Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
66-86
Resumo
O presente artigo se insere no conjunto de discussões sobre o “estilo de jogo” brasileiro, o chamado
futebol-arte, focando as ideias elaboradas por Gilberto Freyre, principalmente as presentes em
Foot-Ball Mulato (1938). Mais particularmente, objetiva-se compreender como as categorias “apolíneo” e
“dionisíaco”, basilares na definição freyriana do “estilo de jogo” brasileiro, são acionadas na construção de
representações sobre Pelé, dado que sua pessoa surge frequentemente representada como detentora de
características futebolísticas que ultrapassam os limites sugeridos pelas categorias em questão. Pensando a
produção de representações como um processo complexo e dinâmico, argumenta-se que não existe um
Pelé “verdadeiro”, definido a priori como absolutamente apolíneo ou absolutamente dionisíaco, mas que a
construção de representações sobre sua pessoa depende do contexto.
Abstract
This paper is part of the set of discussions about the Brazilian “style of play”, namely the “futebol-arte”,
focusing on the ideas elaborated by Gilberto Freyre, mainly those presented in Foot-Ball Mulato (1938).
Particularly, this study aims to understand how the categories “Apollonian” and “Dionysian”
– basic concepts in the Freyrian definition of the Brazilian “style of play” –, are triggered in the
construction of representations of Pelé, given that Pelé is often represented as the holder of football
characteristics that go beyond the categories in views. Having the creation of representations as a complex
and dynamic process in mind, this study proposes that the production of representations of Pelé is a
process that depends on the context, so that there is no “true” Pelé, defined a priori as either absolutely
Apollonian or absolutely Dionysian.
***
1Graduado em Engenharia Química pela Universidade Federal Fluminense (UFF); graduado em Comunicação
Social – Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF); mestre em Antropologia pelo Programa de
Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal Fluminense (UFF); doutorando
em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal
Fluminense (UFF). E-mail: diano_am@yahoo.com.br.
66
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
1. Introdução
Já se caminhou o suficiente na área da Antropologia dos Esportes para que não seja
arriscado iniciar um artigo afirmando que o futebol coloca-se, no Brasil, como protagonista na
produção, difusão e expressão de símbolos e identidades nacionais. Tal espaço ocupado pelo
futebol no país nada tem de natural, sendo, pelo contrário, fruto de um complexo processo, em
vigência desde no mínimo a década de 1930, que envolve a construção de uma relação entre a
seleção brasileira de futebol e a nação, na qual a primeira surge como metáfora e metonímia da
segunda. Pensando mais profundamente os mecanismos desse processo, a antropóloga Simoni
Guedes propõe a noção de “estilo de jogo” como um operador simbólico capaz de promover o
“trânsito entre as representações próprias ao campo desportivo e aquelas referentes à produção
das especificidades nacionais” (GUEDES, 2014, p.156-157).
O presente estudo se insere inicialmente no conjunto de discussões acerca do “estilo de
jogo” brasileiro, o chamado futebol-arte, focando as ideias elaboradas por Gilberto Freyre
(1900-1987) – tido como um dos agentes responsáveis por “‘inventar’, do ponto de vista
sociológico, a própria idéia de futebol-arte” (VELHO BARRETO, 2004, p.234) – e o artigo de
sua autoria intitulado Foot-Ball Mulato (1938), “uma das primeiras e mais influentes construções
do que viria a ser conhecido como ‘futebol-arte’ brasileiro” (GUEDES, 2014, p.154). De forma
mais delimitada, objetiva-se compreender, a partir da análise de escritos na área de Antropologia
dos Esportes, como as categorias “apolíneo” e “dionisíaco”, basilares na definição freyriana do
“estilo de jogo” brasileiro, são acionadas na construção de representações sobre Pelé2, dado que
sua pessoa surge frequentemente representada como detentora de características futebolísticas
que ultrapassam os limites sugeridos pelas categorias em questão.
