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ISSN 2238-2569

Revista Internacional de
Direito Ambiental
Classificação Qualis Capes B1
© REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITO AMBIENTAL

EDITORA PLENUM LTDA


Caxias do Sul - RS - Brasil

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R454 Revista Internacional de Direito Ambiental - Ano VIII, n.22


(jan./abr. 2019). - Caxias do Sul, RS : Plenum,
2019.
336p.; 23cm.

N. 22 (2019) -
Quadrimestral
ISSN 2238-2569

1. Direito ambiental internacional. 2. Direito


internacional

CDU : 349.6:341

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1. Direito ambiental internacional 349.6:341


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Revista Internacional de
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Ano VIII - número 22 - janeiro-abril de 2019

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Vincenzo Durante - Universidade de Padova, UP, Padova, Itália
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................. 9

Tragédia dos comuns: reflexões sobre o regime de apropriação do Parque


Estadual Serra do Tabuleiro/SC
CAROLINE VIEIRA RUSCHEL ..................................................................... 11

Direito e biologia: as relações jurídicas e a regulação de recursos genéticos


vegetais para a consolidação da bioeconomia
DANILO HENRIQUE NUNES, JUVÊNCIO BORGES DA SILVA, LETÍCIA DE
OLIVEIRA CATANI FERREIRA ..................................................................... 35

A governança na proteção jurídica das águas subterrâneas transfronteiriças:


desafios na efetividade do acordo do Sistema Aquífero Guarani
DEISE MARCELINO DA SILVA, MARIA LUIZA MACHADO GRANZIERA.... 53

O bem ambiental água: a luta contra a subversão política e econômica pela


privatização desse bem de uso comum do povo
EWERTON RICARDO MESSIAS, GEILSON NUNES, VALTER MOURA DO
CARMO ......................................................................................................... 81

A trajetória da energia renovável no marco normativo europeu: a aposta na


sustentabilidade dos biocombustíveis
FLAVIA TRENTINI ........................................................................................ 117

A tributação e o desenvolvimento sustentável


GABRIEL WEDY .......................................................................................... 139

A implicação jurídica do uso de icebergs como esperança de água doce no


futuro
JOSE ADÉRCIO LEITE SAMPAIO, FLÁVIO HENRIQUE ROSA, ULISSES
ESPÁRTACUS DE SOUZA COSTA ............................................................. 169

Proteção e governança da água e o estado de direito ecológico


JOSÉ IRIVALDO ALVES O. SILVA, JOSÉ RUBENS MORATO LEITE ........ 187

Apontamentos jurídicos acerca do ciclo de vida dos produtos e da servitização


como instrumentos de mitigação à geração de resíduos sólidos
LUCAS DE SOUZA LEHFELD, MARCO AURÉLIO PIERI ZEFERINO,
STEFÂNIA APARECIDA BELUTE QUEIROZ............................................... 213
A participação pública na governança hídrica da Andaluzia - Espanha
LUCIANA TURATTI ...................................................................................... 227

Participação popular no Brasil: breves considerações a respeito do Comitê


de Bacia do Alto Tietê
SIMONE MARQUES DOS SANTOS NOGUEIRA........................................ 257

Regime jurídico da zona de amortecimento


TALDEN FARIAS, PEDRO ATAÍDE .............................................................. 271

A afirmação histórica do direito animal no Brasil


VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR ........................................................ 295

DIRETRIZES PARA SUBMISSÃO DE ARTIGOS .............................................. 333


APRESENTAÇÃO

A água é um bem fundamental para a sobrevivência. Encontrar formas de reco-


nhecer e reforçar sua proteção é fundamental, eis que se trata de bem de uso comum do
povo. Tanto assim o é, que a primeira edição do ano de 2019 da Revista Internacional
de Direito Ambiental - RIDA - tem a água como foco de estudo em diversos artigos.
A começar pelo texto de Deise Marcelino da Silva e Maria Luiza Machado
Granziera, que trata do Acordo do Sistema Aquífero Guarani (SAG), assinado em 2010
pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai e a proteção jurídica das águas subterrâneas
transfronteiriças.
A luta contra a subversão política e econômica pela privatização da água foi o
tema escolhido por Ewerton Ricardo Messias, Geilson Nunes e Valter Moura do Carmo.
O artigo de Jose Adércio Leite Sampaio e seus coautores Flávio Henrique Rosa
e Ulisses Espártacus de Souza Costa aborda as possíveis implicações jurídicas do
transporte e da captação da água doce do iceberg.
A importância da regulação dos mananciais é o tema da doutrina de José Irivaldo
Alves O. Silva e José Rubens Morato Leite.
Em termos de Direito Comparado, o artigo de Luciana Turatti, que é fruto do
estágio pós-doutoral na Universidade de Sevilha, na Espanha, sob a orientação do Prof.
Dr. Álvaro Sánchez Bravo, coeditor da RIDA, tem como tema a participação pública na
governança hídrica da Andaluzia.
Os demais artigos abordam questões ambientais variadas, tais como a apropria-
ção do Parque Estadual Serra do Tabuleiro em Santa Catarina, de autoria de Caroline
Vieira Ruschel. O acesso e o uso dos recursos genéticos vegetais são discutidos por
Danilo Henrique Nunes, Juvêncio Borges da Silva e Letícia De Oliveira Catani Ferreira.
Flavia Trentini faz um estudo da trajetória das normativas da União Europeia para a
implementação de energias renováveis, mais especificamente de biocombustíveis.
Seguimos com o texto de Gabriel Wedy. O autor faz uma análise da estrutura
do Estado Fiscal que financia políticas públicas promotoras do desenvolvimento
sustentável. A fabricação e disposição de resíduos sólidos no ambiente e a adoção
de instrumentos de mitigação à geração de resíduos é o trazido por Lucas de Souza
Lehfeld, em texto em coautoria com Marco Aurélio Pieri Zeferino e Stefânia Aparecida
Belute Queiroz.
Dando continuidade à edição, Simone Marques dos Santos Nogueira trata
da participação popular no sistema decisório e sua relação com o Comitê de Bacia
do Alto Tietê. Talden Farias e Pedro Ataíde abordam o regime jurídico da zona de
amortecimento, que constitui a área do entorno de certas Unidades de Conservação.
Finalizamos com artigo sobre a questão animal, em brilhante análise por Vicente
de Paula Ataide Junior.
Agradecemos a participação dos articulistas da edição e desejamos a todos
uma excelente leitura!

Prof. Dr. Álvaro Sánchez Bravo


Prof. Dr. Sérgio Augustin
Coeditores
TRAGÉDIA DOS COMUNS: REFLEXÕES SOBRE
O REGIME DE APROPRIAÇÃO DO PARQUE
ESTADUAL SERRA DO TABULEIRO/SC1

TRAGEDY OF THE COMMONS: REFLECTIONS


ON THE SYSTEM OF OWNERSHIP OF THE
STATE PARK SERRA DO TABULEIRO/SC

CAROLINE VIEIRA RUSCHEL2

SUMÁRIO: Introdução - 1. A tragédia dos comuns e o problema da classificação


dos recursos naturais comuns - 2. O caso do Parque Estadual Serra do Tabuleiro
- 3. Reflexões sobre o regime de apropriação do Parque Serra do Tabuleiro - Con-
siderações Finais - Referências.

RESUMO: O artigo busca refletir sobre o regime de apropriação do Parque


Estadual Serra do Tabuleiro, sob a perspectiva dos comuns, tema que ficou conhecido
pelo artigo de Garrett Hardin intitulado “A tragédia dos comuns”. Tem como problemá-
tica verificar se o regime de apropriação do Parque tem eficácia na preservação do
meio ambiente. Para tanto, estudou-se a Tragédia dos Comuns e a classificação dos
Bens Comuns no primeiro capítulo. No segundo capítulo, realizou-se estudo de caso
no Parque Serra do Tabuleiro para no terceiro capítulo refletir sobre tal regime e sua
eficácia. Com o método de abordagem abdutivo (Peirce), que utiliza tanto do método
indutivo quanto dedutivo na forma de pesquisar, foi possível chegar às considerações
finais, apresentadas ao final do presente trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Global Commons; Unidade de Conservação; conflito
socioambiental.
1
Data de recebimento do artigo: 05.12.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 11.01.2019 e 22.01.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 29.01.2019.
2
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Extensão Universitária em
Direito e Meio Ambiente na Universidade de Tübingen - Alemanha. Professora de Direito Ambiental da
Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Advogada Colaborativa. E-mail: caroline.ruschel@gmail.com.
12 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

ABSTRACT: This paper reflects on the ownership regime of the Parque Estadual
Serra do Tabuleiro, from the perspective of commons, which became known by the article
by Garrett Hardin, “The tragedy of the commons”. It verifies if that the ownership of the
Park is effective in preserving the environment. To this end, it was studied the Tragedy
of the commons and the classification of commons belongings in the first chapter. In the
second chapter, it was studies a case in Serra do Tabuleiro Park for the third chapter
reflects on such a scheme and its effectiveness. With the method of abductive approach
(Peirce), which uses both the inductive method as deductible in the form of search, it
was possible to reach the final considerations, presented at the end of this study.
KEYWORDS: Global Commons; Conservation unit; socio-environmental conflict.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o regime de apropriação do


Parque Estadual Serra do Tabuleiro - SC, a partir de uma análise jurisprudencial refe-
rente aos conflitos existentes no local. O problema de pesquisa consiste no seguinte
questionamento: o regime de apropriação Estatal do Parque Estadual Serra do Tabuleiro
é eficaz para a preservação do ecossistema da região?
Nossa hipótese sugere que não. Não há efetividade no cumprimento das leis,
nem na fiscalização do Estado. Muitas pessoas que moram no entorno, acreditam que
tal área seja de livre acesso, por insuficiente fiscalização e tutela do Estado. Ademais,
muitos moradores já viviam dentro das localidades do Parque quando da criação da
lei, fato que até hoje gera conflitos de desapropriação.
Para atingirmos o objetivo geral deste trabalho, percorreremos três objetivos
específicos. O primeiro deles visa estudar a Tragédia dos Comuns e a classificação
dos Regimes de apropriação dos Recursos Naturais, o segundo objetivo se propõe ao
estudo de caso no Parque Estadual Serra do Tabuleiro e o terceiro refletir sobre o regime
de apropriação dentro do parque frente ao paradigma complexo de sustentabilidade.
O método de abordagem da pesquisa será o abdutivo, já que o trabalho não
pode ser classificado apenas com o método dedutivo, que parte de uma premissa
geral e extrai uma conclusão já contida nas premissas, e nem indutivo, que não con-
siste em descobrir ou criar algo novo, mas, sim, de confirmar uma teoria por meio da
experimentação, partindo de premissas específicas.
Segundo Pinto (1995), a abdução engloba dedução e indução. Com a dedução,
o fato de ter a regra geral como premissa inicial; como a indução, arrisca um palpite
que pode dar errado. “A abdução está entre a indução e a dedução. No entanto, ela
difere das duas pela maior possibilidade de erro implícita na hipótese que ela lança,
porque é fácil perceber como, tanto a indução quanto a dedução, estão baseadas na
TRAGÉDIA DOS COMUNS 13

experiência” (PINTO, 1995). Segundo Peirce (1986), o raciocínio abdutivo é típico das
descobertas científicas revolucionárias.
Como técnica de pesquisa, utilizamos fontes primárias bibliográficas e juris-
prudenciais, além do método qualitativo da entrevista para averiguar a efetividade do
cumprimento das leis e das decisões judiciais em relação às Unidades de Conservação
de Santa Catarina, avaliando a possibilidade de a instituição da propriedade comunal
ser uma aliada à preservação.
A utilização de entrevistas em trabalhos científicos ainda é discutida, pois
muitos pesquisadores atribuem um empobrecimento da rigorosidade da pesquisa.
Não concordamos com essa linha de pensamento e propomos a técnica da entrevista
como um evento dialógico, que faz com que este tenha um significado apoiado na
comunicação humana, que “pode promover reformulações metodológicas capazes
de enriquecer a prática de pesquisa e construir novas situações de conhecimento”
(GODOI; MATTOS, 2006, p. 302).
Este trabalho é um fragmento de uma ampla pesquisa doutoral realizada entre
os anos de 2014 a 2018. Passemos ao estudo.

1. A TRAGÉDIA DOS COMUNS E O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DOS


RECURSOS NATURAIS COMUNS

O tema surge com o alerta feito por Garrett Hardin no texto “A tragédia dos co-
muns”, publicado em 1968. Hardin (1968) denunciava a sobre-exploração de recursos
naturais de uso comum. A ideia essencial era de que tais recursos, como oceanos,
rios, atmosfera e áreas de parques estão sujeitos a grande degradação (BERKES et
al., 2001, p. 18).
Apesar de criticado, seu artigo tem uma importância fundamental, pois alertou
para os limites do tecnicismo, dos perigos da racionalidade individual frente a uma
racionalidade coletiva, além de demonstrar os riscos ambientais e sociais de uma
superexploração da Terra.
O trabalho de Hardin (1968) sugere, portanto, duas interpretações: a primeira é
o seu caráter simplista, não observando variáveis complexas e sistemas adaptativos.
A segunda diz respeito ao uso do seu argumento em favorecimento e fortalecimento
do poderio econômico, já que o discurso da propriedade privada para a proteção do
Recurso Natural Comum traz vantagens para quem detém a propriedade privada ou
para a desapropriação de muitas comunidades que vivem em regime comunal, sob o
argumento de que haverá uma maior preservação com a propriedade privada.
14 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Nesse sentido, Diegues e Moreira (2001) mencionam que a obra foi um trabalho
pioneiro. No entanto, serve de base às teses liberais, na medida em que “somente o
capital privado pode explorar os bens naturais de forma adequada, sem destruí-los”
(DIEGUES; MOREIRA, 2001, p. 10). Hardin (1968) ignora ou confunde conceitos como
livre acesso e propriedades de uso comum.

Suas conclusões sobre a tragédia inevitáveis baseiam-se em


seus pressupostos sobre livre acesso, ausência de restrições
aos comportamentos individuais, condições pelas quais deman-
das excedem ofertas e sobre usuários de recursos incapazes
de alterar as regras. Situações reais de propriedade comum,
normalmente não corroboram o conjunto desses quatro pres-
supostos (BERKES et al., 2001, p. 32).

Nesse sentindo, os autores criticam as conclusões de Hardin (1968), afirmando


que ao ver a escassez do recurso, os pastores provavelmente se reuniriam para achar
caminhos de controle e acordariam sobre regras de conduta, com possíveis restrições.
Para eles, Hardin negligencia o papel dos arranjos institucionais e de fatores culturais
(BERKES et al., 2001, p. 32).
Na literatura dos comuns, há quatro definições de categorias de Direito de
Propriedade, nas quais os Recursos Naturais Comuns são manejados, quais sejam:
“livre acesso”, com a ausência de direitos de propriedade bem definidos; “propriedade
privada”, em que há exclusão de terceiros na exploração e regulação dos recursos,
além de exclusivos e transferíveis; “propriedade comunal”, em que os “recursos ma-
nejados por uma comunidade identificável de usuários interdependentes” (BERKES
et al., 2001, p. 21) e, por fim; a “propriedade estatal”, em que os direitos aos recursos
são alocados exclusivamente pelo governo que tem o poder de tomar as decisões em
relação ao acesso dos usuários (BERKES et al., 2001, p. 20-21).
Essa diferenciação ou classificação de regimes é feita para facilitar a compre-
ensão do tema. Na prática, porém, existe sobreposição de regimes e até conflito de
regimes (BERKES et al., 2001, p. 20).
O primeiro regime a ser estudado será o “livre acesso”, que representa a au-
sência de direito de propriedade definidos. Sendo assim, o acesso ao recurso não está
regulado e qualquer pessoa pode usufruir dele (BERKES et al., 2001, p. 20).
Segundo Berkes et al. (2001), quando os recursos são mantidos em livre acesso,
há uma tendência a “tragédia dos Comuns”. Como exemplo, traz o caso da extinção
das baleias nos oceanos. No entanto, um dado muito importante é levantado pelo autor.
Apesar de a ampla doutrina demonstrar que na falta de controle do recurso escasso
TRAGÉDIA DOS COMUNS 15

o esgotamento é inevitável, no caso de os recursos serem abundantes em relação


às necessidades, as condições de livre acesso não seriam um problema (BERKES,
2005, p. 56).
O livre acesso foi um conceito criado no local em que antes havia uma apropria-
ção comunal, que utilizava do Recurso Natural Comum apenas o necessário para viver,
não abusando de sua exploração. Infelizmente, “a condição de livre acesso mostrou-se
útil quando se desejava que os recursos fossem amplamente disponibilizados para
serem convertidos em riqueza econômica” (BERKES, 2005, p. 56). Essa constatação
vai ao encontro da visão crítica de Boaventura de Sousa Santos (2003; 2005), assim
como de Santos e Meneses (2010).
As populações locais que dependiam do recurso para a sua subsistência foram
eliminadas da “equação relativa à alocação dos recursos” e a “tragédia”, a partir de
então, começou. Segundo Berkes (2005, p. 56),

a tragédia ocorreu somente depois que as condições de livre


acesso foram criadas por fatores externos; ou seja, depois da
destruição dos sistemas existentes de posse comunal da terra
e do mar. Um certo número de casos envolveu a imposição do
domínio colonial, como na África do Sul do Saara, nas ilhas do
Pacífico, na Índia, nos rios de salmão da costa do pacífico nos
Estados Unidos e Canada.

O fator de colonização acabou por suprimir outros conhecimentos tradicionais


existentes e que estavam de acordo e em equilíbrio com todas as formas de vida. A
intervenção epistemológica em conjunto com as intervenções políticas, econômicas e
militares do colonialismo e do capitalismo moderno “se impuseram aos povos e culturas
não ocidentais e não cristãs” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 16). Estas intervenções,
então, descredibilizaram e suprimiram todas as práticas sociais de conhecimento que
contrariassem o interesse que a elas serviam, inclusive as práticas de vida comunal.
Santos e Meneses (2010) chamam essas práticas de epistemicídio, ou seja, “a supres-
são dos conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena” (SANTOS;
MENESES, 2010, p. 16).
Há uma confusão nas ideias de Hardin (1968). Na realidade, a condição de livre
acesso pode trazer um risco para a sociedade. Contrariamente, na propriedade comunal
existe gestão na exploração dos recursos e assemelha-se ao regime de propriedade
privada, para um grupo de diferentes donos (PIRES, 2015, p. 7).
Ainda, segundo Bromley (1992), não existe propriedade com recursos naturais
de acesso livre. Os sistemas de irrigação são exemplos de regimes de propriedade
16 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

comunal: os grupos são definidos pela restrição dos seus membros, a distribuição
física dos sistemas, os benefícios angariados anualmente e a necessidade do estoque
de capital e do fluxo anual, a fim de garantir que o sistema continue a gerar água e a
beneficiar o grupo (BROMLEY, 1992, p. 11-12).
O segundo regime é a “propriedade privada”. Neste caso, há regulação e explora-
ção de recursos por indivíduos que possuem a propriedade. Somente os detentores do tí-
tulo de propriedade deliberam sobre o que fazer com o recurso, excluindo-se terceiros. Há
possibilidade de o Estado impor algumas limitações no uso (BERKES et al., 2001, p. 21).
Imagina-se que a propriedade privada, em muitos casos, deu-se pela apropriação
de terras comunais consideradas pelos colonizadores como de livre acesso. A partir
do reconhecimento da propriedade privada, há uma exclusão e restrição do uso do
recurso comum.
Berkes (2005) afirma que a instituição da propriedade privada proporcionou um
arranjo institucional necessário a uma exclusão bem-sucedida de terras agricultáveis,
demonstrando que no mundo contemporâneo, após a União Soviética e pós-privatização
na China, a propriedade privada é quase a única forma pela qual se mantém os cultivos.
No entanto, para alguns recursos comuns, como os encontrados nos oceanos,
o regime de apropriação privada não seria um bom mecanismo, mesmo que algumas
alternativas já tenham sido desenvolvidas para solucionar o problema da superexplo-
ração ou da exclusão3 (PIRES, 2015, p. 7).
O regime da propriedade privada, apesar de aparentemente mostrar ser mais
efetivo na proteção dos recursos, pois estaria sob a responsabilidade de apenas uma
pessoa, apresenta riscos e falhas. O sujeito proprietário e usuário de uma propriedade
de maneira exclusiva talvez não meça esforços para maximizar os seus ganhos.4
Nesse sentido, é menos rentável plantar sequoias. Apesar de fazer sentido em
termos ambientais, o proprietário racional dificilmente fará este investimento. Para
espécies de crescimento lento e maturidade tardia, como baleias e sequoias, o ótimo
econômico é a degradação e não a prevenção (CLARK, 1973 apud BERKES et al.,
2001, p. 27). O direito de propriedade, portanto, permite ao proprietário maximizar
o valor momentâneo do recurso que, mesmo assim, não fica protegido da extinção
(BERKES et al., 2001, p. 28).

3
Exemplos são as quotas individuais transferíveis (ITQs), pois permitem que sejam direcionadas alocações
dos recursos marítimos. Cada barco recebe uma quota parte desta, que pode ser comprada, vendida
ou alugada (BARROSO; SOBEL, s.d.).
4
Hardin (1968) não acredita na moralidade, mas acaba apostando na moral de apenas alguns, quando
acredita ser a propriedade privada um mal necessário. Apenas alguns proprietários ficariam responsáveis
pela preservação dos recursos naturais e na sua distribuição.
TRAGÉDIA DOS COMUNS 17

Mas, em nossa opinião, o problema mais sério é que a propriedade privada


fragmenta, de fato, o Recurso Natural Comum. Mesmo que o proprietário tenha
consciência das atitudes a tomar para que a exploração não seja maior do que o
recurso possa suportar, esse recurso, na maioria dos casos, vai além das cercas da
propriedade privada.
Sabemos que em termos ambientais, uma ação que ocorreu em um determinado
local pode ter seus efeitos sentidos em locais muitos distantes ou até mesmo em outros
territórios, transpondo a soberania do país em que a ação foi originada. Exemplos desse
tipo são os casos da Indústria de Fukushima no Japão (SCHMIDT; HORTA; PEREIRA,
2014; FUKUSHIMA, 2016; MUKERIEE, 2016; HAMERS, 2017; THE GUARDIAN, 2017;
WORLD NUCLEAR ASSOCIATION, 2017) e o acidente da mineradora Samarco em
Mariana, no Brasil (PORTAL BRASIL, 2015; GARCIA et al., 2016; UFMG, 2017).
Ambas ficavam em áreas de um vasto Recurso Natural Comum e estavam dentro
de uma propriedade privada. Eram geridas com restrições. No entanto, a propriedade
privada e todas as limitações legais impostas pelo Estado não conseguiram evitar a
tragédia ocorrida.
Na “propriedade comunal”, o manejo dos recursos se faz por uma comuni-
dade identificável de usuários interdependentes. O uso é regulado por membros da
comunidade e indivíduos externos são excluídos. Os direitos aos recursos dentro da
comunidade são divididos de forma igualitária em relação ao acesso e ao uso. Existem
exemplos de manejo de forma comunal, como o caso de pesca, banco de bivalves,5
pastagem e áreas florestais, associação de usuários de água subterrânea e sistema
de irrigação (BERKES et al., 2001, p. 21).
Ostrom (1992, p. 296) diferencia os bens de uso coletivo e os recursos co-
muns quanto ao consumo. Os bens de uso coletivo são consumidos sem que ocorra
a exclusão de outras pessoas (livre acesso), enquanto os recursos comuns são de
uso limitado, surgidos da propriedade comunal. Imagina-se esse recurso como uma
ponte. Se alguns carros a utilizam diariamente, não ocorreriam problemas. No entanto,
se todos os carros de uma mesma cidade a utilizassem simultaneamente, ocorreriam
congestionamentos, dificultando a passagem de todos. Logo, com o maior número de
pessoas utilizando a mesma reserva, culminaria em aumento de custo para a extração
e, consequentemente, a destruição ou erosão do recurso comum.
Da mesma forma, Ford Runge (1992, p. 17 - 18) afirma que o modelo da institui-
ção comum deve ser distinguido daquele de livre e aberto acesso, em que não existem

5
Espécie de concha fechada por moluscos.
18 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

regras que regulam o uso dos recursos disponíveis. O que, à primeira vista, parece ser
uma comunidade livre e de acesso aberto, na verdade é uma instituição de propriedade
comum que é gerida por normas e cooperação dos indivíduos. O problema da proprie-
dade comum reside na estrutura do uso de direitos adotados pelo grupo residente, que
pode advir de pressões populares, mudanças tecnológicas, climáticas ou políticas.
As organizações apropriadoras podem ser caracterizadas como uma política
instituída por apropriadores, cujo objetivo é o ganho de benefício em causa comum,
a partir de escolhas feitas pela coletividade. Sabe-se que tais escolhas são melhores
que aquelas tomadas individualmente, quando a pessoa é livre para tomar iniciativas,
sem pensar no bem comum.
Essas organizações são incumbidas de pensar sobre o tamanho das reservas
comuns, as ações anteriores realizadas na terra, os benefícios e custos das ações,
as promessas políticas dos participantes; pautando-se na confiança mútua e na reci-
procidade. As estratégias coordenadas tendem a reduzir o risco de dano aos recursos
naturais comuns (OSTROM, 1992, p. 300-302).
Na maioria dos países, inclusive no Brasil, não há o reconhecimento legal dessas
comunidades. No caso do Brasil há duas alternativas: a instituição da propriedade priva-
da como assentamentos sem terras, por exemplo, ou a instituição de terras que deverão
ser protegidas pelo Estado por meio de normas, como a Lei de Unidades de Conserva-
ção (BRASIL, 2000). Esta lei estabelece regime de proteção com ou sem a intervenção
humana. Neste último caso, a grande maioria dos usuários precisa sair do local.
Ainda há o reconhecimento constitucional das terras indígenas,6 embora essas
terras não sejam reconhecidas como propriedade comunal, mas sim como terras do
Estado. Este fato gera uma insegurança para as populações que têm suas áreas7
dispostas pelos interesses econômicos e políticos, revestidos de interesse público.
Importante notar, também, que em qualquer outro caso, os usuários poderiam requerer
usucapião das terras, mas os índios são privados desse direito. Nossa opinião é que as
terras indígenas deveriam ser consideradas áreas de propriedade comunal, podendo
apenas os índios, por consenso, dispor da terra em que sempre estiveram.
Como estamos analisando sob a ótica da complexidade, alguns autores enten-
dem que devemos gerir os recursos de forma compartilhada, com o auxílio do Estado
na gestão, mas com o respeito às comunidades tradicionais existentes (BERKES et
al., 2001, p. 31).

6
Constituição Federal, arts. 231 e 232 (BRASIL, 1988).
7
As terras indígenas são consideradas sagradas para a maioria das tribos ainda existentes.
TRAGÉDIA DOS COMUNS 19

Segundo Berkes et al. (2001, p. 31),

a devolução completa talvez não seja apropriada; faz sentido que


o Estado continue a ter papel na conservação e na alocação de
recursos entre comunidades de usuários. Administração com-
partilhada ou regulação estatal conjunta com automanejo dos
usuários é, portanto, uma opção viável. Essa forma de comanejo
pode capitalizar o conhecimento local e o interesse duradouro
dos usuários, ao mesmo tempo permitindo a coordenação com
usos relevantes e com usuários em um amplo escopo geográfico
a custos transacionais (imposição de regras) potencialmente
mais baixos.

A propriedade comunal prevê um complexo sistema de normas de convenções


que regulam os direitos individuais a fim de dar um bom uso para os recursos naturais,
como florestas e água. Apesar de as comunidades tradicionais utilizarem recursos
comuns de forma estável, a combinação do crescimento populacional, mudança tecno-
lógica, mudança climática e variantes políticas desestabilizaram diversas instituições. A
falta de administração dos bens comuns dá lugar a preocupações de escassez. Como
exemplo, na região de Sahel, na África, o mau uso dos recursos fez com que resultasse
na imposição do modelo privado de direito de propriedade (RUNGE, 1992, p. 17-18).
Alguns autores acreditam que para o sucesso das comunidades comuns seria
necessária a privatização dos recursos, criando um mercado de direitos. Este modelo
levou uma série de economistas a acreditar que a mera existência de direitos que
regulam, de maneira privada, os comuns, levaria à tragédia. Isso porque regulariam,
também, bens escassos, não respeitando o uso sustentável (RUNGE, 1992, p. 22).
A gerência dos comuns pode ser vista de três maneiras. Primeiro, os pequenos
níveis de fomento implicam na institucionalização de propriedades privadas, que lidam
com os grandes custos para gerar vilarejos e comunidades por meio da administração
de recursos. Entretanto, as regras da propriedade comunal são utilizadas em locais
pequenos, e os abusos de autoridade são menores que em um programa centralizado
de privatização.
Um segundo motivo para a sobrevivência da propriedade comunal diz respeito
ao uso contínuo e moderado dos recursos dispostos, isto é, a população vive do Meio
Ambiente que a cerca e os incentivos devem garantir o acesso a certos recursos, ao
invés de restringi-los. Os direitos de uso comum contribuem para a estabilidade social
ao mesmo tempo em que promovem adaptações eficientes à disposição dos recursos
mutáveis.
20 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Como terceira característica, tem-se a diminuição de possibilidade de falha


individual, já que o indivíduo é pertencente à comunidade. Os níveis de pobreza e
de bem-estar social se adaptam à vida comunitária, não destoando grandemente em
detrimento da vida individual de cada habitante (RUNGE, 1992, p. 33).
Em suma, o êxito na gestão de propriedades comunais é frequente. No entanto,
afirma Berkes (2005, p. 58) que “a instauração por forças externas, como o colonia-
lismo, é particularmente danosa”. Para o autor, o reconhecimento legal dos direitos
de apropriação comunal de recursos naturais8 é a chave para o sucesso na gestão
desses recursos.
Para evitar que ocorram tragédias, é necessária a criação de organizações
apropriadoras, que servem para demarcar áreas, podendo ser informal, formada por
governo local ou indivíduos (OSTROM, 1992, p. 298).
No caso do “regime estatal”, os direitos dos recursos ficam a cargo do governo.
É o Estado que deve tomar as decisões relativas aos recursos e ao nível de exploração.
As vantagens desse regime existem quando os usuários têm acesso igual ao
recurso, como em parques, praças e rodovias. Além disso, o Estado possui mecanismos
coercitivos de imposição do zelo, diferente de grupos privados.
No entanto, este regime pode ser confundido pelos usuários dos recursos como
de livre acesso, pois, na maioria dos casos, o Estado não consegue fazer a fiscalização
e o manejo adequado. Tal fato ocorreu no Nepal (BERKES et al., 2001, p. 26)9 e pode-
mos afirmar que acontece também no Brasil. A Amazônia constitui um exemplo, pois,
apesar das legislações vigentes - como a Constituição Federal, a Lei de Gestão de
Florestas Públicas e a Lei das Unidades de Conservação - a ineficiência do Estado na
fiscalização e controle acaba por aparentar ao usuário dos recursos e ao morador da
floresta que essas áreas são de livre acesso.
Segundo Berkes (2005, p. 64), apesar de todos os regimes de propriedade terem
problemas com o cumprimento da legislação e proteção dos recursos, “o regime de
apropriação estatal dispõe provavelmente da pior experiência nesse sentido”.
Em suma, usar isoladamente as categorias de apropriação limita, portanto, a
preservação do Recurso Natural Comum, além de ir contra o paradigma da comple-
xidade. Se falarmos de recursos pequenos, como uma comunidade ou uma família,
conseguimos geri-los sem maiores problemas, excluindo demais pessoas da atividade
8
É o caso da zona costeira e do controle de pesca do Japão (BERKES et al., 2001, p. 24).
9
Em 1958, o governo nacionalizou áreas florestais, convertendo o que era tradicionalmente floresta
comunal em propriedade estatal, mas o resultado acabou se aproximando do regime de livre acesso
(BERKES et al., 2001, p. 26).
TRAGÉDIA DOS COMUNS 21

sem custo alto. Para grandes recursos, no entanto, como o oceano, é extremamente
difícil que ocorra uma delimitação econômica e de uso (OSTROM, 1992, p. 295).
Muitos desses recursos são, por natureza, não exclusivos e não adequados
para a apropriação privada, tais como peixes, animais silvestres, rios e oceanos, o
ar que respiramos, dentre outros. Esses recursos, portanto, são difíceis de serem
considerados sob a perspectiva da economia convencional. O reconhecimento desses
Recursos Naturais Comuns como uma categoria distinta fez com que um volume alto
de pesquisas inter e transdisciplinares tenham sido produzidos nos últimos tempos
(BERKES, 2005, p. 51).
Independente do regime de apropriação, nota-se grande problemática com a falta
de um grupo administrador que permita uma gestão de uso sustentável dos recursos.
Isso porque os recursos não devem ser calculados com base, apenas, na população
local, vez que existem fluxos migratórios e a população possui variantes numéricas
com o passar dos anos (BROMLEY, 1992, p. 12).
Segundo Bromley (1992, p. 12), os regimes de propriedade comunal evitam a
exclusão de pessoas, visto que são utilizados por grandes grupos. O foco é a utilização
pelo maior número de pessoas em detrimento do uso sustentável dos recursos dispo-
níveis; ao contrário da propriedade privada, que pertence a determinado indivíduo, que
pode realizar o poder de exclusão contra qualquer indivíduo quando quiser.
Acreditamos que algumas Unidades de Conservação deveriam ser repensadas
e que o reconhecimento da propriedade comunal fosse considerado. No próximo item,
traremos os conflitos do Parque Serra do Tabuleiro, cujo regime é de propriedade Estatal.

2. O CASO DO PARQUE ESTADUAL SERRA DO TABULEIRO


Os casos de conflitos na Serra do Tabuleiro são imensos. Dos 465 casos
estudados, 128 são da localidade. O Parque Estadual da Serra do Tabuleiro ocupa
cerca de 1% do território catarinense e abrange áreas dos municípios de Florianópolis,
Palhoça, Santo Amaro da Imperatriz, Águas Mornas, São Bonifácio, São Martinho,
Imaruí e Paulo Lopes. Fazem parte do Parque as ilhas do Siriú, dos Cardos, do Largo,
do Andrade e do Coral, e os arquipélagos das Três Irmãs e Moleques do Sul. É de
extrema importância, pois abriga também as nascentes de rios como o da Vargem do
Braço, Cubatão e D’Una. Esses rios fornecem água para grande parte dos domicílios
da Grande Florianópolis e do litoral sul do Estado. O Parque é um regulador climático,
devido a suas características de solo, relevo e vegetação (FATMA, 2017).10
10
No momento da pesquisa, o órgão de fiscalização de Santa Catarina era a FATMA. Posteriormente o
órgão passou a ser chamado de Instituto de Meio Ambiente (IMA). Para mantermos os dados corretos
no período de sua coleta, optamos por manter a nomenclatura FATMA nos casos de pesquisa qualitativa.
22 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Os conflitos se dão por dois motivos principais: moradores que já se encontravam


na localidade há gerações, sentem-se injustiçados por terem que parar sua atividade,
por precisarem sair da localidade e/ou por terem sido fixados valores muito abaixo do
mercado a título de indenização. Além disso, pela morosidade do Estado nas desapro-
priações, pela falta de recurso público para o pagamento das indenizações e por falta
de fiscalização do Estado, muitas pessoas adquiriram terreno ou mudaram-se para a
localidade, fato que gerou muitos processos judiciais. Vejamos alguns.
O primeiro diz respeito à paralização de obra e de toda e qualquer atividade na
área do parque. Pela legislação, as pessoas envolvidas não podem exercer qualquer
tipo de atividade, já que o Parque é uma Unidade de Preservação de Proteção Integral.

TJ-SC - Agravo de Instrumento n. 2007.058679-0


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DO MEIO AMBIENTE.
MEDIDA LIMINAR. PARALISAÇÃO IMEDIATA DE TODA E
QUALQUER ATIVIDADE EM IMÓVEIS SUPOSTAMENTE
COMPREENDIDOS NA ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMA-
NENTE DO PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO TABULEIRO.
UTILIZAÇÃO PARA FINS AGRÍCOLAS DESDE PERÍODO AN-
TERIOR À CRIAÇÃO DO PARQUE. INDENIZAÇÃO NÃO PAGA
AO PROPRIETÁRIO. Inexistência de demonstração da prática
de atividades predatórias. Decisão de igual extração, entre as
mesmas partes e tendo por objeto áreas integrantes do mesmo
conjunto de terras, reformada em julgamento de recurso anterior.
Uniformidade de tratamento em contemplação à segurança
jurídica. Agravo provido. Trata-se de agravo de instrumento
interposto por autor contra decisão liminar que, em ação civil
pública ajuizada pelo ministério público na comarca de Santo
Amaro da Imperatriz, determinou a paralisação de qualquer
atividade em dois imóveis rurais pertencentes ao recorrente,
situados no interior do parque estadual da serra do tabuleiro,
explicitando que o demandado deverá abster-se de “realizar
ou prosseguir com obras de construção, acréscimo de área,
reforma, extração de madeira nativa, derrubada de vegetação,
implantação de vias, desenvolvimento de atividade agrícola,
pecuária ou qualquer outra atividade de exploração direta do
espaço territorial situado em área de preservação permanente
e pertencente ao parque estadual da serra do tabuleiro, exceto
em caso de licenciamento ambiental expedido pela FATMA”
(BRASIL, TJ-SC, 2008).

Em outros casos da Serra do Tabuleiro, apesar do reconhecimento da desa-


propriação indireta, os proprietários sentem-se injustiçados pelo valor a ser pago pela
TRAGÉDIA DOS COMUNS 23

indenização pelo fato de não ser computado no valor do montante indenizatório as


áreas de Preservação Permanente (BRASIL, STJ, 2000). Fato mais grave ainda é que
muitas decisões de desapropriação indireta foram tomadas antes da legislação estadual
14.661 de 2009 (SANTA CATARINA, 2009), que redefiniu os limites do parque, criando
o Mosaico de Unidades de Conservação da Serra do Tabuleiro e Terras do Maciambu,
como é o caso abaixo.
TJ-SC - Apelação cível n. 2009.008044-5, de Palhoça
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AGRAVO
RETIDO. RECURSO QUE NÃO É CONHECIDO EM FACE DA
AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO, NAS RAZÕES DA APE-
LAÇÃO, PARA SUA APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL. ART.
523, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DESAPRO-
PRIAÇÃO INDIRETA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALEGAÇÃO
DE PRESCRIÇÃO DO DIREITO DOS AUTORES. SÚMULA N.
119 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRESCRIÇÃO
VINTENÁRIA. TERMO INICIAL QUE FOI INTERROMPIDO
COM A EDIÇÃO DO DECRETO ESTADUAL N. 18.766, DE
10.12.1982. AÇÃO AJUIZADA EM 02.07.2002. PRAZO AINDA
NÃO TRANSCORRIDO. INÉPCIA DA INICIAL AFASTADA. CAU-
SA DE PEDIR DELIMITADA COM SUFICIÊNCIA NA PETIÇÃO
INICIAL. IMÓVEL QUE TEM ORIGEM EM CONCESSÃO DO
EXTINTO INSTITUTO DE REFORMA AGRÁRIA DO ESTADO
DE SANTA CATARINA - IRASC. ÁREA QUE NUNCA ATINGIU
SUA FINALIDADE SOCIAL. COBERTURA VEGETAL CONSTI-
TUÍDA BASICAMENTE POR VEGETAÇÃO RASTEIRA TÍPICA
DE RESTINGA. RESTRIÇÕES QUE SE LIMITAM ÀQUELAS
IMPOSTAS PELO CÓDIGO FLORESTAL. APOSSAMENTO
DA ÁREA QUE NÃO FICOU EVIDENCIADA. SIMPLES LI-
MITAÇÕES ADMINISTRATIVAS QUE NÃO JUSTIFICAM A
PRETENDIDA INDENIZAÇÃO. DIREITO À PROPRIEDADE
QUE SOFRE AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO ART. 5º,
INCISO XXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CRIAÇÃO DO
PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO TABULEIRO. DECRETO
ESTADUAL N. 1.260, DE 01.11.1975. DECLARAÇÃO DE UTI-
LIDADE PÚBLICA, PARA FINS DE DESAPROPRIAÇÃO, DE
ÁREAS DE TERRAS NECESSÁRIAS À IMPLANTAÇÃO DO
PARQUE ESTADUAL. DECRETOS ESTADUAIS NS. 1.261, DE
01.11.1975, 2.335, DE 17.03.1977 E 18.766, DE 20.12.1982.
RECURSO DO ESTADO PROVIDO, FICANDO PREJUDICADO
O INTERPOSTO PELOS AUTORES E O REEXAME NECES-
SÁRIO (BRASIL, TJ-SC, 2009b).
24 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Abaixo citaremos duas decisões sobre o mesmo local, no entanto, em lapso


temporal diferente: uma posterior à Lei de 2009 (SANTA CATARINA, 2009), outra
anterior a esta lei.
A Apelação Cível n. 2009.052920-8, da Capital (BRASIL, TJ-SC, 2009) trata
da demolição de uma casa de madeira que servia como apoio para a pesca local na
região de Naufragados, sul da ilha de Florianópolis. Tem-se que a área pertence à
Área de Proteção Ambiental do Entorno Costeiro, e como unidade de conservação de
uso sustentável, admite a presença humana em observância ao uso sustentável dos
recursos naturais ofertados.
Consoante se extrai do acórdão exarado:

TJ-SC - Apelação Cível n. 2009.052920-8


Com a superveniência da Lei Estadual n. 14.661/09, houve
mudanças significativas da categoria ambiental da Ponta dos
Naufragados, passando a integrar Área de Proteção Ambien-
tal do Entorno Costeiro, que admite certo grau de ocupação
humana, com uso sustentável dos recursos naturais. Assim,
observando-se que a construção que se pretende demolir é
simples e modesta, sendo utilizada somente como apoio para
pesca (atividade que notadamente faz parte da cultura tradicional
do ilhéu), e não se identificando a presença de impacto ambiental
significativo, considerando a categoria mais permissiva da uni-
dade de conservação, o direito à propriedade e à subsistência
prevalece sobre o princípio do in dubio pro natura, já que não
existe direito fundamental absoluto (BRASIL, TJ-SC, 2009).

Cabe salientar que foi constatado que a casa não possuía iluminação elétrica,
não havia lixo depositado no entorno, assim como não havia fogão à lenha. Nesta
senda, infere-se que a casa era utilizada de maneira sustentável, e a sua demolição
não interferiria na preservação do Meio Ambiente.
Decisão diferente foi tomada no acórdão de 2005, Apelação Cível 2005.034094-7,
da Capital (BRASIL, TJ-SC, 2005), em que a apelante teria construído uma casa em
área delimitada como Unidade de Conservação em Naufragados, Florianópolis. Consta
no acórdão que a apelante teria comprado o terreno na década de 90 e somente reali-
zado a construção tempos depois, não solicitando licenciamento para a obra. O laudo
apto a demonstrar a sustentabilidade do local está ausente, porém alega a moradora
que a casa é simples e que observa a preservação do ambiente, além de servir para
sustento e moradia dela e de toda a família.
Todavia, o magistrado elucidou a questão:
TRAGÉDIA DOS COMUNS 25

Não há que se falar em manter a casa sob alegação de ocupa-


ção racional. A simples presença da edificação naquele local,
construída sem licença e em prejuízo da vegetação nativa, causa
lesão ao Meio Ambiente, independentemente do uso que se faça
dela (BRASIL, TJ-SC, 2005).

Como já mencionado, os casos do Parque Serra do Tabuleiro são de extrema


complexidade, pois a flexibilidade da Lei de 2009 - que transforma a área do parque
em Áreas de Proteção Ambiental, permitindo a interação do homem na Unidade de
Conservação - evita que excluamos o ser humano do conceito de Meio Ambiente e,
consequentemente, evita muitas injustiças e desequilíbrios socioambientais (SANTA
CATARINA, 2009).
Por outro lado, a mesma flexibilização cria o risco ao Meio Ambiente por super-
população humana, pois os locais em questão são visados pela construção imobiliária,
fato que pode acarretar danos irreversíveis ao Meio Ambiente, como por exemplo, a
destruição dos cordões arenosos que ficam na baixada do Maciambu, no município de
Palhoça. Segue relato da administradora do Parque à época sobre o assunto:
Essa região daqui mesmo, dos cordões arenosos, isso aqui é um
monumento geológico único no mundo, que são esses cordões
semicirculares concêntricos que não existe em outro lugar. Isso
aqui foi resultado do avanço e recuo do mar nos últimos 5 a 7
mil anos. Então é um movimento geológico super recente que
não tem em outro lugar, não tem nada a ver com a glaciação,
então é super recente em termos de era geológica, isso aqui
é um campo de pesquisa imenso e tem gente que acha que é
pra ocupar e fazer balneários e aumentar o gabarito daqui da
região, construir prédios aqui em cima, aqui tem cursos de água
que tá mais do que degradado, aqui tem espécie endêmica
super ameaçada.11

O que se percebe é que não há um reflexo nas decisões da relevância do Meio


Ambiente, visto de forma fragmentada, não sendo considerado um Recurso Natural
Comum a todos. Ao ler a sentença, o indivíduo sente-se revoltado e injustiçado, porque
simplesmente não entende o motivo pelo qual sua propriedade virou um parque.
Não há, portanto, à luz de uma análise linear das leis, uma saída plausível para
diminuir o conflito e evitar a proliferação de dano ambiental pela exploração agropecuária
e imobiliária. Por essa razão, faz-se fundamental que adotemos uma visão complexa
de sustentabilidade.
11
Fragmento de entrevista cedida a Caroline Vieira Ruschel pela administradora do Parque Serra do
Tabuleiro, Morgana Eltz, em Florianópolis, no dia 19 de maio de 2017.
26 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A visão complexa de sustentabilidade, segundo Morin nos ensina, compreende


incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios.
A complexidade sempre teria relação com o acaso, coincidindo com uma parte
de incerteza, seja proveniente dos limites de nosso entendimento, seja inscrita nos
fenômenos. Mas ela não se reduz à incerteza, “é a incerteza no seio de sistemas rica-
mente organizados”. Uma visão complexa de sustentabilidade, portanto, pressupõe
uma mistura de ordem e de desordem, “mistura íntima, ao contrário da ordem/desordem
estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina no nível das grandes populações e a
desordem (pobre, por pura indeterminação) reina no nível das unidades elementares”
(MORIN, 2005a, p. 35).
Segundo Morin (2005b, p. 456),
a Complexidade se impõe primeiro como impossibilidade de
simplificar; ela surge lá onde a unidade complexidade produz
suas emergências, lá onde se perdem as distinções e clarezas
nas identidades e causalidades, lá onde as desordens e as in-
certezas perturbam os fenômenos, lá onde o sujeito-observador
surpreende seu próprio rosto no objeto de sua observação, lá
onde as antinomias fazem divagar o curso das racionalizações.

No próximo capítulo analisaremos o regime de apropriação do Parque Serra do


Tabuleiro na visão complexa de sustentabilidade.

3. REFLEXÕES SOBRE O REGIME DE APROPRIAÇÃO DO PARQUE SERRA DO


TABULEIRO

Muitos autores trazem critérios de avaliação valiosos na gestão dos recursos


naturais comuns (OAKERSON, 1992, p. 42; MCKEAN, 1992). No entanto, como nos-
sa avaliação será no âmbito do judiciário, optamos por trabalhar com Elinor Ostrom
(OSTROM, 1990; 1992; 2011; OSTROM et al., 2001; 2016), que com mais de 40 anos
de pesquisa de campo conseguiu demonstrar o que estamos estudando nesta tese.
Ostrom (2011) apresenta uma alternativa para a proteção dos Recursos Natu-
rais Comuns diferente das trazidas pelos teóricos do Estado ou da privatização, cujo
precursor foi Hardin (1968). Ela nos comprova, com seus estudos de caso, que as
formas mais efetivas de proteção desses recursos ocorrem quando as comunidades
envolvidas elaboram regras sobre a utilização desses recursos.
Com o livro “O governo dos bens comuns”, Ostrom (2011, p. 10) não só critica,
mas comprova com sua experiência de campo, que a teoria convencional de Hardin
(1968) não estava correta. Hardin (1968) supõe que quando os indivíduos enfrentam
TRAGÉDIA DOS COMUNS 27

um dilema devido a externalidades criadas por ações de outrem, realizam cálculos


estreitos e de curto prazo que levariam todos os indivíduos à ruina, sem poder encontrar
soluções para resolver o problema.
No entanto, Ostrom, Gardener e Walter, após uma série de pesquisas para
examinar com precisão as condições as quais os indivíduos cooperam em apropriação/
colheita de recursos de propriedade coletiva, chegaram às seguintes constatações
(OSTROM, GARDNER; WALKER, 1994; OSTROM, 2011, p. 11):
a) quando não se permite que os apropriadores se comuniquem entre si, tendem
a sobre apropriar-se, como diz a teoria convencional;
b) quando os apropriadores se comunicam, conseguem ganhos mais altos do
que quando não podem se comunicar;
c) quando os investimentos são mais altos, alguns investidores ficam tentados
a descumprir o acordo e os lucros são menores se comparados com situações de
investimento baixo;
d) se dada a oportunidade, os proprietários estão dispostos a pagar quotas para
multar outros quando sobreutilizam o recurso. Este fato leva a uma redução dos níveis
de colheita, mas não no lucro líquido, já que há uma tendência a exercer represálias
com multas altas;
e) quando os proprietários discutem e acordam abertamente sobre seus pró-
prios níveis de apropriação e seus sistemas de sanções, as violações dos acordos
se mantêm baixas, algumas punições são necessárias, mas se chega a resultados
próximos a ótimos.
Ostrom (2011, p. 13), portanto, chega à conclusão que depois de muito esforço
tentando encontrar a regra que fazia a diferença básica na sustentabilidade de longo
prazo, finalmente deu-se conta de que não era uma regra específica que fazia a dife-
rença, mas sim os princípios subjacentes às regras particulares. Além disso, um grupo
auto-organizado de usuários de um recurso que tem uma ou mais regras de definição
de limites de pertencimento e adesão claramente compreendidas pelos membros e
não membros do grupo tem maiores probabilidades de sobreviver durante muito tempo.
Da mesma forma, Ostrom (2011, p. 13, tradução nossa) chegou à conclusão de que:

Não importa que tipo de mecanismos de resolução de conflitos


utilizados, ou de que maneira especificamente o monitoramento
é feito, ou que tipo de sanções graduadas estejam em vigor. O
fato importante é que os usuários locais tenham acordos sobre
regras que definam os limites, os mecanismos de resolução
de conflitos, planos de monitoramento, sanções adequadas
28 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

e apropriadas e regras próprias ligadas a outros princípios


relacionados ao desenho.

Neste ponto, Ostrom (2011) questiona a superioridade das propriedades


privadas de preservar de forma mais exitosa os recursos naturais comuns. Também
recebe questionamentos se os mesmos desenhos seriam relevantes para países
em desenvolvimento. A resposta dela para o primeiro questionamento é de que, se
perguntados sobre as vantagens de alterar o regime de propriedade para um regime
privado, aqueles membros analisaram e calcularam, percebendo ser melhor manter o
regime de propriedade comunal. Quanto ao segundo questionamento, ela apresenta
o exemplo das Filipinas.
No Brasil, como não há o reconhecimento de uma propriedade comunal, esse
sistema de associação e gestão dos Recursos Naturais Comuns pode ser de grande
valia, desde que permitido que as comunidades criem suas regras de apropriação,
exploração e sanção, respeitando, por obvio, a Constituição Federal e as leis gerais
ambientais, civis e penais vigentes no país.
Se realmente ponderarmos os mais de 40 anos de pesquisa de Ostrom, per-
cebemos que o Direito necessita de adequações. Faz-se necessário olharmos para
outras vias possíveis, como o reconhecimento do pluralismo jurídico e a necessidade
de criação de mecanismos para a autoconfiança e o empoderamento dos cidadãos
para que tenham êxito ao criarem regras para resolução de conflitos locais.
Dar abertura para que as populações envolvidas criem suas próprias regras
não pressupõe um sistema anarquista, muito pelo contrário. Princípios e regras gerais
devem continuar estabelecendo diretrizes à população, ao mesmo tempo em que a
população pode estabelecer suas regras a partir de sua realidade local.
Se todo o fazer é um conhecer e se todo o conhecer é um fazer (MATURANA;
VARELA, 2001), ou seja, se realmente conhecemos algo quando vivenciamos deter-
minada coisa ou realidade, parece utópico que em um país continental como o Brasil,
com uma diversidade geográfica, biológica e social gigantesca, regras de conduta
sejam definidas por um sistema de votação, cujos participantes da sessão são pessoas
que - apesar de eleitas pelo povo - não têm experiência e, portanto, não conhecem a
realidade para a qual estão definindo tais regras.
Dentro da complexidade, uma dialógica entre o monismo e o pluralismo deve
existir. Faz-se necessário que ambos coexistam e se retroalimentem com uma dinâmica
recursiva.
Para que isso aconteça, novas técnicas devem ser aceitas pelo Estado, para
que, ao mesmo tempo em que diretrizes gerais sejam postas para a organização da
TRAGÉDIA DOS COMUNS 29

nação, haja o empoderamento da população para entender e produzir regras que trarão
um benefício local a todos.
No caso do Parque Serra do Tabuleiro, é visível que um dos problemas da
constante invasão de pessoas dá-se porque o parque está sobre uma apropriação
estatal. O Estado, por meio do Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina
(IMA) conta, em seu quadro de servidores, com um seleto grupo. No entanto, o efetivo
é baixo, o que torna a fiscalização difícil.
As denúncias que existem são graças às pessoas que moram no seu entorno
e que não foram desapropriadas ou, ainda, que tiveram a desapropriação indireta de
suas terras, não podendo exercer atividades no local do parque.
Este fato gera muita revolta por parte dos moradores locais que não podem
interagir com a terra, fato que comprova a fragmentação da lei entre o homem e o meio
ambiente. Além disso, ao mesmo tempo em que não há uma gestão efetiva do Estado,
também não há uma gestão comum entre os proprietários privados. Para agravar o
problema, a exploração imobiliária tem grande interesse econômico na área, fazendo
especulações de todos os níveis, inclusive com a mudança da legislação.
Se mesclássemos pluralismo e monismo, empoderando as pessoas que moram
na localidade, talvez conseguíssemos criar uma gestão comum mais efetiva. O Estado
ficaria com as regras gerais, enquanto as pessoas fariam regras específicas. Além disso,
se reconhecêssemos o regime comunal de apropriação, talvez tivéssemos moradores
mais ativos no auxílio à preservação e um risco menor de alterações legislativas para
exploração da localidade.
É perceptível que, sabendo que não podem nada fazer para a gestão do local,
os moradores deixam toda a responsabilidade na mão estatal. Seria importante um
regime que previsse uma parceria entre o poder público e a coletividade, a fim de que
todos exercessem o dever fundamental de preservação dos recursos comuns.
Nesse caso, é preciso algo além disso. Faz-se necessário trabalhar no campo
da cognição, da ecologia mental, pois, mesmo que ações realizadas na localidade
expliquem os perigos do desmatamento (ecologia ambiental), na grande maioria dos
casos, os sujeitos encontram-se envolvidos em realidades e em crenças que os limitam
e que não permitem que ajam com autonomia.
Além disso, faz-se necessário fornecer ambientes em que “os sistemas auto-
-organizados possam aprender, uns com os outros e a partir de estudos, melhores
formas para se adaptar ao longo do tempo” (OSTROM, 2011, p. 14). A comunicação
deve ser exercida de forma não violenta (ROSENBERG, 2006).
30 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Nesse sentido, as pesquisas desenvolvidas por Ostrom trouxeram, segundo


Dardot e Laval (2014, p. 56) a constituição de uma nova economia política dos comuns
(no plural), contribuindo para dar conteúdo positivo ao comum (no singular). Suas
pesquisas empíricas como sua teoria institucionalista da ação coletiva mostram que
o mercado e o Estado não são os únicos sistemas de produção possíveis, mostram
que outras formas institucionais, muito diversas pelo mundo, podem contribuir com
recursos duráveis e em quantidades satisfatórias para seus membros, e assim para a
criação e a renovação instituída por regras de gestão comum.
Neste ponto, e analisando a partir de uma epistemologia complexa de sus-
tentabilidade, percebe-se que a forma de pensar a natureza e a forma como nos
enxergamos enquanto seres dentro do Planeta Terra concorre na geração de conflitos
e degradação. Por esta razão, há urgência de uma metodologia que nos auxilie na
reforma do pensamento e na compreensão de que somos unos e em constante conexão
com o Planeta Terra.
A conclusão a que se chega ao final deste item - diferentemente do que Hardin
(1968) colocou no seu artigo, que a possibilidade de solução seria pela propriedade
privada ou pelo controle estatal - é que não existe uma fórmula certa e de sucesso: tanto
propriedade comunal como propriedade privada e propriedade governamental podem ter
êxito ou fracasso quanto à prevenção dos Recursos Naturais Comuns. Segundo Berkes
(2005), o êxito depende, principalmente, do adequado funcionamento das instituições.
Precisamos encarar o problema dentro da lógica da complexidade. Segundo
Berkes et al. (2001, p. 31), “evidências indicam que interações complexas envolvendo
as características dos recursos, os regimes de direitos de propriedade, entre outros
arranjos institucionais, além do ambiente socioeconômico, contribuem para o grau de
sucesso do manejo”.
Seguindo o mesmo raciocínio, o ser humano não pode ser separado do Meio
Ambiente e, como elucida Morin, para que haja a vida, existe a necessidade da morte.
No entanto, precisamos olhar com cuidado para as comunidades tradicionais que detêm
a posse da terra, mas não a sua propriedade. Elas devem ser respeitadas e incluídas
quando da gestão dos Recursos Naturais. No Direito, esse fato é muito relevante, pois
na grande maioria dos casos a ideia é de desapossar ou desapropriar essas pessoas
e, em raros casos, são feitos trabalhos para uma gestão comunitária dentro do recurso.
É como se cada um, em cada caso, tivesse um único e fundamental papel para a
construção e proteção do que Houtart (2011) chamou de Bem Comum da Humanidade,
mas que poderíamos chamar de unidade na diversidade para construção da harmonia
da vida planetária.
TRAGÉDIA DOS COMUNS 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Traçaremos algumas considerações finais sobre o tema aqui exposto. Sabemos


de sua amplitude, mas em função do espaço e do tempo, decidimos parar neste ponto,
já que os objetivos específicos do presente artigo foram alcançados.
Em um primeiro momento, importante mencionar que confirmamos nossa hipóte-
se, de que o regime de apropriação do Parque Estadual Serra do Tabuleiro não é eficaz
pelos motivos expostos acima e que serão resumidos a partir dos objetivos específicos.
Em primeiro lugar, o parque Serra do Tabuleiro possui um regime de apropriação
Estatal dos Comuns. Este regime não se mostra efetivo no cenário mundial. Como
estudamos, as formas mais eficazes e de êxito na preservação dos recursos ocorrem
quando existe uma mistura entre regimes de apropriação.
Estudamos que existem quatro regimes: o estatal, o livre acesso, a propriedade
privada e o regime comunal. Hardin, no artigo “A tragédia dos Comuns”, mencionou o
regime Estatal e o Regime da propriedade privada. Enfatizou sua pesquisa no sentido
de que a propriedade privada seria o melhor regime de apropriação, caso queiramos
respeitar o meio ambiente. No entanto, seus estudos foram contestados por outros
pesquisadores, como Ostrom e Berkes, que propuseram um regime comunal ou uma
gestão que mescle dois ou mais regimes.
Em um segundo momento, apresentamos a situação do Parque Estadual Serra
do Tabuleiro, demonstrando por meio de entrevistas e pesquisa jurisprudencial os limites
da legislação ambiental na resolução dos conflitos e a sua consequente ineficácia na
preservação dos recursos naturais comuns do parque.
A partir dessas análises, que demonstram tanto a perpetuação dos conflitos,
mesmo depois de decisões judiciais transitadas em julgado, partimos para as reflexões
sobre o regime de apropriação do parque. Nesse último item, pesquisamos o modelo
de sucesso de gestão dos comuns estudado por Ostrom e constatamos que se faz
necessário um trabalho em parceria entre o poder público e a coletividade.
Para tanto, importante trabalhar a autonomia dos indivíduos por meio de uma
ecologia mental, que fortaleça os vínculos do ser humano com a natureza e que
empodere a população local na efetiva gestão, fazendo cumprir o que a Carta Maior
brasileira determina, a saber, que todos temos o direito, mas também o dever ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Pluralismo e monismo, unidade na diversidade, direito e dever, ser humano e
meio ambiente são alguns conceitos que devem ser trabalhados recursivamente se
quisermos resolver os conflitos ambientais e preservar o meio ambiente em uma visão
complexa de sustentabilidade.
32 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

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DIREITO E BIOLOGIA: AS RELAÇÕES JURÍDICAS E A
REGULAÇÃO DE RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS
PARA A CONSOLIDAÇÃO DA BIOECONOMIA1

LAW AND BIOLOGY: LEGAL RELATIONS AND THE


REGULATION OF GENETIC RESOURCES IN FOR
THE CONSOLIDATION OF BIO-ECONOMY

DANILO HENRIQUE NUNES2

JUVÊNCIO BORGES DA SILVA3

LETÍCIA DE OLIVEIRA CATANI FERREIRA4

SUMÁRIO: Introdução - 1. Da biodiversidade, da bioeconomia e da biotecnologia


- 2. Dos recursos genéticos e dos recursos genéticos vegetais - 3. Do direito e dos
recursos genéticos vegetais: relações jurídicas e sua regulação para a consolidação
da bioeconomia e dos novos caminhos do agronegócio brasileiro - Considerações
finais - Referências.

RESUMO: O acesso e o uso dos recursos genéticos vegetais são discutidos


nos diversos campos do conhecimento, sobretudo no contexto jurídico, visto que as

1
Data de recebimento do artigo: 15.12.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 16.01.2019 e 25.01.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 12.02.2019.
2
Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania na Universidade de Ribeirão Preto - Unaerp. Docente do
Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos/SP e do Centro Universitário Estácio em
Ribeirão Preto/SP. Advogado. Jornalista. E-mail: dhnunes@hotmail.com.
3
Professor-Doutor Orientador do Programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania na Univer-
sidade de Ribeirão Preto - Unaerp. E-mail: jsilva@unaerp.br.
4
Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto - Unaerp. Docente do
Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos/SP. Advogada. E-mail: leticiacatani@yahoo.
com.br.
36 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

legislações ambientais objetivam incorporar o desenvolvimento sustentável da explo-


ração de tais recursos. O estudo analisa as principais discussões correlacionando
o Direito e a Biologia, concentrando-se em verificar a importância da regulação dos
recursos genéticos vegetais para a consolidação da bioeconomia e os novos caminhos
do agronegócio brasileiro, a partir de análise de dados obtidos no âmbito bibliográfico
com aplicação do método hipotético-dedutivo. Enfatiza-se, ainda, os avanços recentes
ocorridos na legislação e a necessidade de criação de um novo marco teórico mais
abrangente com base nesses objetivos.
PALAVRAS-CHAVE: direito e biologia; relações jurídicas; regulação de recursos
genéticos; recursos genéticos vegetais; bioeconomia.
ABSTRACT: Access and use of plant genetic resources are discussed in the va-
rious fields of knowledge, especially in the legal context, since environmental legislation
aims to incorporate the sustainable development of the exploitation of such resources.
The study analyzes the main discussions correlating Law and Biology, focusing on veri-
fying the importance of the regulation of plant genetic resources for the consolidation of
the bio-economy and the new paths of Brazilian agribusiness, based on the analysis of
data obtained in the bibliographical scope with application of the hypothetical-deductive
method. It is also emphasized, given the recent advances in legislation and the need to
create a new, more comprehensive theoretical framework based on these objectives.
KEYWORDS: law and biology; legal relations; regulation of genetic resources;
plant genetic resources; bio-economy.

INTRODUÇÃO

Os recursos genéticos, sejam oriundos de recursos vegetais, animais ou mi-


crobiais, têm provocado uma série de debates na contemporaneidade, visto que, em
tese, deveriam ter seu acesso e uso voltados para a partilha dos benefícios advindos
de sua exploração. Uma série de tratados internacionais e, sobretudo, a Convenção
sobre Diversidade Biológica (CDB) de 1992 contemplaram orientar as legislações dos
países signatários nesse sentido, todavia, atualmente, há uma série de perspectivas
a serem contempladas no âmbito dos recursos genéticos vegetais.
De fato, desde 1992, o panorama de exploração dos recursos genéticos vegetais
sofreu poucas alterações, sobretudo quando tratamos de países emergentes, como
é o caso do Brasil. A legislação brasileira que versa sobre o patrimônio genético foi
alterada recentemente, em 2015, porém as controvérsias acerca de omissões legais
e de aspectos contraditórios à CDB continuam presentes nos embates envolvendo os
DIREITO E BIOLOGIA 37

recursos genéticos, sobretudo quando consideramos a necessidade de consolidação


da economia e dos novos caminhos do agronegócio brasileiro.
O presente estudo busca analisar a importância das relações jurídicas e da
regulação de recursos genéticos em vegetais tanto para a consolidação da bioeconomia
quanto para que a regulamentação esteja alinhada aos novos caminhos do agronegócio
no Brasil. Tal análise se dará a partir de uma coleta de dados que envolve estudos que
abordaram questões pertinentes à caracterização e regulação dos recursos energéti-
cos vegetais, com o objetivo de identificar, ainda diante dos avanços legais ocorridos
nesse sentido, a necessidade da criação de um marco regulatório específico para os
recursos genéticos, versando, sobretudo, para a exploração dos recursos genéticos
vegetais nesse sentido.
Para que o estudo possa produzir resultados dentro da égide de objetivos su-
pramencionada, o estudo terá seu desenvolvimento dividido em três capítulos distintos,
com a seguinte disposição: o primeiro apresenta concepções fundamentais acerca
da biodiversidade, da bioeconomia e da biotecnologia, apresentando os conceitos e
a correlação entre esses elementos, versando sobre sua importância na atualidade e
introduzindo a importância da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável nesses
aspectos, perspectiva também aplicável ao agronegócio brasileiro. Já no segundo, na-
turalmente, para que o estudo alcance os objetivos propostos, é indispensável conhecer
e aprofundar saberes e conhecimentos acerca dos recursos genéticos e dos recursos
genéticos vegetais como um todo. Desse modo, o segundo capítulo promove esse
entendimento, trazendo concepções e conceitos fundamentais acerca dos recursos
energéticos e versando sobre o acesso e uso destes, considerando o Brasil enquanto
um país com riqueza de biodiversidade e de recursos energéticos vegetais. Por fim, o
terceiro e último capítulo do estudo delimita a regulação dos recursos energéticos em
vegetais para a consolidação da bioeconomia e dos novos caminhos do agronegócio
brasileiro, apontando para a necessidade de criação de um novo marco regulatório
mais alinhado a esses preceitos.
Se faz necessária, ainda, uma abordagem concisa acerca da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB) de 1992, verificando suas principais premissas no âmbito
do acesso e uso dos recursos genéticos e os pontos de incongruência da própria con-
venção ao ser comparada com outros tratados internacionais firmados nesse sentido.
Destaca-se que não se busca aqui contemplar os parâmetros para a criação
de um novo marco regulatório acerca dos recursos energéticos vegetais, mas sim
de estruturar os pontos condizentes que emergem a partir das perspectivas da con-
solidação da bioeconomia e dos novos caminhos do agronegócio brasileiro. Todo o
38 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

enfoque do presente estudo diz respeito ao ideário que envolve a indispensabilidade


da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável nos processos produtivos e na
conservação/preservação dos recursos genéticos vegetais.
O acesso e o uso dos recursos genéticos vegetais são amplamente valorizados
na sociedade atual e nos mais diversos campos do conhecimento, como a Biologia e
a Economia, de modo que o Direito deve contemplar a importância do tópico para que
sejam produzidas inovações jurídicas mais condizentes com a realidade experimentada
em âmbito global acerca do tema, por exemplo, em valorizar a soberania dos Estados
em solidificar os preceitos fundamentais nesse sentido de acordo com as diretrizes
e bases que orientam a construção dos marcos legais a partir da CDB e dos demais
tratados internacionais.

1. DA BIODIVERSIDADE, DA BIOECONOMIA E DA BIOTECNOLOGIA

Segundo Franco (2013), embora a percepção da variedade de formas da vida


seja tão antiga quando a própria percepção humana da consciência, o conceito de
biodiversidade é bastante recente, sendo idealizado por Walter Rosen, do National Re-
search Council - National Academy of Sciences (NRC/NAS) no ano de 1985, durante um
fórum sobre a diversidade biológica que versava sobre campos de conhecimento como
a biologia, a agronomia e a economia. Trata-se, todavia, de um amplo campo conceitual
que pode se referir à verdade de genes, de espécies ou de ecossistema, não havendo
divergências em relação a tais definições, visto que cada uma é correspondente a um
nível de organização biológica, sendo assim complementares. O autor aponta que são
doze os temas primordiais para os estudos envolvendo a abordagem da biodiversidade.
A saber, são eles, a Dependência humana da diversidade biológica; Diversidade em
risco; Florestas tropicais; Perspectiva global quanto aos riscos impostos à diversidade;
Valor da biodiversidade; como a Biodiversidade é monitorada e protegida? Ciência e
Tecnologia: como podem ajudar? Ecologia de restauração: podemos recuperar o tempo
perdido? Alternativas à destruição; Políticas para proteger a diversidade; Problemas
atuais e perspectivas futuras e as maneiras de ver a biodiversidade.
Ora, a biodiversidade é um amplo campo de estudo. Wilson (1997) conceitua a
biodiversidade como um conjunto que compreende a variedade e riqueza das espécies,
dos genes contidos em todas as espécies e da variedade de ecossistemas dentro de
uma área, bioma ou do planeta como um todo. Os estudos que versam sobre a bio-
diversidade, de tal forma, contemplam diversos campos do conhecimento e áreas de
atuação. Torna-se possível aprofundar a biodiversidade sob uma perspectiva do Direito,
DIREITO E BIOLOGIA 39

assim como da Economia, da Tecnologia e de qualquer área, sempre relacionando


cada campo com a diversidade biológica presente em nosso planeta.
De acordo com Milaré (2013), os estudos envolvendo a biodiversidade são
indispensáveis na atualidade, frente a fatos como o avanço do efeito estufa e do
aquecimento global, bem como a depleção de recursos, o cansaço e a exaustão do
Planeta Terra e a própria perda da biodiversidade, de modo que o eixo central de todos
os estudos consiste na sustentabilidade.
Em outro estudo, Milaré (2016, p. 33) reforça essa tese ressaltando que a
sustentabilidade se refere a todos os recursos naturais existentes na sociedade,
os quais representam a capacidade natural de suporte às ações empreendedoras
locais. A sustentabilidade é inerente aos recursos naturais, prendendo-se às cadeias
ecossistêmicas, de modo que a existência e perpetuação de uns recursos dependem
naturalmente de outros recursos. Sem a promoção da sustentabilidade há o compro-
metimento da própria biodiversidade, e, com a aceleração de sua perda, culmina em
riscos ao ecossistema terrestre como um todo: “a sustentabilidade vai mais além dos
destinos da espécie humana: ela alcança a perpetuação da vida e o valor intrínseco
da criação ou do mundo natural”.
Diante dessa elucidação, torna-se possível aprofundar os conceitos de bioeco-
nomia e de biotecnologia. Segundo Dias e Carvalho (2017), no campo da bioeconomia,
a natureza atua como limitante do processo econômico, sem negar a importância do
processo tecnológico, capaz de descobrir e controlar novas fontes de energias. A
tecnologia, nesse sentido, é apresentada como incapaz para encontrar um substituto
para um determinado recurso escasso, sendo necessária a manutenção de tal recurso
sem reduzir o estoque de recursos não renováveis. Os autores, entretanto, apontam
que, ao longo das últimas quatro décadas, a visão acerca do papel da bioeconomia se
modificou por completo, em função do surgimento de inovações ligadas diretamente
ao uso de produtos e processos biológicos em áreas de saúde humana, produtividade
agrícola/pecuária e biotecnologia, de modo que a bioeconomia e a biotecnologia são
compreendidas como campos correlatos de exploração:

A biotecnologia, em particular, tem sido responsável por melhorar


a eficiência ambiental da produção primária, do processamento
industrial, além de recuperar setores degradados, especialmente
da água. Graças aos avanços científicos, atualmente somos
capazes de entender como a vida é codificada (genoma, DNA)
e, principalmente, como copiar e editar esse código. Além de
produtos farmacêuticos, a maioria dos cultivos têm-se bene-
ficiado desse conhecimento, bem como cosméticos, rações
40 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

animais, combustíveis, armazenamento e processamento de


informações, couros, vacinas, vitaminas, corantes, plásticos e
uma variedade de outros produtos. Micro-organismos, enzimas
ou seus subprodutos substituem processos altamente depen-
dentes de produtos químicos danosos ao ambiente (DIAS;
CARVALHO, 2017, p. 413).

Santi (2012) aponta que o termo bioeconomia pode possuir diversos significa-
dos e interpretações, sempre compreendendo tal campo de estudo como um aliado
da sociedade, podendo ser encarado como uma nova prática social e econômica
que desafia a prática atual do mercado. O conceito da bioeconomia, outrossim, está
amplamente relacionado, a exemplo da biodiversidade, às premissas envolvendo a
sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável como um todo.
Para Horlings e Marsden (2011), o paradigma atual da bioeconomia pode ser
caracterizado a partir do conjunto de atividades econômicas que englobam o valor
latente em processos biológicos e nos biorrecursos renováveis, buscando produzir
melhores condições de saúde e possibilidades de desenvolvimento sustentável,
inclusive no impacto da bioeconomia emergente no campo do desenvolvimento rural.
Os autores ainda apontam que “A bioeconomia, então, parece buscar separar-se da
natureza e ter um maior controle sobre a mesma, através da ciência” (HORLINGS;
MARSDEN, 2011, p. 155).
Correlacionando os conceitos de bioeconomia e biotecnologia, Dias e Carvalho
(2017) apontam que a natureza genérica das técnicas biotecnológicas possibilita a cria-
ção de uma nova bioeconomia com perspectivas significativas para a comercialização de
novos produtos tecnológicos e uma maior participação dos países em desenvolvimento,
de modo que há inúmeros fatores que permitem uma maior participação nos países em
desenvolvimento diante da implementação dessa nova bioeconomia. Nesse sentido:

[...] a biotecnologia afetaria a maioria dos processos produtivos,


em particular aqueles relacionados à produção de químicos,
plásticos, enzimas, além das aplicações ambientais utilizadas na
recuperação dos diversos ecossistemas (biorremediação, bios-
sensores, métodos de diminuição de impactos ambientais) e na
produção de biocombustíveis (DIAS; CARVALHO, 2017, p. 420).

Essas seriam algumas das perspectivas fundamentais envolvendo a bioecono-


mia, a biotecnologia e a biodiversidade. O entendimento acerca da correlação entre
tais tópicos se faz indispensável para análises envolvendo os recursos naturais como
um todo, sobretudo em matéria de recursos genéticos.
DIREITO E BIOLOGIA 41

2. DOS RECURSOS GENÉTICOS E DOS RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS

De acordo com Luís (2008), os recursos genéticos são contemplados como um


ponto de encontro entre os campos da biodiversidade e da biotecnologia que devem ser
analisados sob dois pontos de visa. O primeiro diz respeito à transformação da biologia
em recurso, operação não natural, historicamente interessada e sociologicamente
enraizada, resultado de uma estrutura de campo que contempla o avanço científico
ao longo dos séculos. O segundo ponto de vista parte da indicação de disputas que
deram origem aos textos normativos, os quais organizam juridicamente a economia
política da apropriação e manipulação dos recursos genéticos.
Para Wilson (1997), as perspectivas envolvendo os ensaios e análises acerca
dos recursos genéticos contemplam diretamente os interesses dos governos por essas
negociações, sobretudo quando tratamos de países emergentes, os quais incluem
tópicos como a conservação ambiental, a soberania sobre recursos genéticos, dívi-
das relacionadas à ecologia e aos passivos ambientais, bem como a implantação de
instrumentos e tecnologias com o intuito de explorar tais recursos.
Pessanha e Wilkson (2005) apontam que no campo da biotecnologia/bioecono-
mia, os recursos genéticos vêm sendo analisados como uma perspectiva fundamental
para a manutenção da vida humana. Quando falamos nos recursos energéticos, no
mesmo sentido, estamos falando diretamente da energia. Giacometti (1993) define os
recursos genéticos como uma parte da biodiversidade que pode ser explorada visando
seu uso atual e o potencial de seu uso futuro. Recursos genéticos portam genes de
grande ressignificação para a melhoria genética das respectivas espécies, ainda diante
das possibilidades de ameaça de extinção.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica em 2012 apontou que o uso de
recursos genéticos, que estejamos falando de plantas, animais ou micro-organismos,
é contemplado a partir da perspectiva do processo de pesquisa de suas propriedades
e da utilização para o aumento do conhecimento científico e para o desenvolvimento
de produtos comerciais:
O rápido desenvolvimento da biotecnologia moderna nas últimas
décadas nos permitiu o uso de recursos genéticos de uma forma
tal que não apenas alterou profundamente o nosso entendimento
do mundo vivo, mas também levou ao desenvolvimento de novos
produtos e processos que contribuem para o bem-estar do ser
humano. Estes vão desde medicamentos vitais até métodos que
melhoraram a nossa segurança alimentar. Também melhoraram
os métodos de conservação que contribuem para preservar a
biodiversidade global (ABS, 2012, p. 3).
42 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Pires (1984) caracteriza os recursos genéticos como a fração da biodiversidade


que conta com potencial de uso atual ou futuro, servindo como base para a subsis-
tência dos indivíduos humanos. Para a autora, os recursos genéticos podem produzir
conhecimentos e perspectivas para o enfrentamento de questões supervenientes para
a manutenção da espécie humana, como a guerra à fome, à pobreza e a conservação/
preservação do meio ambiente, ou seja, dos problemas relacionados à economia, à
sociedade e à ecologia diante dos preceitos envolvendo o aceleramento da globalização
e do desenvolvimento tecnológico sob a perspectiva ambiental.
De acordo com a autora supramencionada, o Brasil é um dos países em desen-
volvimento que conta com uma vastidão/riqueza de recursos genéticos, estimando que
o país é detentor de 20% da biodiversidade global. Os santuários da biodiversidade
brasileira contam com 7% de flora primária, ou seja, que não sofreram qualquer ação
ou interação do homem, como na Amazônia, no pantanal do Mato Grosso, cerrado e
as pampas do sul do país em seus biomas.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica (ABS, 2012) aponta que o desen-
volvimento célere da biotecnologia moderna nas últimas décadas possibilitou o uso
dos recursos genéticos de um modo que não tão somente alterou o entendimento da
humanidade acerca do mundo vivo e da biodiversidade como um todo, mas também
levou ao desenvolvimento de novos produtos e processos que contribuem para o
bem-estar humano, desde medicamentos vitais até procedimentos que otimizaram a
segurança alimentar, além de melhorar os métodos de conservação que contribuem
para preservar a biodiversidade global. Dentro dessa perspectiva, as possibilidades
de exploração dos recursos genéticos podem ser classificadas entre comerciais e não
comerciais: a) no âmbito do uso comercial, as empresas podem utilizar os recursos
genéticos para desenvolver enzimas especializadas, genes melhorados ou pequenas
moléculas. Os recursos podem ser usados para proteger cultivares, desenvolver medi-
camentos, produzir produtos químicos especializados ou de processamento industrial,
sendo possível ainda inserir genes em cultivares para que possam ser obtidas caracte-
rísticas desejáveis para melhorar a produtividade ou resistência a pragas e patógenos;
e b) no âmbito do uso não comercial, os recursos genéticos podem ser utilizados para
aumentar o conhecimento ou a compreensão do mundo natural, indo desde a pesquisa
taxonômica até a análise dos ecossistemas, trabalhos que costumam ser realizados
por universidades e institutos públicos de pesquisa.
Destaca-se que a diferença entre o uso comercial e o não comercial, bem como
os atores envolvidos no processo, nem sempre é clara, visto que tanto as empresas
podem cooperar com as entidades de pesquisa como as entidades também podem
DIREITO E BIOLOGIA 43

cooperar com as empresas para o uso comercial dos recursos genéticos, de modo
que uma pesquisa sem finalidades econômicas pode levar a uma descoberta com
aplicações comerciais:

Os recursos genéticos são os blocos de construção da vida na


Terra. Através do aumento de nossa compreensão sobre eles e
sua conservação, podemos melhorar a preservação de espécies
ameaçadas e as comunidades que dependem delas. O projeto
de Banco de Sementes do Milênio (Millennium Seed Bank)
do jardim botânico de Kew (Inglaterra) trabalhou em parceria
com grupos de agricultores, viveiros comunitários e agências
governamentais em mais de 50 países para coletar, conservar e
utilizar as sementes de uma ampla variedade de espécies úteis
e ameaçadas. A repartição efetiva de benefícios significa que as
comunidades locais que dependem desses recursos naturais
para obter alimentos, medicamentos, combustível e materiais
de construção, podem continuar a fazê-lo (ABS, 2012, p. 3).

Luis (2008) aponta que a utilização dos recursos genéticos é um processo


significativamente complexo, visto que envolve uma grande quantidade de atores e
processos distintos. Também é complexa a diferenciação entre os usuários e provedores
de recursos genéticos, sobretudo devido ao fato de que um usuário pode se tornar um
provedor para outro usuário, assim como um segundo usuário pode voltar ao provedor
original para renegociar os termos contratuais de acesso e repartição dos benefícios
dos recursos genéticos. A ABS (2012) ainda classifica os provedores e usuários de
recursos genéticos na seguinte disposição: a) os provedores dos recursos genéticos, ou
seja, aqueles que provêm tais recursos, devem conhecer os usos destes para permitir
a compreensão do seu valor, oferecendo incentivo para conservação e uso sustentável
dos recursos genéticos, garantindo que qualquer benefício potencial de sua utilização
seja repartido igualitariamente; e b) os usuários, ou seja, aqueles que fazem uso dos
recursos energéticos, encontram-se nas instituições de pesquisa e nas indústrias,
dependendo do desenvolvimento do conhecimento sobre os recursos genéticos para
impulsionar seu trabalho. Os usuários finais podem ser classificados como qualquer
pessoa que compre ou se beneficie dos produtos comercializados ou que recebam
benefícios indiretos a partir dos valores que os recursos genéticos possam acrescer
no processo produtivo, como, por exemplo, no âmbito do aumento dos rendimentos
no agronegócio.
Diante dessa elucidação, torna-se possível aprofundar conhecimentos acerca
dos recursos genéticos vegetais. Guerra et al. (1998) apontam que no fim do século
44 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

XX o Brasil já era considerado o país detentor da maior diversidade genética vegetal de


todo o globo, contando com mais de 55.000 espécies catalogadas de um total estimado
entre 350.000 e 550.000 espécies. Dessa estimativa, um terço das espécies encontra-se
nos trópicos, de modo que o país é detentor de 75% de todas as espécies florestais nas
suas duas principais formações: A Floresta Tropical Atlântica e a Floresta Amazônica.
Para os autores supramencionados, as novas demandas de pesquisa no setor
agrícola estão associadas à necessidade de trabalhar com os recursos genéticos
vegetais sob uma perspectiva associada à condição brasileira de detentora da maior
biodiversidade do planeta, uma vez que parte da genética vegetal vem sendo devas-
tada em um ritmo bastante célere, sendo necessário o emprego de esforços visando à
conservação, utilização convencional e não tradicional, caracterização e melhoramento
deste geoplasma, empregando as tecnologias (biotecnologia) pertinentes.
Barbieri et al. (2010) apontam que há uma série de fatores a serem considerados
em se tratando dos recursos genéticos vegetais. Os autores lecionam que a funcionali-
dade da vegetação leva em conta ainda a diversidade de solos, procedentes de grande
variabilidade geológica, da topografia, da distribuição da pluviosidade, da temperatura
e da disponibilidade da água, de modo que em diferentes áreas há predomínio de
espécies diferenciadas, contemplando ainda a ação dos herbívoros de acordo com
a intensidade do pastejo que influencia em toda a composição florística. Costa et al.
(2016) ressaltam a importância de se considerar as peculiaridades que caracterizam
os inúmeros mecanismos que sustentam o equilíbrio em cada ecossistema para que
a intervenção humana na natureza não ocorra de forma homogeneizadora, de modo
que todos esses fatores devem ser amplamente considerados tanto no uso quanto na
realização de estudos que envolvem os recursos genéticos vegetais.

3. DO DIREITO E DOS RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS: RELAÇÕES


JURÍDICAS E SUA REGULAÇÃO PARA A CONSOLIDAÇÃO DA BIOECONOMIA
E DOS NOVOS CAMINHOS DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Diante da ampla explanação realizada no presente estudo, torna-se possível ana-


lisar as questões envolvendo as relações jurídicas e regulação dos recursos genéticos
vegetais. De acordo com Belaidi (2014) o Direito tem caráter/função redistributiva que
requer uma demonstração ampla, aprofundada e embasada em critérios que articulam
uma concepção do direito que cada locutor tem do estudo rigoroso dos institutos jurí-
dicos (dogmáticos) que contemplam o direito positivado de um ordenamento jurídico
e das categorias das quais eles pertencem.
DIREITO E BIOLOGIA 45

A partir de tal elucidação, torna-se possível apresentar os conhecimentos


enunciados por Ferro et al. (2006), no qual os autores apresentam a Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB) como um fato fundamental para que possa ser contem-
plada a regulação dos recursos genéticos vegetais. Tal convenção, celebrada durante
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992,
entrou em vigor em dezembro de 1993 e conta com 188 países signatários, os quais
buscam adequar seus ordenamentos jurídicos a partir das diretrizes ali estabelecidas:

Seus principais objetivos são a conservação da diversidade


biológica, a utilização sustentável de seus componentes e
a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da
utilização dos recursos genéticos. Este terceiro objetivo é de-
corrente da demanda dos países em desenvolvimento, ricos em
biodiversidade, porém sem as competências adequadas para
obter os benefícios que esta pode proporcionar, muitas vezes
sendo expropriados desta pelos interesses dos países que
detêm a necessária capacidade técnico-científica, assim como
o necessário capital (FERRO et al., 2006, p. 24).

De acordo com Gurgel (2004), a exploração dos recursos genéticos vegetais vem
ocorrendo de modo congruente à margem da lei, sobretudo por meio da biopirataria,
não oferecendo os benefícios prometidos às populações locais. O artigo 15 da CDB
determina os direitos de propriedade sobre os recursos genéticos, promovendo que a
biodiversidade deixe de ser um patrimônio comum à humanidade e passe à sujeição
da soberania nacional, de modo que a repartição dos benefícios provenientes da co-
mercialização e uso dos recursos genéticos contempla o incentivo para os esforços de
conservação. A Convenção ainda sugere que o conhecimento, a inovação e práticas
provenientes de comunidades locais e indígenas serão úteis para o uso e conservação
da biodiversidade, de modo a ter direitos sobre ela, de acordo com o ordenamento
jurídico do país. A CDB, assim, prevê a manutenção das condições gerais mais funda-
mentais para a conservação e o uso dos recursos energéticos como um todo.
Ferro et al. (2006) lecionam que diversos fóruns internacionais têm versado
sobre o acesso aos recursos genéticos e a repartição dos benefícios advindos de seu
uso como OMC, o Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos
Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore (IGC), da OMPI; a UPOV, a FAO,
entre outros. A OMC, por exemplo, no TRIPS, tem como objetivos reduzir as distorções
do comércio internacional e fomentar uma proteção adequada aos direitos de recur-
sos, de modo que os países signatários podem excluir a patentabilidade de plantas
e animais (exceto micro-organismos) e os processos biológicos para a produção de
46 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

plantas e animais. O TRIPS, em relação com a CDB, não exige declaração de origem
dos recursos biológicos para solicitação das patentes, reconhecendo primordialmente
os direitos acerca dos recursos em detrimento dos direitos soberanos dos Estados
em matéria de recursos biológicos, também não prevendo a repartição equitativa de
benefícios entre o titular da patente e o provedor do recurso genético vegetal.
Ora, há pontos de semelhança e discordância no âmbito dos tratados internacio-
nais e da CDB no tocante à exploração, acesso e uso dos recursos genéticos vegetais.
Outro ponto consoante apresentado pelos autores supramencionados nesse sentido
diz respeito ao acordo TRIPS sendo o tratado mais recente e detalhado sobre direitos
de propriedade intelectual, o qual iria prevalecer sobre a CDB, de acordo com o artigo
30 da Convenção de Viena sobre a Lei de Tratados.
O TRIPS reconhece os direitos soberanos dos Estados sobre seus próprios
recursos genéticos, prevendo um sistema multilateral de acesso facilitado e repartição
de benefícios, viabilizado por intermédio de um Acordo de Transferência Material (ATM).
O TRIPS, em relação com a CDB, contempla que o:

Acesso engloba a utilização e conservação na pesquisa, me-


lhoramento e capacitação; a repartição dos benefícios deverá
se dar por meio do pagamento de benefícios monetários e
não monetários, intercâmbio de informação, transferência de
tecnologia e capacitação (FERRO et al., 2006, p. 26).

Ainda segundo os autores, para que os países possam explorar adequada-


mente os recursos genéticos vegetais devem desenvolver mecanismos de proteção
dos resultados provenientes das atividades de uso de tais recursos, assegurando os
benefícios e incentivos para os investidores:

A participação de todos os interessados diretos é essencial,


para a elaboração, promulgação e aplicação de políticas, leis,
regras e regulamentação de acesso e repartição de benefícios
que sejam efetivamente internalizadas nos países detentores
de biodiversidade. Os possíveis impactos nas atividades de
pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico também de-
vem ser atentamente considerados na elaboração de medidas
nacionais de acesso e repartição de benefícios. Finalmente, é
necessário saber explorar e elaborar enfoques criativos para
obter o consentimento e a repartição de benefícios com as
comunidades locais e indígenas, detentoras do conhecimento
tradicional (FERRO et al., 2006, p. 29).
DIREITO E BIOLOGIA 47

Ora, a regulação dos recursos energéticos vegetais em um sentido amplo é


indispensável. De acordo com a CNI (2014), também é indispensável modernizar o
marco regulatório sobre a bioeconomia, sobretudo aprimorando o marco regulatório
de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios.
Azevedo (2005) aponta que tanto o princípio da soberania dos Estados sobre
seus recursos energéticos quanto a necessidade de repartir os benefícios entre
provedores e usuários de recursos genéticos são tendências da regulamentação dos
recursos genéticos em âmbito global e seguindo as diretrizes da CDB. A autora aponta
ainda os preceitos abaixo, sob os quais grifamos:

É preciso perceber, entretanto, que o desafio de atuar em cam-


pos desconhecidos está presente e é ainda maior em outros
setores da sociedade, como as comunidades locais e os povos
indígenas. É necessário aprimorar a legislação vigente no
Brasil sobre acesso e repartição de benefícios? Sem dúvida, é
unânime a resposta afirmativa a esta questão. Porém para que
esse aprimoramento atenda ao interesse público - conservação
da biodiversidade, proteção dos conhecimentos tradicionais
associados, promoção da pesquisa e do uso sustentável da
biodiversidade - é primordial que se exerça a cidadania por
meio da representação de determinados setores da sociedade,
buscando construir pontes de entendimento entre todas as par-
tes envolvidas e não defendendo corporativamente interesses
específicos (AZEVEDO, 2005, p. 8).

