Você está na página 1de 1

Assine já

ÍPSILON MÚSICA CINEMA TEATRO DANÇA LIVROS

Com o apoio Saiba mais

LITERATURA

Livro de Mia Couto e Agualusa


nasce de uma amizade e
brinca com coisas sérias
O Terrorista Elegante e Outras Histórias,
consequência da amizade entre os escritores
moçambicano e angolano, foi escrito a quatro
mãos.

Lusa
12 de Outubro de 2019, 14:30

! " # $ %

Os escritores José Eduardo Agualusa e Mia Couto


escreveram parte do livro sentados à mesma mesa
de um jardim MONTAGEM SOBRE FOTOGRAFIAS
PÚBLICO

Os escritores Mia Couto e José Eduardo


Agualusa escreveram pela primeira vez um
livro juntos: o resultado foi uma obra que é
simultaneamente uma brincadeira e uma
crítica contundente à guerra, ao racismo e à
discriminação. O fruto desse trabalho chama-
se O Terrorista Elegante e Outras Histórias e
reúne três contos, baseados em peças de
teatro também de autoria partilhada entre os
dois, editado em Portugal pela Quetzal.

O livro é em parte consequência da


amizade entre os dois escritores, que têm
desde há muitos anos o hábito de trocar
ideias, enviar os textos um ao outro antes
de publicar, de servirem de conselheiros,
contou à Lusa o escritor moçambicano Mia
Couto. “Eu gosto da maneira como isso rompe
com aquela ideia feita do escritor que tem um
território sagrado, solitário e que isso não é
partilhável com ninguém. Acho que isso é um
disparate, acho que se pode fazer literatura
como se faz música, a quatro mãos, a seis
mãos, a doze mãos”.

Os dois primeiros contos - Chovem amores na


rua do matador e A caixa preta - foram escritos
à distância, através de trocas de mensagens,
em que o escritor angolano José Eduardo
Agualusa e Mia Couto acrescentavam, aos
poucos, o texto um do outro.

O último conto, primeiro do livro e que dá


título à obra, foi escrito sob um alpendre
de colmo em Boane, perto de Maputo,
Moçambique, num jardim imenso, onde os
dois amigos passaram dias sentados à mesma
mesa, cada um diante de um computador,
rindo, brincando e apostando na negação
dessa ideia de que a criação literária é sempre
um acto profundamente solitário. Por isso,
este conto “é o que está mais contaminado do
ponto de vista daquilo que não é propriedade
de nenhum, que não podemos localizar o que
é meu e o que é dele, porque trabalhamos
frase a frase juntos”, contou.

Nesta história, um angolano elegante que


veste fatos de alfaiate e se apresenta sempre
aprumado, de nome Charles Poitier Bentinho,
é preso em Portugal por suspeita de
participação em actos de terrorismo. O
homem acredita que consegue voar e na
prisão fala com um pássaro desenhado na
parede, que parece dar-lhe as orientações
necessárias para que cumpra a sua missão.

Segundo Mia Couto, O terrorista elegante foi


inspirado numa notícia verídica de um
homem apanhado no aeroporto de Lisboa,
em que se percebeu de imediato que havia ali
um equívoco. Para o escritor, este é o melhor
texto do livro: “É um texto mais estruturado.
Tivemos uma relação sempre de puro
divertimento, porque assumimos desde o
início que não somos dramaturgos”, mas
apesar desse divertimento, dessa paródia à
obsessão do ocidente com os terroristas e à
necessidade de apresentar um inimigo de
rosto visível, foi intenção dos autores fazer
uma chamada de atenção e uma crítica.

“A melhor maneira de criticar é fazer rir


daquilo que nos queremos distanciar. Na
verdade, vivemos nesta situação de
construção do medo e que cria a facilidade de
construir falsos culpados, porque à partida é
alguém que tem uma certa raça, um certo
discurso religioso, qualquer coisa que o torne
diferente e que seja fácil depois arranjar essa
etiqueta. Não é importante que seja verdade
ou não, porque serve essa confirmação
reiterada de que está ali uma ameaça, um
inimigo. A história é contada com essa
intenção mesmo: pode ser engraçada, pode
ter momentos em que se ri, mas o que está
por trás disso não tem graça nenhuma.”

A elegância da personagem é como se fosse


“um contraponto dessa acusação, que se
percebe logo que é inventada, que é
infundada": a resposta tem que ter essa
elegância e romper a distância que leva a que
nem se queira conhecer o outro porque já
sabemos quem é, continua Mia Couto. “Basta
conhecer o grupo a que pertencem e todos
são iguais, e essa é uma enorme violência”.

