças


pensam, agem e o que as crianças dizem sobre suas relações com o
mundo, no caso, o mundo da Cultura Visual, e como as crianças
apreendem, questionam, criam possibilidades e reformulam o universo
visual (CUNHA, 2009, p. 141).

Cotidianamente, as crianças sinalizam que possuem um modo peculiar de se


apropriar e significar as relações com o mundo da Cultura Visual, como nos lembra
Cunha (2009) na epígrafe acima. Quando escolho os bens e me aproprio deles,
estabeleço o que é relevante, bem como o modo de me distinguir nos ambientes que
frequento (CANCLINI, 2010).

Nas visualidades que trouxe acima, as crianças, sujeitos da pesquisa, expuseram


elementos que fazem parte do cotidiano das infâncias contemporânea. Podemos
percebê-las enquanto representação das infâncias como experiência, como sugere
Kohan (2004). Nessa perspectiva de pensar sobre o que comunicaram as visualidades
das crianças, Kohan nos ajuda a pensar quando afirma “[...] vivo de visões de infância,
de relatos da memória e da imaginação. Vivo de imaginar uma infância ainda por vir,
de rememorar uma memória infantil do futuro. A infância, devemos dizê-lo
claramente desde o início, é um mistério, um enigma, uma pergunta.” (KOHAN, 2015,
p. 217). A infância se apresenta como perguntas para nós adultos. Partindo da nossa
infância para pensar o presente, como propõe Kohan (2018), compreendemos que a
ela é mais do que a ideia cronológica, contudo um modo de experienciar,
considerando o que as crianças de hoje demonstram sobre a experiência de ser
criança na contemporaneidade, pode-se refletir sobre as infâncias contemporâneas
a partir das narrativas e visualidades das crianças nos espaços em que convivem.
986
Nos atuais estudos da infância é preciso ir além da história da ideia de infância e
refletir sobre as mudanças históricas, da construção da infância como categoria e
principalmente a respeito das singularidades infantis. Refletir sobre uma história
única das infâncias é preciso. Ao falar em sua célebre conferência sobre o perigo de
uma história única, Chimamanda Ngozi Aitchie (2009) aponta que as histórias únicas
criam estereótipos. Assim como é necessário pensar sobre a deslegitimação da
produção das crianças, bem como de suas falas, principalmente em tempos de
emergências como os que vivemos atualmente.

Nessa lógica, as crianças, sujeitos desse estudo, nos abrem a possibilidade de


tornarmos outros em relação a nós mesmos, de compreendermos a pesquisa como
um processo pleno de encontros e desencontros com sujeitos, imagens, palavras e
silêncios. Dessa maneira, podemos supor que as crianças da pesquisa além de
estarem imersas participando da Cultura Visual, criam estratégias e habilidades para
pertencerem a essa cultura, priorizando a experiência cotidiana do visual em suas
práticas e narrativas.

Ao realizar pesquisa com um olhar político sobre o outro, escolhendo a criança


como uma interlocutora no estudo, significa pensar em uma pesquisa com crianças
exercitando a escuta para o que trazem. Segundo Girardello (2018) “Escutar a criança
é dar-lhe tempo para divagar, devanear, buscar a palavra certa, tatear suas
lembranças, brincar com as imagens mentais, que são matéria-prima das histórias
(...)”. Contudo, como efetivamente escutar as crianças? Qual parece ser a função ou
a relevância desses perfis para as crianças interlocutoras? Como tecem suas
visualidades em movimentos alteritários no caminhar da pesquisa?

Enquanto pesquisadora e professora, busco na observação das interações das


crianças nas redes, compreender e conhecer esses sujeitos através do ato de narrar.
Desse modo, o que nos abre de possibilidades esses encontros, essas conversas,
essas relações com as crianças e infâncias contemporâneas? A pluralização de
olhares, a possibilidade de ver mundos plurais, dentro desse mundo singular que
experienciamos. É preciso ir além da nossa maneira trivial de ver. Esse é o desafio da
conversa e da narrativa. Levando em consideração esses aspectos, o que as reflexões
trazidas nessa pesquisa podem nos fazer pensar e relacionar com o nosso papel
enquanto educadores e pesquisadores? Qual o lugar da educação na conversa entre

987
as crianças, o consumo no Instagram e suas visualidades? As narrativas e visualidades
infantis compartilhadas no Instagram e suas conversas no WhatsApp são menores/
inferiores do que aquelas realizadas no espaço escolar? O propósito não é respondê-
las nesse momento, contudo deixá-las palpitar e amadurecer os pensamentos,
questionamentos e reflexões sobre as infâncias contemporâneas.

Referências

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Letras, 2009.
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro
mundo. Revista de Estudos Feministas, ano 8, n.1, 2000.
CAMPOS, Ricardo. A Cultura Visual e o olhar antropológico. Revista Visualidades, Goiânia
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CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da
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CASSINO, Helenice e HOFFMANN, Adriana F. Infância, Cultura Visual e Educação.
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CHAUI, Marilena. Janela da Alma, Espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar.
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CORSARO, William A. Sociologia da Infância. 2. ed., Porto Alegre: Artmed, 2011.
CUNHA, Susana Rangel Vieira da. As imagens na Educação Infantil: Uma abordagem a
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DUNCUM, Paul. Por que a arte educação precisa mudar e o que podemos fazer. In:
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SIBILIA, Paula. O Show do Eu: A intimidade como espetáculo. 2. Ed; rev. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2016.
SKLIAR, Carlos. A Escuta das diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2019.

Mini Currículo

Érica Rivas Gatto


Doutora em educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO. Atualmente é
professora do Colégio Pedro II e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Audiovisual, Cultura e
Educação (CACE), coordenado pela professora Adriana Hoffmann na UNIRIO. Desenvolve sua
trajetória acadêmica abordando temáticas voltadas para as relações entre infância, narrativas e
mídias. E-mail: ericarivasgatto@gmail.com

989
ARTE E FILOSOFIA: A INFLUÊNCIA DA CULTURA VISUAL E DO CAPITALISMO
NA FORMAÇÃO DE IDENTIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

ART AND PHILOSOPHY: THE INFLUENCE OF VISUAL CULTURE AND CAPITALISM


ON CHILD AND ADOLESCENT IDENTITY FORMATION

Jordana Belem Rodrigues


Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Resumo

A intensa circulação de imagens e mídias têm uma grande influência sobre nós, na
contemporaneidade. Elas invadem a sociedade e o nosso cotidiano, tentando nos atrair de
todas as formas para o consumo. O ato de consumir é considerado algo comum em nosso
cotidiano, porém esse consumo vem sendo cada vez mais praticado por jovens. Os meios de
comunicação de massa estão presentes diariamente em nossas vidas, nos atraindo e
induzindo ao consumo de diversos produtos, ocasionando significativas transformações em
nossa sociedade. O foco da escrita está voltado para a importância da cultura visual no
debate crítico sobre a cultura do consumo na escola e o que isso implica na identidade e
educação de crianças e adolescentes. A identidade do indivíduo se dá por um processo
contínuo de construção e transformação; o sujeito tem uma autoimagem, com a qual se
identifica e se afirma, e que por meio desta, permite que outros o enxerguem. O processo de
formação de identidade começa quando o sujeito se identifica com o outro ou quando se
identifica com modelos de referência que são lançados pela mídia. Falar e discutir sobre o
consumo nos dias de hoje é uma tarefa necessária e desafiante, pois apesar de ser presença
constante em nossas vidas, há pouca reflexão sobre sua influência nos jovens.

Palavras-chave: Arte, filosofia, cultura visual, capitalismo.

Abstract

The intense circulation of images and media has a great influence on us in contemporary
times. They invade society and our daily lives, trying to attract us in every way to
consumption. The act of consuming is considered something common in our daily lives, but
this consumption has been increasingly practiced by young people. The mass media are
present daily in our lives, attracting and inducing the consumption of various products,
causing significant changes in our society. The focus of the writing is on the importance of
visual culture in the critical debate about consumer culture at school and what this implies
in the identity and education of children and adolescents. The individual's identity occurs
990
through a continuous process of construction and transformation; the subject has a self-
image, with which he identifies and asserts himself, and through which he allows others to
see him. The process of identity formation begins when the subject identifies with the other
or when he identifies with reference models that are launched by the media. Talking and
discussing about consumption these days is a necessary and challenging task, because
despite being a constant presence in our lives, there is little reflection on its influence on
young people.

Keywords: Art, philosophy, visual culture, capitalism.

A intensa circulação de imagens e mídias têm uma grande influência sobre nós, na
contemporaneidade. Elas invadem a sociedade e o nosso cotidiano, tentando nos
atrair de todas as formas para o consumo. Estamos 24 horas ligados à dispositivos
midiáticos, principalmente aparelhos celulares com acesso a internet, entre outros.
O grande número de informações que recebemos diariamente atingem nossa
subjetividade de formas imperceptíveis, nos levando a ceder aos apelos midiáticos.
O ato de consumir é considerado algo comum em nosso cotidiano, porém esse
consumo vem sendo cada vez mais praticado por jovens, que desejam pertencer a
tribos urbanas1 diferentes, procurando formar suas identidades e também em busca
de um status social que a mídia lança e a sociedade aceita.

O consumo faz parte da vida das pessoas, e os jovens querem consumir o que está na
moda para se destacarem entre os seus colegas e atingirem o famoso “status”. Na
atualidade ou na contemporaneidade, nossa sociedade é consumidora de imagens e
produtos, onde, crianças têm 80% de influência nas compras em geral da casa, de
acordo com a pesquisa IBGE – InterScience, de 2003 (AKATU, 2007). Os meios de
comunicação de massa estão presentes o tempo inteiro em nosso cotidiano, nos
atraindo e induzindo ao consumo de diversos produtos, ocasionando significativas
transformações em nossa sociedade.

1 A expressão "tribo urbana" foi criada por Michel Maffesoli (1998), e refere-se a redes de amigos com
base em interesses comuns como pensamentos, hábitos e maneiras de se vestir, revestindo-se de poten-
tes formas de poder.

991
Aconteceu uma transformação global da cultura que é dependente de
imagens e artefatos visuais que vão do que vestimos ao que vimos.
Vivemos em um mundo crescentemente saturado por imagens onde os
noticiários de televisão podem controlar o conhecimento das pessoas
sobre eventos correntes, onde estudantes gastam mais tempo na
frente de uma tela do que na frente de um professor e bebês recém-
nascidos veem vídeos para ativar o desenvolvimento dos neurônios
(FREEDMAN ; STHUR, 2009, p.11).

A cultura visual e o consumo estão presentes em nosso cotidiano. São temáticas


importantes de serem trabalhadas com qualquer tipo de público, porém o foco deste
artigo é direcionado para crianças e adolescentes estudantes, visando contribuir
para o desenvolvimento do pensamento crítico sobre a grande massa de visualidades,
que percebemos hoje em dia, e também, visando reconhecer nestas imagens, sua
própria identidade e construção social.

A identidade do indivíduo se dá por um processo contínuo de construção e


transformação; o sujeito tem uma autoimagem, com a qual se identifica e se afirma,
e que por meio desta, permite que outros o enxerguem. O processo de formação de
identidade começa quando o sujeito se identifica com o outro ou quando se identifica
com modelos de referência que são lançados pela mídia. Essa identidade tem
implicações em seu cotidiano, vida pessoal e social, tendo como apoio e motivação o
consumo ou outra forma de realização pessoal/cultural. Nesse processo, buscamos
uma identidade própria, e assim nos relacionamos também com o outro, realizando
intercâmbios identitários. Uma das formas de construção de identidade e
pertencimento2 a tribos é o consumo de produtos, serviços e imagens, pois queremos
fazer parte de grupos sociais, e para isso precisamos ter o que as pessoas de tal grupo
têm, para tentar criar uma identidade parecida com a do grupo ao qual desejamos
pertencer.

O foco da escrita está voltado para a importância da cultura visual no debate crítico
sobre a cultura do consumo na escola e o que isso implica na identidade e educação
de crianças e adolescentes. Falar e discutir sobre o consumo nos dias de hoje é uma

2 “Pertencimento, ou o sentimento de pertencimento é a crença subjetiva numa origem comum que une distintos
indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como membros de uma coletividade na qual símbolos expressam
valores, medos e aspirações. Esse sentimento pode fazer destacar características culturais e raciais” (AMARAL,
2016).
992
tarefa necessária e desafiante, pois apesar de ser presença constante em nossas
vidas, há pouca reflexão sobre sua influência nos jovens. A grande proliferação de
imagens, da mídia e publicidade, às vezes nos induz ao consumo sem cogitar, por
impulso ou carência.

Desta forma, o tema é importante não só no Ensino de Arte e da Filosofia, mas


também para qualquer campo da Educação, pois é algo que está presente em nosso
cotidiano, tanto escolar (multiplicidade) como pessoal (sujeito).

A cultura do consumo é preponderante nos dias atuais, se tornando uma


referência importante nos últimos dois séculos. O resultado da Revolução Industrial
e também da evolução tecnológica é a grande produção de produtos em série, que
passa estar cada vez mais ao alcance do público em geral. Assim, o produto final não
é o foco principal, mas a reflexão presente nas formas do cotidiano reinventado pelas
rápidas transformações que vivemos atualmente. Estamos tão preocupados em
consumir modos de vida através dos produtos que adquirimos, que estamos
esquecendo de realmente viver. Tudo isso se reflete no sujeito e consequentemente
na educação.

Como o capitalismo/globalização influencia na identidade dos jovens e alunos e o


que isso implica na educação?

As tecnologias estão avançando cada vez mais rápido, e com isso, a quantidade e
diversidade de produtos em mercado é cada vez maior. Crianças e adolescentes
acabam ficando deslumbrados com tantos produtos circulando entre colegas e
amigos, e acabam desejando consumir cada vez mais.

A questão do consumo excessivo, nos leva consequentemente ao descarte de lixo,


que também é excessivo. Levar questões como essa, sobre o meio ambiente em que
vivemos, fazendo ligações com a Arte, podendo trabalhar por exemplo, Vik Muniz e
sua obra Lixo Extraordinário, para mostrar que mesmo com lixo podemos construir
coisas fantásticas. Conectar diversos temas no campo da educação é muito
importante para que os alunos sintam que as disciplinas estão interligadas e que há
um objetivo ao final de todo o percurso escolar.

Dentro do tema que trata o documentário “Lixo extraordinário” proposto pelo artista
brasileiro Vik Muniz, podemos conectar facilmente as disciplinas de Arte, Biologia,

993
Química, Física e História. Propor transversalidade e envolvimento de disciplinas, dos
alunos e também dos professores é algo de extrema importância dentro do âmbito
educacional.

Figura1: Capa do documentário Lixo Extraordinário do artista Vik Muniz.


Acesso ao documentário < https://www.youtube.com/watch?v=JLTY7t8c_x0&t=2s >.

Trabalhar com assuntos transversais e importantes ligados à arte, com os alunos nas
escolas, para que eles percebam que o consumo desenfreado pode causar grandes
danos ao meio ambiente em que vivemos, e que de alguma maneira, ele também nos
consome. Afetar e ser afetado pelo meio em que estamos atuando (vivendo),
transformar e ser transformado, um viver imanente. Saber calar, e no momento
certo, saber ouvir e sentir com todo o corpo. Um corpo que está afetado e que
também é capaz de afetar. Um corpo vibrátil, que pulsa cada vez mais a cada
encontro, e que fica cada vez mais curioso. Um corpo que vive e que tem sede de um
saber que só ele é capaz de produzir.

Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um


mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault
994
chama de terreno. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas,
que não se contentam apenas em compor um dispositivo, mas
atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em
diagonal (DELEUZE, 2005, p.1.).

Deleuze nos apresenta o método cartográfico em que nos deslocamos sobre um


território (ambiente escolar), onde estamos implicados diretamente, onde linhas se
cruzam e se atravessam e assim conseguimos compor de uma outra maneira.

Já que a cartografia como um método que nos possibilita várias entradas e múltiplas
saídas, podemos ir desbravando territórios desconhecidos e temos de afetar e nos
deixar afetar por essa zona territorial, não para concluir as ideias e ir em busca de
uma verdade absoluta, mas para desenvolvermos a fundo todas as problematizações
possíveis sobre o tema (território) em que estamos explorando.

Uma multiplicidade não tem nem sujeito, nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que
mude de natureza (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.16).

Um único tema se contorce e se distorce, se contrai e se descontrai, de acordo


com a nossa caminhada em busca de algo no desconhecido. Começamos então a
conhecer melhor esses pontos de tensão, e assim, podemos ligar um ponto a outro
ponto qualquer, fazendo com que surja então a ideia de rizoma. O tema em questão
vai se tornando um rizoma quando o problematizamos de várias maneiras, quando
fazemos diversos atravessamentos, e assim as linhas de pensamento estão sempre
implicadas umas nas outras.

Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa


linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. (DELEUZE & GUATTARI, 1995,
p.18).

Arte e Filosofia unidas para conseguirmos dar conta dessa ideia de rizoma
trabalhada pelos pensadores. Duas disciplinas que nos dão inúmeras opções de ideias
e assuntos para que se atravessem uns aos outros, para que possamos trabalhar o
sujeito e o meio em que ele está inserido, fazendo trajetórias que muitas vezes são
acasos; a experiência se dá no acaso, no diferente, no desigual. Falar de identidade e
trazer Deleuze no mesmo texto é perigoso. Autores pós-modernos colocam que a

995
identidade está em crise, e que isso se dá por conta da fragmentação do sujeito. A
subjetividade é que está em jogo. A mídia ataca e molda as subjetividades, fazendo
com que o sujeito fique em estado de alienação.

Professores devem tentar contribuir positivamente para que os alunos possam ter
suas próprias ideias sobre cultura visual, sobre consumo e capitalismo, para que no
futuro possam se tornar consumidores mais conscientes, evitando a alienação e
também manipulações excessivas.

Essas relevantes temáticas necessitam serem discutidas e trabalhadas em sala de


aula, pois os alunos do século XXI estão sempre conectados ao mundo virtual,
precisando discutir sobre assuntos que estão presentes em suas vivências,
exercitando um olhar crítico sobre as novas tecnologias.

Com objetivo de apresentar o tema da cultura visual no Ensino das Artes Visuais,
trago referências teóricas de Raimundo Martins e Fernando Hernández, que
concordam sobre a importância da cultura visual ser pensada e estudada na escola,
para formar estudantes que tenham um pensamento crítico e sensível. Os autores
afirmam que necessitam ocorrer mudanças nas metodologias de ensino nas escolas,
promovendo uma maior abertura à diversidade e multiplicidade de interpretações,
significados e sentidos.

O papel que arte e imagem desempenham na cultura e nas instituições


educacionais não é refletir a realidade ou torná-la mais real, mas,
articular e colocar em cena uma diversidade de sentidos e significados.
Indivíduos de um mesmo grupo ou comunidade podem conviver com
as mesmas imagens, mas cada um as vive e interpreta de maneira
diferente, criando brechas e espaços de diversidade. As resistências à
concepção inclusiva da cultura visual e ao princípio da diversidade de
interpretações – dificuldades centrais na relação indivíduo
arte/imagem – se manifestam através de grupos hegemônicos que
aspiram impor e autorizar suas interpretações, seu nível de verdade,
constrangendo professores, alunos e até mesmo pesquisadores a
aceitá-las ou a lutar para libertá-las do habitus acadêmico (MARTINS,
2007b, p. 74).

Assim, é interessante pensar que necessitamos discutir as visualidades pertencentes


ao nosso cotidiano e realidade. Os alunos buscam mais do que conteúdos
curriculares instituídos, eles têm inquietações que precisam de espaços de exposição

996
e discussão em sala de aula. Esses espaços são importantes para que o aluno aprenda
a se posicionar criticamente frente à diferentes assuntos que possam aparecer
durante seu percurso escolar, dentro ou fora da escola.

Hernández (2007) e Martins (2008) são pesquisadores contemporâneos que


convergem em ideias sobre cultura visual. Eles trazem em seus livros a importância
desse campo de estudo, e como ele ocorre nas práticas pedagógicas, na mídia, e
também, no cotidiano, ajudando a entender o papel social da cultura de massa.

Com suas abordagens conseguimos perceber e entender as rápidas transformações


ocorridas no sistema capitalista e consumista que lança uma grande quantidade de
imagens disponíveis ininterruptamente. As transformações produzidas pela imensa
gama de informações, publicidade, imagens e produtos, interferem na formação de
nossa identidade. A rápida popularização dos produtos e imagens, decorrentes das
interações com as diversas mídias e tecnologias nos influencia diretamente. Nós,
como educadores, necessitamos informarmos sobre tais conceitos e incidências,
levando-os para a sala de aula, para que os alunos possam tomar conhecimento do
assunto e saibam posicionar-se criticamente sobre suas ações no cotidiano, e que
estas têm implicações na construção de suas identidades.

Em um mundo dominado por dispositivos visuais e tecnologias da


representação (as artes visuais atuam como tais), nossa finalidade
educativa deveria ser facilitar experiências reflexivas críticas.
Experiências que permitam aos estudantes, terem a compreensão de
como as imagens influem em seus pensamentos, em suas ações e
sentimentos, bem como refletir sobre suas identidades e contextos
sócio-históricos (HERNÁNDEZ, 2007, p. 25).

Nossas identidades estão em constantes transformações, que vão mudando a partir


de vivências ou experiências cotidianas. No ambiente escolar, por exemplo, estamos
suscetíveis a uma gama de imagens. Recebemos e percebemos uma imagem ou uma
informação de forma diferente; ao processarmos essas informações e imagens, logo
temos uma opinião/sensação/reação sobre elas, seja boa, ruim, prazerosa ou não.
Ainda assim, podemos ser tomados por uma sensação de falta do que dizer, um certo
estranhamento. Todas essas possibilidades podem contribuir para a constituição de
nossa identidade, como também podem levantar questões importantes para serem

997
discutidas em sala de aula, ocasionando posicionamentos semelhantes ou diferentes,
mas que se completam pelo fato de que obtemos nossas próprias experiências.

As imagens provocam uma multiplicidade de sentidos, interpretações


e experiências subjetivas que variam em função da diversidade dos
meios, das culturas e das regiões em que foram criadas e, igualmente,
de onde são apresentadas. Os significados originados desse processo
dependem da relação concreta com o contexto no qual são
vivenciados, e são baseados em um diálogo entre o sujeito, a imagem,
o meio e a conjuntura no qual estão inseridos. Logo, a proposta da
cultura visual é a de instigar um conhecimento mais profundo a cerca
das representações visuais e das práticas culturais que resultam na
construção de sentidos e de subjetividades. E, igualmente, de ressaltar
a importância não somente da compreensão, mas também da
interpretação crítica da arte e da imagem como artefatos culturais
(MARTINS, 2008 apud MAGALHÃES; Patrícia, 2012, p.43).

Ressaltar a importância da compreensão e interpretação crítica das imagens de Arte


e de cultura visual entre outros assuntos, torna-se algo imprescindível nas aulas de
Artes Visuais. Ao entrar no universo visual o aluno terá a possibilidade de conhecer
melhor a si mesmo, conhecer melhor sua cultura, e assim, amplia seus horizontes em
direção às diferentes culturas.

Inserir o cotidiano em sala de aula torna-se muito importante para explorar a


realidade e as diversas experiências dos jovens estudantes. É preciso que o aluno
conheça a sociedade em que está inserido, porém cada um deles, irá ter seu próprio
pensamento crítico e sua própria emoção diante de uma obra de arte, de alguma
imagem ou qualquer assunto que venha a ser discutido. Fernando Hernández (2000),
que leciona na faculdade de Belas Artes de Barcelona na Espanha, afirma que a tarefa
do professor é despertar a curiosidade, para o aluno ser desafiado a produzir
alternativas diante das representações do universo visual.

O Ensino de Arte com o auxílio de imagens da cultura visual promove um


aprendizado integrado com as manifestações culturais cotidianas. Observar e ficar
atento ao que acontece à nossa volta, no nosso bairro e na nossa cidade é um bom
começo para se trabalhar a cultura visual em sala de aula. É fundamental que os
professores estejam atentos à realidade dos alunos e percebam quais imagens,
propagandas, marcas e produtos são importantes para eles, para que assim possam
interagir e lançar discussões pertinentes e interessantes sobre essas temáticas.
998
A Arte atrelada a Filosofia é uma área que traz importantes contribuições para as
questões relativas às identidades. Nossa identidade está ligada com tudo o que
consumimos no nosso dia-a-dia, com o que vivenciamos e experienciamos desde a
infância, e está em constante transformação. A Arte possibilita a ampliação de nosso
olhar enquanto sujeitos, percebendo o mundo e as outras pessoas, fazendo assim,
com que tenhamos um pensamento crítico e reflexivo sobre o mundo. Ao
observamos e refletirmos sobre a obra de um artista, um autorretrato, por exemplo,
estamos diante da representação de uma das formas com as quais aquele indivíduo
se identifica e se apresenta.

A cultura das imagens também se faz presente no Ensino de Arte, trazendo


consigo o conceito de identidade. Nessa sociedade em que vivemos hoje o que
determina a existência dos sujeitos é a sua imagem.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de


estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens
da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados,
mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de
tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar
livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes
identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos
a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma
escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como
sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural
(HALL, 2004, p.75).

Ser reconhecido pelo outro é algo que dá aos indivíduos pertencimento a


grupos sociais, a partir da maneira (imagem) pela qual o mesmo se apresenta. O
principal estímulo do consumidor é buscar uma identidade própria. É a mídia que
manipula os sujeitos, impondo o que eles precisam consumir, assim, o indivíduo pode
abandonar sua própria e verdadeira identidade em função de uma identidade
imagética e que foi construída através da manipulação das mídias, tornando-o assim,
uma verdadeira máquina de consumir.

A questão da identidade está sendo exatamente discutida na teoria


social. As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado. (HALL, 2006, p.7).

999
Em consequência da modernidade fomos levados a buscar uma identidade, e não
apenas uma, porém várias. Em nossa sociedade atual podemos ser o que quisermos.
Buscamos estilos para nos tornarmos parte de um grupo, ou um estilo próprio, mas
será que nosso estilo é próprio mesmo? Tudo o que vestimos, por exemplo, nos é
apresentado em algum momento de nossa vida, e a partir de nosso gosto vamos
escolhendo quais roupas queremos comprar. Nosso estilo está baseado nas
referências apresentadas a nós. Hippie, descolado, casual ou estilo próprio (será que
ele existe)? Nossas identidades são moldadas pela mídia e pelo capitalismo. Podemos
ser três em um, nosso estilo faz parte de nossa identidade, portando digo que nós
somos um misto de identidades, principalmente no mundo em que vivemos onde é
possível comprar de tudo. Compramos nossas identidades, que nos são passadas
através da mídia, ela é que nos vende imagens de tudo quanto é tipo. Buscamos o que
está na moda, as novas tendências e consequentemente aquilo que está na mídia. A
cultura midiática é muito forte, atinge todos os tipos de públicos, se tornando um
alvo fácil as crianças e os adolescentes.

A covardia em relação a propagandas destinadas às crianças era tanta, que


propagandas infantis foram proibidas no Brasil. As propagandas infantis são
apelativas e mexem muito com o emocional da criança, podendo até prejudicar o
rendimento escolar e pior ainda, fazendo com que essa criança se sinta infeliz porque
não possuí determinado brinquedo ou produto. Essa grande quantidade de produtos
faz com que crianças e adolescentes queiram competir entre si, em busca de quem
tem “o melhor”; a melhor roupa de marca, o melhor celular, o melhor tênis. Mas quem
denomina “o melhor”? A mídia.

Logo abaixo vemos uma charge do cartunista e ilustrador Arionauro da Silva Santos,
onde ele representa uma das questões que foi abordada no texto: a manipulação
midiática. As charges também são ótimos meios de atividades em sala de aula, onde
podemos utilizá-las em qualquer disciplina e criar ilustrações ironizando, zombando
ou afirmando algo sobre determinados temas. Charges essas que também fazem
parte do nosso cotidiano quando nos dispomos a ler um jornal, uma revista, ou até
mesmo quando navegamos na internet. Charges que fazem parte dessa grande e
diversa Cultura Visual e que estão dentro de veículos midiáticos.

1000
Figura 2: Charge Manipulação TV, 2018.
Fonte: < http://www.arionaurocartuns.com.br/2018/08/charge-manipulacao-tv.html >.

Voltamos assim para o inicio de um ciclo, onde tudo começa e termina com a mídia.
É ela quem tenta nos manipular para que sejamos consumidores desenfreados,
podendo assim alimentar o capitalismo, a desigualdade social e rendendo muito
dinheiro para as grandes empresas, que por sua vez criam novos produtos, iniciando
esse ciclo novamente.

A sociedade em que vivemos hoje nos faz ter uma experiência com as imagens, onde
apenas as olhamos rapidamente e deixamos passar muitas coisas desapercebidas. A
mídia nos bombardeia de informações e apresenta todo tipo de imagens, algumas
com linguagens que não conseguimos entender instantaneamente, e assim,
precisamos pensar e refletir sobre elas.

O ensino da Cultura Visual em sala de aula está ligado diretamente a essas


interpretações das imagens, podendo ajudar a decifrá-las e assim, exercitar nosso
pensamento crítico reflexivo sobre elas e sobre o que acontece no mundo e no nosso
cotidiano.

Considerações Finais

Mediante ao que foi exposto como discussão no texto gostaria de salientar a


importância dos temas mencionados para o campo da educação, como também das
artes e da cultura visual.

1001
A transformação do mundo e das pessoas é constante. Com a chegada da nova
geração no âmbito escolar, é preciso reconfigurar, recriar, reelaborar os métodos de
ensino, fazendo com que os professores tenham mais chance de atingir e satisfazer
as diferentes necessidades dos alunos, mas também, para que os educandos
obtenham um ensino mais significativo, uma aprendizagem atrelada à vida, para que
no futuro esses mesmos alunos tomem decisões mais conscientes em suas
trajetórias. Como professores do ensino de arte podemos explorar ao máximo
questões sobre imagem e cultura visual, pois o mundo que nos cerca nos faz ter cada
vez mais contato com todos os tipos de imagens em nosso cotidiano. Contextualizar
os conteúdos e sempre levar em consideração que o aluno traz consigo uma bagagem
ao ingressar na escola, considerar tais bagagens é a garantia de que o educando irá
se reconhecer e se identificar como tal.

É importante alertarmos os jovens desde cedo, para que a mídia não consiga
manipular suas subjetividades, tornando-os alienados diante de nossa sociedade. É
necessário que fatos sobre a nossa realidade e sobre a cultura atravessem os
conteúdos escolares para uma formação não só para o mercado de trabalho, mas
também para a vida dos jovens alunos.

Nossos alunos buscam muito mais do que somente os conteúdos básicos escolares,
buscam mais do que uma enxurrada de informação; eles buscam também a
expressividade, o espaço de fala, eles querem ser ouvidos.

Essas discussões não se findam aqui, elas vão muito além. A escrita é aberta e procura
problematizar algumas questões e contribuir não só para o ensino de artes, como
também, para o ensino de todas as outras disciplinas, pois acredito que em todas as
áreas do conhecimento é de suma importância abrir espaços de discussões sobre a
realidade em que vivemos, buscando assim uma educação transversal de qualidade.

Uma educação que seja mais voltada para o sujeito, para suas necessidades e
vivências, e não uma educação baseada no modo neoliberal, como uma preparação
dos educandos para atuar no mercado de trabalho. Uma educação que seja
transdisciplinar, que tenha um currículo aberto, para poder se trabalhar com
atividades diversas. Uma educação onde a diversidade seja valorizada, onde haja
inclusão e multiculturalidade, levando em consideração as multiplicidades
socioculturais e as individualidades dos educandos. Uma educação integrada à vida

1002
dos alunos, ou seja, contextualizada, que poderá resultar em uma aprendizagem mais
significativa, que irá proporcionar trocas de experiências e conhecimentos, mas que
também irá contribuir para a transformação humana e social. Uma educação
democrática, através de práticas não autoritárias, promovendo liberdade e
autonomia aos alunos. Uma educação que integre e considere as diversas dimensões
da experiência humana. Uma educação que faça com que esses alunos, durante sua
trajetória de vida escolar, e fora dela, se apropriem de suas realidades e as
transformem.

Referências

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em < https://akatu.org.br/criancas-e-consumo-uma-relacao-delicada/ >. Acesso em 21
de setembro de 2022.
AMARAL, Ana Lúcia. Pertencimento. Dicionário de Direitos Humanos. Disponível em <
https://ces.redemissionarias.com.br/public.asp?736-33589-pertencimento > . Acesso em
21 de setembro de 2022.
BRASIL. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares
Nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: MEC/ SEF, 1997.
DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/65715889/Deleuze-O-que-e-um-dispositivo> . Acesso em 21
de setembro de 2022.
DELEUZE & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. São Paulo: Ed.34,
1995.
FREEDMAN, Kerry; STUHR, Patricia. Curriculum charge for the 21 century: visual culture
in art education. VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte, Brasília, v. 8, n. 1, p.
9-21, jan./jun. 2009.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura Visual – Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. São
Paulo: Artmed, 2000.
MALHEIROS, Bruno Taranto. Metodologia da Pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: LTC,
2011.
MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. Educação da Cultura Visual: Conceitos e
Contextos. Editora UFSM. Santa Maria, 2011.
MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. Educação da Cultura Visual: Aprender,
pesquisar, ensinar. Editora UFSM. Santa Maria, 2015.

1003
MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. Culturas das imagens: desafios para a arte e
para educação. Editora UFSM. Santa Maria, 2012.

Mini Currículo

Jordana Belem Rodrigues


Mestranda em Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas, na linha de pesquisa: Educação em
Artes e Processos de Formação Estética. Especialista em Educação e Tecnologia pelo Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense na linha de pesquisa Arte e Filosofia. Graduada
em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas.
E-mail: jordanabelem90@gmail.com

1004
CIRCUNSTÂNCIAS DE APRENDIZAGEM:
STRANGER THINGS INVADE A ESCOLA

LEARNING CIRCUMSTANCES: STRANGER THINGS INVADE THE SCHOOL

Adineia Araujo da Silva


UFSM, Brasil

Lutiere Dalla Valle


UFSM, Brasil

Resumo

Este artigo relata Circunstâncias de Aprendizagem (DELIGNY, 2018) no Ensino da Arte,


realizadas com estudantes do 8º e 9º Ano da Educação Básica em uma escola pública da
cidade de Santa Maria, RS. Tais circunstâncias tiveram o contexto da série estadunidense
Stranger Things (2016), como disparadora de diferentes experimentações no intuito de
relacionar a série com o ensino de Artes Visuais. A partir das propostas experimentadas,
busco desenvolver a experiência a partir das imagens pelo viés da Perspectiva Educativa da
Cultura Visual (HERNÁNDEZ, 2000). As propostas pretenderam estimular o protagonismo
dos estudantes, prestando atenção às imagens que têm a potência de afetar e inquietar, além
de movimentar um encontro entre Cinema e o Ensino da Arte (FRESQUET, 2007), a fim de
examinar a potência edu(vo)cativa das imagens (VALLE, 2019). Busco também, ampliar
repertórios e desenvolver o pensar a partir das imagens, criando espaços de
problematização. O presente artigo é um excerto da pesquisa em andamento no Mestrado
em Educação da Universidade Federal de Santa Maria, fomentado pelo Grupo de Pesquisas
MIRARTE. As Circunstâncias de Aprendizagem descritas neste artigo constituem um
fragmento da metodologia, norteada pela Perspectiva Educativa da Cultura Visual, por meio
da Investigação Baseada em Arte (HERNÁNDEZ, 2013), tendo como tema central conhecer e
desenvolver Circunstâncias de Aprendizagem no Ensino das Artes Visuais a partir do
contexto da série Stranger Things.

Palavras-chave: Circunstâncias de Aprendizagem, Cultura Visual, Artes Visuais, Stranger


Things.

Abstract

This article reports Learning Circumstances (DELIGNY, 2018) in the Teaching of Art, carried
out with students of the 8th and 9th Year of Basic Education in a public school in the city of

1005
Santa Maria, RS. Such circumstances had the context of the American series Stranger Things
(2016), as triggering different experiments in order to relate the series with the teaching of
Visual Arts. From the tried proposals, I seek to develop the experience from the images
through the perspective of the Educational Perspective of Visual Culture (HERNÁNDEZ,
2000). The proposals intended to stimulate the protagonism of students, paying attention to
images that have the power to affect and disturb, in addition to moving a meeting between
Cinema and Art Teaching (FRESQUET, 2007), in order to examine the edu(vo) power captive
of the images (VALLE, 2019). I also seek to expand repertoires and develop thinking based on
images, creating spaces for questioning. This article is an excerpt from ongoing research in
the Masters in Education at the Federal University of Santa Maria, sponsored by the
MIRARTE Research Group. The Learning Circumstances described in this article constitute
a fragment of the methodology, guided by the Educational Perspective of Visual Culture,
through Art-Based Research (HERNÁNDEZ, 2013), having as its central theme to know and
develop Learning Circumstances in the Teaching of Visual Arts to from the context of the
Stranger Things series.

Keywords: Learning Circumstances, Visual Culture, Visual Arts, Stranger Things.

Introdução

O que pode um filme em uma relação pedagógica tem sido motor em minhas
reflexões nos últimos anos. Por um lado, por seguir percebendo a potência afetiva
das narrativas fílmicas que habitam os espaços escolares através das narrativas
dos/das estudantes, bem como as produções simbólicas trazidas por eles/elas nos
contextos educativos formais aos quais tenho transitado como professora de Artes
Visuais. Por outro, me sinto atraída pelas histórias narradas pelo cinema.

Quando me refiro a filmes e ao cinema, estou pensando na perspectiva


cinematográfica de narrar e contar histórias por meio de recursos audiovisuais.
Nesta perspectiva, incluo tanto o cinema comercial, como as narrativas
fragmentadas, vinhetas de abertura, séries televisivas, etc. – pensando o cinema
desde uma perspectiva mais ampla.

1006
Stranger Things1, em português literal “coisas estranhas”, trata-se de uma série
estadunidense de televisão via streaming2 do gênero cinematográfico ficção
científica, terror, suspense e drama adolescente, podendo ainda ser considerada uma
obra de época por trazer uma série de referências literárias, cinematográficas,
musicais e de costumes dos anos 80. Criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer, desde
sua estreia em 2016 tornou-se um fenômeno entre jovens, crianças e adultos.

Como uma decupagem3, recorte e colagem de imagens, justapondo ou colocando-as


em relação, movimentando contextos, assim é um filme ou série uma sucessão de
imagens que interagem e se potencializam. Para Martins (2017), “é assim que a
experiência com os filmes estabelece marcas no percurso de vida das pessoas,
interagindo com suas aprendizagens, com a configuração de suas próprias
identidades". (MARTINS, 2017, p.4)

Como professora de Arte dos Anos Finais do Ensino Fundamental, o cinema faz parte
das minhas ações curriculares, enchendo as aulas de cor, luz e movimento. Ao sermos
tomados pela experiência do cinema, entramos em contato com um mundo de
imagens que nos atravessa ou nos afeta, nos levando a caminhar por percursos que
não alcançamos fisicamente, mas que frente à tela, nos permitimos experienciar
acomodados em nossas cadeiras.

Seja por meio da projeção ou da memória, as experiências são atravessadas


cotidianamente por referências simbólicas através do nosso imaginário. Sendo assim,
é possível tensionar a possibilidade do encontro entre o cinema e a Educação como
um dispositivo que pode também afetar Circunstâncias de Aprendizagem.

O cinema apresenta a capacidade de sentir e vivenciar experiências que não são


nossas, um dispositivo potente para desencadear reflexões, questionamentos.
Permite experienciar uma fantasia, como a de imaginar que uma música nos salvaria

ͳ±”‹‡†‡–‡Ž‡˜‹• ‘‡•–ƒ†—‹†‡•‡˜‹ƒstreaming †‘‰²‡”‘†‡ˆ‹ ­ ‘ ‹‡–Àˆ‹ ƒ‡–‡””‘”Ǥ


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†‘’Žƒ‡Œƒ‡–‘†ƒˆ‹Žƒ‰‡Ǥ

1007
do “Mundo Invertido4”. Pensar sobre a forma como a imagem desta cena pode
impactar uma geração, me inquieta.

Este artigo relatar experiências realizadas com artefatos oriundos da Cultura Visual
como disparadores para proposições pedagógicas no ensino das Artes Visuais.
Artefatos que ultrapassam a matéria imagem, que se apresentam enquanto contexto.
Neste viés, o contexto da série Stranger Things é o disparador para Circunstâncias
de Aprendizagem, tema central da pesquisa desenvolvida no Mestrado em Educação
da Universidade Federal de Santa Maria.

Cartografando o percurso

A experiência que me propus a empreender envolveu os/as estudantes do oitavo e


do nono ano da escola onde atuo e, embora tenhamos percorrido juntos estas
vivẽncias, cada um caminhou de forma diferente. Alguns correram, outros somente
seguiram os primeiros. Uns observaram atentamente a paisagem, outros somente
passaram. Alguns buscam rotas alternativas para seguir a jornada. Alguns ficaram
perdidos e alguns se encontram, como eu.

Encontrei-me enquanto docente que olha para os/as estudantes, que experiência ao
lado deles/as, que olha na mesma direção. Um corpo docente que se (trans)forma
enquanto intervém na construção de outros. Que cria enquanto motiva outros a
criarem. Que se move em direções distintas, por vezes contrárias. Desobedece
(ATKINSON, 2018) a ordem historicamente estabelecida em busca de um novo
sentido para o Ensino das Artes Visuais.

O ato de ver emerge do contexto onde estamos inseridos, num processo que se
movimenta de forma ativa, que reflete o processo pelo qual passamos até chegar à
escolha dessas imagens (MARTINS; TOURINHO, 2011). As imagens que antes somente
me atravessavam, passaram a me afetar de forma que percebi como se faziam
presentes também nos afetos dos/das estudantes.

Ͷ‡ˆ‡”² ‹ƒƒˆ‘”ƒ ‘‘± Šƒƒ†‘‘—‹˜‡”•‘’ƒ”ƒŽ‡Ž‘ ‹†ƒ†‡†‡ ƒ™‹‰•ƒ•±”‹‡Stranger ThingsǤ

1008
Foi apenas neste ano corrente que entendi o quanto a série Stranger Things havia se
tornado um fenômeno mundial e como os jovens que convivo estavam sendo
afetados pela forte campanha midiática em torno da quarta temporada.

Mas mesmo assim, eu não compreendia a paixão dos/das estudantes pelo universo
deste “mundo invertido” onde a menina com cabeça raspada sangrava pelo nariz.
“Eleven, Demogórgon, Vecna”5... eu ouvia esses nomes durante as aulas de Artes
Visuais e pensava, “mas que diabos é isso?”. Música dos anos 80 tocando no playlist
dos adolescentes de hoje, camisetas de um “Hellfire Club6”, o meme7 da menina em
transe. Da curiosidade pela série à proposta de experiência em sala de aula foi um
caminho de muitas descobertas.

Pensar uma educação em Artes Visuais que abre espaços de ruptura, é um desafio
onde muitas vezes precisamos abrir caminhos, criar mecanismos que possam
permitir a entrada dessas visualidades que fazem parte do cotidiano dos/das
estudantes, imagens que trazem uma série de discussões e questionamentos que
precisam ser articulados ao contexto da Educação em Artes Visuais. VALLE (2020)
nos coloca que:

(..) quando as imagens assumem o papel de disparadoras, podem


contribuir para problematizar o campo social no que diz respeito às
questões de gênero, credo, liberdade, respeito, cidadania e educação.
Através do exercício da indagação ‘o que vejo de mim’ nestas
representações, são ativadas junto à pergunta, igualmente, “o que não
vejo” das minhas experiências. (VALLE, 2020, p.5)

Esta afirmação do autor nos coloca frente a um dos maiores desafios quando
tratamos de uma Perspectiva Educativa da Cultura Visual que é estabelecer relações
e articular o conhecimento oriundo das imagens que cercam nosso contexto visual
ao Ensino de Artes Visuais a fim de discutir a potência das imagens e suas implicações
na formação de nossos repertórios e escolhas.

ͷ‡”•‘ƒ‰‡•†ƒ•±”‹‡Stranger Things. Ž‡˜‡‘—ͳͳ±ƒŠ‡”‘Àƒǡ‡“—ƒ–‘‡‘‰×”‰‘‡‡ ƒ• ‘˜‹ŽÙ‡•Ǥ


6

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1009
A perspectiva Educativa da Cultura Visual trabalha com as diferentes relações entre
a visão e a visualidade, a partir do exercício de colocarmos as imagens em relação,
objetivando verificar as imagens enquanto dispositivos que permeiam o mundo
carregados de signos e diferentes significados. Para Valle (2020),

Quando abordamos a perspectiva educativa da cultura visual, estamos


falando de uma diversidade de práticas e interpretações críticas em
torno das relações entre as posições subjetivas e as práticas culturais
e sociais do olhar que emergem dos variados campos disciplinares. Ou
seja, dos artefatos visuais que são produzidos pela cultura e que nos
ensinam modos de ser e atuar – desde uma vinheta de abertura, às
estruturas narrativas presentes nos filmes, nas tramas novelísticas,
seriados, videoclipes, propagandas, outdoors, campanhas publicitárias.
(VALLE, 2020: p.7)

A partir desta contribuição de Valle (2020), é possível compreender que a perspectiva


Educativa da Cultura Visual nos possibilita alastrar o olhar para as mais diversas
visualidades que nos cercam, sem distinção que favoreça imagens historicamente
estabelecidas, ampliando repertórios e instigando o olhar crítico e reflexivo, algo que
BREA (2003) complementa, inferindo a importância dos estudos sobre a Cultura
Visual como uma ferramenta de desvelamento acerca da construção cultural.

Nesse viés, outro desafio que me deparo enquanto pesquisadora é a escolha de uma
abordagem metodológica que abarque e dê o suporte necessário para trabalhar com
impressões muitas vezes intangíveis. Algo que é produzido internamente, a partir da
cultura, reverberando uma série de processos não lineares e que muitas vezes são
difíceis de se traduzir dentro de um formato padronizado.

Nesse sentido, o percurso está sendo construído conforme a própria caminhada.


Neste percurso investigativo é conhecido o ponto de partida e chegada, mas o trajeto
é percorrido de forma não linear, desordenada. Este percurso se relaciona com o que
vejo, com o que não vejo, como interpreto e o que posso fazer com estas imagens.

Nos remete ao contexto fantástico da série Stranger Things, mas também pode se
relacionar comigo mesma, através das relações que estabeleço com os filmes que
marcaram minha vida. Ou com o outro, na forma como cada estudante se envolveu
com as proposições. Também com as Artes Visuais, na maneira como as imagens se
encontram em determinados pontos do caminho, tratando sobre elementos que

1010
constituem cada artista, mas que ao mesmo tempo fazem parte de um imaginário
coletivo.

Circunstâncias de Aprendizagem e a Potência Edu(vo)cativa das Imagens

A ideia de criação de uma Circunstância de Aprendizagem (DELIGNY, 2018) parte do


entendimento de um novo meio para a realização de proposições pedagógicas que
envolvam o estudante a partir do seu próprio contexto, suas habilidades ou aquilo
que o afeta. Deligny se apropria deste termo, anteriormente apontado por Henry
Wallon e a partir deste conceito, sugere uma forma de se trabalhar com os
“inadaptados” forma como eram chamados os estudantes dos reformatórios da
época.

Nesse contexto, acionar proposições pedagógicas por meio de Circunstâncias de


Aprendizagem pode relacionar-se ao modo como tanto eu, quanto os/as estudantes,
nos apropriamos do encontro entre o afeto que nos move com o conhecimento
historicamente institucionalizado, como forma de dar um novo sentido para o ensino
das Artes visuais.

Uma educação transformadora precisa levar em consideração os interesses e o


contexto do educando. Aquilo que ele vivencia e que possui significado para ele, a
partir daí, estabelecer um diálogo e traçar estratégias para alcançar objetivos
pedagógicos e caminhar na direção de uma educação nova e significativa (FREIRE,
1981).

A potência edu(vo)cativa das imagens se baseia, principalmente na perspectiva


Educativa da Cultura Visual, nos oferecendo a abertura para modos diferentes de
olhar e de explorar questões com as quais nos encontramos cotidianamente através
dos artefatos visuais e midiáticos que nos trazem dilemas sociais, culturais,
ideológicos e políticos (VALLE, 2019).

Esta pesquisa trabalha com as imagens evocadas a partir das experiências com
artefatos culturais oriundos do universo cinema. Linguagem artística que contempla
artes integradas, a qual nos referimos nesta pesquisa numa perspectiva mais ampla,
como narrativas audiovisuais que nos acompanham durante a vida através de
comerciais, vinhetas, videoclipes, filmes e séries. Segundo VALLE,

1011
Explorar y proponer estrategias educativas, tornando visibles las
experiencias y prácticas de intervención y mediación artística,
construye desde sus aspectos centrales visiones particulares acerca
del mundo y de las conductas humanas. Las estrategias didáctico
pedagógicas no implican un modelo de aprendizaje, sino que sugieren
maneras de reinventar, reformular conceptos, y maneras de concebir
lo científico y las nociones de verdad y de realidad, que se replantean
constantemente. Así mismo, suscitan el desarrollo de estrategias
flexibles que pueden contribuir para la comprensión del mundo y de
los sentidos de ser en el contexto donde se inserte el sujeto. (VALLE,
2019: p.8)

Sendo assim, utilizar o cinema como disparador para Circunstâncias de


Aprendizagem em Artes Visuais pode significar uma estratégia que contribui para o
desenvolvimento de uma educação preocupada com a compreensão crítica do
mundo que nos cerca e nos produz. A maioria de nós já deixou-se afetar pelo cinema.
Uma cena, um personagem inspirador, uma história que nos encanta, ou um
momento que nos aterroriza. Frente a tela do cinema, vivenciamos sensações reais,
que nos constroem enquanto sujeitos. Que se enraízam imbricadas com outras
experiências vivenciadas.

A partir das experiências realizadas, observamos que Circunstâncias de


Aprendizagem experienciadas a partir do cinema são bastante potentes, tanto no
sentido de trazer à tona temas relevantes do contexto dos estudantes, quanto para
o desenvolvimento de processos criativos. Tratam-se de experiências onde não se
aprende somente sobre as Artes Visuais ou Cultura Visual. Aprende-se com a Arte e
com a Cultura Visual sobre nossa própria humanidade.

“Cuidado com o Vecna”

Desde que iniciei algumas experimentações nas aulas de Artes Visuais com o tema
Stranger Things, um estranho movimento desencadeou-se pelas outras turmas da
escola, criando situações inusitadas, como o dia em que trabalhei com o sétimo ano
as obras do artista contemporâneo Paulo Bruscky e solicitei que os estudantes
criassem placas para espalharmos pela escola e uma das alunas criou a placa
“Cuidado com o Vecna”.

1012
Ao nos aproximarmos com a realidade estudada, foi possível compreender que o
fenômeno Stranger Things não se restringiu somente ao público estabelecido na
legenda. Era comum que crianças e adolescentes me perguntassem sobre as
atividades, sobre a série, se eu também era fã, “Profe, a senhora já zerou a série?”.

As proposições pedagógicas a partir do tema cinema enquanto conceito em foco,


previsto na BNCC dentro da Unidade Temática Artes Visuais e Artes Integradas, com
as turmas de 8º e de 9º Ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre
Nóbrega, foram as mais variadas possíveis, como desenhos, decupagens, pesquisas
sobre artistas contemporâneos e redações.

Que música te tiraria do mundo invertido?

A imagem da personagem “Max8” em transe foi o primeiro disparador,


proporcionando que os estudantes se movessem por linguagens como a música, o
desenho e a colagem, até as relações que se estabelecem entre diferentes períodos
e linguagens da Arte.

Escolhemos a sequência de quatro imagens de uma cena onde a personagem Max


com seu corpo no mundo real tenta ser salva pelos amigos através da reprodução da
sua música preferida nos fones de ouvido, “Running up that hill” da cantora britânica
Kate Bush, música que tornou-se uma das mais ouvidas no mundo após aparecer na
quarta temporada de Stranger Things.

Junto com a imagem segue a pergunta: Qual é a música que te tiraria do mundo
invertido? A partir desta provocação disparadora os/as estudantes foram
convidados a escolher a sua música preferida e criar a partir dela uma composição
visual e verbal que, de forma subjetiva, traduzisse sua relação com a música
escolhida.

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1013
Imagem 1: desenhos realizados a partir do meme da internet. Arquivo pessoal. 2022.

Foi conflitante para os/as estudantes, escolher somente uma música que
contemplasse não só sua preferência, mas que se relacionasse de alguma forma com
sua vida pessoal. Assim como foi desafiante criar uma proposição visual-verbal que
não fosse ilustrativa, nem abstrata, mas sim cartográfica, poética e subjetiva.

Apesar do fato de que nem todos obtiveram um resultado satisfatório, passar pela
experiência de “pensar fora da caixa” foi intensa para a maioria dos envolvidos. Por
isso, chamamos essas proposições pedagógicas de Circunstâncias de Aprendizagem,
pois entendemos que nestes momentos, os/as estudantes aprenderam mais do
caberia na proposta em si.

Entrelaçando visualidades por meio da decupagem

Num segundo momento, os/as estudantes foram impelidos a revisar a imagem da


série Stranger Things, atrelado a produção visual-verbal produzida por eles e
encontrar espaços de relação nas imagens das Artes Visuais.

Com uma pilha de livros antigos da disciplina de Arte, os/as estudantes foram
instigados a encontrar possíveis relações através de uma decupagem, seguindo um
fio condutor por meio da ideia de conectividade. O que tem em comum no contexto
da imagem da Max, com a imagem que criei sobre a minha música preferida? o que
posso encontrar nas imagens das Artes Visuais historicamente estabelecidas que
possa se conectar às minhas ideias?

Quando confrontados com este desafio tiveram dificuldade em abstrair suas


representações, procurando num primeiro momento imagens semelhantes umas às
outras. “Sora, minha música fala de moto, e aqui não tem imagens de moto!”. “Aqui não

1014
tem nada", eles diziam. Com muita paciência fomos formulando juntos o sentido de
conectividade.

E com a ajuda uns dos outros, os/as estudantes compreenderam que as imagens não
necessitavam de uma relação direta, esteticamente semelhante, mas sim, algo além.
Uma das estudantes relatou: “Escolhi essas figuras e não sei dizer o porquê mas elas
têm um sentido de relação para mim.”

Imagem 2: decupagens realizadas pelos estudantes. Arquivo pessoal. 2022.

Neste primeiro momento não foi solicitado que os estudantes buscassem as fontes
das obras como nome, ano ou autor. As imagens foram escolhidas a partir de critérios
subjetivos e os resultados foram muito potentes. Tanto com relação à experiência
propriamente, quanto com as conclusões apontadas pelos próprios estudantes.
“Profe, encontrei uma obra de Arte ‘das antiga’, igualzinha ao ‘devorador de mentes 9’
como pode isso?”

O mundo invertido da Arte Contemporânea

O ensino das Artes Visuais mais especificamente a arte contemporânea nos permite
dialogar de forma direta com o público jovem, seja por meio da inovação, do
estranhamento, da diversidade ou dos temas pertinentes ao momento atual que
estamos vivenciando, socialmente, politicamente ou emocionalmente.

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1015
No exercício de pesquisar e relacionar imagens da Arte Contemporânea a partir da
estética da série Stranger Things, elencamos sete características mais marcantes da
série, do ponto de vista dos/as estudantes. A partir daí selecionei sete artistas
contemporâneos com os quais as visualidades se entrecruzam. Cabe dizer que a
escolha foi feita por mim, considerando o tempo, recursos e o próprio contexto da
turma.

Nossa escola é pequena e não possui laboratório de informática. Nossos recursos de


multimídia são precários e a internet oscila demais. Além disso, a turma é grande e
bastante agitada, por isso optei por fazer a escolha dos artistas pensando em nosso
contexto e o tempo que nos demandaria uma pesquisa onde os próprios estudantes
procurassem artistas para fazer esta relação.

Destes pontos, incentivei a turma a encontrar a relação e desenvolver uma pesquisa


acerca do artista e das obras, buscando entender como o universo da Arte
Contemporânea pode interagir com o universo Stranger Things.

Imagem 3: Apresentação das pesquisas feitas pelos estudantes. Arquivo pessoal. 2022.

Os artistas escolhidos para dialogar com o contexto visual da série foram: O mundo
invertido: Chiharu Shiota; As luzes: Yayoi Kusama; As aranhas: Louise Bourgeois;
Cipós: Ernesto Neto; Natureza queimada: Frans Krajcberg; Monstros: Fefe Talavera;
Caos e violência: Jean-Michel Basquiat.

Diálogos e aproximações

A partir das experimentações realizadas, os resultados parciais que evidenciam a


importância de instigar o pensar a partir das imagens enquanto dispositivos que
permeiam o mundo carregados de signos e diferentes significados, incentivando o

1016
olhar para as mais diversas visualidades que os cercam, ampliando repertórios e
instigando o olhar crítico e reflexivo, bem como o protagonismo dos/das estudantes
(VALLE, 2020).

Nestas experimentações, muitas vezes realizamos diálogos e reflexões, articulando


conhecimento e valorizando a diversidade de ideias sobre nosso cenário político
atual, sobre a sociedade, sobre questões de gênero e outras questões surgidas no
decorrer deste processo.

Diversos foram os momentos importantes dessas experimentações, onde os/as


estudantes tiveram espaço para se expressarem de forma sensível e verdadeira.
Trabalhar com os desejos e inquietações destes jovens foi um desafio estimulante e
ao mesmo tempo uma agradável surpresa.

Também as trilhas que seguimos a partir das imagens da série Stranger Things, nos
trouxeram e, ainda trazem muitos aprendizados. “Que lindo esse Demogórgon!” disse
a aluna do 5º Ano, encantada com uma releitura da obra “Narcissus Garden” de Yayoi
Kusama realizada por um aluno do 9º ano.

Todos os momentos que compartilhamos construindo e desconstruindo imagens em


contextos onde a Cultura Visual e as Artes Visuais se entrecruzaram foram de grande
valor. Eles criaram, pesquisaram, pensaram, relacionaram e foram muito além do
previsto no início das proposições. Juntos construímos uma teia de experimentações
em eventos, Circunstâncias de Aprendizado que certamente ficarão marcados na sua
trajetória enquanto sujeitos.

Referências

ATKINSON, Dennis. Art, Disobedience and Ethics: the adventure of pedagogy. London:
Palgrave Macmillan, 2018.
DELIGNY, Fernand. Os vagabundos eficazes: operários, artistas, revolucionários:
educadores. São Paulo: n-I edições, 2018.
HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura Visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
HERNÁNDEZ, Fernando. Investigação baseada em arte: propostas para repensar a pes
quisa em educação. (In) DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L. (orgs.) Pesquisa educacional base
ada em arte: a/r/tografia. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013.

1017
MARTINS, Alice Fátima. Sobre aprender com o cinema. Revista Digital do LAV. Santa
Maria, UFSM, vol. 10, núm. 2, maio-agosto, 2017. Disponível em:
http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=337052479002. Acesso em: 28 de julho de 2022.
MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Educação da Cultura Visual: conceitos e
contextos. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2011.
MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Processos e práticas de pesquisa em
cultura visual e educação. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1981.
FRESQUET, Adriana. Imagens do desaprender. Rio de Janeiro: Booklink, 2007.
VALLE, Lutiere Dalla. A potência edu(vo)cativa da arte contemporânea: desafios e
possibilidades. Revista Digital do LAV. Santa Maria: UFSM, v. 12, n. 1,
jan./abr, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/37258.
Acesso em 24 de novembro de 2021.
VALLE, Lutiere Dalla. La potencia edu(vo)cautiva de los artefactos visuales. Arte e
Investigación. Buenos Aires: Facultad de Bellas Artes. Universidad Nacional de La Plata, N.°
16, e036, ISSN 2469-1488, noviembre 2019. Disponível em:
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/93353. Acesso em: 10 de agosto de 2022.
VALLE, Lutiere Dalla. Cultura visual e educação: cartografias afetivas e compreensão crítica
das imagens. Cadernos de Comunicação. Santa Maria, UFSM, v.24, n.1, art 11, Jan/Abr, 2020.
DIsponível em: https://periodicos.ufsm.br/ccomunicacao/article/view/55088. Acesso
em: 09 de julho de 2022.

Mini Currículos

Adineia Araujo da Silva


Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria, Especialista
em Orientação Educacional pela ESAB, Professora de Arte da Rede Municipal de Santa Maria,
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação e Arte,
Universidade Federal de Santa Maria, PPGE/ LP4/ UFSM, Membro Pesquisador do MIRARTE: Grupo
de Pesquisa em Arte, Cultura Visual e Educação – CNPq.

Lutiere Dalla Valle


Doutor em Artes Visuais e Educação, Mestre em Artes Visuais e Educação: um enfoque
construccionista, ambos pela Universidad de Barcelona, Espanha. Mestre em Educação pela
Universidade Federal de Santa Maria. Especialista, Licenciado e Bacharel pela mesma universidade
onde atua como Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo
de Pesquisa em Arte, Cultura Visual e Educação: Mirarte. E-mail: adi.araujo@gmail.com,
lutiere.valle@ufsm.br

1018
VESTIR É (EN)VOLVER-SE: IMAGENS FOTOGRÁFICAS DO SÉCULO XIX

DRESSING IS TO (IN)VOLVE YOURSELF: PHOTOGRAPHIC IMAGES FROM THE


19TH CENTURY

João Guilherme da Trindade Curado


Seduc/GO, Brasil

Nélia Cristina Pinheiro Finotti


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Resumo

Partimos de uma investigação que contempla Arte, Cultura Visual e Educação, retomando o
século XIX, ao investigar o vestir, ato que (en)volve o corpo e possibilita desvendar
emaranhados de sentidos para quem vê e para quem é visto, mas proporciona não o
retroceder no tempo e no espaço de construção da imagem, no caso fotografias, mas
desvelar e revelar sentidos voltados para entrelaçamentos de um vestir que atenda nossas
necessidades, vontades e desejos e que por isso “romperam” com padrões e imposições
outrora aceitos. Para tanto, recorremos a imagens fotográficas revisitadas pela emergência
de percepção de envolvimentos outros que destoavam do contexto de um Brasil ainda
alinhavado à metrópole e que remendava o sistema escravista e de submissões diversas. A
interpretação das imagens pauta-se em Benjamim (1994). Ao pensar sobre o vestir,
tangenciando os devires. O tecido textual e suas costuras visam atualizar as inquietações
sobre o (en)volver corpos, uma prática que se perpetua, mas com “rasgos” de
“desassossegos”.

Palavras-chave: Vestir. Fotografia. (En)volver.

Abstract

We start from an investigation that contemplates Art, Visual Culture and Education, going
back to the 19th century, by investigating dressing, an act that (in)involves the body and
makes it possible to unravel tangles of meanings for those who see and for those who are
seen, but provides n perceptions back in the time and space of image construction, which is,
in this case, the photographs, but the unveiling and the revealing of meanings aimed at the
intertwining of dressing that meets our needs wants and desires and that therefore
“ruptured” with standards and impositions that were once accepted. For that, we resort to
photographic images revisited by the emergence of other perceptions of involvements that
clashed with the context of a Brazil still tied to the Metropolis and that patched up both to
1019
the slave system and various submissions. The interpretation of the images is guided by
Benjamin (1994). When thinking about dressing is approaching the becomings. The textual
fabric and its sewing aim to update the concerns about (in)involving bodies, a practice that
is perpetuated, but with “tears” of “restlessness”.

Keywords: Dressing. Photography. To (in)volve.

Volver a los diecisiete, después de vivir un siglo


Es como descifrar signos sin ser sabio competente
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo en este instante fecundo
(Violeta Parra, 1966).

Violeta Parra, a autora da música em epígrafe, nasceu em 1917, um ano bastante


intenso que envolvia o mundo em um grande conflito, a Primeira Guerra, da qual a
Rússia se ausentou para fazer sua Revolução, em que o socialismo foi implantado.
Mas o que tais informações têm haver com o século XIX, o nosso recorte temporal
de análise a partir do vestir-se?

O Chile conseguiu sua independência em relação à Espanha por movimentos que


ocorreram entre 1817 e culminaram no início de 1818, um século antes do nascimento
de Parra, que ao voltar aos 17 anos se relembra de quando ela passou a ter maior
idade, já que lá a idade é de 16 anos e não 18 anos, como no Brasil. Sendo assim, a
letra da música é referencial para o século anterior ao do nascimento da artista, o
XIX, e ainda para a emancipação da compositora, que foi uma das responsáveis pela
sistematização dos estudos folclóricos chilenos. As composições de Violeta Parra
mostram, ainda, trajetórias que envolvem lutas latino-americanas pelas
emancipações e reconhecimentos.

Optamos por abrir a introdução com trecho da música da chilena Violeta Parra, que
foi gravada por inúmeros intérpretes, dentre os quais, a mais conhecida na voz da
argentina Mercedes Sosa. No Brasil é afamada pela parceria com Milton Nascimento,
com quem gravou Volver a los 17 e outras músicas de Parra que estão no LP Corazón
1020
Americano, de 1985. A escolha ocorre pelo fato da música ser uma das geradoras
temáticas do evento e pelo fato de ao propor um texto sobre fotos e vestimentas, ter
o (en)volver como pressupostos de investigação e de interpretação.

Selecionamos três imagens fotográficas datadas do século XIX, dentre as centenas


expostas na obra Famílias Pirenopolinas, monumental obra genealógica de autoria de
Jarbas Jayme, publicada em 1973, em cinco robustos volumes, que remetem às
famílias que em momentos pretéritos habitavam a antiga Meia Ponte, atual
Pirenópolis, mas que se dispersaram para inúmeras outras localidades goianas e do
Brasil.

O presente artigo é fruto de pesquisa bibliográfica e tem por objetivo investigar o


vestir, ato que (en)volve o corpo e possibilita desvendar emaranhados de sentidos
para quem vê e para quem é visto. Sabemos das limitações no que tange a autoria das
três fotografias apresentadas ao longo do texto, uma vez que os fotógrafos não foram
identificados na obra de Jayme (1973), mas como dito anteriormente, o material é de
grande relevância para o estudo genealógico, e pode ser também uma importante
fonte para análises diversas, inclusive sobre o vestir no século XIX.

Dentre as importantes referências para a tecitura do texto, destacamos A pequena


história da fotografia de Benjamin (1994), Gilles Deleuze e Felix Guattari: heterogênese
e devir de Dorea (2002) e também: O que vemos, o que nos olha, obra de Georges Didi-
Huberman (1998) e Quando as imagens tocam o real (2012) e Diante do tempo: história
da arte e anacronismo das imagens, do mesmo autor (2015).

As vestimentas serão abordadas, especialmente, a partir de leituras de O império do


efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas, Lipovetsky (2009), O espírito
das roupas: a moda no século XIX de Mello e Souza (2019) e também: Moda e arte na
reinvenção do corpo feminino do século XIX, obra de Ximenes (2011) e de Araújo (2012)
Dom Pedro II e a moda masculina na Época Vitoriana. Outra obra relevante, que
alinhava várias das temáticas pretendidas é Gênero, moda e fotografia: retratos da elite
porto-alegrense (1889-1914), onde Alves (2021) analisa fotografias, modas e gêneros na
região sul do Brasil, da qual utilizaremos apenas os dados referentes ao século XIX.

O artigo aqui apresentado está dividido em três subtítulos com designações de


etapas da produção de vestimentas, a saber: cortes, alinhavos e costuras, que aludem
também a processos políticos que vão organizar a tecitura da Província de Goiás,
1021
uma vez que as fotografias expostas são mais que registros de imagens, por elas
perpassam muita pesquisa, arte e cultura visual, o que possibilita compreensões
diversas sobre o (en)volver corpos que circulavam por terras goianas durante o
século XIX. A disposição das fotografias não obedece a cronologia, ainda mais que
informações como autoria e data não constam na referência das quais foram
retiradas, a opção foi pela temática que apresentam e as possibilidades de detalhes
que merecem evidências.

Cortes

É a primeira intervenção radical no tecido quando se vai produzir uma vestimenta.


Rompimento dos fios da trama, separando as peças ou partes do que se quer produzir
e que serão alinhavadas e costuradas, fazendo reunificar o que junto, compõe a
vestimenta, tudo isso com o auxílio, primeiro da tesoura e na segunda ação de
agulhas e linhas. Diante de tal mágica é possível a relação com um dos versos da
epígrafe: Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios.

O menino é Neco, apelido de Manuel Joaquim Ramos, nascido em Jaraguá a 11 de maio


de 1862, e residente de Bonfim, atual Silvânia, onde foi intendente e juiz municipal,
além de comerciante. Deixou uma dúzia de filhos. Neco foi filho de Inácio de Souza
Ramos e de Flora de Camargo Brito. Inácio era irmão de Gomes de Sousa Ramos,
respectivamente terceiro e sétimo filho do Capitão Gomes Pereira da Silva e de Ana
das Dores de Almeida, natural de Arraias e nascida por volta de 1812 (JAYME, 1973:
143-179).

Na descrição da imagem na publicação há a seguinte informação: “presumimos ser o


retrato de 1870 ou pouco mais” (JAYME, 1973). Ali também há a explicação que se trata
de três gerações, iniciada com a matriarca Ana das Dores, pelo filho Gomes de Sousa
e pelo neto e sobrinho Neco, afilhado dos dois primeiros. Se a afinidade consanguínea
e de apadrinhamento unia as três personas fotografadas (Figura 1), a ação de uma
delas, Gomes de Sousa Ramos, foi em situação oposta, quando liderou o processo de
criação de uma capela a pedido dos moradores das Antas, atual Anápolis, que foi
“autorizada em 17 de maio de 1870” (POLONIAL, 2007: 17-18). Em seguida foi elevada
a “Freguesia, depois pela Vila de Santana das Antas, até chegar à cidade de Anápolis”
(POLONIAL, 2007: 21), cujo território foi emancipado de Meia Ponte. Gomes de Sousa
1022
Ramos foi o principal fundador de Anápolis e faleceu a 22 de setembro de 1889, ou
seja, ainda durante o Império.

Figura 1: Família Sousa Ramos – cortes. Fonte: Jayme, 1973, s/p.

Em A pequena história da fotografia, contida nas “Obras Escolhidas: magia e técnica,


arte e política” Walter Benjamin aborda as trajetórias do ato de “fixar as imagens da
câmera” (1994: 91 – grifo no original), salientando que:

apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de


planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade
irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do
aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar
lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos
únicos, há muito extintos, e com a eloqüência que podemos descobri-
lo, olhando para trás (BENJAMIN, 1994: 94).

A fotografia datada de “1870 ou pouco mais” coincide com o ano da autorização da


ereção da capela na futura Anápolis; no entanto, chama a atenção ao inusitado fato
das pernas de Gomes estarem cobertas, não sendo possível visualizar a calça, o que

1023
não era nem um pouco comum à época, ainda mais para um jovem na faixa dos 33
anos de idade, uma vez que nasceu em setembro de 1837. Talvez a bengala segurada
pela mão direita não seja um simples ornamento que compunha a vestimenta dos
senhores daquele momento. O casaco parece um pouco grande para quem o veste e
o colete com o segundo botão desabotoado, uma prática pouco comum para quem
portava relógio de bolso preso em correntes.

Outra análise interessante vem da cultura visual predominante naquele contexto,


pelo menos nas fotografias exposta em Famílias Pirenopolinas, em que as mãos dos
retratados geralmente aparecem abertas ou semiabertas, sendo que mãe e filho
apresentam as mãos cerradas.

Ximenes (2011: 56) nos lembra, que para as mulheres do século XIX, “outros
elementos complementam a indumentária, como o chapéu, o leque e o guarda-sol”.
Salientamos que em fotografias goianas era comum ainda portarem luvas, flores,
livros e recorrentemente terços, alusão à religiosidade. Mas Ana das Dores foge ao
padrão estético estabelecido até então, pois segura com a mão direita um lenço e
com a esquerda uma capa que esconde a pala do vestido, algo quase sempre evidente
pela riqueza de detalhes. Nenhuma joia, distintivo social para época, aparece na
imagem, nem mesmo crucifixos em pingentes ou aliança, neste último caso um
indício de viuvez. Ela ainda chama a atenção pelos cabelos curtos, destoando das
toaletes femininas de então quando eram geralmente volumosos, em coques ou
prendidos para trás.

Manuel, o menino com aproximadamente dez anos de idade, pelo menos na


fotografia já deixou de ser “calça-curta”, vestindo-se com um dos trajes masculinos
padrão para a época, sendo as dobras dos punhos um indicativo de que ele estava em
fase de crescimento e que a roupa deveria ser aproveitada por mais algum tempo,
adequando-se pelo ajuste nas extremidades dos braços. As adaptações em
vestimentas eram comuns entre os que cresciam, sendo o mais importante deles no
Brasil Império, dom Pedro II, que ainda menino tornou-se monarca e fotógrafo, “Dom
Pedro teve contato com a fotografia, em 1839, sendo através do daguerreótipo que
sua paixão pelas imagens produzidas ‘pela luz’ o transformou no primeiro fotógrafo
brasileiro” (2021: 232), quiçá o mais jovem dentre os fotógrafos daquele período,
contava apenas 15 anos de idade.

1024
Mesmo esmaecida pelo tempo, a fotografia retrata um instante por meio de técnicas
diversas direcionadas pelo olhar do fotógrafo, técnica e magia explicada por
Benjamin (1994) e que podem ser observadas considerando Didi-Huberman ao
escrever O que vemos, e o que nos olha (1998). Vemos uma imagem antiga em que o
foco e nitidez contempla Gomes de Sousa Ramos, personagem que também ocupa o
maior espaço na fotografia, tanto na horizontal quando na vertical. O cenário é
neutro, as cadeiras não aparecem, mesmo estando lá, o que tornam os três
(en)volvidos em elementos centrais do corte proposto.

Alinhavos

Preparo que antecede o costurar, junção das partes delineando a forma e esboçando
o modelo que se pretende. Momento em que as partes são aproximadas, a pontos
largos e visíveis para que se tenha ideia do conjunto e que as medidas possam ser
ajustadas, na intenção de se conseguir o (en)volvimento pretendido para o(s)
corpo(s).

O alinhavo, compreendido, entre arte e articulação, possibilita o entendimento


pretendido a partir da família de José da Veiga Jardim, nascido em Vila Boa de Goiás
em 1847 e que se casou com Francisca Xavier da Silva, de Jaraguá, outra cidade goiana
do período da mineração. Mas o alinhavo maior ocorreu com a ascendência de José.

O progenitor de José da Veiga Jardim foi José Joaquim da Veiga Valle, nascido em
Meia Ponte (atual Pirenópolis), onde foi vereador e exímio escultor de arte sacra;
trabalhava com policromia e douração, possibilitando enorme plasticidade às
vestimentas que (en)volviam as imagens por ele produzidas. Dentre tantas imagens
conhecidas e famosas pelo talento do artista, se destaca a da Santíssima Trindade,
venerada no Santuário de Trindade, em Goiás.

Em uma de suas passagens por Meia Ponte o então presidente da Província, José
Rodrigues Jardim, contratou Veiga Valle para promover trabalho de douração em
altares da matriz da antiga capital. Ali estando, casou-se com a vilaboense Joaquina
Porfíria Rodrigues Jardim, filha do presidente e contratante, e de Ângela Ludovico de
Almeida, quando passou o artista a residir definitivamente na antiga capital, onde
continuou seus trabalhos artísticos e ainda ampliou sua participação na política
goiana. Salgueiro (1983: 296-297) afirma que com o casamento “Veiga Valle passa a
1025
fazer parte de um clã que domina por vários decênios o quadro político regional” e
que “o sobrenome Valle desaparece na mulher e filhos.

A importância dada ao sobrenome Jardim comprova a força do patriarcalismo


econômico e político da família”. Foram oito os filhos nascidos da união de Veiga Valle
e Joaquina, sendo o segundo deles retratado ao centro da fotografia abaixo (Figura
2).

Figura 2: Família José da Veiga Jardim – alinhavos. Fonte: Jayme, 1973, s/p.

O patriarca aqui é José da Veiga Jardim que em união com a jaraguense Francisca
constituíram significativa prole de doze filhos, cujo primogênito está sentado junto
aos pais. O menino em pé à direita é sobrinho do casal, Ranulfo, filho de Henrique
Ernesto da Veiga Jardim e de Eduiges de Arruda Pereira, de Poconé, mas que se
casaram em Cuiabá. Vale ressaltar que quando se enviuvou, Henrique contraiu
segundas núpcias com Maria Isabel da Veiga Jardim (Sinhá), a sobrinha, segunda em
pé na fotografia.

Seguindo a legenda do retrato apresentada por Jayme (1973) temos, “de pé, da
esquerda para a direita: Teresa, Maria (Sinhá), Inácio, Julieta, Lauro, Nestor, Osvaldo,
José Edilberto (filhos) e Ranulfo (Sobrinho)”, “sentados: Francisca Xavier da Silva, seu
marido, José da Veiga Jardim, e o filho mais velho, Henrique. Os dois meninos são
Francisco e Alfeu, no mesmo sentido”. Pela descrição parece que Francisca não
1026
adotou o sobrenome familiar o que não foi novidade na família do marido, como
vimos anteriormente. No entanto, todos os filhos assinavam Veiga Jardim.

Ao observar a fotografia, enquanto espaço, depara-se com algumas novidades: a falta


de um cenário, bastante recorrente naquele período. O local escolhido foi o pátio
interno da residência familiar, “terreiro” como era designado, possibilitando ver
parede e porta situadas à esquerda, enquanto na direita, uma meia porta, seguida por
um janelão, cujo vão foi tampado por uma meia cortina que não chega ao chão.

Tais inovações vão ao encontro do proposto por Benjamin (1994: 105), para quem “na
fotografia, ser criador é uma forma de ceder à moda” uma vez que “no início, os
fotógrafos se contentavam com dispositivos para fixar a cabeça ou o joelho. Depois
vieram outros acessórios, como nos quadros célebres, e, portanto, tinham que ser
‘artísticos’. Antes de mais nada, a coluna e a cortina” (BENJAMIN, 1994: 98). Destarte,
o fotógrafo apresentou inovações na concepção da cultura visual de registrar a
família em questão, também por utilizar o chão, preterindo os tapetes, o
enquadramento em que o canteiro de roseiras cercado aparece à frente de parte do
vestido de Tereza, fatos também não muito corriqueiros.

Destaca-se ainda o cachorro escondido entre Edilberto e o sobrinho Ranulfo, já que


o outro, da mesma raça está em primeiro plano, mas de lado em relação à câmera,
que parece não lhe chamar a atenção, mesmo sendo o fotógrafo um “estranho” ao
cotidiano familiar.

Um componente importante da vestimenta masculina aparece em pelo menos três


versões e nove variações: a gravata. Nestor e Edilberto usam gravatas muito claras e
dentre os adultos apenas Lauro não a usa, o que soa estranho. Para os dois caçulas,
Francisco e Alfeu, que também não a usam era mais comum a ausência de tal
acessório.

Destoando das observações de Araújo (2012) sobre as vestimentas masculinas no


período imperial em que os tons escuros predominavam, na fotografia da família de
José da Veiga Jardim os tons claros estão presentes nas calças de oito dos onze
homens, mais uma vez Lauro se apresenta diferentemente dos demais com uma calça
que não é clara e nem escura.

1027
O bigode não está presente somente nos cinco imberbes, mesmo que em Nestor e
Lauro apareçam menos evidentes que nos demais; o patriarca é o único a portar
cavanhaque. Os cortes de cabelos masculinos são bastante semelhantes, com
repartidos da esquerda para a direita, exceto em Inácio e Osvaldo, quando são
jogados para trás, e nos que estão sentados e apresentam sinais da calvície e os
caçulas que estão com as cabeças raspadas.

As irmãs Teresa e Maria (Sinhá) usam vestimentas semelhantes: saias quadriculadas


com detalhe de fita branca próxima à barra, cinto preto e blusas listradas, com
detalhes em “x” na frente, gola alta e mangas longas, os cabelos para trás,
provavelmente em coques e usam brincos. Mesmo sendo idênticos, a saia de Tereza
e mais curta que a de Sinhá, no entanto, os pés de ambas não ficam à mostra. Julieta
tem a blusa visível, cujo tecido parece ter semelhança com o tecido das saias das
irmãs, usa o cabelo moldado como os das irmãs. Ao que tudo indica sua mão esquerda
está na frente do braço da mãe, diferente do toque cerimonial de Edilberto em
Henrique.

Dona Francisca quebra alguns paradigmas da cultura visual de então, representada


na maioria das fotografias, por (en)volver-se em uma vestimenta toda clara e
especialmente por manter os longos cabelos soltos sobre os ombros, quando o
padrão era: ao casar prender os cabelos em coques ou em penteados que
impossibilitam perceber o cumprimento deles. O terço curto preso ao punho direito
era um ornamento recorrente.

Interessante como alguns dos presentes, tanto homens como mulheres, encaram o
fotógrafo de maneira natural, enquanto nove deles desviam os olhares em diversas
direções.

1028
Costuras

Figura 3: Família José da Silva Batista – costuras. Fonte: Jayme, 1973, s/p.

A costura é uma junção de tecidos no propósito de (en)volver corpos, seguir, criar ou


ditar uma cultura visual em tempos distintos, o que contribui para o surgimento da
moda, que segundo Lipovetsky (2009: 79) “foi ao longo da segunda metade do século
XIX que a moda, no sentido moderno do termo, instalou-se”, e salienta que “até os
séculos XIX e XX foi o vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais
ostensivamente o processo de moda” (LIPOVETSKY, 2009: 25). Mello e Souza reforça
que “a moda continua sendo, no século XIX, a grande arma na luta entre os sexos e
na afirmação do indivíduo dentro do grupo” (2019: 89).

Sem dúvida as vestimentas femininas passam a ter mais destaque e detalhes, além de
adereços; mesmo prevalecendo a prática de vestir semelhantemente irmãos ou
irmãs, como Naiá, Semíramis e Diana, que estão em pé, de vestidos pretos, cintos
claros. A primeira, sem correntes e crucifixo na gola alta e com o cabelo solto e
vestido curto, sendo o comprimento do vestido das outras duas não visível. Os

1029
demais retratados mantêm algumas individualidades no vestir, tanto nas cores, como
nos cortes e mesmo nos penteados dos cabelos.

Na sequência da esquerda para a direita, iniciando pela fila de trás, segundo Jayme
(1973) estão: Naiá, Semiramis, Diana, Segismundo e Vespasiano. Na fila anterior:
Ninfa, Isaura (grávida), dona Chiquinha, Zeca Batista, Genaro e Nicanor

Segundo Jayme (1973) “o retrato foi tirado aí por volta do ano de 1900” finalizando o
período proposto para a análise das imagens por meio das vestimentas que
(en)volvem as pessoas que as vestem. Mas ao mesmo tempo, a mesma imagem traça
perspectivas do vir a ser, uma vez que Isaura, a primogênita, a primeira sentada,
estava grávida na ocasião em que foi retratada, o que é deveras incomum no contexto
em que a gravidez limitava, inclusive, as aparições públicas da gestante.

Todavia, há concordância com a exposição de Dorea (2002: 104), ao afirmar que


“entrar no campo do devir é estar sempre compondo em nossos corpos algo de
inusitado a partir do encontro com o outro, embarcando constantemente em
possíveis linhas de fuga desterritorializantes”. Para Deleuze e Guatarri (1997: 19) “o
devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança”, daí
a escolha da imagem, pela aliança de pessoas, inclusive a que estar por vir e ainda
com a política, uma vez que o Coronel José da Silva Batista, o Zeca Batista, estevem
à frente do poder estadual por um ano, entre 1909 a 1910, mas isso é assunto que
extrapola nosso recorte, mesmo tendo importância para as análises propostas.

