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Revista Internacional de
Direito Ambiental
Classificação Qualis Capes B1
© REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITO AMBIENTAL
N. 22 (2019) -
Quadrimestral
ISSN 2238-2569
CDU : 349.6:341
EDITORES
Alvaro A. Sánchez Bravo - Universidade de Sevilla, US, Sevilla, Espanha
Sérgio Augustin - Universidade de Caxias do Sul, UCS, RS, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Kehrig Veronese Aguiar - Universidade de Brasília, UNB, DF, Brasil
Alvaro A. Sánchez Bravo - Universidade de Sevilla, US, Sevilla, Espanha
Antônio Carlos Wolkmer - Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, SC, Brasil
Belinda Pereira Cunha - Universidade Federal da Paraíba, UFPB, PB, Brasil
Hugo Echeverría - Pontifícia Universidade Católica de Quito, PUC-Quito, Quito, Equador
Jacson Roberto Cervi - Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, RS, Brasil
José Rubens Morato Leite - Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, SC, Brasil
Luiz Fernando Scheibe - Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, SC, Brasil
Ricardo Nery Falbo - Universidade Federal e Estadual do RJ, UFRJ/UERJ, RJ, Brasil
Sérgio Augustin - Universidade de Caxias do Sul, UCS, RS, Brasil
Susana Borràs Pentinat - Universidade Rovira I Virgili, Catalunha, Espanha
Vincenzo Durante - Universidade de Padova, Padova, Itália
APRESENTAÇÃO................................................................................................. 9
ABSTRACT: This paper reflects on the ownership regime of the Parque Estadual
Serra do Tabuleiro, from the perspective of commons, which became known by the article
by Garrett Hardin, “The tragedy of the commons”. It verifies if that the ownership of the
Park is effective in preserving the environment. To this end, it was studied the Tragedy
of the commons and the classification of commons belongings in the first chapter. In the
second chapter, it was studies a case in Serra do Tabuleiro Park for the third chapter
reflects on such a scheme and its effectiveness. With the method of abductive approach
(Peirce), which uses both the inductive method as deductible in the form of search, it
was possible to reach the final considerations, presented at the end of this study.
KEYWORDS: Global Commons; Conservation unit; socio-environmental conflict.
INTRODUÇÃO
experiência” (PINTO, 1995). Segundo Peirce (1986), o raciocínio abdutivo é típico das
descobertas científicas revolucionárias.
Como técnica de pesquisa, utilizamos fontes primárias bibliográficas e juris-
prudenciais, além do método qualitativo da entrevista para averiguar a efetividade do
cumprimento das leis e das decisões judiciais em relação às Unidades de Conservação
de Santa Catarina, avaliando a possibilidade de a instituição da propriedade comunal
ser uma aliada à preservação.
A utilização de entrevistas em trabalhos científicos ainda é discutida, pois
muitos pesquisadores atribuem um empobrecimento da rigorosidade da pesquisa.
Não concordamos com essa linha de pensamento e propomos a técnica da entrevista
como um evento dialógico, que faz com que este tenha um significado apoiado na
comunicação humana, que “pode promover reformulações metodológicas capazes
de enriquecer a prática de pesquisa e construir novas situações de conhecimento”
(GODOI; MATTOS, 2006, p. 302).
Este trabalho é um fragmento de uma ampla pesquisa doutoral realizada entre
os anos de 2014 a 2018. Passemos ao estudo.
O tema surge com o alerta feito por Garrett Hardin no texto “A tragédia dos co-
muns”, publicado em 1968. Hardin (1968) denunciava a sobre-exploração de recursos
naturais de uso comum. A ideia essencial era de que tais recursos, como oceanos,
rios, atmosfera e áreas de parques estão sujeitos a grande degradação (BERKES et
al., 2001, p. 18).
Apesar de criticado, seu artigo tem uma importância fundamental, pois alertou
para os limites do tecnicismo, dos perigos da racionalidade individual frente a uma
racionalidade coletiva, além de demonstrar os riscos ambientais e sociais de uma
superexploração da Terra.
O trabalho de Hardin (1968) sugere, portanto, duas interpretações: a primeira é
o seu caráter simplista, não observando variáveis complexas e sistemas adaptativos.
A segunda diz respeito ao uso do seu argumento em favorecimento e fortalecimento
do poderio econômico, já que o discurso da propriedade privada para a proteção do
Recurso Natural Comum traz vantagens para quem detém a propriedade privada ou
para a desapropriação de muitas comunidades que vivem em regime comunal, sob o
argumento de que haverá uma maior preservação com a propriedade privada.
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Nesse sentido, Diegues e Moreira (2001) mencionam que a obra foi um trabalho
pioneiro. No entanto, serve de base às teses liberais, na medida em que “somente o
capital privado pode explorar os bens naturais de forma adequada, sem destruí-los”
(DIEGUES; MOREIRA, 2001, p. 10). Hardin (1968) ignora ou confunde conceitos como
livre acesso e propriedades de uso comum.
comunal: os grupos são definidos pela restrição dos seus membros, a distribuição
física dos sistemas, os benefícios angariados anualmente e a necessidade do estoque
de capital e do fluxo anual, a fim de garantir que o sistema continue a gerar água e a
beneficiar o grupo (BROMLEY, 1992, p. 11-12).
O segundo regime é a “propriedade privada”. Neste caso, há regulação e explora-
ção de recursos por indivíduos que possuem a propriedade. Somente os detentores do tí-
tulo de propriedade deliberam sobre o que fazer com o recurso, excluindo-se terceiros. Há
possibilidade de o Estado impor algumas limitações no uso (BERKES et al., 2001, p. 21).
Imagina-se que a propriedade privada, em muitos casos, deu-se pela apropriação
de terras comunais consideradas pelos colonizadores como de livre acesso. A partir
do reconhecimento da propriedade privada, há uma exclusão e restrição do uso do
recurso comum.
Berkes (2005) afirma que a instituição da propriedade privada proporcionou um
arranjo institucional necessário a uma exclusão bem-sucedida de terras agricultáveis,
demonstrando que no mundo contemporâneo, após a União Soviética e pós-privatização
na China, a propriedade privada é quase a única forma pela qual se mantém os cultivos.
No entanto, para alguns recursos comuns, como os encontrados nos oceanos,
o regime de apropriação privada não seria um bom mecanismo, mesmo que algumas
alternativas já tenham sido desenvolvidas para solucionar o problema da superexplo-
ração ou da exclusão3 (PIRES, 2015, p. 7).
O regime da propriedade privada, apesar de aparentemente mostrar ser mais
efetivo na proteção dos recursos, pois estaria sob a responsabilidade de apenas uma
pessoa, apresenta riscos e falhas. O sujeito proprietário e usuário de uma propriedade
de maneira exclusiva talvez não meça esforços para maximizar os seus ganhos.4
Nesse sentido, é menos rentável plantar sequoias. Apesar de fazer sentido em
termos ambientais, o proprietário racional dificilmente fará este investimento. Para
espécies de crescimento lento e maturidade tardia, como baleias e sequoias, o ótimo
econômico é a degradação e não a prevenção (CLARK, 1973 apud BERKES et al.,
2001, p. 27). O direito de propriedade, portanto, permite ao proprietário maximizar
o valor momentâneo do recurso que, mesmo assim, não fica protegido da extinção
(BERKES et al., 2001, p. 28).
3
Exemplos são as quotas individuais transferíveis (ITQs), pois permitem que sejam direcionadas alocações
dos recursos marítimos. Cada barco recebe uma quota parte desta, que pode ser comprada, vendida
ou alugada (BARROSO; SOBEL, s.d.).
4
Hardin (1968) não acredita na moralidade, mas acaba apostando na moral de apenas alguns, quando
acredita ser a propriedade privada um mal necessário. Apenas alguns proprietários ficariam responsáveis
pela preservação dos recursos naturais e na sua distribuição.
TRAGÉDIA DOS COMUNS 17
5
Espécie de concha fechada por moluscos.
18 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
regras que regulam o uso dos recursos disponíveis. O que, à primeira vista, parece ser
uma comunidade livre e de acesso aberto, na verdade é uma instituição de propriedade
comum que é gerida por normas e cooperação dos indivíduos. O problema da proprie-
dade comum reside na estrutura do uso de direitos adotados pelo grupo residente, que
pode advir de pressões populares, mudanças tecnológicas, climáticas ou políticas.
As organizações apropriadoras podem ser caracterizadas como uma política
instituída por apropriadores, cujo objetivo é o ganho de benefício em causa comum,
a partir de escolhas feitas pela coletividade. Sabe-se que tais escolhas são melhores
que aquelas tomadas individualmente, quando a pessoa é livre para tomar iniciativas,
sem pensar no bem comum.
Essas organizações são incumbidas de pensar sobre o tamanho das reservas
comuns, as ações anteriores realizadas na terra, os benefícios e custos das ações,
as promessas políticas dos participantes; pautando-se na confiança mútua e na reci-
procidade. As estratégias coordenadas tendem a reduzir o risco de dano aos recursos
naturais comuns (OSTROM, 1992, p. 300-302).
Na maioria dos países, inclusive no Brasil, não há o reconhecimento legal dessas
comunidades. No caso do Brasil há duas alternativas: a instituição da propriedade priva-
da como assentamentos sem terras, por exemplo, ou a instituição de terras que deverão
ser protegidas pelo Estado por meio de normas, como a Lei de Unidades de Conserva-
ção (BRASIL, 2000). Esta lei estabelece regime de proteção com ou sem a intervenção
humana. Neste último caso, a grande maioria dos usuários precisa sair do local.
Ainda há o reconhecimento constitucional das terras indígenas,6 embora essas
terras não sejam reconhecidas como propriedade comunal, mas sim como terras do
Estado. Este fato gera uma insegurança para as populações que têm suas áreas7
dispostas pelos interesses econômicos e políticos, revestidos de interesse público.
Importante notar, também, que em qualquer outro caso, os usuários poderiam requerer
usucapião das terras, mas os índios são privados desse direito. Nossa opinião é que as
terras indígenas deveriam ser consideradas áreas de propriedade comunal, podendo
apenas os índios, por consenso, dispor da terra em que sempre estiveram.
Como estamos analisando sob a ótica da complexidade, alguns autores enten-
dem que devemos gerir os recursos de forma compartilhada, com o auxílio do Estado
na gestão, mas com o respeito às comunidades tradicionais existentes (BERKES et
al., 2001, p. 31).
6
Constituição Federal, arts. 231 e 232 (BRASIL, 1988).
7
As terras indígenas são consideradas sagradas para a maioria das tribos ainda existentes.
TRAGÉDIA DOS COMUNS 19
sem custo alto. Para grandes recursos, no entanto, como o oceano, é extremamente
difícil que ocorra uma delimitação econômica e de uso (OSTROM, 1992, p. 295).
Muitos desses recursos são, por natureza, não exclusivos e não adequados
para a apropriação privada, tais como peixes, animais silvestres, rios e oceanos, o
ar que respiramos, dentre outros. Esses recursos, portanto, são difíceis de serem
considerados sob a perspectiva da economia convencional. O reconhecimento desses
Recursos Naturais Comuns como uma categoria distinta fez com que um volume alto
de pesquisas inter e transdisciplinares tenham sido produzidos nos últimos tempos
(BERKES, 2005, p. 51).
Independente do regime de apropriação, nota-se grande problemática com a falta
de um grupo administrador que permita uma gestão de uso sustentável dos recursos.
Isso porque os recursos não devem ser calculados com base, apenas, na população
local, vez que existem fluxos migratórios e a população possui variantes numéricas
com o passar dos anos (BROMLEY, 1992, p. 12).
Segundo Bromley (1992, p. 12), os regimes de propriedade comunal evitam a
exclusão de pessoas, visto que são utilizados por grandes grupos. O foco é a utilização
pelo maior número de pessoas em detrimento do uso sustentável dos recursos dispo-
níveis; ao contrário da propriedade privada, que pertence a determinado indivíduo, que
pode realizar o poder de exclusão contra qualquer indivíduo quando quiser.
Acreditamos que algumas Unidades de Conservação deveriam ser repensadas
e que o reconhecimento da propriedade comunal fosse considerado. No próximo item,
traremos os conflitos do Parque Serra do Tabuleiro, cujo regime é de propriedade Estatal.
Cabe salientar que foi constatado que a casa não possuía iluminação elétrica,
não havia lixo depositado no entorno, assim como não havia fogão à lenha. Nesta
senda, infere-se que a casa era utilizada de maneira sustentável, e a sua demolição
não interferiria na preservação do Meio Ambiente.
Decisão diferente foi tomada no acórdão de 2005, Apelação Cível 2005.034094-7,
da Capital (BRASIL, TJ-SC, 2005), em que a apelante teria construído uma casa em
área delimitada como Unidade de Conservação em Naufragados, Florianópolis. Consta
no acórdão que a apelante teria comprado o terreno na década de 90 e somente reali-
zado a construção tempos depois, não solicitando licenciamento para a obra. O laudo
apto a demonstrar a sustentabilidade do local está ausente, porém alega a moradora
que a casa é simples e que observa a preservação do ambiente, além de servir para
sustento e moradia dela e de toda a família.
Todavia, o magistrado elucidou a questão:
TRAGÉDIA DOS COMUNS 25
nação, haja o empoderamento da população para entender e produzir regras que trarão
um benefício local a todos.
No caso do Parque Serra do Tabuleiro, é visível que um dos problemas da
constante invasão de pessoas dá-se porque o parque está sobre uma apropriação
estatal. O Estado, por meio do Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina
(IMA) conta, em seu quadro de servidores, com um seleto grupo. No entanto, o efetivo
é baixo, o que torna a fiscalização difícil.
As denúncias que existem são graças às pessoas que moram no seu entorno
e que não foram desapropriadas ou, ainda, que tiveram a desapropriação indireta de
suas terras, não podendo exercer atividades no local do parque.
Este fato gera muita revolta por parte dos moradores locais que não podem
interagir com a terra, fato que comprova a fragmentação da lei entre o homem e o meio
ambiente. Além disso, ao mesmo tempo em que não há uma gestão efetiva do Estado,
também não há uma gestão comum entre os proprietários privados. Para agravar o
problema, a exploração imobiliária tem grande interesse econômico na área, fazendo
especulações de todos os níveis, inclusive com a mudança da legislação.
Se mesclássemos pluralismo e monismo, empoderando as pessoas que moram
na localidade, talvez conseguíssemos criar uma gestão comum mais efetiva. O Estado
ficaria com as regras gerais, enquanto as pessoas fariam regras específicas. Além disso,
se reconhecêssemos o regime comunal de apropriação, talvez tivéssemos moradores
mais ativos no auxílio à preservação e um risco menor de alterações legislativas para
exploração da localidade.
É perceptível que, sabendo que não podem nada fazer para a gestão do local,
os moradores deixam toda a responsabilidade na mão estatal. Seria importante um
regime que previsse uma parceria entre o poder público e a coletividade, a fim de que
todos exercessem o dever fundamental de preservação dos recursos comuns.
Nesse caso, é preciso algo além disso. Faz-se necessário trabalhar no campo
da cognição, da ecologia mental, pois, mesmo que ações realizadas na localidade
expliquem os perigos do desmatamento (ecologia ambiental), na grande maioria dos
casos, os sujeitos encontram-se envolvidos em realidades e em crenças que os limitam
e que não permitem que ajam com autonomia.
Além disso, faz-se necessário fornecer ambientes em que “os sistemas auto-
-organizados possam aprender, uns com os outros e a partir de estudos, melhores
formas para se adaptar ao longo do tempo” (OSTROM, 2011, p. 14). A comunicação
deve ser exercida de forma não violenta (ROSENBERG, 2006).
30 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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34 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
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DIREITO E BIOLOGIA: AS RELAÇÕES JURÍDICAS E A
REGULAÇÃO DE RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS
PARA A CONSOLIDAÇÃO DA BIOECONOMIA1
1
Data de recebimento do artigo: 15.12.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 16.01.2019 e 25.01.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 12.02.2019.
2
Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania na Universidade de Ribeirão Preto - Unaerp. Docente do
Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos/SP e do Centro Universitário Estácio em
Ribeirão Preto/SP. Advogado. Jornalista. E-mail: dhnunes@hotmail.com.
3
Professor-Doutor Orientador do Programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania na Univer-
sidade de Ribeirão Preto - Unaerp. E-mail: jsilva@unaerp.br.
4
Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto - Unaerp. Docente do
Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos/SP. Advogada. E-mail: leticiacatani@yahoo.
com.br.
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INTRODUÇÃO
Santi (2012) aponta que o termo bioeconomia pode possuir diversos significa-
dos e interpretações, sempre compreendendo tal campo de estudo como um aliado
da sociedade, podendo ser encarado como uma nova prática social e econômica
que desafia a prática atual do mercado. O conceito da bioeconomia, outrossim, está
amplamente relacionado, a exemplo da biodiversidade, às premissas envolvendo a
sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável como um todo.
Para Horlings e Marsden (2011), o paradigma atual da bioeconomia pode ser
caracterizado a partir do conjunto de atividades econômicas que englobam o valor
latente em processos biológicos e nos biorrecursos renováveis, buscando produzir
melhores condições de saúde e possibilidades de desenvolvimento sustentável,
inclusive no impacto da bioeconomia emergente no campo do desenvolvimento rural.
Os autores ainda apontam que “A bioeconomia, então, parece buscar separar-se da
natureza e ter um maior controle sobre a mesma, através da ciência” (HORLINGS;
MARSDEN, 2011, p. 155).
Correlacionando os conceitos de bioeconomia e biotecnologia, Dias e Carvalho
(2017) apontam que a natureza genérica das técnicas biotecnológicas possibilita a cria-
ção de uma nova bioeconomia com perspectivas significativas para a comercialização de
novos produtos tecnológicos e uma maior participação dos países em desenvolvimento,
de modo que há inúmeros fatores que permitem uma maior participação nos países em
desenvolvimento diante da implementação dessa nova bioeconomia. Nesse sentido:
cooperar com as empresas para o uso comercial dos recursos genéticos, de modo
que uma pesquisa sem finalidades econômicas pode levar a uma descoberta com
aplicações comerciais:
De acordo com Gurgel (2004), a exploração dos recursos genéticos vegetais vem
ocorrendo de modo congruente à margem da lei, sobretudo por meio da biopirataria,
não oferecendo os benefícios prometidos às populações locais. O artigo 15 da CDB
determina os direitos de propriedade sobre os recursos genéticos, promovendo que a
biodiversidade deixe de ser um patrimônio comum à humanidade e passe à sujeição
da soberania nacional, de modo que a repartição dos benefícios provenientes da co-
mercialização e uso dos recursos genéticos contempla o incentivo para os esforços de
conservação. A Convenção ainda sugere que o conhecimento, a inovação e práticas
provenientes de comunidades locais e indígenas serão úteis para o uso e conservação
da biodiversidade, de modo a ter direitos sobre ela, de acordo com o ordenamento
jurídico do país. A CDB, assim, prevê a manutenção das condições gerais mais funda-
mentais para a conservação e o uso dos recursos energéticos como um todo.
Ferro et al. (2006) lecionam que diversos fóruns internacionais têm versado
sobre o acesso aos recursos genéticos e a repartição dos benefícios advindos de seu
uso como OMC, o Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos
Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore (IGC), da OMPI; a UPOV, a FAO,
entre outros. A OMC, por exemplo, no TRIPS, tem como objetivos reduzir as distorções
do comércio internacional e fomentar uma proteção adequada aos direitos de recur-
sos, de modo que os países signatários podem excluir a patentabilidade de plantas
e animais (exceto micro-organismos) e os processos biológicos para a produção de
46 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
plantas e animais. O TRIPS, em relação com a CDB, não exige declaração de origem
dos recursos biológicos para solicitação das patentes, reconhecendo primordialmente
os direitos acerca dos recursos em detrimento dos direitos soberanos dos Estados
em matéria de recursos biológicos, também não prevendo a repartição equitativa de
benefícios entre o titular da patente e o provedor do recurso genético vegetal.
Ora, há pontos de semelhança e discordância no âmbito dos tratados internacio-
nais e da CDB no tocante à exploração, acesso e uso dos recursos genéticos vegetais.
Outro ponto consoante apresentado pelos autores supramencionados nesse sentido
diz respeito ao acordo TRIPS sendo o tratado mais recente e detalhado sobre direitos
de propriedade intelectual, o qual iria prevalecer sobre a CDB, de acordo com o artigo
30 da Convenção de Viena sobre a Lei de Tratados.
O TRIPS reconhece os direitos soberanos dos Estados sobre seus próprios
recursos genéticos, prevendo um sistema multilateral de acesso facilitado e repartição
de benefícios, viabilizado por intermédio de um Acordo de Transferência Material (ATM).