Ora, a regulação dos recursos energéticos vegetais deve sempre buscar atender
a fins sociais. Os novos caminhos do agronegócio brasileiro estão diretamente rela-
cionados ao desenvolvimento sustentável da sociedade, de modo que a exploração
de tais recursos não deve ser contemplada como um elemento que visa tão somente
o atendimento de interesses particulares. A definição de regras que orientem a repar-
tição de benefícios, mesmo dentro de um contexto de incertezas, é essencial para
a construção e manutenção de redes de desenvolvimento, de comportamentos, de
colaboração e compartilhamento de ativos, de captação de recursos financeiros de
diferentes fontes e na diminuição de custos de transação.
Nesse sentido:

O imenso potencial econômico representado pelos recursos


genéticos brasileiros é indiscutível. No entanto, as maneiras para
transformá-lo em ganhos econômicos de maneira sustentável
e justa têm-se mostrado muito menos claras, tanto neste país
48 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

como no restante do mundo. Mesmo sendo importante para uma


gama tão grande de atividades - como um mercado farmacêu-
tico mundial enorme, com mais da metade de seus produtos
derivados da natureza -, a realidade é que a bioprospecção
ainda não resulta em grandes fluxos de lucros para os países
subdesenvolvidos em que a maior parte da biodiversidade se
encontra. Essa situação é em boa parte resultante da rápida
modificação no olhar da humanidade sobre os recursos natu-
rais nas últimas décadas, conjugada às dificuldades políticas
geradas pela divergência de interesses entre estados ricos em
recursos genéticos e estados ricos em tecnologia (SACCARO
JR., 2011, p. 241).

De acordo com o autor supramencionado, muitos dos aspectos presentes na


CDB são vistos como ideais a serem alcançados de modo que seus conceitos ainda
não estão inteiramente incorporados na economia mundial. A apropriação dos recursos
genéticos ocorre quase da mesma forma no século XXI do que ocorria em 1992, visto
que inexiste legislação internacional eficaz no sentido de regular os recursos genéticos
e combater a biopirataria. O Brasil, entretanto, enquanto economia emergente, vem
enfrentando as dificuldades políticas e sociais internas, tendo cada vez maior relevância
dentro de um cenário cada vez mais externo, sendo indispensável legitimar as deman-
das brasileiras e nortear as decisões envolvendo outros países. Para tanto, segundo o
autor, se faz indispensável a criação de um novo marco regulatório.
Esse é justamente um dos pontos para a consolidação da bioeconomia, con-
templando a natureza como um limitante agente do processo econômico, enfatizando
a importância de emprego da biotecnologia para que seja possível descobrir e controlar
novas fontes de energia. A sustentabilidade, na atualidade, versa sobre todas as ques-
tões que envolvem a biodiversidade, de modo que a regulação dos recursos genéticos
vegetais se faz de sumaríssima importância para a consolidação da bioeconomia e
para que o uso e o acesso de tais recursos estejam aliados aos novos caminhos do
agronegócio brasileiro.
Lehfeld et al. (2015), ao comentar o Código Florestal brasileiro, contemplam
que o legislador aponta a indispensabilidade de legislação específica de acesso a
recursos genéticos, diante da coleta de produtos. A Lei nº 13.123 de 2015 se ocupou
de questões envolvendo o acesso ao patrimônio genético do país, bem como do uso
comum do povo encontrado em condições in situ, inclusive as espécies domesticadas
e populações espontâneas, ou mantido em condições ex situ, desde que encontrado
em condições in situ no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial
DIREITO E BIOLOGIA 49

e na zona econômica exclusiva, todavia, ainda se faz necessário o desenvolvimento


de um marco teórico mais conciso para que o uso e o acesso dos recursos genéticos
possam consolidar a bioeconomia e os novos caminhos do agronegócio brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil conta com um grande patrimônio de recursos genéticos a serem


explorados, sobretudo enquanto detentor da maior diversidade vegetal de todo o
globo, com espécies de recursos que até o presente momento não foram explorados
devidamente por meio da interação humana. Esses recursos genéticos vegetais são
de extrema importância na sociedade moderna, visto que podem ser utilizados para
fins comerciais (a partir do esforço das indústrias para, por exemplo, desenvolver e
aprimorar medicamentos) e para fins não comerciais (a partir do esforço da comunidade
acadêmica e científica, buscando a produção de novos conhecimentos).
Nesse sentido, há inegável importância quanto aos tópicos envolvendo o
acesso e uso dos recursos genéticos, diante da potencialidade de descoberta e de-
senvolvimento de benefícios em prol da humanidade, sobretudo quando tratamos de
tal exploração em países que contam com riqueza em biodiversidade, como é o caso
brasileiro, ainda que a biodiversidade seja consumida e colocada em risco em um ritmo
cada vez mais célere, o que reforça ainda mais a importância da sustentabilidade e do
desenvolvimento sustentável nesse sentido, promovendo o ideal de que tais recursos
sejam conservados e preservados, ou seja, implicando na utilização sustentável dos
recursos genéticos vegetais.
O presente estudo buscou aprofundar a regulação dos recursos genéticos
vegetais dando enfoque para a consolidação da bioeconomia e os novos caminhos do
agronegócio brasileiro. Conforme apontado, o Brasil vem se consolidando enquanto
uma economia emergente que enfrenta as dificuldades políticas e sociais internas
buscando sua consolidação no cenário externo, almejando a legitimação de suas
demandas envolvendo os recursos genéticos como um todo.
Todavia, para que o cenário ideal frente aos recursos genéticos vegetais se
consolide diante dessa perspectiva, culminando na reunião de condições para a
consolidação da bioeconomia e traçar parâmetros aliados aos novos caminhos do
agronegócio, se faz necessária, com base no entendimento dos autores que embasaram
o presente estudo e dos autores deste, a criação de um novo marco regulatório que
contemple tais elementos. De fato, desde o ano de 1992 pouco mudou acerca do uso
e acesso dos recursos genéticos, uma vez que inexiste uma legislação internacional
50 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

que verse sobre a exploração dos recursos genéticos (vegetais ou não) de modo con-
gruente. Especificamente no Brasil, ainda que avanços tenham sido promovidos na
legislação que aborda o patrimônio genético brasileiro, se faz necessária a construção
de um novo marco teórico que abranja as prerrogativas da bioeconomia consolidada
e dos novos caminhos do agronegócio nacional.
Contemplando a bioeconomia na medida de que a natureza deve ser agente
limitante do processo econômico e da importância da biotecnologia nesse sentido, se
faz necessário um empenho legislativo visando sua consolidação, para possibilitar que
sejam criadas e desenvolvidas novas fontes de energia e para que sejam preservados,
controlados e conservados os recursos genéticos vegetais.
A sustentabilidade, no mesmo sentido, está presente em todo o enfoque da
biodiversidade, contemplando inclusive a bioeconomia e o agronegócio brasileiro. A
exploração de tais recursos genéticos vegetais, do mesmo modo, deve ser contemplada
a partir do ideário que envolve a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável,
visando sempre à proteção de tais recursos frente aos anseios da humanidade perante
a globalização.

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A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS
ÁGUAS SUBTERRÂNEAS TRANSFRONTEIRIÇAS:
DESAFIOS NA EFETIVIDADE DO ACORDO
DO SISTEMA AQUÍFERO GUARANI1

GOVERNANCE IN THE LEGAL PROTECTION OF


TRANSBOUNDARY UNDERGROUND WATERS:
THE CHALLENGES IN EFFECTIVENESS ON THE
AQUIFER GUARANI SYSTEM AGREEMENT

DEISE MARCELINO DA SILVA2

MARIA LUIZA MACHADO GRANZIERA3

SUMÁRIO: Introdução - 1. A Convenção de Nova Iorque (1997) e os princípios


do direito internacional das águas subterrâneas transfronteiriças - 2. O direito das
águas subterrâneas transfronteiriças: Resolução da ONU 63/124 (2008) - 3. Breve
análise comparativa dos documentos - 4. Acordo do Sistema Aquífero Guarani
(2010): próximos desafios - 5. A comissão do SAG - Conclusões - Referências.

1
Data de recebimento do artigo: 27.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 08.03.2019 e 13.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 25.03.2019.
2
Doutora em Direito Ambiental Internacional pela UNISANTOS. Mestre em Direitos da Personalidade pelo
Centro Universitário de Maringá/PR - UNICESUMAR. Especialização em Docência no Ensino Superior
pela UNICESUMAR. Pós-Graduada em Direito Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania - IDCC - Londrina/PR. Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB de
Maringá. Professora na Universidade Estadual de Maringá - UEM. E-mail: deise.marcelino@hotmail.com.
3
Professora associada do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Ambiental da Universidade
Católica de Santos - UNISANTOS. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em
Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Doutora em Direito (Departamento de Direito
Econômico e Financeiro) pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Administrativo e
Ambiental com ênfase em Direito de Águas. E-mail: marialuiza.granziera@gmail.com.
54 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

RESUMO: Sob a ótica de dois principais tratados internacionais de águas


subterrâneas transfronteiriças, este artigo descreve o estado da arte do Acordo do
Sistema Aquífero Guarani (SAG), assinado em 2010 pelo Brasil, Argentina, Paraguai
e Uruguai. Após a ratificação brasileira e paraguaia, em 2017 e 2018, respectivamente,
o estudo analisa os próximos desafios, nos planos nacionais e internacional, para a
implementação do acordo e proteção das águas subterrâneas do SAG. Objetiva-se, por
meio do método dedutivo, utilizando pesquisa bibliográfica e documental, demonstrar
a relevância de lançar luz sobre o tema, sobretudo pelo potencial hídrico do SAG para
o consumo humano.
PALAVRAS-CHAVE: direito dos cursos de água internacionais; Acordo do Siste-
ma Aquífero Guarani; desafios de implementação; efetividade das normas; governança.
ABSTRACT: From the perspective of two main international transboundary
groundwater treaties, this article describes the current state of the Guarani Aquifer
System Agreement (SAG), signed in 2010 by Brazil, Argentina, Paraguay and Uruguay.
After the Brazilian and Paraguayan ratification, in 2017 and 2018 respectively, the study
analyzes the next challenges at national and international levels for the implementation
of the agreement and protection of groundwater of SAG. Its intent through the deductive
method and by the use of bibliographical and documentary research is to demonstrate
the relevance of shedding light on the theme, principally by the water potential of the
SAG for human consumption.
KEYWORDS: international watercourse law; Guarani Aquifer System Agreement;
implementation challenges; effectiveness; governance.

INTRODUÇÃO

Os atos e tratados internacionais desempenharam, ao longo da História, impor-


tante papel no estabelecimento de regras e obrigações de cooperação entre os Estados
que compartilham recursos hídricos. Tendo em vista a importância da água na vida dos
povos, estabelecer regras para usos compartilhados sempre foi uma preocupação, na
busca de equilíbrio dos poderes.
Nesse contexto, tem destaque o direito internacional dos cursos de água, com
duas vertentes: o direito relativo à navegação e o direito relativo aos demais usos. O
último consiste no tema de interesse deste trabalho, cujo objetivo, por meio do método
dedutivo, e do uso da pesquisa bibliográfica e documental, é demonstrar a relevância
de se lançar luz sobre o tema, sobretudo pelo potencial hídrico do Sistema Aquífero
Guarani (SAG) para o consumo humano.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 55

A partir do contexto ambiental-internacional, pretende-se analisar dois impor-


tantes documentos internacionais sobre águas transfronteiriças e subterrâneas para
descrever o estado da arte do Acordo do Sistema Aquífero Guarani (SAG), assinado
em 2010. Sob a ótica da convenção de Nova Iorque (1997) e da Resolução da ONU
63/124 (2008), este estudo faz uma análise jurídica do tratado de 2010 e vislumbra
os próximos desafios, nos planos nacional e internacional, para a proteção das águas
subterrâneas do SAG.
Ao envolver distintos Estados (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), entende-se
que a governança é a forma considerada eficaz para a proteção dos recursos hídri-
cos transfronteiriços do SAG. A atuação em governança pressupõe compromisso de
articulação com a sociedade, capacidade de consenso entre os envolvidos, mediação
dos diferentes interesses e habilidade de resposta.4
Medidas de governança, no âmbito interno, regional e internacional, poderão
avançar na implementação da comissão do SAG e dos princípios do direito interna-
cional das águas subterrâneas transfronteiriças, em especial o princípio da utilização
equitativa e razoável das águas e da cooperação internacional.

1. A CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE (1997) E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO


INTERNACIONAL DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS TRANSFRONTEIRIÇAS

Em 1994, a Comissão de Direito Internacional (CDI) esboçou um texto sobre


o direito relativo a usos distintos da navegação dos cursos das águas internacionais,
submetendo-o à Assembleia Geral. Recomendou que o material fosse utilizado para a
elaboração de uma Convenção. Em maio de 1997, a Organização das Nações Unidas
(ONU), por seu órgão legislativo (Assembleia Geral), adotou (Resolução 51/229) a
Convenção sobre o Direito Relativo à Utilização dos Cursos das Águas Internacionais
para Fins Diversos da Navegação.
Conforme o próprio título desse documento sugere, as normas nele inseridas
propõem-se a disciplinar apenas os cursos de água internacionais que não pertençam
ao espaço da navegação,5 enfatizando a importância dos cursos de águas internacionais
e de sua utilização para fins não navegáveis.
4
GONÇALVES, Alcindo; COSTA, José Augusto Fontoura. Governança global e regimes internacionais.
São Paulo: Almedina, 2011. p. 48.
5
O documento apresenta o preambulo e 37 artigos divididos em 7 partes: Introdução (Parte I, artigos 1º a
4º); Princípios Básicos (Parte II, artigos 5º a 10); Medidas projetadas (Parte III, artigos 11 a 19); Proteção,
preservação e gestão (Parte IV, artigos 20 a 26); Condições danosas e situações de emergência (Parte
V, artigos 27 a 28); Disposições diversas (Parte VI, artigos 29 a 33); e Cláusulas finais (Parte VII, artigos
34 a 37). As regras de arbitragem para o caso de litígio entre as Partes estão previstas no anexo.
56 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A Convenção fundamenta-se: (1) nas disposições normativas aprovadas na Car-


ta das Nações Unidas; (2) na codificação e no desenvolvimento das normas de direito
internacional sobre a matéria, como auxiliar da aplicação dos objetivos e princípios da
Carta das Nações Unidas; (3) na cooperação internacional e na boa vizinhança e (4) nas
recomendações e princípios adotados na Declaração de Estocolmo, na Declaração
do Rio-92 e na Agenda 21.
Além disso, o texto reconhece a contribuição que organizações internacionais,
governamentais ou não governamentais, prestam à codificação e ao desenvolvimento
progressivo do direito internacional nesse domínio, explicitando a importância da gover-
nança em temas de interesse de todos e da participação de novos atores no cenário
do Direito Ambiental Internacional.
O texto traz o conceito de curso de água internacional como sendo as águas
superficiais e subterrâneas que constituem, em razão da sua relação física, um conjunto
unitário e que normalmente fluem para um término comum, com parcelas situadas em
Estados diferentes (art. 2º). E de água subterrânea como aquela que mantém uma
relação física com as águas superficiais, considerando o sistema hídrico que flui para
um término comum (art. 2º). De acordo com esse conceito, estariam excluídos da
Convenção os aquíferos sem conexão com as águas superficiais.
Nesse quadro, as águas do SAG não conectadas com as águas superficiais
não são atendidas por este tratado. Aproximadamente 90% do Sistema Guarani é
formado por águas confinadas, margeadas por faixas aflorantes que constituem suas
áreas de recarga. As rochas que formam o aquífero Guarani são permeáveis, permitem
a passagem para camadas de terreno mais profundas, com um sistema de recarga
muito lento.6 Assim, teoricamente, a presente Convenção não se aplica à gestão das
águas do SAG em sua maior parte.
Os princípios norteadores do tratamento jurídico dos cursos de águas internacio-
nais para fins que não sejam os da navegação merecem destaque porque estabelecem
as linhas mestras do uso e da gestão compartilhada.
A utilização equitativa e razoável das águas (art. 5º) refere-se não apenas ao
direito de uso como ao dever de cooperação na proteção e desenvolvimento, o que
vai além da simples divisão de vazões entre Estados ribeirinhos, pois indica uma pre-
ocupação muito pertinente e real com a qualidade da água. Segundo a Convenção,
ao determinar o que é uma utilização razoável e equitativa, todos os fatores relevantes
devem ser apreciados em conjunto e, com base nessa apreciação, dever-se-á chegar
a uma conclusão.
6
BOSCARDIN BORGHETTI, Nádia Rita; BORGHETTI, José Roberto; ROSA FILHO, Ernani Francisco
da. Aquífero Guarani: a verdadeira integração dos países do Mercosul. Curitiba, 2011. p. 146.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 57

A participação equitativa e razoável dos Estados indica que os Estados não


podem se atribuir parte excessiva do recurso partilhado. Nesse sentido, os Estados
têm o direito de realizar usos diversos (consuntivos e não consuntivos) das águas de
curso internacional no espaço em que exercem sua soberania.
Nota-se uma complexidade na definição de uma equação do equitativo-razoável,
o que consiste em um desafio para as Partes, na implementação do tratado. Segundo
Machado, essa equação deve estar assentada no equilíbrio dos interesses entre os
Estados corribeirinhos, e se funda na harmonização de interesses e de não causar
dano.7 Esse tema deve ser negociado pelas Partes, no detalhamento do Acordo.
A participação equitativa e razoável dos Estados e a utilização ótima e susten-
tável são princípios que se complementam e devem levar em conta fatores ambientais
como os geográficos, climáticos e outros de caráter natural; humanos, como as neces-
sidades sociais e econômicas das populações. Além disso, devem ser considerados
os usos existentes e potenciais do corpo hídricos, os efeitos do uso da água por um
Estado sobre os demais, a proteção da água e os custos das medidas realizadas para
esse fim (art. 6º, 1).
Nessa linha, o princípio acima mencionado se conecta com a obrigação de
não causar danos significativos aos cursos de águas internacionais (art. 7º). Importa
lembrar que a soberania diante de um recurso transfronteiriço é limitada com base no
princípio de que os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos,
de acordo com a sua política ambiental, desde que as atividades levadas a efeito,
dentro da jurisdição ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros
Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional.8 9
A obrigação de não causar dano é um dos pressupostos do Direito Internacional
do Meio Ambiente, derivada de um longo uso costumeiro enraizado no princípio da
boa vizinhança e da lei do incômodo10 (art. 7º, § 1º). Vale notar que a participação dos
Estados com base nesse princípio deve observar a obrigação de não causar dano
aos demais corribeirinhos nem ao meio ambiente, respeitando o dever de diligência
na utilização dos recursos hídricos compartilhados.
7
MACHADO. Paulo Affonso Leme. Direito dos cursos de água internacionais: elaboração da Convenção
sobre o direito relativo à utilização dos cursos de águas internacionais para fins diversos dos de
navegação - Nações Unidas/1997. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 89.
8
O primeiro texto jurídico a tratar da obrigação de não causar dano transfronteiriço teve origem no Caso
Trail Smelter, cuja sentença arbitral foi prolatada em 1941, sendo o primeiro caso envolvendo o Direito
Internacional do Meio Ambiente.
9
Essa diretriz está em conformidade com o estabelecido em Conferências e Declarações Internacionais,
como a Estocolmo/1972 (princípio 21), Rio/1992 (princípio 2), Convenção sobre Diversidade Biológica
(artigo 3º) e Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (preâmbulo).
10
BENJAMÍN, Antonio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; TINKER Catherine. The water giant awakes:
an overview of water law in Brazil. Texas Law Review, v. 83:2185, 2005. p. 2225.
58 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

O dano significativo pode ser entendido como aquele que tenha peso social
(presente e futuras gerações), econômico e ambiental. Não é irrisório, mas também
não é, necessariamente, grave.11 A obrigação de não causar dano não se aplica a
qualquer interferência diante do uso das águas compartilhadas.12 Há de se considerar
que o dano, para que se caracterize como tal, deve exceder a certo nível de gravidade
que requeira uma ação legal e ainda deve ser resultado de uma atividade humana.13
No caso de águas subterrâneas, o dano causado enseja maiores proporções,
pois a poluição pode ser irreversível (limitação de tecnologia) e incalculável (recurso
oculto). Ademais, por vezes, é difícil determinar a fonte da poluição e, uma vez que a
água subterrânea sofre o processo de contaminação, sua purificação é lenta. Dessa
forma, no contexto de aquíferos, as medidas de enfrentamento do dano devem estar
relacionadas não só com o uso da água, mas também com o manejo do ambiente
circundante. No caso de ocorrer um dano, o Estado responsável deve adotar todas as
medidas necessárias, com vistas a eliminar ou minorar tais danos e, se adequado, a
discutir a questão da indenização (art. 7º, § 2º).
O princípio da obrigação geral de cooperar (art. 8º) é o elemento catalisador dos
acordos internacionais sobre recursos compartilhados, sendo essencial nos tratados
sobre águas transfronteiriças, e tem grande incidência nas Convenções de Direito Am-
biental Internacional. A importância da obrigação de cooperar está prevista, entre outros
documentos internacionais, no Princípio 24 da Declaração de Estocolmo (1972), no
capítulo 18 da Conferência de Mar del Plata e na Agenda 21 (preâmbulo 1.3 e capítulo 2).
O texto considera o dever de cooperar e enfatiza que essa cooperação ocorra
em pé de igualdade. Contudo, devem-se levar em conta as diferenças de ordem eco-
nômica, social, política ou de outra índole, pois a assimetria entre os Estados influencia
a maneira como ocorre a cooperação.14
O princípio de cooperar sugere que os Estados que compartilham um recurso
natural, como as águas subterrâneas, devem instituir mecanismos e comissões de
forma a facilitar a cooperação (art. 8, 2).
O dever de cooperação dá ensejo ao princípio do intercâmbio regular de dados e
de informação (art. 9º). Os Estados ribeirinhos devem, frequentemente, trocar dados e
informações relacionados com a qualidade da água, bem como com previsões conexas.

11
MACHADO, op. cit., p. 147.
12
PERREZ, Franz Xaver apud VILLAR, Pilar Carolina. Aquíferos transfronteiriços: governança das águas
e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015. p. 120.
13
UNIVERSITY OF OSLO. Faculty of Law. The prohibition of transboundary environmental harm:
an analysis of the contribution of the International Court of Justice to the Development of the No
harm Rule. p. 4-5. Disponível em: https://www.duo.uio.no/bitstream/handle/10852/41416/213.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 16 fev. 2019.
14
LOUKA; Elli. Water Law & police: governance without frontiers. Oxford University Press, 2008. p. 49.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 59

A troca de informações sobre as condições de um curso de água internacional


é necessária para o fortalecimento da cooperação entre os Estados ribeirinhos. Esses
devem consultar-se antes que um Estado ribeirinho aplique ou permita a aplicação de
medidas projetadas que possam ter um efeito adverso significativo sobre demais (arts.
11 e 12). Tal iniciativa exprime a relevância do princípio da boa-fé entre os países que
compartilham o mesmo recurso hídrico e é fundamental para a gestão sustentável das
águas subterrâneas transfronteiriças.
Cabe ponderar que a efetividade do princípio do intercâmbio de dados é afe-
tada pela escassez de informações, situação, por vezes, comum nos casos em que o
aquífero é um bem compartilhado. Alguns Estados não possuem o inventário de seus
aquíferos, e tampouco têm informações técnicas. No caso do SAG, as informações
existem.15 Impulsionado por um processo de governança, os dados e características
do SAG foram atualizados/levantados no âmbito do PSAG. Por outro lado, no Sistema
de Informações do Sistema Aquífero Guarani (SISAG), referido no Projeto, não foram
identificadas referências acerca de sua implementação até a elaboração deste artigo.
O princípio da satisfação das necessidades humanas vitais (art. 10) trata da
prioridade do uso da água em situação de conflito de uso. Entende-se por necessidades
humanas vitais a utilização da água para usos nobres, como a dessedentação, preparo
de alimentos e higiene pessoal. Mesmo que a convenção não tenha estabelecido uma
ordem de usos, diante de conflito entre um curso de água internacional, a prioridade é
atender ao consumo humano, que está nitidamente relacionado ao direito fundamental
de acesso à água potável.16
Os documentos internacionais concebem o acesso à água potável como direito
humano fundamental. É o que pode ser encontrado na Conferência de Berlim (2004):
1. Cada indivíduo tem o direito de acesso à água, de forma suficiente, segura, aceitável,
fisicamente acessível e oferecida, para alcançar as necessidades vitais (art. 17). O
Relatório de Desenvolvimento Humano (2006), publicado pela ONU, afirma: a água,
a essência da vida e um direito humano básico, encontra-se no cerne de uma crise
diária que afeta vários milhões das pessoas mais vulneráveis do mundo - uma crise
que ameaça a vida e destrói os meios de subsistência a uma escala arrasadora.17
15
As informações sobre o SAG estão contidas em um total de sete Manuais Técnicos elaborados no âmbito
do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do SAG. Os documentos trazem
informações técnicas para a orientação dos gestores, dos legisladores e tomadores de decisão para o
gerenciamento, regulação e proteção do SAG. Ver as publicações no site da ANA, www.ana.org.br.
16
Sobre o direito fundamental de acesso à água ver FACHIN, Zulmar; SILVA, Deise Marcelino da. Acesso
à água potável: direito fundamental de sexta dimensão. 2. ed. São Paulo: Millennium, 2012.
17
ONU. Relatório de Desenvolvimento Humano: RDH/2006. PNUD Brasil. p. 18. Disponível em: http://
www.pnud.org.br/rdh/. Acesso em: jan. 2017.
60 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Na sequência, a Assembleia Geral da ONU, pela Resolução 64/292, reconheceu


o acesso à água potável como direito humano essencial ao pleno desfrute da vida e de to-
dos os direitos humanos.18 Considerando a complementariedade dos direitos fundamen-
tais, o direito à água serve de meio para a concretização do direito à saúde, do direito à
vida e a dignidade da pessoa humana, temas que foram objeto do Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu art. 11, considerado como origem das
tratativas da ONU para declarar a água e o saneamento básico como direitos humanos.19
A Convenção reservou ainda tratamento especial para a proteção, preservação
e gestão para a utilização dos cursos de águas internacionais para fins diversos da
navegação. Neste sentido, disciplinou que “os Estados ribeirinhos devem, individual
ou conjuntamente, se adequado, proteger e preservar os ecossistemas dos cursos de
água internacionais” (artigo 20). Segundo McCaffrey, esse artigo é “muito genérico,
mas potencialmente poderoso, pois cria a possibilidade de cooperação entre Estados
ribeirinhos e outros Estados que não compartilham curso de água”.20
A prevenção, a redução e o controle da poluição de um curso de água inter-
nacional que possa causar dano a outros Estados ribeirinhos são temas previstos no
artigo 21 da Convenção. O documento trata dos riscos para os ecossistemas pela
introdução de espécies estranhas ao meio ou novas (espécies) em um curso de água
internacional, com possibilidade de danos significativos a algum Estado ribeirinho (artigo
22), além da proteção e da preservação do meio marinho (artigo 23).
Sobre a gestão do curso de águas internacionais, o artigo 24 prevê que os Es-
tados ribeirinhos devem, a pedido de um deles, encetar consultas referentes à gestão
de um curso de água internacional que pode incluir a criação de um mecanismo de
gestão conjunta. O mesmo dispositivo define a gestão como um ato de planejamento
e de promoção para proteção e controle dos cursos de água.
A prática da gestão requer planejamento, instrumentos e infraestrutura para
apoio a um corpo técnico especializado. Requer, ainda, a participação de indivíduos
engajados em conjunto com atos políticos. Para a gestão de águas transfronteiriças é
imprescindível a cooperação entre os Estados e o envolvimento da sociedade. Trata-se
de um processo poligonal de diálogos, equilíbrio e composição dos múltiplos sujeitos e

18
ONU. O direito humano à água e saneamento. Disponível em: http://www.un.org/waterforlifedecade/
pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_por.pdf. Acesso em: 16 de fev. 2019.
19
LIMA, Maria Isabel Leite Silva de; GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito humano à água e a
perspectiva econômica para a sustentabilidade hídrica. Revista do CNMP: água, vida e direitos humanos,
Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, n. 7, p. 13-36, 2018. p. 15.
20
MACCAFFREY, Stephen C. The Law of International Watercourse: non navigational uses. Oxford
University Press, 2003. p. 312. “Article 20, Protection and Preservation Ecosystems, a very general,
but potentially powerful mandate [...]”.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 61

interesses comuns.21 A gestão, quando integrada, nasce da governança, opera-se por


esta e cria ambiente para sua prática. A gestão hídrica eficaz previne possíveis conflitos
de uso e intenta para a proteção da qualidade e quantidade das águas.
No artigo 25, a Convenção regula a instalação de serviços e obras a serem
executados por Estados ribeirinhos, em benefício da proteção do curso de água inter-
nacional. Preocupou-se, ainda, em prevenir e diminuir as condições danosas aos cursos
de águas internacionais (artigo 27), bem como a situações de emergência identificadas
no âmbito da jurisdição de cada Estado ribeirinho (artigo 28).
Registre-se que a Convenção foi editada pela ONU como uma contribuição
normativa em busca de uma eficiente gestão compartilhada entre Estados nacionais,
considerando, para isso, a cooperação transfronteiriça.
Como um guarda-chuva global, a convenção busca comple-
mentar, facilitar e sustentar a cooperação transfronteiriça da
água em todos os níveis, através de: enfrentar as deficiências
legais na atual estrutura internacional de governança da água,
na ausência de outros instrumentos legais aplicáveis; fornecer
orientações políticas coerentes para a adoção e implementação
de acordos sólidos e abrangentes de cursos de água - orientação
que facilite o trabalho das instituições bilaterais e multilaterais
que ajudam os Estados do curso de água em questões de
cooperação transfronteiriça da água [...].22

A Convenção é descrita como uma convenção-quadro, pois existe a expectativa


de que os Estados nela se baseiem levando em conta disposições locais. Embora
o Acordo sobre o SAG não tenha considerado a Convenção, a contribuição desse
documento é de relevância tanto para a formação de acordos internacionais entre
países que compartilham corpos hídricos quanto para respaldar decisões em litígios
envolvendo Estados ribeirinhos.23
21
CASTRO, Paulo Canelas de. Nova era nas relações luso-espanholas na gestão das bacias partilhadas?
Em busca da sustentabilidade. In: CANOTILHO. J. J. Gomes. (Org.). O regime jurídico internacional
dos rios transfronteiriços. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 127.
22
LOURES, Flavia; RIEU-CLARKE, Alistair; VERCAMBRE, Marie-Laure. Everything you need to know
about the UN Watercourses Convention. p. 10. Disponível em: http://www.unwater.org/downloads/
wwf_un_watercourses_brochure_for_web_1.pdf. Acesso em: 16 fev. 2019. As a global legal umbrella,
the convention seeks to supplement, facilitate, and sustain transboundary water cooperation at all levels,
by: addressing the legal weaknesses in the current international water governance structure, in the
absence of other applicable legal instruments; providing coherent policy guidance for the adoption and
implementation of sound and comprehensive watercourse agreements - guidance that will facilitate the
work of bilateral and multilateral institutions assisting watercourse states in matters of transboundary
water cooperation [...].
23
Em 1997, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), no caso Gabcíkovo-Nagymaros, invocou a Convenção
das Nações Unidas sobre os cursos de água para justificar a sua decisão.
62 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A Convenção entrou em vigor em 17 de agosto de 2014.24 Entre os países


localizados sob o SAG, apenas o Paraguai assinou o documento (25 de agosto de
1998), porém ainda não a ratificou. Vale ponderar se o extenso lapso temporal para
entrada em vigor da Convenção (1997 a 2014) indica que suas bases de elaboração
e estruturação deveriam ser fixadas na lógica de funcionamento do Direito Ambiental
Internacional (DAI). Contudo, mesmo que não tenha sido ratificada pelos Estados que
compartilham o Guarani, o estudo da Convenção sobre o Direito Relativo à Utilização
dos Cursos das Águas Internacionais para Fins Diversos da Navegação é referência
para a adoção de práticas adequadas à gestão de recursos hídricos transfronteiriços.

2. O DIREITO DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS TRANSFRONTEIRIÇAS:


RESOLUÇÃO DA ONU 63/124 (2008)

O Direito das Águas Subterrâneas Transfronteiriças é um projeto de artigos25


fruto de anos de reuniões, debates e revisões ora motivadas pela Comissão de Direito
Internacional (CDI) da ONU.26 Os estudos da CDI, para atender ao objetivo de incluir
previsões sobre águas subterrâneas transfronteiriças em seu programa de trabalho,
tiveram a colaboração de especialistas e entidades de várias partes do mundo. Con-
forme Chusei Yamada, relator especial dos trabalhos, para contribuir com o esboço de
artigos, tanto os Governos como as entidades epistêmicas foram convidados a emitir
opiniões e enviarem estudos:
Além da valiosa contribuição dos Estados, o Programa Hidrológi-
co Internacional da UNESCO (IHP), desde o ano 2003, forneceu
aconselhamento científico e técnico ao Relator Especial sobre as
questões relacionadas com a hidrogeologia, convidando, coor-
denando e apoiando as contribuições de peritos internacionais,
instituições internacionais e nacionais, incluindo centros sobre
recursos hídricos subterrâneos, IAH, FAO, UNEP/GEF, OAS,
IUCN, IGRAC e UNECE.27
24
UNITED NATIONS. Treaty Collection. Status of treaties. Convention on the Law of the Non-Navigational
Uses of International Watercourses. Disponível em: https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.
aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XXVII-12&chapter=27&clang=_en. Acesso em: dez+. 2016.
25
A expressão “Projeto de artigo” ou “draft articles”, em inglês, é usada comumente pela CDI sem prejuízo
do documento já concluído. In: BRZEZINSKI, Maria Lúcia Navarro Lins. Direito internacional da água
doce: fontes, regimes jurídicos e efetividade. Curitiba: Juruá, 2012, p. 191.
26
Sobre o passo a passo da elaboração do Projeto - Resolução da ONU 63/124 (2008), ver a literatura
brasileira de BRZEZINSKI, op. cit., p. 187-192. Na literatura estrangeira, ver o artigo do Relator da
citada Resolução Chusei Yamada. Codification of the Law of Transboundary Groundwater. Essays in
International Law. Disponível em: http://www.aalco.int/yamada2007.pdf. Acesso em: dez. 2016.
27
Vast numbers of States practices are emerging, In addition to valuable contribution from States, the
UNESCO International Hydrological Program (IHP) has since the year 2003 provided scientific and
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 63

Também o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a


Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Projeto de Proteção Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani (PSAG) colaboraram com
o esboço até que o texto final fosse adotado pela Assembleia Geral da ONU, pela
Resolução 63/124, em 11.12.2008.
Embora não seja juridicamente vinculante, a Resolução 63/124/
2008 tem validade como doutrina consolidada, além de reforçar
a disseminação dos princípios por meio de tratados - uma de
suas metas é exatamente fomentar a realização de acordos
bilaterais ou multilaterais sobre seus aquíferos transfronteiriços,
tarefa a que o Acordo do SAG cumpre.28 29

Destaca-se, no Preâmbulo, o compromisso de reafirmar os princípios e reco-


mendações adotados pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento de 1992 na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento e a Agenda 21. Salienta-se a importância da cooperação internacional e da boa
vizinhança, bem como reconhece a situação dos países em desenvolvimento.
Na primeira parte, o documento delimita os objetivos e as definições. A parte
dois se refere aos princípios gerais como a soberania dos Estados, os fatores rele-
vantes para a utilização equitativa dos aquíferos, a obrigação para não causar danos
significativos, as obrigações gerais para a cooperação, o intercâmbio regular de dados
e informações e sobre os acordos e convênios bilaterais e regionais.
A terceira parte da Resolução trata de aspectos relevantes no que diz respeito
à proteção, à preservação e à gestão dos aquíferos transfronteiriços. A última parte é
technical advice to the Special Rapporteur on the issues related to hydrogeology, inviting, coordinating
and supporting the contributions of international experts, international and national institutions including
centers on groundwater resources, IAH, FAO UNEP/GEF, OAS, IUCN, IGRAC and UNECE. YAMADA,
cit., p. 94. Disponível em: http://www.aalco.int/yamada2007.pdf. Acesso em: dez. 2016.
28
BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos Presidência da República. Série Estudos Estratégicos.
Água e desenvolvimento sustentável: recursos hídricos fronteiriços e transfronteiriços do Brasil. Brasília,
2013. p. 120.
29
O documento é composto pelo Preâmbulo e 19 artigos divididos em quatro partes: Introdução (Parte
I, artigos 1º e 2º), Princípios Gerais (Parte II, artigos 3º a 9º), Proteção, Preservação e Gestão (Parte
III, artigos 10 e 15), e Disposições Diversas (Parte IV, artigos 16 a 19). Draft articles on the Law of
Transboundary Aquifers. Text adopted by the International Law Commission at its sixtieth session, in
2008, and submitted to the General Assembly as a part of the Commission’s report covering the work
of that session. The report, which also contains commentaries on the draft articles, appears in Official
Records of the General Assembly, Sixty-third Session, Supplement n. 10 (A/63/10). Tradução: Texto
aprovado pela Comissão de Direito Internacional em sua sexagésima sessão, em 2008, e apresentado à
Assembleia Geral como parte do relatório da Comissão sobre os trabalhos dessa sessão. O relatório, que
também contém comentários sobre o projeto de artigos, consta dos documentos oficiais da Assembleia
Geral, sexagésima terceira sessão, Suplemento nº 10 (A/63/10).
64 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

reservada às disposições diversas, tais como a cooperação técnica com os Estados em


desenvolvimento, situações de emergência, a proteção em tempo de conflito armado
e dados ou informações vitais para a defesa e segurança nacional.
O Projeto de artigos se aplica aos casos de utilização dos aquíferos ou sistemas
aquíferos transfronteiriços e nas medidas de proteção, preservação e gestão desses
corpos de água. Incluem-se no escopo do documento outras atividades que tenham,
ou possam vir a ter, impacto sobre os aquíferos ou sistemas aquíferos. Consideram-
-se outras atividades aquelas desenvolvidas sob o aquífero, ou no seu entorno, que
possam afetar suas águas, como, por exemplo, a construção de um empreendimento
que cause prejuízo ao meio ambiente em que se encontra o aquífero.
O termo aquífero, para o propósito do documento, consiste em uma formação
geológica permeável portadora de água, situada sobre uma camada menos permeável,
e a água contida na zona saturada da formação (art. 2º). A definição também é feita
da expressão sistema aquífero, entendido como uma série de dois ou mais aquíferos
que estão ligados hidraulicamente. Ambas as definições devem considerar o caráter
transfronteiriço do aquífero cujas partes se situam em Estados diferentes.30 Ao adotar
o conceito de aquífero, a Resolução intenta para a gestão não apenas das águas
subterrâneas, mas também da formação geológica. Assim, reconhece que tanto a
água subterrânea como o aquífero são compartilhados, ampliando a obrigação dos
Estados de não causar dano. Tal abordagem sistêmica de proteção e gestão enseja a
forma de utilização do recurso compartilhado e, no entendimento de Villar, compromete
a aceitação dos Estados, pois admitiria a imposição de restrições ao uso territorial.31
O mesmo dispositivo leva em conta que a utilização dos aquíferos transfrontei-
riços inclui a extração de água, de calor e de minerais, bem como a armazenagem e
a eliminação de qualquer substância.
O artigo 3º fixa o rol de princípios gerais, dos quais se destaca o Princípio da
Soberania dos Estados. A inclusão da soberania causou discussões entre as doutrinas
internacionais especializadas como Laborde, McCaffrey, McIntyre e Yamada, pois a
afirmação expressa do princípio da soberania seria contraditória ao espírito da coope-
ração e do uso equitativo32 com o que concordamos.

30
Article 2. Use of Terms. For the purposes present draft articles: (a) “aquifer” means a permeable water-
bearing geological formation underlain by a less permeable layer and the water contained in the saturated
zone of the formation; (b) “aquifer system” means a series of two or more aquifers that are hydraulically
connected; (c) “transboundary aquifer” or transboundary aquifer system means respectively, an aquifer
or aquifer system, parts of which are situated in different States.
31
VILLAR, op. cit., p. 141.
32
Apud VILLAR, op. cit., p. 142-143.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 65

Com relação ao uso dos aquíferos, os arts. 4º e 5º enumeram, num rol não
taxativo, o correto manejo como aquele que, entre outras formas, deve almejar a maxi-
mização dos benefícios ao longo prazo derivados do uso da água contida no aquífero,
bem como estabelecer de forma individual ou conjunta um plano global de utilização,
tendo em conta as necessidades presentes e futuras de água dos Estados do aquífero
e as outras fontes de água desses Estados.
A utilização equitativa e razoável dos aquíferos impõe a resiliência do sistema,
impedindo os Estados de extrair as águas até o esgotamento do aquífero. O cumpri-
mento dessa diretriz implica conhecer as características do aquífero como as taxas
de recarga e descarga, dados por vezes inexistentes ou indisponíveis. Para Chusei
Yamada, as regras de utilização equitativa e razoável são necessariamente gerais e
flexíveis e exigem que os Estados tomem em consideração fatores e circunstâncias
concretas dos recursos, bem como de suas necessidades.33
O art. 5º arrola os fatores que impõem prioridades dentro de um sistema de
planejamento como as necessidades sociais, econômicas e outras, presentes e futu-
ras, dos Estados do aquífero. Deve-se examinar a conjuntura real para equacionar os
interesses consistentes. No § 2º, esclarece-se que, ao ponderar os diferentes fatores,
cabe levar em conta as necessidades humanas:
O peso a atribuir a cada fator deve ser determinado pela sua
importância relativamente a um aquífero ou sistema aquífero
transfronteiriço específico em comparação com o de outros
fatores pertinentes. Para determinar o que é utilização equitativa
e razoável, todos os fatores relevantes devem ser considerados
em conjunto e uma conclusão alcançada com base em todos os
fatores. No entanto, ao ponderar diferentes tipos de utilização de
um aquífero ou sistema aquífero transfronteiriço, deve ser dada
especial atenção às necessidades humanas vitais.

A expressão necessidades humanas vitais foi também mencionada no artigo


10, § 2º, da Convenção de Nova Iorque (1997) no contexto de conflito entre utilizações
de um curso de água internacional. Contudo, vale ainda registrar que o assento dessa
expressão em ambos os documentos exorta os governos dos Estados a atuarem
decididamente na concretização do direito fundamental de acesso à água potável.
A obrigação de cooperar (art. 7º) deve ocorrer com base na igualdade soberana
dos Estados, na integridade territorial, no desenvolvimento sustentável e no benefício

33
The rules of equitable and reasonable utilization are necessarily general and flexible and require for their
proper application that aquifer States account concrete factors and circumstances of the resources as
well as of the need of the aquifer States concerned. YAMADA, cit., p. 100. Disponível em: http://www.
aalco.int/yamada2007.pdf. Acesso em: 16 fev. 2019.
66 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

mútuo e na boa-fé. O princípio da cooperação, presente nos documentos internacionais


sobre águas doces transfronteiriças, consta também nos Relatórios das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos no Mundo.
O artigo 9º encoraja a celebração de acordos bilaterais ou regionais para a ges-
tão sustentável dos aquíferos transfronteiriços ou dos sistemas de aquíferos. Sobre a
gestão de aquífero, o artigo 14 estabelece que os Estados devem implementar planos
para a gestão sustentável e, sempre que adequado, mecanismos de gestão conjuntos.
O procedimento de elaboração de mecanismos de gestão pensados em conjunto
aponta para um quadro de governança do aquífero em questão. A governança se efetiva
com a participação dos envolvidos e interessados na utilização e proteção do recurso
hídrico e com medidas de articulação para além das tradicionais.
O referido artigo é relevante à questão do SAG, pois é oportuno aos propósitos
de uma gestão compartilhada, em que deve haver negociações entre os interessados
diante de oportunidades que o uso das águas do Guarani pode oferecer.
O Projeto de artigo defende a cooperação científica, técnica e jurídica (arts. 8º e
16), especialmente em casos de emergência (art. 17). Por outro lado, desobriga o Estado
a fornecer dados ou informações vitais para a sua defesa ou segurança nacional (art.
19), sendo que previsão similar consta no art. 31 da Convenção de Nova Iorque (1997).

3. BREVE ANÁLISE COMPARATIVA DOS DOCUMENTOS

A Resolução ONU 63/124, comparada à Convenção de Nova Iorque, pode ser


entendida como um documento complementar, porque amplia os tipos de aquíferos e
compreende também os aquíferos transfronteiriços confinados, ou integrante, porque
retoma diretrizes adotadas pela Convenção. Por outro lado, há nítidas diferenças entre
os documentos, em especial com relação ao recurso protegido. Pela Convenção, a
gestão alcança as águas subterrâneas conectadas à superfície com escoamento para
um término comum. A Resolução inclui a proteção de todos os aquíferos, incluindo
sua formação rochosa (seu território). Outra diferença é o caráter mais restrito na
interpretação do princípio da utilização equitativa e razoável dos aquíferos admitido
pela Resolução, conforme anteriormente analisado.
A análise comparativa dos tratados, considerando as distinções e as seme-
lhanças entre ambos os documentos, indica a construção de um Direito Internacional
voltada às águas subterrâneas. Em evolução, o Direito Internacional das Águas Doces
é profícuo à gestão dos recursos hídricos compartilhados como o caso dos aquíferos
transfronteiriços. Para além de fornecer um conjunto de recomendações e diretrizes
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 67

à gestão sustentável e pacífica de aquíferos, os documentos internacionais sobre


essa matéria apoiam acordos e tratados bilaterais ou regionais destinados àquele fim.
Nesse sentido, o Acordo do SAG adotou a Resolução 63/124 (2008), demostrando
reconhecimento às suas premissas e princípios.
Pode-se afirmar que os princípios e normas do Direito Internacional, aplicáveis à
gestão e proteção das águas transfronteiriças, merecem ser objeto de muitos debates
e inovações, considerando que se trata de um direito dinâmico, focado na participação
dos novos atores e nas formas de agir.
Um tema relevante, que é imperativo considerar no contexto do Direito Interna-
cional das águas doces transfronteiriças, consiste nas vulnerabilidades humanas, como
os refugiados ambientais34 e as consequências negativas provocadas pelas mudanças
climáticas. Tal realidade surge frente aos emergentes problemas socioambientais da
sociedade contemporânea.

4. ACORDO DO SISTEMA AQUÍFERO GUARANI (2010): PRÓXIMOS DESAFIOS

Após o desenvolvimento do Projeto do Sistema Aquífero Guarani - PSAG (2003


a 2009) e em meio à afirmação da soberania nacional sobre seus recursos naturais,
Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai firmaram em 2010 um Acordo com foco na do-
minialidade do Aquífero Guarani.35 O Acordo sobre o Sistema Guarani foi vislumbrado
ainda em 2004 no contexto do PSAG, que apontou a necessidade de elaboração de
um documento internacional jurídico-normativo que culminasse na convergência de
gestão entre os quatro países.

Enquanto especialistas dos quatro Estados se reuniam no esfor-


ço de cooperação científica do Projeto Guarani, autoridades dos
Ministérios de Relações Exteriores dos quatro países envolvidos
buscavam, no âmbito do Mercosul, lançar as bases para a ne-
gociação de um acordo direcionado à gestão do SAG. Assim,
a despeito de contratempos verificados nos primeiros anos de
negociação do acordo, a partir 2010 o processo negocial evoluiu

34
Sobre esse tema ver: SILVA, Deise Marcelino da; FACHIN, Zulmar. Refugiados ambientais: aspectos
sociológicos e jurídicos. In: PNMA: 30 anos da Política Nacional do Meio Ambiente, v. 1, 2011. p. 669-683.
35
Historicamente e culturalmente, a maioria dos países da América do Sul prefere criar tratados e normas
bilaterais e multilaterais entre si, em vez de se tornarem partes em tratados internacionais de grande
porte. FOSTER, Stephen et al. A iniciativa do Programa Sistema Aquífero Guarani: rumo à gestão prática
da água subterrânea em um contexto transfronteiriço. 2009. Disponível em: http://www-wds.worldbank.
org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2015/06/11/090224b0828c0514/1_0/Rendered/PDF/
A0iniciativa0d0xto0transfronteiri0o.pdf. Acesso em: 16 fev. 2019.
68 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

e foi possível alcançar um consenso que resultou na assinatura


do Acordo sobre o Aquífero Guarani, em San Juan, República
Argentina, em 2 de agosto de 2010.36

As informações obtidas por profissionais que participaram do PSAG (geólogos,


biólogos, químicos, engenheiros, bem como profissionais da área do Direito e da Educa-
ção) deram base para a elaboração do Acordo. Negociadores oficiais imbuídos de tais
dados se reuniam para analisar as propostas de cada país na elaboração do Acordo.
As discussões abordavam, principalmente, a ideia de soberania, a qual motivou
a realização do Acordo. A versão final do documento prevê princípios, ações e metas
de uso sustentável das águas do Aquífero Guarani. Trata-se de um Acordo-Quadro,37
por resguardar espaços a serem preenchidos com medidas práticas, em um sistema
de governança.
Vale notar que o Acordo do SAG se caracteriza como um documento interna-
cional sobre um aquífero transfronteiriço específico, sem que se observem conflitos
expressivos pelo uso das águas subterrâneas do Guarani. Sua viabilização decorre
de uma legítima preocupação em prevenir conflitos, que de resto já se apresentam
flagrantes com relação às águas superficiais - uso competitivo do transporte, energia
elétrica, usos consuntivos, poluição e pesca, entre outros. Por sua vez, os conflitos
sobre o uso das águas superficiais podem afetar, a curto ou a longo prazo, as águas
subterrâneas devido à relação entre ambas.
O Tratado do SAG considera o Guarani um sistema hídrico transfronteiriço
integrante do domínio territorial da República Argentina, da República Federativa do
Brasil, da República do Paraguai e da República Oriental do Uruguai. Considerar o
Aquífero Guarani de natureza transfronteiriça enseja o entendimento de que esses
países devem promover uma política comum com vistas à gestão integrada desse
bem, optando pela via da governança de modo a garantir a cooperação entre as partes.
O Acordo38 respalda-se em documentos de Direito Internacional, destacando,
no preâmbulo, a Resolução 1803 (XVII) da Assembleia-Geral das Nações Unidas;
36
Comissão de relações exteriores e de defesa nacional. Projeto de decreto legislativo nº 262, de
2015. (mensagem nº 172, de 2015). Relatório de Aprovação do Acordo. Representação Brasileira no
Parlamento do MERCOSUL. Relator: Deputado Bruno Covas. p. 6.
37
Nas palavras do Prof. Dr. Guido Fernando Silva Soares, uma lei-quadro é aquela que traça “moldura
legislativa e que permite ao Poder Executivo, no uso de suas atribuições regulamentares, preencher aquele
espaço, sem sair da moldura, com as medidas práticas que julgar conveniente”, SOARES, Guido Fernando
Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo:
Atlas, 2001. p. 173. Nesse caso, deve haver uma continuidade no procedimento de adoção do tratado.
38
Com relação à estrutura, o Acordo sobre o Aquífero Guarani pode ser dividido em: i) Preâmbulo,
ii) Soberania sobre o Aquífero, iii) Princípios de Direito Internacional para o uso da água, iv) Obrigação
do intercâmbio de informações entre os quatro países, v) Procedimento de solução de controvérsia e
v) Disposições gerais. Esperava-se que constasse um glossário nos primeiros artigos do documento,
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 69

a Resolução 63/124 da Assembleia-Geral das Nações Unidas sobre o Direito dos


Aquíferos Transfronteiriços; a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972); a Declaração do Rio de Janeiro sobre
o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) e a Declaração da Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável de Johanesburgo (2002). Ainda considera o Tratado da
Bacia do Prata (Brasília, 1969) e o Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do MERCOSUL
(Assunção, 2001). Segundo a Comissão de relações exteriores e de defesa nacional,
o acordo incorpora e assenta princípios consagrados em outros
tratados internacionais do gênero relativos à preservação de
recursos naturais e do meio ambiente e também quanto à gestão
compartilhada e à responsabilidade transfronteiriça ambiental.
Nesse sentido, destaca-se pela institucionalização de um regime
quadripartite de harmonização da gestão, monitoramento e
aproveitamento sustentável dos recursos hídricos do Sistema
Aquífero Guarani, esse extenso e valioso recurso natural que
subjaz aos territórios de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.39

O Acordo sobre o SAG leva em conta ainda as conclusões da Cúpula sobre


Desenvolvimento Sustentável nas Américas, de Santa Cruz de la Sierra, (1996).
Observa-se que o Acordo não menciona a Convenção de Nova Iorque (1997), pois o
foco do documento de 1997 consistiu no sistema de águas superficiais. Ademais, o
conceito de aquífero previsto na Convenção é excludente e não abrangeu todos os
tipos de aquíferos:

O Acordo do Aquífero Guarani é o primeiro tratado regional a


ser modelado em conformidade com o Projeto de Direito Inter-
nacional sobre Aquíferos Transfronteiriços de 2008, que aborda
aquíferos “confinados” que estão fora do escopo da Convenção
sobre os cursos de água das Nações Unidas de 1997.40

procedimento comum entre os Tratados Internacionais de Águas, apontando, entre outras, a caracte-
rização do próprio Sistema Aquífero Guarani e o conceito de gestão hídrica adotada.
39
BRASIL. Comissão de relações exteriores e de defesa nacional. Projeto de decreto legislativo nº 262,
de 2015. (Mensagem nº 172, de 2015). Relatório de Aprovação do Acordo. Representação Brasileira
no Parlamento do MERCOSUL. Relator: Deputado Bruno Covas. p. 9.
40
The Guarani Aquifer Accord (“Acordo sobre o Aquífero Guarani” or “Acuerdo Aquífero Guarani”) is the first
regional treaty to be modeled after the International Law Commission Draft Articles on Transboundary
Aquifers of 2008, which address “confined” aquifers that are outside the scope of the United Nations
Watercourses Convention of 1997. TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer Accord: cooperation in
South America towards prevention of harm and sustainable, equitable use of underground transboundary
water. The Law and Practice of International Courts and Tribunals, 5 (06) 49-63 brill.com/lape 15 (2016)
249-263. p. 249.
70 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Os artigos 1º e 2º preveem que os quatro países são os únicos titulares das


águas do Guarani, exercendo o domínio territorial soberano sobre suas porções. Em
tais artigos, a soberania territorial é afirmada assim como no item II da Carta de Foz
do Iguaçu para o Aquífero Guarani: o uso sustentável e a conservação das reservas
do Aquífero Guarani devem ser realizados tendo como princípio a soberania territorial
de cada país sobre seus recursos naturais.
A Carta é fruto do Seminário Internacional Aquífero Guarani, gestão e controle
social, realizado em Foz do Iguaçu-PR, em 15.10.2004 e do qual participaram membros
da Comissão Parlamentar Conjunta do MERCOSUL, representantes dos Governos
argentino, brasileiro, paraguaio e uruguaio, de movimentos populares e ONGs volta-
dos ao meio ambiente e à água, bem como universidades e centros de pesquisa.41 O
documento representa mais um processo de governança para a gestão integrada do
SAG, além daqueles ocorridos na realização do PSAG. A ideia de soberania é reforçada
no artigo 3º, que prevê:
As Partes exercem em seus respectivos territórios o direito sobe-
rano de promover a gestão, o monitoramento e o aproveitamento
sustentável dos recursos hídricos do Sistema Aquífero Guarani,
e utilizarão esses recursos com base em critérios de uso racional
e sustentável e respeitando a obrigação de não causar prejuízo
sensível às demais Partes nem ao meio ambiente.

A soberania foi elemento reiterado nos dispositivos mencionados acima como


forma de impedir ameaças externas à região por parte de interessados no recurso em
questão. Conforme Pilar Villar,42 rumores sobre o desejo de internacionalizar o aquífero,
declará-lo patrimônio comum da humanidade, ou ainda de que empresas internacionais
pretendiam apoderar-se dessas águas, ensejaram a inclusão da soberania em tais
dispositivos do Acordo.
O artigo 3º aponta ainda o dever das Partes de utilizar as águas do SAG com
base em critérios de racionalidade e sustentabilidade, respeitando a obrigação de não
causar prejuízo sensível às demais Partes nem ao meio ambiente. Embora estipule o
modo de utilização das águas do SAG, o Acordo não prevê expressamente a prioridade
de uso em situações de escassez.
No que se refere ao uso racional e sustentável, em se tratando de um aquífero
transfronteiriço, fica implícita a necessidade de coordenação e articulação entre os
41
Carta de Foz do Iguaçu para o Aquífero Guarani. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-mistas/cpcms/index_old.html/seminarioguarani.html/carta.html. Acesso
em: 16 fev. 2019.
42
VILLAR, op. cit., p. 240.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 71

Estados no âmbito de uma entidade de gestão com respaldo político e financeiro.


Catherine Tinker43 observa que o art. 3º formula, concomitante, um direito e uma obri-
gação. A autora explica ainda a expressão prejuízo sensível:

O termo prejuízo sensível é comum no direito internacional da


água e no direito ambiental internacional. Portanto, não proíbe
todo o uso da água, reconhecendo que as atividades humanas
causam danos ao meio ambiente. O adjetivo “sensível” cria um
limiar além do qual uma atividade causadora de danos deve
cessar, e os responsáveis devem mitigar o dano. Esta limitação
à soberania no tratado pode ser vista como uma variação do
Princípio 21 de Estocolmo e do Princípio 12 do Rio, que ordena
aos Estados que não causem danos ao meio ambiente de outro
Estado ou a áreas além da jurisdição nacional. A linguagem do
Acordo no Artigo 3 é mais moderna e ecologicamente correta:
evitar danos significativos a outro estado ou ao meio ambiente.44

O art. 4º expõe os objetivos do Acordo: promover a conservação e a prote-


ção ambiental do Sistema Aquífero Guarani de maneira a assegurar o uso múltiplo,
racional, sustentável e equitativo de seus recursos hídricos. Nesse documento, uso
múltiplo consiste naquele que atende às diferentes demandas como irrigação, energia,
abastecimento industrial e humano, entre outros. O uso racional e equitativo significa
dizer uso comedido, sem exagero, controlado e com gerenciamento, de forma justa.45
Ademais, conforme Kerstin Mechlem:

A lista de fatores relevantes para determinar o que significa


a utilização equitativa e razoável inclui “fatores geográficos,

43
TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer Accord: cooperation in South America towards prevention of
harm and sustainable, equitable use of underground transboundary water. The Law and Practice of
International Courts and Tribunals, 5 (06) 49-63 brill.com/lape 15 (2016) 249-263. p. 256.
44
The term “significant harm” (“prejuízos sensíveis” in Portuguese) is common in international water law
and in international environmental law. It therefore does not prohibit all use of the water, recognizing
that human activities do cause harm to the environment. The adjective “significant” creates a threshold
beyond which an activity causing harm must cease, and those responsible must mitigate the damage.
This limitation on sovereignty in the treaty may be seen as a variation on Stockholm Principle 21 and Rio
Principle 12, directing states not to cause harm to the environment of another state or to areas beyond
national jurisdiction. The language of the Accord in Article 3 is more modern and ecologically correct: to
avoid significant harm to another state or to the environment. TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer
Accord: cooperation in South America towards prevention of harm and sustainable, equitable use of
underground transboundary water. The Law and Practice of International Courts and Tribunals, 5 (06)
49-63 brill.com/lape 15 (2016) 249-263. p. 256.
45
MACHADO, op. cit., p. 91.
72 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

hidrográficos, hidrológicos, climáticos, ecológicos e outros de ca-


ráter natural”, mas deixa de lado os fatores hidrogeológicos. Fa-
tores que lidam com as características das águas subterrâneas.46

O uso racional equivale à utilização ótima da água e de seus benefícios como


expresso no princípio do artigo 5º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da Navegação (Nova
Iorque, 1997). Note-se que, mesmo que o Acordo do SAG não tenha mencionado a
Convenção, os princípios desse documento dão corpo ao Direito Internacional das
Águas Doces. O uso racional e equitativo está ainda em compasso com as Regras de
Helsinki (art. IV) e a Resolução sobre o Direito dos Aquíferos Transfronteiriços (art. 4º).
O acordo estabelece que as Partes, quando se propuserem a empreender
estudos, atividades ou obras relacionadas com as partes do Sistema Aquífero Guarani
que se encontrem localizadas em seus respectivos territórios e que possam ter efeitos
além de suas respectivas fronteiras, deverão atuar em conformidade com os princípios
e normas de direito internacional47 aplicáveis (art. 5º), para evitar conflitos e promover
a cooperação internacional.
O art. 6º trata do dever das Partes de lançarem mão de medidas mitigadoras a
fim de evitar prejuízo ao meio ambiente e ao país limítrofe quando ocorrer empreendi-
mentos de aproveitamento e exploração do recurso hídrico do SAG em seus respectivos
territórios. O Acordo obriga os países a adotarem todas as medidas necessárias para
evitar, eliminar ou reduzir prejuízos sensíveis às outras ou ao meio ambiente diante
de quaisquer iniciativas (atividades) que afetem as águas subterrâneas do Guarani
(art. 7º). Os arts. 6º e 7º devem ter interpretação extensiva no que se refere ao termo
atividades, cabendo considerar tanto aquelas que ocorrem diretamente na exploração
do corpo hídrico do SAG quanto àquelas que ocorrem no entorno e possam afetá-lo,
(manejo de solo, por ex.), atendendo à visão holística de gestão de aquífero, adotada
pela Resolução 63/124 da ONU.

46
The list of factors relevant to determining what equitable and reasonable utilization means (Article 6)
comprises “geographic, hydrographic, hydrological, climatic, ecological and other factors of a natural
character”, but leaves out tellingly hydrogeological ones, namely those factors that deal with groundwater
characteristics. MECHLEM, Kerstin. International groundwater law: towards closing the gaps? Yearbook
of International Environmental Law, v. 14, 2003. p. 57. Geir Ulfstein, Jacob Werksman Editors-in-Chief.
47
O Direito Internacional é informado pelos seguintes princípios: 1. Princípio da não agressão. 2. Princípio
da solução pacífica dos litígios entre Estados 3. Princípio da autodeterminação dos povos. 4. Princípio da
proibição da propaganda de guerra. 5. Princípio do não uso ou ameaça de força. 6. Princípio da boa-fé
no cumprimento das obrigações internacionais. 7. Princípio da não intervenção nos assuntos internos
dos Estados. 8. Princípio da igualdade soberana dos Estados. 9. Princípio do dever de cooperação
internacional. 10. Princípio do pacta sunt servanda.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 73

Da análise dos efetuada, cita-se a Diretiva 2006/118/CE do Parlamento Europeu


e do Conselho, de 12.12.2006, sobre a Proteção das Águas Subterrâneas contra a
Poluição e a Deterioração, que trata da necessidade de os Estados-Membros que par-
tilhem massas de águas subterrâneas de coordenarem as suas atividades, no sentido
da monitorização e identificação das substâncias perigosas relevantes.48 Tal Diretiva
fixa medidas específicas para impedir e controlar a poluição das águas subterrâneas,
contexto não previsto no Acordo do SAG.
O Acordo do SAG dispõe ainda sobre a importância da troca de informações
técnicas, acadêmicas, jurídicas ou políticas sobre as águas do Aquífero (art. 8º).
A relevância desse intercâmbio foi registrada na Carta de São Paulo, resultado da
Conferência Internacional A Gestão do Sistema Aquífero Guarani. Um exemplo de
cooperação, que exortou a necessidade de um sistema de informações e dados do
Aquífero, em ambiente WEB-Portal, descentralizado e acessível, para permitir o avanço
do conhecimento e a melhor gestão dos recursos hídricos.
A Comissão do SAG (art. 15) seria a sede para a realização desse intercâmbio,
em um sistema de informações via web sobre dados referente ao Aquífero Guarani.
A referida Conferência, realizada em setembro de 2011, foi promovida pelo Centro de
Pesquisas de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo, Secretaria do Meio
Ambiente do Estado de São Paulo, em conjunto com as universidades britânicas de
Surrey e Dundee. Reuniram-se para o evento técnicos, pesquisadores e profissionais
de diversas áreas, caracterizando a articulação de stakeholders49 no processo de
governança pós-Acordo do SAG.
Os arts. 9º, 10 e 11 complementam o anterior e se completam. A redação do
artigo 9º sugere a precaução das Partes diante da instalação de novo empreendimento
que possa afetar o SAG para além das fronteiras nacionais. A Parte que obtiver in-
formações e/ou suspeitar que a outra Parte está causando, ou está prestes a causar
danos significativos em seu território, poderá solicitar mais informações, dados técnicos
detalhados e uma Avaliação de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da atividade ou obra
projetada que possa estar causando o prejuízo.
O art. 11 estabelece o procedimento a ser adotado diante de um quadro de
prejuízo, assim considerado pelo Estado que questiona a obra ou a atividade do
território da Parte vizinha. Nesse caso, as Partes envolvidas analisarão, em conjunto,
48
Directiva 2006/118/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006, relativa à
proteção das águas subterrâneas contra a poluição e a deterioração. Jornal Oficial da União Europeia.
49
Stakeholder é uma pessoa ou grupo que possui participação, investimento ou ações com interesse em
uma determinada empresa ou negócio. O inglês stake significa interesse, participação, risco; enquanto
holder significa aquele que possui.
74 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

a exposição fundamentada do prejuízo para chegar a uma solução equitativa sobre a


questão, com base na boa-fé. O dispositivo dispõe que o empreendimento deverá ser
paralisado até a conclusão dos estudos e negociações para resolver o impasse. Em
situações de obra nova, ela não deve ser iniciada. Essa regra dá ensejo à aplicação
do Princípio da Precaução, embora não se mencione expressamente.
A razão da inclusão desse dispositivo poderia explicitar a controvérsia entre o
Uruguai e Argentina sobre a instalação, no território Uruguai, de fábricas de celulose às
margens do Rio Uruguai.50 A literatura de Francesco Sindico instiga o leitor a analisar
se o mencionado caso afetou ou não a elaboração do Acordo. No entanto, afirma que
o impasse não ajudou no desenrolar das negociações.51
O intercâmbio de experiências de gestão e de informações técnicas/científicas
na promoção de projetos comuns é objeto do art. 12. Projetos como de educação am-
biental, de capacitação e outros devem ser implementados para a concreta proteção do
SAG e seu uso sustentável e devem ter como premissa o envolvimento da sociedade
desde a sua formulação. Nessa linha, o item 10, alínea “d”, da Declaração de Santa
Cruz de La Sierra, assinada em dezembro de 1996 pelos Governos participantes da
Cúpula das Américas sobre desenvolvimento sustentável, assinala o compromisso de
promover a participação pública em suas ações e decisões. A ampla participação tem
sido um forte elemento para a proteção do meio ambiente e é recurso indispensável à
governança, conforme já ressaltado.
A cooperação entre países do SAG é novamente citada nos arts. 13 e 14. O
artigo 13 dispõe que a cooperação entre as Partes deverá desenvolver-se sem prejuízo
dos projetos e empreendimentos que decidam executar em seus respectivos territórios,
de conformidade com o direito internacional. Vale ressaltar o conteúdo do artigo 5º do
Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercosul, que a considerou pressuposto para
o cumprimento de acordos internacionais que contemplem matéria ambiental.
O dever de cooperar também está previsto no art. 14: as Partes cooperarão na
identificação de áreas críticas, especialmente em zonas fronteiriças que demandem
medidas de tratamento específico. O dispositivo não faz menção expressa às áreas
onde há poços, ou áreas de afloramento localizadas na fronteira. Pilar Villar pondera
que as zonas de recarga poderiam entrar nessa categoria, contudo, o seu foco parece
ser a identificação de áreas que exijam medidas de restrição ou controle, e não o de-
senho de uma política baseada na precaução ou prevenção. As áreas de afloramento
50
Ver PAKKASVIRTA, Jussi. Fábricas de celulosa: historias de la globalización. 1. ed. Buenos Aires: La
Colmena, 2010.
51
SINDICO, Francesco. The Guarani Aquifer System and the International Law of Transboundary Aquifers.
International Community Law Review
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 75

mereciam destaque no Acordo, pois são locais onde ocorre a recarga e são também
o ambiente de exploração das águas.

5. A COMISSÃO DO SAG

O art. 15 do Acordo do SAG merece especial atenção, haja vista ser um dos
próximos desafios na proteção das águas do SAG, pois estabelece uma Comissão
integrada pelas quatro Partes, que coordenará a cooperação para o cumprimento dos
princípios e objetivos do Acordo. Trata-se da constituição de uma entidade para con-
cretizar a cooperação entre os países com relação ao SAG. Essa importante proposta
no âmbito do Tratado da Bacia do Prata determina que as Partes poderão concluir
outros acordos destinados à consecução dos objetivos gerais de desenvolvimento da
Bacia platina, conforme o artigo VI.52
Considera-se tal institucionalização um dos principais desafios da gestão in-
tegrada sustentável do SAG. A busca pela concretização e efetividade da Comissão
é essencial. A sua atuação deve obedecer aos princípios contidos nas premissas do
Acordo, como a boa-fé, a precaução, a prevenção, o intercâmbio de informação, o de-
senvolvimento sustentável, o uso equitativo dos recursos naturais, a responsabilidade
internacional e a cooperação.
Nas palavras de Pilar Villar:

Essa instituição poderia assumir um papel de liderança na identi-


ficação de novas linhas de pesquisa sobre o aquífero; na reunião
do conhecimento gerado; na uniformização de determinados
critérios técnicos legais, como, por exemplo, a delimitação dos
perímetros de proteção de poços, critérios para outorga; informa-
ções que devem constar no cadastro de usuários, entre outros;
na manutenção e coordenação de um sistema de informações;
ou ainda incentivar programas de educação ambiental sobre as
águas subterrâneas.53

A autora expressa ainda a preocupação de que a comissão leve anos para


ser instaurada e tenha um papel apenas burocrático. Embora essa perspectiva possa
refletir a realidade, deve-se buscar enfrentar os desafios postos. É necessária para
isso a atuação em governança, que pressupõe o compromisso de articulação com a
52
Tratado da Bacia do Prata: Artigo 6º O estabelecido no presente Tratado não impedirá as Partes
Contratantes de concluir acordos específicos ou parciais, bilaterais ou multilaterais, destinados à
consecução dos objetivos gerais de desenvolvimento da Bacia.
53
VILLAR, op. cit., p. 245.
76 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

sociedade, capacidade de consenso entre os envolvidos, mediação dos diferentes


interesses e habilidade de resposta.
Registra-se que o Acordo indica as responsabilidades da comissão em im-
plementar o planejamento para a gestão compartilhada do Aquífero Guarani. Essas
responsabilidades serão objeto de um Estatuto e do regimento da comissão do SAG,
mas, de forma genérica, podem ser visualizadas nos artigos 16, 17, 18 e 19 do Acordo.
O art. 16 prevê que os desentendimentos entre as Partes, relativos à interpre-
tação ou aplicação do presente Acordo serão solucionados mediante negociações
diretas, que serão informadas à Comissão.
Os artigos 17 e 18 do Acordo preveem sobre a intervenção da Comissão em
caso de não solução para a controvérsia. Há entendimento de que a Corte Internacional
de Justiça (CIJ) seria o fórum apropriado para resolver disputas sobre o SAG:

Além de um processo de resolução de disputas bem articulado,


cuja autoridade todas as partes reconhecem, o processo deve
ser implementado por um órgão que comanda o respeito e a
lealdade de todas as partes, e suas decisões devem ter a força
de ligação internacional Lei. Com base em seu histórico de
efetivamente adjudicar disputas transfronteiriças.54

A Comissão do SAG poderá, dessa forma, elaborar recomendação quando


solicitada pelas Partes a se manifestar, no caso de negociações diretas sem êxito.
Trata-se de um aconselhamento para ajudar os Estados a encontrarem uma solução
diplomática. Por outro lado, diante de um quadro de controvérsia não resolvida, as
Partes poderão recorrer ao procedimento arbitral informando tal decisão à Comissão.
O procedimento arbitral deverá ser estabelecido pelas Partes em protocolo adicional
ao Acordo do SAG (artigo 19).
Assim, a regulamentação da Comissão prevista no artigo 15 é condição sine
qua non para que as premissas do Acordo e a gestão integrada do SAG se tornem
efetivas. Ademais, a atuação da comissão poderá elucidar algumas dúvidas e lacunas
contidas no Acordo tais como:
1. Não se estabeleceram regras para a arbitragem em caso de disputas ou
conflitos pelo uso das águas subterrâneas do Guarani. Assim, o Acordo carece da
regulamentação do procedimento arbitral. Ainda nesse contexto, para que o CIJ tenha
54
CASSUTO, David N.; SAMPAIO, Romulo S. R. Hard, soft & uncertain: the Guarani Aquifer and the
challenges of transboundary groundwater. Pace Law Faculty Publications School of Law, 24 Colo. J.
Int’l Envtl. L. & Pol’y 1. 2013. Disponível em: http://digitalcommons.pace.edu/lawfaculty/868/. Acesso
em: jan. 2019.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 77

jurisdição sobre os signatários do acordo, essa jurisdição deve ser efetivamente inserida
no contrato.
2. Percebeu-se que o Acordo não utiliza a expressão “águas subterrâneas”,
largamente utilizada em Tratados dessa natureza. O termo adotado “sistema aquífero
guarani”, não deixa claro se o bem transfronteiriço/partilhado (objeto desse Acordo) é
a água em si ou também os outros recursos que se encontram dentro dos limites do
aquífero. Ademais, questiona-se se as áreas em torno da recarga e descarga do aquífero
seriam também sujeitas às disposições do Acordo, já que aquífero significa a formação
geológica. Essa observação se articula com a notada falta de glossário aplicável ao
Acordo, que contribuiria para esclarecer procedimentos para a gestão a ser realizada.
3. Constatou-se que o Acordo não cita o SISAG - Sistema de Informação do
SAG, importante ferramenta de atualização de informações para a gestão sustentável
e participativa do SAG.
4. Verificou-se que os povos originários não foram mencionados. Algumas
províncias da Argentina, onde o SAG está confinado - Corrientes, Chaco, Formosa e
Misiones -, são habitadas por povos indígenas, portadores de sua visão de mundo,55
fato que poderia ensejar a posição do Acordo com relação a tais comunidades.
5. Embora na Política Hídrica dos países do SAG se considere o uso prioritário
de água para o consumo humano, inexiste no Acordo a indicação de preferência em
caso de crise hídrica.
6. O Acordo não concebe as áreas de afloramento nem os pontos de conexão
hidráulica das águas do SAG com as águas superficiais.
7. Não há previsão sobre a responsabilidade das Partes em casos de desastres
ambientais que possam atingir o SAG e provocar a degradação de suas águas.
A Comissão poderia contribuir para sanar tais lacunas.
Destaca-se ainda a responsabilidade do Brasil em ser o fiel depositário do
Acordo, já que mais de 60% das águas subterrâneas do Guarani estão localizadas
no território do país. É em seu território que se encontra a maior quantidade de poços
para a captação das águas do aquífero. O Brasil assinou o Acordo, que foi ratificado
em 2017 com a edição do Decreto Legislativo nº 52/2017.
O Uruguai, empenhado na criação do Acordo do SAG, foi o primeiro país
a ratificá-lo com a edição da Lei 18.913, de 22.06.2012. Em seguida, foi a vez da
Argentina, por meio do Decreto 2.218/2012 e da Lei 26.780, sancionada em 31.10.2012.
No Paraguai, em 13.06.2012, a Câmara de Senadores do Congresso Nacional
encaminhou à Câmara dos Deputados a Mensagem nº 1.489, com o Projeto de Lei
55
APESTEGUÍA, G. J. El principio de la soberanía estatal en el Acuerdo sobre el Acuífero Guaraní:
problemas jurídicos particulares de la Argentina. Boletín Geológico y Minero, v. 123, n. 3, 2012. Disponível
em: http://www.igme.es/Boletin/2012/123_3/6_ARTICULO%202.pdf. Acesso em: fev. 2017.
78 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

que aprova o Acordo do Aquífero Guarani. Em 14.08.2012, a Comissão de Ecologia,


Recursos Naturais e Meio Ambiente da Câmara dos Deputados recomendou que esse
Projeto de Lei não fosse deferido. A Câmara dos Deputados acatou a recomendação em
30 de agosto de 2012. Apenas em 2018 que o Paraguai aprovou a Lei nº 6.037/2018, ra-
tificando o Acordo. Apesar de ter sido interiorizado por todos os Estados, o tratado ainda
não está em vigor, pois aguarda a entrega do instrumento de ratificação do Paraguai.

CONCLUSÕES

O tratado do SAG é um marco jurídico internacional específico e vinculante.


Contudo, sua consolidação ainda carece de um forte exercício de governança para
avançar no rumo a que se propôs e alcançar seus objetivos. A implantação das premis-
sas do Acordo vem a ser o próximo desafio no caminhar da gestão do SAG em direção
a um modelo institucional integrado e eficaz, com vistas à governança de suas águas.
Entende-se, a importância de se colocar na agenda política dos Países que
abrigam o Guarani a implantação da Comissão para salvaguardar o SAG diante de
incertezas futuras, a exemplo das mudanças climáticas. Nesse quadro, pretende-
-se argumentar em defesa da necessidade de criação de instituições eficientes que
ofereçam cooperação e fortaleçam compromissos internacionais a fim de garantir a
interdependência a longo prazo com relação ao uso das águas subterrâneas do Guarani.
Reconhece-se, para tanto, o papel da governança.
A governança é naturalmente um longo processo e, no caso do SAG, possibilitou
a cooperação em um cenário de interdependência dos envolvidos. É preciso avançar
e consolidar a gestão integrada com a atuação em consenso dos atores, nos variados
níveis. A Comissão do SAG deve se firmar no comprometimento de valores que refletem
a governança e assim arquitetar espaços de ressonância e participação social para o
alcance do desenvolvimento sustentável do Aquífero Guarani.
Ademais, para o movimento efetivo de governança no processo de gestão
integrada do SAG, importante considerar o envolvimento dos entes subnacionais.
A governança em nível regional e local é instrumento necessário para que haja
o conhecimento do uso e ocupação do solo na extensão do SAG e consequente
gestão sustentável desse recurso, pois os governos regionais, do ponto de vista da
proximidade e eficácia, são entes estratégicos e cruciais no âmbito de governo para
o desenvolvimento de políticas e concretização dos princípios do direito internacional
das águas subterrâneas transfronteiriças.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 79

REFERÊNCIAS

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O BEM AMBIENTAL ÁGUA: A LUTA CONTRA
A SUBVERSÃO POLÍTICA E ECONÔMICA PELA
PRIVATIZAÇÃO DESSE BEM DE USO COMUM DO POVO1

THE ENVIRONMENTAL WELL-BEING OF WATER:


THE FIGHT AGAINST POLITICAL AND ECONOMIC
SUBVERSION FOR THE PRIVATIZATION OF THIS
COMMON USE ASSET THAT BELONGS TO THE PEOPLE

EWERTON RICARDO MESSIAS2

GEILSON NUNES3

VALTER MOURA DO CARMO4

SUMÁRIO: Introdução - 1. A escassez da água potável de fácil acesso: um dos


grandes problemas ambientais mundiais - 2. Água: bem ambiental de uso comum
do povo - 3. A privatização da água e suas implicações - Considerações finais -
Referências.

RESUMO: O objetivo da presente pesquisa foi elucidar e discutir acerca da


privatização da água, entendida como um bem de uso comum do povo, indispensável à
saúde e à existência de uma vida digna de ser vivida, para as atuais e futuras gerações,
1
Data de recebimento do artigo: 08.01.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 30.01.2019 e 18.02.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 01.03.2019.
2
Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Marília - UNIMAR. Professor nos cursos de Gra-
duação em Direito e em Administração da Universidade de Marília - UNIMAR. E-mail: ewerton_messias@
hotmail.com.
3
Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Marília - UNIMAR. Professor no curso de Gra-
duação em Direito do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos em Araguari/MG.
4
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Mestre em Direito Constitucional
pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professor no Programa de Mestrado e Doutorado em Direito
da Universidade de Marília - UNIMAR.
82 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

revelando-se, portanto, como um direito fundamental, de acordo com uma interpretação


sistemática do art. 1º, inciso III, c/c o art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988.
Para atingir tal desiderato, inicialmente foi realizada uma pesquisa acerca da escassez
de água potável de fácil acesso; em seguida, procurou-se estabelecer uma linha de
raciocínio acerca do reconhecimento da água como um bem ambiental de uso comum do
povo; por fim, foi realizada uma análise acerca da privatização dos serviços de captação,
tratamento e fornecimento de água potável à população, visando verificar a possibilidade
legal e a forma mais eficiente para a sua realização. Para a obtenção dos resultados
almejados pela pesquisa, o método de abordagem seguido foi o empírico-dialético,
utilizando-se de pesquisa bibliográfica, legislativa e jurisprudencial, tendo como sistema
de referência a Law and Economics. Em conclusão, aponta-se que a água é um bem
ambiental, portanto, de uso comum do povo, cujo acesso é um direito fundamental,
sendo ela inalienável. Os serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de
água à população podem ser legalmente privatizados, sendo a forma mais eficiente a
privatização de tais serviços quando as fontes de água estiverem situadas distantes do
local de tratamento e abastecimento e/ou quando a água apresentar qualidade ruim.
PALAVRAS-CHAVE: água; dignidade da pessoa humana; direito fundamental;
meio ambiente; privatização.
ABSTRACT: The objective of this research was to elucidate and discuss about
the privatization of water, understood as a common use asset that belongs to the people,
essential to the health and the existence of a life worthy of being lived, for current and
future generations, revealing itself, therefore, as a fundamental right, according to a
systematic interpretation of art. 1, paragraph III, and art. 225, caput, of the Federal
Constitution of 1988. To achieve this goal, a survey about the scarcity of easy access
drinking water was initially conducted; then we tried to establish a line of reasoning about
the recognition of water as an environmental and common use asset that belongs to
the people; and, finally, an analysis was performed on the privatization of services of
catchment, treatment and supply of drinking water to the population, aiming to check
the legal possibility and the most efficient way to achieve it. To obtain the results desired
by the research, the approach method used was the empirical-dialectical one, using
bibliographical, legislative and jurisprudential research, taking as reference the system
of Law and Economics. The conclusion indicates that water is an environmental and,
therefore, common use asset that belongs to the people, whose access is a fundamental
right, since water is inalienable. The services of catchment, treatment and supply of water
to the population can be legally privatized, and the most efficient way is the privatization
of such services when water sources are located far from the treatment and supply site
and/or where the water presents a bad quality.
KEYWORDS: water; dignity of human person; fundamental right; environment;
privatization.
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 83

INTRODUÇÃO

A água potável de fácil acesso revela-se como um dos grandes problemas am-
bientais mundiais, juntamente com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.
O corpo humano possui como principal componente a água, a qual compõe cerca de
60% da sua estrutura total. Não é por outro motivo que a água revela-se indispensável
para existência de vida para o ser humano. No entanto, há que se explicitar que não se
está a abordar qualquer tipo de existência, mas sim a existência de uma vida digna de
ser vivida,5 em que o acesso à água potável de qualidade, bem de uso comum do povo,
possa ser garantido às presentes e futuras gerações, visando garantir a dignidade da
pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, por meio da solidarie-
dade intergeracional, nos termos de uma interpretação sistemática do contido no art.
1º, inciso III, no art. 3º, inciso I, e no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988.
Diante de tal realidade fático-jurídica, surge o problema relacionado ao tensiona-
mento entre privatização do uso da água e o direito fundamental de acesso equânime a
esse bem comum essencial, fonte primária de existência de uma vida digna de ser vivida.
Seria a água um bem inalienável? Sendo a água um bem inalienável, os serviços
públicos de captação, de tratamento e de abastecimento de água à população poderiam
ser legalmente privatizados? Podendo ser legalmente privatizados, qual a forma mais
eficiente a ser observada pelo Poder Público para a privatização?
Assim, no âmbito da presente pesquisa, inicialmente foi abordada a questão
da escassez da água potável como um dos grandes problemas ambientais mundiais.
Em seguida, tendo por base a teoria geral dos direitos fundamentais e o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no caput do art.
225 da Constituição federal de 1988, realizou-se um estudo sobre a possibilidade de
a água possuir natureza constitucional e legal de bem ambiental de uso comum.
Por fim, estabeleceu-se um debate acerca da possibilidade legal e da forma
mais eficiente para a realização da privatização dos serviços públicos de captação,
tratamento e abastecimento de água potável à população.
Quanto ao objetivo a ser alcançado, refere-se a construir um olhar crítico sobre a
água enquanto um bem ambiental de uso comum do povo, cujo acesso revela-se como
um direito fundamental, visando a promover conscientização social no sentido de evitar
5
Vida digna é aquela vivida com dignidade, sendo, a dignidade, entendida como um fim material, um
objetivo, “[...] que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens” (saúde, segurança, meio
ambiente ecologicamente equilibrado, educação, entre outros) “[...] que fazem com que a vida seja
‘digna’ de ser vivida” (FLORES, 2009, p. 37).
84 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

uma subversão política e econômica da privatização dos serviços públicos de captação,


tratamento e abastecimento de água potável à população, que possa colocar em risco
o direito fundamental de acesso dos seres humanos às fontes de água potável limpa.
Para a obtenção dos resultados almejados pela pesquisa, o método de aborda-
gem a ser seguido será o empírico-dialético, utilizando-se das pesquisas bibliográfica,
legislativa e jurisprudencial, tendo como sistema de referência a Law and Economics,
de Richard A. Posner.6
A despeito da suma importância da matéria abordada, o tema ainda carece de
pesquisa aprofundada sob o prisma que ora se pretende focalizar, lacuna esta que,
ao ser preenchida, certamente trará auxílio doutrinário ao intérprete e ao aplicador do
Direito, contribuindo para que as normas jurídicas infraconstitucionais, relacionadas
a tal temática, possam ser aplicadas de forma mais eficaz e em consonância com as
normas constitucionais e infraconstitucionais.

1. A ESCASSEZ DA ÁGUA POTÁVEL DE FÁCIL ACESSO: UM DOS GRANDES


PROBLEMAS AMBIENTAIS MUNDIAIS

Com o crescimento industrial, houve avanços científicos e tecnológicos que


resultaram em uma alteração de comportamento econômico, social e ambiental, pois
a sociedade passou a não encontrar limites de contentamento, encontrando-se em um
ritmo acelerado de consumismo global, o qual, aliado à crescente busca pelo lucro,
6
The economic analysis of law, as it now exists not only in the United States but also in Europe, which has
its own flourishing law and economics association, has both positive (that is, descriptive) and normative
aspects. It tries to explain and predict the behavior of participants in and persons regulated by the law.
It also tries to improve law by pointing out respects in which existing or proposed laws have unintended
or undesirable consequences, whether on economic efficiency, or the distribution of income and wealth,
or other values. It is not merely an ivory-towered enterprise, at least in the United States, where the
law and economics movement is understood to have influenced legal reform in a number of important
areas. [...] Economic analysis of law is generally considered the most significant development in legal
thought in the United States since legal realism petered out a half century ago. (POSNER, 1998, p. 2).
A análise econômica do direito, como atualmente existe não só nos Estados Unidos, mas também na
Europa, que tem a sua própria associação de direito e economia florescente, tem aspectos positivos
(que é descritivo) e aspectos normativos. Ela tenta explicar e prever o comportamento dos participantes
e pessoas reguladas pela lei. Ela também tenta melhorar a aplicação da lei por chamar a atenção para
aspectos em que as leis existentes ou propostas têm consequências não intencionais ou indesejáveis,
quer sobre a eficiência econômica ou a distribuição do rendimento e da riqueza, ou outros valores. Ela
não é uma simples empresa de marfim, pelo menos nos Estados Unidos, onde o movimento de direito
e economia é entendido por ter influenciado a reforma jurídica num certo número de áreas importantes.
[...] Análise econômica do direito é geralmente considerada o desenvolvimento mais significativo no
pensamento jurídico nos Estados Unidos desde o desaparecimento do realismo jurídico há meio século
(tradução nossa).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 85

levada a efeito pelas empresas, desconsiderando-se qualquer contexto social, contri-


buiu sobremaneira para a instalação de uma verdadeira desordem ou caos ambiental.
Aqui, importante esclarecer que o caos é caracterizado pelo distanciamento da ordem-
-desordem ou do equilíbrio-desequilíbrio, assim, o caos ambiental é caracterizado pelo
desequilíbrio ambiental.
A ideia de desenvolvimento econômico, baseada na possibilidade da expansão
do padrão de consumo dos países altamente industrializados para os do chamado
Terceiro Mundo, delimitou o campo de visão dos economistas, os quais:

[...] passaram a dedicar o melhor de sua imaginação a conceber


complexos esquemas do processo de acumulação de capital
no qual o impulso dinâmico é dado pelo progresso tecnológico,
enteléquia concebida fora de qualquer contexto social. Pouca
ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano
cultural, de um crescimento exponencial do estoque de capital.
As grandes metrópoles modernas, com seu ar irrespirável, cres-
cente criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da
juventude na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho
de progresso linear em que se embalavam os teóricos do cres-
cimento. Menos atenção ainda se havia dado ao impacto sobre
o meio físico de um sistema de decisões cujos objetivos últimos
são satisfazer interesses privados. Daí a irritação causada entre
muitos economistas pelo estudo The limits to growth, preparado
por um grupo interdisciplinar, no MIT, para o chamado Clube de
Roma (FURTADO, 1996, p. 9).

Em abril de 1968, na cidade de Roma, o industrial italiano Aurelio Peccei e o


cientista escocês Alexander King resolveram convidar um grupo internacional de pro-
fissionais das áreas de diplomacia, indústria, academia e sociedade civil, para discutir
o dilema do pensamento de curto prazo, prevalecente nas relações internacionais da
época. O foco principal das discussões envolvia as preocupações sobre o consumo de
recursos, até então tidos como ilimitados, em um mundo cada vez mais interdependente,
do ponto de vista dos componentes econômico, político, natural e social, que formavam
o sistema global. Nesse contexto, nasceu o Clube de Roma (THE STORY OF THE
CLUB OF ROME), uma das mais destacadas organizações não governamentais na
formação da consciência ambiental.
Nessa reunião, cada participante se comprometeu a se dedicar, no ano seguinte,
à sensibilização de líderes mundiais e aos principais tomadores de decisão sobre as
questões cruciais globais do futuro. Surgiu, então, uma nova e original abordagem,
86 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

baseada nas consequências de longo prazo da crescente interdependência global e


na necessidade da aplicação de sistemas de pensamento, a fim de entender como
e por que isso estava acontecendo e, assim, promover novas iniciativas e planos de
ação, adequados à resolução dos grandes e complexos problemas que desafiavam a
humanidade e não mais podiam ser superados pelo modelo tradicional (THE STORY
OF THE CLUB OF ROME).
Dada a originalidade dessa nova abordagem, o grupo cresceu em número de
adeptos e ganhou reputação mundial com a publicação do Relatório The Limits to Growth
- Os Limites do Crescimento -, encomendado pelo Clube de Roma ao Massachusetts
Institute of Technology - MIT (THE STORY OF THE CLUB OF ROME), o qual foi ela-
borado pela equipe de cientistas composta por Donella H. Prados, Dennis L. Prados,
Jorgen Randers e William W. Behrens III, que examinaram os cinco fatores básicos
que determinavam e, por conseguinte, em última análise, limitavam o crescimento no
planeta Terra, sendo eles a população, a produção agrícola, os recursos naturais, a
produção industrial e a poluição (THE STORY OF THE CLUB OF ROME).
O Relatório explorou uma série de cenários, de forma a demonstrar a contradição
do crescimento ilimitado e irrestrito no consumo de recursos naturais não renováveis,
num mundo finito de tais recursos. Segundo Celso Furtado, para elaboração do referido
relatório:

[...] os autores do estudo formularam-se a seguinte questão: que


acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão
sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente
a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos
ricos chegarem efetivamente a universalizar-se? (grifo no origi-
nal) (FURTADO, 1996, p. 12).