Há concordância com Didi-Huberman (2015: 30) quando “as imagens, certamente,


têm uma história” (grifo no original), pois o tirar e o guardar fazem parte da
perspectiva histórica de seleção de uma cultura visual que pode e deve ser
perpetuada, por razões diversas. Portanto, destacamos as três crianças em cena,
separadas por gênero, o que nos remete ao “ângulo da ‘eucronia’, isto é, sob o ângulo
conveniente do ‘artista e seu tempo’. O que tal visualidade exige é que seja vista sob
o ângulo de sua memória, de suas manipulações do tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2015:
26).

Relembramos que o artista seguia limitações criadas pela própria cultura visual de
então, como cortina e coluna; no entanto, percebemos a inserção de animais, como
o gato em cima de uma mesa disposta próxima a Nicanor, o único de chapéu.

1030
Seguindo outra contribuição do autor, temos que “a imagem é outra coisa que um
simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro,
um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos
suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles” (2012: 216). O
“tempo que quis tocar” são “anacrônicos e heterogêneos entre eles”, pois remetem a
um padrão em que há variáveis, a mais impactante são as filhas da fila de trás estarem
de preto, enquanto a matriarca se vê (en)volvida em cor mais clara.

Os homens portam gravatas borboletas e não a tradicional, além do mais o pai, Zeca
Batista recebe demonstração de carinho do filho Genaro, pelo toque e parece
retribuir ao tocar Nicanor que ainda se apoia na perna esquerda do pai. Os contatos
e as mudanças nas vestimentas começam a se evidenciarem em registros para a
posteridade.

Considerações

A opção pelo século XIX recai devido as poucas e dispersas imagens fotográficas
disponíveis sobre a Província/Capitania de Goiás, uma vez que os grandes acervos
da centúria em questão ainda estão mal acondicionados em baús familiares.
Entretanto, concordamos que naquele contexto “percebe-se um crescente diálogo
entre a mulher e a sociedade por intermédio das roupas” (XIMENES, 2011: 76), mesmo
que nos retratos expostos há evidente predominância de homens.

A proposta de perceber as vestimentas de outros tempos, assim como as


possibilidades da cultura visual em tempos diferentes do presente acaba por nos
(en)volver com as perspectivas diversas e com os retratos, tanto os aqui reproduzido
quanto os inúmeros outros apenas “olhados”, pois concordamos que:

diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente


isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o
elemento de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o
elemento da duração [durée]. A imagem tem frequentemente mais
memória e mais futuro que o ser [étant] que a olha (DIDI-HUBERMAN,
2015: 16).

1031
Referências

ALVES, Paulo Gabriel. Gênero, moda e fotografia: retratos da elite porto-alegrense (1889-
1914). Teresina: Cancioneiro, 2021.
ARAÚJO, Marcelo de. Dom Pedro II e a moda masculina na Época Vitoriana. São Paulo:
Estação das Letras e Cores, 2012.
BENJAMIN, Walter. A pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 91-107.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Editora 34, 1998.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós, Belo Horizonte, v. 2, n.
4, 2012, p. 204-219.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens.
Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely
Rolink. São Paulo: Editora 34, 1997. Vol. 4.
DOREA, Guga. Gilles Deleuze e Felix Guattari: heterogênese e devir. Margem, São Paulo, n.
16, 2002, p. 91-106.
JAYME, Jarbas. Famílias Pirenopolinas. Goiânia: Ed. UFG, 1973. Vols. I e III.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MELLO E SOUZA, Gilda de. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
POLONIAL, Juscelino. Introdução à história política de Anápolis (1819-2007). Anápolis:
Edição do Autor, 2007.
SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade da obra de Veiga Valle. 2. ed. Goiânia: Ed.
UCG, 1983.
XIMENES, Maria Alice. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino do século XIX. 2. ed.
São Paulo/Rio de Janeiro: Estação das Letras e Cores/Ed. Senac Rio, 2011.

Mini Currículos

João Guilherme da Trindade Curado


Doutor e Mestre em Geografia (IESA/UFG). Graduado e Especialista em História (UniEvangélica).
Integrante do Grupo de Pesquisa: Geografia Cultural: Territórios e Identidade e Pesquisador Externo
do Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais (Laboter – IESA/UFG). Membro da
Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música (Aplam) e da Comissão Pirenopolina de Folclore. E-
mail: joaojgguilherme@gmail.com

Nélia Cristina Pinheiro Finotti


Doutoranda em Arte e Cultura Visual pela (UFG). Mestra em Ciências Sociais e Humanidades pela
(UEG); especialista em docência Universitária pela Universo-Goiás, Graduada em Design de Moda pela

1032
Universo-Goiás. Pedagoga pela FALBE. Membro do Grupo de Estudos (GEFOPI). Membro do Grupo
de Pesquisa Indumenta: dress and textiles studies in Brazil (CNPq/UFG). Bolsista Capes.
E-mail: neliafinotti@gmail.com

1033
VISUALIDADES CONSTRUÍDAS A PARTIR DE ANÁLISES FOTOGRÁFICAS DO
VESTUÁRIO DO SÉCULO XIX NO ESTADO DE GOIÁS

VISUALITIES BUILT FROM PHOTOGRAPHIC ANALYSIS OF 19TH CENTURY


CLOTHING IN THE STATE OF GOIÁS

Nélia Cristina Pinheiro Finotti


Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Thiago F. Sant’Anna
Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil

Resumo

A proposta de investigação centra-se nos modos de vestir do século XIX em Goiás, tendo
como objetivo analisar as vestimentas daqueles que aqui habitavam, com destaque para
identificar suas representações, diversidade, pluralidade e interculturalidade, envoltas no
vestir. A presente inquirição tem como questionamento saber: quais os modos de vestir do
século XIX em Goiás e a partir de quais recursos é possível (en)volver as visibilidades das
vestimentas usadas naquele século? A metodologia adotada pauta-se nas abordagens
qualitativa/interpretativa, assente enquanto bibliográfica e busca documental no que tange
às imagens das vestimentas, muitas vezes mais descritas que fotografadas, e que serão
utilizadas para análises diversas.

Palavras-chave: Vestimentas; Século XIX; Goiás; Cultura Visual

Abstract

The research proposal focuses on the 19th century ways of dressing in Goiás, with the
objective of analyzing the clothes of those who lived here, with emphasis on identifying
their representations, diversity, plurality and interculturality, involved in dressing. The
present inquiry has the question of knowing: what are the ways of dressing in the 19th
century in Goiás and from what resources is it possible to (en)involve the visibilities of the
clothes used in that century? The methodology adopted is based on
qualitative/interpretive approaches, based on a bibliographic and documental search
regarding the images of the clothes, which are often more described than photographed,
and which will be used for different analyses.

Keywords: Clothing; XIX century; Goiás; Visual Culture

1034
Introdução

A proposta do presente ensaio está fundamentada na pesquisa de doutorado, cujo


objetivo é analisar o modo de vestir no século XIX em Goiás, por meio das imagens
oitocentistas. Para tanto, partimos do seguinte questionamento: como foram dados
a ver os modos de vestir do século XIX em Goiás e a partir de quais recursos sociais,
culturais e ancorados em tecnologias de políticas é possível (en)volver as
visibilidades das vestimentas usadas naquele século?

A pesquisa tem como objetivo operar uma investigação dos modos de vestir dos
que habitaram Goiás no século XIX, buscando percepcionar como deixaram alguns
vestígios quanto relatos, imagens e fotografias, assim quais informações sobre o
processo produtivo, por exemplo, de onde chegavam os materiais para a confecção
das roupas e que registros se tem daquele período, uma vez que havia relações de
comércio e migrações inter-regionais, o que propiciava localizar este trânsito de
identidades culturais via registros de relatos de viajantes que por Goiás passaram.
Assim, torna-se necessário investigar a construção da identidade regional em sua
pluralidade e interculturalidade, tendo os Estudos de Cultura Visual como eixo
investigativo.

Este aborda uma proposta de análise de fotografia do século XIX, na Província de


Goiás, para melhor compreensão dos modos de vestir dos que aqui habitaram. A
metodologia adotada pauta-se nas abordagens qualitativa/interpretativa, assente
enquanto bibliográfica, documental e acervos de museu. O corpus da pesquisa é
formado por fotografias do século XIX.

Neste ensaio, utilizamos de uma fotografia que se encontra no FECIGO – Fundação


E da C.de Goiás. Arquivo Frei Simão Dorvi. Também foram escolhidas três imagens
de vestimentas do século XIX na Europa e no Brasil, as quais possibilitaram a análise
comparativa dos modos de vestir, para além de Goiás. Delimitou-se, para este
ensaio, a análise das imagens das vestimentas femininas que se encontram na figura
01. Este percurso metodológico possibilitou a construção dos modos de vestir das
mulheres de Goiás no século XIX.

1035
Arraigados nestas informações visuais e descritas, podemos construir visualidades,
ou seja, dar vida a estas imagens, analisando suas vestimentas, materiais utilizados
da época, cores, formas e acessórios.

Este, em primeiro momento, versa sobre a construção de uma possível identidade


de Goiás ao contarmos um pouco da história de Goiás na passagem do século XVIII
e XIX. Em seguida, discorreremos sobre a vestimenta e seu papel social na história
da moda e, por último, apresentaremos as visualidades construídas por meio das
vestimentas femininas da fotografia que foi analisada.

Início de tudo

Goiás foi ocupado oficialmente no século XVIII por Bartolomeu Bueno, filho de
Bartolomeu Bueno da Silva. De acordo com Arraias (2019), as bandeiras saíram de
São Paulo em 1722 com 152 homens, entre portugueses, paulistas, indígenas e
clérigos. Nesse contexto, muitos morreram pelo caminho, de fome e doenças, e
outros abandonaram a bandeira. As bandeiras lideradas por Bartolomeu vieram
para as terras goianas atrás das riquezas (ouro), isto é, exploravam e levavam para
Portugal as riquezas que encontravam na região. Assim, fundando a capital no
Arraial de Santana, atual cidade de Goiás. Mais tarde, o arraial passou a ser
denominado por Vila Boa de Goiás e, ao longo do século XVIII e XIX, tornou-se o
espaço das instituições administrativas de Goiás (ARRAIAS, 2019).

Quase nada se sabe sobre como realmente se vestiam os componentes das


bandeiras, pois os registros são poucos ou quase inexistentes, o que gera
especulações tanto de opulência quanto de precariedade. Para Arraias (2019),
Palacín (2008) e Chaul (2010), havia, em algumas regiões de Goiás, uma população
nativa, os indígenas. Para a formação do povo que habitava o Goiás no século XVIII,
podemos destacar os descendentes dos que vieram com as bandeiras, os escravos
(nascidos no Brasil ou os vindos da África), e indígenas que habitavam aqui por
cerca de 11 mil anos, e ainda o clero – cada qual com suas vestimentas
características e que acabavam por criar hierarquias diversas, também a partir das
roupas usadas, no cotidiano ou em momentos especiais, proporcionando
visualidades constituídas pelas culturas locais.

1036
Nesse entrelaçamento de relações, as uniões matrimoniais eram atravessadas por
singularidades. De acordo com Palacín (2008), os bandeirantes não traziam suas
mulheres, a população, que aqui se formava, era fruto do concubinato entre os
bandeiras com as indígenas e as escravas. Estes, por sua vez, formavam famílias,
tinham filhos e os batizavam, porém, não se davam a casamentos, muitos por já
serem casados, outros pela questão social e outros por não possuírem condições
financeiras para custear o casamento que era cobrado um valor bem alto pela
Igreja. Ainda, exigia-se que se dispusessem das vestimentas adequadas, o que
acabava por inibir as uniões.

Ainda, segundo Palacín (2008), a população era predominante masculina e de


solteiros. Como pontua Auguste de Saint-Hilaire (1975, p. 53): “entre os capitães-
generais que governaram a Província de Goiás até 1820, não houve um só que fosse
casado, e todos tinham amantes com as quais viviam abertamente”, para tanto,
cuidavam para que as companheiras se vestissem com destaque diante da
comunidade local e por ocasião de recepções de algum representante
administrativo.

Palacín (2008) pontua que a riqueza do povo goianos era conhecida pela quantidade
de escravos que possuíam. Dentre os pobres, tinham duas classes: os que possuíam
poucos escravos e os que não possuíam nenhum escravo. Para compreender a
situação econômica no século XIX em Goiás, Palacin (2008) aponta que a economia
era pautada pelo ouro, sendo conhecida como a era do ouro em Goiás e também
como o período colonial. O comércio era abastecido por São Paulo, de onde vinham
comida, roupas, medicamentos, dentre outros.

Os relatos deixados pelos viajantes Saint-Hilaire Auguste (1975) e por Emanuel


Johann Pohl (1976), que por aqui passaram no início do século XIX, descrevem uma
população extremamente pobre, sem educação, moral, indolentes, sem regras,
dentre outros atributos especialmente levantados a respeito das mulheres, sempre
pautados por visões eurocêntricas. Maria Lemke (2012, p. 279), em sua tese de
doutorado, questionou esta ideia levantada pelos viajantes, ao qual destaca
“assentadas no tripé ‘ócio, ausência de famílias e pobreza generalizada’”. Para a
autora, há uma dicotomia entre estas características do povo que habitavam Goiás
no século XIX. Ela, ainda esclarece que o espaço do pobre e do rico eram bem

1037
diferenciados, havia fazendas de agricultura, sistema familiar, com raridade de
escravos, assim também a pecuária existia na região. As fazendas eram formadas
por trabalhadores livres, com ou sem remunerações. Estes apontamentos nos
levam a duvidar sobre esta pobreza extrema e também desta população elitizada,
algo que merece reflexões e as quais propomos aqui a partir das imagens
selecionadas, pois acreditamos que a Cultura Visual, possibilita interpretar
momentos pretéritos a partir de suportes como a fotografia.

No que diz respeito ao século XVIII e XIX, há poucas pesquisas sobre as mulheres
desta época, apenas algumas descrições dos viajantes citados anteriormente e que
relatam que as mulheres viviam em um ambiente austero, enclausuradas e que
pouco participavam da vida social local.

Um olhar para com as vestimentas

Nesse contexto, pode-se destacar a pluralidade na formação do povo de Goiás,


associada à experiência de miscigenação constituidora do povo brasileiro, em que
cada sujeito se encontra mergulhado em sua cultura. É importante enaltecer a
constituição de identidade de um sujeito, conforme Hall (2016), a cultura acontece
na relação com as pessoas que mediam os valores, sentidos e símbolos. É possível,
por meio das vestimentas, analisar sentidos que circulavam em determinada
formação social e histórica, ancorada em seus aspectos sociais e culturais, em
busca por compreender a identidade de um povo. Hall (2016) ainda relata que a
identidade de um povo é formada na interação do sujeito com a sociedade num
diálogo contínuo com o mundo. O sujeito, nessa relação, projeta e internaliza
imagens e símbolos que irão constituir sua identidade numa relação dinâmica e
constante.

A vestimenta é uma das formas de expressão mais legítima e espontânea da


identidade de um povo, uma vez que constitui e é constituída por nossa
temporalidade histórica, ancorada em valores e desejos. Nesses tempos
conectados, mais que uma imposição de mercado, a vestimenta é a manifestação
democrática de como pensa e age a sociedade, transformando-se em identidade de
um povo. Sobre isso, esclarece Andrade (2017, p. 203) ao dizer que “[...] pensar em
uma indumentária relativa a um país, a uma nação ou a um povo, implica dar

1038
contornos às formas de vestir que traduzam ou identifiquem essa nacionalidade ou
cultura correspondente”.

O vestuário, utilizado como fusão entre o corpo e a cultura, tem diversas funções,
cujas origens são complexas, visto que passou por grandes transformações e
adaptações e, ao longo do tempo, contou com técnicas aprimoradas de utilização
da pele de animais, chegando à descoberta da fibra, com a qual se iniciou o
desenvolvimento do vestuário mais elaborado. Nesta época, o uso de materiais
diversos fez com que a vestimenta ganhasse um valor estético e simbólico dentro
das civilizações e os modelos foram mudando de comprimento, alguns mais
adornados e outros mais simplificados. Portanto, o vestuário, por ser íntimo ao
homem e estar estritamente ligado as suas necessidades, tornou-se um meio de
comunicação de grande impacto na vida das pessoas (JAMES LAVER, 1989), posto
que a roupa, o vestir e o ornamentar estão ligados diretamente ao homem desde sua
existência (ROLAND BARTHES, 2005).

É pela possibilidade de ser interpretada como expressão cultural e visual que a


vestimenta é aqui compreendida ainda como identidade, uma vez que permite a
materialização e o registro em contextos plurais e interculturais. É por isso também
que propomos a valorização e a visibilização da cultura goiana, a partir de uma
perspectiva sobre as vestimentas e os modos de vestir da população do século XIX.

Ao analisar uma vestimenta, é possível abordar que os estilos presentes na


composição das roupas de determinadas regiões se impõem como formas que
permitem a caracterização, a identificação e o reconhecimento de um determinado
grupo social no espaço, no tempo e em suas tradições

Atravessados pelas Visualidades

Para as análises iconográficas, serão utilizadas referências de imagens do vestuário


do Brasil e de outros países. A análise de imagens desse povo que habitou Goiás no
século XIX possibilitará a visibilidade dos invisíveis até o momento. Para Mirzoeff
(2016), a imagem permite o direito a olhar e a reivindicar o real, o lugar aonde tais
códigos de separação significam uma recusa à segregação de forma coletiva.

Sobre isso, esclarecem Abreu, Álvarez e Monteles (2019, p. 836), que

1039
[...] a regularidade e homogeneidade das visualidades não se instalam
sem conflitos. Os discursos que delas derivam são frequentemente
questionados pela pluralidade das experiências subjetivas, coletivas e
individuais, que constroem narrativas visuais não oficializadas como
forma e estratégia para contrapor as formas como representamos e
somos representados.

Assim, entendemos que as imagens analisadas aqui poderão ser questionadas pela
tentativa de reduzir o povo que habitou Goiás no século XIX, especialmente pela
ausência de referências concretas sobre todos os povos e classes, uma vez que a
fotografia, enquanto técnica, era um fator limitador de acesso do registro da
maioria das pessoas ou grupos. Contudo, partindo da afirmação desses autores,
amparamo-nos para afirmar que será uma construção de narrativas visuais ainda
não oficializadas. Entretanto, essas visualidades sempre serão interpretadas a partir
do olhar de quem as vê, com atribuição de sentidos e significados que poderão criar
novas experiências e sentidos para as imagens já construídas.

Alloa (2015) questiona que uma tal estética pode estar realmente alforriada da
posição que ela pretende combater, ou se ela não vem confirmar, ainda de forma
dissimulada, uma dicotomia entre matéria e forma. O autor afirma ainda que a
polarização da imagem, entre a transparência e a opacidade, permite um exorcismo
quase perfeito da inquietude suscitada pelas imagens, permitindo-nos questionar o
que ela leva a pensar “[...] se situa talvez lá, nesta iminência que não pertence a
ninguém, alguma coisa que se tem diante, nem aqui nem em outro lugar, nem
presente nem ausente, mas iminente” (ALLOA, 2015, p. 16. Destaques no original).

Pela inexistência de visualidades coloridas que possam representar, ou seja, dar


vida a este povo, torna-se necessário construir essas visualidades partindo da
compreensão de Mirzoeff (2016, p. 747), que afirma que “visualizar é produzir
visualidades, ou seja, é fazer os processos da história perceptíveis à autoridade”.

Para construção das visualidades do século XIX em Goiás, foi possível apresentar
uma fotografia que contém 5 mulheres e um homem. De acordo com o Jornal Goyaz
(1893), são alunas de música e seu professor. Contudo, neste ensaio, vamos analisar
apenas as vestimentas das mulheres. Ancora-se teoricamente no que pontua Alloa
(2015), quando diz que a imagem exige tanto um lapso de tempo quanto um lapso
no tempo para sua produção e que nos,

1040
Entrelaçamentos temporais, quiasmas de olhares, as imagens não
saberiam propriamente ser localizadas nem aqui nem lá, mas
constituem precisamente esse entre que mantem a relação. Como
tais, as imagens requerem uma outra forma de pensar que
suspenderia suas certezas e aceitaria se expor às dimensões de não
saber que implica toda experiência imaginal (ALLOA, 2015, p. 16).

A fotografia aqui nos conduz a investigar analiticamente seus sentidos


apresentados, ancorados em um imaginário social e articulado às várias
interpretações da imagem. Didi-Huberman (2012, p. 207), aborda sobre quais
conhecimentos a imagem pode dar lugar, “é uma impressão, um rastro, um traço
visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares –
fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não
pode aglutinar”. Em uma tentativa de construção destas visualidades, buscamos
também conhecer os materiais usados no século XIX ancorados em suas condições
de produção específicas emanadas das suas experiências como tecidos, cores e
formas, bem como saber qual era o cotidiano desse povo, como poderiam se vestir
para diferentes momentos.

A figura 01 apresenta um cenário de aprendizado, em que as mulheres do final do


século XIX estavam fazendo aula de música com o professor e músico Jose do
Patrocínio Marques Tocantins (JORNAL, 1893).

Figura 01 - Fotografia do século XIX na cidade de Goiás

1041
Fonte: FECIGO – Fundação E da C.de Goiás. Arquivo Frei Simão Dorvi. (1893)

A imagem apresenta uma cena visual onde se encontram cinco mulheres que
compõem a fotografia. No primeiro olhar, podemos verificar a presença de
vestimentas longas, muitas sobreposições, cintura marcada, mangas longas,
decotes altos e saias volumosas, nas sem o exagero dos séculos anteriores. De
acordo com Souza (1987), a forma das roupas do século XIX tornou-se mais simples,
sem o exagero das saias e o domínio dos espartilhos dos séculos anteriores. Como
descreve Souza (1987, p. 63),

com a influência das modas inglesas, acentuando-se com a revolução


francesa. As mulheres, aboliram os espartilhos, as anáguas, os saltos
altos, puseram-se de camisola branca atada debaixo dos seios; e o
vestido se tornou escasso e sem forma.

A imagem pode nos levar ao imaginário. A segunda mulher da esquerda para direta
possui uma peça na parte superior em forma de um espartilho, as cinturas são bem
marcadas e as formas, ao nosso ver, não são tão simples, como descreve a autora.

Ao analisar as formas da vestimenta visível e observar uma silhueta ampulheta,


percebemos os ombros marcados pelas mangas longas e mais ajustadas ao final,
cintura marcada, saias volumosas em linha A. Talvez a roupa não tenha como
1042
principal objetivo destacar o sujeito, mas tomaram-se mais simples para as
necessidades que o século exigia. Assim como pontua Braga (2007, p 56), “as roupas
passaram a ser mais práticas e de fato confortáveis”.

Para melhor ilustrar as vestimentas utilizadas em Goiás no século XIX, recorremos


à três fotografias do século XIX de lugares distintos: a primeira imagem e a segunda
apresentam a moda europeia, a terceira fotografia apresenta a moda brasileira.

Na figura 02, recorremos ao método comparativo para verificarmos as semelhanças


e diferenças das vestimentas do século XIX em países diferentes. Utilizamos do
processo de recorte e colagem para agrupar as três imagens que possibilitam uma
melhor leitura da vestimenta em épocas semelhantes e lugares distintos.

Figura 02 - Colagem de fotografias das vestimentas do século XIX

Fonte: Fotografia 1 - Fukai (1910); Fotografia 2 - Cosgrave (2005); Fotografia 3 - Souza (1987). Colagem dos
autores (2022)

Acima, podemos observar as semelhanças nas vestimentas femininas da figura 01 e


da figura 02, tais como sobreposições, comprimento das saias, mangas, laços e
golas altas. Há pouca diferença, sendo destacada pelo corte império na fotografia 1
da imagem 02 da mulher que se encontra sentada. Como descreve Braga (2007, p.
1043
56), “após a revolução, a moda começou a passar por um processo de significativa
mudança até atingir a identidade daquela que seria a moda império”, que
caracterizava pelo corte abaixo do busto, não sendo a cintura marcada.

Na fotografia 2, o destaque é por conta da semelhança entre a figura 01 e a figura


02. Podemos observar as características das vestimentas muito semelhantes em
suas formas e cores sugeridas pela fotografia preto e branco da época. Vale
ressaltar que a fotografia 2 da figura 02 apresenta um contexto de mulheres
trabalhando em uma fábrica de tecidos (en la Coventry Machinists’Company, em
Warwickshire). De acordo Cosgrave (2005, p. 201), “a indústria têxtil foi a que mais
empregou mulheres. Nas as condições de trabalhos nas oficinas eram muito
difíceis.” (tradução nossa). Na fotografia 3 da figura 02, a imagem retrata mulheres
do Brasil no século XIX.

Na figura 03, destacaremos a forma, tecidos e cores utilizados no século XIX em


Goiás.

Figura 03 - Decomposições da figura 01 e suas especificações

Fonte: Autores(2022)

Ao analisar a imagem, é notável a predominância da cor preta e branca da fotografia


da época. Para dar vida a esta imagem, recorremos à pesquisa sobre as cores que se
usavam na época. A paleta de cor da imagem remete-nos aos tons mais suaves, pois
1044
apenas o vestido do centro da fotografia tem um tom mais fechado. Para Souza
(1987, p. 68), “quanto a cor, a evolução se deram para o grupo feminino, da
simplicidade a complexidade”. Podemos sugerir para a cor clara da imagem matizes
dessaturadas de amarelo, azule e rosa, para as cores fortes vermelho e violeta,
cores muito utilizadas na época. Em acervos e bibliografias, há uma inexistência de
visualidades coloridas que podem representar, dar vida a este povo, tornando-se
necessário construir essas visualidades.

Quanto aos tecidos, até o século XIX não havia diferenciação entre tecidos usados
por homens ou mulheres. Usavam-se tecidos nas vestimentas de acordo com
posição social, ou a que era destinada. Os tecidos mais utilizados eram a fazenda
(tecidos devidamente prontos), algodão, linho, seda e lã os tecidos mais luxuosos,
sedas, musselina, organdi e veludos. De acordo Souza (1987,p.69), “de 1830 em
diante difundem-se os tecidos mais pesados, o veludo, a seda adamascada, os
brocados, os tafetás cambiantes, o gorgorão, o cetim”. Com o desenvolvimento da
indústria têxtil, generaliza-se o uso do linho, seda e lã, utilizados nos vestidos mais
simples (SOUZA, 1987).

Na representação acima, foi possível retratar, ainda que de forma incipiente,


mulheres que viveram no século XIX em Goiás. Ressaltamos que este trabalho
incorpora um projeto maior de doutoramento em que serão feitas pesquisas sobre
o fenótipo desse sujeito que atravessou o período colonial para o imperial, como a
cor da pele, tipos de cabelo, dentre outras características que podem melhor
representar as mulheres e seus modos de vestir.

Essa caracterização do povo está fundamentada no que afirmou Mitchell (2015) ao


pontuar que as imagens são viventes, são marcadas por todos os estigmas próprios
à animação e à personalidade, pois exibem corpos físicos e virtuais; falam conosco
ora literalmente ora figurativa ou silenciosamente, devolvendo-nos o olhar por
meio de um abismo não conectado pela linguagem. É neste sentido que buscaremos
dar vida àquela população por meio das visualidades. Se por um lado, a imagem
mostra as possibilidades das vestimentas utilizadas no século XIX em Goiás, seus
modos de vestir e de viver, por outro, podemos questionar esses mesmos corpos
vestidos e desenhados em sua real existência e a forma como foram invisibilizados,
ou como poderão ser visualizados, como nos esclarece Didi-Huberman (2015) ao

1045
abordar que a imagem reproduzida pode garantir sua função de transmissão
genealógica digna e honrosa porque a imagem. Nesse sentido, é um objeto de culto
privado e de culto público. Ainda discute o autor sobre o direito da imagem, da livre
circulação, da emancipação do seu pertencimento e a quem a imagem precisa ser
devolvida, além de assinalar o valor político da imagem. A construção das imagens
do povo do século XIX em Goiás pode ser compreendida como essa restituição da
imagem a quem é de direito, bem como trazer à baila questões políticas da
invisibilidade desse povo ao longo da história.

Considerações finais

Esta pesquisa, ainda embrionária, possibilita esboçar a gênese da construção das


visualidades das vestimentas do século XIX em Goiás. A pesquisa proporcionou
apresentar as vestimentas femininas dos oitocentos em Goiás, assim como
demonstrar quais os materiais eram possíveis de serem utilizados na época.

Por meio das visualidades construídas das vestimentas, foi possível identificar as
singularidades nas representações e nas diversidades envoltas no vestir. Ainda,
apresentou-se os modos de vestir das mulheres do século XIX em Goiás.

O (en)volver das imagens tem um lugar de prioridade na investigação, pois norteará


todo o estudo e que, a partir dela, poderemos apresentar, ineditamente, as
vestimentas e o modo de vida do povo naquele século.

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SOUZA, Gilda de Melo. O espírito das roupas: a moda do século XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
1047
Mini Currículos

Nélia Cristina Pinheiro Finotti


Doutoranda em Arte e Cultura Visual pela (UFG). Mestra em Ciências Sociais e Humanidades pela
(UEG); especialista em docência Universitária pela Universo-Goiás, Graduada em Design de Moda
pela Universo-Goiás. Pedagoga pela FALBE. Membro do Grupo de Estudos (GEFOPI). Membro do
Grupo de Pesquisa Indumenta: dress and textiles studies in Brazil (CNPq/UFG). Bolsista Capes. E-
mail: neliafinotti@gmail.com

Thiago F. Sant’Anna
Possui doutorado em História pela Universidade de Brasília (2010) e pós-doutorado em Artes e
Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2012). Atualmente é professor adjunto da
Universidade Federal de Goiás, no curso de Arquitetura e Urbanismo da Regional Cidade de Goiás e
do Docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes e Cultura Visual da
Faculdade de Artes Visuais/UFG. E-mail: thiagof.santanna@ufg.br

1048
PIERRÔ E NARUTO EM JÚPITER, NA ESCOLA, NA TV, NO CADERNO...
OBRAS DISCENTES, OS FILMES E OS SÍMBOLOS PRESENTES NO
IMAGINÁRIO 1

PIERROT AND NARUTO IN JUPITER, AT SCHOOL, ON TV, IN THE NOTEBOOK...


STUDENT WORKS, FILMS AND SYMBOLS PRESENT IN THE IMAGINARY

Isac dos Santos Pereira


Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Analine Inês de Carvalho Santos


Universidade Federal da Paraíba, Brasil

Resumo

A presente pesquisa se foca nos possíveis museus de imagens passadas, como diria Durand
apud Pitta (2017), que se erguem constantemente em interlocuções estabelecidas nas aulas
de Arte. Entre o contexto do audiovisual e as materialidades advindas de duas pesquisas
referentes a imagem icônica do Pierrô e do Naruto (Animação), compondo um campo, uma
arquitetura e uma geografia intrinsecamente existenciais no ambiente da escola de um curso
técnico em artes visuais e de aulas de arte no Fundamental I, apresentamos um recorte dos
estudos dessas imagens por dois olhares sensíveis de um professor da educação básica e
uma professora do ensino técnico. Diante disso, nota-se que as produções que se criam nas
aulas de Arte manifestam a incessante deambulação de imagens advindas de um rico
imaginário, em busca de viver na realidade através da fisicalização de memórias consolidadas
a partir das experiências significativas dos pequenos, jovens e adultos artistas. Diante disso,
objetiva-se por salientar ao leitor a importância do mergulhar no contexto discente trazido
para a sala de aula à luz dos estudos de Gilbert Durand e Morin, bem como no saber acolher
e dialogar com esses contextos em que diariamente são partilhados nas aulas.

Palavras-chave: Arte/Educação. Pierrô. Naruto.

Abstract

This research focuses on the possible museums of past images, as Durand apud Pitta (2017),
which are constantly raised in interlocutions established in art classes. Between the context
of the audiovisual and the materialities arising from two researches concerning the iconic

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
1049
image of Pierrô and Naruto (Animation)By composing a field, architecture and geography
intrinsically existential in the school environment of a technical course in visual arts and art
classes in elementary school, We present a clipping of the studies of these images by two
sensitive looks of a teacher of basic education and a teacher of technical education.
Therefore, it is noted that the productions that are created in art classes manifest the
incessant wandering of images coming from a rich imaginary, in search of living in reality
through the physicalisation of memories consolidated from the significant experiences of
small, young and adult artists. Therefore, the objective is to emphasize to the reader the
importance of diving in the student context brought to the classroom in the light of the
studies of Gilbert Durand and Morin, as well as in knowing how to welcome and dialogue
with these contexts in which they are daily shared in classes.

Keywords: Art/education. Pierrô. Naruto.

Introdução

Aquela tarde com os amigos que lhes fez guardar a essência de algumas palavras;
aquele grafite visto na rua de casa que lhes introduziu em um universo de cores e
formas diversas e inebriantes; aquela animação e/ou aquele filme que sonoramente
e visualmente lhes convidou para sonhar mais uma vez... Tudo isso pode e comove
de fato os estudantes no anseio por trazerem para os diálogos poéticos, memórias
que vicejam dentro do imaginário que os cerca. A diacronicidade das imagens
reverbera, segundo Durand apud Sanchez Teixeira (2000), significados patentes, pela
clara repetição de seus conteúdos correlatos (experiências) ou latentes, pela
repetição de imagens de fatos do cotidiano. Diante disso, emerge de forma potente
a necessidade da análise efetiva do arte/educador em reconhecer a constelação de
símbolos que permeiam as produções artísticas representadas nas imagens gestadas
pelos estudantes. Há, infelizmente, ainda uma visão segregadora e redutora em
relação às imagens trazidas para sala de aula. Porém, precisamos compreender que
os monstros que fazem mal, os vilões que não colaboram com a aprendizagem e os
heróis que mostram uma visão muito utópica da vida estão enraizados na cultura
desses estudantes, reverberando toda materialidade que compõe suas estruturas
emocionais e sociais. É importante salientar que, as materialidades aqui arguidas
fazem parte de tudo que rodeia o ser humano e ele, de alguma forma, entra em
contato com elas por intermédio de suas vias sensoriais (Tátil, visual, gustativo,
olfativo e auditivo).
1050
É por esse canal das vias sensoriais que diversas vezes a arte/educador estimula os
discentes por meio das produções artísticas a pensarem sobre si e sobre o ambiente
que os cerca. Para tanto, abre-se caminhos que os conduzem ao contato com
questões palpáveis, mesmo que seja no campo da imaginação do pensamento ou fora
deles. Afinal, são também realidades que tocam e afligem quem está diante delas,
fazendo assim, mais do que o refletir sobre, o estar fisicamente lá, onde tudo
acontece… Presenciar relações conturbadas, vivenciar experiências de crianças e
adolescentes ou qualquer pessoa que passe por situações de riscos, são alguns
exemplos de questões palpáveis para nossas reflexões, os quais geram imagens.

Para tanto, os diferentes conjuntos de imagens (produções dos estudantes) que


perpassam pela sensibilidade e que se subjetivam, bem como a vivência sociocultural
de cada indivíduo, tece uma rede simbólica de significados. Afinal, como afirma
Wunenburger (2006), o imaginário é inseparável das tangibilidades artísticas,
servindo de caminhos para a construção do sentido de pensamentos e da vida.

A partir dos estudos sobre algumas imagens fecundadas nas aulas de arte que serão
posteriormente apresentadas aqui, propomos nessa escrita algumas reflexões de
natureza teórica e prática, baseadas na teoria do Imaginário de Durand e na
complexidade de Morin (2014), bem como na concepção de experiências enquanto
aquilo que toca, segundo Jorge Larrosa Bondia (2002), e Alain Bergala (2007), que
entendem as produções cinematográficas atreladas ao imaginário e às experiências
do sujeito que assiste. Chevalier & Gheerbrant (1991) compõem parte da pesquisa
clarificando questões atinentes à imagem e aos símbolos. Como parte prática, a partir
das produções dos estudantes coletadas pelos pesquisadores do presente artigo,
toma-se as teorias supracitadas para iluminá-las, verificando que por mais que os
anos passem, a rotatividade dos compostos imagéticos perambula pelos cosmos,
átomos, sentidos, ações e construções do ser humano enquanto fazedor e guardador
desse imaginário que se torna de alguma forma coletivo, de alguma maneira estando
também presente dentro da sala de aula.

Face a isso, objetiva-se por salientar ao leitor o quão importante a leitura de imagens
se torna, —não só por parte de seus estudantes, mas também dos próprios
artes/educadores—, no desenvolvimento de suas aulas e no processo de
ensino/aprendizagem. Ali, na escola, no curso técnico, na faculdade, não se impera

1051
somente os atravessamentos do ensino e da aprendizagem, nem só os temas
advindos do imaginário que o docente pensa ser importante, no entanto, também
todas as provocações feitas pelos discentes por meio das imagens produzidas na
atmosfera escolar.

Como metodologia utilizada, optou-se por aplicar a mitocrítica que segundo Rocha
Pitta ( 2017, p. 39) consiste em “análise de uma obra ou de um texto (inclusive de
histórias de vida)” a partir das repetições da imagem para se identificar os mitemas,
símbolos com significados próprios. Utilizou-se também a “Abordagem Triangular2”
da pesquisadora Ana Mae Barbosa, seguindo-se também o embasamento teórico na
linha de alguns autores ( Durand e Morin). O estudo, análise, contextualização e
produção artística estavam ativas como caminho metodológico presente no campo
da educação básica (Fundamental I) quanto da educação técnica, valorizando as
produções visuais que são construídas em diferentes níveis, cada uma com suas
vicissitudes, certezas, aventuras, gostos e ações. As representações do Pierrô e do
Naruto, que ora se apresentam com delicadeza ao mundo da individualidade dos
estudantes, ora com um ar de tristeza e/ou raiva dos mais vividos, confirmaram a
riqueza do entendimento artístico dos estudantes.

É importante salientar que tais figuras não foram trazidas de maneira arbitrária pelos
docentes/pesquisadores do presente artigo, no entanto elas se inseriram na sala de
aula, trazidas pelos próprios estudantes (imagem do pierrô / Naruto). De tão
expressivas que foram na conformação de suas poéticas e criações, optou-se por
refleti-las na presente pesquisa.

O Pierrô e o Naruto: leituras imagéticas ...

“A princípio considerei a imaginação como potencialidade


humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não
existe pensamento genuíno sem imaginação”.

2 A abordagem Triangular consiste no trabalho de Arte em sala de aula dentro de três eixos, a saver, contextualizar,
fazer e ler reflexivamente.
1052
(BARBOSA, 2014, p. 31).

Pensamos que o imaginário no ambiente escolar nos conduz à mobilização dos


sentidos emocionais que podem ser considerados como uma maneira de ser no
mundo.
Refletindo sobre isso, observamos que os estudantes criam imagens como reflexos
de suas experiências de acordo com características culturais e sociais advindas de
suas realidades que, de forma recorrente, podem ser representadas por meio das
produções visuais.

No caso desta escrita, fizemos uma curadoria das imagens apresentadas em sala e
tentaremos reportar ao leitor o quão importante foi estudá-las por meio da
imagético presente nas produções dos estudantes. Convém conceituar a imagética
seguindo a definição de Jean-Jacques Wunenburger, comentando que “esta designa
um conjunto de imagens ilustrativas de uma realidade, sendo o conteúdo da imagem,
em sua inteireza, já pré-informado pela realidade concreta ou pela ideia.”
(WUNENBURGER, 2007, p.10).

É digno de nota ressaltar que, o sujeito quando está incapaz de experiência humana,
como diria Bondia (2002, p.25), “(...) seria um sujeito firme, forte, impávido,
inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber,
por seu poder e por sua vontade”, diferentemente daquele que acolheu as memórias,
os símbolos, os diversos passantes e se conformou e fez algo a partir deles,
possibilitando também, mergulhar em uma dialética das metáforas. Esse indivíduo
aqui reiterado, citado, esmiuçado, talvez, seria essa pessoa da experiência que, diante
das inúmeras possibilidades propiciadas pelas metáforas do pierrô, personagem um
tanto antigo, mas atemporal, ou bem como, o Naruto, ainda tão enaltecido, se torna
fraco, não mais firme em convicções, sensibilizado, indefinido por seus saberes... Ele
se deixa ser para tornar-se, diluindo e sendo diluído pelas imagéticas desses grandes
personagens, e de quão grande é essa interação e diluição, nasce um terceiro
elemento, o objeto artístico, o novo, o diferente. Rocha Pitta (2017b) aborda sobre a
capacidade que o ser humano tem de ressignificar atos ou objetos, determinando
sentidos específicos para cada um deles, extrapolando seus significados para além

1053
das suas funcionalidades. “Enfim, nada para o ser humano é insignificante. E dar
significado implica entrar no plano do simbólico” (ROCHA PITTA, 2017b, p.18).

Ao mergulhar imagisticamente nas produções dos estudantes, é acessado um


imaginário que pulsa através das linhas, traços, cores e formas, identificando que
cada elemento visual constitui um símbolo que pode ser lido por meio das metáforas
das imagens apresentadas.

Um desenho ou uma pintura é uma imagem completa, podendo ser elaborada,


esmiuçada e investigada na totalidade. Afinal, tudo que precisamos para ler as
produções, está ali aparente, e para tanto, vamos imergir nas metáforas do pierrô
produzido por um estudante que atribui a esse símbolo significados que ultrapassam
sua imagética como uma figura unicamente frágil e sensível.

Além do mais, vamos caminhar pelas aparentes ressonâncias que Naruto representa
para algumas crianças, onde seu produtor, Masashi Kishimoto, se utilizou de diversos
meios artísticos para criar “(...) esses universos maravilhosos”, onde “se pode tornar
visível tudo o que se imaginou”, como diria Bergala (2007, p.48).

Mais um Pierrô...

A figura icônica do Pierrô, personagem que durante muito tempo ocupou um lugar
melancólico no triângulo romântico com a Colombina e o Arlequim. O Pierrô
tristonho, abatido e apaixonado foi ganhando novas roupagens ao longo dos séculos.
O seu simbolismo associado ao trágico sofrimento amoroso é ressignificado neste
contexto frenético dos tempos atuais, onde a desilusão amorosa muitas das vezes é
rapidamente substituída por uma nova experiência apaixonada. Nesta pesquisa a
imagem do pierrô surgiu naturalmente de forma persistente nas produções de um
estudante do curso técnico de artes visuais, despindo o sentido mais profundo desse
símbolo. Enquanto que na escola de ensino Fundamental I, a proposta para as
crianças foi: após a breve explanação da história de Pierrô e dos palhaços atuais, eles
deveriam criar seu próprio personagem, subsidiado por algum sentimento, pensando
no corpo, no figurino, maquiagem, adornos e expressão facial de tal representação.

1054
Começando pelos pequenos estudantes, seus gestos são fugazes, compenetrados:
são olhos, mãos e pensares que viajam por comporem uma produção, que, de fato,
lhe dizem o que sentem sobre um personagem que, já se tornou atemporal

Figura 1: Criança do Fundamental I. Fonte: Acervo fotográfico pessoal, 2022

Já, estudando as produções dos/as estudantes do Curso Técnico em Artes Visuais


(CTAV), baseado na proposta do antropólogo Gilbert Durand, na sua “Teoria do
Imaginário”, reencontramos o simbolismo do Pierrô de maneira diferenciada na
produção imagética de um dos estudantes. A ressignificação simbólica em uma
imagem selecionada com a pregnância da cor azul, marca a presença da figura
carnavalesca do pierrô, que insiste em ocupar outros espaços para além da
festividade da carne (carnaval). Esse símbolo viaja no tempo, nas matérias, nos
imaginários, pelos planetas, no impalpável...

Entendemos aqui que o imaginário “(...) não pode se dissociar da 'natureza'-do


homem material. Ele faz parte do homem, uma parte integrante e vital. Ele contribui
para sua formação prática” (MORIN, 2014, p.247). E nesta formação prática, as
imagens podem ser compreendidas como representações artísticas das tatealidades
pertencentes a esse ser, reverberando como dito anteriormente, suas realidades
emocionais, culturais e sociais.

Com esse intuito, a definição relativa à imagem não está limitada a uma imitação, a
uma cópia do que se vê ou se sente. A metáfora imaginada na configuração do
desenho ou da pintura, por exemplo, nos parece constituir o reflexo da existência de
uma realidade. À vista disso, acreditamos que uma imagem é muito mais do que uma
simples ilustração, mas comporta realidades imaginadas por quem a produziu. Por

1055
vezes, ela revela-se sob a influência de fatores ativados durante sua leitura, ou seja,
uma única imagem pode ser recebida de maneiras diferentes, atribuindo,
consequentemente, emoções, reflexões, sensações e interpretações diversas.
Direciona assim, o nosso entendimento de que uma imagem não é elencada como
uma verdade absoluta. Portanto, a existência da possibilidade de diferentes leituras
de uma mesma imagem pode ser considerada como um elã fenomenológico de
legitimação múltipla. No caso das leituras que iremos apresentar a seguir, atravessam
as diferentes formas de ler os símbolos imagéticos, aproximando-nos da
fenomenologia do imaginário. “Porque uma fenomenologia do imaginário deve antes
de tudo, entregar-se com complacência às imagens[...]” ( DURAND, 2012, p.25)

Figura 2- Pierró em azul- Acervo do


estudante, 2021

Na imagem acima, percebemos um Pierrô com um olhar ébrio e um sorriso um pouco


sarcástico, que nos mostra uma expressão mais debochada. A lágrima que escorre
pela sua face, não parece transmitir tristeza, mas parece transbordar uma
inquietação emocional que foi controlada. Aparenta-nos querer falar algo que
transcende o lugar inocente de alguém que foi traído e abandonado.

Um ponto que também atraiu a atenção foi o uso cromático na paleta azul que nos
direciona para o universo simbólico da cor, completando o sentido emocional da
imagem. Nesta pintura, o estudante “W” usa de forma expressiva o matiz azul e suas
nuances. Eva Heller (2000) apresenta como resultado de sua pesquisa, que as cores
e os sentimentos estão interligados não apenas por uma questão de gosto individual,
mas sim, pelas vivências comuns que o sujeito atravessa desde a infância e que ficam
profundamente enraizadas na comunicação e na mente. Em algumas culturas, “o azul

1056
é a cor do céu, do espírito; no plano psíquico, é a cor do pensamento” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1991, p.280). Está definição remete ao formato e a posição em que a
cabeça do pierrô foi posicionada no centro do suporte pictórico, a qual abordaremos
posteriormente. No texto de Juan-Eduardo Cirlot (1984), o azul é descrito
criteriosamente e percebemos as suas relações íntimas com um jogo dualístico de
sentidos opostos, fato presente na característica da cantora Melanie Adele Martinez
e do simbolismo do pierrô materializado pelo estudante.

Poderíamos aqui fazer uma pausa para pensar sobre a vivência da dor simbolizada
pelo Pierrô? Ou, ocupar o lugar desolado, mesmo que de maneira imaginária, da
desilusão amorosa? E mais ainda, será que nós enquanto sujeitos inseridos em uma
sociedade, não teríamos nós superado alguma vez o abandono, desafiando a si em
um novo romance? Enfim, a produção desse estudante encaminha a imagem do
pierrô para além dessa do palhaço, aquele que simbolicamente, é localizado como a
inversão do rei, “é como o reverso da medalha, o contrário da realeza: a paródia
encarnada.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p. 680). Todos nós temos um pouco
do Pierrô na alma, que pode transgredir as regras do sofrimento romântico e
transcender para as relações do amor.

A posição da cabeça nas pinturas é elemento fundamental na leitura das imagens. As


cabeças preenchem os vazios centralizando-se no espaço do suporte pictórico. Em
direção ao observador, a cabeça coloca-se com toda sua força, “abrange a autoridade
de governar, ordenar, instruir.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p.151).

As cabeças parecem flutuar na imensidão, nos remetendo a um espaço vazio, mas ao


mesmo tempo, ao infinito celeste, ao universo, ao cosmos. Novamente o significado
da cabeça infere-se no direcionamento superior, o céu, o cosmos e o mundo. O
universo do pensamento humano, onde transcreve todas as heranças adquiridas ao
longo da vida, lugar onde cabe a reflexão sobre o “eu” e o “outro”. Local que permite
a entrada de ideias que modificam e enriquecem o conhecimento cultural e espiritual
do sujeito. A cabeça aqui, é “gente”, é “planeta”, mas também, é porta de saída para
muitos devaneios necessários ao amadurecimento da alma na construção do ser
sensível, aquele que é capaz de mudar o mundo que habita. Em algumas culturas a
cabeça simboliza a luz astral; na arte medieval simboliza a mente e a vida espiritual,
por esta razão aparece com grande frequência como tema decorativo. Por outro lado,

1057
em seu diálogo, Timeu, diz Platão: "A cabeça humana é a imagem do mundo". Leblant
ratifica esta ideia assinalando que o crânio como cimo semiesférico do corpo
humano, significa o céu (CIRLOT, 1984, p. 129).

Mais um clone de Naruto...

Além dela, a figura do Pierrô, hoje, em meio aos corredores das escolas de
Fundamental I, salas de aula, blusas, camisetas, cadernos, TVs e brinquedos, também,
lá está a figura atemporal, quiçá, de Naruto, um personagem de mangá e animação
que por vezes se porta como o palhaço da turma, ora como aquela criança adulta,
além do seu tempo, com uma postura crescida e concentrada face às dificuldades
posicionadas diante dele.

Crianças, adolescentes e adultos se jogam nas imagens e nas cores dessas


representações para compor suas produções; enquanto semideuses na criação,
pegam o que mais lhes chamam atenção, costurando, tecendo e abrindo caminhos,
olhares, ilusões e prazeres...

No início da animação Naruto, o jovem estudante órfão em uma escola ninja, tenta
por vezes frustradas fazer os múltiplos clones das sombras, que, seria a capacidade
de se multiplicar em diversos avatares. Em tentativas e outras frustradas, ao final
dessa empreitada ele consegue se projetar em inúmeros clones, se tornando um dos
mais bem dotados em tal peculiaridade.

Face a isso, diante das propostas de Arte, metaforicamente falando, acredita-se que
diversos desses clones estão na sala de aula, subsidiando, balizando e nutrindo o
fazer artístico de crianças e jovens que, incansavelmente, projetam tal personagem
em suas obras visuais, corporais, brincadeiras, vestimentas e dizeres. Seus símbolos,
prazeres, amores e dissabores são fictícios, no entanto sobremaneira importante a
ponto de serem trazidos para o embate entre o material artístico que o estudante
está em face e sua criação, que está em processo mental, incrustado em seu
imaginário, lutando e relutando para tomar a forma física que lhe espera para esse
encontro, deveras, talvez, único.

Além do mais, Naruto, em um constante processo de transmutações até ser elevado


ao estatuto de herói, vivenciando questões que poderíamos considerar ritos de

1058
passagens, saindo da criança marginalizada e alheia a sociedade para quase um
semideus após suas batalhas, momentos de quase morte em enfrentamentos
implacáveis e um renascimento seguido de uma possível gestação embrionária na
busca por seus ancestrais (pai e mãe mortos para salvá-lo), ele instiga em seus
olhares essa “(...) nostalgia por uma renovação de tipo iniciático” (ELIADE, 1976, apud
ARAÚJO & ARAÚJO, 2014, p.65).

Sem uma necessidade (deveras) de uma extensa reflexão sobre as imagens desses
infantes criadores, como segundo momento desta pesquisa, optou-se por colocá-las
abaixo para uma leitura do próprio espectador, não mais submisso somente as ideias
de outrem, no entanto livre para compor suas próprias concepções, ainda mesmo
que haja breves considerações dos pesquisadores.

Experiências, memórias, configurações de imaginários e criações a partir desses


momentos... São muitos os momentos significativos para que se chegue na fase tão
importante da persistência dos encontros entre a obra vista pelo educando e sua
extensão para suas produções artísticas.

O que seriam experiências, senão encontros que transcendem o momento, tomam


conta e se diluem no sujeito que experiencia e o constitui enquanto um novo ser,
transmutando sua existência? A princípio, para Bondia (2002), pensando a
significação dentro de sua língua materna, o espanhol, “o sujeito da experiência seria
algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível, que aquilo
que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas,
deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (BONDIA, 2002, p.24).

Naruto, enquanto um achado na sala de aula, com sua imagética, sua sonoridade,
sejam narrativas orais ou mesmo as músicas, não foi o que passou ou tampouco o
que aconteceu ou tocou, no entanto, tão logo o que passou de fato no estudante
enquanto corpo permeável às informações e experiências externas, foi o que
aconteceu em si mesmo, o que lhe tocou. Diante disso, será que tudo de fato está
organizado para que nada aconteça?

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. Cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos

1059
acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que
nada aconteça (BONDIA, 2002, p.21).

Muitas coisas, sim, estão dessa forma arranjadas, todavia, Naruto, um mangá, uma
animação, venerado em um caderno, ressuscitado em um desenho,
lembrado/reiterado em roupas que involucram corpos em constante devir, foi e está
configurado como produção artística que acontece, expandindo essas experiências
do mundo palpável para o imaterial, o fantástico, bem como o inverso. Ele é a
imaginação brincante, em movimentos, projetada na tela, é um trampolim para o
“desfraldar imaginário”. (MORIN, 2014, p.139).

E imaginários? Não seriam eles santuários de imagens que, de tão importantes se


constituem a partir do arquivamento de memórias experienciadas e, passam a ser
reverenciadas, trazidas para conversas, interlocuções, reflexões e persistências?

Adiante, o que seria um clone, se não uma memória fisicalizada construída a partir
de uma primeira realidade, o objeto clonado? Clone!... Mais um clone de Naruto na
educação.

Efetivamente, a memória enquanto processo atua “(...) evocando na mente do


espectador coisas que dão um sentido pleno e situam melhor cada cena, cada palavra
e cada movimento no palco. Partindo do exemplo mais trivial, a cada momento
precisamos lembrar o que aconteceu nas cenas anteriores”. (MUNSTERBERG, 1970,
p.33).

São essas memórias que constroem o imaginário do indivíduo que de tão cara se
tornam mediante ao estado de contemplação, reflexão e criação.

O estudante abaixo, também um fã de Naruto, o representa como uma tentativa


constante de cópia dos personagens, até então, buscando o virtuosismo que o
personagem lhe propiciara, utilizando técnicas pictóricas distintas para melhor
qualificar seus trabalhos.

1060
Figura 3. Estudante de 10 anos do Fundamental I. Produções feitas com base
em Naruto. Fonte: Acervo fotográfico pessoal, 2022

Essa tentativa de cópia não o desqualifica enquanto pequeno artista, no entanto


evidencia a sua ânsia por persistir os encontros que tivera quando assistia, trazendo
para seu mundo estudantil, artístico, as experiências pregressas, que, sem elas,
acredita-se, seu arcabouço imagético não estaria tão nutrido, ou, estaria em busca
de outras produções audiovisuais que lhe causasse momentos tão marcantes como
essa.

Assistindo determinados episódios, por exemplo, “um minuto bastou para a viagem
de volta ao mundo feita de imagens maravilhosas e fantásticas; e, mesmo assim,
vivemos com ele todos os sonhos e os êxtases” (MUNSTERBERG, 1970, p.37). E, diante
disso, mais uma vez, na persistência desses encontros, eles, nós, todos por quem são
tocados, criam suas obras, entendendo que a produção de sons e imagens “(...) ao
invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece às da mente (MUNSTERBERG,
1970, p.35), em um estado de não cessação, mas contínua, para além do assistir.

Essas fases, momentos, sensações, buscas, seriam maneiras de materializar,


tomando as palavras de Morin (2014, p.139) “(...) as necessidades, que são aquelas de
todo imaginário, de todo devaneio, de toda magia, de toda estética; aquelas que a
vida prática não pode satisfazer”, aquela que nos consome em vontades de “(...) se

1061
evadir, de se perder em outras paragens, de esquecer seus limites, de participar do
mundo”, fugindo e se encontrando consigo mesmo.

E mais, é nesse sair e se encontrar em outro mundo que o estudante, o aventureiro


das imagens e sons, o olhador “sai de sua vida habitual e de seu território familiar”,
em um universo que “(...) não parece mais com nada ao que se pode ver na realidade
de todos os dias” (BERGALA, 2007, p.48), encontrando o que seu inconsciente lhe
clama.

Considerações finais

Em linhas gerais, considera-se um ponto interessante nos estudos dessas imagens a


perceptibilidade em como a forma das cabeças e demais formas são apresentadas ao
observador, com as faces, por vezes, livres do corpo, redondas, flutuantes,
direcionando-as à relação simbólica com o cosmos, o qual identificamos estar bem
próximo à simbologia do arquétipo de Júpiter, dono do céu. Esse personagem,
assume o controle das próprias ações e estabelece o poder de dizer o que pensam, o
que sentem. Chevalier e Gheerbrant (1991), no texto “Dicionário de Símbolos”,
abordam os vários significados para Júpiter e apontam-no para o esquema, repetitivo
de enriquecimento vital, inseparável do estado de voracidade, de confiança, de
generosidade, de otimismo, de altruísmo, de paz e de felicidade, que este arquétipo
possui, contribuindo para alimentar a saúde e para amadurecer a evolução dos seres.

Já nas imagens de Naruto produzidas pelas crianças, evidenciam o quanto o bem e o


mal fascinam os olhares em suas produções; não se escolhe o herói que é bom ou
ruim, mas tão logo aquele que tem poderes, símbolos, ações e formas mais legais,
interessantes, que chamam mais a atenção, conduzindo esses corpos brincantes a
deambularem pelas imagéticas sem uma cessação aparente.

Além do mais, por intermédio das fotografias, sejam do professor (Fundamental I),
sejam dos próprios estudantes (ensino Técnico), se notou o quanto elas são
importantes no processo de ensino e revisitação das propostas docentes e atividades
discentes, trazendo a memória momentos e produções que manifestam símbolos e
incitam os olhares a ler o que de tão importante foram os momentos das aulas.

Não são mais somente os livros ou o que os professores trazem que balizam criações,
no entanto, muito mais do que está externo a sala de aula dialoga nesses momentos,
devendo eles estarem atentos para que usufruam desses diálogos e possibilitem cada
1062
vez mais criações e proposições discentes plenas e imbuídas do presente e da
ancestralidade que vicejam e protestam para viverem na realidade.

Referências

ARAÚJO, Alberto Filipe; ARAÚJO, José Machado. Iniciação e imaginário educacional nas
aventuras de Pinóquio. Revista Educação e Emancipação, [S. l.], p. 35–56, 2014.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos
tempos. São Paulo: Perspectiva, 2014.
BERGALA, Alain. Mais où je suis ? Territoires inconnus. Saint-Etienne, France : Actes Sud,
2007.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Universidade
de Barcelona, Espanha: 2002.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Editora Morais. São Paulo, 1984.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números) 5 ed.- Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
HILLMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Tradução de Gustavo Barcellos.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. (Coleção Reflexões Junguianas) Título original: An inquiry into
image: and other essays.
MORIN, Edgard. O cinema ou o homem imaginário: ensaios de antropologia sociológica.
Tradução de Luciano Loprete. São Paulo: Editora É Realizações, 2014.
MUNSTERBERG, Hugo. A memória e a imaginação. 1970. In A experiência do cinema.
XAVIER, Ismail (Org). 1ªed. Rio de janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Imaginário serial: compartilhamento de
arquétipos. RuMoRes, [S. l.], v. 11, n. 22, p. 27-40, 2017a.
______________________PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do
imaginário de Gilbert Durand. 2. ed. Curitiba: CRV, 2017b.
SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Pedagogia do imaginário e função imaginante:
redefinindo o sentido da educação. Olhar de Professor. [S. l.], v. 9, n. 2, 2009.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo:
Loyola, 2007.

Mini Currículos

Isac dos Santos Pereira


Doutorando em Comunicação Audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi, com Bolsa
Institucional por Mérito Acadêmico e com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

1063
Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES). Possui Mestrado (2020) em Comunicação
Audiovisual com pesquisa sobre a animação Naruto na sala de aula e especialização em
Neurociências aplicada a Educação (2018) pela Universidade Anhembi Morumbi.
Especialização em Arte/Educação: teoria e prática (2015) pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo e graduação em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de
Artes (2013).E-mail: isacsantos02@hotmail.com

Analine Inês de Carvalho Santos


Mestranda em Artes Visuais pela UFPB / UFPE, especialista em Metodologia do Ensino de
Artes (UNINTER) e Recursos Humanos para a Educação (FAFIRE). Professora da Educação
Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Pernambuco, em exercício provisório no IFB / Campus Brasília, Membro do Grupo
Interdisciplinar Imaginário da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE):analine.santos@olinda.ifpe.edu.br ou analine.santos@ifb.edu.br

1064
DINÂMICAS DE PODER: O ENSINO DA ARTE SUBORDINADO ÀS
TECNOLOGIAS DE GOVERNO E A IMAGEM COMO VEÍCULO DO DISCURSO

POWER DYNAMICS: THE TEACHING OF ART SUBORDINATED TO GOVERNMENT


TECHNOLOGIES AND IMAGE AS SPEECH DEVICE

Isabele Maria Geraldo Barbosa


Universidade Federal de Goiás – Brasil

Resumo

Este artigo apresenta um registro fotográfico no qual pode ser observado como as dinâmicas
de poder porventura operam por meio de tecnologias de governo, tendo como principal
ferramenta a imagem enquanto veículo do discurso. A partir do exemplo de um instrumento
inserido num contexto de ensino de arte, será possível levantar questões no ensejo de
apontar recursos condutores de condutas e refletir acerca da necessidade da adoção de uma
pedagogia crítica preocupada com o poder das imagens. O presente estudo adota como
referencial passagens do itinerário teórico de autores como Michel Foucault e Jacques
Rancière. O caminho metodológico busca inter-relacionar temas relevantes à Cultura Visual
de forma a triangular marcos orientadores sobre o tema e instigar o debate, inclusive os que
por acaso tragam impressões diversas às problematizações levantadas no decorrer da
análise.

Palavras-chave: poder, tecnologias de governo, imagem, cultura visual.

Abstract

This article presents a photographic record in which it may be observed how the dynamics
of power perhaps operate through government technologies, having the image as a vehicle
of discourse as the main tool. From the example of an instrument inserted in an art teaching
context, it will be possible to raise questions in order to point out resources that conduct
behaviors and reflect on the need to adopt a critical pedagogy concerned with the power of
images. The present study adopts passages from the theoretical itinerary of authors such as
Michel Foucault and Jacques Rancière as a reference. The methodological path seeks to
inter-relate themes relevant to Visual Culture in order to triangulate guiding landmarks on
the theme and instigate debate, including those that may bring different impressions to the
problematizations raised during the analysis.

Keywords: power, government technologies, image, visual culture.

1065
O contexto
Figura 1 - Instrutora de um curso de artesanato ao lado de um banner intitulado “Contrato Psicológico”.

Fonte: R.M.I.A.1, instrutora do curso, 2022.

O ambiente de ensino, em seus mais diversos contextos, pode ser considerado como
um espaço de disciplinamento, normatização e autoritarismo. Sinal disso é o que
pode estar ocorrendo na cena capturada na fotografia acima.

Trata-se de um ambiente onde está sendo praticado o ensino de arte, mais


precisamente, o ensino de bordado por meio de um curso de artesanato. Porém,
antes que qualquer conclusão seja formulada, faz-se necessário estabelecer o
contexto tratado nesta situação.

Presente no estado de Goiás desde 1993, o Senar - Serviço Nacional de Aprendizagem


Rural - disponibiliza cursos gratuitos em diversos segmentos, especialmente

1
Será utilizada a sigla R.M.I.A. para preservar a identidade da instrutora do curso, que gentilmente cedeu a imagem.
1066
voltados para o público do meio rural. É uma entidade de direito privado, paraestatal2,
mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil - CNA.

As turmas são formadas conforme demanda, cujo interesse pode ser demonstrado
com o auxílio do website3 da instituição, que informa o contato telefônico do agente
mobilizador, ou presencialmente, mediante visita ao sindicato rural mais próximo,
que também informará maneiras de se comunicar com o responsável pela
mobilização e formação de turmas.

As aulas dos cursos são ministradas em parceria com sindicatos rurais ou outra
entidade que se disponha a ceder um espaço que sirva de sala de aula. É frequente o
uso de barracões, salões paroquiais ou mesmo a própria residência de algum aluno
interessado.

Nota-se um perfil majoritariamente feminino, composto por cidadãs de variadas


faixas etárias que procuram alcançar independência financeira por meio das práticas
aprendidas durante o curso.

Segundo a própria instituição, sua metodologia se dá com o objetivo de trabalhar a


autonomia, criatividade, cultura local e as capacidades criativa e produtiva como
forma de trabalho, contribuindo assim com o desenvolvimento socioeconômico e o
empreendedorismo do indivíduo.

Além disso, coloca o método de ensino como participativo ou ativo-participativo,


cuja definição seria a participação de quem aprende e a valorização de suas
experiências, reproduzindo objetos que chegam até este aluno por meio da tradição
familiar ou criando novos de acordo com suas necessidades.

Aponta ainda seus objetivos educacionais como: cognitivo (reprodução do que foi
aprendido), afetivo (grau de aceitação ou rejeição) e psicomotor (habilidade motora).

2
As entidades paraestatais são entidades fomentadas pelo Estado, embora não façam parte da administração
pública indireta. A elas compete o desenvolvimento de tarefas de interesse social, razão pela qual se justifica o
fomento pelo Poder Público, que em contrapartida deve exercer certo controle. Fonte: encurtador.com.br/puwLY
Acesso em: 27 jul 2022
3
https://sistemafaeg.com.br/senar/cursos-e-treinamentos/artesanato
1067
No caso específico do curso registrado na fotografia - Bordado em ponto cruz e
vagonite -, a carga horária total é de 32 horas, com 12 vagas disponíveis e requisitos
de idade a partir de 16 anos e mínimo de 8 alunos pré-inscritos.

O veículo do discurso

Conforme consta na fotografia, é possível observar a presença de uma peça gráfica -


banner4 - intitulada Contrato Psicológico. Nela se fazem presentes informações
como: o logotipo do Senar, nome do treinamento, nome do instrutor, período de
realização, carga horária, município e horário a ser cumprido. Além disso, constam
critérios de certificação, iniciativas para atingir resultados satisfatórios e
expectativas.

Dentro dos critérios de certificação estão listados: 80% de presença e execução dos
trabalhos propostos. Entre as iniciativas para atingir resultados satisfatórios é
possível observar os seguintes itens: atenção, pontualidade, capricho e organização.
Por fim, entre as expectativas estão: aprender a bordar, ganhar dinheiro, socializar e
fazer novos amigos.

Os contratos psicológicos podem referir-se a elementos concretos - pagamento,


condições de trabalho - e abstratos - segurança, desafios - que são interpretados,
no plano individual, pela relação que ocorre entre empregador e empregado (GUZZO
e NOONAN, 1994).

Surgem como uma alternativa à gestão das relações tradicionais de trabalho, bem
como uma resposta às novas configurações organizacionais, porque ajudam a
descrever e a entender as mudanças vividas na relação empregador e empregado
(Arnold, 1996; Coyle-Shapiro e Kessler, 2000).

Para Shore e Tetrick (1994), o contrato psicológico promove a redução da


insegurança na relação de trabalho porque nem todos os seus aspectos são
abrangidos pelos contratos formais.

4
Palavra inglesa com significado de "bandeira". Nas artes gráficas é uma espécie de cartaz confeccionado em lona e
em formatos consideravelmente maiores que os convencionais em papel. Usualmente é utilizado como item de
identidade visual, divulgação ou informativo.
1068
No caso em questão, não se trata de uma relação empregatícia, visto que o objetivo
da instituição não é contratar os alunos de seus cursos, e sim, contribuir com o
desenvolvimento socioeconômico dos indivíduos.

Sendo assim, o que leva a instituição a lançar mão de um instrumento como o


contrato psicológico por meio de uma peça gráfica presente de forma notória
durante todo o decorrer do curso? Esta peça gráfica, enquanto imagem, estaria
servindo como componente de condução de condutas? Qual o seu papel no contexto
do ensino?

A imagem portadora do discurso

A linguagem é o código usado para estabelecer comunicação. Trata-se de um sistema


de signos utilizado para transmitir informações, ideias, pensamentos e desejos. Este
código deve ser entendido por seus intervenientes durante o processo comunicativo,
podendo ser composto, por exemplo, por palavras, imagens e sinais.

Todo o universo visível é um grande acúmulo de signos, cabendo a cada indivíduo


atribuir significado e valor, transformando-o em novas visualidades, de acordo com
seus próprios repertórios, contextos e subjetividades.

Nesse sentido, é válido pensar nas experiências visuais como indícios de práticas
sociais, as quais dependem e têm relação com diversos significados. E nesse processo
de complexidade social operam discursos que podem ser verbais, escritos ou visuais.

Mirzoeff afirma que através de uma série de categorias de subjetividade visual, em


que pontos de intersecção entre visibilidade e poder social são evidenciadas, há uma
variedade de modos de visualidade.

Sendo assim, é interessante refletir sobre o contexto da cena retratada na fotografia


e, em especial, como uma peça gráfica estrategicamente inserida no ambiente pode
ser portadora e mediadora de uma posição discursiva disciplinadora e normativa.

Por se tratar de uma peça que ocupa espaço de destaque no ambiente de ensino, faz-
se imaginar que os alunos a notem, dêem atenção e absorvam sua mensagem. Porém,
o que cada um decodifica a partir disso e de que forma passa a conduzir seu
comportamento de acordo com a mensagem implícita é o que causa maior interesse.

1069
Partindo do princípio de que cada um dos alunos que se inscreveu no curso almeja
sua conclusão, é possível cogitar a possibilidade de acatamento das diretrizes
descritas na peça gráfica e o sucesso do dispositivo enquanto instrumento
pedagógico.

A imagem disciplinadora

Em se tratando de escolas convencionais, a presença do uniforme, por exemplo,


implica na sensação de pertencimento à instituição e na formação da própria
imagem, levantando questões como a manutenção de um comportamento respeitoso
e, consequentemente, estabelecendo a atenção com cuidados como a higiene e a
aparência.

Trata-se de um investimento cultural, no qual a própria sociedade procura aferrar


uma identidade ao indivíduo. E nesta construção de identidade, por meio também de
tecnologias de governo, o processo se desenvolve até o momento em que o próprio
sujeito passa a se auto regular, exercendo sobre si mesmo tecnologias de auto
disciplinamento e autogoverno.

Partindo do princípio de que o sujeito que procura o curso de artesanato


provavelmente já esteve em contato com esse processo de fixação de identidade e
cumprimento de certas regras, é válido retomar o questionamento sobre qual seria
a necessidade do “Contrato Psicológico” exibido no banner.

E é neste momento que um detalhe chama a atenção: não existe exigência de


escolaridade mínima como requisito para se tornar aluno do curso. A única
determinação é de que o aluno tenha idade mínima de 16 anos.

Ou seja, existe a possibilidade de o sujeito ainda não ter sido submetido aos
regramentos presentes usualmente nos ambientes escolares e daí então a
necessidade de tal contrato.

Em conversa informal com a atual coordenadora dos cursos de artesanato, foi


informado que o “Contrato Psicológico” vem sendo utilizado desde o ano de 2007, a
princípio em forma de documento impresso em papel, porém, dada a pouca adesão,
há alguns anos passou-se a utilizar o banner, que além de ser reaproveitável - os
campos de preenchimento dos dados podem ser apagados e substituídos - ainda

1070
pode ser posicionado de maneira visível o tempo todo diante dos alunos como
maneira de lembrá-los das diretrizes. Ao ser questionada sobre a iniciativa de
implementação de tal contrato, a coordenadora não soube afirmar a razão.

Sendo assim, é possível cogitar que a instituição - que neste caso não conta com a
estrutura habitual de ensino, com salas de aula, uniforme para os alunos, etc. - tenha
a intenção de se aproximar das condutas praticadas em outras entidades ligadas à
educação, seja por tradição, senso comum ou mesmo alegação da necessidade de se
estabelecer regras de conduta, visto que, existe inclusive a possibilidade de alguns
alunos não terem tido a convivência com este tipo de instância durante sua formação
escolar, ficando alheios aos disciplinamentos descritos anteriormente.

Desta forma, é possível perceber um processo de escolarização do corpo, mesmo em


ambientes considerados fora do padrão escolar. Aprendemos a treinar nossos
sentidos de forma a moldar comportamentos e gestos de acordo com rótulos que a
própria sociedade impõe, estabelecendo identidades sociais e reproduzindo práticas
hegemônicas que ao mesmo tempo subordinam nossas identidades particulares.

Os mecanismos disciplinares

"Os mecanismos disciplinares são, portanto, antigos, mas existiam em


estado isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII, quando o
poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão
dos homens.” (FOUCAULT, 1979, p. 60).

À primeira vista, as palavras de Foucault podem engendrar um impulso por formular


uma opinião no sentido de que o disciplinamento, enquanto ferramenta de poder,
dá-se de uma forma negativa, como um instrumento de dominação destinado a
suprimir os comportamentos destoantes. Porém, segundo o próprio autor:

"Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por


meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à
maneira de um grande super−ego, se apenas se exercesse de um modo
negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos
positivos a nível do desejo − como se começa a conhecer − e também a
nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi
possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto
de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o

1071
corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico.” (FOUCAULT,
1979, p. 84).

Diante disso, a reflexão pode ir além: a disciplinarização não precisa ser


necessariamente opressora, aliás, pode inclusive estar a serviço do saber. Em outras
palavras, não haveria relação de poder que não fosse acompanhada de saber. Nesse
sentido, seria possível agir produtivamente contra aquilo que não nos satisfaz e criar
novas formas de desenhar o mundo onde vivemos.

No que diz respeito à escola, Foucault (1987) chegou a defini-la como uma “instituição
de sequestro”, que obrigatoriamente retira indivíduos do espaço familiar para moldar
suas condutas e formatar seus pensamentos.

Porém, com a chegada da Idade Moderna, a escola deixa de ser local de martírio -
inclusive corporal - para se tornar um lugar de formação de “corpos dóceis”. Ao invés
de enfraquecer os corpos por meio do suplício, a intenção deste ponto em diante é,
por meio da docilização, torná-los produtivos.

Além disso, por intermédio do panoptismo - cuja particularidade é o poder na forma


de vigilância contínua com intuito de controle e correção - tende-se à internalização
da disciplina por meio de redes invisíveis, dando a aparência de naturalidade ao
governo dos corpos.

Nas palavras de Foucault, “[...] está submetido a um campo de visibilidade, e sabe


disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar
espontaneamente sobre si mesmo; [...] torna-se o princípio de sua própria sujeição”
(FOUCAULT, 1987, p. 192)

Outro fator que deve ser levantado é o da segurança enquanto dispositivo de


governo, servindo de freio e regulação das populações. Em outras palavras, corpos
produtivos cuja seguridade social é minimamente garantida - acesso a direitos, renda
mínima, políticas sanitárias, etc. - tendem a uma postura domesticada, minando as
práticas de enfrentamento ao governo.

Neste sentido, é possível observar que os indivíduos passam a governar a si mesmos


a partir das técnicas de dominação, ou seja, passam a seguir conselhos como os de
saúde pública, por exemplo. O “cuidar de si” passa a ser adotado, trazendo

1072
longevidade e ao mesmo tempo estendendo o tempo de contribuição daquele corpo
ao Estado.

Dadas as circunstâncias, faz-se admissível levantar a relação com o contexto


presente na fotografia analisada neste texto. Partindo do princípio de que se trata de
um momento capturado durante um curso gratuito ofertado por uma entidade
paraestatal no intuito de levar promoção social à população do meio rural5, é possível
deferir sua função enquanto mecanismo de exercício de poder, governabilidade e de
construção de corpos dóceis e produtivos.

Considerações finais

Levando em conta as questões levantadas até aqui, fica a oportunidade de reflexão


acerca das práticas de poder, sua aplicação nas mais diversas conjunturas - inclusive
no ensino de arte praticado no meio rural - e de que maneira os corpos são
conduzidos graças a estratégias como a seguridade social, que ampara a subsistência
do indivíduo no propósito de manter uma população produtiva e mantenedora do
próprio Estado.

Não se trata apenas da imposição de leis que proíbem comportamentos e atitudes,


mas sim da utilização de práticas doutrinadoras que prescrevem condutas, dando
forma a um governo multifacetado e desprendido das práticas de soberania.

Além disso, é possível descortinar um contexto no qual existe um discurso em que a


imagem - materializada através de uma peça gráfica corriqueira - é utilizada como
veículo de irradiação de um poder disciplinador resignado, porém sorrateiro.

E situações similares se dão cotidianamente em meio às diversas visualidades


derivadas das imagens, seja numa abordagem de aspectos de vigilância, espetáculo,
prazer, controle ou manipulação, tornando-se significativo levantar a importância da
compreensão crítica destes processos, suas causas e consequências, trazendo um

5
A Promoção Social é um conjunto de atividades com enfoque educativo que possibilita ao trabalhador, ao produtor
rural e às suas famílias a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais e
mudanças de atitudes, favorecendo, assim, uma melhor qualidade de vida e participação na comunidade rural.
Fonte: encurtador.com.br/ehpRV Acesso em: 27 jul 2022
1073
olhar seletivo e emancipatório sempre que necessário nas diferentes realidades do
mundo.

Ademais, é possível trazer uma crítica à Cultura Visual enquanto estratégia de


intervenção ética e social por meio das imagens, visto que, por meio de signos - sejam
eles gráficos ou linguísticos - nota-se a intenção de formatar o sujeito.

A imagem pode forjar realidades que somente depois de constantes e insistentes


olhares, aliados à disposição dos sentidos em captar aquilo que não vemos na
superfície, pode nos levar a reconhecer outros conteúdos que ultrapassam aquela
primeira impressão que se tentou estabelecer.

Vale lembrar também que Rancière aponta que o desejar da imagem pode ser o
desejo dos fabricadores de imagens “porque as imagens, elas mesmas, não querem
nada” (RANCIÈRE, 2015, p. 200).

Isto posto, seria possível inclusive afirmar que a potência dada às imagens vem da
capacidade de quem as vê de “lhes emprestar ou de lhes subtrair ao mesmo tempo
vida e vontade.” (RANCIÈRE, 2015, p. 200).

Outrossim, julgo pertinentes as palavras de Martins quando afirma que:

"Afinal, imagens, concepções estéticas e obras de arte não são neutras,


inocentes, mas integram as redes de tensões inerentes às relações de
poder das estruturas sociais em que são realizadas, circulam, e
articulam sentidos. Desse modo, a eleição de certas imagens,
concepções estéticas e obras de arte para integrarem os conteúdos
veiculados na educação escolar, resulta da interação de diversos
fatores, por trás dos quais prevalecem interesses os mais diversos,
econômicos, políticos, dentre outros." (MARTINS, 2008, p. 99).

Fica o vislumbre de que vivemos em um Estado Pedagógico, “no qual reside a


capacidade de multiplicar os modos, as práticas e os espaços que estimulam que o
sujeito incida sobre si, tornando-se um cidadão desejável.” (ANDRADE, 2016, p. 51).

Isto posto, resta o convite a considerar-se os sentidos produzidos pelos sujeitos que
vivenciaram a cena retratada no registro fotográfico e a refletir acerca da dimensão
do poder das imagens enquanto instrumento de tentativa de condução de condutas
e governo dos corpos.

1074
Referências

ANDRADE, Paula Deporte de. "Pedagogias culturais: uma cartografia das (re) invenções do
conceito." Tese de Doutorado, 2016. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/143723 Acesso em: 17 jul. 2022.
ARNOLD, J. The psychological contract: a concept in need of closer scrutiny? European
Journal of Work and Organizational Psychology, v.5, n.4, p.511-520, 1996. [DOI:
10.1080/13594329608414876]
COYLE-SHAPIRO, J.; KESSLER, I. Consequences of the psychological contract for the
employment relationship: a large scale survey. Journal of Management Studies, v.37, n.7,
p.903-930, Nov. 2000. [DOI: 10.1111/1467-6486.00210]
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
_________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad. Lígia M.
Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
GUZZO, R.A.; NOONAN, K.A. Human resource practices as communications and the
psychological contract. Human Resource Management Journal, v.33, n.3, p.447-462, 1994.
[DOI: 10.1002/hrm.3930330311]
MARTINS, Alice Fátima. Conflitos e acordos de cooperação nos trânsitos das visualidades
na educação escolar. In: MARTINS, Raimundo (org.) VISUALIDADE E EDUCAÇÃO. Coleção
Desenredos, 2008, p. 99.
RANCIÈRE, J As imagens querem realmente viver? In ALLOA, E (org.) Pensar a Imagem.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015 pp. 191 204.
SHORE, L.M.; TETRICK, L.E. The psychological contract as an explanatory framework in the
employment relationship. In: COOPER, C.L.; ROUSSEAU, D.M. Trends in organizational
behavior New York: Wiley, 1994. p.91-103.

Mini Currículo

Isabele Maria Geraldo Barbosa


Graduada em Design Gráfico pela Universidade de Franca - SP, Especialista em Design Estratégico e
Mestranda em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. E-mail:
isabelebarbosa@discente.ufg.br

1075
A REBELIÃO DOS ENCONTROS POÉTICOS NA POESIA SLAM

THE REBELLION OF POETIC ENCOUNTERS IN SLAM POETRY

Jossier Sales Boleão


PPGACV/UFG, Brasil

Resumo

Este texto é um recorte da discussão que faço em minha pesquisa sobre a poesia slam.
Abordo no desenvolver das ideias, a perspectiva de rebelião dos encontros, tendo em vista
que esse tipo de poesia é feito por comunidades de slams e estas se mobilizam para eventos
poéticos. São encontros entre público e artistas configurados em levantes, cujos versos
apresentados à apreciação da plateia (em variados lugares, como praças, bosques, teatros ou
casas de arte e cultura) percorrem a realidade dos sujeitos e suas localidades de origem. No
entanto, destaco ao longo do texto também a dimensão pedagógica desses encontros em
estado de rebelião, por meio do exercício de novas formas de olhar as imagens intoleráveis
– configuradas como os próprios artistas, seus corpos e trajetórias individuais e coletivas.
Além dessa dimensão, destaco dois levantes, sendo o primeiro relacionado à contrapoesia e
o outro à contravisualidade e contranarrativa, pois fazem parte fundante do que
compreendo como poeta-poemas. Por fim, faço a relação da proposição de percursos com
o exercício sensível de uma poética da solidariedade percorrendo os encontros que
denunciam e tencionam outras formas de estar, ver e viver o mundo.

Palavras-chave: Poesia slam. Contravisualidade. Contrapoesia. Pedagogia dos encontros.

Abstract

This text is an excerpt of the discussion that I do in my research on slam poetry. I approach
the development of ideas, the perspective of rebellion of the meetings, considering that this
type of poetry is made by slam communities and these are mobilized for poetic events. They
are meetings between the public and artists configured in uprisings, whose verses presented
to the audience (in various places, such as squares, woods, theaters or art and culture
houses) cover the reality of the subjects and their places of origin. However, throughout the
text I also highlight the pedagogical dimension of these meetings in a state of rebellion,
through the exercise of new ways of looking at intolerable images – configured as the artists
themselves, their bodies and individual and collective trajectories. In addition to this
dimension, I highlight two uprisings, the first being related to counterpoetry and the other
to countervisuality and counternarrative, as they are a founding part of what I understand
as a poet-poem. Finally, I relate the proposition of paths with the sensitive exercise of a

1076
poetics of solidarity, covering the encounters that denounce and intend other ways of being,
seeing and living the world.