Se a proposta é tomar o “estilo de jogo” brasileiro definido por Gilberto Freyre como
um operador simbólico capaz de promover o fluxo de mão dupla entre as expressões produzidas
pelos jogadores brasileiros nos gramados e as singularidades nacionais, acredita-se que um
primeiro passo necessário é o de apresentar, mesmo que de maneira sintética, tanto os
argumentos desenvolvidos pelo autor sobre a identidade nacional, como as características
singulares do que definiu como “Foot-Ball Mulato”.
Como apontado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, ao longo da década de 1920,
gradativamente, deu-se a emergência de uma nova perspectiva intelectual de definição do “ser
brasileiro”, perspectiva esta que contestava a “negação da existência de uma identidade brasileira
porque a civilização que a sustentava era heterogênea” (QUEIROZ, 1988, p.73), propondo, em
lugar disto, “a admissão da existência dessa identidade justamente porque esta civilização era
sincrética” (QUEIROZ, 1988, p.73). Essa nova perspectiva, prossegue a autora, encontrou
ressonância em agentes os mais diversos, tais como, por exemplo, os artistas e literatos que
participaram, em São Paulo, da Semana de Arte Moderna de 1922, e os autores de estudos
etnológicos realizados nos anos 1930 que “buscaram comprovar a existência e a excelência de um
conjunto vigoroso composto pela interpenetração de civilizações no Brasil” (QUEIROZ, 1988,
p. 69).
Indubitavelmente Gilberto Freyre é um dos mais proeminentes intelectuais que então
argumentavam em prol da tese de que o valor e a riqueza da cultura nacional encontravam-se nas
fontes diversas que originavam seus elementos: os portugueses, os negros e os índios. No
prefácio à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, originalmente publicado em 1933, Freyre
(2003, p.31) afirma que, dos problemas brasileiros, aquele que mais o inquietava era o da
miscigenação. Pode-se dizer que a inquietação do autor era alimentada pela visão dos intelectuais
que reconheciam na miscigenação uma barreira a impedir o desenvolvimento sociocultural
brasileiro. Neste sentido, uma das estratégias adotadas por Gilberto Freyre para lidar com essa
questão e, ao mesmo tempo, propor uma nova forma de interpretação da identidade nacional
residiu na adoção paulatina de uma perspectiva culturalista, inspirada nas ideias do antropólogo
Franz Boas (1858-1942), com quem teria mantido contato intelectual durante um período de
estudos nos Estados Unidos. Nas palavras do próprio Freyre, acerca das estratégias
teórico-metodológicas adotadas em Casa-Grande & Senzala:
68
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
É segundo essa linha de pensamento que Gilberto Freyre procura, aos poucos, suplantar
a tese que afirmava a existência de uma superioridade natural dos europeus em relação aos
brasileiros devido a uma suposta superioridade da raça branca pura, de modo que uma raça
produzida a partir da mistura entre lusos, índios e negros, como era o caso do Brasil, seria sempre
inferior àquelas que a originaram. Separando raça e cultura, ou, em outros termos, o genético do
social, Gilberto Freyre vai compreender, através da paulatina adoção do relativismo cultural, a
formação do brasileiro como um “processo de equilíbrio de antagonismos” (FREYRE, 2003,
p. 116), no sentido de nele se verificar “o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa
de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura [...]” (FREYRE, 2003, p. 115). Desta
forma, ao amortecer os conflitos e harmonizar os antagonismos presentes na formação do
brasileiro como “o tipo ideal do homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro
ou índio a avivar-lhe a energia” (FREYRE, 2003, p.110), Freyre não só encara a mestiçagem
como algo positivo como a eleva ao posto de maior símbolo da cultura brasileira.
A mestiçagem, segundo Gilberto Freyre, estaria presente em todas as expressões
culturais genuinamente brasileiras. Não haveria de ser diferente com o futebol praticado em
clubes dos anos 1930, em processo de massificação, popularização e já repleto de jogadores
negros e mulatos ao lado dos brancos, que antes eram maioria quase absoluta. Ocorre que, para
assumir o futebol como um demonstrativo empírico da mestiçagem, logo, da brasilidade,
Freyre necessitou de uma construção que fosse capaz de fazer convergir as representações do que
os jogadores faziam em campo com aquelas relacionadas ao que os brasileiros faziam fora dele.