O TRIPS, em relação com a CDB, contempla que o:
Ora, a regulação dos recursos energéticos vegetais deve sempre buscar atender
a fins sociais. Os novos caminhos do agronegócio brasileiro estão diretamente rela-
cionados ao desenvolvimento sustentável da sociedade, de modo que a exploração
de tais recursos não deve ser contemplada como um elemento que visa tão somente
o atendimento de interesses particulares. A definição de regras que orientem a repar-
tição de benefícios, mesmo dentro de um contexto de incertezas, é essencial para
a construção e manutenção de redes de desenvolvimento, de comportamentos, de
colaboração e compartilhamento de ativos, de captação de recursos financeiros de
diferentes fontes e na diminuição de custos de transação.
Nesse sentido:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que verse sobre a exploração dos recursos genéticos (vegetais ou não) de modo con-
gruente. Especificamente no Brasil, ainda que avanços tenham sido promovidos na
legislação que aborda o patrimônio genético brasileiro, se faz necessária a construção
de um novo marco teórico que abranja as prerrogativas da bioeconomia consolidada
e dos novos caminhos do agronegócio nacional.
Contemplando a bioeconomia na medida de que a natureza deve ser agente
limitante do processo econômico e da importância da biotecnologia nesse sentido, se
faz necessário um empenho legislativo visando sua consolidação, para possibilitar que
sejam criadas e desenvolvidas novas fontes de energia e para que sejam preservados,
controlados e conservados os recursos genéticos vegetais.
A sustentabilidade, no mesmo sentido, está presente em todo o enfoque da
biodiversidade, contemplando inclusive a bioeconomia e o agronegócio brasileiro. A
exploração de tais recursos genéticos vegetais, do mesmo modo, deve ser contemplada
a partir do ideário que envolve a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável,
visando sempre à proteção de tais recursos frente aos anseios da humanidade perante
a globalização.
REFERÊNCIAS
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MILARÉ, E. Direito do ambiente. 8. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
1
Data de recebimento do artigo: 27.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 08.03.2019 e 13.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 25.03.2019.
2
Doutora em Direito Ambiental Internacional pela UNISANTOS. Mestre em Direitos da Personalidade pelo
Centro Universitário de Maringá/PR - UNICESUMAR. Especialização em Docência no Ensino Superior
pela UNICESUMAR. Pós-Graduada em Direito Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania - IDCC - Londrina/PR. Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB de
Maringá. Professora na Universidade Estadual de Maringá - UEM. E-mail: deise.marcelino@hotmail.com.
3
Professora associada do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Ambiental da Universidade
Católica de Santos - UNISANTOS. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em
Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Doutora em Direito (Departamento de Direito
Econômico e Financeiro) pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Administrativo e
Ambiental com ênfase em Direito de Águas. E-mail: marialuiza.granziera@gmail.com.
54 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
INTRODUÇÃO
O dano significativo pode ser entendido como aquele que tenha peso social
(presente e futuras gerações), econômico e ambiental. Não é irrisório, mas também
não é, necessariamente, grave.11 A obrigação de não causar dano não se aplica a
qualquer interferência diante do uso das águas compartilhadas.12 Há de se considerar
que o dano, para que se caracterize como tal, deve exceder a certo nível de gravidade
que requeira uma ação legal e ainda deve ser resultado de uma atividade humana.13
No caso de águas subterrâneas, o dano causado enseja maiores proporções,
pois a poluição pode ser irreversível (limitação de tecnologia) e incalculável (recurso
oculto). Ademais, por vezes, é difícil determinar a fonte da poluição e, uma vez que a
água subterrânea sofre o processo de contaminação, sua purificação é lenta. Dessa
forma, no contexto de aquíferos, as medidas de enfrentamento do dano devem estar
relacionadas não só com o uso da água, mas também com o manejo do ambiente
circundante. No caso de ocorrer um dano, o Estado responsável deve adotar todas as
medidas necessárias, com vistas a eliminar ou minorar tais danos e, se adequado, a
discutir a questão da indenização (art. 7º, § 2º).
O princípio da obrigação geral de cooperar (art. 8º) é o elemento catalisador dos
acordos internacionais sobre recursos compartilhados, sendo essencial nos tratados
sobre águas transfronteiriças, e tem grande incidência nas Convenções de Direito Am-
biental Internacional. A importância da obrigação de cooperar está prevista, entre outros
documentos internacionais, no Princípio 24 da Declaração de Estocolmo (1972), no
capítulo 18 da Conferência de Mar del Plata e na Agenda 21 (preâmbulo 1.3 e capítulo 2).
O texto considera o dever de cooperar e enfatiza que essa cooperação ocorra
em pé de igualdade. Contudo, devem-se levar em conta as diferenças de ordem eco-
nômica, social, política ou de outra índole, pois a assimetria entre os Estados influencia
a maneira como ocorre a cooperação.14
O princípio de cooperar sugere que os Estados que compartilham um recurso
natural, como as águas subterrâneas, devem instituir mecanismos e comissões de
forma a facilitar a cooperação (art. 8, 2).
O dever de cooperação dá ensejo ao princípio do intercâmbio regular de dados e
de informação (art. 9º). Os Estados ribeirinhos devem, frequentemente, trocar dados e
informações relacionados com a qualidade da água, bem como com previsões conexas.
11
MACHADO, op. cit., p. 147.
12
PERREZ, Franz Xaver apud VILLAR, Pilar Carolina. Aquíferos transfronteiriços: governança das águas
e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015. p. 120.
13
UNIVERSITY OF OSLO. Faculty of Law. The prohibition of transboundary environmental harm:
an analysis of the contribution of the International Court of Justice to the Development of the No
harm Rule. p. 4-5. Disponível em: https://www.duo.uio.no/bitstream/handle/10852/41416/213.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 16 fev. 2019.
14
LOUKA; Elli. Water Law & police: governance without frontiers. Oxford University Press, 2008. p. 49.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 59
18
ONU. O direito humano à água e saneamento. Disponível em: http://www.un.org/waterforlifedecade/
pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_por.pdf. Acesso em: 16 de fev. 2019.
19
LIMA, Maria Isabel Leite Silva de; GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito humano à água e a
perspectiva econômica para a sustentabilidade hídrica. Revista do CNMP: água, vida e direitos humanos,
Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, n. 7, p. 13-36, 2018. p. 15.
20
MACCAFFREY, Stephen C. The Law of International Watercourse: non navigational uses. Oxford
University Press, 2003. p. 312. “Article 20, Protection and Preservation Ecosystems, a very general,
but potentially powerful mandate [...]”.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 61
30
Article 2. Use of Terms. For the purposes present draft articles: (a) “aquifer” means a permeable water-
bearing geological formation underlain by a less permeable layer and the water contained in the saturated
zone of the formation; (b) “aquifer system” means a series of two or more aquifers that are hydraulically
connected; (c) “transboundary aquifer” or transboundary aquifer system means respectively, an aquifer
or aquifer system, parts of which are situated in different States.
31
VILLAR, op. cit., p. 141.
32
Apud VILLAR, op. cit., p. 142-143.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 65
Com relação ao uso dos aquíferos, os arts. 4º e 5º enumeram, num rol não
taxativo, o correto manejo como aquele que, entre outras formas, deve almejar a maxi-
mização dos benefícios ao longo prazo derivados do uso da água contida no aquífero,
bem como estabelecer de forma individual ou conjunta um plano global de utilização,
tendo em conta as necessidades presentes e futuras de água dos Estados do aquífero
e as outras fontes de água desses Estados.
A utilização equitativa e razoável dos aquíferos impõe a resiliência do sistema,
impedindo os Estados de extrair as águas até o esgotamento do aquífero. O cumpri-
mento dessa diretriz implica conhecer as características do aquífero como as taxas
de recarga e descarga, dados por vezes inexistentes ou indisponíveis. Para Chusei
Yamada, as regras de utilização equitativa e razoável são necessariamente gerais e
flexíveis e exigem que os Estados tomem em consideração fatores e circunstâncias
concretas dos recursos, bem como de suas necessidades.33
O art. 5º arrola os fatores que impõem prioridades dentro de um sistema de
planejamento como as necessidades sociais, econômicas e outras, presentes e futu-
ras, dos Estados do aquífero. Deve-se examinar a conjuntura real para equacionar os
interesses consistentes. No § 2º, esclarece-se que, ao ponderar os diferentes fatores,
cabe levar em conta as necessidades humanas:
O peso a atribuir a cada fator deve ser determinado pela sua
importância relativamente a um aquífero ou sistema aquífero
transfronteiriço específico em comparação com o de outros
fatores pertinentes. Para determinar o que é utilização equitativa
e razoável, todos os fatores relevantes devem ser considerados
em conjunto e uma conclusão alcançada com base em todos os
fatores. No entanto, ao ponderar diferentes tipos de utilização de
um aquífero ou sistema aquífero transfronteiriço, deve ser dada
especial atenção às necessidades humanas vitais.
33
The rules of equitable and reasonable utilization are necessarily general and flexible and require for their
proper application that aquifer States account concrete factors and circumstances of the resources as
well as of the need of the aquifer States concerned. YAMADA, cit., p. 100. Disponível em: http://www.
aalco.int/yamada2007.pdf. Acesso em: 16 fev. 2019.
66 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
34
Sobre esse tema ver: SILVA, Deise Marcelino da; FACHIN, Zulmar. Refugiados ambientais: aspectos
sociológicos e jurídicos. In: PNMA: 30 anos da Política Nacional do Meio Ambiente, v. 1, 2011. p. 669-683.
35
Historicamente e culturalmente, a maioria dos países da América do Sul prefere criar tratados e normas
bilaterais e multilaterais entre si, em vez de se tornarem partes em tratados internacionais de grande
porte. FOSTER, Stephen et al. A iniciativa do Programa Sistema Aquífero Guarani: rumo à gestão prática
da água subterrânea em um contexto transfronteiriço. 2009. Disponível em: http://www-wds.worldbank.
org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2015/06/11/090224b0828c0514/1_0/Rendered/PDF/
A0iniciativa0d0xto0transfronteiri0o.pdf. Acesso em: 16 fev. 2019.
68 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
procedimento comum entre os Tratados Internacionais de Águas, apontando, entre outras, a caracte-
rização do próprio Sistema Aquífero Guarani e o conceito de gestão hídrica adotada.
39
BRASIL. Comissão de relações exteriores e de defesa nacional. Projeto de decreto legislativo nº 262,
de 2015. (Mensagem nº 172, de 2015). Relatório de Aprovação do Acordo. Representação Brasileira
no Parlamento do MERCOSUL. Relator: Deputado Bruno Covas. p. 9.
40
The Guarani Aquifer Accord (“Acordo sobre o Aquífero Guarani” or “Acuerdo Aquífero Guarani”) is the first
regional treaty to be modeled after the International Law Commission Draft Articles on Transboundary
Aquifers of 2008, which address “confined” aquifers that are outside the scope of the United Nations
Watercourses Convention of 1997. TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer Accord: cooperation in
South America towards prevention of harm and sustainable, equitable use of underground transboundary
water. The Law and Practice of International Courts and Tribunals, 5 (06) 49-63 brill.com/lape 15 (2016)
249-263. p. 249.
70 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
43
TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer Accord: cooperation in South America towards prevention of
harm and sustainable, equitable use of underground transboundary water. The Law and Practice of
International Courts and Tribunals, 5 (06) 49-63 brill.com/lape 15 (2016) 249-263. p. 256.
44
The term “significant harm” (“prejuízos sensíveis” in Portuguese) is common in international water law
and in international environmental law. It therefore does not prohibit all use of the water, recognizing
that human activities do cause harm to the environment. The adjective “significant” creates a threshold
beyond which an activity causing harm must cease, and those responsible must mitigate the damage.
This limitation on sovereignty in the treaty may be seen as a variation on Stockholm Principle 21 and Rio
Principle 12, directing states not to cause harm to the environment of another state or to areas beyond
national jurisdiction. The language of the Accord in Article 3 is more modern and ecologically correct: to
avoid significant harm to another state or to the environment. TINKER, Catherine. The Guarani Aquifer
Accord: cooperation in South America towards prevention of harm and sustainable, equitable use of
underground transboundary water. The Law and Practice of International Courts and Tribunals, 5 (06)
49-63 brill.com/lape 15 (2016) 249-263. p. 256.
45
MACHADO, op. cit., p. 91.
72 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
46
The list of factors relevant to determining what equitable and reasonable utilization means (Article 6)
comprises “geographic, hydrographic, hydrological, climatic, ecological and other factors of a natural
character”, but leaves out tellingly hydrogeological ones, namely those factors that deal with groundwater
characteristics. MECHLEM, Kerstin. International groundwater law: towards closing the gaps? Yearbook
of International Environmental Law, v. 14, 2003. p. 57. Geir Ulfstein, Jacob Werksman Editors-in-Chief.
47
O Direito Internacional é informado pelos seguintes princípios: 1. Princípio da não agressão. 2. Princípio
da solução pacífica dos litígios entre Estados 3. Princípio da autodeterminação dos povos. 4. Princípio da
proibição da propaganda de guerra. 5. Princípio do não uso ou ameaça de força. 6. Princípio da boa-fé
no cumprimento das obrigações internacionais. 7. Princípio da não intervenção nos assuntos internos
dos Estados. 8. Princípio da igualdade soberana dos Estados. 9. Princípio do dever de cooperação
internacional. 10. Princípio do pacta sunt servanda.
A GOVERNANÇA NA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS 73
mereciam destaque no Acordo, pois são locais onde ocorre a recarga e são também
o ambiente de exploração das águas.
5. A COMISSÃO DO SAG
O art. 15 do Acordo do SAG merece especial atenção, haja vista ser um dos
próximos desafios na proteção das águas do SAG, pois estabelece uma Comissão
integrada pelas quatro Partes, que coordenará a cooperação para o cumprimento dos
princípios e objetivos do Acordo. Trata-se da constituição de uma entidade para con-
cretizar a cooperação entre os países com relação ao SAG. Essa importante proposta
no âmbito do Tratado da Bacia do Prata determina que as Partes poderão concluir
outros acordos destinados à consecução dos objetivos gerais de desenvolvimento da
Bacia platina, conforme o artigo VI.52
Considera-se tal institucionalização um dos principais desafios da gestão in-
tegrada sustentável do SAG. A busca pela concretização e efetividade da Comissão
é essencial. A sua atuação deve obedecer aos princípios contidos nas premissas do
Acordo, como a boa-fé, a precaução, a prevenção, o intercâmbio de informação, o de-
senvolvimento sustentável, o uso equitativo dos recursos naturais, a responsabilidade
internacional e a cooperação.
Nas palavras de Pilar Villar:
jurisdição sobre os signatários do acordo, essa jurisdição deve ser efetivamente inserida
no contrato.
2. Percebeu-se que o Acordo não utiliza a expressão “águas subterrâneas”,
largamente utilizada em Tratados dessa natureza. O termo adotado “sistema aquífero
guarani”, não deixa claro se o bem transfronteiriço/partilhado (objeto desse Acordo) é
a água em si ou também os outros recursos que se encontram dentro dos limites do
aquífero. Ademais, questiona-se se as áreas em torno da recarga e descarga do aquífero
seriam também sujeitas às disposições do Acordo, já que aquífero significa a formação
geológica. Essa observação se articula com a notada falta de glossário aplicável ao
Acordo, que contribuiria para esclarecer procedimentos para a gestão a ser realizada.
3. Constatou-se que o Acordo não cita o SISAG - Sistema de Informação do
SAG, importante ferramenta de atualização de informações para a gestão sustentável
e participativa do SAG.
4. Verificou-se que os povos originários não foram mencionados. Algumas
províncias da Argentina, onde o SAG está confinado - Corrientes, Chaco, Formosa e
Misiones -, são habitadas por povos indígenas, portadores de sua visão de mundo,55
fato que poderia ensejar a posição do Acordo com relação a tais comunidades.
5. Embora na Política Hídrica dos países do SAG se considere o uso prioritário
de água para o consumo humano, inexiste no Acordo a indicação de preferência em
caso de crise hídrica.
6. O Acordo não concebe as áreas de afloramento nem os pontos de conexão
hidráulica das águas do SAG com as águas superficiais.
7. Não há previsão sobre a responsabilidade das Partes em casos de desastres
ambientais que possam atingir o SAG e provocar a degradação de suas águas.
A Comissão poderia contribuir para sanar tais lacunas.
Destaca-se ainda a responsabilidade do Brasil em ser o fiel depositário do
Acordo, já que mais de 60% das águas subterrâneas do Guarani estão localizadas
no território do país. É em seu território que se encontra a maior quantidade de poços
para a captação das águas do aquífero. O Brasil assinou o Acordo, que foi ratificado
em 2017 com a edição do Decreto Legislativo nº 52/2017.
O Uruguai, empenhado na criação do Acordo do SAG, foi o primeiro país
a ratificá-lo com a edição da Lei 18.913, de 22.06.2012. Em seguida, foi a vez da
Argentina, por meio do Decreto 2.218/2012 e da Lei 26.780, sancionada em 31.10.2012.
No Paraguai, em 13.06.2012, a Câmara de Senadores do Congresso Nacional
encaminhou à Câmara dos Deputados a Mensagem nº 1.489, com o Projeto de Lei
55
APESTEGUÍA, G. J. El principio de la soberanía estatal en el Acuerdo sobre el Acuífero Guaraní:
problemas jurídicos particulares de la Argentina. Boletín Geológico y Minero, v. 123, n. 3, 2012. Disponível
em: http://www.igme.es/Boletin/2012/123_3/6_ARTICULO%202.pdf. Acesso em: fev. 2017.
78 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
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GEILSON NUNES3
INTRODUÇÃO
A água potável de fácil acesso revela-se como um dos grandes problemas am-
bientais mundiais, juntamente com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.
O corpo humano possui como principal componente a água, a qual compõe cerca de
60% da sua estrutura total. Não é por outro motivo que a água revela-se indispensável
para existência de vida para o ser humano. No entanto, há que se explicitar que não se
está a abordar qualquer tipo de existência, mas sim a existência de uma vida digna de
ser vivida,5 em que o acesso à água potável de qualidade, bem de uso comum do povo,
possa ser garantido às presentes e futuras gerações, visando garantir a dignidade da
pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, por meio da solidarie-
dade intergeracional, nos termos de uma interpretação sistemática do contido no art.
1º, inciso III, no art. 3º, inciso I, e no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988.
Diante de tal realidade fático-jurídica, surge o problema relacionado ao tensiona-
mento entre privatização do uso da água e o direito fundamental de acesso equânime a
esse bem comum essencial, fonte primária de existência de uma vida digna de ser vivida.
Seria a água um bem inalienável? Sendo a água um bem inalienável, os serviços
públicos de captação, de tratamento e de abastecimento de água à população poderiam
ser legalmente privatizados? Podendo ser legalmente privatizados, qual a forma mais
eficiente a ser observada pelo Poder Público para a privatização?
Assim, no âmbito da presente pesquisa, inicialmente foi abordada a questão
da escassez da água potável como um dos grandes problemas ambientais mundiais.
Em seguida, tendo por base a teoria geral dos direitos fundamentais e o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no caput do art.
225 da Constituição federal de 1988, realizou-se um estudo sobre a possibilidade de
a água possuir natureza constitucional e legal de bem ambiental de uso comum.
Por fim, estabeleceu-se um debate acerca da possibilidade legal e da forma
mais eficiente para a realização da privatização dos serviços públicos de captação,
tratamento e abastecimento de água potável à população.
Quanto ao objetivo a ser alcançado, refere-se a construir um olhar crítico sobre a
água enquanto um bem ambiental de uso comum do povo, cujo acesso revela-se como
um direito fundamental, visando a promover conscientização social no sentido de evitar
5
Vida digna é aquela vivida com dignidade, sendo, a dignidade, entendida como um fim material, um
objetivo, “[...] que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens” (saúde, segurança, meio
ambiente ecologicamente equilibrado, educação, entre outros) “[...] que fazem com que a vida seja
‘digna’ de ser vivida” (FLORES, 2009, p. 37).
84 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Um resumo acerca de tais questões abertas foi apresentado por Celso Furtado,
para quem a resposta à pergunta formulada:
O Clube de Roma, por meio do Relatório The Limits to Growth, trouxe a questão
ambiental para o topo da agenda global (FURTADO, 1996, p. 12). O aumento expres-
sivo da exploração dos recursos naturais não renováveis e a geração, sem controle
adequado, de resíduos sólidos, efluentes líquidos e emissões gasosas, provenientes
das indústrias e residências, redundaram no caos ambiental,7 o qual, dentre outros
resultados nefastos ao equilíbrio ambiental, vem causando a escassez de água potável
de fácil acesso.