Keywords: Slam poetry. Countervisuality. Counterpoetry. Pedagogy of meetings.

Contextualização sobre a poesia slam

No início dos anos de 1980, surgiu nos Estados Unidos um novo jeito de fazer e
apreciar poesia. Essa movimentação em torno de fazer com que a poesia fosse
embebida de mais energia vital e pudesse alcançar as pessoas, desde o processo
criativo, até a fruição, desencadeou a mobilização, nas décadas seguintes, de artistas
de diversos países diante da possibilidade de apresentações poéticas enérgicas e
potentes, em contato direto e imediato com o público.

A poesia slam se tornou um forte movimento não apenas poético, mas social à medida
em que foi aglutinando sujeitos e pautas de reivindicação históricas no campo étnico,
racial, ambiental e econômico. Sendo que a articulação dos mais variados grupos de
slams transformou esses sujeitos em comunidades poéticas.

No ano de 1984, Marc Smith, juntamente com o grupo Chicago Poetry Ensemble criou
um show-cabaré, em um bar frequentado pela classe operária de Chicago, nos
Estados Unidos. O show fomentava atrações artísticas diversas e, dentre elas, a
apresentação de poetas que liam para um público pouco cativado pela forma com
que os poemas eram lidos. Desse lugar emergiu o show chamado Uptown Poetry
Slam, considerado o primeiro poetry slam.

Smith e Kraynak (2009) provocaram o movimento poético que, ao longo dos anos,
ganhou outras cidades e, atualmente, está em diversos países, com o objetivo de
renovar constantemente o jeito de fazer e ser poesia. A pulsação da poesia se conjuga
em pauta poético-política de pessoas e grupos que vivenciam as demandas latentes
de suas comunidades e identidades. Ainda, de acordo com os autores, os slams são
eventos de poesia cativantes para o público. Mesmo que não sejam em todas as
ocasiões competitivas, a perspectiva dos slams é de um jogo entre os artistas, os
poemas e o público.

Slams são concretizados por disputas entre poetas com seus poemas autorais. A
duração média é em torno de três minutos para cada poema, sem a utilização de
1077
adereços cênicos. Porém, as regras variam de acordo com a concepção de cada grupo
de slam. Há exemplos de poemas com apenas trinta ou dez segundos de duração, ou
apresentações inspiradas em campeonatos de futebol, feita a disputa por times. O
Brasil possui uma diversidade dessas competições em todas as regiões, o que
caracteriza a própria dimensão territorial e cultural do país.

O termo poetry slam significa, em tradução literal, “batida de poesia”. Trata-se de


uma competição de poetas, onde eles realizam um jogo com seus poemas autorais
para o público. Geralmente, em na primeira rodada, uma equipe de jurados escolhida
entre a plateia é quem aprecia e dá as notas (de zero a dez) classificatórias para a fase
final e, por fim, os participantes consagram aquele poeta que melhor jogou os versos
e, de diversas maneiras, atingiu a assembleia. Nas palavras de Smith a

Poesia slam (como a introdução avisa) é uma palavra circo, uma escola,
uma reunião urbana, um playground, uma arena de esportes, um
templo, um show burlesco, uma revelação, uma gargalhada em massa,
solo sagrado e, possivelmente, todos estes misturados. Poesia slam é
poesia performática, o casamento de um texto com a apresentação
artística de palavras poéticas no palco com um público que tem
permissão para responder e informar o artista se ele ou ela está se
comunicando de forma eficaz. (SMITH e KRAYNAK, 2009, p. 28)

A dimensão ampla da poesia slam faz com que as disputas poéticas agreguem
elementos híbridos importantes que caracterizam e potencializam a sua existência –
e seu êxito - a partir da formação de comunidades em seu entorno. Nascimento
(2019) descreve a importância desses espaços como plataformas que canalizam e
propagam outros olhares. Em suas palavras,

O poetry slam é reconhecidamente um movimento social, cultural e


artístico que tem sido utilizado como plataforma para criar espaços nos
quais a manifestação da livre expressão poética, do livre pensamento e
a coexistência em meio às diferenças são experienciados como prática
de cidadania. (NASCIMENTO, 2019, p. 176)

A competição entre poetas na arena do jogo poético se dá, principalmente, na


formação de assembleias. Assim, o artista slammer tem uma responsabilidade com
seu verso para dar vida a ele e fazê-lo ressoar com seus diversos “ruídos” necessários
ao trajeto. Por sua vez, os “ruídos” cumprem o objetivo de provocar deslocamentos

1078
no público. Há nesses ruídos a marca digital de cada poeta, poema, a localização
geográfica e sociocultural de cada verso. Isto faz com que a expressão poética habite
outros que vivenciam e experienciam a cidade de maneira geral e particular.

Mesmo com as naturais transformações no percurso da poesia slam, desde os


meados de 1980, as competições permaneceram por causa da força da mensagem
por democratização da poesia, mas também dos temas que foram acumulando e
dando maior potência ao movimento poético. Desde a sua criação até a circulação e
consumo, ela continua atuando no direcionamento de novos grupos e reformulando
os percursos para que novas trajetórias e narrativas sejam abarcadas.

Atualmente, existem no Brasil diversos grupos espalhados pelo território nacional.


Desde 2008, o movimento tem crescido muito e dentre os grupos de poesia slam
catalogados pelo SLAM BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, há mais de 200
grupos espalhados pelo país. Entretanto, o número pode ser mais expressivo, pois
muitos grupos se organizam espontaneamente, a partir de sujeitos culturais locais e
não passam pelo circuito de classificatórias que elegem o representante brasileiro
para a Copa Internacional. Nem todos os estados possuem a organização de
competição estadual e isso faz com que não se tenha exatidão no número de slams
no Brasil. Além disso, a uma lacuna, pois desde o ano de 2020, muitos grupos
deixaram de existir por causa da pandemia de covid-19.

Dito isto, destaco que a presente discussão perpassa por uma pesquisa em
andamento, cujos pressupostos se baseiam em um olhar para a poesia slam, pelas
lentes da cultura visual. Nesse sentido, o material das reflexões aqui apresentado é
resultado de uma metodologia que tem recorrido a diversos esquemas para dialogar
com a diversidade dos slams.

As percepções que perpassam por estas articulações dizem respeito a um conjunto


de material de campo, de natureza híbrida. Seja este material ancorado em
entrevistas direcionadas, em veículos audiovisuais ou escritos, trabalho de campo
presencial e remoto, além da contribuição teórica de sujeitos que, de fato, vivenciam
a poesia slam pelo corpo, pela voz e pelas apresentações, assim como na formação
das comunidades de slams.

1079
Levante um: a contrapoesia

Se pensarmos na tradição da produção e circulação da poesia, ela é amparada por


relações de poder/opressão evidentes. A ideia de transformar leituras de poemas
sem paixão, em jogos entre artista e público coloca os slams na centralidade de um
projeto duradouro e consistente. Ademais, as comunidades de poesia slam
reivindicam um novo lugar dos quais foram excluídas do “poder da poesia”, por esta
estar vinculada à tradição e ao cânone. Entretanto, a reivindicatória não é para
ocupar o lugar do poder de uma poesia excludente; trata-se de uma ocupação
produtiva e transformadora que promove o rompimento do poder pela
democratização, participação, equidade e liberdade.

A contrapoesia1 não é o manifesto em desfavor da obra poética, do poema e da figura


do poeta. Está vinculada à insurgência de novos trajetos alicerçados na coletividade.
São as comunidades que contornam a movimentação para a existência da
contrapoesia. As estratégias de democratização perpassam pela reconstrução de
poemas desvinculados, ou emancipados da sujeição canônica e dos circuitos
institucionais da arte literária. A isto, complementa-se o investimento da
comunidade de poesia slam em fazer com que a educação seja o meio prático para a
obtenção da emancipação, pois a principal ferramenta de superação das funções pré-
estabelecidas na sociedade elitista das classes trabalhadoras e subalternizadas
perpassa pelo processo educativo.

É justamente o âmago revolucionário da poesia que faz do projeto de poetry slam ser
tão potente, pois promove circunstâncias de encontro envolvendo o pensar, o fazer
e o sentir sensível. A contrapoesia praticada nos slams é um ato de rebeldia para
propagar a arte da palavra poética pelas ruas e praças, rodas de conversa e salas de
aula. A intenção desta poesia é ir desconstruindo o monopólio da arte e fazendo com
que mais e outros sujeitos possam tomar para si o percurso literário. Sendo assim, a

1
O termo contrapoesia foi cunhado em 1963 pela Revista Internacional Situacionista. Há especulações de que
provavelmente pode ser atribuída a autoria a Guy Debord. O contexto de sua utilização inicial diz respeito à
informação, cuja afirmação reforça que “A informação é a poesia do poder (a contrapoesia da manutenção da
ordem), é a trucagem mediatizada do que é” (Internacional Situacionista, 1997, p.139). Pego emprestada, aqui nesta
discussão, a ideia de contrapoesia para desenvolver a partir da localização inicial de poesia do poder, uma expansão
transitória deste entendimento vinculando-a à emergência dos questionamentos de lírica e de poesia canônica
formulados no interior do movimento Slam.
1080
construção e reconstrução de poema slam é na intenção de comunicar sua
mensagem de maneira que o público vibre, sinta e a ecoe.

A realidade das batalhas poéticas dos eventos competitivos da poesia slam, faz
emergir a declaração de que o movimento está em diálogo poético e estético, a partir
de um projeto surgido no interior dos contextos cotidianos de slammers. A paixão
pela poesia nasce pela necessidade de expressão, mas também da aspereza das
condições econômico-sociais. Nesse sentido, os slams como manifesto abordam a
natureza popular do verso órfão e sonhador de cada palavra-poesia proferida por
diferentes artistas, por onde o movimento se encontra.

Levante dois: contravisualidades e contranarrativas

Ver é um ato cultural e construído na perspectiva da cultura visual e se configura por


elementos políticos, morais, éticos, estéticos. Portanto, o processo de decifrar
imagens trata-se de uma construção que deve ser exercitada, pois a visualidade é
uma matriz de poder.

Por visualidade entendemos, aqui, a percepção que temos como fato social, cujas
diretrizes se inscrevem em aspectos históricos e discursos e desempenham o
alicerce para nossa experiência visual. Mirzoeff (2016) define a visualidade como
estrutura de autoridade capaz de determinar aquilo que é permitido ou não
visualizar. Ou seja, a experiência visual não é natural porque está cercada pelas
tramas fazendo desta experiência um processo desigual e, portanto, não natural. A
ideia de controle daquilo que vemos é porque, em nível profundo, o direito a olhar é
uma reivindicação para perceber o real e também se instala enquanto direito.

Em suas palavras,

Visualidade é uma palavra antiga para um projeto antigo. Não é um


vocábulo teórico da moda significando a totalidade de todas as imagens
e dispositivos visuais, mas é na verdade um termo do início do século
XIX que faz referência à visualização da história. Esta prática deve ser
imaginária ao invés de perceptual, porque o que está sendo visualizado
é demasiado substancial para que qualquer pessoa individual o veja, e
é criado a partir de informações, imagens e ideias. Esta habilidade para
compor uma visualização manifesta a autoridade do visualizador.
(MIRZOEFF, 2016, p. 746-747)

1081
O mesmo autor sintetiza no complexo de visualidade as práticas de classificar,
separar estetizar como formadoras deste, que em repetidas experiências, tornam-se
uma estética do adequado, conforme apontado por ele.

Há, portanto, no complexo de visualidade um aparato regulador que controla (ou


tenta) o direcionamento do olhar e suas interpretações, da mesma forma com que
primariamente autoriza ou não quais imagens e onde elas podem circular. É nesse
contexto que a poesia slam se coloca no contra, como reivindicação do real que está
em acontecimento, mesmo que fora da gramática da separação.

A visualidade conforma o olhar para naturalizar práticas e construir discursos,


levando em consideração representações e determinados entendimentos sobre os
sujeitos. Na maioria das vezes, esses sujeitos são colocados na estrutura em que age
a visualidade para categorizar e separá-los. Soma-se a isso, as narrativas históricas
que perpassam pelo apagamento social de diversos grupos.

No entanto, a poesia slam e os sujeitos que fazem parte das mais variadas
comunidades de slams pelo Brasil atuam para contrapor a hegemonia das narrativas
com fins a romper a regularidade e homogeneidade com que são repetidas as
estruturas das visualidades e, por conseguinte, dos discursos hegemônicos e
opressores.

As contravisualidades ajudam a questionar o círculo da


homogeneização do olhar, no qual os dispositivos de visibilidade
formalizam o que é representável e o que não pode ser visto. Trata-se
de narrar uma alternativa a outras realidades, onde a presença, em
geral invisibilizada do ‘outro’ e de outros contextos socioculturais, é
requisitada. (ABREU; ÁLVAREZ & MONTELES, 2019, p. 835)

Realizar a contestação do regime hegemônico de visualidade não se apresenta como


fácil tarefa. Podemos citar, como exemplo, a intimidação por parte da força policial
nas competições de um grupo de slam que se apresentava no Bosque dos Buritis –
espaço público, em Goiânia; ou então a repressão sofrida pelo Slam Resistência, em
2017, sob a argumentação de perturbação da ordem, resultado da incapacidade dos
entes da vigilância em compreender o direito ao acesso à cidade, por todos os
cidadãos.

1082
Estes dois fatos remetem ao que Mirzoeff (2016) menciona como a reivindicação do
olhar para além do real. Coloca-se na dimensão da reescrita da narrativa que
percorre a sociedade. Artistas vinculados aos slams carregam a difícil tarefa de criar
outras montagens da imagem da cidade e de todo o seu complexo de visualidades. O
que ocorre nas competições poéticas é o manifesto ao direito de existência também
no âmbito do ver e ser visto.

As narrativas existentes e circulantes em nossa sociedade normalizam a inexistência


de sujeitos diversos e propagam uma normalidade a partir do apagamento e
silenciamento de vozes. Do mesmo modo, como não permitem (ou evitam ao
máximo) o confronto entre as imagens antagônicas capazes de provocar e estilhaçar
a aparente ordem de fina camada superior sobre uma profunda realidade em
extremo caos, a emergir.

Os grupos de slams espalhados pelo Brasil se colocam como manifestos poéticos e


remontam imagens socialmente percebidas, das quais são elementares para
entender o funcionamento desse jogo poético sucedido pela reinvindicação do
direito a olhar, pois as bases destas montagens se constituem de representações que
fazem sentido ao se colocarem em tensão, no âmbito da disputa poética, onde o
poema é o principal e o mérito de quem vence é fazer com que seus versos cheguem
mais longe, nessa disputa das narrativas.

Os slams, nessa conjuntura neoconservadora se apresentam como fabricações


coletivas capazes de provocar deslocamentos, rachaduras e desmontagens do
sistema de autoridade. Artistas e público se constituem a partir dos poemas-
artefatos lançados na arena onde circulam as mais variadas narrativas de protesto.

O espaço de acontecimento dos encontros é ressignificado pela potência da pauta


que cada poema reivindica. Este território se converte em exposição para a
fabricação de slammers cujas demandas perpassam por se tornarem audíveis e
visíveis, juntamente com suas resistências/existências. Rifà-Valls (2018) afirma que
fabricar é um ato produtivo, pois no processo de fabricação, as ações de percurso se
encaminham para a utilidade, a partir de seu uso, assim como o papel político do
artista.

Os poemas, no âmbito da poesia slam estão o tempo todo fabricando possibilidades


novas e outras dinâmicas para o nosso modo de ver. Do mesmo modo que a presença
1083
de artistas, com suas diferentes trajetórias, cujos percursos, em algum momento se
conectam, nas batalhas poéticas de poesia slam, configura-se em contravisualidades
e propõem o exercício das contranarrativas.

Encontros em rebelião: o poeta-poemas e os percursos em obra

A poesia slam é feita, além do poema que “interpela, irrita, fala o que quer, fala o que
sente, o que dói” (NEVES, 2019, p. 5), de encontros. Sem os encontros não podemos
pensar na mesma potência poética dos versos. Por sua natureza, os encontros são
amparados pela inconformidade, pela inquietude e revolta. Os versos lançados à
plateia surgem de artistas que são eles mesmos, os poemas. Transformam-se em
poeta-poemas.

Do lugar de reconstrução e de uma nova feitura de percursos, esses poetas-poemas


provocam a rebelião dos encontros, em ferramentas pedagógicas que exercitam
tanto a reflexão, quanto a solidariedade, pois os levantes são feitos também das
relações sensíveis entre diferentes em suas trajetórias, mas iguais perante uma
conjuntura “de pouca poesia”, como a que vivenciamos atualmente.

No campo da cultura visual, como mencionado no item anterior, sabemos que a


leitura da imagem depende de condições que estão ligadas ao repertório das
convenções e a sua interpretação se dá a partir conjunturas culturais. Nesse sentido,
a imagem se configura como um campo de poder e a forma com que ela emerge, o
lugar de onde emerge e a maneira como é colocada contribui para cristalizar
narrativas, ou em outras situações provocar o rompimento destas.

Rancière (2012) problematiza o intolerável da imagem que ressalta e confronta uma


outra realidade oposta. Em certa medida, cada artista que se colocar no centro do
palco para performatizar seus poemas, já é por si só uma imagem intolerável diante
da conjuntura eurocentrada, patriarcal e racista.

A imagem intolerável no contexto dos slams é aquela ou aquele jovem que se desloca
de sua quebrada para ocupar os espaços da cidade. É a imagem do slammer jogando
seus versos para o público que dispara a realidade da exclusão, da pobreza, do
racismo ou do preconceito, que se materializa em uma poesia que irrita. Uma das

1084
características desses poemas é o desconforto causado, seja pela proximidade ou não
com que os versos objetivam a realidade.

No atual contexto brasileiro de tanta ofensiva conservadora, está em jogo guardar as


memórias coletivas e individuais para se configurarem em instrumentos de
libertação. Esse embate de forças não é restrito a este decorrer de século, mas os
corpos transgressores já não se comportam mais em formatos culturais,
epistemológicos e estéticos coloniais que determinaram por tanto tempo as
condições de nosso fazer, ver e sentir. A matriz colonial do poder é colocada à prova
e todas as práticas insurgentes conjuram a possibilidade de construção de outros
horizontes. São estas práticas, as pedagogias necessárias que questionam e nos
ensinam, a partir de espaços e fazeres múltiplos.

Os fazeres decoloniais, de onde compreendo a importância das comunidades de


slam, concentram-se como práticas de fronteiras ao reconfigurar estes espaços de
sentido. Se fomos educados em um tempo das memórias roubadas, as pedagogias
inscritas nos pressupostos decoloniais reivindicam o direito a ocupar estas lacunas
do saber e do existir, de modo que sejam recontadas as experiências e as narrativas
silenciadas sejam ouvidas.

Nesse sentido, é que a poesia slam se realiza como palavras em choque, em rimas
áridas e afiadas para enfrentar as rotas únicas da história. Os sujeitos que fazem
dessa poesia a motivação para resistir e reexistir exercitam a experiência do sensível
em espaços públicos reivindicando a existência, permanência e acesso a esses
lugares. A partir de palavras-flecha e gestos-arpão são conjuradas estratégias
formativas, desde locais informais até os espaços institucionalizados de educação,
como ferramentas críticas de criação e pensamento político.

A relação dos poemas de slam com o corpo-cidade se transforma em experiência do


sensível e deságua em uma pedagogia da solidariedade. Os afetos e a privação deles
fazem com que os poetas construam em cima de seus corpos um mapa daquilo que
precisa ser ouvido. Trata-se da afirmação do pertencimento, tão necessário de ser
reafirmado dentro dessas comunidades. O pertencimento tão caro aos grupos
subalternizados em toda a América Latina é um ponto central de reivindicação de se
marcar o lugar de fala, pois esta marcação está inserida em um contexto implícito –
muitas vezes – de normatização hegemônica.

1085
Especificamente no contexto do movimento de poesia slam, os sujeitos se organizam
em torno de práticas de solidariedade exercidas a partir da constituição de uma
unidade política e estética, com vias a comportar as diferenças e multiplicidade de
artistas, públicos, narrativas pessoais e coletivas. Martins (2018) tem desenvolvido a
perspectiva de poética da solidariedade como formas de se organizar em torno de
objetivos e ações que deflagram efeitos colaborativos, coletivos ou não, entre sujeitos
e grupos. Essas práticas no interior dos slams dão atenção às relações de afetos e
cuidados com os membros que vão para além da criação. O pertencimento e os
vínculos comunitários se somam e reforçam a potência de contribuir para que o
coletivo esteja em maior evidência que o individual, conformando-se em
ecossistemas poéticos e sensíveis pautados por versos em estado de rebelião.

Habitar o mundo da poética na realidade contemporânea exige reflexões para ações


de fato transformadoras ou pelo menos, reflexivas e questionadoras de todo o tecido
social, cujas linhas são um emaranhado de desigualdades. Redimensionar o fazer
poético diz respeito à poiésis da coletividade e da alteridade.

Nesse âmbito, as obras são possibilidades de vida (BOURRIAUD, 2009). Enquanto


possibilidade de vida, os poemas-artefatos são fabricações visuais mobilizadoras de
um conjunto de ações não estéticas, mas que se conformam para significar
esteticamente tais obras. São as ações em torno das obras e estas coabitando aquelas
em junção para se conformar no horizonte da completude em devir de poemas e dos
poeta-poemas.

Por fim, é importante ressaltar que nos slams:

a) os encontros poéticos são potências para exercitar a solidariedade dos corpos em


aliança. As alianças se dão no fervor da rebelião, que reivindica a constituição de
novas políticas no interior da cidade/sociedade.

b) os encontros configurados em atos performáticos das alianças são exercícios


pedagógicos não apenas para a assembleia presente e, em certo grau, preparada para
os poemas. Transformam-se em tensão do senso comum para projetar e incentivar
realidades organizadas desde a empatia e inclusão dos mais diversos sujeitos.

c) os poetas, também conhecidos no meio, como slammers criam seus poemas, mas
se tornam os próprios versos. Um determinado poema emana efeito muito específico

1086
na plateia porque é aquele poeta x jogando na arena o seu poema. Sendo assim, o
poeta-poemas é uma imagem com diversas montagens políticas, desde a micro até a
macrorrealidade.

Considerados os encontros como os espaços de aglutinação das comunidades de


slams, onde diferentes sujeitos performatizam, em rede, a possibilidade de viver no
interior da sociedade, condições mais justas. Isso faz com que as mais distintas
imagens e pautas identitárias conformem aliança em torno do fazer poético. As
praças, as ruas e a cidade como um todo são ações corpóreas que extrapolam os
slams, mas se fazem também a partir da poesia slam, de modo a recorrer aos apoios
amplos na propositura colocada.

Referências

ABREU, Carla Luzia de; ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina; MONTELES, Nayara Joyse Silva. O
que podemos aprender das contravisualidades?, In: Encontro Nacional da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...]
Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019, p. 831-846.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2009.
MARTINS, Alice Fátima. Exercícios para uma poética da solidariedade. Revista Apotheke,
v.4, nº 2, ano 4, 2018.

NASCIMENTO, Roberta Marques do. Vocigrafias. Orientador: Amálio Pinheiro. 2019. 304 p.
Tese (doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2019.
NEVES, Cynthia Agra de Brito. Prefácio. In: ALCALDE, Emerson (org.). Antifa: coleção Slam.
São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 4 - 7.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Ed.
WMF Martins Fontes, 2012.
RIFÀ VALLS, Montserrat. Processos de fabricação visual do protesto no espaço público
através de Hanna Arendt. In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM ARTE E
CULTURA VISUAL, 2018, Goiânia. Anais do Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e
Cultura Visual. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2018, p. 8 - 19.
SMITH, Marc Kelly; KRAYNAK, Joe. Take the mic: The art of performance poetry, slam,
and the spoken word. Naperville: Sourcebooks MediaFusion, 2009.

1087
Mini Currículo

Jossier Sales Boleão


Doutorando em Arte e Cultura Visual pela FAV/UFG. Mestrado em Língua, Literatura e
Interculturalidade, linha de pesquisa Literatura e Interculturalidade, pela Universidade Estadual de
Goiás (UEG), com bolsa CAPES. Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária
(PRONERA/UFG), com bolsa CNPq. Especialização em Políticas Sociais Públicas (CEULJI/ULBRA);
graduação em Artes Visuais e em Letras Português. É educador popular e tem interesse pelos temas:
artes híbridas e fronteiriças; literatura e outras artes; educação e cultura popular; pedagogias e
estéticas decoloniais. E-mail: jossierboleao@gmail.com

1088
O PROFESSOR DE ARTE E O ENSINO NA ESCOLA

THE ART TEACHER AND TEACHING AT SCHOOL

Iram Leandro da Silva


UFG, Brasil

Márcia Santana Soares


UFG, Brasil

Thiago F. Sant’Anna
UFG, Brasil

Resumo

O presente artigo traz à luz uma discussão a respeito do conceito e da prática de ensino de
artes na educação básica. Foi feito um percurso histórico do tema no Brasil desde as
primeiras publicações até a atualidade que se mostra mais flexível ao conceito na prática.
Discute-se sobre os princípios que orientam a teoria da arte-educação e sobre o que eles
objetivam nas relações de ensino nas diversas perspectivas da educação. Discute-se,
também, sobre a formação de professores arte-educadores e as exigências feitas a eles em
documentos de ensino. Os dados bibliográficos foram analisados e interpretados de forma
qualitativa, fornecendo elementos para atingir os dados da pesquisa. Os resultados
apontaram para diferentes modos de entendimento e aplicação do conceito. Contudo,
evidencia-se que o tema vem sendo bastante pesquisado e aceito nas práticas educativas de
forma ampla. Nesse sentido, após algumas décadas do início do pensamento a respeito da
arte-educação, é perceptível que o conceito e a prática estão bem mais consolidados.

Palavras-chave: arte-educação, práticas educativas, parâmetros curriculares nacionais.

Abstract

This article brings to light a discussion about the concept and practice of teaching arts in
basic education. A historical course of the theme in Brazil was made from the first
publications to the present, which is more flexible to the concept in practice. It discusses
the principles that guide the theory of art education and what they aim at in the teaching
relationships in the different perspectives of education. It also discusses the training of art
educators and the demands made on them in teaching documents. The bibliographic data
were analyzed and interpreted in a qualitative way, providing elements to reach the research
data. The results pointed to different ways of understanding and applying the concept.
However, it is evident that the topic has been extensively researched and widely accepted in

1089
educational practices. In this sense, after a few decades of the beginning of thinking about
art education, it is noticeable that the concept and practice are much more consolidated.

Keywords: art-education, educational practices, national curriculum parameters.

Introdução

De acordo com a literatura especializada e a experiência de inúmeros docentes


envolvidos/as com a educação em Artes, a arte-educação, em geral, promove o
desenvolvimento integral, tanto intelectual quanto emocional, proporcionando uma
série de benefícios em crianças e adolescentes. Não há portanto como negar que as
atividades artísticas aumentam a percepção do ambiente e estimulam a flexibilidade
de pensamento das crianças, bem como estimulam as habilidades cognitivas,
melhorando as habilidades de comunicação.

Munidos desses subsídios, podemos afirmar que eles permitem explorar a imaginação
e a capacidade de funcionar melhor em ambientes sociais. O desafio da educação
artística é, dessa forma, modular efetivamente os valores da cultura, os meios
disponíveis para a educação nas artes e os perfis de desenvolvimento particulares
dos alunos a serem educados. Segundo o Barbosa (2010), esses benefícios fazem com
que a educação artística fomente a criatividade dos alunos e, com ela, o seu
desenvolvimento integral.

Ao tomarmos como base essas considerações, podemos dizer que o atual estudo
discorre sobre a abordagem do conceito de arte e seus aspectos, assim como a
compreensão de arte-educação e suas competências traçando uma breve
contextualização histórica sobre a arte-educação no Brasil e perpassa, de modo
progressivo, a relação entre teoria e prática, de diferentes linguagens artísticas,
refletindo sobre a atribuição que a arte pode executar no estudo de outras áreas do
conhecimento humano. Teoria e prática aqui pensadas como articuladas,
interdependentes, e não tomada como sendo a primeira, a sistematização da
segunda; e a segunda, a aplicação da primeira. Preferimos pensar em termos de uma
operação com uma caixa de ferramentas onde “é preciso que sirva, é preciso que
funcione”, para que ser operável (DELEUZE apud FOUCAULT, 2001, p. 71).

1090
Desdobra-se esta investigação, também, sobre a formação do professor arte-
educador e os documentos educacionais que foram e são usados no Brasil para
regulamentar a profissão. Dentre as principais referências, estão: Dewey, Barrett,
Ana Mae Barbosa, David Filho e Lígia Bacarin. Aqui não serão dados exemplos
práticos nem modelos de atividades de arte-educação, pois o texto se centra em
abordagens teóricas do tema.

Sobre a arte-educação

Os conhecimentos mobilizados no campo escolar da Arte têm sido uma matéria


exigida em escolas primárias e secundárias no Brasil desde as primeiras legislações
sobre currículos escolares e, de acordo com Barbosa (2010), este espaço na grade
escolar não foi uma conquista dos educadores de arte brasileiros, mas sim de um
pensamento ideológico de educadores norte-americanos sob o acordo oficial
(acordo MEC-USAID), que, portanto, reestruturou a educação brasileira,
concebendo, no ano de 1971, os objetivos e o currículo configurado na Lei Federal nº
5692 denominada “Diretrizes e Bases da Educação”. Essa lei gerou uma educação
tecnológica direcionada que começou a profissionalizar a criança na sétima série,
sendo o ensino médio completamente profissionalizante naquela época.

De acordo com Bacarin (2005) o movimento de Arte-educação é formado por um


conjunto de princípios que o norteia na teoria e na prática. O primeiro princípio do
movimento de Arte-educação refere-se aos trabalhos de expressão artística da
criança. Segundo os arte-educadores, tais movimentos seriam executados a partir
da leitura que a criança faria de si mesma e do mundo, por meio de linguagem
simbólica para expressar a própria realidade. Tal linguagem seria construída a partir
da seleção de suas experiências em relação ao meio em que está inserida. Para que
ocorra tal processo, os arte-educadores dizem que se deveria oferecer oportunidade
de contato e a percepção da arte pela criança, para que ela construa uma leitura de
mundo sólida, além de auxiliar na composição dos símbolos e da representação
estética.

Ainda de acordo com Bacarin (2005), o ato de ensinar e aprender arte compõe o
segundo princípio que define o movimento de Arte-educação. Está fundamentado
em três eixos norteadores que são: 1) o fazer artístico; 2) o conhecimento histórico e
1091
3) a apreciação estética. Nessa perspectiva, a produção, a apreciação e o reflexão
sobre arte são, da mesma forma que as relações entre a teoria e prática, inseparáveis.
Desta forma, a relação da arte com os troncos culturais é capaz de levar os alunos a
perceberem a expressão artística como demonstração de sua realidade.

Para o movimento de Arte-educação o terceiro princípio é o que trata da cognição


da criança, a qual, ao trabalhar com arte, desenvolveria e aperfeiçoaria a sua
expressão artística, o seu modo de olhar e perceber o mundo. Para que assim ocorra,
a criança deve criar, construir, reconstruir e produzir sua história de acordo com
Bacarin (2005). Assim, ao observar e conhecer as várias possibilidades de expressões
de arte em contextos diferentes a criança conseguiria modelos suficientes para
estabelecer relações construtivas que a auxiliaria em seu desenvolvimento cognitivo.

O princípio seguinte que define o movimento de Arte-educação relaciona-se ao


entendimento de técnica, materiais, teorias, instrumentos e recursos. Tal fator
possibilitaria à criança o exercício da criatividade, da leitura, e da compreensão de
significados. Assim, ao realizar as tarefas em Arte-educação, a necessidade da
convivência com os objetos artísticos de forma ampla deve ser levada em
consideração pois, através desse contato, desenvolve-se a sensibilidade, sem
imposição de padrões e gosto subjetivos marcados pelo local e momento histórico
presente, além da classe social na qual se inclui.

O último princípio que norteia o movimento de Arte-educação refere-se a sua


aproximação com a cultura popular. O arte-educador faria a mediação entre o objeto
bruto e a sua representação, entre o que se observa na realidade e sua relação à
cultura, aos sentidos e ao pensamento, de acordo com Bacarin (2005).

Segundo este princípio, a arte-educação levaria o aluno a pensar culturalmente


levaria a percepção dos múltiplos significados do mundo, ampliando a sua
abrangência para sentir e apreciar o mundo e, posteriormente, construir análises e
contextualizações fornecendo o conhecimento tanto da linguagem de cada arte
como da cultura que gerou a obra e seus estilos.

Assim, o conhecimento e a contextualização da história da produção das artes


permitiriam ao arte-educador ampliar sensibilidades para a leitura e decodificação
dos signos artísticos, retirando a ideia preconcebida da arte como ‘dom’. Assim, a
arte-educação, que se fundamenta em alicerces específicos e conceitos básicos,
1092
objetivaria estimular no indivíduo a percepção do mundo artístico, cultural, dos sons
e das imagens, que estão presentes em seu cotidiano e levá-lo à reflexão.

Arte-educação nos Parâmetros Curriculares Nacionais

O movimento da Arte-educação teve início na Semana de Arte Moderna, ocorrida em


1922, sob a influência de Dewey no Brasil. A pintora e professora Anita Malfati, se
apoiava nas ideias de livre expressão e passou a orientar classes de arte em São Paulo
ao mesmo tempo que Mário de Andrade, docente na Universidade do Rio de Janeiro,
passou a evidenciar no seu curso de História da Arte que a arte infantil como
expressão espontânea deveria ser estimulada. O professor escreveu e publicou vários
artigos sobre a temática, de acordo com Bacarin (2005).

A arte-educação, seguindo seu desenvolvimento, passou por formulações que


delimitavam seus objetivos a serem atingidos. Barrett (1979 p.25) os definiu assim
partindo de resultados advindos do início do aperfeiçoamento cognitivo:

1. Desenvolver a capacidade de perceber o mundo em termos visuais,


tácteis e espaciais. 2. Desenvolver a sensibilidade às mudanças
perceptíveis. 3. Reconhecer a arte como uma forma de pensamento
capaz de manter ideias criativas e servir de enquadramento aos juízos
(Barrett 1979 p.25).

Ao se considerar os objetivos propostos, a arte-educação é entendida como uma


abordagem pedagógica que não se limita apenas ao ensino da disciplina Arte, mas a
todo o núcleo de formação escolar do indivíduo, o que é pertinente à atual legislação
escolar que prevê ensinos transdisciplinares, tópico que será retomado mais à frente.

Um dos grandes pensadores da arte-educação, John Dewey era defensor de uma


escola que colocasse o aluno e sua capacidade de pensamento em foco, sendo um
conhecido defensor do pragmatismo ou instrumentalismo. De acordo com seus
ideais da democracia, Dewey (1966) encontrou no ambiente escolar o instrumento
ideal para levar aos indivíduos tais benefícios, tendo a arte-educação uma função
democratizadora de igualar as oportunidades. Assim permitiria a cada aluno o acesso
a visões amplas do mundo por meio de atividades manuais e criativas que ganharam
destaque no currículo e as crianças passaram a ser estimuladas a experimentar e
pensar por si mesmas.
1093
Para o autor, a vida social necessita ser encarada com vasta atuação popular e com o
debate livre de opiniões, cuja fundamentação particular estaria no espaço de auxílio
e solidariedade entre as pessoas. E para sua execução seria necessária uma
transformação radical na economia, a qual deveria ser controlada pela sociedade.

A análise interdisciplinar como abordagem pedagógica foi essencial para a Arte-


educação, pois ela foi o meio através do qual foram produzidos os currículos e a
prática pedagógica da arte. O objetivo da arte na instrução é potencializar no sujeito
um processo de pensamento que o torne apto a enfrentar os novos objetivos de
conhecimento, conquistando novas percepções e posicionamentos no mundo. Neste
sentido, a integração do conhecimento será sempre uma tentativa em construção,
nunca um fim em si mesmo, e o sistema analítico-sintético se torna a base na qual a
interdisciplinaridade se faz.

No contexto brasileiro, os primeiros estudos sobre arte-educação são feitos pela


doutora Ana Mae Barbosa, quando de sua formação nos Estados Unidos. A partir da
publicação inicial são feitas várias abordagens sobre o tema, consolidando-a como a
maior estudiosa da temática do país. Sendo assim, foi Barbosa (1988) quem definiu o
caráter interdisciplinar da arte-educação da seguinte forma:

A Arte-educação, por sua natureza epistemológica, integra várias


modalidades de experiência, recebendo contribuições de diversas
ciências e áreas do conhecimento humano. Uma análise da colaboração
das múltiplas ciências humanas para aclarar os objetivos e métodos da
experiência artística na escola se faz necessária. A antropologia nos
esclarece acerca das formas de investigação do universo cultural dos
jovens e crianças que pretendemos ensinar, além de esclarecer as
relações entre a cultura erudita, a popular e a de massa e os cânones
de valor das artes úteis, por exemplo. Na área da psicologia se
verificarão as consequências metodológicas para a Arte-educação das
diferentes abordagens: freudiana, lacaniana, humanística, junguiana e
gestaltista, assim como, em filosofia, um dos objetivos será a análise
das influências das correntes fenomenologista, marxista, kantiana, no
ensino da arte. Também os diferentes conceitos de arte geram
diferentes metodologias (...) A consciência histórica que preside o
entendimento da evolução conceitual do ensino de arte e explica a sua
importância no contexto sócio-político brasileiro produzindo leis e
coordenando propostas e expectativas, consistirá uma área de estudos,
história/legislação. Os diversos media estarão sendo explicados em
sua especificidade e possibilidade de integração entre televisão, vídeo,

1094
cinema, desenho e plástica, bem como música e artes cênicas
(BARBOSA, 1988, p. 22).

Tais definições estabelecem a inter-relação entre as várias áreas do conhecimento


de maneira colaborativa, buscando assertividade no estudo e prática do ensino de
Arte e no uso da metodologia para arte-educação. Os anseios presentes desde o fim
da década de 1980 vêm sendo aos poucos discutidos. Aqui retoma-se a questão das
leis, normas e diretrizes que regulam e instruem o ensino no Brasil.

Com o Parecer nº 540/77 do MEC, enfrentou-se o problema da formação de


professores, pois muitos deles não tinham habilitação, não tendo formação para o
domínio de várias linguagens a serem incluídas no conjunto que abrangia as
atividades artísticas na época, a saber: Artes Plásticas, Educação Musical e Artes
Cênicas.

Nas décadas seguintes, de modo geral, os educadores que já ministravam tais


linguagens artísticas e os recém-formados em Educação Artística perceberam-se
com a responsabilidade de ensinar aos estudantes de ensino fundamental e médio
todas as linguagens artísticas. (BRASIL, 1998e). Teve origem, dessa maneira, a prática
educativa do docente polivalente. Ao ser responsabilizado por ministrar aulas em que
deveriam ser trabalhadas as linguagens artísticas acima citadas, aqueles que tiveram
uma formação de caráter superficial defendiam a ideia de que ao se trabalhar com
técnicas isoladas, estariam trabalhando todas as áreas. Apareceram então na escola
as técnicas de trabalho artístico, direcionadas para o desenvolvimento da
sensibilidade e da criatividade do aluno, de acordo com Bacarin (2005).

Para tentar sanar a metodologia ultrapassada dos docentes, surgiram na década de


1970 cursos de treinamento de professores organizados pelas Secretarias de
Educação, em convênios com universidades e cursos de teatro, segundo Bacarin
(2005).

No final da década de 1980, mudanças sociais e políticas ocorreram no Brasil, de


forma semelhante ao que acontecia a outros países da América Latina, com o fim das
ditaduras militares, com a retomada das eleições diretas para os cargos executivos
e, em consequência, a retomada de elaboração e sanção de leis que exprimiam
desejos e lutas da sociedade que estivera impossibilitada de se expressar durante o
período de exceção.
1095
Em 1988, com a promulgação da nova Constituição nacional, que ficou conhecida
como a Constituição Cidadã precisamente pela sua defesa da cidadania, os direitos
da grande maioria da população passam a ser considerados. Entre eles as diretrizes
das políticas públicas direcionadas para a cultura e a educação incorporaram metas
de conservação e recuperação do patrimônio nacional, em seus aspectos ecológicos
e culturais, das memórias múltiplas, reconhecendo as multíplices identidades do
povo brasileiro.

Portanto mudanças políticas nacionais pediram outras diretrizes para a educação.


Respondendo às mudanças, na década de 1990, o Ministério da Educação propôs à
sociedade novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) após a discussão a
respeito da presença ou ausência da disciplina Arte no ensino fundamental. Assim,
antes da aprovação da Lei nº 9396/96 que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, foi discutido o Projeto de Lei nº 1258-C, de 1988, que também
incluía o ensino de arte na educação básica, mas definia melhor as suas finalidades:
“para desenvolver a criatividade, a percepção e a sensibilidade estética, respeitadas
as especificidades de cada linguagem artística, pela habilitação em cada uma das
áreas, sem prejuízo da integração das artes com as demais disciplinas”. (Cap. VII,
Art.33).

A compreensão de que a escola deve despertar no aluno o “aprender a aprender”, faz


parte do documento introdutório dos PCNs, tais ideias se encontram no Relatório
elaborado para a UNESCO sobre a educação para o século XXI, conhecido como
Relatório Jacques Delors. Isto demonstra que a documentação sobre educação no
Brasil retoma princípios de democráticos e participativos, no entanto, a formação do
professor não sofreu maiores especificações e a arte-educação ainda se mostra
pouco fundamentada legalmente como metodologia.

Consta no documento dos PCN-Arte (3º e 4º do ensino fundamental) que o processo


de aprendizagem deve ser feito por meio de ações balizadoras em três linhas
norteadoras: produzir, apreciar e contextualizar”. Assim:

Tendo em conta os três eixos como articuladores do processo de


ensino e aprendizagem, acredita-se que para a seleção e a organização
dos conteúdos gerais de Artes Visuais, Música, Teatro e Dança por ciclo
é preciso considerar os seguintes critérios: • conteúdos que favoreçam
a compreensão da arte como cultura, do artista como ser social e dos

1096
alunos como produtores e apreciadores; • conteúdos que valorizem as
manifestações artísticas de povos e culturas de diferentes épocas e
locais, incluindo a contemporaneidade e a arte brasileira;• conteúdos
que possibilitem que os três eixos da aprendizagem possam ser
realizados com grau crescente de elaboração e aprofundamento
(BRASIL, 1998e, p. 49).

Desta forma, os conteúdos são direcionados para a valorização de culturas


locais/regionais e para os alunos como sujeitos produtores, isto é, há uma
valorização dos indivíduos agentes. Quanto ao professor e às instituições de ensino
o posicionamento é diferente, pois os PCN-Arte organizam os conteúdos por
modalidade artística - e não há uma divisão por ciclos (1º e 2º; 3º e 4º), como nos
documentos das demais áreas -, atribuindo às escolas a seleção das linguagens
artísticas e “da sua sequência no andamento curricular” (BRASIL, 1998d, p. 54). Neste
sentido, sugerem que, “a critério das escolas e respectivos professores, (...) os
projetos curriculares se preocupem em variar as formas artísticas propostas ao longo
da escolaridade, quando serão trabalhadas Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro”
(BRASIL, 1998d, p. 62-63). Isto é, não há determinações claras do que deve ser
trabalhado, o que, por um lado, dá liberdade à escola e aos professores para a eleição
de conteúdos adequados àquela comunidade, mas, ao mesmo tempo deixa a
incumbência de variar as formas de arte sem que haja ao menos uma sequência
curricular estabelecida.

Formação de professores em arte-educação

Como vem sendo dito ao longo deste estudo, a formação regular de professores arte-
educadores apresenta-se de forma deficiente, por isso a sua formação se dá através
de uma perspectiva multidirecional que vai além da sua formação específica, na
tentativa de compreendê-la como um percurso, um caminho que vai sendo trilhado,
construído, reelaborado e constantemente revisitado, muitas vezes de forma
autônoma.

Bacarin (2005) pondera que, ao mesmo tempo, nos textos dos PCN-Arte é pedido aos
professores do ensino fundamental que sejam planejadas oportunidades para que os
alunos possam dirigir e coordenar suas ações criativas e, também, o
comprometimento dos educadores com um projeto pedagógico que objetiva a

1097
formação de indivíduos cooperativos e solidários. Além disso é explicitamente
recomendado o aprofundamento de estudos a respeito de aspectos do
desenvolvimento biológico e cultural do sujeito na perspectiva do funcionamento
psíquico, sem que sejam dados recursos para isso, como se lê:

Antes da aula:
• o professor é um pesquisador de fontes de informação, materiais e
técnicas;
• o professor é um apreciador de arte, escolhendo obras e artistas a
serem estudados;
• o professor é um criador na preparação e na organização da aula e seu
espaço;
• o professor é um estudioso da arte, desenvolvendo seu conhecimento
artístico;
• o professor é um profissional que trabalha junto à equipe da escola.
Durante a aula:
• o professor é um incentivador da produção individual ou grupal; o
professor propõe questões relativas à arte, interferindo tanto no
processo criador dos alunos (com perguntas, sugestões, respostas de
acordo com o conhecimento que tem de cada aluno etc.) como nas
atividades de apreciação de obras e informações sobre artistas
(buscando formas de manter vivo o interesse dos alunos, construindo
junto com eles a surpresa, o mistério, o humor, o divertimento, a
incerteza, a questão difícil, como ingredientes dessas atividades);
(BRASIL, 1998e, p. 100).

Desta forma, fica estabelecido de forma plural que o arte-educador deve estar
sempre em formação, articulando saberes mobilizados com as práticas de pesquisar,
apreciar obras de arte, ser um estudioso de arte, e tornar-se um profissional que atua
junto à equipe da escola no trabalho, além de, sobretudo, incentivar tanto a produção
individual ou em grupo e, por fim, voltado para apresentar o mais potente em termos
de ensino e aprendizagem para os alunos, incentivando e surpreendendo-os
constantemente.

Tardif (2007) diz que o professor traz consigo “as marcas de sua própria identidade,
e uma boa parte de sua existência é caracterizada por sua atuação profissional” (p.

1098
56-57). Desta forma, parte considerável da competência profissional dos professores
está enraizada na sua história de vida e na sua trajetória. O docente possui uma
pluralidade de saberes articulados que vão sendo aglutinados e incorporados durante
seus percursos pessoais, o que foi chamado por Tardif (2007) de pluralismo
epistemológico dos saberes do professor, os quais vão sendo construídos não só a
partir da formação acadêmica com os saberes disciplinares e curriculares, mas
também da própria experiência no exercício da profissão. Por isso espera-se que o
professor possua os conhecimentos apropriados ao exercício de sua função e um
saber prático desenvolvido e aprimorado em suas experiências cotidianas em sala de
aula:

[...] os professores de profissão possuem saberes específicos que são


mobilizados, utilizados e produzidos por eles no âmbito de suas tarefas
cotidianas. Noutras palavras, o que se propõe é considerar os
professores como sujeitos que possuem, utilizam e produzem saberes
específicos ao seu ofício, ao seu trabalho ( TARDIF, 2007p. 228).

Filho (2013) afirma que a formação de arte-educadores é um processo complexo que


abarca a formação individual, ou seja, a estruturação e o desenvolvimento do
individual em seus fazeres profissionais e a formação institucional por meio da qual
ele adquire conhecimentos para planejar e desenvolver as atividades pertinentes à
sua formação. Desta maneira, a formação docente é um processo contínuo e
demorado através do qual a relação do indivíduo com o seu campo profissional vai
sendo edificada e se desenvolvendo até chegar a uma identidade profissional.

Porém todos estes requisitos de formação estão longe da profissionalização pois


desde a implantação da Educação Artística como atividade educativa no currículo
escolar até os dias de hoje, pouca coisa mudou quanto à situação e à formação dos
professores em arte. Assim posto:

A construção científica da profissão há de realizar-se [...] na abertura


de uma racionalidade ampla, emancipatória, instrumental e expressiva,
em que os processos de aprendizagem coletiva de capacidades
comunicativas e habilidades cognitivas estejam relacionados com os
processos de questionamento dos saberes feitos, de descobertas, de
elaboração e de expressão autônoma do próprio saber construído no
confronto e nos desafios das práticas sociais (MARQUES, 1992p. 50).

1099
É reforçada a ideia de profissionalização pelos desafios e práticas sociais e não por
uma sistematização acadêmica e estruturas curriculares. Filho (2013) aponta que os
cursos de formação de professores não se encontram preparados para atender as
demandas já que em sua maioria abordam questões relacionadas à criatividade e à
expressão individual dos alunos, sem maiores preocupações com as mais recentes
propostas de ensino e aprendizagem em arte. Esta situação não difere muito dos
demais níveis de ensino, já que na maioria delas, a pesquisa na área artística
praticamente não existe, de acordo com Duarte Júnior (1988).

Conclusões

De toda a discussão apresentada chama a atenção o fato de haver um desnível entre


o que se espera do arte-educador e o que é fornecido a ele como recursos de
formação.

Assim, ao se pensar na arte como um processo essencial ao ser humano, tanto


fruitivo como de reflexão que estabelece as relações interpretativas e significativas
entre o homem e o mundo. Por isso o seu conteúdo não pode ser deixado de fora da
formação humana, formação esta que passa pelo contexto escolar que é parte
fundamental no desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Por isso não se pode pensar
educação formadora e cidadã, como estabelecido nos documentos legais brasileiros,
sem que seja dada atenção ao conteúdo de Arte. Há que se ressaltar que se trata de
uma ação de mão dupla: há que se formar melhor os arte-educadores para que estes
consigam cumprir o que é atribuído a eles, pois sem uma boa formação não há como
ser pesquisador constante, como solicita o PCN.

É preciso aumentar a quantidade e a qualidade de cursos de Pós-graduação com


linhas de pesquisa específicas em arte-educação para atender as demandas do país,
pois os professores, na maioria das vezes, necessitam de estímulos para buscar
especialização e aperfeiçoamento mais aprofundados, limitando-se aos cursos de
curta duração que nem sempre são suficientes para uma boa formação.

1100
Referências

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Paulo, MAC/USP, 1982.
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Autores Associados, 1998.

Mini Currículos

Iram Leandro da Silva


Bacharel em Administração, Ciências Contábeis e Direito pelo Centro Universitário Brasília de Goiás,
Especialista em Gestão Empresarial e Gestão Pública pela Faculdade Montes Belos e Faculdade de
Iporá, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Faculdade ALFA. Professor da Universidade Federal

1102
de Goiás (Campus da Cidade de Goiás) e doutorando em Arte e Cultura Visual – PPGACV/UFG. E-
mail: professor.iram@ufg.br

Márcia Santana Soares


Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (1993); Especialista em Direito
Penal pela Universidade Federal de Goiás (1998); Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal
de Goiás(1999); advogada; doutoranda em Arte e Cultura Visual – PPGACV/UFG; professora adjunta
na Universidade Federal de Goiás (Campus da Cidade de Goiás). E-mail: marcia.soares@ufg.br

Thiago Fernando Sant’Anna e Silva


Doutor em História pela Universidade de Brasília (2010) e Pós-doutorado em Arte e Cultura Visual pela
Universidade Federal de Goiás (2012). Docente no curso de Arquitetura e Urbanismo/UFG, no
Programa de Pós-Graduação em Artes e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais/UFG e no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio/UEG/Campus Cora
Coralina. E-mail: thiagof.santanna@ufg.br

1103
IMAGENS DE REENCANTAMENTO: APRENDERCRIAR COM PROFESSORXS

IMAGES OF RE-ENCHANTMENT: LEARNCREATE WITH TEACHERS

Luis Otávio Oliveira Campos


Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo, Brasil

Resumo

Histórias de reencantamento é uma fração da pesquisa que desenvolvo acerca da minha


formação docente, meus encontros com professorxs que marcam essa trajetória, e a herança
ancestral de matriz africana orientando nossas reflexões e ações cotidianas. É um trabalho
sobre encontros afetivos e saberes que são táticas de resistência e criação de mundos.
Durante a pesquisa converso com professorxs negras, acompanhando o diálogo que já
estabeleço em redes educativas e onde partilhamos imagens, para criarmos histórias acerca
do que coletamos e criamos na docência. Essas histórias apontam possibilidades e reflexões
aos que pensam à docência e a formação como prática cotidiana. São imagens de sujeitos em
sua autocriação que permeiam essa pesquisa, assumindo a imaginação e a criação poética
como campo de trabalho e linhas com as quais costuro esta colaboração.

Palavras-chave: Ancestralidade. Herança africana. Formação docente. Imagens. Memórias.

Abstract

Stories of re-enchantment is a fraction of the research I develop about my teacher


education, my meetings with teachers who have marked this trajectory, and the ancestral
heritage of African origin guiding our reflections and daily actions. It’s a work about affective
encounters and knowledge that are tactics of resistance and creation of worlds. During the
research, I talk to the black teachers, following the dialogue that I already establish in
educational networks and where we share images, to create stories about what we collect
and create in teaching. These stories point out possibilities and reflections to those who
think of teaching and education as a daily practice. They are images of subjects in their self-
creation that permeate this research, assuming the imaginary as well as the poetic creation
as the field of work and the lines that I use to sew this collaboration.

Keywords: Ancestry. African heritage. Teacher education. Images. Memories.

1104
Introdução

O presente artigo é um dos resultados de uma pesquisa de mestrado realizada entre


2019 e 2021. Um período de reclusão imposta pela pandemia. Período em que as
imagens visuais virtuais se avolumaram assustadoramente enquanto as imagens
físicas foram reduzidas drasticamente. Mal se podia estar e ver os mais próximos, a
impossibilidade dos deslocamentos nos projetara no universo virtual o qual, por sua
vez, contrastava seu volume de imagens de amigos, parentes e colegas em encontros
virtuais com a superficialidade desses contatos bem como de outras experiências
então reduzidas às telas.

O exercício forçado da solidão nos levava à muitas tentativas de escapes fossem via
os aludidos encontros e eventos virtuais seja por formas de criação de companhias
de tarefas, a criação de obras poéticas ou, no meu caso, o mergulho na pesquisa que
agora revela a possibilidade de outras abordagens, procedimentos e recursos. Assim,
as imagens da memória, da minha e das parceiras na pesquisa, professorxs de artes
visuais, tomavam o lugar da presença e não resistiram à sua utilização na poética da
pesquisa. Trago aqui, imagens de densa visualidade para além das planuras das telas
e demais suportes, ou seja, na poética do afeto.

É preciso nomear as matrizes da ancestralidade provedora do encantamento. Sou


filho do Brasil e sua intrincada formação étnica, desterritorializados de África e
Pindorama, aqueles que sofreram a servidão do corpo e a negação da humanidade.
Nossa cultura, nossas histórias, resistem pela sabedoria de nossos mais velhos. Uma
grande herança imaterial que vive em oralidades e rituais, danças e cantigas,
aproveitando toda brecha pra se espreitar pra fora dos becos, descer o morro. E
descendo se mistura e enriquece o que é possível chamar de tessitura cultural
brasileira, enervada por densa complexidade imagética, Da força do imaginário, à
eloquência das imagens sonoras, visuais, etc.

Orientado pelo encantamento, pela ancestralidade, que formam os saberes


filosóficos e éticos que busco como fonte de conhecimento e agitação, vou ao
encontro da profusão de saberes que professorxs negras, de Artes Visuais, produzem
em seus cotidianos na rede pública de educação. E nossas conversas são como mar
denso onde mergulho, investigando o que há pra aprender em suas formações, suas
experiências com a docência no universo de imagens de crianças e de seus saberes

1105
poéticos. Costurando nossas memórias e desejos, imaginando juntos, inventando
escolas, criamos imagens, fortalecemos imaginários. O que eu não sei, o que busco
saber nas trocas afetivas com meus coautores, e me põe a pesquisar, é norteado pelo
desejo de ser professor. Um professor/sujeito bricolado e em constante estado de
criação coletiva. Um professor que exerce a função docente como algo
permanentemente em criação, enredado com a produção docente em rede com as
muitas parcerias que exemplifico nesse trabalho.

Começando essa prosa

“Oh Zé, quando vier de Alagoas toma cuidado com o balanço da canoa...” 1

Gostaria de iniciar essa conversa com o tema primeiro de minha curiosidade, aquele
que me lançou nos caminhos errantes da pesquisa: a memória. Quando eu era ainda
muito criança, passava horas do meu dia rodeando as mulheres da minha família na
expectativa de ouvir uma história. Eu me oferecia para ajudar nos afazeres
domésticos, não por boa vontade, mas pela certeza de que algo sairia daquelas bocas
e me levaria longe nas vidas que me precediam e que eram também tão minhas.
Quando minha mãe se reunia com suas irmãs, era certeza de que eu conheceria um
novo causo. Elas riam, choravam, cantavam, lembranças de uma vida cheia de dores
e delícias.

Avó eu tive três: Benedita, Maria do Carmo (Noca para os íntimos) Maria Aparecida.
Avô, só tive um, que avô de sangue mesmo não era. Era um grande amigo do meu pai
com quem estabeleci vínculo afetivo grandioso. Mas tanto mãe, quanto pai, perderam
os pais ainda criança. Foram criados em lares comandados por mulheres, algo bem
comum nas formações familiares brasileiras. Além das duas avós de sangue, tenho
também vovó Cida, a Maria Aparecida, irmã de meu avô paterno e figura muito
presente em nossas vidas. Disseram que vó Cida não podia ter filhos, mas a crioula
era teimosa e, do jeitinho dela, teve muitos. Vó Cida não era muito de contar
histórias, sonsa que é, gosta de guardar seus segredos. Ela era uma mulher muito
doce, bondosa. Em algum momento de devaneio infantil, me perguntei se não seria

1
Ponto de Umbanda cantado para Zé Pelintra sem autoria conhecida
1106
ela a própria Santa que mamãe adorava em seu pequeno altar. Podia não ser a Santa,
mas mágica era, ah, isso era. Lembro quando descobri que nos fundos de sua casa
tinha um quartinho cheio de Santos, velas, flores, enfeites de tudo que eram cores.
Ela tinha uma Igreja em casa? Era tudo que eu conseguia pensar. Ali, nos fundos do
seu quintal, eu conheci pessoas especiais. Pessoas que podiam ser outras pessoas,
dependendo da música que eles cantavam. Quem fosse a presença do dia contava
histórias, ensinava de um tudo, acalmava nossas pressas.

Eu cresci indo ali naquele fundo de quintal, conhecendo gente nova, cantando a
música que faz gente descer, sentindo a tristeza quando tinham que subir. Vó Cida
não contava história, mas trazia gente que contava. Um deles era um tal Doutor, dia
dele as pessoas queriam todas ir conversar. Eu tinha um pouco de medo, me sentia
mais a vontade com as moças que vinham. Mas teve um dia que eu fiquei muito
doente e minha mãe me levou pra ver aquele doutor. Ele me sentou em seu colo e
conversou comigo como nenhuma outra pessoa que visitava aquele quarto fizera
antes. Seu nome era Zé Pelintra e ele me contou sua história. Disse que veio do
nordeste, lá do Alagoas, tentar a vida no Rio de Janeiro. Entre trancos, barrancos,
tiros, gingas de capoeira, virou doutor da rua. Conhecido também como malandro.
Zé era doutor da rua, mas sabia tudo das folhas que curam. Versado na pajelança que
aprendeu em sua terra, sabia curar as mazelas do corpo, do coração e da alma.
Curiosamente, ele me curou da minha doença, mas isso era o de menos pra criança
que eu era. Eu tinha encontrado um amigo mágico. Ele falava comigo de igual, me
abraçava e eu sentia um carinho como quando abraçava meus familiares que amo.
Ele dizia cada coisa bonita, cada história triste. Falava sério, falava besteira boa de
ouvir, falava de amor e das durezas do caminho de quem escolhe viver no desvio. Um
dia vovó fechou o quartinho no fundo do quintal, não tinha mais visita, não tinha mais
seu Zé.

Reencantamento

Passa o tempo como galope de égua brava, a adolescência e suas descobertas, a


escola, seus prazeres e desprazeres. A razão que se abate sobre nossa imaginação e
diz que tudo aquilo que você viveu até ali é uma grande bobagem. Crescer e não saber

1107
o próximo passo. De viés pela vida, troquei a roça pela cidade na intenção de me
perder em novos caminhos.

A Universidade é um caminho complicado, podemos nos perder em algumas


armadilhas. Eu me senti perdido. Senti por todo momento a anulação de qualquer
conhecimento do qual eu comungava. Busquei soluções que me tiraram o prazer da
pesquisa. A vida adulta é um caminho ainda mais complicado, mercado de trabalho,
aluguel, contas pra pagar, 48h semanais, trânsito, transporte público. Que horas a
magia acontece? A sensação é de que a vida vai perdendo seu encanto.

Fiz amigos que me ensinaram toda ordem de desordem, desfeito, traquinagem


possível. Foi graças a um desses amigos que eu reencontrei o Zé. Sim, eu fui levado
depois de anos a um terreiro de umbanda. Era uma festa de ciganos e toda a casa era
colorida por flores e ornamentos. A ciganada pegava os corpos emprestados pra
dançar e cantar suas histórias, em determinado momento outras entidades desceram
pra saudar os donos da festa. Pomba-gira, tranca rua e malandro foram tomando
emprestados corpos que iam rodopiando ao meio da roda festejar. Um dos malandros
terminada a dança, olhou em minha direção e tomou seu caminho para o fundo do
terreiro, onde eu me encontrava. Achei naquele momento que ele ia cumprimentar
o guardião da porteira, ou alguém atrás de mim. Mas ele parou bem a minha frente,
olhou fundo nos meus olhos, me deu um abraço apertado e disse: “Que saudades,
meu amigo”.

Reencontrar o Zé foi como reencontrar possibilidades que eu achei que havia perdido
havia muito tempo. Tomar posse dessa mágica que varri pra debaixo do meu tapete.
Mas essa não é uma história sobre umbanda, ao mesmo tempo que as matrizes desse
culto são fio nessa rede. Rede que este reencontro ajuda a complexificar. Abrem-se
incontáveis novos fios quando perdemos as bordas. As bordas como limites que a
razão nos impõe através do desencanto.

Eu entendo esse desencanto assim: ele lima todas nossas dobras, nos quer retos,
enformados, nossos tropeços, passos tortos, desmunhecadas, rebolados, toda sorte
de mal engendramento do nosso corpo, são anormalizados por comparação a um
engendramento ideal, funcional, produtivo. Crescemos aprendendo de forma direta
e indireta que nossos gestos, pensamentos, desejos, são o erro, a patologia.

1108
É Fanon (2008, p.94) que inspira essa reflexão quando escreve sobre este sentimento
de desarranjo a que somos impostos pela colonialidade:

[...] Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida
que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um
colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade,
pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu
acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou
uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante,
repugnante, fornecedor de cana macia e de algodão sedoso, que não
tenho nada a fazer no mundo.” Então tentarei simplesmente fazer-me
branco[...]

Em seus estudos Fanon analisa a patologização dos corpos e mentes negras pela
sociedade colonialista, sobremaneira expondo seus efeitos nas colônias da França,
cuja o tipo de colonialismo é destrinchado pelo autor por sua especificidade
psicológica. Mais à frente o autor inverte os papeis e inicia uma análise das doenças
mentais dos brancos, suas fobias. Isso me traz a mente um outro autor que dialoga
sobre colonialidade e saberes:

Observando essa situação, podemos dizer que a sociedade é construída


através de um saber sintético, fragmentado, segmentado e doente. Os
colonialistas têm uma doença chamada cosmofobia, que é o medo do
cosmos. Eles têm medo do deus deles. Por isso há tanta depressão nas
universidades. Um sofrimento grande. Há gente deixando a
universidade, em um sofrimento grande. Há gente se suicidando,
porque esse lugar é adoecido como a sociedade. (SANTOS, 2019, pg.26)

Essa cosmofobia fundamenta o distanciamento que a sociedade euro cristã mantém


da esfera religiosa de sua cultura, distância num sentido físico e subjetivo. Deus é
temível e inalcançável, a relação ritualística dos fiéis com o culto é asséptica
mantendo o mínimo de contato possível. Isso se reflete na forma como a sociedade
vai se relacionar com o mundo: de forma asséptica e mantendo o mínimo de contato
possível.

O epistemicidio2 em curso tenta apagar os saberes e as culturas não brancas através


da destituição de sua legitimidade e contribuição para a formação da sociedade

2
Boaventura de Sousa Santos (1995, p.328) defende o conceito de epistemicidio como uma estratégia posta em
prática pelas metrópoles europeias, parte dos genocídios perpetrados na expansão da colonial/modernidade. Uma
1109
brasileira, conhecimentos que nossos mais velhos lutaram para manter vivos nos
interstícios da nossa história. Não é de se estranhar que, vez em quando, nossos
corpos sucumbam a norma e ao sintético de que fala Nego Bispo.

Se o corpo sucumbe não é por completo, a gente resiste nas pequenas artimanhas.
Porque o cão, ah meus amigos, o cão é muito bem articulado. E sobrevive nesse corpo
pseudo normalizado um comichão, uma cocega, que inquieta pequenas partes do
nosso corpo e faz vibrar, o mínimo que seja, a potência de desfazer o feito. Dissolver
a solda, virar remendo, gambiarra. Rasgar o pé no caco de vidro, morder a língua. Se
a gente deixa esse pedacinho de célula vibrar, ele vibra, e vibrando vai tomando o
corpo todo até fazer jorrar o gozo. O gozo que dói, dá aquela vontade de morder a
mão, culpar alguém, culpar a si. Até que o gozo deixa de doer. E a gente se permite
deixar o diabo entrar na roda de novo. As gentes que andavam em reto, começam a
ir pra todas as direções, girar pra cima e pra baixo, querendo esfregar um no outro,
querendo entrar um no outro e gozar. Gozar junto. Que sozinho a gente não
consegue ser.

Esse estar junto é o que vai desenhando minha formação dentro/fora da academia
nos anos que se seguem. Os encontros vão fortalecendo nossos passos no desafio e
nos ensinando a dançar melhor velhas danças. E foi querendo ser/estar junto de
novas maneiras que eu voltei a escola, através do PIBID3 e dos estágios docentes.

Chegando ali com olhos abertos e lupas aguçadas, pude encontrar experiências que
faltavam na minha passagem pela escola como aluno que viria a se tornar professor,
vivenciar artistagens e afetos únicos que cada escola existente ali naquela mesma
macro instituição cocria. Entender a rebeldia e o caráter criador dos cotidianos e
todos seus atores me ajudou definir como eu queria ser como educador, não um
método, uma abordagem teórica, mas uma atitude de aprendizagem e constante
cocriação com os cotidianos, um envolvimento por inteiro, orgânico e ético.

Quando chegamos ao mestrado, iniciado em março de 2020, os cotidianos estão


revirados pela pandemia. Com escolas fechadas, foi preciso entender que essa

forma de solapar saberes que destoem e se oponham ao paradigma de dominação etnocêntrico europeu e que se
reflete na sociedade contemporânea.
3
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
1110
pesquisa, que era a minha própria formação, traçava diálogo com professorxs que
poderiam participar ativamente dessa produção mesmo à distância. Afinal a
virtualidade, a comunicação entre pessoas geograficamente distantes não foram
inventadas em decorrência da pandemia nem tampouco das possibilidades
tecnológicas. Nos comunicamos, nos relacionamos desde sempre com pessoas e
saberes fisicamente impalpáveis, contudo, inegavelmente concretos. Como
exemplificam as memórias negociadas e coproduzidas ao longo das gerações.

Como pesquisa, então, não tenho objeto, sobretudo no sentido do afastamento entre
investigador e investigado. pois pesquiso a mim e meus pares, nossa cultura, nossa
memória e a imaginação de nossa ancestralidade ativamente criando futuros,
formando professorxs, imaginando a escola. E a distância imposta em nada interfere
nessas escolhas, ainda que estivesse em pesquisa que se desse em cotidiano escolar
com seus atores em presença, ainda estaríamos num exercício coletivo de imaginar
escolas. Afinal toda instituição resulta em maior ou menor grau da força do
imaginário pessoal em interação com os coletivos aos quais se pertence ou se
atravessa. As realizações sociais que tecem o corpo múltiplo e diverso da História
emergem da base comum do imaginário. Memórias, experiências, realizações
materiais e imateriais envolveriam a mesma energia que constitui e institui o
humano, as práticas e aspirações do imaginário. Afinal, como escreveu Pareto, “na
vida dos povos nada é tão prático como o ideal” (1971, p.138)

Através de videochamadas e ligações telefônicas, encontrei com meus interlocutores


em conversas onde propus trocarmos acerca de nossos percursos formativos até
chegarmos à profissão docente. Foram diálogos gravados, apenas orientados pelo
tema disparador dos percursos, onde partilhei tanto quanto recebi, afim de manter
a ideia de troca. Fui presenteado com imagens e memórias de momentos diversos da
trajetória de meus pares, que foram a base maior de reflexão e criação de minha
pesquisa. Em nossas diferenças e semelhanças, encontramos a ancestralidade afro-
brasileira nos orientando nesse caminho e nos possibilitando um olhar mais plural
para as experiências vividas.

1111
Imagensmemória

Memórias são imagens de acontecimentos outrora vividos por alguém e contadas, ou


não, a outras pessoas. Ressaltando que o “vivido” permanece reconfigurado em
imagens, portanto, resultado de jogo do afeto e do registro poético pessoal. Lembrar
é, sob essa perspectiva, inseparável de criar poeticamente: da lembrança à narrativa
do lembrado. A partir do momento que termina a experiência, só podemos acessá-la
através da memória, como fonte de coisas a serem ativadas por razões diversas, as
experiências negativas para evita-las, para superá-las, as positivas para curar e
entusiasmar, para goza-las mais vezes e fortalecer o propósito de novas experiências
semelhantes.

Há também as memórias que nos são partilhadas e das quais tomamos posse de tal
maneira que ela passa a ser também nossa. Pois, uma das funções da partilha de
memórias é exatamente manter o patrimônio de determinadas culturas por meio da
herança dos mitos, história, ritos, etc. com as próximas gerações

Muito me interessa o passado em seu potencial dinâmico de nos pôr em movimento


de criação do agora. Meu entendimento acerca da imagem que escrevo, vai molhar
os pés nas águas de Bachelard (1997, pág. 142), como fonte de inspiração e decisão na
escrita: “Seria preciso não apenas pesar os fatos como também determinar o peso
dos sonhos. Pois na ordem literária, tudo é sonhado antes de ser visto, ainda que seja
a mais simples das descrições.” Acolho sua reflexão como uma recomendação de
cuidado na escrita, ser cuidadoso para não cair em dicotomias do real e do irreal.
Apreciar a densidade das imagens mais ligadas ao irracional, mas também saber
encontrar-se na superfície da razão.

Tal escolha me permite abraçar a imagem literária como minha ferramenta de


configuração dos símbolos e memórias que se articulam na criação da pesquisa. O
que mais me preocupa enquanto organizador de um texto escrito a diversas mãos,
acreditando na contaminação de meu pensamento por suas criações em nossas
conversas, é fugir do mero registro e, portanto, desenhar a escrita, sem com isso
perder a compreensão de que trato de memórias caras às pessoas que se dispuseram
a dialogar sobre elas e compartilha-las.

As imagens e as memórias que compartilhamos durante a pesquisa se somam as


reflexões que tecemos para dar corpo a narrativas que contam do que aprendemos
1112
e do que criamos. Elas falam de cotidianos e suas escolas, currículos, afetos,
pesquisas, etc. É o que oferto aos meus pares, literaturalizando a pesquisa que
construímos juntos.

Histórias de reencantamento e seus autores

Professora Monstro

Um dia fui guarda em um templo sagrado, um desses lugares palacianos da arte. Foi
lá que conheci Pâmela Souza, professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro, e seus
belíssimos alunos. Logo percebi que se tratava de uma professora fora do
convencional. Ela parecia uma amiga junto aqueles alunos, conversava e se divertia
de igual com os jovens. Não é atoa que uma das narrativas dessa pesquisa seja sobre
nossos encontros.

Nesse tempo que pude conhece-la, antes e durante nosso convívio na pós graduação,
criei muito afeto e admiração por ela. Em suas memórias encontrei desafio e desvios,
encontrei monstros e demônios, cabeleiras e passinhos, fazendo arte e mantendo a
vida apesar de muitos apesares.

Vi ali um convívio e um respeito entre a diversidade, um convívio e uma negociação


viva, jamais pacificada, entre uma professora, escolas e alunos. Afeto e cuidado com
todos, até mesmo aqueles cuja diferença nos causa estranhamento. Aqui nossas
monstruosidades, aquilo que anuncia nossa diferença, se encontram pra narrar e
refletir sobre o necessário exercício ético, entendido como a incondicional defesa da
vida digna de qualquer pessoa.

Reaprendendo a artistagem

Antes de conversar com a professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro, Mariana


Maia, já conhecia sua arte. Sabia que ela poetava com seus alunos, sabia que sua
ancestralidade e religiosidade banhavam sua vida como artista. Em nossas conversas
encontrei a profissão exercida na relação indissociável da artista-professora. Pois
não há como separar a prática pedagógica da criação artística na atuação de Mariana,
que envolve a rebelião do corpo às suas aulas com o desfrute e a criação poética em
grande potência.

1113
Uma mulher preta que toma posse da arte, e não contrário, não se deixando possuir
pela institucionalidade do sistema da arte. Certamente tem criado suas artes do fazer
(CERTEAU, 2019) de modo a driblar os desafios e imposições escolares por meio da
inventividade comum aos artistas, portanto, muito tem de útil à Educação para nos
ensinar.

Buscando saber que arte seria essa que vem pra escola com Mariana, redimensiono
os questionamentos sobre o que me afasta da Arte, e reconheço como a companhia
de Mariana e Rosa Dias (2011) me permitem reencontrar a arte de viver.

O reencontro, o novo encontro é o que reacende experiências felizes enervadas de


potências estéticas e sabores preciosos. A arte de viver é manifestada nos encontros
da infância à vida toda nas quais o prazer da autocriação se funde com o estar junto.
A felicidade desfrutada nas brincadeiras infantis e nas aventuras juvenis é assim,
mesmo em outros termos e contextos, reencontrada na experiência com a arte, aqui
com a obra da artista-professora mariana.

A escola que não tem muros

Marê Travassos é uma professora de artes que nasceu, cresceu e leciona em Santa
Cruz na Rede Municipal do Rio de Janeiro. Foi em seu cotidiano, comungando de suas
delícias e dessabores, que aprendi que podemos ser felizes como professorxs.
Quando conversamos, meio aos estragos da pandemia, via que a escola ausente se
abatia sobre suas memórias contundentemente.

Partilhamos imagens sobre a falta e o que fazer diante dela. Em suas imagens vi a
escola indo à rua, buscando alunos, encontrando sua comunidade. A arte de viver e
cuidar saía de sua boca e me mostrava ação e esperança. Nessa história vamos refletir
sobre o ser professor além da sala de aula.

O Jardim de Histórias de Exu

Geisa é uma escritora e professora da educação infantil que entrou na minha vida no
começo do mestrado. Demos muitos passos juntos nessa empreitada, me sinto seu
aluno mais do que ela pode imaginar. Não eram meus planos originais contar com a

1114
sua cocriação na pesquisa, mas se formaram memórias, se imaginaram escolas que
merecem ser narradas.

A professora Geisa é uma catadora de imagens, uma poeta, que escreve com
crianças, suas alunas, os saberes mais necessários do mundo. Esse texto versa sobre
nós, exus, Exu e Xangô escrevendo histórias sobre criar histórias.

Nós temos histórias no plural

Magno Coube é um professor da Rede Municipal de Duque de Caxias que vem


pesquisando em sua pós graduação a arvore genealógica de sua família. Sua busca vai
se enredar em documentos e registros históricos, indo ao encontro de ancestrais
memórias de suas origens.

Sua busca me desperta questões quanto as lacunas existentes quando olho para o
passado de minha família, cheio de lacunas e faltas. Mas o que nos falta de
oficialidade, preenchemos com narrativas e costumes. É nesse encontro entre
pesquisas que escrevo sobre as histórias que temos, e as que inventamos onde falta.

Considerações provisórias

Grada Kilomba (2019, p. 28) afirma no início de seu livro “Memórias da Plantação” que
a produção da pesquisa e a escrita daquela obra fazia parte da ação de “tornar-se
sujeito4” em referência ao pensamento de bell hooks, que reconhece a negação da
condição de sujeito às pessoas negras na sociedade e a necessidade de um
movimento de autocriação de suas humanidades como resistência e luta. Ao passo
que acreditam na escrita e na produção artística como formas de se afirmarem como
indivíduos e como grupo diante das sistemáticas tentativas de esvaziamento de suas
identidades e destruição de suas histórias.

4
Falamos sobre como toda luta libertadora iniciada por grupos de pessoas que têm sido vistos como objetos começa
com um processo revolucionário no qual afirmam que são sujeitos. É esse processo que Paulo Freire enfatiza: “não
podem comparecer à luta como quase ‘coisas’, para depois ser homens”. Pessoas oprimidas resistem identificando-
se como sujeitos, definindo sua realidade, configurando sua nova identidade, nomeando sua história, contando sua
história. (hooks, 2019, p. 85)
1115
A ideia de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral,
incorpora a crença de que a história pode “ser interrompida,
apropriada e transformada através da prática artística e literária”
(hooks, 1990, p. 152). Escrever este livro foi, de fato, uma forma de
transformar, pois aqui eu não sou a “Outra”, mas sim eu própria. Não
sou o objeto, mas o sujeito. Eu sou quem descreve minha própria
história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um
ato político. O poema ilustra o ato da escrita como um ato de tornar-
se e enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha
própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história.
Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto
colonial predeterminou. (KILOMBA, 2019, p. 28)

Acredito e escrevo pautado na necessidade de me recriar no exercício reflexivo e


criativo da pesquisa. O que afirmo é minha posição como acadêmico negro que pensa
e cria negociando com o que é academicamente esperado, e a imaginação criativa,
que me possibilita contar histórias. Se o faço, é porque tenho suporte daqueles que
vem a muito escrevendo pesquisas que valorizem o sensível, o imaginário e o afeto.
Porém, é inegável que existe uma grande quantidade de acadêmicos que ainda se
negam a aceitar o valor dos saberes menos aproximados da razão, em especial os de
origens diversas ao europeu.

Escrever imagens, histórias, é minha maneira de viver a possibilidade que tenho


como mestrando, de me voltar para minha ancestralidade, como fonte, me
aventurando em uma pesquisa que é criada enquanto aprendo com professorxs, suas
memórias, imagens e visualidades. Aprendo enquanto me repenso e reinvento, como
sujeito engajado com a educação. Criamos, então, uma colagem que não é só minha.
É o encontro do passado a nossa frente, como lente para ver o presente, presente
onde afirmamos nossa existência, e criamos futuros.

As histórias que escrevo são apenas uma parte do que aprendi-criei com meus
cocriadores, são permeadas pelas reflexões que me instigam, e bordadas com as
belezas que me ofertam. Uma experiência de criação onde posso desenhar as faltas,
pensar conceitos e imaginar com nossas imagens memória, afim de oferecer ao leitor
histórias, imagens e reflexões sobre a formação docente, o cotidiano escolar e as
ancestralidades, alinhadas aos saberes de autores que apostam na pluralidade de
ideias e na diversidade de epistemologias, como as feministas negras, que tanto
inspiram o trabalho.

1116
As redes de afeto, saberes e demais experiências que configuraram essa pesquisa, lhe
dando suporte e desenhando a sua Rosa dos Ventos, se deveu ao encontro, como já
afirmado, de histórias de professorxs, histórias de escolas, estudantes e interessados
na participação das artes e da cultura visual aliadas às histórias das ancestralidades
africanas na formação escolar. A pesquisa, graças a essas redes, nos evidenciou a
prioridade dos currículos dos afetos que emergem ne se consolidam nas práticas
cotidianas desde os primeiros passos da trajetória da humanidade. Práticas que os
africanos escravizados no Brasil, mesmo que despossuídos dos mínimos pertences
materiais, fizeram aportar ao presente no volumoso, complexo e profundo
imaginário que nos irmana nas religiões, nas artes e demais saberes deles herdados.
São essas mesmas práticas de cuidado e poesia que identificamos nas escolas e
buscamos explicitar via os encontros com as suas professorxs de Artes que em suas
diferentes ações e particularidades de trabalho e experiências diversas nos permitem
apostar que a atualização da educação escolar e da formação docente compatíveis
com os desafios de hoje serão significativamente favorecidas se consideradas as
histórias de reencantamento, de aprendercriar com professorxs.

Referências

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 1997
DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2012.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008
HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante,
2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.
MAFFESOLI, Michel. Homo Eroticus: comunhões emocionais. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2014.
SANTOS, Antônio Bispo dos. As fronteiras entre o saber orgânico e o saber sintético.
Tecendo redes antirracistas: Áfricas, Brasis, Portugal. Organização: Anderson Ribeiro Oliva
et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro:
Graal, 1989.
1117
VICTORIO FILHO, Aldo; NASCIMENTO, Rodrigo Torres. Práticas da imagem e produção de
vidas: insurgências curriculares visuais, estéticas e culturais nas redes. Revista Brasileira de
Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 2, n. 6, p. 535-548, set./dez. 2017
WALKER, Alice. Em busca dos jardins de nossas mães. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
2021.
WULF, Christoph. Homo Pictor: imaginação, ritual e aprendizado mimético no mundo
globalizado. São Paulo: Hedra, 2013.

Mini Currículo

Luis Otávio Oliveira Campos


Mestre em Artes e Cultura Contemporânea pelo PPGARTES/UERJ, licenciado em Artes Visuais pelo
IARTE/UERJ e Professor da rede Municipal de São Gonçalo. Fui bolsista de Iniciação à Docência
(PIBID) no subgrupo Artes UERJ, coordenado pelo professor Aldo Victório Filho onde iniciei minha
pesquisa com os cotidianos escolares, com especial interesse nas poéticas do imaginário e na
ancestralidade afro-brasileira. E-mail: lotaviocampos@gmail.com

1118
EIXO D

ARTE Y PRÁCTICAS INTERPRETATIVAS


PICTORIALISMO E FOTOGRAFIA, HISTÓRIA DA ARTE E ANACRONISMO

PICTORIALISM AND PHOTOGRAPHY, ART HISTORY AND ANACHRONISM

Catia S. Herzog
Brasil

Resumo

O pictorialismo fotográfico acompanha a trajetória da fotografia. Em suas idas e vindas, esta


corrente fotográfica possibilita leituras sobre o passado e o presente do imaginário visual.
Seu percurso, desde a encenação dos tableaux vivants até ao costume da selfie, suas divisões
internas e a problematização de sua classificação como movimento artístico e/ou
fotográfico, demanda a investigação sobre a sobrevivência de fórmulas estéticas caras à
pintura, na prática da fotografia atual. A ideia de sobrevivência (Nachleben) de Aby Warburg,
em seu desenvolvimento por autores como Georges Didi-Huberman, pode deslocar o
pictorialismo da sua posição histórica e cronológica, enfrentando seu anacronismo, utilizado
aqui para produzir novas significações e abordagens da cultura visual de massas e da arte
contemporânea. Neste sentido, o pictorialismo adere, desde seus primórdios, a certa
concepção de modernidade novecentista, mas também à modernidade tardia do século XXI.
A compreensão do pictorialismo enquanto “sobrevivência”, não apenas de formas estéticas,
mas de expectativas e visões sobre a sociedade do seu tempo, revela-se, nas práticas visuais
contemporâneas, como uma fonte de pesquisa em que o anacronismo histórico é visível e
traduz a moral idealista ainda pregnante na história da arte, na fotografia e na arte
contemporânea.