Como tem sido proposto desde a introdução deste artigo, essa construção simbólica é justamente
o “estilo de jogo” brasileiro.
As argumentações de Gilberto Freyre no artigo Foot-Ball Mulato (1938) buscam explicar
as peculiaridades do “estilo de jogo” brasileiro “em termos culturais, tomando-as como
manifestações próprias daquela singularidade maior que distinguiria o povo brasileiro”
(FRANZINI, 2000, p.4). Ou seja, se a mestiçagem trazia traços culturais singulares à identidade
nacional, tais singularidades haveriam de se expressar também na maneira através da qual o
brasileiro jogava futebol. Daí Gilberto Freyre constatar que as notáveis diferenças entre a forma
de jogar da seleção brasileira que disputava a Copa do Mundo de 1938 e aquela apresentada pelas
vencidas equipes da Polônia e da Tchecoslováquia se deviam a “nossa formação social
democrática como nenhuma” (FREYRE, 1938, s/n). Para realçar o modo como o autor
enxergava a relação entre “formação social democrática” e “estilo de jogo”, vale citar os seguintes
comentários sobre as apresentações da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938:
69
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
Sempre em tom contrastivo – ora tomando como referência o europeu, ora, mais
particularmente, o inglês –, Gilberto Freyre expõe ao longo do texto diversas características do
modo de jogar brasileiro procurando sustentar a conclusão de que o “estilo mulato,
afro-brasileiro, de foot-ball é uma forma de dança dionisíaca” (FREYRE, 1938, s/n). É assim
que, para o autor, “os europeus têm procurado eliminar quase todo o floreio artístico, quase toda
a variação individual, quase toda a espontaneidade pessoal para acentuar a beleza dos efeitos
geométricos e a pureza de técnica científica” (FREYRE, 1938, s/n), enquanto o estilo brasileiro –
“Inimigo do formalismo apolíneo e amigo das variações” (FREYRE, 1938, s/n) – caracteriza-se
da seguinte maneira: “Rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de
uniformização, de standartização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou
70
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
espontaneidade pessoal” (FREYRE, 1938, s/n). Com o perdão da redundância, até porque o
próprio Gilberto Freyre muito se utiliza desta estratégia discursiva, é válido apresentar mais uma
argumentação repleta de representações contrastivas acerca dos “estilos de jogo” brasileiro e
europeu, dionisíaco e apolíneo:
71
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
72
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
74
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
75
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
Seria demasiado imprudente iniciar uma análise sobre textos que lançam mão das
categorias “apolíneo” e “dionisíaco” sem realizar a ressalva de que uma mesma categoria pode
apresentar diferentes significados. Para aprofundar um pouco mais esse cuidado teórico, traz-se
aqui as reflexões realizadas por Alfred Smith no artigo The Dionysian Innovation (1964), estudo que
realiza uma ampla revisão bibliográfica da noção “dionisíaco” desde que, segundo o autor, o
termo foi introduzido na antropologia por Ruth Benedict, em 1928.
Tendo organizado uma espécie de inventário de definições da noção “dionisíaco”,
Smith argumenta que os antropólogos não promovem uma mera reprodução do que foi
elaborado por Ruth Benedict, muito pelo contrário: “The historical inventory reveals that the
Dionysian concept has, and always has had, many different meanings”3 (SMITH, 1964, p. 252).
Inclusive, prossegue o autor, não são raros os casos nos quais surgem definições contraditórias da
noção “dionisíaco”: “Herskovits' extravert and Keesing's introvert, Hoebel's sensate and what we
may call Benedict's exosensate, are only four of the seemingly contradictory meanings that
anthropologists have given the term”4 (SMITH, 1964, p. 252). Após ressaltar que nenhuma das
definições propostas deve ser pensada como certa ou errada, Smith justifica o polimorfismo da
categoria “dionisíaco” tanto por esta aglutinar variadas características, fazendo com que
significados diferentes surjam dependendo da ênfase dada por cada autor, quanto pelos diferentes
resultados que podem surgir da combinação entre a noção de “dionisíaco” e outras, também
polimorfas.