Com relação à questão da escassez de água potável de fácil acesso, importante
salientar que o planeta Terra possui cerca de 1,6 bilhões de km3 de água, dos quais
aproximadamente 1,35 bilhões de km3 é de água salgada, 29 milhões de km3 são de
água doce congelada nas geleiras e calotas, 8,6 milhões de km3 são de água doce nos
continentes e sob eles, e 13 mil km3 estão na forma de vapor de água na atmosfera
(ALMEIDA JÚNIOR; HERNANDEZ, 2001, p. 3).
Assim, 75% da superfície da terra é coberta por água. No entanto, 97,5% da
água existente na terra é salgada; 2,5% se encontram nas calotas polares, as quais são
7
Nesse sentido, Ewerton Ricardo Messias e Valter Moura do Carmo dissertam que: “A pós-modernidade,
fortemente marcada pela exploração desregrada dos recursos naturais não renováveis, pelo descarte
inadequado de resíduos sólidos, pela emissão desenfreada de efluentes líquidos sem tratamento e
pela alta emissão de gases de efeito estufa, é caracterizada pelo desequilíbrio ambiental, ou seja, pelo
caos ambiental” (MESSIAS; CARMO, 2018, p. 271).
88 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
consideradas as reservas mais puras do planeta, porém sua exploração não é viável;
0,7% encontra-se nos lençóis subterrâneos; e apenas 0,007% da água existente no
planeta está nos rios e lagos (ALMEIDA JÚNIOR; HERNANDEZ, 2001, p. 3).
Com as alterações no clima a provocar um grande desequilíbrio na distribuição
das chuvas, a capacidade dos ecossistemas em recompor suas reservas tem sido
prejudicada, de forma a refletir um distanciamento do equilíbrio ambiental, revelando
um estado de caos ambiental. Com isso, cresce o risco de aumentar a desertificação
no mundo, enquanto regiões tradicionalmente ricas para a agricultura, como o Brasil,
não conseguem mais manter uma produção estável.
No Brasil, a divisão da água ainda é desigual em relação aos usos e às res-
ponsabilidades de cada setor. A agricultura fica com cerca de 70% da água captada
em mananciais, usada muitas vezes sem o devido cuidado em relação às técnicas
de irrigação, além de deixar escorrer novamente para os cursos d’água uma grande
quantidade de produtos utilizados, como fertilizantes e defensivos agrícolas. Na verdade,
venenos que precisarão ser retirados, em seu próximo uso, em estações de tratamento
que vão enviar água encanada às residências e indústrias.
A escassez de água no mundo é agravada pela desigualdade social e pela falta
de manejo e usos sustentáveis dos recursos naturais. Segundo o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF) “[...] pelo menos 11% da população mundial, corres-
pondente a 783 milhões de pessoas, continua a não ter acesso à água potável segura,
e milhares de milhões de pessoas continuam sem ter acesso a meios de saneamento”
(BRASIL, UNICEF, 2012). De acordo com a UNICEF, “dos 783 milhões de pessoas
no mundo sem acesso à água potável melhorada, 119 milhões vivem na China; 97
milhões, na Índia; 66 milhões, na Nigéria; 36 milhões, na República Democrática do
Congo; e 15 milhões, no Paquistão” (BRASIL, UNICEF, 2013).
As diferenças registradas entre os países desenvolvidos e os em desenvolvi-
mento demonstram que a crise mundial dos recursos hídricos está diretamente ligada
às desigualdades sociais, ou seja, ao distanciamento do equilíbrio social, revelando,
novamente, um estado de caos. Há regiões com índices críticos de disponibilidade
d’água, “[...] como nos países do Continente Africano, onde a média de consumo de
água por pessoa é de dezenove metros cúbicos/dia, ou de dez a quinze litros/pessoa”
(COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO, [2007?]). Por outro lado,
“[...] em Nova York, há um consumo exagerado de água doce tratada e potável, onde
um cidadão chega a gastar dois mil litros/dia” (COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO
DE SÃO PAULO, [2007?]). A UNICEF alerta que:
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 89
Afirma-se isso pois podem ocorrer os chamados conflitos entre princípios de direitos
fundamentais, ocasião em que um particular ou o próprio Estado adota uma conduta,
visando garantir a fruição de um determinado direito fundamental, a qual se conflita
com outro direito fundamental que, igualmente, tenha que ter sua fruição garantida.
Nesses casos, diante de conflitos entre direitos fundamentais:
[...] um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo,
nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem
que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na
verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência
em face do outro sob determinadas condições. Sob outras con-
dições a questão da precedência pode ser resolvida de forma
oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos
casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os
princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre
regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões
entre princípios - visto que só princípios válidos podem colidir
- ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso
(ALEXY, 2008, p. 93-94).
art. 6º, parágrafo 1º, do Pacto de Direitos Civis e Políticos11; e dos artigos 11 e 12 do
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” 12 (BRZEZINSKI, 2012, p. 62-63).
O Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado no Brasil e entrou
em vigor a partir da publicação do Decreto nº 591/1992; e o Pacto de Direitos Civis e
Políticos foi ratificado e entrou em vigor a partir da publicação do Decreto nº 592/1992.
No entanto, no âmbito internacional, o direito do ser humano de ter acesso à
água potável limpa somente foi previsto de forma expressa em documento internacional
com a aprovação da Resolução A/64/292, de 3 de agosto de 2010, pela Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Pela primeira vez, o direito de
acesso à água potável limpa e ao saneamento são expressamente reconhecidos como
essenciais para a concretização de todos os direitos humanos. Em seus itens 1 e 2,
a referida Resolução apela aos Estados e às organizações internacionais para que
adotem providências para disponibilizar recursos financeiros que contribuam para o
desenvolvimento de capacidades e transfiram tecnologias, de modo a ajudar os países
11
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em sua Parte III, art. 6º, número 1, prevê que: “O
direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito está protegido por lei. Ninguém pode ser arbi-
trariamente privado da vida” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1976b).
12
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Terceira Parte, arts. 11 e
12, prevê que: “Artigo 11º. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as
pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário
e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência.
Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito
reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente
consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas
as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação
internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos: a) Para melhorar os métodos
de produção, de conservação e de distribuição dos produtos alimentares pela plena utilização dos
conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo
desenvolvimento ou a reforma dos regimes agrários, de maneira a assegurar da melhor forma a
valorização e a utilização dos recursos naturais; b) Para assegurar uma repartição equitativa dos
recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas que se
põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares. Artigo
12º. 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do
melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas que os Estados Partes no
presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender
as medidas necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil,
bem como o são desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene
do meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controlo das doenças epidê-
micas, endêmicas, profissionais e outras; d) A criação de condições próprias a assegurar a todas
as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1976a).
94 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
A propósito, Silva (2003, p. 58) aclara que o meio ambiente é onde se desen-
volve a vida humana, por isso é exigido que, como sendo um direito fundamental,
proporcione qualidade para o ser humano viver e progredir; ou seja, o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é indispensável à concretização e eficácia social do princípio
da dignidade da pessoa humana (MESSIAS; DIAS; MACIEL, 2018, p. 85), desnudada
na existência de uma vida digna de ser vivida. No entanto, para que seja alcançado
o direito fundamental à fruição de uma vida digna de ser vivida, necessária se faz a
adoção do modelo de viver bem, o qual, segundo Álisson José Maia Melo (2014, p. 20),
forma a assumir um destacado protagonismo, visto que, sem ela, não há sequer que
se discutir acerca da concretização de outros direitos fundamentais, vez que, sem o
seu consumo em quantidade e qualidade adequada, não há que se falar em vida digna
de ser vivida; e, diante da inexistência de seu consumo, o resultado será a morte, não
podendo o ser humano fruir de qualquer outro direito fundamental. Nesse sentido, José
Carlos Bruni assevera que:
Todo ser vivo tem que manter seu suprimento de água próximo
do normal, do contrário morre. Um homem pode viver sem
alimento sólido por mais de um mês, mas sem água só poderá
viver cerca de dois ou três dias. Se seu corpo perder mais de
20% de seu conteúdo normal de água, terá morte dolorosa. O
homem tem de ingerir cerca de 2,5 litros de água por dia (BRUNI,
1993, p. 55-56).
o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora (BRASIL, 1981).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 97
17
Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público; [...]
98 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
18
William Paiva Marques Júnior assevera que: “A gestão inconsequente, desastrosa e irresponsável das
águas, da qual resultaram danos irreversíveis, como por exemplo, a desertificação de grandes áreas
terrestres e bruscas mudanças climáticas, cede lugar, paulatinamente, a uma abordagem ambiental,
social e econômica do uso e da preservação dos recursos hídricos da Terra” (MARQUES JÚNIOR,
2016, p. 92).
19
Importante se faz a distinção entre os termos eficiência e eficácia, portanto, para tal finalidade, na
presente pesquisa serão utilizadas as definições de Idalberto Chiavenato, para quem: “[...] eficácia é
uma medida normativa do alcance dos resultados, enquanto eficiência é uma medida normativa da
utilização dos recursos nesse processo. [...] A eficiência é uma relação entre custos e benefícios. Assim,
a eficiência está voltada para a melhor maneira pela qual as coisas devem ser feitas ou executadas
(métodos), a fim de que os recursos sejam aplicados da forma mais racional possível [...] À medida que
o administrador se preocupa em fazer corretamente as coisas, ele está se voltando para a eficiência
(melhor utilização dos recursos disponíveis). Porém, quando ele utiliza estes instrumentos fornecidos
por aqueles que executam para avaliar o alcance dos resultados, isto é, para verificar se as coisas bem
feitas são as que realmente deveriam ser feitas, então ele está se voltando para a eficácia (alcance
dos objetivos através dos recursos disponíveis)” (CHIAVENATO, 1994, p. 70).
O BEM AMBIENTAL ÁGUA 99
O discurso utilizado para justificar o real interesse por parte dos que detêm o
grande capital é que a enorme supervalorização econômica da água deve-se ao ar-
gumento capitalista de que existe um admirável desperdício no uso e gerenciamento
dos recursos hídricos, devido ao fato de que a maioria das sociedades, até o momento,
consideraram a água como um bem social, e não como uma mercadoria (PETRELLA,
2002, p. 77). Os defensores dessa linha interpretativa têm como principal argumento o
desperdício da água decorrente do baixo preço praticado para sua captação, tratamento
e abastecimento. Na verdade, nos últimos dez anos, o preço da água teve expressiva
alta em virtude de sua escassez, resultante não só do desperdício advindo do uso do-
méstico ou industrial, mas também da superexploração agrícola, da poluição industrial,
e da falta de visão de longo prazo envolvendo um planejamento e um gerenciamento
global integrado, resultando na incapacidade de implementar uma gestão de recursos
hídricos de maneira eficiente e eficaz, devido aos interesses econômicos e financeiros
envolvidos (PETRELLA, 2002, p. 79-83).
Conforme já exposto, a água é essencial para a continuidade da existência de
vida digna de ser vivida no planeta Terra. Dessa forma, o seu acesso liga-se à ideia
de um mínimo existencial, o que torna a água um bem essencial e, assim sendo,
não pode sofrer restrições de acesso, sob pena de violação da dignidade da pessoa
humana, fundamento da República Federativa do Brasil, contido no artigo 1º, inciso
III, da Constituição Federal de 1988 (MESSIAS, 2017, p. 87). Nesse sentido, Riccardo
Petrella consigna que o acesso à água:
pelo caos ambiental, o qual é integrado pela escassez de água potável de fácil acesso,
resulta em externalidades20 que anteriormente eram inexistentes, levando a maior
reflexão sobre a exploração econômica de tal bem ambiental.
Assim, vale ressaltar a abordagem da escolha racional trazida pela Law and
Economics, por meio da qual o indivíduo ou corporação (já que as corporações são
compostas por pessoas naturais) toma decisões pautadas em seus interesses indivi-
duais. Nesse contexto, a exploração econômica da água pelas corporações privadas
passa a ser a escolha racional mais atrativa para os agentes econômicos, em virtude de
sua essencialidade para a existência de vida e de sua escassez, conforme explanado
acima, pois atenderá de forma mais plena os seus próprios interesses, haja vista a
possibilidade de lucratividade.
Na linha desse entendimento, por meio do pressuposto da racionalidade, do qual
fazem parte as decisões dos indivíduos, a escolha pelo procedimento da exploração
econômica da água levará em consideração os benefícios e prejuízos consequentes,
de forma a fazer prevalecer aquele que proporcione maior satisfação individual (cor-
porativa). Assim, na medida em que a exploração econômica da água proporcionar
maior satisfação individual para as corporações privadas, será ela mais procurada e
implementada.
Com efeito, as corporações privadas procedem à análise dos custos envolvidos
na captação, no tratamento e no fornecimento para verificar a viabilidade da exploração
econômica da água. Nesse contexto, haverá eficiência econômica para as corporações
privadas quando os custos relacionados a todo o processo de exploração econômica
da água forem menores do que a lucratividade obtida com a sua comercialização.
Tal cenário pode ocorrer diante da exploração de fontes de água de fácil acesso e de
boa qualidade. Afirma-se isso pois serão necessários menores investimentos para a
captação e o fornecimento caso a fonte de captação esteja localizada próxima ao local
de tratamento e fornecimento da água à população. De igual maneira, o acesso à agua
de boa qualidade redundará na necessidade de menores investimentos para o seu
tratamento. Dessa forma, as corporações privadas buscam aumentar sua eficiência
econômica por meio da redução dos custos e do aumento da lucratividade, conside-
rando em suas análises de viabilidade econômica a exploração de fontes próximas de
água de boa qualidade.
20
Segundo Cristiano Carvalho, as “externalidades significam custos ou benefícios que atingem terceiros,
não integrantes da relação jurídico-econômica. As externalidades podem ser positivas ou negativas: no
primeiro caso, são custos arcados por terceiros. Um exemplo comum é a poluição causada por uma
fábrica, custo arcado pela população e não ‘internalizado’ no preço do produto por ela fabricado. [...]
As externalidades positivas são benefícios não previstos que alcançam indivíduos que não pagaram
por eles, gerando também falhas de mercado” (CARVALHO, 2013, p. 51).
104 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, de forma que, quando das análises
das solicitações de emissão de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, o Poder
Público poderá verificar se o uso pretendido e solicitado revela-se equilibrado, do ponto
de vista quantitativo e qualitativo, somente emitindo a outorga diante da existência
de equilíbrio no exercício do direito de uso dos recursos hídricos, conforme previsão
contida no art. 11 da Lei nº 9.433/1997.
Conforme já explanado anteriormente, a água possui natureza de bem am-
biental, portanto, revela-se em um bem de uso comum do povo; e o acesso à água de
qualidade trata-se de um direito fundamental constitucional material ou implícito que
decorre da interpretação sistemática do contido no art. 1º, inciso III e no art. 225, caput,
da Constituição Federal de 1988, c/c o art. 3º, inciso V, da Lei nº 6.938/81 e com o art.
1º, incisos I e III, da Lei nº 9.433/97. Dessa forma, diante de tal interpretação sistemá-
tica do texto constitucional com os textos infraconstitucionais, a água já revela outra
característica inata à sua natureza, qual seja, ser inalienável. No entanto, ainda assim,
o legislador decidiu, de forma zelosa, consignar a característica de inalienabilidade da
água expressamente no texto da Lei nº 9.433/97, fazendo-o no art. 18.
No entanto, há que se observar que somente poderão ser cobrados, pelo Poder
Público, os usos dos recursos hídricos previstos no art. 12, da Lei nº 9.433/1997, ou
seja, somente poderão ser objeto de cobrança os usos da água sujeitos à outorga,
conforme previsão contida no art. 20 da mesma Lei. Portanto, todos os usos de recursos
hídricos sujeitos à outorga estarão sujeitos à cobrança pelo Poder Público. Nesse ponto,
é importante salientar que a cobrança pelo uso da água não se liga à alienação de tal
bem ambiental, mas, sim, liga-se ao direito do seu uso, mediante emissão de outorga
pelo Poder Público, tendo por finalidade conferir à água a natureza de bem econômico,
indicando ao usuário o seu valor real e, assim, incentivando a sua racionalização, além
de “[...] obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções
contemplados nos planos de recursos hídricos”, conforme a interpretação sistemática
do contido nos arts. 18, 19 e 20 da Lei nº 9.433/1997 (BRASIL, 1997).
Dessa forma, a captação da água para fins de abastecimento público, ponto
focal da presente pesquisa, configura-se como um dos usos da água sujeitos à prévia
obtenção de outorga junto ao Poder Público, sendo objeto, também, de cobrança, nos
termos do contido no art. 20 da Lei nº 9.433/1997. Assim, no Brasil, nos casos de pri-
vatização do sistema público de captação, tratamento e abastecimento, em quaisquer
dos três modelos abordados na presente pesquisa, quais sejam, alienação, concessão
ou gestão administrativa, as corporações privadas deverão pagar ao Poder Público
pelo direito de captação da água para fins de abastecimento público. Verifica-se que,
106 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
CONSIDERAÇÕES FINAIS
população, não havendo alienação da água em quaisquer dos três modelos, mesmo
porque, conforme já explanado anteriormente, a água trata-se de um bem ambiental
e, como tal, é de uso comum do povo, sendo o acesso esta um direito fundamental
indisponível.
Tal como ocorre com o Poder Público, as corporações privadas, quando
assumem, por meio da privatização, os serviços de captação, de tratamento e de
abastecimento de água potável à população, têm custos de operacionalização para
a prestação de tais serviços, visando a tornar a água captada potável, pois, no mais
das vezes, a água captada não apresenta condições adequadas de potabilidade para
ser distribuída diretamente à população.
São tais custos que são repassados à população (consumidor) acrescidos de um
percentual (taxa administrativa) relativo ao lucro da corporação privada, normalmente
fixado por ocasião do processo de privatização do sistema.
Não há, portanto, alienação do bem ambiental água, pois o que há, na verdade,
é a cobrança dos custos envolvidos na realização da atividade econômica ligada aos
serviços de captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população,
acrescido de um percentual (taxa administrativa) de lucratividade ligado ao exercício
do direito fundamental da livre iniciativa, previsto no art. 170, caput, da Constituição
Federal de 1988.
No âmbito da Law and Economics, são questionáveis as privatizações de fontes
de água de alta qualidade e localizadas próximas aos locais de abastecimento, pois,
nesses casos, entende-se que deveria prevalecer a prestação pública dos serviços de
captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à população, visto que os
custos seriam menores em tais condições de qualidade da água e de distância entre
os pontos de captação e de tratamento, e entre esses e os pontos de abastecimento,
de forma a garantir maior eficiência ao serviço público.
Portanto, seriam passíveis de privatização as fontes de água de baixa qualidade
e localizadas distantes dos locais de abastecimento, isso, é claro, nos casos em que na
área territorial não haja a prestação pública dos serviços de captação, de tratamento
e de abastecimento de água potável à população, pois tal situação inviabilizaria a livre
concorrência e, assim, comprometeria a livre iniciativa, em virtude da dificuldade e/ou
da impossibilidade de obtenção de lucro por parte da iniciativa privada.
Não havendo na área territorial a prestação pública dos serviços de captação,
de tratamento e de abastecimento de água potável à população, para atuar em concor-
rência com as corporações privadas, seria recomendável o processo de privatização
112 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
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em: 21 dez. 2018.
FLAVIA TRENTINI2
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a trajetória das normativas da
União Europeia (UE) para a implementação de energias renováveis, mais especifica-
mente de biocombustíveis, em seu território. Para o seu desenvolvimento, a metodologia
utilizada foi a análise documental dos textos normativos que disciplinam a matéria, por
meio de uma organização que segue o critério cronológico. Os resultados alcançados
dão conta da evolução das discussões e da regulamentação sobre o tema, que resul-
tou na Diretiva 28/2009, e demonstram a importância dada às energias renováveis,
1
Data de recebimento do artigo: 21.02.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 06.03.2019 e 15.03.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 21.03.2019.
2
Professora Associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil da Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FDRP-USP - e do Programa de Mestrado da mesma
instituição. Possui Doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado realizado na
Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e Perfezionamento - SSSUP - Pisa, Itália, com bolsa
FAPESP e Pós-Doutorado em Administração/Economia das Organizações - FEA/USP. Livre Docente em
Direito Agrário pela FDRP-USP. Atua na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental
e Direito do Consumidor. Integrante do Grupo de Estudos Agrários - GEA-USP. E-mail: trentini@usp.br.
118 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
INTRODUÇÃO
O artigo tem como objetivo analisar a trajetória das normativas da União Eu-
ropeia (UE) para a implementação de energias renováveis, mais especificamente de
biocombustíveis em seu território.
Dessa forma, o fio condutor da análise consiste no levantamento de documentos
com relevo para o tema. Entretanto, o propósito de realizar um levantamento dos tex-
tos normativos que disciplinam a matéria, concretizando o “estado da arte” da política
europeia sobre biocombustíveis, exigiu uma organização segundo um critério temporal,
cronológico, para que se percebesse a evolução das discussões e da regulamentação
sobre o tema, que resultou na Diretiva 28/2009, bem como para melhor compreender
as propostas que se encontram em fase de tramitação no Parlamento Europeu, e que
devem ser encerradas até 2020.