Palavras-chave: Fotografia, Pictorialismo, Anacronismo

Abstract

Photographic pictorialism follows the trajectory of photography. In its comings and goings,
this photographic current allows readings about the past and present of the visual
imagination. Its path, from the staging of tableaux vivants to the custom of the selfie, its
internal divisions and the problematization of its classification as an artistic and/or
photographic movement, demands an investigation into the survival of aesthetic formulas
dear to painting, in the practice of current photography. Aby Warburg's idea of survival
(Nachleben), in its development by authors such as Georges Didi-Huberman, can displace
pictorialism from its historical and chronological position, facing its anachronism, used here

1120
to produce new meanings and approaches to mass visual culture. and contemporary art. In
this sense, pictorialism adheres, from its beginnings, to a certain conception of nineteenth-
century modernity, but also to the late modernity of the twenty-first century. The
understanding of pictorialism as “survival”, not only of aesthetic forms, but of expectations
and visions about the society of its time, reveals itself, in contemporary visual practices, as a
source of research in which historical anachronism is visible and translates the idealist
morality still prevalent in the history of art, photography and contemporary art.

Keywords: Photography, Pictorialism, Anachronism

Neste início do século XXI, a massificação dos meios digitais de comunicação se


apresenta como um desafio para a teoria e para a história da arte na medida em que
a nova plasticidade da imagem digital é capaz de colocar em causa as próprias noções
estabelecidas acerca das imagens em sua relação com a visão e com o olhar. Assim,
renova-se o debate sobre uma possível “virada” pictórica nos estudos e teorias da
imagem, “virada” esta que pode reconduzir a arte para seus espaços e modos
consagrados, ainda que com fronteiras amplamente alargadas. A proliferação de
práticas estéticas, na publicidade, no jornalismo e, sobretudo, no universo da
internet, encontra um contraponto na arte contemporânea. A extrema
conceitualização característica de certas obras de arte, presente tanto em imagens
precárias quanto em imagens de alta definição, a “ralentização” dos processos
técnicos de produção da imagem fotográfica, a serialização de exemplares, o grande
formato – todos estes instrumentos visam assegurar para a fotografia um lugar ainda
destacado na arte, em uma sociedade em que cada indivíduo é um potencial produtor
de objetos belos.

Atualmente, teóricos e pensadores da imagem reconhecem no universo da imagem


digital modos de representação fotográfica que remetem a uma tradição visual, a um
circuito social e, em última instância, ao referente da fotografia. Entretanto, apesar
da evidência factual de que a obra de arte é sempre capaz de ultrapassar seus limites
classificatórios, ainda persiste por parte da crítica uma resistência em conceber a
história da arte em termos de choque, rupturas e anacronismos.

A premissa de que a fotografia sempre remete ao índice, isto é, a um traço do


referente na superfície fotossensível, seja analógica ou digital, é o argumento para

1121
sustentar um modo de pensar a fotografia que omite derivas, latências, e encontros
em sua história. No entanto, a presença do referente em uma foto pode e deve ser
relativizada - uma vez que ponto, linha e plano podem produzir, através da tecnologia
digital, uma imagem de características fotográficas. Este dado, que surge a partir da
alta tecnologia, coloca a crítica da fotografia diante de um desvio daquilo que se pode
pensar como a “essência” da fotografia: a emanação de raios luminosos do referente,
captados pela câmera escura e registrados em um suporte, ou seja, a relação indicial
entre objeto e imagem técnica.

Colocando a questão em termos teóricos, podemos nos perguntar quais as


consequências do debate sobre a representação diante da total arbitrariedade do
signo fotográfico no contexto da produção digital de imagens na sociedade
contemporânea. Vale ressaltar que no uso comum, contudo, a ideia geral de
fotografia segue sendo a mesma, a de índice visual de um evento. Isto quer dizer que
ela não se desprende abruptamente do seu caráter documental. É neste sentido que
se pode pensar em uma continuidade da história da fotografia, sem rupturas
definitivas, mas que não pode deixar de lado as mudanças técnicas e o sistema de
representação visual que pré-existe a própria fotografia.

Enquanto os usos e funções da fotografia permanecem mais ou menos inalterados


para o grande público e a fotografia continua funcionando como documento, o
debate entre críticos e historiadores tende a se debruçar sobre o próprio meio,
reafirmando a essencialidade da fotografia mesmo quando ela se volta contra certos
princípios considerados tradicionalmente como suas bases fundamentais, o tempo e
o espaço. Em extremo, a única certeza que se tinha sobre uma fotografia é que ela
se constituía como a representação espacial de um evento ocorrido em um momento
específico.

É neste contexto particular ao hiper-realismo digital da fotografia contemporânea


que se consolida um fenômeno estético que pode ser definido, a princípio, como uma
espécie de remanescência de um estilo de fotografia típico da Belle Époque chamado
de pictorialismo. Isto se mostra de várias formas distintas: no fotojornalismo, na
publicidade, nas práticas cotidianas, na produção televisiva e na arte contemporânea.

Na historiografia do pictorialismo percebe-se a dificuldade de uma limitação


cronológica do movimento enquanto tal, tanto no que diz respeito ao seu início

1122
quanto a seu fim. Este é um dos caminhos de problematização do pictorialismo como
movimento: a dificuldade em traçar suas fronteiras.

Maria Teresa Bandeira de Mello indica que a partir de 1890 surgem “As primeiras
manifestações do pictorialismo em Viena, Londres e Paris.” (MELLO, 1998, p. 14) e, tal
como Magalhães e Peregrino, afirma que a exposição de 1891 (2012, p. 23), na cidade
de Viena, é um dos marcos iniciais do movimento pictorialista: “A primeira exposição
do Camera Club, de Viena, em 1891 pode ser considerada como a data oficial do
nascimento do pictorialismo.” (MELLO, p. 34). Entretanto, nem todos os autores
atribuem um marco histórico fixo para sua aparição.

Alfred Stieglitz (1864-1946) no artigo “A fotografia pictorialista”, escrito em 1899, é


mais impreciso em determinar o surgimento do pictorialismo:

Há cerca de dez anos, o movimento pictorialista germinou da confusão


em que a fotografia nascera e assumiu forma definitiva, na qual ela
podia ser praticada enquanto tal por aqueles que amavam a arte e
procuravam um outro meio, que não o pincel, para expressar suas
ideias”. (STIEGLITZ, 2013, p. 131).

Ressaltando o aspecto “interplanetário” do movimento pictorialista, Angela


Magalhães e Nadja Peregrino sustentam a premissa de que o pictorialismo, sobretudo
através da publicação de revistas e boletins, ultrapassa suas fronteiras espaço-
temporais e se expande como uma tendência da fotografia:

Sem sombra de dúvida, os acontecimentos estavam embebidos de uma


atmosfera internacionalista. E as revistas de fotografia, editadas em
países diversos – dos Estados Unidos à Europa, Ásia – constituem-se
num ponto emblemático para a elaboração de um discurso pedagógico
sobre a fotografia. (2012, p. 27).

Este internacionalismo é um dado fundamental para a compreensão do pictorialismo


como uma tendência da fotografia, mais que como um movimento artístico. A forma
que o debate adotou em diferentes países, de oposição entre puristas (partidários da
fotografia sem intervenção técnica) e intervencionistas (partidários da intervenção
técnica na cópia ou mesmo no negativo), antecede e supera o movimento e está
enraizada na própria fotografia, inventada também em diversos países, mais ou
menos simultaneamente.

1123
Na história do pictorialismo, uma divisão entre “precursores” e “pictorialistas
propriamente ditos” pode reforçar a ideia do pictorialismo como um movimento
historicamente datado e superado, enquanto também indica ao menos dois
momentos de sua emergência: o inicial, nos anos 1840, que ainda não o configura
como um movimento e sim como uma tendência, e o seu momento de apogeu - em
termos de popularidade - que se deu a partir do final dos anos 1880.

A presença do pictorialismo em dois momentos históricos pode indicar tanto sua


evolução e decadência quanto sua permanência, pois, tradicionalmente, o
pictorialismo se confunde com a prática da encenação fotográfica. Basicamente,
todo o pictorialismo intervencionista envolve algum tipo de “encenação fotográfica”,
embora nem toda encenação fotográfica possa ser considerada como “pictorialista”.
A princípio, tais encenações tinham um objetivo bastante específico: fornecer apoio
ao retratado durantes os longos tempos de exposição da fotografia. Assim, os
fotógrafos utilizaram em seus estúdios todo o tipo de acessórios nas mais distintas,
e até bizarras, configurações cênicas. Maria Teresa Bandeira de Mello sustenta que,
no afã da realização técnica e ao largo de uma reflexão estética mais aprofundada, os
primeiros fotógrafos ignoraram a “especificidade do meio” (MELLO, 1998, p. 20) e
impregnaram a produção fotográfica de diversos elementos do léxico da pintura (p.
20).

A diversidade historiográfica na determinação de um marco inicial do pictorialismo


– devido à falta de um manifesto ou de um evento inaugural - colabora com a
percepção de que há linhas de força do modo pictorialista de tratamento e percepção
da imagem, da encenação oitocentista ao pictorialismo digital do século XXI, que
permaneceram latentes ao longo do século XX, para depois irromper com força na
cultura de massas do início do século XXI, quando várias ferramentas técnicas
utilizadas para a materialização de uma estética “passadista” estão à disposição de
uma multidão de usuários, que tem objetivos diferentes daqueles dos foto-amadores
dos séculos XIX e XX.

Fotógrafos do período inicial da fotografia, anterior ao “movimento” pictorialista, e


que apostaram em encenações - como Júlia Margareth Cameron (1815 – 1879) e Lewis
Carrol (1832 – 1898) - anteciparam fórmulas adotadas pelo pictorialismo.

1124
As encenações remontam aos tableaux vivants, prática amplamente difundida no
século XIX. Trata-se de um grupo de pessoas reunidas, vestidas a caráter, iluminadas
e posicionadas de modo a representar pinturas consagradas. Os tableaux também
eram feitos para marcar e comemorar eventos históricos, com objetivos didáticos e
morais. Após a invenção da fotografia sua prática rapidamente se disseminou, se
atualizando hoje nas chamadas living pictures, ou no cinema, em filmes como
Viridiana (Luis Buñuel, 1961), que evoca a Santa Ceia de Leonardo da Vinci em um
dos seus planos. Outros exemplos, como Melancolia (Lars Von Trier, 2011) e Ronda
Noturna (Peter Greenaway, 2007), reencenam as pinturas Ofélia (1852) de Millais
(1829-1896) e Ronda Noturna (1639-1642), de Rembrandt (1606-1669),
respectivamente.

A fotografia oitocentista se utilizou largamente dos tableaux vivants. O caráter


narrativo destas encenações seguia os modelos da pintura, e, frequentemente, as
cenas montadas procuravam reconstituir passagens e momentos da religiosidade
cristã ou de inspiração literária. Estas representações não eram, à época, entendidas
como falsificações, inclusive quando seu tema era algum evento histórico, já que a
ideia de falsificação só se tornou relevante posteriormente, a partir do momento em
que o caráter documental da fotografia foi plenamente aceito. Ao longo do século XX,
a mise-en-scène foi utilizada, sobretudo pela publicidade e pelo cinema, para
fornecer ao público uma experiência exacerbada da realidade. Porém, embora tenha
sido sempre assimilado à prática da encenação, o pictorialismo representa, na
verdade, uma tendência estética muito mais influente e abrangente do que qualquer
movimento que tenha se reivindicado historicamente como tal, já que ele atravessa
toda a história da fotografia e coloca a questão do seu estatuto como arte.

Na qualificação do pictorialismo como movimento, “até quase recentemente, o


adjetivo ‘acadêmico era usado de maneira genérica e em seu sentido mais redutor e
pejorativo”. (PEREGRINO, 1991, p. 12). Esta atitude se justifica pela forte influência do
neoclassicismo, do romantismo, do impressionismo e do realismo nas academias de
belas artes europeia e brasileira (PEREIRA, 2010, p. 17 – 18). Deste modo, o
qualificativo “academicismo” no Brasil é usado de uma forma mais alargada, ainda
que pertinente: a academia de belas artes brasileira adotou o neoclassicismo como
estilo oficial, mas também soube abraçar o romantismo e o realismo a partir do

1125
século XIX1. Posteriormente, o impressionismo também encontrará espaço neste
caldo eclético da história da arte brasileira. Precisamente, o que mais caracteriza o
pictorialismo é sua assimilação de diferentes estilos da pintura. Nele abundam
elementos do neoclassicismo, do romantismo, do realismo, do impressionismo e até
mesmo, em sua versão purista, do construtivismo.

Para Helouise Costa, o pictorialismo, além de possibilitar a convergência das


diferentes vertentes da fotografia artística, se caracteriza por sua relação com a arte
e a pintura:

A solução encontrada pelos pictorialistas na busca de uma fotografia


artística resultou numa verdadeira imitação dos padrões da pintura do
século XIX: Romantismo, Naturalismo, Realismo e Impressionismo
desfilavam, de forma algo patética, nos salões do mundo inteiro.
(COSTA; RODRIGUES, 1995, p. 33).

Na leitura de Costa e Rodrigues, o ecletismo pictorialista é caracterizado como


“imitação” e como “patético”. Os autores não consideraram a ideia do ecletismo como
sintoma de uma modernidade, ainda que reativa, que não pode ser entendido em um
registro simplesmente negativo.

Em sua compreensão do pictorialismo como um movimento que avança em direção


à fotografia moderna, Costa e Rodrigues acabam por afastá-lo do contexto da
modernidade brasileira, como se ele fosse um passo superado numa trajetória
progressista da história da fotografia.

Com isto, pode-se observar que a vulgarização e a popularização da encenação,


assim como a ideia de falsificação que a acompanhou no contexto do século XX,
conferiram posteriormente ao pictorialismo uma pecha pejorativa - como se toda
configuração plástica, inclusive a documental, não fosse construída ou encenada em
alguma medida.

ͳÉimportante ressaltar que para Sonia Gomes Pereira, “A palavra ‘acadêmico’ não designa um estilo, mas sim
uma postura estética. Assim, não se deve tomar o conceito de ‘acadêmico’ como sinônimo de ‘neoclássico’,
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impressionismo e o simbolismo”. (PEREIRA, 2010, p. 74). 

1126
O pictorialismo tem sido frequentemente considerado em seus aspectos negativos:
seja em sua artificialidade e anacronismo, seja em seu academicismo e seu
moralismo. Angela Magalhães e Nadja Peregrino atribuem ao fascínio disruptivo do
modernismo a carga pejorativa com que o pictorialismo foi historicamente
compreendido, e lamentam que “a idealização do olhar moderno, por vezes à revelia
dos artistas, tenha obscurecido quase por completo qualquer outra fonte de
interpretação [sobre o pictorialismo], constituindo-se no principal viés para validar
o estatuto artístico da fotografia” (2012, p. 12). No entanto, o pictorialista é um tipo
de fotógrafo que atravessa toda a história da fotografia e seu estilo pode ou não
prevalecer em determinadas épocas. O pictorialismo não diz respeito apenas à
imagem figurativa: a ânsia em dotar a fotografia de valor de culto, isto é, de pensá-la
como uma obra de arte cujo mérito está além de determinado conceito de beleza,
também se esconde no conceitualismo das obras de arte contemporâneas.

Vem daí o esforço em localizar, e ao mesmo tempo relativizar, a ideia de movimento


no que concerne ao pictorialismo: sua dissolução em diferentes áreas de consumo
da imagem - da publicidade à selfie - é de tal ordem que impossibilita a construção
de um pensamento sobre o pictorialismo encerrado na unidade que se supõe ser a
de um movimento artístico. Portanto, apesar da necessidade de refazer esta
historiografia a cada passo, não se deve circunscrevê-lo a um período histórico
fechado, sob o risco de vedar as frestas que permitem uma observação oblíqua deste
estilo ou forma de apreciar a fotografia - seja pelo fotógrafo, seja pelo grande público.

Assim, mais que um movimento artístico, o pictorialismo se configura como um


modo de fazer fotografias que ecoa toda uma tradição pictórica e que, portanto, pode
sobreviver nas práticas contemporâneas da fotografia.

A denominação de “estilo” para classificar o pictorialismo poderia parecer mais


adequada, no entanto, em geral, a origem de um estilo está vinculada a um nome ou
a um artista, antes de se tornar uma tendência e remete à história da arte de caráter
formalista.

Na modernidade tardia, apesar do descolamento imenso entre o real e sua


representação, permanece uma percepção de aderência entre ambos. A fotografia,
devido ao seu caráter simultaneamente indicial e icônico, mostra-se como um
elemento central nesta discussão. O desconcerto sobre o descolamento entre o real

1127
e a representação remonta, no século XX, ao desenvolvimento de disciplinas como a
linguística, a semiologia e a antropologia.

No decorrer do século XX, a guinada epistemológica realizada por estas disciplinas,


somada à mudança veloz das tecnologias de produção de imagens, provocou uma
crise no que concerne ao estudo da imagem, em termos teóricos e metodológicos. A
ideia de uma crise da representação também atingiu a história, a crítica de arte e a
própria produção artística. Na medida em que se tornou mais difícil distinguir o
trabalho artístico profissional de produções estéticas mais corriqueiras,
instrumentais ou domésticas, os artistas sofisticam suas elocubrações e suas obras,
levando o conceitualismo aos extremos da experimentação científica (por exemplo,
no trabalho de artistas como Eduardo Kac2), de tal maneira que apenas olhos muito
treinados entenderão estas produções como sendo de caráter artístico. Assim, em
extremo, temos como contraponto à beleza ideal, própria do pictorialismo, não
apenas a feiura ou o grotesco, mas também a aridez conceitual.

O conceito de “sobrevivência” (Nachleben), concebido no campo da história da arte e


originalmente pensado por Aby Warburg, diz respeito às possibilidades de
sobrevivência e de trânsito de fórmulas estéticas por territórios e temporalidades
distantes. Warburg talvez se opusesse a qualquer classificação em estilos na história
da arte e, por isto, trabalhar com o conceito de Nachleben é trabalhar
necessariamente com o anacronismo - um método ainda controverso para a
historiografia tradicional. Warburg foi um dos precursores da ideia de uma história
da arte aberta, e é preciso ressaltar que seu pensamento disruptivo encontrou certos
limites quando se deparou com a necessidade de maior sistematização científica. Daí
o aparente esquecimento de sua obra que, no entanto, se manteve viva através de
seus discípulos, os quais deram continuidade às suas investigações, após a sua morte
em 1929.

Alguns discípulos do Instituto Warburg, como E. Panofsky e Ernest Gombrich,


ajudaram a sistematizar e difundir a “ciência sem nome”, mas cabe a Georges Didi-
Huberman, a maior contribuição contemporânea para a valorização da sua obra. Em

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1128
seu livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby
Warburg (2013), ele ressalta a insuficiência do pensamento de Gombrich e Panosfsky,
no que concerne aos estudos da imagem. Para Didi-Huberman, ambos os autores
cercearam, ou tentaram cercear, o estudo da imagem em um sistema fechado. N’A
imagem sobrevivente em lugar de procurar elaborar um sistema que contenha e
normatize a chamada “ciência sem nome”, Didi-Huberman faz um percurso pelas
influências mais marcantes na obra de Warburg. Nesta trajetória, em que se revelam
nomes como Jacob Burckhardt (1818 – 1897), Edward B. Tylor (1832 – 1917), Darwin
(1809 – 1882) e Nietzsche (1844 – 1900), ele recoloca a “ciência sem nome” no campo
da interdisciplinaridade, marcando, paradoxalmente, sua singularidade.

O encontro intelectual de Warburg com a antropologia de Tylor e sua ideia de


survival teria sido particularmente inspirador para a ideia de uma sobrevivência de
fórmulas patológicas na história da arte. Segundo Didi-Huberman, “a ‘sobrevivência’,
que Warburg invocou e interrogou durante a vida inteira, é, de início, um conceito
da antropologia anglo-saxônica [...]. Indício significativo de uma citação, um
empréstimo, um deslocamento conceitual [...].” (2013, p. 43). Ainda assim, para
discípulos de Warburg como Fritz Saxl e Ernst Gombrich, o conceito de survival em
Tylor, no entanto, seria insuficiente para os propósitos de Warburg e para a “palavra
de ordem de toda a empreitada warburguiana: Nachleben der Antike” (p. 43). Didi-
Huberman destaca a notoriedade da obra de Tylor à época, especialmente o seu livro
Cultura primitiva (1871). Contudo, “a notoriedade de um livro, mesmo imenso, como
neste caso, decerto não basta para garantir seu status de fonte teórica. O ponto de
contato entre a kulturwissenchaft de Warburg e a ciência da cultura de Tylor reside,
sobretudo, no estabelecimento de um vínculo particular entre história e
antropologia”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 44). Diante de seu objeto de estudos e
familiarizado com as reflexões de Tylor,

Warburg encarou o Renascimento (o Renascimento histórico mas


também, por extensão, o processo transhistórico dos “renascimentos”)
não como um revivalismo através do qual se procederia à recuperação
de uma tradição perdida, mas como um mecanismo inconsciente,
próprio da memória coletiva, e portanto capaz de se manifestar através
dos sintomas. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 21).

1129
Para Warburg não existiu um Renascimento propriamente dito, pois a memória está
sempre presente, e não apenas nas fórmulas da expressão estética. Além disso, a
memória não se reduz, tampouco, a um dejeto de outro tempo que sobrevive sempre
igual a si mesmo, a despeito das rupturas históricas que possam ter ocorrido ao longo
do tempo.

Antonio Guerreiro, no livro O demônio das imagens: sobre Aby Warburg (2018), situa
a colaboração de Didi-Huberman para o entendimento da história da arte da
seguinte forma:

[...] Didi-Huberman já tinha demonstrado que a história das imagens


era uma história de “objectos temporalmente impuros”,
temporalmente complexos, estruturada por configurações
anacrônicas, de tal modo que uma história da arte que retirasse daqui
as devidas consequências só poderia ser uma história de anacronismos,
obrigada a pensar ‘gêneros de tempo” diferentes, quer do esquema
temporal do recomeço neoclássico de Winckelmann (com os ciclos,
que lhe são próprios, de grandeza e decadência), quer das concepções
historicistas. Assim, a grande fecundidade da obra de Warburg, nunca
devidamente explorada, consistiria precisamente na sua capacidade de
“desorientar a história”, de a “perturbar”. O ponto de partida de Didi-
Huberman é este: na medida em que, para Warburg, as imagens
produzem um regime de significação que faz apelo aos processos da
memória psíquica, elaborando-se historicamente e geograficamente,
elas reclamam que se alarguem os modelos canônicos da
temporalidade histórica e que se acompanhe a sua “sobrevivência” para
além do espaço cultural europeu e ocidental. Estamos diante de uma
concepção rememorativa da história, em que as imagens, na sua
dimensão de memória ou de tempo histórico condensado, criam, no
movimento de sobrevivência e de diferimento que lhes é próprio,
circulações e intricações de tempos, intervalos e falhas no continuum
da história (GUERREIRO, 2018, p. 22-23).

Nos termos de Warburg, pode-se, portanto, pensar a ideia de estilo como fórmula ou
forma estética. O historiador da “ciência sem nome” elege como mote de sua obra a
sobrevivência (Nachleben) de fórmulas estéticas pagãs no renascimento clássico, que
observa em sua busca por manifestações de fórmulas de pathos (Pathosformel)
(GUERREIRO, 2018, p. 25). Com o termo Pathosformel, Warburg identificou fórmulas
arcaicas da expressão humana carregadas de intensa emoção que, permanecendo

1130
latentes na memória coletiva ao longo do tempo, são ativadas segundo o momento
ou contexto histórico.

A sobrevivência de formulas patológicas na história da arte warburgiana, é assim


definida por Antonio Guerreiro:

[...] o que Warburg entende por Nachleben e remete para uma


sobredeterminação temporal da história que não é a da continuidade
do tempo cronológico não são nunca conteúdos, mas valores
expressivos que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel,
onde se dá a ver uma “mímica intensificada”, uma gestualidade
expressiva do corpo, com origem nas paixões e afecções sofridas pela
humanidade. (2018, p. 26).

Por sobrevivência entende-se algo que perece e renasce ou que meramente


sobrevive à ruína do seu tempo. Giorgio Agamben pontua que renascimento e
sobrevivência não são traduções precisas para o termo Nachleben, que,

[...] só tem sentido se for inserido nesse horizonte mais amplo, em que
as soluções estilísticas e formais adotadas em cada momento pelos
artistas se apresentam como decisões éticas que definem a posição dos
indivíduos e de uma época relativamente à herança do passado e em
que a interpretação do problema histórico se torna, ao mesmo tempo,
um ‘diagnóstico’ do homem ocidental em sua luta para curar suas
contradições e encontrar, entre o velho e o novo, sua morada vital.
(2007, p. 117).

Seja qual for o sentido preciso que se possa atribuir ao conceito de Nachleben,
Warburg inegavelmente toca em um ponto central da teoria da história: o problema
do anacronismo na história da arte. Para Didi-Huberman, “não há história da arte
sem uma filosofia da história – ainda que espontânea, impensada – e sem uma
escolha de modelos temporais; não há história da arte sem uma filosofia da arte e sem
uma escolha de modelos estéticos” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 14).

Didi-Huberman abre um campo de pesquisa sobre a própria condição da história da


arte, que se apresenta de duas formas: por um lado se assenta no paradigma da
história natural, biológico e evolutivo; por outro, se constitui do idealismo metafísico,
que nas palavras de Didi-Huberman, “se entende muito bem com a ‘ausência’

1131
categórica de seu objeto [a arte antiga]”. (2013, p. 19). Em outros termos, a história da
arte, no sentido winckelmanniano, se daria pelo luto de uma ausência.

Para os críticos do pictorialismo, ele equivaleria ao momento de decadência de uma


etapa necessária no processo natural de evolução da história da fotografia. Porém, a
noção de Nachleben pode contribuir para a superação da ideia de pictorialismo
apenas como um movimento ultrapassado e edulcorado: em suas diferentes formas
e temporalidades históricas, se esconde uma concepção histórica evolutiva e
essencialista da arte. A rejeição ao pathos, a idealização do objeto ausente, a imitação
da norma e da historicidade da pintura são elementos constantes na prática
pictorialista. Assim, o pictorialismo surge como um tema de investigação
inevitavelmente anacrônico ao evocar preceitos da pintura tradicional e/ou negando
a condição de reprodutibilidade da fotografia.

A sua importância se dá pelo que mostra e também por aquilo que oculta: ele dá
visibilidade a uma das formas artísticas adotadas pelo idealismo. No entanto, quando
desconsiderada a base onde se instalam seus fundamentos, o pictorialismo pode ser
rejeitado de imediato, como um movimento superficial e artificial. Para compreendê-
lo, enfim, é preciso atentar para seus pressupostos idealistas, modernos e
nostálgicos, e realizar uma investigação atenta aos nossos próprios pressupostos
potencialmente idealistas.

As hipóteses de Didi-Huberman permitem o reposicionamento crítico sobre o


pictorialismo na história da fotografia, considerando-o a partir de fórmulas
pictóricas cuja influência alcança práticas modernas e contemporâneas, eruditas e
populares. A consideração da convivência entre diferentes estilos artísticos nos
permite lidar com o anacronismo das possíveis gamas de associações entre
literatura, romantismo, pintura, artes plásticas, cinema e fotografia: apenas
considerando o anacronismo e as diferenças de produção e exibição entre estas
linguagens, é possível estabelecer suas relações. A absorção do anacronismo na
iconologia, para Didi-Huberman, poderia possibilitar uma aproximação maior ao
método warburguiano.

Desta forma, cabe buscar na história da fotografia a sobrevivência de fórmulas


estéticas vindas de outros meios, que contagiaram a prática fotográfica tornando-se
imperceptíveis, naturalizadas na ideia que se faz cotidianamente da fotografia. O

1132
pictorialismo, ainda que muito pouco estudado, em sua posição enquanto
movimento ou atitude, deve ser compreendido em um contexto em que a história da
arte é concebida como uma disciplina em movimento permanente, de idas e voltas.

Referências

Livro
AMAR, Pierre-Jean. História da fotografia. Lisboa: Edições 70, 2011.
COSTA, Helouise e RODRIGUES, Renato. A Fotografia Moderna no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ: IPHAN: FUNARTE, 1995.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
GUERREIRO, Antonio. O demônio das imagens: sobre Aby Warburg. Lisboa: Língua Morta,
2018.
MELLO, M. T. B. Arte e fotografia: o movimento pictorialista no Brasil. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1998.
MAGALHÃES, Angela; PEREGRINO, Nadja. Fotoclubismo no Brasil: o legado da Sociedade
Fluminense de Fotografia. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2012.
PEREIRA, Sonia Gomes. A arte no Brasil no século XIX e início do XX. In: PEREIRA et al.
História da arte no Brasil: textos de síntese. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.
PEREGRINO, N. (1991). “O Cruzeiro”: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro:
Dazibao, 1991.
POIVERT, M. A fotografia francesa em 1900: o fracasso do pictorialismo [versão eletrônica].
Revista ArtCultura 10 (16), 9-18, Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia (janeiro –
junho, 2008).
Capítulo de livro
AGAMBEN, G. Aby Warburg e a ciência sem nome. In: AGAMBEN (org). A potência do
pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
SIEGLITZ, A. A fotografia pictorialista. In: TRACHTENBERG (org). Ensaios sobre a fotografia:
de Niépce a Krauss. Lisboa: Orfeu Negro, 2013.

Mini Currículo

Catia Herzog
Doutora em História, artista e curadora. E-mail: herzogcatia@gmail.com

1133
EIXO E

ARTE Y POLÍTICAS DE REPRESENTACIÓN


LIVRO DE ARTISTA COMO PRÁTICA EDUCATIVA SOBRE POÉTICAS
ARTÍSTICAS, PROCESSOS DE CRIAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

ARTIST'S BOOK AS EDUCATIONAL PRACTICE ON ARTISTIC POETICS, CREATION


PROCESSES AND HUMAN RIGHTS

Adriene Coelho Ferreira Jerozolimski


UFPel/RS, Brasil

Maristani Polidori Zamperetti


UFPel/RS, Brasil

Resumo

Desde o seu início a fotografia representou um meio de produção e expressão artística que
influencia diretamente a forma como as pessoas veem o mundo. As mudanças trazidas pela
modernidade, como o avanço das técnicas da fotografia e a indústria gráfica geraram
publicações impressas que impactaram as formas de produção e comercialização de
fotografias enquanto objetos artísticos (TANNENBAUM, 2019), mas uma reação política e
estratégica a isto impulsionou a difusão de publicações autorais independentes e processos
criativos experimentais, que culmina nos livros de artista, onde os próprios fotógrafos
manipulam técnicas artesanais. MALTZ (2018), LAMPERT (2015), GRIGOLIN (2013) e CADÔR
(2021), aprofundam a questão sobre livro de artista e apontam para as suas potencialidades
e possibilidades para a produção artística. Neste artigo realizamos uma breve revisão que
sustenta o relato sobre o exercício de criação do livro de artista Declaração Universal dos
Direitos Humanos, autopublicado em 2021, onde a autora busca construir uma narrativa
latinoamericana dos discursos de reivindicação e dos usos dos espaços públicos a partir de
fotografias de pixações de cidades do Brasil, Argentina e Chile, feitas com a câmera do celular
entre 2017 e 2021. Ao buscar um olhar contemporâneo e poético sobre este conteúdo
refletimos sobre a arte não como uma noção, mas uma ação que cria afetos e sensações
(DELEUZE e GUATTARI, 1995), gera diálogo (FREIRE, 1994) e tem potencial político
(SEPÚLVEDA T. e BUSTOS, 2017). Apontamos com isso o potencial do livro de artista para
desencadear práticas educativas e de mediação em arte e cultura visual que avancem, além
das questões sobre os processos de criação das poéticas artísticas em contextos não
institucionais, também nas questões didáticas e pedagógicas da educação em Direitos
Humanos, com ênfase no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: livro de artista, prática educativa, processos de criação, Direitos Humanos.

1135
Abstract

Since its inception, photography has represented a means of production and artistic
expression that directly influences the way people see the world. The changes brought by
modernity, such as the advancement of photography techniques and the graphic industry
generated printed publications that impacted the forms of production and
commercialization of photographs as artistic objects (TANNENBAUM, 2019), but a political
and strategic reaction to this boosted the diffusion of authorials independent publications
and experimental creative processes, which culminate in artist books, where the
photographers themselves manipulate artisanal techniques. LAMPERT (2015), GRIGOLIN
(2013) e CADÔR (2021), deepen the question about artist book and point to this potentialities
and possibilities for artistic production. In this article, we carried out a brief review that
supports the report on the exercise of creating the artist's book Universal Declaration of
Human Rights, self-published in 2021, where the author seeks to build a Latin American
narrative of the discourses of demands and uses of public spaces from photographs of
“pixações” from cities in Brazil, Argentina and Chile, taken with a cell phone camera between
2017 and 2021. By seeking a contemporary and poetic look at this content, we reflect on art
not as a notion, but an action that creates affections and sensations (DELEUZE e GUATTARI,
1995), it generates dialogue (FREIRE, 1994) and has political potential (SEPÚLVEDA T. e
BUSTOS, 2017). With this, we point the potential of the artist's book to trigger educational
and mediation practices in art and visual culture that advance, in addition to questions about
the processes of creation of artistic poetics in non-institutional contexts, also in didactic
and pedagogical issues of education in Rights Humans, with an emphasis on the
contemporary world.

Keywords: artist book, educational practice, creation processes, human rights.

Introdução

Há um grande movimento de produção, difusão e reflexão em torno do universo do


livro de artista e das edições artesanais no mundo todo. Maltz (2018) explica que isto
começou a ganhar relevância nos anos 1970, quando crescia a cultura dos fanzines,
publicações artesanais que circulavam à margem do mercado formal, popularizada
nos movimentos de contracultura. Este pesquisador chama a atenção para que editar
pequenos livretos de estética amadora e com rede de distribuição informal, nem
sempre captados pelo radar das instituições de arte e da crítica especializada era
uma forma ágil e barata de articular ideias. Para Maltz, a massificação da fotografia

1136
nesta época e a facilidade de acesso a novas tecnologias de reprodução e impressão
digital sobre demanda, muito comum entre poetas e outros artistas visuais levou à
produção de materiais seminais como é o caso do livro Twentysix Gasoline Stations
[Vinte e Seis Postos de Gasolina], auto publicado e distribuído generosamente a
preços módicos pelo artista Ed Ruscha em 1963.

Esta publicação é citada por diversos autores como o primeiro livro de artista
moderno, exercendo grande influência na cultura emergente do livro de artista,
especialmente na América. Conforme Lampert (2015) a partir desse olhar
despretensioso e acessível surgiram publicações diferenciadas que se tornaram
marcos na história dos livros de fotografias e por consequência, na democratização
do acesso à arte. Para esta autora, os livros e publicações de artista feitos em larga
escala e a baixo custo absorveram o desejo de quebra de paradigmas proposto pelas
vanguardas artísticas e se consolidaram como prática, quebrando o conceito de obra
única, disponível para fruição apenas de uma elite seleta, e o que passa a ser
valorizado é a “obra múltipla, que circula por outras redes, que invade o cotidiano
das pessoas e que se vale da indústria gráfica para possibilitar sua ampla circulação”
(LAMPERT, 2015).

Hoje em dia a rede de distribuição destes livros está assentado em um grande


número de feiras gráficas espalhadas por cidades do interior e capitais de todo o país
e em livrarias especializadas, com curadoria de publicações independentes, de
editoras pequenas, de médio porte e de autopublicadores (RODRIGUES, 2019).
Durante a pandemia muitas dessas feiras continuaram a acontecer, de modo virtual
e neste ano de 2022 elas retornam com força em toda a América Latina.

Formação e processos criativos

Devido à possibilidade de realização de cursos online durante a pandemia, entramos


em contato com estas questões e compreendemos que a criação de livros de artista
e outros tipos de publicações independentes poderiam ser dispositivos para nos
colocar em contato com espaços de criação coletiva num momento de isolamento
social devido a pandemia de COVID, além de auxiliar a expressão artística e até
mesmo abrir novos caminhos de atuação profissional.

1137
Partindo de uma formação e atuação enquanto pedagoga e mestre em extensão rural
a autora se situa também como artista visual desde 2017, quando passou a integrar
os coletivos Cooperativa de Arte e Curatoria Forense e contribuir na produção
teórica e tradução de artigos sobre arte contemporânea em relação aos processos
sociais na América Latina. Tem uma produção artística a partir das artes têxteis e
utiliza gravura, colagem, fotografia, encadernação artesanal e outras técnicas
gráficas em seus trabalhos.

O livro de artista entra no processo criativo como possibilidade de exercício


artesanal de produção, e além do seu valor formal e estético, nos interessa a
proposição de Lampert (2015) de que junto ao seu discurso, sua potência, seu
conteúdo e intenção, os livros de artista se valem justamente do “comportamento” e
aparência de um livro comum para carregar várias potências, entre elas a
possibilidade de serem utilizados como ferramenta de aprendizagem e formação
pedagógica.

Entre outros cursos de formação como encadernação artesanal, estamparia


experimental, bordado e costura, autopublicação e escrita, nos anos de 2020 e 2021
pudemos participar de dois cursos de longa duração voltados para publicações
independentes: o Curso Tatuí de Publicação, que oferece formação com profissionais
que atuam no universo editorial sobre diversos aspectos da criação de um livro
impresso, passando por áreas como edição, criação, design, zines, livro de artista,
produção gráfica, impressão, encadernação e circulação. De natureza teórica e
prática, cada aluno desenvolve uma publicação durante o período do curso, com a
assessoria dos professores e incorporando as ferramentas e conteúdos
apresentados, que depois é comercializada na Banca Tatuí, livraria independente
localizada em São Paulo. Participamos também do Curso Dobras de Si, com formação
voltada especificamente para a construção de trabalhos autorais que utilizam o livro
de artista como suporte, seguida de lançamento, exposição e comercialização na
livraria Lovely House, de São Paulo. Em ambos os cursos entramos em contato com
pesquisadores essenciais da área de livro de artista, como o professor Amir Brito
Cadôr, da UFMG, o professor Paulo Silveira, da UFRGS, a designer e artista visual
paulista Ana Francotti e o fotógrafo e editor da Revista ZUM, Rony Maltz, que
orientaram e avaliaram os materiais que produzimos.

1138
Em 2021 lançamos dois livros de artista, o Minério de Ferro é pra ver ou pra comer?
que traz um ensaio sobre a questão da mineração em Minas Gerais, e o livro de artista
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traz uma narrativa dos usos do
espaço público e dos discursos de reivindicação através de fotografias recentes de
cidades do Brasil, Chile e Argentina. A seguir apresentamos um recorte do processo
de criação e as escolhas feitas neste segundo material, onde utilizamos a fotografia
amadora para colocar em destaque o tema dos direitos humanos na América Latina
atualmente.

Dispositivo de pesquisa sobre poéticas artísticas, processos de criação e os


direitos humanos

O livro de artista Declaração Universal dos Direitos Humanos foi produzido no


contexto de um curso online voltado para a produção de trabalhos autorais que
utilizam o livro de artista como suporte. Na sua 3ª edição, o Curso de Livro de Artista
Dobras de Si teve como tema a “alteridade”, concepção que parte do pressuposto
básico de que todo ser humano social interage e é interdependente do outro, o que
leva ao reconhecimento das outras culturas. Um tema complexo que foi debatido
com os colegas e professores do curso ao mesmo tempo em que ocorriam as oficinas
práticas, onde trabalhamos recursos gráficos e estruturais que apoiam o processo de
criação, e aulas sobre Teoria e Processo Criativo e também conversas com editores
e designers sobre Narrativa Visual na Fotografia, memórias, paisagens e alternativas
do processo gráfico.

A partir dessas discussões, nos propusemos a trabalhar com o documento da


Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicado pela ONU desde 1948. Devido
a já ter ministrado a disciplina Educação em Direitos Humanos como docente em
cursos de graduação em pedagogia, compreendíamos a dificuldade de alunos e
colegas em trabalhar o conteúdo, pois embora esteja no currículo desde o ensino
básico, e não apenas dentro da escola, mas também nas discussões públicas e
discursos políticos, este é um assunto que de maneira geral as pessoas se
aprofundam pouco, afinal, são 30 artigos que contemplam temas amplos e que
exigem o desenvolvimento de um pensamento complexo (MORIN, 2001).

1139
Buscamos o referencial teórico sobre livro de artista e sobre as práticas educativas e
de mediação em arte e cultura visual para avançar no entendimento sobre os
processos de criação das poéticas artísticas em contextos não institucionais, com
ênfase no mundo contemporâneo e isto contribuiu para a reflexão sobre as
potencialidades didáticas deste tipo de material, partindo de três perguntas
norteadoras: 1) Como transformar um texto tão importante e necessário de modo
que seja lido e discutido por jovens e adultos no Brasil atual? 2) Como as várias
violações dos direitos humanos que acontecem todos os dias, cada vez mais,
reverberam nas pessoas (principalmente os jovens) e o que eles estão falando e
escrevendo sobre isso? 3) Como ter um olhar poético sobre o conteúdo?

Durante caminhadas por uma cidade no interior do Estado do Paraná, observamos


em especial uma pixação1 já desgastada que nos remeteu à própria Declaração dos
Direitos Humanos como uma utopia necessária e ao mesmo tempo um assunto que
tem gerado discussões absurdas sobre sua pertinência. Como se fosse algo
descartável ou se nós, como humanos, não precisássemos desses direitos, logo no
momento político atual, onde eles são cada vez mais essenciais para barrar os abusos
de poder e os absurdos do neoliberalismo que descartam grupos inteiros em
detrimento de uma minoria privilegiada por questões de classe e gênero. Os Direitos
Humanos, assim como as pixações, são incompreendidos, mas continuam ali. Tem
quem não se importe, quem prefira apagar, mas não tem como evitar ser atropelado
pelas demandas que trazem.

A partir dessas reflexões buscamos construir uma narrativa que contemplasse uma
visão sobre os discursos de reivindicação e os usos dos espaços públicos na América
Latina, pois nos arquivos pessoais reunimos uma coleção de pixações fotografadas
com a câmera do celular entre 2017 e 2021 em cidades do Brasil, Chile e Argentina. A
proposta foi apresentar uma possibilidade de mergulho no assunto de forma direta,
poética e provocadora, colocando em destaque o espaço urbano como facilitador da
interação entre os seres humanos. A pixação, enquanto expressão artística carrega
uma potência e rebeldia que na maioria das vezes são desprezadas e consideradas

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1140
puro vandalismo, mas ao mesmo tempo trazem à tona questionamentos importantes
de serem debatidos no espaço público.

No processo criativo todas as imagens selecionadas foram impressas e colocadas em


questão com cada um dos direitos presentes no documento da Declaração. A
intenção era aproximar ao máximo o texto do artigo de uma imagem, para que ao
olhar para a fotografia, a mensagem estivesse ali, podendo ser aprofundada, caso
necessário, através do acesso aos artigos em um esforço individual posterior.

Tínhamos a consciência da discussão de Flusser (2018) que as fotografias são tão


onipresentes, “coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines,
paredes de escritórios, afixadas contra muros sob a forma de cartazes, impressas em
livros, latas de conservas, camisetas” (FLUSSER, 2018), que passam a incorporar
conceitos que imprimem determinados pontos de vista, ou visões de mundo que
moldam o comportamento dos seus receptores. Outro ponto trazido por este autor
é que as fotografias adquirem novos significados enquanto circulam entre seus
canais de distribuição (científicos, jornalísticos, comerciais, artísticos, etc.),
transformando-se em práxis, ou seja, na divisão das fotografias em canais ocorre uma
operação de transcodificação que pode mudar seu significado. “Fotografias do
homem na Lua podem transitar entre revista de astronomia e parede de consulado
americano, daí para exposição artística, e daí para álbum de um ginasiano. A cada vez
que troca de canal, a fotografia muda de significado: de científica passa a ser política,
artística, privativa.” (FLUSSER, 2018, p. 67). Assim, a escolha das fotografias foi
intencional, mas permanece nas mãos do receptor seu entendimento.

Como o processo criativo acompanhou um processo de debate coletivo entre o


grupo do curso e seus orientadores, o editor e fotógrafo Rony Maltz, durante bate
papo com os artistas, disponível no canal de Youtube da Dobras de Si também
chamou atenção para esta questão, partindo da afirmação de que “As imagens deixam
sempre a desejar”. Levamos isto em consideração, mas ao invés de abandonar a ideia
inicial, nos propusemos a buscar mais imagens e a colaboração de outros artistas,
pois era clara a dificuldade de encaixar alguns artigos na coleção de fotografias que
dispúnhamos. Assim, foi estabelecida uma parceria com o artista Minimalismo
Analógico, que contribuiu com fotos de Niterói e do centro do Rio de Janeiro. As
outras imagens, da autora, são de Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile),

1141
Pelotas/RS, Passos Maia /SC e Palmas/PR. Como alguns desses momentos de
debate foram públicos, todos os colaboradores puderam acompanhar este processo
de forma online e síncrona, contribuindo para a divulgação e para legitimar o
processo.

Figura 1 – Print de fotografia compartilhada no perfil Minimalismo Analógico.

Acima (Figura 1) a fotografia produzida por um desses parceiros, após a live com Rony
Maltz. A imagem, além de ilustrar a fala deste editor e fotógrafo, faz referência
também ao livro Diante da Imagem, do historiador de arte Georges Didi-Huberman,
que se encontra no canto direito da fotografia. Neste material Didi-Huberman
levanta a questão de que em francês, voir (ver) rima com savoir (saber), o que sugere
que, em nossa aproximação com as imagens, o olhar nunca é neutro ou
desinteressado, pois diante delas unimos o que vemos com palavras, modelos de
conhecimento e categorias de pensamento impondo sempre o princípio da
incerteza. (DIDI-HUBERMAN, 2013). Assim, por mais que se quisesse estabelecer uma
relação direta entre fotografia e o documento oficial, sabíamos que estas relações
seriam sempre individuais e incontroláveis.

1142
Para Barthes a fotografia é subversiva quando “faz pensar”, quando elas fazem
refletir, e em grande medida este livro contribuiu para isto, por isso sua importância
e a surpresa pela boa recepção que teve. Barthes buscou compreender porque
algumas imagens nos tocam tanto, nos acendem uma chama de amor, enquanto
outras passam e são esquecidas tão rápido que não nos deixam nenhuma impressão.
Para este autor, cada fotografia toca cada um de uma forma única, profunda, sendo
muito mais que mera lembrança a ser guardada na gaveta ou num álbum, essa foto
“enche de força a vista e nela nada pode se recusar nem se transformar”. (BARTHES,
1984).

No decorrer do trabalho e ao dialogar com outros colegas artistas, também surgiu o


debate sobre a questão da apropriação da arte urbana, pois:

Tratar de pixação no contexto da arte contemporânea não pode ser


simplesmente apropriar-se dos aspectos materiais da visualidade
alheia apresentando-os mimeticamente dentro do campo
institucionalizado da cultura. (SILVA, 2017)

Para aprofundar essa questão tivemos como ponto de apoio o trabalho do artista
paulistano João Luis Prado Simões França, mais conhecido como M.I.A. (Massive
Ilegal Arts), que nos permitiu refletir sobre a questão dos direitos autorais na
atualidade, principalmente em situações que fogem ao costumeiro, como obras em
contexto público, como é o caso das pixações.

Em sua arte M.I.A. tem a intenção de trazer o debate sobre arte decolonial,
contracultura e racismo, traduzindo o cenário de uma sociedade que possui um
caráter discriminatório e preconceituoso com as massas mais populares, que são
frequentemente silenciadas. Para isto, ele utiliza principalmente a pixação em
espaços considerados elitistas e restritos e que, segundo o artista, sustentam o
heroísmo da época colonial no Brasil. Seus trabalhos começaram a ganhar
visibilidade no ano de 2016, com as pixações no Monumento às Bandeiras e na estátua
de Borba Gato, amplamente compartilhadas nas redes sociais e nos grandes veículos
de mídia. Nestas ocasiões M.I.A. e seus parceiros foram detidos e multados pelo ato,
que foi considerado vandalismo de acordo com o artigo 65 da lei nº 9.605/1998 de
Crimes Ambientais, mas o grupo não deixou de agir, continuando com seus trabalhos,

1143
principalmente através de intervenções em fachadas de bancos, concessionárias de
carros de luxo, viadutos e muros em geral. (TUBAMOTO, 2022).

Em 2018, M.I.A. pixou a frase “Olhai por Nóis” no Pateo do Collegio, monumento
histórico considerado marco da construção da cidade de São Paulo. Ao passar em
frente ao local, no dia da ação, o artista contou que havia ali um agrupamento de
cerca de 300 pessoas em situação de rua, dormindo a céu aberto, o que deu o insight
da frase ‘Olhai por nós'. A ação foi filmada por um colega e postada nas redes sociais,
alcançando os canais de comunicação de massa, que assim como os aparatos
repressivos, julgaram a ação, na grande maioria das manifestações, como um caso de
desrespeito ao patrimônio e à própria cidade. (TUBAMOTO, 2022).

Um ano depois da ação, no entanto, a fotografia da sua pixação estava sendo


admirada e comercializada na SP ARTE, maior feira de artes da América Latina,
segundo o artista, sem a sua autorização. O artista foi até o evento e escreveu com
spray a palavra “negro” sobre o vidro da foto emoldurada, causando grande
estardalhaço, pois na ocasião também distribuiu pelo espaço notas falsas de dinheiro,
onde lia-se: “República Federativa da Elite, Arte sem valor”. Sua intenção era chamar
a atenção para a questão de que como homem negro da periferia, jamais teria uma
obra exposta na SP Arte e a pixação só foi considerada obra de arte porque quem a
expôs era um estudante pertencente à elite paulista e a uma escola de prestígio.

Trazemos este exemplo pois ele nos ajudou a refletir sobre as tensões presentes no
sistema de arte e na produção contemporânea que usa como suporte a fotografia,
mas também porque isto nos levou a dar um passo além no processo de criação,
desencadeando uma prática educativa e de mediação em arte e cultura visual num
contexto não institucional que confirmou a afirmação de LAMPERT (2015) sobre as
inúmeras potências e possibilidades didáticas presentes na produção de um livro de
artista.

Buscamos os autores das pixações de Palmas/PR para discutir essa questão.


Enquanto orientadora pedagógica de uma escola local, a autora lidou diversas vezes
com a questão de alunos pegos em flagrante por terem realizado pixações na cidade,
como na ocasião em que pixaram um dos banheiros da rodoviária da cidade, fato que
foi registrado pelas câmeras de segurança e amplamente divulgados na mídia local.
Então, como já havia um conhecimento prévio de quem seriam alguns membros

1144
desse movimento, foi feito o contato, o que nos aproximou do grupo de rap S.P.A.
[Sociedade dos Poetas Anônimos] e do grupo skatemodaflor, que concordaram em
contribuir para o projeto. Aconteceram conversas informais com vários membros do
grupo. Estas conversas aconteceram sempre nos espaços públicos frequentados pelo
grupo, principalmente na pista de skate principal, localizada próximo ao Ginásio de
Esportes da cidade. Além de discutir sobre o trabalho do M.I.A., discutimos sobre as
demandas dos jovens locais, que vem sofrendo com questões como o desemprego,
falta de perspectivas de futuro, abuso de drogas pesadas como o crack e a violência
e repressão policial. Algumas dessas questões são aprofundadas nas músicas
disponibilizadas pelo grupo no canal de Youtube Rap Almas. Durante o contato com
o grupo, um dos jovens foi preso para aplicação de medida socioeducativa, o que
causou comoção em todos.

Foi apresentado um boneco do livro e definido que a quarta capa seria produzida
coletivamente pelo grupo. Houve uma interação muito produtiva e a ação aconteceu
numa noite na pista de skate da cidade, quando o grupo teve autonomia para definir
o desenho que seria feito com tinta spray direto no papelão, que depois foi recortado
como peças de um grande quebra-cabeças (Figura 2).

Figura 2 – Montagem de fotos da autora.

Paulo Freire (1994) contribuiu para a reflexão sobre a dimensão do trabalho com
comunidades como prática educativa, percebendo os sistemas de conhecimento e
de informação como atividade ou construção social. Para ele, para que haja diálogo
é necessário partir de temas geradores a partir do mundo concreto, o que se faz
estando em contato com as pessoas e escutando o que tem a dizer para acessar os
temas que mobilizam as comunidades no momento. Avaliamos que as demandas do

1145
grupo foram, pelo menos por algum tempo, explicitadas para fora do grupo, que se
sentiu valorizado e ouvido. Houve uma doação de cadernos artesanais, livros e zines
para alguns membros do grupo. Também passaram a se interessar e produzir zines
artesanais com seus poemas, principalmente as meninas do grupo. Ainda mantemos
contato via redes sociais, com troca de informações variadas.

Como estávamos trabalhando com algumas imagens com palavras e frases em


espanhol, optamos por produzir um livro bilíngue (PT – ES), o que consideramos que
facilitaria sua circulação, agregando um valor maior à proposta. Também buscando
agregar outros valores, o livro acompanha uma série de stickers/adesivos (tamanho
8 x 6 cm) produzidos a partir de cartazes do artista argentino Félix Torres, do
Coletivo G.R.A.S.A., de Buenos Aires, Argentina, que contribuiu voluntariamente com
o projeto cedendo artes gráficas que produziu para seus trabalhos de arte urbana.

Como complemento, o livro dá acesso a um QR Code com link direto para o site da
Organização das Nações Unidas (ONU) onde se encontra um texto explicativo e o
conteúdo integral da Declaração, tanto em português, quanto em espanhol. Como
forma de aproximar a tipografia das próprias fotografias, optamos por utilizar, além
de fontes tradicionais como Impact e Minion Pro, também a fonte Pixo Reto SP,
inspirada na tipografia das pixações de São Paulo e disponível gratuitamente.

Também pensando na circulação, baixo custo de produção e portabilidade, o livro


tem formato de bolso e buscou responder a necessidades de economia de papel, lixo
zero, e uso de materiais alternativos. A produção gráfica foi caseira, a partir de
conhecimentos adquiridos nas aulas dos cursos realizados e o miolo do livro foi
impresso digitalmente em uma gráfica convencional em papel sulfite branco de 150
gramas. A montagem e produção da capa e das contracapas foram feitos
artesanalmente. Na capa foram usadas diversas técnicas como stencil e gravuras. Os
4 cadernos do miolo foram costurados artesanalmente, com uma costura simples,
conhecida como costura comercial. Abaixo (Figura 3) podemos ver imagens da
manipulação do livro pronto.

1146
Figura 3 - Manipulação do livro.

Todas as etapas de produção foram compartilhadas nas redes sociais, onde também
foi feita a divulgação e a venda dos livros. Todos os jovens que participaram da ação
receberam uma unidade do livro. O grupo skatemodaflor produziu adesivos da sua
marca que também acompanham o livro. Até o momento foram produzidas 150
unidades. O custo de produção (impressão digital + capa de papelão 1,9 mm + ficha
catalográfica + folha de guarda de papel Color Plus 180 gramas) sem o trabalho
manual foi de R$ 20,00 cada livro. Cerca de 36 unidades foram doadas, trocadas com
outros artistas ou comercializadas ao preço de R$ 30,00 cada. Já foram enviadas para
colegas de alguns estados brasileiros como RJ, SC, MT, SP, RS, AM e MG, além de
países como México, Chile e Argentina. A receptividade foi muito boa e grande parte
dos interessados em adquirir a obra são professores e alunos interessados, que têm
avaliado que o livro contribui para o aprendizado do tema de uma forma descontraída
e inovadora. Em Maio de 2022 a autora foi convidada para conversar com alunos do
Ensino Médio do Colégio Marupiara, do Jardim Têxtil, São Paulo - SP nos
preparativos para 4ª Edição da Maru99 - Feira de Arte Impressa Independente,
quando foram apresentadas e debatidas as questões envolvidas na pesquisa e
produção do livro.

Como define Contreiras (2019) em sua dissertação sobre livros artesanais,


apresentada no curso de Design da FAU/USP, além de carregar aspectos simbólicos
através de seu conteúdo verbal e imagético, o livro de artista tem valor pelo seu
conteúdo formal e material, uma vez que tem alto potencial subjetivo, reunindo em
um único projeto e concepção a literatura, a arte, o artesanato, a comunicação e o
design, sendo algo complexo e que exige planejamento detalhado e tomadas de

1147
decisão em todas as etapas, uma vez que as questões formais estão o tempo todo
conectadas e se retroalimentam pelas questões técnicas.

Em seu trabalho, Grigolin (2013) aponta para o caráter nômade e transitório do livro
e sua vocação para ir além dos espaços tradicionais como livrarias e bibliotecas e se
vincular à circulação e à sua reprodutividade, uma espécie de vocação pública. Para
esta pesquisadora e editora, criar dispositivos de circulação para os livros é uma
atitude política e intimamente vinculada à arte.

A partir do argumento desenvolvido por Sepúlveda T. e Bustos (2017) de que a arte é


uma ferramenta para a ação política na medida em que se pauta num sistema
horizontal de relações entre as pessoas, compartilhamos a disponibilidade de pensar
uma arte que se produza na atenção, nos encontros, nas histórias, nas iniciativas e
nos espaços alternativos de escuta e de ações concretas que se revertem em formas
de governança e educação não institucionalizados. Foi isto que procuramos fazer.

Conclusão

Fotografar o território foi inicialmente apenas uma forma de documentar o espaço e


registrar as pixações tão presentes no cotidiano de todos nós nas mais variadas
cidades da América Latina. Ao seu conteúdo político explícito foi feita uma
associação direta com a questão dos Direitos Humanos na atualidade que culminou
com a produção e distribuição de um livro de artista que além de ter sido produzido
de forma artesanal, incluiu uma prática educativa em ambiente não formal, sobre
poéticas artísticas e seus processos de criação. Avaliamos que este livro tem seu
potencial artístico e mercadológico, mas também pode ser utilizado como material
didático, devido às possibilidades que carrega para a disseminação de informação
acessível e direta sobre a educação em Direitos Humanos.

Temos a consciência de que outras escolhas poderiam ter sido feitas de modo a
enriquecer o trabalho, mas pela receptividade do material avaliamos que os caminhos
tomados contribuem para um entendimento eficiente do assunto e para a própria
utilização dessas fotografias, que até o momento de serem utilizadas, permaneciam
arquivadas no computador, correndo riscos de serem perdidas em meio ao acúmulo
de imagens que afeta a todos nós atualmente. Ao refletirmos sobre a utilização das

1148
fotografias das pixações percebemos que como são algo efêmero e marginalizado, a
publicação tem uma importância documental, pois serve como instrumento de
preservação e divulgação das intervenções produzidas, alcançando muito mais
pessoas do que as obras em si alcançariam.

O livro de artista, além de todas as potencialidades apresentadas, também se


mostrou como uma possibilidade de expressão artística excelente, pois várias
questões de edição, produção e distribuição que surgiram ao longo da jornada com
certeza contribuíram como exercício para nossa formação enquanto artista e
publicadora independente. As parcerias, a negociação com a gráfica, as decisões
práticas tomadas, escolha de tipografia, tudo isto enriqueceu e agregou referências
preciosas ao processo, e isso ficou ainda mais completo e pertinente graças ao
contato com os jovens que contribuíram para que o processo de criação se tornasse
mais permeável e sensível ao próprio tema trabalhado.

Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CADOR, A. A fotografia e a palavra no livro de artista. MATLIT: Materialidades da Literatura,
Coimbra, Portugal, 2021. Disponível em: https://impactum-
journals.uc.pt/matlit/article/view/9759. Acesso em: 20 jan. 2022.
CONTREIRAS, Júlia. Experimentação gráfica em projetos de livros artesanais. 2019.
Dissertação (Mestrado em Design) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2019.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem: questão colocada aos fins de uma história
da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
GRIGOLIN, Fernanda. Livro de fotografia como livro de artista. Experiências de Artistas:
aproximações entre a fotografia e o livro. São José dos Campos, Publicações Iara, 2013.
LAMPERT, Letícia. Fotolivro ou livro de artista? Eis a questão. Reflexões sobre
distanciamentos e aproximações quando o livro se torna o fim na arte e na fotografia. In: IV
ENCONTRO PENSAMENTO E REFLEXÃO NA FOTOGRAFIA, 2015. MIS/SP.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília,
DF: UNESCO, 2001.
RODRIGUES, Ricardo. Autopublicação. Canoas/RS: Experimentos Impressos. 2019.

1149
SEPULVEDA T., Jorge e BUSTOS, Guilhermina. A Arte como Ferramenta para a Ação
Política. Villa Alegre/Chile: Febrero 2017. Disponível em:
http://www.curatoriaforense.net/niued/?p=2731 Acesso em: 12 set. 2018.
SILVA, Bruna Lopes. [DISCURSOS URBANOS MARGINAIS] A pixação sob a ótica da arte
contemporânea e a vacância do dominado. PIXO – Revista de Arquitetura, Cidade e
Contemporaneidade. v. 1, n. 1: Escritas Urbanas (outono). Pelotas: FAURB-UFPEL, 2017, p. 14
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MALTZ, Rony. Zines e fotografia: uma história de resistência em tempos digitais. Revista
ZUM. São Paulo, 20 mar. 2018. Disponível em: https://revistazum.com.br/radar/zines-
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TANNENBAUM, Barbara. Entenda como alguns nomes-chaves da história da fotografia
abriram as portas para essa arte também integrar o mercado. SP- Foto 2019. São Paulo, 20
ago. 2019. Disponivel em: https://www.sp-arte.com/foto/editorial/como-a-fotografia-
passou-a-ser-considerada-objeto-de-arte/ Acesso em: 09 out. 2021.

Mini Currículos

Adriene Coelho Ferreira Jerozolimski


Discente do Curso de Especialização em Artes no Centro de Artes da UFPel - Pelotas/RS/Brasil.
Mestre em Extensão Rural, Pedagoga e Artista visual, integra a equipe de trabalho COOPERATIVA DE
ARTE trabalhando na produção sobre arte contemporânea em relação aos processos sociais na
América Latina. Cria a partir das artes têxteis e utiliza gravura, colagem, encadernação artesanal,
fotografia e outras técnicas artísticas em seus trabalhos. E-mail: adrienejero@gmail.com

Maristani Polidori Zamperetti


Doutora em Educação. Professora Associada no Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas e
Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/FaE/UFPel), Mestrado e Doutorado.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa: Pesquisa, Ensino e Formação Docente nas Artes Visuais (2013).
E-mail: maristaniz@hotmail.com

1150
VISUALIDADES E POLÍTICA LATINO-AMERICANA: DECISÕES VISUAIS
APLICADAS EM CAMPANHAS DE DIREITA NOS ÚLTIMOS 10 ANOS

LATIN AMERICAN VISUALITIES AND POLICY: VISUAL DECISIONS APPLIED IN


DIRECT CAMPAIGNS IN THE LAST 10 YEARS

Nicolas Andres Gualtieri


Universidade Federal de Goiás

Ana Beatriz Prado


Faculdade Senac Goiás, Brasil

Resumo

Esta pesquisa propõe uma análise das estratégias utilizadas na comunicação visual de
campanhas eleitorais presidenciais de países da América Latina, em que governos
autointitulados de direita, ascenderam ao poder. Ressaltou-se que elementos de design
gráfico foram utilizados para construir uma narrativa e uma semântica em torno dos
discursos, os pontos de convergência entre as campanhas e suas incoerências entre discurso
verbal e visual, que demonstrou diversas inconstâncias na forma de se posicionar e se
comunicar. Essas questões sobretudo foram utilizadas para enfraquecer a esquerda, na qual
mostrou ser o principal objetivo dos candidatos. Houve uma maior atenção no contexto
brasileiro, fazendo um recorte desde as eleições de 2014 até o ano de 2018, para explicitar a
produção e utilização de significados conservadores em torno da apropriação de símbolos
nacionais.

Palavras-chave: Latino-americana; política; visualidades.

Abstract

This research proposes an analysis of the strategies used in the visual communication of
presidential election campaigns in Latin American countries, in which self-entitled right-
wing governments ascended to power. Emphasizing the graphic design elements used to
build a narrative and semantics around the speeches, the points of convergence between
the campaigns, and the inconsistencies between verbal and visual speeches, which indicated
several inconsistencies in the way positioning and communication. These topics were mainly
used to weaken the left, which was disclosed to be the main objective of the candidates.

1151
There was greater attention in the Brazilian context, making a cut from the 2014 elections to
the year 2018, to explain the production and use of traditionalist convictions around the
appropriation of national symbols.

Keywords: Latin-American; politics; visualities.

Introdução

Nos últimos anos América Latina passou por um processo de polarização entre os
posicionamentos políticos e ideológicos que levaram a ascensão, pelo voto
democrático, a partidos eleitorais autoproclamados de direita, cuja principal
bandeira ideológica foi marcada pelo enfraquecimento da esquerda e do populismo.

Os partidos de esquerda viram-se extremamente afetados nesses últimos anos por


um discurso contrário a eles totalmente edificado em ideais totalitários, notícias
falsas, e associações negativas e sem fundamento. Isso resultou em um declínio da
sua aceitação e uma construção imagética de que a direita viria como “salvadora da
pátria”, portanto perdendo as eleições e assim também espaço e articulação política.

Os partidos aqui analisados são autointitulados de direita, pois trazem


posicionamentos e propostas baseadas em conservadorismo, exaltação de valores
nacionalistas e religiosos, convicções de livre mercado, inevitabilidade de problemas
sociais, não priorização do papel do Estado em políticas públicas e econômicas e em
alguns momentos, posições extremas como o alinhamento declarado com governos
ditatoriais de mesmo posicionamento.

Diante disso, as análises apresentadas a seguir tem contexto acadêmico, com a


finalidade de compreender, a partir dos recursos visuais que foram explorados na
comunicação visual, as teorias cognitivas e psicológicas que permeiam o campo do
design e particularmente da cultura visual. Demarcando relações morfológicas,
tipográficas, elementos fotográficos, gama cromática, semiótica, dentre outros,
como ferramentas visuais que constroem e reforçam estereótipos e discursos
ideológicos de ódio.

Tem-se uma ênfase no processo eleitoral brasileiro, devido ao fato de estarmos


presenciando diretamente todo o processo e nos encontrarmos novamente nessa

1152
situação eleitoral. O recorte foi feito desde o início nas eleições presidenciais de 2014
até o presente no momento do ano de 2018, como forma de apresentar a
continuidade de transformação simbólica dos elementos nacionais como forma de
afirmar os valores conservadores, tradicionais e históricos brasileiros.

Política e cultura visual: formas diferentes de construir cidadania

As visualidades, particularmente o design de comunicação visual, servem como


instrumento para modificar, deslocar e subverter os significados e as semânticas,
procurando valorizar ou desenvolver novas identidades e símbolos, além de
questionamentos sobre a nossa forma de viver, confrontando decisões hegemônicas
e priorizando a igualdade democrática de direito (ALBUQUERQUE, 2018). Os
designers podem ser transformadores sociais, a partir da produção cultural, difusão
de valores e alteração da materialidade que cerca a sociedade. (NIEMEYER apud
JUNIOR; MOURA; HENRIQUES, p. 133, 2021).

Segundo Margolin (apud JUNIOR; MOURA; HENRIQUES, p. 136, 2021) o profissional


de design tem três possibilidades de introduzir seu próprio talento para a cultura. A
primeira é fazendo coisas por meio do design. A segunda é por meio de uma
articulação crítica acerca das condições culturais que permeiam o design e o social.
Já a terceira, é por meio da condução de um engajamento político.

Para compreender a cultura visual, é preciso compreender que as imagens além de


refletirem o contexto, constroem percepções sobre o mundo e sobre a sociedade,
portanto sendo político (ALBUQUERQUE, 2018). Segundo Sérvio (2014), a cultura
visual surge quando entendemos que vivenciamos o visual por meio da cultura e suas
construções simbólicas e semióticas. Portanto, pensar o contexto histórico e local
no qual estamos inseridos é essencial para qualquer análise e compreensão de
experiências visuais.

A política está repleta de imagens de manifestações populares, na rua com líderes


inflamados e públicos acalorados segurando cartazes, imagens de gestos
grandiloquentes à espera de câmeras ou de pequenos
signos captados, de reuniões sigilosas, cheias de poses. Imagens de debates,
entrevistas e de publicidades com suas frases ilusórias (ALBUQUERQUE, 2018).

1153
Carlón (2015) denominou “as sociedades hiper midiatizadas", a etapa da Internet, em
que os acelerados processos de midiatização das sociedades denominadas “pós-
industriais”, têm permitido a complexidade da semiótica e disseminação de
informações, principalmente no campo político. A Internet foi capaz de gerar novos
tipos de discursos políticos e novos modos de fazer campanha, e novos modos de
consumir, participar, avaliar e controlar a política (apud DAGATTI, p. 283, 2018)

Essa modificação do ecossistema midiático e as mudanças nas


formas de relação entre mídia e política permitem novas formas de conceber,
praticar e consumir a política por parte dos cidadãos. Dagatti (2018) comenta a
respeito:

À midiatização da política, por um lado, e à descentralização da política,


por outro a decepção dos cidadãos com relação aos “representantes”
têm, em contrapartida, um ativismo notável, favorecido pelas
redes sociais digitais e, muitas vezes, uma concepção não partidária
da política. Em síntese, as lógicas do campo político
estão, na atualidade, tensionadas pela midiatização da política e p
ela descentralização das vozes que configuram o público político
(DAGATTI, p. 286 2018).

O gradual desgaste do campo político, a hipermidiatização e os novos estilos de


cidadania política podem ser pensados em relação com o que Brants
e Voltmer (2011) denominam como "terceira era da comunicação política".

A campanha eleitoral de Mauricio Macri na Argentina

Para iniciar nosso percurso pelas análises, o candidato Mauricio Macri no ano de 2019
impulsionou o slogan “Sí Se Puede” focalizando de forma assertiva na possibilidade
de mudança social e cultural proposta pelo partido do candidato no meio de uma
crise econômica que condicionaria finalmente os resultados e a mudança de voto do
eleitorado.

Como parte dos recursos e decisões de design reconhecidas na comunicação (Figura


1) é demarcada a utilização de uma tipografia sem serifa, geométrica e pesada, que
indica algo mais racional e sério, mas com um tom de modernidade. Nossa leitura,
analisando a escolha tipográfica, denota características anatômicas e morfológicas

1154
que refletem justamente as ideias mais conservadores que o candidato defendia, mas
ao mesmo tempo incitando uma pequena ruptura com elas. Ao mesmo tempo, em
algumas comunicações é trabalhada uma tipografia mais espontânea, semelhante a
uma escrita a mão, o que quebra a expectativa em relação aos restantes dos
materiais, inclusive da campanha anterior. Essa fonte já indica algo mais informal,
leve, descontraído. Possivelmente para tentar uma maior proximidade com o povo,
uma certa intimidade para mostrar que é alguém que irá ser acessível e defender
interesses sociais.

A utilização de formas geométricas deixa explícito também esse caráter mais


racional, reforçando mais uma vez a ideia de algo firme e preciso, confiável.

A gama cromática utilizada por Macri é bastante específica, pois se utiliza de um


gradiente de tons sólidos que vão do amarelo ao azul, presentes na bandeira
argentina. As cores não são usadas de forma padrão na sua comunicação visual, em
momentos se utiliza uma como principal e outra como secundária, em outros a paleta
não se utiliza delas, mas sim das demais que estão presentes no gradiente. Isso reflete
a falta de posicionamento de Macri e o medo de se comprometer ao defender e
conversar com uma classe em específico e assim, desagradando a outra. Isso é bem
característico de candidatos que defendem em sua maioria interesses privados e
liberalistas, que priorizam o capital acima do bem-estar da população, já que estes
são de extrema importância para o financiamento e aprovação de projetos
governamentais, por possuírem maior poder decisão e manipulação de fortes influências.

Em relação a fotografia, o candidato mostra, na maior parte do tempo, utilizar roupas


mais formais, como camisas, coletes e blazers, tal qual as pessoas diretamente
envolvidas em sua campanha. Isso demonstra uma rigidez e formalidade na forma de
se vestir que se permanece mesmo quando está no meio do público, causando um
distanciamento das pessoas que estão ali. Este posicionamento demonstra,
novamente, uma contradição na forma de se comunicar, pois ora há uma postura
rígida, causando essa distinção entre povo e governo, ora há a aproximação entre
eles por meio de recursos menos rígidos. Essa dualidade de ideias deixa claro o
posicionamento disfarçado e conveniente que o candidato tem em relação à
população, já que se houvesse clareza de que lado está defendendo os interesses, não
haveria contradição em seu discurso.

1155
Figura 1 – Maurício Macri 2019

Fonte: autoral (2022)

Do azul para o laranja, mas não vermelho: o caso da campanha de Keiko no Peru

Ao contrário das campanhas de direita que podemos visualizar no território latino-


americano, a candidata Keiko, que concorreu à presidência do Peru em 2021, utilizou
a cor laranja na sua campanha (Figura 2). Essa cor geralmente é associada ao
engraçado, divertido ao exótico, por isso não é tão utilizada em ambiente político.

Acredita-se que a utilização dela deve-se ao fato que as cores oficiais da bandeira do
Peru são o vermelho e o branco, como visto na Figura 2 e em razão do vermelho ser
historicamente explorado pela esquerda, além de remeter atributos negativos que
foram socialmente construídos, como o violento, profano e comunista. Sendo assim,
mesmo que queira remeter a valores nacionalistas, explorados por essa posição
política, acreditamos que não seria interessante utilizar a principal cor nacional, pois
gerar pensamentos de afinidade com a esquerda e seu “comunismo”, o que poderia
comprometer alianças com instituições e uma parcela da população. O laranja, por
ser uma cor análoga ao vermelho, tem a característica de remeter indiretamente aos
valores patriotas.

Em relação a tipografia e formas, vê-se novamente a questão que foi abordada em


Macri, em que ambos transmitem a ideia de rigidez, solidez, firmeza, força e
1156
racionalidade. Esse ponto é comum até agora em todas as campanhas justamente por
refletir os ideais políticos mais conservadores.

Keiko, em relação aos demais candidatos aqui analisados, demonstra se esforçar mais
para se aproximar da população e suas nuances, pois vê-se várias fotografias em
comícios cheios, com representatividade de uma parcela do povo (em específico os
indígenas), em momentos dialogando no mesmo nível que as pessoas, sem estar em
um palanque acima delas. Mas, ainda sim é possível notar algumas contradições, já
que os elementos gráficos são rígidos, assim como uma neutralidade em sua forma
de se vestir, utilizando na maior parte das vezes a cor branca em camisetas e camisas
comuns. Novamente, repara-se na estratégia de neutralidade para tentar
argumentar com ambos os lados e evitar uma polarização. Diante disso, encerramos
essa analise citando Paulo Freire (2018, p 23) que indica: “Não existe imparcialidade.
Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é
inclusiva ou excludente?”

Figura 2 – Keiko 2021

Fonte: autoral (2022)

1157
Verde, amarelo: um antes e depois nas cores patrióticas a partir da campanha de
Aécio Neves em Brasil

Aécio Neves foi o candidato designado pelo Partido da Social Democracia Brasileira
- PSDB no ano de 2014, como o grande concorrente à presidência do Brasil,
demarcando o início de um período de ressignificação simbólica dos elementos
gráficos nacionais como a bandeira e a gama cromática que a compõem (Figura 3).
Num contexto em que a oposição utilizava vermelha de forma muito forte e traz
sucessivos governos, o candidato determina as cores nacionais como principal
elemento histórico que caracterizaria seu pensamento de recuperação nacional da
tradição. Assim, predominantemente destaca-se o verde, amarelo e azul, comumente
utilizado pela direita em sua história. Essas cores ressaltam o patriotismo e se
referem à ideia de “mudar a política" e principalmente "trazer ao Brasil suas cores
originais”, ou seja, mudar o posicionamento político que o país estava tendo desde
2002.

A campanha adotou a camiseta de da seleção brasileira como símbolo político,


ressaltando valores liberais e individualistas que estavam sendo reivindicados pelo
eleitorado de Aécio principalmente composto pela população de classe média e alta.
Sendo assim, a campanha realizou duas frentes, a primeira foi reivindicar as cores
nacionais. O segundo, foi adicionar carga negativa à cor vermelha utilizada pela
oposição e novamente atrelado ao conceito de comunismo e “ameaça invisível”.

Nota-se os pontos em comum com as demais campanhas em relação a cores e


tipografia, e ainda uma questão bastante próxima da candidatura de Macri em 2019,
o uso de uma tipografia mais espontânea e “escrita a mão”, justamente com o mesmo
conceito mais despretensioso, que gera uma proximidade e consequente idealização
do candidato, que apesar de ser de uma classe privilegiada, transmite uma mensagem
de ser “gente como a gente” com a finalidade de alcançar todas as classes sociais.

Esse recurso, apesar de contraditório com o restante da campanha e interesses, é


utilizado pois sabe-se que o neoliberalismo se aproxima mais de valores puramente
econômicos e de propriedades privadas, do que em relação à população. Percebe-se
então uma tentativa de transmitir valores humanos a esse modelo econômico, mas
sem ser explícito, como no caso linguagem visual e verbal utilizada pelos partidos de
esquerda, nesse caso em específico a Dilma Rousseff.

1158
Na fotografia da campanha, Aécio sempre se utiliza de roupas formais como camisas
e blazers que muitas das vezes são da cor azul, que indica tanto seu posicionamento
político quanto ao patriotismo, já que se veste com uma das cores da bandeira
brasileira. Suas poses não são espontâneas, assim como as de Macri e Kast em Chile,
demonstrando sua rigidez e distância em relação ao povo. Em algumas fotos
veiculadas ele aparece uma postura de super-herói, pois utiliza a mesma pose do
Super Homem, abrindo seu terno e revelando uma camisa amarela com o botão verde
de confirma, fazendo alusão a urna eletrônica. Essa imagem constrói uma semântica
messiânica do candidato, em que ele vem para “salvar” o país do atual governo
liderado por Dilma Rousseff e por seu partido, o Partido dos Trabalhadores - PT. Isso
demonstra os primeiros passos de uma polarização política que será ainda mais
explorada por Jair Bolsonaro na sua campanha de 2014.

Ao se afirmar em sua campanha como o salvador da pátria, Aécio faz uma narrativa
totalmente odiosa contra a esquerda e seus símbolos, como a cor vermelha, o PT, o
ex-presidente Lula e a atual Dilma. O candidato iria nos salvar dos corruptos que não
priorizavam a classe média e alta brasileira e seus interesses individuais, enquanto
possivelmente fretava helicópteros para tráfico de cocaína e contribuía para o
enfraquecimento da democracia enquanto ele, seu partido e seus eleitores,
fomentaram uma teoria de possível fraude na urna eletrônica, já que foi inadmissível
o super-herói patriótico, que permitiria a classe média viajar para a Disney
novamente, perder as eleições, de forma democrática, para uma mulher de
esquerda, na qual difamava).

1159
Figura 3 – Aécio Neves 2014

Fonte: autoral (2022)

A continuidade do movimento verde, amarelo na campanha de Jair Bolsonaro

Sob discurso ultrapatriota, Jair Bolsonaro no ano de 2018 apresenta uma campanha
política inteiramente em verde e amarelo, dando continuidade a identidade visual
opositora iniciada na campanha de Aécio Neves de 2014. O fato de não ter usado o
clássico azul da direita, provavelmente tenta se desvincular da campanha de Neves
ao mesmo tempo em que Bolsonaro apresentava abertamente uma posição
antidemocrática e totalitária que demarcava um discurso “neutro” com a justificativa
de ser um candidato “novo”, sem estar na dualidade de direita ou esquerda.

Ressalta-se que essa identidade visual (Figura 4), baseada em um patriotismo


exacerbado, foi característica do movimento de ditadura militar brasileira que
aconteceu de 1964 a 1985. Desde a perspectiva do discurso e a linguística, podemos
identificar também uma relação do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de
todos” utilizado pelo candidato durante a campanha de 2018, que apresenta um tom
imperativo e afirmativo com força no vínculo religioso e patriótico e que se
assemelha ao “Brasil, ame-o ou deixe-o” adotado durante os anos de governo de
Emílio Garrastazu Médici de 1969 a 1974. Esse tipo de linguagem também remete aos

1160
tempos de Guerra, em que os países como Estados Unidos e a Grã-Bretanha
utilizavam-se desse tipo de construção da frase, como forma de ordenação ao
receptor.

Novamente vê-se a tipografia pesada, em caixa alta, não serifada, mas também se
nota o uso de uma tipografia cursiva e clássica, que confirma e reforça o
conservadorismo explicitamente abordado no discurso proposto pelo candidato.

Em relação a divisão cromática entre cores nacionais (verde, amarelo e azul) versus
o vermelho, que já havia sido trabalhada durante as eleições de 2014 por meio de
Aécio Neves, aqui vê-se Bolsonaro se apropriar desse conceito, juntamente também
com a apropriação de símbolos nacionais, como a camiseta da seleção de futebol e
agora também a bandeira. Sendo assim, observa-se que as cores verde, amarelo e
azul são tidos como sinônimo de país justo, sem corrupção, a favor da família e bons
costumes, contra o comunismo, a favor do armamento e o “fim da mamata”, enquanto
o vermelho é ligado ao PT, corrupção e ao profano. Isso ficou extremamente evidente
durante o segundo turno das eleições, em que Fernando Haddad, o candidato que
disputou o segundo turno com ele, se utilizou também de cores nacionais, na
tentativa de se desvincular do PT e todas as ideias que foram construídas desde 2014
pela direita e foram agregadas negativamente ao partido, assim como a imagem do
ex-presidente Lula.

Outra característica que o candidato reaproveitou das eleições de 2014 foi a


exploração de uma imagem de salvador da pátria, assim como seu segundo nome, ele
é o Messias que veio salvar o Brasil da corrupção e libertinagem. Isso se torna
evidente em fotografias que se utilizam do enquadramento contra plongée,
favorecendo esse conceito de superioridade e transmitindo uma ideia de poder e de
divino.

Todavia, uma diferença em relação a sua abordagem, é que Bolsonaro possui fotos
mais espontâneas, próximas e no mesmo nível de seus eleitores, o que causa um
estranhamento já que toda a sua campanha é rígida e messiânica, mas tal estratégia
é utilizada justamente para quebrar essa concepção e passar uma falsa esperança de
que o candidato, apesar de deixar explícito em seus discursos quais seus reais
interesses, irá defender as necessidades da população.

1161
Mais um ponto da comunicação dessa campanha é a construção de uma semântica
em relação ao número 17, o número da sua chapa, que foi amplamente utilizado por
seus apoiadores em redes sociais e materiais gráficos a partir da hashtag #B17. A
carga ideológica foi tão bem instaurada, que por parte dos seus opositores, esse
número pode-se assemelhar ao que é o número 666, o número do demônio para os
cristãos.

Figura 4 – Jair Bolsonaro 2018

Fonte: autoral (2022)

Considerações finais

É importante destacar que essa pesquisa é mais extensa e analisa um total de 5


campanhas eleitorais que inclusive abrangem Chile e Uruguai, mas que pela extensão
em páginas e imagens, só ingressaram três em esse artigo. Na análise das diversas
campanhas dos movimentos de direita dos países latino-americanos, percebe-se
pontos em comum, como a paleta cromática em direção ao azul e os tons frios,
tipografia mais pesada, não serifada e às vezes sendo utilizada também com
características de escrita à mão. As formas são mais rígidas e geométricas, assim
como o grid e a fotografia não espontânea, sempre se utilizando de recursos que
distanciam o candidato do público.

