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CINZAS NO PARAÍSO

Teatro Imagético

Roteiro de:
JULIO CARRARA

Escrita em 2003
Julio Carrara Cinzas no Paraíso 1

PERSONAGENS:

CLARINHA

BERNARDO

DANIEL

e grupos de:

MENINOS E MENINAS

RAPAZES E MOÇAS

VELHOS E VELHAS

CENÁRIO: Alguns elementos cênicos irão compor a cenografia, de acordo

com as necessidades das cenas, como uma cadeira de balanço, uma caixa

enorme de brinquedos, uma mesa de cirurgia, um banco de praça e um caixão.

O espetáculo tem como objetivo, através das cores, mostrar para o público todas as

etapas da vida de uma mulher, (que foi esquecida em um asilo pelos familiares), dos 5

aos 65 anos de idade. São fragmentos de uma vida.


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PRÓLOGO

“O ANIVERSÁRIO DE CLARINHA”

(cinza)

Black-out. Penumbra. Foco central lentamente vai subindo em resistência

revelando Clarinha, uma velhinha, sentada numa cadeira de balanço. Silêncio absoluto.

Nada se move, ou melhor, quase nada, exceto a cadeira de balanço. Luz na janela sobe

lentamente. Uma forte chuva chicoteia a vidraça. O dia cinzento revela o estado de

espírito de Clarinha.

Com os óculos na ponta do nariz, ela pega um novelo de lã e duas agulhas e

começa a tricotar lentamente uma meia de bebê. Seus movimentos são lentos e suas

mãos estão trêmulas.

Luz geral sobe em resistência.

O ambiente que se vê, é um minúsculo quartinho de um asilo, todo cinza. A

velhinha suspira profundamente, enquanto uma lágrima escorre pela sua face. Pára

um pouco sua tarefa, tira os óculos, enxuga a lágrima e volta à tarefa.

A luz se apaga.

Entra um grupo de idosos com um bolo de aniversário e velinhas de 65 anos.

Cantam “Parabéns pra você” para a Clarinha, que sorri, mas mantém no rosto uma

expressão angustiada. Quando terminam a música, Clarinha assopra a vela. Todos

congelam numa pose.

Black-out.
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CENA 1

“UMA INFÂNCIA FELIZ”

(amarelo)

Durante o black-out ouve-se no áudio o tênue choro de um bebê, mesclado com

canções de ninar, gritos e brincadeiras de crianças, músicas cantadas na pré-escola

antes da merenda, orações antes de dormir...

Luz geral sobe em resistência e revela um ambiente todo amarelo.

Crianças correm de um lado para o outro. Clarinha, uma menina com fitinhas

no cabelo e um vestidinho curto está esperando ansiosa. Tempo.

Um palhaço, que está dentro de uma enorme caixa de presente, começa a se

mover, como um brinquedo. Todas as crianças olham fascinadas para ele. Os

movimentos do “clown”, a princípio são mecânicos e quebrados, como um brinquedo

esquecido, cujas articulações estão enferrujadas. Pouco a pouco, os movimentos vão

adquirindo leveza e fluidez.

Ele se aproxima da menina com um bolo de aniversário, com uma velinha de 5

anos. Todas as crianças cantam “Parabéns pra você” para a menina, que está

comovida. Ela assopra a vela e corta o primeiro pedaço, fazendo um pedido. Depois

entrega o pedaço de bolo a Bernardo, um garotinho da mesma idade, e beija-o

carinhosamente em seu rosto. Outras crianças fazem uma algazarra colocando a garota

e o garoto no centro e cantam batendo palmas, empolgadíssimas: “Com quem será, com

quem será, com quem será que a Clarinha vai casar?”

Correm de um lado para o outro. Todos pegam o bolo e comem animadamente.

Quando todos se silenciam, o palhaço pega uma cesta e entrega para cada um, um

enorme pirulito. O último pirulito é entregue para a aniversariante. O palhaço e a

menina se olham, ambos encantados um com o outro. O palhaço volta para a caixa.
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Seus movimentos voltam a serem mecânicos e quebrados até desaparecer dentro da

caixa. Foco em Clarinha e na caixa de presente. Tudo está imóvel.