Ao exame das normas serão acrescentados os aspectos históricos relevantes
e alguns pontos de referências econômicos para o formato atual da política europeia
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 119
sobre biocombustíveis, bem como análises pertinentes de alguns autores que iniciaram
o debate acadêmico que permeia o tema.
O setor energético foi um dos primeiros setores a ser disciplinado pelos estados
europeus, já na metade do século passado, mediante seus tratados-base da Comu-
nidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e da Comunidade Europeia de Energia
Atómica (EURATOM).
O primeiro, assinado em Paris em 1951, por França, Alemanha, Itália e Países
da Benelux, tinha como objetivo introduzir a livre circulação de carvão e de aço e ga-
rantir o acesso às fontes de produção. A instauração de um mercado comum do carvão
era baseada na eliminação de barreiras alfandegárias entre os Estados-Membros e a
proibição de ajudas.
O segundo tratado foi o EURATOM, assinado em 1957, juntamente com o tratado
que instituiu a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Em termos gerais, o EURATOM
tinha por objetivo contribuir com a criação e crescimento da indústria nuclear europeia,
a fim de que todos os Estados-Membros pudessem se beneficiar do desenvolvimento
da energia atômica e garantir a segurança de aprovisionamento, desde que para fins
civis e pacíficos (UE, 1951; UE, 1957).
Por sua vez, o tratado que instituiu a Comunidade Econômica Europeia não
continha qualquer disposição em relação à produção e à distribuição de energia. Barbara
Pozzo (2009, p. 844) considera que a ausência de competência específica em matéria
energética e a falta de instrumentos de intervenção direta da Comunidade Europeia
fizeram com que a sua atuação nessa temática se limitasse ao papel de coordenação.
Após a crise do petróleo de 1973, iniciou-se lentamente a discussão a respeito
das reservas energéticas. Sobre esse interesse emergente, Mariagrazia Alabrese
(2015, p. 382) aponta que as energias renováveis começam a chamar a atenção da
comunidade europeia mais por uma questão de segurança energética do que propria-
mente por suas vantagens ambientais.
Em 1986, o Ato Único Europeu, que tinha como objetivo finalizar, até 1992, o
mercado comum, mesmo sem fazer referência expressa ao setor de energia, acabou
por fomentar o mercado interno. Outro ponto importante que deve ser destacado
deste documento é a introdução de três novos artigos (130R, 130S e 130T) sobre
meio ambiente, que permitiam a Comunidade proteger e melhorar a qualidade do
ambiente e contribuir com a saúde humana, deixando claro que as ações ambientais
120 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
seriam eficazes se realizadas pela comunidade europeia mais do que pelos estados
individualmente (UE, 1986).
No ano seguinte, em 19 de outubro, o Conselho da Comunidade Europeia lança
o quarto programa de ação ambiental (1987-1992), com previsão expressa sobre ener-
gia. Esclarecia que a política energética é interligada com os problemas de poluição
atmosférica e que fontes energéticas alternativas, ou seja, não fósseis, ajudariam a
melhorar a qualidade do ar (UE, 1987).
O Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, em 1992, previa, pela primeira
vez, que a comunidade poderia adotar medidas em matéria de energia, mas sem atribuir
competências às instituições. Barbara Pozzo (2009, p. 850) esclarece que nos anos
anteriores a Maastricht, a Comissão Europeia havia redigido um projeto que inseria um
capítulo sobre energia no tratado, mas o projeto foi retirado por duas constatações: a
falta de consenso político e o insuficiente debate interno pelas instituições comunitárias
sobre a organização social e econômica da UE.
Mas essa postura tímida, aos poucos, foi sendo deixada para trás. Na segunda
metade da década de noventa, a UE realçou a importância de uma política energé-
tica e renovável para a Europa, por meio das edições sucessivas de livros brancos
e verdes. Os livros brancos são documentos com proposições de políticas públicas.
Diferentemente, os livros verdes têm um caráter mais consultivo e podem apresentar
meramente uma estratégia detalhada a ser implementada (UE, 2016c).
De fato, em 1994, a Comissão elaborou o primeiro Livro Verde sobre energia
para UE, no qual apresentou os principais desafios que a Comunidade iria encontrar
nos próximos anos, particularmente nos setores da indústria e da energia. O Livro
Verde fazia um exame da situação e das perspectivas energéticas e, por fim, analisava
as responsabilidades comunitárias no setor energético e a competitividade entre as
diversas fontes (UE, 1995b).
No Livro Branco “Uma política energética para a UE” (UE, 1995a), elaborado logo
após o período de consultas iniciado com o Livro Verde, a Comissão lançou diretrizes
para a política energética nos próximos anos, consonantes com as preocupações
ambientais emergentes. Ademais, a Comissão apresentou um programa de ação com
duração de cinco anos.
As políticas nacionais e comunitárias no campo energético, segundo o Livro
Branco, deveriam buscar: a integração do mercado interno de energia, levando em
consideração a diferença entre oferta e demanda existente entre os diversos estados;
a administração da dependência energética e a manutenção das reservas; a promoção
do desenvolvimento sustentável e a diversificação das fontes energéticas e a proteção
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 121
ambiental (UE, 1995a). Constava, ainda, nesse livro, que a Comunidade Europeia
apoiaria projetos e pesquisas de desenvolvimento de energias renováveis e a difusão
de novas tecnologias, também se propunha a introduzir incentivos fiscais.
Em que pesem esses antecedentes, o primeiro passo para a real inserção das
energias renováveis no panorama europeu institucional foi a elaboração de um novo
Livro Verde, no final de novembro de 1996, com um amplo debate sobre a natureza
das medidas prioritárias a serem realizadas pela UE. Destaca-se, dentre as discussões,
o parecer da Parlamento Europeu, que reconheceu o papel das energias renováveis
no combate ao impacto dos gazes de efeito estufa (GEE) e na contribuição para a
segurança e abastecimento de energia, e sublinhou, ainda, a oportunidade para a
criação de emprego em pequenas e médias empresas e nas regiões rurais. Ao final,
considerou necessária a aprovação de uma diretiva e reafirmou que seria necessário
aumentar os orçamentos de apoio às energias renováveis (UE, 1997a).
A seu turno, o Livro Branco foi elaborado para a Comissão e intitulado “Estratégia
e plano de ação comunitários. Energia para o futuro: fontes de energias renováveis”,
em 1997, consistiu em um plano de ação sobre as fontes energéticas renováveis,
que fazia referência explícita aos problemas das mudanças climáticas. Reconhecia o
documento que, nos anos seguintes, a UE deveria tomar decisões importantes sobre
a sua política energética (UE, 1997a).
Esse documento de 1997 salientava que o incentivo à energia renovável poderia
solucionar outros dois problemas. O primeiro seria que a produção de energia elétrica
proveniente de fontes renováveis ajudaria a redução de CO2 e, com isso, a Comissão
atingiria as metas a que havia se comprometido internacionalmente. A segunda questão
a ser solucionada com a incorporação da matriz energética sustentável seria o problema
da dependência energética de países externos à UE.
O objetivo era alcançar a inclusão de 12% de energias renováveis no consu-
mo total de energia da UE até 2010, ou seja, pretendia-se duplicar a quota de 6%.
Estabeleceram-se também metas específicas para cada tipo de energia: eólica, térmica,
biomassa, etc. Os objetivos estratégicos para UE foram por ela mesma considerados
ambiciosos no documento, mas aceitos majoritariamente no período de consulta do
Livro Verde que o antecedeu.
A respeito da implementação das metas, Nicolae Scarlat et al (2015, p. 970)
considera que foi alcançada ou mesmo ultrapassada por alguns tipos de energias re-
nováveis, como é o caso da energia eólica. Ressalta que os Estados-Membros fizeram
progressos relevantes no aumento da porcentagem de energia renovável no consumo
interno bruto, de 4,4% em 1990, para 12% em 2010.
122 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
dos objetivos de política ambiental do artigo 174 que o antecedia. Os objetivos eram
específicos: proteção e melhoramento da qualidade ambiental; proteção à saúde hu-
mana; utilização racional das reservas naturais e promoção internacional ou regional
de medidas para resolver os problemas ambientais, em particular relacionados com
as mudanças climáticas (UE, 2007b).
O desenvolvimento sustentável constava em vários itens das motivações da
normativa referida, mas não se traduzia em nenhum dos artigos. Aparentemente, a
promoção de energias renováveis, por si só, poderia ser considerada uma colaboração
para o desenvolvimento sustentável, ou seja, o foco estava unicamente em reduzir a
emissão de CO2.
O artigo 4º da Diretiva 77/2001, por sua vez, estabelecia que a Comissão deveria
avaliar os diversos regimes de apoio dos Estados-Membros para a produção de energia
elétrica renovável, levando em consideração a sua compatibilidade com o mercado
interno de energia. A diretiva detinha-se praticamente na eliminação de barreiras à
produção de energias e na simplificação dos procedimentos administrativos (UE, 2001).
O ano de 2003 representou um marco importante para os biocombustíveis na
política europeia. Três instrumentos normativos fundamentais foram criados: a Diretiva
n. 17 de 2003, a Diretiva n. 30/2003 e a Diretiva 96 da UE.
A primeira, Diretiva n. 17 de 2003, relativa à qualidade da gasolina, incluiu a
mistura de biocombustíveis com combustíveis convencionais até um limite máximo de
5% (UE, 2003a).
Mais tarde, em maio de 2003, a UE introduziu no quadro normativo comunitário
a primeira diretiva para o incentivo dos biocombustíveis ou de outras fontes renováveis
para o transporte. A Diretiva n. 30/2003 estabelecia metas para a inserção de biocom-
bustíveis no mercado europeu. Embora de forma não obrigatória, o artigo 3º estabelecia
que os Estados-Membros deveriam introduzir um percentual mínimo de biocombustíveis
ou outros combustíveis derivados de fontes renováveis no seu mercado. O valor de
referência para alcançar esse objetivo era de 2% até 31 de dezembro de 2005 e de
5,75 até dezembro de 2010 (UE, 2003b).
Por sua vez, o artigo 4º obrigava aos Estados-Membros o envio anual de infor-
mações referentes às medidas adotadas para promover a utilização de biocombustíveis;
as reservas nacionais destinadas à produção de biomassa para uso energético; e ao
total de venda de combustíveis e biocombustíveis. A Comissão deveria - até dezembro
de 2006, e depois a cada dois anos - avaliar os progressos realizados pelos Estados
no que se refere à implementação de biocombustíveis (UE, 2003b).
124 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
privado a estabilidade durante um longo período de tempo para que fossem possíveis
investimentos no setor (UE, 2007a).
Especificamente sobre os biocombustíveis, de acordo com a Diretiva de 2003,
fixava-se a quota em 2%. A Comissão sugeriu que fosse incluído um novo objetivo no
quadro normativo seguinte e considerava que uma hipótese prudente e sustentável
seria de 10% do consumo total de gasolina e diesel para o transporte. Considerava
também necessário alterar a diretiva sobre a qualidade dos biocombustíveis de 1998
(UE, 2007a).
Segundo a Comissão, alterar as quotas mínimas de energia renovável e de
biocombustíveis seria uma etapa importante para consolidar o desenvolvimento sus-
tentável. Ao mesmo tempo, a UE fortaleceria o abastecimento reduzindo a procura
por combustíveis fósseis em mais de 250 milhões Tep (1 tonelada igual a 6,841 barris
- 171 milhões de barris) até 2020. A mesma comissão considerava que, até a entrada
em vigor de uma nova legislação, deveria ser controlado o cumprimento do quadro
legislativo atual (UE, 2007a). Na sequência, em março de 2007, o Conselho da União
Europeia considerou urgente um novo marco para a política energética e requereu à
Comissão a apresentação de um novo plano de ação para as energias renováveis até
o início de 2009 (UE, 2007a).
O Parlamento, por sua vez, requereu que a Comissão apresentasse até o final
de 2007 uma proposta de quadro normativo sobre as energias renováveis. Sublinhou
a importância da sustentabilidade e indicou que biocombustíveis que não preenches-
sem os critérios de sustentabilidade não deveriam ser elegíveis para subvenções ou
isenções fiscais e, portanto, não deveriam ser contabilizados no cálculo dos objetivos
de tais critérios (UE, 2007a).
Ao final, solicitou que a Comissão elaborasse, dentre outras medidas, um sistema
de certificação obrigatório e abrangente aplicável a todos os biocombustíveis produzi-
dos dentro da UE e importados. Sugeriu que se buscasse a cooperação com a OMC
e organizações internacionais similares, a fim de assegurar a aceitação internacional
de critérios específicos de sustentabilidade e do sistema de certificação, promovendo
assim os meios mais sustentáveis de produção de biocombustíveis em todo o mundo
e criando condições de igualdade para todos (UE, 2007a).
Ainda no ano de 2007, em 13 de dezembro, foi assinado pelos Estados-Membros
da UE o Tratado de Lisboa (TFUE), que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009. O
artigo 194 conferia à UE uma competência paralela para a instauração de uma política
no setor de energia, a fim de realizar os seguintes objetivos: bom funcionamento do
mercado interno e segurança de abastecimento (UE, 2007b).
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 129
descrito nos Tratados e nas declarações políticas. O objetivo foi o de assegurar que as
políticas fossem desenvolvidas de forma democrática, transparente e representativa,
com justificativas claras e uma avaliação equilibrada das opções. As avaliações de
impacto acompanharam todas as propostas legislativas e descreviam as vantagens/
benefícios e as desvantagens/custos das diferentes ações políticas, além de justificarem
o curso dado pela política proposta. As novas propostas de política energética foram
preparadas com base em consultas às partes interessadas, incluindo autoridades
nacionais, organismos regionais, associações industriais, empresas, consumidores,
associações e organizações não governamentais.
Assim, a Diretiva 28/2009 estabeleceu um quadro comum para a promoção de
energia proveniente de fontes renováveis. Fixou objetivos nacionais obrigatórios de
uso de energias renováveis tanto para o consumo geral bruto de energia quanto para
o transporte. A diretiva previu também: transferências estatísticas entre os Estados-
-Membros; projetos comuns entre Estados-Membros e países terceiros; garantia de
origem; procedimentos administrativos; informação sobre as redes elétricas para a
energia de fonte renovável. Por fim, fixou critérios de sustentabilidade para biocom-
bustíveis e biolíquidos (UE, 2009a).
Suzanna Quadri (2011, p. 845) considera que, para se alcançar o duplo objetivo
da segurança de abastecimento e da redução das emissões de gases nocivos ao am-
biente, a consolidação do quadro normativo da UE representou um impulso relevante
para a adoção de medidas nacionais destinadas ao aumento da produção e do uso
de energias renováveis.
Cabe relembrar que as alterações normativas do setor de energias renováveis
foram aprovadas no final de 2008, apesar de os tratados ainda considerarem a energia
como uma responsabilidade dos Estados-Membros. Esta perspectiva mudou com o
Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009. Neste, a energia
tornou-se uma responsabilidade partilhada, abrindo caminho para uma política energé-
tica comum. O pacote climático e energético, a partir de então, poderia ser aprofundado
e poderiam ser fixados objetivos mais ambiciosos no que se refere à segurança do
abastecimento energético, ao mercado interno da energia e à solidariedade entre os
Estados-Membros. O Tratado de Lisboa confere à União um conjunto de objetivos
claros: um mercado interno da energia único e em funcionamento, a segurança no
abastecimento, a eficiência energética e a promoção das redes de energia e das fontes
de energia renováveis. Portanto, a UE dispõe agora de um quadro jurídico e de uma
base jurídica mais sólida para agir em matéria de política energética no artigo 194 do
TFUE (UE, 2007b).
132 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
quota de energia renovável para 27% do consumo. Estas metas estão alinhadas com
a estratégia de economia da UE de baixo carbono de 2050.
Destarte, chegando ao final deste panorama normativo da implementação de
energias renováveis na UE, a conclusão é no sentido de se permanecer atento às no-
vidades que certamente virão, posto que a UE deverá apresentar uma nova proposta
legislativa pós-2020 como parte do pacote de energia renovável em conjunto com uma
iniciativa que define a sustentabilidade da bioenergia (USDA, 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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em: 16 ago. 2017.
A TRAJETÓRIA DA ENERGIA RENOVÁVEL 137
GABRIEL WEDY2
1
Data de recebimento do artigo: 07.01.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 08.02.2019 e 25.02.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 07.03.2019.
2
Juiz Federal. Pós-Doutor em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for
Climate Change Law). Professor dos Programas de Pós-Graduação e de Graduação da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Coordenador da Disciplina de Direito Ambiental da Escola Superior
da Magistratura Federal (Esmafe). Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - Ajufe.
E-mail: gtwedy@gmail.com.
140 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
INTRODUÇÃO
sustentável na Era das mudanças climáticas e, logicamente, não podem ser ignoradas
nessa perspectiva.
Para uma boa avaliação do Estado Fiscal, da sua relação direta com o orçamento
como instituto jurídico e da consequente promoção do direito fundamental ao desenvol-
vimento sustentável, devem ser mencionadas suas etapas evolutivas. O Estado Fiscal
possui, de fato, três fases nitidamente distintas: Estado Fiscal Minimalista, Estado Social
Fiscal e Estado Democrático e Social Fiscal.4 O Estado Fiscal Minimalista, que vigorou
do final do século XVIII até o início do século XX, ficava limitado ao uso do poder de
polícia, da prestação jurisdicional e de limitadíssimos e escassos serviços públicos.
Remonta à época do Estado Liberal Burguês e à política econômica do laissez-passer e
do laissez-faire. As tutelas da propriedade privada e da liberdade contratual assumiam
o protagonismo no alicerce jurídico. Exigências de tributação eram ínfimas em face da
inexpressividade do Estado no atendimento às demandas sociais.
O Estado Social Fiscal, ou do Bem-Estar Social, por sua vez, seguiu as veredas
do keynesianismo5 e pode ser identificado dos anos 1910 até a queda do Muro de Berlim
e o concomitante colapso político e econômico da extinta União Soviética, em 1989.
O Estado abandonou a sua função de simples garantidor das liberdades individuais e
assumiu um compromisso social e redistributivo. A engrenagem estatal passou a exer-
cer, nas economias capitalistas, uma ativa intervenção na ordem econômica e social.
Torres refere que, no período:
A crise, nunca antes vista desde o Crash da Bolsa de Nova York, em 1930,
demonstrou, 78 anos depois, que o Estado não pode ausentar-se na regulação dos
mercados em virtude de suas falhas.10 Aliás, Krugman, em O retorno da depressão
econômica, acredita que “não apenas nós estamos vivendo em uma depressão
econômica, mas também que Keynes, cuja obra foi importante no período da grande
depressão - é agora mais importante do que nunca”. Assim, o liberalismo ortodoxo não
passa de vã utopia, tal qual o comunismo pregado por Marx.11
Dentro de tal cenário mundial é que se insere o direito financeiro moderno. Sem
ignorar essa evolução histórica, deve-se refletir sobre o orçamento brasileiro como
mecanismo de financiamento do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável.
É impensável construir uma sólida definição acerca do direito fundamental
ao desenvolvimento sustentável na Era das mudanças climáticas sem analisar a
estrutura constitucional do Estado Fiscal, a qual possui, como base, o orçamento.
Todos os direitos fundamentais possuem um custo e são financiados com a cobrança
de impostos. Desenvolver uma definição de direito fundamental ao desenvolvimento
sustentável, ignorando os custos que devem financiá-lo, é procedimento retórico, vazio
e sem qualquer resultado prático. É a construção de um argumento estéril, risível e
manifestamente insustentável no âmbito dos três Poderes e, também, na academia.
A atividade financeira do Estado consiste na obtenção de receita e na realização
de despesas para fins de utilidade pública e atendimento das finalidades previstas no
texto constitucional. Sem o ingresso de receita pública, é impossível financiar os fins
e os objetivos políticos, sociais, ambientais e econômicos do Estado. A principal fonte
de receita estatal está nos tributos: impostos, taxas, contribuições e empréstimos
compulsórios. Preços públicos são igualmente uma receita originária importante e
estão vinculados à exploração dos bens do Estado. É possível considerar como parte
10
Caliendo afirma que, quando uma economia não consegue alocar eficientemente os bens conforme os
desejos dos consumidores, entende-se que existe uma falha de mercado (market failure). A expressão
falha de mercado (market failure) foi utilizada pela primeira vez por Francis Bator, em 1958, para designar
as situações em que existe uma condição que impede a eficiência do sistema econômico. (CALIENDO,
Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito. São Paulo: Elsevier, 2009. p. 78). Ver também
a própria obra de Bator: BATOR, Francis M. The anatomy of market failure. The Quarterly Journal of
Economics, Oxford, v. 72, n. 3, p. 351-379, 1958.