1162
Tais características, demonstram a necessidade de tornar a campanha mais pessoal
e humana, enquanto defendem discursos abertamente liberais e até mesmo
totalitários, como o caso de Kast em Chile (não presente em esse artigo) e Bolsonaro
no Brasil. O azul, historicamente e desde trabalhado desde a psicologia das cores, é
a cor da pureza, do correto, do preferido e do confiável, que é oposta ao vermelho da
"ameaça comunista”, tido como impuro, rebelde e profano. Vê-se que toda a
construção visual se reafirma, mas são os detalhes que mascaram determinados
conceitos em suas escolhas, portanto nenhum elemento visual é utilizado de forma
aleatória. Assim como a língua utilizada em cada país e seus regionalismos, os
discursos e recursos visuais mudam a partir da abrangência e ressonância cultural
do contexto. Podemos perceber que mesmo tendo ideais patrióticos, os partidos
políticos podem "abandonar" as cores nacionais, como no caso do partido de Keiko
em Peru, para se desvincular de símbolos historicamente consolidados como a cor
vermelha e sua associação.

A procura por imagens que se vinculam com o cotidiano prevalece, as fotografias de


candidatos como heróis, deuses e salvadores somem enquanto a de homens
correntes rodeados de multidão e cores nacionais se levantam num contexto de
necessidade de proximidade entre o estado, a política e as necessidades da
população (DAGATTI, 2018). Entendemos que nada é totalmente azul ou vermelho,
existem matizes e variáveis onde direita e esquerda se entrecruzam em discurso e
políticas de estado, identidades visuais e gerenciamento de comunicação
institucional. Os matizes fazem possível a existência da democracia, mas precisamos
trabalhar a comunicação de campanhas políticas com pluralidade e propostas
concretas e não tendo como eixo de comunicação o desprestígio e o silenciamento
dos movimentos opositores.

Com cada contenda eleitoral nossa América Latina se vislumbra em movimentos que
nos afetam como região, comércio e sociedade. As mudanças ideológicas,
econômicas e políticas que permeiam os próximos quatro anos de gestão de um
governo parecem muito mais que só cores, slogans, fotografias e tipografias. Esses
recursos gráficos são a porta de entrada de decisões que mudam histórias, gerações,
o destino de pessoas e de sociedades. Devemos estar atentos a isso, no mundo em
que vivemos, com bloqueios midiáticos, redes sociais cooptadas, notícias falsas,

1163
compartilhamento de titulares sensacionalistas e conectividade permanente e não
há mais tempo para espectadores passivos (BENJAMIN, 1994).

Referências

ALBUQUERQUE, Elisabete Maria de. Design Gráfico em Tempos de Ativismo. 2018. 132 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Design, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/34595. Acesso em: 04
out. 2021.
BRANTS, Kees; VOLTMER, Katrin. Political Communication in Postmodern Democracy:
challenging the primacy of politics. Uk: Palgrave Macmillan, 2011.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras
escolhidas: Magia e técnica, arte e política. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DAGATTI, M. Imagens da política, política das imagens: sobre comunicação, retórica e
estética. Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, v. 16, n.
1, p. 274-298, 11 set. 2018.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Paz & Terra, RJ/SP, 2018, 38ª ed.
JUNIOR, José Carlos Magro; MOURA, Mônica; HENRIQUES, Fernanda. Design Ativista em
Quarentena: uma Perspectiva Brasileira. Estudos em Design, Rio de Janeiro, v. 2, n. 29, p.
131-146, jun. 2021. Disponível em:
https://estudosemdesign.emnuvens.com.br/design/article/view /1214. Acesso em: 06
out. 2021.
RIBEIRO, Fernanda Isabel de Jesus Viana do Carmo. O cartaz e o outdoor ao serviço da
comunicação política: uma abordagem sobre a propaganda política vs publicidade política.
2003. 116 f. TCC (Graduação) - Curso de Publicidade, Universidade Fernando Pessoa, Porto,
2003. Disponível em: https://bdigital.ufp.pt/handle/10284/1030. Acesso em: 10 out. 2021.
SÉRVIO, Pablo. O que estudam os estudos de cultura visual? Revista Digital do Lav, [s. l], v.
7, n. 2, p. 196-215, maio 2014. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/3370/337031808013.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.

Mini Currículos

Nicolas Andres Gualtieri


Bacharel em Design de Comunicação Visual pela UNL (Argentina). Especialista em História e
Narrativas Audiovisuais, Mestre e Doutor em Artes e Cultura Visual pela UFG (Brasil). Com experiência
nas áreas de design, metodologias projetuais, educação, visualidades, cinema e comunicação visual.
Atualmente professor e coordenador do curso de Design Gráfico na Faculdade SENAC Goiás e diretor
do escritório de design Cônico (www.conicodesign.com). E-mail: nicoagualtieri@gmail.com

1164
Ana Beatriz Prado
Graduada em Design Gráfico pela Faculdade Senac Goiás, é qualificada em Políticas Públicas pela
Universidade Federal de Goiás e possui vivência em psicologia social. Atua profissionalmente como
UX Designer, com foco em pesquisa de usuário. Une ativamente a pesquisa em design a estudos de
política social. E-mail: pradobeatriz30@gmail.com

1165
IMAGEM E MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA: O NÃO-LUGAR DO/A
ARTEVISTA INDÍGENA

IMAGE AND MOVEMENTS OF RESISTANCE: THE NO-PLACE OF THE INDIGENOUS


ARTIVIST

Tiago Éric de Abreu


Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Resumo

O presente trabalho é uma mirada em direção aos processos históricos de resistência


mostrados nas artes, tecida a partir da reflexão sobre o artevismo indígena, em cujas obras
visuais percebo um olhar crítico para os cinco séculos de resistência à colonização das
comunidades indígenas nas Américas. Apresento um estudo das visualidades de resistência
indígena se baseia no conceito de ch’ixi, proposto por Silvia Rivera Cusicanqui (2018), termo
que a pesquisadora boliviana toma do vocabulário da língua Aimara para dizer sobre aquilo
em que os cores opostas convivem sem se mesclar. A partir desta coordenada teórica são
tecidas reflexões sobre a produção de imagens da resistência pelos movimentos indígena
nas artes visuais. São analisadas três obras pictóricas de artistas indígenas de diferentes
origens, imagens que são perspectivadas em diálogo com a Sociologia da imagem
(CUSICANQUI, 2015), para a qual a imagem é uma materialidade de estudo que permite
entrever os efeitos de sentido que foram silenciados em prol de um regime e uma ordem de
visualidades hegemônica, e com relação ao qual a resistência artevista contrapõe outras
visualidades por meio de perspectivas singulares e locais chamadas de epistemes indígenas.

Palavras-chave: Artevismo; epistemes indígenas; imagem; resistência.

Abstract

The present paper establishes an approach of the historical constitution of processes of


resistance evidenced in art; it is a reflection about the indigenous artivism and the criticism
of colonialism that underlies in its artworks. It is a study of visualities of Americas’ indigenous
communities political resistance, based on the concept of ch’ixi proposed by Silvia Rivera
Cusicanqui (2018), expression brought from the Aymara language, that evokes the idea of
coexistence of opposite colours that not fuse themselves. From this theoretical coordinate
are made reflections about the production of indigenous visual artwork as images of
resistance memory. It analyses three visual works of indigenous artivists from different
origins, and those images are approached in dialogue with Cusicanqui’s Sociología de la

1166
imagen (2015), that conceptualizes image as a materiality that allows us to perceive those
meaning effects and voices that were silenced by the hegemonic imagistic regime. In
counterpoint to these normative order of images, the artivism creates visual memory by
means of singular and local perspectives called indigenous epistemes.

Keywords: Artivism; indigenous epistemes; image; resistance.

Volver à história mal contada do colonialismo nos conduz à pergunta sobre o que
significa descolonizar o imaginário, e sobre o papel das artes, sobretudo a criação de
imagens, para a reapropriação da subjetividade. Estudar a imagem como
materialidade envolve a análise das cristalizações de sentidos, na medida em que as
visualidades nos permitem perceber aspectos simbólicos não expressos, aqueles
efeitos de sentido que o discurso verbal reprimiu historicamente. Escutar aquilo que
foi calado pelos sistemas de imagens coloniais e imperialistas nos faculta um gesto
de revisão da história.

Sempre que o passado irrompe no presente, na repetição de ordens autoritárias e


opressoras, é urgente refletir sobre outra imagem possível da história, outra versão
não autorizada pela língua oficial e normativa da arte colonial, que reescreva e
recorde a condição clandestina e de anonimato da qual mais de uma geração de
artistas indígenas se ergueu, expondo visualidades imprevistas, ocupando as galerias
do século XXI (e difundindo vozes de resistência através das mídias alternativas e
páginas de jornalismo independente).

Nos movimentos indígenas no Brasil, a história da resistência desses povos se


manifesta em diversos meios não escritos, tais como a canção, a pintura, a fotografia,
o vídeo e o desenho. Uma reflexão sobre a constituição histórica da multiplicidade
de processos de resistência articulados em produções artísticas pode ser feita a
partir da noção de artevismo1 indígena, em cujas performances se opera a
desconstrução crítica desses cinco séculos de discursos coloniais.

1
Termo cunhado por Jaider Esbell (1979-2021), artista do povo Makuxi.

1167
Corpos e imagens insurgentes: resistência indígena e a criação de novos registros
de memória

Podemos remeter o artevismo agenciado por Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Daiara
Tukano e outros/as artistas indígenas à proposta de Suely Rolnik sobre outras
formas de ativismo:

Além de não submeter-se à institucionalização, o novo tipo de ativismo


não restringe o foco de sua luta a uma ampliação de igualdade de
direitos, próprio à insurgência macropolítica. Ele a expande
micropoliticamente para a afirmação de um outro direito que engloba
todos os demais: o direito de existir ou, mais precisamente, o direito à
vida em sua essência de potência criadora. Seu alvo é a reapropriação
da força vital [...]. A reapropriação do direito à vida é diretamente
encarnada em suas ações: é no dia a dia da dramaturgia social que essas
ações acontecem [...] tende a irromper-se um trabalho coletivo de
pensamento-criação que, materializado em ações, busca fazer com que
a vida persevere e ganhe um novo equilíbrio (ROLNIK, 2019, p. 18-19).

Talvez um dos terrenos mais fecundos para a criação de novas coordenadas


existenciais de grupos marginalizados seja o campo das artes porque elas ensejam
múltiplas territorializações, criação de singularidades que escapam à normatividade.

Nas palavras de Sandra Benites, mulher Guarani, antropóloga e curadora de arte:

Comecei a pesquisar muito os artistas de obras de arte que dialogam


com essas narrativas. Existem vários, não só artistas como acadêmicos
indígenas e intelectuais que trazem nas obras a visão de luta na qual
estão inseridos, seja na cidade ou na aldeia [...]. Muitos indígenas que
vivem hoje nas cidades lutam contra esse não lugar: não são
identificados nem como negros, nem como indígenas nem como
brancos. Isso é resultado de como a colonização ocorreu. É
interessante para mim trazer não só a obra, mas colocar esses artistas
para debaterem; não existia isso. Não dá pra gente colocar [em
exposição] um objeto que muitas vezes é sagrado para um determinado
grupo, como o maracá, e deixar lá parado. [...] Muitas das vezes, por
não ter esse debate, acaba se reforçando esses estereótipos sobre o
próprio indígena, como se aquele objeto estivesse no passado
(BENITES GUARANI, 2021).

Imagens como as que são produzidas no contexto dos manifestos e das mobilizações
públicas por direitos indígenas, tais como a Marcha das Mulheres indígenas – 2019 e
2021 –, são icônicas de um processo que, não obstante sua contemporaneidade, está

1168
radicado em uma longa caminhada histórica de insurreições e lutas políticas por
sobrevivência das comunidades e seus territórios.

Nos baseamos, a princípio, no conceito de ch’ixi, proposto por Cusicanqui (2018),


termo que a pesquisadora boliviana toma do vocabulário da língua Aimara, para dizer
sobre aquilo em que os opostos convivem sem se mesclar – como a justaposição de
pigmentos que, vistos a certa distância, se confundem em cores fundamentais,
porém, se observados de perto mostram um quadro composto de gamas e
modulações de cores contrastantes.

Considero esta a tradução mais adequada para a mescla variada que


somos os e as chamados(as) mestiços e mestiças. A palabra ch’ixi tem
diversas conotações: é uma cor produzida pela justaposição, em
pequenos pontos ou manchas, de duas cores opostas ou contrastadas:
o negro e o branco, o vermelho e o verde, etc. É esse cinza jaspeado
resultante da mescla imperceptível do branco e do negro, que se
confundem para a percepção sem nunca se mesclar completamente...
obedece à ideia Aimara de algo que é e não é, simultaneamente
(CUSICANQUI, 2010, p. 69).

O ch’ixi (pronuncia-se como “tchêrri”) equivale ao conceito de “sociedade diversa”,


de Zavaleta, indicando a coexistência, em paralelo, de “múltiplas diferenças culturais
que não se fundem, mas antagonizam ou se complementam” (CUSICANQUI, 2010.
70).

Na cidade - já há uns quarenta anos sou índio, deixei de ser índio? ou


índio aculturado ou urbano - ou índio na cidade - apesar de meu nariz
emio europeu. Será que é "europeu" o meu nariz? Quanto de negro eu
tenho na veia e serei negríndio ou indioafrodescendente? (RIBEIRO,
2021)

Ocorre, na contemporaneidade, um movimento de dispersão diaspórica da etniciade,


mas também de resistência à amnésia histórica, um labor de recomposição da
memória.

A identidade caricaturizada, tipificada do indígena, seria desconstruída, a partir da


década de 1970 no Brasil, pelas próprias vozes das lideranças que se mobilizam além
da Terra Indígena. A XIII Bienal de São Paulo (1975) teve a participação de Aritana,
cacique morador do Xingu. No sítio da Bienal lemos: “A sala Xingu Terra foi novidade,

1169
ocupando 200 m2 no terceiro piso do Pavilhão”. A exposição da artesania de Aritana
foi construída no terceiro andar, “no fundo do pavilhão”. O detalhe textual “ocupando
200 m2” não deixa de ser simbólica do problema dos territórios indígenas, da
demarcação das terras, e o recém-criado Parque Indígena do Xingu, que “confinou”
alguns povos. A delimitação desse espaço mensurado, bem como a localização da
exposição no mapa das edificações da Bienal como um todo, é bastante simbólica do
espaço relegado ao indígena na sociedade neocolonial brasileira. Detalhe também
significativo é que no pavilhão térreo da Bienal de 1975, local de maior destaque,
ficavam as exposições de videoarte dos EUA e Japão, outro símbolo da potência do
capital que rege a mentalidade colonizada e o mercado da arte, que se alimenta do
exotismo.

Jornais da época descrevem a ida de Aritana a São Paulo com detalhes novelescos e
uma retórica do exotismo. Lidos pela ótica folclorística, os corpos indígenas acabam
“cercados” por linhas fronteiriças de subjetivação que enquadram e limitam sua
potência existencial, sendo “marcados” de maneira caricatural pelas
sobrecodificações capitalistas e suas representações uniformes e generalizantes.
Essas camisas de força de contenção da diferença só seriam desamarradas com os
movimentos indígenas falando por si mesmos.

Passados quarenta e seis anos dessa simbólica participação indígena em uma


exposição de arte, em 2021 aconteceria a que foi chamada “a primeira Bienal dos
indígenas”, com curadoria de Jaider Esbell, artista do povo Makuxi. As ocupações da
arquitetura urbana pelo corpo indígena modificam da topografia usual das
significâncias, como podemos perceber na obra intitulada “Entidades” – duas
serpentes de 24 metros postadas no lago do Parque Ibirapuera, em São Paulo,
durante a 34ª Bienal que, segundo o artista Jaider Esbell, estão prontas para dar o
bote em Pedro Álvares Cabral; ele faz menção à estátua de Cabral colocada na outra
margem da lagoa.

As performances, os registros audiovisuais e pictóricos permitem entrever como se


subverte e se resiste aos modos de subjetivação serial. Nas regiões urbanas têm sido
produzidos:

Obras e projetos que floresceram a partir de 2015, nos quais questões,


visualidades e criadores indígenas adentraram o sistema das artes no

1170
Brasil. Com base em pesquisa de campo e análise de catálogos, são
apresentadas as exposições A queda do céu (2015), Da Pedra Da Terra
Daqui (2015), Adornos do Brasil indígena. Resistências contemporâneas
(2017), Reantropofagia (2019) e Vaievem (2019), entre outras; artistas
indígenas como Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Daiara Tukano, Ibã
Huni Kuĩ e Gustavo Caboco. Conclui-se que a arte constitui uma nova
arena na luta dos povos indígenas por visibilidade, tanto em termos
políticos como estéticos. Por outro lado, constata-se grande distância
entre os dois universos: estabelecer conexões e traduções permanece
um grande desafio (GOLDSTEIN, 2019).

A “Reantropofagia” (2019) foi “a primeira exposição com curadoria feita por um


indígena e realizada somente com artistas indígenas no Brasil” (ARÊAS, 2019, p. 255).
Além disso, em 2021, ocorreu a primeira Bienal “dos indígenas”; com curadoria de
Jaider Esbell, artista do povo Makuxi (como se apresentava). Pelo mesmo artista foi
organizado no MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo – a exposição Moquém-
Surarî, com a participação de 34 artistas indígenas que “corporificam
transformações”,

Traduções visuais de suas cosmologias e narrativas, presentificando a


profundidade temporal que fundamenta suas práticas. As obras
atestam que o tempo da arte indígena contemporânea não é refém do
passado. A ancestralidade é mobilizada no agora, reconfigurando
posições enunciativas e relações de poder para produzir outras formas
de encontro entre mundos não fundamentadas nos extrativismos
coloniais (ESBELL, 2021).

Ibã Huni Kuĩ (Isaías Sales) criou, em 2008, o projeto “Espírito da Floresta” para a
pesquisa de processos tradutórios multimídia dos cantos tradicionais do seu povo
Huni Kuĩ. Ibã é um txaná, mestre dos cantos tradicionais. Ele integra o coletivo
MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuĩ, nome que assina coletivamente diversas
pinturas murais, desenhos, telas e vídeos.

Imagem 1 – Obra do Coletivo Mahku, povo Huni Kuĩ

1171
(Fonte: arquivo do autor)

As pinturas murais do coletivo Huni Kuĩ – MAHKU – geralmente ocupam paredes


inteiras e outros espaços arquitetônicos; são compostas de combinações vivazes de
cores, com a presença constante de textos verbais permeando as imagens; alguns
são trechos de cantos tradicionais. As imagens têm um caráter “narrativo” e lúdico,
em que coexistem múltiplos planos, havendo simultaneidade e contiguidade de
dimensões, de entes inumanos, humanos, animais e vegetais, uma convergência de
tempos e espaços, copresença de figura e movimento, gerando espacialidade
comunal. Nesta “convivência”/copresença remanesce o toque das epistemes
ancestrais, que se presentificam de diversas maneiras. As epistemes indígenas
(CUSICANQUI, 2010) sem dúvida colocam em suspenso a cisão ocidental entre
natureza e cultura.

Ao ser indagada sobre o processo de criação de suas pinturas, Daiara Tukano (2017,
2’) responde:

Não sei se tem assim um processo artístico. Tava até debatendo comigo
o Denilson Baniwa, né, o conceito de arte, um conceito que é muito
europeu. Pra gente, não sei se tem um povo que entende esse conceito
de arte da maneira como nos foi ensinado na escola dos brancos né,
não escola de não não indígena; então... Essas imagens elas são
mirações, elas são códigos, elas são outro tipo de mensagem, outro tipo

1172
de discurso. Mas não são necessariamente poética, né; essa coisa da
poética, da figura poética, ela é muito usada para mistificar a imagem
do indígena. É muito fácil dizer que o conhecimento indígena é poesia
ou mitologia, ou folclore, ou qualquer coisa que não tenha uma
materialidade, uma dimensão mais profunda na sua identidade.

Compõe com a fala de Daiara Tukano, a de seu contemporâneo Denilson Baniwa:

Na comunidade não há uma distinção do que é arte ou do que é vida, o


cotidiano está ligado entre o construir uma pintura com pigmentos
naturais nas paredes da casa de rituais (tal qual os afrescos) e fazer uma
roça, ambos são conhecimentos que são passados através de gerações.
Não necessariamente esses conhecimentos são estagnados, pois tanto
a pintura na parede quanto o fazer uma plantação podem ser
atualizados ou recriados a partir de cada pessoa ou de cada geração.
[...] A decisão de ser artista vem da necessidade de compartilhar
conhecimentos com um público que às vezes sequer sabe que ainda
existem indígenas no Brasil, é alcançar estas pessoas pela via da
afetividade ou emoção que não está ligada a uma predisposição de
indigenistas (BANIWA, 2021b).

Denilson Baniwa reflete, após o “encantamento” de Jaider Esbell, Makuxi, cuja obra
visual e performática também rodou o mundo, sobre o lugar desse “artista indígena”
na sociedade industrial. Ele chama de “topo” o lugar que desejava para sua produção,
em termos de reconhecimento, mas então observa a quimera desse lugar almejado,
e repensa o sentido dessa “arte indígena”: “Jaider chegou a esse lugar, e o que para
os brancos é considerado sucesso, para nós foi dia a dia tornando-se um peso.
Infelizmente, ficou pesado demais para ele, mas poderia ter sido para qualquer um
de nós artistas indígenas” (DACIO, 2021).

Se o topo almejado resulta na tragédia, Denilson Baniwa questiona o tipo de arte


indígena que se quis construir até aqui. “Se a recepção que o mundo da arte ocidental
nos deu, levou um de nós a um grave fim, preciso ainda mais pensar que tipo de
relação quero manter com a arte ocidental” (BANIWA, 2021a). A “Carta” de Denilson
Baniwa apresenta os riscos para o artista enredado na serialização da produtividade
e reprodutibilidade técnica mercantil, que ele chama “a ininterrupta fome de quem
nos vê como uma novidade devorável no mercado”. “Se é pela arte que resistiremos,
vai ser pela arte. Mas da minha parte ela não será para satisfazer a fome de nenhum
glutão da arte” (BANIWA, 2021a).

1173
Na tensão entre a serialização e a singularização, é estratégico para os movimentos
indígenas apropriar-se das máquinas de comunicação e produção de saber. A
liderança indígena que toma a palavra frente a esse círculo maior representado pelas
mídias e entidades estatais e não governamentais é, de certa forma, um tradutor em
um front.

Esta questão é sobretudo pertinente se se consideram experiências como as dos


artevistas que perambulam nas megalópoles, e até nos circuitos internacionais de
arte – e assim marginam mais intensamente a individuação capitalística, ameaçados
pela mercantilização de sua individualidade, do seu “gênio”. A questão de que os
artistas indígenas, munidos de seus artefatos de desconstrução da gramática de
dominação colonial, não estariam imunes às políticas de subjetivação capitalísticas,
levanta o problema do não lugar, da posição de travessia perigosa, do nomadismo
indígena pelas instituições e todas as ressignificações que isso envolve.

O outro lado do outro

Na percepção de Jaider Esbell, na complexa trama contemporânea de resistências,


em contraposição à ordem visual hegemônica, o corpo da arte gera conexões entre
mundos, entre o visível e o invisível. Na obra fotografada na imagem a seguir, de
Jaider Esbell, o pontilhismo cria um tecido sem linhas, imagem dos fluxos e devires –
em contraste com as linhas que jogam com o próprio tecido da dimensionalidade,
pairando sobre o fundo negro, pulsos rítmicos de espacialização não linear, em um
movimento de transposição do tempo cronológico para uma temporalidade sideral.

Imagem 2 – Makunaimâ deitado na rede universal. Jaider Esbell (2019)

1174
(Fonte: arquivo do autor)

A obra Makunaimâ deitado na rede universal, de Jaider Esbell (2019), com cores
brilhantes sobre o fundo preto, aparece como analogia da noite cósmica primordial,
da qual o corpo do ancestral (avô) Makunaimâ “surge”. Esse urdir de traços
primordiais retoma a ligação com os mistérios da noite, com as histórias, narrativas
e territórios existenciais ritmados em cantigas desde tempos imemoriais. Os
arquétipos da “noite”, da rede e do ritmo cósmico se destacam do fundo de infinitude
que a cor preta provoca.

Em suas travessias urbanas, a “arte indígena” talvez atinja a alma ocidental em seus
complexos profundos, em sua angústia pelo absoluto, reverberando na concha
abandonada da metafísica. O fóssil do pensamento cosmo-ecológico das
epistemologias indígenas teria voado pela janela nos “tempos modernos”, deixando
pra trás apenas uma bela imagem da “terra perdida”? Não se considerarmos que a
terra perdida é a terra da memória que pode ser redesenhada, reescrita: assim é que
muitos povos estão retomando terras ancestrais perdidas, geograficamente falando
e não só: esse movimento é também uma produção de novas referências existenciais.

1175
A arte-território indígena flui nas transformações de espaços urbanos pela produção
de memória da resistência, na qual a imagem é um meio de insurgência de, mais do
que efeitos de sentido possíveis, novas singularizações subjetivas (GUATTARI, 1992).
O desejo de criar memória, de recordá-las ciclicamente no desenho, através do fazer
com as mãos, age na urgência de se realizar pontes entre o presente amorfo e a “pré-
história”, a qual, incorpórea, mas inscrita nas rochas, artefatos, corpos e ruínas,
emerge corporificada em visualidades e performances, e faz movimento itinerante
de abre-caminhos para outros possíveis. Em uma publicação de Amazoner Arawak
(2020), que reúne imagens de desenhos e pinturas de autores/as indígenas, notamos
a recorrência do traço primordial dos pictoglifos.

Encontramos petróglifos (figuras gravadas na rocha) e pictoglifos (figuras


pintadas) distribuídos em diversos pontos da América do Sul. “Os petróglifos são
marcas que informam sobre a construção do mundo, dos corpos e das relações entre
os seres, tal qual concebem os Tukano e Arawak” (KOCH-GRÜNBERG, 2010, p. 17).
Geralmente são encontrados em blocos de rocha em locais como as beiras dos rios
e as cachoeiras, conhecidos como pontos de reprodução dos seres que aí habitam,
símbolo, portanto da fertilidade e da renovação da vida, bem como sinais de
orientação no espaço cosmológico. Nas epistemes indígenas, as agências humanas
coabitam com agências inumanas que animam fenômenos naturais e “sobrenaturais”,
em que se manifestam relações específicas com o corpo animal, com o ser-folha, o
ser-pedra, o devir-serpente:

Algumas interpretações, como as de Ermanno Stradelli supunham que os petróglifos


eram uma linguagem iconográfica. Estudos mais recentes abrangem observações
que associam os petróglifos ao território, à toponímia (nomes dos igarapés, dos rios,
lagos, lajedos, montanhas, relacionando as cosmologias e narrativas de origem
desses povos. Em nossa leitura/escuta, o prenúncio da renovação é a morte: o fim
de uma idade ou era – condensação arquetípica da existência temporal – costuma
vir sempre acompanhado da celebração do vital, da fertilidade e da renovação. A
serpente é a imagem desse ser que se move entre mundos.

Imagem 3 – Pameri Yukese, acrílica sobre tela (2020), Daiara Hori,


indígena Yepá Mahsã (do povo conhecido como Tukano)

1176
(Fonte: arquivo do autor)

A imagem do quadro acima evoca, dentro do corpo de memórias dos povos Tukano
(Yepá Mahsã), a história oral segundo a qual os primeiros de seu povo desceram ao
mundo montados na grande Jiboia Sagrada. Além desse efeito visual de memória, a
serpente é, em diversas sociedades, um símbolo relacionado a práticas de cura, de
curandeirismo e autorregeneração. Beatriz Sarlo (2007, p. 39) acredita que a memória
e os relatos de memória seriam uma ‘cura’ da alienação e da coisificação. As imagens
simbólicas que invocam figuras glíficas surgem de novo através dessas pinturas que
evocam sua força mágica, engendradora de intuições criadoras. Mais além, o
arquétipo remanescente das formas petroglíficas pode surgir completamente
transformado, restando apenas o estilo do traçado e das formas rudimentares das
linhas. Como ressurgimento de figuras “elementares”, os glifos atuam como
“diagramas de fluxo” que capturam nossa atenção, nossa inteligência e sensibilidade,
e agregam profundidade temporal e ritualística à semiotização da pintura. Essa
“exposição do mistério” também significa romper com “um passado de repressão aos
conhecimentos rituais” (KOCH-GRÜNBERG, 2010, p. 13).

Considerações provisórias

A noção estreita de “animismo” subestima por demais as concepções indígenas que


abalam as categorias ocidentais de vida biológica e natureza. Como antídoto às
categorizações etnocêntricas encontramos a reflexão sobre as “epistemes
indígenas”, expressão adotada por Silvia Rivera Cusicanqui (2010) para mencionar
diferentes ontologias e ecosofias, que implicam, simultaneamente, formas de relação
social – incluindo na “sociedade”, animais, plantas e minerais, seres invisíveis. Estas
diversas maneiras de habitar o mundo – tão variadas quanto as mais de duas centenas
de línguas indígenas faladas só no terrritório brasileiro – refratam diferentes

1177
maneiras de saber, sentir e produzir subjetivações, logo, distintos modos de produzir
imagem e criar percepções.

Rostos outros além do humano animam a Floresta: dentro das epistemes Yanomami,
por exemplo, os Xapiri são forças que protegem a Floresta desde sempre
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 16). Os xapiri falam pela boca do xamã, em uma
simbiose fluida, um trançado com a outridade da Floresta. Davi Kopenawa Yanomami
“virou espírito” e aprendeu a falar pra defender a Floresta; sua palavra é a das
entidades incorpóreas, sua história está entretecida com as folhagens, cipós,
pássaros e animais da terra que povoam o corpo vivo da Floresta. Nesse devir-
Floresta, o corpo de comunidades indígenas se transforma em voz nas palavras
desenhadas em “peles de imagens de árvores mortas” (livros) que eles querem que se
espalhem. As palavras dos xapiri nascem no “tempo do sonho” (KOPENAWA; ALBERT,
2015, p. 65):

Eu, um Yanomami, dou a vocês, os brancos,


esta pele de imagem que é minha.

Esta dedicatória abre o livro (pele de imagem) produzido pela colaboração entre Davi
Kopnawa Yanomami e o antropólogo Bruce Albert. A imagem, na episteme
Yanomami, é um dispositivo mnemônico conjugado à vocalidade (transmissão oral);
desenhar é contar histórias, é relembrar e continuar a tecer a narrativa manuseada
pelos mais velhos.

A apropriação das tecnologias de comunicação e das máquinas de linguagem


expandiu as redes de contato e alianças indígenas, devido ao fato de que as lentes
ampliaram a visibilidade de suas reivindicações e petições de direitos. Mas, no fundo,
as construções indígenas no terreno das artes acabam por produzir sentidos que não
são só políticos, mas existenciais, relativos a processos próprios da subjetividade em
mutação.

Referências

ARAWAK, Amazoner. Exposição indígena coletiva. Artivismo luta e resistência, Abril


Urucum, Terra Xamãnica, Estado de Kanaimé, Solidariedade e novas Governanças para a
humanidade. Arawak, 2020.

1178
ARÊAS, Anderson. Teko Porã e Reantropofagia. Arte & Ensaios, n. 37, 2019.
BANIWA, Denilson. Carta. Tucum Brasil, 6 nov. 2021a. Disponível em:
https://site.tucumbrasil.com/carta-por-denilson-baniwa/. Acesso em: 27 dez. 2021a.
BANIWA, Denilson. Conversa com Denilson Baniwa. Rio de Janeiro: Prêmio Pipa, 2021b.
Disponível em: https://www.premiopipa.com/wp-content/uploads/2019/03/Conversa-
com-Denilson-Baniwa-por-Luiz-Camillo-Osorio-.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
BENITES GUARANI, Sandra. “É preciso escutar mais as culturas historicamente
silenciadas”. Conversas, 1 ago. 2021. Disponível em:
https://gamarevista.uol.com.br/semana/de-quem-e-a-causa-indigena/sandra-benites-
curadora-masp-culturas-indigenas/. Acesso em: 21 mar. 2022.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos
descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Los saberes compartidos. Vídeo – (27min.). Youtube, 2015.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g3DUsv7udNs. Acesso em: 29 set.
2021.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en
crisis. Buenos Aires: Tinta Limón 2018.
DACIO, Maria Luiza. “A pedido de Denilson Baniwa, obra indígena no MASP é coberta em
homenagem a Jaider Esbell”. A crítica, São Paulo, 09 nov. 2021. Disponível em:
https://www.acritica.com/channels/cotidiano/news/denilson-baniwa-pede-e-unica-
obra-indigena-no-masp-e-coberta-em-homenagem-a-jaider-esbell. Acesso em: 27 dez.
2021.
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. Da ‘representação das sobras’ à ‘reantropofagia’: povos
indígenas e are contemporânea no Brasil. MODOS - Revista de História da Arte, v. 3, n. 3,
2019.
GUATTARI, Félix. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Petróglifos sul-americanos. Trad. João Batista Poça da Silva.
2010.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Trad.
Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
RIBEIRO, Ademario. Fronteiras indígenas. Blog, 2021. Disponível em:
http://ademarioar.blogspot.com/p/fronteira-indigena.html. Acesso em: 1 jan. 2022.
RONLIK, Suely. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. Ñandecy: N-1
Edições, 2019.
SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa
Freire D’Aguiar. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
TUKANO, Daiara. Culturas indígenas. Vìdeo, Youtube, 2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=9e9J-VfracU&ab_channel=Ita%C3%BACultural.
Acesso em 12 out. 2022.

1179
Mini Currículo

Tiago Éric de Abreu


Mestre em Música e Doutorando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Uberlândia,
é também compositor e escritor, tendo apresentado performances e experimentos de composição
em tempo real (composição aural). Sua pesquisa atual é sobre os universos indígenas, suas múltiplas
linguagens e os territórios existenciais da subjetividade/ancestralidade polifônica. E-mail:
tiago.abreu@ufu.br

1180
LIBERARSE DE LA AUTOCENSURA. MIRADAS SOBRE EL PASADO RECIENTE
DE MUJERES URUGUAYAS DE LA GENERACIÓN POSDICTADURA

BREAKING FREE FROM SELF-CENSORSHIP. VIEWS ON THE RECENT PAST OF


URUGUAYAN WOMEN OF THE POST-DICTATORSHIP GENERATION

Francesca Cassariego
Facultad de Artes, UDELAR, Uruguay

Resumen

El siguiente artículo expone algunos hallazgos en torno a la representación audiovisual del


pasado reciente de la generación posdictadura. El cine funciona como una memoria
prosteica (LANDSBERG, 2018) a través de la cual logramos empatizar con situaciones que nos
son ajentas en tiempo y espacio. Por lo tanto, el cine funciona como una herramienta
privilegiada a la hora de representar un período en particular. Es así que en Uruguay a través
del visionado de películas sobre pasado reciente es posible configurar un panorama amplio
sobre la realidad que se vivió en el país durante el terrorismo de Estado (1968-1985). Las
películas realizadas en los últimos 40 años (1980-2020) dan cuenta de la necesidad de
transmitir las memorias sobre los acontecimientos vividos desde sus protagonistas,
priorizando la entrevista y el material de archivo. Me interesó saber qué representación
audiovisual realizan las mujeres de mi generación, aquellas que vivimos la dictadura durante
nuestra infancia. Me pregunté qué pasaba con las infancias afectadas directamente por el
terrorismo de Estado, si eramos capaces de representar nuestras vivencias. En el cine
argentino la presencia de realizadores y realizadoras pertenecientes a esta generación y que
fueron afectados directamente es muy significativa, ese corpus de realizaciones ha sido
ampliamente estudiado y el aporte que ha realizado a la construcción de la memoria colectiva
(HALBWACHS, 2004) en cuanto a nuevos temas y enfoques es altísimo (AMADO, 2009). Me
pregunté entonces que pasó en Uruguay con estas memorias, cuáles son las producciones
audiovisuales que hemos generado quienes vivimos nuestra infancia marcada por un país
amordazado y en medio de la violencia. En este sentido, me interesó saber a través de que
formatos, que elecciones estéticas y que memorias construyen las mujeres de mi generación.

Palabras clave: cine, representación, terrorismo de Estado, mujeres

Abstract

1181
The following article presents some findings about the audiovisual representation of the
recent past of the post-dictatorship generation. Cinema functions as a prosthetic memory
(LANDSBERG, 2018) through which we manage to empathize with situations that are foreign
to us in time and space. Therefore, cinema functions as a privileged tool when representing
a particular period. Thus, in Uruguay, through the viewing of films about the recent past, it
is possible to configure a broad panorama of the reality experienced in the country during
the period of State terrorism (1968-1985). The films made in the last 40 years (1980-2020)
show the need to transmit the memories of the events experienced from their protagonists,
prioritizing interviews and archival material. I was interested in knowing what audiovisual
representation is made by women of my generation, those who lived through the
dictatorship during our childhood. I wondered what happened with the childhoods directly
affected by state terrorism, if we were able to represent our experiences. In Argentine
cinema, the presence of filmmakers belonging to this generation and who were directly
affected is very significant, this body of work has been widely studied and the contribution
it has made to the construction of collective memory (HALBWACHS, 2004) in terms of new
themes and approaches is very high (AMADO, 2009). I wondered then what happened in
Uruguay with these memories, what are the audiovisual productions that those of us who
lived our childhood marked by a muzzled country in the midst of violence have generated.
In this sense, I was interested in knowing through what formats, what aesthetic choices and
what memories the women of my generation construct.

Keywords: cinema, representation, state terrorism, women

Liberarse de la autocensura. Miradas sobre el pasado reciente de mujeres


uruguayas de la generación posdictadura

“ser mujer en pueblo chico construye

una forma de autocensura” (Castros, 2017)

Los últimos años del siglo pasado sacudieron a Latinoamérica con regímenes
dictatoriales en los cuales militares y civiles bajo Estados de facto cometieron delitos
contra los derechos humanos de sus ciudadanos. En Uruguay, el método represivo
más utilizado fue la cárcel política prolongada y el exilio. A su vez, se registran más
de 200 personas desaparecidas tanto adultos/as como niños/as. A los niños y niñas

1182
se los apropió, cambiando su identidad y fueron criados por personas, por lo general,
con posturas radicalmente opuestas a la de sus madres y padres. Las personas
adultas desaparecidas, en su mayoría, aún siguen desaparecidas, ya que sus cuerpos
no han sido ubicados y las razones de sus muertes no han sido esclarecidas. Pero
otro tema caracteriza a Uruguay, es que creó una ley de impunidad (Ley 15.848 de
Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado) que además plebiscitó, siendo el
único país en plebiscitar algo tan elemental como el derecho a la verdad y a la justicia
(Lessa, 2016).

Este hecho colocó un manto de silenciamiento en la población uruguaya y por


muchos años el silencio y el miedo se apoderó de espacios públicos y privados. Me
pregunto entonces qué pasó con mi generación. Qué fuimos capaces de elaborar, de
generar, de producir. Una generación marcada por una niñez en represión, por una
escuela llevada adelantes por esposas de militares, por varones de pelo corto y niñas
con pollera a cuadros. Una niñez marcada por las mordazas. Qué narrativas
audiovisuales hemos construido quienes fuimos atravesadas por la ausencia de
transmisiones de esas experiencias (Ros, 2015). Quienes fuimos adolescentes en una
sociedad que eligió la mentira y la impunidad ¿qué entendimos y transmitimos sobre
estos acontecimientos a nivel cinematográfico?

Una mirada generacional

Este trabajo busca hacer una revisión de las narrativas que desde la cinematografía
uruguaya se han creado sobre el pasado reciente. Indagar sobre la memoria que se
ha construido y cuáles son las representaciones que desde el cine se han producido.

Esta tarea podría ser emprendida por cualquier persona que no haya tenido una
relación directa con este pasado, pero como dice Prividera1 “La memoria no es ni
debería ser simple rememoración sino una condición para la acción”. Y a mi también
la memoria me moviliza por la necesidad de que exista una reapropiación de aquella
historia y que pueda servir de base para las nuevas generaciones. El pasado debe, por

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1183
tanto, ser resignificado, y ser puesto en juego en su realidad actual. Como lo expresa
Prividera, esta necesidad se hace acción y se cruza la opción de tomar este tema
como propio.

No puedo pensar este proceso de investigación sin hacerlo desde el lugar que me
tocó vivir en la historia sobre nuestro pasado reciente. Mi perspectiva no es la de una
investigadora lejana al tema qué busca de alguna manera acercarse a una verdad
única y objetiva, aunque tampoco creo que esto sea posible. Mi propósito es recorrer
las producciones audiovisuales para ver si existe similitud en la mirada, la puesta en
escena, el punto de vista, las elecciones estéticas, etc. Sin embargo, dicha
observación está hecha desde el lugar de una persona que fue afectada por el
terrorismo de Estado durante su niñez, sin entenderlo del todo pero sintiéndolo.

Cine sobre pasado reciente en Uruguay

A través del visionado de películas uruguayas sobre pasado reciente es posible


configurar un panorama amplio sobre la realidad que se vivió en el país, no solo en
los años de dictadura sino también en el período anterior. El período marcado por el
terrorismo de Estado, por lo tanto, podemos delimitarlo entre el 13 de junio de 1968
–fecha en que Pacheco Areco2 decreta las Medidas Prontas de Seguridad– y el 1 de
marzo de 1985, con la asunción de un Estado democrático. ‘

Las películas realizadas en los últimos 40 años (1980-2020) dan cuenta de la


necesidad de transmitir las memorias sobre los acontecimientos vividos desde sus
protagonistas. En estas películas se prioriza la entrevista, las imágenes de archivo,
así como también la fotografía familiar y la visita a espacios signados por el horror de
aquellos años. El testimonio es crucial en este tipo de representación, donde se
destaca la palabra de los y las protagonistas sobrevivientes del terrorismo de Estado.
Las peripecias del exilio y la clandestinidad aparecen también retratadas con mucha
fuerza. Hay, además, películas que son construidas desde los afectos y desde el
ámbito familiar.

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1184
En Uruguay se realizaron 65 películas sobre pasado reciente con una duración
mínima de 40 min., de las cuales, el 86% son documentales. Esto puede deberse a
una razón económica (el cine documental tiene costos menos elevados) o de género,
ya que el documental históricamente está catalogado como el mejor portador de la
veracidad de los hechos históricos (NICHOLS, 2019). Sin embargo, para precisar estas
cuestiones habría que profundizar al respecto y evaluar qué pesa más a la hora de la
selección del género, no siendo éste el tema del presente artículo.

Generación posdictadura

A través del estudio bibliográfico se puede observar la multiplicidad de terminologías


utilizadas para definir a la generación que, nacida entre los años 60 y 70, vivió la
dictadura durante su infancia. Gran parte de este grupo, no sólo fue testigo de la
violencia de Estado a la cual sus familiares fueron sometidos/as, sino que fueron
ellos mismos víctimas de una violencia sistemática que les tenía como objeto.

Estos niños/as y adolescentes tuvieron que enfrentar las visitas a las cárceles a sus
madre y/o padres, a hermanos/as, tíos/as o abuelos/as, las cuales significaron
manoseo físico, y sobre todo, psíquico. Sufrieron los allanamientos nocturnos en sus
hogares, los robos en sus casas, torturas a su padre o madre frente a ellos, entre
otros. Estas niñas, estos niños y adolescentes vivieron los avatares de la violencia de
Estado en sus propios cuerpos. Estas infancias fueron afectadas directamente, no se
lo contaron, no llevan en sí únicamente una memoria del horror transmitida, sino
que vivieron en sus cuerpos esas violencias y en una etapa de sus vidas
fundamentalmente constitutiva.

Si bien no toda la generación nacida en estas fechas vivió de la misma manera la


violencia de Estado, quienes no la vivieron en sus hogares y familias, tuvieron amigos
y amigas que sí lo sufrieron, y todos/as compartieron su educación bajo un régimen
militar y una niñez plagada de secretos, silencios y sin sentidos. Quienes vivieron sus
infancias en contextos de represión y violencia en menor o mayor grado llevan la
impronta de esta experiencia y por lo tanto, sus miradas abren una nueva perspectiva
de significación (LLOBET, 2015; PELLER, 2016; ACHUGAR, 2020).

1185
En Uruguay, además, esta población tuvo que crecer en un país que eligió el olvido.
Un país que basó la justicia de la transición democrática bajo un pacto de silencio.
Este hecho trae consigo un quiebre en la transmisión de la memoria de una
generación a otra, lo que complejiza su elaboración y su resignificación (ROS, 2015).
Porque aquello que no se logra reelaborar permanece sin elaboración lo que provoca
fisuras en la compresión y transmisión de significados (JELIN, 2019).

Sin embargo, me llamó la atención que las pocas realizaciones audiovisuales de


personas que fueron afectadas directamente –afirmando a la vez que la sociedad en
su conjunto tuvo una afectación directa– son películas marcadas por una cierta
distancia afectiva. Este es el caso de Gutierrez que ha realizado dos películas sobre
este tema y una de ellas investiga el asesinato de su padre (Gutierrez Ruiz, 20 de
mayo 1976). A pesar de ello, el lugar desde donde Guitierrez realiza sus películas es
casi que el de un investigador, no denota en el documental su afección como hijo que
perdió a su padre hasta el final del mismo, no habla de esa actuación como niño que
perdió a su padre, se posiciona como hijo al ver la foto del cuerpo de su padre
asesinado e indica: mi padre.

Otro de los realizadores que es víctima directa de las acciones del terrorimos de
Estado es Luis Gonzalez Zaffaroni que tiene a su padre desaparecido. Su película es
la primera realizada por esta generación y rescata la lucha y la militancia estudiantil
del 68. No se posiciona como afectado directo y tampoco habla de su experienci,
aunque su película se podría catalogar como un homenaje a esa lucha y con eso, a su
padre.

La tercer película que me interesa mencionar por la afectación directa del terrorismo
de Estado en sus realizadores/as es Todos somos hijos (Barja y Conti, 2016) que si
bien no fue realizada por el propio hijo de desaprecido, es llevada adelante por la
generación posdictadura y cuenta con la complicidad de Valentín Ríos (hijo de Miguel
Ángel Río desaparecido en 1977) que es amigo de uno de los realizadores y por lo
tanto, fue parte de las definiciones sobre la película. A su vez, es Valentín quien como
personaje del documental guía el relato.

1186
Mujeres de la generación posdictadura

Como mujer me interesa lo que expresamos cómo género, y por este motivo es que
centraré mi atención en las películas realizadas por las mujeres de mi generación. A
su vez, por la poca presencia que la mirada de las mujeres tiene en el cine, y porque
comparto el pensamiento de Ruffinelli (2014) cuando plantea que “si los hábitos y la
sensibilidad del presente son diferentes a los de cincuenta años atrás, y si el cine ha
cambiado también, se debe en gran medida a las películas escritas y dirigidas por
mujeres” (RUFFINELLI, 2014, p.11). Por tanto, es importante visualizar cuáles son las
memorias que las mujeres que vivieron la dictadura desde su infancia nos plantean.

A pesar de que las mujeres, tal como señala Ruffinelli (2014) han realizado un aporte
fundamental al cine contemporáneo, en Uruguay, la presencia de éstas en roles de
dirección (21,8%) y guión (20,5%) en el cine documental es aún bastante bajo, siendo
todavía menor la presencia en películas de ficción donde el porcentaje es de 13.3%
en el rol de dirección y del 10% en el rol de guión. Dicha realidad demuestra que el
cine no escapa a la división sexual del trabajo y esto se ejemplifica si observamos que
el rol de diseño de vestuario es ocupado en un 70,7% por mujeres (MAU, 2020).

El corpus seleccionado para llevar a cabo esta investigación demuestra una situación
desigual en relación a la presencia femenina en roles de dirección, ya que se constata
que el 21, 5% fueron realizadas por directoras mujeres. Aunque este número no dista
de lo que pasa en el cine nacional en general, como lo demuestra la investigación del
colectivo de Mujeres Audiovisual Uruguay (MAU) que cité en el párrafo anterior, no
por ello, debemos dejar de mencionarlo. Pese a esto, nos centraremos en las
memorias que construyen estas miradas femeninas sobre el pasado reciente en
Uruguay, buscando ver qué transmiten sus relatos y a través de qué recursos
cinematográficos.

En el corpus de películas realizadas por personas nacidas entre los años 1968 y 1985
que vivieron por tanto su infancia en dictadura la presencia de realizadoras mujeres
es de 25%. Este porcentaje incluye a las mujeres que realizaron películas codirigida
con varones. En las seis películas realizadas por mujeres de esta generación la
cuestión de género está presente en algunos casos más que en otros. Las
producciones de estas mujeres nos aportan miradas diversas sobre la realidad vivida

1187
por Uruguay durante el terrorismo de Estado. Se busca, en este artículo, explorar sus
motivaciones, sus postulados y las formas de narrar y documentar que eligen.

En estas seis películas de directoras mujeres podemos ver la realización de Viñoles y


Tonino que nos habla de cómo el sueño de los años 60 y 70 se reactualiza en el 2004
y vuelve a reflotar como posibilidad desde la política partidaria, por lo menos, desde
la subjetividad de la realizadora. Maiana Bidegain nos cuenta sobre las motivaciones
de sus tíos y su padre en emprender el camino de la lucha, nos habla de amor y de
tormentos, así como de silencios.

Por otra parte, María Teresa Curzio nos acerca las memorias de diferentes
protagonistas de los hechos, ex presas/os políticos, niños/as nacidos en el exilio o
exiliados, testigos del terrorismo de Estado que nos cuentan de carcel, tortura,
desapariciones y niños/as apropiados. Semillas de luz (Wainberg, 2013) se centra en
los testimonios de varias personas que vivieron las acciones directas del terrorismo
de Estado haciendo énfasis en la experiencia de militares que renunciaron a su cargo
porque no querer torturar, ni matar; lo que deribó en cárcel y tortura para ellos. A su
vez, habla de las vivencias de hijos e hijas de desaparecidos y cómo cada uno de ellos
transita esa realidad.

Y por último, en orden cronológico está: Estados clandestinos. Un capítulo rioplatense


de la Operación Cóndor (Iglesias y Monteiro, 2016) que hace luz sobre la militancia de
un grupo del PVP desde la clandestinidad y su posterior captura y traslado ilegal
desde Argentina a Uruguay. Dicha película da cuenta de la parodia realizada por los
militares para hacer creer a EEUU que aún existían en 1976 grupos guerrilleros
armados que amenazaban la seguridad nacional. Testimonios que dan cuenta de dos
vuelos desde Argentina, uno de ellos con 22 personas que aún permanecen
desaparecidas. Por otro lado, Soledad Castro Lazaroff nos trae desde una mirada
feminista el retrato Belela Herrera acompañada, además, de Virginia Martinez, una
gran referente a la hora de hablar de cine y dictadura en Uruguay. Castro, desde su
mirada feminista nos habla de la actualización de las luchas así cómo también de un
quiebre en la transmisión de la memoria intergeneracional.

1188
Algunas observaciones en relación a las realizadoras mujeres de la generación
posdictadura

De las realizaciones audiovisuales de mujeres que vivieron su infancia durante el


terrorismo de Estado en Uruguay podemos observar que la mitad de las mismas
fueron abordadas desde un modo documental perfomativo y participativo (Nichols,
2017). Dichas realizaciones priorizan la subjetividad de la directora y estas están
presente de una manera participativa, no únicamente cómo activadora de la
narración, sino ellas en el centro de la escena, dejándonos ver desde su mirada el
recorte de la realidad que nos proponen.

En estas seis películas realizadas por mujeres nacidas entre 1968 y 1985 es muy
diverso el universo de realidades de vida y de experiencias que se registran, así como
de lo que se les fue transmitido a través de la familia, la cultura y la educación sobre
el pasado reciente. Ninguna de las realizadoras tuvo que visitar una prisión política,
ni creció con la ausencia de un familiar producto de la desaparición forzada, ni vivió
en la clandestinidad. Sin embargo, dos de las cuatro directoras que realizaron
películas sobre la dictadura en Uruguay vivieron en el exilio. Esa condición de
exiliadas infantiles las coloca en un lugar particular de afectación y las ha llevado,
entre otras cosas, a regresar a Uruguay y salir a preguntar para saber más.

Maiana Bidegain y Paula Monteiro crecieron en el exilio, con un Uruguay más o


menos presente. Ambas comienzan la realización de sus películas como una
necesidad personal de hacer colectivas esas memorias, en el caso de Bidegain son las
memorias de sus familiares quienes eran militantes sindicales, políticos o religiosos
y que fueron perseguidos, apresados y torturados por ello. En el caso de Monteiro es
la de sobrevivientes, niños, mujeres y hombres que pasaron por centros clandestinos
de detención, por la cárcel política y por el exilio.

A pesar de que tanto Bidegain como Monteiro sean, a mi entender, víctimas directas
del terrorismo de Estado, porque sus vidas se vieron distorcionadas, o sea, afectadas
directamente por estos acontecimientos, es interesante observar como ninguna de
las dos expresa esta experiencia en la película. Si bien Bidegain lo expone de alguna
manera, dice sentir la necesidad de preguntar, también se cuestiona si debe hacerlo,
quien es ella para hacerlo. Hay una cuestión ética que plantea la directora de Secretos
de lucha (Bidegain, 2007) y a la vez, remarca lo que Fired (2016) Ros (2015) sostiene

1189
sobre el deber de memoria, y cómo el hecho de que el tema no esté resuelto hace
que las siguientes generaciones hereden el trauma.

De estas dos películas realizadas por mujeres que crecieron en el exilio político de
sus padres y madres tomé para el análisis de caso: Secretos de Lucha (Bidegain, 2007)
ya que elige un modo documental performativo y expresivo (Nichols, 2017) a través
del cual, se imprime su subjetividad ante los acontecimientos y es tema de interés en
esta tesis. A su vez, la directora propone para representar mejor algunas situaciones
la ficción que entrelaza con las entrevistas, una estrategia muy interesante.

De las otras cuatro películas que son realizadas por mujeres nacidas durante el
terrorismo de Estado pero que no fueron afectadas directamente, o no se consideran
haberlo sido, tomé para el análisis de caso: Crónicas de un sueño (Viñoles y Tonino,
2005) porque es la primera película realizada por una mujer del corte generacional
que se propone en esta investigación. A su vez, interesa en esta película el vínculo
directo que la directora realiza entre el ayer y el hoy, a través del cual, se propone la
importancia de la memoria colectiva.

La última película que tomé para el análisis de caso es Una de nosotras (Castro, 2019)
que además de ser la última película realizads en el recorte temporal de este trabajo,
es la única realizada desde una mirada feminista. O sea, que no sólo está realizada
por una mujer sobre otra mujer (Belela Herrera), sino que es realizada desde una
mirada consciente y atenta a una mirar el pasadp reciente desde una perspectiva
feminista.

El cine performativo derriba silencios

El epígrafe con el cual inicio este artículo aparece enunciado en Una de nosotras
(Castro, 2019) como una reflexión de la directora al conectar su historia y la de su
protagonista Belela Herrera. El mismo, sintetiza con gran precisión uno de los
hallazgos de este trabajo. Las mujeres de la generación posdictadura que han
realizado películas sobre acontecimientos enmarcados en el período del terrorismo
de Estado en Uruguay antes de realizar su película realizaron un viaje. Viñoles estuvo
tres años estudiando en Bélgica, Bidegain que nació y creció en el País Vasco Francés
también permaneció unos años alejada de su familia y de su país natal en Austria,

1190
también por razones de estudio. Por otro lado, Castro se va a Buenos Aires a trabajar
y pasa varios años de ardua militancia política y social.

Todas realizan la película luego de tomar distancia de los silencios, tanto sociales
como intrafamiliares. De alguna manera, la distancia las libera de esa autocensura
que describe Castro, y las carga con la energía suficiente para salir a preguntar sobre
esos huecos que quedaron en sus memorias. Las motivaciones son distintas, en
Crónicas de un sueño (Viñoles y Tononi, 2005) se accede a la dictadura para
contextualizar el presente que se quiere registrar. En Secretos de lucha (Bidegain,
2007) hay claramente una búsqueda, una necesidad personal de completar los vacíos
de su álbum familiar. Por otro lado, en Una de nosotras (Castro, 2019) la directora es
convocada para realizar una película sobre Belela Herrera y para Castro la toma como
una búsqueda de una pertenencia política y social.

A su vez, cada película es para su directora su primer largometraje. Viñoles a la fecha


lleva realizadas cuatro películas. Bidegain también ha continuado su carrera como
realizadora y tiene otro documental de su autoría. Castro está escribiendo una nueva
película y piensa seguir haciendo cine. Sin embargo, me parece interesante este
debut cinematográfico a través de películas que retratan algún aspecto del pasado
reciente. También este hecho hace evidente la herencia del trauma (Ros, 2008; Fried,
x).

Otra característica que comparten estas tres películas y directoras es la elección del
modo de documentar que es participativo y performativo, principalmente, aunque
también hacen uso del modo observacional (NICHOLS, 2017). Estos modos de
documentar construyen películas con un alto grado de subjetividad y con la
presencia de una directora-personaje constante. La voz de estas mujeres se presenta
desafiando y contrarrestando la voz masculina patriarcal (FOCINITO, 2018). Son ellas,
mujeres jóvenes quienes guían el relato desde su experiencia, desde sus miradas y
con una sensibilidad al servicio del documental. Proponiendo una mirada particular
atravesada por la experiencia personal.

Estas tres películas son coproducciones, aunque técnicamente Secretos de lucha


(Bidegain, 2007) no es uruguaya. Sin embargo, ha sido incluída, como ya lo mencioné
anteriormente, porque la directora sí lo es, y la razón de que su nacimiento no haya
sido en el territorio nacional fue justamente el terrorismo de Estado. De estas tres

1191
películas que analicé es la única directora afectada directamente por las acciones de
horror y violencia cometidas bajo el régimen de facto. Cuando digo directamente, me
refiero a que su vida se vio distorsionada directamente debido a las acciones
represivas del período.

Comparten también la conexión que realizan entre pasado y presente, por ejemplo,
en Crónicas de un sueño Viñoles indica: “Hoy, 30 años después el Frente Amplio
continúa su lucha, y después de tantas muertes, exilios y represiones existe una
posibilidad de llegar al gobierno”. Y en Secretos de lucha Bidegain dice: “20 años
después del retorno de la democracia, la victoria del Frente Amplio, la coalición de
los partidos de izquierda demuestra que el pueblo uruguayo ha vencido su temor”. A
su vez, Castro indica: “La historia de Belela es la mía, porque hoy las luchas son otras
pero también son las mismas”.

En estas tres directoras a través de sus películas reafirman la necesidad de la


memoria para darle sentido al presente y proyectar un futuro que no siga cargando
con esos silencios que generan vacíos interpretativos que se transmiten a su vez de
generación en generación. Sus películas hacen referencia a la existencia de
desaparecidos/as como un tema no saldado por la sociedad uruguaya, en Una de
nosotras (Castro, 2019) sin embargo, se hace mayor alusión a la desaparición de niñas
y niños: “Crecí con los ojos de Mariana Zafaroni mirándome de todos lados, era una
niña como yo pero la habían robado los milicos, eso pasaba en esa época” (Castro,
2019). Con esta afirmación la directora se posiciona cómo perteneciente a la misma
generación que Mariana Zafaroni a la vez, que alude al significado que como sociedad
tuvieron estos hechos.

Además, las tres películas muestran imágenes de la Marcha del Silencio, en las dos
primeras, la misma está como cierre de la película, finalizando entonces con la
demanda social de verdad y justicia. En el caso de Una de nosotras, la película
muestra a Belela Herrera participando de la marcha, pero sin embargo, cierra el
documental con la Marcha del 8M. Por lo tanto, hace sentido la frase que dice Castro
de que las luchas son otras y a la vez las mismas. Además, con esto, la directora
Soledad Castro pone en valor sus preocupaciones personales que están alineadas a
las luchas feministas.

1192
Otra característica que comparten estas películas es la utilización de imágenes de
archivo para representar la dictadura y junto a esta, la resistencia. Por ejemplo, tanto
en la película de Viñoles como en la de Bidegain utilizan imágenes de la marcha de
los cañeros para representar la conflictividad política de los años previos al golpe
militar. Y en el caso de estas dos películas algunas de las imágenes son las mismas.
Con lo cual, se muestra el valor del archivo en tanto registro que posibilita a su vez
su reapropiación y construcción en nuevos o actualizados significados, son los
mismos archivos y a la vez, son otros, en tanto nuevas narraciones.

A modo de cierre

A través de sus películas, las directoras realizan un acto político “en ese gesto de
hablar, más allá de cómo hable(n)” (FIERRO, 2022) ya que se posicionan como seres
activos en la construcción de sentidos pese a sostener –o porque sostienen– que
hay una transmisión de memorias no resuelta entre su generación y la anterior. Y es
a través de “un cine de las prácticas, de la práctica política, estética, y de la rebelión
en todas sus formas” (FIERRO, 2022) que se proponen lograrlo.

Me interesó saber qué representación audiovisual realizaban las mujeres de mi


generación, aquellas que vivimos la dictadura durante nuestra infancia. Me pregunté
qué pasaba con las infancias afectadas directamente por el terrorismo de Estado, si
eramos capaces de representar nuestras vivencias. En el cine argentino la presencia
de realizadores y realizadoras pertenecientes a esta generación y que fueron
afectados directamente es muy significativa, ese corpus de realizaciones ha sido
ampliamente estudiado y el aporte que ha realizado a la construcción de la memoria
colectiva en cuanto a nuevos temas y enfoques es altísimo (AMADO, 2009).

En el caso de las realizadoras mujeres, como ya hemos visto, existen dos películas
que retratan la militancia, la lucha, la resistencia, así como la cárcel y la tortura por
hijas de padres y madres exiliadas políticas. Sin embargo, cabe señalar que ninguna
de estas dos mujeres vivió en Uruguay por mucho tiempo, por lo cual, el
silenciamiento con el que crecieron lo sienten en algunos casos como un silencio
intrafamiliar:

1193
Pensaba que mi ignorancia respecto al pasado de mi familia era debido
al exilio de mis padres, sin embargo descubro que más allá de mi
experiencia, es toda una generación del pueblo uruguayo la que heredó
de este silencio impuesto por miedos que todavía son palpables.
(Bidegain, 2007)

Esto me remite a las reflexiones de Marchesi y Winn (2013) sobre que la Ley de
Caducidad señala límites en su artículo 4 sobre qué temas se podían investigar, y que
este hecho tuvo “efectos perversos” ya que se focaliza la justicia, así como las luchas
sociales en pos de memoria y verdad, en lo que la ley permite. Es así que la temática
de derechos humanos en Uruguay quedó acotada por muchos años a los y las
desaparecidas y a los hijos e hijas apropiados/as.

Este hecho marca entonces un perfil en torno a las narrativas de la memoria, por su
carácter intrínseco e indisoluble con la justicia transicional (LESSA, 2016) dejando de
lado a algunas voces. Además, cabe señalar, que esos huecos en la trasmisión de la
memoria (ROS, 2015; FRIED, 2016), que hemos mencionado anteriormente, quedan
evidenciados en esta generación que creció enmudecida, que durante su
adolescencia se decepcionó cuando el pueblo uruguayo decidió no hacer justicia, y
que esas fallas se evidencias en la escasez de producciones que hablen con libertad
y franqueza de sus vivencias y que den cuenta de nuevas interpretaciones.

Cabe señalar que la producción audiovisual de un país a la vez que representa


acontecimientos también los construye (FERRO, 2000). Por lo cual, es fundamental
que existan representaciones del pasado que actualicen los acontecimientos para las
generaciones futuras, porque “la imagen verdadera del pasado amenaza con
desaparecer con todo presente que no se reconozca aludido en ella” (BENJAMIN,
1940). Por lo cual, si no aprendemos de los acontecimientos pasados quedamos
librados a volver a cometer los mismos errores.

A su vez, la reelaboración del pasado propone un ejercicio en el presente por lo cual,


la actividad consciente queda asociada a la creación y no al “reflejo directo del
pasado” (ROS, 2008, p. 117) ya que al recordar y crear; se selecciona, se hace un
recorte, se elige qué se recuerda y qué se olvida. De esta manera, quien crea deja de
estar en el lugar de víctima para reapropiarse de esa vivencia y ser quien activa y
provoca una experiencia. Se pasa entonces de un rol pasivo a uno activo, por lo tanto,
esta persona “queda habilitada para actuar más libre de repeticiones” (PELLER, 2009,

1194
pg. 62). También Jelin y Kaufman (2006, p. 61) sostienen que si bien la reconstrucción
no logra reparar del todo, esa unión entre pasado y presente aporta nuevos sentidos
a la experiencia traumática.

Referências

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(Re) making our past. Springer, 2016.
AMADO, A. La imágen justa. Editorial Colihue, 2009.
BENJAMIN, W. La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica. Discursos
interrumpidos I, 7, 1973.
FERRO, M. Historia contemporánea y cine, Barcelona. Ariel, 2000.
FORCINITO, A. Narración, testimonio y memorias sobrevivientes: Hacia la posmemoria
en la posdictadura uruguaya. Letras femeninas, 32 (2), 197-217, 2006.
FRIED AMILIVIA, G. Trauma social, memoria colectiva y paradojas de las políticas de Olvido
en el Uruguay tras el terror de Estado (1973-1985): memoria generacional de la post-
dictadura (1985-2015). ILCEA. Revue de l’Institut des langues et cultures d’Europe,
Amérique, Afrique, Asie et Australie, (26), 2016.
FUICA, B. T. ¿Cómo representar la dictadura? Recorrido por estrategias cinematográficas
en documentales uruguayos. AMÉRIQUE LATINE HISTOIRE ET MEMOIRE. Les Cahiers
ALHIM. Les Cahiers ALHIM, (30), 2015.
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JELIN, E. Trabajos de la memoria. Siglo XXI Editores, 2002.
JELIN, E. La lucha por el pasado. Siglo XXI Editores, 2019
JELIN, E., y KAUFMAN, S. G. Subjetividad y figuras de la memoria (Vol. 12). Siglo XXI
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LANDSBERG, A. Prosthetic memory: the ethics and politics of memory in an age of mass
culture. En Memory and popular film (pp. 144-161). Manchester University Press, 2018.
LESSA, F. ¿Justicia o impunidad?: cuentas pendientes en el Uruguay
post-dictadura. Debate, 2016
LLOBET, V. Polıticas y violencias en clave generacional en Argentina. En Prohibido olvidar.
Ayotzinapa y el juvenicidio en Am ́erica Latina. Barcelona (España): NED Ediciones, 2015.
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Sulina, 2018.
NICHOLS, B. Introducción al Documental, México DF, México: Ed., 2013
NICHOLS, B. La representación de la realidad: cuestiones y conceptos sobre el
documental. Paid ́os, 1997.

1195
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contempor ́aneo. Polıtica y cultura, (31), 49-63, 2009.
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ROS, A. El documental político y la generación de posdictadura en Uruguay. imagofagia, (14)
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RUFFINELLI, J. Para verte mejor: el nuevo cine uruguayo y todo lo ante-
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WINN, P., STERN, S. J., LORENZ, F., y MARCHESI, A. No hay mañana sin ayer: batallas por la
memoria hist o
́ rica en el Cono Sur. LOM ediciones.168, 2014.

Mini Currículo

Francesca Cassariego
Es licenciada en Artes Plásticas y Visuales de la IENBA, UDELAR. Cursó la Maestría en Arte y Cultura
Visual de UDELAR, y se encuentra desarrollando su tesis Cine sobre el pasado reciente en Uruguay.
Miradas de mujeres que nacieron durante el terrorismo de Estado (1968-1984). Es directora y
cofundadora de Tenemos Que Ver, Festival Internacional de Cine y Derechos Humanos de
Uruguay desde el 2011 a la fecha. Docente del Seminario - Taller de las Estéticas III de la Facultad de
Artes, UDELAR. E-mail: ccfrancesca@gmail.com

1196
EIXO F

ESTUDIOS DE CULTURA VISUAL Y

CONDICIONES DE CREACIÓN Y PRODUCCIÓN

ARTÍSTICA CONTEMPORÁNEA
AUDIOVISUALIDADES CALIENTES: AS PROMESSAS DE UMA CASA LATINA NO
STREAMING DE MÚSICA A PARTIR DE UMA RELEITURA DE DARCY RIBEIRO

HOT AUDIOVISUALITIES: THE PROMISES OF A LATIN HOUSE IN MUSIC


STREAMING FROM A REVIEW BY DARCY RIBEIRO

Jhonatan Alves Pereira Mata


Programa de Pós-Graduação em Comunicação-PPGCom-UFJF

Marcos Vinicius de Brito Amato


Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

Resumo

Ao se indagar, no título de um de seus livros, sobre a existência de uma América Latina, Darci
Ribeiro (2010), cujo centenário de nascimento celebramos em 2022, aponta para a
necessidade de um eterno desassossego sobre essa possibilidade, apesar de seu
reconhecimento. Com o objetivo de aprofundar os sentidos contemporâneos dessa
existência, baseada numa unidade geográfica que não é sinônimo de unificação, recorremos
à música para pensar latinidades possíveis nas plataformas de streaming. Considerando que
a dimensão artística permanece operando como potente mantenedora de projetos coloniais
em contextos latino-americanos, lançamo-nos a uma análise de conteúdo audiovisual de
obras e artistas disponibilizados em listas de reprodução em três plataformas de streaming
com possibilidade de pacote gratuito de utilização: Deezer, Spotify e YouTube Music.
Agrupados e catalogados nestes espaços como “música latina”, artistas de diferentes gêneros
musicais, formações, nacionalidades e performances sortidas junto a seus respectivos- e
também sortidos – públicos, apontam para discursos generalizantes, com destaque para as
simbologias do fogo, do calor e das passionalidades, mas também questionam olhares
universais sobre latinidades. O que cantam? De quais lugares cantam? A quem suas canções,
reunidas em títulos de playlists, ritmos, letras e performances sugerem representar?
Entendendo o conceito de streaming ancorado na distribuição de conteúdo que desonera
discos rígidos (HDs), atentamo-nos para os casos de rigidez e flexibilidade discursivas
presentes nas listas pesquisadas.

Palavras-chave: audiovisual; latinidade; música; streaming.

1198
Abstract

When inquiring, in the title of one of his books, about the existence of a Latin America, Darci
Ribeiro (2010), whose birth centenary we celebrate in 2022, points to the need for an eternal
unrest about this possibility, despite its recognition . In order to deepen the contemporary
meanings of this existence, based on a geographical unit that is not synonymous with
unification, we turn to music to think about possible Latinities on streaming platforms.
Considering that the artistic dimension continues to operate as a potent maintainer of
colonial projects in Latin American contexts, we launched an analysis of audiovisual content
of works and artists available in playlists on three streaming platforms with the possibility of
a free package for use: Deezer, Spotify and YouTube Music. Grouped and cataloged in these
spaces as “Latin music”, artists from different musical genres, backgrounds, nationalities and
assorted performances with their respective – and also assorted – audiences, point to
generalizing discourses, highlighting the symbologies of fire, heat and of passionalities, but
also question universal views on Latinities. What do they sing? From which places do they
sing? Who do your songs, gathered in playlist titles, rhythms, lyrics and performances
suggest representing? Understanding the concept of streaming anchored in the distribution
of content that exempts hard disks (HDs), we pay attention to the cases of discursive rigidity
and flexibility present in the researched lists.

Keywords: audiovisual; latinity; music; streaming.

Ao possibilitar a remixagem de grandes produções e artistas independentes, o


compartilhamento online de material altera os perfis de quem produz e de quem
consome música. E oferece tanto a possibilidade de uma representatividade de
artistas e gêneros mais plurais como também a utilização de rotulagens regionais
como mero verniz mercadológico. A origem francesa da palavra performance, o
termo “parfounir” remete à colocação em forma, de um tempo de exposição. Nesta
situação, trata-se de uma “vida” que ganha formato na medida em que é exposta a
múltiplos olhares, momento em que o “um” é exposto aos “outros”. Na condição de
“performers” de uma suposta latinidade, termo emprestado de Latour (1989),
consideramos que artistas e seus respectivos públicos são mobilizados a partir de
códigos específicos, que mapeamos neste trabalho. A ideia de arquivamento
temporário é utilizada aqui não apenas para pensar o tipo de reprodução que o
streaming possibilita, como também é útil para repensar o próprio arquivamento
temporário do conceito de latinidade, em sua oscilações e modulações históricas e

1199
estéticas. Assim, falamos de arquivamentos em camadas múltiplas, pautadas também
na ideia de que a “música latina” experimenta períodos ascendentes e de declínio no
campo do consumo musical. O conceito de “canção das mídias” (VALENTE, 2003)
alinhava a respectiva proposta, já que buscamos compreender como a canção
expressa, informa, corrobora, apresenta traços da cultura da qual faz referência e à
qual se vincula. E de que modos suas potencialidades podem ser reforçadas por meio
desses vínculos, a partir do momento em que se fala de uma ascensão da música
latina ao “mainstreaming” da indústria fonográfica.

Darci para compreender latinidades no streaming

Com 569 milhões de habitantes, a América Latina que habita a vida e obra de Darci
Ribeiro viceja para além dos números ou de uma reconhecida continuidade
continental. A pertinência e atualidade de muitas de suas respostas- mas sobretudo
questionamentos- para compreendermos os traços e tendências de uma suposta
“latinidade” no streaming levaram-nos a recorrer ao pensador de um modo amplo,
que ultrapassa qualquer intenção legítima de homenagem e desemboca no campo do
revisional e da aplicabilidade contemporânea de suas teorias e práticas. O
organizador de sua obra, Eric Nepomuceno, já adianta, no texto de apresentação de
“A América Latina existe?” que a questão da “latinoamericanidad” era para Ribeiro
“algo essencial como respirar”, além de pensar o Brasil a partir de uma imersão
regional quando já era potente a ideia da existência de um “eles” (os latino-
americanos) e o “nós”, os brasileiros.

O Brasil de 2022 precisa conviver, nas múltiplas telas e fora delas, com distinções
históricas, linguísticas, geográficas e diplomáticas, dentre outras que podem ser
responsáveis por nossa complexa relação com a identidade latina. Que faz com que
apenas 4% dos brasileiros (ante uma média de 43% de outros seis países latinos) se
considerem latino-americanos1. Por outro lado, recentes vitórias da artista brasileira
Anitta, em espaços relevantes para divulgação e premiação dos trabalhadores da

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1200
indústria da música, inserem e reconhecem o Brasil na esfera de uma
“latinoamericanidad” e mesmo brasilidade promissoras, refutando a correlação
limitada entre mistura de raças e atraso econômico e social, já combatida por Ribeiro
em sua defesa de uma desidealizada, mas possível integração latino-americana.

Em 2020, a cantora se torna matéria de capa do segundo maior jornal em circulação


no Brasil (a Folha de São Paulo) ao ser creditada, em título 2, como responsável pelo
reconhecimento e inclusão do funk brasileiro como música urbana naquela edição
do Grammy Latino. Vestida de chapéu e blazer brancos, em alusão aos sambistas
clássicos, Anitta se apresentou na premiação, direto dos Arcos da Lapa, no Rio de
Janeiro. Foi, ainda, a única brasileira a concorrer em uma das categorias principais, a
partir da indicação de sua música “Rave de Favela”, na modalidade melhor canção
urbana. Em 28 de agosto de 2022, a artista se torna assunto na imprensa nacional e
internacional e movimentou as redes sociais ao apresentar performance e ainda
vencer a categoria de "Melhor Clipe Latino" do Prêmio MTV Video Music Awards 3-
VMA 2022 com a música "Envolver”. Para além do feito de ser a primeira artista
brasileira a vencer uma categoria da premiação, Anitta acaba por revirar, ainda que
indiretamente, questões sobre representatividade em camadas múltiplas- a do lugar
da mulher, das latinidades, das periferias e de seus ritmos, com destaque para o
Brasil. Nascida em Honório Gurgel, bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro,
a artista concorreu com nomes já consolidados da música latina nos Estados Unidos,
com J. Balvin, Bad Bunny e Daddy Yankee, sendo indicada por uma música idealizada,
escrita e lançada exclusivamente por ela, que também dirigiu o videoclipe da faixa.
Suas declarações, ao longo da premiação transmitida ao vivo para todo o planeta e
ainda as postagens em stories, posteriores ao dia do evento, dão conta dessa
relevância e de um posicionamento pautado bem mais em posturas de indignação,
de não-sujeição do que da resignação, duas únicas “opções” ofertadas aos latino-

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3
MTV Video Music Awards é uma das maiores premiações da música americana, criada em 1984 pela MTV, em
reconhecimento aos melhores videoclipes do ano. Lista completa de concorrentes e vencedores disponível em
https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/vma-2022-confira-a-lista-completa-de-vencedores/

1201
americanos elencadas por Ribeiro (2010, p.20) em sua luta e utopia por uma “Pátria
Grande”. No palco da premiação, a artista, com a estatueta na mão relatou que

É a primeira vez que meu Brasil está aqui. Quero receber minha família
e amigos. Eu apresentei [no show] um ritmo [o funk] que por muitos
anos foi considerado um crime. Eu fui criada na favela e por muitos
anos não imaginamos que isso seria possível.

Nos stories de sua conta na plataforma instagram, Anitta ressaltou, no dia seguinte à
premiação, sua visão a respeito da latinidade

Eu sei que sou latina. Eu sou agora artista latina. Eu também canto em
espanhol, mas o Brasil tem uma cultura completamente diferente dos
países que falam espanhol, eles falam português, é um mundo
totalmente diferente. E, para nós, foi considerado muito impossível
tudo o que aconteceu hoje comigo. Há muitas outras pessoas vindo
atrás de mim. Espero que tenha sido só uma porta que eu abri.

Cantado em espanhol, o single “Envolver” já havia viralizado na plataforma TikTok,


culminando no topo do ranking Spotify Global, em 24 de março de 2022, depois de a
música ter alcançado 6.39 milhões de streams ao redor do mundo, além de integrar
a parada de hits de mais de 45 países. Embora pontual, a projeção da cantora a nós
se apresenta como estandarte de uma ainda não resolvida situação do Brasil em
relação ao “coexistir sem conviver” com suas latinidades, já dimensionado por
Ribeiro (2010, p.23) ao tratar das distintas implantações coloniais das quais nasceram
as sociedades latino-americanas. Pululam, em inflamados debates exibidos em
formatos de podcasts, programas de TV, produções audiovisuais para a plataforma
YouTube, dentre outros produtos, críticas à cantora, que se ancoram, mas não se
justificam, em pleno século XXI, numa suposta “latinidade forjada” já que se trata de
uma cantora brasileira cantando em espanhol e não em português. O que retoma, no
plano linguístico-cultural, os contrastes e semelhanças entre o conteúdo luso-
americano, concentrado todo no Brasil e um conteúdo hispano-americano a
congregar o restante, “com base numa longa história comum, interatuante, mas
muitas vezes conflitante” (RIBEIRO, 2010, p.25). Neste cenário e voltando-nos ao
recorte desta pesquisa, poderíamos pensar nestas plataformas como promotoras de
sismos, ainda que tímidos, capazes de contribuir para a união da latinoamérica, esse
arquipélago de ilhas que se comunicam mais com os grandes centros mundiais do

1202
que para dentro? Considerando - mas relativizando- as fronteiras físicas da América
Latina, como a cordilheira desértica e a selva impenetrável, bem como barreiras
socioeconômicas e comunicativas, como o acesso e qualidade da internet disponível
e os desertos de notícias, qual o papel das plataformas de streaming de música nessa
espécie de desbravar- já que de “descobrimentos etnocidas” estamos enfadados- ou
mesmo em aprofundar o significado da existência em conjunto dessa América
específica?

Em paralelo, ressaltamos os dados ofertados por Garret (2020) para o site TechTudo,
ao apontar que os serviços de streaming de música foram responsáveis por quase
80% de todo o faturamento da indústria em 2019, movimentando 8,8 bilhões de
dólares. Já a Netflix, provedora global de filmes e séries de televisão via streaming,
foi responsável, no ano de 2018, por 15% de todo o tráfego de Internet do planeta.
Nesse contexto, o videoclipe, híbrido em essência, ao englobar os apelos de vídeo e
música em telas, desponta como potencial ingressante do universo do
“mainstreaming”, expressão frequentemente encontrada nos atuais relatórios de
consumo de audiovisual.

A “música com imagem”, consolidada internacionalmente após a criação da MTV, em


1981 e reforçada no Brasil com a chegada da MTV Brasil com o delay de quase uma
década (1990), dá sinais, a partir do videoclipe, de que o produto é essencial para a
construção das imagens dos artistas e divulgação de seus trabalhos. Mesmo sendo o
acesso flexível e liberto de horário fixo de exibição uma das grandes razões de
popularidade do streaming, lançamentos de canções e clipes são anunciados e
aguardados com dias de antecedência, por meio de cronômetros, indicando em tela,
a contagem do tempo restante para a exibição inaugural de material. Os álbuns
visuais, como Lemonade (Beyoncé, 2016) e Kisses (Anitta, 2018) pululam,
apresentando narrativas visuais em sequência, da primeira à última faixa das
canções. Apresentadas as projeções que justificam nossa incursão, procederemos, a
seguir, à análise de conteúdo de listas de reprodução de plataformas de música,
ancorados em categorizações nascidas das reflexões de Darci Ribeiro sobre a
América Latina.

1203
Soy loco por ti, streaming: análise das latinidades possíveis no Youtube Music,
Spotify e Deezer

A análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin (2011) será utilizada para mapear
a aparição de aspectos reiterados nas mensagens das canções e playlists
disponibilizadas nas plataformas Deezer, Spotify e YouTube Music (acessadas via
aplicativo de cada em 31/08/2022 e na categoria de perfil gratuito). A autora
demarca elementos - palavras, conceitos, símbolos-chave do texto, para aferir sua
frequência e sua significação- o processo de categorização. Os critérios de
organização de nossa análise seguiram as seguintes etapas: a pré-análise, a
exploração do material e o tratamento dos resultados. Em momento inicial de pré-
análise procuramos pelos termos “latina”, “latino” e “latin” nos três buscadores de
playlists das plataformas. Dessa forma, ao invés de demarcar um recorte temporal,
nossas escolhas permitiram mapear, de modo mais fluído e completo, músicas e
artistas de épocas sortidas. O objetivo aqui foi incluir toda e qualquer menção aos
termos de interesse (que mapeiam latinidades), incluindo todos os gêneros que
foram inseridos nestas playlists. Desse modo, seguimos regras fundamentais da
análise de conteúdo, como a exaustividade, que sugere esgotar todo o assunto sem
omissão de nenhuma parte; a representatividade, onde nos preocupamos com
amostras que representem o universo; homogeneidade, que trata de dados que
remetem ao mesmo tema (latinidades), coletados por meio de técnicas iguais e
exclusividade, onde se postula que um elemento não deve ser classificado em mais
de uma categoria.