Após várias pesquisas, o relatório destacou as escolhas abertas à sociedade


para o enfrentamento de tal questão, visando conciliar progresso sustentável dentro
das restrições ambientais (THE STORY OF THE CLUB OF ROME). São elas:

1. Se as atuais tendências de crescimento da população


mundial - industrialização, poluição, produção de alimentos e
diminuição dos recursos naturais - continuarem imutáveis, os
limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum
dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável
é um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto
da capacidade industrial.
2. É possível modificar estas tendências de crescimento e for-
mar uma condição de estabilidade ecológica e econômica que
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 87

se possa manter até um futuro remoto. O estado de equilíbrio


global poderá ser planejado de tal modo que as necessidades
materiais básicas de cada pessoa na terra sejam satisfeitas
e que cada pessoa tenha igual oportunidade de realizar seu
potencial humano individual.
3. Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter
este segundo resultado, em vez de lutar pelo primeiro, quanto
mais cedo ela começar a trabalhar para alcançá-lo, maiores
serão suas possibilidades de êxito (MEADOWS; MEADOWS;
RANDERS, 1973, p. 20).

Um resumo acerca de tais questões abertas foi apresentado por Celso Furtado,
para quem a resposta à pergunta formulada:

[...] é clara, sem ambiguidades [sic]: se tal acontecesse, a


pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio
ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do
controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico
mundial entraria necessariamente em colapso (FURTADO,
1996, p. 12).

O Clube de Roma, por meio do Relatório The Limits to Growth, trouxe a questão
ambiental para o topo da agenda global (FURTADO, 1996, p. 12). O aumento expres-
sivo da exploração dos recursos naturais não renováveis e a geração, sem controle
adequado, de resíduos sólidos, efluentes líquidos e emissões gasosas, provenientes
das indústrias e residências, redundaram no caos ambiental,7 o qual, dentre outros
resultados nefastos ao equilíbrio ambiental, vem causando a escassez de água potável
de fácil acesso.
Com relação à questão da escassez de água potável de fácil acesso, importante
salientar que o planeta Terra possui cerca de 1,6 bilhões de km3 de água, dos quais
aproximadamente 1,35 bilhões de km3 é de água salgada, 29 milhões de km3 são de
água doce congelada nas geleiras e calotas, 8,6 milhões de km3 são de água doce nos
continentes e sob eles, e 13 mil km3 estão na forma de vapor de água na atmosfera
(ALMEIDA JÚNIOR; HERNANDEZ, 2001, p. 3).
Assim, 75% da superfície da terra é coberta por água. No entanto, 97,5% da
água existente na terra é salgada; 2,5% se encontram nas calotas polares, as quais são
7
Nesse sentido, Ewerton Ricardo Messias e Valter Moura do Carmo dissertam que: “A pós-modernidade,
fortemente marcada pela exploração desregrada dos recursos naturais não renováveis, pelo descarte
inadequado de resíduos sólidos, pela emissão desenfreada de efluentes líquidos sem tratamento e
pela alta emissão de gases de efeito estufa, é caracterizada pelo desequilíbrio ambiental, ou seja, pelo
caos ambiental” (MESSIAS; CARMO, 2018, p. 271).
88 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

consideradas as reservas mais puras do planeta, porém sua exploração não é viável;
0,7% encontra-se nos lençóis subterrâneos; e apenas 0,007% da água existente no
planeta está nos rios e lagos (ALMEIDA JÚNIOR; HERNANDEZ, 2001, p. 3).
Com as alterações no clima a provocar um grande desequilíbrio na distribuição
das chuvas, a capacidade dos ecossistemas em recompor suas reservas tem sido
prejudicada, de forma a refletir um distanciamento do equilíbrio ambiental, revelando
um estado de caos ambiental. Com isso, cresce o risco de aumentar a desertificação
no mundo, enquanto regiões tradicionalmente ricas para a agricultura, como o Brasil,
não conseguem mais manter uma produção estável.
No Brasil, a divisão da água ainda é desigual em relação aos usos e às res-
ponsabilidades de cada setor. A agricultura fica com cerca de 70% da água captada
em mananciais, usada muitas vezes sem o devido cuidado em relação às técnicas
de irrigação, além de deixar escorrer novamente para os cursos d’água uma grande
quantidade de produtos utilizados, como fertilizantes e defensivos agrícolas. Na verdade,
venenos que precisarão ser retirados, em seu próximo uso, em estações de tratamento
que vão enviar água encanada às residências e indústrias.
A escassez de água no mundo é agravada pela desigualdade social e pela falta
de manejo e usos sustentáveis dos recursos naturais. Segundo o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF) “[...] pelo menos 11% da população mundial, corres-
pondente a 783 milhões de pessoas, continua a não ter acesso à água potável segura,
e milhares de milhões de pessoas continuam sem ter acesso a meios de saneamento”
(BRASIL, UNICEF, 2012). De acordo com a UNICEF, “dos 783 milhões de pessoas
no mundo sem acesso à água potável melhorada, 119 milhões vivem na China; 97
milhões, na Índia; 66 milhões, na Nigéria; 36 milhões, na República Democrática do
Congo; e 15 milhões, no Paquistão” (BRASIL, UNICEF, 2013).
As diferenças registradas entre os países desenvolvidos e os em desenvolvi-
mento demonstram que a crise mundial dos recursos hídricos está diretamente ligada
às desigualdades sociais, ou seja, ao distanciamento do equilíbrio social, revelando,
novamente, um estado de caos. Há regiões com índices críticos de disponibilidade
d’água, “[...] como nos países do Continente Africano, onde a média de consumo de
água por pessoa é de dezenove metros cúbicos/dia, ou de dez a quinze litros/pessoa”
(COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO, [2007?]). Por outro lado,
“[...] em Nova York, há um consumo exagerado de água doce tratada e potável, onde
um cidadão chega a gastar dois mil litros/dia” (COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO
DE SÃO PAULO, [2007?]). A UNICEF alerta que:
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 89

Apesar de atualmente 87% da população mundial (quase 5,9


bilhões de pessoas) ter acesso a uma fonte melhorada de água
potável, o risco de poluição da água continua, muitas vezes
devido a fatores ambientais, como a crescente urbanização,
industrialização e problemas de saneamento. Além disso, a
qualidade da água potável muitas vezes diminui significativa-
mente após a coleta de uma fonte melhorada, especialmente
em ambientes de renda baixa, onde as fontes de água podem
ser distantes das residências (BRASIL, UNICEF, 2010).

Na pós-modernidade,8 a exploração dos recursos naturais, o descarte de resí-


duos sólidos e a emissão de efluentes líquidos sem limites científicos aptos a evitar o
esgotamento dos recursos naturais e a poluição, ou seja, sem limites científicos aptos
a garantir o equilíbrio ambiental, gerou uma situação fática de desequilíbrio ambiental
revelada, dentre outras, na escassez de água potável de fácil acesso.
A manutenção desse comportamento pelos seres humanos, somada à desigual-
dade social - distanciamento do equilíbrio social -, foi aumentando a distância entre
o atendimento das necessidades humanas e o equilíbrio ambiental, de forma a gerar
uma situação de caos ambiental.

2. ÁGUA: BEM AMBIENTAL DE USO COMUM DO POVO

Juntamente com os fundamentos e os objetivos da República Federativa do


Brasil, os direitos fundamentais representam o alicerce do constitucionalismo pós-
-moderno, conforme interpretação sistemática do contido, respectivamente, no art. 1º,
incisos e parágrafo único; art. 3º e incisos; e art. 5º, incisos e § 2º, todos da Consti-
tuição Federal de 1988. Em relação aos direitos fundamentais, José Joaquim Gomes
Canotilho assevera que:
Não basta uma qualquer positivação. É necessário assinalar-
-lhes a dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar
cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem
esta positivação jurídica, os “direitos do homem são esperanças,
aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica
política”, mas não direitos protegidos sob a forma de normas
(regras e princípios) de direito constitucional (CANOTILHO,
2010, p. 377).
8
Segundo Valter Moura do Carmo e Ewerton Ricardo Messias: “Tal período, denominado como pós-
-modernidade, é caracterizado pela socialização e pela constitucionalização do Direito, assumindo,
a principiologia constitucional, o lugar antes ocupado pelo positivismo jurídico, representado pelas
codificações” (CARMO; MESSIAS, 2017, p. 191).
90 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Na mesma ótica, Dimoulis e Martins (2012, p. 39-40) dissertam que a acepção


“direitos fundamentais” decorre de tratar-se de direitos garantidos pela Constituição e
por regrarem a organização político-social do Estado, enquanto instituição. E acres-
centam que o teor genérico e abstrato possibilita uma abrangência maior de direitos,
que se propagam dentre vários campos, em virtude de seu caráter principiológico
(SARLET, 2001, p. 29).
Neste momento faz-se necessário conhecer o denominado conceito semântico,
cujo ponto de início é a diferenciação entre norma e enunciado normativo. Tal conceito
foi elaborado por Robert Alexy, o qual conceituou a norma como sendo o significado
de um enunciado normativo. Portanto, uma norma pode decorrer de inúmeros, de um
ou de nenhum (exemplo é a norma decorrente de um semáforo) enunciado normativo
(ALEXY, 2008, p. 53-54). Norma jurídica é gênero do qual derivam as espécies regras e
princípios. Para Robert Alexy a “[...] distinção entre regras e princípios é uma distinção
qualitativa, e não uma distinção de grau” (ALEXY, 2008, p. 90), sendo que “[...] o ponto
decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são mandados de
otimização, enquanto que as regras têm o caráter de mandados definitivos” (ALEXY,
1997, p. 162). Ao reconhecer o alto grau de abstração dos princípios, Alexy afirma
que, em um caso concreto, diante do conflito da proibição trazida por um princípio
com a permissão trazida por outro, o que ocorrerá é que um princípio cederá ao outro,
situação que pode se inverter em outro caso fático, sob condições diferentes (ALEXY,
2008, p. 93-94). Por outro lado, reconhecendo o relativo grau de abstração das regras,
Robert Alexy observa que, no caso concreto, diante de duas regras com consequências
jurídicas contraditórias, uma deverá ser declarada inválida (ALEXY, 2008, p. 92). As
regras excluem-se, assim, em situações em que aparentemente possa ser aplicada
mais de uma regra, ou seja, em eventuais conflitos entre regras, a solução dar-se-á
mediante exclusão de uma em detrimento da outra, de forma que uma revelar-se-á
como válida e a outra como nula.
Os princípios de direitos fundamentais representam o “[...] mínimo de direitos
garantidos, podendo o legislador ordinário acrescentar outros, mas não tendo a possibili-
dade de abolir os tidos como fundamentais” (DIMOULIS; MARTINS, 2009, p. 119). Por tal
motivo, o Estado deve garantir sua efetivação nas interações entre particulares e entre
esses e o próprio o Estado, gerando esferas de proteção, prestação e intervenção, que
garantam a existência de uma vida digna de ser vivida. Desse modo, pode-se afirmar
que tais direitos são característicos do sistema democrático de direito, pois limitam a
ação dos cidadãos e do próprio Estado, os quais, diante da sua existência, não podem
gerar nenhuma ação voltada inteiramente à sua inobservância (MORAES, 2001, p. 56).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 91

Afirma-se isso pois podem ocorrer os chamados conflitos entre princípios de direitos
fundamentais, ocasião em que um particular ou o próprio Estado adota uma conduta,
visando garantir a fruição de um determinado direito fundamental, a qual se conflita
com outro direito fundamental que, igualmente, tenha que ter sua fruição garantida.
Nesses casos, diante de conflitos entre direitos fundamentais:

[...] um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo,
nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem
que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na
verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência
em face do outro sob determinadas condições. Sob outras con-
dições a questão da precedência pode ser resolvida de forma
oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos
casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os
princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre
regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões
entre princípios - visto que só princípios válidos podem colidir
- ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso
(ALEXY, 2008, p. 93-94).

Para garantir a relação de proporcionalidade entre a relativização de um direito


fundamental e a preponderância de outro, o juízo de proporcionalidade deve calcar-se
nos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A
adequação e a necessidade referem-se, respectivamente, à escolha de meios ade-
quados e menos gravosos para uma máxima realização dos princípios fundamentais
em conflito no caso fático (ALEXY, 2008, p. 588 e 590). A proporcionalidade em sentido
estrito refere-se à realização de uma análise comparativa no caso fático, visando à
manutenção do equilíbrio “[...] entre os meios utilizados e os fins colimados, no sentido
do que para muitos tem sido também chamado de razoabilidade ou justa medida, já que
mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional” (SARLET;
MACHADO; FENSTERSEIFER, 2015, p. 39).
Os direitos fundamentais possuem, portanto, caráter principiológico e se en-
contram positivados na Constituição Federal de 1988, caracterizando-se como direitos
naturais do indivíduo, sendo, assim, considerados inalienáveis dentro da ordem cons-
titucional de um Estado Democrático de Direito (CANOTILHO, 2003, p. 378). Dado o
seu caráter principiológico, os direitos fundamentais estão sujeitos a um mandado de
otimização, o que os diferencia de outras normas constitucionais. Assim, essas normas
ordenam que algo se realize na maior medida possível de acordo com as possibilida-
des fáticas e jurídicas. Nesse sentido, Sarlet (2001, p. 29) esclarece que, por estarem
92 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

sujeitos a esse mandado de otimização, a Constituição impõe aos órgãos estatais a


tarefa de dar máxima eficácia aos direitos fundamentais. Um dos instrumentos para
alcançar essa maximização é exatamente a regra de aplicação imediata, disposta no
art. 5º, § 1º, da Constituição Federal.9 Entretanto, apesar da aplicabilidade imediata
ser regra, ela comporta duas exceções. A primeira surge quando a própria Constituição
remete à concretização do direito fundamental ao legislador, quando diz que ele será
exercido na forma estabelecida pela lei. A segunda é evidenciada quando a norma de
direito fundamental não contiver os elementos mínimos que assegurem sua aplicabi-
lidade, sendo necessária a interpretação a ser realizada pelo Poder Judiciário para
garantir a sua efetivação (SARLET, 2012, p. 264).
Na esfera da dogmática jurídica, o conceito que pode ser projetado para os direi-
tos fundamentais, de acordo com as definições de Dimoulis e Martins (2012, p. 40-41),
é o de serem direitos públicos e subjetivos que servem de fundamento para a “ordem
constitucional objetiva” e estão contidos no texto da Constituição.
Delinear, com exatidão, toda a profundidade acerca do que sejam direitos funda-
mentais demanda extrema cautela, dada a sua característica principiológica e, portanto,
abstrata, conforme acima explanado. Contudo, interessantes são as considerações de
Ferrajoli (2011, p. 9) acerca de tal conceituação, para quem:

São “direitos fundamentais” todos aqueles direitos subjetivos


que dizem respeito universalmente a todos os seres humanos
enquanto dotados do status de pessoa, ou de cidadão ou de
pessoa capaz de agir.

No âmbito internacional, em virtude da indispensabilidade da água para exis-


tência de vida e das sociedades no planeta Terra, o direito dos seres humanos a terem
acesso à água passou a ser objeto de estudos na área da ciência do Direito. Em um
desses estudos, Maria Lúcia Navarro Lins Brzezinski, ao analisar a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, afirma que “[...] o direito humano à água poderia ser
deduzido a partir do art. 25, I, da Declaração Universal dos Direitos Humanos;10 do
9
Título II - Direitos e garantias fundamentais. Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos.
Art. 5º, § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata
(BRASIL, 1988).
10
Prevê que: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família,
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.” (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 11).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 93

art. 6º, parágrafo 1º, do Pacto de Direitos Civis e Políticos11; e dos artigos 11 e 12 do
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” 12 (BRZEZINSKI, 2012, p. 62-63).
O Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado no Brasil e entrou
em vigor a partir da publicação do Decreto nº 591/1992; e o Pacto de Direitos Civis e
Políticos foi ratificado e entrou em vigor a partir da publicação do Decreto nº 592/1992.
No entanto, no âmbito internacional, o direito do ser humano de ter acesso à
água potável limpa somente foi previsto de forma expressa em documento internacional
com a aprovação da Resolução A/64/292, de 3 de agosto de 2010, pela Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Pela primeira vez, o direito de
acesso à água potável limpa e ao saneamento são expressamente reconhecidos como
essenciais para a concretização de todos os direitos humanos. Em seus itens 1 e 2,
a referida Resolução apela aos Estados e às organizações internacionais para que
adotem providências para disponibilizar recursos financeiros que contribuam para o
desenvolvimento de capacidades e transfiram tecnologias, de modo a ajudar os países

11
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em sua Parte III, art. 6º, número 1, prevê que: “O
direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito está protegido por lei. Ninguém pode ser arbi-
trariamente privado da vida” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1976b).
12
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Terceira Parte, arts. 11 e
12, prevê que: “Artigo 11º. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as
pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário
e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência.
Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito
reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente
consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas
as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação
internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos: a) Para melhorar os métodos
de produção, de conservação e de distribuição dos produtos alimentares pela plena utilização dos
conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo
desenvolvimento ou a reforma dos regimes agrários, de maneira a assegurar da melhor forma a
valorização e a utilização dos recursos naturais; b) Para assegurar uma repartição equitativa dos
recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas que se
põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares. Artigo
12º. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do
melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas que os Estados Partes no
presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender
as medidas necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil,
bem como o são desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene
do meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controlo das doenças epidê-
micas, endêmicas, profissionais e outras; d) A criação de condições próprias a assegurar a todas
as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1976a).
94 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

em desenvolvimento a assegurarem água potável segura, limpa, acessível e a custos


razoáveis e saneamento para todos.13
O caráter genérico da Resolução A/64/292 somente foi suprido com a apro-
vação da Resolução A/HRC/15/9 sobre direitos humanos e acesso à água potável e
ao saneamento, que afirmou que os direitos à água e ao saneamento fazem parte do
direito internacional existente, sendo derivados do direito ao adequado padrão de vida,
o qual se relaciona ao direito ao mais elevado padrão de saúde física e mental, bem
como ao direito à vida e à dignidade humana.14 Tal Resolução também confirmou que
esses direitos são legalmente vinculativos para os Estados, de forma que eles, Estados,
devem desenvolver as ferramentas e os mecanismos adequados para alcançarem,
gradativamente, a concretização integral das obrigações em termos de direitos humanos
relacionados com o acesso à água potável segura e saneamento, incluindo áreas não
servidas ou insuficientemente servidas.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, no Título VIII, Capítulo VI, art. 225,
dedicou-se a institucionalizar o meio ambiente ecologicamente equilibrado no rol da
ordem social, elevando-o ao status de direito fundamental (MARUM, 2002, p. 133)
e delineando seu valor ideal no âmbito da República Federativa do Brasil. Ewerton
Ricardo Messias e Paulo Roberto Pereira de Souza dissertam que:
A Constituição Federal, em seu artigo 225, consagrou o Estado
Democrático de Direito Ambiental ao instituir uma responsabili-
dade compartilhada entre todos, poder público e coletividade de
defender e preservar um meio ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado [...] para as atuais e as futuras gerações. Assim, o
13
1. Recognizes the right to safe and clean drinking water and sanitation as a human right that is essential
for the full enjoyment of life and all human rights; 2. Calls upon States and international organizations to
provide financial resources, capacity-building and technology transfer, through international assistance
and cooperation, in particular to developing countries, in order to scale up efforts to provide safe, clean,
accessible and affordable drinking water and sanitation for all; [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 2010a) 1. Declara o direito à água potável e limpa e ao saneamento como um direito humano
que é essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos; 2. Exorta os Estados e orga-
nizações internacionais para fornecer recursos financeiros, capacitação e transferência de tecnologia,
através da assistência e cooperação internacionais, em particular aos países em desenvolvimento, a
fim de intensificar os esforços para fornecer a todos água potável limpa, segura, acessível e com preço
razoável e saneamento; [...] (tradução nossa).
14
A Resolução A/HRC/15/9, em seu item 3 “Affirms that the human right to safe drinking water and sanita-
tion is derived from the right to an adequate standard of living and inextricably related to the right to the
highest attainable standard of physical and mental health, as well as the right to life and human dignity”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2010b). Afirma que o direito humano à água potável e ao
saneamento é derivado do direito a um padrão de vida adequado e inextricavelmente relacionado com
o direito ao mais elevado padrão de saúde física e mental, bem como o direito à vida e à dignidade
humana (tradução nossa).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 95

princípio do desenvolvimento sustentável visa garantir, para as


atuais e futuras gerações, os direitos fundamentais ao desen-
volvimento socioeconômico e ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, pautados na livre iniciativa e na defesa ambiental,
aspectos de vital importância para a concretização e eficácia
social do princípio da dignidade da pessoa humana, preceito
norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro (MESSIAS;
SOUZA, 2015, p. 79 e 93-94).

A tutela constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado revela-se:

[...] evidentemente uma norma que tem a função de gerar o


amparo ao ambiente e como sendo uma norma constitucional,
em um ordenamento jurídico, se torna superior. Assim, afasta
do sistema qualquer outra norma que possa destoar do seu
princípio maior, a proteção, já que gozam de supremacia e
rigidez constitucionais (ROCHA, 2000, p. 188).

A propósito, Silva (2003, p. 58) aclara que o meio ambiente é onde se desen-
volve a vida humana, por isso é exigido que, como sendo um direito fundamental,
proporcione qualidade para o ser humano viver e progredir; ou seja, o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é indispensável à concretização e eficácia social do princípio
da dignidade da pessoa humana (MESSIAS; DIAS; MACIEL, 2018, p. 85), desnudada
na existência de uma vida digna de ser vivida. No entanto, para que seja alcançado
o direito fundamental à fruição de uma vida digna de ser vivida, necessária se faz a
adoção do modelo de viver bem, o qual, segundo Álisson José Maia Melo (2014, p. 20),

[...] requer uma profunda mudança na consciência do ser hu-


mano com a finalidade de perceber e entender a vida e nela
conduzir-se, o que exige a demolição das velhas estruturas, de
modo que, por outro lado, se reconstrua uma nova civilização
guiada pelo valor central da vida em vez de divinizar a economia,
como tem sido feito atualmente (tradução nossa).15

No âmbito desse raciocínio, a água, enquanto um direito fundamental e um


recurso ambiental,16 destaca-se como um bem ambiental de uso comum do povo, de
15
No original: La adopción del modelo del buen vivir requiere un cambio profundo de la conciencia del
ser humano con el fin de percibir y entender la vida y en ella conducirse, que exige la demolición de
las viejas estructuras, por lo que, en cambio, se reconstruya una nueva civilización guiada por el valor
central de la vida en lugar de deificar a la economía, como se ha hecho todavía hoy.
16
Lei nº 6.938/1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de
formulação e aplicação, e dá outras providências. Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se
por: V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários,
96 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

forma a assumir um destacado protagonismo, visto que, sem ela, não há sequer que
se discutir acerca da concretização de outros direitos fundamentais, vez que, sem o
seu consumo em quantidade e qualidade adequada, não há que se falar em vida digna
de ser vivida; e, diante da inexistência de seu consumo, o resultado será a morte, não
podendo o ser humano fruir de qualquer outro direito fundamental. Nesse sentido, José
Carlos Bruni assevera que:

Todo ser vivo tem que manter seu suprimento de água próximo
do normal, do contrário morre. Um homem pode viver sem
alimento sólido por mais de um mês, mas sem água só poderá
viver cerca de dois ou três dias. Se seu corpo perder mais de
20% de seu conteúdo normal de água, terá morte dolorosa. O
homem tem de ingerir cerca de 2,5 litros de água por dia (BRUNI,
1993, p. 55-56).

A imprescindibilidade da água como condição de existência de vida também


pode ser comprovada em constatações históricas, as quais demonstram que civilizações
inteiras deixaram de existir quando, pelo mau uso da água, tal recurso se extinguiu
ou tornou o solo inadequado para o cultivo e, portanto, à obtenção de alimentos. A tal
respeito, José Carlos Bruni observa que:

[...] não são apenas fatos da biologia que revelam a importância


fundamental da água como condição da vida. A história nos
revela que em geral os homens se estabelecem onde a água
é abundante - junto aos lagos e rios. As primeiras grandes
civilizações surgiram nos vales de grandes rios - vale do Nilo no
Egito, vale do Tigre-Eufrates na Mesopotâmia, vale do Indo no
Paquistão, vale do rio Amarelo na China. Todas essas civilizações
construíram grandes sistemas de irrigação, tornaram o solo pro-
dutivo e prosperaram. Essas civilizações desmoronaram quando
o abastecimento de água se extinguiu ou foi mal aproveitado.
Muitos historiadores acreditam que a civilização dos sumérios,
por exemplo, na Mesopotâmia, se arruinou por causa de más
práticas de irrigação. O sal da água de irrigação separa-se dela
durante a evaporação, e tende a integrar-se no solo. Isso pode
ser evitado se o sal é levado com um excesso de água. Mas se
a terra não for bem drenada, o solo fica encharcado. Os antigos
sumérios deixaram de manter o equilíbrio entre a acumulação de
sal e a drenagem. O sal e o excesso de água prejudicaram as

o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora (BRASIL, 1981).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 97

colheitas. A produção agrícola declinou gradualmente, e houve


falta de alimentos. Com o colapso da agricultura, desapareceu
a civilização suméria (BRUNI, 1993, p. 56).

Acerca dos direitos fundamentais materiais ou implícitos, importante se faz


conhecer as considerações de Ingo Wolfgang Sarlet, segundo o qual a Constituição,
ao aceitar direitos decorrentes do regime e dos princípios como fundamentais, revela a
existência de direitos fundamentais não escritos, implícitos, que podem ser deduzidos
por via de ato interpretativo, tendo como base direitos constantes no catálogo (SARLET,
2012, p. 85). Nesse sentido, o autor cita alguns exemplos que encontraram aceitação
na esfera doutrinária e jurisprudencial, como o direito à resistência, à desobediência
civil, à identidade genética da pessoa humana, garantias do sigilo fiscal e bancário
(SARLET, 2012, p. 90). Por fim, o reconhecimento de direitos fundamentais materiais
ou implícitos condiciona-se ao seu alinhamento aos fundamentos e aos objetivos da
República Federativa do Brasil, além de não se revelar contrário a direitos fundamentais
formais ou explícitos contidos no texto constitucional (ALCALÁ, 2011, p. 94).
Não restam dúvidas que a água revela-se como um bem ambiental, portanto,
de uso comum do povo, e o acesso à água de qualidade trata-se de um direito funda-
mental constitucional material ou implícito que decorre da interpretação sistemática do
contido no art. 1º, inciso III e no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, c/c o
art. 3º, inciso V, da Lei nº 6.938/81 e com o art. 1º, incisos I e III, da Lei nº 9.433/97.17
Também não restam dúvidas de que a água assume um papel de protagonismo no
âmbito da fruição dos direitos fundamentais, pois, conforme explicitado acima, sua
má qualidade ou sua ausência podem, respectivamente, comprometer a qualidade
de vida ou mesmo extingui-la. Ao realizar uma análise sobre as dimensões de direitos
fundamentais, Augusto Antônio Fontanive Leal conclui que:

[...] a água como um direito humano, relacionada ao enten-


dimento de um microbem ambiental e compreendendo a sua
qualidade em um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
diz respeito a um direito de terceira dimensão. Já o direito de
acesso à água, por sua vez, parece estar ligado diretamente a
um critério de justiça social, pois se trata de uma igualdade de
fruição de um bem necessário à vida. Desse modo, entende-se
que o direito ao acesso à água está intimamente ligado à defi-
nição de um mínimo essencial para a vida (LEAL, 2018, p. 25).

17
Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público; [...]
98 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Existem direitos fundamentais universais e consensuais, dentre os quais o direito


à água e o respeito à dignidade humana (SARLET, 2003, p. 84). Assim, reconhecer a
água como direito fundamental consiste em atribuir ao Estado o dever de garantir um
mínimo essencial à sadia qualidade de vida, possibilitando a existência de uma vida
digna de ser vivida para as presentes e as futuras gerações. Ao analisar a essencia-
lidade dos bens ambientais, Ewerton Ricardo Messias discorre que “a essencialidade
dos bens está intimamente associada a um mínimo existencial, pautado na dignidade
da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conforme o contido
no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988” (MESSIAS, 2017, p. 87).
Dada a imprescindibilidade da água para a existência de vida no planeta Terra,
há que se realizar uma gestão participativa,18 eficiente e eficaz,19 de tal bem ambiental
de uso comum do povo, diante do poder/dever, do Poder Público e da coletividade,
de atuação para a manutenção do equilíbrio ambiental, conforme previsão contida
no caput do art. 225 da Constituição Federal de 1988. Isso tendo por base que “[...]
a tutela ambiental não é um daqueles valores sociais em que basta assegurar uma
liberdade negativa, orientada a rejeitar a intervenção ilegítima ou do abuso do Estado”
(BENJAMIN, 2007, p. 113), mas um conjunto de deveres positivos (obrigação de fazer)
e deveres negativos (obrigação de não fazer), os quais garantam o uso sustentável
da água, para que seu uso adequado possa ser convertido na manutenção da vida no
planeta, por meio de sua utilização para dessedentação e para a produção de alimentos
necessários à garantia do mínimo existencial.

18
William Paiva Marques Júnior assevera que: “A gestão inconsequente, desastrosa e irresponsável das
águas, da qual resultaram danos irreversíveis, como por exemplo, a desertificação de grandes áreas
terrestres e bruscas mudanças climáticas, cede lugar, paulatinamente, a uma abordagem ambiental,
social e econômica do uso e da preservação dos recursos hídricos da Terra” (MARQUES JÚNIOR,
2016, p. 92).
19
Importante se faz a distinção entre os termos eficiência e eficácia, portanto, para tal finalidade, na
presente pesquisa serão utilizadas as definições de Idalberto Chiavenato, para quem: “[...] eficácia é
uma medida normativa do alcance dos resultados, enquanto eficiência é uma medida normativa da
utilização dos recursos nesse processo. [...] A eficiência é uma relação entre custos e benefícios. Assim,
a eficiência está voltada para a melhor maneira pela qual as coisas devem ser feitas ou executadas
(métodos), a fim de que os recursos sejam aplicados da forma mais racional possível [...] À medida que
o administrador se preocupa em fazer corretamente as coisas, ele está se voltando para a eficiência
(melhor utilização dos recursos disponíveis). Porém, quando ele utiliza estes instrumentos fornecidos
por aqueles que executam para avaliar o alcance dos resultados, isto é, para verificar se as coisas bem
feitas são as que realmente deveriam ser feitas, então ele está se voltando para a eficácia (alcance
dos objetivos através dos recursos disponíveis)” (CHIAVENATO, 1994, p. 70).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 99

3. A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA E SUAS IMPLICAÇÕES

Desde os primórdios da história da humanidade, a água demonstra sua importân-


cia substancial e essencial para a existência de vida, enquanto suprimento indispensável
às necessidades mais básicas para uma vida digna de ser vivida. Tal indispensabilidade
acaba por converter-se na detenção de poder, de forma a resultar em desigualdades
sociais, vista a restrição de acesso a tal recurso ambiental. Nesse aspecto:

[...] a água sempre foi um dos mais importantes reguladores


sociais. As sociedades camponesas e as comunidades aldeãs,
que tinham suas condições de vida muito ligadas ao solo,
estruturaram-se ao redor da água. Na grande maioria, era con-
siderada como um bem comum e a água tornava-se uma fonte
de poder. Tornaram-se raros os casos em que todos os membros
de uma sociedade estivessem num mesmo nível em relação à
água, posto que o acesso a ela sempre envolveu desigualdade
(PETRELLA, 2002, p. 59-60).

Conforme explicitado no item 2 da presente pesquisa, nos tempos atuais, a


dificuldade de acesso à água potável de fácil acesso ainda é bastante expressiva,
de forma a não se diferenciar muito da realidade enfrentada no passado, visto que o
acesso à água continua sendo ponto de desigualdade social, exemplo disso é o tema
da privatização e da exploração da água por meio da iniciativa privada. Tal tema, no
mais das vezes, é abordado de forma equivocada, em decorrência da interpretação
isolada do contido no art. 1º, inciso II, última parte, c/c o art. 5º, inciso IV, e com os
arts. 19, 20, 21 e 22, seus incisos e parágrafos, todos da Lei nº 9.433/97, de forma a
possibilitar o entendimento de que a água pode ser vista apenas como um produto,
cujo valor pode ser quantificado enquanto mercadoria. No entanto, a bem da ver-
dade, a água revela-se como um bem ambiental, portanto, de uso comum do povo,
e o acesso à água de qualidade trata-se de um direito fundamental constitucional
material ou implícito que decorre da interpretação sistemática do contido no art. 1º,
inciso III, e no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, c/c o art. 3º, inciso
V, da Lei nº 6.938/81 e com o art. 1º, incisos I e III, da Lei nº 9.433/97. Tal equívoco
interpretativo redundou em:

[...] um favorecimento a partir da globalização para que grandes


empresas transnacionais estivessem ampliando sua presença
em serviços de saneamento e ganhando o direito de explorar
fontes de água. Surge então uma bipolaridade, com os que
100 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

entendem a água como um produto que se pode manejar,


engarrafar, pôr preço e vender, acreditando que a tecnologia e
o mercado podem atender a necessidade humana através da
iniciativa privada; frente aos ambientalistas que acreditam que a
mesma não tem preço, nem dono, pertence a todos, sendo um
direito fundamental e inegociável do ser humano (QUADRADO;
VERGARA 2003, p. 44).

O discurso utilizado para justificar o real interesse por parte dos que detêm o
grande capital é que a enorme supervalorização econômica da água deve-se ao ar-
gumento capitalista de que existe um admirável desperdício no uso e gerenciamento
dos recursos hídricos, devido ao fato de que a maioria das sociedades, até o momento,
consideraram a água como um bem social, e não como uma mercadoria (PETRELLA,
2002, p. 77). Os defensores dessa linha interpretativa têm como principal argumento o
desperdício da água decorrente do baixo preço praticado para sua captação, tratamento
e abastecimento. Na verdade, nos últimos dez anos, o preço da água teve expressiva
alta em virtude de sua escassez, resultante não só do desperdício advindo do uso do-
méstico ou industrial, mas também da superexploração agrícola, da poluição industrial,
e da falta de visão de longo prazo envolvendo um planejamento e um gerenciamento
global integrado, resultando na incapacidade de implementar uma gestão de recursos
hídricos de maneira eficiente e eficaz, devido aos interesses econômicos e financeiros
envolvidos (PETRELLA, 2002, p. 79-83).
Conforme já exposto, a água é essencial para a continuidade da existência de
vida digna de ser vivida no planeta Terra. Dessa forma, o seu acesso liga-se à ideia
de um mínimo existencial, o que torna a água um bem essencial e, assim sendo,
não pode sofrer restrições de acesso, sob pena de violação da dignidade da pessoa
humana, fundamento da República Federativa do Brasil, contido no artigo 1º, inciso
III, da Constituição Federal de 1988 (MESSIAS, 2017, p. 87). Nesse sentido, Riccardo
Petrella consigna que o acesso à água:

[...] não é uma questão de escolha. Todos precisam dela. O


próprio fato de ela não poder ser substituída por nada mais,
faz da água um bem básico que não pode ser subordinado a
um único princípio sectorial da regulamentação, legitimação e
valorização; ela se enquadra nos princípios do funcionamento
da sociedade como um todo. Isso é precisamente aquilo que se
chama de um bem social, um bem comum, básico a qualquer
comunidade humana (PETRELLA, 2002, p. 84).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 101

De forma geral, o processo de privatização dos serviços de captação, tratamento


e abastecimento de água pode se dar de três maneiras. Na primeira, os governos
vendem completamente o sistema de captação, de tratamento e de abastecimento
da água potável para as corporações privadas, as quais arcam com os custos de
operação e lucram com o fornecimento da água tratada à população. Assim, nesse
primeiro modelo, o sistema de captação, de tratamento e de abastecimento da água
potável perde sua natureza de serviço público e passa a ter natureza privada. Como
exemplo de implementação de tal modelo, pode-se citar o Reino Unido. Na segunda
maneira, a qual vem sendo aplicada na França, os governos cedem concessões às
corporações de água para que elas assumam o serviço de captação, de tratamento
e de abastecimento, assim, a iniciativa privada não se torna proprietária, mas apenas
concessionária do sistema de captação, de tratamento e de abastecimento de água
potável à população, o qual permanece com sua natureza de serviço público. Nesse
modelo, a iniciativa privada também arca com os custos de operação e lucra com o
fornecimento da água tratada à população. Por fim, a terceira maneira baseia-se no
modelo de gestão privada dos serviços públicos, a qual é considerada como um modelo
mais restrito, visto que, em tal modelo, o governo contrata uma corporação por um preço
fixo, normalmente uma taxa administrativa, para administrar os serviços de captação,
de tratamento e de abastecimento de água potável à população, no entanto, a empresa
não assume diretamente a coleta de receita nem aufere lucros. Maude Barlow e Tony
Clarke (2003, p. 106-107) afirmam que a maneira mais comum de privatização é a
baseada no segundo modelo, chamado de “parcerias público-privadas”.
A partir da conscientização do valor agregado da água, visto tratar-se de um
problema ambiental mundial em virtude de sua comprovada escassez (MESSIAS,
CARMO, 2018, p. 285), o setor privado passou a vislumbrar possibilidades de alta
lucratividade por meio da prestação dos serviços de captação, de tratamento e de
abastecimento de tal bem ambiental. Dessa forma, “[...] a água promete ser para o
século XXI o que o petróleo foi para o século XX: o artigo precioso que determina a
riqueza e o poder das nações” (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 125).
Diante da constatação da escassez de água em nosso planeta, ao menos no
Brasil, que possui um quinto de toda a reserva Global (MAY, 2004, p. 4) de água doce,
cerca de 12% de toda a água doce do mundo (TOMAZ, 2001, p. 6), o Poder Público
deveria assumir, com maior ênfase, a gestão da água, mesmo porque a tutela de tal bem
ambiental, visando sua preservação para as presentes e futuras gerações, é um dever
constitucional previsto no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988. No entanto,
o governo brasileiro não vem adotando tal postura. Exemplo disso é a Companhia de
102 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), sociedade de economia mista


responsável pelo fornecimento de água para 368 municípios no Estado de São Paulo,
tendo 27,9 milhões de clientes que compram a água por ela tratada, sendo considerada
uma das maiores empresas de saneamento do mundo em população atendida (COM-
PANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, não paginado),
denotando uma situação de monopólio da exploração econômica dos serviços de
captação, tratamento e abastecimento de água à população, ao menos no Estado de
São Paulo. De igual forma, os governos de outros Estados-Nações também não vêm
adotando tal postura, conforme exemplos do Reino Unido e da França, citados acima.
O interesse das corporações transnacionais baseia-se no especial potencial
que o mercado da água possui. Inicialmente, há que se considerar que a água é um
bem ambiental essencial e insubstituível para a existência e a manutenção da vida no
planeta Terra, por tal motivo não sofre crise de procura, isto é, sempre existem clientes
dispostos a comprá-la e a pagar o preço necessário. Também há que se considerar que,
em virtude da escassez de água potável de fácil acesso, a exploração do comércio de
água potável acaba tornando-se interessante do ponto de vista econômico, pois, na
maior parte dos casos, para a obtenção de água potável há necessidade de captação
e tratamento de água não potável, processo esse de alto custo, fato que inviabiliza
sua exploração por pessoas naturais, de forma individualizada, e mesmo por pessoas
jurídicas de pequeno e médio porte, de forma a fomentar a formação de monopólios
espalhados pelo mundo, por meio dos quais grandes corporações acabam por assumir,
por meio da alienação, da concessão ou do controle de gestão, os sistemas de capta-
ção, tratamento e abastecimento de água potável à população, de maneira a limitar as
alternativas dos consumidores, criando-se uma forte dependência entre os utilizadores
e os donos da água. A tal respeito, Riccardo Petrella disserta que:

O senhor da água obtém seu poder através da propriedade e do


controle da água, ou através dos mecanismos de acesso, apro-
priação e uso em vigor, já que esses lhe permitem beneficiar-se
ao máximo dos bens e serviços que a água gera ou faz ser
possível gerar. O senhor da água é, assim, capaz de ampliar sua
capacidade de ação (em termos de conhecimento, informação,
tecnologia, finanças, relações sociais e poder cultural) e de
perpetuar seu controle (PETRELLA, 2002, p. 60).

Por meio da racionalidade, levando-se em consideração o ordenamento jurídico


vigente, as corporações analisarão os custos e os benefícios individuais para tomar a
melhor decisão para si. Com efeito, a observância das consequências proporcionadas
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 103

pelo caos ambiental, o qual é integrado pela escassez de água potável de fácil acesso,
resulta em externalidades20 que anteriormente eram inexistentes, levando a maior
reflexão sobre a exploração econômica de tal bem ambiental.
Assim, vale ressaltar a abordagem da escolha racional trazida pela Law and
Economics, por meio da qual o indivíduo ou corporação (já que as corporações são
compostas por pessoas naturais) toma decisões pautadas em seus interesses indivi-
duais. Nesse contexto, a exploração econômica da água pelas corporações privadas
passa a ser a escolha racional mais atrativa para os agentes econômicos, em virtude de
sua essencialidade para a existência de vida e de sua escassez, conforme explanado
acima, pois atenderá de forma mais plena os seus próprios interesses, haja vista a
possibilidade de lucratividade.
Na linha desse entendimento, por meio do pressuposto da racionalidade, do qual
fazem parte as decisões dos indivíduos, a escolha pelo procedimento da exploração
econômica da água levará em consideração os benefícios e prejuízos consequentes,
de forma a fazer prevalecer aquele que proporcione maior satisfação individual (cor-
porativa). Assim, na medida em que a exploração econômica da água proporcionar
maior satisfação individual para as corporações privadas, será ela mais procurada e
implementada.
Com efeito, as corporações privadas procedem à análise dos custos envolvidos
na captação, no tratamento e no fornecimento para verificar a viabilidade da exploração
econômica da água. Nesse contexto, haverá eficiência econômica para as corporações
privadas quando os custos relacionados a todo o processo de exploração econômica
da água forem menores do que a lucratividade obtida com a sua comercialização.
Tal cenário pode ocorrer diante da exploração de fontes de água de fácil acesso e de
boa qualidade. Afirma-se isso pois serão necessários menores investimentos para a
captação e o fornecimento caso a fonte de captação esteja localizada próxima ao local
de tratamento e fornecimento da água à população. De igual maneira, o acesso à agua
de boa qualidade redundará na necessidade de menores investimentos para o seu
tratamento. Dessa forma, as corporações privadas buscam aumentar sua eficiência
econômica por meio da redução dos custos e do aumento da lucratividade, conside-
rando em suas análises de viabilidade econômica a exploração de fontes próximas de
água de boa qualidade.
20
Segundo Cristiano Carvalho, as “externalidades significam custos ou benefícios que atingem terceiros,
não integrantes da relação jurídico-econômica. As externalidades podem ser positivas ou negativas: no
primeiro caso, são custos arcados por terceiros. Um exemplo comum é a poluição causada por uma
fábrica, custo arcado pela população e não ‘internalizado’ no preço do produto por ela fabricado. [...]
As externalidades positivas são benefícios não previstos que alcançam indivíduos que não pagaram
por eles, gerando também falhas de mercado” (CARVALHO, 2013, p. 51).
104 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

No entanto, há que se considerar que a exploração econômica da água, de


forma geral, é capaz de proporcionar efeitos econômicos positivos para as corporações
privadas, pois há possibilidade de lucratividade mesmo diante de fontes distantes e
que possuam água de baixa qualidade, vez que os custos de captação, tratamento e
abastecimento da água potável à população serão incorporados e, portanto, repassados
ao consumidor, mantendo-se incólume o lucro da corporação privada. Esse cenário é
possível quando na área territorial esteja ausente a concorrência, por exemplo, não
haja, na área territorial, mais de uma corporação privada atuando na exploração eco-
nômica de água potável. Porém, em um ambiente de mercado no qual opera a livre
concorrência, como é o caso do Brasil, conforme o contido no art. 170, inciso IV, da
Constituição Federal de 1988, as corporações privadas, localizadas em um mesmo
território, que tiverem acesso à exploração econômica de fontes de água mais próxi-
mas e de melhor qualidade, terão maior eficiência (lucratividade), em detrimento das
corporações privadas que tiverem acesso à exploração econômica de fontes de água
mais distantes e/ou de pior qualidade, pois as primeiras, em virtude de sua vantagem
competitiva, poderão praticar preços mais atraentes aos consumidores, enquanto as
segundas sofrerão a pressão dos custos envolvidos na operacionalização da exploração
econômica, obtendo, assim, uma menor eficiência (lucratividade).
Em que pese o art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988 consignar ser
dever do Poder Público, assim como da coletividade, tutelar a exploração equilibrada da
água, enquanto um bem ambiental de uso comum. A água é dotada de valor econômico,
nos termos do art. 1º, inciso II, última parte, da Lei nº 9.433/1997 e, nos termos do art.
12 da mesma Lei, sua exploração deve ser precedida da emissão, pelo Poder Público,
de outorga de direitos de uso de recursos hídricos nos casos de:

I - derivação ou captação de parcela da água existente em um


corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento
público, ou insumo de processo produtivo;
II - extração de água de aquífero subterrâneo para consumo
final ou insumo de processo produtivo;
III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos
líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição,
transporte ou disposição final;
IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a quali-
dade da água existente em um corpo de água (BRASIL, 1997).

A emissão de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem por finalidade


propiciar ao Poder Público o cumprimento do seu dever constitucional, previsto no
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 105

art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, de forma que, quando das análises
das solicitações de emissão de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, o Poder
Público poderá verificar se o uso pretendido e solicitado revela-se equilibrado, do ponto
de vista quantitativo e qualitativo, somente emitindo a outorga diante da existência
de equilíbrio no exercício do direito de uso dos recursos hídricos, conforme previsão
contida no art. 11 da Lei nº 9.433/1997.
Conforme já explanado anteriormente, a água possui natureza de bem am-
biental, portanto, revela-se em um bem de uso comum do povo; e o acesso à água de
qualidade trata-se de um direito fundamental constitucional material ou implícito que
decorre da interpretação sistemática do contido no art. 1º, inciso III e no art. 225, caput,
da Constituição Federal de 1988, c/c o art. 3º, inciso V, da Lei nº 6.938/81 e com o art.
1º, incisos I e III, da Lei nº 9.433/97. Dessa forma, diante de tal interpretação sistemá-
tica do texto constitucional com os textos infraconstitucionais, a água já revela outra
característica inata à sua natureza, qual seja, ser inalienável. No entanto, ainda assim,
o legislador decidiu, de forma zelosa, consignar a característica de inalienabilidade da
água expressamente no texto da Lei nº 9.433/97, fazendo-o no art. 18.
No entanto, há que se observar que somente poderão ser cobrados, pelo Poder
Público, os usos dos recursos hídricos previstos no art. 12, da Lei nº 9.433/1997, ou
seja, somente poderão ser objeto de cobrança os usos da água sujeitos à outorga,
conforme previsão contida no art. 20 da mesma Lei. Portanto, todos os usos de recursos
hídricos sujeitos à outorga estarão sujeitos à cobrança pelo Poder Público. Nesse ponto,
é importante salientar que a cobrança pelo uso da água não se liga à alienação de tal
bem ambiental, mas, sim, liga-se ao direito do seu uso, mediante emissão de outorga
pelo Poder Público, tendo por finalidade conferir à água a natureza de bem econômico,
indicando ao usuário o seu valor real e, assim, incentivando a sua racionalização, além
de “[...] obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções
contemplados nos planos de recursos hídricos”, conforme a interpretação sistemática
do contido nos arts. 18, 19 e 20 da Lei nº 9.433/1997 (BRASIL, 1997).
Dessa forma, a captação da água para fins de abastecimento público, ponto
focal da presente pesquisa, configura-se como um dos usos da água sujeitos à prévia
obtenção de outorga junto ao Poder Público, sendo objeto, também, de cobrança, nos
termos do contido no art. 20 da Lei nº 9.433/1997. Assim, no Brasil, nos casos de pri-
vatização do sistema público de captação, tratamento e abastecimento, em quaisquer
dos três modelos abordados na presente pesquisa, quais sejam, alienação, concessão
ou gestão administrativa, as corporações privadas deverão pagar ao Poder Público
pelo direito de captação da água para fins de abastecimento público. Verifica-se que,
106 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

mesmo no caso de alienação do sistema público de captação, tratamento e abaste-


cimento de água para a iniciativa privada, não há que se falar em alienação da água
(bem ambiental), mas tão somente da prestação do serviço público ligado à captação,
tratamento e abastecimento de água potável à população, ou seja, em quaisquer dos
três modelos, o objeto da privatização é a prestação do serviço de captação, tratamento
e abastecimento de água potável à população, não havendo alienação da água em
quaisquer dos três modelos.
Tal como ocorre com o Poder Público, as corporações privadas, quando assu-
mem, por meio da privatização, os serviços de captação, de tratamento e de abasteci-
mento de água potável à população, têm custos de operacionalização para a prestação
de tais serviços, como os custos com bombas e encanamentos para a captação e
o encaminhamento da água até a estação de tratamento e dela até as residências,
empresas e prédios públicos; os custos com componentes químicos necessários ao
tratamento da água captada para torná-la potável, pois, no mais das vezes, a água
captada não apresenta condições adequadas de potabilidade para ser distribuída dire-
tamente à população; os custos com pessoal para atuar na instalação, na manutenção
e na operação dos sistemas de captação, de tratamento e de abastecimento da água
potável, entre outros. São tais custos que são repassados à população (consumidor),
acrescidos de um percentual relativo ao lucro da corporação privada, normalmente
fixado por ocasião do processo de privatização do sistema.
No âmbito da República Federativa do Brasil, onde, conforme previsão contida
no art. 170, caput, da Constituição Federal de 1988, a ordem econômica constitucional
reconhece a livre iniciativa como um dos seus fundamentos para atingir a sua finalida-
de, qual seja “[...] assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social [...]” (BRASIL, 1988), é perfeitamente possível, do ponto de vista constitucional
e legal, conforme anteriormente exposto, a privatização dos serviços de captação, de
tratamento e de abastecimento de água potável à população, sendo cobrado o valor
correspondente aos custos decorrentes da prestação de tais serviços, acrescido de um
percentual de lucratividade para a corporação privada, pois, afinal de contas, não haverá
a livre iniciativa se não houver possibilidade de lucro, finalidade precípua da fruição
de tal direito fundamental. Não há, portanto, alienação do bem ambiental água, pois
o que há, na verdade, é a cobrança dos custos envolvidos na realização da atividade
econômica ligada aos serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água
potável à população, acrescido de um percentual de lucratividade ligado ao exercício
do direito fundamental da livre iniciativa, previsto no art. 170, caput, da Constituição
Federal de 1988.
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 107

No mais, a privatização dos serviços de captação, de tratamento e de abasteci-


mento de água potável à população não impede que o cidadão brasileiro tenha acesso
à água potável, inclusive sem haver de obter a prévia outorga de direito de uso da água
e de arcar com qualquer cobrança por parte do Poder Público, em virtude da captação
de água “[...] para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais,
distribuídos no meio rural”, bem como para as extrações, captações, derivações e
acumulações de volumes de água insignificantes, nos termos do art. 12, § 1º, c/c o
art. 20 da Lei nº 9.433/1997 (BRASIL, 1997). Por exemplo, no Estado de São Paulo,
são considerados usos insignificantes e, portanto, isentos de obtenção de outorga e
de cobrança pelo uso da água, as “extrações de águas subterrâneas com volumes
inferiores a 15 (quinze) metros cúbicos, por dia”; as “derivações ou captações de águas
superficiais, bem como os lançamentos de efluentes em cursos d’água superficiais,
com volumes inferiores a 25 (vinte e cinco) metros cúbicos, por dia”; e as “derivações
ou captações feitas em acumulações de água em tanque escavado em várzea, com
volumes inferiores a 15 (quinze) metros cúbicos, por dia”, conforme previsão contida
no art. 3º, 1, 2 e 3, da PORTARIA DAEE nº 2292/2006 (DEPARTAMENTO DE ÁGUA
E ENERGIA ELÉTRICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2006).
No âmbito da Law and Economics, há que se questionar as privatizações de
fontes de água de alta qualidade e localizadas próximas aos locais de abastecimento,
pois, nesses casos, entende-se que deveria prevalecer a prestação pública dos serviços
de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população, visto
que os custos seriam menores em tais condições de qualidade da água e de distância
entre os pontos de captação e de tratamento, e entre estes e os pontos de abasteci-
mento, de forma a garantir maior eficiência ao serviço público. Já as fontes de água
de baixa qualidade e localizadas distantes dos locais de abastecimento, deveriam ser
privatizadas, isso, é claro, nos casos em que na área territorial não haja a prestação
pública dos serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável
à população, pois tal situação inviabilizaria a livre concorrência e, assim, comprome-
teria a livre iniciativa, em virtude da dificuldade e/ou da impossibilidade de obtenção
de lucro por parte da iniciativa privada. Pode-se citar como exemplo um município que
não possua fontes de água de alta qualidade e localizadas próximas aos locais de
abastecimento, sendo que as fontes existentes são de baixa qualidade e distantes dos
pontos de abastecimento. Nesse caso, o município poderia buscar a privatização dos
serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população,
visando à economia dos recursos financeiros públicos e fomentando a livre iniciativa
por meio da livre concorrência no âmbito de um processo de privatização, o qual não
contemple a monopolização do abastecimento de água no município, mas sim possibilite
108 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

a privatização individualizada das diversas fontes existentes, possibilitando à população


a obtenção de água tratada e de qualidade a um preço justo, em virtude da existência
da concorrência entre as corporações privadas que passarão a atuar na prestação dos
serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população.
É certo que, no caso do exemplo citado, o município deveria fixar a taxa ad-
ministrativa a ser cobrada pelas corporações privadas por volume cúbico, em virtude
da prestação dos serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água
potável, de forma a forçá-las a aumentar sua eficiência para a obtenção do esperado
lucro, evitando, assim, a formação de cartéis de exploração econômica da água.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescimento industrial e os avanços científicos e tecnológicos dele resultantes


causou uma alteração de comportamento econômico, social e ambiental, levando a
sociedade a um ritmo frenético de consumismo global, o qual potencializou a ânsia das
corporações privadas pela busca do lucro a qualquer custo, de forma a levar a efeito
processos produtivos que consideravam as fontes de matérias-primas como infinitas,
quando, na verdade, eram finitas, redundando no esgotamento de diversos recursos
naturais, dentre eles a água potável.
Além disso, essa ânsia pelo lucro a qualquer custo levou à contaminação do
ar, do solo e da água em virtude da emissão desregrada, sem limites científicos, de
gases de efeito estufa, de resíduos sólidos e de efluentes líquidos sem tratamento.
A manutenção desse comportamento pelos seres humanos, somada à desi-
gualdade social - distanciamento do equilíbrio social -, foi aumentando a distância
entre o atendimento das necessidades humanas e o equilíbrio ambiental, de forma a
gerar uma situação de caos ambiental - desequilíbrio ambiental -, externalizado nos
grandes problemas ambientais mundiais, dentre eles a escassez de água no mundo.
Desde os primórdios da história da humanidade, a água demonstra sua im-
portância substancial e essencial para a existência de vida, enquanto suprimento
indispensável às necessidades mais básicas para uma vida digna de ser vivida. Tal
indispensabilidade acaba por converter-se na detenção de poder, de forma a resultar
em desigualdades sociais, vista a restrição de acesso a tal recurso ambiental.
Por tal motivo, afirma-se que a escassez de água no mundo é agravada pela
desigualdade social e pela falta de manejo e usos sustentáveis dos recursos naturais.
As diferenças registradas entre os países desenvolvidos e os em desenvolvi-
mento demonstram que a crise mundial dos recursos hídricos está diretamente ligada
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 109

às desigualdades sociais, ou seja, ao distanciamento do equilíbrio social, revelando,


novamente, um estado de caos.
Nos tempos atuais, a dificuldade de aproximação da água potável de fácil
acesso ainda é bastante expressiva, de forma a não se diferenciar muito da realidade
enfrentada no passado, visto que o acesso à água continua sendo ponto de desigual-
dade social, exemplo disso é o tema da privatização e da exploração dos serviços de
coleta, tratamento e abastecimento de água à população por meio da iniciativa privada.
Tal tema, no mais das vezes, é abordado de forma equivocada, em decorrência
da má interpretação ou da interpretação isolada do contido no art. 1º, inciso II, última
parte, c/c o art. 5º, inciso IV, e com os arts. 19, 20, 21 e 22, seus incisos e parágrafos,
todos da Lei nº 9.433/97, de forma a possibilitar o entendimento de que a água pode ser
vista apenas como um produto, cujo valor pode ser quantificado enquanto mercadoria.
No entanto, a bem da verdade, a água revela-se como um bem ambiental, por-
tanto, de uso comum do povo, e o acesso à água de qualidade trata-se de um direito
fundamental reconhecido expressamente no âmbito do Direito Internacional, por meio
da Resolução A/HRC/15/9, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 6 de outubro
de 2010. Tal reconhecimento também existe no âmbito do direito brasileiro, o qual
reconhece o acesso à água de qualidade como um direito fundamental constitucional
material ou implícito, conforme se pode verificar da interpretação sistemática do contido
no art. 1º, inciso III e do art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, c/c o art. 3º,
inciso V, da Lei nº 6.938/81 e com o art. 1º, incisos I e III, da Lei nº 9.433/97.
A água possui um papel de protagonismo no âmbito da fruição dos direitos
fundamentais, pois, sem ela, não há sequer que se discutir acerca da concretização de
outros direitos fundamentais, vez que, sem o seu consumo em quantidade e qualidade
adequada, não há que se falar em vida digna de ser vivida; e, diante da inexistência de
seu consumo, o resultado será a morte, não podendo o ser humano fruir de qualquer
outro direito fundamental.
Dada a imprescindibilidade da água para a existência de vida no planeta Terra,
há que se realizar uma gestão participativa, eficiente e eficaz de tal bem ambiental de
uso comum do povo.
Dessa forma, diante do dever do Poder Público e da coletividade de atuar
na tutela do equilíbrio ambiental, conforme previsão contida no caput do art. 225 da
Constituição Federal de 1988, há que se implementar um conjunto de deveres posi-
tivos (obrigação de fazer) e deveres negativos (obrigação de não fazer), visando a
garantir o uso sustentável da água, para que seu uso adequado possa ser convertido
110 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

na manutenção da vida no planeta, por meio de sua utilização para dessedentação e


para a produção de alimentos necessários à garantia do mínimo existencial.
A partir da conscientização do valor agregado da água, em virtude de sua
comprovada escassez mundial, o setor privado passou a vislumbrar possibilidades de
alta lucratividade por meio da prestação dos serviços de captação, de tratamento e de
abastecimento de tal bem ambiental.
Nesse sentido, o Poder Público, passou a realizar a privatização dos serviços de
captação, tratamento e abastecimento de água, a qual ocorre por meio da alienação,
modelo adotado pelo Reino Unido; da concessão, modelo adotado pela França; ou da
gestão administrativa.
Ponto importante a se observar é que o Brasil está entre os maiores detentores
de fontes de água doce do mundo. Dessa forma, diante da constatação da escassez
de água no mundo, o Poder Público brasileiro deveria assumir, com maior ênfase, a
gestão da água, mesmo porque a tutela de tal bem ambiental, visando sua preservação
para as presentes e futuras gerações, é um dever constitucional previsto no art. 225,
caput, da Constituição Federal de 1988.
No entanto, o governo brasileiro não vem adotando tal postura, exemplo disso
é a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), sociedade
de economia mista responsável pelo fornecimento de água para mais de 57% dos
municípios paulistas, denotando uma situação de monopólio da exploração econômica
dos serviços de captação, tratamento e abastecimento de água à população, ao menos
no Estado de São Paulo.
A captação da água para fins de abastecimento público, ponto focal da presente
pesquisa, configura-se como um dos usos da água sujeitos à prévia obtenção de outorga
junto ao Poder Público, sendo objeto, também, de cobrança, nos termos do contido no
art. 20 da Lei nº 9.433/1997.
Assim, no Brasil, nos casos de privatização do sistema público de captação,
tratamento e abastecimento, em quaisquer dos três modelos abordados na presente
pesquisa, quais sejam alienação, concessão ou gestão administrativa, as corporações
privadas deverão pagar ao Poder Público pelo direito de captação da água para fins
de abastecimento público.
Verifica-se que não há alienação da água (bem ambiental), mas tão somente da
prestação do serviço público ligado à captação, tratamento e abastecimento de água
potável à população, ou seja, em quaisquer dos três modelos, o objeto da privatização
é a prestação do serviço de captação, tratamento e abastecimento de água potável à
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 111

população, não havendo alienação da água em quaisquer dos três modelos, mesmo
porque, conforme já explanado anteriormente, a água trata-se de um bem ambiental
e, como tal, é de uso comum do povo, sendo o acesso esta um direito fundamental
indisponível.
Tal como ocorre com o Poder Público, as corporações privadas, quando
assumem, por meio da privatização, os serviços de captação, de tratamento e de
abastecimento de água potável à população, têm custos de operacionalização para
a prestação de tais serviços, visando a tornar a água captada potável, pois, no mais
das vezes, a água captada não apresenta condições adequadas de potabilidade para
ser distribuída diretamente à população.
São tais custos que são repassados à população (consumidor) acrescidos de um
percentual (taxa administrativa) relativo ao lucro da corporação privada, normalmente
fixado por ocasião do processo de privatização do sistema.
Não há, portanto, alienação do bem ambiental água, pois o que há, na verdade,
é a cobrança dos custos envolvidos na realização da atividade econômica ligada aos
serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população,
acrescido de um percentual (taxa administrativa) de lucratividade ligado ao exercício
do direito fundamental da livre iniciativa, previsto no art. 170, caput, da Constituição
Federal de 1988.
No âmbito da Law and Economics, são questionáveis as privatizações de fontes
de água de alta qualidade e localizadas próximas aos locais de abastecimento, pois,
nesses casos, entende-se que deveria prevalecer a prestação pública dos serviços de
captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população, visto que os
custos seriam menores em tais condições de qualidade da água e de distância entre
os pontos de captação e de tratamento, e entre esses e os pontos de abastecimento,
de forma a garantir maior eficiência ao serviço público.
Portanto, seriam passíveis de privatização as fontes de água de baixa qualidade
e localizadas distantes dos locais de abastecimento, isso, é claro, nos casos em que na
área territorial não haja a prestação pública dos serviços de captação, de tratamento
e de abastecimento de água potável à população, pois tal situação inviabilizaria a livre
concorrência e, assim, comprometeria a livre iniciativa, em virtude da dificuldade e/ou
da impossibilidade de obtenção de lucro por parte da iniciativa privada.
Não havendo na área territorial a prestação pública dos serviços de captação,
de tratamento e de abastecimento de água potável à população, para atuar em concor-
rência com as corporações privadas, seria recomendável o processo de privatização
112 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

em regime de concorrência, por meio do qual poderia ser viabilizada a privatização


individualizada das diferentes fontes existentes na área territorial.
Assim, diferentes corporações privadas poderiam participar do processo de
privatização, de forma a possibilitar que, em uma mesma área territorial, mais de uma
corporação privada atue nos serviços de captação, tratamento e abastecimento de
água à população, possibilitando à população a obtenção de água tratada e de quali-
dade a um preço justo, em virtude da existência da concorrência entre as corporações
privadas que passarão a atuar na prestação dos serviços de captação, de tratamento
e de abastecimento de água potável à população.
No exemplo acima, para evitar a formação de cartéis de exploração econômica
da água, o município deveria fixar a taxa administrativa a ser cobrada pelas corporações
privadas por volume cúbico, em virtude da prestação dos serviços de captação, de
tratamento e de abastecimento de água potável, de forma forçá-las a aumentar sua
eficiência para a obtenção do esperado lucro.

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A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL NO
MARCO NORMATIVO EUROPEU: A APOSTA NA
SUSTENTABILIDADE DOS BIOCOMBUSTÍVEIS1

THE PATH FOLLOWED BY THE RENEWABLE ENERGY


IN THE EUROPEAN REGULATORY FRAMEWORK:
THE BET ON THE SUSTAINABILITY OF BIOFUELS

FLAVIA TRENTINI2

SUMÁRIO: Introdução - 1. Trajetória da normativa europeia para a energia renovável


- 2. Diretiva 28/2009 relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fon-
tes renováveis, alterações e novas propostas - Considerações finais - Referências.

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a trajetória das normativas da
União Europeia (UE) para a implementação de energias renováveis, mais especifica-
mente de biocombustíveis, em seu território. Para o seu desenvolvimento, a metodologia
utilizada foi a análise documental dos textos normativos que disciplinam a matéria, por
meio de uma organização que segue o critério cronológico. Os resultados alcançados
dão conta da evolução das discussões e da regulamentação sobre o tema, que resul-
tou na Diretiva 28/2009, e demonstram a importância dada às energias renováveis,

1
Data de recebimento do artigo: 21.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 06.03.2019 e 15.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 21.03.2019.
2
Professora Associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil da Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FDRP-USP - e do Programa de Mestrado da mesma
instituição. Possui Doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado realizado na
Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e Perfezionamento - SSSUP - Pisa, Itália, com bolsa
FAPESP e Pós-Doutorado em Administração/Economia das Organizações - FEA/USP. Livre Docente em
Direito Agrário pela FDRP-USP. Atua na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental
e Direito do Consumidor. Integrante do Grupo de Estudos Agrários - GEA-USP. E-mail: trentini@usp.br.
118 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

especialmente aos biocombustíveis, na Comunidade Europeia. Ademais, o percurso


trilhado possibilita uma melhor compreensão das propostas que se encontram em
fase de tramitação no Parlamento Europeu, e que devem ser encerradas até 2020.
Por sua vez, a conclusão é no sentido de que o desafio de construção de um sistema
de regulação do uso de energias renováveis na UE permanece em aberto, devendo
continuar a ser observado de perto.
PALAVRAS-CHAVE: energias renováveis; biocombustíveis; União Europeia;
Diretiva 28/2009.
ABSTRACT: The aim of this article is to analyze the trajectory of European Union
(EU) regulations for the implementation of renewable energies in their territory, more
specifically of biofuels. The methodology used was the documentary analysis of the
normative texts that rule the matter, organized according to a chronological criterion.
The results show the evolution of the discussions and regulation on the subject, which
led to Directive 28/2009, and demonstrate the importance given to renewable energies,
especially biofuels, in the European community. In addition, the path that has been
pursued provides a better understanding of the proposals that are underway in the
European parliament and which should be closed by 2020. The conclusion is that the
challenge of building a regulatory system for renewable energies in the EU remains
unfinished and, thus, should continue to be closely monitored.
KEYWORDS: renewable energies; biofuels; European Union; Directive 28/2009.

INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo analisar a trajetória das normativas da União Eu-
ropeia (UE) para a implementação de energias renováveis, mais especificamente de
biocombustíveis em seu território.
Dessa forma, o fio condutor da análise consiste no levantamento de documentos
com relevo para o tema. Entretanto, o propósito de realizar um levantamento dos tex-
tos normativos que disciplinam a matéria, concretizando o “estado da arte” da política
europeia sobre biocombustíveis, exigiu uma organização segundo um critério temporal,
cronológico, para que se percebesse a evolução das discussões e da regulamentação
sobre o tema, que resultou na Diretiva 28/2009, bem como para melhor compreender
as propostas que se encontram em fase de tramitação no Parlamento Europeu, e que
devem ser encerradas até 2020.
Ao exame das normas serão acrescentados os aspectos históricos relevantes
e alguns pontos de referências econômicos para o formato atual da política europeia
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 119

sobre biocombustíveis, bem como análises pertinentes de alguns autores que iniciaram
o debate acadêmico que permeia o tema.

1. TRAJETÓRIA DA NORMATIVA EUROPEIA PARA A ENERGIA RENOVÁVEL

O setor energético foi um dos primeiros setores a ser disciplinado pelos estados
europeus, já na metade do século passado, mediante seus tratados-base da Comu-
nidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e da Comunidade Europeia de Energia
Atómica (EURATOM).
O primeiro, assinado em Paris em 1951, por França, Alemanha, Itália e Países
da Benelux, tinha como objetivo introduzir a livre circulação de carvão e de aço e ga-
rantir o acesso às fontes de produção. A instauração de um mercado comum do carvão
era baseada na eliminação de barreiras alfandegárias entre os Estados-Membros e a
proibição de ajudas.
O segundo tratado foi o EURATOM, assinado em 1957, juntamente com o tratado
que instituiu a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Em termos gerais, o EURATOM
tinha por objetivo contribuir com a criação e crescimento da indústria nuclear europeia,
a fim de que todos os Estados-Membros pudessem se beneficiar do desenvolvimento
da energia atômica e garantir a segurança de aprovisionamento, desde que para fins
civis e pacíficos (UE, 1951; UE, 1957).
Por sua vez, o tratado que instituiu a Comunidade Econômica Europeia não
continha qualquer disposição em relação à produção e à distribuição de energia. Barbara
Pozzo (2009, p. 844) considera que a ausência de competência específica em matéria
energética e a falta de instrumentos de intervenção direta da Comunidade Europeia
fizeram com que a sua atuação nessa temática se limitasse ao papel de coordenação.
Após a crise do petróleo de 1973, iniciou-se lentamente a discussão a respeito
das reservas energéticas. Sobre esse interesse emergente, Mariagrazia Alabrese
(2015, p. 382) aponta que as energias renováveis começam a chamar a atenção da
comunidade europeia mais por uma questão de segurança energética do que propria-
mente por suas vantagens ambientais.
Em 1986, o Ato Único Europeu, que tinha como objetivo finalizar, até 1992, o
mercado comum, mesmo sem fazer referência expressa ao setor de energia, acabou
por fomentar o mercado interno. Outro ponto importante que deve ser destacado
deste documento é a introdução de três novos artigos (130R, 130S e 130T) sobre
meio ambiente, que permitiam a Comunidade proteger e melhorar a qualidade do
ambiente e contribuir com a saúde humana, deixando claro que as ações ambientais
120 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

seriam eficazes se realizadas pela comunidade europeia mais do que pelos estados
individualmente (UE, 1986).
No ano seguinte, em 19 de outubro, o Conselho da Comunidade Europeia lança
o quarto programa de ação ambiental (1987-1992), com previsão expressa sobre ener-
gia. Esclarecia que a política energética é interligada com os problemas de poluição
atmosférica e que fontes energéticas alternativas, ou seja, não fósseis, ajudariam a
melhorar a qualidade do ar (UE, 1987).
O Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, em 1992, previa, pela primeira
vez, que a comunidade poderia adotar medidas em matéria de energia, mas sem atribuir
competências às instituições. Barbara Pozzo (2009, p. 850) esclarece que nos anos
anteriores a Maastricht, a Comissão Europeia havia redigido um projeto que inseria um
capítulo sobre energia no tratado, mas o projeto foi retirado por duas constatações: a
falta de consenso político e o insuficiente debate interno pelas instituições comunitárias
sobre a organização social e econômica da UE.
Mas essa postura tímida, aos poucos, foi sendo deixada para trás. Na segunda
metade da década de noventa, a UE realçou a importância de uma política energé-
tica e renovável para a Europa, por meio das edições sucessivas de livros brancos
e verdes. Os livros brancos são documentos com proposições de políticas públicas.
Diferentemente, os livros verdes têm um caráter mais consultivo e podem apresentar
meramente uma estratégia detalhada a ser implementada (UE, 2016c).
De fato, em 1994, a Comissão elaborou o primeiro Livro Verde sobre energia
para UE, no qual apresentou os principais desafios que a Comunidade iria encontrar
nos próximos anos, particularmente nos setores da indústria e da energia. O Livro
Verde fazia um exame da situação e das perspectivas energéticas e, por fim, analisava
as responsabilidades comunitárias no setor energético e a competitividade entre as
diversas fontes (UE, 1995b).
No Livro Branco “Uma política energética para a UE” (UE, 1995a), elaborado logo
após o período de consultas iniciado com o Livro Verde, a Comissão lançou diretrizes
para a política energética nos próximos anos, consonantes com as preocupações
ambientais emergentes. Ademais, a Comissão apresentou um programa de ação com
duração de cinco anos.
As políticas nacionais e comunitárias no campo energético, segundo o Livro
Branco, deveriam buscar: a integração do mercado interno de energia, levando em
consideração a diferença entre oferta e demanda existente entre os diversos estados;
a administração da dependência energética e a manutenção das reservas; a promoção
do desenvolvimento sustentável e a diversificação das fontes energéticas e a proteção
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 121

ambiental (UE, 1995a). Constava, ainda, nesse livro, que a Comunidade Europeia
apoiaria projetos e pesquisas de desenvolvimento de energias renováveis e a difusão
de novas tecnologias, também se propunha a introduzir incentivos fiscais.
Em que pesem esses antecedentes, o primeiro passo para a real inserção das
energias renováveis no panorama europeu institucional foi a elaboração de um novo
Livro Verde, no final de novembro de 1996, com um amplo debate sobre a natureza
das medidas prioritárias a serem realizadas pela UE. Destaca-se, dentre as discussões,
o parecer da Parlamento Europeu, que reconheceu o papel das energias renováveis
no combate ao impacto dos gazes de efeito estufa (GEE) e na contribuição para a
segurança e abastecimento de energia, e sublinhou, ainda, a oportunidade para a
criação de emprego em pequenas e médias empresas e nas regiões rurais. Ao final,
considerou necessária a aprovação de uma diretiva e reafirmou que seria necessário
aumentar os orçamentos de apoio às energias renováveis (UE, 1997a).
A seu turno, o Livro Branco foi elaborado para a Comissão e intitulado “Estratégia
e plano de ação comunitários. Energia para o futuro: fontes de energias renováveis”,
em 1997, consistiu em um plano de ação sobre as fontes energéticas renováveis,
que fazia referência explícita aos problemas das mudanças climáticas. Reconhecia o
documento que, nos anos seguintes, a UE deveria tomar decisões importantes sobre
a sua política energética (UE, 1997a).
Esse documento de 1997 salientava que o incentivo à energia renovável poderia
solucionar outros dois problemas. O primeiro seria que a produção de energia elétrica
proveniente de fontes renováveis ajudaria a redução de CO2 e, com isso, a Comissão
atingiria as metas a que havia se comprometido internacionalmente. A segunda questão
a ser solucionada com a incorporação da matriz energética sustentável seria o problema
da dependência energética de países externos à UE.
O objetivo era alcançar a inclusão de 12% de energias renováveis no consu-
mo total de energia da UE até 2010, ou seja, pretendia-se duplicar a quota de 6%.
Estabeleceram-se também metas específicas para cada tipo de energia: eólica, térmica,
biomassa, etc. Os objetivos estratégicos para UE foram por ela mesma considerados
ambiciosos no documento, mas aceitos majoritariamente no período de consulta do
Livro Verde que o antecedeu.
A respeito da implementação das metas, Nicolae Scarlat et al (2015, p. 970)
considera que foi alcançada ou mesmo ultrapassada por alguns tipos de energias re-
nováveis, como é o caso da energia eólica. Ressalta que os Estados-Membros fizeram
progressos relevantes no aumento da porcentagem de energia renovável no consumo
interno bruto, de 4,4% em 1990, para 12% em 2010.
122 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Mesmo sem tratar especificamente sobre a matéria de energia renováveis,


cabe lembrar que o Tratado de Amsterdam, que entrou em vigor em 1999, alterou o
Tratado da União Europeia em diversos temas, dentre eles a inserção, no artigo 3C,
das exigências em matéria ambiental. O artigo fazia referência expressa à proteção
do meio ambiente, que deveria ser integrada na execução das políticas e ações da
Comunidade, com o objetivo principal de promoção do desenvolvimento sustentável
(UE, 1997b).
No ano 2000, um importante documento é editado pela Comissão, denominado
“Livro Verde sobre a segurança e abastecimento energético”, que abordava as principais
questões ligadas à crescente dependência energética europeia e às preocupações
ambientais conectadas às mudanças climáticas e ao mercado interno de energia (ações
de oferta e procura) (UE, 2000). Este livro foi posto em ação na Diretiva n. 77, de 2001,
relativa à promoção da eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis,
que pode ser considerado como o primeiro resultado da pressing da Comissão sob as
instituições da UE (UE, 2001).
Marilú Marletta (2014, p. 472) acrescenta que as razões ambientais (redução de
emissão de CO2) e as mercadológicas (a contribuição para o armazenamento energéti-
co) não foram as únicas questões que criaram um clima propício ao incentivo de fontes
de energia renováveis na UE. O impacto positivo sobre o emprego e a possibilidade
de potencializar o desenvolvimento regional para a construção do mercado interno de
energia elétrica sem dúvida colaboraram fortemente neste impulso.
A Diretiva n. 77/2001 visava a aumentar a contribuição de energia derivada
de fontes energéticas no mercado europeu e também a servir de base para o quadro
normativo comunitário sobre a matéria. O ponto de destaque foi a meta de eletricidade
produzida por fontes de energia renováveis para 2010, que deveria alcançar quota de
22,1% do consumo global de energia da UE (UE, 2001).
A respeito da indicação de metas, Susanna Quadri (2011, p. 845) considera que
o estabelecimento dos objetivos vinculativos foi o instrumento mais importante para o
adimplemento das obrigações assumidas pela UE no Protocolo de Kyoto. Outro ponto de
destaque foi o estímulo aos Estados-Membros para a fixação de seus próprios objetivos
para dez anos seguintes, levando em conta o objetivo europeu dentro do Protocolo.
A política ambiental, artigo 175 do Tratado da Comunidade Europeia (atual 192
do TFUE), foi a base da estruturação da Diretiva de 2001. O artigo 175 fazia referência
à possibilidade do Parlamento europeu e do Conselho deliberarem sobre o procedi-
mento legislativo ordinário e ações que deviam ser realizadas para o cumprimento
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 123

dos objetivos de política ambiental do artigo 174 que o antecedia. Os objetivos eram
específicos: proteção e melhoramento da qualidade ambiental; proteção à saúde hu-
mana; utilização racional das reservas naturais e promoção internacional ou regional
de medidas para resolver os problemas ambientais, em particular relacionados com
as mudanças climáticas (UE, 2007b).
O desenvolvimento sustentável constava em vários itens das motivações da
normativa referida, mas não se traduzia em nenhum dos artigos. Aparentemente, a
promoção de energias renováveis, por si só, poderia ser considerada uma colaboração
para o desenvolvimento sustentável, ou seja, o foco estava unicamente em reduzir a
emissão de CO2.
O artigo 4º da Diretiva 77/2001, por sua vez, estabelecia que a Comissão deveria
avaliar os diversos regimes de apoio dos Estados-Membros para a produção de energia
elétrica renovável, levando em consideração a sua compatibilidade com o mercado
interno de energia. A diretiva detinha-se praticamente na eliminação de barreiras à
produção de energias e na simplificação dos procedimentos administrativos (UE, 2001).
O ano de 2003 representou um marco importante para os biocombustíveis na
política europeia. Três instrumentos normativos fundamentais foram criados: a Diretiva
n. 17 de 2003, a Diretiva n. 30/2003 e a Diretiva 96 da UE.
A primeira, Diretiva n. 17 de 2003, relativa à qualidade da gasolina, incluiu a
mistura de biocombustíveis com combustíveis convencionais até um limite máximo de
5% (UE, 2003a).
Mais tarde, em maio de 2003, a UE introduziu no quadro normativo comunitário
a primeira diretiva para o incentivo dos biocombustíveis ou de outras fontes renováveis
para o transporte. A Diretiva n. 30/2003 estabelecia metas para a inserção de biocom-
bustíveis no mercado europeu. Embora de forma não obrigatória, o artigo 3º estabelecia
que os Estados-Membros deveriam introduzir um percentual mínimo de biocombustíveis
ou outros combustíveis derivados de fontes renováveis no seu mercado. O valor de
referência para alcançar esse objetivo era de 2% até 31 de dezembro de 2005 e de
5,75 até dezembro de 2010 (UE, 2003b).
Por sua vez, o artigo 4º obrigava aos Estados-Membros o envio anual de infor-
mações referentes às medidas adotadas para promover a utilização de biocombustíveis;
as reservas nacionais destinadas à produção de biomassa para uso energético; e ao
total de venda de combustíveis e biocombustíveis. A Comissão deveria - até dezembro
de 2006, e depois a cada dois anos - avaliar os progressos realizados pelos Estados
no que se refere à implementação de biocombustíveis (UE, 2003b).
124 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Nessa avaliação, os três critérios estão direta ou indiretamente ligados ao obje-


tivo do desenvolvimento sustentável. Tais como: os aspectos econômicos e o impacto
ambiental devido ao aumento da quota de biocombustíveis; a sustentabilidade das
culturas utilizadas para a produção de biocombustíveis, especialmente a destinação
do uso dos solos, rotação de culturas, uso de agrotóxicos e, por fim, a avaliação do
impacto do uso dos biocombustíveis na redução de emissão de CO2.
Por fim, em outubro de 2003, a Diretiva 96 da UE reestruturou o quadro comuni-
tário de tributação dos produtos energéticos. Alterou, sobretudo, os impostos sobre os
óleos minerais para permitir a aplicação de taxas reduzidas sobre os biocombustíveis
(UE, 2003c).
Mesmo antes de 31 de dezembro, prazo previsto para a entrega da avaliação
da Diretiva 30/2003, a Comissão - em razão da reunião de cúpula dos chefes de
estado, Hampton Court, em outubro de 2005 - foi convidada a apresentar propostas
para modificar a política energética da Europa e, em fevereiro de 2006, apresentou
um documento intitulado “Uma nova estratégia para os biocombustíveis” (UE, 2006a).
Um dos focos principais do documento deveria ser a apresentação de soluções
para reduzir a dependência europeia da importação do petróleo de forma progressiva e
baseado em estudos que analisassem os impactos ambientais, sociais e econômicos
(UE, 2006a). Mariagrazia Alabrese (2015, p. 383) sublinha que o documento foi ela-
borado levando em consideração a sustentabilidade da produção de biocombustíveis
em termos de questões ambientais, econômicas e sociais e que o documento abriu
o caminho para o desenvolvimento de uma política energética mais madura da UE.
Ao explorar as oportunidades de produção de biocombustíveis, o documento
ultrapassou os limites da UE (perspectiva da governança global ambiental) e fez men-
ção, em diversos momentos, aos países em desenvolvimento. A Comissão advertiu
que a situação nos países em desenvolvimento é diversa e a exploração de seus
recursos deveria ser realizada com respeito às boas práticas agrícolas, ou seja, que a
produção de biomassa deveria ser sustentável, quer dizer, compatível com os requisitos
ambientais (floresta, água e fertilidade do solo) e que não poderia gerar um impacto
negativo na produção de alimentos (UE, 2006a).
O documento da Comissão descrevia sete diretrizes políticas no âmbito das quais
seriam reagrupadas as medidas adotadas para incentivar a produção e a utilização
dos biocombustíveis (UE, 2006a).
a) Incentivar o mercado de biocombustíveis: apresentar alterações à Diretiva
30/2003 para definir objetivos obrigatórios para a quota de mercado representado
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 125

pelos biocombustíveis; motivar os estados a concederem ajudas aos biocombustíveis


de segunda geração e estimular a compra pública de veículos “verdes” que utilizem
mistura com biocombustíveis.
b) Vantagens ambientais: examinar de que maneira os biocombustíveis podem
ser contabilizados para conseguir atingir as metas de redução de CO2. Iniciar garantia
de sustentabilidade da matéria-prima dos biocombustíveis na UE e nos países terceiros,
com a criação de um sistema que pudesse enviar sinais ao mercado. Mas, faz o alerta
que a eficácia de um sistema deste tipo depende da possibilidade de ser aplicado sem
causar discriminação entre produtos nacionais e importados e em total compatibilidade
com a Organização Mundial do Comércio (OMC);
c) Desenvolver a produção e a distribuição dos biocombustíveis: incentivar os
Estados-Membros e as regiões a inserirem os biocombustíveis nas suas estratégias e
programas operacionais nacionais coordenados com a política de desenvolvimento rural;
d) Ampliar o fornecimento de matéria-prima: avaliar a possibilidade de reduzir a
quantidade de cereais exportados e transformá-los em biocombustíveis. Outro ponto
importante neste tópico é monitorar o impacto nos preços e abastecimento de alimentos,
seja na Europa ou em países em desenvolvimento.
e) Potencializar as oportunidades comerciais: procurar realizar uma aproximação
equilibrada nas negociações, em curso e futuras, com os países e regiões produtoras
de etanol. No contexto de um aumento da procura de bioetanol, a UE respeitará os
interesses dos produtores nacionais e de seus partners comerciais, de forma que o
acesso ao mercado do bioetanol importado não seja contrário ao estabelecido nos
acordos comerciais (ACP - países da África, Caribe e Pacífico e o acordo UE-Mercosul
em curso à época).
f) Apoiar os países em via de desenvolvimento: garantir ajudas aos biocombus-
tíveis utilizados em países em via de desenvolvimento e nas regiões onde esses sejam
uma boa alternativa para a redução da pobreza de maneira sustentável. Salienta que,
em muitos países em via de desenvolvimento, será necessária a elaboração de uma
política e estratégia para os biocombustíveis de acordo com o panorama nacional,
regional e internacional e com os interesses públicos e privados. A UE considera que
sua contribuição será principalmente para diminuir os riscos ambientais e no desen-
volvimento de quadros normativos eficazes.
g) Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento: incentivar o desenvolvimento de uma
plataforma tecnológica para os biocombustíveis. Dar prioridade aos biocombustíveis
de segunda geração.
126 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Chama a atenção a preocupação do documento com o mercado internacional


e a sua adequação às regras da OMC e às condições de sustentabilidade (ambiente,
social econômico) da produção de matérias-primas para os biocombustíveis em países
em via de desenvolvimento. Em particular, ressaltava que a produção de etanol poderia
oferecer uma alternativa viável para alguns países produtores de açúcar afetados pela
reforma do regime do açúcar da UE. Mariagrazia Alabrese (2015, p. 384) pontua que
os receios citados no documento exigem um estudo específico de quantificação e, se
necessário, deveriam ser suportados por quadros normativos sólidos.
O ano de 2007 também é importante no desenho político-normativo dos bio-
combustíveis na UE. Em 10 de janeiro de 2007, foi publicada a avaliação da Comissão
prevista na Diretiva 30 de 2003. O relatório evidenciava que em 2003 o uso de bio-
combustíveis nos Estados-Membros era de 0,5% e em 2005 chegou a 1.1%. O dado
revelava o progresso, pois o consumo dobrou em dois anos, mas era inferior à meta
de 2%. Salientava o relatório da Comissão que somente a Alemanha (3,8%) e a Suécia
(2,2%) conseguiram alcançar a quota prevista pela diretiva. Em média, os demais
Estados-Membros atingiram 52% da meta proposta. Devido a isso, o relatório concluiu
que o objetivo da diretiva a respeito de 2010 também não seja alcançado (UE, 2007a).
Merece destaque a análise realizada no relatório sobre as razões do sucesso
da implementação pela Alemanha e Suécia. Apesar de a Alemanha ter concentrado
seus esforços no biodiesel e a Suécia no etanol, podem-se encontrar semelhanças:
ambos os países já incentivavam o uso de biocombustíveis há diversos anos, por meio
de mistura nos combustíveis fósseis; concediam isenções fiscais aos biocombustíveis
e combinavam produção interna e importação (de etanol brasileiro no caso da Suécia
e biodiesel nos outros Estados-Membros, caso da Alemanha) (UE, 2007a).
No que diz respeito aos itens relacionados ao desenvolvimento sustentável,
o relatório apontava a seguinte conclusão: a produção de matérias-primas utilizadas
para a produção de biocombustíveis em terrenos adequados (excluídas as reservas
de grande valor) era viável até uma quota de consumo de 14%; os biocombustíveis
de primeira geração garantiam uma redução de GEE em torno de 35-50% em relação
aos combustíveis convencionais (UE, 2007a).
Chamavam a atenção no relatório da Comissão duas referências positivas da
estratégia brasileira. A primeira era relativa à redução de 90% de gases causadores
do efeito estufa pelo bioetanol produzido de cana-de-açúcar. A segunda era sobre os
veículos fazerem parte da frota brasileira e funcionarem com uma mistura de
0% a 100% de etanol, e serem vendidos pelo mesmo preço daqueles com combustível
tradicional (UE, 2007a).
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 127

Sobre os efeitos econômicos, o relatório considerava como maior desafio da


política comercial da UE encontrar uma forma de promover a exportação internacional
de biocombustíveis que contribuísse para a redução dos GEE e evitasse a destruição
de florestas tropicais. A respeito disso, trazia nota explicando que o caminho a seguir
deveria ser constituído pela integração do sistema de incentivo com o sistema de
certificação, elaborados conjuntamente com o partner comercial exportador e com os
produtores. E ainda ressaltava que seriam necessários mais estudos e discussões
(UE, 2007a).
Além disso, o relatório de avaliação da Comissão estabelecia as próximas
etapas para a implementação da política de biocombustíveis, mas todas tinham como
norte a mudança na quota obrigatória de 1% para 10%. Dos sete desafios, quatro
eram referentes à necessidade de mudança da tecnologia da frota automobilística e à
qualidade dos combustíveis, em relação ao percentual na mistura de biocombustíveis
(UE, 2007a).
Sobre as medidas de sustentabilidade dos biocombustíveis, a referência estava
em um único item, o qual estabelecia que as medidas deveriam garantir sinais positivos
de proteção ao meio ambiente. Os instrumentos utilizados deveriam estar baseados no
monitoramento e em comunicação periódica por parte da Comissão sobre o impacto
ambiental da produção e da utilização dos biocombustíveis “do poço a roda” (UE, 2007a).
Por último, o relatório indicava quais os pontos da Diretiva 30/2003 que de-
veriam ser revisados. O primeiro ponto era que deveria dar um sinal claro que a UE
pretendia reduzir a dependência do petróleo no setor de transporte, passando para
uma economia de baixa emissão de carbono. O segundo referia-se a fixar os objetivos
mínimos de biocombustíveis até 2020 (10%). E o terceiro desaconselhava o uso de
biocombustíveis de baixa eficiência e incentivava os biocombustíveis que respeitam
o meio ambiente e garantem a segurança, o abastecimento e interconexão entre as
redes no que diz respeito à economia e à eficiência energéticas e ao desenvolvimento
de novas energias renováveis (UE, 2007a).
No mesmo 10 de janeiro de 2007, data de publicação do relatório de avaliação
da Diretiva 30/2003, é enviada pela Comissão uma Comunicação ao Conselho e ao
Parlamento, denominada roteiro das energias renováveis - “As energias renováveis no
século XXI: construir um futuro mais sustentável”. O documento é considerado parte
integrante da avaliação estratégica da política energética europeia e propunha que a
UE fixasse um objetivo obrigatório (juridicamente vinculante) de uma quota de 20%
de energia renovável para 2020. Incentivava a criação de um novo quadro legislativo
sobre o tema. Este deveria incentivar o uso de energias renováveis e garantir ao setor
128 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

privado a estabilidade durante um longo período de tempo para que fossem possíveis
investimentos no setor (UE, 2007a).
Especificamente sobre os biocombustíveis, de acordo com a Diretiva de 2003,
fixava-se a quota em 2%. A Comissão sugeriu que fosse incluído um novo objetivo no
quadro normativo seguinte e considerava que uma hipótese prudente e sustentável
seria de 10% do consumo total de gasolina e diesel para o transporte. Considerava
também necessário alterar a diretiva sobre a qualidade dos biocombustíveis de 1998
(UE, 2007a).
Segundo a Comissão, alterar as quotas mínimas de energia renovável e de
biocombustíveis seria uma etapa importante para consolidar o desenvolvimento sus-
tentável. Ao mesmo tempo, a UE fortaleceria o abastecimento reduzindo a procura
por combustíveis fósseis em mais de 250 milhões Tep (1 tonelada igual a 6,841 barris
- 171 milhões de barris) até 2020. A mesma comissão considerava que, até a entrada
em vigor de uma nova legislação, deveria ser controlado o cumprimento do quadro
legislativo atual (UE, 2007a). Na sequência, em março de 2007, o Conselho da União
Europeia considerou urgente um novo marco para a política energética e requereu à
Comissão a apresentação de um novo plano de ação para as energias renováveis até
o início de 2009 (UE, 2007a).
O Parlamento, por sua vez, requereu que a Comissão apresentasse até o final
de 2007 uma proposta de quadro normativo sobre as energias renováveis. Sublinhou
a importância da sustentabilidade e indicou que biocombustíveis que não preenches-
sem os critérios de sustentabilidade não deveriam ser elegíveis para subvenções ou
isenções fiscais e, portanto, não deveriam ser contabilizados no cálculo dos objetivos
de tais critérios (UE, 2007a).
Ao final, solicitou que a Comissão elaborasse, dentre outras medidas, um sistema
de certificação obrigatório e abrangente aplicável a todos os biocombustíveis produzi-
dos dentro da UE e importados. Sugeriu que se buscasse a cooperação com a OMC
e organizações internacionais similares, a fim de assegurar a aceitação internacional
de critérios específicos de sustentabilidade e do sistema de certificação, promovendo
assim os meios mais sustentáveis de produção de biocombustíveis em todo o mundo
e criando condições de igualdade para todos (UE, 2007a).
Ainda no ano de 2007, em 13 de dezembro, foi assinado pelos Estados-Membros
da UE o Tratado de Lisboa (TFUE), que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009. O
artigo 194 conferia à UE uma competência paralela para a instauração de uma política
no setor de energia, a fim de realizar os seguintes objetivos: bom funcionamento do
mercado interno e segurança de abastecimento (UE, 2007b).
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 129

Paralelamente à atribuição de competências em matéria de energia, a UE, em


seu artigo 194, estabelecia também os limites, reconhecia aos Estados-Membros po-
deres de ação exclusivos para a exploração dos seus recursos energéticos, a escolha
entre diferentes fontes e a estrutura geral do seu abastecimento energético (UE, 2007b).
O elemento novo inserido no artigo 194 TFUE era o reconhecimento oficial do
papel da economia e eficiência energética e do desenvolvimento de novas energias
na definição de uma política energética para a UE. Verifica-se, portanto, a intenção
de unir essas áreas com uma tutela eficaz do meio ambiente e, assim, realizar um
abastecimento seguro e sustentável (UE, 2007b).
A respeito da importância da modificação realizada pelo Tratado de Lisboa,
Marilú Marletta (2014, p. 476) explica que as instituições da UE, após o referido tratado,
poderiam dar início a ações normativas no setor de energia renováveis, em razão do
fundamento jurídico autônomo e específico, não mais prescrito exclusivamente nas
normas sobre ambiente, que foram úteis, mas limitavam a base jurídica às diretivas
anteriores.
A referida autora faz menção a outra vantagem da inserção das energias reno-
váveis nos objetivos da política energética europeia: além da maior visibilidade, permitia
que as instituições adotassem ações integradas para o desenvolvimento de energias
renováveis. Tratava-se de um componente essencial para a estruturação de uma po-
lítica energética da UE competitiva, segura e sustentável (MARLETTA, 2014, p. 477).
O descumprimento dos objetivos voluntários da Diretiva sobre biocombustíveis
30/2003 contribuiu para a introdução de um objetivo obrigatório de energia renovável
nos transportes na nova Diretiva de 2009.