11
Marx, em O Capital, não propõe uma solução para as deficiências do capitalismo propriamente. O
grande mérito de sua obra está em demonstrar as desigualdades econômicas, políticas e sociais entre
os capitalistas e o proletariado. Observa-se que, para Marx, “quanto mais o capitalista acumula, mais
meios de acumular adquire. Em outros termos: de quanto mais trabalho de outro, não pago, se haja
apropriado anteriormente, mais ainda pode monopolizar na atualidade”. MARX, Karl. O capital: edição
condensada. São Paulo: Folha de São Paulo, 2011. p. 139. (Coleção Folha: livros que mudaram o
mundo, v. 13).
144 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
14
Como bem referido por Torres: “A justiça na sociedade moderna passa pela fiscalidade e pela redistri-
buição de rendas. Princípios como os da capacidade contributiva, economicidade, legalidade, publici-
dade, irretroatividade e transparência informam permanentemente a atividade financeira”. TORRES,
op. cit., p. 5.
15
Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 768825/BA. Relator: Ministro Ricardo
Lewandowski. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 12 ago. 2014. Disponível em: http://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/24663847/recurso-extraordinario-re-768825-ba-stf. Acesso em: 02 nov. 2014.
16
SILVA, Suzana Tavares da. Sustentabilidade e solidariedade em tempos de crise. In: NABAIS,
op. cit., p. 47.
146 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
estado de defesa, previstos na Constituição Federal de 1988 (arts. 136 a 141), com a
finalidade específica de regulamentar casos inesperados de emergência econômica.17
Referida posição é acompanhada por Leal, que afirma que “as crises econômicas podem
ser tão graves a ponto de pôr em risco a estabilidade democrática, tanto quanto outros
tipos de crises”; portanto, “é preciso pensar em instrumentos jurídicos que ajudem a
controlá-la. Uma possibilidade é o estado de sítio econômico - precisamente a consti-
tucionalização da exceção econômica”.18 Entre as vantagens apresentadas estariam:
a) diminuição da possibilidade de que as medidas de saneamento e de recuperação
adotadas pelo governo sejam declaradas inconstitucionais; b) medidas drásticas, como
as que são tomadas em tempos de crise, passam a seguir padrões e parâmetros es-
tabelecidos; c) não é dependente do conceito de normas programáticas; d) aumenta
a adaptabilidade do texto da Lei Fundamental às diferentes circunstâncias.19
Embora sedutora, referida medida é desnecessária e oferece riscos. De nada
adianta a ampliação ou a criação de novos dispositivos constitucionais para regula-
mentar imprevistos econômicos. O exemplo é a Corte do New Deal, com início nos
anos 1930, que, interpretando a Constituição de 1787, declarou, após pressão política,
uma série de leis e atos governamentais constitucionais para que os Estados Unidos
pudessem superar a crise decorrente da depressão econômica e da Segunda Guerra
Mundial sem qualquer alteração no texto constitucional. Cai a talho a lição de Strauss,
no sentido de que, em oposição ao originalismo, a Constituição viva é aquela que evolui,
muda ao longo do tempo e adapta-se às novas circunstâncias sem ser formalmente
emendada.20 Exemplifica o autor, justamente com o caso da Constituição elaborada
pelos Framers, válida ainda hoje. Embora os Estados Unidos tenham, ao longo dos anos,
aumentado o seu território e a sua população, as tecnologias, a situação internacional
e a economia tenham sido alteradas e profundas mudanças sociais tenham ocorrido,
nenhum desses câmbios poderia ter sido previsto quando a Constituição foi escrita.
Não seria realista esperar que um pesado e difícil processo de emendas acompanhasse
cada uma dessas mudanças.21 A interpretação do texto constitucional pela Suprema
Corte adaptou-a aos novos tempos e auxiliou o país a superar crises econômicas.
Nos cenários de crise econômica, criar uma cláusula de exceção constitucional
pode abrir espaço para arbitrariedades, engessar medidas governamentais, além de
17
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A disciplina constitucional das crises econômico-financeiras.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 181-182, p. 21-37, 1990.
18
PRADO LEAL, Gabriel. Exceção económica e governo de crise nas democracias. In: NABAIS,
op. cit., p. 93-128.
19
PRADO LEAL, cit., p. 93-128.
20
STRAUSS, David. The living constitution. New York: Oxford University Press, 2010. p. 1.
21
STRAUSS, op. cit., p. 1.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 147
esvaziar o papel, no caso brasileiro, do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, em pro-
cesso que teve o Ministro Gilmar Mendes como relator, entendeu como constitucional
o art. 35 da Constituição gaúcha, que fixou prazo para o pagamento dos vencimentos
do funcionalismo público. No processo, o Estado do Rio Grande do Sul recorreu
contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado, que determinou, em sede de tutela
de urgência, a suspensão de ordem do governo estadual de limitar o pagamento de
servidores em até R$ 2.500,00 no mês vincendo, com o pagamento do restante da
remuneração apenas no mês seguinte.
Apesar de reconhecer a disposição da Carta Estadual constitucional, o Ministro
interpretou o caso afirmando que “a administração pública estadual não dispunha,
naquele momento, de recursos financeiros suficientes para o cumprimento de todas
as suas obrigações” e que a eficácia do art. 35 dependeria “[...] de um estado de nor-
malidade das finanças públicas estaduais”.22 A interpretação constitucional do egrégio
Supremo Tribunal Federal demonstra, exemplificativamente, que o Poder Judiciário pode
adaptar à Constituição as mudanças políticas, econômicas e sociais, de acordo com as
exigências dos novos tempos e de obstáculos determinados. A dimensão econômica
do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável prevaleceu no caso em tela.
Referidas controvérsias, envolvendo a concessão de direitos e os orçamentos
dos entes estatais, precisam ser resolvidas com responsabilidade fiscal, observado o
limite da reserva do possível, sem descurar do respeito aos direitos fundamentais pre-
vistos na Constituição Federal de 1988. Cabe, nesse cenário de escassez de recursos, o
cumprimento pelo Estado do dever de promover a máxima eficácia possível dos direitos
fundamentais negativos e positivos. Daí a importância do estudo do orçamento, inserido
em um Estado Fiscal, para um conceito sobre o direito fundamental ao desenvolvimento
sustentável na Era das mudanças climáticas apto a evitar eventos climáticos extremos
causados por fatores antrópicos e permitir a adoção das necessárias medidas de
adaptação e resiliência compatíveis com o princípio da dignidade da pessoa humana.
A Constituição, ao outorgar direitos fundamentais aos indivíduos, nas suas
dimensões subjetiva e objetiva, colocou o orçamento como a peça formal na qual
estarão embutidos os custos dos direitos. Não há dúvida de que os recursos previstos
no orçamento precisam ter lastro para que exista a concretização dos direitos funda-
mentais. Nesse diapasão, precisa o Estado eleger prioridades na alocação de recursos,
que são sempre escassos, para promover o interesse público e não fulminar liberdades
individuais e os interesses privados, também tutelados por uma ordem constitucional
democrática.
22
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Segurança n. 3.154-6/RS. Relator: Ministro Gilmar
Mendes. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 28 mar. 2007. Disponível em: http://www.stf.jus.br/
imprensa/pdf/ss3154.pdf. Acesso em: 02 nov. 2014.
148 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
24
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 221.
25
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 221.
26
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 224.
27
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 226.
150 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
outro.28 Não há dúvida de que, quando existir uma decisão judicial e administrativa que
conceda determinado direito, existirá um custo, e outro direito, por consequência, será
sacrificado. O egrégio Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, de modo mais
frequente que a Suprema Corte Norte-Americana, intervém nas políticas públicas,
seja concretizando direitos prestacionais à saúde,29 seja reconhecendo o direito à
educação,30 praticando o ativismo judicial.
Especialistas e técnicos preparados, por sua vez, têm um papel importante
na divisão dos recursos orçamentários, na sua administração e, especialmente, na
tradução do discurso técnico para a compreensão do grande público quando da
justificação da aplicação dos recursos orçamentários. Essa tradução, talvez, seja a
principal função dos peritos no processo de tomada de decisão. Holmes e Sunstein,
coerentemente, advertem que, no entanto, esses experts deveriam estar “on tap, not on
top” do processo decisório.31 Quem deve estar no top do processo decisório deve ser a
cidadania, diretamente, e os seus representantes eleitos democraticamente. Por isso,
apenas a presença de técnicos competentes no processo decisório, mas que exercem
o seu munus sem transparência e justificação pública é medida insuficiente. Casos
de decisões tecnocráticas e burocráticas, carentes de maiores informações externas
e sem participação popular, ignorando razões empíricas, podem levar a resultados
negativos, grandes fracassos e até mesmo a catástrofes.
O processo de tomada de decisão deve se dar em um estilo aberto e democráti-
co. As decisões sobre os direitos a serem concretizados são estratégicas e verdadeiras
escolhas de como melhor empregar os recursos públicos. Existem boas razões de
suporte ao processo democrático na escolha acerca de quais direitos a proteger e
28
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 226.
29
O STF admite a intervenção judicial nas políticas públicas na área da saúde. Ver: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 607381/SC. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, DF, 31 maio 2011. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8554055/
recurso-extraordinario-re-607381-sc-stf. Acesso em: 02 nov. 2014. E, ainda, o caso de determinação
judicial para o aumento de leitos em UTIs não é considerado pelo Supremo Tribunal Federal uma intro-
missão indevida do Poder Judiciário nas atribuições constitucionais do Poder Executivo na implantação
das políticas públicas. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE-Agr n. 740800/RS. Relatora:
Ministra Cármen Lúcia. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 03 dez. 2013. Disponível em: http://stf.
jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/24786818/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-740800-rs-
-stf/inteiro-teor-112222867. Acesso em: 02 nov. 2014.
30
O STF determinou a matrícula de criança em estabelecimento de educação infantil com base na
Constituição Federal. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE-AgR n. 595595. Relator: Ministro
Eros Grau. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 28 abr. 2009. Disponível em: http://www.stf.jus.br/
portal/ principal/principal.asp. Acesso em: 02 nov. 2014.
31
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 227.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 151
qual o seu grau de proteção. Essas respostas devem ficar com a cidadania e com as
decisões refletidas dos órgãos constitucionais próprios do regime democrático. Esse
processo deve ser procedido de modo límpido e dialético, e os funcionários públicos,
incluindo juízes, devem prestar suas razões e justificações ao decidir.32
É importante a incidência dos princípios da publicidade, da participação popular e
da motivação nas decisões administrativas e - por que não? - judiciais, quando o Poder
Judiciário intervém nas políticas públicas. No que concerne aos processos judiciais, as
audiências públicas realizadas em ações coletivas e a figura do amicus curiae junto
às decisões do Supremo Tribunal Federal são um início de participação da cidadania
na formação do convencimento do Estado-Juiz nas decisões que envolvem relevante
interesse público, em especial quando estão em debate interesses coletivos, difusos
e individuais homogêneos.
Nos Estados Unidos,33 tal qual no Brasil, importantes decisões alocativas refe-
rentes aos direitos básicos são frequentemente tomadas de modo secreto, com poucas
consultas e sem nenhum controle público. A sugestão de Holmes e Sunstein para o
caso norte-americano serve perfeitamente para os processos de tomada de decisão
brasileiros, ou seja, cada julgamento deve tornar-se publicamente escrutinável34 e moti-
vado. Nesse sentido, propõem uma deliberação pública focada nas seguintes questões,
quanto ao custo dos direitos financiados pelos impostos e pelas receitas estatais que
compõem o orçamento: 1. Quanto se quer gastar com cada direito? 2. Qual é o pacote
ideal de direitos? Tendo em vista que os recursos utilizados para protegê-los não estarão
disponíveis para proteger outros direitos. 3. Quais são as melhores maneiras de se
proteger ao máximo os direitos ao mais baixo custo? 4. Os direitos, como atualmente
definidos e aplicados, redistribuem a riqueza de um modo que podem ser justificados
publicamente?35 Tais questões possuem dimensões empíricas e precisam ser trazidas
à tona e identificadas como tal. Julgamentos de valores devem ser feitos abertamente
e sujeitarem-se ao criticismo, à revisão e ao debate público.36
Não é desimportante grifar que, nos Estados Unidos, a própria Constituição
define qual a finalidade da receita dos tributos: to pay the debts and provide for the
common defense and general welfare of the United States (Act. I, Sec. 8). Assim, a exa-
ção possui o objetivo de financiar a defesa e o bem-estar da população do país. Como
refere McAllister, coerentemente, a doutrina dominante entende que a arrecadação de
32
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 227.
33
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228.
34
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 224.
35
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228.
36
HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 228-229.
152 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
tributos sem destinação pública viola a cláusula do due process of law. Enfatiza que
onze Estados norte-americanos, por disposição constitucional, estipulam que todos os
tributos devem ser criados e cobrados apenas com objetivos públicos.37
Foram consideradas inconstitucionais nos Estados Unidos, por exemplo, a exi-
gência de impostos para: auxílio a indústrias;38 construção de dique útil a particular;39
terem a receita proveniente de sua arrecadação dividida entre famílias de uma cidade;40
o salvamento de agricultores com colheitas destruídas pelo inimigo em tempos de
guerra;41 financiar a compra de sementes por agricultores com dificuldades financeiras;42
ou, ainda, para o auxílio financeiro às pessoas atingidas por tornados e ciclones.43
Sem entrar no mérito dessas decisões do passado, é extremamente difícil, por
vezes, separar o interesse público e o privado, uma vez que ambos, não raramente,
andam interligados; na maioria das vezes, grifa-se, sem haver a nefasta prática do
patrimonialismo. Diante desse cenário, existe a necessidade da máxima publicidade
nas decisões estatais, no âmbito dos Três Poderes, embasadas sempre no maior
volume de informações disponível.
No Brasil, o orçamento é aprovado no Congresso Nacional, sem mecanismos que
propiciem maior transparência, controle e participação do povo brasileiro na alocação
dos recursos arrecadados via tributos e outras fontes de receita estatal. A participa-
ção da sociedade civil é necessária nos processos de tomada de decisão referentes
à promoção do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável e ao seu custo.
Determina a boa governança que as decisões relativas à aplicação e à divisão dos
recursos do orçamento não podem ficar a cargo de políticos, embasadas em laudos
de tecnocratas, insuladas da vontade popular e da participação das partes afetadas.
37
Ver: UNITED STATES. Supreme Court. MCALLISTER, Breck. Public purpose in taxation. California Law
Review, Berkeley, v. 18, n. 2, p. 138, 1930.
38
UNITED STATES. Supreme Court. Parkersburg v. Brown. 106 U.S. 487, 1883. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014. E, também: UNITED STATES. Supreme Court. Citizen’s
Saving and Loan Association v. Topeka. 1875. Disponível em: www.supremecourt.gov. Acesso em:
01 nov. 2014.
39
UNITED STATES. Supreme Court. Attorney Gen. v. Eau Claire. 37 Wisis. 400. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
40
UNITED STATES. Supreme Court. Hooper v. Emery. 14 Me. 375, 1837. Disponível em: www.supreme-
court.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
41
UNITED STATES. Supreme Court. Gillan v. Gillan. 55. 430,1867. Disponível em: www.supremecourt.
gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
42
UNITED STATES. Supreme Court. State v. Osawkee Towship. 14 Kan. 418, 1875. Disponível em: www.
supremecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
43
UNITED STATES. Supreme Court. State v. Davidson. 114 Wis., 563, 1902. Disponível em: www.supre-
mecourt.gov. Acesso em: 01 nov. 2014.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 153
44
Em conformidade com Machado, “o tributo é parafiscal quando o seu objetivo principal é a arrecadação
de recursos para o custeio de atividades que, em princípio, não integram funções próprias do Estado,
mas este as desenvolve através de entidades específicas”. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito
tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 23.
45
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 29.
46
O STF reiteradamente tem reconhecido a constitucionalidade e o caráter extrafiscal de lei que visa
isentar o IPI sobre o açúcar de cana: “A isenção tributária que a União Federal concedeu, em matéria
de IPI, sobre o açúcar de cana (Lei nº 8.393/91, art. 2º) objetiva conferir efetividade ao art. 3º, incisos
II e III, da Constituição da República. Essa pessoa política, ao assim proceder, pôs em relevo a função
extrafiscal desse tributo, utilizando-o como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de
superação das desigualdades sociais e regionais”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI-AgR 360461.
Relator: Ministro Celso de Mello. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, 16 dez. 2005. Disponível em:
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/762291/agregno-agravo-de-instrumento-ai-agr-360461-mg.
Acesso em: 02 nov. 2014.
154 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
urbanos cumpram com a sua função social, como já decidido, inclusive, pelo STF.47
Importante distinguir, contudo, a progressividade extrafiscal, para o cumprimento da
função social da propriedade prevista pelo poder constituinte originário que, nos dias
atuais, deve ser procedida nos termos do Estatuto das Cidades.48 De outro lado, de
modo diverso, a progressividade fiscal, arrecadatória, para essa exação, só foi viabi-
lizada, e é admitida, após a Emenda Constitucional 29/2000.
No caso do Imposto sobre Produtos Industrializados, as suas alíquotas serão
seletivas, levando em consideração a essencialidade dos produtos (art. 153, § 3º, inc.
I, da CF/88). Produtos não essenciais e considerados supérfluos são tributados com
uma alíquota mais elevada.
Impostos de importação e exportação, os chamados tributos aduaneiros, são
utilizados como mecanismos de política econômica para estimular ou desestimular a
atividade industrial nacional, com constitucionalidade já reconhecida pelo STF. 49 Exem-
plo dessa tributação com finalidade extrafiscal é a exação sobre automóveis importados
que, como afirma Carvalho, é desestimulante ao extremo para os importadores e serve
“para impulsionar a indústria automobilística nacional”.50
O imposto sobre as grandes fortunas e a sua transmissão também pode ser
considerado um tributo com caráter extrafiscal, pois visa à redistribuição da riqueza
para diminuir o abismo econômico, social e político entre os muito ricos e o resto da
sociedade. Não é à toa que Piketty causou alvoroço entre os economistas de todo o
mundo com o lançamento de Le capital au XXIe siècle.51 Nessa obra, o economista
francês analisa a renda e a sua acumulação nos últimos 300 anos de capitalismo. A
abordagem adotada é no sentido da defesa da economia de mercado e da proprie-
dade privada, mas identifica como sua principal vulnerabilidade a desigualdade na
distribuição da renda.
Segundo Piketty, a principal força desestabilizadora do capitalismo, causadora da
desigualdade e do desequilíbrio social, está relacionada ao fato de que a taxa privada
de retorno do capital é significativamente maior que a taxa de crescimento dos salários
47
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE-AgR 639632/MS. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário
da Justiça da União, Brasília, DF, 22 out. 2013. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/
24707426/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-639632-ms-stf/inteiro-teor-112170398.
Acesso em: 02 nov. 2014.
48
A Lei 10.257/2001 instituiu o Estatuto das Cidades.
49
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 628848 ED/RS. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Diário
da Justiça da União, Brasília, DF, 10 set. 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=6693694. Acesso em: 02 nov. 2014.
50
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 234.
51
PIKETTY, Thomas. Le capital au XXI siécle. Paris: Éditions du Seuil, 2013.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 155
Importante referir que isenções são utilizadas para se alcançar efeitos extrafis-
cais. Isenções previstas no art. 176 do CTN estão sujeitas ao princípio da legalidade,
como determinado pelo art. 97, inc. VI, do mesmo diploma legal, quando prevê as
hipóteses de exclusão de crédito tributário. Não se pode cogitar isenção com finalidade
extrafiscal sem base em lei. É inconcebível, hoje, a chamada isenção geral e univer-
sal, como já defendia Baleeiro, “pois esta não é privilégio de classe ou de pessoas,
mas uma política de aplicação da regra da capacidade contributiva ou de incentivos a
determinadas atividades, que o Estado visa a incrementar pela conveniência pública”
e, de modo atualíssimo, “[...] para cada objetivo, há isenções específicas, adequadas,
e outras inúteis, ineficazes ou mesmo contraproducentes”.56 A isenção de cunho ex-
trafiscal não pode ser confundida com privilégio; deve, porém, ter finalidade prevista
pela Constituição Federal para tutelar a ordem econômica, social, política ou ambiental.
Conforme Baleeiro, citando também o exemplo da Superintendência do Desen-
volvimento do Nordeste (SUDENE), o limite geográfico da isenção de cunho extrafiscal:
Não pode haver dúvida de que o constituinte originário adotou uma interpreta-
ção restritiva do conceito. Do contrário, seria autorizado regime tributário violador do
princípio da proporcionalidade e dos direitos individuais, como a propriedade privada e
a livre iniciativa, que foram expressamente consagrados pelo texto constitucional. De
outro lado, as limitações constitucionais ao poder de tributar afastam uma interpretação
ampliada da extrafiscalidade.