Na análise de conteúdo, optamos por selecionar playlists que fossem exclusivamente


criadas e disponibilizadas em destaque pelas próprias plataformas. Desse modo,
evitamos listas de reprodução elaboradas por terceiros, tarefa que resultaria em
outra instigante pesquisa paralela, pautada inclusive na participação do público.
Assim, operamos também com o mapeamento de “intenções” e promessas de leitura
sobre latinidades feitas por essas plataformas a seus respectivos públicos. O material
apresentado com a credencial “principal resultado” na plataforma YouTube Music é
a pasta/playlist intitulada “Casa Latina” (2022), que comporta 100 canções,
totalizando 6h37m de material. Como playlists em destaque, temos nove pastas:
“Zumba para torrar calorias” (60 músicas), “Pitada Latina: inspirados no reggaeton”,

1204
“Onda Latina” (80 músicas), “Pop latino para viagem” (85 músicas), “Al Milión” (50
músicas), “Roda punk latina” (30 múscas), “Muévelo, muévelo”(81 músicas) , “Hits do
pop latino” (93 músicas) e “Pop Latino e alegre” (53 músicas). No Spotify, as buscas
têm como resultado principal a playlist: “Viva Latino” (apresentada como “top result”)
e outras 90 pastas próprias e “oficiais” da plataforma, incluindo as listas “Latin hit
mix”, “50 Latin classics”, “Latin pop classics”, “Hot latina summer”, “Inspiring latinas”,
“Energy booster:latin”, “Calorcito”, “Latin flavor”, “Latino Machine”, “This is latin
music”, “Latino Gang” e “Viva latino billion”. No aplicativo da plataforma Deezer, a
procura resultou em dois provedores de playslists: Deezer Latin Music Editor e
Deezer Editor Americas. Juntas, esses dois editores agrupam 22 pastas, cujos títulos
incluem “Fuego Latino” como pasta principal e outras intituladas “Caliente”, “Vamos
a la playa”, “Happy Latin hits”, “Latinos revelación” e “Especial Grammy Latino 2017”.
Em seguida, agrupamos as playlists a partir de promessas de latinidades que seus
próprios títulos anunciavam, detalhadas nos próximos “t(r)ópicos”.

Sabores, calores e outras sensações: as promessas de uma “Casa Latina”

“Família” é o nome do terceiro álbum de estúdio classificado como pop latino, da


cantora e compositora cubana-americana Camila Cabello. Lançado em abril de 2022,
pela Epic Records. À época do lançamento, paratextos que circulavam na divulgação
do produto, cuja capa traz a cantora abraçada a uma prima criança, traziam em
destaque sentimentos e conceitos como os de alegria coletiva, resgate de raízes e
identidade, conexões com entes queridos, corações abertos e- claro-latinidades. Nas
palavras da artista, em texto de divulgação no twitter, “Família” é assim definido:

Todo esse álbum para mim foi inspirado por duas coisas: família e
comida. Sua família de sangue, mas também sua família escolhida. Com
quem você quer partir o pão. Com quem você quer se sentar à mesa de
jantar, cozinhar uma refeição, beber vinho e dançar na sala de estar.
Para mim, esses são os momentos que me fazem feliz por estar viva,
esses momentos de alegria coletiva e verdadeira vulnerabilidade e
conexão com outras pessoas. Momentos em que a comida que vocês
cozinharam juntos alimenta sua alma, assim como o riso, a conversa e
a intimidade emocional. Espero que gostem e espero que inspire
muitas festas dançantes na cozinha com bebidas alcoólicas para você
e sua família. (@Camilla_Cabello, tweet em inglês, Consultado em 31 de

1205
agosto de 2022 – via Twitter Disponível em
https://twitter.com/camila_cabello/status/1418422620786135040

Faixa a faixa, o conceito do álbum é por nós vislumbrado como um proveitoso


exemplo para um dos achados principais de nossa pesquisa: a ideia de uma “casa
latina”, pautada nas mobilizações de afeto e vínculos que as latinidades musicadas
podem evocar. O sintoma foi perceptível não apenas na plataforma YouTube Music,
em sua lista de destaque “Casa Latina”(fig.1), que traz um sofá como arte da pasta e
cuja descrição é “Sua seleção diária de sons latinos para toda família”, mas por toda
a nossa incursão nas 3 plataformas analisadas. “Pitada latina” (YouTube Music), “Latin
Flavor”, “Viva latino (fig.2), “This is the Latin brothers”, “Calorcito”, e Latinos Unidos
(no Spotiffy) e “Caliente”, “Happy Latin hits” “Vamos a la playa”, “Sabor Latino” e
“Fuego Latino” (fig.3) (Deezer) exemplificam a “atmosfera” desse tipo de
caracterização pautada em conceitos como calor (de sentimentos e de
temperaturas), promoção de uma felicidade inocente e genuína e exaltação aos laços
afetivos e relacionamentos humanos.

Figuras 1 (Youtube Music), 2(Spotify) e 3 (Deezer)- o calor nas capas das playlists.(Fonte:acervo
audiovisual dos autores)

Essa recorrência pode ser compreendida a partir de uma releitura de Darci Ribeiro
ao mapear as peculiaridades da América Latina. Sem deixar de reconhecer a vasta
literatura produzida, sobretudo, por antropólogos a respeito das singularidades das
populações latino-americanas, bem como a questão da fenotipia como
condicionadora de inferioridade e preconceitos, Ribeiro (2010, p.30) pontua que
“aqui, também, as semelhanças são mais significativas que as diferenças, já que todos
esses contingentes estão plenamente “americanizados”. Assim, carregando as
heranças de todas as matrizes da humanidade” (2010, p.35) os “neoamericanos” se

1206
sobressaem como a unidade de produto resultante da expansão ibérica. Quando
remetem, nos títulos e capas das listas de reprodução, a elementos como união
familiar, calor (também humano) e ao sentido do paladar, as plataformas acabam por
operar com evocações clássicas de uma latinidade forjada em uma “uniformidade
sem unidade” (Ribeiro, 2010, p.34, alicerçada num cenário macro étnico de
coexistência de feições ibero-americanas. Para o autor (2010, p.37)

Voltamos, assim, á uniformidade inicial. Pouco importa que ela não seja
percebida com clareza em cada entidade nacional, inclusive porque
cada nacionalidade é um esforço por ressaltar singularidades como
mecanismo de autoglorificação e autoafirmação, que só tem sentido
para aqueles que participam das mesmas lealdades étnicas. O certo é
que nossa latino-americanidade, tão evidente para os que nos olham
de fora e veem nossa identidade macroétnica essencial, só ainda não
faz de nós um ente político autônomo. Mas não é impossível que a
história venha a fazê-lo.

Inseridas num tempo-espaço que também é histórico, as listas latinas no streaming


deixam nítida a “vontade” de uma “Federação Latina”. Repletas de calor, união e
alegria, as famílias, salas e cozinhas latino-americanas recuperam, por meio dos
afetos e domesticidades, tanto a passionalidade ibérica por vezes reduzida ao clichê
da expressão “sangue quente” quanto nossa economia original comunitária, voltada,
segundo Ribeiro, (2010,p.72) para a “reprodução ampliada das condições de
existência da própria população e que sempre garantiu fartura”. No streaming, em
boa parte do recorte, a América Latina parece cumprir seu antigo e conhecido papel
de “provedora de toda a riqueza e gostosura tropical que pudesse produzir” (2010,
p.74). Em oposição socioeconômica à América rica (anglo-americanos), os latino-
americanos, nesses espaços, se reúnem debaixo de uma mesma denominação. E
convocam os consumidores de música a suspenderem, ainda que por alguns minutos
ou faixas- o genocídio indígena, o tráfico de escravos, as armas, vírus e ardis dos
colonizadores. E a passearem, com ardor utópico, por uma “caliente” “jardim tropical
idílico” (Ribeiro, 2010,p.45), que desemboca na cozinha, lugar onde todos os latinos
se (re) encontram. E onde a exaltação às cores e sabores de culinárias indígenas e
africanas, dentre outros, é bem vinda. Local, segundo Ribeiro, em se assumem como
Povo Novo. A estátua da liberdade, ícone neoclássico dos Estados Unidos, utilizada
como arte de capa da playlist “Latinos Unidos” (Spotify) é fundamental para

1207
depreendermos aqui as questões desenvolvidas ao longo desta primeira
categorização em nossa análise.

Velocidade, energia e vigor: traços e tendências de uma latinidade Hot Wheels

A utilização do elemento “fogo” (fuego), presente inclusive nos títulos de muitas


canções se apresenta em nosso recorte por meio de uma dupla aparição. Isto porque
não apenas figura com destaque na categoria 1, para sugerir ideais idílicos de
paisagens e gentes acaloradas ou mesmo servir para preparação dos alimentos.
Constante nas plataformas YouTube Music e Spotify, simboliza, - e sintetiza- a “força
energética” que produz o lucro (Ribeiro, 2010, p.60) de uma América Latina resultante
de novas comunidades humanas ocasionais, até não desejadas. Ou que, em outros
termos de Darci (p.40) um povo que é “combustível humano em forma de energia
muscular, destinado a ser consumido para gerar lucros”, seja nas minas e canaviais
coloniais ou nos latifúndios da internet e do “mainstreaming”, de acordo com
amplificação contemporânea nossa. “Latino boom”, “Latino Machine”, “Latin
Frequency”, “Energy booster;latin”, “Latin Cardio”, “Pulso Latino”, “Beast mode latin”
no Spotify, “Muévelo, muévelo” e “Zumba para torrar calorias” (YouTube Music) são
alguns dos exemplos, desta categoria que não foi encontrada nos títulos mapeados
na plataforma Deezer.

Já adiantamos, em trabalho anterior apresentado no 18° Encontro Musimid, que as


lendas da “donzela venenosa” (na versão francesa)- que também é uma máquina de
engrenagens aperfeiçoadas, capaz de funcionar automaticamente e o mito de
Pandora- autômata fabricada para levar os homens à perdição- atuam como
estandartes daquilo que conceituamos como sendo uma “estética Hot Wheels”,
presente e recorrente nas narrativas audiovisuais de artistas da música brasileira e
internacional. Nestas histórias, veículos e humanos se mesclam, se mimetizam. Junto
aos gritos de motores, às chamas dos combustíveis, metal e fogo se fundem e operam
no forjar de intérpretes humanos-máquinas, que se entregam ao bailar dos trânsitos-
miméticos e de veículos - entre o organismo e o meio- ou os meios, já que a
comunicação pelo vídeo e pela música também norteia a proposta que desenhamos.
A propriedade da mimese, de “metamorfose temporária” - que ignora a diferença
entre o ser vivo e o ambiente - acaba por desterritorializar o ser e promover um

1208
“saber pelo contato”, alegre e bufão, numa acepção nietzschiana. Tais relações entre
o instintivo, a infância e as origens das representações permitem antever que não é
forçosa, portanto, a analogia das produções audiovisuais que analisamos com a
assinatura estética da publicidade dos brinquedos da franquia estadunidense Hot
Wheels. Trata-se da “maior marca dos menores carros” fabricados hoje, miniaturas
da categoria die-cast, nome que vem de seu processo de fundição em metal injetado.

A aproximação se dá para além da presença crescente de automóveis, motos e outros


veículos nas histórias em tela. Existe, via plataformas como Youtube, um consumo
desses videoclipes por um público infantil que, ao menos em tese, não se enquadraria
na faixa etária de fãs ou consumidores destes artistas. Pululam, no TikTok, vídeos de
crianças (e adultos) dublando as canções de MOTOMAMI (2022), álbum visual da
artista catalã Rosalía que traz a faixa “Saoko”, cujo videoclipe serve de recorte a este
estudo. Ao mesmo tempo, fãs criam suas versões visuais das faixas, geralmente
integrando veículos às produções. Há, por outro lado, investimentos da Mattel
(fabricante da linha de brinquedos) em criar itens de colecionador para o público
adulto, diante do sucesso das miniaturas com essa parcela de consumidor. Registra-
se, inclusive, o licenciamento de protótipos da Hot Wheels por parte das fabricantes
de automóveis, para a criação de veículos em escala ampliada. No brinquedo ou no
clipe, há, conforme percebemos, uma espécie de apologia generalizada ao
customizado, ao automatizado e também à infância. E, sobretudo, à velocidade, que
parece atuar não apenas no inconsciente coletivo sobre os conceitos de veículo ou
auto-móvel como àquela no ritmo do próprio videoclipe e da música na era do
streaming. A ideia de movimento para manutenção da “máquina latina”, da música
latina como suplemento energético disponibilizado nas plataformas estudadas nos
dá a dimensão discursiva desta categoria.

“This is latino”: por uma pedagogia da latinoamericanidad

Dentre as três categorias que elencamos, a partir de nossa imersão na tentativa de


atualizar e revisar as questões propostas por Darci Ribeiro em “A América latina
existe?” (2010) a última direciona para aquilo que classificamos como sendo uma
“vontade pedagógica” nos títulos das playlists. Esta fica perceptível a partir de

1209
expressões que sugerem ao público um aprendizado a respeito do que seria a
América Latina, as latinidades e os latinos e latinas em esferas múltiplas.
Vislumbramos duas possibilidades principais de “ofertas de aprendizagens”, sendo
uma voltada para elencar “o que é latino/a a partir da instância musical e outra que
se pauta nos desdobramentos das latinidades para além do reggaeton, explorando
representatividades e diversidades rítimicas e de comunidades humanas distintas.
Pouco expressiva na plataforma YouTube Music, que conta apenas com a playlist
“Roda Punk Latina”, a pedagogia das latinidades no streaming de música se apresenta
nas plataformas Deezer e Spotify de forma intensiva porém demarcada em termos
de abordagem. Na primeira, esse aprendizado se dá principalmente a partir de listas
de reprodução que trazem os vencedores de premiações relevantes pelo mundo,
como a lista “Especial Grammy Latino 2017”, músicas latinas que fizeram história ao
longo das décadas (“90s Latins Music”, “Latino Vibes hits 2022) e também as
latinidades vistas na esfera das representações, a partir de produções realizadas por
mulheres, como nas listas “Latinas 2022” e “Womem of Latin Music” ou de negros,
como “Black icons of Latin Music” e da comunidade LGBTQIA+, como “Queer Latin”
e “Latin Divas”. A plataforma Spotify, em nosso recorte e análise de conteúdo, se
apresenta como a plataforma que mais trabalha com essa categoria, criando playlists
cujos títulos têm proposições tonais de “dossiês sobre latinidades”, como as playlists
“This is latino”, “This is Latin music”, “Latin Kings”, “Essenciales” e “This is Latin
Island”. É também o espaço de respiro das latinidades para além do estilo musical
reggaeton, ampliando e amplificando possibilidades de ser/estar latino na música.
Aos estilos que passam, nos títulos, pelo trance, o country, o jazz, o R&B, o Chill, o
pop e o norteño são acrescidos a expressão “latin’ (ou latino) para designar
promessas de fruição ao público. Destacamos aqui os títulos de duas playlists
específicas que catalogamos: “Understand Latin”, por representar, a nosso ver, a
síntese que norteou (ou “ensuleou”) nossas proposições para esta terceira categoria.
Rememorando as duas novas categorias do gênero humano- neobritânica e a
neolatina, forjadas, para Ribeiro (2010, p.108) na “hecatombe da Conquista”, temos na
primeira o transplante e expansão das formas de vida e paisagens dos países de
origem para o Novo Mundo. Considerando que foi a segunda- a Neolatina- a
responsável por trazer a novidade ao Novo Mundo, pela “mescla racial e cultural com
os povos americanos originais, acrescendo a eles uma imensa massa negra” (p.108)

1210
nossa “civilização mestiça” no streaming se destaca nestes espaços, convocando
inclusive para, realizar o exercício de um “Latin Proud”/”Latin Pride” (orgulho latino)
como prometem outros títulos e capas da plataforma.

Considerações finais

Quem fomos? Quem somos? Quem seremos? Quem indaga é Darcy Ribeiro (2010,
p.65), ao tratar dessas questões que são também a síntese das perplexidades
bolivarianas. Em nosso percurso pelas playlists especificadas, algumas possíveis
respostas retomam discursos sobre latinidades que, a depender da abordagem, são
nosso antídoto e veneno, secretado por uma espécie de rã-kambô
algorítmica.Também conhecida como Phyllomedusa bicolor- um nome interessante
para uma playlist latina inclusive, o animal4 de cor verde neon é nativo do Acre do
Brasil mas também encontrado em outros países amazônicos, como Bolívia,
Colômbia, Guiana, Peru e Venezuela. E é representativo de uma latinidade e de seu
eterno exercício para controlar e dosar suas potencialidades, a partir de múltiplas
configurações histórico-culturais de povos que têm distintos processos de formação.

Nisso reside a busca sem fim de nossa própria identidade “como gente ambígua, que
já não sendo indígena, nem africana, nem europeia, tarda ainda em assumir-se
orgulhosamente como o Povo Novo que somos” (Ribeiro, 2010,p.107). Conforme
percebemos, persistem as utopias e quimeras missionárias (também audiovisuais)
pautadas num povo “caliente”, que por vezes é a força energética do mundo e noutras
se põe a bailar com suas despretensões num jardim idílico, configurando idealizadas
famílias e sociedades de homens livres e sem pecados (ou cheios de todos eles) que
nunca existiu em lugar algum. Como antídoto, talvez possa nos consolar a ideia de
nos ancorarmos em ritmos, parcerias artísticas e outros aparatos capazes de auxiliar
a América Latina na difícil tarefa de tornar-se uma “entidade política supranacional”,
com menos uniformidade e mais unidade. No streaming, as latinidades são postas

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1211
como elixir para aplacar um desejo mundial de leveza, de desopilação e até mesmo
de desobrigação de ser ou de representar algo. E, em outros casos, a
latinoamericanidad deseja ser reconhecida como clássica, essencial, diversa e repleta
de historicidades, a ensinar “os outros” sobre o que é e deseja ser. Inebriada, em uma
“festa” em áudio e vídeo, repleta de odores, sabores e cores que mesclam um
paradisíaco Éden tropical e um antropófago Inferno Verde, a América Laitna existe
no streaming de música, moldada por mãos estranhas e remoldada por nós a cada
vez que, em “playlists”, pressionamos, em inglês, os ícones ou botões do play, do
pause ou do stop de nossos aparelhos – e aparelhamentos.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.


JARDIM, Maria Chaves e ROSA, Tiago Barros de Oliveira. O rock brasileiro dos anos 1980:
qual o perfil social dos roqueiros incorporado pela indústria da música? Sinais- Revista de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo. n. 24/1 Jan-Jul 2020, Vitória –
Brasil. Disponível em https://periodicos.ufes.br/sinais/article/view/32444 Acesso em
26/07/2021
LATOUR, Bruno. 1989. Les professions. In: La Science en Action (B. Latour, org.) pp. 236-
286. Paris: Éditions La Découverte, 1989.
RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília,
DF: Editora UnB, 2010.
VALENTE, Heloísa. de A. D.. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/FAPESP,
2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da.Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais
/Toma.Z Thdeu da Silva (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward.- Petrópolis, RJ:Vozes, 2000.

Mini Currículos

Jhonatan Alves Pereira Mata


Doutor em Comunicação- Universidade Federal do Rio de Janeiro- Ecopos/UFRJ Doutorado
Sanduíche Capes- DSE, realizado na Blanquerna School of Communication and International
Relations- Universitat Ramom Llull- Barcelona/Espanha. Docente permanente no PPGCOM-UFJF.
Coordenador do Projeto "Música para olhos e ouvidos" (UFJF). Vice coordenador do Núcleo de
Jornalismo e Audiovisual - UFJF.Jornalista e Mestre em Comunicação pela UFJF. E-mail:
jhonatanmata@yahoo.com.br

1212
Marcos Vinicius de Brito Amato
Mestrando em Artes Cultura e Linguagens pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrante do
projeto, Música para olhos e ouvidos (UFJF). Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (2020) e graduação em BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM ARTES E
DESIGN pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2017). E-mail: amato.marcos@estudante.ufjf.br

1213
EIXO G

NARRATIVAS VISUAIS
ENTRE ATERRAMENTOS, VISLUMBRES E TRANSMUTAÇÕES: TROCAS

Rosana Gonçalves da Silva


PPGACV-UFG, Brasil
Bené Fonteles
Instituto Antes Arte, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1T7hf2WySiuv_ne6IzuYtB1q6ILW3eveE?usp=share_link

Resumo Expandido

A composição desta narrativa, entrelaçando imagem com escrita e fotografia com


meios digitais, transformando-a em vídeo-ensaio (CORRIGAN, 2015), surgiu na
relação atual/virtual como uma ideia de poiésis, de circulação e movimento para
rememorar experiências feitas. Esse movimento mobilizou pessoas do Cerrado e da
Mata Atlântica, que se sentiram conectadas com a proposta: A Residência Artística
OcaTaperaTerreiro II, um espaço pensado para transformar/transmutar o espaço da
Oca Xinguana da Fazenda Serrinha em uma OcaTaperaTerreiro. Isso levou à
possibilidade de vivenciar os vários e diferentes sentidos que o Brasil que
percebemos dentro e fora de nós, e em que vivemos, assume em meio à pandemia e
à distopia que nos cerca. Queremos vislumbrar um País, um lugar não utópico, onde
seja possível “Ser” em vez de apenas “Ter”, e construir um espaço para alumbrar o
Sonho. A Oca Xinguana foi construída como parte da proposta de residência artística
realizada no Festival Arte Serrinha de 2015 e remete à memória dos primeiros povos
que habitaram o Brasil. Sua estrutura é feita de toras de eucalipto e palha de sapé
retiradas da própria Fazenda e presas com cordas de sisal. Sua construção levou 40
dias e foi realizada por um mutirão que incluía indígenas do Alto Xingu com
orientação de Wally Kamaiura Amarü. Desde então, esse símbolo da ancestralidade
brasileira é sede de encontros e rituais e nos convida à constante reflexão sobre as
ameaças à vida dos povos indígenas, que têm se acirrado nos dias de hoje. Foi dentro
da oca-útero, (en)volta do fogo, que a roda de conversa girava em torno das alquimias
das identidades e da mescla de imaginários pelas quais nossos ancestrais plasmaram

1215
suas memórias e seguem reinventando as suas histórias. A conexão foi pensar a nossa
própria história, com os pés no chão, aquilo que sabemos dos saberes herdados dos
povos originários e processar o nosso luto, ressignificando, todos juntos, a ilusão da
perda, compartilhar prazer e criação com o outro. No interior da oca ardia uma
fogueira. Do lume irradiavam faíscas que animavam histórias, cantorias, batuques,
anunciando que a morte não é o fim. Uma das proposições na residência foi vivenciar
um ritual, com muito respeito, que se aproximasse do Kuarup, (nome de uma
madeira), que é celebrado por povos indígenas da região do Xingu. O rito é centrado
na figura de Mawutzinin, divindade criadora e primeiro homem do mundo
(MARCHEZAN, 1999). Os troncos feitos da madeira kuarup são a representação
concreta do espírito dos mortos. Para os povos Xinguanos, o Kuarup é uma festa
alegre, em que cada um coloca a sua melhor vestimenta na pele. O Kuarup como uma
metáfora nos trazendo força espiritual. Assim o nosso ritual, entre pele e alma, foi
uma imersão na transmutação das nossas dores, tanto em relação aos entes amados
que se encantaram quanto a esses tempos doídos, entre a pandemia e as intempéries
políticas vividas no Brasil. Nós usamos tinta à base d’água para a pintura e adornamos
os paus com os elementos da natureza recolhidos nas redondezas da Oca. O pau
como elemento de passagem ritualística é tanto madeira do eucalipto quanto esteio
de transmutação. A imersão no corpo e na arte como um acontecimento, suscitando
uma alteração no microcosmo experienciado, nas ranhuras do fenômeno
(MERLEAU-PONTY,1999). Sob a OcaTaperaTerreiro II, dia após dia, histórias e
memórias se desenrolaram feito fios na teia da vida junto à poética (BACHELARD,
2008) inerente a nós. Assim, nós, que lá estivemos, experimentamos trOcas,
transmutando sentidos de estar com outras(os) viventes. Os vislumbres das “Canções
para Pescar Almas”, vividos em 7 dias de experiência estética, de gestar ecologias,
partilha de saberes e, para além dos limites da pele, a alteridade. Os dias foram como
um eco ... “Dê flor” ... (FONTELES; CARVALHO, 2019). A experiência trouxe muitos
alumbramentos desembaraçados de alguns poderes cotidianos, aqueles que às vezes
são feitos de velocidade e fragmentações, para (en)volver a poética e devolver
beleza<>sentido à vida, escoando a mistura de presenças<>ausências e reiniciar
fluxos no/com o mundo.

Palavras-chave: OcaTaperaTerreiro II. Movimento. Kuarup. Dê Flor.

1216
BETWEEN GROUNDS, GLIMPSES AND TRANSMUTATIONS: EXCHANGES

Rosana Gonçalves da Silva


PPGACV-UFG, Brasil
Bené Fonteles
Instituto Antes Arte, Brasil

The composition of this narrative, interweaving image with writing and photography
with digital means, transforming it into a vídeo-essay (CORRIGAN, 2015), emerged in
the current/virtual relationship as an idea of poiesis, circulation and movement to
recall past experiences. This movement mobilized people from the Cerrado and the
Atlantic Forest, who felt connected with the proposal: The OcaTaperaTerreiro II
Artist Residency, a space designed to transform/transmute the space of the Oca
Xinguana da Fazenda Serrinha into an OcaTaperaTerreiro. This led to the possibility
of experiencing the various and different senses the Brazil we perceive inside and
outside of us, and in which we live, assumes amidst the pandemic and dystopia that
surround us. We want to envision a Country, a non-utopian place where it is possible
to "be" instead of just "have", and build a space to illuminate the Dream. Oca Xinguana
was built as part of the proposal of artistic residency held at the Festival Arte Serrinha
in 2015 and refers to the memory of the first peoples who inhabited Brazil. Its
structure and roof are made of eucalyptus logs and thatch straw taken from the
farm itself and secured with thatch ropes/fibers. Its construction took 40 days and
was carried out by a collective effort, including indigenous people from the Upper
Xingu under the guidance of Wally Kamaiura Amarü. Since then, this symbol of
Brazilian ancestry has been the seat of meetings and rituals inviting us to constantly
reflect on the threats to the lives of indigenous peoples, which have been intensified
today. It was inside the Oca’s cool womb like, round the bonfire, that the
conversation took place versing on the alchemy of identities and the mixture of
imaginaries through which our ancestors shaped their memories and continue to
reinvent their stories. The connection was to think about our own history, with our
feet on the ground, what we know about the knowledge inherited from the native

1217
peoples and process our grief, re-signifying, all together, the illusion of loss, sharing
pleasure and creation with the other. A fire was burning inside the Oca. Sparks
radiated from the fire, animating stories, singing, drumming, announcing that death
is not the end. One of the proposals at the residence was, with respect, to approach
the experience Kuarup (name of a wood) ritual, which is celebrated by indigenous
peoples of the Xingu region. The rite is centered on the figure of Mawutzinin, creative
deity and the first man in the world (MARCHEZAN, 1999). The trunks made of kuarup
wood are the concrete representation of the spirit of the dead. For the Xingu peoples,
Kuarup is a joyful festival, where everyone wears their best clothes on their skin. The
Kuarup as a metaphor bringing us spiritual strength. So our ritual, between skin and
soul, was an immersion in the transmutation of our sorrow, both in relation to loved
ones who were bewitched and the modern crazy times, between the pandemic and
the inclement political weather experienced in Brazil. We used water-based dyes for
the painting and adorned the sticks with elements of nature collected in the
surroundings of the Oca. The stick, as an element of ritualistic passage, is both the
eucalyptus wood and the transmutation mainstay. The immersion in the body and in
art as an event, causes a change in the experienced microcosm, in the grooves of the
phenomenon (MERLEAU-PONTY,1999). Under OcaTaperaTerreiro II, day after day,
stories and memories unfolded like threads in the web of life along with the poetics
(BACHELARD, 2008) inherent to us. Thus, those of us who were there, experienced
exchanges, transmuting meanings of being, together with other living beings. The
glimpses of “Songs for Fishing Souls”, lived in 7 days of aesthetic experience, of
gestating ecologies, sharing knowledge and, beyond the limits of the skin, beyond
alterity. The days were like an echo... “Give flower” ... (FONTELES; CARVALHO, 2019).
The experience brought many enlightenments untangled from some everyday
powers, those that are sometimes made of speed and fragmentation, to envelope the
poetics and return beauty and meaning to life, draining the mixture of presences and
absences and restarting flows in/with the world.

Keywords: OcaTaperaTerreiro II. Movement. Kuarup. Transmutation. Give Flower.

1218
Referências / References
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CORRIGAN, Timothy. O Filme-ensaio: Desde Montaigne e depois de Marker. Tradução Luís
Carlos Borges. – Campinas, SP: Papirus, 2015. ISBN: 9788544900512
FONTELES, Bené. CARVALHO, Lucina. Canções para pescar almas. Lucina e Bené Fonteles,
2019. Faixa 2. Dê Flor, 03:19. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nKbJLrGxxAU
Acesso em: 28 set. 2022.
MARCHEZAN, L. G. Uma leitura da semantização do espaço na festa do Kuarup. In:
ZANNONI, Claudio e outros. Rituais Indígenas Brasileiros. São Paulo: CPA Editora, 1999. p.
97-109.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1999.

Mini Currículos

Rosana Gonçalves da Silva


Pós-doutoranda, Pesquisadora externa e Professora colaboradora no PPGACV FAV UFG (2021-2023).
Mestre e Doutora pela Universidade de Brasília, priorizando o papel da sensibilidade, da linguagem
poética e dos processos simbólicos na formação humana e na produção coletiva de conhecimento.
Membro de grupos de pesquisa e fóruns de ações ambientais. E-mail: reniasrenais@yahoo.com.br

Bené Fonteles
Artista plástico, jornalista, editor, escritor, poeta e compositor. O artista já participou de cinco edições
da Bienal de São Paulo e suas obras integram acervos de alguns museus de arte moderna. Tem 16 livros
publicados sobre cultura e arte do Brasil e três discos editados. É coordenador, desde a década de
1980, do Movimento Artistas pela Natureza. Foi diretor do Museu de Arte da UFMT e Museu de Arte
de Brasília. É fundador do Instituto Antes Arte. E-mail: benefonteles1953@gmail.com

1219
REMONTAGENS DO TEMPO: TERRITÓRIO-CORPO-ESPÍRITO

Auana Lameiras Diniz


Pesquisadora independente, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/file/d/1Tf0SAzrfqPo_jxHbPnlNT_OzexDD2sa0/view?usp=sharing

Resumo Expandido

Esses artistas, além de todo o indianismo para construir a imagem do


herói mítico indígena, trazem essa imagem da mulher junto com a
representação da nação, e a partir da violência cometida ao corpo e ao
território dos povos indígenas. E uma discussão contemporânea hoje,
das mulheres indígenas, é território: nosso corpo, nosso espírito. Então
nessa imagem está violado nosso corpo e o território indígena. (fonte
oral)

O fragmento acima é uma fala da participante Márcia Mura publicada na minha tese
Entretempos — histórias, conversas e mediações, em agosto de 2022. A montagem
apresentada a este congresso é um recorte de ensaios visuais que compõem dois
capítulos do trabalho que dialogam com a pintura Moema (1866), de Victor Meirelles,
propondo recriações narrativas partir de leituras estéticas e relatos verbais de
participantes da pesquisa, das anotações do diário de bordo, de fotografias do
trabalho artístico exposto, de apropriações de documentos, entre outros. A pintura
faz parte da coleção do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e integra sua exposição
de longa duração.

Como os diversos tempos nos quais compartilhamos e convivemos com uma imagem
da arte podem compor a sua História? A partir desta pergunta com a montagem
visual exposta, e na pesquisa de onde deriva, investiguei o modo como um conjunto
de imagens se reconfiguram no tempo presente (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16;
BARBOSA, 2014, p. 106) e como suas as leituras imagéticas são, potencialmente,
processos de criação (MACHADO, 2010, p. 65). Além disso, reconhecendo as disputas,
feridas e violências que envolvem os processos históricos associados a diversas

1220
imagens artísticas, foram importantes referências para o trabalho as noções de olhar
opositor (HOOKS, 2019, p. 215 – 240) e decodificação (HALL, 2018, p. 445 – 446). Os
principais referenciais metodológicos para análise dos dados e composição visual das
montagens estão localizados no campo da Pesquisa Educacional Baseada em Artes
(EISNER, 2006; VIADEL, 2017).

O trabalho específico com Moema aconteceu em três momentos: o primeiro se deu


entre junho de 2018 e maio de 2019 com o registro de leituras estéticas de pessoas
que visitavam o museu, dedicavam um tempo diante dessa imagem e aceitaram o
convite para participar da pesquisa; o segundo ocorreu entre dezembro de 2018 e
maio de 2019 por meio de entrevistas com profissionais das equipes de Mediação e
Programas Públicos, orientadora/es de público e ex-funcionárias/os do extinto
setor Educativo; e o terceiro momento aconteceu em agosto e setembro de 20202
com grupos focais realizados com mulheres indígenas dos povos Guajajara, Mura,
Tukano, Xavante, Xipaya, Wapichana, Tupinambá e Pataxó Hã-Hã-Hãe e que têm
atuações profissionais diversas (educadoras, artistas e estudantes). Já as imagens que
compõem a montagem visual foram recriadas entre janeiro de 2019 e dezembro de
2021.

REASSEMBLY OF TIME: TERRITORY-BODY-SPIRIT

Auana Lameiras Diniz


Pesquisadora independente, Brasil

Expanded Abstratct

These artists, in addition to all the indianism to build the image of the
mythical indigenous hero, bring this image of the woman with the
representation of the nation, and from the violence committed to the
body and the territory of indigenous peoples. And a contemporary
discussion today, of indigenous women, is territory: our body, our
spirit. So, in this image, our body and the indigenous territory are
violated. (oral source)

1221
Above, the fragment is a speech by the participant Márcia Mura published in my
thesis Meantime – stories, talks and mediations, in August 2022. The assembly
presented to this congress is a clipping of visual essays that compose two chapters
of the work in dialogue with the painting Moema (1866), by Victor Meirelles,
proposing narrative recreations based on aesthetic readings and verbal reports of
research participants, notes in the logbook, photographs of the exposed artwork,
appropriations of documents, among others. The painting integrates the collection
of the São Paulo Museum of Art (MASP) and is part of its long-term exhibition.

How can the different times in which we share and live with an image of art compose
its History? From this question, the exposed visual assembly, and the research from
which it derives, I investigated the way in which a set of images are reconfigured in
the present time (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16; BARBOSA, 2014, p. 106) and like his,
the imagery readings are, potentially, processes of creation (MACHADO, 2010, p. 65).
In addition, recognizing the disputes, wounds and violence that involve the historical
processes associated with various artistic images, the notions of opposing look
(HOOKS, 2019, p. 215 – 240) and decoding (HALL, 2018, p. 445 – 446). The main
methodological frameworks for data analysis and composition of the visual
assemblies are located in the field of Arts-Based Educational Research (EISNER,
2006; VIADEL, 2017).

The specific work with Moema took place in three moments: the first between June
2018 and May 2019 with the record of aesthetic readings of people who visited the
museum, spent time in front of this image and accepted the invitation to participate
in the research; the second took place between December 2018 and May 2019
through interviews with professionals from the Mediation and Public Programs team,
public advisors and former employees of the extinct Educational sector; and the third
moment took place in August and September 20202 with focus groups carried out
with indigenous women from the Guajajara, Mura, Tukano, Xavante, Xipaya,
Wapichana, Tupinambá and Pataxó Hã-Hã-Hãe peoples and who have different
professional activities (educators, artists and students). And the images that make up
the visual assembly were recreated between January 2019 and December 2021.

1222
Referências / References

BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos
tempos. São Paulo: Perspectiva, 2014.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das
imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
DINIZ, Auana Lameiras. Entretempos: histórias, conversas e mediações. 2022. 388 p. Tese
(Doutorado em Artes). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita
Filho", São Paulo, 2022. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/235474. Acesso em: ago. 2022.
EISNER, Elliot; BARONE, Tom. Arts-Based Educational Research. In: GREEN, Judith L.;
CAMILLI, Gregory; ELMORE, Patricia B. (Ed.). Handbook of Complementary Methods in
Education Research. Washington: American Educational Research Association, 2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2018.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
MACHADO, Regina Stela. Sobre mapas e bússolas: apontamentos a respeito da abordagem
triangular. In: BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos; CUNHA, Fernanda Pereira (Org.). A
abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
VIADEL, Ricardo Marín; ROLDÁN, Joaquín (Ed.). Ideas Visuales. Investigación Basada en
Artes e investigación artística/Visual Ideas. Arts Based Research and Artistic Research.
Granada: Editorial de la Universidad de Granada, 2017.

Mini Currículo

Auana Lameiras Diniz


Doutora em Artes (Instituto de Artes - UNESP, área de concentração Artes e Educação, linha de
pesquisa Processos Artísticos, Experiências Educacionais e Mediação Cultural), especialista em
Mediação em Arte, Cultura e Educação (Escola Guignard - UEMG) e bacharel em Ciências Sociais
(PUC-SP). Integrante do GPIHMAE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, História, Memória,
Mediação, Arte e Educação no Instituto de Artes da UNESP.

PhD in Arts (Instituto de Artes - UNESP, concentration area Arts and Education, line of research
Artistic Processes, Educational Experiences and Cultural Mediation), specialist in Mediation in Art,
Culture and Education (Escola Guignard - UEMG) and Bachelor of Social Sciences (PUC-SP). Member
of GPIHMAE - Study and Research Group on Image, History, Memory, Mediation, Art and Education
at the UNESP Instituto de Artes. E-mail: auana.diniz@unesp.br

1223
LIGHT PAINTING: A EXPERIÊNCIA DE DESENHAR COM LUZ

Sabina Sebasti
Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1GGbXMW5XGtaVuSmI61nGfwUgLkzDrHyM?usp=sharing

Resumo Expandido

Foi no ano de 1949, quando o fotógrafo Gjon Mili, da revista LIFE, visitou o pintor
Pablo Picasso no sul da França. Relata Gosgrove (2012) que, na ocasião, Mili mostrou
ao artista o resultado de algumas de suas experimentações com luz, que consistiam
em fotografias obtidas de patinadores no gelo com pequenas luzes fixadas nos seus
patins, saltando e girando no escuro. Picasso ficou maravilhado com os resultados.
Finalmente, o pintor e o fotógrafo, realizaram juntos cinco sessões, nas quais Picasso
fez trinta desenhos com luz. Fotografias que depois seriam expostas no Museu de
Arte Moderna de Nova Iorque em 1950.

Para conseguir captar o percurso da luz é preciso que a câmera fotográfica


permaneça estática e sustentada em um tripé. O obturador deve se programar com
uma abertura de longa exposição, de no mínimo trinta segundos ou permanecer com
abertura o tempo que se quiser. Dessa forma, a luz se grava no sensor da câmera,
registrando seu traço. Resulta fundamental desligar o estabilizador da imagem para
a captura, já que a câmera poderia querer corrigir movimentos que são intencionais.

Com as novas tecnologias digitais se ampliaram as possibilidades de captação dos


trajetos e intermitências da luz, empregando as mais variadas fontes lumínicas,
efeitos e composições (BARROS, 2011). Por exemplo, um grupo de estudantes, na
Alemanha criou uma série de fotografias utilizando um enxame de aspiradores de pó
robôs como fontes de luz e movimento. Light painting, afinal, não é mais que utilizar
a luz como pincel o tempo como folha.

O foco desta narrativa visual consiste em apresentar uma experiência de ensino e


pesquisa sobre light painting, realizada no marco do curso de graduação em

1224
Produção e Política Cultural da Universidade Federal do Pampa. A atividade foi levada
a cabo em duas etapas: uma primeira etapa na qual se realizou uma introdução
teórica sobre esta técnica, expondo sua história e seu surgimento como ferramenta
pictórica, capaz de captar o percurso da luz dentro de uma área e uma temporalidade
determinadas. Etapa também dedicada a exemplificar e a exercitar, junto com os
estudantes, os movimentos que seriam possíveis de realizar com um dispositivo
luminoso na mão. Por último, uma segunda etapa, completamente experimental, na
qual os estudantes arriscaram a criar diferentes gestos e posturas com seus corpos,
assim como distintos movimentos do braço e da mão que sustentava a lanterna de
leds coloridos. Um discreto aparelho luminoso utilizado como caneta ou pincel, com
o qual se desenhavam criativamente figuras no espaço escuro, ao mesmo tempo que
a câmera, previamente programada, se ocupava de capturar a cena.

Light painting significa, literalmente, pintar com luz. As oficinas tiveram o objetivo
de pesquisar nas interfaces entre desenho e fotografia, na procura de conhecer
ferramentas expressivas novas ou, pelo menos, incomuns. A experiência não só
demandou aprofundar em uma série de recursos e conhecimentos técnicos, também
exigiu um estudo dos movimentos do corpo que pudessem acompanhar a coreografia
do traço. O olhar devia se concentrar na projeção imaginada do desenho, ao tempo
que a mão, que sustentava a luz, se deslocava no espaço. Um desenhar no nada, mas
que a câmera, e não olho, conseguia desvendar. A câmera atingia o fenômeno situado
além do alcance do olho e, nesse sentido, se colocava como um instrumento capaz
de revelar aquilo que Benjamin (2017) chamava de inconsciente óptico.

Palavras-chave: light painting; artes visuais; arte educação.

1225
LIGHT PAINTING: THE EXPERIENCE OF DRAWING WITH LIGHT

Sabina Sebasti
Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil

It was in the year 1949, when photographer Gjon Mili of LIFE magazine visited painter
Pablo Picasso in the south of France. Gosgrove (2012) reports that, in the occasion,
Mili showed the artist the results of some of his experiments with light, which
consisted of photographs taken of ice skaters with small lights attached to their
skates, jumping and spinning in the dark. Picasso was amazed by the results. Finally,
the painter and the photographer, held five sessions together, in which Picasso made
thirty drawings with light. Photographs that would later be exhibited at the Museum
of Modern Art in New York in 1950.

To be able to capture the path of light it is necessary that the camera remains static
and supported on a tripod. The shutter must be set to a long exposure of at least
thirty seconds, or to remain open as long as desired. This way, the light is recorded
on the camera's sensor, registering its trace. It is essential to turn off the image
stabilizer for the capture, since the camera might want to correct movements that
are intentional.

With the new digital technologies, the possibilities of capturing the paths and
intermittencies of light have increased, using the most varied light sources, effects
and compositions (BARROS, 2011). For example, a group of students in Germany
created a series of photographs using a swarm of robot vacuum cleaners as sources
of light and movement. Light painting, after all, is nothing more than using light as a
brush and time as a sheet.

The focus of this visual narrative is to present a teaching and research experience on
light painting, carried out in the framework of the Political and Cultural Production
degree course of the Federal University of the Pampa. The activity was developed in
two stages: a first stage, when a theoretical introduction about this technique was
made, exposing its history and emergence as a pictorial tool, capable of capturing

1226
the path of light within a determinate area and temporality. This stage was also
dedicated to exemplify and exercise, together with the students, the movements that
would be possible to perform with a luminous device in the hand. Finally, a second
stage, completely experimental, in which the students risked creating different
gestures and postures with their bodies, as well as different movements of the arm
and hand that held the colored LED lantern. A discrete luminous device used as a pen
or paintbrush, with which they creatively sketched figures in the dark space, while
the previously programmed camera captured the scene.

Light painting literally means painting with light. The workshops had the objective of
researching the interfaces between drawing and photography, in the search for new
or, at least, unusual expressive tools. The experience not only required researching
into a series of resources and technical knowledges, it also demanded a study of body
movements that could follow the choreography of the trace. The eye had to focus on
the imagined projection of the design, while the hand that held the light moved in
space. A drawing in nothing, but that the camera, and not the eye, could discover.
The camera approached the phenomena beyond the reach of the eye and, in that
sense, positioned itself as an instrument capable of revealing what Benjamin (2017)
called the optical unconscious.

Keywords: light painting; visual arts; art education.

Referências / References

BARROS, Thiago. Light painting: pinturas de luz esbanjam criatividade desde Picasso até a
foto digital. Techtudo Notícias. Rio de Janeiro, 28 jul 2011. Disponível em:
<https://www.techtudo.com.br/platb/fotografia/2011/07/28/light-painting-pinturas-
de-luz-esbanjam-criatividade-desde-picasso-ate-a-foto-digital/>. Acesso em: 27 set 2022.
BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
COSGROVE, Ben. Behind the Picture: Picasso Draws With Light. Time Life Magazine. New
York, 29 jan 2012. Disponível em: <https://www.life.com/arts-entertainment/behind-the-
picture-picasso-draws-with-light/>. Acesso em: 27 set 2022.

1227
Mini Currículo

Sabina Vallarino Sebasti


Artista Visual. Doutoranda em Educação no PPGE da UFPEL, Brasil. Bolsista CAPES. Mestre em Artes
Visuais pelo PPGAV, UFPEL. Licenciatura em Artes Plásticas e Visuais, UDELAR, Uruguai. Docência em
nível superior em artes. Pesquisadora em ensino das artes visuais, com especial interesse em
metodologias experimentais. Integra o Grupo de Pesquisa Políticas dos Corpos, Cotidianos e
Currículos da UFPEL. E-mail: sabina.sebasti@ufpel.edu.br

1228
REFLETINDO SOBRE A ARTE-EDUCAÇÃO POR INTERMÉDIO DAS
CONTRAVISUALIDADES DA WEBCOMIC “MARTIM, PROFESSOR ARTE”

Diego Marinho Luiz


UNIRIO, Brasil

Link para o trabalho:


https://www.instagram.com/p/CFKLj6aJ06R/

Resumo Expandido

O vigente trabalho levanta a problemática sobre as visualidades referentes aos


professores de arte do ensino de base, assim como os pensamentos sobre a
relevância da disciplina na formação escolar, discutidas na webcomic (Tiras da
Internet) Martim, professor de Arte, que apresenta uma narrativa contravisual
contestadora aos variados “rótulos” atribuídos a arte-educação. As reflexões sobre o
tema foram realizadas à luz dos autores da Cultura Visual e da Arte-Educação. Nas
tiras o protagonista Martim é um jovem professor de arte recém-formado, que tem
o seu idealismo na arte-educação posto à prova quando se depara com a realidade
do ensino público de base. As narrativas do projeto gráfico digital surgiram em
decorrência de movimentos de resistência resultantes de experiências na escola,
ambiente permeado por pensamentos variados (de discentes, familiares, corpo
docente, de diferentes áreas do conhecimento) sobre quais seriam as formas
“corretas” de ensinar Arte no espaço escolar. Ou seja, há muitos pensamentos sobre
a área, que partem de perspectivas subjetivas, resultado de uma construção do olhar,
reforçando que “a maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo
que acreditamos. (HERNÁNDEZ, p. 10, 2013). De acordo com Gillian Rose (2016),
temos que a visão é capacidade orgânica que os olhos têm de captar as imagens, já a
visualidade se refere aos pensamentos que constroem os nossos entendimentos a
respeito do que estamos vendo. Dessa forma, precisamos refletir nos
acontecimentos que contribuíram para a construção de possíveis visualidades a
respeito da área de arte. De acordo com Barbosa (2014) a disciplina de Arte tornou-
se matéria obrigatória desde a aprovação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da
1229
Educação) em 1971, que inicialmente objetivava um ensino tecnicista que formasse
mão de obra barata para multinacionais. Logo, seria algo menor, pois não era
exercida a área intelectual. Nessa época, não havia cursos de graduação para
arte/educadores, apenas cursos de desenho; e quando o curso de graduação em
arte-educação foi criado na década de 70, era polivalente, ensinando em apenas dois
anos, música, desenho, teatro, dança, artes visuais e desenho geométrico, um
“absurdo epistemológico” conforme Ana Mae Barbosa (2014). Neste ínterim, esse
ensino de arte tecnicista, que prezava pelo “aprender a fazer”, ignorava um elemento
fundamental no ensino artístico: o ato de refletir. Sem a reflexão nas aulas de arte, as
aulas eram apenas atividades práticas sem significado. Exatamente o que muitos
equivocadamente ainda pensam sobre o ensino de arte. De acordo com Dos Santos
e Caregnato (2018) os alunos não valorizam e acham insignificante fazer algo prático
nas aulas de arte que não veem algum sentido. Em Barbosa (1988) temos um relato
de um estudante dos anos 70, durante o ensino tecnicista de arte, na época com 13
anos de idade e cursando a oitava série, que diz: “Eu acho besteira este bagulho de
arte. A professora manda fazer um bagulhinho, bonequinho, coisinhas e são três aulas
por semana. Não dá para entender. Quero fazer um negócio legal, artes plásticas. Não
é inhein-hein.” O pensamento conflitante acaba também vindo de fora dos muros do
colégio, como diz Duarte Junior (1981), que afirma que para sociedade as artes
manuais são vistas como práticas menores e que no passado eram associadas às
atividades dos escravos. Já na questão atual no cenário da arte-educação, a disciplina
sofre mais revezes com o surgimento do novo ensino médio. De acordo com a BNCC,
homologado pela Portaria n° 1.570, publicada no D.O.U. de 21/12/2017, Seção 1, Pág.
146, a disciplina de artes perde a sua individualidade e autonomia ao ser “diluída” e
inserida nos “componentes curriculares” junto de outras disciplinas. Além disso, a
disciplina de arte no atual ensino médio só é ofertada no segundo ano. Dessa
maneira, como será que enxergamos a importância da referida disciplina se a mesma
foi descartada nos anos finais de formação da educação básica? Que visualidades são
geradas com esse descarte? Por isso, é interessante pensarmos sobre a definição de
Cultura Visual, campo e objeto de estudo que abrange as visualidades, pois:

A cultura visual inclui as coisas que vemos, o modelo mental de visão


que todos temos e o que podemos fazer como consequência disso. (...)
Uma cultura visual não é simplesmente a soma de tudo que foi feito

1230
para ser visto, como imagens ou filmes. Uma cultura visual é a relação
entre o visível e os nomes que damos ao visto. Também abrange o
invisível ou o que está oculto. (MIRZOEFF, 2016, p. 19-20).

Com o intuito de mostrar o que está invisível ou oculto a quem não é da área de arte,
o projeto de webcomics Martim, professor de Arte tem por objetivo ser contravisual
em relação aos demais pensamentos anteriormente ditos sobre o universo da arte-
educação. Conforme Mirzoeff, “A potencialidade das contravisualidades está na ação
de promover outras narrativas e incentivar deslocamentos nas formas como
aprendemos a ‘ver’ o mundo”. (2016, p. 13). As tiras nos convidam a olhar a arte pelo
olhar do professor Martim, que entende sua disciplina não como um mero fazer
artístico vazio de significado, ou apenas um veículo para o entretenimento puro, mas
sim, trata-se de uma área de conhecimento que é importante na formação de todas
as sociedades, tal como o pensamento da professora Ana Mae Barbosa:

Arte não é apenas básica, mas fundamental na educação de um país que


se desenvolve. Arte não é enfeite. Arte é cognição, é profissão, é uma
forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a realidade, o
imaginário, e é conteúdo. Como conteúdo, a arte representa o melhor
trabalho do ser humano. (BARBOSA, 2014, p. 4)

Mirzoeff (2016) adentra na noção de visualidade que não se trata apenas de


percepções dos sujeitos, mas sim, uma combinação entre elementos como
imaginação, subjetividades e informação. Em suas tiras, Martim questiona os
pensamentos/visualidades pré-estabelecidos relacionados aos professores de arte e
apresenta contravisualidades como “professor de arte não é decorador de colégio”,
“arte se estuda e demanda formação para ser lecionada”, “a utilidade inútil da arte”,
“trabalhar com arte não tem ligação com o dom”.

1231
REFLECTING ON ART-EDUCATION THROUGH CONTRAVISUALITIES OF
WEBCOMIC “MARTIM, PROFESSOR DE ARTE”

Diego Marinho Luiz


UNIRIO, Brasil

The current work raises the issue of visualities referring to art teachers in basic
education, as well as thoughts on the relevance of the discipline in school education,
discussed in the webcomic (Internet strips) Martim, professor de Arte, who presents a
counter - visual narrative contesting the various “labels” attributed to art education.
The reflections on the theme were carried out in the light of the authors of Visual
Culture and Art-Education. In the strips, the protagonist Martim is a recently
graduated young art teacher, whose idealism in art education is put to the test when
he comes across the reality of basic public education. The narratives of the digital
graphic project emerged as a result of resistance movements resulting from
experiences at school, an environment permeated by varied thoughts (from students,
family members, faculty, from different areas of knowledge) about what would be the
“correct” ways of teaching Art in the school space. That is, there are many thoughts
about the area, which start from subjective perspectives, the result of a construction
of the look, reinforcing that “the way we see things is affected by what we know or
what we believe. (HERNÁNDEZ, p. 10, 2013). According to Gillian Rose (2016), vision
is the organic capacity that the eyes have to capture images, whereas visuality refers
to the thoughts that build our understanding of what we are seeing. In this way, we
need to reflect on the events that contributed to the construction of possible
visualities regarding the area of art. According to Barbosa (2014), the discipline of Art
has become a mandatory subject since the approval of the LDB (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação) in 1971, which initially aimed at technical education that would
form cheap labor for multinationals. Therefore, it would be something minor,
because the intellectual area was not exercised. At that time, there were no
undergraduate courses for art/educators, only drawing courses; and when the art
education undergraduate course was created in the 1970s, it was multipurpose,
1232
teaching music, drawing, theater, dance, visual arts and geometric design in just two
years, an “epistemological absurdity” according to Ana Mae Barbosa ( 2014). In the
meantime, this technicist art education, which valued “learning to do”, ignored a
fundamental element in artistic education: the act of reflecting. Without reflection
in art classes, classes were just meaningless practical activities. Exactly what many
still mistakenly think about teaching art. According to Dos Santos and Caregnato
(2018) students don't value and think it's insignificant to do something practical in art
classes that don't see any sense. In Barbosa (1988) we have an account of a student
from the 70s, during the technical art education, at the time 13 years old and in the
eighth grade, who says: “I think this piece of art is nonsense. The teacher orders to
make something, doll, little things and there are three classes a week. It's impossible
to understand. I want to do a cool business, fine arts. It’s not nonsense.” Conflicting
thoughts also end up coming from outside the walls of the school, as he says. Duarte
Junior (1981), who states that for society the manual arts are seen as minor practices
and that in the past they were associated with the activities of slaves. In the current
issue in the art education scenario, the discipline suffers more setbacks with the
emergence of the new high school. According to the BNCC, approved by Ordinance
No. 1,570, published in the DOU of 12/21/2017, Section 1, Page. 146, the arts subject
loses its individuality and autonomy when it is “diluted” and inserted into the
“curricular components” together with other subjects. In addition, the art discipline
in the current high school is only offered in the second year. In this way, how do we
see the importance of that discipline if it was discarded in the final years of basic
education? What visualities are generated with this discard? Therefore, it is
interesting to think about the definition of Visual Culture, field and object of study
that encompasses visualities, because:

Visual culture includes the things we see, the mental model of vision
we all have, and what we can do as a result. (...) A visual culture is not
simply the sum of everything that was made to be seen, such as images
or films. A visual culture is the relationship between the visible and the
names we give to the seen. It also encompasses the invisible or what is
hidden. (MIRZOEFF, 2016, p. 19-20).

In order to show what is invisible or hidden to those who are not in the field of art,
the webcomics project Martim, professor de Arte aims to be counter -visual in

1233
relation to the other previously mentioned thoughts about the universe of art
education. According to Mirzoeff, “The potential of countervisualities lies in the
action of promoting other narratives and encouraging shifts in the ways in which we
learn to 'see' the world”. (2016, p. 13). The strips invite us to look at art through the
eyes of Professor Martim, who understands his discipline not as a mere artistic
practice empty of meaning, or just a vehicle for pure entertainment, but rather, it is
an area of knowledge that is important in the formation of all societies, such as the
thought of Professor Ana Mae Barbosa:

Art is not just basic, but fundamental in the education of a developing


country. Art is not decoration. Art is cognition, it's a profession, it's a
different way of interpreting the world, reality, the imagination, and it's
content. As content, art represents the best work of human beings.
(BARBOSA, 2014, p. 4)

Mirzoeff (2016) enters into the notion of visuality, which is not just about the
perceptions of subjects, but a combination of elements such as imagination,
subjectivities and information. In his strips, Martim questions the pre-established
thoughts/visualities related to art teachers and presents counter -visualities such as
“an art teacher is not a school decorator”, “art is studied and requires training to be
taught”, “the useless usefulness of art”, “working with art has no connection with the
gift”.

Referências / References

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2014.
DOS SANTOS, Mateus Silva; CAREGNATO, Caroline. Uma permanência na escola sob
ameaça: reflexões a respeito da desvalorização do ensino de Arte. DAPesquisa, v. 14, n. 22,
p. 078-099, 2019.
DUARTE JUNIOR, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Cortez,
1981.
MIRZOEFF, Nicholas. Cómo ver el mundo: Una nueva introducción a la cultura visual.
Barcelona: Paidós, 2016.
ROSE, Gillian. Visual Methodologies: An Introduction to Researching with Visual
Materials. Londres: SAGE/Companion website (e-book). 4th edition, 2016, 432p

1234
Mini Currículo

Diego Marinho Luiz


Mestrando em Educação pela UNIRIO. Bolsista CAPES no PPGEdu/UNIRIO. Graduado em
Licenciatura em Educação Artística/ Artes Plásticas pela UFRJ. Professor de arte do Estado do Rio de
Janeiro. Pesquisador do grupo CACE (Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação). Cartunista
vencedor do 33º Troféu HQMIX na categoria “Projeto especial na pandemia” com a série de tiras
“Martim, professor de Arte”. E-mail: diegomarinholuiz@yahoo.com.br

1235
(AR)RISCAR-SE À DERIVA: HABITAR SOBRE FENDAS, FISSURAS EM ESCAPE

Barbara dos Santos


Instituto de Artes – UNESP, São Paulo, Brasil

Link para o trabalho:


https://docs.google.com/document/d/1re42dcjlTfmVJ7Vp_D2k-C8tbeL5ohNr/edit

Resumo Expandido

Tecendo linhas e compondo silêncios. Esta narrativa visual se apresenta como uma
possibilidade de escuta afetiva e criadora, a partir das discussões que permearam os
encontros da disciplina eletiva “Poéticas e processos de criação nas Artes”, cursada
entre abril e junho de 2022 de forma híbrida, com a abertura e encerramento
presenciais no campus do IA/Unesp e os demais remotos no Google Meet. Os
encontros foram povoados de leituras em trânsito e processos de criação
coletivo/colaborativos, buscando as relações entre os textos discutidos e as poéticas
vivenciadas em cada um dos dias. Compar(trilhar) o nosso processo criativo é uma
possibilidade de lançar-se em fio no ar e perceber que cada pedacinho desse fio
compõe os modos de ser, estar e se perceber na Arte. As experimentações levam para
o lugar da poética do encontro, na qual cada trabalho se abre em multiplicidade e
vazão. Durante os momentos de vivência coletiva, éramos questionados sobre o lugar
da poética na escola. Tantas histórias, tanta bagagem, uma pergunta e o silêncio...
falamos, concordamos e completamos uns aos outros.

A poética está no encontro, no olhar/nos atravessamentos; na arte/nos


afetamentos; na escola/nas provocações, na vida, que pulsa, que reverbera, que
transborda, que é. Um dos sentimentos que mais me tocou era nos desfazer das
criações... rasgar, cortar para intervir, levando consigo algo do outro... isto é
extremamente provocador e mostra a força da criação. Iniciamos as discussões da
arte como experiência, a partir de John Dewey, que revela uma forma de
concebermos a educação estética, estésica, dos acontecimentos, da multiplicidade,
da escola que é viva, porque “a experiência ocorre continuamente, porque a
1236
interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio
processo do viver” (DEWEY, 2010, p. 109). Uma das questões que marca o percurso
criativo é a presença das palavras... formas que ganham leveza, sentido, ação. O
traçado das letras nos convoca para um olhar afetuoso sobre as relações e as pessoas
ao nosso redor. Uma grafia que não segue uma forma linear, mas quer alcançar voos,
respirar. Partindo da mão livre, sem olhar necessariamente para o papel... entre
trânsitos, entre gestos, por entre.

O que vemos, então, não são meramente objetos. São partes de nós que estão
espalhadas pelos cantos e reverberam em imagens, em cores, formas, texturas, em
saberes e sabores... o aleatório, o enquadramento, a pose. Entre apontamentos e
anotações, debruçar-se os textos, encontrar os caminhos, as possibilidades, imersão.
Numa composição que intitulo “Limite e repouso”, tentei operar com a física e a
gravidade, na qual o carretel repousa sobre o papel, puxado por uma linha que
tensiona e reverbera para o limite da ação. Uma folha que é amassada, retorna para
sua forma original com marcas de um ato pensado... com a caneta, interfiro na
superfície com o marcador, buscando, em relevos, os silêncios dos espaços... perfuro
todos eles, tentando encontrar vazão, fissuras, rachaduras que compõe o plano do
pensar por linhas de fuga... linhas de errância em trânsito. O que pode um papel
amassado? Volta a sua forma original? Sim, mas não do mesmo jeito. A ação física
flutua sobre o que será... limite e repouso, fissuras em vazão, multiplicidade. Catar as
imagens e operar com elas... um filtro de café que ficou exposto ao sol e ao tempo,
transforma-se em poética de vida... tecer, romper, fissurar, marcar, inventar.

1237
TO RISK DRIFTING: TO DWELL ON CRACKS, FISSURES IN ESCAPE

Barbara dos Santos


Institute of Artes – UNESP. São Paulo, Brazil

Weaving lines and composing silences. This visual narrative is presented as a


possibility of affective and creative listening, from the discussions that permeated
the meetings of the elective discipline "Poetics and creation processes in the Arts",
which was taken between April and June 2022 in a hybrid way, with the opening and
closing in person at the IA/Unesp campus and the other remote ones on Google
Meet. The meetings were populated with readings in transit and
collective/collaborative creation processes, seeking relationships between the texts
discussed and the poetics experienced each day. Comparing (tracing) our creative
process is a possibility to launch a thread in the air and realize that each little piece
of this thread composes the ways of being, being, and perceiving oneself in Art. The
experimentations take us to the place of the poetics of encounter, in which each
work opens up in multiplicity and flow. During the moments of collective experience,
we were asked about the place of poetics at school. So many stories, so much
baggage, a question and silence... we spoke, we agreed, and we completed each other.

Poetics is in the encounter, in the look/in the crossings; in art/in the affections; in
school/in the provocations, in life, that pulsates, that reverberates, that overflows,
that is. One of the feelings that touched me the most was to undo our creations... to
tear, to cut in order to intervene, taking something of the other with us... this is
extremely provocative and shows the power of creation. We started the discussions
of art as experience, from John Dewey, who reveals a way of conceiving the aesthetic,
aesthetic education, of events, of multiplicity, of the school that is alive, because
"experience occurs continuously, because the interaction of the living being with
environmental conditions is involved in the very process of living" (DEWEY, 2010, p.
109). One of the issues that marks the creative journey is the presence of
words...forms that gain lightness, meaning, action. The tracing of the letters
summons us to an affectionate look at the relationships and people around us. A

1238
spelling that does not follow a linear form, but wants to reach flights, to breathe.
Starting from the free hand, without necessarily looking at the paper... between
transits, between gestures, in between.

What we see, then, are not merely objects. They are parts of us that are scattered
around corners and reverberate in images, in colors, shapes, textures, in knowledge
and flavors... the random, the framing, the pose. Between notes and annotations, to
lean over the texts, to find the paths, the possibilities, immersion. In a composition I
titled "Limit and Rest", I tried to operate with physics and gravity, in which the spool
rests on the paper, pulled by a line that tensions and reverberates to the limit of the
action. A sheet of paper that is crumpled returns to its original form with the marks
of a thought act... with the pen, I interfere on the surface with the marker, searching,
in reliefs, the silences of the spaces... I perforate them all, trying to find emptiness,
fissures, cracks that compose the plane of thinking through lines of escape... lines of
wandering in transit. What can a crumpled paper do? Does it return to its original
form? Yes, but not in the same way. Physical action floats on what will be limit and
rest, fissures in flow, multiplicity. To collect the images and operate with them... a
coffee filter that was exposed to the sun and to time, becomes a poetics of life... to
weave, to break, to fissure, to mark, to invent.

DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Mini Currículo

Barbara dos Santos


Mestranda em Artes pelo PROFARTES – Instituto de Artes da UNESP e professora de Arte da Prefeitura
de Limeira (SP). E-mail: b.santos01@unesp.br.
Master's student in Arts at PROFARTES - UNESP Art Institute and Art teacher at Prefeitura de Limeira
(SP). E-mail: b.santos01@unesp.br

1239
IMAGINE_UM_ARTIGO.JPG

José Loures
IFSP, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1VoB23_ZNrkgK0p5xaR2hFKuIxKccuOrO?usp=sharing

Resumo Expandido

A narrativa visual “imagine_um_artigo.jpg” nasceu do encontro do processo


criativo, exploração capitalista e a necessidade da comunicação entre a
comunidade acadêmica e a sociedade. Cada vez mais é exigido do artista um papel
múltiplo, que transita entre diversas atuações simultaneamente, como por exemplo
ser professor, produtor cultural, arte-educador e mediador (LOURES, 2022). Além
disso, as 24 horas do dia mostram-se insuficientes para a quantidade de atividades
necessárias para a sobrevivência e existência em coletividade. De acordo com
Byung-Chul Han (2015) essa é a condição de ser o explorador e ao mesmo tempo o
explorado em uma busca por desempenho. Nesse sentido, o atual sistema
capitalista exige um incessante ritmo de produção, o que nem sempre está em
harmonia com o processo criativo do artista. Assim, encontrei na arte generativa
uma possibilidade de manter a sanidade e criatividade, e ainda continuar a
participar de mostras, eventos acadêmicos e exposições. Entende-se arte
generativa como aquela desenvolvida por meio de algoritmos para a criação de
imagens. O aliado escolhido para o processo criativo da narrativa
“imagine_um_artigo.jpg” foi a inteligência artificial Midjourney. Essa IA pode ser
encontrada através do seu canal no Discord – plataforma utilizada para
comunicação com outras pessoas e comunidades. Atualmente, o Discord apresenta
mais de 150 milhões de usuários ativos mensamente (ESTADÃO, 2021), ou seja, um
espaço popular para interações e acessível para a maioria da população. Assim, após
o usuário entrar no canal no Midjourney e escolher a sala para novatos é possível
conversar com a inteligência artificial por meio do comando “/imagine”. Nesse
ambiente, o artista descreve em inglês a imagem que o Midjourney deve imaginar e

1240
criar. Assim, após 30 segundos, surgem quatro variações do pedido do usuário que
podem ser refinadas para uma resolução maior. Então, solicitei para a IA imaginar
imagens através de sete artigos publicados nos Anais do IV Seminário Internacional
de Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Dessa maneira, o Midjourney transmutou
palavras acadêmicas em visualidades com potência poética de alcançar além do
tradicional nicho acadêmico. O artista sempre utilizou os meios do seu tempo
(MACHADO, 2007), logo, é natural a utilização de inteligências artificiais na
produção artística contemporânea. Entendo o uso da arte generativa como um
caminho para subverter, sobreviver e confrontar o sistema capitalista (MESSIAS;
MUSSA, 2020). Nesse contexto, considero o Midjourney um aliado para manter uma
produção crítica em tempos radicalmente mais escassos e complexos.

IMAGINE_A_PAPER.JPG

José Loures
IFSP, Brasil

Extended Abstract

The visual narrative “imagine_a_paper.jpg” was created by the meeting between


creative process, capitalist exploration, and the necessity of communication among
the academic community and society. It is requested from the artist, each time, a
more multiple role, concerning on diverse acting processes simultaneously, such as
being a teacher, cultural producer, art-educator and mediator (LOURES, 2022). In
addition, the 24 hours of the day are insufficient for the number of necessary
activities for survival and existence in collectivity. According to Byung-Chul Han
(2015) this is the condition of being explorer and explored at the same time on a
search for development. Furthermore, the current capitalist system requests an
intense production pace, what is not always in harmony with the creative process
of the artists. On this context, I found at the generative art a possibility to keep
sanity and creativity, and still be able to participate in exhibits, academic events,

1241
and expositions. Generative art in this perspective is known as the art developed by
algorithms for the creation of images. The ally for the creative process of the
narrative “imagine_a_paper.jpg” was the artificial intelligence Midjourney. This AI
can be found at its Discord channel – platform used for communication with other
people and communities. Nowadays, Discord has more than 150 million active users
monthly (ESTADÃO, 2021), in other words, a popular and accessible space for
interactions for most part of the population. Furthermore, after the user enters at
the channel of Midjourney and chooses the newcomers room it is possible to chat
with the artificial intelligence through the command “/imagine”. On this
environment, the artist writes in English the image Midjourney must imagine and
create. Then, after 30 seconds, there are four variations of the user request that
can be refined for best resolution. In addition, I requested the AI to imagine images
through seven published papers at the IV Seminário Internacional de Pesquisa em
Arte e Cultura Visual proceedings. Concerning this step, Midjourney transmuted
academic words into visualities with poetics potential to reach beyond the
traditional academic niche. The artist always used the tools of his/her time
(MACHADO, 2007), then, it is natural the use of artificial intelligences on the
contemporaneous artistic production. I understand the use of generative art as a
way to subvert, survive, and confront the capitalist system (MESSIAS; MUSSA,
2020). In this context, I consider Midjourney an ally to keep a critical production in
radically complex and scarce times.

ESTADÃO. Em crescimento acelerado, Discord recebe investimento de US$ 500. O


Estadão de S. Paulo, Brasil, 2021. Disponível em:
https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,em-crescimento-acelerado-discord-recebe-
investimento-de-us-500-mi,70003841794. Acesso em: 07 out. 2022.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
LOURES, José. Reflexões sobre o uso de games no ensino de arte a partir do artista,
jogador, professor e aluno. Revista Digital Do LAV, Santa Maria, v. 14, n. 3, p. 27-47, 2022.
Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/65845. Acesso em: 08 out.
2022.
MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

1242
MESSIAS, José; MUSSA, Ivan. Por uma epistemologia da gambiarra: invenção, complexidade
e paradoxo nos objetos técnicos digitais. Revista Matrizes, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 173-192,
2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/157539. Acesso
em: 08 out. 2022.

Mini Currículo

José Antônio Loures


Artista multimídia, professor de Histórias em Quadrinhos e produtor cultural. Doutor em Artes pela
Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás
(UFG). Membro do Coletivo Interdisciplinar de Pesquisa em Games (CIPEG). Professor de Artes no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). E-mail: jloures-
arte@hotmail.com

1243
BALU@RTE: UMA PAISAGEM SONORA E VISUAL QUE RESISTE ENTRE PIXELS

Camila dos Santos


Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Link para o trabalho:


https://youtu.be/xM5j0Qc2Bs0

Resumo Expandido

Balu@rte – palavra que significa fortaleza – é uma paisagem sonora e visual


desenvolvida dentro de um ambiente online de realidade virtual, na plataforma
interativa Sansar. Seu conceito é mediado pela hibridação de signos do meio digital
e da natureza silvestre, que remetem ao entrecruzamento do metaverso e do fígital
com o meio ambiente o menos interferido antropomorficamente. O trabalho foi
desenvolvido a partir de uma residência de dois anos em uma comunidade naturista
chamada Colina do Sol, que fica no interior do Brasil, no estado do Rio Grande do
Sul, no município de Taquara. Esse recolhimento propiciou uma vivência profunda
e mediada pelo naturismo e os questionamentos daí levantados, como perguntar
até que ponto as tecnologias de informação e inteligência artificial podem se
comunicar com o meio ambiente e "retornar" às experiências mais anteriores e
selvagens para se ressignificar. Ou seja, Balu@rte é uma realização que, ao mesmo
tempo que é obra de arte digital, sofre interferências do que não é digital e, em
certa medida, contrapõe-se ao antropoceno, com o contraponto do meio ambiente
silvestre e os tipos de imersões que ele pode propiciar. A obra é constituída por
uma paisagem modelada em 3D, tanto em seus elementos visuais constitutivos
como em seus sons, espacializados em 360º, e é revelada pela ação do interator,
que pode assumir o formato de avatar e explorar o ambiente, descobrindo-o e
apresentando-o à medida que se desloca por ele, cujo cenário dialoga com o
transespecismo e o pós-humano.

Ademais, o avatar apresentado na captura audiovisual de Balu@rte é o da própria


artista, que percorre o espaço sem um roteiro e objetivos definidos, deambulando e
hackeando pela paisagem realista, mas também ficcional e híbrida. Para alguns
1244
questionamentos propostos com a obra, faz-se referência ao filósofo francês
Gilbert Simondon (1924-1989), sobretudo ao abordar a técnica enquanto parte
integrante da cultura, com uma filosofia da técnica e teoria dos processos de
individuação, ou seja, a tecnologia como parte orgânica de uma filosofia do devir.
Dessa maneira, o gesto técnico compromete o futuro, não se esgota e não se limita
em sua utilização enquanto meio para chegar a determinado fim, pelo contrário, a
técnica é um ato e modifica os meios e a evolução, onde aí se inclui o conceito de
Balu@rte, o de apropriação e, até mesmo, hackeamento artístico do metaverso, por
meio da arte digital. Já em referência ao filósofo chinês Yuk Hui, para abordar a
apropriação do metaverso segundo questões locais – diga-se, sul do Brasil e da
América Latina – fala-se em fissuras, que determinam o que seria uma
cosmopolítica e uma cosmotécnica, que podem ser fundamentais para pautar o que
seriam ou o que poderiam ser diferentes futuros tecnológicos. O termo
cosmotécnica, ao invés de cosmologia, lida com uma tomada de posição para
enfrentar a crise do Antropoceno, com o fim de reabrir a questão da tecnologia
diante de diferentes técnicas. E, assim, ultrapassar os limites da programação, da
inteligência artificial, de plataformas, cujos programas são limitados segundo seus
desenvolvedores, além de hibridizar esses meios com uma estética em relação
direta com o pós-humano e interespécies.

Palavras-chave: Arte Digital. Metaverso. Hibridação. Técnica. Cosmotécnica.

1245
BALU@RTE: A SOUNDSCAPE AND LANDSCAPE THAT RESISTS BETWEEN PIXELS

Camila dos Santos


Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Balu@rte – a word that means fortress – is a landscape and a soundscape developed


within an online virtual reality environment, on the Sansar interactive platform. Its
concept is mediated by the hybridization of signs of the digital environment and
wild nature, which refer to the intersection of the metaverse and the phygital with
the environment, the least anthropomorphically interfered with. The work was
developed from a two-year residency in a naturist community called Colina do Sol,
which is located in the interior of Brazil, in the state of Rio Grande do Sul, in the
municipality of Taquara. This retreat provided a deep experience mediated by
naturism and the questions raised there, such as asking to what extent information
technologies and artificial intelligence can communicate with the environment and
"return" to the most previous and wild experiences to resignify themselves. In other
words, Balu@rte is an achievement that, while being a digital work of art, suffers
interference from what is not digital and, to a certain extent, opposes the
Anthropocene, with the counterpoint of the wild environment and the types of
immersions it can provide. The work consists of a landscape modeled in 3D, both in
its constitutive visual elements and in its sounds, spatialized in 360º, and is revealed
by the action of the interactor, who can assume the shape of an avatar and explore
the environment, discovering it and presenting it as it moves through it, whose
scenario dialogues with transspeciesism and the post-human.

Furthermore, the avatar presented in the audiovisual capture of Balu@rte is that of


the artist herself, who travels through the space without a script and defined
objectives, wandering and hacking through the realistic, but also fictional and
hybrid landscape. For some questions proposed with the work, reference is made
to the French philosopher Gilbert Simondon (1924-1989), especially when
approaching technique as an integral part of culture, with a philosophy of
1246
technique and theory of individuation processes, that is, the technology as an
organic part of a philosophy of becoming. In this way, the technical gesture
compromises the future, it is not exhausted and is not limited to its use as a means
to reach a certain end, on the contrary, technique is an act and modifies the means
and evolution, which includes the concept of Balu@rte, that of appropriation and
even artistic hacking of the metaverse, through digital art. In reference to the
Chinese philosopher Yuk Hui, to address the appropriation of the metaverse
according to local issues – say, southern Brazil and Latin America – we speak of
fissures, which determine what would be a cosmopolitics and a cosmotechnics,
which can be fundamental to guide what would be or what could be different
technological futures. The term cosmotechnics, rather than cosmology, deals with
taking a position to face the Anthropocene crisis, in order to reopen the question of
technology in the face of different techniques. And, thus, going beyond the limits of
programming, artificial intelligence, platforms, whose programs are limited
according to their developers, in addition to hybridizing these media with an
aesthetic in direct relationship with the post-human and interspecies.

Keywords: Digital Art. Metaverse. Hybridization. Technique. Cosmotechnics.

Referências / References

HUI, Yuk. Fragmentar el futuro: ensayos sobre tecnodiversidad. Traducción de Tadeo


Lima. Ciudad Autônoma de Buenos Aíres: Caja Negra Editora, 2020.
SIMONDON, Gilbert. L’invention dans les techniques: cours et conférences. Paris: Seuil,
2005.
SIMONDON, Gilbert. EI modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2007.

Mini Currículo

Camila dos Santos


Nome artístico Camila Vermelho, é doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (PPGART-UFSM) e pesquisadora no Laboratório

1247
Interdisciplinar Interativo (LabInter-UFSM). Pesquisa Arte Contemporânea, com ênfase em poéticas
visuais, e trabalha com Arte, Tecnologia, Comunicação, Som e Radiodifusão. E-mail:
mitanoula@yahoo.com.br

1248
CONVERSAS DE BELZEBU COM SEU PAI MORTO II: QUADRINHOS POÉTICO-
FILOSÓFICOS, PANDEMIA E REDES NEURAIS

Edgar Silveira Franco (Ciberpajé)


UFG – Grupo de pesquisa CRIA_CIBER (FAV/UFG), Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/11sOASCeEbtvpSn9NAc8KJXFbzQgpvbnY?usp=sharing

Resumo Expandido

A série em quadrinhos “Conversas de Belzebu com seu pai morto”, integra o gênero
Poético-Filosófico de quadrinhos (FRANCO, 2017), um gênero genuinamente
brasileiro de quadrinhos como destaca Elydio dos Santos Neto (2009), ela surgiu
inicialmente do desejo de inserir de forma simbólica e iconográfica o arcano XV do
Tarô, o diabo, no contexto do universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-
Humana”. Trata-se de um universo de ficção científica em constante expansão, no
qual crio narrativas que trazem em seu teor o chamado “deslocamento conceitual”,
definido pelo escritor norte americano P. K. Dick (1995), pois o criador desloca o
tempo, a gnose e a tecnologia para um futuro hipotético para, na verdade, tratar de
questões contemporâneas. Assim, esse “deslocamento conceitual” produz mundos
virtuais que são simulacros do potencial da tecnociência. Na narrativa, após o fim
da espécie humana, Belzebu nasce de forma metafórica e onírica no crepúsculo
pós-humano, em um planeta Terra desolado. A história coloca-o em diálogo – na
verdade um monólogo – com seu pai morto, metáfora da humanidade. Mas a
motivação mais profunda para a criação da série foi a perda trágica sofrida por
mim, de meu maior interlocutor filosófico e amigo, meu amado pai Dimas Franco,
uma das vítimas da COVID-19. Durante décadas discutimos assuntos metafísicos e
reflexões sobre a espécie humana, Gaia e seus destinos. Com seu desaparecimento,
ao desejar conversar sobre esses temas, experiencio profunda vacuidade, e
rememoro que a percepção que meu pai tinha sobre nossa espécie ia de uma
admiração quase incondicional por nossa capacidade de amarmos e sentirmos

1249
compaixão, a um temor de aonde nosso egoísmo poderia levar-nos. A série será
composta por 6 HQs de 11 páginas cada uma, somando 66 páginas, e sua criação
utiliza princípios mágicos de transmutação e inspiração enteogênica. O falecimento
de meu pai, vitimado pelo genocídio neofascista da COVID-19 no Brasil, foi um dos
fatos mais trágicos de minha existência. Ele era meu mentor intelectual, meu
melhor amigo e meu maior incentivador, sempre tive um amor declarado por ele e
inclusive dedicando-lhe muitas de minhas obras. E com ele eu tinha minhas
conversas filosóficas e metafísicas mais densas e profundas. Como eu, sua visão
sobre a espécie humana ia da percepção de nosso lado luminoso, da empatia e
compaixão profunda, até as sombras do egoísmo e egolatria que resultaram na
destruição gradativa da biosfera. Ele se emocionava de chorar com os atos nobres,
mas se entristecia ao ver a crueldade humana. Ao perceber o crescimento do
neofascismo no Brasil, que tomou nosso governo de assalto, ele dizia: “ - A
humanidade não deu certo”, de uma forma melancólica. E ele acabou sendo vítima
dessa banda podre humana. “Conversas de Belzebu com seu pai morto” é uma
narrativa catártica, autotransformadora e também uma homenagem ao meu amado
pai (FRANCO & SENRA, 2021). Até o momento foram criados e editados 2 capítulos
da saga, que foram publicados respectivamente nos números 1 e 2 da revista em
quadrinhos Atomic Magazine (Editora Atomic, 2021 e 2022). No segundo capítulo,
que é apresentado nesse resumo expandido como uma narrativa visual, Belzebu
segue a caminhada, rememorando a trajetória da espécie humana. Esse capítulo foi
especialmente doloroso de ser criado, pois ele utiliza além das artes a grafite das
cenas criadas com Belzebu, um arquivo de fotos que meu pai guardava com muito
carinho, fotos de seus familiares, avós, pais, irmãos, tios, de locais de sua infância
como a casa da fazenda em que morava, o paiol, e também múltiplas fotos dele na
infância, na adolescência, juventude. Mergulhei nesse acervo de tantas lembranças
e que ele já tinha me mostrado algumas vezes, mas agora sem a presença dele para
contar-me as histórias daquelas fotos, contando apenas com as minhas lembranças
do que ele disse sobre elas. Esse segundo capítulo foi concebido para apresentar de
forma ampla a trajetória da espécie humana e da sua (des)conexão com a natureza
que teve como uma das consequências recentes a Pandemia de COVID-19, para isso
utilizei então essas fotos que foram transformadas em desenhos e posteriormente
trabalhadas em redes neurais para chegar à visualidade desejada. Essas redes

1250
neurais são chamadas de Neural Style Transfer, a técnica consiste na mixagem de
uma imagem a outra, sendo que a segunda imagem entrará com a textura (e se for
desejado a colorização) que se aplicará à primeira. Para a HQ Conversas de Belzebu
com seu pai morto II, eu buscava texturas de enraizamentos em tons sépias
outonais que reforçassem a ideia de ocaso trazida pela narrativa. É importante
dizer que muitos dos desenhos da HQ foram realizados previamente com técnica
de grafite sobre papel, inclusive com sombreamento em lápis 6B – incluindo todos
do personagem Belzebu, e outras artes tomaram como base o acervo fotográfico de
meu pai, em ambos os casos a rede neural acrescentou texturas e tonalidades de
cor. O uso das redes neurais também descaracterizou a identificação das pessoas
personagens baseadas nas fotos, universalizando-as como era desejado por mim
(FRANCO & SENRA, 2021). A história em quadrinhos poético-filosófica Conversas de
Belzebu com seu pai morto II, traz em suas 11 páginas uma narrativa contundente,
sem balões de fala, na qual o personagem Belzebu expressa sua perspectiva da
história humana narrando-a visualmente com fotos de minha família paterna
recriadas a grafite e em redes neurais, incluindo bisavós, avós, tios, primos e
sobretudo meu pai, utilizando-os metaforicamente como símbolos de nossa espécie
e de suas inter-relações, cosmogonias, a ideia de Deus e a desconexão contínua
com a natureza.