2. DIRETIVA 28/2009 RELATIVA À PROMOÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE ENERGIA


PROVENIENTE DE FONTES RENOVÁVEIS, ALTERAÇÕES E NOVAS
PROPOSTAS

Em razão dos documentos e estudos anteriores, a União Europeia iniciou a


discussão daquela que é hoje a Diretiva 28/2009. A tramitação do novo texto normativo
teve início em 23 de janeiro de 2008. O primeiro esboço da diretiva foi publicado em 23
de janeiro de 2008. Na parte introdutória do texto, especificamente no item denominado
“consulta às partes interessadas, avaliação de impacto” foi mencionando o sistema
sustentável para os biocombustíveis. Uma das questões postas foi: quais critérios e
métodos de controle podem ser utilizados para criar um sistema sustentável para os
biocombustíveis? (UE, 2008).
130 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Para responder à questão foi sugerido um sistema, após análises de várias


opções, que contivesse: níveis mínimos de redução de GEE; critérios relativos à
biodiversidade e aos subsídios para o uso de culturas alternativas que permitissem
diversificar a oferta de matéria-prima e a promoção de biocombustíveis de segunda
geração (UE, 2008).
Outro ponto sublinhado pela Comissão foi que a verificação dos critérios fosse
de competência dos Estados-Membros da UE, mas encorajando ao mesmo tempo
sistemas de certificação internacionais. Sobre as sanções aplicadas ao desrespeito
aos critérios de sustentabilidade, foram previstas a exclusão dos benefícios fiscais
e a desconsideração daqueles biocombustíveis no que diz respeito às obrigações e
aos objetivos nacionais em matéria de biocombustíveis. Por fim, o rastreamento dos
biocombustíveis deveria ser realizado de maneira que se possa individualizar os que
satisfaçam os critérios de sustentabilidade (UE, 2008).
Apesar das discussões e dúvidas a respeito dos requisitos de sustentabilidade
e dos sistemas de certificação, no desenho dos artigos desse primeiro esboço já era
possível encontrar a base da Diretiva 28/2009. O artigo 16, atual 18, já estabelecia a
definição de que a Comissão poderia decidir sobre acordos (bilaterais ou multilaterais)
entre países extracomunitários produtores e/ou aceitar sistemas voluntários nacionais
ou internacionais que fixassem normas para a produção de biomassa. A Comissão
deveria avaliar se se tratava de sistemas confiáveis, transparentes e com controle
independente (UE, 2009).
Na fase de discussão no Conselho da União Europeia, nota-se a grande relevân-
cia do progresso realizado nos critérios de sustentabilidade, que na primeira versão da
diretiva faziam menção somente aos critérios ambientais propriamente ditos. O parecer
do Comitê Europeu Econômico e Social foi crítico no que tange aos critérios ambientais
inseridos e à ausência dos critérios sociais presentes no esboço da diretiva (UE, 2008).
Em 26 de setembro de 2008, o Parlamento sintetizou as alterações no esboço
da diretiva com base nos pareceres dos Comitês (indústria, energia, meio ambiente,
comércio internacional, transportes, desenvolvimento rural, econômico e social) (UE,
2008). Em 17 de dezembro do mesmo ano, o Parlamento consolidou o documento
normativo e reenviou para ser aprovado na Comissão e, após, pelo Parlamento (UE,
2008). No início do mês de abril, foi aprovado pela Comissão e, no dia 23, assinado
pelo presidente do Conselho e Parlamento (UE, 2009a).
Em linhas gerais, a respeito do desenvolvimento da Diretiva 28/2009, consideram
M. Kanellakis et al. (2013, p. 1022) que esta seguiu os importantes princípios políticos
da subsidiariedade, da proporcionalidade e da melhoria da regulamentação, tal como
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 131

descrito nos Tratados e nas declarações políticas. O objetivo foi o de assegurar que as
políticas fossem desenvolvidas de forma democrática, transparente e representativa,
com justificativas claras e uma avaliação equilibrada das opções. As avaliações de
impacto acompanharam todas as propostas legislativas e descreviam as vantagens/
benefícios e as desvantagens/custos das diferentes ações políticas, além de justificarem
o curso dado pela política proposta. As novas propostas de política energética foram
preparadas com base em consultas às partes interessadas, incluindo autoridades
nacionais, organismos regionais, associações industriais, empresas, consumidores,
associações e organizações não governamentais.
Assim, a Diretiva 28/2009 estabeleceu um quadro comum para a promoção de
energia proveniente de fontes renováveis. Fixou objetivos nacionais obrigatórios de
uso de energias renováveis tanto para o consumo geral bruto de energia quanto para
o transporte. A diretiva previu também: transferências estatísticas entre os Estados-
-Membros; projetos comuns entre Estados-Membros e países terceiros; garantia de
origem; procedimentos administrativos; informação sobre as redes elétricas para a
energia de fonte renovável. Por fim, fixou critérios de sustentabilidade para biocom-
bustíveis e biolíquidos (UE, 2009a).
Suzanna Quadri (2011, p. 845) considera que, para se alcançar o duplo objetivo
da segurança de abastecimento e da redução das emissões de gases nocivos ao am-
biente, a consolidação do quadro normativo da UE representou um impulso relevante
para a adoção de medidas nacionais destinadas ao aumento da produção e do uso
de energias renováveis.
Cabe relembrar que as alterações normativas do setor de energias renováveis
foram aprovadas no final de 2008, apesar de os tratados ainda considerarem a energia
como uma responsabilidade dos Estados-Membros. Esta perspectiva mudou com o
Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009. Neste, a energia
tornou-se uma responsabilidade partilhada, abrindo caminho para uma política energé-
tica comum. O pacote climático e energético, a partir de então, poderia ser aprofundado
e poderiam ser fixados objetivos mais ambiciosos no que se refere à segurança do
abastecimento energético, ao mercado interno da energia e à solidariedade entre os
Estados-Membros. O Tratado de Lisboa confere à União um conjunto de objetivos
claros: um mercado interno da energia único e em funcionamento, a segurança no
abastecimento, a eficiência energética e a promoção das redes de energia e das fontes
de energia renováveis. Portanto, a UE dispõe agora de um quadro jurídico e de uma
base jurídica mais sólida para agir em matéria de política energética no artigo 194 do
TFUE (UE, 2007b).
132 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Além disso, em janeiro de 2014, a Comissão propôs um novo quadro político


para o clima e energia para o período de 2020 a 2030. No mês de outubro do mesmo
ano, o Conselho Europeu aprovou um objetivo vinculativo ao nível da UE de uma quota
de, pelo menos, 27 % de energias renováveis consumidas na UE em 2030 (UE, 2014).
O documento é intitulado “Estratégia para energia da UE” e propõe quatro ob-
jetivos principais: a) contribuir para que o aumento global da temperatura média não

objetivos da COP 21 de Paris; b) alcançar o objetivo de 27% de energias renováveis


na UE até 2030; c) tornar a economia da UE energeticamente mais segura, reduzindo
a sua dependência das importações; d) contribuir para tornar a UE um líder mundial
no domínio das energias renováveis e um centro global para o desenvolvimento de
tecnologias avançadas e competitivas no domínio das energias renováveis (UE, 2014).
Da discussão, iniciada em 2012, sobre a modificação indireta do uso da terra
(ILUC), na qual se acenava que os biocombustíveis alimentares teriam um papel
limitado na descarbonização do setor dos transportes em 2015, resultou a Diretiva
1513, conhecida como Diretiva ILUC, que limitou a contribuição dos biocombustíveis
alimentares a não mais que 7% até 2020.
Alcançando o panorama atual, em 30 de novembro de 2016, as aspirações
estabelecidas em 2014 foram incorporadas à proposta apresentada pela Comissão
para alterações da Diretiva 28/2009, tendo em vista os objetivos traçados para a
década 2020-2030.
Especificamente no setor de transportes, houve uma redução progressiva
dos biocombustíveis baseados em alimentos e sua substituição por biocombustíveis
avançados ou chamados de segunda geração. Alegam que, dessa forma, se tornará
possível a descarbonização do setor de transporte. No entanto, a proposta considera
que, para determinar a progressão da redução dos biocombustíveis convencionais,
é importante estar atento aos negócios incentivados pela diretiva existente e com
isso evitar a perda de ativos e de postos de trabalho, tendo em conta os importantes
investimentos realizados (UE, 2016b).
Para tanto, a proposta da Comissão, em seu artigo 7, prevê que a contribuição
dos biocombustíveis e biolíquidos, bem como dos combustíveis de biomassa consu-
midos nos transportes, produzidos a partir de matérias-primas alimentícias ou base da
alimentação para animais, não exceda 7% o consumo final de energia nos transportes
rodoviários e ferroviários nesse Estado-Membro. Esse limite será reduzido para 3,8% em
2030. Os Estados-Membros podem fixar um limite inferior e distinguir entre diferentes
tipos de biocombustíveis, biolíquidos e combustíveis de biomassa produzidos a partir
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 133

de culturas alimentares e de alimentos para animais, por exemplo, estabelecendo um


limite inferior para a contribuição dos biocombustíveis à base de culturas alimentares
produzidos a partir de culturas oleaginosas.
A proposta de modificação da Diretiva 28/2009 em tramitação no Parlamento
Europeu estabelece alterações no que se refere aos critérios de sustentabilidade,
consoante se pode verificar nos parágrafos abaixo.
Ela reforça os critérios de sustentabilidade da UE em matéria de bioenergia,
nomeadamente alargando o seu âmbito de aplicação à biomassa e ao biogás para
aquecimento e arrefecimento e à produção de eletricidade. O critério de sustentabilidade
aplicável à biomassa agrícola é simplificado a fim de reduzir a carga administrativa. O
novo texto torna ainda mais rigoroso o critério de proteção das turfeiras, tornando mais
fácil a sua verificação. Um novo critério de sustentabilidade baseado em risco para a
biomassa florestal é introduzido, assim como exigência de LULUCF para assegurar
uma contabilização de carbono apropriada dos impactos de carbono da biomassa
florestal usada na geração de energia.
Além disso, a exigência de desempenho de economia de GEE para biocom-
bustíveis é aumentada para 70% para novas plantas e uma exigência de economia de
80% é aplicada ao aquecimento/resfriamento à base de biomassa e eletricidade. Para
evitar encargos administrativos excessivos, os critérios de sustentabilidade da UE e
de economia de gases com efeito de estufa não se aplicam às pequenas instalações
de aquecimento e de eletricidade baseadas na biomassa, com uma capacidade de
combustível inferior a 20 MW.
Para simplificar os critérios de sustentabilidade da UE, a proposta de modificação
da Diretiva 28/2009 suprime uma série de disposições não operacionais, incluindo a
possibilidade de estabelecer acordos bilaterais com países terceiros e a possibilidade
de a Comissão reconhecer áreas para a proteção de ecossistemas raros, ameaçados
ou em perigo ou espécies reconhecidas por meio de acordos internacionais ou incluídos
em listas elaboradas por organizações intergovernamentais ou pela União Internacional
para a Conservação da Natureza. Além disso, clarifica a base jurídica que permite à
Comissão especificar as abordagens de auditoria a aplicar pelos regimes voluntários,
com maior incidência na limitação dos encargos administrativos.
Por último, reforça a participação dos Estados-Membros na governança dos
regimes voluntários, permitindo o controle dos organismos de certificação (UE, 2016b).
O relatório de 2016 do USDA sobre o desempenho da política de energias renováveis
da Europa aponta para um novo quadro de energia renovável para 2021-2030, que
pretende reduzir em 40% as emissões de gases com efeito de estufa e aumentar a
134 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

quota de energia renovável para 27% do consumo. Estas metas estão alinhadas com
a estratégia de economia da UE de baixo carbono de 2050.
Destarte, chegando ao final deste panorama normativo da implementação de
energias renováveis na UE, a conclusão é no sentido de se permanecer atento às no-
vidades que certamente virão, posto que a UE deverá apresentar uma nova proposta
legislativa pós-2020 como parte do pacote de energia renovável em conjunto com uma
iniciativa que define a sustentabilidade da bioenergia (USDA, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de a política energética fazer parte dos primórdios da União Europeia,


seu objetivo inicial era unicamente contribuir com a criação e o fomentar da indústria
nuclear europeia. Porém, a partir de crise do petróleo em 1973, o debate sobre energias
renováveis ganhou espaço no cenário europeu, mais por uma questão de segurança
energética do que propriamente por suas vantagens ambientais. Por sua vez, a década
de 90 foi marcada pelas primeiras discussões a respeito do tema, com uma sucessão
de livros verdes e brancos, os quais serviram de base para três importantes diretivas
em 2003.
Após a avaliação da Diretiva 30/2003, em 2007 foram previstos como próximos
passos da UE: redução da dependência do petróleo no setor de transporte, passando
para uma economia de baixa emissão de carbono; fixação dos objetivos mínimos de
biocombustíveis até 2020; e a promoção dos biocombustíveis, que respeitam o meio
ambiente e garantem a segurança, o abastecimento e interconexão entre as redes no
que diz respeito à economia e eficiência energéticas e o desenvolvimento de novas
energias renováveis.
O ano de 2009 sedimentou a política no setor da energia, com o Tratado de
Lisboa (TFUE), que reconheceu aos Estados-Membros poderes de ação exclusivos
para a exploração dos seus recursos energéticos, a escolha entre diferentes fontes e
a estrutura geral do seu abastecimento energético.
E, por fim, a Diretiva 28/2009 estabeleceu um quadro comum para a promoção
de energia proveniente de fontes renováveis, que fixou objetivos nacionais obrigatórios
de uso de energias renováveis tanto para o consumo geral bruto de energia quanto
para o transporte e critérios de sustentabilidade para biocombustíveis e biolíquidos
(UE, 2009a).
Porém o desafio continua posto na mesa com a revisão da Diretiva 28/2009, para
o período 2020-2030. O projeto em tramitação na UE prevê uma redução progressiva
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 135

dos biocombustíveis baseados em alimentos e sua substituição por biocombustíveis


avançados ou chamados de segunda geração. Desta forma, os biocombustíveis pro-
duzidos a partir de matérias-primas alimentícias ou base da alimentação para animais
não deverão exceder a 3,8% em 2030. Ademais, o projeto reforça os critérios de
sustentabilidade da UE em matéria de bioenergia, aplicando à biomassa e ao biogás
para aquecimento e arrefecimento e à produção de eletricidade. Além disso, exige
um desempenho de economia de GEE para biocombustíveis é aumentada para 70%
para novas plantas e uma exigência de economia de 80% é aplicada ao aquecimento/
resfriamento à base de biomassa e eletricidade.

REFERÊNCIAS

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A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 137

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a Diretiva 98/70/CE relativa à qualidade da gasolina e do combustível para motores diesel e a Di-
retiva 2009/28/CE relativa à promoção da utilização de energia proveniente de fontes renováveis.
Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32015L1513.
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138 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

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-brief_pt. Acesso em: 16 ago. 2017.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL1

TAXATION AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT

GABRIEL WEDY2

SUMÁRIO: Introdução - 1. Estado fiscal: orçamento e desenvolvimento sustentável -


2. Orçamento e custo do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável - 3. O
desenvolvimento sustentável e a extrafiscalidade - 4. Tributação e desenvolvimento
sustentável sob a ótica ambiental - Conclusão - Referências.

RESUMO: O artigo aborda a tributação como fator de promoção do desenvol-


vimento sustentável nas suas dimensões de inclusão social, desenvolvimento eco-
nômico, tutela ambiental e boa governança. Faz-se a análise da estrutura do Estado
Fiscal que financia políticas públicas promotoras do desenvolvimento sustentável.
Também são analisados os custos dos direitos fundamentais para a promoção do
desenvolvimento sustentável e o alicerce jurídico orçamentário para o financiamento
do Estado Democrático e Socioambiental de Direito criado pela Constituição Federal
de 1988. A finalidade extrafiscal dos tributos é defendida como meio de promoção do
desenvolvimento sustentável em todas as suas dimensões. Por fim, são fixados os
meios pelos quais a tributação pode contribuir para a promoção do desenvolvimento
sustentável em uma perspectiva ambiental.
PALAVRAS-CHAVE: princípio do desenvolvimento sustentável; tributação;
extrafiscalidade; orçamento.

1
Data de recebimento do artigo: 07.01.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 08.02.2019 e 25.02.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 07.03.2019.
2
Juiz Federal. Pós-Doutor em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for
Climate Change Law). Professor dos Programas de Pós-Graduação e de Graduação da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Coordenador da Disciplina de Direito Ambiental da Escola Superior
da Magistratura Federal (Esmafe). Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - Ajufe.
E-mail: gtwedy@gmail.com.
140 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

ABSTRACT: This paper addresses taxation as a factor to promote sustainable


development in their social inclusion, economic development, environmental protection
and good governance dimensions. An analysis is made on the structure of Fiscal State
that supports public policies promoting sustainable development. Moreover, the costs
of fundamental rights to the promotion of sustainable development as well as the law
budgetary framework to the support of the Social Environmental Rule of Law created
by 1988 Federal Constitution are analyzed. The extra fiscal purposes of taxation are
defended so as to promote sustainable development in all its dimensions. Finally,
the means through which taxation may contribute to the promotion of sustainable
development will be set under an environmental perspective.
KEYWORDS: sustainable development principle; taxation; extra fiscal protec-
tion; budget.

INTRODUÇÃO

Uma questão muitas vezes negligenciada quando se aborda o direito fundamen-


tal ao desenvolvimento sustentável é justamente o seu financiamento. A concretização
do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável possui elevado custo e não
pode prescindir da análise do orçamento que, em última instância, é o instrumento
jurídico previsto pelo direito constitucional para o financiamento do Estado e de suas
políticas públicas.
A tributação é um mecanismo para a promoção do direito fundamental ao
desenvolvimento sustentável nas suas dimensões econômica, ambiental e humana
(promoção da inclusão social) e no aspecto da governança.3 Faz-se imperiosa, portanto,
a análise do Estado Fiscal e da sua evolução histórica, sem negligenciar a sua função
arrecadatória de recursos.
A arrecadação tributária é relevante para a promoção de direitos fundamen-
tais individuais, sociais e fraternais. Entretanto, a tributação com objetivo extrafiscal
precisa ser analisada sob uma perspectiva crítica, como instrumento de promoção do
direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Mister é avaliar a tributação e
a sua relação com a dimensão ambiental do desenvolvimento sustentável. Algumas
questões, como a imposição de tributos sobre as emissões de gases de efeito estufa,
por exemplo, estão no cerne da promoção do direito fundamental ao desenvolvimento
3
Sobre soluções fiscais, tendo como base um plano fiscal para a estabilidade e o crescimento econômico
sustentável, ver: PETERSON FOUNDATION & AMERICAN. Fiscal solutions: a balanced plan for fiscal
stability and economic growth. New York, 2011. Disponível em: http://www.pgpf. org/Issues/Fiscal-
-Outlook/2011/01/20/~/media/6A83826740A94DBE91CCA557ECA1D36F. Acesso em: 20 abr. 2016.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 141

sustentável na Era das mudanças climáticas e, logicamente, não podem ser ignoradas
nessa perspectiva.

1. ESTADO FISCAL: ORÇAMENTO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Para uma boa avaliação do Estado Fiscal, da sua relação direta com o orçamento
como instituto jurídico e da consequente promoção do direito fundamental ao desenvol-
vimento sustentável, devem ser mencionadas suas etapas evolutivas. O Estado Fiscal
possui, de fato, três fases nitidamente distintas: Estado Fiscal Minimalista, Estado Social
Fiscal e Estado Democrático e Social Fiscal.4 O Estado Fiscal Minimalista, que vigorou
do final do século XVIII até o início do século XX, ficava limitado ao uso do poder de
polícia, da prestação jurisdicional e de limitadíssimos e escassos serviços públicos.
Remonta à época do Estado Liberal Burguês e à política econômica do laissez-passer e
do laissez-faire. As tutelas da propriedade privada e da liberdade contratual assumiam
o protagonismo no alicerce jurídico. Exigências de tributação eram ínfimas em face da
inexpressividade do Estado no atendimento às demandas sociais.
O Estado Social Fiscal, ou do Bem-Estar Social, por sua vez, seguiu as veredas
do keynesianismo5 e pode ser identificado dos anos 1910 até a queda do Muro de Berlim
e o concomitante colapso político e econômico da extinta União Soviética, em 1989.
O Estado abandonou a sua função de simples garantidor das liberdades individuais e
assumiu um compromisso social e redistributivo. A engrenagem estatal passou a exer-
cer, nas economias capitalistas, uma ativa intervenção na ordem econômica e social.
Torres refere que, no período:

[...] a atividade financeira continua a se fundamentar na receita


de tributos, proveniente da economia privada, mas os impostos
deixam-se impregnar pela finalidade social e extrafiscal, ao fito
de desenvolver certos setores da economia ou de inibir consu-
mos e condutas nocivas à sociedade.6

O Estado acabou expandindo as suas funções, exercendo atividade empresa-


rial e aumentando extraordinariamente o gasto com benefícios sociais, o que acabou
4
Ver: TORRES, Ricardo Lobo. . 19. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2013. p. 8-10.
5
Apesar de incompreendida pelos liberais, a obra de Keynes não é anticapitalista. Ao contrário, possui a
manifesta intenção de salvar o capitalismo de suas próprias imperfeições e crises cíclicas por intermédio
da regulação dos mercados e da necessária e pontual intervenção estatal na economia. KEYNES, John
Maynard. The general theory of employment, interest and money. New York: Harcourt, 1964.
6
TORRES, op. cit., p. 9.
142 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

gerando aumento desproporcional no orçamento e posterior crise fiscal, social e po-


lítica. Esse fenômeno passou a tornar-se nítido nos anos 1970 e avançou até o final
da década de 1980. Altas cargas tributárias acabaram por ser exigidas para que os
orçamentos, sempre em expansão, pudessem ser cumpridos e executados. Tributos
elevados acabaram por desestimular a livre iniciativa, vulnerabilizando a competividade
entre empresas e, por consequência, causando desemprego, inflação, crise social e
insegurança jurídica.
A partir de 1989, ganhou corpo o Estado Democrático e Social Fiscal, inserido
em uma sociedade de risco (inclusive ambiental), caracterizado pela diminuição de suas
atribuições e com o seu intervencionismo permanecendo focado apenas em setores
específicos das áreas econômica e social. Nessa época, ocorreram privatizações e
o Estado retirou-se de atividades empresariais, como uma tentativa de aumento da
eficiência econômica e da diminuição das crises fiscais e orçamentárias. Tais medidas
foram tomadas para a recuperação da capacidade de investimento do Estado, ao
menos em teoria, nas áreas sociais e de infraestrutura. A receita passou a ser prepon-
derantemente tributária, e as privatizações e desregulamentações sociais diminuíram
as receitas estatais patrimoniais e parafiscais. A responsabilidade fiscal passou a ser
considerada ante o reconhecimento da escassez e da finitude dos recursos - não ape-
nas financeiros, mas também ambientais. Esse modelo estatal sofreu tremendo abalo
com a crise mundial de 2008,7 a qual, além de pessoas físicas e jurídicas, quebrou
nações,8 frente à ausência de regulamentação dos mercados e de transparência9 nos
atos de governança.
7
No tocante à crise de 2008, Krugman refere: “I believe not only that we’re living in a new era of depres-
sion economics, but also that John Maynard Keynes - the economist who made sense of the Great
Depression - is now more relevant than ever”. (KRUGMAN, Paul. The return of depression economics.
London: Penguin Books, 2008). Sobre a crise da democracia capitalista e as falhas de regulação
do mercado como causas da crise de 2008, ver, respectivamente: POSNER, Richard A. A failure of
capitalism. Cambridge: Harvard University Press, 2009; e POSNER, Richard. The crisis of capitalist
democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
8
Segundo Taryn Parry, a causa da crise financeira global do final dos anos 1990 foi a falta de transparência
sobre as políticas governamentais, detectadas principalmente nos países da América Latina. PARRY,
Taryn. The tale of fiscal transparency in sustaining growth and stability in Latin America. IMF Working
Paper, Washington, sept. 2007. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2007/wp07220.
pdf. Acesso em: 10 nov. 2013.
9
Como afirmado por Siqueira: “A transparência fiscal representa uma das medidas mais convenientes
à política de globalização, pois sua implementação proporciona um sistema jurídico cujas regras são
claras e previsíveis, reduzindo, assim, os riscos das perdas financeiras dos investidores. Esperamos
que os efeitos das práticas de transparência possam beneficiar não só os mercados, mas também o
restante da sociedade, ainda que de forma indireta”. SIQUEIRA, Marcelo Rodrigues de. Os desafios do
Estado fiscal contemporâneo e a transparência fiscal. In: NABAIS, José Casalta (Org.). Sustentabilidade
ambiental em tempos de crise. Coimbra: Almedina, 2011. p. 129-159.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 143

A crise, nunca antes vista desde o Crash da Bolsa de Nova York, em 1930,
demonstrou, 78 anos depois, que o Estado não pode ausentar-se na regulação dos
mercados em virtude de suas falhas.10 Aliás, Krugman, em O retorno da depressão
econômica, acredita que “não apenas nós estamos vivendo em uma depressão
econômica, mas também que Keynes, cuja obra foi importante no período da grande
depressão - é agora mais importante do que nunca”. Assim, o liberalismo ortodoxo não
passa de vã utopia, tal qual o comunismo pregado por Marx.11
Dentro de tal cenário mundial é que se insere o direito financeiro moderno. Sem
ignorar essa evolução histórica, deve-se refletir sobre o orçamento brasileiro como
mecanismo de financiamento do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável.
É impensável construir uma sólida definição acerca do direito fundamental
ao desenvolvimento sustentável na Era das mudanças climáticas sem analisar a
estrutura constitucional do Estado Fiscal, a qual possui, como base, o orçamento.
Todos os direitos fundamentais possuem um custo e são financiados com a cobrança
de impostos. Desenvolver uma definição de direito fundamental ao desenvolvimento
sustentável, ignorando os custos que devem financiá-lo, é procedimento retórico, vazio
e sem qualquer resultado prático. É a construção de um argumento estéril, risível e
manifestamente insustentável no âmbito dos três Poderes e, também, na academia.
A atividade financeira do Estado consiste na obtenção de receita e na realização
de despesas para fins de utilidade pública e atendimento das finalidades previstas no
texto constitucional. Sem o ingresso de receita pública, é impossível financiar os fins
e os objetivos políticos, sociais, ambientais e econômicos do Estado. A principal fonte
de receita estatal está nos tributos: impostos, taxas, contribuições e empréstimos
compulsórios. Preços públicos são igualmente uma receita originária importante e
estão vinculados à exploração dos bens do Estado. É possível considerar como parte

10
Caliendo afirma que, quando uma economia não consegue alocar eficientemente os bens conforme os
desejos dos consumidores, entende-se que existe uma falha de mercado (market failure). A expressão
falha de mercado (market failure) foi utilizada pela primeira vez por Francis Bator, em 1958, para designar
as situações em que existe uma condição que impede a eficiência do sistema econômico. (CALIENDO,
Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito. São Paulo: Elsevier, 2009. p. 78). Ver também
a própria obra de Bator: BATOR, Francis M. The anatomy of market failure. The Quarterly Journal of
Economics, Oxford, v. 72, n. 3, p. 351-379, 1958.
11
Marx, em O Capital, não propõe uma solução para as deficiências do capitalismo propriamente. O
grande mérito de sua obra está em demonstrar as desigualdades econômicas, políticas e sociais entre
os capitalistas e o proletariado. Observa-se que, para Marx, “quanto mais o capitalista acumula, mais
meios de acumular adquire. Em outros termos: de quanto mais trabalho de outro, não pago, se haja
apropriado anteriormente, mais ainda pode monopolizar na atualidade”. MARX, Karl. O capital: edição
condensada. São Paulo: Folha de São Paulo, 2011. p. 139. (Coleção Folha: livros que mudaram o
mundo, v. 13).
144 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

integrante da receita pública as multas, as participações nos lucros, os dividendos das


empresas estatais e os empréstimos. Torres sustenta que, com os recursos obtidos:
[...] o Estado suporta a despesa necessária para a consecução
dos seus objetivos. Paga a folha de vencimentos e [os] salários
dos seus servidores civis e militares. Contrata serviços de tercei-
ros. Adquire no mercado os produtos que serão empregados na
prestação de serviços públicos ou na produção de bens públicos.
Entrega subvenções econômicas e sociais. Subsidia a atividade
econômica. A obtenção da receita e a realização dos gastos
se fazem de acordo com o planejamento consubstanciado no
orçamento anual.12

Atividade financeira advém da soberania estatal e do poder de domínio iminente.


Esse poder estatal é nítido nas competências constitucionais da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios que exercem atividade financeira controlada inter-
namente por cada ente e, também, pelos Tribunais de Contas e pelo Poder Judiciário,
quando provocado. Referida atividade estatal é sempre vinculada à lei e aos dispositivos
constitucionais. A atividade financeira deve ser gerida pela Fazenda Pública, que é
constituída pelos recursos e pelas obrigações financeiras do Estado.
No aspecto subjetivo, a Fazenda Pública “confunde-se com a própria pessoa
jurídica de direito público, tendo em vista que a responsabilidade do Estado é apenas
financeira”.13 Estão incumbidos de realizar a atividade financeira, nos termos de nossa
Magna Carta (art. 37, inc. XXII), a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e
as suas autarquias. Pessoas jurídicas de direito privado, componentes da administração
indireta (sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e sociedades
instituídas e mantidas pelo Estado) não fazem parte da Fazenda Pública, muito embora
sejam fiscalizadas pelo Tribunal de Contas e tenham o seu orçamento incluído na lei
orçamentária anual, tal qual a seguridade (arts. 70 e 165). Importante frisar, contudo,
que no Brasil hoje vige a Lei 11.457/2007, que unificou o ingresso de tributos e ingressos
parafiscais ao reunir a Secretaria da Receita Federal e a Receita Federal Previdenciária
na Secretaria da Receita Federal do Brasil. O sistema arrecadatório que vai custear
o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável está, portanto, concentrado.
Atividades exercidas por bancos, seguradoras e demais instituições financeiras
do setor privado não se enquadram no conceito de atividade financeira, embora sejam
fiscalizadas pelo Banco Central, que é o órgão fiscalizador do sistema financeiro nacional
e detém o monopólio da emissão da moeda (art. 164 e 192 da CF/88).
12
TORRES, op. cit., p. 3.
13
TORRES, op. cit., p. 4.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 145

O Estado, ao arrecadar, não pode ter o objetivo de aumentar os recursos es-


tatais sem amparo constitucional; porém, deve cumprir o seu poder-dever de atingir
seus objetivos políticos, econômicos, administrativos, sociais e ambientais inerentes
à boa governança. Não apenas os direitos fundamentais prestacionais precisam ser
financiados, mas também os direitos fundamentais de primeira dimensão que possuem
um custo a ser suportado pelo Estado.14
É fundamental grifar que o Supremo Tribunal Federal entende que o Poder Judi-
ciário não pode ser tolhido das suas funções constitucionais de aplicar e conferir eficácia
aos direitos fundamentais em virtude da mera alegação de limites orçamentários da
Fazenda Pública pelos entes estatais e paraestatais quando litigam em juízo. Portanto,
em medidas pontuais, pode o Estado-Juiz viabilizar políticas públicas previstas no texto
constitucional e não previstas no orçamento sem violar o princípio da separação dos
Poderes15 e da reserva do possível. Ativismo judicial proporcional, outrossim, pode
auxiliar na promoção do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável quando
existir omissão antijurídica evidente do Estado-Legislador e do Estado-Administração.
Observa-se, contudo, que o governo de Portugal, a título de exemplo, cortou
aposentadorias e diminuiu os salários dos funcionários públicos pela metade, com a
chancela do Tribunal Constitucional, em virtude da insustentabilidade orçamentária do
tesouro nacional, posterior à crise internacional do mercado financeiro de 2008. Como
refere Silva, houve um a afastar regras
constitucionais, como reconhecido pelo Tribunal Constitucional: “[...] o que não nos deixa
tranquilos, pois é o mesmo que admitir que depois de tantos exemplos proporcionados
pela história moderna voltamos ao ponto de partida”, ou seja, “a gestão dos conflitos
económico-financeiros fica confiada ao bom senso dos políticos e à capacidade de
gestão das forças sociais e dos conflitos latentes pelas diversas instâncias”.16 E, nesse
caso, corre-se o risco de permitir que o famigerado governo dos homens passe a superar
o governo das leis, fruto de longa e difícil conquista histórica dos povos democráticos.
Ferreira Filho, citando o exemplo do Brasil, defende um estado de sítio econômi-
co a ser inserido na Lei Maior por emenda constitucional, além do estado de sítio e do

14
Como bem referido por Torres: “A justiça na sociedade moderna passa pela fiscalidade e pela redistri-
buição de rendas. Princípios como os da capacidade contributiva, economicidade, legalidade, publici-
dade, irretroatividade e transparência informam permanentemente a atividade financeira”. TORRES,
op. cit., p. 5.
15
Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 768825/BA. Relator: Ministro Ricardo
Lewandowski. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 12 ago. 2014. Disponível em: http://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/24663847/recurso-extraordinario-re-768825-ba-stf. Acesso em: 02 nov. 2014.
16
SILVA, Suzana Tavares da. Sustentabilidade e solidariedade em tempos de crise. In: NABAIS,
op. cit., p. 47.
146 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

estado de defesa, previstos na Constituição Federal de 1988 (arts. 136 a 141), com a
finalidade específica de regulamentar casos inesperados de emergência econômica.17
Referida posição é acompanhada por Leal, que afirma que “as crises econômicas podem
ser tão graves a ponto de pôr em risco a estabilidade democrática, tanto quanto outros
tipos de crises”; portanto, “é preciso pensar em instrumentos jurídicos que ajudem a
controlá-la. Uma possibilidade é o estado de sítio econômico - precisamente a consti-
tucionalização da exceção econômica”.18 Entre as vantagens apresentadas estariam:
a) diminuição da possibilidade de que as medidas de saneamento e de recuperação
adotadas pelo governo sejam declaradas inconstitucionais; b) medidas drásticas, como
as que são tomadas em tempos de crise, passam a seguir padrões e parâmetros es-
tabelecidos; c) não é dependente do conceito de normas programáticas; d) aumenta
a adaptabilidade do texto da Lei Fundamental às diferentes circunstâncias.19
Embora sedutora, referida medida é desnecessária e oferece riscos. De nada
adianta a ampliação ou a criação de novos dispositivos constitucionais para regula-
mentar imprevistos econômicos. O exemplo é a Corte do New Deal, com início nos
anos 1930, que, interpretando a Constituição de 1787, declarou, após pressão política,
uma série de leis e atos governamentais constitucionais para que os Estados Unidos
pudessem superar a crise decorrente da depressão econômica e da Segunda Guerra
Mundial sem qualquer alteração no texto constitucional. Cai a talho a lição de Strauss,
no sentido de que, em oposição ao originalismo, a Constituição viva é aquela que evolui,
muda ao longo do tempo e adapta-se às novas circunstâncias sem ser formalmente
emendada.20 Exemplifica o autor, justamente com o caso da Constituição elaborada
pelos Framers, válida ainda hoje. Embora os Estados Unidos tenham, ao longo dos anos,
aumentado o seu território e a sua população, as tecnologias, a situação internacional
e a economia tenham sido alteradas e profundas mudanças sociais tenham ocorrido,
nenhum desses câmbios poderia ter sido previsto quando a Constituição foi escrita.
Não seria realista esperar que um pesado e difícil processo de emendas acompanhasse
cada uma dessas mudanças.21 A interpretação do texto constitucional pela Suprema
Corte adaptou-a aos novos tempos e auxiliou o país a superar crises econômicas.
Nos cenários de crise econômica, criar uma cláusula de exceção constitucional
pode abrir espaço para arbitrariedades, engessar medidas governamentais, além de

17
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 181-182, p. 21-37, 1990.
18
PRADO LEAL, Gabriel. Exceção económica e governo de crise nas democracias. In: NABAIS,
op. cit., p. 93-128.
19
PRADO LEAL, cit., p. 93-128.
20
STRAUSS, David. The living constitution. New York: Oxford University Press, 2010. p. 1.
21
STRAUSS, op. cit., p. 1.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 147

esvaziar o papel, no caso brasileiro, do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, em pro-
cesso que teve o Ministro Gilmar Mendes como relator, entendeu como constitucional
o art. 35 da Constituição gaúcha, que fixou prazo para o pagamento dos vencimentos
do funcionalismo público. No processo, o Estado do Rio Grande do Sul recorreu
contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado, que determinou, em sede de tutela
de urgência, a suspensão de ordem do governo estadual de limitar o pagamento de
servidores em até R$ 2.500,00 no mês vincendo, com o pagamento do restante da
remuneração apenas no mês seguinte.
Apesar de reconhecer a disposição da Carta Estadual constitucional, o Ministro
interpretou o caso afirmando que “a administração pública estadual não dispunha,
naquele momento, de recursos financeiros suficientes para o cumprimento de todas
as suas obrigações” e que a eficácia do art. 35 dependeria “[...] de um estado de nor-
malidade das finanças públicas estaduais”.22 A interpretação constitucional do egrégio
Supremo Tribunal Federal demonstra, exemplificativamente, que o Poder Judiciário pode
adaptar à Constituição as mudanças políticas, econômicas e sociais, de acordo com as
exigências dos novos tempos e de obstáculos determinados. A dimensão econômica
do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável prevaleceu no caso em tela.
Referidas controvérsias, envolvendo a concessão de direitos e os orçamentos
dos entes estatais, precisam ser resolvidas com responsabilidade fiscal, observado o
limite da reserva do possível, sem descurar do respeito aos direitos fundamentais pre-
vistos na Constituição Federal de 1988. Cabe, nesse cenário de escassez de recursos, o
cumprimento pelo Estado do dever de promover a máxima eficácia possível dos direitos
fundamentais negativos e positivos. Daí a importância do estudo do orçamento, inserido
em um Estado Fiscal, para um conceito sobre o direito fundamental ao desenvolvimento
sustentável na Era das mudanças climáticas apto a evitar eventos climáticos extremos
causados por fatores antrópicos e permitir a adoção das necessárias medidas de
adaptação e resiliência compatíveis com o princípio da dignidade da pessoa humana.
A Constituição, ao outorgar direitos fundamentais aos indivíduos, nas suas
dimensões subjetiva e objetiva, colocou o orçamento como a peça formal na qual
estarão embutidos os custos dos direitos. Não há dúvida de que os recursos previstos
no orçamento precisam ter lastro para que exista a concretização dos direitos funda-
mentais. Nesse diapasão, precisa o Estado eleger prioridades na alocação de recursos,
que são sempre escassos, para promover o interesse público e não fulminar liberdades
individuais e os interesses privados, também tutelados por uma ordem constitucional
democrática.

22
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Segurança n. 3.154-6/RS. Relator: Ministro Gilmar
Mendes. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 28 mar. 2007. Disponível em: http://www.stf.jus.br/
imprensa/pdf/ss3154.pdf. Acesso em: 02 nov. 2014.
148 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

2. ORÇAMENTO E CUSTO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A elaboração e a aprovação do orçamento no Congresso Nacional são os


primeiros passos para a promoção do direito fundamental ao desenvolvimento sus-
tentável nas suas dimensões humana, econômica, ambiental e de boa governança.
É importante, contudo, avançar em sede doutrinária e jurisprudencial no sentido de
se levar a sério o fato de que o direito ao desenvolvimento sustentável, analisado de
modo multidimensional, possui um imenso custo a ser coberto por recursos pecuniários
limitados. Relevante afastar o argumento de que apenas os direitos sociais possuem
custos, e não os direitos fundamentais de primeira dimensão. Não se pode aceitar
a assertiva de que direitos fundamentais, como a propriedade privada, a liberdade
de imprensa, a liberdade de discurso, o direito de contratar, o direito à incolumidade
física, à vida, enfim, direitos fundamentais individuais e liberdades civis, não possuem
qualquer ônus pecuniário para o Estado.
Para garantir a proteção aos direitos fundamentais de primeira dimensão, o
Estado precisa contar com recursos suficientes para sustentar a polícia, o exército, os
três Poderes e toda a estrutura republicana. Ainda que de monetarização mais difícil,
para fins de demonstração, tais direitos fundamentais possuem custos que podem ser
identificados tais quais os direitos fundamentais sociais ou prestacionais. A dicotomia
entre direitos sociais e individuais do cidadão em face do Estado não existe em relação
aos seus custos, uma vez que ambas as categorias de direitos fundamentais possuem
valor pecuniário a ser financiado com o orçamento público a ser administrado por atos
necessariamente transparentes e democráticos de governança.
A respeito do tema, é clássica a obra de Sunstein e Holmes, intitulada O custo
dos direitos. O argumento de que os direitos, inclusive os de liberdade, possuem custos,
os quais são cobertos pelos impostos, é irrebatível. Deve existir uma aplicação racio-
nal e justa desses recursos orçamentários arrecadados com a tributação. Os autores
afirmam, acertadamente, sem tergiversar, que mesmo “as liberdades privadas têm
custos públicos”. Citam que essa verdade não é apenas para os direitos de seguridade
social, os planos de saúde, os selos-alimentação (similar ao programa bolsa família
brasileiro), mas também para os direitos “à propriedade privada, à liberdade de dis-
curso, à imunidade contra abusos da polícia, à liberdade contratual, ao livre exercício
da religião e a todo o conjunto de direitos característicos da sociedade americana”.23
A partir dessa perspectiva de financiamento público, entendem Holmes e
Sunstein que todos os direitos são licenças para os indivíduos buscarem os seus
23
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:
W. W. Norton & Company, 1999. p. 221.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 149

objetivos - juntos e separados e tirarem vantagem sobre valores e bens coletivos,


entre os quais se pode incluir o compartilhamento de recursos privados acumulados
com a tutela da comunidade.24
Cai por terra, pelo menos para fins orçamentários, a clássica divisão entre direitos
positivos e negativos. Fica evidenciado, nessa lógica, que a arrecadação de tributos, ou
qualquer outra fonte de renda, deve ser realizada antes da elaboração do orçamento que
vai financiar o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável em uma dimensão
múltipla. É uma medida de responsabilidade fiscal prévia que se impõe.
Corretos estão Holmes e Sunstein ao entenderem que a concretização dos
direitos exige gastos públicos crescentes, mas negligencia questões de legitimidade
democrática e de justiça distributiva. Os autores norte-americanos abordam questões
importantes, como: quais são os princípios utilizados para alocar os recursos arreca-
dados com os impostos para a concretização dos direitos? Quem decide a quantidade
de recursos gastos para subsidiar direitos específicos e quais grupos de indivíduos
devem ser beneficiados com os valores a serem alocados?25
Outrossim, entendem que existem custos de oportunidade, visto que, quando
direitos são aplicados, outros bens de valor, incluindo outros direitos fundamentais, têm
de ser renunciados, em virtude da escassez de recursos, emanando sempre a questão
sobre se esses recursos públicos seriam melhor empregados de outro modo.26 Fica
patente a necessidade de avaliação técnica e qualificada pelo Poder Público acerca do
melhor modo de se aplicar recursos escassos provenientes da receita pública prevista
no orçamento.
Tecem críticas referentes às Cortes americanas, no mesmo sentido que se faz ao
Poder Judiciário brasileiro, de modo recorrente, acerca da falta de informação (preparo
técnico) dos juízes, sem mandato popular, para alocarem recursos estatais nas suas
decisões judiciais de modo inteligente e compatível com o interesse público.27 Com
efeito, a responsabilidade democrática e a transparência precisam ser consideradas
na distribuição dos recursos orçamentários escassos pelos funcionários públicos e
pelos juízes nos processos de tomada de decisão. Essa situação coloca o enfoque no
necessário debate sobre a justiça e a equidade distributiva.
É nítida e expressa a tentativa dos autores em fazer uma ponderação entre os
direitos individuais de um lado e a democracia, a igualdade e a justiça distributiva de

24
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 221.
25
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 221.
26
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 224.
27
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 226.
150 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

outro.28 Não há dúvida de que, quando existir uma decisão judicial e administrativa que
conceda determinado direito, existirá um custo, e outro direito, por consequência, será
sacrificado. O egrégio Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, de modo mais
frequente que a Suprema Corte Norte-Americana, intervém nas políticas públicas,
seja concretizando direitos prestacionais à saúde,29 seja reconhecendo o direito à
educação,30 praticando o ativismo judicial.
Especialistas e técnicos preparados, por sua vez, têm um papel importante
na divisão dos recursos orçamentários, na sua administração e, especialmente, na
tradução do discurso técnico para a compreensão do grande público quando da
justificação da aplicação dos recursos orçamentários. Essa tradução, talvez, seja a
principal função dos peritos no processo de tomada de decisão. Holmes e Sunstein,
coerentemente, advertem que, no entanto, esses experts deveriam estar “on tap, not on
top” do processo decisório.31 Quem deve estar no top do processo decisório deve ser a
cidadania, diretamente, e os seus representantes eleitos democraticamente. Por isso,
apenas a presença de técnicos competentes no processo decisório, mas que exercem
o seu munus sem transparência e justificação pública é medida insuficiente. Casos
de decisões tecnocráticas e burocráticas, carentes de maiores informações externas
e sem participação popular, ignorando razões empíricas, podem levar a resultados
negativos, grandes fracassos e até mesmo a catástrofes.
O processo de tomada de decisão deve se dar em um estilo aberto e democráti-
co. As decisões sobre os direitos a serem concretizados são estratégicas e verdadeiras
escolhas de como melhor empregar os recursos públicos. Existem boas razões de
suporte ao processo democrático na escolha acerca de quais direitos a proteger e

28
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 226.
29
O STF admite a intervenção judicial nas políticas públicas na área da saúde. Ver: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 607381/SC. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, DF, 31 maio 2011. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8554055/
recurso-extraordinario-re-607381-sc-stf. Acesso em: 02 nov. 2014. E, ainda, o caso de determinação
judicial para o aumento de leitos em UTIs não é considerado pelo Supremo Tribunal Federal uma intro-
missão indevida do Poder Judiciário nas atribuições constitucionais do Poder Executivo na implantação
das políticas públicas. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE-Agr n. 740800/RS. Relatora:
Ministra Cármen Lúcia. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 03 dez. 2013. Disponível em: http://stf.
jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/24786818/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-740800-rs-
-stf/inteiro-teor-112222867. Acesso em: 02 nov. 2014.
30
O STF determinou a matrícula de criança em estabelecimento de educação infantil com base na
Constituição Federal. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE-AgR n. 595595. Relator: Ministro
Eros Grau. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 28 abr. 2009. Disponível em: http://www.stf.jus.br/
portal/ principal/principal.asp. Acesso em: 02 nov. 2014.
31
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 227.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 151

qual o seu grau de proteção. Essas respostas devem ficar com a cidadania e com as
decisões refletidas dos órgãos constitucionais próprios do regime democrático. Esse
processo deve ser procedido de modo límpido e dialético, e os funcionários públicos,
incluindo juízes, devem prestar suas razões e justificações ao decidir.32
É importante a incidência dos princípios da publicidade, da participação popular e
da motivação nas decisões administrativas e - por que não? - judiciais, quando o Poder
Judiciário intervém nas políticas públicas. No que concerne aos processos judiciais, as
audiências públicas realizadas em ações coletivas e a figura do amicus curiae junto
às decisões do Supremo Tribunal Federal são um início de participação da cidadania
na formação do convencimento do Estado-Juiz nas decisões que envolvem relevante
interesse público, em especial quando estão em debate interesses coletivos, difusos
e individuais homogêneos.
Nos Estados Unidos,33 tal qual no Brasil, importantes decisões alocativas refe-
rentes aos direitos básicos são frequentemente tomadas de modo secreto, com poucas
consultas e sem nenhum controle público. A sugestão de Holmes e Sunstein para o
caso norte-americano serve perfeitamente para os processos de tomada de decisão
brasileiros, ou seja, cada julgamento deve tornar-se publicamente escrutinável34 e moti-
vado. Nesse sentido, propõem uma deliberação pública focada nas seguintes questões,
quanto ao custo dos direitos financiados pelos impostos e pelas receitas estatais que
compõem o orçamento: 1. Quanto se quer gastar com cada direito? 2. Qual é o pacote
ideal de direitos? Tendo em vista que os recursos utilizados para protegê-los não estarão
disponíveis para proteger outros direitos. 3. Quais são as melhores maneiras de se
proteger ao máximo os direitos ao mais baixo custo? 4. Os direitos, como atualmente
definidos e aplicados, redistribuem a riqueza de um modo que podem ser justificados
publicamente?35 Tais questões possuem dimensões empíricas e precisam ser trazidas
à tona e identificadas como tal. Julgamentos de valores devem ser feitos abertamente
e sujeitarem-se ao criticismo, à revisão e ao debate público.36
Não é desimportante grifar que, nos Estados Unidos, a própria Constituição
define qual a finalidade da receita dos tributos: to pay the debts and provide for the
common defense and general welfare of the United States (Act. I, Sec. 8). Assim, a exa-
ção possui o objetivo de financiar a defesa e o bem-estar da população do país. Como
refere McAllister, coerentemente, a doutrina dominante entende que a arrecadação de
32
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 227.
33
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228.
34
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 224.
35
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228.
36
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228-229.
152 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

tributos sem destinação pública viola a cláusula do due process of law. Enfatiza que
onze Estados norte-americanos, por disposição constitucional, estipulam que todos os
tributos devem ser criados e cobrados apenas com objetivos públicos.37
Foram consideradas inconstitucionais nos Estados Unidos, por exemplo, a exi-
gência de impostos para: auxílio a indústrias;38 construção de dique útil a particular;39
terem a receita proveniente de sua arrecadação dividida entre famílias de uma cidade;40
o salvamento de agricultores com colheitas destruídas pelo inimigo em tempos de
guerra;41 financiar a compra de sementes por agricultores com dificuldades financeiras;42
ou, ainda, para o auxílio financeiro às pessoas atingidas por tornados e ciclones.43
Sem entrar no mérito dessas decisões do passado, é extremamente difícil, por
vezes, separar o interesse público e o privado, uma vez que ambos, não raramente,
andam interligados; na maioria das vezes, grifa-se, sem haver a nefasta prática do
patrimonialismo. Diante desse cenário, existe a necessidade da máxima publicidade
nas decisões estatais, no âmbito dos Três Poderes, embasadas sempre no maior
volume de informações disponível.
No Brasil, o orçamento é aprovado no Congresso Nacional, sem mecanismos que
propiciem maior transparência, controle e participação do povo brasileiro na alocação
dos recursos arrecadados via tributos e outras fontes de receita estatal. A participa-
ção da sociedade civil é necessária nos processos de tomada de decisão referentes
à promoção do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável e ao seu custo.
Determina a boa governança que as decisões relativas à aplicação e à divisão dos
recursos do orçamento não podem ficar a cargo de políticos, embasadas em laudos
de tecnocratas, insuladas da vontade popular e da participação das partes afetadas.

37
Ver: UNITED STATES. Supreme Court. MCALLISTER, Breck. Public purpose in taxation. California Law
Review, Berkeley, v. 18, n. 2, p. 138, 1930.
38
UNITED STATES. Supreme Court. Parkersburg v. Brown. 106 U.S. 487, 1883. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014. E, também: UNITED STATES. Supreme Court. Citizen’s
Saving and Loan Association v. Topeka. 1875. Disponível em: www.supremecourt.gov. Acesso em:
01 nov. 2014.
39
UNITED STATES. Supreme Court. Attorney Gen. v. Eau Claire. 37 Wisis. 400. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
40
UNITED STATES. Supreme Court. Hooper v. Emery. 14 Me. 375, 1837. Disponível em: www.supreme-
court.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
41
UNITED STATES. Supreme Court. Gillan v. Gillan. 55. 430,1867. Disponível em: www.supremecourt.
gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
42
UNITED STATES. Supreme Court. State v. Osawkee Towship. 14 Kan. 418, 1875. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
43
UNITED STATES. Supreme Court. State v. Davidson. 114 Wis., 563, 1902. Disponível em: www.supre-
mecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 153

3. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A EXTRAFISCALIDADE

No Direito, são utilizados os termos fiscalidade, extrafiscalidade e parafiscalida-


de44 para a construção do discurso jurídico em matéria tributária no que se refere aos
objetivos e às finalidades da tributação. É uma criação doutrinária e jurisprudencial,
não havendo menção expressa no direito positivo.
No caso da instituição de um tributo visar, precipuamente, “abastecer de recursos
os cofres públicos (ou seja, se a finalidade é arrecadar), ele se identifica como tributo
de finalidade arrecadatória”. De outro lado, o tributo é extrafiscal ou regulatório se “com
a imposição não se deseja arrecadar, mas desestimular certos comportamentos, por
razões econômicas, sociais, de saúde”45 ou ambientais.
Pode-se considerar extrafiscalidade a utilização do tributo com a finalidade
de valorizar situações sociais, políticas, econômicas e ambientais. Essa valorização
dá-se com o tratamento menos gravoso ao contribuinte em face de objetivos que vão
além dos meramente arrecadatórios, como nos casos do Imposto Territorial Rural
(ITR), do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)46 e do Imposto de Renda (IR),
este último quando permite o abatimento de verbas de interesse econômico, social e
ambiental, como aquelas que incentivam a preservação do meio ambiente e a forma-
ção de reservas florestais no país. O caso do Imposto Territorial Rural é um clássico
exemplo em que o tributo incide de modo mais oneroso sobre os imóveis que não
cumprem adequadamente com a sua função social, notadamente no aspecto ligado à
produtividade e à preservação ambiental.
No mesmo sentido, as alíquotas progressivas incidentes sobre o Imposto Ter-
ritorial Urbano são previstas pela Constituição, que visa a fazer com que os imóveis

44
Em conformidade com Machado, “o tributo é parafiscal quando o seu objetivo principal é a arrecadação
de recursos para o custeio de atividades que, em princípio, não integram funções próprias do Estado,
mas este as desenvolve através de entidades específicas”. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito
tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 23.
45
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 29.
46
O STF reiteradamente tem reconhecido a constitucionalidade e o caráter extrafiscal de lei que visa
isentar o IPI sobre o açúcar de cana: “A isenção tributária que a União Federal concedeu, em matéria
de IPI, sobre o açúcar de cana (Lei nº 8.393/91, art. 2º) objetiva conferir efetividade ao art. 3º, incisos
II e III, da Constituição da República. Essa pessoa política, ao assim proceder, pôs em relevo a função
extrafiscal desse tributo, utilizando-o como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de
superação das desigualdades sociais e regionais”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI-AgR 360461.
Relator: Ministro Celso de Mello. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 16 dez. 2005. Disponível em:
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/762291/agregno-agravo-de-instrumento-ai-agr-360461-mg.
Acesso em: 02 nov. 2014.
154 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

urbanos cumpram com a sua função social, como já decidido, inclusive, pelo STF.47
Importante distinguir, contudo, a progressividade extrafiscal, para o cumprimento da
função social da propriedade prevista pelo poder constituinte originário que, nos dias
atuais, deve ser procedida nos termos do Estatuto das Cidades.48 De outro lado, de
modo diverso, a progressividade fiscal, arrecadatória, para essa exação, só foi viabi-
lizada, e é admitida, após a Emenda Constitucional 29/2000.
No caso do Imposto sobre Produtos Industrializados, as suas alíquotas serão
seletivas, levando em consideração a essencialidade dos produtos (art. 153, § 3º, inc.
I, da CF/88). Produtos não essenciais e considerados supérfluos são tributados com
uma alíquota mais elevada.
Impostos de importação e exportação, os chamados tributos aduaneiros, são
utilizados como mecanismos de política econômica para estimular ou desestimular a
atividade industrial nacional, com constitucionalidade já reconhecida pelo STF. 49 Exem-
plo dessa tributação com finalidade extrafiscal é a exação sobre automóveis importados
que, como afirma Carvalho, é desestimulante ao extremo para os importadores e serve
“para impulsionar a indústria automobilística nacional”.50
O imposto sobre as grandes fortunas e a sua transmissão também pode ser
considerado um tributo com caráter extrafiscal, pois visa à redistribuição da riqueza
para diminuir o abismo econômico, social e político entre os muito ricos e o resto da
sociedade. Não é à toa que Piketty causou alvoroço entre os economistas de todo o
mundo com o lançamento de Le capital au XXIe siècle.51 Nessa obra, o economista
francês analisa a renda e a sua acumulação nos últimos 300 anos de capitalismo. A
abordagem adotada é no sentido da defesa da economia de mercado e da proprie-
dade privada, mas identifica como sua principal vulnerabilidade a desigualdade na
distribuição da renda.
Segundo Piketty, a principal força desestabilizadora do capitalismo, causadora da
desigualdade e do desequilíbrio social, está relacionada ao fato de que a taxa privada
de retorno do capital é significativamente maior que a taxa de crescimento dos salários
47
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE-AgR 639632/MS. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário
da Justiça da União, Brasília, DF, 22 out. 2013. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/
24707426/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-639632-ms-stf/inteiro-teor-112170398.
Acesso em: 02 nov. 2014.
48
A Lei 10.257/2001 instituiu o Estatuto das Cidades.
49
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 628848 ED/RS. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário
da Justiça da União, Brasília, DF, 10 set. 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=6693694. Acesso em: 02 nov. 2014.
50
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 234.
51
PIKETTY, Thomas. Le capital au XXI siécle. Paris: Éditions du Seuil, 2013.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 155

e da produção. A desigualdade acaba por ser identificada pela riqueza acumulada ao


longo das décadas pelos maiores rentistas em comparação aos salários e à produção no
mesmo período. Essa contradição faz com que o empresário transforme-se em rentista
e proceda com desinteresse em relação às atividades produtivas, geradoras de emprego
e distribuidoras de renda. Propõe como solução do problema a tributação progressiva
global incidente sobre as grandes rendas e a sua transmissão entre as gerações. Essa
alternativa impediria a continuação e a ampliação da espiral da desigualdade por um
lado e, por outro, preservaria a competição e os incentivos para novos exemplos de
acumulação baseada na produção. Piketty, sem dúvida alguma, repisa o já referido
por Krugman,52 e Stiglitz,53 também ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, mas
é mais claro e, em que pesem as duras críticas do Financial Times,54 está calcado em
dados sólidos para sustentar a sua tese. O problema para a adoção de medidas desse
nível - tributação global das grandes rendas e sua transmissão entre gerações -, em
conformidade com Piketty, tal qual Stiglitz, passa pela classe política no sentido de con-
trariar os interesses dos detentores das grandes rendas que financiam as campanhas
eleitorais nas grandes democracias. Em que pesem as dificuldades políticas para a
viabilização da tese do economista francês, trata-se de uma importante ideia na defesa
do desenvolvimento sustentável na sua dimensão humana, no sentido específico da
redistribuição de riquezas e da garantia do mínimo social para o máximo de cidadãos.
É uma alternativa para a expansão e a concretização dos direitos fundamentais
que não pode ser desprezada, ainda que utópica e ingênua na sua formulação original,
como já referido, no ponto em que se refere a um imposto global, pela evidente impos-
sibilidade de se obter o consenso político sobre a matéria entre as nações, pelo menos
nesse quadrante histórico. Em nível interno dos países, se reformulada a tese proposta
pelo economista, pode ser uma opção, desde que não afete o capital destinado à pro-
dução, à criação de empregos e ao estímulo à energia renovável. Deve incidir o tributo
sobre o capital especulativo e as heranças dos rentistas tradicionalmente improdutivos.
Feitas as referidas considerações críticas, é importante grifar, de outro lado, que
não existe tributo que possa ser considerado apenas com função fiscal ou extrafiscal: o
que existe é a predominância de uma dessas funções. O legislador infraconstitucional
deverá obedecer aos limites constitucionais para criar e alterar alíquotas de tributos
com finalidade extrafiscal, tal qual tributos com finalidade notadamente fiscal. Não existe
52
Ver, sobre o tema: KRUGMAN, op. cit.
53
Importante a tese de Stiglitz, no sentido de que 99% por cento da população está excluída da riqueza,
que fica concentrada nas mãos de cerca de 1% da população nos Estados Unidos. STIGLITZ, Joseph
E. The price of inequality. London: Penguin Books, 2013.
54
Ver: FORBES. Washington, 2016. Disponível em: http://www.forbes.com/fdc/welcome_mjx.shtml. Acesso
em: 05 out. 2014.
156 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

discriminação nesse ponto; as limitações ao poder de tributar devem prevalecer em


ambas as situações indistintamente.
Oportuno frisar que não são a destinação dos recursos ou a técnica de sua arre-
cadação que determinarão a exação como extrafiscal, mas o previsto no próprio texto
constitucional. Para se atingir os objetivos e as finalidades da ordem econômica, social
e, por que não dizer, ambiental, o Estado poderá implantar a respectiva extrafiscalidade
(art. 170 da CF/88). A extrafiscalidade ambiental será determinada pela exação que
adota como objetivo a promoção do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável
e à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF/88).
Como referido pontualmente por Carvalho no tocante à extrafiscalidade:
[...] a experiência jurídica nos mostra, porém, que vezes sem
conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada
de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situ-
ações, tidas como social, política ou economicamente valiosas,
às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou
menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurídicos
usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos
alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de ex-
trafiscalidade.55

Importante referir que isenções são utilizadas para se alcançar efeitos extrafis-
cais. Isenções previstas no art. 176 do CTN estão sujeitas ao princípio da legalidade,
como determinado pelo art. 97, inc. VI, do mesmo diploma legal, quando prevê as
hipóteses de exclusão de crédito tributário. Não se pode cogitar isenção com finalidade
extrafiscal sem base em lei. É inconcebível, hoje, a chamada isenção geral e univer-
sal, como já defendia Baleeiro, “pois esta não é privilégio de classe ou de pessoas,
mas uma política de aplicação da regra da capacidade contributiva ou de incentivos a
determinadas atividades, que o Estado visa a incrementar pela conveniência pública”
e, de modo atualíssimo, “[...] para cada objetivo, há isenções específicas, adequadas,
e outras inúteis, ineficazes ou mesmo contraproducentes”.56 A isenção de cunho ex-
trafiscal não pode ser confundida com privilégio; deve, porém, ter finalidade prevista
pela Constituição Federal para tutelar a ordem econômica, social, política ou ambiental.
Conforme Baleeiro, citando também o exemplo da Superintendência do Desen-
volvimento do Nordeste (SUDENE), o limite geográfico da isenção de cunho extrafiscal:

[...] poderá ser restrito a determinadas áreas geográficas, por-


que, p. ex., seus habitantes, em consequência de calamidade,
sofreram substancial perda em sua capacidade contributiva, ou
55
CARVALHO, op. cit., p. 233.
56
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 587.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 157

porque condições telúricas ou históricas entravaram e entravam


seu desenvolvimento econômico.57

Caliendo, por sua vez, refere-se a um conceito restritivo e a outro ampliado de


extrafiscalidade:
O conceito restritivo de extrafiscalidade a compreende como
fenômeno que se refere às normas jurídicas que autorizam
competência tributária ordenadora, interventiva ou redistribu-
tiva, enquanto o seu conceito ampliado o compreende como
dimensão finalista do tributo incorporando os efeitos extrafiscais
das normas tributárias na própria natureza dos tributos. Esta
última concepção tomada em toda a sua radicalidade permitiria
a ampliação da ação indutora do Estado, para além dos limites
expressamente previstos no texto constitucional.58

Não pode haver dúvida de que o constituinte originário adotou uma interpreta-
ção restritiva do conceito. Do contrário, seria autorizado regime tributário violador do
princípio da proporcionalidade e dos direitos individuais, como a propriedade privada e
a livre iniciativa, que foram expressamente consagrados pelo texto constitucional. De
outro lado, as limitações constitucionais ao poder de tributar afastam uma interpretação
ampliada da extrafiscalidade.
É importante, em que pesem a doutrina e a jurisprudência aparentemente
consolidadas, que o Estado brasileiro avance no sentido de aprofundar a função ex-
trafiscal dos tributos para estimular, com uma visão de longo prazo: uma cesta básica
com produtos mais baratos, saudáveis e acessíveis; uma saúde verdadeiramente
universal (em especial no que tange aos caros medicamentos que poderiam ser aba-
tidos no Imposto de Renda); o aumento das alíquotas de tributação sobre o tabaco,
as bebidas alcoólicas e os alimentos com gorduras trans (que causam milhares de
mortes todos os anos e imensos prejuízos financeiros ao Estado); uma produtividade
ambientalmente responsável, livre de carbono, em tempos de aquecimento global e
de saturação de recursos ambientais não renováveis;59 uma indústria brasileira forte
no âmbito interno, geradora de empregos e competitiva no cenário internacional; e,
por fim, o estímulo à adesão a planos de previdência confiáveis e sólidos. A tributação

57
BALEEIRO, op. cit., p. 587-588.
58
CALIENDO, Paulo. Extrafiscalidade ambiental: instrumento de proteção ao meio ambiente equilibrado.
In: BASSO, Ana Paula et al. (Org.). Direito e desenvolvimento sustentável. Curitiba: Juruá, 2013. p. 170.
59
Sobre incentivos fiscais existentes em programas federais, estaduais e locais nos Estados Unidos para
o consumo de energia renovável e para a prática de conservação energética na construção civil, nas
residências e na utilização dos veículos, ver: MANN, Roberta; ROWE, Margaret. Taxation. In: GERRARD,
Michael. The law of clean energy: efficiency and renewables. New York: American Bar Association,
2011. p. 145-160.
158 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

com objetivos extrafiscais, inegavelmente, como se nota, possui um papel relevante


para a concretização do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável, mas,
lamentavelmente, tem sido pouco ou mal utilizada pelo Estado brasileiro, em especial
quanto ao estímulo à produção de energia renovável,60 na elaboração de políticas
públicas de longo prazo.

4. TRIBUTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL SOB A ÓTICA


AMBIENTAL

Tributos, em especial com finalidade extrafiscal, são importantes instrumentos


para promover o desenvolvimento sustentável na sua dimensão ambiental e, em
especial, evitar a poluição. Relevante função possuem, em emblemático exemplo,
na taxação do carbono para se diminuir a emissão de gases de efeito estufa e o con-
sequente aquecimento global. Na consolidação de políticas públicas sustentáveis, o
sistema tributário também deve estar estruturado em pilares de sustentabilidade para
a promoção do desenvolvimento.61
Numa economia de mercado, sem intervenção governamental, aqueles que se
beneficiam da poluição decidem acerca da sua quantidade e “não têm incentivo para
levar em conta os custos de poluição que impõem aos outros, como os que exploram
usinas termelétricas”,62 por exemplo. Incidem altos custos da poluição sobre as pessoas
que não têm influência nos processos decisórios causadores de degradação ambiental.63
Pode-se incluir a tributação de desestímulo à poluição no leque de tributos
pigouvianos. Com efeito, Pigou, em seu clássico A economia do bem-estar, defende
60
Fundamental observar que o Fundo Monetário Internacional passa por um processo de esverdeamento
no seu receituário e aconselha e estimula os países a incrementarem a produção de energia renovável
em detrimento da produção da energia oriunda de combustíveis fósseis, o que faz, aliás, em boa hora.
Nesse sentido, ver: INTERNATIONAL MONETARY FUND. Energy subsidy reform: lessons and implica-
tions. Washington, 2013. Disponível em: http://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/012813.pdf. Acesso
em: 12 maio 2016.
61
Assevera Silva, acerca da importância da tributação ambiental, que “[...] é imprescindível propugnar
pela adoção de critérios ambientais na tributação [...] como mecanismo de promoção, de preservação
e de conservação do meio ambiente, contribuindo para o desenvolvimento econômico do país e, em
particular, para o desenvolvimento e [a] utilização de novas tecnologias, bem como para a criação de
novos empregos”. SILVA, Solange Teles. Reflexões sobre o ICMS ecológico. In: KISHI, Sandra Akemi
Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (Org.).
século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 770.
62
KRUGMAN, Paul; WELLS, Robin. Economics. New York: New Publishers, 2009. p. 393.
63
Exemplo relevante citado por Krugman e Wells é o caso dos “pescadores nos lagos do nordeste dos
Estados Unidos que não controlam as decisões das usinas hidrelétricas prejudiciais à pesca”. KRUGMAN;
WELLS, op. cit., p. 393.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 159

a tributação para a redução de externalidades negativas.64 Krugman, por sua vez,


entende que existem três maneiras fundamentais de induzir as pessoas que usam
recursos comuns a internalizar os custos que impõem aos outros: a) tributar ou então
regulamentar o uso do recurso comum; b) criar um sistema de licenças comercializáveis
para o direito de usar o recurso comum; c) tornar o recurso comum exclusivo e atribuir
direitos de propriedade a alguns indivíduos.65
Existem, como enfatiza Caliendo, dois grandes grupos de soluções tributárias
utilizadas com o intuito de auxiliar na busca de um meio ambiente equilibrado: a impo-
sição de tributos ambientais e a criação de incentivos à produção sustentável.66 Com-
plementa afirmando que a imposição de tributos ambientais constitui-se em “solução do
tipo comando e controle, ou seja, soluções que se estabelecem um padrão de conduta
e a exigência da internalização do custo das externalidades, tornando obviamente al-
gumas atividades mais caras do que outras”. Cita, como exemplos, que a seletividade
do IPI ou do ICMS pode diferenciar-se na incidência sobre garrafas PET (poluentes) e
sobre garrafas de vidro (ecologicamente mais aceitáveis).67 Tributos elevados podem
estimular um maior consumo de refrigerantes comercializados em garrafas de vidro
retornáveis e um desestímulo ao consumo daqueles vendidos em garrafas PET, que
demoram longo período para serem decompostas no ambiente.68
Assevera Krugman, por seu turno, que os impostos sobre emissões e licenças
comercializáveis fazem mais do que induzir indústrias poluidoras a reduzir as emis-
sões. Elas proporcionam também um incentivo para criar e usar a tecnologia menos
poluente. O principal efeito dos sistemas de licença para o dióxido de enxofre é mudar
o modo de produzir eletricidade, e não o de reduzir a sua produção. Cita como exemplo
dessa nova postura as usinas elétricas americanas que passaram a usar combustíveis
alternativos, como carvão de baixo teor de enxofre e gás natural, e também instalaram
filtros que retiram das emissões das usinas elétricas boa parte do dióxido de enxofre.69

64
Ver: PIGOU, Arthur Cecil. The economics of welfare. London: MacMillan, 1962.
65
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 421.
66
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
67
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
68
A implantação do ICMS ecológico, por sua vez, é defendida por Silva como uma “medida estratégica,
de alcance socioambiental, estimulando a solução de problemas socioambientais, como resíduos e
esgotamento sanitário, além de ampliar as áreas protegidas”, sendo um importante mecanismo para
a proteção e a tutela da biodiversidade. SILVA, Solange Teles. Reflexões sobre o ICMS ecológico. In:
KISHI; SILVA; SOARES, op. cit., p. 770.
69
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 403. Sobre, o tema ver também: GAYER, Ted; MORRIS, Adele. How
. [S.l.], 2010. Disponível em: http://www.brookings.edu/
reports/2010/0820_climate_policy_gayer_ morris.aspx. Acesso em: 10 maio 2016.
160 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Tributação sobre emissões, todavia, assim como as licenças de comercialização,


apresentam o problema de não conseguirem determinar a quantidade tolerável de
poluição. Governos podem emitir licenças em excesso e não reduzir suficientemente
a poluição; ou, ainda, emitir poucas licenças70 e também não diminuir as emissões. É
preciso equilíbrio na quantidade de emissões de licenças, sua eficiente fiscalização e
boa regulação de seus preços no mercado.71 Dificuldades de medição dos padrões de
poluição não podem ser motivo para afastar a tributação de finalidade extrafiscal como
instrumento para que o poluidor absorva as externalidades negativas de sua atividade.
Não é diferente o entendimento da doutrina canadense no que tange à tributa-
ção ambiental, isto é, os impostos são popularmente conhecidos como mecanismos
de geração de renda para os governos; entretanto, eles também podem servir para
promover mudanças no comportamento da sociedade, especialmente novas posturas
que visem reduzir os danos ambientais.72
Benidickson afirma que “usos específicos de regimes de impostos para promover
a qualidade ambiental são uma matéria sujeita a crescente atenção”. Ainda argumenta
que os impostos podem ser aplicados “sobre insumos industriais poluentes; sobre
recursos consumidos durante a produção; sobre as emissões de poluição liberadas no
meio ambiente; ou sobre o lixo”. Na tributação com finalidade extrafiscal, “os impostos
podem ser aplicados sobre o consumo de compradores individuais”.73 A contenção do
consumo intensivo e desenfreado pode ser realizada, em parte, via tributação na tutela
do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.
Tributação incidente sobre atividades poluentes e nocivas ao meio ambiente
possui função nitidamente extrafiscal, porquanto visa proteger o bem ambiental e

70
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 403.
71
Acerca da taxação sobre o carbono, ver: GAYER, Ted. On the merits of a carbon tax. [S.l.], 2009.
Disponível em: http://www.brookings.edu/~/media/Files/rc/testimonies/2009/1202_carbon_tax_
gayer/1202_carbon_tax_gayer.pdf. Acesso em: 05 maio 2016; METCALF, Gilbert; WEISBACH, David.
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What-Why-and-How.pdf. Acesso em: 01 maio 2016.; KENNEDY, Kevin; OBEITER, Michael; KAUFMAN,
Noah. Putting a price on carbon: a handbook for U.S. policymakers. [S.l.], 2015. Disponível em: http://
www.wri.org/sites/default/files/carbonpricing _april_2015.pdf. Acesso em: 04 maio 2016.
72
OLEWILER, Nancy. The case for pollutions taxes. In: DOERN, G. B. (Ed.). Getting it green: case studies
in Canadian Environmental Regulation. Toronto: C. D. Howe Institute, 1990. Ver também: ONTARIO. Fair
Tax Commission. Fair taxation in a changing world: report of the Ontario Fair Tax Commission Toronto:
University of Toronto Press, 1993. p. 559-563.
73
BENIDICKSON, Jamie. Environmental law. 3. ed. Toronto: Irwin Law, 2009. p. 365.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 161

toda a biodiversidade. Objetiva tutelar o meio ambiente como direito fundamental de


terceira dimensão e possui grande importância na promoção do direito fundamental
ao desenvolvimento sustentável. Estado Democrático e Socioambiental de Direito,
nesse diapasão, é um Estado em evolução, com objetivos positivamente utópicos. Na
evolução histórica do Estado de Direito, pode-se identificar primariamente a luta do
homem pelos seus direitos individuais, posteriormente as suas reivindicações sociais
e, hodiernamente a luta pela preservação das conquistas passadas e pela garantia de
novos direitos, como os direitos de fraternidade, entre os quais se inclui a preservação
ambiental para as presentes e as futuras gerações. Luta-se hoje, igualmente, pelo
direito fundamental à vida na sua dimensão mais ampla, que abarca todos os seres
vivos, neles incluídos os não humanos.74
Na busca pela consolidação do direito fundamental ao desenvolvimento sus-
tentável, o Estado é financiado por tributos de cunho arrecadatório, mas também deve
implementar a tributação com finalidade extrafiscal. Essa exação extrafiscal precisa
“respeitar os princípios constitucionais da capacidade contributiva, da isonomia tributária
e da segurança jurídica”.75 São manifestamente inconstitucionais tributos ambientais
que violam os princípios constitucionais de direito tributário e direitos fundamentais.
A tributação ambiental deve observar o princípio da proporcionalidade, sob pena de
converter-se em confisco, que é instituto manifestamente vedado pela Constituição
Federal. Um sistema tributário ambiental claro, simples e com regras confiáveis é um
desafio a ser alcançado.
Refere Nabais, por sua vez, que os tributos ambientais são definidos pelas
seguintes características:

1- têm função extrafiscal; 2- tributam actividade mais poluente,


atendendo ao princípio do poluidor-pagador; 3- presumem a
existência de produto alternativo para qual possa ser dirigida a
procura antes orientada para o produto tributado; 4- as receitas
encontram-se, por via de regra, consignadas à realização da
função ambiental; 5- devem ser estabelecidos no início da cadeia
produtiva (upstream).76

74
Ver sobre o direito dos animais em: SINGER, Peter. Animal and the value of life in matters of life and
death: new introductory essays and moral philosophy. New York: Random House, 1980; SUNSTEIN,
Cass R.; NUSSBAUM, Martha. Animal rights: current debates and new directions. New York: Oxford
University Press, 2004.
75
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
76
NABAIS, José Casalta. . In: NABAIS, op. cit., p. 47.
162 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Assiste razão ao jurista luso quando afirma que o que caracteriza a natureza
ambiental dos tributos “é o objetivo ou [a] finalidade extrafiscal ecológica primordial, tra-
duzida na preservação e melhoria do meio ambiente assumida pelo legislador ao criá-los
e discipliná-los” e, bem assim, “a efetiva possibilidade de prossecução desse objetivo
ou finalidade, e não o destino ecológico das receitas proporcionadas pelos mesmos”.77
Portugal tem utilizado, no exercício da tributação de cunho extrafiscal, isenções78
e benefícios fiscais para estimular comportamentos ambientalmente responsáveis.
Podem ser citados alguns exemplos, como: a isenção parcial do imposto sobre
produtos petrolíferos e energéticos dos biocombustíveis79 (art. 90 do Código dos
Impostos Especiais sobre o Consumo);80 a isenção do Imposto sobre o Rendimento
das Pessoas Coletivas (IRC) das entidades gestoras de sistemas de embalagens e
resíduos de embalagens (art. 53º do Estatuto dos Benefícios Fiscais EBF); a isenção
desse mesmo imposto dos fundos de investimento imobiliário em recursos florestais e a
redução da taxa ou da alíquota a 10% dos rendimentos das correspondentes unidades
de participação (art. 24º do EBF); a aceitação de provisões para a recuperação paisa-
gística de terrenos (art. 40º do Código do IRC); a dedução à coleta de encargos com
equipamentos novos de energias renováveis (art. 85-A do Código do IRS); o incentivo
para aquisição de veículos movidos a eletricidade traduzida na exclusão da incidência
do imposto sobre veículos, entre outros.
Grandes temas no momento acerca da extrafiscalidade de tributos na sua
dimensão ambiental certamente são, como referido por Benidickson, “a discussão a
respeito da tributação sobre o carbono e a potencial diminuição na taxa de produção
de dióxido de carbono, que é o gás de efeito estufa que mais contribui para o aqueci-
mento global”.81 Entende Giddens que “os impostos sobre o carbono podem ser de dois
tipos: aqueles cuja receita parcial ou integral é gasta para fins ambientais e aqueles cujo
propósito é influenciar o comportamento de maneira compatível com os objetivos ligados
à mudança climática”.
No primeiro exemplo, é possível incluir “os impostos em que a receita é investida
em tecnologias renováveis”;82 já os tributos que visam compelir as pessoas ao uso de
77
Idem, p. 47.
78
Sobre programas federais de isenções fiscais para a energia renovável nos Estados Unidos, ver:
HERRICK, John. Government nontax incentive for clean energy. In: GERRARD, op. cit., p. 169-198.
79
Sobre os biocombustíveis, sua regulação e incentivos fiscais nos Estados Unidos, ver: NOSTRAND,
James Van; HIRSCHBERGER, Anne Marie. Biofuels. In: GERRARD, op. cit., p. 445-447.
80
Ver: NABAIS, José Casalta. Sustentabilidade do estado fiscal. In: NABAIS, op. cit., p. 53-54.
81
BENIDICKSON, op. cit., p. 365.
82
GIDDENS, Anthony. The political of climate change. Cambridge: Polity Press, 2009. p. 188.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 163

combustível mais eficiente, ou movidos por energia limpa, como os carros movidos com
eletricidade, enquadram-se na segunda possibilidade. O propósito da tributação sobre
o carbono, como alternativa de combate às mudanças climáticas e ao aquecimento
global, é auxiliar “na eliminação das externalidades negativas no que concerne ao
meio ambiente e garantir que elas tenham seu custo inteiramente estimado, inclusive
os custos para as futuras gerações”.83
Não basta tributar atividades poluidoras aleatoriamente: todo o sistema tributário
nacional precisa ser sustentável, inserido em uma economia verde, com novas tecno-
logias baseadas na energia limpa e livre - ou de baixa emissão - de carbono. É preciso
que exista “consistência de políticas públicas que induzam o modelo produtivo para um
nível de sustentabilidade, orientando a política fiscal nacional, estadual e municipal”.84
Quando o Estado impõe um tributo ambiental, de cunho extrafiscal predominan-
temente, e se elaboram políticas públicas que lhe possam dar amparo, é essencial
adotar índices de sustentabilidade para a sua implementação segura. Os índices de
sustentabilidade mais conhecidos são: o Ecological footprint method,85 o Dashboard
of sustainability 86 e o Barometer of sustainability.87
Grande desafio para a mensuração da sustentabilidade, seja para a criação
de um tributo ambiental, seja para a elaboração de uma política pública sustentável,
“está relacionado à utilização de uma ferramenta que capture toda a complexidade do

83
GIDDENS, op. cit., p. 188.
84
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
85
Para Bellen, o método ecological footprint, embora utilize o menor número de enfoques entre as
ferramentas, apresenta o maior campo de aplicação até o momento. O fato de utilizar apenas uma
dimensão - a ecológica - representa um limite. Ao mesmo tempo, pelo fato de superestimar esse enfoque,
representa também uma vantagem, que é a de reforçar a importância que essa dimensão encerra em
qualquer definição de sustentabilidade. A ferramenta trabalha com dados essencialmente quantitativos
e altamente agregados. Mesmo trabalhando com a dimensão ecológica isoladamente, esse método é
altamente complexo, pois envolve cálculos refinados sobre fluxos de matéria e energia. BELLEN, Hans
Michael van Bellen. Indicadores de sustentabilidade: uma análise comparativa. Rio de Janeiro: FGV,
2007. p. 189-191.
86
O dashboard of sustainability, segundo Bellen, supera a desvantagem de trabalhar com apenas um
escopo e utiliza quatro dimensões sugeridas pela Comissão de Desenvolvimento Sustentável das
Nações Unidas: ecológica, social, econômica e institucional. Isso confere maior legitimidade à ferra-
menta junto aos tomadores de decisão, mas, por outro lado, pode mascarar a sustentabilidade efetiva
do desenvolvimento. A sua abordagem é mista porque permite a participação do público-alvo. BELLEN,
op. cit., p. 191.
87
O barometer of sustainability tem os escopos ecológico e social, sendo uma ferramenta intermediária
entre as duas outras. Como referido por Bellen, ele “considera a dimensão do bem-estar social junta-
mente com a dimensão ecológica, mas o grau de sustentabilidade não pode ser mascarado à custa de
nenhuma das dimensões”. BELLEN, op. cit., p. 1910.
164 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

desenvolvimento sem reduzir a significância de cada um dos escopos utilizados no


sistema”.88 A solução está “na interface das ferramentas como um importante elemento
dentro de um sistema de avaliação”.89 Parece evidente que, na instituição de uma
tributação extrafiscal ambiental, deve-se avaliar a questão da sustentabilidade com
a utilização de várias ferramentas que levem em consideração escopos ambientais,
sociais, econômicos e de boa governança.

CONCLUSÃO

Na busca pela concretização do direito fundamental ao desenvolvimento


sustentável, não se pode hiperdimensionar qualquer um dos seus pilares básicos. O
que se deve é buscar o equilíbrio com os demais direitos fundamentais previstos na
Constituição Federal de 1988. Veiga refere que “a sustentabilidade ambiental deve estar
baseada no duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e
de solidariedade diacrônica com as gerações futuras” e que ela demanda a busca de
“soluções triplamente vencedoras (isto é, em termos sociais, econômicos e ecológicos),
eliminando o crescimento selvagem obtido ao custo de externalidades negativas, tanto
sociais quanto ambientais”. Políticas ambientais fiscais devem ser de longo prazo,
pois, do contrário, “levam ao crescimento ambientalmente destrutivo, mas socialmente
benéfico, ou ao crescimento ambientalmente benéfico, mas socialmente destrutivo”.90 O
desenvolvimento sustentável, nessa perspectiva, deve ser alcançado com governança
exemplar e harmonia com os seus pilares econômico, humano e ambiental.
Tributação ambiental, em suma, deve ser elaborada com a utilização combinada
de ferramentas que possam medir adequadamente a sustentabilidade. A criação de
um tributo ambiental deve ser acompanhada de políticas públicas de longo prazo,
consistentes e compatíveis com a tributação de finalidade extrafiscal. A participação
efetiva da sociedade na elaboração e na discussão da viabilidade da tributação am-
biental é fundamental dentro de um debate público bem informado, que possa levar à
transparência necessária aos processos de tomada de decisão. Não há dúvida de que,
nessa perspectiva, a tributação ambiental com finalidade extrafiscal é um importante
mecanismo de funcionalização e concretização do direito fundamental ao desenvol-
vimento sustentável.

88
BELLEN, op. cit., p. 193.
89
BELLEN, op. cit., p. 193.
90
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond,
2008. p. 171-172.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 165

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A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS
COMO ESPERANÇA DE ÁGUA DOCE NO FUTURO1

THE LEGAL IMPLICATION OF THE USE OF ICEBERGS


AS A HOPE OF FRESH WATER IN THE FUTURE

JOSE ADÉRCIO LEITE SAMPAIO2

FLÁVIO HENRIQUE ROSA3

ULISSES ESPÁRTACUS DE SOUZA COSTA4

SUMÁRIO: Introdução - 1. Acesso à água é um direito fundamental? - 2. O direito


do ribeirinho e a res nullius - 3. Sistema Ártico - 4. Sistema Tratado Antártico - 5. Da
viabilidade do transporte e captação de água doce de icebergs no Ártico e na
Antártica - 6. Consequências ambientais - Conclusão - Referências.

RESUMO: O presente artigo aborda, por meio do método dedutivo de pesquisa


bibliográfica, as possíveis implicações jurídicas de transporte e da captação de água
doce de iceberg. Busca-se analisar as implicações da captação dos icebergs em mar
aberto, além da exploração da água como recurso mineral, assim como a forma de
efetivação da atividade na promoção de repartição de lucro ou compartilhamento de
tecnologia. Verifica-se se a atividade segue a predeterminações jurídicas locais ou
1
Data de recebimento do artigo: 19.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 28.02.2019 e 07.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 18.03.2019.
2
Pós-Doutor pela Universidad de Castilla la Mancha. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Coordenador do Curso de Mestrado em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor
titular da Escola Superior Dom Helder Câmara. Procurador da República do Ministério Público Federal.
E-mail: joseadercio@terra.com.br.
3
Mestrando em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder
Câmara. Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara.
4
Advogado especialista em direito corporativo e coletivo do trabalho. Mestrando de Direito Ambiental da Es-
cola Superior de Direito Dom Helder Câmara. Bolsista FAPEMIG. E-mail: spartacuscosta@yahoo.com.br.
170 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

acordos internacionais, afastando a usurpação de patrimônio comum da humanidade


na captação dos icebergs em mar aberto, contrapondo à necessidade de observação
da sua origem. A análise se dará sobre o prisma do direito do ribeirinho, Sistemas
Ártico e Antártico.
PALAVRAS-CHAVE: captação de icebergs; extração de água doce de icebergs;
direito do ribeirinho; sistema ártico e sistema antártico.
ABSTRACT: The present article approaches, through the deductive method of
bibliographical research, the possible legal implications of transport and the capitation of
fresh water of iceberg. The aim is to analyze the implications of the capitation of icebergs
in the open sea, besides the exploitation of water as a mineral resource. As well as
the form of effectiveness of the activity in the promotion of profit sharing or technology
sharing. In addition to verifying whether the activity follows local legal predeterminations
or international agreements. Removing the usurpation of common heritage of humanity
in the capitation of the icebergs in the open sea, opposing the need to observe its origin.
The analysis will take place on the prism of riparian right, Arctic and Antarctic Systems.
KEYWORDS: capitation of icebergs; freshwater extraction of icebergs; right of
riparian; Arctic system and Antarctic system.