É importante, em que pesem a doutrina e a jurisprudência aparentemente
consolidadas, que o Estado brasileiro avance no sentido de aprofundar a função ex-
trafiscal dos tributos para estimular, com uma visão de longo prazo: uma cesta básica
com produtos mais baratos, saudáveis e acessíveis; uma saúde verdadeiramente
universal (em especial no que tange aos caros medicamentos que poderiam ser aba-
tidos no Imposto de Renda); o aumento das alíquotas de tributação sobre o tabaco,
as bebidas alcoólicas e os alimentos com gorduras trans (que causam milhares de
mortes todos os anos e imensos prejuízos financeiros ao Estado); uma produtividade
ambientalmente responsável, livre de carbono, em tempos de aquecimento global e
de saturação de recursos ambientais não renováveis;59 uma indústria brasileira forte
no âmbito interno, geradora de empregos e competitiva no cenário internacional; e,
por fim, o estímulo à adesão a planos de previdência confiáveis e sólidos. A tributação
57
BALEEIRO, op. cit., p. 587-588.
58
CALIENDO, Paulo. Extrafiscalidade ambiental: instrumento de proteção ao meio ambiente equilibrado.
In: BASSO, Ana Paula et al. (Org.). Direito e desenvolvimento sustentável. Curitiba: Juruá, 2013. p. 170.
59
Sobre incentivos fiscais existentes em programas federais, estaduais e locais nos Estados Unidos para
o consumo de energia renovável e para a prática de conservação energética na construção civil, nas
residências e na utilização dos veículos, ver: MANN, Roberta; ROWE, Margaret. Taxation. In: GERRARD,
Michael. The law of clean energy: efficiency and renewables. New York: American Bar Association,
2011. p. 145-160.
158 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
64
Ver: PIGOU, Arthur Cecil. The economics of welfare. London: MacMillan, 1962.
65
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 421.
66
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
67
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
68
A implantação do ICMS ecológico, por sua vez, é defendida por Silva como uma “medida estratégica,
de alcance socioambiental, estimulando a solução de problemas socioambientais, como resíduos e
esgotamento sanitário, além de ampliar as áreas protegidas”, sendo um importante mecanismo para
a proteção e a tutela da biodiversidade. SILVA, Solange Teles. Reflexões sobre o ICMS ecológico. In:
KISHI; SILVA; SOARES, op. cit., p. 770.
69
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 403. Sobre, o tema ver também: GAYER, Ted; MORRIS, Adele. How
. [S.l.], 2010. Disponível em: http://www.brookings.edu/
reports/2010/0820_climate_policy_gayer_ morris.aspx. Acesso em: 10 maio 2016.
160 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
70
KRUGMAN; WELLS, op. cit., p. 403.
71
Acerca da taxação sobre o carbono, ver: GAYER, Ted. On the merits of a carbon tax. [S.l.], 2009.
Disponível em: http://www.brookings.edu/~/media/Files/rc/testimonies/2009/1202_carbon_tax_
gayer/1202_carbon_tax_gayer.pdf. Acesso em: 05 maio 2016; METCALF, Gilbert; WEISBACH, David.
The design of a carbon tax. Harvard Environmental Law Review, Cambridge, v. 33, p. 499-556, 2009.
Disponível em: http://www.law.harvard.edu/students/orgs/elr/vol33_2/Metcalf %20Weisbach.pdf. Acesso
em: 05 maio 2016; MARRON, Donald; TODER, Erik; AUSTIN, Lydia. Taxing carbon: what, why, and
how. [S.l.], 2015. Disponível em: http://www.taxpolicycenter.org/UploadedPDF/2000274-Taxing-Carbon-
What-Why-and-How.pdf. Acesso em: 01 maio 2016.; KENNEDY, Kevin; OBEITER, Michael; KAUFMAN,
Noah. Putting a price on carbon: a handbook for U.S. policymakers. [S.l.], 2015. Disponível em: http://
www.wri.org/sites/default/files/carbonpricing _april_2015.pdf. Acesso em: 04 maio 2016.
72
OLEWILER, Nancy. The case for pollutions taxes. In: DOERN, G. B. (Ed.). Getting it green: case studies
in Canadian Environmental Regulation. Toronto: C. D. Howe Institute, 1990. Ver também: ONTARIO. Fair
Tax Commission. Fair taxation in a changing world: report of the Ontario Fair Tax Commission Toronto:
University of Toronto Press, 1993. p. 559-563.
73
BENIDICKSON, Jamie. Environmental law. 3. ed. Toronto: Irwin Law, 2009. p. 365.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 161
74
Ver sobre o direito dos animais em: SINGER, Peter. Animal and the value of life in matters of life and
death: new introductory essays and moral philosophy. New York: Random House, 1980; SUNSTEIN,
Cass R.; NUSSBAUM, Martha. Animal rights: current debates and new directions. New York: Oxford
University Press, 2004.
75
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
76
NABAIS, José Casalta. . In: NABAIS, op. cit., p. 47.
162 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Assiste razão ao jurista luso quando afirma que o que caracteriza a natureza
ambiental dos tributos “é o objetivo ou [a] finalidade extrafiscal ecológica primordial, tra-
duzida na preservação e melhoria do meio ambiente assumida pelo legislador ao criá-los
e discipliná-los” e, bem assim, “a efetiva possibilidade de prossecução desse objetivo
ou finalidade, e não o destino ecológico das receitas proporcionadas pelos mesmos”.77
Portugal tem utilizado, no exercício da tributação de cunho extrafiscal, isenções78
e benefícios fiscais para estimular comportamentos ambientalmente responsáveis.
Podem ser citados alguns exemplos, como: a isenção parcial do imposto sobre
produtos petrolíferos e energéticos dos biocombustíveis79 (art. 90 do Código dos
Impostos Especiais sobre o Consumo);80 a isenção do Imposto sobre o Rendimento
das Pessoas Coletivas (IRC) das entidades gestoras de sistemas de embalagens e
resíduos de embalagens (art. 53º do Estatuto dos Benefícios Fiscais EBF); a isenção
desse mesmo imposto dos fundos de investimento imobiliário em recursos florestais e a
redução da taxa ou da alíquota a 10% dos rendimentos das correspondentes unidades
de participação (art. 24º do EBF); a aceitação de provisões para a recuperação paisa-
gística de terrenos (art. 40º do Código do IRC); a dedução à coleta de encargos com
equipamentos novos de energias renováveis (art. 85-A do Código do IRS); o incentivo
para aquisição de veículos movidos a eletricidade traduzida na exclusão da incidência
do imposto sobre veículos, entre outros.
Grandes temas no momento acerca da extrafiscalidade de tributos na sua
dimensão ambiental certamente são, como referido por Benidickson, “a discussão a
respeito da tributação sobre o carbono e a potencial diminuição na taxa de produção
de dióxido de carbono, que é o gás de efeito estufa que mais contribui para o aqueci-
mento global”.81 Entende Giddens que “os impostos sobre o carbono podem ser de dois
tipos: aqueles cuja receita parcial ou integral é gasta para fins ambientais e aqueles cujo
propósito é influenciar o comportamento de maneira compatível com os objetivos ligados
à mudança climática”.
No primeiro exemplo, é possível incluir “os impostos em que a receita é investida
em tecnologias renováveis”;82 já os tributos que visam compelir as pessoas ao uso de
77
Idem, p. 47.
78
Sobre programas federais de isenções fiscais para a energia renovável nos Estados Unidos, ver:
HERRICK, John. Government nontax incentive for clean energy. In: GERRARD, op. cit., p. 169-198.
79
Sobre os biocombustíveis, sua regulação e incentivos fiscais nos Estados Unidos, ver: NOSTRAND,
James Van; HIRSCHBERGER, Anne Marie. Biofuels. In: GERRARD, op. cit., p. 445-447.
80
Ver: NABAIS, José Casalta. Sustentabilidade do estado fiscal. In: NABAIS, op. cit., p. 53-54.
81
BENIDICKSON, op. cit., p. 365.
82
GIDDENS, Anthony. The political of climate change. Cambridge: Polity Press, 2009. p. 188.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 163
combustível mais eficiente, ou movidos por energia limpa, como os carros movidos com
eletricidade, enquadram-se na segunda possibilidade. O propósito da tributação sobre
o carbono, como alternativa de combate às mudanças climáticas e ao aquecimento
global, é auxiliar “na eliminação das externalidades negativas no que concerne ao
meio ambiente e garantir que elas tenham seu custo inteiramente estimado, inclusive
os custos para as futuras gerações”.83
Não basta tributar atividades poluidoras aleatoriamente: todo o sistema tributário
nacional precisa ser sustentável, inserido em uma economia verde, com novas tecno-
logias baseadas na energia limpa e livre - ou de baixa emissão - de carbono. É preciso
que exista “consistência de políticas públicas que induzam o modelo produtivo para um
nível de sustentabilidade, orientando a política fiscal nacional, estadual e municipal”.84
Quando o Estado impõe um tributo ambiental, de cunho extrafiscal predominan-
temente, e se elaboram políticas públicas que lhe possam dar amparo, é essencial
adotar índices de sustentabilidade para a sua implementação segura. Os índices de
sustentabilidade mais conhecidos são: o Ecological footprint method,85 o Dashboard
of sustainability 86 e o Barometer of sustainability.87
Grande desafio para a mensuração da sustentabilidade, seja para a criação
de um tributo ambiental, seja para a elaboração de uma política pública sustentável,
“está relacionado à utilização de uma ferramenta que capture toda a complexidade do
83
GIDDENS, op. cit., p. 188.
84
CALIENDO, , cit., p. 165-194.
85
Para Bellen, o método ecological footprint, embora utilize o menor número de enfoques entre as
ferramentas, apresenta o maior campo de aplicação até o momento. O fato de utilizar apenas uma
dimensão - a ecológica - representa um limite. Ao mesmo tempo, pelo fato de superestimar esse enfoque,
representa também uma vantagem, que é a de reforçar a importância que essa dimensão encerra em
qualquer definição de sustentabilidade. A ferramenta trabalha com dados essencialmente quantitativos
e altamente agregados. Mesmo trabalhando com a dimensão ecológica isoladamente, esse método é
altamente complexo, pois envolve cálculos refinados sobre fluxos de matéria e energia. BELLEN, Hans
Michael van Bellen. Indicadores de sustentabilidade: uma análise comparativa. Rio de Janeiro: FGV,
2007. p. 189-191.
86
O dashboard of sustainability, segundo Bellen, supera a desvantagem de trabalhar com apenas um
escopo e utiliza quatro dimensões sugeridas pela Comissão de Desenvolvimento Sustentável das
Nações Unidas: ecológica, social, econômica e institucional. Isso confere maior legitimidade à ferra-
menta junto aos tomadores de decisão, mas, por outro lado, pode mascarar a sustentabilidade efetiva
do desenvolvimento. A sua abordagem é mista porque permite a participação do público-alvo. BELLEN,
op. cit., p. 191.
87
O barometer of sustainability tem os escopos ecológico e social, sendo uma ferramenta intermediária
entre as duas outras. Como referido por Bellen, ele “considera a dimensão do bem-estar social junta-
mente com a dimensão ecológica, mas o grau de sustentabilidade não pode ser mascarado à custa de
nenhuma das dimensões”. BELLEN, op. cit., p. 1910.
164 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
CONCLUSÃO
88
BELLEN, op. cit., p. 193.
89
BELLEN, op. cit., p. 193.
90
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond,
2008. p. 171-172.
A TRIBUTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 165
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168 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
INTRODUÇÃO
No entanto, não trata esse direito como fundamental, mas sim como possibilitador da
dignidade humana (ADAME, 2008).
A água é um recurso fundamental para a sobrevivência dos seres vivos, sejam
humanos ou não. A necessidade de sua utilização deriva de vários fatores, como o
aumento populacional, superaquecimento global, produção de manufaturados ou
industrializados, agricultura, pecuária e tantas outras funções antrópicas para o bem-
-estar social.
A grande demanda de utilização de água torna o acesso a esse bem escasso
e de alto custo. Fazendo surgir novas perspectivas de aquisição, sendo os icebergs
uma fonte promissora para busca do equilíbrio de acesso. Haja vista aproximadamente
70% da água doce global estar inclusa neles (SPANDONIDE, 2012).
A recomendação da importância do acesso à água advém do Comentário Ge-
ral número 15, de 2002, do Conselho Econômico Social. No entanto, é apenas uma
recomendação, não existindo força vinculante que obrigue os países a promover os
meios de acesso. Assim aparece em tantas outras convenções, como a Carta africana
dos direitos e bem-estar das crianças (ADAME, 2008).
A promoção do acesso à água em grande parte dos países está vinculada a nor-
mas de organização interna, na quais delegam as funções aos Entes que promovem o
acesso por meio de concessões ou permissões. Ante a escassez dos recursos hídricos,
os icebergs são possíveis fontes de aquisição dessa água escassa para a população.
Sabe-se que 90% do gelo do mundo e 70% da água doce estão localizados na Antár-
tica, território definido como patrimônio comum da humanidade (SPANDONIDE, 2012).
A desigualdade no acesso à água é mais acentuada nos países em desenvol-
vimento, o que suscitaria uma relevância de investimento na atividade de captação
de icebergs, possibilitando o equilíbrio no acesso de todos à água de qualidade e a
consequente concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Embora
não sendo o acesso à água um direito fundamental, este concretiza o direito-base
dos direitos fundamentais, que é a dignidade da pessoa humana e um ambiente sadio
para sobrevivência.
Por mais que essa crise ecológica mostre sua face para todos
os seres humanos de modo igualitário, já que todas as nações
partilham o planeta Terra, num mundo desigualitário, são os
pobres que efetivamente suportam o maior fardo causado pelas
mudanças climáticas (GRUBBA, 2012, p 46).
Isso nos leva a crer, pela melhor interpretação, que é possível rebocar icebergs
que se encontrem à deriva no mar Austral, pois não existe a remoção desses das ge-
leiras, mas sim a captação simples do bloco de gelo que se desprendeu naturalmente
do continente e encontra-se à deriva em mar aberto, embora não contido pela ausência
de exercício de soberania na localidade, mas com liberdade e igualdade de condições
para a captação por qualquer nação.
No sistema Antártico, tais assertivas parecem beneficiar apenas as nações
com alto grau de desenvolvimento tecnológico que podem se apoderar de bens e
recursos que em primeira vista seriam para todos. Os países que solicitaram reservas
territoriais divergem do posicionamento de tratamento do oceano Austral como alto-mar,
e desejam exercer sua soberania sobre as faixas de mar reivindicadas (FERREIRA,
2009; SPANDONIDE, 2012).
Tais ocorrências trazem à voga várias discussões nas reuniões da ONU, cau-
sando um verdadeiro embate em busca dos recursos naturais daquela região. Em
especial com relação aos grandes blocos de gelos desprendidos no mar Austral, que
seguem sem uma regulamentação clara, conforme Felipe Rodrigues Gomes Ferreira,
tendo apenas como base as regras do Direito do Mar:
Claro está que alguns países nórdicos, para legitimar as suas ações de captação
de Icebergs no Oceano Austral, alegam que exercem direitos sob sua extensão territo-
rial, aplicando-se as regras do Direito do ribeirinho. No entanto, estes mesmos países
exercem a captação para além da extensão de seu mar territorial sob a justificativa que
não existe um sistema geográfico totalmente definido no Ártico suscitando também o
Direito do Mar e a aplicação da categoria de res nullius aos icebergs (SILVA, 2016).
A diferenciação básica no Ártico seria a aplicabilidade do Direito do Ribeirinho
para aqueles icebergs encontrados nos domínios hidrográficos de determinado país.
Este seria responsável pelo exercício de sua soberania na permissão ou autorização
para utilização do recurso, enquanto os icebergs encontrados em alto-mar seriam
apropriáveis livremente. E os Antárticos regulamentam-se pela res nullius do alto-mar,
desde que não haja um descolacionamento proposital do bloco de gelo.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 175
3. SISTEMA ÁRTICO
Devido grande parte do Ártico ser formada de mar congelado, sem uma por-
ção de terra, muitas questões se apresentam, desde autorizações de passagens em
canais até a extensão de plataformas continentais. Diferente da Antártica, que tem um
sistema de tratado consolidado, o Ártico se regulamenta pela Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito Mar (CNUDM), aplicando o Direito do Mar e também o Direito
do Ribeirinho. A extensão territorial do Ártico não é limitada como na Antártica (SILVA,
2016):
O Ártico - ao contrário do que ocorre na Antártida, onde há uma
grande massa terrestre - é marcadamente influenciado pelo
oceano Ártico e por alguns mares próximos. Nesse sentido,
uma das características distintivas do oceano Ártico é que ele é
praticamente um mar semifechado, com uma pequena saída do
lado do Pacífico norte (estreito de Bering) e uma mais larga do
lado do Atlântico norte (estreito de Fram) (SILVA, 2014, p. 95-96).
Assim, cabe aos Estados costeiros regularem a navegação, bem como a utiliza-
ção dos recursos naturais, como a captação dos icebergs no seu mar territorial, zona
econômica exclusiva e na sua coluna d’água (SILVA, 2016). É perfeitamente possível
que o Estado costeiro situado no Ártico adote uma legislação interna mais rígida que
a lei internacional do mar para resguardo de embarcações que vierem ali navegar ou
atuar em suas águas.
Pode-se afirmar que não existe liberdade de captação de recursos como icebergs
no prisma permitido pela res nullius do Direito do Mar nas extensões dos mares dos
Estados do Ártico. Os países do Ártico, devido a não existência de um acordo Ártico
como na Antártica, captam os icebergs utilizando-se de sua soberania e legislação
interna. E aqueles que se encontram em alto-mar são aplicáveis à regra da res nullius
(SILVA, 2016).
Um fator de extrema importância é o trânsito dos icebergs, pois devem ser
autorizados pelo país no caso de passagem inocente, devido ao compromisso de
cada Estado costeiro situado no Ártico de cuidar e prevenir poluição marinha, assim
como a quebra do ecossistema ecológico marinho concernente ao seu mar territorial
(SILVA, 2016).
Ressalta-se que a plataforma continental dos países situados no sistema Ártico
pode ser estendida para além das duzentas milhas náuticas, desde que o Estado
Costeiro comprove a irregularidade física de sua plataforma. Apesar de o Ártico ser
composto por oito países, apena cinco deles possuem mar territorial. Sendo eles
176 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Assim, o que não é permitido pelo Sistema do Tratado Antártico é a captura dos
icebergs no continente Antártico, como a remoção nas suas geleiras ou na porção do
espaço reconhecidamente como o território Antártico, aplicando as regras do patrimônio
comum da humanidade. Logo, a captação dos icebergs no alto-mar Antártico, como no
alto-mar Ártico, é livremente permitida, não necessitando analisar a origem do bloco
de gelo que se encontra à deriva. Sendo no Ártico pelo desinteresse do Estado, que
não conteve o trânsito do bloco de gelo para o alto-mar, e na Antártica pela proibição
do exercício de soberania dos Estados naquele território.
O continente Antártico é mais gelado que o mar Ártico. Seus mares são mais
profundos e suas camadas de gelo são maiores que as do Ártico, o que dificulta sin-
gularmente a navegação por suas águas e a captação de recursos, ainda que seja
no alto-mar Antártico. Além disso, o continente Antártico está significativamente mais
distante dos grandes consumidores de recursos naturais - como petróleo e minério -,
Europa e América do Norte (FERREIRA, 2009).
A história demonstra alguns naufrágios de embarcações que navegaram pelos
mares congelado, tanto Ártico como Antártico, se colidindo com icebergs de pequena
proporção. As embarcações, para tal navegação, devem ser totalmente modificadas
para resistir às condições locais de navegação, como o clima totalmente desfavorá-
vel, o que demanda expertises das mais variadas ciências apenas para a navegação
(SPANDONIDE, 2012).
Isso implica em vultosos investimentos em equipamentos, técnicas e know
how para pesquisa e exploração da atividade, que é mais complexa. O que já elimina
países sem qualquer perspectiva econômica e técnica para implementação da atividade.
Apenas a navegação já é intangível, ainda que seja para pesca ou pesquisa, sendo
inimaginável a atividade de captação e reboque de icebergs para extração de água doce.
A navegação no Ártico é menos custosa, tendo em vista a camada de gelo
ser menos espessa que no Austral. No entanto, apenas alguns países componentes
daquele sistema possuem técnicas de navegação e equipamentos para tal.