Destarte, ao mesmo tempo em que os próximos parágrafos se focam em entender o
acionamento das categorias “apolíneo” e “dionisíaco” na construção de representações sobre
Pelé, realiza-se um esforço simultâneo para justificar a procedência do presente estudo a partir da
demonstração de que os conteúdos simbólicos analisados se aproximam das ideias de
Gilberto Freyre não apenas por tomarem “dionisíaco” e “apolíneo” como categorias antagônicas
3 “O inventário histórico revela que o conceito Dionisíaco tem, e sempre teve, muitos significados diferentes”
(Tradução nossa).
4 “O ‘extrovertido’ de Herskovits e o ‘introvertido’ de Keesing, o ‘sensato’ de Hoebel e o que nós poderíamos
chamar de o ‘exosensato’ de Benedict são apenas quatro dos aparentemente contraditórios significados que
antropólogos têm dado ao termo” (Tradução nossa).
76
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
basilares na construção do “estilo de jogo” brasileiro, mas, também, por significá-las de forma
bastante convergente à apresentada em Foot-Ball Mulato (1938).
Iniciando por materiais que colocam em relevo características de Pelé como dionisíaco,
o antropólogo Roberto DaMatta escreveu, em 1998, um texto para o Jornal da Tarde intitulado
Dionísio contra Apolo (2006), texto em que apresenta suas expectativas para a partida entre a seleção
brasileira e a seleção dinamarquesa pela Copa do Mundo de 1998. Para DaMatta, embora a
globalização tenha promovido uma padronização nas formas de se jogar futebol, as equipes do
Brasil e da Dinamarca exibiriam diferentes técnicas corporais no sentido maussiano, ou seja,
“técnicas reveladoras dos modos pelas quais as sociedades se imprimem em nossos corpos,
revelando-se no modo de andar, gesticular, sentar, correr, brigar e, claro está, jogar bola”
(DAMATTA, 2006, p.83-84). Descrevendo essas diferentes formas de uso do corpo,
DaMatta afirma que os dinamarqueses “correm e tocam a bola separando as pernas do resto do
corpo, como se a parte de baixo pouco tivesse a ver com a parte de cima, daí certamente a antiga
designação de ‘perna de pau’ para esses jogadores” (DAMATTA, 2006, p.84), enquanto os
brasileiros “jogam bola usando todo o corpo. Como se o emprego das pernas envolvesse
integralmente toda a pessoa, sobretudo os quadris, no nosso famoso, bonito e malandro
‘jogo de cintura’” (DAMATTA, 2006, p.84).
Baseia-se muito nessa descrição de técnicas corporais o argumento de DaMatta de que
os dinamarqueses, jogadores coletivos, racionais e rotineiros, seriam os representantes do
futebol-força – daí o sugestivo apelido de “seleção ‘Dina-Máquina’” (DAMATTA, 2006, p. 83) –
e os brasileiros, artistas habilidosos e individualistas, os representantes do futebol-arte, “capazes
da superjogada individual – típica do modelo imortalizado por Heleno de Freitas, Ademir,
Zizinho, Garrincha e Pelé –, quando o megacraque dribla toda a defesa adversária, engana o
goleiro, desmoralizando-o, cumprimenta calmamente a torcida e faz um gol de letra”
(DAMATTA, 2006, p.84). Sintetizando toda sua concatenação, DaMatta conclui:
77
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
78
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
e Pelé como “o paulista, a eficiência, o exemplo de atleta, a objetividade do gol, do drible que leva
à meta” (MELO, 2006, p.288), oferecem um caminho para se pensar a construção da identidade
nacional:
O futebol, importante elemento de construção da identidade nacional, inclusive
através de sua veiculação cinematográfica, mais uma vez reproduzia o velho
debate: o Brasil deve ser a eficiência de Pelé ou a malandragem de Garrincha?
Deve ser o processo industrial da produção cinematográfica da Vera Cruz ou a
peculiaridade e originalidade do Cinema Novo? Deve ser a objetividade do
atleta Pelé (o porte de um rei) ou a transgressão do moleque Garrincha
(o mestiço que se supera)? É o trabalhador de São Paulo ou o “flaneur” do
Rio de Janeiro? (MELO, 2006, p. 288).