INTRODUÇÃO

O transporte de icebergs e principalmente a captação de água doce desses


recursos naturais é uma atividade que suscita disputas jurídicas entre nações. A origem
dos icebergs, as formas de regulamentação de sua captação e de extração de água
doce implicam na observação de tratados internacionais e aplicação do direito do mar
diretamente na atividade.
Tal interesse despontou em meados da década de 1960, quando pesquisadores
norte-americanos iniciaram alguns estudos sobre a viabilidade econômica de transporte
de icebergs para utilização de água. Além da verificação das características necessárias
do aglomerado de gelo, tanto para seu transporte, como da possibilidade de extração de
água doce. Outro ponto ressaltado foi o das autorizações para reboque dos blocos de
gelo em mare aberto, quanto nos mares territoriais, assim como o direito de passagem
inocente nos mares territoriais.
A utilização desses recursos é frequentemente questionada pelos países menos
desenvolvidos econômica e tecnologicamente, pois é uma possibilidade destinada à
ínfima parte da sociedade que possui tecnologias especializadas. Além da origem dos
icebergs também ser questionável e ser dada ênfase para uma suposta autorização
de sua utilização em algumas circunstâncias.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 171

Este trabalho buscará verificar a repartição dos lucros e avanços tecnológicos,


tanto na captação sobre os icebergs tidos como res nullius 5 quanto sobre aqueles
protegidos pelo direito do ribeirinho. Observará se há necessidade de se especular
a origem do iceberg, a fim de se respeitar o patrimônio comum da humanidade e a
soberania dos Estados envolvidos e se existem previsões de sanções caso haja de-
sobediência ou não observação dos mecanismos legais para o exercício da atividade.
Os icebergs se despontam como uma fonte primorosa de captação de água
doce. Assim, é necessário também desvendar se a extração de água dos icebergs
é uma forma promissora na diminuição dos impactos ambientais pela captação de
água dos cursos naturais. Existem algumas lacunas a serem desvendadas, apesar
da relevância do tema e da dificuldade de promoção da atividade.
Tais questionamentos ainda devem ser amoldados aos resultados da captação
da água doce existente no iceberg, sua viabilidade operacional e econômica. Assim, o
presente estudo visa verificar se os icebergs realmente são uma fonte de água doce
futura, e se as implicações jurídicas da atividade viabilizariam esse recurso para a
promoção das necessidades de localidades extremas que sofrem pela escassez de
água doce.
A pesquisa será orientada de acordo com as implicações do direito do mar e do
direito do ribeirinho, além dos tratados Ártico e Antártico para a captação de icebergs.
Foi utilizado o método dedutivo, possibilitado pela análise de revisão bibliográfica, de
teses, dissertações e artigos científicos.
O presente artigo se desenvolverá em seis capítulos, desde a conceituação do
direito de acesso a água, perpassando pela captação dos icebergs nas perspectivas
do Direito do Mar, sobre a res nullius e o Direito do Ribeirinho. Adiante, situaremos os
Sistemas: Ártico e Antártico e as implicações jurídicas das possibilidades de captação
dos icebergs. E, por fim, a viabilidade das atividades e as possíveis formas de imple-
mentação pelos países na busca de água doce se utilizando dos icebergs como fonte,
assim como a análise dos possíveis impactos ambientais que podem ser ocasionados
com a atividade.

1. ACESSO À ÁGUA É UM DIREITO FUNDAMENTAL?

Apesar de soar estranho tal questionamento, não há expressamente o reconhe-


cimento do acesso à água como um direito fundamental, mas sim o reconhecimento
por diversos tratados e convenções de que o acesso à água é uma recomendação.
5
Res nullius é todo objeto sob o qual não há nenhuma propriedade, seja por ter sido abandonado, seja
por nunca ter pertencido a ninguém. Todo objeto sob o regime de res nullius pode ser apropriado pelo
primeiro sujeito que dele se declarar proprietário. (BUCK, 1998, p. 113).
172 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

No entanto, não trata esse direito como fundamental, mas sim como possibilitador da
dignidade humana (ADAME, 2008).
A água é um recurso fundamental para a sobrevivência dos seres vivos, sejam
humanos ou não. A necessidade de sua utilização deriva de vários fatores, como o
aumento populacional, superaquecimento global, produção de manufaturados ou
industrializados, agricultura, pecuária e tantas outras funções antrópicas para o bem-
-estar social.
A grande demanda de utilização de água torna o acesso a esse bem escasso
e de alto custo. Fazendo surgir novas perspectivas de aquisição, sendo os icebergs
uma fonte promissora para busca do equilíbrio de acesso. Haja vista aproximadamente
70% da água doce global estar inclusa neles (SPANDONIDE, 2012).
A recomendação da importância do acesso à água advém do Comentário Ge-
ral número 15, de 2002, do Conselho Econômico Social. No entanto, é apenas uma
recomendação, não existindo força vinculante que obrigue os países a promover os
meios de acesso. Assim aparece em tantas outras convenções, como a Carta africana
dos direitos e bem-estar das crianças (ADAME, 2008).
A promoção do acesso à água em grande parte dos países está vinculada a nor-
mas de organização interna, na quais delegam as funções aos Entes que promovem o
acesso por meio de concessões ou permissões. Ante a escassez dos recursos hídricos,
os icebergs são possíveis fontes de aquisição dessa água escassa para a população.
Sabe-se que 90% do gelo do mundo e 70% da água doce estão localizados na Antár-
tica, território definido como patrimônio comum da humanidade (SPANDONIDE, 2012).
A desigualdade no acesso à água é mais acentuada nos países em desenvol-
vimento, o que suscitaria uma relevância de investimento na atividade de captação
de icebergs, possibilitando o equilíbrio no acesso de todos à água de qualidade e a
consequente concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Embora
não sendo o acesso à água um direito fundamental, este concretiza o direito-base
dos direitos fundamentais, que é a dignidade da pessoa humana e um ambiente sadio
para sobrevivência.

Por mais que essa crise ecológica mostre sua face para todos
os seres humanos de modo igualitário, já que todas as nações
partilham o planeta Terra, num mundo desigualitário, são os
pobres que efetivamente suportam o maior fardo causado pelas
mudanças climáticas (GRUBBA, 2012, p 46).

Diante de tais necessidades, questiona-se: qual é o posicionamento jurídico e


técnico dos países para a extração da água doce desses recursos? Como proceder
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 173

para a exploração de suas próprias geleiras e para a aquisição de icebergs ou captação


em mar aberto? Ainda, observando o confronto de interesses do bem essencial à vida
e o patrimônio comum da humanidade, como promover a viabilidade e sustentabilidade
dessa atividade?
Buscam-se respostas para minimizar o sofrimento das populações menos favo-
recidas em contraponto com os interesses políticos e negociais das grandes potências,
pois os recursos naturais possibilitadores do equilíbrio na distribuição de água potável
de qualidade estão acessíveis à tecnologia existente, demandando apenas ajustes
jurídicos e boa vontade política.

2. O DIREITO DO RIBEIRINHO E A RES NULLIUS

A busca pela aquisição de água doce a preços módicos é um atrativo para a


expansão da atividade de utilização de icebergs como fonte de extração de água mineral.
O grande problema é que as fontes que produzem icebergs ideais para a captação e
extração de água, em maior parte, estão localizadas no polo Antártico, e uma pequena
parte no Ártico (SPANDONIDE, 2012).
No Ártico existem empresas detentoras de know how para a captação dos
icebergs, que em maioria estão localizados no mar territorial dos Estados. A regula-
mentação de apoderamento desses recursos se dá entre o Estado detentor do recurso
e a empresa apta à exploração e destinação, permeando o direito do mar as relações
de transporte e passagens inocentes de navegação. A atividade é regulada em âmbito
interno (SOHNLE, 2016).
Os icebergs do polo Antártico estão sobre o domínio do patrimônio comum da
humanidade, pois, conforme o Tratado do Sistema Antártico, a destinação e uso dos
minerais serão reservadas à pesquisa, que deverá ser destinada ao bem comum da
humanidade. No entanto, no capítulo concernente à exploração dos minerais, nada se
disse sobre a captação de icebergs, nem especificamente sobre a água doce existente
neles (SPANDONIDE, 2012).
Em contraponto, o direito do mar determina a livre apropriação dos bens en-
contrados na coluna d’água além da zona exclusiva econômica, quando se trata do
Ártico, permitindo uma possível livre captação dos icebergs que se encontram em mar
aberto. E, no modelo Antártico, o mar é gerido pelas regras do alto-mar, não sendo
permitida a extração de minerais. No entanto, nada é dito sobre a captação de icebergs
(SPANDONIDE, 2012).
174 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Isso nos leva a crer, pela melhor interpretação, que é possível rebocar icebergs
que se encontrem à deriva no mar Austral, pois não existe a remoção desses das ge-
leiras, mas sim a captação simples do bloco de gelo que se desprendeu naturalmente
do continente e encontra-se à deriva em mar aberto, embora não contido pela ausência
de exercício de soberania na localidade, mas com liberdade e igualdade de condições
para a captação por qualquer nação.
No sistema Antártico, tais assertivas parecem beneficiar apenas as nações
com alto grau de desenvolvimento tecnológico que podem se apoderar de bens e
recursos que em primeira vista seriam para todos. Os países que solicitaram reservas
territoriais divergem do posicionamento de tratamento do oceano Austral como alto-mar,
e desejam exercer sua soberania sobre as faixas de mar reivindicadas (FERREIRA,
2009; SPANDONIDE, 2012).
Tais ocorrências trazem à voga várias discussões nas reuniões da ONU, cau-
sando um verdadeiro embate em busca dos recursos naturais daquela região. Em
especial com relação aos grandes blocos de gelos desprendidos no mar Austral, que
seguem sem uma regulamentação clara, conforme Felipe Rodrigues Gomes Ferreira,
tendo apenas como base as regras do Direito do Mar:

O problema começa a surgir quando se considera a validade


ou não das reivindicações territoriais. Assim sendo, países ter-
ritorialistas aplicam a trechos do Oceano Austral os conceitos
de Mar Territorial, Zona Contígua e Zona Econômica Exclusiva,
enquanto os demais países consideram todo o Oceano Austral
como alto-mar (FERREIRA, 2009, p. 81).

Claro está que alguns países nórdicos, para legitimar as suas ações de captação
de Icebergs no Oceano Austral, alegam que exercem direitos sob sua extensão territo-
rial, aplicando-se as regras do Direito do ribeirinho. No entanto, estes mesmos países
exercem a captação para além da extensão de seu mar territorial sob a justificativa que
não existe um sistema geográfico totalmente definido no Ártico suscitando também o
Direito do Mar e a aplicação da categoria de res nullius aos icebergs (SILVA, 2016).
A diferenciação básica no Ártico seria a aplicabilidade do Direito do Ribeirinho
para aqueles icebergs encontrados nos domínios hidrográficos de determinado país.
Este seria responsável pelo exercício de sua soberania na permissão ou autorização
para utilização do recurso, enquanto os icebergs encontrados em alto-mar seriam
apropriáveis livremente. E os Antárticos regulamentam-se pela res nullius do alto-mar,
desde que não haja um descolacionamento proposital do bloco de gelo.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 175

3. SISTEMA ÁRTICO

Devido grande parte do Ártico ser formada de mar congelado, sem uma por-
ção de terra, muitas questões se apresentam, desde autorizações de passagens em
canais até a extensão de plataformas continentais. Diferente da Antártica, que tem um
sistema de tratado consolidado, o Ártico se regulamenta pela Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito Mar (CNUDM), aplicando o Direito do Mar e também o Direito
do Ribeirinho. A extensão territorial do Ártico não é limitada como na Antártica (SILVA,
2016):
O Ártico - ao contrário do que ocorre na Antártida, onde há uma
grande massa terrestre - é marcadamente influenciado pelo
oceano Ártico e por alguns mares próximos. Nesse sentido,
uma das características distintivas do oceano Ártico é que ele é
praticamente um mar semifechado, com uma pequena saída do
lado do Pacífico norte (estreito de Bering) e uma mais larga do
lado do Atlântico norte (estreito de Fram) (SILVA, 2014, p. 95-96).

Assim, cabe aos Estados costeiros regularem a navegação, bem como a utiliza-
ção dos recursos naturais, como a captação dos icebergs no seu mar territorial, zona
econômica exclusiva e na sua coluna d’água (SILVA, 2016). É perfeitamente possível
que o Estado costeiro situado no Ártico adote uma legislação interna mais rígida que
a lei internacional do mar para resguardo de embarcações que vierem ali navegar ou
atuar em suas águas.
Pode-se afirmar que não existe liberdade de captação de recursos como icebergs
no prisma permitido pela res nullius do Direito do Mar nas extensões dos mares dos
Estados do Ártico. Os países do Ártico, devido a não existência de um acordo Ártico
como na Antártica, captam os icebergs utilizando-se de sua soberania e legislação
interna. E aqueles que se encontram em alto-mar são aplicáveis à regra da res nullius
(SILVA, 2016).
Um fator de extrema importância é o trânsito dos icebergs, pois devem ser
autorizados pelo país no caso de passagem inocente, devido ao compromisso de
cada Estado costeiro situado no Ártico de cuidar e prevenir poluição marinha, assim
como a quebra do ecossistema ecológico marinho concernente ao seu mar territorial
(SILVA, 2016).
Ressalta-se que a plataforma continental dos países situados no sistema Ártico
pode ser estendida para além das duzentas milhas náuticas, desde que o Estado
Costeiro comprove a irregularidade física de sua plataforma. Apesar de o Ártico ser
composto por oito países, apena cinco deles possuem mar territorial. Sendo eles
176 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Canadá, Dinamarca (Groenlândia), Estados Unidos (Alasca), Federação Russa e


Noruega; e os outros três componentes sem mar territorial, quais sejam: Finlândia,
Islândia e Suécia (SILVA, 2014).
Logo, a captação de icebergs no sistema Ártico é regida pela legislação dos
países, e não propriamente pelo Direito do Mar, cabendo a esse apenas a regulari-
zação das ações de captação que ocorrem em alto-mar. O trânsito de reboque dos
icebergs é bastante discutido devido a não adoção do direito inocente de passagem
pelo mar territorial, pois os Estados alegam o compromisso de manutenção e guarda
do ecossistema marinho.
Em setembro de 1996, Canadá, Dinamarca, EUA, Rússia, Finlândia, Islândia,
Noruega e Suécia firmaram a Declaração de Ottawa, por meio da qual criaram o
Conselho Ártico, cujo principal propósito é tratar das questões sociais, econômicas e
ambientais, relacionadas com o desenvolvimento sustentável da região (SILVA, 2014).
Tais decisões tornam mais difícil a implementação da atividade, acrescendo
custos a esta, haja vista que necessita de grande logística, não só na captação dos
icebergs que são transportados em grandes bolsas de água para diminuir o desgelo
e garantir o transporte seguro sem contaminação até o destino desejado, além de
inúmeras autorizações de passagem (JOB, 1978).
Os Estados banhados pelo Oceano Ártico estão limitados à regra das 12 milhas
para o mar territorial e das 200 milhas para suas Zonas Exclusivas Econômicas. O Polo
Norte e a zona circundante são considerados águas internacionais e não pertencem a
nenhum Estado. A especificidade do Ártico deve-se ao fato de possuir apenas poucas
rotas por mares territoriais e dependerem de autorização para passagem.
Isso determina a necessidade de acordos internacionais para a viabilização da
captação e trânsito dos icebergs, além de singular tecnologia para a navegação pelos
mares congelados e, ainda, requer o compromisso dos envolvidos no transporte de
restauração do ecossistema local caso ocorra alguma intercorrência na atividade que
promova algum impacto ambiental.

4. SISTEMA TRATADO ANTÁRTICO

A Antártida é uma porção de terra localizada no hemisfério sul do globo e é


recoberta por gelo. Estima-se que ela seja a maior reserva de água doce congelada,
mas também importante reserva de minérios e minerais nobres.
Assinado em 1959 e consolidado em 1961, o Sistema do Tratado Antártico esti-
pulou apenas atividades de prospecção científica, vedando a exploração dos recursos
minerais e biológicos (VIEIRA, 2006).
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 177

Um aspecto natural relevante da Antártica é o fato de que o gelo


que cobre seu território equivale, segundo certas estimativas, a
até 90% das reservas de água potável do planeta. Outro é que o
continente abriga presumivelmente grandes reservas minerais,
inclusive aquelas de evidente interesse energético, como o
petróleo. Tais reservas encontram-se intocadas, protegidas pela
camada de gelo e por norma internacional (VIEIRA, 2006, p. 51).

O tratado Antártico busca a paz, livre liberdade de pesquisa científica e repartição


de informações com trocas de tecnologias e conhecimentos coletados. Na propositura
do Tratado do Sistema Antártico, doze países solicitaram reserva de território. No
entanto, não lhes foram concedidos direitos soberanos sobre o continente Antártico,
denominando-o como patrimônio comum da humanidade (SILVA, 2016).
Devido a não concessão de soberania aos países solicitantes, o mar territorial An-
tártico é regulado como alto-mar. Não há efeitos de soberania naquela região, pois toda
a área é patrimônio comum da humanidade. A exploração e a captação de recurso são
vedadas, desde que não sejam com fins de pesquisa científica, devendo ser partilhados
seus conhecimentos e métodos entre todos os países do globo (SPANDONIDE, 2012).
Como aventado por Friederick Brum Vieira, várias são as ideias propostas para
exploração do continente Antártico, inclusive turismo e a captação de água para distri-
buição a países que carecem do recurso. No entanto, ainda não existe um consenso
e autorização para a captação dos recursos de gelo ou icebergs, enquanto existem
para pesca e caça.
Várias são as formas propostas para o uso do espaço natural
da Antártica. Entre as convencionais encontram-se a explora-
ção de suas possíveis reservas minerais e o desenvolvimento
de projetos turísticos. Há, porém, propostas que, em princípio
curiosas, fixam-se em certo patamar de seriedade após análise
mais meticulosa. São elas: transformação da capa de gelo em
água potável e seu transporte para regiões carentes, além do
aproveitamento da baixa temperatura para converter o continen-
te em um espaço planetário de armazenamento de alimentos
(VIEIRA, 2006, p. 51).

O Sistema Tradado Antártico define a área de jurisdição do Tratado como aquela


situada ao sul de sessenta graus de latitude sul, incluindo as plataformas de gelo,
ressalvando, contudo, a preservação do direito internacional aplicável ao alto-mar, o
que traz alguns embates devido à possibilidade de captação dos icebergs que estejam
à deriva em alto-mar, pois esses não foram convencionados na proibição impostas a
captação dos recursos minerais (COLLARES, 2015).
178 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Assim, o que não é permitido pelo Sistema do Tratado Antártico é a captura dos
icebergs no continente Antártico, como a remoção nas suas geleiras ou na porção do
espaço reconhecidamente como o território Antártico, aplicando as regras do patrimônio
comum da humanidade. Logo, a captação dos icebergs no alto-mar Antártico, como no
alto-mar Ártico, é livremente permitida, não necessitando analisar a origem do bloco
de gelo que se encontra à deriva. Sendo no Ártico pelo desinteresse do Estado, que
não conteve o trânsito do bloco de gelo para o alto-mar, e na Antártica pela proibição
do exercício de soberania dos Estados naquele território.

5. DA VIABILIDADE DO TRANSPORTE E CAPTAÇÃO DE ÁGUA DOCE DE


ICEBERGS NO ÁRTICO E NA ANTÁRTICA

O continente Antártico é mais gelado que o mar Ártico. Seus mares são mais
profundos e suas camadas de gelo são maiores que as do Ártico, o que dificulta sin-
gularmente a navegação por suas águas e a captação de recursos, ainda que seja
no alto-mar Antártico. Além disso, o continente Antártico está significativamente mais
distante dos grandes consumidores de recursos naturais - como petróleo e minério -,
Europa e América do Norte (FERREIRA, 2009).
A história demonstra alguns naufrágios de embarcações que navegaram pelos
mares congelado, tanto Ártico como Antártico, se colidindo com icebergs de pequena
proporção. As embarcações, para tal navegação, devem ser totalmente modificadas
para resistir às condições locais de navegação, como o clima totalmente desfavorá-
vel, o que demanda expertises das mais variadas ciências apenas para a navegação
(SPANDONIDE, 2012).
Isso implica em vultosos investimentos em equipamentos, técnicas e know
how para pesquisa e exploração da atividade, que é mais complexa. O que já elimina
países sem qualquer perspectiva econômica e técnica para implementação da atividade.
Apenas a navegação já é intangível, ainda que seja para pesca ou pesquisa, sendo
inimaginável a atividade de captação e reboque de icebergs para extração de água doce.
A navegação no Ártico é menos custosa, tendo em vista a camada de gelo
ser menos espessa que no Austral. No entanto, apenas alguns países componentes
daquele sistema possuem técnicas de navegação e equipamentos para tal.
Além da necessidade de autorização de navegação e de conhecimento de
técnicas específicas para captação e reboque dos icebergs, haja vista a existência de
canais de passagem sob a jurisdição e soberania dos países que compõe o sistema
Ártico, aplicando se o Direito do Ribeirinho na maior parte das situações e o Direito
do Mar subsidiariamente.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 179

O transporte e a captação de água doce dos icebergs passa por quatro impor-
tantes etapas, sendo elas o local de captação dos icebergs, a forma de transporte, a
velocidade de transporte e desgelo e a viabilidade econômica. Além dos problemas
de captação, envolvem toda uma problemática ambiental de autorização, bem como
os custos para o transporte dos blocos de gelo, já incluídas técnicas sustentáveis de
equilíbrio ambiental. (WEEKS, CAMPBELL, 1973).
As adversidades de captação e transporte são vencíveis pela tecnologia atual
existente, e os acordos jurídicos, tanto locais como internacionais, podem ser efetiva-
dos para se atingir uma viabilidade adequada da atividade. Perfeitamente possível a
captação dos icebergs em alto-mar, como res nullius, bem como ajustes para captação
sob a responsabilidade do Direito do Ribeirinho, quando essa se der nas dependências
do mar territorial de algum Estado soberano.
Para aumentar as possibilidade de êxito e viabilizar o acesso de sucesso dos
fins da atividade, é necessária a constituição de grupos específicos de especialistas na
atividade, pois a profissionalização da captação do recurso reduziria significativamente
riscos de acidentes, contaminação, além de possibilitar que países sem qualquer
experiência com a atividade pudessem adquirir a água extraída dos icebergs (WEEKS,
CAMPBELL, 1973).
Para se obter melhores resultados na captação de água doce, devem ser
buscados icebergs tabulares, ou fontes desse tipo de iceberg, pois evitariam riscos
de acidentes, possibilitando melhor manuseio das peças e maior extração de água.
As melhores fontes encontram-se no continente Antártico, sendo existente apenas
uma fonte ideal no Ártico, e essa não produz iceberg de tamanho relevante e nem em
abundância como na Antártica (WEEKS, 1980).
No Ártico, os icebergs tabulares são encontrados no Ward Hunt Ice Shelf. No
entanto, esses icebergs não se desprendem até o mar da Groenlândia, onde poderiam
ser rebocados, o que inviabiliza o reboque para uso comercial de água doce. Na Antár-
tica existem diversas prateleira que poderiam fornecer fonte de gelo tabular próximas
à Austrália, África e América do Sul. No entanto, a impossibilidade de extração do gelo
devido ao Sistema do Tratado Antártico e severa temperatura amena inviabilizam a
atividade (FERREIRA, 2009; SPANDONIDE, 2012; WEEKS; CAMPBELL, 1973).
O uso de captação de imagens de satélites e recursos de navegação facilita a
descoberta de icebergs ideais para a captação e extração de água. A tecnologia atual
viabiliza a atividade garantindo uma margem gratificante de êxito, flexibilizando os
custos da captação e o acesso da água extraída para todas as comunidades, inde-
pendentemente do desenvolvimento do país comprador, inclusive fornecendo meios de
participação desses no processo com o compartilhamento de tecnologia e know how.
180 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A tarefa envolve uma gama de expertises como engenharia, meteorologia,


oceanografia, relações jurídicas, arquitetura naval, biologia, marinha, glaciologia e
economia, dentre outras (WEEKS, 1980). Mas, mesmo assim, apresenta-se como
uma alternativa sagaz em êxito. Além disso, contribui para a diminuição do uso e
preservação dos cursos hídricos internos dos países, e é garantia de acesso à água
a países carentes de recursos hídricos.
Segundo Felipe Rodrigues Gomes Ferreira, devido à grande poluição dos re-
cursos hídricos e a carente distribuição de água, a ideia de rebocar pequenos icebergs
Antárticos para gestão de recursos hídricos já foi proposta por convenções e até pela
recomendação da Conferência de Wilton Park de 2001:
Há quem alerte para que o recurso mais abundante da Antártica,
o gelo da calota polar (80% da água doce do planeta), possa vir
a ser objeto de disputa diante das previsões de esgotamento
das fontes de água potável do mundo no futuro, devido ao
crescimento populacional e à poluição das águas. De fato, já
foi considerada a possibilidade de rebocar pequenos icebergs
(pequenos para padrões antárticos) em situações de crise de
abastecimento d’água para regiões secas do hemisfério sul e
a Recomendação XV-21 refere-se explicitamente ao assunto
(FERREIRA, 2009, p. 113).

Ainda, o Autor sugere que não parece economicamente viável coletar água de
icebergs Antárticos, devido à dificuldade de acesso aos recursos e à impossibilidade
jurídica da captação do gelo que não esteja em mar aberto, o que reduz a viabilidade
de captação de água de icebergs a um recurso excêntrico, delimitando a atuação para
algumas empresas devido à alta complexidade técnica e de recursos financeiros a
serem despendidos (FERREIRA, 2009).
A captação de icebergs no mar Austral é totalmente possível, devido à grande
gama de países que utilizam recursos de caça e pesca naquele mar. A possibilidade
se dá conforme as normas do Direito do Mar que é aplicável ao Sistema do Tratado
Antártico. Não obstante, a caça e pesca no mar Antártico são práticas comuns de
Argentina, Austrália e Japão (COLLARES, 2015).
Existem relatos de icebergs que se desprenderam da plataforma antártica e
chegaram até o Ártico. Sendo que, em alguns casos, os icebergs poderiam levar até
12 anos para seu completo derretimento. “Muitos icebergs desgarram da Antártica e
são levados pela corrente para o norte, atingindo latitudes de até 40º S, levando até 12
anos para derreter completamente” (FERREIRA, 2009, p. 52), o que torna totalmente
viável o transporte, captação e desgelo.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 181

Contudo, é uma atividade que demanda logística refinada, além de uma com-
plexa teia de ramos científicos para a consecução adequada, sem prejuízos ao meio
ambiente e principalmente resguardando o viés econômico a ser alcançado. Toda a
operação ainda deve ter custos menores do que os habituais promovidos para o acesso
à água nas mais variadas localidades do planeta.

6. CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS

O desgelo natural do continente Antártico libera em média 1.000 km³ de água


doce por ano no oceano. Assim, não parece crível que a captação de icebergs tabu-
lares trará alguma consequência de impacto ambiental para a área, pois a produção
do gelo é contínua e o clima propicia a manutenção natural do ciclo de restauração do
gelo. Assim afirma Weeks:
No appreciable environmental changes seem likely to occur
on the Antarctic continent as the result of iceberg towing. Con-
sidering that the Antarctic releases 1000 km³ of fresh water each
year due to the calving of tabular icebergs, an immense towing
effort would be required to make a significant reduction in the
number available (WEEKS, 1980, p. 7).6

Certamente, ocorreria a retirada total do bloco de gelo, que se derreteria ou des-


prenderia naturalmente, provocando um aceleramento da situação, sem, contudo, afetar
aquele ecossistema diretamente, dadas as condições climáticas locais. No entanto,
é no entorno do transporte que está a grande preocupação, pois os efeitos colaterais
do deslocamento e resfriamento do mar local de trânsito podem gerar consequências
inoportunas (WEEKS, 1980).
Uma solução seria o encapsulamento do iceberg, tanto para evitar o derreti-
mento no transporte quanto para evitar a contaminação. Além dos efeitos do possível
resfriamento, que poderá não afetar diretamente as espécies marinhas pela rota de
trânsito. Lembrando também que o processamento de condensação e extração da
água provavelmente se daria ainda em águas próximas a sua captação, como regra
de contenção de custos.
O transporte da água doce já extraída envolve uma logística bem menor do que
o encapsulamento do iceberg para o reboque, assim como evita acidentes, diminuindo
6
Nenhuma mudança ambiental significativa provavelmente ocorrerá no continente Antártico como o
resultado do iceberg de reboque. Considerando que a Antártida libera 1000 km³ de água doce a cada
ano, devido ao nascimento de icebergs tabulares, um imenso esforço de tração seria necessário para
uma redução significativa no número disponível. (WEEKS, 1980, p. 7, tradução nossa).
182 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

singularmente o risco e consequências da atividade de locomoção do produto extraído,


além de minimizar ou neutralizar os possíveis impactos ambientais a serem causados,
assemelhando-se ao transporte de petróleo realizado pelas plataformas em alto-mar.

CONCLUSÃO

A captação de água doce de icebergs envolve uma gama de expertises, como


engenharia, meteorologia, oceanografia, relações jurídicas, arquitetura naval, biologia,
marinha, glaciologia, economia, dentre outras. Mesmo assim, apresenta-se como uma
alternativa perfeitamente exitosa. Contribui para diminuição do uso e preservação dos
cursos hídricos internos dos países e é garantia de acesso à água de qualidade a
países carente de recursos hídricos e subdesenvolvidos.
O uso de captação de imagens de satélites e recursos de navegação possibilitam
fáceis descobertas de icebergs ideais para a captação e extração de água. A tecnologia
atual viabiliza a atividade, garantindo uma margem gratificante de êxito, flexibilizando
os custos da captação e do acesso da água extraída para todas as comunidades,
independentemente do desenvolvimento do país comprador.
Para aumentar a possibilidade de êxito e viabilizar o acesso de sucesso dos
fins da atividade, é necessária a constituição de grupos específicos de especialistas na
atividade, pois a profissionalização da captação do recurso reduziria significativamente
riscos de acidentes, contaminação, além de possibilitar que países sem qualquer ex-
periência com a atividade possam adquirir a água extraída dos icebergs.
O transporte da água doce já extraída envolve uma logística bem menor do que
o encapsulamento do iceberg para o reboque, assim como evita acidentes, diminuindo
singularmente o risco e consequências da atividade de locomoção do produto extraído.
Além disso, minimiza ou neutraliza os possíveis impactos ambientais a serem causados,
assemelhando-se ao transporte de petróleo realizado atualmente.
Devido a não concessão de soberania aos países solicitantes, o mar territorial
Antártico é regulado pelas regras do alto-mar. Não há efeitos de soberania naquela
região, pois toda a área é patrimônio comum da humanidade. A exploração e a cap-
tação de recurso são vedadas, desde que não sejam com fins de pesquisa científica,
devendo ser partilhados seus conhecimentos e métodos entre todos os países do globo.
No entanto, é omissa quanto à captação de icebergs que se encontram no alto-mar
Austral, o que se mostra uma atividade licitamente possível.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 183

Enquanto no Ártico os Estados estão limitados à regra das 12 milhas para o mar
territorial e das 200 milhas para suas Zonas Exclusivas Econômicas, o Polo Norte e a
zona circundante são considerados águas internacionais e não pertencem a nenhum
Estado. A especificidade do Ártico se dá pelo fato de possuir apenas poucas rotas por
mares territoriais e dependerem de autorização para passagem, o que viabiliza pactos
privados entre nações, sem, contudo, fechar possibilidades de acordos internacionais
para a realização da atividade.
Tais circunstâncias permitem a regulamentação interna de captação dos
icebergs, o que não diminui a possibilidade do exercício da atividade, apenas impõe
uma determinação mais específica, com vistas a atingir a viabilidade desejada para
a execução da tarefa. Logo, a captação de icebergs no sistema Ártico perpassa pela
legislação interna dos países do que propriamente pelo Direito do Mar.
A regularização das ações de captação que ocorrem em alto-mar se dá con-
forme na Antártica, por meio do Direito do Mar. O trânsito de reboque dos icebergs
é bastante discutido devido a não adoção do direito inocente de passagem pelo mar
territorial Ártico, pois os Estados alegam o compromisso de manutenção e guarda do
ecossistema marinho, o que pode ser contornado facilmente, por adoção de regras
comuns no transporte.
Categoricamente, afirma-se que não existe liberdade de captação de recursos
como icebergs no prisma permitido pela res nullius do Direito do Mar nas extensões
dos mares dos Estados do Ártico. Os países do Ártico, devido a não existência de um
acordo Ártico como na Antártica, captam os icebergs utilizando-se de sua soberania
e legislação interna. E aqueles que se encontram em alto-mar são aplicáveis à regra
da res nullius.
Logo, a captação de água doce de icebergs é uma alternativa possível e viável
como fonte futura de abastecimento de água potável e acesso à água para o mundo,
dependendo apenas de ajustes do Sistema do Tradado Antártico para a captação dos
icebergs e de acordos internacionais no Ártico.
No entanto, os estudos comprovam que o grande berço produtor de gelo que
viabilizaria a atividade de captação e extração de água dos icebergs é o polo Antártico,
pela especificidade climática e a produção de icebergs tabulares que são os ideais
para a extração. Os contratempos de navegação e climáticos apresentam-se como
entraves vencíveis e que, ainda assim, não diminuiriam a viabilidade da atividade de
captação, reboque e desgelo para utilização da água doce.
184 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

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13 jun. 2018.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA E
O ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO1

PROTECTION AND GOVERNANCE OF WATER


AND THE STATE OF ECOLOGICAL LAW

JOSÉ IRIVALDO ALVES O. SILVA2

JOSÉ RUBENS MORATO LEITE3

SUMÁRIO: Introdução - 1. O contexto e a extensão do problema - 2. O desenvolvi-


mento sustentável e a integridade ecológica em Voigt como base para o repensar da
proteção da água - 3. Pressupostos do Estado de direito ecológico para a proteção
da água - Considerações finais - Referências.

RESUMO: A água é um bem fundamental para a sobrevivência ecossistêmica


do Planeta. Encontrar formas de reconhecer e reforçar sua proteção é fundamental.
Portanto, chama-se atenção para a importância da regulação dos mananciais, para
fazer frente à grave crise hídrica que está posta e que, entretanto, ganha facetas mais
complexas quando envolve outros países, com bacias hidrográficas, aquíferos e rios
sendo compartilhados. Dessa forma, um modelo de governança ecológica pautada
em um direito ecológico com foco na sustentabilidade ganha importância diante desse
1
Data de recebimento do artigo: 21.12.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 19.01.2019 e 29.01.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 11.02.2019.
2
Pós-Doutor em Desenvolvimento Regional. Doutor em Ciências Sociais. Doutorando em Direito e
Desenvolvimento. Mestre em Sociologia. E-mail: irivaldo.cdsa@gmail.com.
3
Professor Titular dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina - UFSC. Pós-Doutor pela Universidad Alicante, Espanha 2013/4. Pós-Doutor pelo
Centre of Environmental Law, Macquarie University - Sydney - Austrália. Doutor em Direito Ambiental
pela UFSC, com estágio de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre
em Direito pela University College London.
188 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

contexto, buscando institucionalizar um tratamento sistemático dessa questão. O


objetivo do presente estudo é estabelecer linhas basilares para a proteção da água
no contexto de um novo olhar sobre do Direito Ambiental posto. A partir dos dados
apresentados neste ensaio, ficou bastante plausível a importância dos recursos hídricos
na geopolítica internacional, uma vez que fatores climáticos e a demanda excessiva
estão pressionando cada vez mais a comunidade internacional para um processo de
articulação no sentido de uma cooperação, pelo menos é isso o desejado, embora o
cenário aponte para um panorama de competição pelos recursos hídricos.
PALAVRAS-CHAVE: água; meio ambiente; direito ambiental.
ABSTRACT: Water is a fundamental asset for the planet’s ecosystem survival.
Looking for ways to recognize and strengthen its protection is critical. Therefore,
attention is drawn to the importance of the regulation of water sources in order to face
the serious water crisis that is being posed and which, in the meantime, gains more
complex facets when it involves other countries, with river basins, aquifers and rivers
being shared. Thus, a model of ecological governance based on an ecological right
focused on sustainability gains importance in this context, seeking to institutionalize
a systematic treatment of this issue. The objective of the present study is to establish
baselines for the protection of water in the context of a new look on Environmental
Law. Based on the data presented in this paper, the importance of water resources in
international geopolitics was very plausible, as climatic factors and excessive demand
are increasingly pressing the international community for a process of articulation
towards cooperation, at least this is desired, although the scenario points to a panorama
of competition for water resources.
KEYWORDS: water; environment; environmental law.

INTRODUÇÃO

Não se pode mais esconder a preocupação global em relação ao estoque de


água no Planeta. O tema tem sido objeto de discussões em organismos nacionais e
internacionais, já sendo apropriado pelo Direito Interno como matéria essencial ao de-
senvolvimento nacional e, mais recentemente, pelo Direito Internacional como temática
essencial para o respeito à dignidade humana.
Isso parece convergir com os pressupostos de um possível Estado Ecológico,
uma vez que há uma discussão em torno da necessidade de se recuperar a quanti-
dade e qualidade da água sob pena de se comprometer a sobrevivência de todas as
espécies de vida existentes.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 189

Como indicação disso, a mudança de perspectiva da legislação em diversos


países acerca dos corpos de água4 tem sido um alento diante de retrocessos e um
resgate de um direito ambiental mais protetivo, tendo como exemplo os rios, que acabam
ganhando personalidade jurídica diante de sua relevância espiritual para determinados
povos e para a manutenção da vida.
Portanto, chama-se atenção para a importância da regulação dos mananciais,
para fazer frente à grave crise hídrica que está posta e que, entretanto, ganha facetas
mais complexas quando envolve outros países, com bacias hidrográficas, aquíferos e
rios sendo compartilhados. Dessa forma, um modelo de governança ecológica pautada
num direito ecológico com foco na sustentabilidade ganha importância diante desse
contexto, buscando institucionalizar um tratamento sistemático dessa questão.
Neste ensaio dar-se-ão linhas introdutórias para se pensar uma governança
ecológica das águas, baseada num Estado de Direito ecológico, com exemplo nas águas
transfronteiriças, saindo de um modelo consumado para um modelo em construção
que repense e estabeleça novos marcos legais para a matriz desenvolvimentista que
ainda persiste em manter suas bases globalizadas.

1. O CONTEXTO E A EXTENSÃO DO PROBLEMA

O mapa 1 provoca reações em relação ao uso e acesso à água, uma delas


é justamente pensar que a disputa em face da água está posta e por esse mapa é
possível ver as maiores potencialidades em que essas disputas estariam pautadas.
Muitos desses aquíferos são fundamentais no que se conhece por ciclo hidrológico,
sendo importantes na manutenção de rios, fornecimento de água ao meio urbano e
rural, e, como se isso não fosse suficiente, exercem um papel central na manutenção
de diversos ecossistemas, como pântanos e os componentes das bacias hidrográficas,
daí a necessidade de uma governança pautada numa concepção ecológica da água
saindo de uma percepção da água apenas como recurso.
É uma riqueza muitas vezes invisível ao olhar, principalmente, daquele que
vive nas cidades e cuja dinâmica se junta com outras para a manutenção do ciclo
hidrológico, que se coaduna com um caráter integral, holístico e complexo do meio
ambiente, responsável pela vida planetária, cuja interação com os demais elementos
do meio ambiente formam um panorama extremamente delicado, dando a dimensão
da relevância em se proteger, tutelar, esse ciclo. Inclusive, a própria visão de ciclo
subverte a divisão entre água superficial, água subterrânea, água da chuva, enfim, a
água passa a ser uma só, a interferência em qualquer etapa do ciclo hidrológico pode
comprometer o sistema.

4
É o caso, por exemplo, da Colômbia, da Nova Zelândia e da Índia, para citar alguns.
190 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Daí ser imprescindível uma política de proteção desse ciclo hidrológico partindo
de um conhecimento e um mapeamento minucioso desses aquíferos, para que haja
uma tutela ecológica eficaz. No mapa 2, vê-se o nível de extração de água subterrânea
no Planeta para se ter uma visão do estresse sobre esse elemento fundante do meio
ambiente, fazendo pensar como isso tem sido regulado, acordado entre os países e
se tem sido estabelecida uma hidrodiplomacia ecológica.

Mapa 1 - A potencialidade das águas subterrâneas no Planeta

Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.

O mapa 2 destaca um processo de extração da água diferenciado entre Norte


e Sul do globo, em que a demanda por água é crescente nos países com economia
em ascensão ampliando os usos da água em diversos setores, principalmente a
indústria e a agricultura, como está demonstrado no mapa 3. Países como Estados
Unidos da América, Índia, Paquistão, China, respondem por uma parcela considerável
dessa exploração, cuja mudança de paradigma certamente não ocorrerá enquanto
o modelo de desenvolvimento for esse vigente e a água não se transformar num
bem ecológico, estratégico para a manutenção da vida planetária. Bruckmann (2012)
chama atenção para a pressão dos Estados Unidos sobre os recursos hídricos,
inclusive tendo já contaminado importantes reservatórios como os grandes lagos e
a existência de cidades como Las Vegas, que demandam cada vez mais água para
alimentar o turismo do jogo, em regiões com pouquíssima chuva e, portanto, baixa
reposição dos estoques de água.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 191

Mapa 2 - Nível de extração de água subterrânea

Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.

A Ásia desponta no nível de uso dessas águas subterrâneas, assim como os


Estados Unidos da América e a Europa, destacando-se o uso intensivo para as lavouras
na produção de alimento, geralmente, para exportação. O continente africano tem um
perfil mais agrícola, mantendo esse uso alto para a agricultura. Porém, isso se repete em
quase a totalidade dos continentes, à exceção da Europa, cujo uso é maior nas cidades.
O mapa 3 expõe a situação da irrigação no Planeta, uma vez que a atividade
que mais consome água é a agricultura. Essas informações dão o tom da complexidade
jurídica, política, sociológica, ecológica e biológica que perpassa essa questão, que
não é de fácil solução e passa por uma compreensão planetária, e não local, e que
todos são atingidos pelas consequências, porém, certamente, de maneiras diferencia-
das e num nível de intensidade também diverso, sendo extremamente necessário o
estabelecimento de uma governança global da água pautada em um direito ecológico.
A possibilidade de solução partiria, certamente, da política e do estabelecimento
de marcos jurídicos internacionais acerca do uso da água a partir de uma matriz de
pensamento ecológico, dando continuidade ao estabelecimento da água como bem
inalienável, como direito humano, como bem ambientalmente relevante, desconstruin-
do a ideia de que a solução seria tornar a água um bem econômico, o que seria uma
espécie de “freio” para o consumo excessivo e uma espécie de tragédia dos comuns,
porém, isso seria uma tese inconsistente contestada pelos mapas acima demonstra-
dos que destacam a irregular distribuição e uso dessas águas pelos países e regiões
concentradores da industrialização e inovação e a destinação para a produção em
larga escala na agricultura.
192 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Mapa 3 - Uso da água subterrânea pelo mundo

Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.

O mapa 4 revela a importância estratégica que tem a América Latina na


geopolítica da água. Sua alta capacidade de recarga a coloca num nível elevado
de relevância, o que demanda ações regionais no sentido de gerenciar e proteger
esse recurso fundamental para a sustentação da vida e dos sistemas ecológicos de
biodiversidade. Esse mapa 4, analisado a partir do mapa 5, recentemente divulgado
em estudo da Revista Nature, coloca bem o processo de mudança que o ciclo hidro-
lógico poderá sofrer.
O mapa 5 demonstra cabalmente o nível de interferência no ciclo hidrológico a
partir das mudanças climáticas, tanto no regime de chuvas quanto na capacidade de
estocagem dessa água, lembrando que é fundamental, nesse processo, a manutenção
das matas e a proteção do solo, pois são fundamentais para esse ciclo. Por isso, se
faz imprescindível um sistema de proteção integral do que propicia a recarga de água,
sua potabilidade e diminuição da evaporação.
Esse processo de transformação ambiental, somado ao aumento do consumo
de água nas cidades, nos processos produtivos agrícolas em larga escala, à poluição
dos rios, à poluição dos mares, à falta de tratamento e não reutilização das águas de
esgoto, enfim, um estresse para os recursos hídricos no Planeta, poderá causar um
colapso da humanidade.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 193

Mapa 4 - Aquíferos com maior eficiência na recarga

Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.

Mapa 5 - Processo de mudanças climáticas afetando o estoque de água

Fonte: RODELL et al. (2018).


194 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Tabela 1 - Média do consumo de água em litros per capita por dia por país

Estados Unidos 575

Austrália 493

Noruega 301

França 287

Suécia 195

Brasil 150 (2011)*

Rio de Janeiro 189 (2011)*

Mato Grosso 168 (2011)*

São Paulo 177 (2011)*

Reino Unido 149

Índia 135

China 86

Nigéria 36

Etiópia 15

Angola 15

Moçambique 4

Fonte: data360.org|http://memoria.ebc.com.br/agenciaBrazil/
noticia/2011-09-11/consumo-de-agua-por-habitante-no-Brazil-e-estavel.

A tabela 1 apresenta dados preocupantes quando se pensa em uma dimensão


social da água, em que esta não é distribuída de forma equitativa, em uma indicação
de falha na governança da água. E a partir do mapa 6 e do gráfico 1, fica patente
a necessidade de uma estratégia política baseada em modelo de governança que
privilegie a distribuição de recursos de maneira justa, praticando-se uma justiça
hídrico-ecológica. Veja-se que o Brasil ocupa um lugar de destaque na disponibilidade
desses recursos.
196 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A Carta da Terra,5 escrita em 2000 com a mediação da Organização das Nações


Unidas (ONU), apresentou alguns princípios que podem ser utilizados na implantação
de processos de governança hidroecológica:
1) - os planos
de manejo devem contemplar e reconhecer a bacia hidrográfica como um bloco só a
ser gerenciado, e não de forma compartimentalizada, planejando de forma integrada,
conjunta a sustentabilidade dos recursos desse território, inclusive implementando
formas de resolução de conflitos;
2) Transformação do enfoque setorial com que se tem realizado o trabalho - isso
significa que as instituições deverão trabalhar de forma articulada, inclusive incorporan-
do o problema hídrico como uma questão que atinge a todos, portanto, a articulação
institucional é fundamental em detrimento da setorialização;
3) Conscientização social, transformação e participação - a sociedade deverá
se apropriar dos processos de regulação, de controle e gestão dos recursos hídricos e,
para isso, os instrumentos de informação são essenciais no processo de transformação
dos procedimentos da sociedade;
4) Marco legal e situação atual do recurso água - o recurso hídrico sofreu im-
pactos severos que devem ser abordados pela legislação atualizada. Os princípios da
Convenção de Nova York devem ser considerados dentro das legislações nacionais,
uma vez que oferecem, no caso das bacias internacionais do México e da América
Central, elementos fundamentais para a governança e a gestão ambiental. Estes
apontam superficialmente, ainda, para uma integralidade dos sistemas hídricos e o
reconhecimento das seções que correspondem territorialmente a cada país, compar-
tilhando a equidade de direitos, abrindo as possibilidades de negociação de usos e
possibilitando um equilíbrio entre interesses e necessidades de cada país em uma
bacia internacional;
5) - é pre-
ciso reconhecer novas institucionalidades surgidas espontaneamente na sociedade,
inclusive um reconhecimento jurídico, em decretos e leis.
Portanto, torna-se imprescindível no processo de governança hídrica uma
hidropolítica ecológica consolidada numa visão jurídico-complexa que tente abraçar
de forma integral a magnitude do fenômeno, uma vez que gerenciar recursos hídricos
é necessariamente manejar conflitos (UNEP, 2007).

5
Disponível em: http://cartadelatierra.org/descubra/la-carta-de-la-tierra/.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 197

2. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A INTEGRIDADE ECOLÓGICA EM


VOIGT COMO BASE PARA O REPENSAR DA PROTEÇÃO DA ÁGUA

Voigt (2013) resgata e faz menção aos 25 anos da divulgação do relatório de


Bruntland, “Our Common Future”, hoje quase 31 anos completos, e daí provoca a
reflexão, indagando se o Planeta se tornou mais sustentável. E ela mesma responde
“não”, uma vez que a pressão sobre os recursos planetários tem aumentado, e isso
pode ser exemplificado a partir da água. Dessa forma, não haveria saída senão pela
integração dos objetivos do meio ambiente aos econômicos e sociais.
Ademais, chama atenção para a “integração” e a necessidade de não ser ca-
racterizada como mera junção de fatores procedimentais, indo além, sendo necessário
acontecer sob uma estrutura mínima para a tomada de decisão, estando inserida num
objetivo mais abrangente.
Segundo ela, alguns requisitos básicos são exigidos para que haja um ge-
nuíno desenvolvimento sustentável: Estado de Direito, demandas justas, arranjo de
governança internacional e nacional efetiva e transparente e leis ambientais claras e
implementáveis. E parece que o desenvolvimento sustentável funciona muito mais
como objetivo do que como princípio, diante de metas a serem atingidas e cumpridas
pelos países, numa espécie de verificador de uma ação mais sistêmica e integrativa,
reexaminando-se o conteúdo do desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, a autora define integração como sendo o processo de fazer o todo,
ou ir complementando, trazendo as partes para ficarem juntas, removendo barreiras
que impõem segregação. Integração no contexto do desenvolvimento sustentável é
processo, mas também é substância. A integração seria o “esqueleto” do desenvolvi-
mento sustentável. Isso faz com que a autora afirme que houve um erro de essência
no conceito de desenvolvimento sustentável: tratar o meio ambiente de forma igual
em relação aos demais fatores.
A integração almeja, no contexto do desenvolvimento sustentável, a integridade
do meio ambiente em uma perspectiva de desenvolvimento humano que, no mínimo,
permita que se possam sustentar processos biofísicos que suportem as formas de vida
e que deve ser permitido continuar sem mudanças significativas. Isso se adéqua ao
que se pensa sobre a água e sua importância, como sendo o substrato para sustentar
a vida, as funções ecossistêmicas do Planeta.
O objetivo é assegurar a saúde contínua do sistema de suporte da vida na
natureza, incluindo ar, água e solo, protegendo a resiliência, diversidade e pureza dos
ecossistemas. A lógica de proteção dos serviços ecossistêmicos não deriva do conceito
198 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

de integração, mas do desenvolvimento sustentável. Nessa linha, o desenvolvimento


humano, a segurança e a paz da humanidade vão depender da saúde das funções e
condições ecológicas. Portanto, a integração no contexto do desenvolvimento susten-
tável significa respeitar as funções ecológicas com absoluta prioridade.
A integridade ecológica expressa uma “verdade inconveniente”, a existência de
limites. Voigt (2013) reforça que o discurso do desenvolvimento sustentável é essen-
cialmente um discurso dos limites. Assim, integridade no contexto do desenvolvimento
sustentável com o propósito de assegurar a integridade do meio ambiente demanda
que os limites ecológicos sejam respeitados, e claro que isso inclui o limite sobre as
demandas da água. Em sendo assim, os limites ecológicos devem ser encarados como
determinantes de uma regra legal para constituir um Estado de Direito para a natureza.
A autora adentra na esfera, já debatida exaustivamente na academia, que é
o caráter principiológico do desenvolvimento sustentável. É princípio ou não? Seria
objetivo, um conceito, um processo, ou todos esses juntos? A autora logo assevera
que, em sua visão, se trata de um princípio geral do direito. Dessa forma, o desen-
volvimento sustentável tem um conteúdo normativo que é definido pela reconciliação
de interesses, presentes e futuros, econômicos, sociais e ambientais dentro de limites
estabelecidos nas funções ecológicas essenciais. Esse princípio deve influenciar as
decisões nacionais e internacionais, servindo para fazer uma ponte entre “o que é a
lei” e o “que ela deve ser”.
Esse princípio deve estar inserido em todos os setores, destacando-se os pro-
fissionais da área jurídica, que exercem um papel relevante na consolidação do desen-
volvimento sustentável como princípio. Entretanto, a autora afirma que há, ainda, muito
que se fazer na doutrina, muito o que avançar. A proposta seria buscar a reescrita da lei
com base nesse princípio. Existe um potencial ainda por ser descoberto do princípio do
desenvolvimento sustentável, o que só ocorrerá se houver como pressuposto central o
seu caráter ecológico primordial. Do contrário, seus efeitos serão apenas cosméticos.

3. PRESSUPOSTOS DO ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO PARA A


PROTEÇÃO DA ÁGUA

Na realidade, o momento que se vive no Planeta é um período de imprescindí-


vel limitação da exploração dos recursos naturais. Mesmo que tardias, as ações dos
setores ditos ambientalistas têm sido no sentido de alertar e promover ações concretas
no campo internacional no sentido de implementar reais mudanças no comportamen-
to humano e das grandes cooperações que poluem e demandam sobremaneira os
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 199

recursos naturais. Um desses bens ambientais, que é extremamente demandado,


é a água, sendo necessário chamar-se a refletir acerca dos novos tempos frente a
esse líquido preciso para a manutenção ecossistêmica do Planeta. Ademais, é essa
compreensão da água como substrato de manutenção da vida que deveria permear
o sistema jurídico protetivo, partindo de uma lógica ambiental, e não de uma suposta
lógica hídrica, que se volta muito mais para questões das engenharias do que efetiva-
mente para uma visão mais holística.
No âmbito jurídico, é preciso adotar uma postura de proteção da complexidade
ecossistêmica, ou seja, a natureza precisa ser encarada pelos atores do cenário jurídico
como sendo a base material da sobrevivência humana no Planeta, cuja exploração tem
um limite. Chama atenção o que a professora Aragão (2017, p. 22) menciona acerca
dessa mudança de postura:

O Estado Ecológico de Direito pauta-se por um conjunto de nor-


mas, princípios e estratégias jurídicas necessárias para garantir
a preservação de um conjunto de condições de funcionamento
do sistema terrestre que tornam o Planeta Terra um espaço
seguro, para o Homem e os restantes seres vivos.

A ecologização do direito, por seu turno, significa dar um novo rumo a um para-
digma menos antropocêntrico, fundado em uma pré-compreensão da hipercomplexidade
social e ecossistêmica, na busca de proteger os limites do planeta, resgatar o significado
de viver em harmonia com a natureza, conhecer os objetivos da sustentabilidade forte
e real, entender as funções da resiliência dos processos ecológicos essenciais e da
proteção dos serviços ecossistêmicos, além da necessidade da internalização dos
custos das externalidades negativas provocadas em uma escala planetária.
Os direitos ecologizados pressupõem um mister de proteção dos valores in-
trínsecos da natureza, respeitando os direitos de todos os serves vivos fora de uma
abordagem do capital e da lógica do hiperconsumo, que afeta os vulneráveis, inclusive
os próprios seres humanos. Precisa-se de uma nova Justiça Ecológica e, por que não
dizer, de um repensar da Teoria da Justiça e do Direito, que exige uma transição da
sociedade e requer, para sua adequação a um Estado de Direito Ecológico, que respeite
a natureza, controle, fiscalize, sancione e responsabilize os que praticam atos contra
as funções ecológicas comuns, fundado em uma nova ética ecológica, que carece de
valoração da natureza dentro do sistema econômica tradicional e sucumbido. Isso se
aplica à preservação das funções ecológicas da água.
O Estado Ecológico exige uma proteção, ou seja, sendo mais que a mera inser-
ção de normas ambientais no ordenamento jurídico, ele cuida que não se tergiverse
200 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

mais em relação à proteção, além de considerar que a ameaça não é contra apenas
os seres humanos, mas contra toda forma de vida da Terra, embora a visão de diver-
sos setores da sociedade seja antropocêntrica e menos biocêntrica. O homem busca
conhecer as origens da vida, como ela surgiu, e como ela pode ser extinta. Inclusive,
em outras fronteiras espaciais, as pesquisas crescem no sentido de se saber se hou-
ve vida em Marte e, se sim, por que ela acabou. Chama atenção a necessidade de
estratégias jurídicas, essas são o “x” da questão, uma vez que essas podem encerrar
em si a aplicação dessas normas e princípios, os quais precisam ser manejados em
prol da sobrevivência no Planeta.
Mais que isso, toda essa estratégia jurídica deve ser reforçada em evidências
científicas (ARAGÃO, 2017), e material não falta, embora o contexto da política inter-
nacional não esteja favorável. Está-se vivenciando um momento difícil, em que muitos
pensam que não há uma situação de insegurança planetária, e muitos outros afirmam
categoricamente que se está vivenciando um momento de total insegurança ecossistê-
mica, sendo cada vez mais necessário preservar o que ainda resta e mudar radicalmente
a percepção em relação à vida. A ciência e a tecnologia e suas evidências acerca do
meio ambiente devem ser o paradigma para a elaboração da legislação ambiental.
Os Objetivos de Sustentabilidade do Milênio da Organização das Nações Unidas
(ONU) representam um exemplo da necessária transição de um Estado Ecologizado
para um Estado Ecológico de Direito, uma vez que estabelecem metas que deverão ser
cumpridas como ação imprescindível para a manutenção da vida no Planeta, e claro
que outros documentos foram estabelecidos nesse sentido também, como o Protocolo
de Kioto, prevendo metas a serem atingidas, e ambos baseados em evidências já
empiricamente comprovadas, exaustivamente debatidas, sendo agora inarredável a
postura de transformação dos agentes públicos e da sociedade.
Uma característica desse Estado Ecológico de Direito que chama a atenção é
que a mudança da legislação é fundamental, porém, é preciso transformar essa rele-
vância em ação. Leite et al. (2017, p. 84) apontam que isso parte de uma transição do
Estado de Direito Ambiental para um modelo mais ecológico:

O aprofundamento do Estado de Direito Ambiental, em direção a


uma vertente mais ecológica, e a reflexão sobre a necessidade
de um Estado de Direito para a natureza são pontos indispen-
sáveis na busca por mais efetividade às normas comprometidas
com a tutela dos bens ambientais de uso comum. E essa tutela
eficaz cada vez mais se apresenta como essencial para garantia
da dignidade dos seres que habitam o espaço planetário, de for-
ma interdependente e interconectada. Cada vez mais o planeta
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 201

exige a construção de uma pré-compreensão dos problemas


ambientais pautada em um viés transdisciplinar, sistêmico, ho-
lístico e integral, garantindo assim a melhor gestão dos riscos,
gerados por um modelo de crescimento descomprometido com
as demais formas de vida.

Os autores acima abordados defendem uma compreensão da complexidade


do meio ambiente, o que seria muito “natural” para os que defendem e compreendem
a importância da natureza, por isso que todo o alicerce normativo, incluam-se aí as
estratégias jurídicas, deve ser no sentido de reverter esse quadro apocalítico e inaugurar
uma hermenêutica jurídica efetivamente garantista e de resiliência do meio ambiente,
das funções ecossistêmicas do Planeta.
Nisso inclui-se, como pilar desse processo, a proteção à água, uma vez que
por muito tempo se enxergava a água como sendo o substrato base da vida humana e
da produção de energia e de diversas manufaturas. Porém, transcendeu-se para uma
significação muito mais complexa e holística acerca da água, como sendo o substrato
da vida, sem o qual não haveria, certamente, uma pluralidade de formas de vida no
Planeta. Claro que ainda convive-se com uma dicotomia entre água como recurso e
água como sustentáculo da vida. A legislação brasileira, por exemplo, mantém essas
duas percepções em seu texto,6 água como recurso comum, porém dotada de valor
econômico.
A proteção à água deve expressar toda a importância que ela tem para a vida
na Terra, numa visão sistêmica que contempla a interconexão entre os diversos ecos-
sistemas planetários. Desse modo, sabe-se que a norma jurídica deveria canalizar
todas essas pretensões que se tornam muito mais sérias quando se está cuidando de
proteção da água e, por que não dizer, tratando-se também de proteção ambiental.
Assim se referem Sena et al. (2017, p. 105) a essa necessária mudança de paradigma
no Direito Ambiental:

O jurista tradicional, inspirado na visão kelseniana, costuma


associar a norma jurídica ao texto normativo. Esse texto pode
mostrar-se suficiente quando se trata, por exemplo, de uma
norma tributária ou processual, hipóteses em que se depreende
a totalidade do significado e propósito a partir da exegese do
texto. No entanto, quando se trata da norma jurídica ambiental,
o texto normativo pouco diz: não há, no texto, espaço para a

6
Lei n. 9.433/1997, Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; [...].
202 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

complexidade ecológica que lhe subjaz. E a ausência de com-


preensão dessa complexidade pode levar ao esvaziamento dos
institutos jurídico-ambientais, frustrando a construção de um
Estado de Direito Ecológico.

A proteção à água, ao que parece, deve ter um caráter sistêmico por excelência,
uma vez que sua proteção, por conseguinte, pode garantir o fornecimento de água
para o reino vegetal, o reino animal, para a produção de alimentos, para as indústrias
etc. Isso repercute diretamente na vida marinha, nos lagos e rios, além de auxiliar na
produção de peixes, sendo verdade que, para que haja essa proteção, as áreas de
preservação permanente devem ser protegidas, a integridade do solo deve ser perse-
guida, a floresta deve ser mantida “de pé”, as nascentes dos rios e riachos devem ser
mantidas. Enfim, disso depende a vida nas cidades, nas matas e no campo, o colapso
do fornecimento de água em quantidade e qualidade pode comprometer a sobrevivência
humana. Esses são fundamentos que devem estar no escopo das decisões judiciais.
É preciso reconhecer que parte da doutrina tem demonstrado uma evolução
em face do tratamento jurídico da natureza, o que significa dizer que tem havido uma
transição entre o direito de propriedade para os direitos da natureza, ou seja, a natu-
reza passa a ser sujeito de direitos, cuja importância reside justamente no simbolismo
da relevância da natureza, muito além de serem meros recursos naturais, mas como
essenciais para a vida no Planeta, o que equivale a uma verdadeira revolução legal.
Ao que parece, a mera proteção do meio ambiente se tornou difusa demais, ineficaz,
sendo necessário estabelecer parâmetros mais precisos de proteção da natureza.
Boyd (2017) relata, em seu mais recente livro, acerca da evolução legal dos
direitos da natureza, que tem ganhado espaço na legislação e nos julgados em diversas
partes do Planeta, como Nova Zelândia, onde o povo Maori tem sido o representante
legal de rios daquele país, havendo mais do que uma ligação meramente jurídica, mas
uma ligação transcendental, espiritual e cultural com esses mananciais, tendo uma
repercussão direta na percepção de dano e sua reparação. Isso ocorre justamente
quando os tribunais neozelandeses passam a reconhecer os argumentos que defendem
a visão dos Maoris em relação aos rios e a natureza em si, que compreendem que
eles têm valor intrínseco, possuem vida, podem ser reconhecidos como sujeitos de
direitos, visto que uma corporação, um ser sem vida, já era ficticiamente reconhecida
como sujeito de direito.
Para Boyd (2017), essa valorização do sentimento Maori em relação à natureza
representa que não se pode considerar o meio ambiente como meramente um con-
junto de recursos para serem explorados, que é a visão que ainda prepondera e está
levando o mundo à falência ecossistêmica. Essa mudança de visão é fundamental para
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 203

a evolução do olhar sobre a proteção da água no momento em que se considera os


rios, por exemplo, como tendo personalidade jurídica, porque ali se tem um organismo,
ou vários organismos, que representam vida e têm funções ecológicas fundamentais.
Assim, Boyd (2017, p. 142) destaca a experiência da legislação da Nova Zelândia,
como a que expressa essa evolução jurídica:

Turei concluiu seu discurso argumentando com os neozelan-


deses que lutam com a noção de reconhecer que um rio tem
o direito de refletir sobre o fato de que nosso sistema legal há
tempos concede às corporações muitos dos mesmos direitos que
as pessoas. Em comparação, ela observa: “É muito mais impor-
tante - muito mais importante - que damos status por si mesmo
àquilo que nos dá vida, e em Whanganui, que é o nosso rio”.7

Como forma de exemplificar a adoção de uma postura mais ecológica por


parte da esfera jurídica, especificamente o judiciário, tem-se visto nos últimos tempos
a adoção de medidas que buscam proteger a água como meio para a sobrevivência
dos ecossistemas, claro que também para fornecer água às cidades, porém, ao que
parece, a visão tem mudado para um modelo mais holístico e complexo. O quadro 1
apresenta um conjunto de decisões acerca dessa premissa que muito se aproxima de
uma nova percepção acerca do Direito Ambiental aplicável à proteção de rios, mares,
nascentes e outros.

Quadro 1 - Algumas decisões acerca do lançamento de esgoto in natura em rios

DECISÕES
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MEIO AMBIENTE - DESPEJO DE ESGOTOS DOMÉSTICOS EM
RIO - OBRIGAÇÃO DE FAZER - AÇÃO PROCEDENTE - PRELIMINARES DE ILEGITIMI-
DADE PASSIVA E LITISCONSÓRCIO REJEITADOS. (PASTA - AÇÃO CIVIL PÚBLICA).
À vista do artigo 191 da Constituição Estadual, o Município é responsável pelos danos am-
bientais ainda que o serviço de esgoto sanitário esteja a cargo de autarquia. Tal responsabi-
lidade é objetiva, afastando arguições de ilegitimidade e litisconsórcio passivo. Deplorável o
descaso do poder público com o meio ambiente ao proceder o despejo “in natura” de esgotos
domésticos e, corpo d’agua, sendo imperativa a construção de lagoa de tratamento prévio.
TJSP - Apelação Cível nº 164.488-1/7, Quarta Câmara Cível, v.u., 30.04.1992. Relator Ney
Almada.

7
Tradução livre do texto: “Turei concluded her speech by pleading with New Zealanders struggling with
the notion of recognizing that a river has rights to reflect on the fact that our legal system has long
granted corporations many of the same rights as people. In comparison, she observed, ‘It is so much
more important - so much more important - that we give status for its own sake to the very thing that
gives us life, and in Whanganui that is our river’ ”.
204 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LANÇAMENTO DE ESGOTOS PÚBLICOS IN NATURA NOS


RIOS - OFENSA AO MEIO AMBIENTE - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL - SUBMISSÃO A
PRÉVIO TRATAMENTO - PROCEDÊNCIA DA AÇÃO - RECURSO OFICIAL IMPROVIDO.
TJSP - Apelação Cível nº 272.246-1/6, 2ª Câmara de Direito Público.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ESGOTO DOMÉSTICO - AÇÃO VISANDO O TRATAMENTO
PRÉVIO DOS DETRITOS LANÇADOS NAS ÁGUAS DE RIOS - ATO ADMINISTRATIVO
QUE NECESSITA DE EXAME DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE PELO PODER
EXECUTIVO - IMPOSSIBILIDADE DE INVASÃO DE TAL ESFERA PELO PODER JUDI-
CIÁRIO - RECURSO PROVIDO. (PASTA - POLUIÇÃO).
A pretensão do autor não encontra admissibilidade no direito objetivo, na medida em que não
podem os juízes e tribunais assomar para si a deliberação de atos de administração, que
resultam sempre e necessariamente de exame de conveniência e oportunidade daqueles
escolhidos pelo meio constitucional próprio para exercê-los.
TJSP - Apelação Cível nº 179.965-1/9, Terceira Câmara Civil, Relator: Des. Mattos Faria -
15.12.1992.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MEIO AMBIENTE - LANÇAMENTOS DE ESGOTOS NO RIO
PARANÁ SEM O DEVIDO TRATAMENTO - OBRIGAÇÃO DA CESP RESULTANTE DE ATOS
NORMATIVOS E ADMINISTRATIVOS - LEGITIMIDADE PASSIVA DESTA - CONSTRUÇÃO
DE LAGOAS DE TRATAMENTO - OBRIGAÇÃO DE CONSERVAR O MEIO AMBIENTE,
CESSANDO CAUSA POLUIDORA. (PASTA - POLUIÇÃO).
Se a CESP, por obra de atos legislativos e administrativos, ficou incumbida de atender as
necessidades da comunidade, não pode se exonerar de atender uma delas, qual seja, o
tratamento prévio dos esgotos lançados no Rio Paraná pela cidade de Ilha Solteira.
É induvidoso que o tratamento prévio dos esgotos insere-se entre as referidas necessidades.
Ninguém pode opor resistência na conservação do meio ambiente.
As especificações da sentença acerca da forma, do modo e do prazo da obrigação imposta
(construção de lagoas de tratamento) são indispensáveis para não protelar a providência e com-
portam temperamento técnico nos aspectos de eficiência, custos e tecnologia. (Ementa CAO)
TJSP - Apelação Cível nº 199.678-1/5, Primeira Câmara Civil, Relator: Des. Andrade
Marques - 01.03.1994.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PROPOSITURA PELO MP CONTRA O LANÇAMENTO DE
ESGOTOS DOMÉSTICOS NAS ÁGUAS FLUVIAIS - PRETENDIDA A IMPOSIÇÃO DA
CONSTRUÇÃO DE SISTEMA DE TRATAMENTO, ANTES DO LANÇAMENTO DE TAIS
DEJETOS - INADMISSIBILIDADE - PRETENSÃO IMPOSSÍVEL JURIDICAMENTE - RE-
CURSO PROVIDO PARA DECRETAR A CARÊNCIA. (PASTA - POLUIÇÃO).
Não pode a ação civil pública discriminar entre as urgências da comunidade, escolhendo
uma como maior que outras tantas, e ordenando que fosse atendida. Não tem cabimento
na ordem político-social, como também ante a CR em seu art. 2º, nem é da letra ou do
sentido da legislação específica de tais ações.
TJSP - Apelação Cível nº 166.981-1/1, Quinta Câmara Civil, Relator: Des. Marco César,-
07.05.1992.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 205

Esse pequeno cotejamento de decisões do judiciário, quadro 1, retrata um


pouco a evolução de postura de alguns julgadores na medida em que admite que não
realizar o saneamento público, especialmente o esgotamento sanitário tratado, não
se trata de escolha, mas de uma imposição, notadamente porque a proteção ao meio
ambiente exige, não sendo razoável, para se dizer o mínimo, lançar esgoto in natura
em rios, que servem de estuário para diversas espécies, além de prejudicar a qualidade
do abastecimento de comunidades.
Portanto, é o momento de se sair da posição passiva de que o Judiciário não
pode interferir no mérito administrativo, pois essa alegação é omissiva e não corrobora
com o Estado Ecológico de Direito, sendo necessária mais audácia e preocupação com
o meio ambiente, que é uma questão de ordem planetária. Essa mudança de paradigma
auxiliaria na compreensão de legisladores, juízes e ministério público transpassar a
fronteira entre o direito ambiental que tolera o dano ambiental consumado e um direito
ecologizado que pense nos processos ecológicos essenciais e a vida na sua percepção
sistêmica e integrativa.
Essas decisões do quadro 1 demonstram ainda uma tímida evolução acerca
de um direito ambiental brasileiro para um direito ecológico, mas já representam um
importante avanço, uma vez que deixam demarcado que há um ciclo, que acaba sendo
contaminado, e jogar esgoto in natura nos rios pode prejudicar um ecossistema funda-
mental para a vida. É importante destacar que, para além de uma questão de essência
e simbólica, realizar essa transição de paradigma ajudará a perceber o capital natural e
os serviços ambientais fornecidos pela natureza, e daí organizar melhor essa dinâmica.
Porém, tanto a Nova Zelândia como a Austrália e a Índia foram além, conferindo
status de pessoa jurídica ao rio. Isso significa dizer que os mananciais hídricos são
protegidos como um bem maior à vida, ao se atacar, poluir, envenenar, um rio está-se
atacando a vida, um bem essencial à sobrevivência e, assim, se deve conferir a punição
equivalente à gravidade desse crime. O’Donnell e Talbot-Jones (2018, p. 1) comentam
os casos da Austrália, Nova Zelândia e Índia:

Esses casos oferecem os primeiros exemplos de direitos legais


aplicados a um recurso natural delimitado, específico e identifi-
cável (um rio e sua bacia hidrográfica). O desenvolvimento tem
o potencial de criar novos precedentes legais em leis ambientais
e abre um novo caminho para a gestão de recursos hídricos.
Ao fazê-lo, também apresenta uma série de desafios complexos
para o direito e a gestão. Por exemplo, os direitos legais de um
rio só serão eficazes se puderem ter força e efeito. Possuir um
206 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

direito implica que outra pessoa tenha o dever proporcional de


observar esse direito, tanto na lei quanto na prática (Schlager
e Ostrom, 1992). No contexto da gestão de recursos hídricos, a
eficácia dos direitos legais dos rios depende tanto do rio, quanto
dos outros usuários do recurso, reconhecendo seus direitos,
deveres e responsabilidades conjuntos.8

No âmbito de escalas territoriais, uma é imprescindível para essa análise jurídica,


a bacia hidrográfica que mantém em seus limites, geralmente, diversas comunidades,
diversos ecossistemas, diversos municípios, diversos estados e, algumas vezes,
diversos países. O nível de complexidade é extraordinário, a bacia hidrográfica é o
que se pode classificar como uma escala complexa, e que tem uma natureza jurídica
contemplada na Lei n. 9433/1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos - PNRH).
Porém, como analisam os autores acima, o reconhecimento desses direitos é
um desafio para a gestão pública, pois o dilema é a implementação e manutenção da
observância. Isso muda substancialmente o cerne do direito ambiental, tradicional-
mente ligado à proteção contra os impactos das atividades humanas, para proteger
os humanos dos impactos gerados pelas suas próprias atividades, porém, sem ter a
natureza como elemento central (O’DONNELL et al., 2018).
Essa mudança serve principalmente para se proteger a vida no Planeta, dentre
essas o ser humano, prevenindo mais e protegendo mais, porém de maneira mais
sistêmica, considerando que se está inserido num grande sistema interdependente de
vida. Entretanto, é importante ter-se ciência de dois argumentos que se chocam em
relação a essa mudança de paradigma, como exposto no quadro 2.

8
Tradução livre do texto: “These cases offer the first examples of legal rights being applied to a specific,
identifiable, bounded natural feature (a river and its catchment). The development has the potential
to create new legal precedent in environmental law, and opens a fresh pathway for water resources
management. In doing so it also presents a series of complex challenges for both law and management.
For instance, a river’s legal rights are only likely to be effective if they can be given force and effect. To
possess a right implies that someone else has a commensurate duty to observe this right, in both law,
and practice (Schlager and Ostrom 1992). In the context of water resources management, the efficacy
of legal rights for rivers depends on both the river, and the other users of the resource, recognizing their
joint rights, duties, and responsibilities”.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 207

Quadro 2 - Argumento que podem fundamentar um Direito Ecológico


ARGUMENTO 1 ARGUMENTO 2
Do ponto de vista filosófico, continuar a processar O argumento para o uso da personalidade jurídica
casos ambientais com base em “danos” cada vez para proteger a natureza é de eficiência e eficácia
mais atenuados para os seres humanos depende de custos. Se as lesões ao meio ambiente (em
de um argumento cada vez mais complicado e an- oposição aos usuários humanos, ou participantes
tropocêntrico, o que obscurece as necessidades do ambiente) são ignoradas, então uma proporção
da natureza Por exemplo, há muitos elementos da significativa do total de lesões não é contabilizada.
natureza que não são capturados por paradigmas Por exemplo, o custo da má qualidade da água
antropocêntricos existentes, como capital natural para os usuários é calculado em termos dos
ou serviços ecossistêmicos, e identificar impactos custos de tratamento necessários para melhorar
ambientais fora dessas concepções é crucial a qualidade da água para o padrão requerido. No
para a efetiva proteção do meio ambiente na lei. entanto, este tratamento pode falhar em abordar
Embora os avanços no direito ambiental tenham as questões mais amplas associadas à saúde e
permitido que mais casos ambientais fossem ao bem-estar do ecossistema do rio. Se as lesões
levados aos tribunais, o resultado foi muitas ve- no rio não forem reconhecidas em juízo, elas não
zes a junção do dano sofrido pelo objeto natural poderão ser compensadas, o que significa que
com o dano aos interesses humanos. Em última os custos reais dos impactos ambientais podem
análise, isso pode desvalorizar o ambiente natural ser subestimados. Além disso, sem dar a devida
e continua a reforçar a posição antropocêntrica de consideração às lesões impostas no rio, os danos
que a natureza só tem valor em termos de seu a outros potenciais demandantes podem ser
benefício para os seres humanos. insuficientes para cobrir os custos do litígio. Em
alguns casos, isso pode fazer com que o litígio
não continue.

Fonte: elaborado com base em O’Donnell et al. (2018).

O argumento 2 aplica-se perfeitamente à necessidade de mudança de paradigma


na análise de demandas que se relacionam com a água, especificamente as semelhan-
tes às do quadro 1. Essa mudança de percepção deve constar de uma ampliação do
escopo das utilidades da água, colocando como principal dentre elas a manutenção da
vida. Ali se tem um organismo vivo, pulsante, que mantém o equilíbrio vital de diversos
ecossistemas como mangues, corais, plânctons, cardumes de peixes, de outros animais
que necessitam alimentar-se, enfim, uma biodiversidade dependente da água, que se
traduz em diversos serviços ecológicos prestados. No caso do rio Ganges e Yamuna,
no dia 20 de março de 2017, a alta corte de Uttarakhand, assim decidiu:
Os rios Ganga e Yamuna, todos os seus afluentes, riachos, toda
a água natural que flui contínua ou intermitentemente destes rios,
são declarados como pessoas jurídicas/legais/entidades vivas
que têm o estatuto de pessoa coletiva com todos os direitos,
deveres e responsabilidades correspondentes de uma pessoa
viva (INDIAN COURTS, 2017, p. 11).9
9
Tradução livre do texto: “The Rivers Ganga and Yamuna, all their tributaries, streams, every natural
water flowing with flow continuously or intermittently of these rivers, are declared as juristic/legal persons/
208 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A lei da Nova Zelândia, que concedeu caráter de pessoa ao rio, assim estabeleceu:

Estatuto jurídico de Te Awa Tupua


14
Te Awa Tupua declarou ser pessoa legal
(1) Te Awa Tupua é uma pessoa coletiva e detém todos os
direitos, poderes, deveres e responsabilidades de uma pessoa
coletiva.
(2) Os direitos, poderes e deveres do Te Awa Tupua devem
ser exercidos ou executados, e a responsabilidade por suas
responsabilidades deve ser assumida, por Te Pou Tupua em
nome e em nome de Te Awa Tupua, na forma prevista nesta
Parte e em Ruruku Whakatupua - Te Mana o Te Awa Tupua.10

Tanto o caso da Índia como o da Nova Zelândia tem semelhanças em seus


fundamentos, pois ambos têm sua essencialidade na espiritualidade dos povos rela-
cionados aos rios em questão, embora as fontes do direito tenham sido distintas. Em
ambos os casos, os direitos são exercidos por um grupo de entidades indígenas, no
caso do manancial neozelandês, e por guardiães, no caso indiano. Segundo Leite e
Ayala (2001, p. 67), pode-se relacionar essa mudança de paradigma com a urgência
de medidas protetivas que diminuam o foco antropocêntrico da sociedade:

A ideia do passado, enraizada entre nós, de que o homem do-


mina e submete a Natureza à exploração ilimitada, perdeu seu
fundamento [...] A tendência atual é evoluir-se em um panorama
menos antropocêntrico, em que a proteção da Natureza, pelos
valores que representa em si mesma, mereça um substancial
incremento [...] Hoje a defesa do meio ambiente está relacio-
nada a um interesse intergeracional e com necessidade de um
desenvolvimento sustentável, destinado a preservar os recursos
naturais para as gerações futuras, fazendo com que a proteção

living entities having the status of a legal person with all corresponding rights, duties and liabilities of
a living person”.
10
Tradução livre do texto: “Legal status of Te Awa Tupua
14
Te Awa Tupua declared to be legal person
(1) Te Awa Tupua is a legal person and has all the rights, powers, duties, and liabilities of a legal person.
(2) The rights, powers, and duties of Te Awa Tupua must be exercised or performed, and responsibility
for its liabilities must be taken, by Te Pou Tupua on behalf of, and in the name of, Te Awa Tupua, in
the manner provided for in this Part and in Ruruku Whakatupua-Te Mana o Te Awa Tupua”. (Inteiro
teor da lei Disponível em: http://www.legislation.govt.nz/bill/government/2016/0129/latest/whole.
html#DLM6830851).
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 209

antropocêntrica do passado perca fôlego, pois está em jogo não


apenas o interesse da geração atual.

Esse fenômeno do reconhecimento dos direitos da natureza também está pre-


sente na América Latina, tendo como exemplo, o art. 71 da Constituição do Equador,
que estabelece o seguinte texto: a Natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza
a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e
regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.
O texto é bastante claro quanto à necessidade de proteção e o porquê dessa
proteção. Acosta-se ao entendimento de Barros et al, (2016, p. 436), que ajuda a
fundamentar medidas legislativas ou judiciais que visam a personificar a natureza:

O confronto entre o direito ao desenvolvimento e os princípios do


direito ambiental deve receber solução em prol do último, haja
vista a finalidade que este tem de preservar a qualidade da vida
humana na Terra. O seu objetivo central é proteger o patrimônio
pertencente às presentes e futuras gerações.

Talvez uma discussão acerca da proeminência do homem em relação à na-


tureza não seja frutífera, vez que a proteção da natureza como persona beneficia a
sobrevivência humana sobremaneira, que não perde sua qualidade de ser pensante,
detentor de uma consciência. Em relação à água, isso se complexifica, uma vez que
esta envolve uma série de variáveis que interferem diferentemente na realização da
sua finalidade precípua, que é manter a vida no Planeta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Ecológico exige um esforço maior na esfera jurídica, no sentido de


adotar ações mais efetivas para salvaguardar as funções ecológicas do Planeta, não
sendo plausível que isso fique apenas na esfera normativa, pois não é possível mais
esperar para que haja medidas contundentes.
Uma possibilidade de solução partiria, certamente, da política e do estabeleci-
mento de marcos jurídicos internacionais acerca do uso da água a partir de uma matriz
de pensamento ecológico, dando continuidade ao estabelecimento da água como bem
inalienável, como direito humano, como bem ambientalmente relevante.
A partir dos dados apresentados neste ensaio, ficou bastante plausível a
importância dos recursos hídricos na geopolítica internacional, uma vez que fatores
climáticos e a demanda excessiva estão pressionando cada vez mais a comunidade
210 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

internacional para um processo de articulação no sentido de uma cooperação, pelo


menos é isso o desejado, embora o cenário aponte para um panorama de competição
pelos recursos hídricos.
Portanto, é preciso que se revele uma relevância cada vez maior dos ins-
trumentos do Direito Internacional Público, buscando, por intermédio de tratados e
convenções, bilaterais ou multilaterais, uma governança dos recursos hídricos trans-
fronteiriços, tendo como finalidades primordiais a sustentabilidade desses recursos e
uma distribuição justa, o que implica dizer que os múltiplos usos da água devem ser
conservados, desde que haja um uso racional, controlado e manejado, e no caso de
recursos transfronteiriços tratados de forma integral.
Entretanto, ainda se tem um sistema frágil em torno de pressupostos ecológicos
em relação à água, a qual ainda é compreendida como algo a parte, sem foco nas suas
funções ecológicas. Claro que isso acaba sendo ofuscado com a demanda exigida pelas
atividades econômicas e as prioridades humanas, as quais não apresentam justiça na
sua distribuição. É preciso a adoção de iniciativas que ressaltem a necessidade de se
instaurar uma visão a partir de uma justiça ecológica menos antropocêntrica, pautando
as instituições na relevância da água para a sustentação das funções ecológicas do
Planeta, e não exclusivamente para a sobrevivência do homem, afinal, este se insere
em um sistema de vidas.
No âmbito de um compartilhamento global da água, é preciso avançar-se nos
ordenamentos internos no sentido de posicionar uma regulação hídrica a partir de
um olhar ecológico para que se tenha uma regulação ecológica da água. Sem isso,
teme-se que haja uma gestão internacional da água pautada numa lógica racionalista
apenas, ou seja, tomadores de decisão e legisladores poderão preocupar-se apenas
com a transferência de água sem uma integração com a preservação e recomposição
do solo, da floresta, bem como o uso de tecnologias limpas para não poluição do ar e
tecnologias para o reuso da água, facilitando a preservação do ciclo hidrológico como
algo integral.
Os dados ora apresentados dão conta que se tem, ainda, qualidade e quanti-
dade de água, apesar da distribuição irregular pelo Planeta, que precisa ser protegida
e gerida. Essa parece ser a questão central e mais complexa, a gestão da água e de
seus múltiplos usos, uma vez que a grande demanda que tem pressionado os estoques
de água pelo mundo é a produção de alimentos e os instrumentos jurídicos ordinários
não têm dado conta dessa gestão.
Tem-se uma concentração de água, chuvas irregulares, escassez hídrico-
-econômica, ou seja, parte da população mundial não recebe água de qualidade em
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 211

suas casas, muitas vezes sequer recebem qualquer tipo de água. Além disso, é preciso
pensar na gestão da água residuária, ou seja, aquela que foi usada e é transposta para
os sistemas de esgotos ou simplesmente lançada em córregos, rios e mares.
Ademais, é preciso o resgate de valores transcendentais em relação à água,
de modo que se fortaleça o sentido de que sem água não há possibilidade de vida. A
compreensão da água numa dimensão espiritual, como no caso da Nova Zelândia e
da Índia, ou mesmo o caso da demanda feita pelo Rio Doce no Brasil, pode ser um
caminho para ensejar uma gestão hidroecológica eficaz, incluindo aqueles que estão
diretamente envolvidos no cotidiano da dinâmica dos rios e aquíferos. Fato é que não
se trata de um arranjo simples, mas sim pautado numa complexidade em sua essência.

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APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO
DE VIDA DOS PRODUTOS E DA SERVITIZAÇÃO
COMO INSTRUMENTOS DE MITIGAÇÃO À
GERAÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS1

LEGAL ELEMENTS ABOUT THE LIFE CYCLE OF


PRODUCTS AND OF SUPPLY AS A MITIGATION
INSTRUMENT FOR THE GENERATION OF SOLID WASTE

LUCAS DE SOUZA LEHFELD2

MARCO AURÉLIO PIERI ZEFERINO3

STEFÂNIA APARECIDA BELUTE QUEIROZ4

SUMÁRIO: Introdução - 1. A geração de resíduos sólidos no Brasil e no mundo -


2. Considerações jurídicas sobre a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de
vida do produto - 3. A servitização como instrumento efetivo de mitigação na geração
de resíduos sólidos - Considerações Finais - Referências.

1
Data de recebimento do artigo: 28.10.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 02.12.2018 e 20.12.2018.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 15.01.2019.
2
Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Di-
reito pela UNESP. Docente Titular da Universidade de Ribeirão Preto na Graduação e Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito - Mestrado e Tecnologia Ambiental - Mestrado e Doutorado. Coordenador do
Curso de Direito do Centro Universitário Barão de Mauá. Docente do Centro Universitário da Fundação
Educacional da Barretos. Advogado. E-mail: lehfeldrp@gmail.com.
3
Doutorando em Tecnologia Ambiental pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Mestre em
Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Especialista em Ges-
tão Jurídica da Empresa pela UNESP. Bolsista da CAPES. Docente nos Cursos de Direito e Ciências
Contábeis da Libertas Faculdades Integradas de São Sebastião do Paraíso/MG. Advogado. E-mail:
marcoadv8@hotmail.com.
4
Mestranda em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR. Graduada
em Administração pela Universidade Federal de Lavras. Especialista em Gestão de Empresa com ênfase
em Qualidade pela Universidade Federal de Lavras. Docente nos cursos de Administração, Ciências Con-
tábeis e Sistemas de Informação da Libertas Faculdades Integradas. E-mail: stefania.belute@gmail.com.
214 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

RESUMO: A crescente demanda por recursos naturais pela sociedade de


consumo nacional e global ocasiona impactos ambientais jamais vistos pela huma-
nidade, destacando-se a fabricação e disposição de resíduos sólidos no ambiente.
Levantamentos do Banco Mundial apontam um crescimento de 70% na geração de
resíduos sólidos, fazendo-se premente a necessidade de adoção de instrumentos de
mitigação no que tange à geração desenfreada destes resíduos. Diante desta realidade,
possuímos instrumentos essenciais para alteração deste estado de coisas, como a
implementação jurídica efetiva da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida
do produto, possibilitando transparência e publicidade aos produtos no que concerne
a durabilidade junto ao mercado consumidor, bem como a responsabilização dos fabri-
cantes de obsolescência, ressaltando-se, ademais, a implementação da servitização
no ambiente empresarial, no que se refere ao uso intensivo e compartilhado de bens
físicos mediante adoção do sistema produto-serviço, cuja concepção econômica e
ambiental enseja a mudança em todo o processo de fabricação, desenvolvimento
e design na órbita produtiva consumerista, implementando um novo paradigma do
consumo sem propriedade.
PALAVRAS-CHAVE: resíduos sólidos; responsabilidade compartilhada; serviti-
zação; consumo sem propriedade.
ABSTRACT: The growing demand for natural resources by the national and
global consumer society causes environmental impacts never seen by mankind,
especially the manufacture and disposal of solid waste in the environment. World Bank
surveys point to a 70% increase in solid waste generation, making it necessary to adopt
mitigation instruments in relation to the unrestrained generation of this waste. Faced with
this reality, we have essential instruments to change this state of affairs, such as the
effective legal implementation of shared responsibility for the product life cycle, allowing
transparency and publicity to products regarding durability in the consume market, as
well as accountability of manufacturers of obsolescence, emphasizing in addition, the
implementation of the service in the business environment, regarding the intensive and
shared use of physical goods through the adoption of the product service system, whose
economic and environmental design allows change in all manufacturing processes,
development and design in the productive or bit of consumerism, implementing the
new paradigm of consumption without property.
KEYWORDS: solid waste; shared responsibility; servitization; consumption
without property.
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 215

INTRODUÇÃO

Atualmente, vislumbramos em nosso país o crescente descarte irregular de


resíduos sólidos, os quais se acumulam no ambiente na condição de rejeitos. Neste
sentido, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei 12.305/2010,
possui bases axiológicas e diretrizes voltadas à implementação de programas de
gestão integrada e gerenciamento destes resíduos junto aos entes da cadeia produtiva,
sejam empresas, poder público, gestores, consumidores, pugnando pela destinação
final ambientalmente adequada ao considerar como rejeito todo e qualquer resíduo
sólido cujas possibilidades de tratamento e recuperação sob os prismas econômicos
e tecnológicos são hodiernamente inviáveis, destinando-o, mediante análise prévia
de sua composição, à disposição final em aterros industriais ou sanitários, mitigando
assim os danos e riscos à saúde pública.
Desta forma, uma das premissas legais tangíveis aos resíduos sólidos refere-se
à correta destinação final, seja pela reutilização, reciclagem, compostagem, recuperação
e aproveitamento energético. Mas sob este prisma, estaria a PNRS atentando-se de
forma tardia ao considerar a distinção entre resíduo e rejeito das resultantes produ-
zidas pela sociedade de consumo em seu ciclo final, ou seja, por meio de uma regra
jurídica regulamentadora desta fase derradeira, eis que, mesmo diante da destinação
e disposições finais adequadas, haveria impactos ambientais consideráveis.
Nesse sentido, o presente trabalho destina-se à análise da implementação de
instrumentos jurídicos e práticas empresariais incidentes sobre as fases iniciais da
relação de produção e consumo, notadamente pelos novos ideários de responsabili-
dade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, com um Sistema Produto-Serviço
(PSS) e pela adoção da estratégia de servitização como importante instrumento para
a redução na produção, seja de resíduos ou de rejeitos.

1. A GERAÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL E NO MUNDO

Com o desenvolvimento da sociedade capitalista de consumo em massa no


Brasil, adotamos um modelo de vida atrelado à satisfação das necessidades mediante
o consumo desenfreado e crescente de bens, produtos e serviços, gerando cada vez
mais resíduos, resultante esta incrementada pelo aumento populacional. Nesse sen-
tido, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais
(ABRELPE 2004), anualmente divulga dados acerca da geração de resíduos no país,
sendo que em 2000 foram geradas 149.904,27 toneladas/dia de resíduos sólidos urba-
nos; em 2001, 2002, 2003 e 2004, respectivamente, 152.542,11 t/dia; 154.862,10 t/dia;
216 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

157.775,92 t/dia e 162.232,03 toneladas/dia, representando um aumento significativo


na geração e disposição desses resíduos, quantidade esta mensurada em 214.405,00
toneladas por dia no que se refere ao ano de 2016 (ABRELPE 2016), representando
a geração anual de 78,3 milhões de toneladas de resíduos para o supramencionado
ano, sendo destes 71,3 milhões de toneladas coletadas com a cobertura de 91% do
país e 7 milhões de toneladas de resíduos sem objeto de coleta, ou seja, com destino
impróprio via disposição final inadequada na qualidade de rejeitos.
Segundo levantamento do Banco Mundial (2012), intitulado What a Waste, estu-
dos referentes à geração de resíduos sólidos urbanos descrevem um cenário alarmante,
com crescimento na ordem de 70% da geração de resíduos sólidos, passando de 1,3
bilhões de toneladas em 2012 para patamares de 2,2 bilhões de toneladas em 2025,
destacando lapsos de crescimento econômico em países emergentes, bem como o
aumento da população planetária.
A crescente geração de resíduos em escala global constitui-se em um grande
desafio para o desenvolvimento econômico e ambiental sustentável, seja pela ex-
ploração desenfreada de recursos naturais, bem como pela destinação e descarte
destes produtos no ambiente, demandando a implementação de modelos e processos
produtivos atinentes ao fomento de técnicas de maximização de seu ciclo de vida.

2. CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE A RESPONSABILIDADE


COMPARTILHADA PELO CICLO DE VIDA DO PRODUTO

A PNRS, instituída pela Lei 12.305/10 em seu artigo 1º, inc. XVII, assim concei-
tua o que seja a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto, como
sendo o:

Conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos


fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos
consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza
urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o
volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para
reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade
ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos
desta lei (BRASIL, 2010).

Consoante exposto, verifica-se que o texto legal possui concepção abstrata


e aberta sobre as efetivas responsabilidades acerca da durabilidade e utilização dos
produtos, bem como não vincula à obrigatoriedade de publicidade ao consumidor no
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 217

que tange ao tempo de residualidade daquilo que esteja adquirindo, ou seja, qual seria
o tempo médio de utilização normal de determinado produto.
Diante desta realidade, vislumbramos a concepção de produtos com curto
ciclo de vida, descartáveis aos inventos e às novas tecnologias ante a obsolescência
programada de qualidade, fomentando de forma significativa a geração de resíduos
e a socialização destes impactos ambientais, tendo em vista o caráter metaindividual
dos direitos lesionados.
Acerca de um maior contorno e delimitação conceitual da RCCVP, preleciona
Mendes (2015, p. 62):
A RCCVP, responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida
do produto impõe à cadeia de suprimentos a priorização de
medidas de prevenção e redução de resíduos por meio de uma
concepção ecológica (ecodesign) para produtos e embalagens,
bem como pelo reaproveitamento de materiais residuais como
insumos, seja em seu próprio ciclo, seja em outros ciclos produ-
tivos, inclusive mediante sistemas de logística reversa e coleta
seletiva, estendendo a responsabilidade do berço ao berço e
flertando com um modelo econômico circular.

Nesse diapasão, a RCCVP delimita um complexo de obrigações relativas à


gestão compartilhada dos resíduos sólidos gerados ao longo de seu ciclo de produção
e consumo, iniciando tal responsabilização pelo efetivo produtor. Assim, impõe-se que
a responsabilidade inicial recairá sobre o produtor, cabendo a ele a formulação de
produtos com maior durabilidade e com ampla gama temporal e espacial de qualidade,
permitindo-se adaptações e combinações ao desenvolvimento de novas tecnologias de
forma à diminuição de sua obsolescência e decorrente inutilização e descarte.
Segundo Blumenschein e Miller (2014), o ciclo de vida dos produtos compreende
“o conjunto de todas as etapas necessárias para que um produto cumpra sua função
na cadeia de produtividade”. Desta forma, em defesa ao maior ciclo de vida, inferem-se
modelos de desenvolvimento e melhoria dos produtos no que tange à expansão da
durabilidade e consequentemente a diminuição de sua residualidade precoce, viabi-
lizando, ademais, a sustentabilidade econômica e produtiva com equilíbrio ambiental
mediante a reutilização e reinserção destes materiais no processo produtivo.
No Brasil, a avaliação do ciclo de vida do produto, bem como seus princípios
e estrutura encontram regulamentação na NBR ISO 14040, haja vista que referida
norma estabeleceu a viabilidade da afirmação comparativa, possibilitando a declaração
ambiental relativa à superioridade ou equivalência de um produto em relação àquele
produzido pelo concorrente com as mesmas funções. Desta forma, vislumbra-se a
218 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

existência de um valioso instrumento cuja publicidade facilitará o acesso dos consu-


midores aos produtos com boa conceituação no quesito ciclo de vida.
Juridicamente, a política nacional de resíduos sólidos disciplinou a responsabili-
dade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, objetivando a compatibilização entre
os interesses econômicos e ambientais mediante alocação de estratégias sustentáveis
como o aproveitamento destes resíduos na mesma ou em outras cadeias produtivas,
reduzindo assim a decorrente geração de resíduos, bem como estimulando a pesquisa,
desenvolvimento e utilização de insumos menos agressivos que facilitem a autode-
puração dos ecossistemas, além de incentivar as boas práticas de responsabilidade
socioambiental (BRASIL, 2010).
Axiologicamente, tais primados de utilização contínua, adaptativa e por razoável
período impõem aos fabricantes a adoção de políticas de gestão e gerenciamento
presentes no artigo 9º da Política Nacional dos Resíduos Sólidos, destacando-se no-
tadamente em ordem de prioridades “a não geração; redução; reutilização; reciclagem,
tratamento e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”.
Em subsunção legal, previu o legislador o fortalecimento do princípio jurídico
ambiental da prevenção ao erigir em primeiro plano a “não geração”, relegando em
última situação a disposição final com fundamento aos rejeitos presentes no inciso XV
do artigo 3º da PNRS.
A precaução insculpida no texto da PNRS ateve-se ao finalismo tangível à
mitigação dos custos socioambientais, presentes na origem do processo de produção-
-consumo, reduzindo-se a geração na fonte, cujas balizas encontram-se elencadas
no artigo 31 da PNRS, imputando-se aos fabricantes, importadores, distribuidores e
comerciantes a responsabilidade pela fabricação e uso de produtos com menor quan-
tidade de resíduos, além do compromisso com o recolhimento dos produtos e resíduos
remanescentes depois de findada sua utilização, bem como a fabricação de produtos
aptos à reutilização e reciclagem.
Não obstante tais parâmetros e balizas, juridicamente, aludidos primados encon-
tram guarida em produtos vinculados àqueles englobados pela logística reversa, ou seja,
aqueles prescritos junto ao artigo 33 da PNRS, tais como embalagens de agrotóxicos;
pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes; lâmpadas e produtos eletroeletrônicos.
No que tange aos outros produtos, existe um limbo legal, como se aqueles previstos
no artigo supramencionado estivessem consubstanciados em numerus clausus,
constituindo-se em mera interpretação restritiva que macula a plena e ampla respon-
sabilização dos fabricantes. Em sentido contrário, pugnando por uma interpretação
ampla, o artigo 31, inciso I, da PNRS disciplina a responsabilidade dos fabricantes,
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 219

importadores, distribuidores e comerciantes pelo investimento no desenvolvimento,


fabricação e colocação de produtos no mercado, o que em muito se assemelha à
teoria do risco de natureza civil, tendo em vista a inserção destes resíduos no sistema
produtivo consumerista.
Entretanto, ressalvadas as discussões relativas à logística reversa e sua her-
menêutica, constitui o cerne do presente trabalho a implementação de responsabili-
dade compartilhada não tão somente pelo ente empresarial, mas por todos os atores
envolvidos no processo de produção e consumo, destacando-se ideários crescentes
de compartilhamento e rediscussão do ciclo de vida dos produtos ante uma nova
modalidade de inter-relação entre produtor e consumidor, a servitização.

3. A SERVITIZAÇÃO E O PSS NA MITIGAÇÃO DA GERAÇÃO DE RESÍDUOS


SÓLIDOS

Hodiernamente, vislumbramos novos ideários de produção racional cuja maximi-


zação dos produtos decorre da valorização das matérias-primas e fontes energéticas,
pugnando por uma produção industrial de qualidade e durabilidade de seus produtos,
possibilitando um compartilhamento da utilização de bens sem que haja, contudo, a
efetiva transferência de propriedade destes.
Nesse sentido, ainda que as empresas industriais tenham sempre ofertado
serviços associados aos seus produtos, foi só a partir da segunda metade da década
de oitenta que se observou uma tendência dessas empresas em ampliar a oferta de
serviços como forma de aumentar o valor ao cliente, de diferenciar-se da concorrência
e diminuir o impacto ambiental (QUEIROZ, 2018).
No final da década de 80, o termo servitização foi utilizado pela primeira vez por
Vandermerwe e Rada (1988) para enfatizar a importância dos serviços para as empre-
sas de manufaturas apontando as vantagens e impactos positivos. A partir de então,
houve um crescimento das pesquisas para compreender as implicações estratégicas
orientadas aos serviços (BIGDELI et al., 2016).
Na literatura há diversos termos que abordam a estratégia de integração de
produtos e serviços, tais como: servitização, por Vandermerwe e Rada (1988); transição
de produtos para serviços, em Oliva e Kallenberg (2003); e “going down stream” na
cadeia de valor descrito em Wise e Baumgartner (1999). Entre essas, servitização é
um dos termos mais conhecidos para este fenômeno, eis que Vandermerwe e Rada
(1988) foram os primeiros autores a usarem o termo servitização, definindo-a como
“a oferta de um pacote integrado de produto, serviços, conhecimento e suporte ao
220 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

cliente, a fim de agregar valor ao negócio principal da empresa”. Para Morelli (2003),
a servitização consiste na evolução de uma oferta material para uma posição em que
o componente material é inseparável dos serviços.
De acordo com Neely (2013), servitização é a inovação das capacidades e
processos organizacionais para melhorar o valor mútuo por meio da mudança da venda
de produtos para a venda de Sistema Produto-Serviço, acompanhada de outras duas
definições: a) a ideia de um sistema produto-serviço e b) organização servitizada.
Para que uma organização se torne servitizada, são necessárias mudanças no
seu modelo de negócios orientadas aos serviços (KOWALKOWSKI et al., 2017). São
necessárias mudanças que envolvam a inovação de suas capacidades e processos
de forma que a organização consiga criar um valor mútuo por meio da mudança na
venda de produtos para a venda de sistemas produto-serviço (NEELY, 2008). Sendo
assim, são necessárias mudanças na reconfiguração dos recursos, das estruturas, das
capacidades organizacionais e a reformulação das rotinas, normas e valores de uma
empresa centrados no serviço (KOWALKOWSKI et al., 2017).
Os estudos sobre servitização têm se concentrado nas grandes empresas
(BOUCHER; PEILLON, 2015; GEBAUER; PAIOLA; EDVARDSSON, 2010; PAIOLA;
GEBAUER; EDVARDSSON, 2012). No entanto, tal estratégia pode ser adotada também
pelas pequenas e médias Empresas (QUEIROZ, 2018).
Essas mudanças para adoção da servitização podem ocorrer por meio do re-
posicionamento de serviço-produto até soluções mais personalizadas e orientadas a
processos (KOWALKOWSKI et al., 2015), podendo coexistir vários tipos de atividades ao
mesmo tempo em uma mesma organização produtiva, tendente ao ciclo produto-serviço.
O processo de mudança para a servitização ocorre de acordo com a contingência
empresarial, havendo diversos modelos para a mudança, assim como o ritmo com que
se desenvolvem os serviços, sendo possível a existência de vários tipos de serviços
ao mesmo tempo, ou seja, as empresas fazem a transição ao longo de um processo
contínuo, o que não implica necessariamente numa abordagem unidirecional para o
desenvolvimento da prestação de serviços, experimentando simultaneamente uma
série de ofertas desde serviços básicos a avançados, coexistindo com a venda de bens
tangíveis e desempenhando vários papéis ao mesmo tempo (MARTINEZ et al., 2017).
Tais mudanças acarretam a diminuição dos impactos ambientais, uma vez
que se almeja a redução de aludidos impactos por meio da reutilização de materiais
e aumento do ciclo de vida dos produtos (MONT, 2002; MORELLI, 2006), sendo este
um dos benefícios da servitização.
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 221

A adoção da servitização possui benefícios para os fabricantes, para os clientes,


para o ambiente e para a sociedade (BAINES et al., 2007, 2010). As motivações para
os fabricantes, segundo Baines et al. (2017), estão relacionadas com o crescimento da
receita e do lucro, além da criação de novos fluxos de receitas, o crescimento do número
de clientes aumentando a sua fidelização (BAINES; SHI, 2014). Já no que tange às
motivações para os clientes, segundo Baines et al. (2009), estão relacionadas com a
redução nos custos operacionais juntamente com as reduções de risco e investimento
são uma atração significativa para os clientes.
Outra motivação está relacionada aos impactos ambientais, sendo que em
alguns modelos de PSS, por exemplo, a propriedade do produto não é transferida
para os clientes, sendo assim, são necessários produtos mais eficientes, com melhor
desempenho e maior durabilidade (MONT, 2002; MORELLI, 2006).
Para a sociedade, as motivações estão relacionadas com os benefícios que um
PSS pode trazer por meio do estímulo a políticas ambientais que promovam a produção
e consumo mais sustentáveis (MANZINI; VEZZOLI, 2002). Assim sendo, uma oferta
que congregue serviços e produtos tem menor impacto ambiental, já que a adição de
serviços seria uma forma de atender as necessidades dos clientes e atenuar o uso de
recursos energéticos e matérias-primas (TUKKER, 2004).
Não obstante, podem se beneficiar da servitização tanto as grandes empresas
como as pequenas empresas, pois as empresas que oferecem serviços atrelados ao
produto aumentam sua lucratividade e suas vendas totais. Para as pequenas e médias
empresas, além dos benefícios financeiros, há também os benefícios não financeiros
(CROZET; MILET, 2017; QUEIROZ, 2018), eis que, mesmo com um grau de maturidade
menos avançado em termos do uso da estratégia de servitização e com poucos recursos
disponíveis, aludidos entes empresariais também conseguem realizar a transição para
serviços (QUEIROZ, 2018).
Em realidade, a transição para a servitização pode ser realizada por meio da
implementação do PSS, sendo considerado um tipo especial de servitização (BAINES
et al., 2007). O PSS e a servitização são dois conceitos distintos que pertencem ao
mesmo campo de pesquisa focado na influência de serviços em empresas industriais.
O PSS se refere a um pacote de produtos e serviços integrados que fornece funcio-
nalidades aos clientes e também pode oferecer benefícios ambientais (BAINES et al.,
2007; GOEDKOOP et al., 1999; TUKKER, 2004). A servitização trata-se da estratégia
intencional seguida pela adoção de modelos de negócios orientados para serviços por
empresas produtoras de bens (VANDERMERWE; RADA, 1988).
222 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Goedkoop et al. (1999) afirmam que o PSS deve ser entendido como uma
combinação de produtos e serviços em um sistema que fornece as funcionalidades
necessárias para o usuário reduzindo o impacto ambiental.
Em alguns modelos de PSS, por exemplo, a propriedade do produto não é
transferida para os clientes, sendo assim, são necessários produtos mais eficientes,
com melhor desempenho e maior durabilidade (MONT, 2002; MORELLI, 2006) e
também podem levar ao estímulo de políticas ambientais que promovam a produção
e consumo mais sustentáveis (MANZINI; VEZZOLI, 2002).
Tukker (2004) propõe três tipos de PSS, sendo inicialmente orientado ao produto,
tais como a venda de produtos e agregação de serviços, ampliando o valor ao cliente,
bem como àquele orientado ao uso com a venda de produtos, já que a propriedade
do bem não é transferida ao cliente, que paga tão somente pelo seu uso e finalmente
àquele orientado ao resultado, em que o cliente e o fornecedor concordam com um
resultado final, não havendo produto pré-definido, consistindo na venda de um resultado
ou competência.
De acordo com Souza, Braga e Mendes (2016), na literatura, as tipologias foram
criadas com o intuito de explicar o conceito do PSS. Dentre elas estão: as tipologias
de Tukker (2004), Ostayen et al. (2013), Park, Geum e Lee (2012) e as tipologias de
PSS de Meier, Roy e Seliger (2010), menos referenciadas, assim como as tipologias
de Roy (2000), Van Halen et al. (2005) e Clayton et al. (2012). Não é possível afirmar
qual tipologia é a mais adequada, mas é possível apontar que alguns critérios têm
relevância maior em relação a outros, e isso pode ser utilizado como uma forma de
guiar as organizações que pretendam utilizar o PSS (SOUZA; BRAGA; MENDES, 2016).
O PSS destaca-se na redução dos impactos ambientais uma vez que ressalta
o valor do uso em vez da propriedade dos produtos, a desmaterialização, os cenários
alternativos de uso dos produtos com consequências ambientais positivas, os investi-
mentos na confiabilidade e durabilidade dos produtos e no aumento da produtividade
dos recursos (MONT, 2002).
De acordo com Ribeiro e Marsato (2010), os sistemas de produtos-serviços
permitem a combinação de produtos ecologicamente projetados, reforçados pelos
serviços projetados em diferentes estágios de um ciclo de vida de produto, e compre-
endendo diferentes conceitos do uso do produto, dependendo, por exemplo, do seu
perfil ambiental, envolvendo os consumidores finais e os agentes da cadeia de valor.
Assim, por via reflexa, torna-se vantajoso para a organização assegurar as funções de
uso do produto dentro do maior tempo possível, promovendo incentivos nos sistemas
para ampliar a durabilidade do produto, a adaptação, a reutilização e a renovação,
gerando então benefícios ambientais e econômicos para a empresa.
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 223

Os impactos ambientais podem ser mitigados por meio dos serviços projeta-
dos, serviços estes desenvolvidos a partir de uma larga avaliação sobre os hábitos
dos consumidores, o que implica na possibilidade de desenvolver serviços com um
impacto ambiental menor do que modelos tradicionais, principalmente se aplicadas
considerações ambientais como parâmetros durante o projeto do produto, satisfazendo
as necessidades dos clientes e minimizando referidos impactos (RIBEIRO; MARSATO,
2010).
No que tange ao produtor, com a adoção desse processo, incumbe a ele a res-
ponsabilização por seus produtos e serviços por meio da implementação de condutas
e atos atinentes ao retorno do produto, reciclagem e renovação, reduzindo os resíduos
por meio do aumento da vida útil dos produtos e também com a menor utilização de
energia ou material durante a fabricação dos produtos, reduzindo os custos e impactos
ambientais (RIBEIRO; MARSATO, 2010).
Nesse sentido, imputada a responsabilidade ao produtor, é imprescindível a
conscientização do consumidor acerca da importância de atividades produtivas mais
sustentáveis, seja a partir da utilização de publicidade informativa e comparativa acerca
dos produtos com maior ciclo de vida, bem como pela desconstrução de estratagemas
voltados ao consumismo e à valorização da propriedade, substituindo-a pela posse
conjugada com a eficiência na prestação de serviços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se pela importante função desempenhada pela servitização, em especial


pela adoção do sistema produto serviço junto ao ente empresarial, demandando, para
o seu sucesso e efetiva implementação no país, a conscientização do consumidor no
que tange à necessidade de fragmentação e mitigação do paradigma do materialismo
insculpido pelo ideário do consumismo e acumulação de bens.
Desta forma, a aquisição de serviços e bens desatrelada da transferência da
propriedade dos produtos, mas tão somente pela transferência da posse, que é tem-
porária e adequada às necessidades dos serviços usufruídos pelos consumidores,
conduz ao fortalecimento de processos produtivos mais racionais, visando à otimização
do uso de matérias primas e fontes energéticas que possibilitem o aumento do ciclo de
vida dos produtos, sua maximização de uso, o desenvolvimento de bens propensos as
adaptações tecnológicas futuras e o combate à obsolescência programada.
Enfim, a adoção desses instrumentais promove a responsabilidade comparti-
lhada pelo ciclo de vida do produto, fortalecendo os elos da cadeia entre produtores e
224 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

consumidores, eis que estes passarão a exigir daqueles produtos de melhor qualidade
e durabilidade, via rejeição aos descartáveis, favorecendo a mitigação dos custos
socioambientais da residualidade precoce pelo novo ideário do consumo sem proprie-
dade, compatibilizando os interesses dos agentes econômicos e sociais via fomento
à sustentabilidade produtiva, atingindo o núcleo axiológico da Política Nacional dos
Resíduos Sólidos.

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A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA
HÍDRICA DA ANDALUZIA - ESPANHA1 2

PUBLIC PARTICIPATION IN THE WATER


GOVERNANCE OF ANDALUSIA - SPAIN

LUCIANA TURATTI3

SUMÁRIO: Introdução - 1. O comportamento climático espanhol e andaluz - 2. As


normas de proteção das águas: o plano europeu e local - 3. A gestão integrada dos
recursos hídricos no contexto andaluz: os órgãos colegiados - 4. A gestão partici-
pativa na Andaluzia - Notas finais - Referências.

RESUMO: O contexto atual demonstra que as dificuldades de acesso à água


estão relacionadas diretamente a problemas de governança que envolvem fragilidades
associadas à participação pública. O presente artigo busca apresentar as medidas
e políticas públicas empregadas pelo governo da Andaluzia relativas à participação
da população nos processos de gestão das águas, de forma a assegurar a vontade
coletiva e o controle social dos processos. O método empregado foi o dedutivo e a
abordagem é qualitativa. Os resultados demonstram que, formalmente, a Andaluzia
atende as orientações legais, pois possui uma ampla legislação de águas e contempla
vários mecanismos que autorizam a participação do público, mas também denotam
que ainda se fazem necessárias medidas para tornar mais efetiva essa participação.
PALAVRAS-CHAVE: governança hídrica; participação ativa e real; escassez.
1
Data de recebimento do artigo: 04.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 22.02.2019 e 01.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 12.03.2019.
2
Este artigo é fruto do período de estudos realizado quando do estágio pós-doutoral junto à Universidade
de Sevilha, Espanha, sob a orientação do Prof. Dr. Álvaro Sánchez Bravo.
3
Doutora em Direito pela UNISC. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvol-
vimento - PPGAD e do Programa de Pós-Graduação em Sistemas Ambientais Sustentáveis - PPGSAS
da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES. E-mail: lucianat@univates.br.
228 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

ABSTRACT: The current context demonstrates that the difficulties of access to


water are directly related to problems of governance that involve fragilities associated
with public participation. The present article seeks to present the public policies and
measures employed by the Andalusian government regarding the participation of the
population in water management processes, to assure the collective will and social
control of the processes. The method used was the deductive and the approach is
qualitative. The results show that, formally, Andalusia complies with legal guidelines,
since it has a wide water legislation and contemplates several mechanisms that allow
public participation, but also denote that measures are still necessary to make this
participation more effective.
KEYWORDS: water governance; active and real participation; scarcity.

INTRODUÇÃO

O título de “Planeta Azul” ou “Planeta Água”, atribuído à Terra quando da des-


coberta do espaço não foi, por si só, suficiente para garantir abundância hídrica na
contemporaneidade. As ações humanas decorrentes do processo de desenvolvimento,
assim como as dificuldades relacionadas aos processos de governança, a má gestão,
a poluição e os usos indiscriminados contribuíram em muito para situação de escassez
hoje vivenciada por aproximadamente ¼ da população mundial, em que os que mais
sofrem seguem sendo os pobres, as mulheres e as crianças. Segundo os dados do
Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE,
denominado Principios de Gobernanza del Agua del OCDE, adotado pelo Comitê de
Políticas de Desenvolvimento Regional a partir de 11 de maio de 2015, estima-se que
em 2050, 240 milhões de pessoas deixem de ter acesso à água potável.4
Os números atuais também geram preocupação. Segundo o relatório do Pro-
grama de Monitoramento Conjunto da OMS e UNICEF, denominado Progresos en
materia de agua potable, saneamiento e higiene: informe de actualización de 2017
e indicadores de referencia de los ODS, em todo o mundo, aproximadamente 03 em
cada 10 pessoas, o que representa um total de 2,1 bilhões, não têm acesso à água
potável. Deste total, 263 milhões de pessoas precisam gastar mais de 30 minutos por
viagem para coletar água de fontes distantes.5
4
OCDE. Principios de gobernanza del agua de la OCDE. 2015. Disponível em: https://www.oecd.org/
cfe/regional-policy/OECD-Principles-Water-spanish.pdf. Acesso em: 11 dez. 2018.
5
ONU; UNICEF. Progresos en materia de agua potable, saneamiento e higiene: informe de actualización
de 2017 y línea de base de los ODS [Progress on drinking water, sanitation and hygiene: 2017 update
and SDG baselines]. Ginebra: Organización Mundial de la Salud y el Fondo de las Naciones Unidas
para la Infancia (UNICEF), 2017. Licencia: CC BY-NC-SA 3.0 IGO, Disponível em: https://www.unicef.
org/spanish/publications/files/Progress_on_Drinking_Water_Sanitation_and_Hygiene_2017_SP.pdf.
Acesso em: 17 dez. 2018.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 229

Estas razões foram suficientes para sustentar o Objetivo 6 dos Objetivos de


Desenvolvimento Sustentável (ODS) firmados em 2015, que se propõe a assegurar a
disponibilidade e gestão sustentável da água e o saneamento para todos até 2030, ou
ainda, como prevê o item 6.1 deste objetivo, “alcançar o acesso universal e equitativo
à água potável, segura e acessível para todos”.6
Ainda conforme o documento da OCDE os problemas vão além dos já citados.
No plano europeu, acrescem-se a estes, a presença de uma infraestrutura hidráulica
envelhecida, tecnologias obsoletas e o fato de os sistemas de governança não conse-
guirem atender à crescente demanda, aos desafios ambientais, ao processo contínuo
de urbanização, à variabilidade climática e aos desastres.7
Tal cenário se mostra ainda mais crítico nas regiões onde a água, por questões
geográficas, é escassa, como é caso da região da Andaluzia, na Espanha,8 o que
também justifica a escolha desta região para fins de investigação. Tida como uma
região com clima mediterrâneo, a Andaluzia é periodicamente acometida por períodos
de escassez hídrica e pela seca.
Em um contexto em que os recursos hídricos são poucos, a gestão integrada
e participativa apresenta-se como uma necessidade, e não possibilidade, uma vez
que o bem tutelado é direito humano de todos. Orientada pela preservação da vida, a
gestão das águas num contexto sistêmico não se vincula somente às questões legais
e institucionais e à ideia de suprir as necessidades humanas. Seu caráter transversal
e interinstitucional conecta sua proteção às questões de segurança alimentar, saúde,
preservação dos diversos ecossistemas, disponibilidade e acesso à água potável e
a outros usos, rompendo com a ideia de barreiras geográficas, políticas ou sociais
e levando em consideração elementos que transcendam as fronteiras. Afinal, é da
natureza das águas fluir, transpor-se, elevar-se, sumir para reaparecer, às vezes, com
força destruidora.
O presente artigo busca apresentar a realidade da região da Andaluzia na
Espanha a partir da análise dos mecanismos adotados pelo governo local para imple-
mentar a gestão participativa, orientada pela Diretiva Quadro da Água adotada pela
6
ONU. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS. Disponível em: https://nacoesunidas.org/
pos2015/agenda2030/. Acesso em: 11 dez. 2018.
7
OCDE, cit.
8
A Espanha é uma monarquia parlamentarista e seu território é dividido em 17 comunidades autônomas,
50 províncias e duas cidades autônomas (Ceuta e Melilha), sendo a Andaluzia uma das comunidades
constituídas com 08 províncias. Conforme dados jan. 2016, o país possui uma das maiores populações
da Europa com cerca de 46.528.966 habitantes, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística de
01 jan. 2017 (INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA (INE). Cifras de Población a 1 de enero de
2017. Disponível em: https://www.ine.es/prensa/cp_2017_p.pdf. Acesso em: 13 dez. 2018).
230 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

União Europeia, como forma de assegurar a vontade coletiva e os interesses comuns


quando do acesso à água. O método empregado foi o dedutivo e a abordagem é qua-
litativa. Foram consultados artigos científicos, doutrina local, informações contidas nas
bases de dados da Junta de Andaluzia, da Confederação Hidrográfica do Guadalquivir,
da OCDE, da União Europeia, bem como legislação e documentos que fundamentam
a política de águas local.
Para organizar as análises e discussões, faz-se, de início, uma breve contextua-
lização acerca do comportamento climático na Espanha e também na região andaluza.
Após, analisam-se as principais normas de proteção das águas neste contexto, para,
enfim, adentrar-se na gestão integrada que é promovida nesta região e nas políticas
de participação instituídas na Andaluzia.

1. O COMPORTAMENTO CLIMÁTICO E HIDROLÓGICO ESPANHOL E ANDALUZ

A Espanha se caracteriza por uma diversidade climática que, juntamente com


a situação geográfica, faz com que ocorram regimes de precipitação e de fluxos dos
rios muito irregulares no tempo e espaço, sendo, dessa forma, notável a desigualdade
dos volumes de água disponíveis nas diferentes regiões.9
O Livro digital da água10 informa que o valor médio de escoamento total na
Espanha (estimado entre 1940 e 2010) é de 216,29 mm, equivalente a 109.488 hm³/
ano. Este valor é distribuído de forma muito irregular no território, fazendo com que o
país se divida entre a denominada “Espanha úmida” e a “Espanha seca”. O denominado
Livro branco da agua da Espanha11 apresenta dados similares: “o valor médio anual de
escoamento total é de 220 mm, o que equivale a aproximadamente 111.000 hm³”. Ainda
segundo o livro, as diferenças territoriais no que se refere à distribuição espacial deste
escoamento são claramente vistas “variando desde áreas donde la escorrentía es de
menos de 50 mm/año (sureste de España, la Mancha, el valle del Ebro, la meseta del
Duero, y las Islas Canarias) hasta otras donde supera los 800 mm/año (cuencas del
Norte y áreas montañosas de algunas cuencas)”.
Já a precipitação média para o país é de 684 mm/ano, sendo o mês de de-
zembro o mais chuvoso e o de julho menos chuvoso. No período de 1940 a 2010, as

9
GOMES, Viviane Passos. La gestión integrada y participativa de las aguas en Brasil y España: un
análisis de derecho comparado. Madrid: MAPAMA, 2017.
10
ESPANHA. MAPAMA. Libro digital del agua. Disponível em: https://servicio.mapama.gob.es/sia/visua-
lizacion/lda/. Acesso em: 08 dez. 2018.
11
ESPANHA. MITECO. Libro blanco del agua. Disponível em: https://www.miteco.gob.es/es/agua/temas/
planificacion-hidrologica/libro-blanco-del-agua/. Acesso em: 14 dez. 2018.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 231

duas maiores secas (assim definidas por superarem as médias das séries de secas
ocorridas) tiveram duração de 08 anos (1979/80 a 1986/87) e 05 anos (1990/91 a
1994/95).12 Ainda conforme menciona Gomes, a partir dos dados retirados do Livro
digital da água, este é um país acometido pelo fenômeno da seca, pois, no período
compreendido entre 1880 a 2000, mais da metade dos anos se caracterizaram como
secos ou muito secos.13
A característica mais essencial do país é a escassez quanto à precipitação no
verão (a Espanha recebe uma precipitação bem menor que a média europeia), típica
do clima mediterrâneo. Em 2017, a temperatura chegou a atingir um pico de aproxi-
madamente 47 graus na região de Córdoba.14
Valendo-se do conceito de desertificação adotado pela Convenção da Luta
contra a Desertificação (CLD), que a define como “a degradação das terras de zonas
áridas, semiáridas e sub-humidas secas resultante de diversos fatores, tais como as
variações climáticas e as atividades humanas”, tem-se que grandes áreas espanholas
se encontram afetadas pelo processo de desertificação.15 Cabe lembrar que as zonas
áridas, semiáridas e sub-humidas secas são aquelas onde a proporção entre precipi-
tação anual e a evapotranspiração potencial é entre 0,05 e 0,65. Conforme o Informe
sobre os Impactos das Mudanças Climáticas nos Processos de Desertificação da
Espanha, mais de 2/3 do território espanhol apresenta condições áridas ou tidas como
semiáridas, o que atribui à Espanha o título de país mais seco da União Europeia.16 De
forma paradoxal, a demanda por água nos processos de irrigação também são consi-
derados os maiores da Europa. Somente em 2012, foram utilizados cerca de 37 km³
de água no país, dos quais 68% foram direcionados para os usos agrícolas, seguidos
dos usos industriais, com um total de 18% e dos usos domésticos, com 14%.17 A página
do Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação apresenta um mapa da aridez da
12
Idem.
13
GOMES, op. cit.
14
AEMET. Agencia Española de Meteorología. Disponível em: http://www.aemet.es/es/lineas_de_interes/
datos_y_estadistica. Acesso em: 04 jan. 2019.
15
ESPANHA. MAPAMA. . Disponível em: https://www.mapa.gob.es/eu/de-
sarrollo-rural/temas/politica-forestal/desertificacion-restauracion-forestal/lucha-contra-la-desertificacion/
lch_espana.aspx. Acesso em: 07 jan. 2019.
16
Como refere Magalhães Jr. nos contextos mediterrâneos, como é o caso da maior parte da Espanha,
“os aportes hídricos nas bacias hidrográficas são bastante distintos em períodos intra e interanuais,
contribuindo para as frequentes tensões entre os quadros de disponibilidades de água e de usos-de-
mandas”. (MAGALHÃES JR., Antônio Pereira. A nova cultura de gestão da água no século XXI: lições
da experiência espanhola [livro eletrônico]. São Paulo: Blucher, 2017).
17
FAO. . Disponível em: http://www.fao.org/nr/water/aquastat/
irrigationmap/ESP/indexesp.stm. Acesso em: 13 jan. 2019.
232 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Espanha no qual fica evidente a precária situação do país, pois este demonstra que a
maior parte do território se classifica como árida ou semiárida.18
As mudanças climáticas têm ocasionado ainda mais desequilíbrios na distri-
buição da água e no tempo, fazendo com que em determinados períodos o território
espanhol seja acometido pelas secas e em outros por precipitações que geram graves
inundações.
Mesmo possuindo uma das maiores redes de represas e açudes do mundo, os
índices pluviométricos irregulares e baixos, presentes no país, associados às oscilações
climáticas das últimas décadas intensificaram ainda mais o quadro de escassez devido
ao aumento das temperaturas e às taxas de evapotranspiração.19
As constatações realizadas pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate
Change) acerca da influência das mudanças climáticas nos ciclos hidrológicos denotam
que tal cenário tende a piorar. Em análise a tais dados, Bravo refere que o documento
técnico relativo à água denominado El cambio climático y el agua, publicado em 2008,
“señala como el calentamiento observado en las últimas décadas está relacionado con
los cambios acaecidos en los ciclos hidrológicos”. Alerta o autor: “El clima, ya cálido
y semiárido, de Europa meridional se calentará y resecará aún más. La precipitación
estival disminuir”.20
Como consequência, o autor lembra que as previsões apontam que “la escor-
rentía fluvial y la disponibilidad de agua disminuirán en la cuenca mediterránea, pero
podrán aumentar en las latitudes altas”.21 Tanto a intensidade como a grande variação
nas precipitações amplia o cenário de risco de inundações e secas, o que se relaciona
diretamente com a quantidade e qualidade de água, tendo ainda um efeito direto em
outros ambientes, como na disponibilidade, estabilidade, acessibilidade e utilização
de alimentos.22
O Informe sobre os Impactos das Mudanças Climáticas nos Processos de
Desertificação na Espanha também refere que, devido a sua situação geográfica e
suas características socioeconômicas, o país encontra-se vulnerável às mudanças

18
ESPANHA. MAGRAMA. Mapa da aridez da Espanha. 2017. Disponível em: https://www.mapa.gob.es/
eu/desarrollo-rural/temas/politica-forestal/desertificacion-restauracion-forestal/lucha-contra-la-deserti-
ficacion/lch_espana.aspx. Acesso em: 11 jan. 2018.
19
MAGALHÃES JR., op. cit.
20
BRAVO, Álvaro A. Sánchez. Los recursos hídricos frente al cambio climático en la Unión Europea.
In: WOLKMER, Maria de Fátima S.; MELO, Milena Petters (Org.). Crise ambiental, direitos à água e
sustentabilidade: visões multidisciplinares. [recurso eletrônico]. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012. p. 18.
21
Idem.
22
Idem.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 233

climáticas, razão pela qual se impõe o desafio de conseguir respostas rápidas a tais
efeitos. O documento constata que a desertificação já é um problema real e, em muitos
locais, uma ameaça para uma parte significativa do território espanhol, pois aos fatores
naturais como incêndios, erosão, salinização e outros somam-se aqueles relacionados
às mudanças climáticas. Considerando esse cenário, as projeções apontam para uma
crescente aridez e um aumento das temperaturas, o que contribuirá ainda mais para
os processos de desertificação.23
Magalhães Jr.24 também se refere às mudanças climáticas e menciona que “os
rigores climáticos mediterrâneos podem se agravar nos anos futuros”. Segundo ele,
inúmeros estudos realizados nas últimas décadas vêm denotando que a Espanha tem
apresentando uma elevação nas temperaturas e a consequente redução dos índices
pluviométricos. Tal situação estaria diretamente relacionada às mudanças climáticas,
tendendo a se ampliar.
O último informe produzido em 2018, no entanto, demonstra que ainda existem
incertezas acerca do que poderá ocorrer com o clima. Estão previstas mudanças na
intensidade das precipitações fortes “pero mientras que en algunas regiones se espera
un aumento de la intensidad en todas las estaciones menos en verano, en otras regiones,
como la península ibérica, se prevé una disminución hacia el fin del siglo XXI”.25 Tais
incertezas não podem, contudo, servir de subterfúgio para se deixar de lado medidas
de proteção ambiental, haja vista que, segundo o princípio da precaução, havendo
incerteza, as medidas de proteção precisam ser ampliadas.
A região da Andaluzia não se distancia destas características climáticas. Loca-
lizada ao sul da Espanha, a região também é caracterizada pelo clima mediterrâneo,
o que, devido às importantes variações, impõe grandes desafios na gestão das suas
águas.
A precipitação anual se diferencia em relação à parte oriental e ocidental da
região. A província de Almeria, tida como a de maior escassez em relação às chuvas,
recebeu uma precipitação média de 100-200 mm por ano no período de 1961-1990,
com locais onde a precipitação não excede os 140 mm. Já em Janda, na província de
Cádiz, bem como na Serranía de Ronda, ou ainda em Málaga, a precipitação superou
1.000 mm por ano.26
23
MAGRAMA.
Espanha, 2018. p. 10.
24
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 21.
25
MAGRAMA. Informe sobre as mudanças..., op. cit.
26
CONSEJERÍA DE MEDIO AMBIENTE. Estudio básico de adaptación al cambio climático: sector recur-
sos hídricos. 2012. Disponível em: http://www.juntadeandalucia.es/medioambiente/portal_web/web/
234 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Com base em dados oficiais, Ituarte27 informa que a Andaluzia dispõe de 7.149,54
hm³ de água (1 hm³ é igual a 1 milhão de m³) de média anual. Considerando que a
população da Andaluzia é de 8.409.657 pessoas (conforme dados de dezembro de 2016)
a disponibilidade anual de água (potável, extraída, canalizada e distribuída no local)
por pessoa é de 850 m³, o equivalente a 2.329 litros de água por dia. Esta, conforme o
autor, é uma interessante cifra para se dar início às discussões sobre abundância ou
escassez de água, num contexto absoluto, físico, social ou ecossocial, até porque uma
análise exclusivamente numérica conduziria à compreensão de que a região possui
abundância hídrica.28 Há de se ter presente, contudo, que a maior parte da população
não é titular de concessões de irrigação ou industrial. Estes consomem em torno de
125 litros de água potável ao dia, ou seja, menos de 50 m³/ano. A esses números ainda
devem se acrescentar as diferenças territoriais existente no país.
Ituarte refere que as intervenções nos sistemas hidrológicos foram tamanhas ao
longo dos últimos 100 anos que “en Andalucía el ciclo hidrológico ha dejado de ser un
fenómeno natural (si es que alguna vez lo fue completamente) para ser una realidad
socioecológica, en nuestro caso sociohidrológica”.29
O Estudo Básico de Adaptação às Mudanças Climáticas (Setor Recursos
Hídricos) refere que a distribuição da precipitação na Andaluzia, tanto de uma forma
espacial como temporal, é considerada heterogênea, isso devido à instabilidade dos
insumos interanuais de água e ao longo dos anos, bem como a sua grande variabi-
lidade nas diferentes demarcações hidrográficas do território Andaluz. O documento
também menciona que as demandas de água do setor agrícola são muito grandes
e ocorrem principalmente nas épocas do ano em que há uma menor quantidade de
recursos disponíveis. 32% do total de águas superficiais e exploradas dos aquíferos
são consumidas pela população e por atividades relacionadas à indústria e agricultura.30
De forma similar ao restante da Espanha, nesta região, os principais usos da
água estão relacionados à irrigação e produção de produtos de exportação como azei-
tes, frutas ou cultivos industriais. Segundo Ituarte, “el agua en Andalucía es rehén del
regadío. La lógica del regadío tiene una hegemonía social, cultural y política aplastante:

temas_ambientales/clima/actuaciones_cambio_climatico/adaptacion/vulnerabilidad_impactos_medidas/
informes_basicos/recursos_hidricos.pdf. Acesso em: 11 jan. 2019.
27
ITUARTE, Leandro del Moral. Agua en Andalucía: ¿abundancia o escasez? Presiones sistémicas
y resistencias locales. El topo.org, 30 octubre, 2017. Disponível em: https://idus.us.es/xmlui/hand-
le/11441/69806. Acesso em: 20 jan. 2019.
28
Idem.
29
ITUARTE, cit., p. 2.
30
CONSEJERÍA DE MEDIO AMBIENTE, op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 235

el aplicar el agua al riego es de sentido común”. As dificuldades de compatibilizar as


necessidades desse setor com a disponibilidade de água são grandes, pois de nada
adianta aumentar a disponibilidade se os usos na área agrícola seguirem crescendo.
Mesmo com boa parte dos usos comprometidos com a produção agrícola,
Ituarte31 lembra que, devido ao megassistema hidráulico disponível para suprir as de-
mandas urbanas, estas tecnicamente estariam garantidas. Na Andaluzia, por exemplo,
desde a grande seca vivenciada no período de 1992-1995, não houve restrições no
uso ou racionamento de água. Como menciona o autor, “esa fue la gran lección que se
extrajo de aquella experiencia traumática: hay que reducir las dotaciones del regadío
antes de que haya necesidad de restringir el agua a la población”.32
A Demarcação Hidrográfica do Guadalquivir é considerada a mais importante
em relação aos recursos convencionais disponíveis, cobrindo 81,48% da Andaluzia,
representando o maior volume de água. Na sequência, viriam a Demarcação de
Guadalete-Barbate com 4,67%, a de Tinto-Odiel-Piedras com 1,32% e as bacias do
Mediterrâneo Andaluz com 12,5%.33
A região também possui uma organização diferenciada para dar conta dos efeitos
climáticos tidos como característicos, como é o caso das secas. Para gerenciar as se-
cas na região e atender ao disposto no artigo 63 da Lei de Águas do país, a Andaluzia
possui Planos de atuação para as situações de alerta e eventual seca, que permitem
o planejamento e gestão destas situações e intervenções no sistema de exploração
com o objetivo de reduzir o consumo de água.

2. AS NORMAS DE PROTEÇÃO DAS ÁGUAS: O PLANO EUROPEU E LOCAL

Em matéria de gestão das águas, a Espanha possui um legado histórico diferen-


ciado. Segundo Magalhães Jr., “o país é considerado pioneiro na gestão participativa
de bacias hidrográficas”34 por apresentar associações de irrigantes ainda quando dos
períodos de dominação romana, que se consolidaram durante o período de domina-
ção árabe. Exemplo disso seriam os tribunais de água de Valência (este considerado
o tribunal arbitral de águas mais antigo da história) e de Murcia, reconhecidos pela
Constituição Espanhola.
A Espanha possui aquela que foi considerada a primeira lei de águas do mun-
do. Datada de 03 de agosto de 1866, a Lei de Águas tinha como objetivo regular a
31
ITUARTE, cit.
32
Idem, cit., p. 4.
33
Idem.
34
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 12.
236 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

utilização das águas continentais e marítimas do país. Esta lei, contudo, perdurou por
pouco tempo, pois, 02 anos após sua publicação, ela foi revogada. Passados alguns
anos, em 13 de junho de 1879, publicou-se a denominada Lei Centenária da Água,
que permaneceu em vigor até 1985.
Em 1978, no pós-ditadura franquista, que perdurou de 1939 a 1975, publica-se
uma nova Constituição. Esta outorgou competência ao Estado para legislar e ordenar
as concessões de recursos e aproveitamentos hidráulicos, quando as águas fluírem
por mais de uma comunidade autônoma, sendo sua execução de responsabilidade da
unidade da bacia hidrográfica.
A partir desta orientação, o Estado, segundo o artigo 149.1.22º, passava a ter
competências exclusivas sobre as bacias denominadas intercomunitárias (aquelas
que abrangem mais de uma comunidade autônoma, lembrando que a Espanha possui
17).35 Já as bacias intracomunitárias ficaram reservadas para gestão das respectivas
comunidades.
Em 1985, constitui-se um novo marco normativo para as águas. Derroga-se a
Lei Centenária e publica-se a Lei 29, de 02 de agosto, conhecida como a Nova Lei de
Água, ou, mais tarde, somente Lei de Água.36
Como lembra Magalhães Jr., essa lei, observando uma proposta de gestão
integrada e com enfoque voltado para o planejamento hidrológico e sua compatibi-
lização com os demais planos setoriais, “desenvolveu e complementou a divisão de
competências em matéria de gestão da água no país, defendendo a gestão conjunta
entre o Estado, os organismos de bacia, as comunidades autônomas e os usuários”.37
A Lei de 1985 criou o Conselho Nacional de Água, considerado órgão superior
no sistema de gestão, buscou dar ênfase à gestão integrada, tomando como base o
ciclo hidrológico nos processos, estabeleceu o instrumento de concessão administrativa
para permitir os usos das águas públicas, fez referência à necessidade de se consi-
derar os aspectos de qualidade e quantidade na gestão por bacias, e, contemplou a
participação dos usuários nos processos de gestão.
Em relação à participação em específico, conforme lembra Magalhães Jr.,38
a lei propôs uma reestruturação das confederações hidrográficas, e determinou que

35
BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO (BOE). Constitución Española de 1978. Disponível em: https://www.
boe.es/legislacion/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.
36
Em 1999, a Lei da Água foi modificada por meio da Lei 46, de 13 de dezembro.
37
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 35.
38
MAGALHÃES JR., op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 237

pelo menos 1/3 dos membros de colegiados decisórios de gestão e planejamento dos
organismos de bacia, como os Conselhos de água das Regiões Hidrográficas, seja
constituído por usuários dos diferentes setores envolvidos.39
Em 1986, a Espanha passa a integrar a União Europeia. No mesmo ano, o
país aprova o Regulamento de Domínio Público Hidráulico (RDPH), que contemplou
a possibilidade de cobrança por parte do Estado pelo uso e ocupação dos bens de
domínio público hidráulico.
Em 2000, é publicada a Diretiva Quadro da Água (DQA) pela União Europeia,
que passou a orientar a política de águas espanhola, na condição de Estado-membro.
A adoção da Diretiva buscou estabelecer um marco comunitário de atuação na UE
no âmbito das políticas de águas, deixando evidente, já quando das considerações
iniciais, o status que se visava atribuir à água, ao se prever que ela não é um bem
comercial como os demais, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido,
gerido dentro do ecossistema.40
Essa diretiva propôs-se a reformular e centralizar a política de recursos hídricos
dos Estados integrantes da União Europeia em um único texto normativo, pautado por
três pilares centrais:41 ecologia (em que aparecem as preocupações com o denomi-
nado estado ecológico das águas e com as metas propostas para 2015, por meio dos
Objetivos do Milênio, substituídos na atualidade pelos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentáveis); governança (ao passo que foram propostos novos órgãos de gestão
vinculados às bacias hidrográficas responsáveis por tornar mais participativos os pro-
cessos decisórios); e economia (em que os fornecedores de água foram incumbidos
de alcançar o verdadeiro custo pela água até 2010, para permitir a cobrança desse
recurso).42

39
Ver estrutura do Plano Hidrológico na página da Confederação Hidrológica do Guadalquivir. Disponível
em: http://www.chguadalquivir.es/organos-participantes#%C3%93rganosdeGobierno.
40
ZSÖGÖN, Silvia Jaquenod. Derecho ambiental: la gobernanza de las aguas. Editorial Dykinson. Madrid,
2005.
41
O documento intitulado Cuidando das águas esclarece que “cada pilar engloba uma série de medidas a
serem empreendidas em prazos determinados. O primeiro pilar é o da ecologia. Para atendê-lo a diretiva
estabelece a meta de situação ecológica ‘boa’ e o processo decisório para apurar se determinadas
águas superficiais ou subterrâneas estão em situação ruim, sofrível, moderada ou boa. Para alcançar a
situação ‘boa’, determinados elementos físico-químicos, hidromorfológicos e biológicos devem mostrar
pouca ou nenhuma alteração em relação às condições de referência (áreas de referência escolhidas
para refletir a falta de distúrbios humanos)”. (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA). Cuidando das
águas: soluções para melhorar a qualidade dos recursos hídricos. Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente. Brasília: ANA, 2011. p. 76-77).
42
ANA, 2011, texto digital.
238 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Para Irujo,43 a DQA permitiu a abertura de novas perspectivas para o desen-


volvimento da política de águas na União Europeia e constitui um novo estágio na
construção de uma política comunitária, uma vez que, a partir de um enfoque integrado
e global, visava à racionalização do aparato legislativo existente até então, tido como
fragmentado.
A Diretiva também reconhece que a política comunitária de águas, seguindo a
orientação proposta para toda política ambiental comunitária, deve ser transversal. Neste
sentido, deve afetar, conforme Irujo e Hölling “[...] otros ámbitos políticos comunitarios,
tales como las políticas en materia de energía, transporte, agricultura, pesca, política
regional y turismo, tal como indica el punto 16 de su preámbulo”.44
O artigo 1º define os objetivos da DQA, claramente voltados à criação de um
regramento visando à proteção das águas de superfície interiores, das águas de tran-
sição, das águas costeiras e das águas subterrâneas, por meio da melhoria do estado
dos ecossistemas aquáticos, e também dos ecossistemas terrestres; da promoção do
consumo de água sustentável; e da redução gradual da poluição das águas subterrâ-
neas e evite a agravação da sua poluição.
Para dar consecução a todas essas tarefas, a União Europeia estabeleceu
prazos, sendo que as principais etapas encerraram-se em 2015. Segundo a página da
Agência Europeia do Ambiente, com o objetivo de atender os pressupostos da DQA,
em 2010, os Estados-Membros da UE publicaram 160 planos de gestão de bacias
hidrográficas para o período 2009-2015, que visavam proteger e melhorar o ambiente
aquático. O segundo conjunto de planos de gestão de bacias hidrográficas, abrangendo
o período 2016-2021, foi finalizado em 2016/2017.45
A Diretiva também é considerada um marco divisor na política de águas euro-
peia devido à adoção do princípio da subsidiariedade, que permite que os Estados-
-Membros da UE possam aplicar o direito interno, caso o texto da Diretiva não possa
ser aplicado, o que gera, por consequência, uma obrigação de resultado no tocante às
suas determinações, pois não podem ser alegados conflitos de leis ou outros óbices
similares para evitar sua aplicação.46
43
IRUJO, Antonio Embid. (Dir.). Ciudadanos y usuarios en la gestión del agua. Pamplona: Thompson
Civitas; Editorial Aranzadi, 2008.
44
IRUJO, Antonio Embid. (Dir.); HÖLLING, Mario (Coord.). Gestión del agua y descentralización política:
Conferencia Internacional de gestión del agua en países federales y semejantes a los federales. 9-11
de julio de 2008. Zaragoza; Pamplona: Thomson Reuters, 2009. p. 439.
45
AGÊNCIA EUROPEIA DE AMBIENTE. Água e ambiente marinho. Disponível em: https://www.eea.
europa.eu/pt/themes/water/intro. Acesso em: 14 jan. 2019.
46
D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Água juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 239

Outra característica interessante, voltada para a governança dos recursos


hídricos, é o entendimento de que existem condições e necessidades diversas na UE,
e estas requerem soluções específicas. Essa diversidade deve ser considerada no
momento do planejamento e da execução das medidas destinadas a garantir a prote-
ção e o uso sustentável da água dentro da bacia hidrográfica. As decisões devem ser
tomadas o mais próximo possível dos lugares onde a água é utilizada ou degradada.
A implementação dos objetivos, segundo sugere o documento, deve envolver
uma maciça participação por parte dos cidadãos, em especial quando da elaboração
dos planos de bacia em que os Estados devem colocar à disposição do público os
documentos necessários para que os cidadãos possam apresentar observações por
escrito ou contribuir com a elaboração dos documentos de gestão. A Diretiva ressalta
o fato de que tal etapa não pode representar um simples repasse de informações aos
cidadãos, devendo ser assegurada a participação efetiva destes.
O artigo 14 deixa clara a importância da participação para consecução da Direti-
va: “O êxito da presente Diretiva depende de uma colaboração estreita e uma atuação
coerente da Comunidade, dos Estados-Membros e autoridades locais, assim como da
informação, consultas e participação do público, incluídos os usuários”.47
Também na parte introdutória, quando dos fundamentos da Diretiva, o item
46 faz menção à participação do público, referindo-se aos usuários e à elaboração e
execução dos planos de bacia. Assim estabelece:

Para assegurar a participação do público em geral, incluídos


os usuários, no estabelecimento e atualização dos planos de
bacia, é necessário facilitar a informação adequada das medidas
previstas e dos progressos realizados durante sua aplicação,
a fim de que o público em geral possa manifestar suas contri-
buições antes de serem adotadas as decisões finais sobre as
medidas necessárias.48

Segundo Irujo,49 tal previsão se relaciona diretamente às obrigações das Ad-


ministrações Públicas, dentre as quais está o dever de proporcionar uma informação
pública permanente e real que permita a formulação, por parte do público, de contri-
buições em um tempo hábil, ou seja, antes que se adotem decisões definitivas sobre
as medidas necessárias.

47
UE, 2000. Diretiva Quadro da Água. Disponível em: https://publications.europa.eu/pt/publication-detail/-/
publication/ff6b28fe-b407-4164-8106-366d2bc02343. Acesso em: 18 dez. 2018.
48
Idem.
49
IRUJO, op. cit.
240 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Percebe-se, a partir dessas premissas, que a Diretiva não impôs formas de


participação orgânicas como a participação nos organismos de governo ou outros, nem
instituiu organizações específicas de participação, mas ressaltou em várias oportunida-
des a necessidade de difusão das informações, estabelecendo isso como pressuposto
para participação pública, no sentido de formulação de alternativas e ideias.
Ainda, como observa Irujo, existe uma grande preocupação por parte do texto
da Diretiva, no sentido de não permitir que essa informação seja meramente formal
e rotineira, e que permita ao público oportunidades autênticas de conhecimento da
problemática e da formulação das suas políticas. Para tanto, busca-se a superação de
práticas viciadas e conhecidas, nas quais a participação não passa de um rito colocado
como necessário para a adoção das decisões que se julgam convenientes.50
Há de se lembrar, neste sentido, que por mais real e adequada que seja a in-
formação, a maior parte desta possui caráter técnico, o que impõe um conhecimento
especializado, que não é comum à maior parte da população. Dessa forma, mais do
que reais e permanentes, as informações precisam ser acessíveis a todos os níveis
de conhecimento, pois somente assim se permitirá um debate igualitário e equilibrado
entre os envolvidos.
Após a DQA, a União Europeia publicou outros atos com o objetivo de salva-
guardar os recursos hídricos da Europa. Este é o caso do Plano (COM 673), publicado
em 2012. O plano propõe ações políticas que visam a melhorar a forma como a atual
legislação sobre a água é aplicada na prática e na integração dos objetivos da política
da água com outras políticas. A UE também possui a Estratégia 2020 até 2050. E ainda
existem outras diretivas relacionadas à água e à garantia do bom estado das águas
da Europa. São elas: a Diretiva relativa às águas residuais urbanas (91/271/CEE); a
Diretiva Águas Balneares (2006/7/CE); a Diretiva relativa aos nitratos (91/676/CEE); e
a Diretiva Água Potável (98/83/EC).
No plano espanhol, com o objetivo de atender as exigências da DQA, em 20 de
julho de 2001, publica-se o Real Decreto nº 1. O Decreto aprovou o denominado Texto
Refundido da Lei de Águas (TRLA), transformando-se no documento base da atual
legislação espanhola de gestão de água. O TRLA determinou a revisão dos planos de
bacia até a data de 31 de dezembro de 2009, dando início ao ciclo de planejamento
das regiões hidrográficas (2009-2015) proposto pela Diretiva.
Buscando a implementação da TRLA, em 06 de julho de 2007, foi publicado o
Real Decreto nº 907, que aprovou o Regulamento do Planejamento Hidrológico (RPH),
no qual foram previstos os conteúdos mínimos e os procedimentos de elaboração dos

50
IRUJO, op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 241

novos planos de bacia. A previsão na TRLA dos planos de bacia desenvolvidos em


ciclos de planejamento deixou evidente a centralidade do planejamento na gestão das
águas espanholas. 51
Um dos aspectos importantes da TRLA foi o estabelecimento da ordem de
prioridade dos usos da água. Segundo o disposto no artigo 60.3, os usos estão condi-
cionados à seguinte ordem: (1) abastecimento humano; (2) irrigação e usos agrícolas;
(3) usos industriais não incluídos nos anteriores; (4) aquicultura; (5) usos recreativos;
(6) navegação; (7) outros. A determinação desta ordem de prioridade deve ser levada
em consideração também quando das concessões, uma vez que toda concessão
sujeita-se à expropriação obrigatória de caudais em favor de outro uso precedente.
Em 2008, ainda, foi aprovada a Instrução de Planificação Hidrológica (IPH), que
complementou o RPH e estabeleceu critérios técnicos, além de parâmetros indicadores
para padronização e sistematização dos planos hidrológicos elaborados segundo o
RPH, tornando-se o instrumento legal que amparou a transposição da Diretiva Quadro
da Água para a legislação espanhola e forneceu subsídios para a sua execução. Com a
sua aprovação, os planos de bacia passaram a ser chamados oficialmente de “planos
de gestão de demarcações hidrográficas”.52
A Andaluzia também possui um vasto alicerce jurídico para proteção das águas.
O Estatuto de Autonomia da Comunidade, documento que estabelece as principais
diretrizes de gestão da Andaluzia, prevê uma série de preceitos relacionados à proteção
do meio ambiente e em específico da água. Tais preceitos foram reafirmados quando
do estabelecimento do Acordo Andaluz pela Água.53
A Comunidade também possui sua Lei de Águas. Publicada em 30 de julho de
2010, a Lei nº 9 é considerada o principal texto jurídico sobre a matéria. Com um texto
bastante amplo, esta Lei estabelece, em consonância com o disposto na Lei 7/2007
(que prevê a Gestão Integrada da qualidade ambiental), os principais parâmetros e
diretrizes acerca da qualidade das águas, tipificando as infrações relacionadas com
o domínio público hidráulico e prevendo as sanções e os órgãos competentes para
sua imposição.
51
MAGALHÃES JR., op. cit.
52
Ainda conforme Magalhães Jr., como alternativa substitutiva às disponibilidades hídricas que teriam
sido geradas por transposições contempladas no PHN 2000 e que foram abortadas, em 2005, foi
lançado pelo Ministério do Meio Ambiente o programa denominado Plano Agua ou Programa AGUA
- Atuações para Gestão e a Utilização da Água. O Plano foi criado pelo Real Decreto-Lei n. 2/2004 e
pela Lei 11/2005, que modificaram a Lei 10/2001 do Plano Hidrológico Nacional de 2000. Em 2008,
o Real Decreto 9/2008 modificou o Regulamento do Domínio Público Hidráulico, vigente desde 1986
(MAGALHÃES JR., op. cit.).
53
O Acordo Andaluz pela Água foi firmado pelo Conselho Andaluz da Água em 03 de fevereiro de 2009.
Este pode ser acessado pelo seguinte link: http://www.conocetusfuentes.com/documentos/doc_21.pdf.
242 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Como prevê o texto da própria lei no artigo 1.2, a finalidade desta: “es garan-
tizar las necesidades básicas de uso de agua de la población y hacer compatible el
desarrollo económico y social de Andalucía con el buen estado de los ecosistemas
acuáticos y terrestres”.54
A lei deixa evidente em sua Exposição de Motivos suas principais diretrizes ao
expor que o desenvolvimento econômico e social não pode ser baseado no esgotamento
do recurso hídrico, mas, sim, pelo contrário, na conservação e melhoria da água e do
ecossistema aquático.
Tratando dos processos de participação na gestão, a Lei prevê a obrigatoriedade
de Decreto que regulamente os órgãos nos quais o princípio da participação esteja
assegurado. O princípio também foi previsto no Acordo Andaluz pela Água. Ainda con-
forme a Exposição de Motivos, a gestão coletiva da água é vista como essencial para
fomentar a disciplina social em seu uso e, com isso, propiciar o objetivo de alcançar a
utilização racional das águas.

3. A GESTÃO INTEGRADA DOS RECURSOS HÍDRICOS NO CONTEXTO


ANDALUZ: OS ÓRGÃOS COLEGIADOS

A gestão das águas possui características intrínsecas (exemplo disso é o ciclo


hidrológico) que fazem com que sua administração tenha que forçosamente se constituir
por meio de alianças e da cooperação entre vários órgãos. A gestão integrada não se
coloca como uma opção, mas, sim, como um caminho necessário.
No documento sobre os princípios para Governança da OCDE,55 essa condição
fica evidente. Dentre os principais argumentos para a necessária gestão integrada, tem-
-se que a água vincula setores, lugares e pessoas, assim como escalas geográficas e
temporais; as fronteiras hidrológicas não coincidem necessariamente com os territórios
geográficos dos países. Muitos rios são compartilhados ou transfronteiriços. A gestão
da água doce (tanto superficial como subterrânea) se coloca como uma preocupação
local, mas também global e, por essa razão, envolve uma infinidade de agentes públicos
e privados na tomada de decisão.
A Junta de Andaluzia prevê em sua página da internet que a participação na
gestão da água ocorrerá por meio dos órgãos colegiados, pelos programas de sen-
sibilização e participação e pelo ciclo integral da água de uso urbano. O Conselho
Andaluz da Água é um dos órgãos colegiados. Caracterizado como órgão consultivo
54
BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO (BOE). Lei 9/2010. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/2010/
BOE-A-2010-13465-consolidado.pdf. Acesso em: 12 jan. 2019.
55
OCDE, cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 243

e de assessoramento, é diretamente vinculado ao governo andaluz. Sua composição


e regulamento são orientados pelo Decreto 477, de 17 de novembro de 2015.56
Suas funções, conforme o Decreto citado, são: atuar como órgão de informação,
consulta e assessoramento; informar os anteprojetos de leis e projetos de decretos
que em matéria de água sejam submetidos para aprovação do Conselho de Governo;
formular iniciativas e propor quantas medidas se considerar oportunas para a melhoria
da gestão, uso e aproveitamento do recurso; quaisquer outras que sejam atribuídas
pela pessoa titular do Conselho competente em matéria de água.
A composição do Conselho ocorre da seguinte forma: Presidência, que será
exercida pelo titular do Ministério competente em matéria de água; Vice-presidência,
que será exercida pela pessoa titular do Vice-Ministério competente em matéria de
água; segunda Vice-Presidência, que será exercida pela pessoa titular da Secretaria
Geral com competências em matéria de água; 06 pessoas titulares das Direções Gerais
competentes em matéria de Planejamento e Gestão do Domínio Público Hidráulico,
Infraestruturas e Exploração da Água, Gestão do Meio e Espaços Protegidos, Prevenção
e Qualidade Ambiental, Urbanismo e da Secretaria Geral com competências em matéria
de planejamento territorial; 11 pessoas, pelo menos com o posto de Diretor ou Diretor-
-Geral, que será nomeado por proposta de cada um dos Conselhos de Administração
da Junta de Andaluzia com competências em matéria de Proteção Civil, Finanças,
Indústria, Energia, Turismo, Pescas, Saúde, Agricultura, Consumo, Administração Lo-
cal e Desenvolvimento; 08 pessoas titulares das Delegações Territoriais do Ministério
Competente em matéria de água; e, ainda, as seguintes pessoas representando outras
administrações: 03 pessoas representando a Administração Geral do Estado, indicados
pelo próprio Estado, dos quais dois serão propostos pelas Confederações Hidrográ-
ficas do Guadalquivir e do Guadiana, respectivamente; 03 pessoas representando a
Administração Local, indicadas pela associação de municípios e províncias de caráter
autônomo com maior implantação. Como representantes dos órgãos, organizações e
instituições têm-se 34 pessoas representantes dos usuários das bacias da Andaluzia,
designada por eleição pelas organizações mais representativas do setor, com a seguinte
distribuição: 09 representantes dos usos agrícolas; 04 representantes dos usos urbanos;
01 representante dos usos industriais e 01 representante dos usos hidroelétricos; 02
representantes dos usos turísticos; 03 representantes das organizações profissionais
agrícolas; 02 representantes das organizações de irrigadores e 02 representantes
das organizações de consumidores e dos maiores usuários da Andaluzia nomeados
56
BOLETÍN OFICIAL DE LA JUNTA DE ANDALUCÍA (BOJA). Decreto 477/2015. Disponível em: https://
www.juntadeandalucia.es/boja/2015/240/3. Acesso em: 12 jan. 2019.
244 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

pelo Conselho de Consumidores e Utilizadores da Andaluzia; 02 representantes das


organizações sindicais mais representativas em nível estatal e 02 representantes das
organizações sindicais mais representativas da Andaluzia; 02 pessoas representando as
organizações empresariais mais representativas da Comunidade Autônoma; 02 pessoas
representando as associações ambientais de ampla implantação na Andaluzia, desig-
nadas em sua proposta; e 02 pessoas representando as universidades da Andaluzia,
nomeadas na proposta do Conselho de Universidades da Andaluzia.
Os números atribuídos na distribuição das cadeiras demonstram equilíbrio
entre os Órgãos de governo e sociedade, uma vez que 33 cadeiras são preenchidas
com representantes de órgãos governamentais e 34 com representantes de usuários
da água, sindicados, empresas, associações com caráter ambiental e universidades.
Além do Conselho da Água, a Andaluzia possui, para fins de gestão integrada
dos recursos hídricos, o Observatório de Água, que tem como finalidade (Lei 9, de 30
de julho de 2010) recolher e gerar informações sobre as águas continentais, marítimas
e de transição e disponibilizá-las às administrações públicas que gerem água e outros
organismos envolvidos, consulta e aconselhamento.
A comunidade autônoma também possui a Comissão de Autoridades Com-
petentes das demarcações hidrográficas das bacias intracomunitárias localizadas na
Andaluzia. Criada pelo Decreto 14, de 31 de janeiro de 2012, com o objetivo de garantir
o princípio da unidade de gestão de recursos hídricos, possui caráter de órgão colegiado
de participação ligado ao Ministério do Meio Ambiente e Planejamento, e é concebida
como um órgão de cooperação entre os governos estaduais, locais e regionais para
garantir a aplicação das regras de proteção da água na área territorial da Andaluzia.
Os Comitês de Gestão são órgãos colegiados e têm dentre as suas funções
a missão de ser o canal de participação dos usuários no processo de elaboração do
estudo econômico para o cálculo do valor da taxa de regulação e da taxa de utilização
de água (conforme previsão do Decreto 477/2015). No total são sete os Comitês, cor-
respondentes a Málaga, Campo de Gibraltar, Granada, Almeria, Guadalete, Barbate
e Huelva.
Sua composição prevê a Presidência que corresponderá à pessoa que ocu-
pa a Delegação Territorial correspondente do Ministério responsável pela água e a
Secretaria que será ocupada por uma pessoa que tenha o status de funcionário do
Ministério responsável pela água, com pelo menos a categoria de Chefe de Serviço
e participará das reuniões com voz, mas sem voto. Já quanto aos membros de cada
Comitê, a norma prevê que serão: a) Para as administrações: pessoa que representa
a Direção Geral de Planejamento e Gestão do Domínio Hidráulico Público, designada
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 245

pela pessoa que a possui; pessoa que representa a Direção Geral de Infraestrutura e
Exploração de Água, designada pela pessoa que a possui; seis pessoas representando
cada um dos Ministérios responsáveis pelo Ambiente, Indústria, Agricultura, Saúde,
Turismo e Ordenamento do Território; uma pessoa representante das Administrações
Locais designadas pela associação de municípios e províncias de caráter autônomo
de maior implantação; as pessoas que detêm os endereços operacionais de cada um
dos sistemas que estão integrados no Comitê de Gestão; b) Para as organizações
socioeconómicas, três membros: uma pessoa representando os sindicatos, uma
representando as organizações empresariais e outra representando as associações
ambientais; c) Pelos usuários, proporcional aos diferentes usos: os representantes dos
usos agrícolas serão escolhidos entre eles; os representantes dos usos industrial e hidre-
létrico serão escolhidos entre eles proporcionalmente aos interesses que representam;
os representantes dos usos urbanos serão escolhidos entre eles proporcionalmente
aos interesses que representam.
O mandato dos membros é de seis anos, renovável por igual período. Uma
vez expirado o prazo e até a nomeação de seus novos membros, eles continuarão no
exercício de suas funções.
Verifica-se, a partir das estruturas e órgãos existentes que, formalmente, são
assegurados espaços para que as mais diversas instâncias da comunidade possam
participar de forma direta ou por meio de representação. Isso, contudo, não é garantia
da participação efetiva, ou ainda ativa e real, uma vez que esta impõe mais do que
espaços formais.
Chama atenção o fato de que a presidência dos Comitês de Gestão é reservada
a cargo indicado, e não eleito. Neste sentido, o compromisso do controle social por
parte dos membros representativos da sociedade é aumentado, pois, além do seu
papel habitual, estes precisam estar atentos às formas de condução das reuniões por
parte da presidência, uma vez que se faz necessário garantir voz a todos e espaços
democráticos de deliberação.
Há de se ter presente, ainda, que todo esse sistema se encontra integrado à
Confederação Hidrográfica do Guadalquivir, pois a Andaluzia tem 90,22% de partici-
pação nesta bacia.

4. A GESTÃO PARTICIPATIVA NA ANDALUZIA

Os modelos adotados ao longo das últimas décadas, que privilegiaram a cons-


trução de obras hidráulicas, voltadas para a garantia da disponibilidade de água, mas
246 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

centradas no crescimento econômico e no interesse de grupos de elite, têm influenciado,


na atualidade, os processos de gestão da água da região Andaluza.57
Em conferência realizada durante as denominadas Jornadas “Las aguas
subterráneas en España ante las directivas europeas: retos y perspectivas”, Marcos
(2009) referiu que:
Lo que hoy denominamos política de aguas ha sido, durante
mucho tiempo, una gestión centrada en incrementar la dispo-
nibilidad del agua a través de la obra hidráulica subvencionada
públicamente para conseguir el mayor crecimiento económico
posible. Se ha construido sobre la única concepción técnica de
un influyente cuerpo de ingenieros y se ha ejercido de forma poco
o nada transparente y con la sola interlocución de los usuarios
agrícolas e hidroeléctricos. Actualmente, aunque no se puede
afirmar que esa manera de gestionar las aguas esté totalmente
superada, si parece razonable afirmar que está claramente en
crisis por distintas razones.

Se o modelo top-down exercido durante as últimas décadas demonstrou ser


ineficiente, o modelo proposto pelas atuais normas e diretivas, que envolve obrigato-
riamente a participação pública em todos os processos, talvez possa se colocar como
alternativo ou até mesmo contra-hegemônico.
O documento da OCDE anteriormente citado reconhece as deficiências relacio-
nadas à gestão ou governança hídrica, ao passo que declara que, desde 2010, a insti-
tuição possui provas das principais lacunas de gestão que de certa forma dificultaram a
implementação das políticas de água. Para dar conta desta deficiência, o documento,
propôs, no âmbito da OCDE, os princípios da governança. Estes se centram em 03
vértices: efetividade, eficiência, e a confiança e participação. Ao ser citada como um
dos 03 vértices, verifica-se que a participação assume um caráter de centralidade no
modelo de governança proposto, tendo relação direta com a contribuição da governança
na criação de confiança junto à população, e com a garantia de inclusão dos atores e
sociedade em geral.58
O Fórum Mundial da Água, realizado em Marselha em 2012, também trouxe a
participação como um princípio essencial para os processos de governança, ao passo
57
Apesar das críticas a este modelo, há de se ter presente que, se nos tempos anteriores o crescimento
econômico possuía espaço e justificava para subvenção pública na construção de grandes obras, na atua-
lidade, principalmente após a grande crise econômica iniciada em 2008, não é possível sustentar a conti-
nuidade destes processos. Em tempos de escassez hídrica e econômica, o gerenciamento eficiente dos
recursos passa necessariamente pela lógica sustentável e deve ser acompanhado pelo controle social.
58
OCDE, cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 247

que previu na Meta 1, inicialmente desenhada para o ano de 2015, que 50% dos países
teriam adotado mecanismos de consulta, participação e coordenação que permitam
aos atores de nível local, regional, nacional e internacional contribuir com eficácia na
tomada de decisões de maneira coerente, global e integral. Para o ano de 2021, esta
meta deve atingir 100% dos países.
A Diretiva Quadro da Água, já referida anteriormente, também recomenda
fortemente a participação como um dos pilares da governança hídrica.
Conforme Magalhães Jr., a Diretiva orienta a incorporação dos processos de
participação pública a partir de vários níveis ou etapas de participação.59 O nível preli-
minar, denominado “informação pública”, seria aquele no qual ocorre a disponibilização
e a garantia de acesso a informações ao público, que se colocam como um pressu-
posto para efetiva participação. A etapa seguinte seria a da “consulta pública”, em que
a população popular passa a ser garantida de forma direta, por meio de audiências
públicas (nas quais as observações, diferentes percepções e experiências, devem ser
registrados), possibilidades de intervenções ou sugestões, opiniões. Segundo o autor
“a documentação colocada à disposição da população deve viabilizar a participação
por escrito, por entrevistas ou por aplicação de questionários”.60 A última etapa envol-
ve a “participação ativa”. Esta é responsável por um nível mais alto de envolvimento
social, em que a sociedade passa a ter a possibilidade de não somente discutir os
diversos temas, mas também deliberar sobre estes, assim como formular propostas
de soluções de problemas. Para dar consecução a esta proposta, cabe aos órgãos
gestores a criação de instâncias participativas que podem ser representadas por grupos
de trabalho ou fóruns de discussão.
A Diretiva prevê que as etapas de “informação pública” e “consulta pública”
sejam asseguradas. Já a etapa da “participação ativa”, segundo prevê o texto, deve
ser somente fomentada.
A Espanha possui um histórico importante em relação aos processos de partici-
pação pública. “As comunidades de usuários, tidas como as mais tradicionais instâncias
de participação da sociedade na gestão da água na Espanha”, foram criadas ainda
quando da Lei de Água em 1879.61
A Lei da Água de 1985 não deixou de contemplar esta premissa, prevendo
como um dos seus princípios gerais a gestão participativa dos usuários. Assim também

59
MAGALHÃES JR., op. cit.
60
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 273.
61
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 276.
248 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

o fez o Texto Refundido da Lei de Aguas de 2001, que prevê em seu artigo 41.3 a
garantia de participação pública em todo processo de planejamento hidrológico, tanto
nas fases de consultas prévias como nas de desenvolvimento e aprovação ou revisão
dos planos de bacia.62
Na décima segunda disposição adicional, o TRLA,63 de forma a estruturar os
processos de participação pública, prevê que a elaboração de um calendário e um
programa de trabalho referente a elaboração dos planos, com indicação das estratégias
de consulta adotadas, à elaboração de um Esquema Provisional de Temas Importantes
em termos de gestão das águas e a disponibilização dos exemplares do Projeto de
Plano Hidrológico da Demarcação.64
O Decreto nº 907, de 2007, ocupa-se de um capítulo específico sobre a parti-
cipação pública. O artigo 72.1, que prevê a organização e procedimento para tornar
efetiva a participação pública, estabelece que “Los organismos de cuenca formularán el
proyecto de organización y procedimiento a seguir para hacer efectiva la participación
pública en el proceso de planificación”. De forma a contemplar as prerrogativas da
DQA, este instituto também apresenta os conteúdos mínimos a serem seguidos nas
etapas de informação pública (artigo 73), consulta pública (artigo 74) e participação
ativa (artigo 75).65
Considerada inerente aos processos de participação, a informação ambiental
também encontra guarida nas normas. No âmbito da União Europeia, a Diretiva 2003/4/
CE, estabelece as premissas relacionadas ao acesso público da informação ambiental.
No plano espanhol, a Lei nº 27, de 18 de julho de 2006 (AEBOE, 2006), regulamentou
os direitos de acesso à informação, participação e acesso à justiça em matéria am-
biental. Esta lei foi complementada pela Lei nº 19, de 09 de dezembro de 2013, que
buscou ampliar e reforçar a transparência das atividades públicas, bem como regular
e assegurar o direito de acesso à informação, relacionado tais premissas à ideia de
um bom governo.
A legislação da Andaluzia também prevê a participação nas diferentes etapas
dos processos de gestão das águas. A Lei de Águas (9/10) da Andaluzia prevê que,
entre os órgãos que compõem a Administração de Águas da Comunidade, devem ser

62
BOE. TRLA. 2001. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2001-14276. Acesso
em: 13 jan. 2019.
63
Idem.
64
MAGALHÃES JR., op. cit.
65
ESPANHA. Real Decreto 907/2007, de 6 de julio. Reglamento de la Planificación Hidrológica. Disponível
em: http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/r6-rd907-2007.t2.html#c1s2. Acesso em: 13 jan.
2019.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 249

incluídos órgãos colegiados de participação administrativa e social, de natureza deci-


sória, assessores e controle, para cumprir os princípios de participação e transparência
na gestão da água. Nesse contexto, também se propõe que os agentes econômicos e
sociais, bem como as entidades representativas dos diferentes interesses envolvidos
devam fazer parte da gestão.66
Há de se ter presente, no entanto, que este grande aparato normativo recebe
críticas de alguns autores. Vejam-se, nesse sentido, as críticas apresentadas por
Hernandez-Mora e Espluga na obra de Magalhães Jr. acerca dos limites da participa-
ção, quando informam que, apesar de a legislação espanhola garantir a participação
da sociedade civil, com caráter deliberativo, somente o Conselho Nacional de Água e
os órgãos dos organismos de bacia, assim como os usuários que possuam conces-
são de direitos de uso podem de fato deliberar. Para se atender aos pressupostos da
DQA, defendem os autores que haveria necessidade de ampliação da concepção de
participação no sistema para além daqueles considerados “usuários” ou ainda uma
melhor explicação acerca do termo.
Marcos também apresenta críticas ao sistema, ao dispor que houve um grande
atraso nos procedimentos realizados na Espanha em relação ao atendimento das
metas previstas na Diretiva Quadro da Água. Além disso, tanto a divulgação como
a participação teriam se centrado somente no público interessado e muito pouco ou
nada no público em geral. Este, segundo o autor, teria sido continuamente esquecido
na política hídrica espanhola, o que implicaria de forma direta na pouca experiência
de participação.67
Tais críticas levam a crer que os avanços conquistados em matéria legal, ainda
não são suficientes para assegurar uma efetiva participação. Como referem Poma e
Gravante, não é possível uma gestão participativa da água “sem uma política democrá-
tica da comunicação, baseada no diálogo, na construção compartilhada da cidadania
e no compromisso público”. É preciso entender que a obrigação legal de publicar e
permitir o acesso ao público às informações que servirão de referência para elaboração
dos planos de bacia não assegura, por si só, a participação. A informação deve ser
permeada por processos de comunicação que se voltem às mudanças sociais mediante:
La integración de los sistemas de información y comunicación
públicos, así como los recursos tecnológicos y las culturas
populares, en la acción y gestión comunitaria local socializando
66
BOE. Lei de Águas 9/2010.
67
MARCOS, Abel La Calle. La participación pública activa y real en la política del agua: necesidad y deber.
Anduli. Revista Andaluza de Ciencias Sociales, n. 8, 2009. Disponível em: https://revistascientificas.
us.es/index.php/anduli/article/view/3689. Acesso em: 13 dez. 2018.
250 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

los recursos de expresión e identificación grupal y colectivos


entre las redes sociales.68

Uma participação sociopolítica e emancipada, de fato, requer a transformação


das formas de governança burocratizadas, como aquelas que resultam da aplicação
de manuais, nos termos criticados por Fonseca e Bursztyn, refletindo-se no que Jacobi
caracteriza como a formação de laços de pertencimento entre grupos sociais e destes
com os projetos sociais. Para isso, é necessário o estabelecimento de um conjunto
socialmente identificado de problemas, objetivos e soluções.69 Para que seja efetiva a
participação, deve ser capaz de transformar a sociedade.
Além dos espaços formais de participação, assegurados por meio da legislação
espanhola e por meio da legislação local (Lei de Águas 9/10 da Andaluzia), a análise
dos documentos e programas propostos pela Junta da Andaluzia demonstram que a
participação dos usuários e da sociedade na gestão da água é proposta como um com-
promisso decisivo da Comunidade Autônoma, influenciado pelos princípios e orientações
contidos na Diretiva 2000/60/CE e no TRLA. Tal compromisso estaria previsto na Lei
de Águas da Andaluzia (9/2010), na qual é reconhecido o direito dos usuários de água.
As informações contidas no site da Junta sugerem uma participação ativa e real
nos processos de planejamento e gestão da água, que busca integrar a população
“nos órgãos colegiados de participação e decisão da administração da água, seja
diretamente ou através das organizações e associações reconhecidas pela Lei que
as agrupam e representam”.70
Marcos, referindo-se aos adjetivos “ativa” e “real”, menciona que a “participação
ativa é aquela que consegue que a cidadania se envolva com ações no processo de
tomada de decisões” enquanto a participação real é “aquela na qual as autoridades
estabelecem um diálogo ético e efetivo com a cidadania cumprindo com lealdade todos
os deveres e garantias estabelecidos nas normas”. Ainda segundo o autor, mais do
que adjetivos, estes se colocam como parâmetros, “que permitem determinar o grau
de eficácia da participação púbica”.71

68
POMA, Alice; GRAVANTE, Tommaso. Participación ciudadana y políticas públicas: pensar la gestión
participativa del agua desde un enfoque comunicativo. Revista Jurídica de Los Derechos Sociales - Lex
Social, v. 3, n. 1, ene./jun. 2013. p. 143.
69
JACOBI, Pedro. Poder local, políticas sociais e sustentabilidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 8,
n. 1, p. 31-48, jan./fev. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-12901999000100004. Acesso em: 22 out. 2013. p. 43.
70
JUNTA DE ANDALUCÍA. Órganos Colegiados en materia de agua. Disponível em: http://www.junta-
deandalucia.es/medioambiente/site/portalweb/menuitem.6ffc7f4a4459b86a1daa5c105510e1ca/?vg-
nextoid=f8e1461af55f4310VgnVCM1000001325e50aRCRD&vgnextchannel=8f79566029b96310Vg-
nVCM2000000624e50aRCRD. Acesso em: 24 jan. 2019.
71
MARCOS, cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 251

Dentre os programas propostos para fins de sensibilização sobre a importância


das águas e consequente participação nos processos de gestão, o Ministério do Meio
Ambiente da Comunidade possui o projeto “Conheça suas fontes”.72 O projeto se pro-
põe a inventariar e divulgar a rica herança de fontes e nascentes da região autónoma
por meio de um inventário-catálogo (localizado no site www.conocetusfuentes.com),
que permite a disponibilização de registros fotográficos documentais destas fontes
antes da intervenção por meio de obras de infraestrutura hídrica, deterioração ligada
ao desuso, a extração de águas subterrâneas ou causas naturais, como a seca ou a
mudança climática.
A proposta de envolver o cidadão na identificação das fontes propõe a criação
de uma espécie de consciência do valor deste patrimônio natural e a compreensão
por parte destes de que a “conservação é a melhor garantia de um bom estado das
águas subterrâneas que abastecem e ecossistemas associados, como as nascentes,
os rios andaluzes e a maioria das suas zonas húmidas”.73
Os resultados do projeto apontam que desde a sua criação, em 2007, mais de
10.000 fontes e nascentes foram inventariadas nas oito províncias devido à colaboração
de mais de 1.100 voluntários. O projeto também evidencia que um dos seus valores
essenciais é a acessibilidade, pois o material gerado a partir da participação do cidadão
pode ser acessado e baixado gratuitamente por todo aquele que quiser acompanhar
a situação desses recursos.
Outro programa proposto e em funcionamento na atualidade é o Andarrios. O
programa iniciou em 2007, com o apoio de 94 associações, entidades sociais e volun-
tários de toda a comunidade (num total de 558 inscritos), alcançando um total de 183
associações e 1053 voluntários em 2018. Para participar, os interessados preenchem
uma ficha de inscrição na qual indicam o trecho (de até 1 km) do rio próximo a sua
localidade no qual monitorarão a qualidade da água. O Programa, segundo o Informe
publicado em 2018, tem como objetivo principal “la promoción de la participación e
implicación activa de la sociedad en la evaluación y en la conservación y mejora de
los ecosistemas fluviales”.74 A proposta do projeto se volta à construção de uma nova
72
O projeto é promovido pelo Ministério do Ambiente e Iniciativa Ordenamento do Território e do Instituto
da Água da Universidade de Granada, Instituto Geológico e Mineiro da Espanha.
73
JUNTA DE ANDALUCÍA. Conoce tus fuentes. Disponível em: http://www.juntadeandalucia.es/me-
dioambiente/site/portalweb/menuitem.7e1cf46ddf59bb227a9ebe205510e1ca/vgnextoid=3283bef036e-
24210VgnVCM1000001325e50aRCRD&vgnextchannel=f412461af55f4310VgnVCM1000001325e50aR-
CRD. Acesso em: 24 jan. 2019.
74
JUNTA DE ANDALUCÍA. Programa Andarrios: informe 2018. Disponível em: http://www.juntadean-
dalucia.es/medioambiente/site/portalweb/menuitem.7e1cf46ddf59bb227a9ebe205510e1ca/vgnextoi-
d=836d16ef971c7610VgnVCM100000341de50aRCRD&vgnextchannel=657e8b80f6699310VgnVC-
M2000000624e50aRCRD. Acesso em: 24 jan. 2019.
252 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

cultura da água, na qual as pessoas possam alterar suas formas de pensar, valorizar
e utilizar os rios.
O programa propõe uma espécie de automonitoramento da qualidade das águas,
em que as instituições integrantes elegem um trecho do rio (de no máximo 01 km) onde
anualmente são coletadas amostras para se avaliar parâmetros físico-químicos, bioló-
gicos e hidromorfológicos, bem como o estudo das pressões e impactos que suportam
o trecho. A partir destas análises, a cada ano são produzidos Informes contendo os
resultados do Programa e as observações feitas pela população participante.
Outro resultado obtido a partir dos processos de participação ocorridos ao longo
do ano de 2018 foi o Regulamento do Ciclo Integral da Água de Uso Urbano, publicado
em 05 de novembro do mesmo ano. O documento se volta a tornar públicas as con-
clusões do processo do qual participaram vários grupos e instituições. Nele também
são expressas algumas preocupações em relação aos processos de participação. As
conclusões dos envolvidos indicaram que “existe escasa participación ciudadana en
la planificación estratégica”. Diante da constatação, lembram que existem diferentes
possibilidades que devem ser incluídas no regulamento. Citam, por exemplo, a consti-
tuição de grupo de cidadãos nos conselhos de administração das empresas e a criação
de comissões municipais de controle. Estes também vislumbram que o Observatório
da Água pode ser o órgão capaz de assegurar o cumprimento do regulamento.
As análises de cunho legal e documental demonstraram que, formalmente,
a comunidade autônoma da Andaluzia, atende as orientações legais, uma vez que
possui uma ampla legislação de águas e contempla vários mecanismos (programas e
processos) que autorizam a participação do público na gestão das águas. Mesmo que
não se tenha verificado empiricamente a aplicação dos principais projetos (Conheça
suas fontes e Andarrios), os Informes contendo os resultados também dão conta de
comprovar um aumento significativo na participação da população, que, ao longo dos
últimos anos, mais do que dobrou. Tais resultados ainda podem ser melhorados, em
especial se considerada a população da Comunidade, que, na atualidade, é de 8,37
milhões de habitantes.
O avanço nas propostas também se faz necessário diante das críticas trazi-
das ao texto por alguns autores locais. Assim, cabe ao governo local insistir em tais
programas e estimular a população a participar dos processos de forma efetiva, o
que pode ser motivado pela tomada de consciência por parte dos cidadãos da crítica
situação hidrográfica, ou ainda, num viés mais romântico, pelos anseios de concreti-
zação da cidadania.
Conforme defende Wolkmer, o controle Estatal e social da água deve ser recu-
perado como um direito plural e emancipatório, que conduza a uma ressignificação da
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 253

ideia de desenvolvimento, em que valores como a liberdade, a igualdade e a equidade


sirvam de orientação para o respeito aos direitos da natureza, “que nada mais são do
que a possibilidade da continuidade da vida em nosso planeta”.75
Por fim, compreende-se, ainda, que a efetividade e permanência das políticas
de participação existentes dependem da sua consolidação na condição de políticas de
Estado, e não de governo. Isto para que não se tornem reféns de mandatos políticos
que visam exclusivamente à promoção dos seus idealizadores, e não do bem comum.
Afinal, governos passam!

NOTAS FINAIS

O presente trabalho demonstra que não existe uma única solução para que os
processos de participação na gestão das águas tornem-se efetivos. Cada região, cada
país, deve buscar as respostas para governança que considerem as peculiaridades
locais, no caso da Andaluzia, em especial as extremas condições climáticas. Além
disso, faz-se necessário superar os modelos que até então imperaram no sentido top-
-down para implementar modelos nos quais a tomada de decisões, e não somente a
participação, ocorra de forma “bottom-up”.
A participação efetiva, ou ainda, como refere a Diretiva Quadro da Água, ativa e
real, não pode se resumir a uma participação representativa ou burocratizada, em que
as relações de poder não ocorrem entre iguais. A participação não pode estar a serviço
dos grupos organizados. É preciso superar as práticas viciadas que se disseminaram
a pretexto de atender os dispositivos legais.
O que se busca é um processo de constituição de um ideal participativo orien-
tado pela inclusão do maior número possível de interessados na determinação do
bem comum.
A construção de um projeto coletivo que permita a correta definição dos usos da
água só será alcançada com a participação efetiva dos diversos atores nos processos
de gestão das águas, em especial daqueles que diretamente dela dependem para sua
sobrevivência. Essa participação deve ser moldada por processos de emancipação e
empoderamento, uma vez que o modelo de representação burocratizado e institucio-
nalizado dá sinais de esgotamento.
Mas sabe-se que a participação emancipada só será alcançada com o fomento
do conhecimento e da informação, pois se pode afirmar que o acesso e compreensão
75
WOLKMER, Maria de Fátima S.; WOLKMER, Antônio Carlos. O desafio ético da água: de necessidade
básica a direito humano. In: WOLKMER; MELO, op. cit., p. 81.
254 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

desta correspondem a um inescapável elemento de emancipação social dos indivíduos.


Para concretização desse ideal, devem, num primeiro momento, ser combatidas outras
mazelas sociais que impossibilitam ao cidadão uma participação livre e não coagida,
como a pobreza extrema e a desigualdade social.

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PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: BREVES
CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO COMITÊ
DE BACIA DO ALTO TIETÊ1

POPULAR PARTICIPATION IN BRAZIL: BRIEF


CONSIDERATIONS ABOUT THE ALTO
TIETÊ BASIN COMMITTEE

SIMONE MARQUES DOS SANTOS NOGUEIRA2

SUMÁRIO: Participação popular: algumas reflexões introdutórias: Breve contextua-


lização; Em que situação o povo detém, de fato, o poder decisório? A participação
popular sempre vale a pena? - Participação popular no Brasil: Panorama geral;
A malograda tentativa de implantação da Política Nacional de Participação Social
(PNPS) e Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) - O Comitê de Bacia
Hidrográfica do Alto Tietê - Considerações finais - Referências.