Além da necessidade de autorização de navegação e de conhecimento de
técnicas específicas para captação e reboque dos icebergs, haja vista a existência de
canais de passagem sob a jurisdição e soberania dos países que compõe o sistema
Ártico, aplicando se o Direito do Ribeirinho na maior parte das situações e o Direito
do Mar subsidiariamente.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 179
O transporte e a captação de água doce dos icebergs passa por quatro impor-
tantes etapas, sendo elas o local de captação dos icebergs, a forma de transporte, a
velocidade de transporte e desgelo e a viabilidade econômica. Além dos problemas
de captação, envolvem toda uma problemática ambiental de autorização, bem como
os custos para o transporte dos blocos de gelo, já incluídas técnicas sustentáveis de
equilíbrio ambiental. (WEEKS, CAMPBELL, 1973).
As adversidades de captação e transporte são vencíveis pela tecnologia atual
existente, e os acordos jurídicos, tanto locais como internacionais, podem ser efetiva-
dos para se atingir uma viabilidade adequada da atividade. Perfeitamente possível a
captação dos icebergs em alto-mar, como res nullius, bem como ajustes para captação
sob a responsabilidade do Direito do Ribeirinho, quando essa se der nas dependências
do mar territorial de algum Estado soberano.
Para aumentar as possibilidade de êxito e viabilizar o acesso de sucesso dos
fins da atividade, é necessária a constituição de grupos específicos de especialistas na
atividade, pois a profissionalização da captação do recurso reduziria significativamente
riscos de acidentes, contaminação, além de possibilitar que países sem qualquer
experiência com a atividade pudessem adquirir a água extraída dos icebergs (WEEKS,
CAMPBELL, 1973).
Para se obter melhores resultados na captação de água doce, devem ser
buscados icebergs tabulares, ou fontes desse tipo de iceberg, pois evitariam riscos
de acidentes, possibilitando melhor manuseio das peças e maior extração de água.
As melhores fontes encontram-se no continente Antártico, sendo existente apenas
uma fonte ideal no Ártico, e essa não produz iceberg de tamanho relevante e nem em
abundância como na Antártica (WEEKS, 1980).
No Ártico, os icebergs tabulares são encontrados no Ward Hunt Ice Shelf. No
entanto, esses icebergs não se desprendem até o mar da Groenlândia, onde poderiam
ser rebocados, o que inviabiliza o reboque para uso comercial de água doce. Na Antár-
tica existem diversas prateleira que poderiam fornecer fonte de gelo tabular próximas
à Austrália, África e América do Sul. No entanto, a impossibilidade de extração do gelo
devido ao Sistema do Tratado Antártico e severa temperatura amena inviabilizam a
atividade (FERREIRA, 2009; SPANDONIDE, 2012; WEEKS; CAMPBELL, 1973).
O uso de captação de imagens de satélites e recursos de navegação facilita a
descoberta de icebergs ideais para a captação e extração de água. A tecnologia atual
viabiliza a atividade garantindo uma margem gratificante de êxito, flexibilizando os
custos da captação e o acesso da água extraída para todas as comunidades, inde-
pendentemente do desenvolvimento do país comprador, inclusive fornecendo meios de
participação desses no processo com o compartilhamento de tecnologia e know how.
180 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Ainda, o Autor sugere que não parece economicamente viável coletar água de
icebergs Antárticos, devido à dificuldade de acesso aos recursos e à impossibilidade
jurídica da captação do gelo que não esteja em mar aberto, o que reduz a viabilidade
de captação de água de icebergs a um recurso excêntrico, delimitando a atuação para
algumas empresas devido à alta complexidade técnica e de recursos financeiros a
serem despendidos (FERREIRA, 2009).
A captação de icebergs no mar Austral é totalmente possível, devido à grande
gama de países que utilizam recursos de caça e pesca naquele mar. A possibilidade
se dá conforme as normas do Direito do Mar que é aplicável ao Sistema do Tratado
Antártico. Não obstante, a caça e pesca no mar Antártico são práticas comuns de
Argentina, Austrália e Japão (COLLARES, 2015).
Existem relatos de icebergs que se desprenderam da plataforma antártica e
chegaram até o Ártico. Sendo que, em alguns casos, os icebergs poderiam levar até
12 anos para seu completo derretimento. “Muitos icebergs desgarram da Antártica e
são levados pela corrente para o norte, atingindo latitudes de até 40º S, levando até 12
anos para derreter completamente” (FERREIRA, 2009, p. 52), o que torna totalmente
viável o transporte, captação e desgelo.
A IMPLICAÇÃO JURÍDICA DO USO DE ICEBERGS 181
Contudo, é uma atividade que demanda logística refinada, além de uma com-
plexa teia de ramos científicos para a consecução adequada, sem prejuízos ao meio
ambiente e principalmente resguardando o viés econômico a ser alcançado. Toda a
operação ainda deve ter custos menores do que os habituais promovidos para o acesso
à água nas mais variadas localidades do planeta.
6. CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS
CONCLUSÃO
Enquanto no Ártico os Estados estão limitados à regra das 12 milhas para o mar
territorial e das 200 milhas para suas Zonas Exclusivas Econômicas, o Polo Norte e a
zona circundante são considerados águas internacionais e não pertencem a nenhum
Estado. A especificidade do Ártico se dá pelo fato de possuir apenas poucas rotas por
mares territoriais e dependerem de autorização para passagem, o que viabiliza pactos
privados entre nações, sem, contudo, fechar possibilidades de acordos internacionais
para a realização da atividade.
Tais circunstâncias permitem a regulamentação interna de captação dos
icebergs, o que não diminui a possibilidade do exercício da atividade, apenas impõe
uma determinação mais específica, com vistas a atingir a viabilidade desejada para
a execução da tarefa. Logo, a captação de icebergs no sistema Ártico perpassa pela
legislação interna dos países do que propriamente pelo Direito do Mar.
A regularização das ações de captação que ocorrem em alto-mar se dá con-
forme na Antártica, por meio do Direito do Mar. O trânsito de reboque dos icebergs
é bastante discutido devido a não adoção do direito inocente de passagem pelo mar
territorial Ártico, pois os Estados alegam o compromisso de manutenção e guarda do
ecossistema marinho, o que pode ser contornado facilmente, por adoção de regras
comuns no transporte.
Categoricamente, afirma-se que não existe liberdade de captação de recursos
como icebergs no prisma permitido pela res nullius do Direito do Mar nas extensões
dos mares dos Estados do Ártico. Os países do Ártico, devido a não existência de um
acordo Ártico como na Antártica, captam os icebergs utilizando-se de sua soberania
e legislação interna. E aqueles que se encontram em alto-mar são aplicáveis à regra
da res nullius.
Logo, a captação de água doce de icebergs é uma alternativa possível e viável
como fonte futura de abastecimento de água potável e acesso à água para o mundo,
dependendo apenas de ajustes do Sistema do Tradado Antártico para a captação dos
icebergs e de acordos internacionais no Ártico.
No entanto, os estudos comprovam que o grande berço produtor de gelo que
viabilizaria a atividade de captação e extração de água dos icebergs é o polo Antártico,
pela especificidade climática e a produção de icebergs tabulares que são os ideais
para a extração. Os contratempos de navegação e climáticos apresentam-se como
entraves vencíveis e que, ainda assim, não diminuiriam a viabilidade da atividade de
captação, reboque e desgelo para utilização da água doce.
184 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
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em: 13 jun. 2018.
INTRODUÇÃO
4
É o caso, por exemplo, da Colômbia, da Nova Zelândia e da Índia, para citar alguns.
190 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Daí ser imprescindível uma política de proteção desse ciclo hidrológico partindo
de um conhecimento e um mapeamento minucioso desses aquíferos, para que haja
uma tutela ecológica eficaz. No mapa 2, vê-se o nível de extração de água subterrânea
no Planeta para se ter uma visão do estresse sobre esse elemento fundante do meio
ambiente, fazendo pensar como isso tem sido regulado, acordado entre os países e
se tem sido estabelecida uma hidrodiplomacia ecológica.
Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.
Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.
Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.
Fonte: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001921/192145e.pdf.
Tabela 1 - Média do consumo de água em litros per capita por dia por país
Austrália 493
Noruega 301
França 287
Suécia 195
Índia 135
China 86
Nigéria 36
Etiópia 15
Angola 15
Moçambique 4
Fonte: data360.org|http://memoria.ebc.com.br/agenciaBrazil/
noticia/2011-09-11/consumo-de-agua-por-habitante-no-Brazil-e-estavel.
5
Disponível em: http://cartadelatierra.org/descubra/la-carta-de-la-tierra/.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 197
A ecologização do direito, por seu turno, significa dar um novo rumo a um para-
digma menos antropocêntrico, fundado em uma pré-compreensão da hipercomplexidade
social e ecossistêmica, na busca de proteger os limites do planeta, resgatar o significado
de viver em harmonia com a natureza, conhecer os objetivos da sustentabilidade forte
e real, entender as funções da resiliência dos processos ecológicos essenciais e da
proteção dos serviços ecossistêmicos, além da necessidade da internalização dos
custos das externalidades negativas provocadas em uma escala planetária.
Os direitos ecologizados pressupõem um mister de proteção dos valores in-
trínsecos da natureza, respeitando os direitos de todos os serves vivos fora de uma
abordagem do capital e da lógica do hiperconsumo, que afeta os vulneráveis, inclusive
os próprios seres humanos. Precisa-se de uma nova Justiça Ecológica e, por que não
dizer, de um repensar da Teoria da Justiça e do Direito, que exige uma transição da
sociedade e requer, para sua adequação a um Estado de Direito Ecológico, que respeite
a natureza, controle, fiscalize, sancione e responsabilize os que praticam atos contra
as funções ecológicas comuns, fundado em uma nova ética ecológica, que carece de
valoração da natureza dentro do sistema econômica tradicional e sucumbido. Isso se
aplica à preservação das funções ecológicas da água.
O Estado Ecológico exige uma proteção, ou seja, sendo mais que a mera inser-
ção de normas ambientais no ordenamento jurídico, ele cuida que não se tergiverse
200 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
mais em relação à proteção, além de considerar que a ameaça não é contra apenas
os seres humanos, mas contra toda forma de vida da Terra, embora a visão de diver-
sos setores da sociedade seja antropocêntrica e menos biocêntrica. O homem busca
conhecer as origens da vida, como ela surgiu, e como ela pode ser extinta. Inclusive,
em outras fronteiras espaciais, as pesquisas crescem no sentido de se saber se hou-
ve vida em Marte e, se sim, por que ela acabou. Chama atenção a necessidade de
estratégias jurídicas, essas são o “x” da questão, uma vez que essas podem encerrar
em si a aplicação dessas normas e princípios, os quais precisam ser manejados em
prol da sobrevivência no Planeta.
Mais que isso, toda essa estratégia jurídica deve ser reforçada em evidências
científicas (ARAGÃO, 2017), e material não falta, embora o contexto da política inter-
nacional não esteja favorável. Está-se vivenciando um momento difícil, em que muitos
pensam que não há uma situação de insegurança planetária, e muitos outros afirmam
categoricamente que se está vivenciando um momento de total insegurança ecossistê-
mica, sendo cada vez mais necessário preservar o que ainda resta e mudar radicalmente
a percepção em relação à vida. A ciência e a tecnologia e suas evidências acerca do
meio ambiente devem ser o paradigma para a elaboração da legislação ambiental.
Os Objetivos de Sustentabilidade do Milênio da Organização das Nações Unidas
(ONU) representam um exemplo da necessária transição de um Estado Ecologizado
para um Estado Ecológico de Direito, uma vez que estabelecem metas que deverão ser
cumpridas como ação imprescindível para a manutenção da vida no Planeta, e claro
que outros documentos foram estabelecidos nesse sentido também, como o Protocolo
de Kioto, prevendo metas a serem atingidas, e ambos baseados em evidências já
empiricamente comprovadas, exaustivamente debatidas, sendo agora inarredável a
postura de transformação dos agentes públicos e da sociedade.
Uma característica desse Estado Ecológico de Direito que chama a atenção é
que a mudança da legislação é fundamental, porém, é preciso transformar essa rele-
vância em ação. Leite et al. (2017, p. 84) apontam que isso parte de uma transição do
Estado de Direito Ambiental para um modelo mais ecológico:
6
Lei n. 9.433/1997, Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; [...].
202 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
A proteção à água, ao que parece, deve ter um caráter sistêmico por excelência,
uma vez que sua proteção, por conseguinte, pode garantir o fornecimento de água
para o reino vegetal, o reino animal, para a produção de alimentos, para as indústrias
etc. Isso repercute diretamente na vida marinha, nos lagos e rios, além de auxiliar na
produção de peixes, sendo verdade que, para que haja essa proteção, as áreas de
preservação permanente devem ser protegidas, a integridade do solo deve ser perse-
guida, a floresta deve ser mantida “de pé”, as nascentes dos rios e riachos devem ser
mantidas. Enfim, disso depende a vida nas cidades, nas matas e no campo, o colapso
do fornecimento de água em quantidade e qualidade pode comprometer a sobrevivência
humana. Esses são fundamentos que devem estar no escopo das decisões judiciais.
É preciso reconhecer que parte da doutrina tem demonstrado uma evolução
em face do tratamento jurídico da natureza, o que significa dizer que tem havido uma
transição entre o direito de propriedade para os direitos da natureza, ou seja, a natu-
reza passa a ser sujeito de direitos, cuja importância reside justamente no simbolismo
da relevância da natureza, muito além de serem meros recursos naturais, mas como
essenciais para a vida no Planeta, o que equivale a uma verdadeira revolução legal.
Ao que parece, a mera proteção do meio ambiente se tornou difusa demais, ineficaz,
sendo necessário estabelecer parâmetros mais precisos de proteção da natureza.
Boyd (2017) relata, em seu mais recente livro, acerca da evolução legal dos
direitos da natureza, que tem ganhado espaço na legislação e nos julgados em diversas
partes do Planeta, como Nova Zelândia, onde o povo Maori tem sido o representante
legal de rios daquele país, havendo mais do que uma ligação meramente jurídica, mas
uma ligação transcendental, espiritual e cultural com esses mananciais, tendo uma
repercussão direta na percepção de dano e sua reparação. Isso ocorre justamente
quando os tribunais neozelandeses passam a reconhecer os argumentos que defendem
a visão dos Maoris em relação aos rios e a natureza em si, que compreendem que
eles têm valor intrínseco, possuem vida, podem ser reconhecidos como sujeitos de
direitos, visto que uma corporação, um ser sem vida, já era ficticiamente reconhecida
como sujeito de direito.
Para Boyd (2017), essa valorização do sentimento Maori em relação à natureza
representa que não se pode considerar o meio ambiente como meramente um con-
junto de recursos para serem explorados, que é a visão que ainda prepondera e está
levando o mundo à falência ecossistêmica. Essa mudança de visão é fundamental para
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 203
DECISÕES
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MEIO AMBIENTE - DESPEJO DE ESGOTOS DOMÉSTICOS EM
RIO - OBRIGAÇÃO DE FAZER - AÇÃO PROCEDENTE - PRELIMINARES DE ILEGITIMI-
DADE PASSIVA E LITISCONSÓRCIO REJEITADOS. (PASTA - AÇÃO CIVIL PÚBLICA).
À vista do artigo 191 da Constituição Estadual, o Município é responsável pelos danos am-
bientais ainda que o serviço de esgoto sanitário esteja a cargo de autarquia. Tal responsabi-
lidade é objetiva, afastando arguições de ilegitimidade e litisconsórcio passivo. Deplorável o
descaso do poder público com o meio ambiente ao proceder o despejo “in natura” de esgotos
domésticos e, corpo d’agua, sendo imperativa a construção de lagoa de tratamento prévio.
TJSP - Apelação Cível nº 164.488-1/7, Quarta Câmara Cível, v.u., 30.04.1992. Relator Ney
Almada.
7
Tradução livre do texto: “Turei concluded her speech by pleading with New Zealanders struggling with
the notion of recognizing that a river has rights to reflect on the fact that our legal system has long
granted corporations many of the same rights as people. In comparison, she observed, ‘It is so much
more important - so much more important - that we give status for its own sake to the very thing that
gives us life, and in Whanganui that is our river’ ”.
204 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
8
Tradução livre do texto: “These cases offer the first examples of legal rights being applied to a specific,
identifiable, bounded natural feature (a river and its catchment). The development has the potential
to create new legal precedent in environmental law, and opens a fresh pathway for water resources
management. In doing so it also presents a series of complex challenges for both law and management.
For instance, a river’s legal rights are only likely to be effective if they can be given force and effect. To
possess a right implies that someone else has a commensurate duty to observe this right, in both law,
and practice (Schlager and Ostrom 1992). In the context of water resources management, the efficacy
of legal rights for rivers depends on both the river, and the other users of the resource, recognizing their
joint rights, duties, and responsibilities”.
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 207
A lei da Nova Zelândia, que concedeu caráter de pessoa ao rio, assim estabeleceu:
living entities having the status of a legal person with all corresponding rights, duties and liabilities of
a living person”.
10
Tradução livre do texto: “Legal status of Te Awa Tupua
14
Te Awa Tupua declared to be legal person
(1) Te Awa Tupua is a legal person and has all the rights, powers, duties, and liabilities of a legal person.
(2) The rights, powers, and duties of Te Awa Tupua must be exercised or performed, and responsibility
for its liabilities must be taken, by Te Pou Tupua on behalf of, and in the name of, Te Awa Tupua, in
the manner provided for in this Part and in Ruruku Whakatupua-Te Mana o Te Awa Tupua”. (Inteiro
teor da lei Disponível em: http://www.legislation.govt.nz/bill/government/2016/0129/latest/whole.
html#DLM6830851).
PROTEÇÃO E GOVERNANÇA DA ÁGUA 209
CONSIDERAÇÕES FINAIS
suas casas, muitas vezes sequer recebem qualquer tipo de água. Além disso, é preciso
pensar na gestão da água residuária, ou seja, aquela que foi usada e é transposta para
os sistemas de esgotos ou simplesmente lançada em córregos, rios e mares.
Ademais, é preciso o resgate de valores transcendentais em relação à água,
de modo que se fortaleça o sentido de que sem água não há possibilidade de vida. A
compreensão da água numa dimensão espiritual, como no caso da Nova Zelândia e
da Índia, ou mesmo o caso da demanda feita pelo Rio Doce no Brasil, pode ser um
caminho para ensejar uma gestão hidroecológica eficaz, incluindo aqueles que estão
diretamente envolvidos no cotidiano da dinâmica dos rios e aquíferos. Fato é que não
se trata de um arranjo simples, mas sim pautado numa complexidade em sua essência.
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APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO
DE VIDA DOS PRODUTOS E DA SERVITIZAÇÃO
COMO INSTRUMENTOS DE MITIGAÇÃO À
GERAÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS1
1
Data de recebimento do artigo: 28.10.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 02.12.2018 e 20.12.2018.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 15.01.2019.
2
Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Di-
reito pela UNESP. Docente Titular da Universidade de Ribeirão Preto na Graduação e Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito - Mestrado e Tecnologia Ambiental - Mestrado e Doutorado. Coordenador do
Curso de Direito do Centro Universitário Barão de Mauá. Docente do Centro Universitário da Fundação
Educacional da Barretos. Advogado. E-mail: lehfeldrp@gmail.com.
3
Doutorando em Tecnologia Ambiental pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Mestre em
Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Especialista em Ges-
tão Jurídica da Empresa pela UNESP. Bolsista da CAPES. Docente nos Cursos de Direito e Ciências
Contábeis da Libertas Faculdades Integradas de São Sebastião do Paraíso/MG. Advogado. E-mail:
marcoadv8@hotmail.com.
4
Mestranda em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR. Graduada
em Administração pela Universidade Federal de Lavras. Especialista em Gestão de Empresa com ênfase
em Qualidade pela Universidade Federal de Lavras. Docente nos cursos de Administração, Ciências Con-
tábeis e Sistemas de Informação da Libertas Faculdades Integradas. E-mail: stefania.belute@gmail.com.
214 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
INTRODUÇÃO
A PNRS, instituída pela Lei 12.305/10 em seu artigo 1º, inc. XVII, assim concei-
tua o que seja a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto, como
sendo o:
que tange ao tempo de residualidade daquilo que esteja adquirindo, ou seja, qual seria
o tempo médio de utilização normal de determinado produto.
Diante desta realidade, vislumbramos a concepção de produtos com curto
ciclo de vida, descartáveis aos inventos e às novas tecnologias ante a obsolescência
programada de qualidade, fomentando de forma significativa a geração de resíduos
e a socialização destes impactos ambientais, tendo em vista o caráter metaindividual
dos direitos lesionados.
Acerca de um maior contorno e delimitação conceitual da RCCVP, preleciona
Mendes (2015, p. 62):
A RCCVP, responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida
do produto impõe à cadeia de suprimentos a priorização de
medidas de prevenção e redução de resíduos por meio de uma
concepção ecológica (ecodesign) para produtos e embalagens,
bem como pelo reaproveitamento de materiais residuais como
insumos, seja em seu próprio ciclo, seja em outros ciclos produ-
tivos, inclusive mediante sistemas de logística reversa e coleta
seletiva, estendendo a responsabilidade do berço ao berço e
flertando com um modelo econômico circular.
cliente, a fim de agregar valor ao negócio principal da empresa”. Para Morelli (2003),
a servitização consiste na evolução de uma oferta material para uma posição em que
o componente material é inseparável dos serviços.