Nas representações estudadas por Melo, Pelé, tido como eficiente, e Garrincha, como
malandro, se aproximam, respectivamente, das categorias “apolíneo” e “dionisíaco” tais como
definidas por Gilberto Freyre. Contudo, mesmo que essas categorias não sejam acionadas
diretamente na construção dos dois futebolistas, isso ocorre quando as representações sobre Pelé
e Garrincha são pensadas como reproduzindo a questão sobre se a cultura brasileira seria melhor
caracterizada pela “eficiência do paulistano ou o jogo de cintura do carioca” (MELO, 2006,
p. 281) e que esta “guerra simbólica travada entre Rio de Janeiro e São Paulo poderia ser vista
como um duelo entre Apolo e Dionísio [...]” (ANTUNES, 2004 apud MELO, 2006, p. 289).
Se a categorização de Pelé como apolíneo encontra-se um tanto quanto implícita na
análise de Melo, o mesmo não pode se dizer do artigo Pelé e Maradona: núcleos da retórica jornalística
(2009), quando Ronaldo Helal e Hugo Lovisolo expõem um detalhado processo de construção
de Pelé como apolíneo. Nessa pesquisa, os autores propõem a hipótese de que Brasil e Argentina
produzem heróis nacionais exaltando valores contrários às representações dominantes sobre as
identidades nacionais. Segundo os autores, estudos comparativos entre os países sugerem uma
interpretação de que o Brasil, devido à influência africana, é culturalmente “macunaímico, mulato,
antropofágico e dançarino dionisíaco” (HELAL; LOVISOLO, 2009, p. 6), enquanto a Argentina,
mais europeizada, apresenta-se “mais letrada e de razão instrumental mais desenvolvida, talvez
mais padronizada e esquematizada” (HELAL; LOVISOLO, 2009, p. 6), sendo, portanto,
culturalmente apolínea. Porém, quando o foco se direciona para os processos de construção dos
heróis nacionais, as argumentações tomam um caminho oposto, no sentido de que “a Argentina
se caracteriza pela geração e manutenção tanto de maior número de heróis quanto de heróis que
parecem ser mais dionisíacos que os brasileiros” (HELAL; LOVISOLO, 2009, p. 6).
80
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
5 A expressão “alteridade privilegiada” foi cunhada por Guedes (2006) em suas elaborações acerca das
construções do “estilo de jogo” brasileiro e argentino.
81
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
Permite-se levar esse raciocínio adiante a partir dos postulados teóricos apresentados
por Louis Dumont (1911-1998) em Homo Hierarchicus – O sistema das castas e suas implicações (2008),
publicado pela primeira vez em 1966. Isso porque da mesma maneira que categorizar Pelé como
apolíneo não significa negar que seu “estilo de jogo” tenha características dionisíacas, categorizá-
lo como dionisíaco não é o mesmo que rejeitar suas características apolíneas. Para utilizar um
vocabulário dumontiano, não há uma relação de complementaridade exclusiva entre as
características futebolísticas de Pelé, na qual a exaltação de certas características resulta em um
processo que promove o apagamento absoluto das características divergentes. Para escapar desse
reducionismo, Dumont sugere uma teoria da hierarquia cuja pedra basilar é a negação das
relações hierárquicas como mera ordenação ou taxonomia:
82
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
Essa relação hierárquica é muito geralmente aquela que existe entre um todo
(ou um conjunto) e um elemento desse todo (ou desse conjunto): o elemento
faz parte do conjunto, é-lhe nesse sentido consubstancial ou idêntico, e ao
mesmo tempo dele se distingue ou se opõe a ele. É isso o que designo com a
expressão englobamento do contrário (DUMONT, 2008, p. 370).