RESUMO: A democracia representativa vem apresentando, ao longo dos anos,


fortes sintomas de abalo, reflexo da derrocada do Welfare State a partir dos anos 70
e da crescente crise mundial da representação política. Em seu tradicional modelo, a
democracia representativa foi deixando de trazer respostas suficientes para lidar com
os crescentes anseios e dilemas da sociedade, e assim, os Estados que se propuseram
a manter o regime democrático, passaram a prever, em suas legislações, mecanismos
de participação popular como um complemento a tal sistema. Ou seja, a democracia
passa a ser exercida, conjuntamente, por representantes livremente eleitos pelo povo

1
Data de recebimento do artigo: 17.09.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 20.10.2018 e 11.11.2018.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 05.12.2018.
2
Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Bacharel em Direito pela USP. Professora.
Advogada em São Paulo. E-mail: simonemsn41@gmail.com.
258 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

e, na medida do possível, diretamente pelos cidadãos e nos âmbitos legislativo, judi-


ciário e de formulação, gestão e execução de políticas públicas. No caso específico
das políticas públicas, que lugar ocupa a participação popular no sistema decisório da
gestão sociedade/Estado de maneira geral? Existem atores sociais excluídos de tais
práticas? O que foi a malograda Política Nacional de Participação Social?
PALAVRAS-CHAVE: participação popular; políticas públicas; democracia
representativa.
ABSTRACT: Representative democracy has, over the years, strong symptoms
of concussion, reflecting the collapse of the Welfare State from the seventies and the
growing global crisis of political representation. In its model, the traditional representa-
tive democracy didn’t bring sufficient responses to deal with the growing concerns and
dilemmas of society, and thus, the States that maintained the democratic rule, provide for,
in their laws, mechanisms for popular participation as a complement to such a system.
In other words, democracy shall be exercised jointly by representatives freely elected
by the people and, as much as possible, directly by the citizens and in the legislative,
judiciary and formulation, management and implementation of public policies. In the
specific case of public policies, which place occupies the popular participation in the
decision-making system of the society/state management? There are social agents
excluded from such practices? What was the unsuccessful national policy for social
participation?
KEYWORDS: popular participation; public policies; representative democracy.

PARTICIPAÇÃO POPULAR: ALGUMAS REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS

Breve contextualização

No âmbito internacional, ao reconhecer e legitimar o direito de todos à democra-


cia, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 o fez nos seguintes termos:3

Artigo 21º
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos
negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por
intermédio de representantes livremente escolhidos.
[...]

Tal artigo contempla, assim, tanto o direito de todos à democracia representativa:


“tomar parte [...] por intermédio de representantes livremente escolhidos”, quanto o
3
Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 259

direito de todos à democracia participativa: “tomar parte [...] diretamente”. Entendendo-


-se a democracia participativa como aquela na qual se pretende que existam efetivos
mecanismos de participação da sociedade civil sobre o poder público, não se reduzindo
o papel democrático apenas ao voto e eleição de representantes, é possível dizer,
grosso modo, que o discurso da participação popular na esfera pública insere-se na
discussão sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil.
Não é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha inaugurado
a democracia participativa, pois alguns de seus mecanismos já eram utilizados por
diferentes países. Ela a reconheceu formalmente e no âmbito internacional como um
direito de todos e um ideal a ser perseguido.
Embora a participação popular sempre tenha permeado, ainda que de maneira
tímida nas primeiras décadas,4 as práticas democráticas, é possível dizer que, a partir
dos anos 70, a democracia representativa entra em crise e a possibilidade de utilização
de mecanismos de participação vai tomando vulto e insere-se hoje no debate acerca
do próprio sentido de democracia, que, de acordo com Nobre (2007), orbita em torno
de duas arenas de disputa indissociavelmente imbricadas: uma delas que tem também
caráter supranacional, extrapola o âmbito das nações e diz respeito à disputa em torno
de macroestruturas do próprio sistema democrático, demandando reflexão sobre a
natureza dos regimes democráticos e o papel da participação popular nesse contexto
(análise conceitual); e a criação de novos espaços de participação e deliberação que
desafiam essas mesmas macroestruturas do regime democrático e que, assim, conflita
com a primeira arena (análise concreta).
Ou seja, a tarefa não é simples e esse embate é visível quando, por exemplo,
se analisam alguns argumentos utilizados para aniquilar o Decreto nº 8.243, de 23 de
maio de 2014, que procurava institucionalizar uma Política Nacional de Participação
Social e um Sistema Nacional de Participação Social. Expressões como “ameaça à
democracia representativa” são frequentes nos discursos dos opositores.
Ressalta-se que, no cenário político mundial, a representação ainda assume o
papel central no jogo democrático em quase todas as democracias, o mesmo ocorrendo
no Brasil. No entanto, o instituto da democracia participativa vem ganhando cada vez
mais espaço, o que contribui sobremaneira para o aperfeiçoamento do Estado que
pretenda verdadeiramente firmar-se como democrático.
Finalmente, lembrando que a participação popular está presente na função
judiciária por meio do tribunal do júri, na legitimação para propor ação popular e ação
civil pública por meio de associações civis ou sindicatos; na função legislativa por meio
4
No capítulo seguinte são elencadas, a título de resgate histórico, algumas práticas de participação
popular no Brasil a partir da década.
260 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

do plebiscito, referendo e iniciativa popular;5 e na formulação e gestão de políticas


públicas, será esta última o objeto das considerações tecidas neste artigo.

Em que situação o povo detém, de fato, o poder decisório? A participação


popular sempre vale a pena?

De acordo com Arnstein (1969), existem diferentes níveis de participação popular


entre a não participação até o poder cidadão, e estes níveis formaria uma escada cujo
primeiro degrau seria a “manipulação” e o mais alto seria o “controle cidadão”:
Figura 1 - Os oito degraus na escada da participação popular

Fonte: Arnstein (1969).


5
Talvez, dos três âmbitos, seja na função legislativa que a participação popular ainda tenha a aplicação
mais restrita, mesmo após a publicação da Lei 9.709, de 18.11.1998. Isto se dá por uma série de motivos
que extrapolam o objeto deste artigo. Vide AUAD, D. et al. Mecanismos de participação popular no
Brasil: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 3, jan./
jun. 2004. p. 315 e ss.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 261

Nos dois primeiros degraus estariam as categorias de “não participação”, forma


ilusória de participação caracterizada pela manipulação e pela terapia. No primeiro
caso, são instituídos espaços aparentemente participativos, mas que, na verdade,
são apenas fachada e os cidadãos que deles participam são doutrinados a apoiarem
as decisões tomadas pelos agentes do poder público. Já na terapia, sob o pretexto
de envolverem os cidadãos nos processos decisórios, os agentes públicos conduzem
trabalhos “educativos” em vez de criarem espaços para discussão sobre problemas
estruturais e demandas perante o poder público (cite-se como exemplo as campanhas
de natalidade).
Nos três degraus seguintes encontra-se a categoria denominada de “tokenismo”6
pela autora, na qual estão a informação, a consulta e o apaziguamento. Seria, em nível
crescente rumo ao degrau da participação cidadã, instaurar um fluxo de via única de
informação sem espaço para feedback ou negociação; coletar opiniões da população,
mas sem levar suas ideias em consideração como pode ocorrer, por exemplo, nas
audiências públicas ou, ainda, colocar um representante da população em órgãos de-
cisórios sem que haja possibilidade de articulação, seja porque é minoria, seja porque
não haveria uma comunidade organizada ou apoio técnico.
Finalmente, no patamar mais alto, estão os três últimos degraus: a parceria, que
seria o poder distribuído entre cidadãos e agentes públicos com decisões negociadas
em conjunto; o poder delegado, no qual os cidadãos possuem poder majoritário e,
finalmente, o controle cidadão, no qual a decisão é tomada apenas por cidadãos que
passam, assim, a gerir algum programa de política pública ou instituição.
Mais adiante, ao se tratar do estudo de caso do comitê da bacia hidrográfica
do Alto Tietê, localizada no Estado de São Paulo, esta classificação será retomada e
aplicada a fim de se verificar em qual dos degraus tal forma de participação popular
está inserida.
Ao analisar a escada proposta por Arnstein, surge ainda uma questão: a partici-
pação popular sempre vale a pena? Existiriam casos nos quais a participação popular,
além de não cumprir seu papel, seria inclusive danosa? Irvin e Stanbury (2004) trazem
alguns pontos para reflexão a respeito do tema.
No quadro abaixo, os autores apontam como desvantagens da participação
popular para os cidadãos participantes: o tempo consumido sem a devida remuneração;
sem sentido se o poder público ignora decisões tomadas, o que gera insatisfação e
6
Termo derivado do inglês “tokenism” (de token = símbolo) e que consiste na prática de fazer pequenas
concessões a um grupo minoritário para evitar eventuais acusações de preconceito ou discriminação.
262 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

revolta; piores decisões políticas se fortemente influenciado por grupos com interesses
opostos aos dos demais cidadãos. Para o governo, por sua vez, as desvantagens
seriam: também o tempo consumido; custos implicados, inclusive, na retirada de orça-
mento para outros projetos relevantes; a iniciativa de participação pode criar hostilidade
contra o governo; perda do controle decisório; possibilidade de serem tomadas más
decisões; falta de interesse por parte dos próprios cidadãos em participar.

Figura 2 - Desvantagens da participação popular na criação de políticas públicas

Table 2 Disadvantages of Citizen Participation in Government Decision Making

Disadvantages to Disadvantages to
citizen participants Government

Time consuming (even dull) Time consuming


Decision Pointless if decision is ignored Costly
process May backfire, creating more
hostility toward government

Worse policy decision if heavily influ- Loss of decision-making control


enced by opposing interest groups Possibility of bad decision that
Outcomes is politically impossible to ignore
Less budget for implementation
of actual projects

Fonte: Irvin; Stansbury (2004).

É possível concluir, assim, que mesmo sendo geralmente benéfica, a partici-


pação popular pode ser distorcida e acabar por servir, apenas, para a legitimação de
interesses que, na realidade, não são compatíveis com os reais interesses da sociedade.
Deve haver, portanto, um contínuo processo de análise crítica e busca pelo aperfei-
çoamento dos mecanismos de participação popular, usando-se estratégias para criar
condições ideais para essa participação, inclusive por meio da conscientização dos
agentes públicos e dos próprios cidadãos a respeito da importância de tais mecanismos
e da escolha da melhor ocasião e alternativa de participação.

PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL

Panorama geral

Levando-se em consideração um conceito amplo de participação popular, pode-


-se concluir que tais práticas não são recentes na história mundial, existindo desde a
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 263

Antiguidade. Na história brasileira também já existem há algum tempo, remontando à


colonização portuguesa e às práticas da esquerda da Igreja e da esquerda em geral
(IPEA, 2011). Nos anos 30 formou-se no Brasil uma relação entre Estado e sociedade
civil baseada num padrão corporativo, clientelista e tutelar de relação com os movi-
mentos sociais existentes na época, tendo como pilar a garantia de direitos trabalhistas
e resultando em usar políticas sociais como instrumentos de controle e segregação
da população.7
Durante a década de 50, impulsionados pelo reconhecimento mundial trazido
pelo Artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, muitos países passaram
a adotar práticas de participação popular na formulação e gestão de políticas públicas,
ainda que de forma restrita e distante do ideal. No Brasil, foi criado o Conselho Nacional
de Saúde, o primeiro a ter representantes da sociedade civil, ainda que, durante longos
períodos, tais representantes tenham sido escolhidos pelo governo (IPEA, 2011).
Entre os anos 50 e 60, surgiram também as Ligas Camponesas contra a vio-
lência no campo, as reivindicações por reformas de base e a ampliação do movimento
sindical com a criação de uniões sindicais, como a Central Geral dos Trabalhadores
(CGT) em 1962 (ALBUQUERQUE, 2006).
Na década de 80, aumenta e se intensifica a mobilização de diferentes setores
da sociedade pela defesa de seus interesses. Surgem comitês de fábrica, associações
de bairro, comunidades eclesiais de base, as pastorais e, principalmente, uma crescente
organização da luta pela reforma urbana e direito de moradia.8 É neste clima de abertura,
ainda, que aparece o movimento pelas eleições diretas e a Assembleia Constituinte.
Como os significados que essas práticas de participação popular adquiriram ao
longo do tempo são bastante diferentes e estão relacionados às questões reivindicadas
pelos grupos mobilizados e aos contextos nos quais essa participação esteve inserida,
o recorte temporal deste artigo será focado apenas no tratamento dado à questão
pela Constituição Federal de 1988, uma vez que a participação popular na elaboração
nela ganha institucionalidade, já que a Carta Magna prevê a criação de instâncias

7
“Controle, pois, por um lado, elas deveriam mediar e regular os conflitos sociais entendidos como
desvios da ordem. Segregação, porque, por outro lado, apenas o trabalho urbano das indústrias e o
funcionalismo público eram profissões regulamentadas pelo governo e só estes trabalhadores eram
considerados cidadãos, enquanto todos os demais estavam excluídos do sistema de proteção social”
(IPEA, 2011).
8
Ver: http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=85-23-solo-urbano-
e-acao-pastoral&Itemid=251. Acesso em: 28 jun. 2018.
264 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

específicas com este fim, inclusive obrigatórias em alguns setores, como saúde9 e
proteção à criança e adolescente.10
O artigo 1º da Constituição Federal dispõe, em seu parágrafo único, que “todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou dire-
tamente, nos termos desta Constituição”. Tal participação popular, que, nos moldes
da Declaração dos Direitos do Homem, é um misto de democracia representativa
conjugada a instrumentos de participação direta, está fundada tanto nas garantias de
eleições periódicas, do sufrágio universal e voto direto, secreto e igualitário quanto na
consagração e observância dos direitos e garantias fundamentais.
Desde então, conforme dados do IPEA (2011), mais de cinco milhões de pessoas
ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as políticas públicas no Brasil, seja no
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); no Programa Nacional de Habitação;
no plano de expansão das universidades públicas; na criação do Sistema Único de
Assistência Social (Suas), entre outros projetos, programas e iniciativas.
Durante esse período, que teve início nos anos 90, foram criados ou ampliados
diversos canais de diálogo entre Estado e sociedade, tais como conferências, conselhos,
ouvidorias, mesas de diálogo, que, de acordo com alguns, já configuraria a semente
de um sistema nacional de democracia participativa e que, em 2014, foi objeto de uma
norma que tentava institucionalizá-lo, mas que, no entanto, não teve êxito.

A malograda tentativa de implantação da Política Nacional de Participação


Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS)

Com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias demo-


cráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a
sociedade civil, foi publicado o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que, sob o
pretexto de que não se criariam novos conselhos, nem se extinguiriam os já existen-
tes, mas apenas se promoveria a articulação entre os existentes, assumiu a forma de
decreto presidencial.

9
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
[...]
III - participação da comunidade.
10
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do
orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base
nas seguintes diretrizes:
[...]
II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas
e no controle das ações em todos os níveis.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 265

No entanto, regidos a PNPS e o SNPS por diretrizes11 e objetivos12 específicos,


tal decreto definiu parâmetros para a eventual criação de novos conselhos, além de
determinar que órgãos da administração pública federal teriam de considerar essas ins-
tâncias e ouvi-las na hora de formular, avaliar e monitorar suas políticas (arts. 4º e 5º).13
O decreto sofreu pesadas críticas por parte da Câmara dos Deputados e alguns
especialistas, e foi suspenso. Entre outros argumentos, para os parlamentares, a pos-
sibilidade participação direta dos cidadãos representaria uma ameaça à democracia
representativa adotada no país. Para eles também foram criados novos procedimentos
e, assim, haveria necessidade de a PNPS ser instituída por meio de lei aprovada nas
casas legislativas (NASCIMENTO, 2015).

11
Art. 3º São diretrizes gerais da PNPS:
I - reconhecimento da participação social como direito do cidadão e expressão de sua autonomia;
II - complementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia
representativa, participativa e direta;
III - solidariedade, cooperação e respeito à diversidade de etnia, raça, cultura, geração, origem, sexo,
orientação sexual, religião e condição social, econômica ou de deficiência, para a construção de valores
de cidadania e de inclusão social;
IV - direito à informação, à transparência e ao controle social nas ações públicas, com uso de linguagem
simples e objetiva, consideradas as características e o idioma da população a que se dirige;
V - valorização da educação para a cidadania ativa;
VI - autonomia, livre funcionamento e independência das organizações da sociedade civil; e
VII - ampliação dos mecanismos de controle social.
12
Art. 4º São objetivos da PNPS, entre outros:
I - consolidar a participação social como método de governo;
II - promover a articulação das instâncias e dos mecanismos de participação social;
III - aprimorar a relação do governo federal com a sociedade civil, respeitando a autonomia das partes;
IV - promover e consolidar a adoção de mecanismos de participação social nas políticas e programas
de governo federal;
V - desenvolver mecanismos de participação social nas etapas do ciclo de planejamento e orçamento;
VI - incentivar o uso e o desenvolvimento de metodologias que incorporem múltiplas formas de ex-
pressão e linguagens de participação social, por meio da internet, com a adoção de tecnologias livres
de comunicação e informação, especialmente softwares e aplicações, tais como códigos-fonte livres e
auditáveis, ou os disponíveis no Portal do Software Público Brasileiro;
VII - desenvolver mecanismos de participação social acessíveis aos grupos sociais historicamente
excluídos e aos vulneráveis;
VIII - incentivar e promover ações e programas de apoio institucional, formação e qualificação em
participação social para agentes públicos e sociedade civil; e
IX - incentivar a participação social nos entes federados.
13
Art. 5º Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as
especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos
neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e
políticas públicas.
266 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Outro ponto que causou incômodo e recebeu críticas foi a criação da Mesa de
Monitoramento de Demandas Sociais, instância mediadora entre Estado e sociedade
civil que poderia facilmente se tornar um mecanismo de controle e aparelhamento do
Estado sobre os cidadãos. Plausível ou não, fato é que o reconhecimento explícito dos
movimentos sociais como representantes da sociedade civil14 causou desconfiança.

O COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO ALTO TIETÊ

Os mecanismos de participação direta da população para formulação, gestão


e execução de políticas públicas ambientais dá-se por intermédio da atuação de re-
presentantes da sociedade civil em órgãos colegiados responsáveis pela formulação
de diretrizes e pelo acompanhamento da execução de políticas públicas e também
por ocasião da discussão de estudos de impacto ambiental em audiências públicas
(art. 11, § 2º, da Resolução 001/86 do Conama e art. 192, § 2º, da Constituição do
Estado de São Paulo).
Sem afastar os demais mecanismos de participação popular,15 pode-se verificar
que dois deles são preponderantes na esfera ambiental: os conselhos e as audiências
públicas. No caso específico dos conselhos, o Estado de São Paulo já tem uma con-
siderável experiência de participação popular nos Comitês de Bacias Hidrográficas,
criados em 1991 pela Lei 7663.
Por tais motivos, elegeu-se o Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê para
realização de estudo de caso. A partir do levantamento e análise das atas das reu-
niões plenárias realizadas entre 2014-2016, período da crise hídrica em São Paulo,
procurou-se verificar:
1 - Qual é a composição do Plenário daquele Comitê? Quem são os represen-
tantes da sociedade civil? Como decidem? Existe algum grupo excluído?
2 - Em que posição da escada de Arnstein estaria a experiência da participação
popular no Comitê de Bacia estudado?
3 - Considerando as respostas anteriores, seria possível dizer que tal instancia
vale a pena? Seria possível alguma melhoria?
Com base na classificação feita por Cury (2005), foi possível localizar nas atas
analisadas, assuntos das seguintes naturezas:
14
Art. 2º Para os fins deste Decreto, considera-se:
I - sociedade civil - o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucio-
nalizados, suas redes e suas organizações.
15
Comissão de políticas públicas; conferência nacional; ouvidoria pública federal; mesa de diálogo; fórum
interconselhos; consulta pública e ambiente virtual de participação social.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 267

1 - Administrativos: aspectos de autorregulamentação administrativa do comitê


- ex.: criação da CT-MH (Câmara Técnica de Monitoramento Hidrológico).
2 - Financeiros: discussão de critério para aplicação de recursos financeiros -
ex.: indicação de empreendimentos ao FEHIDRO.
3 - Normativos: regulamentação regional de políticas de recursos hídricos - ex.:
GT Leis de Mananciais as Leis de APRM e Lei da Guarapiranga.
4 - Planos/estudos e projetos: aprovação e elaboração de planos e projetos
para a bacia - ex.: aprovações de EIA/RIMA diversas.
5 - Eventos: realização de congressos técnicos e palestras.
Nos termos do Estatuto daquele Comitê de Bacia, aprovado em 2015, o Plenário
é composto por 18 representantes do poder público estadual, 18 representantes do
poder público municipal e 18 representantes da sociedade civil. Seu Conselho Delibe-
rativo é formado por 06 representantes do poder público estadual, 06 do poder público
municipal e 06 da sociedade civil.
No Plenário, estavam presentes, representando a sociedade civil: ACISE - As-
sociação Comercial de Embu das Artes; SASP - Sindicato dos Arquitetos do Estado
de São Paulo; UNIAGUA - Universidade da Água; UMC - Universidade de Mogi das
Cruzes; BIOBRAS. Verifica-se, assim, que o segmento sociedade civil de tal Comitê
estava fortemente representado pela indústria e comércio (FIESP, CIESP, SENAC,
FECOMERCIO, ACISE) e representantes de classe (SASP, APU, SECOVI, ABEAA)
e ONGs, característica esta provocada pelo próprio Estatuto do Comitê, que somente
reconhece entidades específicas.16

16
Artigo 6º A representação no CBH-AT será paritária entre os segmentos do Estado, Município e Sociedade
Civil, e dar-se-á por meio das pessoas jurídicas dos entes, órgãos e entidades abaixo relacionados,
que terão direito a voz e voto:
[...].
III - 18 (dezoito) membros da Sociedade Civil e respectivos suplentes, eleitos dentre seus pares
constantes de cadastro específico do CBH-AT e indicados pelas respectivas entidades das seguintes
categorias, em conformidade com as alíneas “a” a “c” do inciso III, artigo 24 da Lei 7.663, de 1991.
a) 3 (três) de universidades, instituições de ensino superior e entidades de pesquisa e desenvolvimento
tecnológico;
b) 7 (sete) de usuários das águas, representados por entidades associativas dentre os seguintes setores:
(i) abastecimento público; (ii) industrial; (iii) agroindustrial; (iv) agrícola (irrigação e uso agropecuário);
(v) geração de energia; (vi) comercial; e (vii) serviços;
c) 3 (três) de associações técnicas, entidades de classe e sindicatos com atuação em recursos hídricos,
saneamento e meio ambiente;
d) 2 (dois) de associações ou sindicatos representativos dos agentes promotores da construção civil
e do desenvolvimento urbano; e
e) 3 (três) de associações não governamentais de defesa do meio ambiente, comunitárias e dos
direitos difusos.
268 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações feitas nos tópicos anteriores e a análise realizada


em 25 atas das reuniões plenárias do Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, foi
possível concluir que o modelo de participação adotado naquela instância de participa-
ção popular assemelha-se, na escada de Arnstein, ao do apaziguamento (sociedade
civil é minoria e poucos participam). Isso porque o Estatuto do Comitê estabeleceu a
participação popular em 1/3 dos representantes do Plenário contra 2/3 composto pelo
poder público, em afronta, inclusive, ao disposto na Lei Federal nº 9.433/97, que limita
a participação do poder público a 50%. O Ministério Público instaurou inquérito civil
buscando tornar a participação igualitária. E mesmo dentro dessa minoria, a participação
não era unânime, destacando-se um ou outro interlocutor, como, por exemplo, a SASP.
O debate sobre questões técnicas é negligenciado, ficando dependente do auxílio das
Câmaras Técnicas que nem sempre se reuniam a contento.
Pode-se dizer, assim, que a falta de conhecimento técnico sobre as matérias
tratadas prejudicava o pleno exercício da participação de parte dos representantes
da sociedade civil. A participação com informação sempre foi mais efetiva, no sentido
de fazer a diferença nas deliberações. Além disso, a criação de um Comitê de Crise
(Decreto nº 61.111, de 03 de fevereiro de 2015) em paralelo tornou o Comitê de Bacia,
no contexto da crise hídrica, uma instância meramente informativa do processo, que
já não tinha capacidade de influenciar nas decisões.
A participação direta de cidadãos no Comitê é vedada pelo Estatuto, nos termos
do artigo 6º, que prestigia o modelo representativo. Mas, ainda assim, não há qualquer
menção no Estatuto a representantes provenientes de movimentos sociais ou coletivos,
sendo possível dizer que, por tal razão, foram excluídos dessa instância supostamente
democrática. Apenas representantes de setores específicos estão autorizados a fazer
parte do Comitê.
Ademais, a grande maioria da população desconhece a atuação e até mesmo a
existência dos Comitês de Bacia. Falta informação e estímulo à participação. A presença
de líderes comunitários na composição do Comitê poderia ajudar? Talvez ao levar à
população conhecimento e informações importantes para o enfrentamento da crise
hídrica? Os resquícios do elitismo racional que prega que as decisões devem ficar a
cargo de especialistas da área, e que transparecem do próprio texto do Estatuto não
poderiam ser conjugados a um pluralismo que aceitasse outros saberes como uma
forma de enriquecimento da democracia?
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 269

Diante de tais considerações, resta ponderar se essa forma de participação


popular vale a pena. E a resposta é sim. O espaço democrático está constituído e
consolidado e a questão da gestão de recursos hídricos é de fundamental importância,
sendo o acesso à agua um direito humano. É nesta arena que serão debatidas ques-
tões relacionadas aos recursos hídricos da bacia, em que será possível promover a
articulação da atuação das entidades que trabalham com este tema, ou cidadãos por
ele afetados; cobrança pelo uso da água; aprovação e acompanhamento da execução
do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, entre outros.
A matéria tratada é de alta complexidade, tanto em relação às questões técnicas
(hidrologia, geologia, ecologia) quanto em relação à necessidade de convergência de
interesses por vezes antagônicos de diferentes setores econômicos (indústrias, agro-
negócios, geração de energia, saneamento, etc.) com interesses sociais e recortes
político-administrativos, envolvendo os entes federados (União, Estado e Município).
E, justamente por conta dessa complexidade, o pluralismo deverá ser adotado con-
gregando saberes técnicos, sociais, econômicos e políticos.
O que existe, na verdade, é a necessidade de constante evolução e aprimora-
mento desse mecanismo de participação social.

REFERÊNCIAS

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de construção da democracia brasileira. São Paulo: Instituto Pólis, 2006. 124 p.

ARNSTEIN, S. R. A ladder of citizen participation. Journal of American Planning Association,


v. 35, n. 4, p. 216-224, Jul. 1969.

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BARTON, B. Underlying concepts and theoretical issues in public participation in resources


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CURY, J. F. : a abertura de uma oportunidade para o


desenvolvimento sustentável do Alto Paranapanema (1994-2004). 2005. 350 f. Tese (Doutorado)
- Curso de Estruturas Ambientais Urbanas, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2005.
270 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

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Public Administration Review, v. 64, n. 1, jan./feb. 2004.

NASCIMENTO RIBAS, João André et al. A Política Nacional de Participação Social: aponta-
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SER_Social/article/view/14811. Acesso em: 01 maio 2018.

NOBRE, M. Participação e deliberação na teoria democrática: uma introdução. In: Participação


e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São
Paulo: Editora 34, 2004. 367 p. p. 21-41.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO1

BRAZILIAN BUFFER ZONES LEGAL REGIME

TALDEN FARIAS2

PEDRO ATAÍDE3

SUMÁRIO: Introdução - 1. A zona de amortecimento no contexto das áreas protegidas


- 2. Conceito jurídico e objetivos da zona de amortecimento - 3. Instituição da zona
de amortecimento - 4. Regulamentação da zona de amortecimento - 5. Autorização
e ciência do órgão responsável pela administração da Unidade de Conservação
- 6. Zonas de amortecimento em áreas urbanas consolidadas - Considerações
finais - Referências.

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o regime jurídico das zonas de


amortecimento, que constitui a área do entorno de certas Unidades de Conservação.
Trata-se de pesquisa bibliográfica e documental que pretende estudar o conceito, o
objetivo, a instituição e a regulamentação do instituto. Essas zonas impõem restrições
à ocupação da área circundante para evitar ou diminuir o efeito de borda (abiótico,
biótico direto e indireto), consistente na interferência negativa das atividades externas.
Embora não façam parte da Unidade, possui função instrumental e acessória, tendo
importante função para a proteção e consolidação desta.
PALAVRAS-CHAVE: zona de amortecimento; unidades de conservação; efeito
de borda; áreas urbanas consolidadas.
ABSTRACT: This work objective is to analyze the Brazilian buffer zones legal re-
gime, which constitutes areas surround certain Conservation Units. It is a bibliographical
1
Data de recebimento do artigo: 01.03.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 11.03.2019 e 19.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 22.03.2019.
2
Advogado. Professor da UFPB. Doutor em Direito pela UERJ. Doutor em Recursos Naturais pela UFCG.
Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. E-mail: taldenfarias@gmail.com.
3
Advogado. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB.
272 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

and documentary research that intends to study the concept, the objective, the institution
and the institute general regulation in Brazil. These zones impose restrictions on the
surrounding area occupation to avoid or diminish the edge effect (abiotic, direct and
indirect biotic one), which is the external activities negative interference. Although not
part of the Unit, it has an instrumental and ancillary role, having an important function
for its effective protection and consolidation.
KEYWORDS: buffer zones; protected areas; conservation units; edge effect;
urban areas consolidated.

INTRODUÇÃO

É no quadro de escassez dos recursos naturais e dos desastres ecológicos


que o debate sobre as áreas protegidas recebe especial importância. No Brasil, há o
dever fundamental de o Poder Público definir os Espaços Territoriais Ecologicamente
Protegidos - ETEPs e seus componentes relevantes, que deverão sofrer limitações
no intuito de promover o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o que
guarda fundamento no inciso III do § 1º do art. 225 da Constituição da República. Dentre
tais espaços, é possível mencionar as áreas de preservação permanente, as áreas de
reserva legal, os corredores ecológicos, os jardins botânicos, os sítios arqueológicos, as
Unidades de Conservação - UCs e as zonas de amortecimento destas, dentre outros.
A criação de UCs constitui provavelmente o mais importante mecanismo de
proteção da biodiversidade, da paisagem e dos recursos naturais, pois a área definida
pelo Poder Público recebe diversas ações/proibições no intuito de resguardar o meio
ambiente, uma vez que o lugar em questão é objeto de uma proteção especial. No
entanto, para garantir a integridade dessas áreas, muitas vezes se faz necessário es-
tabelecer regramentos à ocupação do entorno, posto que atividades externas podem
gerar impactos ambientais negativos. Daí a relevância da zona de amortecimento como
instrumento de amenização e disciplinamento das interferências exteriores, tendo em
vista o efeito de borda, que é o fenômeno por meio do qual a circunvizinhança afeta
de forma negativa o interior da unidade.
O objetivo do presente trabalho é analisar o regime jurídico das zonas de
amortecimento, que constituem a área do entorno de determinadas UCs em que são
estabelecidas restrições ao exercício das atividades humanas. Esse é um mecanismo
extremamente importante para a proteção dos bens ambientais envolvidos e, por
consequência, para a própria consolidação dessa modalidade de ETEPs. A despeito
disso, é preciso destacar que o número de estudos sobre o assunto é insuficiente,
notadamente na área jurídica.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 273

Sendo assim, pretende-se sistematizar o estudo da zona de amortecimento,


destacando os aspectos mais relevantes do instituto, como a sua contextualização no
âmbito das áreas protegidas, o seu conceito, os seus objetivos e a sua instituição e
regulamentação. Abordar-se-á também a autorização e a ciência do órgão responsá-
vel pela administração da UC em questão, bem como a problemática da criação de
zonas de amortecimento em áreas urbanas consolidadas. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica e documental que pretende chamar a atenção para a necessidade de um
aprofundamento maior da discussão a respeito do assunto.

1. A ZONA DE AMORTECIMENTO NO CONTEXTO DAS ÁREAS PROTEGIDAS

Dentre os deveres estatais impostos pela Constituição Federal de 1988 está o


de definir e implementar os ETEPs. Para assegurar o direito ao meio ambiente ecolo-
gicamente equilibrado, compete ao Poder Público estabelecer, dentre outras coisas,
“em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através
de lei, vedada utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem
sua proteção” (art. 225, § 1º, III, do texto constitucional).
Nessa senda, todos os entes federados devem definir ETEPs, com o intuito
de conservar a biodiversidade, os recursos naturais, a paisagem, dentre outros bens
jurídicos ambientais. No entanto, a redação do dispositivo supramencionado não es-
tabeleceu modalidades de áreas protegidas, daí a larga margem de discricionariedade
do Poder Público para defini-las.
É possível conceituar as áreas protegidas “como aqueles espaços, públicos
ou privados, criados pelo Poder Público e que conferem proteção especial ao meio
ambiente, tomado este termo em sua acepção mais ampla” (PEREIRA; SCARDUA,
2008, p. 95). Cuida-se do local em que se estabelece restrição à propriedade com o
escopo de proteger o meio ambiente, no sentido lato (abrangendo, inclusive, o meio
ambiente artificial, cultural e do trabalho). Dessa forma, esse gênero comporta várias
espécies como áreas de preservação permanente, áreas de reserva legal, servidões
florestais, corredores ecológicos, os jardins botânicos, sítios arqueológicos (meio
ambiente cultural), UCs, zonas de amortecimento de UCs etc.
Um ETEP será considerado UC quando ato criador assim o declare expres-
samente (SILVA, 2009, p. 233). Conforme aponta José Eduardo Ramos Rodrigues
(2005, p. 23), durante muito tempo foi difícil conceituar “Unidade de Conservação”
no direito brasileiro. A questão só ficou parcialmente pacificada com o advento da Lei
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n. 9.985/2000 (Lei do Sistema Nacional de UCs da Natureza), a qual trouxe a seguinte


definição:

Art. 2º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:


I - unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos
ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características
naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público,
com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime
especial de administração, ao qual se aplicam garantias ade-
quadas de proteção;

Verifica-se que UC é o espaço territorial que o Poder Público resolve proteger


em decorrência de características ambientais relevantes, como biodiversidade, beleza
cênica, corpos hídricos etc. Da mencionada definição legal, Antônio Herman Benjamin
(2001, p. 291) enxerga cinco pressupostos imprescindíveis à configuração jurídico-
-ecológica das UCs: (i) relevância natural, (ii) oficialismo, (iii) delimitação territorial,
(iv) objetivo conservacionista e (v) regime especial de proteção e administração.
Para que o Poder Público torne um espaço territorial uma UC, é necessário
que a área seja considerada de (i) relevância natural, do contrário, não faria sentido
estabelecer o regime jurídico da Lei n. 9.985/2000 em locais cujo meio ambiente natural
não possua importância especial. De fato, há que existir um diferencial em termos de
fauna, flora, paisagem, recursos hídricos etc.
Além do pressuposto da relevância natural, (ii) a área deve ser instituída pelo
Estado ( ), ou por este em conjunto com o particular. A criação de unidade
unicamente pelo Estado ocorre, por exemplo, com a edição de Decreto por parte do
chefe do Executivo; já a instituição por vontade mútua do Estado e do particular é vis-
lumbrada no termo de compromisso para a criação de Reserva Particular do Patrimônio
Natural, nos termos do art. 21, § 1º, da Lei n. 9.985/2000.
De acordo com o art. 22 do supramencionado diploma legal, as UCs são cria-
das mediante ato do Poder Público, não dispondo acerca da natureza jurídica do ato
instituidor. Segundo Paulo de Bessa Antunes (2011, p. 47-48), embora o diploma não
preveja, há modalidade específica de ato instituidor:

Em meu ponto de vista, o “ato do Poder Público” apto a criar


uma unidade de conservação é o decreto expedido pelo Chefe
do Poder Executivo, seja a UC instituída pela União, Estado ou
Municípios. Há quem sustente que na expressão “ato do Poder
Público” não está contemplada uma exclusividade para o Poder
Executivo, sendo, portanto, possível que, em tese, o Legislativo
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 275

institua Unidade de Conservação, haja vista que integram [sic]


o Poder Público e praticam [sic] atos. Na verdade, algumas
UCs têm sido criadas por lei, como bem observado por Milaré:
“as UCs têm sido criadas ora por lei, ora por decreto”. Veja-se
o exemplo do Monumento Natural das Ilhas Cagarras. Todavia,
ainda que o artigo 22 da Lei do SNUC limite-se a estabelecer
que as “UCs são criadas por ato do Poder Público”, não espe-
cificando a natureza do ato, tem sido reconhecido que, embora
existam UCs criadas por outros meios, o juridicamente adequado
é o decreto, como afirmado acima. A criação, por lei, das UCs,
ainda que, de certa forma, expresse uma manifestação soberana
do Congresso, na prática, impede a adequada aplicação da
legislação específica, a qual determina que seja feita consulta
para que os interessados se manifestarem efetivamente sobre a
proposta de criação da Unidade, impossibilitando a ampla defesa
no que diz respeito aos patrimônios individuais dos cidadãos,
ampliando restrições em afronta ao princípio da separação dos
Poderes, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Conforme assevera o autor, a criação de UCs por meio do Poder Legislativo


dificulta o procedimento previsto na Lei do SNUC (art. 22, § 2º), a exemplo dos estudos
técnicos e da consulta pública, para analisar a dimensão e os limites mais convenientes
à unidade.
Por sua vez, o ato de criação deverá (iii) delimitar o espaço territorial da UC. Em
outras palavras, o espaço protegido não poderá ser criado de modo genérico, como
acontece, por exemplo, com as áreas de preservação permanente ope legis. As zonas
de amortecimento, segundo o art. 25, § 1º, da Lei n. 9.985/2000, poderão ser definidas
ou no ato de criação da UC, ou em momento posterior.
Ademais, as UCs, em consonância com o próprio nome, devem ser concebidas
com (iv) , para proteger a função ecológica da fauna e da flora
(BENJAMIN, 2001, p. 296). Não é ocioso destacar que a criação de UCs “constitui a
política ambiental mais efetiva a médio e longo prazo no que tange à conservação dos
recursos naturais” (FARIAS; ATAÍDE, 2015, p. 347-348).
Convém ressaltar que o conservacionismo aludido por Antônio Herman Benjamin
não é o mesmo do movimento ambientalista estadunidense. Esse último concebeu duas
correntes de pensamento: o preservacionismo e o conservacionismo. A primeira busca
proteger o meio ambiente de quaisquer usos, exceto o recreativo ou educacional, já a
segunda aceita a utilização dos recursos naturais, desde que seja realizada de modo
sustentável (MCCORMICK, 1992, p. 30).
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É que o Sistema Nacional de UCs brasileiro encampa categorias em que


predomina tanto o preservacionismo (unidades de proteção integral) quanto o conser-
vacionismo (unidades de uso sustentável). Destarte, o conservacionismo enquanto
pressuposto à configuração jurídico-ecológica das UCs diz respeito, lato sensu, aos
fins protetivos da diversidade biológica, dos ecossistemas, das espécies ameaçadas
de extinção, enfim, de todos os objetivos expostos no art. 4º da Lei n. 9.985/2000.
Por fim, quanto ao (v) regime especial de proteção e administração, assevera
Antônio Herman Benjamin (2001, p. 296):
[...] as UCs, na sua caracterização, reclamam um regime pro-
tetório especial, que se manifesta em dois planos. Primeiro, no
terreno post factum, com uma tipologia penal e administrativa
particular. Segundo, com a vinculação simultânea a um regime
e a um regime de fruição.

A respeito do plano post factum, as UCs constituem o bem jurídico protegido de


diversos tipos penais da Lei n. 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais).4 Além disso, o
Decreto n. 6.514/2008 traz sanções administrativas5 para quem causar prejuízos às
4
Eis alguns dispositivos da citada lei em que as UCs constituem o bem jurídico tutelado:
Art. 15. São circunstâncias que agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: [...]
II - ter o agente cometido a infração: [...]
e) atingindo áreas de UCs ou áreas sujeitas, por ato do Poder Público, a regime especial de uso [...].
Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota mi-
gratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo
com a obtida:
Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. [...]
§ 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:
[...] V - em unidade de conservação [...].
Art. 40. Causar dano direto ou indireto às UCs e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274,
de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 1º Entende-se por UCs de Proteção Integral as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os
Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre.
§ 2º A ocorrência de dano afetando espécies ameaçadas de extinção no interior das UCs de Proteção
Integral será considerada circunstância agravante para a fixação da pena.
Art. 52. Penetrar em UCs conduzindo substâncias ou instrumentos próprios para caça ou para exploração
de produtos ou subprodutos florestais, sem licença da autoridade competente:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
5
Art. 66. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimentos, atividades, obras ou
serviços utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, sem
licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou
contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes:
Multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
Parágrafo único. Incorre nas mesmas multas quem:
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 277

UCs. Estas podem ser criadas por ato do Poder Público, mas a supressão só poderá
ocorrer mediante lei (regime de modificabilidade). Já o regime de fruição diz respeito
às atividades que podem ser desenvolvidas no interior da unidade, que irão variar de
acordo com a categoria e com o bioma protegido.
Demais disso, a Lei n. 9.985/2000, dividiu as UCs em dois grupos: as unidades
de proteção integral (cujo objetivo é preservar a natureza, admitindo tão somente o
uso indireto dos recursos naturais) e as unidades de uso sustentável (com o intuito de
harmonizar a conservação do meio ambiente e o uso sustentável dos recursos naturais).6
Segundo o mesmo diploma, pertencem ao grupo de proteção integral as
seguintes categorias de UCs: estação ecológica, reserva biológica, parque nacional,
monumento natural e refúgio da vida silvestre.7 Por sua vez, o grupo de uso sustentável
é composto pelas seguintes categorias: área de proteção ambiental, área de relevante
interesse ecológico, floresta nacional, reserva extrativista, reserva de fauna, reserva
de desenvolvimento sustentável e reserva particular do patrimônio natural.
Conforme aponta José Eduardo Ramos Rodrigues (2005, p. 37-38), embora a
Lei n. 9.985/2000 tenha conceituado de forma clara e atual as UCs, excluiu do Sistema
Nacional uma série de categorias, principalmente as que possuem a função de proteger
a biodiversidade fora de seu habitat natural (ex situ), a exemplo dos hortos florestais,
dos jardins zoológicos e dos jardins botânicos. Por tal razão, alguns autores8 passaram a
considerar a existência de unidades típicas (previstas no mencionado diploma) e atípicas
(as que, embora não estejam contempladas no texto legal, possuem os pressupostos
imprescindíveis à configuração jurídico-ecológica das UCs).

I - constrói, reforma, amplia, instala ou faz funcionar estabelecimento, obra ou serviço sujeito a licencia-
mento ambiental localizado em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento, ou em áreas
de proteção de mananciais legalmente estabelecidas, sem anuência do respectivo órgão gestor [...].
Art. 89. Realizar liberação planejada ou cultivo de organismos geneticamente modificados em áreas de
proteção ambiental, ou zonas de amortecimento das demais categorias de unidades de conservação, em
desacordo com o estabelecido em seus respectivos planos de manejo, regulamentos ou recomendações
da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio: Multa de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos
reais) a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). [...]
§ 3º O Poder Executivo estabelecerá os limites para o plantio de organismos geneticamente modificados
nas áreas que circundam as unidades de conservação até que seja fixada sua zona de amortecimento
e aprovado o seu respectivo plano de manejo.
Art. 93. As infrações previstas neste Decreto, exceto as dispostas nesta Subseção, quando forem
cometidas ou afetarem unidade de conservação ou sua zona de amortecimento, terão os valores de
suas respectivas multas aplicadas em dobro, ressalvados os casos em que a determinação de aumento
do valor da multa seja superior a este.
6
Art. 7º.
7
Art. 8º.
8
Nesse sentido: Paulo de Bessa Antunes (2012, p. 739-741); Antônio Herman Benjamin (2001, p. 299-302);
Édis Milaré (2013, p. 1250-1251).
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Dentre as unidades previstas na Lei do Sistema Nacional, as terras podem


ser de dominialidade pública ou privada. São necessariamente públicas: a estação
ecológica (art. 9º, § 1º), a reserva biológica (art. 10, § 1º), o parque nacional (art. 11,
§ 1º), a floresta nacional (art. 17, § 1º), a reserva extrativista (art. 18, § 1º) e a reserva
de fauna (art. 19, § 1º). Admitem a dominialidade privada, mas podem ser públicas
em algumas situações: o monumento natural (art. 12, § 1º), o refúgio da vida silvestre
(art. 13, § 1º), área de proteção ambiental (art. 15, § 1º), área de relevante interesse
ecológico (art. 16, § 1º), reserva de desenvolvimento sustentável (art. 20, § 2º), reserva
particular do patrimônio natural (art. 21, caput).
As considerações ora realizadas são fundamentais para a compreensão da
zona de amortecimento, já que esta constitui a área do entorno de determinadas UCs,
conforme será demonstrado a seguir. Dessa forma, a categoria e o regime jurídico da
UC serão determinantes ao modelo da respectiva zona de amortecimento.

2. CONCEITO JURÍDICO E OBJETIVOS DA ZONA DE AMORTECIMENTO

Segundo o art. 2º, XVIII, da Lei n. 9.985/2000, entende-se por zona de amor-
tecimento “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas
estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os
impactos negativos sobre a unidade”. Tal conceito jurídico deixa claro que a zona de
amortecimento é a área que circunda a UC, possuindo o objetivo de amortecer ou
mitigar os impactos nessa última.
Vê-se claramente que as zonas de amortecimento não podem ser consideradas
como partes integrantes das unidades, mas apenas como o zoneamento obrigatório
dessas, em que se estabelece regramento às atividades econômicas (MILARÉ,
2013, p. 1231). Enquanto a UC busca proteger o meio ambiente de seu próprio território,
a zona de amortecimento possui o objetivo de proteger o bioma constante na área de
entorno daquela (SMOLENTZOV, 2013, p. 60).
Vale dizer, a zona de amortecimento não possui existência per si, na medida
em que é concebida como parte acessória da respectiva UC. Isso significa que os ob-
jetivos, a formação, enfim, todos os seus elementos devem estar atrelados à unidade.
A própria Procuradoria do IBAMA já decidiu nesse sentido (AGU, 2016).
Demais disso, o conceito brasileiro de zona de amortecimento, estabelecido pela
Lei n. 9.985/2000, está em consonância com a doutrina do direito comparado. Nesse
sentido, Sayer (1991, p. 2) conceitua zona tampão9 como a área periférica a parque
9
Não é ocioso destacar que a segunda palavra da expressão zona tampão (buffer zone) aludida por Sayer
possui a mesma ideia do termo amortecimento; o tampo visa proteger determinado objeto. Ademais,
assim como na química tampão diz respeito à solução que impede a variação brusca de pH (LIMA,
1995, p. 34), a zona tampão (ou de amortecimento) possui o objetivo de minorar os impactos externos
sobre a Unidade de Conservação.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 279

nacional ou qualquer reserva de igual valor, em que se estabelecem restrições sobre


a utilização de recursos com o fito de valorizar a área protegida.
Perceba-se que nesse entorno as atividades humanas são permitidas, até
mesmo em relação às UCs de proteção integral; no entanto, alguns regramentos espe-
cíficos deverão ser impostos, sempre no intuito de compatibilizar o aspecto ambiental
protegido pela unidade e as atividades econômicas. Assim, por exemplo, numa unidade
criada para proteger determinada espécie animal ameaçada de extinção, a zona de
amortecimento poderá limitar a criação de cães domésticos, os quais são transmissores
de doenças como raiva e parvovírus, além de atuar na predação, muitas vezes mais
severos que os animais silvestres predadores (PERELLO, 2011, p. 56-57).
Nesse palmilhar, a zona de amortecimento possui o condão de compatibilizar a
conservação dos bens ambientais da unidade ao desenvolvimento das atividades huma-
nas desenvolvidas pela população do local. Ressalte-se, contudo, que tal harmonização
sempre deve dispensar primazia à proteção da biodiversidade e dos demais valores
ambientais, pois todas as intervenções na zona de amortecimento dizem respeito à
conservação (MARTINO, 2001, p. 5-6).
Vale dizer, na zona de amortecimento a proteção do bem ambiental deve pre-
valecer em relação às atividades econômicas.
O art. 25 da Lei n. 9.985/2000 estabeleceu que todas as categorias de UCs
devem possuir zona de amortecimento, exceto a área de proteção ambiental e a re-
serva particular do patrimônio natural. É que a primeira diz respeito a unidades de área
bastante extensa, com certo grau de ocupação humana, nos termos do caput do art. 15
da mencionada lei. Logo, o zoneamento dessa categoria deve separar, pelo menos, as
áreas em que predomina a vida silvestre das áreas de ocupação humana (NOGUEIRA
NETO, 2001, p. 368). Dessa forma, a área que deve “amortecer” a interferência nos
ecossistemas está inserta na própria unidade.
A reserva particular do patrimônio natural, por sua vez, “é caracterizada pela
voluntariedade de seu proprietário, que decide transformar sua propriedade rural em
espaço territorial ecologicamente protegido” (FARIAS, 2010, p. 293). Por essa razão,
os proprietários do entorno não poderiam receber restrições em suas atividades em
decorrência de ato de vontade de particular.
Ante as considerações acima, é possível perceber que o objetivo maior da zona
de amortecimento é impedir que as atividades externas interfiram, de forma negativa,
na respectiva UC. Em outras palavras, as zonas de amortecimento possuem o condão
de impedir ou reduzir os chamados efeitos de borda. Como o próprio nome indica, o
efeito ocorre quando a área adjacente da unidade (borda) passa a atingir seu interior.
Na preleção de Carolina Murcia (1995, p. 58), existem três tipos de efeitos de
borda: abióticos, bióticos diretos e bióticos indiretos.
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Os efeitos abióticos ocorrem em virtude do contraste de microclima entre o


interior e o exterior. Por exemplo, o entorno pode ser caracterizado por culturas de
pastagem, em que há intensidade de radiação solar no solo durante o dia, e retorno
para a atmosfera durante a noite; já o interior pode ser formado por floresta, que não
está tão susceptível aos mencionados aspectos (MURCIA, 1995, p. 58).
Os efeitos bióticos diretos, por sua vez, decorrem da desigualdade na abundân-
cia e distribuição de espécies, em decorrência dos fatores abióticos perto da borda. Por
exemplo, a área externa possui espécies mais adaptadas à intensidade do vento e da
radiação solar do que as que habitam a área interna (MURCIA, 1995, p. 58).
Os efeitos bióticos indiretos, por fim, dizem respeito à interação entre as es-
pécies do entorno e do espaço interno, que podem ocasionar predação, parasitismo,
competição, polinização e dispersão de sementes (MURCIA, 1995, p. 58).
Ante o exposto, verifica-se que zona de amortecimento constitui a área que
circunda as UCs, na qual são estabelecidas limitações ao exercício de atividades
econômicas e sociais, com o objetivo de evitar o efeito de borda. Sua instituição e
efetivação são imprescindíveis ao cumprimento do objetivo da área protegida principal.

3. INSTITUIÇÃO DA ZONA DE AMORTECIMENTO

Conforme já ressaltado, os limites territoriais da zona de amortecimento podem


ser definidos ou no ato de criação da UC, ou em momento posterior, de acordo com o
art. 25, § 2º, da Lei n. 9.985/2000. Caso o ato instituidor (decreto ou lei) já delimite o
território das unidades, a situação não desperta controvérsias.
Contudo, se o ato instituidor for silente, diversas discussões já surgiram a
respeito da forma de delimitação territorial das zonas de amortecimento. O caso mais
relevante ocorreu na criação do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, cujo ato insti-
tuidor (Decreto n. 88.218/1983) não delimitou a zona de amortecimento; por sua vez,
o plano de manejo da unidade também foi omisso quanto à definição da área. Dessa
forma, o IBAMA, por meio da Portaria n. 39, de 16 de maio de 2006, cuidou de delimitar
o espaço territorial destinado à zona de amortecimento.
O Governador do Estado do Espírito Santo questionou a legalidade dessa
portaria, sob o argumento de que a instituição da zona de amortecimento só poderia
ocorrer mediante ato de mesma natureza hierárquica que o ato instituidor da respectiva
UC. Ante tal situação, a Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente entendeu
que a portaria do IBAMA não viola a legalidade, pois cumpriu o dever constante no art.
25 da Lei n. 9.985/2000 (AGU, 2006).
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 281

No entanto, em 22 de agosto de 2006, o Advogado-Geral da União aprovou


nota técnica emitida pelo Consultor-Geral da União, no sentido de que a zona de amor-
tecimento só pode ser instituída mediante ato de idêntica natureza hierárquica que o
ato instituidor da respectiva unidade (AGU, 2006). A única exceção seria da categoria
reserva de desenvolvimento sustentável, na qual o art. 20, § 6º, da supramencionada
Lei prevê que sua zona de amortecimento será definida no próprio plano de manejo.
O entendimento da nota técnica, entretanto, não mais prevalece, em virtude de
sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019080-18.2010.4.01.3400, da
3ª Vara Federal de Brasília. Em tal decisão, o magistrado deixou claro que a zona de
amortecimento pode ser definida tanto no ato criador quanto posteriormente, por meio
do plano de manejo, que poderá ser aprovado por portaria ou resolução, a depender
do caso concreto.
Nessa senda, vejam-se os termos da sentença:

Paralelamente, a Lei nº 9.985/2000 dispõe, no § 1º do artigo


25, que os limites da zona de amortecimento poderão ser
definidos no ato de criação da unidade ou posteriormente. Ou
seja, a interpretação que se pode extrair da conjugação dos
dispositivos mencionados é a de que a zona de amortecimento
pode ser definida no ato de criação da unidade de conser-
vação ou, posteriormente, através do plano de manejo, que
será aprovado por portaria ou resolução, a depender do caso
concreto. Advém da própria lei a determinação para que a zona
de amortecimento seja abarcada pelo plano de manejo, caso
seus limites não tenham sido definidos no ato de instituição da
unidade de conservação (TRF1, 2013, p. 9).

Esta decisão é alvo de apelação, mas o Tribunal Regional Federal da 1ª Região,


até a data de elaboração do presente trabalho, não julgou o recurso.
Nesse sentido, a Diretoria de Criação e Manejo de UCs, do ICMBio (2014, n.p.),
já está adotando o entendimento exarado da mencionada sentença.
Portanto, no âmbito federal, a zona de amortecimento pode ser criada por ato
de hierarquia inferior ao ato de instituição da respectiva UC. Entendemos que esse
entendimento também deve prevalecer nas unidades estaduais, distritais e municipais,
pois o contrário poderia resultar no engessamento da instituição das zonas de amor-
tecimento. É que a edição de ato da mesma natureza que o instituidor pode ser muito
demorado, o que deixaria a proteção da biodiversidade prejudicada. Além disso, a lei
exige apenas que seja por meio de ato do Poder Público, o qual contém, evidentemente,
as portarias e resoluções.
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4. REGULAMENTAÇÃO DA ZONA DE AMORTECIMENTO


No capítulo anterior, analisaram-se os mecanismos de instituição das zonas de
amortecimento. Agora, se tratará da regulamentação, isto é, das limitações impostas
ao exercício das atividades humanas.
Antes da vigência da Lei n. 9.985/2000, o texto normativo que protegia o en-
torno das UCs era a Resolução n. 13/1990 do CONAMA. Esta, no lugar de zona de
amortecimento, utilizava a terminologia “área circundante”, consistente no raio de dez
quilômetros da unidade, cujas atividades que pudessem afetar a biota deveriam, ne-
cessariamente, ser licenciadas pelo órgão ambiental competente, nos termos do art. 2º.
Com o advento da Lei n. 9.985/2000, criou-se a zona de amortecimento, a qual
deve ser regulamentada no Plano de Manejo. Este, segundo o art. 2º, XVII, do men-
cionado diploma legal, é o “documento técnico mediante o qual, com fundamento nos
objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as
normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive
a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade”.
Por ser uma espécie de plano diretor da unidade de conservação, o Plano de
Manejo deverá apontar o que é proibido, priorizado e permitido na área. Nesse intuito,
o art. 28 dispõe que “São proibidas, nas UCs, quaisquer alterações, atividades ou mo-
dalidades de utilização em desacordo com os seus objetivos, o seu Plano de Manejo
e seus regulamentos”.
O Plano de Manejo é elaborado de acordo com as necessidades e peculia-
ridades da área protegida, pois cada UC possui realidade distinta. Para isso, se faz
necessário estudo complexo e profundo realizado por equipe multidisciplinar, formada
por advogados, arquitetos, biólogos, engenheiros, químicos, sociólogos etc. Nesse
sentido, destacam Gabriel Luís Bonora Ferreira e Priscila Mari Pascuchi:
Importante salientar que na dimensão e no zoneamento da zona
de amortecimento devem ser consideradas tanto as caracterís-
ticas gerais da área e do ecossistema que se pretende proteger
(especificidades da diversidade biológica e da paisagem local),
quanto os objetivos específicos de cada tipo de unidade de con-
servação, respeitando a dúplice finalidade da região do entorno.
Desta maneira, dependendo de cada espécie de unidade de
conservação, a respectiva zona de amortecimento assumirá
conotações e contornos diferenciados, sendo claro que a pro-
teção ao entorno de uma unidade de conservação de proteção
integral deverá ser muito mais eficaz e concreta na mitigação
dos impactos ambientais provenientes das zonas limítrofes,
como também muito mais rígida e restritiva na elaboração de seu
zoneamento, do que a zona de amortecimento de uma unidade
de uso sustentável (FERREIRA; PASCUCHI, 2006, p. 532).
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 283

Destarte, o Plano de Manejo deve levar em consideração o grupo e a categoria,


os objetivos e o bioma da UC.
Por isso, o § 3º do art. 27 da lei em comento estabelece que “O Plano de Manejo
de uma unidade de conservação deve ser elaborado no prazo de cinco anos a partir da
data de sua criação”. Logo, não se pode determinar o conteúdo do Plano de Manejo,
porque isso será feito pelos estudos ambientais a serem desenvolvidos de acordo com
que se convencionou chamar de “discricionariedade técnica”.
O § 1º do art. 27 determina que “O Plano de Manejo deve abranger a área da
UC, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o
fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas”.
Segundo José Eduardo Ramos Rodrigues (2005, p. 106), “este dispositivo é muito
importante, na medida em que permite à administração da Unidade desestimular a
ocupação humana no entorno, como também de áreas situadas no seu interior, apesar
de não desapropriadas”.
No dia a dia, os problemas relativos à zona de amortecimento costumam ser
mais graves do que os que envolvem apenas o interior das UCs, em virtude da insufici-
ência da regulamentação e da delimitação territorial imprecisa (ANTUNES, 2010, p. 7).
A Zona de Amortecimento tem como objetivo restringir as intervenções antrópicas
na circunvizinhança, tendo em vista a proteção dos recursos ambientais existentes na
UC. Ou seja, se a função desta é conservar a biodiversidade e proteger os recursos
naturais e a paisagem, aquela deverá contribuir, ainda que de forma acessória, para
esse fim.

5. AUTORIZAÇÃO E CIÊNCIA DO ÓRGÃO RESPONSÁVEL PELA


ADMINISTRAÇÃO DA UNIDADE DE CONSERVAÇÃO

O licenciamento de empreendimentos de significativo impacto ambiental, sendo


por essa razão submetidos à realização de Estudo de Impacto Ambiental e respectivo
relatório - EIA/RIMA, quando afetarem UC ou sua respectiva zona de amortecimento,
só ocorrerão “mediante autorização do órgão responsável por sua administração”, nos
termos do art. 36, § 3º, da Lei n. 9.985/2000.10
O procedimento ocorre da seguinte forma: quando o empreendimento interferir
na zona de amortecimento ou no interior de UC, o órgão ambiental licenciador realiza
10
Antes da Lei Complementar n. 140/2011, o licenciamento ambiental das atividades localizadas no entorno
da UC era a rigor considerado como de competência do mesmo ente, pois a Resolução n. 237/97 do
CONAMA adotava como critério principal a regra impacto ambiental direto (FARIAS, p. 54-55 e 125).
Agora a titularidade só atrai a competência quando a atividade for localizada dentro da UC, sendo a
APA a única exceção - nela a competência é definida pelas regras gerais, como se não houvesse ali
área protegida (arts. 7º, XIV, d, 8º, XVI, a e 9º, XIV, b).
284 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

consulta ao gestor dessa, o qual poderá (i) concordar com o licenciamento ambiental
da atividade; (ii) concordar em licenciar parte da atividade; (iii) discordar, por completo,
do licenciamento ambiental da atividade. É claro que poderá solicitar complementação
de estudos antes de tomar tal posicionamento.
Na hipótese i, não vislumbramos qualquer controvérsia, uma vez que o enten-
dimento dos órgãos licenciador e gestor são coincidentes.
A celeuma reside nas hipóteses ii e iii, quando a opinião dos órgãos licenciador
e gestor são divergentes. Dessa forma, faz-se mister analisar se a anuência prévia do
órgão gestor é meramente opinativa ou se possui caráter vinculante.
Conforme aponta Eduardo Fortunato Bim (2016, p. 139-143), após a edição da
Lei Complementar n. 140/2011 (que trata das competências e ações administrativas
ambientais), a presente discussão adquire complexidade. Segundo o mesmo autor,
existem três correntes a respeito da vinculatividade.
A primeira delas preleciona que a mencionada Lei Complementar não interferiu
na anuência prévia, permanecendo o caráter vinculativo dado pela Lei n. 9.985/2000.
Tal entendimento é o que predomina na normatização infralegal, conforme será de-
monstrado a seguir.
Já a segunda corrente aduz que o art. 13 da Lei Complementar n. 140/2011
estabeleceu a regra de que o licenciamento/autorização ambiental ocorrerá por um único
ente federado (é a conhecida regra do licenciamento uno). Dessa forma, não poderia o
entendimento de um ente federado vincular outro; a autorização só seria vinculativa se o
órgão gestor da unidade e o órgão licenciador pertencessem ao mesmo ente federado.
Assim, por exemplo, a autorização do ICMBio vincula o licenciamento realizado pelo
IBAMA, pois os dois estão no âmbito da União. Já a autorização emanada pelo gestor
de uma unidade estadual não vincularia, por exemplo, o órgão licenciador municipal.
A terceira corrente, por sua vez, defende que a anuência do gestor da UC não
vincula o órgão licenciador, independente do ente federado a que pertençam, pois a
vinculatividade é exceção; quando a Lei Complementar n. 140 estabeleceu exceções a
respeito da intervenção de outros órgãos no licenciamento, o fez de forma expressa. Em
outras palavras, “admitir o compartilhamento do processo decisório com outro órgão ou
instituição seria reconhecer um colicenciador, no caso, o gestor da UC, mesmo sabendo
que ele não é o único interveniente no licenciamento ambiental” (BIM, 2016, p. 142-43).
No âmbito da União, somente o IBAMA possui competência para licenciar, de
forma que o ICMBio age nessa situação como órgão responsável pela UC. Isso implica
dizer que a atuação dessa autarquia em relação aos órgãos licenciadores, mesmo
que seja na esfera estadual ou municipal, deve se basear nos mesmos pressupostos
e procedimentos.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 285

Embora o caput do art. 13 citado disponha sobre o licenciamento em um único


nível, o § 1º dispôs sobre a participação não vinculante dos demais entes federativos,
seja por meio dos outros órgãos ambientais ou de outros órgãos públicos interessa-
dos, que são os chamados órgãos intervenientes (FUNAI, ICMBio, IPHAN etc.). O
entendimento de que essa participação é vinculante parece atentar contra a autonomia
federativa, sem contar que isso invalidaria a unicidade do licenciamento, premissa que
permeia toda a lei em questão.
De mais a mais, isso seria um estímulo à permanência dos conflitos federativos,
exatamente a situação que se pretendeu combater, uma vez que o ente não licenciador
poderia tentar determinar o que poderia ou não poderia ser feito, tomando, na prática,
as rédeas do procedimento.
Por outro lado, é claro que o órgão licenciador não pode rejeitar imotivadamente
tais questionamentos, tendo em vista que nessas situações a discricionariedade é
técnica, não podendo ocorrer uma decisão meramente política (CARVALHO FILHO,
2011, p. 84). Com efeito, as decisões devem ser amparadas no conhecimento científico
mais abalizado, a fim de fazer com que cada órgão cumpra a sua missão institucional
da melhor maneira possível.
Porém, caso mantenha a sua discordância, o órgão fiscalizador deverá tomar
providências mais drásticas, levando o caso ao Ministério Público, que apurará o dano
coletivo, a improbidade administrativa e o crime ambiental, à Polícia para investigação
do crime ambiental e/ou ao Poder Judiciário, já que também está legitimado à interpo-
sição de ações civis públicas segundo o art. 5º da Lei n. 7.347/85.
A mens legis foi conferir ao órgão gestor o poder de anuir ou não as ativida-
des que interfiram nas UCs que administra. É que o órgão gestor, embora não seja
responsável pelo licenciamento, possui, por óbvio, a atribuição de gerir a UC, a qual
compreende a autorização ou proibição de atividades que afetem tais áreas protegidas.
A autorização do órgão responsável pela administração da UC é documento
obrigatório no licenciamento ambiental, o que não viola a regra do licenciamento uno
trazida pela Lei Complementar n. 140.
Vale dizer, as regras de competência licenciatória continuam sendo respei-
tadas, vez que não há alteração de atribuições do órgão ambiental licenciador. Tal
entendimento foi encampado pela normatização infralegal. Nesse sentido, estabelece
a Resolução n. 428/2010 do CONAMA:
Art. 1º O licenciamento de empreendimentos de significativo
impacto ambiental que possam afetar Unidade de Conservação
(UC) específica ou sua Zona de Amortecimento (ZA), assim
considerados pelo órgão ambiental licenciador, com fundamento
em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de
286 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Impacto Ambiental (EIA/RIMA), só poderá ser concedido após


autorização do órgão responsável pela administração da UC
ou, no caso das Reservas Particulares de Patrimônio Natural
(RPPN), pelo órgão responsável pela sua criação.

Perceba-se que a Resolução é categórica ao afirmar que o licenciamento só


ocorrerá após autorização do gestor da UC, o que reafirma o caráter vinculante do ato.
Contudo, o dispositivo legal (art. 36, § 3º, Lei n. 9.985/2000), assim como o
art. 1º da Resolução acima transcrito, tratam da anuência prévia de órgão gestor nas
hipóteses de empreendimentos de significativo impacto ambiental, os quais, por essa
razão, devem apresentar EIA/RIMA.
E os empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental, mas dispensados
de realizar EIA/RIMA? Neste caso, o órgão licenciador apenas dará ciência ao órgão
responsável pela administração da unidade, nos termos da Resolução n. 428/2010
do CONAMA:
Art. 5º Nos processos de licenciamento ambiental de empreen-
dimentos não sujeitos a EIA/RIMA o órgão ambiental licenciador
deverá dar ciência ao órgão responsável pela administração da
UC, quando o empreendimento:
I - puder causar impacto direto em UC;
II - estiver localizado na sua ZA;
III - estiver localizado no limite de até 2 mil metros da UC, cuja
ZA não tenha sido estabelecida no prazo de até 5 anos a partir
da data da publicação desta Resolução.

Tal ciência consiste na comunicação ao órgão gestor da existência de empre-


endimento que cause impacto na unidade, ou que esteja localizado em sua zona de
amortecimento.
Se a zona de amortecimento não estiver instituída, durante o prazo de cinco
anos após a publicação da mencionada Resolução, haverá proteção à área compre-
endida no raio de dois mil metros da unidade. Observe-se que na Resolução revogada
(n. 13/1990), a área circundante em que deveria haver a anuência estava compreendida
no raio de dez quilômetros (equivalente a dez mil metros), conforme já mencionamos.
Houve, pois, diminuição de oitenta por cento da área.
Deve-se ressaltar que a Resolução do CONAMA acima transcrita não parece
violar o princípio da legalidade pelo fato de ter ampliado o espectro da anuência pré-
via. Compete a esse órgão consultivo e deliberativo, nos termos do art. 8º, I, da Lei
6.938/1981, estabelecer critérios para o licenciamento ambiental.
Portanto, embora a Resolução tenha dilatado o conteúdo do texto legal, o fez
em consonância com a competência normativa do CONAMA.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 287

No âmbito federal, a anuência prévia é tratada pela Instrução Normativa n. 05


do ICMBio (2009, n.p.):
Art. 1º Estabelecer procedimentos para a análise dos pedidos
e concessão da Autorização para o Licenciamento Ambiental
de atividades ou empreendimentos que afetem as unidades de
conservação federais, suas zonas de amortecimento ou áreas
circundantes.
Parágrafo único. A autorização a que se refere o caput restrin-
ge-se à análise de impactos ambientais potenciais ou efetivos
sobre as unidades de conservação federais, sem prejuízo
das demais análises e avaliações de competência do órgão
ambiental licenciador.

Perceba-se que tal ato normativo, anterior à Resolução n. 428/2010, possui o


mesmo sentido de não restringir a anuência prévia aos empreendimentos de significa-
tivo impacto ambiental. Além disso, reforça o caráter vinculante da anuência do órgão
gestor ao utilizar o termo autorização.
Destaque-se, ainda no âmbito federal, que a autorização é ato inserto na au-
tonomia administrativa do ICMBio, não estando, pois, sujeita à supervisão ministerial,
conforme entendimento consolidado da AGU (BIM, 2016, p. 129).
Sobre a importância da anuência prévia, prelecionam Giórgia Sena Martins e
Mariana Salgado Castro (2010, p. 453):
A anuência prévia do órgão gestor das UCs é instrumento de
efetivação do Art. 225, p. 1º, III, CF, que define a necessidade
de especial proteção a determinados espaços territoriais,
caracterizados por sua relevância ecológica e encontra ampla
regulamentação infraconstitucional que assegura sua imple-
mentação;
A dispensa de anuência prévia do ICMBio para empreendimen-
tos a serem realizados no entorno das UCs esvazia o princípio
da precaução e compromete a efetividade dos princípios da
participação e da informação;
A dispensa de anuência do ICMBio às atividades e empreen-
dimentos realizados no entorno das unidades de conservação
federal esvazia parte importante das competências institucionais
do ICMBio;

Nesse sentido, a inexistência da anuência prévia representa grave violação ao


devido processo administrativo ambiental, uma vez que é instrumento de efetivação
do direito ao meio ambiente.
288 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Conclui-se, pois, que é pacífica a necessidade de existir anuência prévia do


órgão gestor quando o empreendimento afetar UC ou estiver localizado em sua zona
de amortecimento. Embora haja divergência no tocante à natureza jurídica, entendemos
que a opinião exarada pelo órgão gestor não vincula o órgão licenciador, mas este não
pode deixar da observá-la sem o respaldo técnico necessário.

6. ZONAS DE AMORTECIMENTO EM ÁREAS URBANAS CONSOLIDADAS

Quando a zona de amortecimento é instituída em localidades com baixa presen-


ça humana, a regulamentação no Plano de Manejo não conterá maiores controvérsias.
O problema é que há casos em que a UC é criada quando já existe situação de ocu-
pação humana consolidada na área circundante, com residências, estabelecimentos
comerciais e equipamentos urbanos devidamente fixados. Em tais situações não se
pode simplesmente “desestimular” a ocupação humana, porque ela já é um fato, e,
obviamente, não se pode induzir a que não ocorra algo que já aconteceu.
José Eduardo Ramos Rodrigues (2005, p. 106-107) pondera que “a aplicação de
tal dispositivo no entorno de UCs situadas dentro ou muito próximas de áreas urbanas,
onde a população já se encontra bastante adensada, deverá ser muito dificultosa”. Essa
situação é ainda mais complicada quando a ocupação humana existente ocorreu de
forma lícita e sob a tutela do Poder Público, que concedeu alvarás e licenças para as
residências e estabelecimentos comerciais existentes no entorno da área protegida.
É notório que a Lei nº 9.985/2000 possui inúmeras incongruências e falhas de
técnica legislativa. Nas palavras de Antônio Herman Benjamin (2001, p. 287), “a lei,
sem prejuízos de avanços inequívocos que introduz, não é nem harmoniosa, nem muito
menos moderna ou técnica”.
Nesse diapasão, impende destacar que a lei em tela, ignorando as peculiaridades
que o caso concreto pode apresentar, estabelece que toda zona de amortecimento
deve ser considerada perímetro rural:

Art. 49. A área de uma unidade de conservação do grupo de Pro-


teção Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais.
Parágrafo único. A zona de amortecimento das UCs de que
trata este artigo, uma vez definida formalmente, não pode ser
transformada em zona urbana.

Depreende-se desse dispositivo o seguinte: ou a Lei nº 9.985/2000 prevê apenas


a existência de UCs em perímetro rural, ou existem falhas de técnica legislativa nesse
diploma. Contudo, ao determinar que cabe ao Poder Público definir espaços territoriais
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 289

e seus componentes a serem especialmente protegidos, em momento algum o inciso III


do § 1º do art. 225 da Constituição Federal limitou essa incumbência ao perímetro rural.
O dispositivo constitucional que estabelece a obrigação de criar áreas espe-
cialmente protegidas deve ser interpretado da forma mais ampla possível, porque diz
respeito a direito fundamental. Compreender que a Lei nº 9.985/2000 determina que
somente em perímetros rurais é possível criar UCs, bem como estabelecer sua zona
de amortecimento, é interpretar a Constituição Federal de acordo com a legislação
ordinária e, consequentemente, inverter o ordenamento jurídico nacional.
De fato, o que justifica a criação de uma UC é a relevância natural da área a ser
protegida, como explica Antônio Herman Benjamin (2001, p. 292), independentemente
de localização:
O que se visa com a instituição de uma unidade de conservação
é a algo bem mais grandioso e complexo, pois, além de res-
guardar paisagens de notável beleza cênica, almeja-se manter
e restaurar a biodiversidade, proteger espécies ameaçadas de
extinção, assim como as características relevantes de natureza
geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleon-
tológica e cultural e os recursos hídricos e edáficos.

Ou seja, o fato de a área a ser especialmente protegida se localizar em perímetro


rural ou urbano é secundário, o que importa é a relevância natural. Em certo aspecto, é
até mais importante criar áreas especialmente protegidas no perímetro urbano, porque
a maior parte da população brasileira e mundial é urbana e, nessas áreas, a qualidade
de vida costuma ser menor do que no campo.
Logo, ETEPs podem e devem ser criados em perímetro urbano, visto que, por
ser benéfico ao meio ambiente e à qualidade de vida da coletividade, tal desiderato
está em perfeita consonância com o mandamento constitucional.
Quando for criada em perímetro urbano UC que preveja o estabelecimento de
zona de amortecimento, isso deve ser feito levando em consideração a situação exis-
tente no entorno da área a ser protegida. Não se pode fazer de conta que determinada
área urbana é rural apenas para atender a formalidade prevista em lei, até porque a
legislação não pode ignorar a realidade.
Para estabelecer a zona de amortecimento, é imprescindível atentar para a
realidade econômica e social do entorno da UC, pois, como já ressaltado, aquela deve
observar a categoria, os objetivos e o bioma dessa última.
Em outras palavras, a zona de amortecimento deve levar em consideração as
atividades existentes no entorno da UC, de maneira a integrar aqueles que habitam
ou trabalham no seu entorno. Esta deve ser compreendida como benefício concreto
290 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

para a coletividade em termos de aumento da qualidade de vida, já que sua criação


resulta necessariamente em melhores opções de lazer, qualidade do ar, ventilação,
bem como na redução da poluição sonora.
Ao determinar no caput do art. 225 da Constituição Federal que a defesa do
meio ambiente é obrigação do Poder Público e da sociedade, o legislador constituinte
originário reconheceu que tão relevante tarefa não pode ser cumprida sem o empenho
efetivo da população. Isso implica dizer que se a comunidade do entorno e suas ativi-
dades não forem levadas em consideração nesse processo, dificilmente a UC poderá
cumprir o seu objetivo maior.
Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado (2001, p. 259) entende o seguinte:

A zona de amortecimento e a unidade de conservação devem


ter atividades que coexistam harmonicamente, pois o meio am-
biente não se administra contra os vizinhos ou em dissonância
com seus anseios e suas necessidades. Seguiu a legislação
brasileira a orientação da União de Conservação da Natureza,
promovendo a interdependência dos espaços protegidos, da
economia e da vida da população local.

Américo Luís da Silva Martins (2005, p. 179) alerta que a maior parte dos pro-
blemas das UCs surge de conflitos, tendo em vista a “restrição ou limitação do uso dos
recursos e devido à falta de entendimento destas populações sobre a importância das
áreas protegidas e os benefícios que elas originam”. Segundo o autor, para a criação e
manutenção de tais áreas, é preciso o entendimento e apoio das populações locais, a
promoção do desenvolvimento socioeconômico das comunidades do entorno e o estabe-
lecimento de processos participativos entre a UC, seus vizinhos e a sociedade em geral.
Além disso, as Zonas de Amortecimento devem compatibilizar conservação e
desenvolvimento, “pois embora a meta principal seja a proteção da biodiversidade, deve-
-se harmonizá-la com a criação de benefícios para a comunidade local” (FERREIRA;
PASCUCHI, 2006, p. 529).
Na verdade, essa necessidade de integração da população e das atividades
do entorno à UC está prevista no art. 27, § 1º, da Lei nº 9.985/2000, quando diz que
o plano de manejo deve abranger a zona de amortecimento com o fito de promover a
integração à vida social e econômica da população local.
A Zona de Amortecimento não pode restringir as atividades econômicas do
entorno existentes anteriormente à criação da própria UC, como adverte Paulo Affonso
Leme Machado (2001, p. 259):
Os usos agrícolas ou pecuários já anteriormente existentes na
área de entorno da unidade de conservação, que se tornará zona
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 291

de amortecimento, não podem ser impedidos, sob pena de a


medida constituir uma desapropriação indireta. As novas normas
de gestão dessa área, que integrarão o plano de manejo, devem
buscar a integração à vida econômica e social das comunidades
vizinhas (art. 27, § 1º, da Lei nº 9.985/2000).

No mesmo sentido, acrescenta Antônio Pereira de Ávila Vio (2001, p. 348):

A interpretação da definição das zonas de amortecimento deverá


ser fundamentalmente dinâmica, considerando que o objetivo
não é restringir ou congelar o desenvolvimento econômico da
região, mas ordenar, orientar e promover todas as atividades
compatíveis com o propósito e objetivos da zona de amorteci-
mento, criando condições para que os Municípios envolvidos
interajam com a unidade de conservação e criem uma base
sólida para o seu próprio desenvolvimento social e econômico,
respeitando e utilizando as características e potencialidade da re-
gião, como membro coparticipante da unidade de conservação.

Deve-se destacar que a compatibilização das atividades humanas e da conser-


vação, na Zona de Amortecimento, é mais viável do que a desapropriação de áreas
urbanas. É que, nesses casos, seria provável que o Poder Público, no lugar de desa-
propriar áreas, promovesse a desafetação de espaços insertos na própria unidade para
servir de Zona de Amortecimento. As medidas de desapropriação só devem ocorrer
em último caso, quando não for possível a harmonização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As UCs constituem mecanismo de preservação da biodiversidade e os recursos


naturais. Como são criadas em determinado espaço geográfico, é necessário impor res-
trições à ocupação da área circundante, para evitar ou diminuir o efeito de borda (abiótico,
biótico direto e indireto), consistente na interferência negativa das atividades externas.
Nessa senda, a zona de amortecimento não faz parte da unidade, mas constitui
parte acessória dessa. As áreas de proteção ambiental e as reservas particulares do
patrimônio natural não necessitam instituir zona de amortecimento, pois a primeira é
dotada de área bastante extensa, devendo separar local para a proteção da biodiver-
sidade e local de ocupação humana. Por sua vez, no caso da segunda, não poderia
ETEP instituído por vontade de particular impor limites a outras áreas particulares.
Os empreendimentos de significativo impacto ambiental que possam interferir em
UC específica só poderão ser licenciados mediante autorização do órgão responsável
292 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

pela administração dessa. Mencionada anuência não possui efeito vinculativo, mas
a opinião do órgão gestor não pode ser descartada sem o embasamento técnico
necessário, tendo em vista a necessidade de proteção do ETEP. A administração da
unidade constitui, em tese, o órgão com maior capacidade técnica de afirmar se o
empreendimento irá inviabilizar a proteção dos bens ambientais da unidade. Para as
atividades desenvolvidas na zona de amortecimento que, embora não sejam de signifi-
cativa degradação, estiverem sujeitas ao licenciamento ambiental, o órgão licenciador
deverá dar ciência ao gestor da respectiva unidade.
Destarte, a normatização da zona de amortecimento ainda não alcançou o grau
de estabilidade dos dispositivos que regulamentam as UCs. Por isso, os problemas
envolvendo a parte acessória são, na maior parte das vezes, mais complexos que
os da parte principal. Além disso, a disciplina legal é inadequada quando determina
que as unidades de proteção integral e as respectivas zonas de amortecimento são
consideradas área rural. Conforme já asseverado, é até mais indicada a instituição de
unidades em espaços urbanos, visto que está diretamente relacionada à qualidade de
vida de considerável contingente populacional.
Contudo, as zonas de amortecimento de UCs urbanas devem buscar a máxima
harmonização com as atividades humanas. Ou seja, as limitações devem levar em
consideração também as características peculiares ao cotidiano das cidades. Caso
as restrições cheguem a inviabilizar a ocupação humana, haverá a necessidade de
desapropriar a área do entorno. Tal situação poderia funcionar como subterfúgio para
que os governantes suprimissem áreas do interior da unidade para servir de zona de
amortecimento.

REFERÊNCIAS

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A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO
DIREITO ANIMAL NO BRASIL1

THE HISTORICAL AFFIRMATION


OF ANIMAL LAW IN BRAZIL

VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR2

SUMÁRIO: Introdução - 1. O conceito de direito animal - 2. O direito animal brasileiro


no plano constitucional - 3. O direito animal brasileiro no plano legal - 4. O direito
animal brasileiro no plano jurisprudencial - 5. O direito animal brasileiro no plano
doutrinário - Considerações finais - Referências.

RESUMO: O artigo apresenta o conceito e outros elementos propedêuticos


do Direito Animal e esquadrinha o seu desenvolvimento constitucional, legal, jurispru-
dencial e doutrinário no Brasil, estabelecendo, como marco inicial para sua autonomia
científica, a regra constitucional da proibição da crueldade, insculpida na parte final
do inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição republicana de 1988. O Direito Animal
é apresentado como disciplina jurídica separada do Direito Ambiental, muito embora

1
Data de recebimento do artigo: 15.01.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 18.02.2019 e 26.02.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 07.03.2019.
2
Professor do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná -
UFPR. Professor de Direito Animal na Graduação, em cursos de extensão e em projetos de integração
da Faculdade de Pinhais - FAPI-PR. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná
- UFPR. Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Juiz Federal/PR. Ex-Promotor
de Justiça do Ministério Público de Rondônia. Diretor de Ensino do Instituto Paranaense de Direito
Processual - IPDP. Professor dos cursos de Pós-Graduação na Escola da Magistratura Federal do
Paraná - ESMAFE/PR; UNINTER; Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul - ESMAFE/
RS; Escola da Magistratura do Trabalho da 9ª Região - EMATRA-IX; Escola da Magistratura do Estado
do Paraná - EMAP; Escola da Magistratura Tocantinense - ESMAT-TO; Fundação Escola do Ministério
Público do Estado do Paraná - FEMPAR; Instituto de Direito Romeu Bacellar; Academia Brasileira de
Direito Constitucional - ABDCONST; Faculdade de Direito de Francisco Beltrão - CESUL; Faculdade de
Direito das Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU, em União da Vitória/PR; Pontifícia
Universidade Católica do Paraná - PUC-PR; UNICURITIBA; Curso Verbo Jurídico, em Porto Alegre,
Curso Jurídico e Centro Europeu em Curitiba. E-mail: vicente.junior@ufpr.br.
296 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

compartilhem regras e princípios. Para esse novo campo do Direito, o animal não
humano interessa como indivíduo, dotado de dignidade própria e, a partir disso, como
sujeito do direito fundamental à existência digna, posta a salvo de práticas cruéis. O
artigo aponta, como fontes normativas federais gerais, o Decreto 24.645/1934 e o art.
32 da Lei 9.605/1998, mas também indica uma série de diplomas legais estaduais e
municipais, os quais também integram o ordenamento jurídico animalista. Defende o
julgamento da ADIn 4983 (caso vaquejada), no Supremo Tribunal Federal, como mar-
co da consolidação jurisprudencial do Direito Animal brasileiro. Indica a existência de
uma doutrina animalista, mas ressalva a necessidade de aprofundamento dos estudos
dogmáticos. O artigo termina por concluir que o Brasil já conta com um Direito Animal
positivado, inclusive quanto à capacidade dos animais de poderem estar em juízo.
PALAVRAS-CHAVE: direito animal; regra da proibição da crueldade aos animais;
direitos animais no Brasil; direito fundamental à existência digna; dignidade animal;
animais como sujeitos de direitos; capacidade processual dos animais.
ABSTRACT: The article presents the concept and other propaedeutic elements
of Animal Law and examines its constitutional, legal, jurisprudential and doctrinal
development in Brazil, establishing, as the initial framework for its scientific autonomy,
the constitutional rule of prohibition of cruelty, inscribed in the final part of subsection
VII of § 1º of art. 225 of the Republican Constitution of 1988. Animal Law is presented
as a separate legal discipline of Environmental Law, even though they share rules and
principles. For this new field of law, the nonhuman animal interests as an individual,
endowed with its own dignity and, from this, as subject of the fundamental right to a
dignified existence, safe from cruel practices. The article points out, as general federal
normative sources, the Decree 24.645/1934 and the art. 32 of Federal Law 9.605/1998,
but also indicates a series of state and municipal legal documents, which also are part
of the animal legal system. Defends the judgment of ADIn 4983 (case vaquejada),
in the Federal Supreme Court, as a landmark of the jurisprudential consolidation of
Brazilian Animal Law. It also indicates the existence of an animalistic law doctrine, but it
emphasizes the need to deepen the dogmatic studies. The article concludes that Brazil
already has a positive Animal Law, including the standing of animals to be in court.
KEYWORDS: animal law; rule of prohibition of cruelty to the animals; animal
rights in Brazil; fundamental right to dignified existence; animal dignity; animals as
subjects of rights; standing to sue of animals.

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe-se a esboçar a afirmação histórica do Direito Animal no Brasil,


como disciplina epistemologicamente separada do Direito Ambiental.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 297

Com outro olhar, apresenta-se como uma introdução ao Direito Animal brasileiro,
dogmaticamente considerado, sem perpassar as bases ético-filosóficas sobre a posição
dos animais no mundo e das suas relações com os seres humanos.3
Para a consecução dessa proposta, elabora-se, de início, um conceito sobre a
nova disciplina jurídica, fixando seu objeto e esboçando seus princípios e contornos
na atual fase de elaboração epistemológica.
A partir daí, são abordadas as várias manifestações do Direito Animal no Brasil,
em cada plano de produção e investigação normativa: constitucional, legal, jurispru-
dencial e doutrinário.
No plano constitucional, destaca-se a singular regra da proibição da crueldade,
prevista no art. 225, § 1º, VII, , da Constituição brasileira de 1988, repetida em
Constituições estaduais, a partir da qual o Direito Animal brasileiro se inaugura e se
espraia pelo ordenamento jurídico nacional.
No plano legal, apontam-se o Decreto 24.645/1934 e o art. 32 da Lei 9.605/1998
como as normas gerais do sistema de proteção de direitos animais, sem ignorar a
existência de diversos códigos e leis de defesa animal, com matizes e pontos de vista
diversos, no âmbito dos Estados e Municípios brasileiros, carentes, ainda, de adequada
sistematização científica e integração com o sistema geral de proteção animal.
O Direito Animal se consolida, no plano jurisprudencial, a partir do julgamento,
no final de 2016, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADIn da vaquejada),
pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda que outros precedentes da mesma Corte
já tivessem proibido certas práticas humanas cruéis contra animais - como a “farra do
boi” e as “rinhas de galos” -, esse foi o marco histórico da autonomia do Direito Animal
e da sua separação epistemológica em relação ao Direito Ambiental.
Por fim, a doutrina do Direito Animal se expande, contando, hoje, com vários
livros e publicações especializados, além de gradual presença nas faculdades de
direitos, não apenas nos cursos de graduação, como também em pós-graduações.
3
O material já publicado, principalmente em língua inglesa, sobre a filosofia e ética animal é inesgotável.
Mas, três autores - e três obras - costumam ser indicados como os representantes dos principais mo-
vimentos filosóficos-animalistas: Peter Singer, líder do benestarismo, a partir do livro Animal liberation,
de 1974; Tom Regan, a partir do livro The case for animal rights, de 1983, e Gary Francione, com
Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement, de 1995, ambos representantes do
abolicionismo. Da produção original em língua portuguesa, vale a pena consultar as obras A hora dos
direitos dos animais (2003), do professor lusitano Fernando Araújo, que aborda as principais discussões
filosóficas sobre os animais, com ampla varredura de quase tudo o que se escreveu sobre o assunto
até então, e Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, de 2008, do professor brasileiro
Daniel Braga Lourenço, que também procede a um alentado levantamento das premissas filosóficas
do Direito Animal.
298 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

O Direito Animal, como toda nova ciência, tem pretensão de reconhecimento.


Falar em animais como sujeitos de direitos ainda é tema que desperta curiosi-
dade e certo espanto. A resistência é perceptível, mas o discurso jurídico animalista
se alastra cada vez mais.
Por essas razões, ainda que o trabalho não esgote o panorama de todo o acervo
jurídico disponível, oferece, ao menos, algumas fontes de pesquisa para estudantes
e juristas nacionais e internacionais interessados em conhecer e contribuir para a
elaboração do Direito Animal como novo ramo da ciência jurídica no Brasil.

1. O CONCEITO DE DIREITO ANIMAL

O Direito Animal4 positivo é o conjunto de regras e princípios que estabelece


os direitos fundamentais dos animais não humanos, considerados em si mesmos,
independentemente da sua função ambiental ou ecológica.
Esse conceito é formulado a partir da genética constitucional do Direito Animal
brasileiro.
Segundo o art. 225, § 1º, VII, da Constituição brasileira de 1988, incumbe ao
Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
4
Não há consenso - e não houve, ainda, discussão mais aprofundada - quanto à adequada denominação
da nova disciplina jurídica. Mais comuns são as referências a Direito Animal (Animal Law) e a Direito dos
Animais (mais próxima de Animal Rights). Há quem prefira Direito Animalista, mas, nesse momento de
reconhecimento, melhor adotar uma terminologia que bem se adapte ao padrão das demais disciplinas
jurídicas. Assim, como é mais comum se falar em Direito Ambiental (e não Direito do Ambiente), Direito
Penal (e não Direito das Penas), Direito Civil (e não ), Direito Processual (e
não Direito dos Processos), Direito Empresarial (e não Direito das Empresas) etc., melhor chamar Direito
Animal (e não Direito dos Animais). Com razão, Tagore Trajano de Almeida Silva, Professor Adjunto
da Universidade Federal da Bahia, quando diz ser “importante unificar a terminologia da disciplina,
adotando a nomenclatura ‘Direito Animal’, a fim de evitar interpretações sectárias que dividam a matéria
e seu objeto de estudo. Esta elucidação impede a confusão de termos e explicações a criar inúmeras
terminologias, tais como: ‘direitos animais’, ‘direito dos animais’, ‘direitos dos animais’, ‘direitos dos não
humanos’, ‘direitos dos animais não humanos’, etc. para tratar do mesmo processo de evolução do
Direito Animal” (Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber pós-humanista.
Salvador: Evolução, 2014. p. 51-52). Acrescente-se que, com essa denominação, foi fundada, em
2006, a mais importante revista jurídica brasileira sobre o tema: a Revista Brasileira de Direito Animal
(RBDA), o que ainda mais reforça a adequação da expressão. Convém, no entanto, frisar que o termo
animalista pode ser usado para designar não a disciplina jurídica em si, mas as manifestações que
lhe são correlatas, como doutrina animalista ou jurista animalista, da mesma forma como se faz, por
exemplo, no Direito Civil, em que a doutrina e o respectivo jurista são chamados civilistas. Obviamente
que, nesse contexto, a palavra animalismo nada tem a ver com o viés pejorativo, e de crítica política,
adotado por George Orwell, em seu clássico literário, Revolução dos bichos (Animal farm), de 1945
(Tradução Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Globo, 2003. p. 18-25).
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 299

coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou sub-


metam os animais a crueldade”.
Assim, conforme a explícita dicotomia constitucional, quando o animal não
humano é considerado fauna, relevante pela sua função ecológica, como espécie,
é objeto das considerações do Direito Ambiental.5 Por outro lado, quando o animal
não humano é relevante enquanto indivíduo senciente, portador de valor intrínseco e
dignidade própria, é objeto das considerações do Direito Animal.6
Dessa forma, Direito Animal e Direito Ambiental não se confundem, constituem
disciplinas separadas, embora compartilhem várias regras e princípios jurídicos, dado
que ambos, o primeiro exclusivamente, e o segundo inclusivamente, tratam da tutela
jurídica dos animais não humanos.
A dignidade animal é derivada do fato biológico da senciência, ou seja, da capa-
cidade de sentir dor e experimentar sofrimentos, físicos e/ou psíquicos.7 A senciência
animal é juridicamente valorada, quando posta em confronto com as interações e
atividades humanas, pela positivação da regra fundamental do Direito Animal contem-
porâneo: a proibição das práticas que submetam os animais à crueldade.
Como toda dignidade deve ser protegida por direitos fundamentais,8 não se po-
dendo conceber dignidade sem um catálogo mínimo desses direitos, então a dignidade
animal deve ser entendida como a base axiológica de direitos fundamentais animais,9
os quais constituem o objeto do Direito Animal.