A vida, a liberdade, o espaço de abertura no


infinito, são temas fortes neste livro, já que
em todas as histórias há referências ao
enclausuramento. Na primeira história há a
prisão, na segunda um homem enclausurado
na sua própria demência, na terceira uma
casa fechada pela guerra.

Chovem amores na rua do matador, segundo


conto e aquele que originalmente era de Mia
Couto, apresenta como protagonista Baltazar,
um homem que pretende fazer as pazes com
o seu passado, matando as três mulheres da
sua vida, que acredita terem-no atraiçoado.
Aqui é dada também voz às três mulheres,
que contam a sua versão da mesma história
contada por Baltazar, permitindo aos
escritores exercitarem a capacidade de
encarnarem homem e mulher.

Esta tarefa criava em Mia Couto, no início da


sua carreira de escritor, uma dificuldade “que
na realidade nunca existiu”, conta,
explicando que é de uma geração em que era
importante ser homem e exibir isso a tempo
inteiro. “Como é que eu criava personagens
que eram mulheres?”, questionava-se, mas
depois perdeu o medo de aceitar que isso
estava dentro dele, que isso é o que se chama
“o nosso lado feminino”, e que tudo o resto
são “construções sociais”.

A última história do livro, A caixa preta,


original de José Eduardo Agualusa, passa-se à
noite, numa cidade mergulhada em caos e,
enquanto o conflito se desenrola nas ruas
escuras, um mascarado entra numa casa e
procura alguém para matar, obrigando
gerações de uma mesma família a
confrontarem-se e a enfrentarem os segredos
mais bem guardados.

Mia Couto confessa que há neste conto uma


certa intenção de fazer analogia entre aquela
família e o pós-guerra, um tema que é caro
aos dois escritores que viveram a infância e a
adolescência em ambiente de guerras, um em
Angola, o outro em Moçambique.

Há “essa personagem que surge com uma


máscara, porque tem medo da não-aceitação
por parte dos outros. Moçambique e Angola
viveram muito essa situação extrema, em que
as pessoas viviam uma situação polarizada,
em que ser o outro já era razão de
desconfiança, de criação desse rótulo do
inimigo”.

Quanto a projectos futuros, o escritor que se


assume como um poeta que está na prosa
porque anda “a fazer contrabando”, está a
escrever um texto em que pela primeira vez
volta ao seu tempo de infância e adolescência,
para mostrar como é que o mundo da guerra
colonial era vista pelo lado de Moçambique.
“A guerra colonial vista pelo lado de
Moçambique era uma guerra de libertação,
era assim pensada pelo menos. Na minha
cidade, quando isso surgiu, a cidade
enlouqueceu, a cidade da Beira entrou em
delírio e eu quero revisitar esse delírio, quero
uma resposta, como é que a loucura colectiva
pode ser uma resposta para uma situação
insustentável”. “Do ponto de vista do estilo
[literário], quero uma coisa mais seca, mais
enxuta”.

Os leitores são a força e a vida


do jornal
Assine o PÚBLICO
O contributo do PÚBLICO para a vida
democrática e cívica do país reside na
força da relação com os seus leitores.
Quanto maior for o apoio dos leitores,
maior será a nossa legitimidade e a
relevância do nosso jornalismo. Apoiar
o PÚBLICO é também um acto cívico,
um sinal de empenho na defesa de uma
sociedade aberta, baseada na lei e na
razão em favor de todos ou, por outras
palavras, na recusa do populismo e da
manipulação para privilégio de alguns.

Assine já

Sugerir correcção

& Torne-se perito

Ler 1 comentários

LER MAIS
LIVROS
(Não é possível) travar o vento com
uma peneira

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


O que a comunidade internacional
está a fazer em Moçambique “não é
ajudar, é indemnizar por danos
causados”

PSUPERIOR '
És aluno do ensino superior? Recebe
uma assinatura grátis

EM DESTAQUE

EDIÇÃO IMPRESSA
09 de Abril de 2024

• •
Ver mais

OPINIÃO

Abrir portas onde se erguem muros

Siga-nos Sobre

Newsletters Provedor do Leitor


Alertas Ficha técnica
Facebook Autores
X Contactos
Instagram Estatuto editorial
Linkedin Livro de estilo
Youtube Publicidade
RSS Ajuda

Serviços Assinaturas

Aplicações Edição impressa


Loja Jogos
Meteorologia Newsletters exclusivas
Imobiliário Estante P
Opinião
Assinar

Informação legal

Principais fluxos financeiros


Estrutura accionista
Regulamento de Comunicação de Infracções
Política para a prevenção da corrupção e infracções
conexas
Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção

Gerir cookies

Ajuda

Termos e condições

Política de privacidade

@ 2024 PÚBLICO Comunicação Social SA

Discordar é liberdade, aproveite-a Assine já

Você também pode gostar