Pois bem, se Dumont coloca que “todas as vezes que uma noção assume importância,
ela adquire a faculdade de englobar seu contrário” (DUMONT, 2008, p. 374), argumenta-se que
nos contextos em que o “jogador europeu” se coloca como alteridade privilegiada, as
características dionisíacas de Pelé assumem importância e adquirem a faculdade de englobar
aquelas que lhes são contrárias. Nesses cenários, Pelé é categorizado como dionisíaco. Por outro
lado, nos contextos em que Garrincha e Maradona surgem como alteridades privilegiadas, as
características apolíneas de Pelé assumem importância, englobando, consequentemente, as
características dionisíacas. Aqui, nessas situações, Pelé é categorizado como apolíneo. Portanto,
nem categorizar Pelé como apolíneo significa apagar as representações que o definem como
dionisíaco, nem categorizá-lo como dionisíaco significa negar as representações que o descrevem
como apolíneo.
5. Considerações finais
83
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
A princípio, esse cenário ambíguo no qual Pelé surge categorizado como dionisíaco e como
apolíneo, pode fertilizar a ideia de que estas noções produzem interpretações frágeis e
incoerentes. Entretanto, toda a ambiguidade da construção de Pelé torna-se compreensível a
partir do momento em que o acionamento das categorias “apolíneo” e “dionisíaco” é pensado
sob a ótica dos pressupostos teóricos que afirmam que as representações são construídas através
de processos contextuais, dinâmicos e dependentes tanto de fatores culturais como da agência
dos indivíduos envolvidos na comunicação.
Entender a construção de representações sobre Pelé passa por reconhecer quem ocupa
a posição de alteridade privilegiada no contexto do processo. Em certos contextos, por exemplo
quando em oposição ao genérico “jogador europeu”, características de Pelé como
espontaneidade, individualidade e plasticidade assumem importância, tornam-se englobantes,
e aciona-se a categoria “dionisíaco” para representar sua pessoa. Em outros contextos, os mais
evidentes são os que Garrincha e Maradona assumem a posição de alteridade privilegiada,
a racionalidade, a técnica e a objetividade de Pelé tornam-se englobantes e, desta feita, aciona-se a
categoria “apolíneo” para representar sua pessoa. Conclui-se, assim, que não existe um Pelé
“verdadeiro”, definido a priori como absolutamente apolíneo ou absolutamente dionisíaco, com a
construção de representações sobre sua pessoa sendo independente do contexto. Mais ainda:
é somente através do entendimento dos contextos que a suposta fraqueza da interpretação de que
Pelé é apolíneo e é dionisíaco se apaga.
6. Referências
ARRUDA, A. 2002. Teorias das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa,
n.117, p. 127-147.
DAMATTA, R. 2006. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco.
DUMONT, L. 2008. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP.
_____________. 2003. Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. Recife: Global Editora.
_____________. 2014. A produção das diferenças na produção dos “estilos de jogo” no futebol:
a propósito de um texto fundador. In: HOLLANDA, B.; BURLAMAQUI, L.; SOUZA, M.
(orgs.). Desvendando o jogo – Nova luz sobre o futebol. Niterói: EDUFF. p. 153-171.
HELAL, R.; LOVISOLO, H. 2009. Pelé e Maradona: núcleos da retórica jornalística. In: Revista
Brasileira de Futebol, Viçosa, v. 2, n. 2, p. 20-26.
MOSTARO, F.; HELAL, R.; AMARO, F. 2015. Futebol, nação e representações: a importância
do estilo “futebol-arte” na construção da identidade nacional. História Unisinos, São Leopoldo, v.3,
n.19, p.272-282.
SÁ, C. 1993. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. (org.).
O conhecimento no cotidiano. São Paulo: Brasiliense.
SMITH, A. 1964. The Dionysian Innovation. American Anthropologist, New Series, v. 66, n. 2,
p. 251-265.
85
Praça: Revista Discente da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Recife, v. 2, n. 1, 2018, pp. 66-86
TOLEDO, L. 2004. Pelé: os mil corpos de um rei. In: GARGANTA, J; OLIVEIRA, J; MURAD,
M. (orgs.). Futebol de muitas cores e sabores. Reflexões em torno do desporto mais popular do mundo, Porto:
Editora Campo das Letras, p. 147-167.
VELHO BARRETO, T. 2004. Gilberto Freyre e o Futebol-Arte. Revista USP, São Paulo, n. 62,
p. 233-238.
86