5
“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica” e as práticas que “provoquem a extinção de espécies.”
6
“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a crueldade.”
7
Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) - elaborada por neurocientistas,
neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos,
reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido -, “A ausência de um neocórtex não parece impedir
que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais
não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de
consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente,
o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos
que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras
criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”. Conferir o texto original,
em inglês. Disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf.
Acesso em: 04. abr. 2018.
8
HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). : ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 75, 81-83.
9
Assim como a dignidade humana é a base axiológica dos direitos fundamentais humanos (LIMA, George
Marmelstein. Curso de direitos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 17).
300 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Da regra constitucional da proibição da crueldade - e dos princípios que também


emanam do mesmo dispositivo constitucional,10 como o princípio da dignidade animal11
e o princípio da universalidade12 - é que exsurge o direito fundamental animal à exis-
tência digna. É direito fundamental - e não apenas objeto de compaixão ou de tutela
-, porquanto é resultado da personalização e positivação do valor básico13 inerente à
dignidade animal.14
10
Adota-se, aqui, o caráter pluridimensional dos enunciados normativos, proposto por Humberto Ávila,
pelo qual “os dispositivos que servem de ponto de partida para a construção normativa podem ger-
minar tanto uma regra, se o caráter comportamental for privilegiado pelo aplicador em detrimento da
finalidade que lhe dá suporte, como também podem proporcionar a fundamentação de um princípio,
se o aspecto valorativo for autonomizado para alcançar também comportamentos inseridos noutros
contextos” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. São Paulo:
Malheiros, 2018. p. 93-94).
11
Esse princípio está na base estrutural do Direito Animal, seja qual for a nacionalidade da ordem jurídica
que o contemple. Não é possível falar em direitos fundamentais animais sem reconhecer um estatuto
de dignidade próprio para os animais não humanos. No Brasil, esse princípio dimana do dispositivo
constitucional que proíbe a crueldade contra animais, assentando que os animais também interessam
por si mesmos, a despeito da sua relevância ecológica, não podendo ser reduzidos ao status de coisas,
nem serem objetos da livre ou ilimitada disposição da vontade humana. Como todo princípio é teleológico
e visa a estabelecer um estado de coisas que deve ser promovido sem descrever, diretamente, qual o
comportamento devido (ÁVILA, op. cit., p. 70), o princípio da dignidade animal promove um redimen-
sionamento do status jurídico dos animais não humanos, de coisas para sujeitos, impondo ao Poder
Público e à coletividade comportamentos que respeitem esse novo status, seja agindo para proteger,
seja abstendo-se de maltratar ou praticar, contra eles, atos de crueldade. É do princípio da dignidade
animal que emana, para a União (art. 22, I, e art. 23, VII, da Constituição), o mandado de
criminalização dos maus-tratos a animais, hoje cumprido, em parte, pelo art. 32 da Lei 9.605/1998 (sobre
o tema dos mandados de criminalização, explícitos e implícitos, como forma de proteção de direitos
fundamentais, ver MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. A teoria dos mandados de criminalização
e o combate efetivo à corrupção. Revista Jurídica ESMP-SP, v. 5, p. 43-68, 2014).
12
Esse princípio é característico do Direito Animal brasileiro e diz respeito à amplitude subjetiva do
reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos. O Direito Animal brasileiro é universal porque
a Constituição não distingue quais espécies animais estão postas a salvo de práticas cruéis, como
também o art. 32 da Lei 9.605/1998 não distingue as espécies animais que podem ser vítimas do
crime de maus-tratos, de maneira que a proteção constitucional e legal é universal. Todos os animais
são sujeitos do direito fundamental à existência digna. Com isso, o princípio da universalidade quer
promover a erradicação do especismo seletista, ou seja, das formas de preconceito e de discriminação
pela espécie, mas que são dirigidas não a todas, mas a apenas algumas das espécies animais. Sobre
o especismo, ver, adiante, a nota 76.
13
SARLET, Ingo Wolfgang. : uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 61-62.
14
No plano internacional, o reconhecimento de direitos animais foi objeto da Declaração Universal dos
Direitos dos Animais, anunciada em Bruxelas/Bélgica (27.01.1978) e em Paris (15.10.1978), durante
assembleias da UNESCO, não obstante não se caracterize, propriamente, como uma normativa
jurídica internacional, mas como uma carta de princípios (cf. LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos ani-
mais. 2. ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004. p. 44-47) ou como soft law (BORGES, Daniel
Moura. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais como norma jurídica: sua aplicação enquanto
soft law e hard law. 120 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito - Universidade Federal da
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 301

Em assim sendo, o Direito Animal opera com a transmutação do conceito civi-


lista de animal como coisa ou bem semovente, para o conceito animalista de animal
como sujeito de direitos.15 Todo animal é sujeito do direito fundamental à existência
digna, positivado constitucionalmente, a partir do qual o Direito Animal se densifica
dogmaticamente, se espraiando pelos textos legais e regulamentares. A sistematiza-
ção dogmática permite - e permitirá ainda mais - apontar outros direitos correlatos e
ajustados à natureza peculiar dos animais não humanos, bem como construir as tutelas
jurisdicionais que lhes sejam adequadas.16
Bahia, Salvador, 2015. p. 96 e seguintes). Segundo esse documento, são direitos dos animais: “Art.
1º Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência. Art. 2º - 1.
Todo o animal tem o direito a ser respeitado. 2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar
os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao
serviço dos animais. 3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.
Art. 3º - 1. Nenhum animal será submetido nem a maus-tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário
matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe
angústia. Art. 4º - 1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre
no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir. 2. toda
a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito. Art. 5º - 1. Todo
o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o
direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua
espécie. 2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com
fins mercantis é contrária a este direito. Art. 6º - 1. Todo o animal que o homem escolheu para seu
companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural. 2. O abandono de
um animal é um ato cruel e degradante. Art. 7º - Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação
razoável de duração e de intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso. Art.
8º - 1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os
direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja
a forma de experimentação. 2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.
Art. 9º - Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado
e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor. Art. 10º - 1. Nenhum animal deve de
ser explorado para divertimento do homem. 2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem
animais são incompatíveis com a dignidade do animal. Art. 11º - Todo o ato que implique a morte de
um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um crime contra a vida. Art. 12º - 1. Todo o ato que
implique a morte de um grande número de animais selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra
a espécie. 2. A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio. Art. 13º - 1. O
animal morto deve de ser tratado com respeito. 2. As cenas de violência de que os animais são víti-
mas devem de ser interditas no cinema e na televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um
atentado aos direitos do animal. Art. 14º - 1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais
devem estar presentados a nível governamental. 2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela
lei como os direitos do homem”. Disponível em: https://portal.cfmv.gov.br/uploads/direitos.pdf. Acesso
em: 03 ago. 2018.
15
A propósito do direito animal de não ser tratado como coisa, consultar a obra fundamental (e já tradu-
zida para o português), de Gary Francione: Introdução ao direito dos animais: seu filho ou o cachorro?
Tradução Regina Rheda. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.
16
Segundo Marinoni, Arenhart e Mitidiero, “a tutela jurisdicional, além de tomar em conta a Constituição,
deve considerar o caso e as necessidades do direito material, uma vez que as normas constitucionais
302 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

O direito animal à existência digna revela-se como sendo um verdadeiro direito


fundamental zoocêntrico, situado em uma nova dimensão de direitos fundamentais: a
quarta17 ou sexta dimensão18 19 - a dimensão dos direitos fundamentais pós-humanistas.20
A fundamentalidade material21 do direito animal à existência digna decorre da
dignidade animal derivada da senciência. Mas esse direito animal também é dotado
de fundamentalidade formal,22 dado que exsurge a partir da regra constitucional da
proibição da crueldade.
Toda essa realidade demonstra-se completamente incompatível com as equipa-
rações tradicionais entre animais e coisas, animais e bens ou com a consideração dos
animais como simples meios para o uso arbitrário desta ou daquela vontade humana.23
devem iluminar a tarefa de tutela jurisdicional dos direitos. É por isso mesmo que a ideia de dar sentido
aos valores previstos nas normas constitucionais pode, em uma primeira leitura, mostrar dificuldade
para explicar a complexidade da função do juiz. Na verdade, a jurisdição tem o objetivo de dar tutela
às necessidades do direito material, compreendidas à luz das normas constitucionais” (Novo curso de
processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2016. p. 124).
17
Quarta dimensão, se considerarmos, segundo a teoria constitucional, apenas as três dimensões já
reconhecidas dos direitos fundamentais: os de primeira dimensão, como os direitos civis ou políticos;
os de segunda dimensão, como os direitos econômicos, sociais e culturais; e os de terceira dimensão,
como os direitos de solidariedade e fraternidade, dentre os quais o direito ao meio ambiente ecologi-
camente equilibrado (SARLET, , op. cit., p. 45-50).
18
Sexta dimensão, se considerarmos, além das três já consolidadas pela teoria tradicional, duas outras
dimensões, as quais, porém, não contam com uniformidade doutrinária. Registre-se, apenas, que, de
acordo com a perspectiva do Prof. Paulo Bonavides, os direitos fundamentais de quarta dimensão
seriam os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo e os direitos fundamentais de quinta
dimensão diriam respeito ao direito à paz (conforme SARLET, ,
op. cit., p. 50-52).
19
Zulmar Fachin e Deise Marcelino da Silva defendem que o direito fundamental à água potável seria
direito fundamental de sexta dimensão (Acesso à água potável: direito fundamental de sexta dimensão.
Campinas, SP: Millennium, 2010). Não nos parece, no entanto, que o direito à água potável se desligue
do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para compor uma nova dimensão de direitos fun-
damentais. Direitos fundamentais para além do ser humano (direitos fundamentais pós-humanistas) pare-
cem, melhor, constituir a mais nova dimensão dos direitos fundamentais (nesse caso, a sexta dimensão).
20
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber
pós-humanista. Salvador: Evolução, 2014. p. 33-42.
21
“A ideia de fundamentalidade material insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente
constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 379).
22
A fundamentalidade formal resulta da positivação constitucional, assumindo, com isso, direito de
natureza supralegal, com submissão aos limites formais e materiais de reforma (no caso, em especial,
constitui cláusula pétrea, conforme art. 60, §4º, IV da Constituição) e com aplicabilidade direta, imediata
e vinculante às entidades públicas e privadas (art. 5º, §1º, da Constituição) (SARLET,
direitos fundamentais..., op. cit., p. 75-76).
23
A Áustria foi pioneira em incluir, no seu Código Civil, em 1988, um dispositivo afirmando que os animais
não são coisas (tiere sind keine sachen), protegidos por leis especiais (§ 285a do ABGB); no mesmo
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 303

Como se verá, o Direito Animal brasileiro se afirma historicamente, pois já conta


não apenas com fundamentos constitucionais, mas também com estatutos legais,
construções doutrinárias emergentes e receptividade jurisprudencial, as quais permitem
estruturar a sua autonomia científica.24

2. O DIREITO ANIMAL BRASILEIRO NO PLANO CONSTITUCIONAL

Positivamente, o Direito Animal no Brasil nasceu com a Constituição de 1988.


Foi nesse texto normativo que se afirmou, constitucionalmente, a regra da
proibição da crueldade, com o consequente reconhecimento do direito fundamental
animal à existência digna. Antes dela, nenhuma outra Constituição brasileira tratou da
questão animal.
Segundo o art. 225, § 1º, VII, da Constituição brasileira, incumbe ao Poder
Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais a crueldade”.25
sentido, em 1990, foi inserido o § 90a no BGB alemão; em 2003, também no art. 641a do Código Civil
suíço; de forma diferenciada foi a alteração do Código Civil francês, em 2015, dispondo, em seu art.
515-14, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade (Les animaux sont des êtres vivants
doués de sensibilité); na mesma linha do direito francês, mudou o Código Civil português, em 2017,
estabelecendo que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica
em virtude da sua natureza (art. 201º-B). No Brasil, tramitam no Congresso Nacional vários projetos
de lei com o objetivo de conferir novo status jurídico, no plano infraconstitucional, aos animais. Dentre
outros, o Projeto de Lei da Câmara 6.799/2013, de autoria do Deputado Ricardo Izar, estabelece que
“Os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos
despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo
vedado o seu tratamento como coisa”. Esse projeto também inclui parágrafo único no art. 82 do Có-
digo Civil brasileiro, para regrar que o regime jurídico de bens não se aplica a animais domésticos e
silvestres. Tal projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal,
em 19.04.2018, no qual recebeu o número PLC 27/2018, sob relatoria do Senador Hélio José.
24
Norberto Bobbio, no início dos anos 90 do século passado, já profetizava: “Olhando para o futuro, já
podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é
ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos
sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no
máximo, como sujeitos passivos, sem direitos” (A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992. p. 63,
grifo nosso).
25
Pode parecer, à primeira vista, que se trata de , pela aposição
da expressão “nos termos da lei”. Ao contrário, trata-se de , na
qual a lei ordinária serve apenas como reforço proibitivo. Sobre esse tema, consultar o voto do Ministro
Carlos Ayres Britto, na ADIn 1856, que proibiu a rinha ou briga de galos no Rio de Janeiro (STF, Pleno,
ADIn 1856/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 26.05.2011, publicado em 14.10.2011) e o
voto do Ministro Francisco Rezek, no RE 153.531-8/SC, que proibiu a farra do boi em Santa Catarina
(STF, 2ª Turma, Relator Ministro Francisco Rezek, Acórdão lavrado pelo Ministro Marco Aurélio, julgado
304 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

A parte final desse inciso constitucional consagra a regra da proibição da cruel-


dade. Note-se que a proibição das práticas que submetam os animais à crueldade é
comando constitucional diverso do dever público de proteção da fauna e da flora contra
as práticas que coloquem em risco sua função ecológica. Disso deriva a separação,
ainda que não absoluta, entre Direito Animal e Direito Ambiental. No Direito Animal
Constitucional, o animal não humano é indivíduo; no Direito Ambiental Constitucional, o
animal não humano é componente da fauna e da biodiversidade, elemento da Natureza,
com relevância para a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Pode-se objetar que a regra da proibição da crueldade contra animais está
inserida no capítulo constitucional do meio ambiente, de maneira que sua interpretação
deverá ser feita em consonância com os demais componentes do art. 225, que discipli-
nam o direito fundamental ao equilíbrio ecológico, bem de uso comum do povo.26 Nessa
linha de pensamento, o Direito Animal estaria absorvido pelo Direito Ambiental ou, mais
radicalmente, não existiria na Constituição. Essa interpretação, que leva mais em conta
a topografia normativa, não se sustenta a partir de um mínimo rigor hermenêutico.
A proibição da crueldade contra animais não se funda no respeito ao equilíbrio
ecológico.
A parte final do inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição seria mais adequa-
damente disposta em artigo separado. Isso porque a regra da proibição da crueldade
se fundamenta na dignidade animal, de índole individual, decorrente da capacidade
de sentir dor e experimentar sofrimento, ínsita aos seres vivos que compõem o reino
animal. Cães e gatos domésticos, por exemplo, enquanto tais, não ostentam relevância
ambiental. E o mesmo pode se dizer de qualquer outro animal doméstico,27 como os
envolvidos na produção industrial dos cosméticos, da carne, dos ovos e do couro. Vacas
e bois, porcos, galinhas, carneiros, peixes e outros animais submetidos à exploração
econômica somente passam a interessar ao Direito Ambiental quando considerados na
sua influência populacional. Como exemplo disso, sabe-se que um dos maiores fatores
que contribuem, diariamente, para a devastação da Floresta Amazônica, é a pecuária.28

em 03.06.1997, publicado em 13.03.1998); da mesma forma, a doutrina ambientalista de Paulo Affonso


Leme Machado, também evocando precedentes do STF, para a qual não cabe “à lei ordinária, de forma
direta ou indireta, de forma clara ou sub-reptícia, permitir atividades cruéis ou que possam ser cruéis.”
(Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 169).
26
Nesse sentido: FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 18. ed. São
Paulo: Saraiva, 2018. p. 272 e seguintes. Para esse autor, os animais são bens sobre os quais incide
a ação da pessoa humana.
27
Sobre essa asserção concorda Celso Antonio Pacheco Fiorillo, muito embora ressalve que a existência
dos animais domésticos “traz benefícios relacionados ao bem-estar psíquico do homem.” (op. cit., p. 272).
28
RIVERO, Sérgio, ALMEIDA, Oriana, ÁVILA, Saulo, OLIVEIRA, Wesley. Pecuária e desmatamento: uma
análise das principais causas diretas do desmatamento da Amazônia. Nova Economia, Belo Horizonte,
v. 19, n. 1, jan./abr. 2009.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 305

Como também se sabe que a criação intensiva do gado gera resíduos potencialmente
poluidores.29 Nesses casos, bois e vacas interessam ao Direito Ambiental e atraem a
incidência das regras e princípios do art. 225 da Constituição. Para o Direito Animal,
cada animal não humano interessa, independentemente da sua função ou influência
ecológica, esteja isolado ou em grupo, seja silvestre, seja doméstico ou domesticado,
por causa da sua individualidade peculiar de ser vivo que sofre e que, por isso mesmo,
merece respeito e consideração. O fato de um ser humano maltratar, ferir, abusar ou
mutilar um animal não humano pouco importa para a manutenção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado.30 Esse fato viola a dignidade individual do animal submetido
à crueldade e não a sua função ecológica.
O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da adequada interpretação
constitucional,31 já teve a oportunidade de manifestar o entendimento sobre a auto-
nomia da regra da proibição da crueldade e sua desconexão com a preservação do
meio ambiente. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADIn da
vaquejada), no final de 2016, o STF, por meio do voto-vista vencedor do Ministro Luís
Roberto Barroso, afirmou que:

A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal


deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua
proteção não se dê unicamente em razão de uma função eco-

reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só


assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente
moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício
dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de
que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do
equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua
importância para a preservação de sua espécie.32 (grifo nosso).
29
Confira-se o relatório da Humane Society International sobre O impacto da criação de animais para
consumo no meio ambiente e nas mudanças climáticas no Brasil. Disponível em: http://www.hsi.org/
assets/pdfs/hsi-fa-white-papers/relatorio_hsi_impactos_pecuaria.pdf. Acesso em: 07 abr. 2018.
30
É evidente que no caso de animais cuja espécie esteja em risco de extinção torna-se intolerável, do ponto
de vista ambiental, qualquer conduta humana que possa comprometer a vida, a integridade física e a
saúde de qualquer indivíduo dessa espécie. Em hipóteses como essa, Direito Ambiental e Direito Animal
trabalham em conjunto para a proteção dos indivíduos ameaçados, ainda que com propósitos diferentes:
o primeiro para a preservação da biodiversidade, o segundo para o respeito à dignidade animal.
31
MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência
ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 94-102.
32
Eis a ementa do respectivo acórdão: “VAQUEJADA - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ANIMAIS - CRUEL-
DADE MANIFESTA - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - INCONSTITUCIONALIDADE. A
obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização
e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225
306 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

O Direito Animal, portanto, está na Constituição.33


A sua autonomia em relação ao Direito Ambiental está presente na jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal,34 com todas as suas características fundantes. Reco-
nhece-se que o sofrimento animal importa por si só, o que revela a dignidade animal
e o seu direito fundamental à existência digna.35
Também se pode objetar que ainda que se reconheça a proteção constitucional
da dignidade animal, positivada a partir da regra da proibição da crueldade, a própria
Constituição permite a exploração econômica dos animais ao catalogar, dentre as
competências administrativas da União, dos Estados e dos Municípios, o fomento à
produção agropecuária (art. 23, VIII, Constituição) e ao incluir, dentro da política agrícola
constitucional, o planejamento agrícola das atividades agropecuárias e pesqueiras
(art. 187, § 1º, Constituição). Em decorrência dessas disposições permissivas da Carta
Magna, os animais continuariam a ostentar, mesmo na atual ordem constitucional, a
natureza jurídica de coisas ou bens, mesmo que de relevância ambiental.36
Como todo ramo jurídico, o Direito Animal tem seu horizonte utópico: a abolição
de todas as formas de exploração humana sobre os animais. No entanto, também
conhece seus limites contemporâneos. Se o ordenamento constitucional não alberga
o abolicionismo animal, o Direito Animal trabalha nas fronteiras das suas possibilidades
para garantir a existência digna dos animais submetidos à pecuária e à exploração
industrial. Ainda que não se possa garantir, do plano legal, o direito à vida dos animais
submetidos às explorações pecuária e pesqueira, isso não lhes retira a dignidade
própria como indivíduos que sofrem, nem o seu direito fundamental à existência digna,
da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da
norma constitucional a denominada vaquejada”. (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio,
julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
33
A Constituição alemã, ou Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949, foi emendada,
em 2002, para incluir, no seu art. 20a (cuja inclusão se deu em 1994), a expressão “e os animais”, ficando
o artigo assim redigido: “Tendo em conta também a sua responsabilidade frente às gerações futuras,
o Estado protege os recursos naturais vitais e os animais, dentro do âmbito da ordem constitucional,
através da legislação e de acordo com a lei e o direito, por meio dos poderes executivo e judiciário”
(grifo nosso).
34
Como também está na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: STJ, 2ª Turma, REsp 1115916/
MG, Relator Ministro Humberto Martins, julgado em 01.09.2009, publicado em 18.09.2009.
35
“Se levarmos o direito brasileiro a sério, temos de admitir que o status jurídico dos animais já se
encontra a meio caminho entre a propriedade e a personalidade jurídica, uma vez que a Constituição
expressamente os desvincula da perspectiva ecológica para considerá-los sob o enfoque ético, proibindo
práticas que os submetam à crueldade” (GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal.
Salvador: Evolução, 2008. p. 122).
36
Nesse sentido: HACHEM, Daniel Wunder; GUSSOLI, Felipe Klein. Os animais são sujeitos de direito
no ordenamento jurídico brasileiro? Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador: Evolução, v. 13,
n. 03, p. 141-172, set./dez. 2017. p. 156-159.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 307

posta a salvo dos meios cruéis utilizados no processo produtivo. Permanecem como
sujeitos do direito fundamental à existência digna. O fato de a Constituição referir à
pecuária e à pesca não faz retroceder seu avanço ético em reconhecer os animais
não humanos como sujeitos sencientes - e não como meras coisas ou bens sujeitos
à arbitrária disposição humana. A pecuária e a pesca, bem como qualquer forma de
exploração dos animais, passam a ser entendidas como atividades contingentes, des-
tinadas a atender às
. Ademais, note-se, a permissão constitucional para
a atividade pecuária e pesqueira como suposto fundamento para rebaixar os animais
não humanos ao status de coisa, não pode ser evocado para uma faixa significativa
de espécies animais, não submetidos à exploração econômica.37
Como o direito fundamental animal à existência digna é direito individual, atribuí-
vel a cada animal em si, constitui-se em cláusula constitucional pétrea, não podendo ser
objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-lo
(art. 60, § 4º, IV, Constituição).38
Mas a tutela constitucional dos animais não humanos, considerados em si
mesmos, desperta uma série de reações políticas, especialmente por parte dos setores
que lucram com a exploração animal em todas as suas formas. O grau de influência
e mobilização do poder econômico - e do consequente poder político - da indústria
da exploração animal bem pode ser visualizado por intermédio do efeito backlash39
à decisão da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, já referida, que
declarou a inconstitucionalidade de lei cearense que regulamentava a vaquejada.40 O
julgamento pelo plenário da Suprema Corte brasileira ocorreu em 06.10.2016, mas o
respectivo acórdão somente foi publicado em 27.04.2017. Após intensa cobertura jor-
nalística e midiática, com mobilização dos respectivos setores, organizando passeatas
e caravanas de “vaqueiros” em prol da “regularização” da atividade,41 o Congresso
37
Os animais silvestres, por exemplo, não podem ser mortos, perseguidos, caçados, apanhados ou uti-
lizados, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo
com a obtida (art. 29, Lei 9.605/1998). Os cetáceos não podem ser pescados, nem sequer molestados
(art. 1º, Lei 7.643/1987).
38
Em sentido mais amplo, considerando cláusula pétrea todo o conteúdo do art. 225 da Constituição:
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição,
direitos fundamentais e proteção do ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 83-84.
39
LIMA, George Marmelstein. Efeito backlash da jurisdição constitucional: reações políticas à atuação
judicial. Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-cons-
titucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/. Acesso em: 22 mar. 2018.
40
FIGUEIREDO, Francisco José Garcia; GORDILHO, Heron José de Santana. A vaquejada à luz da
Constituição Federal. Revista de Biodireito e Direitos dos Animais, Curitiba, v. 2, n. 02, p. 78-96, jul./
dez. 2016. p. 91-94.
41
Confira-se: TV BRASIL. Milhares de vaqueiros ocuparam hoje a Esplanada dos Ministérios em protesto.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TayQcOPdiYU. Acesso em: 22 mar. 2018.
308 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Nacional aprovou, em 06.06.2017 (apenas oito meses após o julgamento do STF), a


Emenda Constitucional 96, pela qual foi introduzido o § 7º no art. 225 da Constituição,
determinando que:
Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste
artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que
utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, con-
forme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas
como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural
brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que
assegure o bem-estar dos animais envolvidos.

Não é preciso muito para concluir pela inconstitucionalidade da Emenda


Constitucional 96/2017.42 O efeito backlash - a reação política à atuação da jurisdição
constitucional - por si só não gera a inconstitucionalidade da emenda.43 Mas o poder
de reforma constitucional conhece , consubstanciadas nas cláu-
sulas pétreas do art. 60, § 4º, da Constituição, dentre as quais os direitos e garantias
individuais.44 A regra da proibição da crueldade, prevista no art. 225, § 1º, VII, da
Constituição, personificou o direito fundamental animal à existência digna (de quarta
ou de sexta geração, pós-humanista), de natureza individual, posta a salvo de práticas
humanas cruéis. Como direito fundamental individual, ainda que não humano, é imune
ao poder constituinte derivado.45 O processo legislativo da emenda constitucional sequer
poderia ter sido iniciado. As práticas cruéis contra animais estão constitucionalmente
interditadas. Não importa se a prática é desportiva, se é manifestação cultural, se é
registrada como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro
ou se existe lei local regulamentando a atividade. Caso a prática implique em crueldade
contra animais, está proibida pela ordem constitucional vigente, ainda que a lei local
procure paliativos para reduzir a dor, a angústia e o sofrimento dos animais envolvidos. A
prática cruel não comporta gradações.46 A crueldade é, de qualquer forma, incompatível
42
Já foram protocoladas, no Supremo Tribunal Federal, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade
para questionar a Emenda Constitucional 96/2017: ADIn 5758, distribuída em 13.06.2017, à relatoria
do Ministro Dias Toffoli; ADIn 5772, proposta pelo Procurador-Geral da República, distribuída em
12.09.2017, à relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso.
43
CARVALHO, Márcia Haydée Porto de, MURAD, Rakel Dourado. O caso da vaquejada entre o Supremo
Tribunal Federal e o Poder Legislativo: a quem cabe a última palavra? Revista de Biodireito e Direitos
dos Animais, Maranhão, v. 3, n. 02, p. 18-37, jul./dez. 2017. p. 34-36.
44
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 65-66.
45
Sobre a garantia constitucional implícita da proibição de retrocessos em matéria de direitos fundamentais,
consultar: SARLET, , op. cit., p. 451-476.
46
Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, “A proteção dos animais contra a crueldade, que
vem inscrita no capítulo constitucional dedicado ao meio ambiente, atrai a incidência do denominado
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 309

com os valores adotados pela Constituição. No julgamento da ADIn 4983, o STF reco-
nheceu, por meio de dados empíricos, que a prática da vaquejada é intrinsecamente
cruel, não havendo como existir vaquejada sem crueldade.47 Essa mesma conclusão
poderá ser estendida a outras práticas similares à vaquejada - como os rodeios -, caso
se constate, por dados empíricos, que também são intrinsecamente cruéis. Ora, não
há como alterar a natureza das coisas!48 Se a vaquejada é cruel, não há como criar
regra - como a criada pela Emenda Constitucional 96 - simplesmente dizendo que não
se considera cruel sob determinadas condições!49
Não obstante esse episódio, o Direito Animal, no plano constitucional brasileiro,
está bem estabelecido para possibilitar uma dogmática sólida e ampliativa.

3. O DIREITO ANIMAL BRASILEIRO NO PLANO LEGAL

As condições para um Direito Animal autônomo no Brasil somente se reuniram


a partir da Constituição da República de 1988.

princípio da precaução. Tal princípio significa que, na esfera de sua aplicação, mesmo na ausência de
certeza científica, isto é, ainda que exista dúvida razoável sobre a ocorrência ou não de um dano, o
simples risco já traz como consequência a interdição da conduta em questão. Com mais razão, deve
este relevante princípio jurídico e moral incidir nas situações em que a possibilidade real de dano é
inequívoca, sendo certo que existem inúmeras situações de dano efetivo” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator
Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
47
Segundo o Ministro Marco Aurélio, relator da ação direta, “tendo em vista a forma como desenvolvida,
a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir
animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não
mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o boi não
sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator
Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
48
Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado: “A crueldade não se transforma em benignidade só por
efeito de uma lei, ainda que constitucional, pois uma lei não tem força para transmudar ‘água em vinho’,
rompendo a ordem natural das coisas. Quem vibra com o sofrimento de um animal está a um passo de
brutalizar o seu próprio irmão” (op. cit., p. 172).
49
Na parte final do seu voto, o Ministro Marco Aurélio refuta a prevalência de valores culturais sobre a regra
da não crueldade. Segundo ele, “A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas
do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e
médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado
desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade”
constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de
dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se
intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito
de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão
de proteção ao meio ambiente” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em
06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
310 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Apesar disso, normas jurídicas anteriores, com perspectivas zoocêntricas, foram


recepcionadas pela atual Constituição.
Nesse sentido, merece registro um diploma legal precedente, ainda hoje do-
tado de vigência,50 mesmo que parcial, o qual, pela sua organicidade, generalidade
e perspectiva zoocêntrica, é considerado a primeira lei do Direito Animal brasileiro:
trata-se do Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934,51 editado pelo governo provisório
de Getúlio Vargas, ainda na vigência da primeira Constituição republicana de 1891.52
O Decreto 24.645/1934, na sua vigência original, constituiu-se no verdadeiro
estatuto jurídico geral dos animais. No seu artigo de abertura, estabeleceu que todos
os animais existentes no País são tutelados pelo Estado.53 O Estado brasileiro, naquele
momento, chamou para si a responsabilidade pela proteção dos animais, considera-
dos, para esse fim, como “todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou
selvagem, exceto os daninhos” (art. 17).
Esse estatuto geral dos animais foi o primeiro diploma legal de Direito Animal
porque disciplinou a tutela jurídica dos animais, considerando-os como um fim em si
mesmos, capazes de sofrer e sentir dor e, portanto, dotados de dignidade. Não há
qualquer referência à importância ambiental e ecológica dos animais a serem tutela-
dos. Todos os animais existentes são tutelados. Facilmente se extrai desse estatuto
que a sua função primordial foi impedir as práticas humanas cruéis contra animais,
caracterizando-as como crime de maus-tratos, com farta tipologia de fatos e situações
assim consideradas.54
50
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada
disso. Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, São
Paulo, ano 1, v. 1. n. 02, p. 149-169, jul. 2001. p. 155; ARAÚJO, Fernando. A hora dos direitos dos
animais. p. 288-289.
51
É comum citar como primeira lei de Direito Animal no Brasil o Decreto 16.590/1924, assinado pelo
Presidente Arthur Bernardes, que regulamentava as casas de diversões públicas, o qual, em seu art.
5º, proibia licença para “corridas de touros, garraios, novilhos, brigas de galo e canários e quaisquer
outras diversões desse gênero que causem sofrimento aos animais” (LEVAI, op. cit., p. 30). No entanto,
o Decreto 24.645/1934 se sobressai como a primeira norma jurídica geral, aplicável a todos os animais
e destinada exclusivamente a isso. Por essa razão, esse segundo Decreto merece a consagração como
primeira lei do Direito Animal brasileiro, o qual, como dito, ainda continua em vigor.
52
A Constituição de 1934 foi promulgada logo após, em 16 de julho. É importante registrar que os Decretos
desse primeiro período da Era Vargas, editados com força de Lei Ordinária (conforme Decreto 19.398,
de 11 de novembro de 1930), disciplinaram vários setores da ordem jurídica nacional. Com destaque,
continua a vigorar até hoje, sem nenhuma revogação expressa ou tácita, o Decreto 20.910/1932, que
disciplina a prescrição quinquenal em favor da Fazenda Pública.
53
Ao contrário do que fez, posteriormente, a Lei 5.197/1967 - atual lei de proteção da fauna silvestre -,
que passou a considerar, em seu art. 1º, que os animais silvestres são propriedades do Estado.
54
Art. 3º Consideram-se maus-tratos: I - praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - manter
animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso,
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 311

O Decreto 24.645/1934 positivou, dessa maneira, a primeira regra geral da


proibição da crueldade do Direito brasileiro.

ou os privem de ar ou luz; III - obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas fôrças
e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes
possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou
tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas
em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência;
V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o
que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VI - não dar morte rápida,
livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário, parar consumo ou
não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;
VIII - atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares
ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho etc. conjunto a animais da mesma espécie; IX -
atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças
ou com arreios incompletos incômodos ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os
molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo; X - utilizar, em serviço, animal cego, ferido,
enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso somente se aplica a localidade
com ruas calçadas; XI - açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veículo
ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se; XII - descer ladeiras com veículos
de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório; XIII - deixar de revestir
com couro ou material com idêntica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro;
XIV - conduzir veículo de terão animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha boleia
fixa e arreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca; XV - prender animais atraz dos
veículos ou atados ás caudas de outros; XVI - fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros,
sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas continuas sem lhe dar água e alimento; XVII -
conservar animais embarcados por mais da 12 horas, sem água e alimento, devendo as emprêsas de
transportes providenciar, saibro as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 mêses a
partir da publicação desta lei; XVIII - conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de
cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de qualquer outro modo que lhes produza sofrimento;
XIX - transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho
e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por
uma rêde metálica ou idêntica que impeça a saída de qualquer membro do animal; XX - encerrar em
curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou
deixá-los sem água e alimento mais de 12 horas; XXI - deixar sem ordenhar as vacas por mais de 24
horas, quando utilizadas na explorado do leite; XXII - ter animais encerrados juntamente com outros
que os aterrorizem ou molestem; XXIII - ter animais destinados à venda em locais que não reúnam as
condições de higiene e comodidades relativas; XXIV - expor, nos mercados e outros locais de venda,
por mais de 12 horas, aves em gaiolas; sem que se faça nestas a devida limpeza e renovação de
água e alimento; XXV - engordar aves mecanicamente; XXVI - despelar ou depenar animais vivos ou
entregá-los vivos à alimentação de outros; XXVII - ministrar ensino a animais com maus-tratos físicos;
XXVIII - exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem, exceto sobre os pombos, nas
sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca; XXIX - realizar ou promover lutas
entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda
mesmo em lugar privado; XXX - arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculo e exibi-los, para
tirar sortes ou realizar acrobacias; XXXI - transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano,
aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores e outras aves de pequeno porte, exceção feita para
as autorizações com fins científicos, consignadas em lei anterior.
312 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Mas, a importância mais significativa do Decreto 24.645/1934 para o Direito


Animal contemporâneo é outra.
Essa lei considerou especialmente a tutela jurisdicional dos animais, seja pela
repressão penal, seja pelas ações civis (art. 2º, caput, parte final). Cada animal, vítima,
ou potencial vítima, de maus-tratos, passou a gozar do direito de estar em juízo. Os
animais passaram a poder ser assistidos em juízo pelos representantes do Ministério
Público, pelos seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de
animais (art. 2º, § 3º). Em outras palavras, inequivocamente, o Decreto 24.645/1934
conferiu capacidade de ser parte aos animais,55 estabelecendo, no plano legal, seu
status de sujeitos de direitos,56 afinal, não haveria sentido algum em conferir capacidade
de ser parte a quem não desfrutasse de direitos a serem defendidos judicialmente. Os
animais, enquanto sujeitos do direito à existência digna, têm capacidade de ser parte em
juízo, ainda que não tenham capacidade processual,57 suprida pela atuação do Ministério
Público, dos substitutos legais do animal (seus tutores ou guardiões, por exemplo), além
das organizações não governamentais destinadas à proteção dos animais.
Mesmo que a legislação civil brasileira não confira, expressamente, persona-
lidade civil aos animais, ou status jurídico de pessoas, a capacidade de ser parte a
eles atribuída pelo Decreto 24.645/1934 já lhes posiciona, dentro do direito positivo,
como sujeitos de direitos passíveis de tutela jurisdicional. Sabe-se que a personalidade
judiciária não depende da personalidade civil. Entes despersonalizados têm direitos
e podem defender esses direitos em juízo, por meio de seus representantes legais.58
55
Cf. GORDILHO, Heron José de Santana, SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Animais em juízo: di-
reito, personalidade jurídica e capacidade processual. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: RT,
v. 65, p. 333-363, jan. 2012; SILVA, Trajano Tagore de Almeida. Capacidade de ser parte dos animais
não humanos: repensando os institutos da substituição e representação processual. Revista Brasileira
de Direito Animal, Salvador: Evolução, ano 4, n. 05, p. 323-352, jan./dez. 2009. No direito comparado:
SUNSTEIN, Cass R. Can animals sue? In: SUNSTEIN, Cass R.; NUSSBAUM, Martha C. (Coord.).
Animal rights: current debates and new directions. New York: Oxford University Press, 2004. p. 251-262.
56
RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito e os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 124-126.
57
A capacidade de ser parte diferencia-se da capacidade processual ou capacidade de estar em juízo,
na medida em que a primeira “é a capacidade, ativa ou passiva, de ser sujeito da relação jurídica
processual” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil.
Rio de Janeiro: Forense; Brasília: INL, t. I, 1973. p. 243), ao passo que a segunda significa a possibili-
dade de exercício direto da demanda e dos direitos processuais. Assim, uma criança de dez anos tem
capacidade de ser parte, porquanto é sujeito de direitos, mas não tem capacidade processual, porque,
para estar em juízo defendendo seus direitos, precisará estar por meio de seus representantes legais
(TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 16. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 1, 2016. p. 300-301).
58
O exemplo mais emblemático é o do nascituro, o qual, muito embora não possua personalidade civil
(art. 2º, Código Civil), é sujeito de uma pletora de direitos fundamentais, os quais podem ser defendidos
por intermédio dos seus representantes legais.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 313

Os animais, muito embora ainda não contem com personalidade civil positivada, são
titulares do direito fundamental à existência digna, derivado da regra constitucional
da proibição da crueldade, e podem ir a juízo, como dito anteriormente, por meio do
Ministério Público, de seus substitutos legais ou das associações de defesa animal,
conforme regra, positiva e vigente, do art. 2º, § 3º, do Decreto 24.645/1934.
Mesmo que a repressão penal à crueldade e aos maus-tratos a animais tenha
sofrido alterações legislativas posteriores, especialmente por intermédio da Lei de
Contravenções Penais59 e da atual Lei dos Crimes Ambientais,60 o Decreto 24.645/1934
mantém, no âmbito penal, sua relevância para o preenchimento normativo das condutas
que podem, efetivamente, caracterizar maus-tratos. A tipologia de práticas cruéis do
Decreto 24.645/1934, ainda que não mais represente as modalidades criminosas da
atualidade, pode servir como elemento interpretativo para os tipos penais mais abertos
e genéricos existentes hoje. De qualquer maneira, mesmo que se considere a completa
revogação dos tipos penais contidos no Decreto 24.645/1934, esse estatuto jurídico
ainda permanece vigendo, com seu status de lei ordinária,61 a orientar as
que tenham por objeto a prevenção ou repressão de práticas cruéis contra animais
59
Decreto-Lei 3.688/1941, art. 64: Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena
- prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis. § 1º Na mesma pena
incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao
público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se
o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.
60
Lei 9.605/1998, art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos
ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente,
ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas
mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo
com a obtida; II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende,
expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos,
larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela
oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização
da autoridade competente. § 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada
ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. § 3º São
espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer
outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos
limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. § 4º A pena é aumentada de metade, se
o crime é praticado: I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente
no local da infração; II - em período proibido à caça; III - durante a noite; IV - com abuso de licença;
V - em unidade de conservação; VI - com emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar
destruição em massa. § 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça
profissional. § 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca. Art. 32. Praticar ato de
abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza expe-
riência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem
recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
61
O que torna inócua qualquer tentativa posterior de revogação por simples edição de Decreto Executivo,
sem passar pelo devido processo legislativo, como se tentou fazer através do Decreto 11/1991, assinado
pelo ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Nesse sentido: BENJAMIN, cit., p. 155.
314 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

(art. 2º, parte final, Decreto 24.645/1934), legitimando os próprios animais a estarem
em juízo por meio do Ministério Público, dos seus substitutos legais ou das associações
de proteção animal.62 Segundo o magistério de Fernando Araújo,

a óbvia incapacidade de exercício, pelos animais, dos direitos


que convencionalmente lhes sejam atribuídos não obsta a que
estes direitos sejam sistematicamente exercidos por represen-
tantes não núncios, precisamente da mesma forma que o são
para os incapazes humanos.63

No plano legislativo federal, como diploma legal geral do Direito Animal, ao


lado do Decreto 24.645/1934, encontra-se o art. 32 da Lei 9.605/1998, que tipifica, na
atualidade, o crime de maus-tratos contra animais, melhor denominado crime contra a
dignidade animal.64 Esse artigo da Lei de Crimes Ambientais brasileira é uma regra de
Direito Animal - e não de Direito Ambiental - exatamente porque estabelece condutas
humanas proibidas por violarem a dignidade individual do animal não humano. Não é
um crime contra o meio ambiente, mas um crime contra o animal-indivíduo. Mais do que
estabelecer sanções penais a quem comete o crime contra os direitos animais, o art. 32
da Lei 9.605/1998 densifica a regra constitucional da proibição da crueldade, especifi-
cando práticas consideradas cruéis e, portanto, proibidas. É prática cruel toda conduta
consistente em abusar, maltratar, ferir ou mutilar animais (art. 32, caput); da mesma
forma, é prática cruel toda experimentação dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que
(art. 32, § 1º);
ainda, é prática cruel matar animais com abuso, maus-tratos, ferimento, mutilação ou
experimentação dolorosa ou cruel quando existirem recursos alternativos (art. 32, § 2º).
O art. 32 da Lei 9.605/1998, como norma jurídica de Direito Animal, orienta não
apenas a tutela penal dos animais, como também a tutela individual ou coletiva dos
62
O Decreto 24.645/1934 está em vigor e continua sendo utilizado na fundamentação de importantes
decisões judiciais das Cortes Superiores brasileiras. Exemplos significativos: no Supremo Tribunal
Federal - ADIn 1.856-6/RJ, conforme voto do relator Ministro Carlos Velloso, pela qual foi declarada a
inconstitucionalidade da lei carioca que regulamentava a “briga de galos” (STF, Plenário, ADIn 1856
MC, Relator Ministro Carlos Velloso, julgado em 03.09.1998, DJ 22.09.2000); no Superior Tribunal de
Justiça - REsp 1115916/MG, ementa e voto do Ministro Humberto Martins, pelo qual foi mantido acórdão
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que impedia o uso de gás asfixiante no abate de animais, con-
siderado prática cruel (STJ, 2ª Turma, REsp 1115916/MG, Relator Ministro Humberto Martins, julgado
em 01.09.2009, DJe 18.09.2009).
63
A hora dos direitos dos animais. p. 301.
64
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domestica-
dos, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas
penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou
científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço,
se ocorre morte do animal.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 315

animais, porquanto estabelece os parâmetros normativos da regra constitucional da


proibição da crueldade. Em outras palavras, além da repressão penal das condutas
proibidas, será possível usar as normas jurídicas contidas no tipo penal para a defesa
individual ou coletiva dos animais, por meio de ações individuais (pelo procedimento co-
mum ou por procedimentos especiais) ou coletivas (pela ação civil pública, disciplinada
pela Lei 7.347/1985 ou pelas ações coletivas regradas no Título III da Lei 8.078/1990),
com caráter inibitório (art. 497, parágrafo único, CPC), preventivo ou repressivo. Toda
ação humana que caracterize prática cruel, segundo o art. 32 da Lei 9.605/1998 (ou
mesmo segundo o art. 3º do Decreto 24.645/1934), viola o direito fundamental animal à
existência digna e deve ser objeto de ações cíveis inibitórias, preventivas ou repressivas
manejadas pelo Ministério Público, pelos substitutos legais do animal vitimado ou pelas
associações de defesa animal. Trata-se de uma regra universal de tutela da dignidade ani-
mal, pois protege a universalidade dos animais contra a crueldade, independentemente
da qualificação do animal como silvestre, doméstico ou domesticado, nativo ou exótico.
Portanto, o Direito Animal, como ramo jurídico, tem o art. 225, § 1º, inciso
VII, parte final da Constituição, como fonte normativa primária, densificada, no plano
legislativo federal geral, pelo Decreto 24.645/1934 e pelo art. 32 da Lei 9.605/1998.65
Mas o ordenamento jurídico de Direito Animal também é composto pela legisla-
ção estadual e municipal, dado que a Constituição, ao estabelecer a forma federativa
de Estado, distribuiu competência legislativa concorrente entre União e Estados para
legislar sobre fauna (art. 24, VI, Constituição) e competência administrativa comum
entre União, Estados e Municípios para preservar a fauna (art. 23, VII, Constituição).66
65
Outras leis federais brasileiras também tratam dos animais, porém, sem a perspectiva do animal como
sujeito do direito à existência digna, posto a salvo de práticas cruéis. Algumas dessas leis ostentam
um duplo caráter: regulam a exploração do animal pelos humanos, mas impõem determinados limites,
ligados a preocupações ambientais ou ecológicas: Lei 5.197/1967 (Lei de Proteção à Fauna), a qual,
dentre outras disposições, permite e estimula a caça amadora por diversão; Lei 7.173/1983 (Lei dos Zoo-
lógicos), que permite a manutenção de animais silvestres vivos em cativeiro para visitação pública; e Lei
11.959/2009 (Lei da Pesca), que, dentre outras disposições, permite a pesca amadora para lazer humano.
A Lei 11.794/2008 (Lei da experimentação científica ou educacional em animais) também foi editada
considerando a utilização de animais em benefício humano (em atividades científicas ou educacionais),
mas contém dispositivos de proteção animal contra a crueldade (experimentos que possam causar dor
ou angústia, por exemplo, devem ser desenvolvidos sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas).
Por outro lado, a Lei 7.643/1987 (Lei de Proteção aos Cetáceos) é norma jurídica animalista ao garantir,
integralmente, o direito fundamental à vida e à integridade física e psíquica dos animais pertencentes
à infraordem dos cetáceos (baleias, golfinhos, entre outros). Para um apontamento dessa legislação,
incluindo tratados internacionais: MUKAI, Toshio. Direitos e proteção jurídica dos animais. Revista do
Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Brasília: TRF1, v. 30, n. 1/2, p. 63-68, jan./fev. 2018.
66
O termo fauna, para fins da repartição das competências constitucionais, deve ser interpretado de
forma ampla, para abranger todas as espécies animais, incluindo tanto a perspectiva ambiental, como
a perspectiva animalista (Direito Ambiental e Direito Animal).
316 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Além disso, os Municípios detêm competência legislativa suplementar à legislação


federal e estadual (art. 30, II, Constituição), além de competência legislativa privativa
para assuntos de interesse local (art. 30, I, Constituição).
Nesse sentido, a maioria das Constituições estaduais - senão todas, inclusive a
Lei Orgânica do Distrito Federal - repete o dispositivo constitucional federal que baniu
as práticas cruéis contra animais,67 muito embora algumas ressalvem a exploração
econômica dos animais.68
Alguns Estados editaram Códigos de Proteção Animal, com regras que reconhe-
cem a dignidade animal, mas, ao mesmo tempo, ressalvam e estimulam a exploração
econômica.69
De menção obrigatória no plano jurídico estadual, o Estado da Paraíba aprovou
seu Código de Direito e Bem-Estar Animal (Lei Estadual 11.140/2018, vigente desde
07.10.2018),70 bastante moderno e inovador, disciplinando diversos assuntos, afirmando
que “os animais são seres sencientes e nascem iguais perante a vida”, que “o valor
de cada animal deve ser reconhecido pelo Estado como reflexo da ética, do respeito
e da moral universal, da responsabilidade, do comprometimento e da valorização da
dignidade e diversidade da vida” (art. 2º) e arrolando um catálogo de direitos animais,
dentre os quais os de “ter as suas existências física e psíquica respeitadas” e de “receber
tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 5º). Esse Código, com mais
de cem artigos, prevê aplicação de suas disposições tanto para animais vertebrados
como para animais invertebrados, universalizando o espectro de abrangência protetiva.
O Código paraibano, sem sombra de dúvidas, é a lei mais avançada de proteção
animal vigente no Brasil.

67
Como exemplos: Rio Grande do Sul (art. 13, V e art. 251, § 1º, VII), Santa Catarina (art. 182, III e IX)
e Paraná (art. 207, XIV).
68
A Constituição do Estado de São Paulo repete o dispositivo constitucional federal, porém, inclui a fisca-
lização da exploração econômica dos animais (proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos
os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, fiscalizando
a extração, produção, criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de seus
espécimes e subprodutos, art. 193, X), o que, a título de proteção, acaba por autorizar a exploração
econômica dos animais. A Constituição do Ceará contém esse mesmo dispositivo (art. 259, XI).
69
Nesse sentido, foi pioneiro o Estado do Rio Grande do Sul (Lei Estadual 11.915/2003), que foi seguido,
quase que literalmente, pelos demais Estados, tratando do bem-estar animal, mas ressalvando a ex-
ploração econômica. A partir do Código gaúcho, seguiram-se outros, como por exemplo: no Estado do
Paraná, com a Lei Estadual 14.037/2003; no Estado de Santa Catarina, com Lei Estadual 12.854/2003; no
Estado de São Paulo, com a Lei Estadual 11.977/2005; em Pernambuco, pela Lei Estadual 15.226/2014;
e em Sergipe, pela Lei Estadual 8.366/2017.
70
Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/13016_texto_integral.
Acesso em: 27 nov. 2018.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 317

Com menor espectro, mas também importante pelas definições que contém, o
Código Estadual de Proteção Animal de Santa Catarina foi ampliado para estabelecer
que:
Para os fins desta Lei, cães, gatos e cavalos ficam reconhecidos
como seres sencientes, sujeitos de direito, que sentem dor e
angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade
e das suas características em face de outros seres vivos (art.
34-A, acrescido pela Lei Estadual 17.485/2018).71 72

Também se registram vários Códigos Municipais de Proteção Animal,73 os quais


tendem a concentrar suas normas na contenção e controle da população de cães e
gatos, além da proibição ou da regulação da utilização de animais, como cavalos, como
meios de transporte ou como tração de veículos pelas vias públicas.74
Com esse panorama legislativo, pode-se perceber que o Direito Animal brasileiro
contemporâneo navega dentre disposições legais variadas nas três esferas federativas.
Existem leis tipicamente animalistas, centradas na dignidade animal, leis protetivas
dos animais pelo seu valor ecológico e leis que objetivam disciplinar a atividade de
exploração econômica dos animais, mas impõem certos limites à ação humana, os
quais não chegam a comprometer a lucratividade ou a competitividade econômica.
Mais importante é observar que, não obstante a regra da proibição da cruel-
dade seja universal - não havendo animal que da sua proteção possa ser excluído -,
o tratamento jurídico conferido aos animais não é igualitário. Enquanto os silvestres
gozam de uma tutela jurídica superior - que lhes confere, inclusive, o direito à vida
71
Disponível em: http://leis.alesc.sc.gov.br/html/2018/17485_2018_Lei.html. Acesso em: 27 nov. 2018.
72
Por mais incrível que possa parecer, a Lei Estadual 17.526, de 28 de maio de 2018, alterou o mesmo
artigo, para excluir os cavalos do seu âmbito de proteção. O art. 34-A do Código passou a vigorar,
inconstitucionalmente, pelo retrocesso que representa, com a seguinte redação: “Art. 34-A. Para os fins
desta Lei, cães e gatos ficam reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito, que sentem dor
e angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade e das suas características em face
de outros seres vivos.” Disponível em: http://leisestaduais.com.br/sc/lei-ordinaria-n-17526-2018-santa-
-catarina-altera-o-art-34-a-da-lei-n-12854-de-2003-que-institui-o-codigo-estadual-de-protecao-aos-ani-
mais-para-o-fim-de-excluir-a-terminologia-cavalos. Acesso em: 15 jan. 2019.
73
Alguns exemplos: Blumenau, SC (Lei Complementar Municipal 1.054/2016); Franca, SP (Lei Comple-
mentar Municipal 229/2013); Varginha, MG (Lei Municipal 5.489/2011); Guaratuba, PR (Lei 1.719/2017).
74
Vários Municípios também contam com leis específicas de proteção animal contra a crueldade, com
características semelhantes aos Códigos Municipais de Proteção Animal. O Município de João Pessoa,
PB, por exemplo, editou as Leis 13.170/2016 e 1.849/2016, para proibir o trânsito de veículos de tração
animal e a condução de animais com carga e trânsito montado, e a Lei 1.858/2017, para obrigar os
pet shops e estabelecimentos similares, que oferecem o serviço de banho e tosa para cães e gatos,
a instalarem sistemas de gravação por câmeras de vídeo e disponibilizarem as imagens online aos
donos dos animais.
318 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

e à liberdade - os animais submetidos à exploração econômica pela pecuária e pela


pesca - bois, vacas, porcos, galinhas, carneiros, além de variadas espécies de pei-
xes, moluscos e crustáceos - ainda não conseguiram alcançar o nível mais inferior de
efetividade dos seus direitos básicos de quarta ou sexta dimensão. Em um patamar
de consideração sui generis situam-se os chamados animais de estimação ou de com-
panhia - especialmente cães e gatos - que desfrutam não só de uma ampla gama de
direitos reconhecidos, especialmente por meio das legislações estaduais e municipais,
como também gozam da maior eficácia social de seus direitos. É possível afirmar que
o Direito Animal brasileiro deve sua existência - e constante ascensão - à comoção
social que os maus-tratos a cães e gatos geralmente costumam produzir.75
Como se pode perceber, o Direito Animal no Brasil conta com expressiva
positivação. Sua afirmação histórica opera-se a cada dia. E, como se verá no próprio
capítulo, também se consagra na jurisprudência pátria.

4. O DIREITO ANIMAL BRASILEIRO NO PLANO JURISPRUDENCIAL

Tal como a Constituição de 1988 foi, no plano do direito positivo brasileiro, o


marco inaugural do Direito Animal no Brasil, o julgamento da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade 4983 (ADIn da vaquejada), já citada, no Supremo Tribunal Federal, no
final de 2016, foi a sua consolidação jurisprudencial.76
Esse julgamento separou, definitivamente, Direito Ambiental e Direito Animal.

75
A partir de um caso sobre uma política pública de controle de zoonoses utilizando eutanásia de cães
e gatos por gás asfixiante, o Superior Tribunal de Justiça construiu um importante precedente sobre a
proteção e a consideração jurídica de animais. No seu voto, o Ministro Relator Humberto Martins afirmou
que “Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso de-
senvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e
psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais.
Essa característica dos animais mais desenvolvidos é a principal causa da crescente conscientização
da humanidade contra a prática de atividades que possam ensejar maus-tratos e crueldade contra tais
seres. A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas
sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite
sofrer e sentir dor. A rejeição a tais atos aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão,
de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem
justificativa razoável. A consciência de que os animais devem ser protegidos e respeitados, em função
de suas características naturais que os dotam de atributos muito semelhantes aos presentes na espécie
humana, é completamente oposta à ideia defendida pelo recorrente, de que animais abandonados
podem ser considerados coisas, motivo pelo qual a administração pública poderia dar-lhes destinação
que convier, nos termos do art. 1.263 do CPC” (STJ, 2ª Turma, REsp 1.115.916/MG, Relator Ministro
Humberto Martins, julgado em 01.09.2009, publicado em 18.09.2009).
76
STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 319

É evidente que essa separação não se deu em compartimentos estanques, que


não possam repartir princípios77 e regras78, mas em ciências próprias e autônomas.
Era preciso a interpretação do guardião da Constituição (art. 102, Constituição) para
consagrar a autonomia jurídica do Direito Animal.
Já era esperado que o debate na Suprema Corte brasileira fosse acirrado.79
A colisão de bens constitucionais - cultura e dignidade animal - posicionou os
Ministros, que se repartiram em nítidas visões antropocêntricas (pela preservação da
cultura tradicional) e zoocêntricas (pelos animais) ou biocêntricas (pela vida em geral).
Mas, ao final, diante da constatação empírica sobre a crueldade inerente à vaquejada,
prevaleceu a visão zoocêntrica da regra da proibição da crueldade, insculpida na parte
final do art. 225, § 1º, VII, da Constituição.
Esse julgamento, ainda que repleto de contrastes de opiniões, acabou fixando a
premissa maior de que mesmo a cultura tem limites na regra da proibição da crueldade
aos animais. É certo que decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal também
foram guiadas por essa premissa, mas não com a abrangência, o amplo debate e os
reflexos sociais e econômicos desse julgamento.80
A perspectiva antropocêntrica do Direito Ambiental cedeu espaço para à pers-
pectiva zoocêntrica (ou biocêntrica, na visão do Ministro Lewandowski), com os animais
77
O princípio da precaução, por exemplo, o qual enuncia que “mesmo na ausência de certeza científica,
isto é, ainda que exista dúvida razoável sobre a ocorrência ou não de um dano, o simples risco já traz
como consequência a interdição da conduta em questão” (cf. voto-vista do Ministro Barroso, na ADIn
4983, p. 47), pertence tanto ao Direito Ambiental, quanto ao Direito Animal. Nesse sentido: ARAÚJO,
Fernando. A hora dos direitos dos animais. p. 267-272.
78
A tutela jurisdicional do meio ambiente por meio da ação popular (art. 5º, XXVIII, Constituição), por
exemplo, é extensível à defesa da dignidade animal contra práticas cruéis.
79
Votaram pela inconstitucionalidade da Lei Estadual 15.299/2013, do Ceará, que regulamentava a prática
da vaquejada, os Ministros Marco Aurélio (relator), Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello,
Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia; votaram pela improcedência da ação direta os Ministros Edson
Fachin, Gilmar Mendes, Teori Zavascki, Luiz Fux e Dias Toffoli.
80
O primeiro precedente relevante do STF, após a Constituição de 1988, foi produzido com o julgamento,
pela 2ª Turma, do RE 153.531-SC, por meio do qual foi julgada procedente ação civil pública proposta
em Santa Catarina, para proibir a prática cultural da farra do boi (STF, 2ª Turma, Relator Ministro
Francisco Rezek, Acórdão lavrado pelo Ministro Marco Aurélio, julgado em 03.06.1997, publicado em
13.03.1998); nesse julgamento, votaram pelo provimento do recurso os Ministros Francisco Rezek
(relator), Marco Aurélio (lavrou o acórdão) e Néri da Silveira, vencido o Ministro Maurício Corrêa; os
demais precedentes foram produzidos em ações diretas de inconstitucionalidade, todas à unanimidade
de votos, e dizem respeito à inconstitucionalidade de leis estaduais que permitiam e regulamentavam
as rinhas ou brigas de galos (STF, Pleno, ADIn 2514-7/SC, Relator Ministro Eros Grau, julgado em
29.06.2005, publicado em 09.12.2005; STF, Pleno, ADIn 3776-5/RN, Relator Ministro Cézar Peluso,
julgado em 14.06.2007, publicado em 29.06.2007; STF, Pleno, ADIn 1856/RJ, Relator Ministro Celso
de Mello, julgado em 26.05.2011, publicado em 14.10.2011).
320 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

percebidos como seres sencientes, portadores de um valor moral intrínseco (Ministro


Luís Roberto Barroso) e dotados de dignidade própria (Ministra Rosa Weber).81
Mas a proclamação judicial mais importante da história do Direito Animal brasi-
leiro consistiu no voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso nessa ação.
Esse voto, didático e completo, elabora uma verdadeira síntese evolutiva das
ideias animalistas e concilia as vertentes abolicionistas e benestaristas da causa
animal. Apesar de não afirmar a existência de direitos jurídicos dos animais, o voto
reconhece direitos morais e é enérgico em ressaltar a autonomia da regra da proibição
da crueldade em relação à tutela do meio ambiente. O Ministro Barroso, nas discus-
sões com os outros Ministros, reconhece inclusive a inevitabilidade histórica de uma
ética animal capaz de, futuramente, mudar por completo as relações entre animais
humanos e animais não humanos, inclusive no que tange à alimentação humana (“em
algum lugar do futuro seremos todos [vegetarianos]”). Ao final do voto, afirma que “o
próprio tratamento dado aos animais pelo Código Civil brasileiro - ‘bens suscetíveis de
movimento próprio’ (art. 82, caput, CC) - revela uma visão mais antiga, marcada pelo
especismo, e comporta revisão”.82
É de se assinalar que as decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal
Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, produzem eficácia
contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário
e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal
(art. 102, § 2º, Constituição, com redação dada pela EC 45/2004). Constituem, por
isso, precedentes obrigatórios e vinculantes (art. 927, I, CPC), dotados de eficácia
erga omnes. A inobservância do precedente autoriza o manejo da reclamação consti-
tucional (art. 102, I, l, Constituição), para a garantia da autoridade da decisão judicial
(art. 988, II e III, CPC), dirigida ao próprio tribunal do qual emanou a decisão a ser
garantida, no caso, o Supremo Tribunal Federal (art. 988, § 1º, CPC). Ao menos desde
81
Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fernsterseifer compartilham dessa análise: “O STF - todavia sem se po-
sicionar sobre a atribuição de direitos aos animais ou outras formas de vida não humanas - reconhece
a vida animal como um fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo (pelo menos na sua
versão mais exacerbada) e o racionalismo de inspiração iluminista, admitindo uma dignidade (e, portanto,
um valor intrínseco) também para a vida não humana.” (SARLET; FENSTERSEIFER, op. cit., p. 402).
82
A palavra especismo, citada no voto do Ministro Barroso, foi criada por Richard Ryder e difundida por
Peter Singer, a partir dos anos 70 do século XX, para significar “o preconceito ou a atitude de alguém a
favor dos interesses de membros da própria espécie e contra os de outras” (SINGER, Peter. Libertação
animal. p. 8). Segundo a doutrina de Heron José de Santana Gordilho, “especismo é um conjunto de
ideias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo, que têm como ponto de partida a crença de que
os animais não humanos, sendo destituídos de atributos espirituais, não possuem nenhuma dignidade
moral” (Abolicionismo animal. p. 17). No mesmo local, o professor da Universidade Federal da Bahia
aponta a existência de dois tipos distintos de especismo: “o especismo elitista, que é o preconceito do
homem para com todas as espécies não humanas e o especismo seletista, quando apenas algumas
espécies são alvo do preconceito e discriminação” (grifo nosso).
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 321

a vigência do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, a reclamação para garantir


a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de
constitucionalidade, também compreende “a aplicação indevida da tese jurídica e sua
não aplicação aos casos que a ela correspondam” (art. 988, § 4º, CPC), pelo que se
tem, agora, na jurisdição constitucional brasileira, a adoção da teoria da transcendência
dos fundamentos ou motivos determinantes.83 O Ministro Luís Roberto Barroso, na
ADIn 4983, não deixou essa novidade despercebida.84 A tese jurídica fixada na ADIn
4983 foi que a crueldade é inerente à vaquejada e, portanto, a vaquejada discrepa da
norma inconstitucional. Ainda que, conforme antes aludido, a jurisdição constitucional
do STF, com a ADIn 4983, tenha sofrido o efeito backlash, com a aprovação da Emenda
Constitucional 96/2017, é certo que, quanto à vaquejada, não há como retroceder.
Esse precedente histórico deverá ainda repercutir em diversas outras direções,
não apenas em razão de seu efeito vinculante e transcendente. A principiar pelo funda-
mento para novas demandas judiciais, inclusive no próprio Supremo Tribunal Federal,
para garantir o direito fundamental animal à existência digna, livre de crueldades.85 A
judicialização do Direito Animal no Brasil ainda é inexpressiva. Muitas práticas cruéis, a
maioria delas institucionalizadas e fomentadas, ainda não passaram pelo crivo da com-
patibilidade constitucional.86 Por outro lado, o precedente, estabelecendo a autonomia do
83
Não se deve confundir com coisa julgada material. Enquanto a coisa julgada material
é instituto ligado à segurança jurídica e à definitividade da decisão, a eficácia vinculante trabalha com
as ideias de coerência, estabilidade, unidade, previsibilidade e confiança legítima do Direito. Por essas
diferenças é que se compreende a limitação objetiva da coisa julgada material ao dispositivo da decisão
(arts. 503, caput e 504, I, CPC), ao passo que a eficácia vinculante das decisões que a comportam,
especialmente na jurisdição constitucional, se espraia para os fundamentos ou motivos determinantes,
transcendendo o caso julgado para disciplinar os casos futuros, perante quaisquer outros tribunais ou
autoridades (Nesse sentido: MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de constitucionalidade. In: SARLET,
Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 1127-1138; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Controle concentrado de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 338-341).
84
STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em
27.04.2017, p. 108 (manifestação, em debates, do Ministro Luís Roberto Barroso): “[...] se fixarmos
uma tese jurídica ‘a crueldade é inerente à vaquejada e, portanto, ela é inconstitucional’, essa tese
produz efeitos para além do caso concreto, agora já por força de disposição expressa do Código de
Processo Civil, no artigo 998 [rectius: artigo 988], elaborado sob a liderança do nosso querido Ministro
e Professor Luiz Fux”.
85
Um importante instrumento para a tutela jurisdicional dos animais junto à jurisdição constitucional do STF
é a arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição,
regulamentada pela Lei 9.882/1999.
86
Apenas como exemplos mais urgentes, dentre milhares, é preciso colocar em pauta de discussão as
práticas cruéis envolvidas na produção do foie gras (crueldade contra patos e gansos), na produção
da carne de vitela ou babybeef (crueldade contra bezerros), na utilização e sacrifício de coelhos nos
exercícios de instrução de soldados nas Forças Armadas, na prática de restaurantes em lançar siris,
caranguejos e lagostas vivos em água fervente. Além disso, toda uma série de práticas da cadeia
322 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Direito Animal, tende a incentivar a produção acadêmica na área, ampliando, cada vez
mais, os horizontes jurídicos do animalismo. E, de uma maneira geral, especialmente
a partir do voto-vista do Ministro Barroso, o precedente pode servir como instrumento
pedagógico e educativo para incentivar as reflexões sobre a ética animal.87
No plano jurisprudencial, ainda é possível encontrar diversos julgados, nas de-
mais instâncias judiciárias, tratando da tutela jurisdicional dos animais, tanto no âmbito
penal, no que diz respeito ao crime de maus-tratos do art. 32 da Lei 9.605/1998,88 como
no âmbito cível.89 90 91
produtiva pecuária e pesqueira precisa passar por esse mesmo crivo de constitucionalidade, avalian-
do, por exemplo, o de animais - a exemplo das galinhas poedeiras que ficam
engaioladas durante toda a vida -, a debicagem de pintinhos, a marcação com ferro em brasa de
bovinos, a castração animal sem analgesia etc. Sobre casos de crueldade em animais, especialmente
os utilizados na produção, com interesse econômico, ver: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de.
Curso de direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 378-381; DINIZ, Maria Helena.
Ato de crueldade ou de maus-tratos contra animais: um crime ambiental. Revista Brasileira de Direito
Animal, Salvador: Evolução, v. 13, n. 01, p. 96-119, jan./abr. 2018.
87
Como instrumento pedagógico e educativo para uma ética animal, temos a educação animalista, que
pode ser conceituada como os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem
valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a abolição das
práticas que submetam os animais à crueldade (conceito elaborado a partir do art. 1º da Lei 9.795/1999,
que trata da educação ambiental).
88
Na repressão penal aos maus-tratos a animais foi notabilizado o caso da “serial killer” de cães e gatos
em São Paulo, que recebia os animais abandonados para destiná-los à adoção, mas acabava por
exterminá-los com perfurações no corpo, especialmente na região do coração; foram encontrados 33
gatos e 4 cães mortos em sacos de lixo próximos à residência da acusada. A pena final pelos crimes,
em função do reconhecimento do concurso material, foi fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em
16 anos e 6 meses de reclusão, com expedição de mandado de prisão (TJSP, 10ª Câmara de Direito
Criminal, Apelação 0017247-24.2012.8.26.0050, unânime, Relator Des. Rachid Vaz de Almeida, julgado
em 09.11.2017).
89
No Superior Tribunal Justiça há precedente, já citado neste trabalho, proibindo a utilização de gás
asfixiante na eutanásia de animais, quando ela for imprescindível à preservação da saúde humana,
por ser meio cruel. Nesse julgamento, é expressamente citado o Decreto 24.645/1934 e a Declaração
Universal dos Direitos Animais, de 1978 (STJ, 2ª Turma, REsp 1.115.916/MG, Relator Ministro Humberto
Martins, julgado em 01.09.2009, publicado em 18.09.2009). Citando esse precedente do STJ, o Tribunal
Regional Federal da 4ª Região deu parcial provimento à apelação do Ministério Público do Estado do
Paraná, em ação civil pública, para condenar o IBAMA a fiscalizar adequadamente as condições de
animais usados em atividades circenses (TRF4, 4ª Turma, AC 2006.70.00.009929-0/PR, por maioria,
Relator Des. Fed. Valdemar Capeletti, Relator p/ acórdão Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, julgado em
21.10.2009, publicado em 04.11.2009).
90
Também é digna de nota a histórica admissão, em 2005, do habeas corpus como meio processual
adequado para a libertação da chimpanzé Suíça, mantida no Zoológico de Salvador, BA, visando a sua
transferência para um santuário ecológico; infelizmente, antes do julgamento do writ, houve a morte
da primata, impossibilitando a análise do mérito da causa (cf. GORDILHO, Heron José de Santana.
Abolicionismo animal. p. 97-101).
91
Mais recentemente, no início de 2018, grande repercussão social e midiática obteve a propositura da
Ação Civil Pública, registrada sob nº 5000325-94.2017.4.03.6135, perante a 25ª Vara Federal de São
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 323

Um destaque deve ser feito à decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Re-


gião, a qual, em 2008, proibiu a caça amadorística no Rio Grande do Sul, porquanto
conduta violadora da regra constitucional da proibição da crueldade, além de contrariar
os princípios da Declaração Universal dos Direitos Animais, proclamada na UNESCO.92

Paulo, por meio da qual houve a concessão de tutela provisória de urgência para “impedir a exportação
de animais vivos para o abate no exterior, em todo território nacional, até que o país de destino se
comprometa, mediante acordo inter partes, a adotar práticas de abate compatíveis com o preconizado
pelo ordenamento jurídico brasileiro e desde que editadas e observadas normas específicas, con-
cretas e verificáveis, por meio de parâmetros clara e precisamente estabelecidos, os quais possam
efetivamente conferir condições de manejo e bem estar [sic] dos animais transportados”, como também
para determinar “o desembarque e retorno à origem, mediante plano a ser estabelecido pelo MAPA
e operacionalizado pelo exportador, sob fiscalização das autoridades sanitárias, de todos os animais
embarcados no navio NADA, cuja embarcação somente poderá prosseguir viagem depois de comple-
tamente livre de animais vivos”. Na decisão liminar, o Juiz Federal Djalma Moreira Gomes, citando a
Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Animais, afirmou que os animais são sujeitos de
direitos. No entanto, no Agravo de Instrumento 5001513-63.2018.4.03.0000, a Des. Fed. Diva Malerbi,
do TRF3, afirmando que a manutenção dos animais a bordo do MV NADA provocaria maior sofrimento
e penoso desgaste aos animais do que o prosseguimento do curso marítimo, autorizou o imediato início
da viagem; por fim, no incidente de suspensão de liminar 5001511-93.2018.4.03.0000, a Des. Fed.
Cecília Marcondes, também no TRF3, suspendeu, a pedido da Advocacia-Geral da União, a parte da
liminar que impedia o embarque, em todo o território nacional, de animais vivos para abate no exterior,
sob o fundamento de risco à ordem administrativa, até o trânsito em julgado da decisão definitiva de
mérito da ação civil pública. Digno que nota, no entanto, foi parecer do Ministério Público Federal,
nesse incidente de suspensão de segurança, da lavra do Procurador Regional da República, Sérgio
Monteiro Medeiros, no qual opinou pelo provimento de agravo interno interposto pelo Fórum Nacional
de Defesa e Proteção Animal para manter a decisão liminar que impedia a exportação de animais vivos
para abate no exterior, em todo o território nacional. O parecer ministerial foi fundamentado no Direito
Animal, a partir da regra constitucional da proibição da crueldade. Não obstante o resultado prático final
desfavorável, o Direito Animal ocupou espaço significativo nos principais noticiários do País, gerando
diversas manifestações públicas, a favor e contra.
92
Eis a ementa do julgado: AMBIENTAL. CAÇA AMADORÍSTICA. EMBARGOS INFRINGENTES EM
FACE DE ACÓRDÃO QUE, REFORMANDO A SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA EM AÇÃO
CIVIL PÚBLICA AJUIZADA COM VISTAS À VEDAÇÃO DA CAÇA AMADORISTA NO RIO GRANDE
DO SUL, DEU PROVIMENTO ÀS APELAÇÕES PARA JULGAR IMPROCEDENTE A ACTIO. PRÁTICA
CRUEL EXPRESSAMENTE PROIBIDA PELO INCISO VII DO § 1º DO ART. 225 DA CONSTITUIÇÃO
E PELO ART. 11 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS, PROCLAMADA EM
1978 PELA ASSEMBLEIA DA UNESCO, A QUAL OFENDE NÃO SÓ I. O SENDO COMUM, QUANDO
CONTRASTADO O DIREITO À VIDA ANIMAL COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER DO HOMEM
(QUE PODE SER SUPRIDO DE MUITAS OUTRAS FORMAS) E II. OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO
E DA PRECAUÇÃO, MAS TAMBÉM APRESENTA RISCO CONCRETO DE DANO AO MEIO AMBIENTE,
REPRESENTADO PELO POTENCIAL TÓXICO DO CHUMBO, METAL UTILIZADO NA MUNIÇÃO DE
CAÇA. PELO PROVIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES, NOS TERMOS DO VOTO DIVER-
GENTE. Com razão a sentença ao proibir, no condão do art. 225 da Constituição Federal, bem como
na exegese constitucional da Lei nº 5.197/67, a caça amadorista, uma vez carente de finalidade social
relevante que lhe legitime e, ainda, ante à suspeita de poluição ambiental resultante de sua prática
(irregular emissão de chumbo na biosfera), relatada ao longo dos presentes autos e bem explicitada
324 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

Resta, portanto, verificar se já é possível falar em uma doutrina animalista.

5. O DIREITO ANIMAL BRASILEIRO NO PLANO DOUTRINÁRIO

A doutrina brasileira do Direito Animal, separada do Direito Ambiental, somente


passa a contar com trabalhos acadêmicos, em concentração apreciável, a partir dos
anos 2000, muito embora, antes disso, possam ser encontradas obras precursoras,93
como Direito dos animais: o direito deles e o nosso direito sobre eles, do Promotor
de Justiça Laerte Fernando Levai, de 1998,94 e A tutela jurídica dos animais, de Edna
Cardozo Dias, de 2000.95
Com cerca de vinte anos de produção acadêmica, a doutrina animalista já
acumula um acervo importante,96 mas, de certa forma, ainda dominado por considera-
ções de cunho filosófico. Ainda não houve um adequado aprofundamento científico da

pelo MPF. Ademais, i. proibição da crueldade contra animais - art. 225, § 1º, VII, da Constituição - e a
sua prevalência quando ponderada com o direito fundamental ao lazer, ii. incidência, no caso concreto,
do art. 11 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela Assembleia da
UNESCO, o qual dispõe que o ato que leva à morte de um animal sem necessidade é um biocídio, ou
seja, um crime contra a vida e iii. necessidade de consagração, in concreto, do princípio da precaução.
3. Por fim, comprovado potencial nocivo do chumbo, metal tóxico encontrado na munição de caça.
4. Embargos infringentes providos. (TRF4, 2ª Seção, EINF 2004.71.00.021481-2, Relator Des. Fed.
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, D.E. 02.04.2008).
93
Para um panorama dos precursores do Direito Animal: OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da
natureza e direitos dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa,
Portugal, ano 2, n. 10, p. 11325-11370, 2013, p. 11345-11346.
94
A segunda edição, de 2004, reduziu o título do livro para, apenas, Direito dos animais (LEVAI, op. cit.).
95
DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
96
Alguns exemplos de livros específicos, além dos já citados: ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos animais.
São Paulo: Themis, 2001; CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos direitos dos animais. Rio de Janeiro:
Record, 2009; FELIPE, Sonia Teresinha. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de
Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003; FERREIRA, Ana Conceição
Barbuda Sanches Guimarães. A proteção aos animais e o direito: o status jurídico dos animais como
sujeitos de direitos. Curitiba: Juruá, 2014; GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal.
Salvador: Evolução, 2008; LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas
perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de.
Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa.
Personalidade jurídica dos grandes primatas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012; NOGUEIRA, Vânia Márcia
Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além
dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes, 2012; OBERST, Anaiva. Direito animal. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2012; RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito e os animais: uma abordagem ética, filosófica
e normativa. Curitiba: Juruá, 2003; SANTOS, Cleopas Isaías. Experimentação animal e direito penal.
Curitiba: Juruá, 2015; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. Salvador: Evolução, 2014.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 325

disciplina, de forma a produzir uma dogmática consistente, a influenciar, com o rigor


necessário, as atividades legislativa e jurisprudencial.97
Um grande passo nessa transição foi dado, a partir de 2006, com a edição da
Revista Brasileira de Direito Animal (Brazilian Animal Rights Review), fundada pelos
Professores Heron José de Santana Gordilho, Luciano Rocha Santana e Thiago Pires
Oliveira, hoje indexada como QUALIS A1, classificação de máxima excelência dentre
os periódicos científicos nacionais, atribuída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundação pertencente ao Ministério da Educação
do Brasil. Essa revista, vinculada ao Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos dos
Animais (NIPEDA) do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), foi pioneira em toda a América Latina.
Por outro lado, parece chegada a hora da doutrina do Direito Animal ocupar
outros espaços, para além do seu próprio nicho, incluindo a temática dos animais como
sujeitos de direitos nos campos do Direito Constitucional, Direito Ambiental, Direito
Penal, Direito Civil, Direito Processual e outros. Quer dizer, o Direito Animal precisa
dialogar, mais de perto, com os demais setores do Direito nacional, frequentar suas
obras e seus congressos, expandir suas teses para além do seu próprio círculo. Essa
parece ser a condição inafastável para a emancipação do Direito Animal no Brasil, com
a juridicização e a judicialização da causa animal.
No âmbito do Direito Constitucional, as reflexões sobre a titularidade de
direitos fundamentais para além da pessoa humana - e especialmente a dignidade
dos animais - já preocuparam Ingo Wolfgang Sarlet,98 Tiago Fensterseifer99 e outros
constitucionalistas brasileiros.100
97
Uma das primeiras tentativas de elaboração de uma epistemologia do Direito Animal, para possibilitar
uma dogmática, fica por conta da obra de Tagore Trajano de Almeida Silva, professor da Universida-
de Federal da Bahia, intitulada Direito Animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um saber
pós-humanista. Salvador: Evolução, 2014, na qual o autor esboça elementos para fixar a autonomia
, o objeto e os princípios do Direito Animal no Brasil.
98
SARLET, Ingo Wolfgang. , op. cit., p. 232-233.
99
SARLET; FENSTERSEIFER, op. cit., p. 61-62, 85-118, 400-403.
100
MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiz Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang;
FENSTERSEIFER, Tiago (Coord.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos
humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. Lênio Streck, apesar de não ter
propriamente escrito sobre o assunto, já manifestou, em 2013, adesão às ideias animalistas (Disponível
em: https://www.conjur.com.br/2013-jun-06/senso-incomum-quem-sao-caes-gatos-olham-nus. Acesso
em: 31 mar. 2018). Flávio Martins Alves Nunes Junior, em seu Curso de direito constitucional (2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2018), defende os direitos animais como direitos fundamentais de quinta
geração. Bernardo Gonçalves Fernandes também dedica, dentro do capítulo destinado à Teoria Geral
dos Direitos Fundamentais, do seu Curso de direito constitucional, um subitem para os direitos dos
animais (Salvador: JusPodivm, 2018. p. 407). O Juiz Federal e constitucionalista George Marmelstein
Lima, ainda que negue direitos fundamentais aos animais, considera essa possibilidade (Curso de
direitos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 246-252).
326 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

No Direito Ambiental, doutrinas aproximam-se101 e afastam-se102 do Direito


Animal, a depender da visão mais ou menos antropocêntrica com que se interpreta o
art. 225 da Constituição.
O Direito Penal não tem como se esquivar do Direito Animal, dada a crimina-
lização dos maus-tratos a animais, operada pelo art. 32 da Lei 9.605/1998,103 não
obstante precise enxergar que o bem jurídico protegido pelo tipo penal não é o meio
ambiente,104 mas a dignidade animal.105
Talvez o campo mais resistente à concepção dos animais como sujeitos de
direitos seja o Direito Civil, dada à tradicional caracterização dos animais como bens
semoventes. Mas, mesmo dentre os civilistas, a possibilidade de considerar os ani-
mais como sujeitos (ou como um terceiro gênero, entre pessoas e coisas) começa
a principiar,106 especialmente por influência do Direito Civil alemão (art. 90-a, BGB,
animais não são coisas).107
O Direito Processual Civil parece ser o campo jurídico mais atrasado no reco-
nhecimento dos animais como sujeitos de direitos, mas, vagarosamente, começa a
acordar para a capacidade processual dos animais.108

101
MACHADO, op. cit., p. 169-172; MUKAI, Toshio. Direitos e proteção jurídica dos animais. Revista do
Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Brasília: TRF1, v. 30, n. 1/2, p. 63-68, jan./fev. 2018.
102
FIORILLO, op. cit., p. 272-273.
103
GRECO, Luís. Proteção de bens jurídicos e crueldade contra animais. Revista Liberdades, São Paulo:
IBCCrim, n. 3, p. 47-59, jan./abr. 2010.
104
SZNICK, Valdir. Direito penal ambiental. São Paulo: Ícone, 2001. p. 299-305; FREITAS, Vladimir Passos
de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 95-100.
105
TEIXEIRA NETO, João Alves. Tutela penal dos animais: uma compreensão onto-antropológica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
106
Paulo Lôbo realiza uma das mais importantes incursões civilistas na análise da natureza jurídica dos
animais, a partir do art. 225, § 1º, VII, da Constituição, da Declaração Universal dos Direitos Animais,
dos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal e da experiência estrangeira. Transparece
da sua doutrina que o enquadramento jurídico dos animais não pode mais ser como bens semoventes
(Direito civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 1, 2018. p. 228-229).
107
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1,
2018. p. 304-305.
108
FRAUZINO, Marivaldo Cavalcante. Teoria geral do processo civil. Goiânia: Editora do Autor, 2014. p. 92.
Fredie Didier Júnior, ao menos até a 12ª edição de seu Curso de direito processual civil: teoria geral
do processo e processo de conhecimento (Salvador: JusPodivm, v. 1, 2010), negava expressamente
a capacidade de ser parte ao morto e aos animais (p. 233). O mesmo se verifica na monografia
: o juízo de admissibilidade do processo, ao menos
na edição de 2005 (São Paulo: Saraiva, 2005, p. 113). No entanto, em edições posteriores do Curso
essas negativas desapareceram, o que faz transparecer que o processualista baiano não mais está
convencido desse impedimento peremptório.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 327

Importante também registrar que o ensino jurídico nacional começa a reconhecer


o Direito Animal como disciplina autônoma,109 em todos os níveis, desde a graduação
até o doutorado. Na graduação, normalmente é oferecida como disciplina optativa ou
tópica.110 Mas também é possível ver elementos de Direito Animal tratados no interior
de outras disciplinas, como Direito Ambiental ou Bioética. A Universidade Federal da
Bahia é pioneira em oferecer curso de pós-graduação stricto sensu em Direito Animal,
abrangendo mestrado e doutorado, sob a liderança do Prof. Dr. Heron José de Santana
Gordilho.111
É indubitável, portanto, que a doutrina animalista existe no Brasil e se espraia
pelo ensino jurídico. Cumpre a ela, agora, dedicar mais espaço ao campo dogmático
do Direito Animal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O breve panorama das diversas manifestações do Direito Animal, pelos vários


campos de produção e de investigação jurídicas, talvez produza algum tipo de assom-
bro ou de surpresa com tudo o que já se fez ou com o que vem sendo feito no Brasil.
O Brasil possui um Direito Animal positivado.

109
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um
saber pós-humanista. p. 239-277; OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direitos
dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, Portugal, ano 2,
n. 10, p. 11325-11370, 2013. p. 11345-11346. Segundo esse último autor, “a primeira cadeira de Direito
dos Animais criada no país, constante da grade curricular, teve espaço na recém-inaugurada Faculdade
de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A cadeira está a cargo do Prof.
Daniel Lourenço. A Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), ao que se sabe, foi a primeira a oferecer de fato uma disciplina no bacharelado voltada para
a matéria, incorporando também a discussão da Ecologia Profunda, denominada Direito dos Animais,
Ecologia Profunda, lecionada pelo autor deste artigo. O Mestrado em Direito da UNIRIO foi o primeiro
(e o único até agora) a prever matéria com este teor, Direito dos Animais, Ecologia Profunda, igualmente
sob minha responsabilidade. Impõe registrar também a criação, na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda, hoje de caráter
interinstitucional, reunindo, além de mim, o Prof. Daniel Lourenço (UFRRJ), a Profa. Rita Paixão (UFF),
a Profa. Maria Clara Dias (IFCS/UFRJ) e a Profa. Larissa Pinha de Oliveira (FDUFRJ)” (p. 11.346).
110
Como é o caso da Universidade Federal de Santa Catarina (sigla DIR5988) e da Universidade Federal
Rural do Rio Janeiro (sigla IM746); o autor deste ensaio também passou a oferecer a disciplina opta-
tiva de Direito Animal na Faculdade de Pinhais (FAPI, localizada na região metropolitana de Curitiba),
desde 2017, além de Curso de Extensão (2018) e disciplina de Projeto Integrador (2018) (cf. http://www.
fapi-pinhais.edu.br). O autor deste ensaio também conseguiu aprovar a inclusão da disciplina tópica
de Tutela Jurisdicional dos Animais (registrada sob a sigla DC080) no currículo do Curso de Direito
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a qual passará a ser oferecida, na graduação, a partir do
primeiro semestre de 2019.
111
Cf. www.ppgd.ufba.br.
328 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019

O Direito Animal brasileiro se afirma historicamente.


Esse novo ramo do Direito brasileiro é formado a partir da regra da proibição
da crueldade, prevista no art. 225, § 1º, VII, , da Constituição, e complementado
por um conjunto de leis infraconstitucionais, existentes nas esferas federal (sobretudo
o Decreto 24.645/1934 e art. 32 da Lei 9.605/1998), estadual (com destaque para o
Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba, de 2018) e municipal. O Código Civil
brasileiro, ao contrário do que ocorre em Países europeus, ainda não contemplou a regra
animais não são coisas, porém, está em vias de contemplar (PLC 6799/2013 e outros).
O Direito Animal brasileiro também ostenta um importante conjunto de prece-
dentes judiciais, emanados, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal (destacando-se
a ADIn 4983, sobre a vaquejada), com transcendência dos motivos determinantes,
extremamente importantes para conferir a necessária amálgama interpretativa às
regras do direito positivo.
Essas características jurídicas singulares permitem afirmar a autonomia epis-
temológica do Direito Animal no Brasil.
Cumpre à doutrina animalista brasileira expandir o Direito Animal cada vez mais,
transitar da preocupação ética para a investigação jurídica e criar as bases para uma
autêntica dogmática jurídica animalista, ainda não suficientemente organizada. Sem
isso, a autonomia da sua ciência corre o risco de se perder. Os animalistas não podem
mais falar apenas para os seus. Devem partir para o confronto de ideias com os juristas
dos demais ramos jurídicos. Somente assim - ainda que para constar como objeção
-, os institutos do Direito Animal frequentarão - com mais assiduidade - os manuais de
Direito Constitucional, Ambiental, Civil, Penal, Processual, etc.
Da teoria à prática, toda essa construção científica e dogmática tem o papel
de permitir e orientar a adequada judicialização da causa animal. Influenciar juízes,
advogados e promotores de justiça. É preciso fazer valer o direito fundamental à exis-
tência digna de cada animal. A efetividade desse direito, especialmente em relação
aos animais submetidos à exploração econômica, depende da postulação em juízo de
medidas que coíbam ou previnam atos de crueldade.
A tutela jurisdicional dos animais é o veículo para a realização prática do Direito
Animal e sua definitiva inserção no rol de disciplinas jurídicas. Nesse campo, urge
desenvolver, com o aprimoramento e a difusão necessários, a capacidade de ser parte
dos animais, partindo do art. 2º, § 3º, do Decreto 24.645/1934.
O Direito Animal, portanto, aponta para um sonho: vida digna para todos, inde-
pendentemente da espécie.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 329

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tão somente em itálico, nunca em negrito e/ou sublinhado.

NOTAS DE RODAPÉ E REFERÊNCIAS:


Notas explicativas e referências (bibliográficas ou sites) deverão ser inseridas ao final
de cada página (por meio de notas de rodapé). Pode ser utilizado o sistema autor-
-data. Todas as fontes utilizadas, diretas e indiretas, deverão ser mencionadas tanto
nas notas de rodapé como também nas referências (no final do artigo, depois das
considerações finais), em ordem alfabética de sobrenome do autor, de acordo com as
normas estabelecidas pela ABNT. Recomenda-se que somente as obras efetivamente
citadas devem aparecer nas referências.

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