Black-out.

CENA 2

“PRIMEIRA COMUNHÃO”

(branco)

Tudo se revestia de branco.

Clarinha junto com outros garotos e garotas entram em procissão pelo corredor,

cada um com uma vela na mão. É a primeira comunhão. O padre está no centro,

realiza o ritual e entrega para cada criança, uma hóstia. Após receberem a hóstia, todos

se ajoelham e rezam.

CENA 3

“O PRIMEIRO AMOR”

(laranja)

O ambiente adquire um tom alaranjado. É a adolescência. Como disse

Guimarães Rosa: “A Juventude? É uma maravilha. A juventude é quase tudo. É a

humanidade e a esperança, recomeçando”.

Um grupo de adolescentes, na faixa dos 12 anos, está brincando na rua de

“Carteiro tem carta”.

Clarinha combina algo com outra garota. Essa garota tapa os olhos dela e

começa a brincadeira.
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MENINA

Carteiro tem carta?

CLARINHA

Tem.

MENINA

Pra esse?

CLARINHA

Não.

MENINA

Pra esse?

CLARINHA

Não.

MENINA

Pra esse?

CLARINHA

Não.

MENINA

Pra esse?

A garota aperta a mão contra os olhos de Clarinha, que responde brandindo.


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CLARINHA

É.

MENINA

Pêra, uva, maçã ou salada-mista?

CLARINHA

(Berrando.) Salada-mista.

Bernardo, o garoto escolhido por Clarinha se levanta e vem até ela. Quando os

olhos de Clarinha se livram das mãos da outra garota, ela abre um enorme sorriso para

o menino. Ambos se beijam enquanto outros torcem. Bernardo faz Clarinha perder o

fôlego. Clarinha recupera o fôlego e beija novamente o rapaz com enorme paixão.

Os dois saem correndo enquanto o grupo prossegue a brincadeira. Deverão criar

uma cena envolvendo outras pessoas e fatos, até o momento em que todos ficam

enfadados, terminam a brincadeira e saem.

CENA 4

“FORMATURA”

(verde)

Colação de grau de Clarinha e Bernardo. Os dois trajam becas verdes e junto

com outros formandos se posicionam, perfilados de frente para a platéia. A mesa

formada pelo Corpo Docente da Faculdade está cheia. Ouvimos no áudio o “Hino

Nacional”. Todos se viram para a bandeira ao fundo, e cantam o Hino.

Em seguida, o apresentador chama o nome de cada formando, pelo microfone,

que caminha até a mesa, assina a lista, beija alguns professores e pega o canudo com o

certificado de conclusão. Quando o ritual é concluído, fazem um juramento de


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ética.Todos se abraçando, se beijando, chorando, se despedindo, para darem agora um

novo rumo às suas vidas.

A cena finaliza com uma algazarra geral.

CENA 5

“O MATRIMÔNIO”

(vermelho)

Clarinha e Bernardo entram por lados opostos e se encontram no centro do

proscênio. Ela está com um vestido de noiva vermelho e ele com um smoking também

vermelho. É o casamento.

Ambos se ajoelham diante de um padre imaginário, que realiza a cerimônia.

Fazem o juramento, trocam as alianças, assinam o livro e se beijam. Recebem na saída,

uma chuva de arroz.

Bernardo pega Clarinha no colo e coloca-a no chão. Com muito carinho faz

massagem nela, acariciando seus pés e jogando em seu corpo pétalas de rosas vermelhas

partindo, enfim, para o ato sexual.

É uma cena onde a sensualidade deve ser bem explorada, mas sem apelação

gratuita por parte dos atores e da direção.

CENA 6

“O PRIMEIRO FILHO”

(azul)

Clarinha grávida, caminha com dificuldade até a mesa de parto, auxiliada por

médicos. Todos trajam a cor azul.

Bernardo fica num canto, nervoso.