BEELZEBUB'S CONVERSATIONS WITH HIS DEAD FATHER II: POETICAL-


PHILOSOPHICAL COMICS, PANDEMIC AND NEURAL NETWORKS

Edgar Silveira Franco (Ciberpajé)


UFG – Grupo de pesquisa CRIA_CIBER (FAV/UFG), Brasil

The comic series “Beelzebub's conversations with his dead father”, is part of the
Poetic-Philosophical genre of comics (FRANCO, 2017), a genuinely Brazilian genre of
comics, as highlighted by Elydio dos Santos Neto (2009), it initially emerged from
the desire to symbolically and iconographically inserting Arcanum XV of the Tarot,

1251
the devil, in the context of the fictional transmedia universe of the “Post-Human
Dawn”. It is a constantly expanding universe of science fiction, in which I create
narratives that bring in their content the so-called “conceptual displacement”,
defined by the North American writer P. K. Dick (1995), as the creator displaces
time, gnosis and technology for a hypothetical future to actually address
contemporary issues. Thus, this “conceptual shift” produces virtual worlds that are
simulacra of the potential of technoscience. In the narrative, after the end of the
human species, Beelzebub is metaphorically and dreamily born in the post-human
twilight, on a desolate planet Earth. The story puts him in dialogue – in fact a
monologue – with his dead father, a metaphor for humanity. But the deepest
motivation for creating the series was the tragic loss suffered by me, my greatest
philosophical interlocutor and friend, my beloved father Dimas Franco, one of the
victims of COVID-19.For decades we discussed metaphysical issues and reflections
on the human species, Gaia and their fates. With his disappearance, in wanting to
talk about these topics, I experience a deep emptiness, and I remember that my
father's perception of our species ranged from an almost unconditional admiration
for our ability to love and feel compassion, to a fear of where our selfishness could
take us. The series will consist of 6 comics of 11 pages each, totaling 66 pages, and
its creation uses magical principles of transmutation and entheogenic inspiration.
The death of my father, victimized by the neo-fascist genocide of COVID-19 in
Brazil, was one of the most tragic facts of my existence. He was my intellectual
mentor, my best friend and my biggest supporter, I always had a declared love for
him and even dedicated many of my works to him. And with him I had my most
dense and profound philosophical and metaphysical conversations. Like me, his
view of the human species ranged from the perception of our bright side, empathy
and deep compassion, to the shadows of selfishness and egotism that resulted in
the gradual destruction of the biosphere. He was moved to cry with noble deeds,
but saddened to see human cruelty. When noticing the growth of neo-fascism in
Brazil, which took our government by storm, he said: “-Humanity didn't work out”,
in a melancholy way. And he ended up being a victim of this rotten human band.
“Beelzebub's conversations with his dead father” is a cathartic, self-transforming
narrative and also a tribute to my beloved father (FRANCO & SENRA, 2021). So far, 2
chapters of the saga have been created and edited, which were published

1252
respectively in issues 1 and 2 of the comic book Atomic Magazine (Editora Atomic,
2021 and 2022). In the second chapter, which is presented in this expanded
summary as a visual narrative, Beelzebub follows the path, recalling the trajectory
of the human species. This chapter was especially painful to create, as it uses, in
addition to the arts, the graffiti of the scenes created with Beelzebub, a photo
archive that my father kept with great affection, photos of his family, grandparents,
parents, brothers, uncles, places of his childhood as the farmhouse where he lived,
the magazine, and also multiple photos of him in childhood, adolescence, youth. I
immersed myself in this collection of so many memories and that he had already
shown me a few times, but now without his presence to tell me the stories of those
photos, relying only on my memories of what he said about them. This second
chapter was designed to broadly present the trajectory of the human species and
its (dis)connection with nature that had the COVID-19 Pandemic as one of the
recent consequences, for that I used these photos that were transformed into
drawings and later worked in neural networks to reach the desired visuality. These
neural networks are called Neural Style Transfer, the technique consists of mixing
from one image to another, and the second image will enter the texture (and if
desired colorization) that will be applied to the first. For the comic Beelzebub's
Conversations with His Dead Father II, I was looking for textures of roots in
autumnal sepia tones that would reinforce the idea of twilight brought by the
narrative. It is important to say that many of the drawings in the comic were
previously made with the technique of graphite on paper, including shading in 6B
pencil - including all of the character Beelzebub, and other arts were based on my
father's photographic collection, in both cases the neural network added textures
and color tones. The use of neural networks also de-characterized the
identification of people as characters based on photos, universalizing them as I
wanted (FRANCO & SENRA, 2021). The poetic-philosophical comic book Beelzebub's
Conversations with His Dead Father II, brings in its 11 pages a forceful narrative,
without speech bubbles, in which the character Beelzebub expresses his
perspective of human history narrating it visually with photos of my family
recreated in graffiti and in neural networks, including great-grandparents,
grandparents, uncles, cousins and above all my father, using them metaphorically

1253
as symbols of our species and its interrelationships, cosmogonies, the idea of God
and the continuous disconnection with the nature.

Referências / References

DICK, P.K. The Shifting Realities of Philip K.Dick: Selected Literary and Philosophical
Writings. New York: Vintage Books, 1995.
FRANCO, Edgar. Quadrinhos Expandidos: das HQtrônicas aos plug-ins de neocortex. João
Pessoa: Marca de Fantasia, 2017.
FRANCO, Edgar; SENRA, Rafael. Ciberpajé e as obras artísticas pandêmicas: Em entrevista
ao artista e pesquisador Doutor Rafael Senra, o Ciberpajé fala das obras Conversas de
Belzebu com seu Pai Morto (HQ e EP). Imaginário!, João Pessoa: Marca de Fantasia, n.22 –
Setembro de 2021, p.7-34.
SANTOS NETO, Elydio. “O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar
brasileiro.” In: Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual da
FAV/UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009, - Goiânia - GO:UFG, FAV, p.68-95.

Mini Currículo

Edgar Silveira Franco


Edgar Franco é o Ciberpajé, artista transmídia, mago psiconauta, Pós-doutor em Arte, Quadrinhos e
Performance pela UNESP, Pós-Doutor em Arte e Tecnociência pela UnB, Doutor em Artes pela USP,
Mestre em Multimeios pela UNICAMP, Arquiteto e Urbanista pela UnB. Desde 2008 atua como
professor permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Arte e Cultura Visual da
Universidade Federal de Goiás, em Goiânia. Desde 2011 coordena o Grupo de Pesquisa CRIA_CIBER
na Faculdade de Artes Visuais da UFG. E-mail: ciberpaje@gmail.com

1254
ARTEZINE “3D’ IMAGENS” –VOL. VI

Gazy Andraus
PPGACV/FAV/UFG, Brasil

Link para o trabalho:


https://issuu.com/gazyandraus/docs/3d-imagens_-_vol_vi

Resumo Expandido

Um fanzine é uma revista paratópica (ZAVAM, 2004), publicação não oficial.


Segundo Magalhães (2018), sua origem remonta a 1929 quando fãs de ficção
científica (fc) elaboraram boletins de textos ficcionais relativos ao tema. Assim, com
a ampliação e barateamento da tecnologia de impressão, os zines se disseminaram
graças aos movimentos underground, punk e rock, principalmente na Inglaterra e
EUA. Atualmente, zines são libelos que permitem aos amadores (e profissionais) não
só da literatura, como dos quadrinhos, música, ativismo, e outras áreas
expressarem críticas, questões, ideários, com textos, quadrinhos (HQs), ilustrações,
colagens e o que desejarem. Igualmente, tem havido crescente aumento de eventos
e feiras que ampliam o fanzinato, bem como vão sendo abertas fanzinotecas em
vários espaços e universidades pelo mundo. Além disso, tal como aconteceu às HQs,
os fanzines começam a ser aplicados no ensino sendo objeto de estudos
acadêmicos.

No Brasil, começaram a circular em meados da década de 1960, quando em


12/10/65 foi lançado por Edson Rontani o “Ficção”, 1º fanzine brasileiro. Depois, nas
décadas de 1980/90, serviram de esteio à publicação da maioria dos aspirantes de
quadrinhos, pois o mercado editorial nacional priorizava HQs estrangeiras
(ANDRAUS, 2020).

Atualmente há um crescente interesse aos artistas, em especial das artes gráficas e


afins (ilustradores, gravuristas, etc), em experienciar zine como publicação artística,
e por isto no exterior já existe o termo art-zine (BATEY, s/d;), tendo bastante valor

1255
atribuído a este tipo de publicação libertário, sem visar lucro e atinente à troca de
ideias e expressividades artísticas, seja por correio ou internet.

Por fim, com este conceito de artezine é que empreendo aqui esta NV de meu mais
recente trabalho artístico-zineiro, o artezine “3D-Imagens” - vol. VI.

A série “3D’ Imagens” foi iniciada em 2016 quando não havia intenção a que se
tornasse seriada. Naquela época eu fazia experiências utilizando o software 3D
Builders do Windows 10. Assim, utilizando-me de meus desenhos e trechos de HQs,
passei a testar o programa e simular como seriam se transpostos à
tridimensionalidade, como numa máquina 3D à posterior impressão.

Porém, dali em diante venho exaustivamente retrabalhando no 3D Builder minhas


imagens, e em todos os 6 (+1) artezines “3D’ Imagens” que fiz até 2022, resgato
desenhos e HQs e os insiro junto a outros que realizo, e após tratamento da maioria
das imagens em photoshop e 3D Builder, eu intento que formem novas “mensagens”
imagéticas. Àlgumas imagens insiro duas versões: bidimensional e em 3D. A seguir,
dentro do powerpoint, monto o zine e “releio” as imagens e, ao som de músicas,
elaboro texto poético que permeie o artezine. Assim é que monto em dois formatos:
A-5, ao simularem revistas grampeadas, ou então, em apenas uma folha A-4 como
oito páginas (e algumas vezes a nona seria seu verso), ao que se denominou no
Brasil de “minizines” (8 minipáginas e uma 9ª quando há no verso uma maior,
finalizando a arte).

Assim, quando pronto, o imprimo e o insiro na plataforma ISSUU que simula leitura
de páginas, e também, como parceiro da editora alternativa Marca de Fantasia,
como leitura digital, imagem a imagem.

Então, a série desde 2016 chega a este 6º número com um adendo-surpresa: o vol.
VI.I (6.1) alcançado via QR-Code pelo vol. VI, particularidade desta NV, com intuito
dum artezine ousado de narrativa visual poética, deslimitando-se em dois, no
virtual e no papel.

1256
3D’ IMAGES – ARTZINE VOL. VI

Gazy Andraus
PPGACV/FAV/UFG, Brasil

A fanzine is a paratopic magazine (ZAVAM, 2004), an unofficial publication.


According to Magalhães (2018), its origin dates back to 1929 when science fiction
(sf) fans produced bulletins of fictional texts on the subject. Thus, with the
expansion and cheapening of printing technology, zines spread thanks to
underground, punk and rock movements, mainly in England and the USA.
Currently, zines are libels that allow amateurs (and professionals) not only in
literature, but also in comics, music, activism, and other areas to express criticisms,
questions, ideas, with texts, comics, illustrations, collages and what is wished.
Likewise, there has been a growing increase in events and fairs that expand the
fandom, as well as zine libraries being opened in various spaces and universities
around the world. In addition, as happened with comics, fanzines began to be
applied in teaching, being the object of academic studies.

In Brazil, they began to circulate in the mid-1960s, when on 10/12/65 Edson


Rontani launched “Ficção”, the 1st Brazilian fanzine. Then, in the 1980s/90s, they
served as a mainstay for the publication of most aspiring comics, as the national
publishing market prioritized foreign comics (ANDRAUS, 2020).

Currently, there is a growing interest for artists, especially in the graphic arts and
the like (illustrators, printmakers, etc.), to experience zine as an artistic publication,
and for this reason the term art-zine already exists abroad (BATEY, s/d;), having a
lot of value attributed to this type of libertarian publication, without aiming at
profit and concerning the exchange of ideas and artistic expressiveness, either by
mail or internet.

Finally, it is with this concept of artezine that I undertake this VN of my most


recent artistic-ziner work, the artezine “3D-Images” - vol. VI.

1257
The “3D’ Images” series was started in 2016 when there was no intention for it to
become a series. At that time I was experimenting using the Windows 10 3D
Builders software. So, using my drawings and excerpts from comics, I started to
test the program and simulate how they would be transposed to three-
dimensionality, as in a 3D machine for subsequent printing.

However, from then on I have been exhaustively reworking my images in the 3D


Builder, and in all the 6 (+1) “3D' Imagens” artezines that I made until 2022, I rescue
drawings and comics and insert them together with others that I make, and after
treatment of most images in photoshop and 3D Builder, I try to form new imagery
“messages”. In some images I insert two versions: two-dimensional and 3D. Then,
within the powerpoint, I set up the zine and “reread” the images and, to the sound
of music, I create a poetic text that permeates the artezine. This is how I assemble
it in two formats: A-5, when simulating stapled magazines, or else, in just an A-4
sheet with eight pages (and sometimes the ninth would be its back), which was
called in Brazil as “minizines” (8 mini-pages and a 9th when there is a larger one on
the back, finishing the art).

So, when ready, I print it and insert it on the ISSUU platform that simulates page
reading, and also, as a partner of the alternative publisher Marca de Fantasia, as a
digital reading, image by image.

So, the series since 2016 reaches this 6th issue with a surprise addendum: vol. VI.I
(6.1) achieved via QR-Code by vol. VI, particularity of this VN, with the aim of a
daring artezine of poetic visual narrative, delimiting itself in two, in the virtual and
on paper.

Referências / References

ANDRAUS, Gazy. “Fanzines Brasileiros do Final do Século XX: A Redenção com as


Publicações Nacionais das Histórias em Quadrinhos”. Cad. Resumos: 1as. Cyberjornadas
Internacionais de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. São Paulo: Observatório de
Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, 2020.
BATEY, Jackie Dr. Art-Zines, The Self-Publishing Revolution: The Zineopolis Art-Zine
Collection. Paper specifically about Zineopolis - the art zine collection at the University of

1258
Portsmouth UK, curated by Dr Jackie Batey. Disponível em:
http://zineopolis.blogspot.com/p/about-collection.html . s/d. Acesso em 12/04/2022.
MAGALHÃES, Henrique. Pedras no Charco-Resistência e perspectivas dos fanzines. João
Pessoa: Marca de Fantasia, 2018. Disponível em:
https://marcadefantasia.com/livros/quiosque/pedrasnocharco/pedrasnocharco.html .
Acesso em 10/07/2021
ZAVAM, Aurea Suely. Fanzine: A Plurivalência Paratópica. Revista Linguagem em
(Dis)curso. v. 5, n. 1, jul./dez., 2004. Disponível em
https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/25761. Acesso em10/10/2022.

Mini Currículo

Gazy Andraus
É pós-doutorando pelo PPGACV da FAV-UFG (Bolsista CAPES-PNPD), Dr.pela ECA-USP, Mestre em
Artes Visuais pela UNESP, Pesquisador do Observatório de HQ da USP; grupo de pesquisa
CRIA_CIBER (FAV/UFG) e Poéticas Artísticas e Processos de Criação (UFG). Publica artigos e textos
acadêmicos e é autor de HQs e Fanzines fantástico-filosóficos. E-mail: gazyandraus@ufg.br

1259
RETRATOS NARRATIVOS: VISUALIDADES QUE PROCURAM IDENTIDADE

Autor Nicolas Andres Gualtieri


Universidade Federal de Goiás

Co-Autora Luciana Ribeiro


Faculdade Senac, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/file/d/1W_AfIuASuTlUnzoYO3vWG7j8pukW-hWk/view?usp=sharing

Resumo Expandido

Ao desenvolver um estudo familiar percebi que por meu tom de pele ser mais claro
que os dos demais sempre me senti deslocada e desencaixada a eles, enquanto por
meu cabelo ter cachos pequenos e volumosos minha pele não me livrava
completamente do racismo, mas o colorismo (termo utilizado por Walker (1982) para
diferenciar tonalidades de pele demonstrando vantagens de pessoas mais claras) me
dava privilégios diante aos tons da minha família.

Sempre convivi com essa dualidade: a presença de privilégios por possuir um tom de
pele mais claro no meu contexto familiar e um constante questionamento social a
partir de minhas raízes, que inclusive me levou a questionar minha identidade. Nesse
contexto, "eu posso lutar pelos direitos dos pretos?”. A resposta é sim, tenho que
reconhecer minha cor e minhas raízes e defender meus semelhantes. Pessoas
brancas não pensam pertencer a essa luta já que geralmente o foco é na negritude,
mas todos precisam participar da luta de maneiras diferentes (RIBEIRO, D. 2019).

Com a idade, fotografar foi a forma de me aproximar de minha família, me


apresentando os traços que me assemelhavam aos meus pais e irmãos, e não à minha
cor. As fotos foram uma forma de registro documental que acompanha uma narrativa
histórica (LOMBARDI, 2007). Os questionamentos que recebi ao longo do tempo a

1260
respeito do pertencimento familiar, se transformaram em retratos, raízes e uma
busca pessoal de identidade.

Os retratos dessa narrativa formam parte de uma instância de produção fotográfica


maior que envolve uma longa linha familiar. São uma construção visual de gamas
cromáticas que acompanharam minha história e meus questionamentos, produzindo
novos interrogantes: até onde chega a potência da cor nos retratos da minha família?
A fotografia, como visualidade cultural e histórica, abre portas na minha origem, mas,
ao mesmo tempo, reforça e expõe minhas diferenças.

NARRATIVE PORTRAITS: VISUALITIES THAT SEARCH FOR IDENTITY

Autor Nicolas Andres Gualtieri


Universidade Federal de Goiás

Co-Autora Luciana Ribeiro


Faculdade Senac, Brasil

Extended Abstract

When developing a family study, I saw that because my skin tone was lighter than my
relatives, I always felt out of place and disconnected from them. At the same time,
because my hair had small and voluminous curls, my skin did not completely free me
from racism, but colorism (a term used by Walker (1982) to different skin tones
showing advantages of lighter people) gave me privileges with my family's tones.

I have always lived with this duality: the presence of privileges for having a lighter
skin in my family context and constant social questioning from my roots, which even
led me to question my identity. In this context, "can I fight for the rights of black
people?". The answer is yes, I need to know my color and my roots, fighting for that.
White people don't think to belong in the fight, because it is normal to relate the

1261
cause to a black person, but everyone needs to participate in the struggle in different
ways (RIBEIRO, D. 2019).

With time, photographing was the way to get closer to my family, introducing me to
the trait that resembled my family, my father, and siblings, not my color. The pictures
were a documentary record that accompanied a historical narrative (LOMBARDI,
2007). The questions I received over time about family belonging are transformed
into portraits, roots, and a personal search for identity.

The portraits of this narrative, form part of a larger photographic production


instance, that involves a long family line. They are a visual construction of a
chromatic pallet, that accompanied my story and my questions, producing new
questions: how far does the power of color reach in my family portraits?
Photography, as a cultural and historical visually, opens doors to my origins, but, at
the same time, reinforces and exposes my differences.

Referências / References

LOMBARDI, Katia. Documentário imaginário: novas potencialidades na fotografia


documental contemporânea. 2007. Dissertações de Mestrado (Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas) – Federal de Minas Gerais, Universidade, Minas Gerais, 2007.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense,
2007.
MIRZOEFF, Nicholas. Introdução: o que é cultura visual? In: Uma introdução à cultura
visual. Londres: Routledge, 1999.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
WALKER, Alice. If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like? [S.
l.: s. n.], 1982

Mini Currículos

Luciana Clara Ribeiro


Designer Gráfica formada na Faculdade Senac Goiás. Fotógrafa, artista e professora. Atualmente estou
ministrando aula de História da Arte para alunos de Fundamental II na Escola Interação. Cursando
pós-graduação em Fotografia na Faculdade Unyleya. E-mail: lucianaclararibeiro@gmail.com

1262
Nicolas Andres Gualtieri
Bacharel em Design de Comunicação Visual pela UNL (Argentina). Especialista em História e
Narrativas Audiovisuais, Mestre e Doutor em Artes e Cultura Visual pela UFG (Brasil). Com experiência
nas áreas de design, metodologias projetuais, educação, visualidades, cinema e comunicação visual.
Atualmente professor e coordenador do curso de Design Gráfico na Faculdade SENAC Goiás e diretor
do escritório de design Cônico (www.conicodesign.com). E-mail: nicoagualtieri@gmail.com

1263
PRODUÇÃO COLETIVA AUDIOVISUAL E AUTO-REPRESENTAÇÃO:
FILMES PELO POVO DE TERREIRO

Bruno Karasiaki Filene


PPGACV-UFG, Brasil

Alexandre Luna Lasprilla


Pesquisadora, Brasil

Link para o trabalho:


https://youtu.be/oCPJP_HB6ts

Resumo Expandido

Dirigido pelo Babalorixá Alexandre de Xangô e Bruno Karasiaki Filene, este filme é
resultado de um trabalho de compartilhamento de produções acadêmicas e
artísticas. Na ocasião do registro, transmitimos um evento de cerca de três horas
pelo Youtube ao vivo. Operamos quatro câmeras em formato circular, registrando e
compartilhando com o público virtual, o evento em tempo real. A mesa de registro
foi posicionada no centro das rodas de conversa. Também havia dois cinegrafistas
capturando planos sequência, fazendo efeitos de travelling e transição, para
dinamização final do produto cultural.

O evento ‘A contribuição Afro brasileira na construção do patrimônio imaterial do


estado de Goiás', ocasião de registro do curta-metragem que acompanha essa
narrativa, foi realizado em 2022 com apoio do Fundo de Arte e Cultura do Estado de
Goiás de 2017. Realizamos cinco rodas de conversas com mesas mediadas por
pessoas de referência nos temas. A primeira mesa foi sobre as Abordagens Jurídicas
relacionadas ao cotidiano da população afro-brasileira. A segunda roda foi sobre
Representatividade, a terceira sobre Povos Quilombolas, a quarta sobre as Matrizes
Africanas, e a quinta sobre a Juventude Negra.

Houve participação de diversas pessoas pertencentes aos segmentos mencionados.


Advogados, delegado, o representante do povo de matriz africana na OAB, militantes,

1264
artistas, sacerdotes de diversos troncos religiosos africanos, povos quilombolas etc.
As contribuições dos diversos participantes foram muitas, convidamos todas e todos
para assistir esse curta-metragem, que foi selecionado e recebeu menção honrosa
no festival Curta-Canedo 2022, na Mostra Curta Negritude.

A ampliação de visibilidade das relações etnico-raciais e dos patrimônios culturais


decoloniais é estratégia de combate ao preconceito. As artes visuais são utilizadas
em processos educativos interdisciplinares. A produção coletiva da
representatividade imbui os produtos culturais de legitimidade. O tema do ensino
relacionado às relações etnico-raciais e religiões afro-brasileiras, embora cercado de
desafios na educação fundamental e média, tem sido trabalhado por diversas autoras
e autores como: Souza e Bittencourt (2016), Oliveira e Candau (2010), Caputo
(2012;2015), Dias (2014) entre outros.

As vivências decoloniais, são potencialmente revolucionárias por emancipar seus


sujeitos das projeções epistemicídas do neocolonialismo. O terreiro é um local
privilegiado para estudo da sociedade complexa. A partir da valorização do
patrimônio relegado à subalternização, que é posto em evidência; transgride-se a
lógica colonialista. Os iniciados podem por meio das percepções em relevo das
perspectivas decoloniais, perceberem a diversidade cultural e valorativa dos modos
de existir. Fazendo do terreiro um espaço educacional.

A contribuição afro-brasileira na construção do patrimônio imaterial do estado de


Goiás é um curta-metragem que apresenta diversas perspectivas e iniciativas para o
reconhecimento da diversidade cultural brasileira. Não é apenas uma contrapartida
da pesquisa para as comunidades, mas uma produção autoral pela comunidade.

1265
COLLECTIVE AUDIOVISUAL PRODUCTION AND SELF-REPRESENTATION:
FILMS BY THE TERREIRO PEOPLE

Bruno Karasiaki Filene


PPGACV-UFG, Brasil

Alexandre Luna Lasprilla


Pesquisadora, Brasil

Directed by Babalorixá Alexandre de Xangô and Bruno Karasiaki Filene, this film is
the result of sharing academic and artistic productions. At the time of the recording,
we broadcasted an event of about three hours live on Youtube. We operated four
cameras in a circular format, recording and sharing with the virtual audience, the
event in real time. The registration table was positioned in the center of the
conversation wheels. There were also two cameramen capturing sequence shots,
doing travelling and transition effects, for the final dynamization of the cultural
product.

The event 'The Afro-Brazilian contribution in the construction of the intangible


heritage of the state of Goiás', occasion for the registration of the short film that
accompanies this narrative, was held in 2022 with support from the Art and Culture
Fund of the State of Goiás 2017. We held five rounds of conversations with tables
mediated by people of reference in the themes. The first table was about Legal
Approaches related to the daily life of the Afro-Brazilian population. The second
round was about Representativity, the third one about Quilombola Peoples, the
fourth one about African Matrixes, and the fifth one about Black Youth.

There was the participation of several people belonging to the mentioned segments.
Lawyers, delegates, the representative of the people of African matrix in the OAB,
activists, artists, priests of various African religious trunks, quilombola peoples, etc.
The contributions of the various participants were many, and we invite everyone to

1266
watch this short film, which was selected and received an honorable mention at the
Curta-Canedo 2022 festival, in the Curta Negritude exhibit.

Increasing the visibility of ethno-racial relations and decolonial cultural heritage is a


strategy to combat prejudice. The visual arts are used in interdisciplinary educational
processes. The collective production of representativity imbues cultural products
with legitimacy. The teaching theme related to ethno-racial relations and Afro-
Brazilian religions, although surrounded by challenges in elementary and middle
school education, has been worked on by several authors such as: Souza and
Bittencourt (2016), Oliveira and Candau (2010), Caputo (2012;2015), Dias (2014) among
others.

Decolonial experiences are potentially revolutionary for emancipating their subjects


from the epistemic projections of neocolonialism. The terreiro is a privileged place
to study complex society. By valuing the heritage relegated to subalternization,
which is put in evidence, the colonialist logic is transgressed. The initiated can, by
means of the perceptions in relief of decolonial perspectives, perceive the cultural
and value diversity of the ways of being. Making the terreiro an educational space.

A contribuição afro-brasileira na construção do patrimônio imaterial do estado de


Goiás is a short film that presents several perspectives and initiatives for the
recognition of Brazilian cultural diversity. It is not only a counterpart of the research
for the communities, but an authorial production by the community.

Referências / References:

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças
de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
CAPUTO, Stela Guedes. Aprendendo yorubá nas redes educativas dos terreiros: história,
culturas africanas e enfrentamento da intolerância nas escolas. Revista Brasileira de
Educação [online]. 2015, v. 20, n. 62, pp. 773-796. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S1413-24782015206211>. Epub Jul-Sep 2015. ISSN 1809-449X.
https://doi.org/10.1590/S1413-24782015206211.
DIAS, Luciene de Oliveira. Desatando nós e construindo laços: dialogicidade, comunicação
e educação. In: Rose Vidal de Souza; José Marques de Melo; Osvando J. de Morais. (Org.).
Teorias da Comunicação: Correntes de Pensamento e Metodologia de Ensino. 1ed. São
Paulo: Intercom, 2014, v. Único, p. 328-350.

1267
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera. Pedagogia decolonial e educação antirracista
e intercultural no Brasil. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 15-40, abr. 2010.
SOUZA, Fábio Feltrin de; BITTENCOURT, Zoraia Aguiar (org.). As relações etnicoraciais na
sala de aula – propostas pedagógicas. Coleção para as relações étnicoraciais, vol. 3.
Tubarão, SC: Copiart; [Erechim, RS]: UFFS, 2016.

Mini Currículos

Bruno Karasiaki Filene


Cientista Social pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Mestre em
Performances Culturais pelo Programa de Pós-graduação em Performances Culturais. Aluno Especial
de Doutorado no Programa de Pós-graduação em Cultura Visual. E-mail: brunofilene@discente.ufg.br

Alexandre Luna Lasprilla


Babalorixá, Bacharel em Administração e Direito e Pós-graduado em Perícia Judicial e Extrajudicial,
Pós-graduação Arbitragem, Conciliação e Mediação, MBA Ciências Forenses e Perícia Criminal, Pós-
graduação em Produção Cultural, Arte e Entretenimento, Pós-graduação Produção Audiovisual para
Web. E-mail: lasprilla.xango@gmail.com

1268
LAMBE-LAMBE EM GOIÂNIA: FOTOGRAFIAS QUE SE REVELAM NAS RUAS E
NOS RETRATOS

Ana Rita Vidica


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Link para o trabalho:


https://www.canva.com/design/DAFIq1_fKmU/PRm-qe-
cHOzKnz6B9EM03Q/view?utm_content=DAFIq1_fKmU&utm_campaign=designshare&utm_mediu
m=link2&utm_source=sharebutton

Resumo Expandido

A narrativa visual “Lambe-lambe em Goiânia: fotografias que se revelam nas ruas e


nos retratos” é formada por sete fotografias. A primeira fotografia localiza a fotografia
nas ruas da cidade de Goiânia. As cinco próximas fotografias apresentam retratos de
cinco fotógrafos de rua e suas histórias, ouvidas a partir do QR Code, a partir de uma
narração em áudio, criada por meio de entrevistas feitas na pesquisa de campo. Na
sétima fotografia, os retratos 3x4cm de cada um se encontra com outros retratos,
produzidos por alguns deles na década de 1990, dentro de um projeto coordenado
pelo artista plástico Siron Franco, custeado pela Prefeitura de Darci Acorsi.

Andando pelas ruas do centro de Goiânia nos deparamos com bancas de formato
retangular de cores azuis e amarelas ou só amarelas, verdes e brancas. No seu
interior há câmeras fotográficas, impressoras, espelhos, paletós, pentes, tesouras,
um tecido branco estendido no fundo, um cesto de lixo, dentre outros objetos. E, ao
seu lado, os profissionais, responsáveis pelo uso das câmeras e seus acessórios, que
dão vida a estes espaços, transformando as ruas em um local de trabalho e não apenas
de passagem. Mas, parada para se sentar, momentaneamente, e ter seu rosto
registrado nos retratos de documento, 3x4cm, 2x2cm ou 5x7cm, produzidos por eles.

Esses fotógrafos são conhecidos como os fotógrafos lambe-lambe ou ambulantes ou


fotógrafos de jardim. A origem destes fotógrafos remonta ao século XIX, na Europa,
por volta de 1853, após a descoberta do ferrótipo ou chapa seca, que possibilitou,
naquele momento, a instantaneidade da fotografia. A ferrotipia diminuiu os custos e

1269
facilitou o manuseio do procedimento fotográfico, em comparação com a
daguerreotipia e o colódio úmido. Kossoy (1980, p. 39) afirma que era utilizado
“basicamente pelos fotógrafos ambulantes”.

Em Goiânia, a tecnologia da ferrotipia não foi utilizada, mas o apelido de lambe-lambe


permaneceu, sendo que atividade se iniciou na cidade, no final dos anos 1960. Eles se
instalam no centro da cidade no parque Mutirama, entorno da praça cívica e avenidas
Goiás, Araguaia, Tocantins e rua 4 e em Campinas nas praças A e Joaquim Lúcio.

Alguns destes fotógrafos trabalham nas ruas da capital há mais de 30 anos e


utilizaram a câmera tipo “caixote”, uma câmera-laboratório, como o Zezinho, o
Carlos, o Sinomar (falecido), Guilherme (falecido), Odilon (falecido) e tantos outros
que já chegaram utilizando tecnologias diferentes, como o Marcos. Ele já começou
com as fotografias instantâneas da câmera Polaroid, que não necessitavam desse
processamento químico. E, posteriormente, ele e os demais fotógrafos como o Jonas,
a Nádia, que já fotografam com as câmeras digitais.

Esses fotógrafos estão nas ruas, mas seus nomes não aparecem na História da
Fotografia, ou mesmo a menção a eles pouco aparece ou quando aparece se liga ao
quantitativo ou a menção ao equipamento. A partir dessa constatação, propomos
conhecer esses fotógrafos e construir narrativas que se mesclam aos seus retratos e
aqueles produzidos por eles, gerando uma leitura do retrato que vá além do
documento, mas, que, como propõe Fabris (2004), alcança uma ficcionalização de si
e do outro.

1270
LAMBE-LAMBE IN GOIÂNIA: PHOTOGRAPHS REVEALED IN THE STREETS AND IN
THE PORTRAITS

Ana Rita Vidica


Universidade Federal de Goiás, Brasil

The visual narrative “Lambe-lambe em Goiânia: photographs that reveal themselves


in the streets and in portraits” consists of seven photographs. The first photograph
locates the photograph on the streets of the city of Goiânia. The next five
photographs present portraits of five street photographers and their stories, heard
from the QR Code, from an audio narration, created through interviews made in the
field research. In the seventh photograph, the 3x4cm portraits of each one meet with
other portraits, produced by some of them in the 1990s, within a project coordinated
by the plastic artist Siron Franco, funded by the City Hall of Darci Acorsi.

Walking through the streets of downtown Goiânia, we come across stalls with a
rectangular shape of blue and yellow colors or just yellow, green and white. Inside
there are cameras, printers, mirrors, jackets, combs, scissors, a white fabric spread
out at the bottom, a wastebasket, among other objects. And, by his side, the
professionals, responsible for the use of the cameras and their accessories, who give
life to these spaces, transforming the streets into a place of work and not just passing
through. But, stop to sit down, momentarily, and have your face registered in the
document portraits, 3x4cm, 2x2cm or 5x7cm, produced by them.

These photographers are known as the lambe-lambe or walking photographers or


garden photographers. The origin of these photographers dates back to the 19th
century, in Europe, around 1853, after the discovery of the tintype or dry plate, which
made photography possible at that time. Irontype lowered costs and facilitated the
handling of the photographic procedure, compared to daguerreotype and wet
collodion. Kossoy (1980, p. 39) states that it was used “basically by traveling
photographers”.

In Goiânia, iron-type technology was not used, but the nickname of lambe-lambe
remained, ande activity began in the city, in the late 1960’s. They are installed in the

1271
center of the city in the Mutirama Park, around the civic square and avenus Goiás,
Araguaia, Tocantins and 4th street and in Campinas in squares A and Joaquim Lúcio.

Some of these photographers have been working on the streets of the capital for over
30 years and used the “box” camera, a laboratory camera, such as Zezinho, Carlos,
Sinomar (deceased), Guilherme (deceased), Odilon (deceased) and so many others
that have already arrived using different technologies, such as Marcos. He already
started with Polaroid camera snapshots, which did not require this chemical
processing. And, later, he and the other photographers like Jonas, Nádia, who already
photograph with digital cameras.

These photographers are on the streets, but their names do not appear in the History
of Photography. Based on this observation, we propose to know these photographers
and build narratives that blend with their portraits and those produced by them,
generating a reading of the portrait that goes beyond the document, but which, as
Fabris (2004) proposes, achieves a fictionalization of each other.

Referências / References

ÁGUEDA. Abílio Afonso da. O fotógrafo lambe-lambe: guardião da memória e um cronista


visual de uma comunidade. Tese defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no
Centro de Ciências Sociais – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2008.
FABRIS, Annateresa (org.) Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo
Horizonte : Ed. UFMG, 2004.
KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil (século XIX). Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1980.
_______________. O fotógrafo ambulante – a história da fotografia nas praças de
São Paulo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 nov. 1974. Suplemento Literário, p. 5.

Mini Currículo

Ana Rita Vidica


Doutora em História pela Faculdade de História-UFG (2017) com doutorado sanduíche na École des
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris / PDSE-CAPES), Mestre em Cultura Visual pela

1272
Faculdade de Artes Visuais-UFG (2007) e Bacharel em Comunicação Social com habilitação em
Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Goiás (2003). Docente do Programa de Pós-
graduação em Comunicação (PPGCOM/UFG). E-mail: ana_rita_vidica@ufg.br

1273
FLORESCÊNCIA SUBTERRÂNEA:
CONCEPÇÃO DA IMAGEM NUMA VISÃO DIALÉTICA

Ceila Teresinha Bitencourt


Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

Link para o trabalho:


https://youtu.be/ZlWdGTu2FiY

Resumo Expandido

A pesquisa propõe engendrar ensaios visuais, partindo da definição de montagem de


modo a fazer emergir questões que abrangem as possibilidades de constituição das
imagens nestas propostas, e discorrer sobre o processo dessas construções bem
como fazer um convite para, através dos ensaios visuais, pensar o mundo permeado
por imagens. Independente de cada pensamento que é disponibilizado em direção às
imagens presentes no cotidiano dos indivíduos, cada uma destas imagens permite
perceber o seu próprio potencial, podendo possibilitar a quem se aproxime delas
uma visão dialética pessoal e significativa ao construir novas concepções, para seu
universo particular, a partir das imagens. Qual é o tema dessa viagem por entre as
imagens? "O jardim de Maria Antonieta e suas peculiaridades". Imagens são
entrelaçadas, partidas, fragmentadas até o ponto de torná-las uma trama de sentidos
abstratos a serem desvendados por quem entra em contato com tais imagens. Ao
tornar-se inquietante permitiu diferentes narrativas visuais no sentido de quebrar a
imagem em pedaços, rasgá-la, torcê-la na busca de desvendá-la num gesto de extrair
dela sua essência e, simultaneamente, provocá-la a desnudar-se a fim de mostrar sua
calmaria e seus conflitos ou contradições e, sobretudo, exibir suas distintas e muitas
faces, dependendo de cada contexto e de cada ponto de vista, em um fluxo constante.
Recorre-se aos teóricos Walter Benjamin (2009), Georges Didi-Huberman (1998),
Jorge Larrosa (2003, 2004), entre outros. Benjamim destaca que o que interessa não
são os enormes contrastes e, sim, os contrastes dialéticos, que geralmente se
confundem com nuances. A partir deles, entretanto, reconstrói sempre a vida de
novo. Esses contrastes dialéticos dizem respeito às imagens dialéticas que se
1274
realizam como um campo de tensão, apto a dinamizar a interação dos elementos
díspares em diversificadas camadas de significação. Já Didi-Huberman, entende,
acima de tudo, como dialética do ver (imagem crítica) a relação entre o olhante e o
olhado, que vai além da visualidade da imagem e esse enfrentamento em que o
próximo e o distante se experimentam dialeticamente caracteriza a dialética do ver.
E por falar em ensaio visual, Larrosa corrobora o texto quando discorre sobre o
ensaio que se liga à ideia de ser mais um modo de pensar e escrever do que um olhar
mais especializado. Ensaiar é, assim, experimentar uma forma de viver e de se
posicionar dialeticamente. Oportunizar conexões, experimentações, distintos
sentidos para essa caminhada, na qual a imagem assume o papel central, permite
traçar novos e contínuos percursos e, assim, (re)inventar-se todos os dias a partir de
tudo que é atravessado por imagens.

Palavras-chave: Imagem dialética; Imagem Crítica; Dialética do ver; Ensaio Visual.

UNDERGROUND FLOWERING: CONCEPTION OF THE IMAGE IN A DIALECTIC

Ceila Teresinha Bitencourt


Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

The research proposes to engender visual essays, starting from the definition of
montage in order to bring out questions that cover the possibilities of constitution
of the images in these proposals, and to discuss the process of these constructions
as well as to invite, through the visual essays, to think about the world permeated by
images. Regardless of each thought that is made available towards the images
present in the daily lives of individuals, each of these images allows them to perceive
their own potential, allowing those who approach them to have a personal and
significant dialectical vision when building new conceptions for their particular

1275
universe. , from the images. What is the theme of this journey through the images?
"Marie Antoinette's garden and its peculiarities". Images are intertwined, broken,
fragmented to the point of turning them into a web of abstract meanings to be
unveiled by those who come into contact with such images. By becoming unsettling,
it allowed different visual narratives in the sense of breaking the image into pieces,
tearing it, twisting it in the search to unveil it in a gesture of extracting its essence
and, simultaneously, provoking it to bare itself to in order to show its calm and its
conflicts or contradictions and, above all, to show its different and many faces,
depending on each context and each point of view, in a constant flow. We turn to
theorists Walter Benjamin (2009), Georges Didi-Huberman (1998), Jorge Larrosa
(2003, 2004), among others. Benjamin emphasizes that what matters are not the huge
contrasts, but the dialectical contrasts, which are usually confused with nuances.
From them, however, he always rebuilds his life anew. These dialectical contrasts
concern the dialectical images that are realized as a field of tension, able to dynamize
the interaction of disparate elements in diversified layers of meaning. Didi-
Huberman, on the other hand, understands, above all, as a dialectic of seeing (critical
image) the relationship between the looker and the looked at, which goes beyond the
visuality of the image and this confrontation in which the near and the distant are
dialectically experienced characterizes the dialectic of seeing. And speaking of visual
essays, Larrosa corroborates the text when he talks about the essay that is linked to
the idea of being more a way of thinking and writing than a more specialized look.
Rehearsing is, therefore, experiencing a way of living and positioning oneself
dialectically. Providing opportunities for connections, experimentation, different
meanings for this journey, in which the image assumes the central role, allows us to
trace new and continuous paths and, thus, (re)invent ourselves every day from
everything that is traversed by images.

Keywords: Dialectical Image; Critical Image; Dialectic of Seeing; Visual Essay.

1276
Referências / References

BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução e coordenação de Willy Bolle. São Paulo:


Imprensa Oficial do Estado/UFMG, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Editora 34, 1998.
LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação & Realidade, v. 28, n. 2, jul./dez.
2003, p. 101-115.
______. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na
vida. Educação & Realidade, v. 29, n. 1, jan./jun. 2004, p. 27-43.

Mini Currículo

Ceila Teresinha Bitencourt


Doutoranda (2020) e mestre em Artes Visuais na linha Arte e Tecnologia (2017) pelo Programa de Pós-
graduação em Artes Visuais (PPGART - UFSM). Possui graduação em Artes Visuais (bacharelado) e
graduação em Artes Visuais (licenciatura plena) pela Universidade Federal de Santa Maria (2002).
Membro do Grupo de Pesquisa Arte e Design/CNPq da Universidade Federal de Santa Maria,
destacando as relações arte, design e tecnologia. E-mail: ceilabitencourt1972@gmail.com

1277
DREAMSCOPE: ARQUITETURA PRIMÁRIA

Kassius Brunno Souza


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1f82euCy0vsNtBGo6_5DX_B0dWHOWf8FO

Resumo Expandido

A infância certamente é maior que a própria existência. Nossa fase de meninice


mantém-se viva e, de forma poética, proveitosa quando vamos para o mundo dos
devaneios, o mundo dos sonhos. O afeto que sentimos pela nossa primeira casa, por
exemplo, a casa da infância, excede a realidade e torna o sonho mais intenso que
nossas próprias convicções. As imagens que nos vem à memória da infância vivida,
das brincadeiras de pega-pega, corre-corre e esconde-esconde, são imagens criadas
enquanto crianças, lembranças que surgiram no campo do devaneio, e são
manifestações de uma infância permanente. Para Bachelard (2008, p.35), “por essa
infância permanente, preservamos a poesia do passado”. Rememorar essas
lembranças é poder revisitar uma casa que, independente de sua existência física no
mundo real, se mantêm intacta em nossa memória, cercada de fábulas, de contos,
histórias e fantasias, que somente a criança poética existente no nosso devaneio
poderá reviver. Parte desse devaneio pode ser representado e materializado através
das artes, seja no campo das plásticas, da poesia, da teatralidade etc. Através de
tecnologias e de diversas mídias que encontramos no mundo das práticas artísticas,
podemos construir narrativas auto/biográficas e experienciar certas auto/ficções
que remetem àquela infância permanente, presente na memória. “Evocando as
lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros
historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse
mais que a poesia perdida.” (BACHELARD, 2008, p.25). A arte neural é uma dessas
tecnologias que se utilizam de Inteligência Artificial para construir novas imagens a
partir de outras imagens. As redes neurais, de onde saem a arte neural, são estruturas
computacionais e matemáticas, que possibilitam que um computador ‘aprenda’ e
1278
repita padrões – “essas redes são baseadas em modelos de aprendizagem para
inteligência artificial, inspiradas em formas biológicas neurológicas” (FRANCO, 2016),
inspiradas no comportamento do cérebro humano. Utilizando-se da plataforma
Dreamscope, uma das ferramentas que possibilitam a criação de arte, algumas
imagens da infância foram geradas, mesclando as memórias das casas vividas
construídas em software 3D com as fotografias do álbum de família. Enfatizando a
não linearidade das lembranças, essa arquitetura primária, arquitetura da infância,
foi pensada de forma que não siga uma norma temporal e espacial, possibilitando
uma visualidade lúdica e fabulista. A narrativa apresentada mostra a fusão do corpo
com a arquitetura, do espaço com a infância, da memória com a imaginação. As
imagens geradas a partir dessa Inteligência Artificial são possibilidades, talvez,
infinitas de pensamentos, de memórias, de lembranças, de devaneios. As
experimentações são intuitivas e nos levam para o papel de criador, não apenas como
artistas, mas também como criadores de sonhos, de memórias, de fábulas. Não
apensa como ato saudosista, mas como ato artístico e poético.

Palavras-chave: Infância, Arquitetura, Arte neural, Fábula.

DREAMSCOPE: PRIMARY ARCHITECTURE

Kassius Brunno Souza


Universidade Federal de Goiás, Brasil

Extended Abstract

Childhood is certainly bigger than existence itself. Our childhood phase is kept alive
and, in a poetic way, fruitful when we go to the world of daydreams, the world of
dreams. The affection we feel for our first home, for example, the childhood home,
exceeds reality and makes the dream more intense than our own convictions. The
images that come to the memory of the childhood lived, of the plays like ‘pega-pega’,

1279
‘corre-corre’ and ‘esconde-esconde’, all of them are images created as children,
memories that emerged in field of daydream, and are manifestations of a permanent
childhood. For Bachelard (2014, p.37), “through this permanent childhood, we
maintain the poetry of the past”. Remembering these memories is being able to
revisit a house that, regardless of its physical existence in the real world, remains
intact in our memory, surrounded by fables, tales, stories, and fantasies, which only
the poetic child existing in our daydream will be able to relive. Part of this reverie
can be represented and materialized through the arts, whether in the field of
painting, poetry, theatricality, etc. Through technologies and various media that we
find in the world of artistic practices, we can build auto/biographical narratives and
experience certain auto/fictions that refer to that permanent childhood, present in
memory. “Memories of the outside world will never have the same tonality as those
of home and, by recalling these memories, we add to our store of dreams; we are
never real historians, but always near poets, and our emotion is perhaps nothing but
an expression of a poetry that was lost.” (BACHELARD, 2014, p.28). Neural art is one
of those technologies that use Artificial Intelligence to build new images from other
images. Neural networks, from which neural art comes from, are computational and
mathematical structures that allow a computer to ‘learn’ and repeat patterns – “the
networks are based on learning models for artificial intelligence, inspired by
neurological forms” (FRANCO, 2016), inspired by the behavior of the human brain.
Using the Dreamscope platform, one of the tools that enable the creation of neural
art, some childhood images were generated, merging the memories of the lived
houses built in 3D software with the photographs from the family album.
Emphasizing the non-linearity of memories, this primary architecture, childhood
architecture, was designed in a way that does not follow a temporal and spatial norm,
allowing for a playful and fabulist visuality. The narrative presented shows the fusion
of the body with architecture, space with childhood, memory with imagination. The
images generated from this Artificial Intelligence are perhaps infinite possibilities of
thoughts, memories, daydreams. The experiments are intuitive and lead us to the
role of creator, not only as artists, but also as creators of dreams, tales e fables. It is
not just a nostalgic act, but an artistic and poetic act.

Keywords: Childhood, Architecture, Neural Art, Fable.

1280
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BACHELARD, Gaston. The poetics of space. New York: Penguin Books, 2014.
FRANCO, Edgar Silveira. Posthuman Tantra: A rede neural “Deep Dream” e suas visões pós-
humanas de uma performance. A arte do Ciberpajé Edgar Franco. Postado em: 03 de
novembro de 2016. Disponível em: https://ciberpaje.blogspot.com/2016/11/posthuman-tantra-
rede-neural-deep-dream.html. Acesso em: 12 de agosto de 2022.
Site da Arte Neural: https://dreamscopeapp.com/

Mini Currículo

Kassius Brunno Souza


Mestrando Bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (FAV/UFG),
estudante de Artes Visuais – Bacharelado (FAV/UFG) e possui graduação em Arquitetura e Urbanismo
(PUC/2015). Integrante do NuPAA (Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas) desde 2020 e foi
artista-residente da Escola de Artes Visuais Octo Marques (Secult Goiás) em 2020-2021. E-mail:
kassiusbrunno@gmail.com

1281
TAUMATRÓPIOS E DIORAMAS

UM-DOIS-VÁRIOS, VÁRIOS-DOIS-UM

Leonardo Abreu Reis


UFBA, Brasil

Link para o trabalho:


https://youtu.be/EKUx2mxWTLY

Taumotrópios e Dioramas são exemplos de dispositivos óticos, entre tantos outros


que se espalharam pela Europa do século XIX. Para os historiadores do cinema, todas
essas tecnologias compõem etapas para o desenvolvimento do cinematógrafo, e
costumam ser nomeados de pré-cinemas. Em outro extremo dessa linha do tempo,
a ultrapassagem história do cinema - compreendido por suas formas dominantes
durante o século XX - tem recebido o nome de pós-cinemas, terreno de explorações
estéticas e tecnológicas. Como confirma o saudoso professor Arlindo Machado nas
preliminares do seu livro Pré-Cinema e Pós-cinema, diversos autores “vislumbraram
também traços de continuidade ou de coincidência, malgrado a diversidade dos
contextos históricos, entre as formas pré e pós-cinematográficas” (MACHADO, 2002:
9-10). Consideramos, por isso, que no repertório das técnicas da imagem pré-
cinematográfica temos um manancial importante para o desenvolvimento de
processos criativos pós-cinematográficos.

A narrativa visual Taumatrópios e Dioramas, consiste em um exercício coletivo


envolvendo estudantes do Bacharelado Interdisciplinar em Artes e da Área de
Concentração em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
como parte da disciplina de Processos Tecnológicos Criativos do Cinema e do
Audiovisual (2021.2). Essa disciplina ocorreu no contexto da pandemia do COVID-19,
e diante do isolamento social, enfrentou o desafio de realizar um movimento que
partisse do indivíduo para chegar ao coletivo, ou seja, saísse da unidade da identidade
individual para chegar à unidade de uma identidade coletiva, ainda que no simulacro
de uma obra realizada em ambiente virtual. O primeiro passo adotado foi arranjar os
indivíduos em duplas que pudessem funcionar como os dois lados de um

1282
taumatrópio. Em todas as duplas, cada um dos integrantes deveria produzir uma
fotografia, estabelecendo um diálogo por imagens, seja por contraste ou por
afinidade. De posse dessas imagens, cada membro da dupla teria que combiná-las de
duas formas, uma inspirada pelo taumatrópio e outra inspirada pelo diorama, para
isso foi sugerido o uso do app de edição de vídeos Kinemaster, em seu formato
gratuito.

Objetivamente, os taumatrópios são uma sucessão rápida de duas imagens que


parecem se fundir sem perder sua identidade individual. Já os Dioramas,
caracterizam-se pela fusão gradual entre uma e outra fotografia, produzindo uma
mistura de imagens consistente durante a maior parte dessa transição. Com isso,
temos duas formas diferentes de unir as imagens, aquela que se dá exclusivamente
na percepção, através dos cortes rápidos entre uma e outra, e aquela que se dá no
processamento da imagem pelo programa de edição, através dos efeitos de transição
existentes.

Depois que cada um dos estudantes realizou sua versão do taumatrópio e do


diorama, com as duas fotos da dupla, gerando 4 vídeos ao todo, um dos integrantes
da dupla uniu esses quatro vídeos em um único vídeo de 30 segundos, explorando os
melhores momentos de cada uma das edições individuais numa construção rítmica
envolvendo cortes, transições e superposição de camadas. Esse trabalho foi enviado
para o professor, que uniu os trabalhos de todas as duplas em um único vídeo de 9
minutos. Para reforçar a sensação de unidade no resultado final foi escolhida a versão
da música instrumental Carlos, Lúcia, Chico e Thiago de Milton Nascimento, gravada
pelo professor Tiganá Santana (IHAC-UFBA) em conjunto com os músicos Sebastian
Notini e Ldson Galter.

1283
THAUMATROPES AND DIORAMAS

ONE-TWO-SEVERAL, MANY-TWO-ONE

Leonardo Abreu Reis


UFBA, Brasil

Taumotropes and Dioramas are examples of optical devices, among many others that
spread throughout 19th century Europe. For cinema historians, all these technologies
make up stages for the development of the cinematograph, and are usually referred
to as pre-cinema. At the other end of this timeline, the overcoming history of cinema
- understood by its dominant forms during the 20th century - has been named post-
cinemas, a terrain of aesthetic and technological explorations. As confirmed by the
late professor Arlindo Machado in the preliminaries of his book Pre-cinema and Post-
cinema, several authors "have also glimpsed traces of continuity or coincidence,
despite the diversity of historical contexts, between pre- and post-cinematographic
forms" (MACHADO, 2002: 9-10). We consider, therefore, that in the repertoire of pre-
cinematographic image techniques we have an important source for the
development of post-cinematographic creative processes.

The visual narrative Taumatropes and Dioramas, consists of a collective exercise


involving students from the Interdisciplinary Bachelor of Arts and the Concentration
Area in Cinema and Audiovisual from the Federal University of Bahia (UFBA), as part
of the discipline of Creative Technological Processes of Cinema and Audiovisual
(2021.2). This course took place in the context of the COVID-19 pandemic, and in the
face of social isolation, faced the challenge of making a movement from the individual
to the collective, that is, from the unity of individual identity to the unity of a
collective identity, even if in the simulacrum of a work performed in a virtual
environment. The first step adopted was to arrange the individuals in pairs that could
function as the two sides of a thaumatrope. In every pair, each of the members should
produce a photograph, establishing a dialogue through images, either by contrast or
affinity. In possession of these images, each member of the duo would have to

1284
combine them in two ways, one inspired by the thaumatrope and the other inspired
by the diorama, for which the use of the video editing app Kinemaster, in its free
format, was suggested.

Objectively, thaumaturgies are a rapid succession of two images that seem to merge
without losing their individual identity. Dioramas, on the other hand, are
characterized by a gradual fusion between one photograph and another, producing
a consistent mixture of images during most of this transition. With this, we have two
different ways of uniting the images, one that occurs exclusively in perception,
through the quick cuts between one and the other, and one that occurs in the image
processing by the editing program, through the existing transition effects.

After each of the students made their version of the thaumatrope and diorama, with
the two photos of the duo, generating 4 videos in all, one of the members of the duo
merged these four videos into a single 30-second video, exploring the best moments
of each of the individual edits in a rhythmic construction involving cuts, transitions
and superimposition of layers. This work was sent to the teacher, who merged the
work of all the pairs into a single 9-minute video. To reinforce the feeling of unity in
the final result, a version of the instrumental song Carlos, Lúcia, Chico e Thiago by
Milton Nascimento, recorded by professor Tiganá Santana (IHAC-UFBA) together
with musicians Sebastian Notini and Ldson Galter, was chosen.

Referências / References

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, [1997] 2002.

Mini Currículo

Leonardo Abreu Reis


Professor da área de fotografia do curso de cinema da FACOM/UFBA. Doutor em letras pela PUC/RJ.
Mestre em memória Social pela UNIRIO e bacharel em cinema e audiovisual pela UFF. E-mail:
leonardoreisfacom@gmail.com

1285
ANÁLISE DO PAINEL "CORPO DEITADO" A PARTIR DAS IMAGENS DOS LIVROS
INFANTIS BRASILEIROS PREMIADOS PELO PRÊMIO JABUTI, DE 1959 A 2021

Isadora Cunha Caldas


Universidade Estadual de Santa Catarina, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1RSV0QQQvVTQm5_RLa7UgHhOR0CRq-FV6?usp=sharing

Resumo Expandido

O estudo apresentado é a análise do painel corpo deitado, feito pela autora (2022), a
partir do levantamento das imagens dos livros infantis brasileiros premiados em
literatura infantil e ilustração pelo reconhecido internacionalmente Prêmio Jabuti,
desde a sua iniciação em 1959 e inspirado nos painéis de Mnemósine, de Aby Warburg.
É parte de sua pesquisa de mestrado em História da Arte, onde dialoga sobre a
ilustração como imagem, fazendo uso das teorias e entendimento do que se é a
imagem para o teórico Didi Huberman (2007). Foram levantadas para esse e os outros
painéis que compõem a pesquisa mais de 700 imagens dos livros estudados. A
apresentação do painel, em sua maioria, demonstra dois perfis do corpo deitado:
Aquele corpo angustiado, triste, doente e morto - repousando em volume retangular,
como a cama e o caixão; enquanto o corpo deitado fora desse volume, livre ou que se
deita em outros tipos de formas, parece em suma mais confortável, protegido e
acalentado. Essa percepção faz relação ao evitamento do vazio, “esvaziamento que
aí, diante de mim, diz respeito ao (...) corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua
vida” e do “esvaziado do seu poder de levantar os olhos pra mim.” (1992, p. 37).
Existem painéis na pesquisa, a qual esse recorte faz parte, específicos como os de
tristeza e morte, mas a ideia do corpo ora em descanso, ora morto, é a chave para a
discussão desse painel que por si é dotado de dualidade, da crença e da tautologia,
do além e do aquém, para quando se fala sobre o medo do vazio. (1992, p.48). O objetivo
é analisar as imagens presentes no painel, colocá-las em confronto com termos
citados neste resumo e revelar esse lugar em que a imagem, para o repertório lúdico

1286
infantil, ao mesmo tempo que ilustra os sonhos e o acalento do deitar-se,
inesperadamente pode possuir alusão ao medo, ao leito doente, a dor e a morte.
Como resultado a apresentação será parte do estudo da ilustração como imagem da
autora, dentro da História da Arte, a partir de consagrados livros infantis brasileiros
em diálogo com termos do teórico contemporâneo em imagem, historiador da arte
e filósofo Didi Huberman.

ANALYSIS OF THE "LYING BODIES" PANEL OF IMAGES FROM BRAZILIAN


CHILDREN'S BOOKS AWARDED BY THE JABUTI PRIZE, FROM 1959 TO 2021

Isadora Cunha Caldas


Universidade Estadual de Santa Catarina, Brasil

The study presented is the analysis of the lying body panel, made by the author
(2022), from the survey of images of Brazilian children's books awarded in children's
literature and illustration by the internationally recognized Jabuti Award, since its
inception in 1959 and inspired by the panels of Mnemosyne, by Aby Warburg. It is
part of his master's research in Art History, where he dialogues with illustration as
image, making use of the theories and understanding of what the image is for the
theorist Didi Huberman (2007). For this and the other panels that make up the
research, more than 700 images from the books studied were collected. The
presentation of the panel, for the most part, shows two profiles of the body lying
down: that anguished, sad, sick and dead body - resting in a rectangular volume, like
the bed and the coffin; while the body lying outside this volume, free or lying down
in other types of forms, seems, in short, more comfortable, protected and cherished.
This perception relates to the avoidance of emptiness, "emptiness that there, before
me, concerns the (...) body similar to mine, emptied of its life" and the "emptied of its
1287
power to raise its eyes to me." (1992, p. 37). There are specific panels in the research,
of which this section is part, such as those of sadness and death, but the idea of the
body now at rest, now dead, is the key to the discussion of this panel, which in itself
is endowed with duality, of belief and tautology, the beyond and the hereafter, for
when we talk about the fear of emptiness. (1992, p.48). The objective is to analyze the
images present in the panel, compare them with the terms mentioned in this
summary, and reveal this place where the image, for the ludic repertoire of children,
at the same time that it illustrates the dreams and the warmth of lying down, can
unexpectedly allude to fear, the sickbed, pain, and death. As a result, the presentation
will be part of the author's study of illustration as image, within the History of Art,
from consecrated Brazilian children's books in dialogue with terms of the
contemporary image theorist, art historian and philosopher Didi Huberman.

Referências / References

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.


DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Paris: Les Éditions de Minuit, 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La Imagen Mariposa. Barcelona: Mudito & Co., 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges O que vemos, o que nos olha. Paris: Les Éditions de Minuit,
1992.
DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-
graduação em Artes da EBA/UFMG, Minas Gerais, v.2, n.4, p. 206 – 219, nov. 30 de
novembro de 2012. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/15454. Acesso em: 5 set.
2022.
HUNT, Peter [1991]. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LINDEN, Sophie van Der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
PARREIRAS, Ninfa. O brinquedo na literatura infantil: uma leitura psicanalítica. São Paulo:
Biruta, 2008.
POWERS, Alan. Era uma vez uma capa. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
SCOTT, Carole; NIKOLAJEVA, Maria. Livro Ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.

1288
Mini Currículo

Isadora Cunha Caldas


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa
Catarina - Udesc, na linha de Teoria e História das Artes Visuais sob orientação da professora Dra
Luana Maribele Wedekin. Pesquisadora em ilustração infantil brasileira, lustradora e graduada em
Design Gráfico pela Universidade Federal de Goiás - UFG (2018). E-mail: isadoracaldass@gmail.com

1289
ATENÇÃO: ISTO É UMA INVASÃO

– MANIFESTOS SOBRE A HISTÓRIA DA ARTE

Mariana Barca
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Link para o trabalho:


https://atencaoistoeumainvasao.cargo.site/

Resumo Expandido

Atenção: Isto é uma Invasão – Manifestos sobre A História da Arte é um manifesto


coletivo de mulheres cis, trans, travestis e pessoas não binárias sobre o excludente
catálogo de Ernst Gombrich intitulado A História da Arte (1950). A problemática
levantada é sobre a não inclusão de artistas mulheres em todo o seu compilado,
exceto por Käthe Kollwitz, inserida apenas 16 anos depois do lançamento. Atento,
parafraseando Adichie, ao perigo de uma história única (ADICHIE, 2009) e o
estrondoso desequilíbrio coletivo que causa.

Sendo este um dos catálogos de Arte mais circulados em todo o mundo (COSTA,
2017), analisamos como as artes visuais implicam e replicam comportamentos sociais
– a misoginia, a diferença salarial absurda, a violência: as disparidades vividas pelos
corpos dissidentes repercutem em causas gravíssimas submetendo-os às mais
diversas maneiras de desumanidades.

Pesquiso, portanto, como o conteúdo abordado na academia, se não acompanhado


de olhar crítico feminista e antirracista, pode corroborar para a manutenção da
soberania patriarcal que oprime, domina e desvaloriza vida e trabalho de corpos
outros.

Se o mundo se faz e refaz a partir de suas representações e, como as que mais se


destacam são regidas pelo cálculo colonialista da supremacia branca,
heteronormativa e cisgênere, o que resulta é a naturalização e reiteração deste
aparato ideológico sobre grande parte dos dispositivos imagéticos e textuais (VIEIRA,

1290
2022). Em outras palavras, torna-se comum em nossa cultura visual e literária a
narrativa feita sob este olhar único, tornando-se uma verdade inquestionável. Tais
fontes agem, sobremaneira, de modo inconsciente, infiltrando pensamentos
coloniais e desenvolvendo o que chamamos de pensamentos estruturais de um
inconsciente coletivo que afirma como realidade uma visão branca, eurocentrada,
patriarcal, hétero e cisnormativa. Esta História não é real.

Como defende Mayayo, é preciso desconstruir radicalmente as bases teóricas e


metodológicas sobre as quais se assenta a disciplina de arte e o discurso histórico-
artístico tradicional (MAYAYO, 2003 apud. LOPONTE, 2015). O imaginário artístico
ocidental, em geral, hipervisualiza a mulher como objeto de representação
masculina, ao mesmo tempo a excluindo da criação artística (LOPONTE, 2008, p.153).
Tal representação é associada à objetificação e abuso vivido pelos próprios corpos
femininos. Também a falta de reconhecimento de trabalhos de mulheres – não só
artistas –, assim como a deslegitimação de seus cargos e conquistas (ARGOLO;
RUBIM, 2018) tem relação com a maneira como são representadas – ou não
representadas – nas fontes de pesquisa.

Com este Manifesto coletivo, proponho a desconstrução desta História de homens


brancos, redistribuindo este espaço simbólico para mulheres cis, trans, travestis e
pessoas não binárias. Reivindicamos, em coletivo, ocupar esta lacuna apagada da
História. Como já alertava Linda Nochlin em 1971, não é realista esperar que a
soberania irá se abrir para a igualdade de direitos e possibilidades, e é por essa razão
que invadimos esta História a fim de abrir caminho para outras mulheres artistas
reescreverem suas próprias trajetórias.

Para revolver o caminho da História, é preciso redistribuir espaço de maneira


igualitária e justa. Do mercado, do trabalho, de dentro dos livros, do Congresso e
tantos espaços de poder e construção de saber. Fazer, escrever, criar e colocar no
mundo. Dialogar com outros corpos, espaços e tempos. Ouvir geral. Valorizar outras
formas. Adentrar ao que colocam como legítimo. Modificar o que chamam de
História. Atenção: Isto é uma invasão.

Atenção é uma produção artística, curatorial e crítica feita por mulheres. Da


investigação das aproximações entre os trabalhos apresentados, emergem
pensamentos estruturais historicamente carregados ao nosso tempo e que, além do

1291
ocultamento nas Artes Visuais, implicam em outras problemáticas (des)humanas. Em
inspiração de Aby Warburg, as obras das artistas são apresentadas em formato de
painel em site interativo, onde se encontra também um link de redirecionamento
para o texto sobre o qual fala este resumo expandido.

ATTENTION: THIS IS AN INVASION – MANIFESTOS ON ART HISTORY

Mariana Barca
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Attention: This is an Invasion - Manifestos on The History of Art is a collective


manifesto by cis, trans, transvestite, and non-binary women about Ernst Gombrich's
exclusionary catalog entitled The History of Art (1950). The issue raised is about the
non-inclusion of women artists in his entire compilation, except for Käthe Kollwitz,
inserted only 16 years after the release. Alert, to paraphrase Adichie, to the danger of
a single story (ADICHIE, 2009) and the resounding collective imbalance it causes.

As this is one of the most widely circulated Art catalogs worldwide (COSTA, 2017),
here is developed the reflection of how the visual arts imply and replicate social
behaviors - misogyny, absurd wage gap, violence: the disparities experienced by
dissident bodies resonate in very serious causes subjecting them to the most diverse
forms of inhumanities.

I research, therefore, how the content addressed in the academy, if not accompanied
by a critical feminist and antiracist look, can corroborate to the maintenance of
patriarchal sovereignty that oppresses, dominates, and devalues life and work of
other bodies.

If the world is made and remade from its representations and, as the most prominent
ones are governed by the colonialist calculation of white, heteronormative and
cisgender supremacy, what results is the naturalization and reiteration of this
1292
ideological apparatus on much of the imagery and textual devices (VIEIRA, 2022). In
other words, it becomes common in our visual and literary culture the narrative
made under this unique look, becoming an unquestionable truth. Such sources act,
above all, in an unconscious way, infiltrating colonial thoughts and developing what
we call structural thoughts of a collective unconscious that affirms as reality a white,
Eurocentric, patriarchal, hetero and cisnormative vision. This is not real history and
it is no longer swallowable.

As Mayayo argues, it is necessary to radically deconstruct the theoretical and


methodological bases on which the discipline of art and the traditional art-historical
discourse are based (MAYAYO, 2003 apud. LOPONTE, 2015). The Western artistic
imaginary, in general, hypervisualizes the woman as an object of masculine
representation, at the same time excluding her from artistic creation" (LOPONTE,
2008, p.153). Such representation is associated with the objectification and abuse
experienced by female bodies themselves. Also the lack of recognition of women's
work - not only artists - as well as the delegitimization of their positions and
achievements (ARGOLO; RUBIM, 2018) is related to the way they are represented -
or not represented - in the research sources.

With this collective Manifesto, I propose the deconstruction of this white men's
History, redistributing this symbolic space to cis women, trans, transvestites and
non-binary people. We claim, as a collective, to occupy this gap erased from History.
As Linda Nochlin warned in 1971, it is not realistic to expect that sovereignty will open
up to equal rights and possibilities, and this is why we invade this History in order to
open the way for other women artists to rewrite their own trajectories.

To revolve the path of history, it is necessary to redistribute space in an egalitarian


and fair way. From the market, from work, from inside the books, from the Congress
and so many other spaces of power and construction of knowledge. To make, write,
create and put into the world. To dialogue with other bodies, spaces, and times. To
listen in general. To value other forms. To enter into what is considered legitimate.
Modify what they call History. Attention: This is an invasion.

Attention is an artistic, curatorial and critical production by women. From the


investigation of the approximations between the works presented, structural
thoughts historically charged to our time emerge and that, beyond the concealment

1293
in the Visual Arts, imply other (un)human problems. Inspired by Aby Warburg, the
artists' works are presented in a panel format on an interactive website, where there
is also a redirect link to the text about which this expanded abstract is based.

Referências / References

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
ARGOLO, Fernanda; RUBIM, Linda. (org). O Golpe na perspectiva de Gênero. Salvador:
Edufba, 2018.
COSTA, Carlos. Rumos 2015-2016: A HISTÓRIA DA _RTE. Itaú Cultural, 26/06/17.
Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/rumos-2015-2016-a-historia-da-rte>
Acesso em: 17/03/22
LOPONTE, Luciana Gruppelli. Artes visuais, feminismos e educação no Brasil: a
invisibilidade de um discurso. Universitas humanística no.79 enero-junio de 2015. pp: 143-
163. Bogotá – Colombia.
LOPONTE, Luciana Gruppelli. Mulheres e artes visuais no Brasil: caminhos, veredas e
descontinuidades. Visualidades, 6, 13-31,2008.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? 1971. São Paulo: Edições
Aurora, 2016.
POLLOCK, Griselda. Feminist interventions in Art Histories. In: Vision and Difference -
Feminism, femininity and Histories of Art, Methuen, 1987.
VIEIRA, Marco Antônio. Macumbarias travestis em Castiel Vitorino Brasileiro ou a
implosão do teatro da representação: corpo, gênero, negritude. Trans/Form/Ação,
Marília, v. 45, p. 265-290, 2022, Edição Especial.

Mini Currículo

Mariana Barca
Artista visual (UFU Licenciatura e Bacharelado) com pesquisa feminista orientada por Clarissa Borges.
Monitora cursos de Fábia Schnoor na EAV Parque Lage desde 2021. Coautora do @TATO.grupo,
coletivo de produção de residências artísticas e eventos culturais. Proponente do coletivo Atenção:
isto é uma Invasão. Exposições em Uberlândia, São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. Arte-educadora
autônoma desde 2020. E-mail: marianarbarca@gmail.com

1294
RTU: IMAGENS DE MENSTRUAÇÃO

Aline de Macedo Manhães

UERJ, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/file/d/1jGM5mDwQ1vZ2HLS7lKNmhkShQjtRy5wh/view?usp=sharing

Resumo Expandido

Na sociedade que mais produz imagens de toda a história, pouco se vê sobre as


imagens presentes todos os meses na vida das mulheres, as imagens de
menstruação. Este trabalho tem como objetivo discutir os possíveis motivos para
essa ausência, bem como encontrar maneiras de fazer circular imagens que
ocupem o lugar desta lacuna. Tendo como base de pesquisa a histórias das
mulheres, com Silvia Federici, a ideia de resistência em Maria Lugones e o conceito
de visualidade pensado por Mirzoeff, será feita uma análise de como os assuntos
relacionados às mulheres e seus corpos foram tratados ao longo do tempo e como
este histórico trouxe consequências de invisibilidade e subalternização ao feminino.
Com o compromisso de colaborar para a circulação das imagens de menstruação,
será apresentado o trabalho fotográfico que desenvolvo sobre a temática. Busca-se
pensar como a prática artística pode colaborar para tornar visível o que foi
construído como invisível. O objetivo é que a pesquisa se movimente num sentido
de valorização estética, política e poética do ato de menstruar.

Algumas perguntas-guias mobilizam a pesquisa sobre imagens de menstruação que


desenvolvo no mestrado em Artes da UERJ: 1) Por que o feminino foi tão rechaçado
na história da sociedade, ou seja, por que esse ódio contra as mulheres? 2) Como as
narrativas sobre mulheres colaboraram para a construção do ódio ao feminino? 3)
Como a imagem pode, no campo de batalha, colaborar com a reconciliação entre as
mulheres e o mundo? Aqui neste trabalho me deterei sobre a terceira indagação.
Para entender a ausência de imagens menstruais, foi necessário pesquisar a história
das mulheres, ao longo do tempo, contada pela igreja católica, pela ciência, pelo

1295
direito e pela mídia. Destaco os estudos da filósofa italiana Silvia Federici, que
aponta os séculos XV, XVI e XVII como o período em que houve a demarcação dos
papéis sociais orientados pela diferenciação sexual e explica por que a Igreja, o
clero e os senhores feudais espalharam narrativas para difamar as mulheres e tirar-
lhes a sua força de luta e dignidade no episódio que ficou conhecido como Caça às
Bruxas. Esse movimento aconteceu na Europa, mas a ideia criada ali se alastra por
todo o ocidente na colonização das Américas. A pesquisadora argentina Maria
Lugones destaca que durante a colonização foi criada a maior dicotomia da
Modernidade: entre humanos x não humanos, de onde sairia todas as outras, dando
permissão para “uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da
reprodução e terror sistemático” (2014, p.938).

O que as autoras dizem é que até hoje é preciso resistir. Para Lugones, resistir se dá
através da equação entre formação do sujeito e sua subjetividade ativa, que é a
noção de agenciamento necessária para que haja deslocamento e, portanto,
resistência. Neste trabalho, destaco a criação como forma de resistência e a
experiência sensível da arte como ferramenta para criar fendas e interferências na
superfície do mundo. Visualidade é como uma disputa de poder, onde o que está
em visibilidade provavelmente só chegou ali porque se impôs para isso (MIRZOEFF,
1999, pp.1-2). É preciso entrar no campo de batalha para apresentar outras imagens,
“transformar as ausências em presenças” (BOAVENTURA, 2002, p.246). Retomar,
então, este sangue como o símbolo da luta pela desconstrução dos valores erguidos
sobre os pilares do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo.

1296
RTU: MENSTRUATION IMAGES

Aline de Macedo Manhães

UERJ, Brasil

In the society that produces the majority quantities of images of all history, almost
nothing is seen about the images that are present every month in women´s lives,
the images of menstruation. This work aims to discuss the possible reasons for this
absence, as well as to find ways to circulate images that take the place of this gap.
Based on the research of women's stories, with Silvia Federici, the ideia of
resistance in Maria Lugones and the concept of visuality thought by Mirzoeff, an
analysis will be made of how issues related to women and their bodies have been
treated over time and how this history brought consequences of invisibility and
subalternization to women. With the commitment to collaborate for the circulation
of menstruation, the photographic work that I´ve been developing will be
presented. It seeks to think about how artistic practice can collaborate to make
visible what was constructed as invisible. The objective is that the research helps to
move towards an aesthetic, political and poetic appreciation of the act of
menstruating.

Some guiding questions emerged mobilize the research on menstruation images


that I develop in the Master's in Arts at the Universidade Estadual do Rio de Janeiro:
1) Why was the feminine so rejected in the history of society, that is, why all this
hate against women? 2) How have narratives about women contributed to the
construction of hatred towards the feminine? 3) How can the image, on the
battlefield, collaborate with the reconciliation between women and the world?
Here in this work I will dwell on the third question. To understand why menstrual
images practically do not exist, it was necessary to research the history of women,
over time, told by the Catholic Church, science, law and the media. The road was
long, but I would like to highlight the research of the Italian philosopher Silvia
Federici. She points out the 15th, 16th and 17th centuries as the period in which
1297
there was a demarcation of social roles guided by sexual differentiation and
explains why the Church, the clergy and the feudal lords spread narratives to
defame women and take away their fighting strength and dignity in the episode
that became known as the Witch Hunt. The author explains that this movement
took place in Europe, but the idea created at this time spreads throughout the West
in the colonization of the Americas. The Argentinian researcher Maria Lugones
highlights, on colonization, that, in this period, the greatest dichotomy of
Modernity was created: the one between humans x non-humans, from which all
dichotomies emerged, giving permission for “an unimaginable exploitation, sexual
violation, control of reproduction and systematic terror” ( my translation, 2014,
p.938).
What the authors say is that even today it is necessary to resist. Resistance, for
Lugones, takes place through the equation between the formation of the subject
and his active subjectivity, which is the notion of necessary agency for
displacement and, therefore, resistance. In this work, I highlight the desire for
creation as a form of resistance and the sensitive experience of art as a tool to
create cracks and interferences on the surface of the world. Visuality is like a power
struggle, where what is in visibility probably only got there because it imposed itself
on it (MIRZOEFF, 1999, pp.1-2). It is therefore necessary to enter the battlefield to
present other images, “transform absences into presences” (BOAVENTURA, 2002,
p.246). Then, to resume blood as a symbol, the symbol of the struggle for the
deconstruction of values built on the pillars of patriarchy, colonialism and
capitalism.

Referências / References

LUGONES. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas. Florianopolis. Set-


Dez.2014.
MIRZOEFF, Nicholas. An introduction to visual culture. London: Routledge, 1999.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. Revista crítica de ciências sociais, Coimbra, v. 63, p. 237-280,
outubro 2002.

1298
Mini Currículo

Aline de Macedo Manhães


É fotógrafa, artista visual e pesquisadora. Mestranda em Artes e Cultura Contemporânea (UERJ), com
bolsa FAPERJ, pós-graduada em Fotografia e Imagem (IUPERJ) e bacharel em Letras (UFRJ).
Desenvolve um trabalho de pesquisa sobre imagens de menstruação, corpo feminino, histórias das
mulheres e imaginário, além de colaborar com projetos de extensão, pesquisa e ensino. E-mail:
aline.alinemacedo@gmail.com

1299
MODOS DE VER/REEXISTIR CONTRAVISUAIS NA PERSPECTIVA DECOLONIAL
ATRAVÉS DA ARTE- PESQUISA-DOCÊNCIA DE MULHERES

Monalisa Gomes de Lima Barros Cabral


UNIRIO/Brasil

Isabella Paulino da Silva


UNIRIO/Brasil

Ludmilla Pollyana Duarte


UNIRIO/Brasil

Link para o trabalho:


https://instagram.com/_e_p_a__?igshid=YmMyMTA2M2Y=

Resumo Expandido

Contravisualidade na perspectiva decolonial

Este trabalho traz reflexões, coproduções artísticas e jornadas epistemológicas de


um grupo de mulheres pesquisadoras/arte-educadoras/artistas que investigam
através das lentes da Cultura Visual, os campos da Educação e da Comunicação com
atravessamentos decoloniais. Investigações que se interessam pelas visualidades
midiáticas, ao passo que elas geram contravisualidades. Afinal, a prática contravisual
é a resistência às irrealidades criadas pela hegemonia das visualidades (MIRZOEFF,
1999), na medida em que outras realidades ganham voz e tornam suas existências
visíveis em movimentos de resistência, no caso deste trabalho ligados às pautas de
luta social no contexto da América Latina. Pois são capazes de produzir modos do
ver outros, pois “Nossa visão continuamente ativa, continuamente em movimento,
continuamente captando coisas num círculo à sua própria volta, constituindo aquilo
presente para nós do modo como estamos situados” (BERGER, pág. 9, 1999), para o
autor o ver é uma prática cultural que demanda a todo instante engendramentos de
decodificação, ressignificação, interpretação e análise que resultam de acordo com
o contexto individual e coletivo de quem vê. Mídia, substantivo feminino, no
dicionário da Oxford significa que é “todo suporte de difusão da informação que

1300
constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir mensagens”.
Termo tão popular e ao mesmo tempo carregado de aprofundamentos teóricos, se
desdobra em outros como midiatização, hipermídia, educação midiática etc. Se
levarmos em consideração o significado do termo em si, podemos levantar reflexões
sobre as potencialidades da mídia e mediação e seus paralelos com a própria
mediação das imagens, ou mesmo dos processos de resistência. Para o autor
colombiano Martín-Barbero (1997), pensar mídias na América Latina é pensar,
sobretudo em descolonizar nossos modos de ver e criar resistências ao percebermos
que nossas contribuições críticas estão mais nas mediações do que nos meios em si.
Nesse sentido, enquanto pesquisadoras a hegemonia das visualidades que nos
inquieta, visto que está intimamente ligada com às mediações, estas que começam
no próprio conceito do conhecimento, nesse sentido, a pensadora e multiartista
Grada Kilomba realizou em 2016 uma palestra-performace no Brasil que foi publicada
como “Descolonizar o conhecimento”, em que questiona o conceito de
conhecimento para pensar no sujeito do conhecimento. Segundo ela “O conceito de
conhecimento não se resume a um simples estudo apolítico da verdade, mas é sim a
reprodução das relações de poder raciais e de gênero, que definem não somente o
que conta como verdadeiro, bem como em quem acreditar” (pág.4, KILOMBA, 2016).
Como arte-educadoras, podemos fazer um paralelo da fala de Grada Kilomba com
questionamentos sobre a história da arte, imbricada de relações de poder, com
narradores que escolheram e priorizaram os protagonistas dessa história. Um livro
chave na formação artística de muitos estudantes denomina-se “A História da Arte”
de Ernst Gombrich, que não cita uma única mulher artista da história da arte. Não
cita artistas da Idade Moderna como: Plautilla Nelli, Lavinia Fontana, ou Artemisia
Gentileschi. Entramos na pergunta do artigo “Por que não houve grandes mulheres
artistas” da historiadora norte-americana Linda Nochlin (publicado primeiramente
em 1971 em uma revista estadunidense e só traduzido para o português em 2016), o
qual ironiza esse questionamento, demonstrando a construção histórica do
imaginário do grande artista e gênio criador, isolado em seu ateliê, inspirado
divinamente. O coletivo ativista de artistas feministas anônimas Guerrilla Girls
criado na década de 80 nos EUA, questiona o sexismo e racismo no meio artístico
expondo trabalhos em cartazes e adesivos. Em 2017, no Masp, foram exibidas mais de
100 obras retrospectivas da atuação do grupo, com destaque para um grande cartaz

1301
que continha a pergunta “As mulheres precisam estar nuas para entrar no museu de
arte de São Paulo?” A motivação desse questionamento parte de dados estatísticos
coletados pelo grupo que demonstram o número de obras de mulheres artistas
expostas em diversas instituições, museus e galerias ao redor do mundo, revelando
que, na maioria das exposições, apesar das representações de nus serem em grande
parte de mulheres, quem as pintou foram homens. No MASP o percentual era de 6%
de artistas mulheres no acervo para 60% de nus femininos, sendo que a maioria das
representações de nus masculinos eram do menino Jesus.

Esses dados dialogam com o texto “Modos de Ver”, John Berger, que, em um de seus
capítulos, fala sobre como a mulher era vista na sociedade europeia e como a pintura
de gênero nu a retratava com objeto de consumo do olhar masculino, para propiciar
uma visão prazerosa, um “panorama”. “Os homens atuam e as mulheres aparecem.
Os homens olham as mulheres, as mulheres vêem-se sendo olhadas.” p. 49 As grandes
musas foram feitas para serem belas. A hegemonia das visualidades impostas torna
necessária a criação de narrativas contravisuais a fim de questionar e representar
outras formas de ver a aprender sobre o mundo. (Mirzoeff, 2011).

Postas essas considerações, trazemos nossas coproducões contravisuais enquanto


mulheres artistas, engajadas nas pautas feministas para problematizar o lugar da
mulher nos espaços de saber e na produção de saberes. Uma vez que, as vivências
coletivas e subjetivas nos levam aos atravessamentos da colonialidade do saber,
marcada historicamente pelo apagamento das vozes femininas. Em resposta aos
apagamentos históricos e ao silenciamento cotidiano que vivemos enquanto
pesquisadoras/educadoras/artistas, coproduzimos lambe-lambes - linguagem
artística da streetart, que possibilita colagens de artes digitais ou manuais em espaços
públicos ampliando nossa visibilidade, e, portanto, nossos movimentos de
resistência. Em meio digital, nosso artivismo ganha as redes, através da divulgação
de nossas artes utilizando o perfil de Instagram @e_p_a_. Ao explorar elementos
visuais partindo de selfies, situamos nosso próprio corpo além da versão
estereotipada que nos é imposta diariamente.