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Clarinha urra de dor, enquanto os médicos ajudam-na a parir a criança. O bebê

nasce enquanto se ouve o choro do recém-nascido. Os médicos entregam a criança para

o pai, que chora de emoção. Bernardo entrega o bebê à Clarinha, que suada e exausta,

abraça o filho com ternura. Clarinha sai da mesa de parto.

Passagem de tempo...

Os três Clarinha, Bernardo e o filho Daniel caminham numa praça. No primeiro

momento, Clarinha vem com um carrinho de bebê. Num segundo momento, entra com

o filho já com 5 anos brincando de pega-pega. Noutro momento, o garoto com 12 anos,

brincando de esconde-esconde. Num último momento, o garoto com 18 anos, joga bola

com uns amigos.

Bernardo está lendo um jornal enquanto Clarinha faz tricô.

A bola vai parar na rua. Bernardo vai buscar o objeto fora de cena e ouvimos no

áudio uma freada brusca seguida por um enorme estrondo. Todos ficam estatelados.

Clarinha e Daniel olham para a rua e ambos dão um grito silencioso. Ouve-se

uma sirene ao longe que se aproxima. Aos poucos o barulho vai se tornando

insuportável até desaparecer gradativamente. A cena fica vazia. O silêncio é absoluto.

CENA 7

“O ENTERRO DE BERNARDO”

(preto)

Bernardo morreu, deixando Clarinha viúva e com um filho de 18 anos.

A mulher, trajando luto chora sobre o caixão do marido e é amparada pelo filho

Daniel, o fruto do amor que uniu ambos durante todos esses anos.

Atores com véus negros pegam o caixão e dão um volta lenta pelo palco.

Clarinha e Daniel seguem atrás.


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O cortejo sai de cena, enquanto Clarinha e Daniel param no centro. Ela olha

para o filho, que retribui o olhar e ambos se entregam num abraço apertado.

CENA 8

“O NOVO LAR”

(violeta)

Daniel, sua mulher e Clarinha trajam roupas violetas. O filho olha para a mãe e

faz um gesto de negação. Ele está acompanhado por sua mulher, que não aceita de

modo algum a presença da sogra na mesma casa em que ela está.

Clarinha olha para o ambiente, não quer ir, mas Daniel obriga-a, deixando-a

sem alternativa. Pega uma mala, coloca algumas roupas da mãe ali e saem.

Os três dão uma volta lenta no palco e chegam ao asilo.

Daniel coloca a mala de Clarinha no chão e dá instruções para a diretora do

asilo. Entrega um maço de dinheiro para ela e sai.

Na saída, olha para a mãe fixamente, com a expressão neutra. A mãe, olha para

o filho e chora. Um choro contido, mas sentido. O filho sai com a mulher, deixando

Clarinha na mais completa solidão. Clarinha senta-se numa cadeira de balanço e

permanece ali.

Black-out.
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EPÍLOGO

“AMANHÃ É OUTRO DIA”

(cinza)

Voltamos para o asilo.

Clarinha após assoprar as velinhas, oferece o pedaço de bolo para a diretora do

asilo. A cena deve ser idêntica à cena que ela entrega o bolo para Bernardo. O bolo é

dividido para os outros velhinhos que comem com imenso prazer. Após todos

comerem, vão saindo de cena, deixando-a sozinha.

Com muita dificuldade, levanta-se da cadeira de balanço e caminha até a janela,

olhando a chuva bater na vidraça. Fica de costas para a platéia.

Tempo.

Instantes depois entra Bernardo, ainda jovem. Ele tapa os olhos dela, que tateia

suas mãos, tentando adivinhar quem é. Ao perceber, que é seu grande amor, sorri feliz

e vira-se pra ele. Começa a acariciar seu rosto, desenhando nele figuras geométricas.

Ele faz o mesmo com ela. Por fim, se beijam.

Após o beijo dão-se às mãos e viram-se de costas novamente, olhando a chuva.

Luz desce em resistência, ficando apenas a contraluz e as luzes de corredor

desenhando as figuras, que desaparecem.

Nada se move, exceto a cadeira de balanço, isolada por um foco.

Black-out final.

FIM

Janeiro/2003

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