1302
WAYS OF SEEING/RE-EXISTING CONTRAVISUALS IN THE DECOLONIAL
PERSPECTIVE THROUGH WOMEN'S ART-RESEARCH-TEACHING

Monalisa Gomes de Lima Barros Cabral


UNIRIO/Brasil

Isabella Paulino da Silva


UNIRIO/Brasil

Ludmilla Pollyana Duarte


UNIRIO/Brasil

Countervisuality in the decolonial perspective

This work brings reflections, artistic co-productions and epistemological journeys of


a group of women researchers/art-educators/artists who investigate through the
lens of Visual Culture, the fields of Education and Communication with decolonial
crossings. Investigations that are interested in media visualities, while they generate
counter-visualities. After all, the countervisual practice is the resistance to the
unrealities created by the hegemony of visualities (MIRZOEFF, 1999), insofar as other
realities gain voice and make their existence visible in resistance movements, in the
case of this work linked to the agendas of social struggle in the context of Latin
America. Because they are capable of producing ways of seeing others, because “Our
vision is continuously active, continuously in motion, continuously capturing things
in a circle around itself, constituting that which is present to us as we are situated”
(BERGER, p. 9, 1999). ), for the author, seeing is a cultural practice that demands, at
all times, engenderings of decoding, resignification, interpretation and analysis that
result according to the individual and collective context of the one who sees. Media,
feminine noun, in the Oxford dictionary means that it is “ all support for the
dissemination of information that constitutes an intermediate means of expression
capable of transmitting messages”. Such a popular term and at the same time loaded
with theoretical insights, it unfolds in others such as mediatization, hypermedia,
media education, etc. If we take into account the meaning of the term itself, we can

1303
raise reflections on the potential of media and mediation and its parallels with the
mediation of images itself, or even the processes of resistance. For the Colombian
author Martín-Barbero (1997), thinking about media in Latin America is thinking,
above all, about decolonizing our ways of seeing and creating resistance when we
realize that our critical contributions are more in mediations than in the media
themselves. In this sense, as researchers the hegemony of visualities that worries us,
since it is closely linked with mediations, which begin in the very concept of
knowledge, in this sense, the thinker and multiartist Grada Kilomba held in 2016 a
performance lecture in Brazil that was published as “Decolonizing knowledge”, in
which it questions the concept of knowledge in order to think about the subject of
knowledge. According to her, “The concept of knowledge is not just a simple
apolitical study of truth, but rather the reproduction of racial and gender power
relations, which define not only what counts as true, but also who to believe” (p. .4,
KILOMBA, 2016). As art educators, we can make a parallel between Grada Kilomba's
speech with questions about the history of art, imbricated with power relations, with
narrators who chose and prioritized the protagonists of this history. A key book in
the artistic training of many students is called “The History of Art” by Ernst
Gombrich, which does not cite a single female artist in the history of art. It does not
cite Modern Age artists such as: Plautilla Nelli, Lavinia Fontana, or Artemisia
Gentileschi. We enter the question of the article “Why there were no great women
artists” by the American historian Linda Nochlin (first published in 1971 in an
American magazine and only translated into Portuguese in 2016), which ironizes this
questioning, demonstrating the historical construction from the imagination of the
great artist and creative genius, isolated in his studio, divinely inspired. The activist
collective of anonymous feminist artists Guerrilla Girls, created in the 1980s in the
US, questions sexism and racism in the art world by exposing works on posters and
stickers. In 2017, at Masp, more than 100 retrospective works of the group’s
performance were exhibited, with emphasis on a large poster containing the
question “Do women need to be naked to enter the São Paulo art museum?” The
motivation for this questioning is based on statistical data collected by the group that
demonstrate the number of works by women artists exhibited in various institutions,
museums and galleries around the world, revealing that, in most exhibitions, despite
the representations of nudes being largely of women, who painted them were men.

1304
At MASP, the percentage was 6% of female artists in the collection to 60% of female
nudes, and most representations of male nudes were of the baby Jesus.

These data dialogue with the text “Modos de Ver”, John Berger, who, in one of his
chapters, talks about how women were seen in European society and how nude
gender painting portrayed them as an object of consumption of the male gaze, to
provide a pleasant view, a “panorama”. “Men act and women appear. Men look at
women, women see themselves being looked at.” P. 49 The great muses were made
to be beautiful. The hegemony of imposed visualities makes it necessary to create
contra-visual narratives in order to question and represent other ways of seeing and
learning about the world. (Mirzoeff, 2011).

With these considerations in mind, we bring our contravisual co-productions as


women artists, engaged in feminist agendas to problematize the place of women in
spaces of knowledge and in the production of knowledge. Since the collective and
subjective experiences lead us to the crossings of the coloniality of knowledge,
historically marked by the erasure of female voices. In response to the historical
erasures and the daily silencing that we live as researchers/educators/artists, we
co-produce lambe-lambes - streetart artistic language, which enables collages of
digital or manual arts in public spaces, expanding our visibility, and, therefore, our
movements of resistance. In digital media, our artivism wins the networks, through
the dissemination of our arts using the Instagram profile @e_p_a_. By exploring
visual elements starting from selfies, we place our own body beyond the stereotyped
version that is imposed on us daily.

Referências / References

A Selection of the Guerrilla Girls Exhibitions /Street Projects. Guerrilla Girls, 2022.
Disponível em: <https://www.guerrillagirls.com/exhibitions/#gráfica-masp-são paulo>
Acesso em: 14 de out. de 2022.
BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.
KILOMBA, Grada. Descolonizando o conhecimento. Palestra-performance, São Paulo, 2016.
MARTÍM-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

1305
MIRZOEFF, Nicholas. An introduction to visual culture. London/New York: Routledge,
1999.
NOCHLIN, L. Por que não houve grandes mulheres artistas?. São Paulo: Edições Aurora,
2016.

Mini Currículos

Monalisa Gomes de Lima Barros Cabral


Mestranda com bolsa CAPES no PPGedu/Unirio na linha de pesquisa “Práticas Educativas, Linguagens
e Tecnologia”. Pós-graduanda em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação no IFRJ. Graduada em
Artes Visuais/UNINTER. Integrante do grupo de pesquisa CACE - Comunicação, Audiovisual, Cultura
e Educação. E-mail: monalisa.gomes@edu.unirio.br

Isabella Paulino da Silva


Mestranda em Educação pela UNIRIO na linha de pesquisa “Práticas Educativas, Linguagens e
Tecnologia” PPGEdu. Graduada no curso de Licenciatura Plena em Belas Artes/UFRRJ. Integrante do
grupo CACE (comunicação, audiovisual, cultura e educação). E-mail: isabella.paulino.2017@gmail.com

Ludmilla Pollyana Duarte


Doutoranda com bolsa CAPES no PPGEdu/UNIRIO; integra o Grupo de pesquisa CACE-
Comunicação, Audiovisual, Cultura e Educação (FAPERJ)/UNIRIO; Mestre em educação pela UNIRIO
na linha de pesquisa "Práticas educativas, Linguagens e Tecnologia"/PPGEdu. Graduada no curso de
Licenciatura Plena em Belas Artes/ UFRRJ. E-mail: ludmilla.duarte91@gmail.com

1306
A PACÍFICA: UM LIVRO DE ARTISTA DIGITAL E ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO
SOBRE ANCESTRALIDADE ÁRABE

Luiza Domingos Barra


PPGACV-UFG, Brasil

Link para o trabalho:


https://apacifica.cargo.site/

Resumo Expandido

O livro de artista digital de título “a pacífica” possui como suporte o website cargo.
Comportando um layout de páginas sequenciais, dinamiza imagens fixas, gifs e
vídeos com a interação do visitante. Tais recursos tecnológicos são explorados no
intuito de criar uma narrativa poética autobiográfica com referências à personagem
de origem bíblica Salomé. As referências conceituais apropriadas advém da leitura
crítica das obras de Gustave Flaubert (1877) e Oscar Wilde (1891) e detalhes das
pinturas de Henri Regnault (1870), Ella Ferris Pell (1890), Gustave Moreau (1876),
Polydore Beaufaux (1905) e Leopold Schmutzler (1907), todas de título Salomé. Os
detalhes dessas pinturas, em preto e branco, misturam-se com fotografias e vídeos
de meu acervo familiar, alguns realizados por mim e outros herdados da coleção
imigrante de minha bisavó libanesa. A prática como estudo artístico
autobiogeografico (RODRIGUES, 2017) acompanha também a autoficção, como
coloca Nelson Guerreiro (2011), no uso da imaginação para se construir
internamente e assim, assumir teoricamente e visualmente “(...) um processo que se
apropria de fragmentos do outro” (GUERREIRO, 2011, p.133). O processo de criação
de um livro de artista digital, tal como aponta Celina Figueiredo Lage e Izabela
Marcolino Carvalho Costa (2017), beneficia o uso de imagens não fixas, mas,
sobretudo, o alcance democrático e a interação de um público virtual que possa
fruir um trabalho de arte na internet. Na navegação de “a pacífica”, o fruidor tem
como possibilidade “folhear” as páginas somente a partir dos cliques a direita. Ao
limitar tal escolha, pretende-se aludir entrar na narrativa introduzida por outro
nome feminino: Sahazad, a narradora do “Livro das Mil e Uma Noites”, principal

1307
obra em Árabe traduzida no Ocidente. Por isso, à medida que o visitante avança nas
páginas, retoma-se um anacronismo que recai em páginas já vistas como metáfora
do labirinto, em que uma vez que se entra, a saída desafia a lógica. Algo próximo ao
que Sahazad estrategicamente faz toda noite, narrando ao Rei uma história que não
tem fim ao amanhecer, impondo-lhe a curiosidade que o obriga a mantê-la viva.
Sahazad e Salomé são símbolos de um “Ocidente que inventou o Oriente”, tal como
teoriza Edward Said (2007) conceitualizando o Orientalismo. O “Livro das Mil e Uma
Noites” é traduzido em forte escala durante o final do século XVIII e XIX na Europa,
a partir de manuscritos lacunares e anacrônicos, fazendo caber possivelmente, tal
como escreveu Linda Nochlin (1983), o interesse imaginativo de discurso-poder
desses países Imperialistas. Já Salomé, que é brevemente citada na Bíblia, por
dançar e solicitar a morte do profeta São João Batista, transforma-se no em
odalisca, erótica e exótica. São muitas as análises sobre as representações de
Salomé, e a estudiosa Mireille Dottin-Orsini (1998), apresenta como ela se torna o
estereótipo da “Mulher Fatal”. Por fim, trechos de filmes árabes como o egípcio “I
Love You Hassan” (1958) de direção do Hussein Fawzi e “Where Do We Go Now?”
(2011) da libanesa Nadine Labaki são apropriados e inseridos na narrativa na
tentativa de reforçarem uma contra-narrativa aos estereótipos coloniais e
patriarcais. Na medida em que outras Salomés são contrapostas, proponho com
essas imagens e a própria experiência de dança no convívio familiar de origem
árabe, resistir e transformar o discurso colonizador, mas colocar também em
passos conflitantes as noções de real e ficção entre fotografia e pintura.

1308
THE PACIFIC: A DIGITAL ARTIST'S BOOK AND AUTOBIOGRAPHIC STUDY ON
ARAB ANCESTRALITY

Luiza Domingos Barra


PPGACV-UFG, Brasil

The digital artist book entitled “the pacific” is supported by the cargo website.
Comprising a sequential page layout, it streamlines still images, gifs and videos with
visitor interaction. Such technological resources are explored in order to create an
autobiographical poetic narrative with references to the character of biblical origin
Salomé. The appropriate conceptual references come from a critical reading of the
works of Gustave Flaubert (1877) and Oscar Wilde (1891) and details of the paintings
of Henri Regnault (1870), Ella Ferris Pell (1890), Gustave Moreau (1876), Polydore
Beaufaux (1905). ) and Leopold Schmutzler (1907), all titled Salomé. The details of
these paintings, in black and white, are mixed with photographs and videos from
my family collection, some made by me and others inherited from the immigrant
collection of my Lebanese great-grandmother. The practice as an
autobiogeographic artistic study (RODRIGUES, 2017) also accompanies autofiction,
as Nelson Guerreiro (2011) puts it, in the use of imagination to build oneself
internally and thus, theoretically and visually assume “(...) a process that
appropriates itself of fragments of the other” (GUERREIRO, 2011, p.133). The process
of creating a digital artist's book, as pointed out by Celina Figueiredo Lage and
Izabela Marcolino Carvalho Costa (2017), benefits from the use of non-fixed images,
but, above all, the democratic reach and interaction of a virtual audience that can
enjoy a work of art on the internet. In the navigation of “the pacific”, the user has
the possibility to “flip through” the pages only by clicking on the right. By limiting
this choice, it is intended to allude to entering the narrative introduced by another
female name: Sahazad, the narrator of the “Book of One Thousand and One Nights”,
the main work in Arabic translated in the West. Therefore, as the visitor progresses
through the pages, an anachronism is resumed that falls back on pages already seen

1309
as a metaphor for the labyrinth, in which once you enter, the exit defies logic.
Something close to what Sahazad strategically does every night, telling the King a
story that has no end at dawn, imposing on him the curiosity that forces him to
keep her alive. Sahazad and Salomé are symbols of a “West that invented the East”,
as Edward Said (2007) theorizes, conceptualizing Orientalism. The “Book of One
Thousand and One Nights” was translated on a large scale during the late 18th and
19th century in Europe, from incomplete and anachronistic manuscripts, possibly
fitting, as Linda Nochlin (1983) wrote, to the imaginative interest of discourse-
power of these imperialist countries. Salomé, who is briefly mentioned in the Bible,
for dancing and asking for the death of the prophet Saint John the Baptist, becomes
the odalisque, erotic and exotic. There are many analyzes on the representations of
Salomé, and the scholar Mireille Dottin-Orsini (1998), presents how she becomes
the stereotype of the “Fatal Woman”. Finally, excerpts from Arab films such as the
Egyptian “I Love You Hassan” (1958) directed by Hussein Fawzi and “Where Do We
Go Now?” (2011) by the Lebanese Nadine Labaki are appropriated and inserted into
the narrative in an attempt to reinforce a counter-narrative to colonial and
patriarchal stereotypes. To the extent that other Salomés are opposed, I propose,
with these images and the very experience of dance in the family life of Arab origin,
to resist and transform the colonizing discourse, but also to put in conflicting steps
the notions of real and fiction between photography and painting.

Referências / References

DOTTIN-ORSINI, M. Salomé (também denominada Herodíade ou Herodias). In: Dicionário


de Mitos Literários, Rio de Janeiro, Editora UnB. 1998. BRUNEL, Pierre.
FLAUBERT, Gustave. Herodíade. In: FLAUBERT, Gustave. Três contos, 1877. Tradução Júlia
da Rosa Simões. - Porto Alegre [RS]: L&PM, 2019.
GUERREIRO, Nelson. Estás onde? Reflexões sobre autobiografia e auto-ficção nas
práticas artísticas contemporâneas. Cadernos PAR, v. 11, n.4, mar. 2011, p. 125-138.
Disponível em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/407/1/Par4_art10.pdf 6.
LAGE, Celina; COSTA, Izabela. Experimentalismo e inovação na curadoria do livro de artista
digital, 2017. In GOBIRA, Pablo; MUCELLI, Tadeus. Configurações do pós-digital.
Livro das mil e uma noites, volume 1: ramo sírio / Anônimo; [introdução, notas, apêndices
e tradução do árabe: Mamede Mustafa Jarouche. ] – 3 ed. São Paulo: Globo, 2006.

1310
RODRIGUES, Manoela dos Anjos Afonso. Autobiogeografia como metodologia decolonial,
In: Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26, Memórias e
Inventações, 2017, Campinas. Anais [...] Campinas: ANPAP/Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, 2017. p.3148- 3163. Disponível em:
http://anpap.org.br/anais/2017/PDF/PA/26encontro______RODRIGUES_Manoel
a_dos_Anjos_Afonso.pdf
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia
das Letras, 2007.
WILDE, Oscar. Salomé, peça de 1891. Tradução João do Rio - Jandira, SP: Principis, 2021.

Mini Currículo

Luiza Domingos Barra


Mestranda bolsista FAPEG no PPG em Arte e Cultura Visual (FAV/UFG), na linha de pesquisa
Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Práticas
Artísticas Autobiográficas – NuPAA/UFG/CNPq. Bisneta de imigrantes libaneses, sua pesquisa
percorre os estudos autobiográficos relacionados à ancestralidade árabe e feminismo decolonial.
Possui Graduação em Artes Visuais (IARTE/UFU). E-mail: luiza_barra@discente.ufg.br

1311
EL CUERPO AFECTIVO: DIARIO DE VIAJE_CARTAS A MI PADRE

Mariana dos Santos Velázquez


Facultad de Artes - UdelaR. Uruguay

Link:
https://youtu.be/sWvlx_a24Qw

La narrativa visual “Cuerpo afectivo: Diario de Viaje - Cartas a mi padre” de la cual


haré referencia en este resumen, es parte de una construcción que se va dando en el
desarrollo de mi posgrado. Comienzo este proceso tratando de entender y vincular
la relación con mi cuerpo; en ese sentido es que propongo dos categorías pertinentes
de tal forma que lo organizo de la siguiente manera: vivencias espaciales y vivencias
afectivas.

Las vivencias espaciales abordarán el vínculo entre mi cuerpo y un entorno físico; a


su vez hago otra sub categoría donde distingo: por un lado mi cuerpo situado el
espacio público - la calle y por otro lado el espacio privado - doméstico. Aquí el
espacio toma diferentes dimensiones y es posible entender cómo el efecto de esa
dimensión trabaja sobre los cuerpos que no son masculinos, reafirmando la teoría de
que la vía pública pertenece a las masculinidades hegemónicas y el espacio privado a
lo femenino. Este desdoblamiento da cuenta de un contexto que desborda los límites
de mi cuerpo, esto es que, cuando trato de entender las implicancias de mi cuerpo
en la vía pública y/o mi cuerpo en el espacio privado, no estoy hablando 一

únicamente一 de mi cuerpo sino más bien de toda una construcción social y política

de cuerpos atribuidos a un ser mujer (de Beauvoir) y también a la construcción misma


de espacio.

Pero esta narrativa visual trata sobre otra categoría: mis vivencias afectivas y otros
cuerpos. Es aquí donde busco los vínculos sobre cuerpos que me rodean, aunque no
todos, solamente los cuerpos parentales. Nunca hasta este momento había pensado

1312
en los cuerpos de mi padres, siempre la construcción hacia ellos era sobre su
persona, sobre afecto, sobre lo no palpable.

He aquí el relato de una de esas vivencias: Un día de domingo me desperté con la


peor noticia, mi padre había fallecido. En el transcurso del día fue necesario que
atravesara toda una parafernalia sobre lo que implica una muerte; cuestiones
burocráticas y de las otras: velorio, gente que te saluda, abraza, etc. Yo no sabía vivir
aquel momento, por eso pienso que lo atravesé, fue sucediendo.

Parte del discurso repetido, ese día, era que lo llevaría por siempre dentro de mí, que
él estaría siempre allí 一y se tocaban el pecho一 ¿cómo sustituir un cuerpo 一tangible

一 por una sensación 一efímera一? para mí estaba claro que más allá del sentimiento,

su ausencia física era irremplazable y que, en todo caso, me distraen ante el hecho
de que la pérdida física implicaría eso, una pérdida, una ausencia sin equivalencias
reemplazables. Un cuerpo que ya no estaba y que como tal tiene implicancias, sin
rodeos, sin vueltas y 一al menos en aquel momento一 sin poéticas. Estaría por

siempre en mí, pero su cuerpo ya no estaba y era en eso que necesitaba pensar para
tratar, al menos, de asimilarlo. La rabia dió lugar a la reflexión que dio lugar al sentir
y como dice Vir Cano (2021), lxs muertxs se resisten a quedarse fijxs, se nos cuelan
por la porosidad de la vida, del espacio, del día. En estas reflexiones compartidas
entendí que el cuerpo significa, no solo por cuerpo, sino por afecto. El cuerpo es
carne, es calor, es abrazo y ante todo, eso, afecto. Este es mi cuerpo afectivo.

La narrativa surge como un contacto/vínculo de las vivencias de mi padre, quien


supo ser guarda de ómnibus de esa empresa de viajes, la misma empresa que iba
viajando yo cuando hice las tomas para el video, el mismo viaje de 7 horas, de norte
a sur y viceversa. Entre tantas idas y vueltas, pensé en preguntas para una
conversación inexistente e imposible. Imaginé su vínculo con esos espacios, su
cuerpo en ese transitar cotidiano, sus incontables idas y vueltas que ahora yo,
también en incontables veces, estaba recorriendo. Atravesé esos viajes tratando de
usar sus lentes, ver sus perspectivas, andar sus caminos desandados. Así nace Diario
de viaje: cartas a mi padre.

1313
THE AFFECTIVE BODY: TRAVEL DIARY_LETTERS TO MY FATHER

Mariana dos Santos Velázquez


Facultad de Artes - UdelaR. Uruguay

The visual narrative "Affective Body: Travel Diary - Letters to my father" which I will
refer to in this summary, is part of a construction that is taking place in the
development of my postgraduate course. I start this process trying to understand
and link the relationship with my body; In this sense, I propose two pertinent
categories in such a way that I organize it as follows: spatial experiences and affective
experiences.

The spatial experiences will address the link between my body and a physical
environment; in turn I make another subcategory where I distinguish: on the one
hand my body located in the public space - the street and on the other hand the
private space - domestic. Here the space takes on different dimensions and it is
possible to understand how the effect of this dimension works on bodies that are not
masculine, reaffirming the theory that public roads belong to hegemonic
masculinities and private space to the feminine. This unfolding accounts for a
context that goes beyond the limits of my body, that is, when I try to understand the
implications of my body on public roads and/or my body in private space, I am not
talking 一 only 一 about myself. body but rather of a whole social and political

construction of bodies attributed to a female being (de Beauvoir) and also to the very
construction of space.

But this visual narrative deals with another category: my affective experiences and
other bodies. It is here that I look for the links on bodies that surround me, although
not all of them, only the parental bodies. Until now I had never thought about the
bodies of my parents, the construction towards them was always about their person,
about affection, about the non-palpable.

Here is the story of one of those experiences: One Sunday day I woke up with the
worst news, my father had passed away. During the course of the day it was
1314
necessary for him to go through all the paraphernalia about what a death implies;
bureaucratic and other issues: wake, people who greet you, hug you, etc. I didn't
know how to live that moment, that's why I think I went through it, it happened.

Part of the repeated discourse, that day, was that I would carry him inside me forever,
that he would always be there 一and they touched their chests一 how could I

substitute a 一tangible一 body for an 一ephemeral一 sensation? it was clear to me

that beyond feeling, their physical absence was irreplaceable and that, in any case,
they distract me from the fact that physical loss would imply that, a loss, an absence
without replaceable equivalents. A body that was no longer there and as such has
implications, bluntly, without turns and 一at least at that time一 without poetics. He

would be forever in me, but his body was gone and that was what I needed to think
about to try, at least, to assimilate it. The rage gave rise to the reflection that gave
rise to feeling and as Vir Cano (2021) says, the dead refuse to remain fixed, they slip
through the porosity of life, of space, of the day. In these shared reflections I
understood that the body means, not only by body, but by affection. The body is
meat, it is heat, it is a hug and above all, that, affection. This is my affective body.

The narrative emerges as a contact/link to the experiences of my father, who used


to be a bus guard for that travel company, the same company that I was traveling
when I took the shots for the video, the same 7-hour trip, from north to south and
vice versa. Between so many twists and turns, I thought of questions for a
conversation non-existent and impossible. I imagined her link with those spaces, her
body in that daily transit, her countless comings and goings that now I, also countless
times, was going through. I went through those trips trying to use his lenses, see his
perspectives, walk his retraced paths. This is how Travel Diary: letters to my father
was born.

Referências / References
CANO, Vir. Dar (el) duelo: Notas para septiembre. Buenos Aires: Galerna, 2021.
DE BEAUVOIR, Simone. El segundo sexo. Traducción de Juan García Puente. Buenos Aires:
Penguin Random House Grupo Editorial, 2021.

1315
Mini Currículo

Mariana dos Santos Velázquez


Artista visual, investigadora y docente de la Tecnicatura en Artes - Artes Plásticas y Visuales - Centro
Universitario de Rivera CENUR NORESTE. Facultad de Artes UdelaR. Licenciada en Artes - Artes
Plásticas y Visuales. Facultad de Artes - UdelaR. Maestranda en Arte y Cultura Visual. Facultad de Artes
- UdelaR. E-mail: velazquezmds@gmail.com

1316
DEU PAU, BRASIL

IMPRESSÃO, VOLUME E PALAVRA NA PINTURA

Thiago Alcântara
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/file/d/1YpwDIIKjsCLfHMRU4ibCg4hzmJnYoO49/view?usp=sharing

Resumo Expandido

Esta Narrativa visual foi desenvolvida durante a pandemia da Covid-19. Suas


imagens sofreram o impacto da tragédia global, contando com as particularidades
do Brasil, visto que este país, além da luta contra o coronavírus, presenciou
acontecimentos midiáticos desempenhados pelo governo federal, a partir de
incentivos contrários ao isolamento social e à vacinação, dentre outros exemplos.
Entretanto, o objetivo desta jornada foi realizar um percurso no exercício da
pintura, de modo a observar semelhanças nas dinâmicas da história do Brasil,
relacionadas à desmoralização das suas instituições, valorizando aspectos mais
sensíveis e menos literais. O vírus deu passagem para figuras que sempre se
comportaram como as doenças desta nação, estabelecendo uma narrativa que pode
associar fragmentos de uma memória devastada pelas consequências da
colonização e da ditadura militar.

Através da popularmente nomeada CPI da Covid, foram selecionados dizeres do


tipo “já deu, senador”, além de substantivos como “laranja” e “mascarado”, esses
ligados aos desafetos políticos do campo da esquerda. Acompanhando os passos do
presidente e observando as práticas dos seus seguidores, que o nomeavam
“Messias”, a pesquisa resgatou a figura do “santo do pau oco” e, por consequência, a
árvore Pau Brasil, valorizando uma lógica que entrelaçou os símbolos nacionais do
período colonial.

Os materiais utilizados nos trabalhos foram escolhidos a partir das ofertas


disponíveis na pandemia, em casa e com parte do comércio fechado. Ocorreu uma

1317
aplicação de tintas de secagem rápida e sem odores, como a acrílica, e impressões
jato de tinta. Alguns volumes desejados para a superfície das imagens, pela sua
relação visual com a casca de um Pau Brasil, foram estabelecidos a partir da massa
corrida encontrada com fornecedores da construção civil. As telas utilizadas
seguiram uma dimensão formatada em fábrica, devido às dificuldades para preparar
um painel artesanal.

Em busca de unir destinos, mesmo com a consciência de que não há um caminho


unificado a seguir na prática da pintura, voltou-se a história da arte brasileira, o que
culminou em uma articulação com as obras da década de 1960, identificadas como
Novas Figurações ou Pop Brasileiro, especialmente porque o momento também é
relativo à destruição das instituições políticas, incluindo que:

Falar de uma experiência brasileira da pop requer a evocação de


pautas em debate no ambiente artístico do Brasil cinquenta anos
atrás: sobre a participação do observador no trabalho da arte; sobre o
estatuto social da cultura no país; sobre a possibilidade de
intervenção pública em um estado de exceção; sobre a posição
brasileira no sistema artístico internacional; e sobre a possibilidade de
instruir uma vanguarda estética em situação de subdesenvolvimento
e Terceiro Mundo. (RIBEIRO, 2017, p. 25).

A fruição das obras desse período estimulou a aplicação das palavras “pau” e “oco”
nas imagens, mas como unidades semelhantes às figuras, uma vez que a síntese
textual foi percebida no conjunto estudado. Inclusive, mediante tal escolha,
identificou-se que esta jornada envolveu um resumo da macro comunicação do
governo federal, exemplo contundente de toda a balburdia que a população
brasileira atura desde a sua dominação por estrangeiros.

1318
IT CRASHED, BRAZIL

PRINT, MASSE AND WORD IN PAINTING

Thiago Alcântara
Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil

This visual narrative was developed during the Covid-19 pandemic. Their images
were impacted by the global tragedy and in connection with the particularities of
Brazil, since this country dealt not only with the virus itself, but faced mediatic
events encouraged by the federal government when they gave contrary incentives
regarding social isolation and vaccination, among other examples. However, the
goal for this journey was to create a path in painting practice, in a way to observe
similarities in Brazilian history related to the devaluation of its institutions,
increasing more sensible aspects less the literal ones. The virus helped emphasize
characters that always behaved as the illness of the nation, establishing a narrative
that can be associated with small parts of a devastating memory, caused by the
consequences of colonization and military dictatorship.

After a careful analysis of the well-known “CPI da Covid”, some famous


catchphrases were selected, like “já deu, senador” (it’s over senator) and nouns like
“laranja” (orange) and “mascarado” (masquerade), all connected to the disaffected
politicians from the left wing. The steps of the president were followed and the
actions of his entourage, who named the president as their “Messias”, were
observed. The research redeemed the figure of the “santo do pau oco” (hollow-
bodied wood-carved saint images, an artifice used to hide metal and precious
stones during the XVII century and, today, an expression to designate a lack of
character and liar person) and, by consequence, the Pau Brasil tree, creating a
connection with national symbols that were popular during the colonial period.

The materials used for this creation were picked based on availability during the
pandemic, at home and with most of the stores closed. The techniques applied used
fast drying and odour-free paints, like acrylic paint, and inkjet printing. To create

1319
the volume on the surface of the images, making reference to Pau Brasil, spackling,
easily found in construction stores, was used. The screens used followed a
predetermined shape and dimensions established by the manufacturer, due to
difficulties to prepare a large-scale panel.

Aiming to connect different theoric lines, even if we believe that there is no unified
way in practical painting, Brazilian Art History was searched, what directed us in
articulation with art pieces from 1960, identified as New Figurations or Brazilian
Pop, especially because the moment is also linked to the destruction of political
institutions, as if:

To discuss a Brazilian experience of pop is requested the evocation of


guidelines in a debate at the artistic environment of Brazil around 50
years ago: about the participation of the observer in the artwork;
about the social-cultural status in the country; about the possibility of
public intervention in the state of exception; about the Brazilian
position in the international artistic system; and about the possibility
to instruct an aesthetical vanguard in a situation of sub development
and Third World (RIBEIRO, 2017, p. 25).

The art fruition of this period stimulated the usage of the words “pau” (wood) and
“oco” (hollow) in the images, as units, since the textual synthesis was noticed in the
context analyzed. Even though such a choice, it was identified that this journey
ended up in a summary of the macro communication of this federal government, as
a strong example of the turmoil faced by the Brazilian population since they were
dominated by foreigners.

Referências / References
Vanguarda brasileira dos anos 1960 – Coleção Roger Wright / curadoria José Augusto
Ribeiro; textos Heloisa Espada... [et al]. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017.

Mini Currículo

Thiago Alcântara

1320
Mestrando em Artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG. Habilitado em pintura
no bacharelado de Artes Plásticas da mesma Universidade (2022). Pós-graduado em Mídias Sociais e
Gestão da Comunicação Digital pelo Centro Universitário UNA (2012). Graduado em Comunicação
Social – Publicidade e Propaganda na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas
(2006). E-mail: thiago.alc@gmail.com

1321
GESTOS ORDINÁRIOS PARA VOLTAR AS CASAS

Denise Moraes Cavalcante


Universidade de Brasília, Brasil

Link para o trabalho:


https://drive.google.com/drive/folders/1XJiPl0KsyJZrF_bK2cOWtkoYlSzNUydt?usp=sharing

Resumo Expandido

No ano de 2022, como proposta metodológica para desenvolver minha pesquisa de


pós-doutorado em Artes Visuais, intitulada “Cartografia subjetiva da casa-resistência:
espaço doméstico e narrativas femininas”, instituí abordagens artísticas para
investigar uma poética do espaço doméstico habitando esse lugar enquanto mulher,
artista e pesquisadora. De todas as casas que morei, procurei reconhecer e
identificar aquelas que me levaram à ideia de “casa-resistência” a partir da etimologia
da palavra “resistere” que significa “ficar firme”, “perseverar”. O termo “resistência”
me conduziu à palavra “(re)existência” enquanto sinônimo de “emergir”, “renascer”,
no sentido de retomar as casas de um outro modo, agora revisitando-as
criativamente, reinventando-as enquanto materialidade poética para erguer uma
cartografia artística de modos para se habitar o espaço doméstico.

A prática artística, tomada enquanto pesquisa, sobrepôs as casas por mim habitadas
como lugar autobiográfico central dos processos de criação e de uma poética que
suscitou reflexões críticas sobre sua dimensão narrativa ativada pela experiência
pessoal de se habitar o lugar doméstico. A busca de um entendimento para o termo
habitar se evidenciou não apenas como sinônimo de residir, mas como um modo de
se relacionar com o espaço vivido. Segundo o filósofo Martin Heidegger, habitar é
uma característica fundamental da existência humana. Em sua concepção, habitar
não consiste somente no ato de morar: um motorista se sente em casa em uma
autoestrada; uma tecelã está em casa em sua tecelagem. Seu entendimento se
fundamenta em uma ontologia existencial que nos caracteriza como “seres-no-
mundo”, isto é, seres que habitam um mundo. Em sua obra “Ser e tempo” (2005a,
2005b), Heidegger investiga o sentido de “ser-em”:

1322
O que diz ser-em? De saída, completamos a expressão dizendo: ser “em
um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um
estar “dentro de...” Com esta última expressão, designamos o modo de
ser de um ente que está num outro, como a água está no copo, a roupa
no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca do ser de
dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante a seu lugar neste
mesmo espaço. Água e copo, roupa e armário estão igualmente
“dentro” do espaço “em” um lugar (HEIDEGGER, 2005a, p.91).

Heidegger aproxima a preposição “em” a habitar, vinculando nossa existência


mundana a um lugar. Se a preposição “em” conduz a “dentro de”, isto é, “um ente
que está num outro”, podemos abarcar uma espécie de mutualismo entre nós e o
espaço habitado, uma compreensão de que habitar implica em uma inter-relação
entre nós e nossas moradas.

Em seu livro Os olhos da pele, o arquiteto Juhani Pallasmaa investigou a combinação


dos sentidos na apreensão da arquitetura e constatou que grande parte das
edificações é considerada primordialmente sob o sentido da visão. Segundo
Pallasmaa, desconsiderar os demais sentidos dificulta a sensação de pertencimento
e a integração espacial. Habitar um espaço é apreendê-lo por meio de todos os
sentidos, afirmando nossa existência relacional com o mundo a nossa volta. Em sua
obra, o arquiteto propõe um caminho multissensorial para se vivenciar o espaço
habitado.

Vários tipos de arquitetura podem ser distinguidos com base na


modalidade sensorial que eles tendem a enfatizar. Ao lado da
arquitetura prevalente do olho, há a arquitetura tátil, dos músculos e
da pele. Também há um tipo de arquitetura que reconhece as esferas
da audição, do olfato e do paladar (PALLASMAA, 2011, p.65).

A casa aqui foi tomada não como “lugar geométrico, um buraco convencional que
mobiliamos com imagens, com bibelôs dentro de um armário” (Bachelard, 2003), mas
enquanto território íntimo e próprio para se habitar o mundo, seja cotidianamente
ou poeticamente. Assim, respaldada pela noção de “resistência” e de “habitar”,
realizei um ensaio visual que teve como intuito investigar o que pode a casa, não
apenas como receptáculo para a morada, mas enquanto fluxos materiais e imateriais
transbordantes para a criação artística.

1323
O ensaio visual apresentado surgiu em contraponto à casa enquanto lugar
permanente, fixo e familiar. Busquei valorizar modos diferenciados para se habitar
casas que não apenas aqueles pautados em uma casa familiar e enraizada. Assim, a
abordagem artística proposta se edificou com base em experiências pessoais de
moradias transitórias na cidade de Paris (França) nos anos noventa. Na época,
vivendo como imigrante na cidade, precisei me mudar várias vezes alugando imóveis
por curtos períodos, o que acabou por constituir um modo de habitar transitório
entre moradas. Diante de minhas limitações enquanto estudante estrangeira, me
sujeitei a viver à deriva pela cidade em busca de residências possíveis.

Ao analisar minha história de vida na cidade, reconheci neste modo “desenraizado”


de se habitar casas, um ato de resistência. Perceber essas tantas casas provisórias a
partir da noção de “casa-resistência” fundamentou uma ampliação para o conceito
casa, abarcando experiências transitórias para se pensar outros modos de
permanência nos espaços domésticos.

O processo criativo se deu a partir do retorno a cinco casas situadas em Paris e


arredores (casas habitadas por mim) de forma a colocar em relação suas
particularidades e similaridades. O sentido de voltar a essas casas teve como
finalidade retomar vivências do passado, mas submetendo-as a uma nova
apropriação. Para tanto, estabeleci estratégias metodológicas para revisitar os
domicílios, tendo como objetivo apreender, por meio da fotografia, a vida cotidiana
vivenciada entre as casas. Algumas categorias analíticas foram criadas para orientar
o ensaio visual proposto: a inter-relação entre habitante e casas; possíveis fronteiras
entre exterior e interior; a gestualidade cotidiana em detalhes narrativos.

Para criar uma poética de modos de habitar “entre-casas” foi preciso incorporar, nos
processos de criação artística, as experiências cotidianas e sua estética da
gestualidade. Assim, cada gesto ordinário serviu como premissa inspiradora para
inquirir sobre as pequenas problemáticas da vida diária e para dar sentido a cada
ensaio fotográfico (Morar: tenho endereço fixo. Até quando? ; Entrar: enfim, atravesso
soleiras; Abrir: tudo aqui é provisório; Habitar: eu não me sinto em casa).

Segundo Michel de Certeau, praticar um espaço é percorrê-lo e apropriá-lo em


operações de demarcação (CERTEAU, 1990, p.190). Para o filósofo, as narrativas são
percursos de espaço, começam em um ponto e terminam em outro. O gesto

1324
ordinário de fotografar as casas se revelou como um modo narrativo de demarcação
artística mediando a relação entre a artista e as casas. O gesto artístico de fotografar
procurou valorizar a cultura ordinária, considerando as pequenas ações da rotina
diária para demarcar casas por meio de uma prática artística autobiográfica.

Deste modo, foi estabelecido um método para fotografar as casas. Parti do


pressuposto de que essas casas nunca me pertenceram. Ao chegar ao local, procurei
fotografar as fachadas das edificações e seus pormenores e em seguida, busquei
penetrar no edifício de modos diversos como contactar os moradores pelo interfone
ou pessoalmente pela porta principal. A proposta possibilitou diferentes acessos às
moradias, desde minha permanência do lado de fora do prédio até poder tocar a
campainha em um dos apartamentos. A aproximação gradual nos edifícios gerou uma
prática narrativa fotográfica de estéticas variadas e oportunas para cada habitação.

ORDINARY GESTURES TO GO BACK TO THE HOUSES

Denise Moraes Cavalcante


Universidade de Brasília, Brasil

Extended Abstract

In the year 2022, as a methodological proposal to develop the space of my post-


doctorate in Visual Arts, I instituted artistic approaches to investigate a poetics of
habitat by inhabiting this place as a woman, artist and researcher. Of all the houses
that I recognize and identify that led me to the idea of “house-resistance” from the
etymology of the word “resistere” which means “to stand firm”, “to persevere”. The
term “resistance” also reinventing the creative “existence” of resistance, “emerging”,
“really in the sense of retaking the houses in another way, now them as poetic
materiality to build an artistic cartography of ways to inhabit or domestic space.

1325
The artistically, taking a position, superimposed as a central autobiography of the
processes of creation and poetics that aroused criticism about its practical
dimension or place through the personal experience of inhabiting. The search for an
understanding of the term inhabit is evident not only as the scope of residing, but as
a way of relating to what is experienced. According to philosopher Martin Heidegger,
dwelling is a fundamental characteristic of human existence. In his creation,
inhabiting does not consist only of the act of living: a driver feels like he is in a house
on the highway; a weaver is at home in her weaving. Understanding it is based on an
existential ontology that characterizes us as “beings-in-the-world”, that is, beings
that inhabit a world. In his work “Being and time” (2005a, 2005b), Heidegger
investigates the meaning of “being-in”:

What does being-in mean? At the outset, we complete the expression


by saying: being “in a world” and we are tempted to understand being-
in as a being “within...” With this last expression, we designate the way
of being of an entity that is in a another, as the water is in the glass, the
clothes in the closet. With this “inside” we indicate the reciprocal
relationship of the being of two extended entities “inside” the space,
about their place in this same space. Water and glass, clothes and
closet are equally “inside” the space “in” a place (HEIDEGGER, 2005a,
p.91).

Heidegger brings the preposition “in” closer to inhabiting, linking our mundane
existence to a place. If the preposition “in” leads to “inside”, that is, “an entity that is
in another”, we can encompass a kind of mutualism between us and the inhabited
space, an understanding that inhabiting implies an interrelation between us and our
abodes.

In his book “The eyes of the skin”, the architect Juhani Pallasmaa investigated the
combination of the senses in the apprehension of architecture and found that most
buildings are considered primarily under the sense of sight. According to Pallasmaa,
disregarding the other senses makes the feeling of belonging and spatial integration
difficult. To inhabit a space is to apprehend it through all the senses, affirming our
relational existence with the world around us. In his work, the architect proposes a
multisensory path to experience the inhabited space.

1326
Various types of architecture can be distinguished based on the
sensory modality they tend to emphasize. Alongside the prevailing
architecture of the eye, there is the architecture of tactile, muscle, and
skin. There is also a type of architecture that recognizes the spheres of
hearing, smell and taste (PALLASMAA, 2011, p.65).

The house here was taken not as a “geometric place, a conventional hole that we
furnish with images, with knickknacks inside a closet” (Bachelard, 2003), but as an
intimate and proper territory to inhabit the world, whether daily or poetically. Thus,
supported by the notion of “resistance” and “dwelling”, I carried out a visual essay
that aimed to investigate what the house can do, not only as a receptacle for the
dwelling, but as overflowing material and immaterial flows for artistic creation.

The visual essay presented here emerged as a counterpoint to the house as a


permanent, fixed, and familiar place. I sought to value different ways of inhabiting
houses other than those based on a family and rooted house. Thus, the proposed
artistic approach was built based on personal experiences of transitory housing in
the city of Paris (France) between 1992 and 1996. During these years, living as an
immigrant in the city, I had to move several times, renting properties for short
periods of time, which ended up constituting a transitory way of living between
dwellings. Faced with my limitations as a foreign student, I subjected myself to living
adrift around the city in search of possible residences.

When analyzing my life story in the city, I recognized in this “uprooted” way of
inhabiting, an act of resistance. Perceiving these many temporary houses from the
notion of “house-resistance” founded an expansion to the concept of house,
encompassing transitory experiences to think about other ways of permanence in
domestic spaces.

The creative process began with a return to five houses located in and around Paris
(houses I inhabited in the nineties) to put their particularities and similarities in
relation. The purpose of returning to these houses was to recapture past experiences
but subjecting them to a new appropriation. To this end, I established methodological
strategies to revisit the homes, with the objective of apprehending, through
photography, the daily life experienced among these many homes. Some analytical
categories were created to guide the proposed visual essay: the relationship between

1327
resident and houses; boundaries between exterior and interior; everyday gestures in
narrative detail.

To create a poetic of ways of living between houses, it was necessary to incorporate,


in the processes of artistic creation, everyday experiences and their aesthetics of
gestuality. Thus, each ordinary gesture served as an inspiring premise to inquire
about the small problems of daily life and to give a meaning to each photographic
essay (Living: I have a fixed address. How long? ; Entering: finally, I cross thresholds;
Open: everything here is temporary; Inhabit: I don't feel at home).

According to Michel de Certeau, to practice a space is to traverse it and appropriate


it in demarcation operations (CERTEAU, 1990, p.190). For the philosopher, narratives
are paths of space, starting at one point and ending at another. The ordinary gesture
of photographing the houses was revealed as a narrative mode of artistic
demarcation mediating the relationship between the artist and the houses. The
artistic gesture of photographing sought to value ordinary culture, considering the
small actions of the daily routine to demarcate houses through an autobiographical
artistic practice.

In this way, a method was established for photographing the houses. I started from
the assumption that these houses never belonged to me. Upon arriving at the site, I
tried to photograph the facades of the buildings and their details and then I tried to
penetrate the building in different ways, such as contacting the residents via the
intercom or in person through the main door. The proposal allowed different
accesses to the houses, from my staying outside the building to being able to ring the
bell in one of the apartments. The gradual approach in the buildings generated a
photographic narrative practice of varied and opportune aesthetics for each
dwelling.

Referências / References

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
2009.

1328
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, parte I. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2005a.
______. Ser e tempo, parte II. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária
São Francisco, 2005b.
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. São Paulo: Bookman, 2011.

Mini Currículo

Denise Moraes Cavalcante


Cineasta, artista visual e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Possui
mestrado e doutorado pelo PPGCom/FAC - UnB com estágio doutoral no Laboratório CRIMIC
(Université Paris IV Sorbonne) e pós-doutorado pelo PPGAVC - UFG. Sua pesquisa investiga as
poéticas do espaço doméstico com foco nas práticas artísticas autobiográficas.

Filmmaker, visual artist and professor at the Faculty of Communication at the University of Brasília.
She has a master's and doctorate from PPGCom / FAC- UnB with a doctoral internship at the CRIMIC
Laboratory (Université Paris IV Sorbonne) and a postdoctoral degree from PPGAVC-UFG. Her
research investigates the poetic of domestic space with a focus on autobiographical artistic practices.
E-mail: denise.moraes@fac.unb.br

1329
RETRATO

NARRATIVA VISUAL EN MOMENTOS DE PANDEMIA

Ayara Hernández Holz


Facultad de Artes/ UdelaR, Uruguay

Link:

Resumen Ampliado

En su texto “El ser especial” (2005), Giorgio Agamben argumenta que el espejo, - y
en nuestros tiempos también podría ser la pantalla de nuestros dispositivos
electrónicos-, es el lugar donde descubrimos nuestra imagen, y a su vez, la revelación
de que esta no nos pertenece. La imagen del espejo, señala, no es un ser o un cuerpo
o una “substancia” que se encuentra en un lugar determinado, sino un “accidente”
que se engendra a cada instante según el movimiento de quien la contempla. Desde
esta perspectiva, la imagen no es una cosa sino es una “especie” de cosa. La palabra
especie resulta más adecuada pues, como argumenta Agamben, el término “especie”
se vincula a la apariencia, al aspecto y a la visión. Por otro lado, agrega que “entre la
percepción de la imagen y reconocerse en ella hay un intervalo que los poetas
llamaron amor” (AGAMBEN, 2005, p.74).

Ahora bien, qué pasa cuando la imagen reflejada es una imagen digital que circula y
crea lazos con otros que están diseminados en otros espacios y tiempos. Ese
intervalo del que habla Agamben se dilata, se le suman múltiples capas, ese
“accidente”, - que es la imagen -, se replica, se transforma; adquiere otro tipo de
movimiento y tal vez finalmente se vuelva cosa. Hito Steyerl afirma que la imagen
tiene su propia materia, sus propios deseos y modos de existencia, que es, a fin de
cuentas, ”una cosa como tu y yo” (STEYERL, 2014).

1330
El siguiente video quiere poner en tensión de una manera poética estos dos
conceptos: la imagen de nosotros mismos reflejada en la pantalla (una especie de
espejo) y la imagen digital como materia, como otro cuerpo con sus propios deseos.

El trabajo fue hecho en el contexto de la Maestría de Arte y Cultura Visual, en la


Facultad de Artes en la UdelaR, durante la emergencia sanitaria, en un momento
donde toda la enseñanza se había volcado a la virtualidad. En dicho contexto algunas
preguntas se volvieron urgentes en mi docencia: ¿Cómo tocar sin tocarnos? ¿Dónde
queda el cuerpo en los espacios virtuales? A partir de estas cuestiones empecé a
reflexionar sobre la naturaleza misma de la imagen, influenciada por el texto de
Steyerl, y a pensar en su materia para poder así construir una relación más táctil con
las pantallas. Fue así como decidí jugar con mi propia imagen reflejada en la
plataforma zoom, -espejo de estos tiempos-, y construir una caja china de
fotografías.

La premisa del trabajo fue capturar una situación que se volvió muy cotidiana
durante los momentos más críticos de la pandemia; estar sentada frente a la
computadora a punto de iniciar una reunión. Fue así como decidí hacer una serie de
fotografías de fotografías de mi reflejo, que se volvieron este video, en donde la
imagen inicial se fue distorsionando hasta que mi rostro desapareció por completo,
y sólo quedaron manchas de luz y color. El “intervalo” que mencionaba Agamben se
fue dilatando, el rostro dejó de ser reconocible. En ese desmembramiento, en esa
serie de “accidentes”, la representación del cuerpo desaparece; porque tal vez ese yo
tiene que desaparecer para dar lugar a otra cosa, y esa otra cosa que emerge revela
otra materia, otra carne que no es humana, ni la representa.

1331
PORTRAIT

VISUAL NARRATIVE IN TIMES OF PANDEMIC

Ayara Hernández Holz


Facultad de Artes/ UdelaR, Uruguay

Giorgio Agamben, in his text "Special being" (2005), argues that the mirror, - in our
times it could be the screen of our electronic devices-, is the place where we discover
our image and the revelation that it does not belong to us. The image in the mirror,
he points out, is not a being or a body or a "substance" that is found in a certain place,
but is an "accident" that is generated every moment a person is contemplating it.
From this perspective, the image is not a thing but a “kind of thing”. The word species
is more appropriate because, as Agamben argues, the term "species" is linked to
appearance, aspect and vision. On the other hand, he adds that "Between the
perception of the image and recognition of oneself in it, there is a gap, which the
medieval poets called love" (AGAMBEN, 2005, p.74).

Now, what happens when the reflected image is a digital image that circulates in the
net and creates connections with other beings who are somewhere else, in other
places and times. That gap that Agamben talks about expands and multiples, that
“accident”, - which is the image -, is replicated, transformed; it acquires another type
of movement and perhaps finally becomes a thing. Hito Steyerl affirms that the image
has its own matter, its own desires and modes of existence, which is, after all, "a thing
like you and me" (STEYERL, 2014)

The video presented here wants to put in a poetic tension these two concepts: the
image as a reflection of ourselves on the screen (a kind of a mirror) and the digital
image as a material thing, as another body with its own desires.

The work was created in the context of the Master of Arte y Cultura Visual at Faculty
of Arts at UdelaR, during the health emergency. In this context, some questions
became urgent in my teaching: How to touch without touching? Where is the body

1332
in the virtual spaces? Based on these questions, I began to reflect about the very
nature of the ima-gen, influenced by Steyerl's text, I started to think about its
materiality, in order to have a more tactile relationship with screens. This is how I
decided to play with my own image reflected in the zoom platform, -a mirror of these
times-, and build a Chinese box of photographs.

The task of the work was to capture a daily moment during the pandemic: sitting in
front of the computer about to start a meeting. That is how I decided to take a series
of photographs of my reflection, which became this video, where the initial image
was distorted until my face completely disappeared, and only spots of light and color
remained. The “gap” that Agamben mentioned was expanding, the face ceased to be
recognizable. In that dismemberment, in that series of “accidents”, it seems that the
representation of the body slips away; because perhaps the “I” needed to disappear
for something else to appear, and that other thing that appears reveals another
materiality, another flesh that is not human, and neither represents it.

Referências / References

AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones, Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 2005


STEYERL, Hito. Los condenados de la pantalla, Buenos Aires, Caja Negra. 2014

Mini Currículo

Ayara Hernández
Es artista escénica y docente. Estudió danza con Contradanza (Uruguay), en el EDDC (Países
Bajos) e hizo su maestría en la Práctica de las Artes Contemporáneas y Diseminación (España)
en 2009. Desde hace más de 15 años hace sus propias obras escénicas www.lupitapulpo.org.
Actualmente estudia en la maestría de Arte y Cultura Visual, es docente en la Licenciatura
de danza contemporánea y es asistente académica en la Facultad de Artes/ UdelaR. E-mail:
ayarahernandez@gmail.com

1333
FONOTECA DE IGNORANCIAS

Natália Chaves Bandeira


PAD-UNAM, México

Link para o trabalho:


https://micuim.art/fonoteca-de-ignorancias/ (micuim.art)

Resumo Expandido

Todo lo que no es conocido es ignorado. Cuando necesitamos


consultar una fuente vamos detrás de una ignorancia nuestra, para
convertirla em conocimiento.

La Fonoteca de Ignorancias es una invitación a intercambiar voces.


Historias, conocimientos que creemos importantes ofrecer.

La importancia del conocimiento es de criterio personal, la utilidad de


un saber no lo da quien sabe sino quien escucha.

Así que, en ese repertorio colectivo, contar, explicar, disertar,


inventar es una elección de quien se permite el poder del habla. Y
apreciar el valor de los saberes es para quien se da el poder de la
escucha.

La premisa de esta propuesta artística guarda una serie de inquietudes que han
reverberado durante el periodo el que estuve desarrollando la investigación de la
maestría y que más allá de esta misma, se han manifestado en el cotidiano. ¿qué
caracteriza el conocimiento en arte? ¿qué distingue un conocimiento científico de
otro tipo, las palabras conocimiento y saber? ¿Cómo valoramos o evaluamos los
conocimientos?

Al mismo tiempo, todo lo que me cuestionaba, trataba de vincular o experimentar a


través o a partir de lo sonoro. ¿Por qué? No lo sé precisar. Escogí esa cárcel cómoda
que fue adentrarme al oído humano, a jugar en posibilidades entre la creación
sonora y las posibilidades de escucha.

Simultáneo a esto, ocurría un fenómeno supuestamente disociado de todo.


Contextualizando: para este entonces, acababa de hacer la fuga de la gran ciudad
hacia un pequeño pueblo, como muchos lo hicieron durante la pandemia,
1334
aprovechándose de que las actividades laborales se trasladaron al modo remoto. En
este pueblo hay una enorme cadena montañosa frente a un lago de proporción
igual de grande. El pequeño pueblo se ubica entre los dos gigantes. Con una vecina
y su sobrina pasé a subir uno de los cerros cercano a nuestras casas, actividad
común entre muchos habitantes. Un día, mientras caminábamos, yo les conté que
había intentado llevar a un amigo por este mismo camino que ellas me habían
enseñado, pero que justo en el punto donde íbamos, me encontré con la duda y por
decisión conjunta decidimos regresar, a pesar de que ahora me percataba de que
iba bien. En este momento, la sobrina de mi vecina dijo que a veces el cerro habla y
tiene cosas para enseñarnos. De este comentario advino una serie de reflexiones
acerca de la escucha: ¿cómo escuchar estos seres que supuestamente no hablan?
¿una escucha dialéctica, es decir, una escucha conjunta, en la que podemos discutir
con otras personas acerca de lo que se oye, esta sería la respuesta? ¿qué
conocimiento era ese de que el cerro hablaba cosas para nosotras, de dónde venía?
¿del caminar?

Tantas preguntas… lo que cada vez me parece más sensato es seguir escuchando y
como “pájara en el alambre”, posar, acallar y disponer el oído, más y más. Proponer
una cabina de escucha fue la forma artística de hacer eso e invitar a la población
que llenara mis oídos (y los de quienes quieran escuchar) a través de una
recaudación de conocimientos para sanar algunas ignorancias. Este fue el pretexto,
la premisa, la introducción.

Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. / Sou um sujeito


letrado em dicionários. / Não tenho mais que 100 palavras. / Pelo
menos uma vez por dia me vou no Morais ou no Viterbo. -/ A fim de
consertar minha ignorãça, / mas só acrescenta. / Despesas para
minha erudição tiro nos almanaques:/ - Ser ou não ser, eis a questão.
/ Ou na porta dos cemitérios:/ - Lembra que és pó e que ao pó tu
voltarás. / Ou no verso das folhinhas: /- Conhece-te a ti mesmo. /
Ou na boca do povinho:/ - Coisa que não acaba no mundo é gente
besta / e pau seco. / Etc. / Etc. / Etc. / Maior que o infinito é a
encomenda.

1335
IGNORANCE PHONEBOOK

Natália Chaves Bandeira


PAD-UNAM, México

When we need to consult a source, we go after our ignorance, to


convert it into knowledge. The Fonoteca de Ignorancias is an
invitation to exchange voices. Stories, knowledge that we believe
important to offer. The importance of knowledge is of personal
criteria, those who know do not give the usefulness of knowledge but
by those who listen. Therefore, in this collective repertoire, telling,
explaining, disserting, inventing is a choice of those who allow
themselves the power of speech. Moreover, appreciating the value of
knowledge is for those who give themselves the power of listening.

The premise of this artistic proposal keeps a series of concerns that have
reverberated during the period in which I was developing the research of the
master's degree and that beyond this, have manifested themselves in everyday life.
What characterizes knowledge in art? What distinguishes scientific knowledge
from another type, the words knowledge and knowing? How do we value or
evaluate knowledge?

At the same time, everything that questioned me, I tried to link or experience
through or from the sound. Why? I do not know how to specify. I chose that
comfortable prison that was to enter the human ear, to play in possibilities between
sound creation and listening possibilities.

Simultaneous to this, a phenomenon supposedly dissociated from everything


occurred. Contextualizing: by this time, he had just fled from the big city to a small
town, as many did during the pandemic, taking advantage of the fact that work
activities were moved to remote mode. In this town, there is a huge mountain
range in front of a lake of equal proportions. The small town sits between the two
giants. With a neighbor and her niece, I went up one of the hills near our houses, a
common activity among many inhabitants. One day, while we were walking, I told
them that I had tried to take a friend along this same path that they had taught me,

1336
but that right at the point where we were going, I found myself in doubt and by
joint decision we decided to return, despite Now I realized that it was going well.
Right now, my neighbor's niece said that sometimes the hill talks and has things to
teach us. From this comment, came a series of reflections about listening: how to
listen to some beings that supposedly do not speak? A dialectical listening, that is, a
joint listening, in which we can discuss with other people about what is heard, this
would be the answer? What knowledge was that that the hill spoke things to us,
where did it come from? Of walking?

So many questions… what seems more sensible to me is to continue listening and


like a “bird on the wire”, pose, silence and listen more and more. Proposing a
listening booth was the artistic way of doing that and inviting the population to fill
my ears (and those of those who want to listen) through a collection of knowledge
to heal some ignorance. This was the pretext, the premise, the introduction.

I occupy a lot of myself with my not knowing. / I am a dictionary-


literate fellow. / I do not have more than 100 words. / At least once a
day I go to Morais or Viterbo. -/ In order to fix my ignorance, / but it
just adds. / Expenses for my erudition I take from almanacs: / - To be
or not to be, that is the question. / Or at the door of cemeteries: / -
Remember that you are dust and to dust you will return. / Or on the
back of the sheets: /- Know yourself. / Or in the mouth of the
people: / - Things that do not end in the world are stupid people /
and dry wood. / Etc. / Etc. / Etc. / Greater than infinity is the order.

Referências / References

BARROS, Manoel de. O livro das Ignorãças. Madrid: Alfaguara, 2016.

Mini Currículo

Natália Chaves Bandeira (Porto Alegre, 1985)


Artista, docente e pesquisadora. Vive no México, desde 2014. Desde 2006 trabalha como arte-
educadora. Dirigiu os documentários O Clube (2013) e Nêga Lú (2015), apoiados por FUMPROARTE -
Porto Alegre e FAC das Artes - RS, respectivamente. Hoje trabalha com pesquisa em Arte Sonora.
Estudou Licenciatura em Artes Visuais na UFRGS e é mestranda em Docência em Artes e Design na
Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). E-mail: ziriguidumbonito@gmail.com

1337
A PIANISTA: BREVE POLIMORFIA DE UMA MOBÍLIA

Bruna Mazzotti
PPGAV/EBA/UFRJ, Brasil

Alice Vitoriano
Brasil

Link para o trabalho:


https://vimeo.com/760008257

Resumo Expandido

Bruna Mazzotti: Eu havia acabado de assistir ao filme: “Doutor Estranho no


Multiverso da Loucura”. Tal obra tem a seguinte premissa: os sonhos que temos
durante o dormir são responsáveis por intermediar acesso entre mundos. Em
seguida, saí do quarto para buscar uma água e, como de costume, passei por uma
escrivaninha velha, utilizada por 14 anos pelo meu namorado, recentemente
aposentada – recostada na parede da sala até que possamos encontrar um destino
melhor para ela, do qual ainda não sabemos. Acontece que, quando vi aquela
escrivaninha no referido contexto – após o filme – em um breve lapso, ao invés de
enxergá-la tal qual, vi um piano. Entendi isso enquanto um breve entrever de uma
polimorfia: quando uma coisa se transforma em outra, indo do móvel ao
instrumento. Por exemplo, no jogo Divinity II, essa técnica se traduz na capacidade
de alterar a aparência de personagens bípedes para que tenham habilidades de
outros animais, ou seja, por um curto período é possível hibridizar o corpo com:
chifres de touro, tentáculos de polvo, patas de aranha, ásas de águia – cada qual
interfere sumariamente em novas habilidades a serem incorporadas pelo portador,
que servem tanto para aplicação no combate, quanto para ter passagem por lugares
antes inacessíveis (LARIAN STUDIOS, 2017). O que se relaciona com a abordagem
multiespecífica: “onde não há centralidade humana sobre os vários agentes, mas a
relação dos agentes entre si" (BORGES et. al., 2020, online) – o que também é
realizado em sonhos, pois neles uma pessoa se transforma em outra, um lugar em
outro, culminando em diversas conjugações (ibid.). Este trabalho é parte de minha

1338
investigação de mestrado, tomada por dois momentos. No primeiro: eu sonhava,
relatava os sonhos para amigos, programava uma peformance (FABIÃO, 2013) e,
por fim, realizava-a. No segundo, por sua vez, reordenei a diretriz: elaborava um
programa, fazia a performance, intencionava sonhar com ela até que viesse o
sonho, seguido do relato. Nesse sentido, instituí o seguinte: ficar sentada diante da
escrivaninha, movendo as mãos na madeira que está na altura do meu peito, como
se fosse um piano. O enquadramento foi fechado, com referência ao que
normalmente se vê em filmagens de pianistas no YouTube. Após isso, o vídeo foi
combinado com uma faixa sonora composta por Alice que, a seguir, contará sobre
esse processo. Alice Vitoriano: Assim que fui contatada, lembrei de uma pequena
gravação que eu tinha cantando uma melodia simples e decidi convertê-la para o
piano, utilizando programas gratuitos para programar a faixa. Busquei fazer a
primeira parte da música como uma linha melódica acompanhada por acordes; já
na segunda parte, tentei introduzir uma nova linha melódica que agora faz
contraponto, ou seja, "a combinação de duas ou mais melodias tocadas ao mesmo
tempo" (COUNTERPOINT, 2022, tradução nossa), com a melodia anterior. A ideia
inicial foi escrita em andamento rápido e sem muitos filtros, mas ao refletir sobre
uma versão preliminar do vídeo, busquei desacelerar a faixa e filtrá-la com
programas que imitam a degradação de um vinil e fita cassete com o fim de evocar
o caráter onírico presente na performance filmada. Bruna Mazzotti: Por fim,
juntamos a faixa de áudio com a gravação da performance para o vídeo, resultando
no trabalho “A Pianista”, feito para influenciar um sonho posterior.

1339
THE PIANIST: A BRIEF POLYMORPHY OF A FURNITURE

Bruna Mazzotti
PPGAV/EBA/UFRJ, Brasil

Alice Vitoriano
Brasil

Expanded Abstract

Bruna Mazzotti: I had just watched the movie “Doctor Strange in the Multiverse of
Madness”. Such piece has the following idea: the dreams we have during sleep are
responsible for intermediating the access between worlds. Consequently, I left my
room to get some water and, as usual, passed through an old desk, used for 14 years
by my boyfriend, and recently it was retired – pressed agains the wall of the living
room until we could find a better destiny for it, which we still hasn’t nown.
Moreover, when I saw that desk in this specific context – after the movie – on a
brief lapse, instead of seeing it as such, I saw a piano. I understood this as a brief
glimpse of a polymorphy: when one thing transforms into another, going from the
furniture to the musical instrument. For example, in the game Divinity II, this skill
translates itself as the ability to change the appearance of biped characters giving
them characteristics of other animals. In other words, for a short period of time it is
possible to hybridize the body with: horns, octopus tentacles, spider legs, eagle
wings – in which each deeply change into new abilities to be enbodied into the
bearer, serving not only for combat, but to access specific places as well (LARIAN
STUDIOS, 2017). This is related to the multispecific approach: “where there is no
human centrism over the many agents, but the relation between the agents
(BORGES et al., 200, online, our translation) – which is also present in dreams since
in them a person transform into other, a place into other, generating in diverse
conjugations (ibid.). This work is part of my Master’s degree investigation, taken by
two moments. In the first: I dreamed, reported the dreams to friends, programmed
a performance (FABIÃO, 2013) and, at last, made it. In the second, by itself, I
reordered the guideline: I elaborated a program, made the performance, and

1340
intended to dream with it until the dream comes, followed by the report. In this
context, I set as rules: to be seated in front of the desk, moving my hands on the
wood at the level of my chest, as it was a piano. The framing was close, as reference
to what usually is seen at pianist videos on YouTube. After this, the video was
combined with a soundtrack made by Author 2, who will describe next the process.
Alice Vitoriano: As soon as I was contacted, I remembered about a brief recording I
had singing a simple melody and decided to convert it to the piano, using free
softwares to program the track. I made the first part of the song as a melodic line
followed by chords; on the second part, I tried to introduce a new melodic line,
adding counterpoint, in other words, “the combination of two or more different
tunes played at the same time” (COUNTERPOINT, 2022) to the previous melody.
The initial idea was written on a fast pace and without many filters, but after
considering a preview of the video I slowed the track and filtered it with softwares
that mimic the vinyl and K7 tape degradation with the goal of bringing an oniric
perspective that was present in the filmed performance. Bruna Mazzotti: In the
end, we mixed the audio track with the video recording of the performance,
resulting on the work “The Pianist”, made to influence a next dream.

Referências / References

BORGES, F. M. et al. Onirocracia, pandemia e sonhos ciborgues. In: N1 Edições. 2020.


Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/197?fbclid=IwAR0-
cNOGSGCpHFrIETmKM2YC2urG8CumMCus-GMIC8Ia7k9PXxgW-WyF1RY. Acesso em: 09
out. 2022.
COUNTERPOINT. Cambridge Advanced Learned Dictionary and Thesaurus. Cambridge
University Press, 2022. Disponível em:
https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/counterpoint.Acesso em: 09 out.
2022
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. In: Ilinx-Revista do
LUME, n. 4, 2013. Disponível em:
https://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276. Acesso
em: 05 jun. 2022.
LARIAN STUDIOS. Divinity II: Original Sin. Tokyo: Bandai Namco Entertainment, 2017. 1
jogo eletrônico.

1341
Mini Currículos

Bruna Mazzotti
Artista visual e professora de artes. Possui Mestrado em Artes Visuais, Linha Poéticas
Interdisciplinares, pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (PPGAV/UFRJ). Integra o Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas
(NuPAA/FAV/UFG/CNPq). E-mail: bruna_mq@live.com

Alice Vitoriano
Compositora e Artista Visual, graduada em Licenciatura em Música pela Universidade Federal do
Amazonas (2015-2018).

1342
VIDEOPERFORMANCE MÁSCARAS E ROSTIDADES

Tamiris Vaz
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Anna Bheatriz Ferreira Cançado


Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Link para o trabalho:

Resumo Expandido

Entre março de 2021 e setembro de 2022 desenvolvemos um projeto de Iniciação


Científica que previa um estudo dos conceitos de rostos enquanto máquinas,
rostidades (DELEUZE; GUATTARI, 1996) e os papeis que a máscara poderia alcançar
enquanto objeto conceitual para a produção de um trabalho artístico.

Para que pudéssemos desenvolver esta pesquisa, questões marcantes sobre


memória e infância se alinharam com pensamentos acerca do corpo, da
performance, da fotografia, contando com referências artísticas como Lygia Clark,
Lygia Pape e Cindy Sherman, criando impulsos, movimentos e possibilidades do que
se pode ser a partir do uso das máscaras (físicas ou imaginárias) que vestimos nos
atravessamentos da vida.

Estas referências artísticas nos inspiraram em suas poéticas acerca do corpo,


alinhadas ao conceito de Deleuze e Guattari (1996) sobre rostos e rostidades e de
Carl Jung (2002) sobre a função social do rosto. Foram produzidas, então, três
máscaras que, ao serem vestidas por três estudantes de cursos de artes (Artes
Visuais e Teatro), ganharam vida, ao mesmo tempo em que possibilitaram outras
nuances para as identidades de quem as vestia. Esse processo resultou em uma
série de fotografias e na videoperformance aqui apresentada.

1343
O estudo propôs entender o conceito de rostidade a partir dos rostos que
produzem encaixes a identidades fixas. Para isso, foram produzidas máscaras que,
pelo seu uso, questionem a função do rosto e da identidade, propondo
experiências, discussões e registros, provocando reterritorializações pela
fotoperformance.

Inicialmente, a pesquisa partiu de uma série de estudos conceituais, históricos e


práticos, através de leituras sobre o uso de máscaras na história da humanidade, a
possibilidade de criação de novas identidades a partir de seu uso, e como essa
característica se expande de forma efêmera, se alinhando a conceitos de esfera
psicológica e artística contemporânea.

Além dessas relações, a própria experimentação do material e a produção das


máscaras acaba por abalar limites sociais do rosto, pois ao produzir e escrever
sobre o processo, a artista já expõe suas limitações, sucessos, dúvidas, conclusões e
resultados acerca da materialidade, das propostas de sensações e de suas
referências estéticas.

No decorrer da pesquisa, os três estudantes de artes convidados vestiram as três


máscaras e performaram, tendo os encontros registrados em forma de relato,
fotografias e vídeos, além de suas visões finais sobre a experiência, resultando em
outros materiais que, no final da pesquisa, foram expostos no Laboratório Galeria
da UFU.

Um dos resultados desse processo foi a videoperformance Máscaras e Rostidades,


narrativa visual que traz um pouco da atmosfera vivida no momento em que as
máscaras foram vestidas. Neste momento, a pesquisadora, atrás da câmera, optou
por tentar assumir um caráter neutro, como se fosse apenas uma “máquina” atrás
das lentes, a fim de que sua participação influenciasse o mínimo possível a relação
dos participantes com a máscara, o que resultou em interações curiosas entre
performers e câmera. As máscaras passaram a compor junto de seus corpos e
movimentos, produzindo sensações únicas, que foram transformando, naqueles
instantes, suas relações com o espaço, com a câmera e consigo mesmos.

1344
VIDEOPERFORMANCE MASKS AND FACIALITIES

Tamiris Vaz
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Anna Bheatriz Ferreira Cançado


Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Between March 2021 and September 2022 we developed a Scientific Initiation


project to study the concepts of faces as machines, facialities (DELEUZE;
GUATTARI, 1996) and the roles that the mask could achieve as a conceptual object
for the production of an artistic work.

In order to develop this research, striking questions about memory and childhood
aligned with thoughts about the body, performance, photography, recounting
artistic references such as Lygia Clark, Lygia Pape and Cindy Sherman, creating
impulses, movements and possibilities of what we can be with the use of masks
(physical or imaginary) that we wear at the crossings of life.

These artistic references inspired us in their poetics about the body, aligned with
the concept of Deleuze and Guattari (1996) about faces and facialities and Carl Jung
(2002) on the social function of the face. Three masks were then produced, and
when worn by three students of arts courses (Visual Arts and Theater), gained life
and had new nuances to the identities of their wearers. This process resulted in a
series of photos and the videoperformance that is presented here.

The study proposed an understanding about the concept of faciality from the faces
that produce fittings to fixed identities. For this, masks were produced so that,
through their use, question the function of the face and identity, proposing
experiences, discussions and records about its use, provoking reterritorializations
through a photoperformance.

Initially, the research started from a series of conceptual, historical and practical
studies, through research in books and websites on the use of masks in the history
of humanity, the possibility of creating new identities from their use, and how this
1345
characteristic expands in an ephemeral way, aligning itself with concepts of
contemporary psychological and artistic spheres.

In addition to these relationships, the very experimentation of the material and the
production of the masks end up shaking these social limits of the face, because
when producing and writing about the process, the artist already exposes her
limitations, successes, doubts, conclusions and results about materiality, proposals
of sensations and aesthetic references.

During the research, the three invited art students wore the three masks and
performed. The meetings were recorded in the form of reports, photos, videos, in
addition to their final views on the experience, resulting in other materials that at
the end of the research were exhibited in the UFU Gallery Laboratory.

One of the results of this process was the videoperformance Masks and Facialities,
a visual narrative that brings some of the atmosphere that was lived at the time the
masks were worn. At this moment, the researcher, behind the camera, chose to try
to assume a neutral character, as if it were just a "machine" behind the lenses, so
that her influence in the relationship of the participants with the masks was as little
as possible, and that resulted in curious interactions between performers and
camera. The masks began to compose together with their bodies and movements,
producing unique sensations, transforming, in those moments, their relations with
space, with the camera and with themselves.

Referências / References

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1997.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis. Vozes 2002.

Mini Currículos

Tamiris Vaz

1346
Professora do curso de Artes Visuais (IARTE/UFU). Doutora em Arte e Cultura Visual (UFG), Mestra
em Educação (UFSM), graduada em Artes Visuais (UFSM). Atua como líder do UIVO: matilha de
estudos em criação, arte e vida (UFU). E-mail: tamirisvaz@gmail.com

Anna Bheatriz Ferreira Cançado


Bolsista de Iniciação Científica Capes/CNPQ, discente do curso de Artes Visuais (IARTE/UFU),
integrante do UIVO: matilha de estudos em criação, arte e vida (UFU). E-mail: etrizc@gmail.com

1347
IMORREDOURO: PROCESSO COREONARRATIVO F(R)ICCIONAL

Davidson José Martins Xavier


PPGAC-UFG

Link para o trabalho:


https://vimeo.com/745937516

Resumo Expandido

Reflito aqui sobre a pesquisa intitulada Uma dramaturgia à deriva: possibilidades de


a.bordar o corpo pela dança teatro, vinculada ao Programa de pós graduação em Artes
da Cena (PPGAC/EMAC/UFG). Neste processo de pesquisa artística utilizo de
devaneios autoficcionais e escrevivências (EVARISTO,2007), para adentrar em meu
imaginário geraizeiro.

Abro espaço para uma variedade de identidades mais ou menos míticas, onde
subjetividades se encontram entre realidade e ficção. Neste espaço de fronteira
utilizo a autoficção como performance (KLINGER, 2012) como forma de alterar
mitologias em um processo de f(r)icção do imaginário.

Neste flagrante delito de fabular (DELEUZE,1992 Apud, PRECIOSA, 2010) crio esta
coreonarrativa, inspirada no dança-teatro Bauschiniano, classificado por Patrice
Pavis (2008) como uma fricção do bailarino, que hesita entre o gesto dançado e o
gesto mimético

Segundo Luciana Lyra (2010) o trabalho com performance é uma maneira do artista
se revelar como é em vida, onde, por meio de um trabalho cênico entrelaça o eu-
artista com sua alteridade. Este processo dá ao imaginário uma possibilidade de
encontrar laços de comunhão com espaços que serão experienciados por histórias
do artista, “numa espécie de autobiografia coletiva”(LYRA, 2010, p.178)

Imorredouro é uma video-cartografia do imaginário que retorna à ancestralidade.


Este ser que ao mesmo tempo influencia-se pelo espaço é influenciado por ele, cria
um lugar de afeto, um sertão imaginal. Este sertão diverge da noção intelectual posta
em uma volta do infinito, representando o externo, o fora do corpo, o território do
1348
mundo objetivo. Enquanto a outra curva seria o espaço do interno, de dentro do
corpo, o lugar do Ser-tão, minadouro de subjetividades e da percepção sensível.

Este leitmotiv geraizeiro me fez pensar o sertão como um espaço de encruzilhada


como exposto por Luiz Rufino (2017), que entende o movimento afrobrasileiro como
prática de reinvenção e atravessamentos; por isso o cruzo do símbolo do infinito se
torna um modo insurgente de criar outras potências poético-políticas surgidas em
zonas fronteiriças.

O esqueleto do monumento das Raças Indígenas, obra inacabada do artista Siron


Franco, localizado no setor Buriti Sereno, foi utilizado como locação e escolhido por
esta estrutura circular chamar ao constante movimento. No trabalho desenvolvido,
pretendo olhar nos olhos da máscara branca que me foi dada, para que ao retirá-la
possa, como diz Lourenço (2021), encontrar uma dança que tenha cor. Classifico esta
pesquisa como uma coreonarrativa, primeiro por utilizar a força circular que o
monumento me entrega, ligando o espaço a um lugar de ancestralidade, e segundo
por pensá-lo de modo coreogeográfico (KATZ,2001) ao integrar-me ao espaço,
tornando-o além de espaço, um lugar de intimidade e fragilidade.

Palavras-chave: Sertão. Catrumano. Processo criativo. Coreonarrativa.

IMORREDOURO: F(R)ICTIONAL COREONARRATIVE PROCESS

Davidson José Martins Xavier


PPGAC-UFG

I reflect here on the research entitled A dramaturgy adrift: possibilities of


approaching the body through dance theater, linked to the Graduate Program in Art

1349
on stage. In this process of artistic research, I use autofictional daydreams and
writings (EVARISTO, 2007), to enter my geraizeiro’s imaginary.

I make room for a variety of more or less mythical identities, where subjectivities are
found between reality and fiction. In this border space, I use autofiction as
performance (KLINGER, 2012) as a way of altering mythologies in a process of
f(r)iction the imaginary.

In this flagrant crime of fable (DELEUZE, 1992 Apud, PRECIOSA, 2010) I create this
choreo-narrative, inspired by the Bauschinian dance-theater, classified by Patrice
Pavis (2008) as a dancer's friction, who hesitates between the danced gesture and
the mimetic gesture.

According to Luciana Lyra (2010) the work with performance is a way for the artist
to reveal himself as he is in life, where, through a scenic work, he intertwines the
artist-self with his otherness. This process gives the imagination the possibility of
finding bonds of communion with spaces that will be experienced by the artist's
stories, “in a kind of collective autobiography” (LYRA, 2010, p.178)

Imorredouro is a video-cartography of the imaginary that returns to ancestry. This


being that at the, same time, is influenced by the space is influenced by it, creates a
place of affection, an imaginal sertão. This sertão diverges from the intellectual notion
set in a loop of infinity, representing the external, the outside of the body, the
territory of the objective world. While the other curve would be the internal space,
inside the body, the place of Ser-tão, sprouter of subjectivities and sensitive
perception.

This Geraizeiro leitmotiv made me think of sertão as a crossroads space, as exposed


by Luiz Rufino (2017), who understands the Afro-Brazilian movement as a practice of
reinvention and crossings; that is why the cross of the symbol of infinity becomes an
insurgent way of creating other poetic-political powers that emerged in border
areas.

The skeleton of the Indigenous Races monument, an unfinished work by Siron


Franco, located in the Buriti Sereno neighborhood, was used as a location and chosen
for this circular structure to draw constant movement. In the developed work, I
intend to look into the eyes of the white mask that was given to me, so that when I

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remove it, as Lourenço says (2021), I can find a dance that has color. I classify this
research as a choreo-narrative, first for using the circular force that the monument
gives me, linking the space to a place of ancestry, and second for thinking about it in
a choreogeographic way (KATZ, 2001) by integrating myself into the space, making
it, in addition to space, a place of intimacy and fragility.

Keywords: Sertão. Catruman. Creative Process. Coreonarrative.

Referências

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de


minha escrita. In ALEXANDRE, Marcos (Org.) Representações performáticas brasileiras:
teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Maza Edições, 2007.
KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal da Tarde. SP, 7 de maio de 2001.
KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Revista brasileira de Literatura
Comparada, São Paulo, n. 12, 2012, p. 11-30. Associação Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC).
LYRA, Luciana de Fátima. Rocha Pereira. Guerreiras e Heroínas em performance: Da
artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas. 2010. Tese (Doutorado em Artes em Artes
Cênicas), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP,
2010.
LOURENÇO, Kleber. Sobre corpos, cruzos: dramaturgias urgentes. In: Acordar o chão:
dramaturgias em danças contemporâneas negras. Kanzelumuka (Org.). São Paulo: Edição
Independente, 2021,pp.22-37.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 1998.
PRECIOSA, Roseae. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo.
Porto Alegre: Sulina: UFRGS Editora, 2010.
RUFINO, Luiz. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. 231 f. (Tese), Doutorado em Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- Faculdade de Educação. Rio de Janeiro, 2017.

Mini Currículo

Davidson José Martins Xavier


Artista da dança e do movimento. Bolsista FAPEG no mestrando em Artes da Cena PPGAC/UFG.
Integrante do Núcleo de pesquisas artísticas autobiograficas – NuPAA desde 2020, onde procurada
por uma narração de si através da autoficção escrevivente. Possui experiência em Dramaturgia(s) e
Poéticas do corpo, Processos Criativos e Videodança. E-mail: navicularse@gmail.com
1351
Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual
O Seminário Internacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual (SIPACV) é um evento realizado
pelos Programas de Pós-Graduação “Arte e Cultura Visual” (PPGACV-UFG, Brasil) e “Maestría en
Arte y Cultura Visual” (Facultad de Artes – UDELAR, Uruguai), e está voltado a pesquisadores(as) e
estudantes de pós-graduação em arte, cultura visual e áreas afins, interessados(as) na interlocução,
cooperação e divulgação de seus projetos e pesquisas.

O evento foi realizado pela primeira vez no ano de 2000, com o objetivo de divulgar e fomentar
diálogos e discussões sobre a produção docente e discente da Faculdade de Artes Visuais <https://
fav.ufg.br/>. A partir de 2003, em sua quarta edição, a realização do Seminário ficou a cargo do
Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV) <https://culturavisual.fav.ufg. br>,
recém implementado na Universidade Federal de Goiás (UFG) que, a partir de então, assumiu a
responsabilidade de planejar e dar continuidade ao evento. Em 2008, o Seminário se transformou
em um evento nacional e incluiu programas de pós-graduação, pesquisadores(as), mestrandos(as) e
doutorandos(as) do país, expandindo interlocuções e reforçando o debate sobre questões do campo
da pesquisa em arte, poéticas e cultura visual. Em 2017, o evento passou a ser internacional e foi
realizado na cidade de Montevideo (Uruguai), em parceria com o Instituto Escuela Nacional de Bellas
Artes (IENBA-UDELAR) <http://www.enba.edu.uy>. Na ocasião, estabeleceu-se que a realização do
Seminário será alternada anualmente entre as cidades de Montevideo (UDELAR) e Goiânia (FAV/
UFG). Em 2022, a UDELAR cria a Facultad de Artes e o programa Maestría en Arte y Cultura Visual,
restabelecendo a parceria com o PPGACV-UFG.

Periodicidade: Anual
Idiomas aceitos para publicação: Português, Espanhol, Inglês

Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV-FAV-UFG)


Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás
Campus Samambaia. CEP 74690-900. Goiânia - Goiás - Brasil.
Contato: arteeculturavisual.fav@ufg.br

Programa de Maestría en Arte y Cultura Visual (Facultad de Artes – UDELAR, Uruguai)


Facultad de Artes, Universidad de la República (UDELAR)
Av. 18 de Julio 1772, Montevideo - Uruguay

1352
ANAIS DO V SEMINÁRIO
INTERNACIONAL DE
PESQUISA EM ARTE E
CULTURA VISUAL

ISSN 2595-8992

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