De acordo com Neely (2013), servitização é a inovação das capacidades e
processos organizacionais para melhorar o valor mútuo por meio da mudança da venda
de produtos para a venda de Sistema Produto-Serviço, acompanhada de outras duas
definições: a) a ideia de um sistema produto-serviço e b) organização servitizada.
Para que uma organização se torne servitizada, são necessárias mudanças no
seu modelo de negócios orientadas aos serviços (KOWALKOWSKI et al., 2017). São
necessárias mudanças que envolvam a inovação de suas capacidades e processos
de forma que a organização consiga criar um valor mútuo por meio da mudança na
venda de produtos para a venda de sistemas produto-serviço (NEELY, 2008). Sendo
assim, são necessárias mudanças na reconfiguração dos recursos, das estruturas, das
capacidades organizacionais e a reformulação das rotinas, normas e valores de uma
empresa centrados no serviço (KOWALKOWSKI et al., 2017).
Os estudos sobre servitização têm se concentrado nas grandes empresas
(BOUCHER; PEILLON, 2015; GEBAUER; PAIOLA; EDVARDSSON, 2010; PAIOLA;
GEBAUER; EDVARDSSON, 2012). No entanto, tal estratégia pode ser adotada também
pelas pequenas e médias Empresas (QUEIROZ, 2018).
Essas mudanças para adoção da servitização podem ocorrer por meio do re-
posicionamento de serviço-produto até soluções mais personalizadas e orientadas a
processos (KOWALKOWSKI et al., 2015), podendo coexistir vários tipos de atividades ao
mesmo tempo em uma mesma organização produtiva, tendente ao ciclo produto-serviço.
O processo de mudança para a servitização ocorre de acordo com a contingência
empresarial, havendo diversos modelos para a mudança, assim como o ritmo com que
se desenvolvem os serviços, sendo possível a existência de vários tipos de serviços
ao mesmo tempo, ou seja, as empresas fazem a transição ao longo de um processo
contínuo, o que não implica necessariamente numa abordagem unidirecional para o
desenvolvimento da prestação de serviços, experimentando simultaneamente uma
série de ofertas desde serviços básicos a avançados, coexistindo com a venda de bens
tangíveis e desempenhando vários papéis ao mesmo tempo (MARTINEZ et al., 2017).
Tais mudanças acarretam a diminuição dos impactos ambientais, uma vez
que se almeja a redução de aludidos impactos por meio da reutilização de materiais
e aumento do ciclo de vida dos produtos (MONT, 2002; MORELLI, 2006), sendo este
um dos benefícios da servitização.
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 221
Goedkoop et al. (1999) afirmam que o PSS deve ser entendido como uma
combinação de produtos e serviços em um sistema que fornece as funcionalidades
necessárias para o usuário reduzindo o impacto ambiental.
Em alguns modelos de PSS, por exemplo, a propriedade do produto não é
transferida para os clientes, sendo assim, são necessários produtos mais eficientes,
com melhor desempenho e maior durabilidade (MONT, 2002; MORELLI, 2006) e
também podem levar ao estímulo de políticas ambientais que promovam a produção
e consumo mais sustentáveis (MANZINI; VEZZOLI, 2002).
Tukker (2004) propõe três tipos de PSS, sendo inicialmente orientado ao produto,
tais como a venda de produtos e agregação de serviços, ampliando o valor ao cliente,
bem como àquele orientado ao uso com a venda de produtos, já que a propriedade
do bem não é transferida ao cliente, que paga tão somente pelo seu uso e finalmente
àquele orientado ao resultado, em que o cliente e o fornecedor concordam com um
resultado final, não havendo produto pré-definido, consistindo na venda de um resultado
ou competência.
De acordo com Souza, Braga e Mendes (2016), na literatura, as tipologias foram
criadas com o intuito de explicar o conceito do PSS. Dentre elas estão: as tipologias
de Tukker (2004), Ostayen et al. (2013), Park, Geum e Lee (2012) e as tipologias de
PSS de Meier, Roy e Seliger (2010), menos referenciadas, assim como as tipologias
de Roy (2000), Van Halen et al. (2005) e Clayton et al. (2012). Não é possível afirmar
qual tipologia é a mais adequada, mas é possível apontar que alguns critérios têm
relevância maior em relação a outros, e isso pode ser utilizado como uma forma de
guiar as organizações que pretendam utilizar o PSS (SOUZA; BRAGA; MENDES, 2016).
O PSS destaca-se na redução dos impactos ambientais uma vez que ressalta
o valor do uso em vez da propriedade dos produtos, a desmaterialização, os cenários
alternativos de uso dos produtos com consequências ambientais positivas, os investi-
mentos na confiabilidade e durabilidade dos produtos e no aumento da produtividade
dos recursos (MONT, 2002).
De acordo com Ribeiro e Marsato (2010), os sistemas de produtos-serviços
permitem a combinação de produtos ecologicamente projetados, reforçados pelos
serviços projetados em diferentes estágios de um ciclo de vida de produto, e compre-
endendo diferentes conceitos do uso do produto, dependendo, por exemplo, do seu
perfil ambiental, envolvendo os consumidores finais e os agentes da cadeia de valor.
Assim, por via reflexa, torna-se vantajoso para a organização assegurar as funções de
uso do produto dentro do maior tempo possível, promovendo incentivos nos sistemas
para ampliar a durabilidade do produto, a adaptação, a reutilização e a renovação,
gerando então benefícios ambientais e econômicos para a empresa.
APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 223
Os impactos ambientais podem ser mitigados por meio dos serviços projeta-
dos, serviços estes desenvolvidos a partir de uma larga avaliação sobre os hábitos
dos consumidores, o que implica na possibilidade de desenvolver serviços com um
impacto ambiental menor do que modelos tradicionais, principalmente se aplicadas
considerações ambientais como parâmetros durante o projeto do produto, satisfazendo
as necessidades dos clientes e minimizando referidos impactos (RIBEIRO; MARSATO,
2010).
No que tange ao produtor, com a adoção desse processo, incumbe a ele a res-
ponsabilização por seus produtos e serviços por meio da implementação de condutas
e atos atinentes ao retorno do produto, reciclagem e renovação, reduzindo os resíduos
por meio do aumento da vida útil dos produtos e também com a menor utilização de
energia ou material durante a fabricação dos produtos, reduzindo os custos e impactos
ambientais (RIBEIRO; MARSATO, 2010).
Nesse sentido, imputada a responsabilidade ao produtor, é imprescindível a
conscientização do consumidor acerca da importância de atividades produtivas mais
sustentáveis, seja a partir da utilização de publicidade informativa e comparativa acerca
dos produtos com maior ciclo de vida, bem como pela desconstrução de estratagemas
voltados ao consumismo e à valorização da propriedade, substituindo-a pela posse
conjugada com a eficiência na prestação de serviços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
consumidores, eis que estes passarão a exigir daqueles produtos de melhor qualidade
e durabilidade, via rejeição aos descartáveis, favorecendo a mitigação dos custos
socioambientais da residualidade precoce pelo novo ideário do consumo sem proprie-
dade, compatibilizando os interesses dos agentes econômicos e sociais via fomento
à sustentabilidade produtiva, atingindo o núcleo axiológico da Política Nacional dos
Resíduos Sólidos.
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APONTAMENTOS JURÍDICOS ACERCA DO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS 225
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altera a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: http://
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A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA
HÍDRICA DA ANDALUZIA - ESPANHA1 2
LUCIANA TURATTI3
INTRODUÇÃO
9
GOMES, Viviane Passos. La gestión integrada y participativa de las aguas en Brasil y España: un
análisis de derecho comparado. Madrid: MAPAMA, 2017.
10
ESPANHA. MAPAMA. Libro digital del agua. Disponível em: https://servicio.mapama.gob.es/sia/visua-
lizacion/lda/. Acesso em: 08 dez. 2018.
11
ESPANHA. MITECO. Libro blanco del agua. Disponível em: https://www.miteco.gob.es/es/agua/temas/
planificacion-hidrologica/libro-blanco-del-agua/. Acesso em: 14 dez. 2018.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 231
duas maiores secas (assim definidas por superarem as médias das séries de secas
ocorridas) tiveram duração de 08 anos (1979/80 a 1986/87) e 05 anos (1990/91 a
1994/95).12 Ainda conforme menciona Gomes, a partir dos dados retirados do Livro
digital da água, este é um país acometido pelo fenômeno da seca, pois, no período
compreendido entre 1880 a 2000, mais da metade dos anos se caracterizaram como
secos ou muito secos.13
A característica mais essencial do país é a escassez quanto à precipitação no
verão (a Espanha recebe uma precipitação bem menor que a média europeia), típica
do clima mediterrâneo. Em 2017, a temperatura chegou a atingir um pico de aproxi-
madamente 47 graus na região de Córdoba.14
Valendo-se do conceito de desertificação adotado pela Convenção da Luta
contra a Desertificação (CLD), que a define como “a degradação das terras de zonas
áridas, semiáridas e sub-humidas secas resultante de diversos fatores, tais como as
variações climáticas e as atividades humanas”, tem-se que grandes áreas espanholas
se encontram afetadas pelo processo de desertificação.15 Cabe lembrar que as zonas
áridas, semiáridas e sub-humidas secas são aquelas onde a proporção entre precipi-
tação anual e a evapotranspiração potencial é entre 0,05 e 0,65. Conforme o Informe
sobre os Impactos das Mudanças Climáticas nos Processos de Desertificação da
Espanha, mais de 2/3 do território espanhol apresenta condições áridas ou tidas como
semiáridas, o que atribui à Espanha o título de país mais seco da União Europeia.16 De
forma paradoxal, a demanda por água nos processos de irrigação também são consi-
derados os maiores da Europa. Somente em 2012, foram utilizados cerca de 37 km³
de água no país, dos quais 68% foram direcionados para os usos agrícolas, seguidos
dos usos industriais, com um total de 18% e dos usos domésticos, com 14%.17 A página
do Ministério da Agricultura, Pesca e Alimentação apresenta um mapa da aridez da
12
Idem.
13
GOMES, op. cit.
14
AEMET. Agencia Española de Meteorología. Disponível em: http://www.aemet.es/es/lineas_de_interes/
datos_y_estadistica. Acesso em: 04 jan. 2019.
15
ESPANHA. MAPAMA. . Disponível em: https://www.mapa.gob.es/eu/de-
sarrollo-rural/temas/politica-forestal/desertificacion-restauracion-forestal/lucha-contra-la-desertificacion/
lch_espana.aspx. Acesso em: 07 jan. 2019.
16
Como refere Magalhães Jr. nos contextos mediterrâneos, como é o caso da maior parte da Espanha,
“os aportes hídricos nas bacias hidrográficas são bastante distintos em períodos intra e interanuais,
contribuindo para as frequentes tensões entre os quadros de disponibilidades de água e de usos-de-
mandas”. (MAGALHÃES JR., Antônio Pereira. A nova cultura de gestão da água no século XXI: lições
da experiência espanhola [livro eletrônico]. São Paulo: Blucher, 2017).
17
FAO. . Disponível em: http://www.fao.org/nr/water/aquastat/
irrigationmap/ESP/indexesp.stm. Acesso em: 13 jan. 2019.
232 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Espanha no qual fica evidente a precária situação do país, pois este demonstra que a
maior parte do território se classifica como árida ou semiárida.18
As mudanças climáticas têm ocasionado ainda mais desequilíbrios na distri-
buição da água e no tempo, fazendo com que em determinados períodos o território
espanhol seja acometido pelas secas e em outros por precipitações que geram graves
inundações.
Mesmo possuindo uma das maiores redes de represas e açudes do mundo, os
índices pluviométricos irregulares e baixos, presentes no país, associados às oscilações
climáticas das últimas décadas intensificaram ainda mais o quadro de escassez devido
ao aumento das temperaturas e às taxas de evapotranspiração.19
As constatações realizadas pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate
Change) acerca da influência das mudanças climáticas nos ciclos hidrológicos denotam
que tal cenário tende a piorar. Em análise a tais dados, Bravo refere que o documento
técnico relativo à água denominado El cambio climático y el agua, publicado em 2008,
“señala como el calentamiento observado en las últimas décadas está relacionado con
los cambios acaecidos en los ciclos hidrológicos”. Alerta o autor: “El clima, ya cálido
y semiárido, de Europa meridional se calentará y resecará aún más. La precipitación
estival disminuir”.20
Como consequência, o autor lembra que as previsões apontam que “la escor-
rentía fluvial y la disponibilidad de agua disminuirán en la cuenca mediterránea, pero
podrán aumentar en las latitudes altas”.21 Tanto a intensidade como a grande variação
nas precipitações amplia o cenário de risco de inundações e secas, o que se relaciona
diretamente com a quantidade e qualidade de água, tendo ainda um efeito direto em
outros ambientes, como na disponibilidade, estabilidade, acessibilidade e utilização
de alimentos.22
O Informe sobre os Impactos das Mudanças Climáticas nos Processos de
Desertificação na Espanha também refere que, devido a sua situação geográfica e
suas características socioeconômicas, o país encontra-se vulnerável às mudanças
18
ESPANHA. MAGRAMA. Mapa da aridez da Espanha. 2017. Disponível em: https://www.mapa.gob.es/
eu/desarrollo-rural/temas/politica-forestal/desertificacion-restauracion-forestal/lucha-contra-la-deserti-
ficacion/lch_espana.aspx. Acesso em: 11 jan. 2018.
19
MAGALHÃES JR., op. cit.
20
BRAVO, Álvaro A. Sánchez. Los recursos hídricos frente al cambio climático en la Unión Europea.
In: WOLKMER, Maria de Fátima S.; MELO, Milena Petters (Org.). Crise ambiental, direitos à água e
sustentabilidade: visões multidisciplinares. [recurso eletrônico]. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012. p. 18.
21
Idem.
22
Idem.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 233
climáticas, razão pela qual se impõe o desafio de conseguir respostas rápidas a tais
efeitos. O documento constata que a desertificação já é um problema real e, em muitos
locais, uma ameaça para uma parte significativa do território espanhol, pois aos fatores
naturais como incêndios, erosão, salinização e outros somam-se aqueles relacionados
às mudanças climáticas. Considerando esse cenário, as projeções apontam para uma
crescente aridez e um aumento das temperaturas, o que contribuirá ainda mais para
os processos de desertificação.23
Magalhães Jr.24 também se refere às mudanças climáticas e menciona que “os
rigores climáticos mediterrâneos podem se agravar nos anos futuros”. Segundo ele,
inúmeros estudos realizados nas últimas décadas vêm denotando que a Espanha tem
apresentando uma elevação nas temperaturas e a consequente redução dos índices
pluviométricos. Tal situação estaria diretamente relacionada às mudanças climáticas,
tendendo a se ampliar.
O último informe produzido em 2018, no entanto, demonstra que ainda existem
incertezas acerca do que poderá ocorrer com o clima. Estão previstas mudanças na
intensidade das precipitações fortes “pero mientras que en algunas regiones se espera
un aumento de la intensidad en todas las estaciones menos en verano, en otras regiones,
como la península ibérica, se prevé una disminución hacia el fin del siglo XXI”.25 Tais
incertezas não podem, contudo, servir de subterfúgio para se deixar de lado medidas
de proteção ambiental, haja vista que, segundo o princípio da precaução, havendo
incerteza, as medidas de proteção precisam ser ampliadas.
A região da Andaluzia não se distancia destas características climáticas. Loca-
lizada ao sul da Espanha, a região também é caracterizada pelo clima mediterrâneo,
o que, devido às importantes variações, impõe grandes desafios na gestão das suas
águas.
A precipitação anual se diferencia em relação à parte oriental e ocidental da
região. A província de Almeria, tida como a de maior escassez em relação às chuvas,
recebeu uma precipitação média de 100-200 mm por ano no período de 1961-1990,
com locais onde a precipitação não excede os 140 mm. Já em Janda, na província de
Cádiz, bem como na Serranía de Ronda, ou ainda em Málaga, a precipitação superou
1.000 mm por ano.26
23
MAGRAMA.
Espanha, 2018. p. 10.
24
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 21.
25
MAGRAMA. Informe sobre as mudanças..., op. cit.
26
CONSEJERÍA DE MEDIO AMBIENTE. Estudio básico de adaptación al cambio climático: sector recur-
sos hídricos. 2012. Disponível em: http://www.juntadeandalucia.es/medioambiente/portal_web/web/
234 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Com base em dados oficiais, Ituarte27 informa que a Andaluzia dispõe de 7.149,54
hm³ de água (1 hm³ é igual a 1 milhão de m³) de média anual. Considerando que a
população da Andaluzia é de 8.409.657 pessoas (conforme dados de dezembro de 2016)
a disponibilidade anual de água (potável, extraída, canalizada e distribuída no local)
por pessoa é de 850 m³, o equivalente a 2.329 litros de água por dia. Esta, conforme o
autor, é uma interessante cifra para se dar início às discussões sobre abundância ou
escassez de água, num contexto absoluto, físico, social ou ecossocial, até porque uma
análise exclusivamente numérica conduziria à compreensão de que a região possui
abundância hídrica.28 Há de se ter presente, contudo, que a maior parte da população
não é titular de concessões de irrigação ou industrial. Estes consomem em torno de
125 litros de água potável ao dia, ou seja, menos de 50 m³/ano. A esses números ainda
devem se acrescentar as diferenças territoriais existente no país.
Ituarte refere que as intervenções nos sistemas hidrológicos foram tamanhas ao
longo dos últimos 100 anos que “en Andalucía el ciclo hidrológico ha dejado de ser un
fenómeno natural (si es que alguna vez lo fue completamente) para ser una realidad
socioecológica, en nuestro caso sociohidrológica”.29
O Estudo Básico de Adaptação às Mudanças Climáticas (Setor Recursos
Hídricos) refere que a distribuição da precipitação na Andaluzia, tanto de uma forma
espacial como temporal, é considerada heterogênea, isso devido à instabilidade dos
insumos interanuais de água e ao longo dos anos, bem como a sua grande variabi-
lidade nas diferentes demarcações hidrográficas do território Andaluz. O documento
também menciona que as demandas de água do setor agrícola são muito grandes
e ocorrem principalmente nas épocas do ano em que há uma menor quantidade de
recursos disponíveis. 32% do total de águas superficiais e exploradas dos aquíferos
são consumidas pela população e por atividades relacionadas à indústria e agricultura.30
De forma similar ao restante da Espanha, nesta região, os principais usos da
água estão relacionados à irrigação e produção de produtos de exportação como azei-
tes, frutas ou cultivos industriais. Segundo Ituarte, “el agua en Andalucía es rehén del
regadío. La lógica del regadío tiene una hegemonía social, cultural y política aplastante:
temas_ambientales/clima/actuaciones_cambio_climatico/adaptacion/vulnerabilidad_impactos_medidas/
informes_basicos/recursos_hidricos.pdf. Acesso em: 11 jan. 2019.
27
ITUARTE, Leandro del Moral. Agua en Andalucía: ¿abundancia o escasez? Presiones sistémicas
y resistencias locales. El topo.org, 30 octubre, 2017. Disponível em: https://idus.us.es/xmlui/hand-
le/11441/69806. Acesso em: 20 jan. 2019.
28
Idem.
29
ITUARTE, cit., p. 2.
30
CONSEJERÍA DE MEDIO AMBIENTE, op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 235
utilização das águas continentais e marítimas do país. Esta lei, contudo, perdurou por
pouco tempo, pois, 02 anos após sua publicação, ela foi revogada. Passados alguns
anos, em 13 de junho de 1879, publicou-se a denominada Lei Centenária da Água,
que permaneceu em vigor até 1985.
Em 1978, no pós-ditadura franquista, que perdurou de 1939 a 1975, publica-se
uma nova Constituição. Esta outorgou competência ao Estado para legislar e ordenar
as concessões de recursos e aproveitamentos hidráulicos, quando as águas fluírem
por mais de uma comunidade autônoma, sendo sua execução de responsabilidade da
unidade da bacia hidrográfica.
A partir desta orientação, o Estado, segundo o artigo 149.1.22º, passava a ter
competências exclusivas sobre as bacias denominadas intercomunitárias (aquelas
que abrangem mais de uma comunidade autônoma, lembrando que a Espanha possui
17).35 Já as bacias intracomunitárias ficaram reservadas para gestão das respectivas
comunidades.
Em 1985, constitui-se um novo marco normativo para as águas. Derroga-se a
Lei Centenária e publica-se a Lei 29, de 02 de agosto, conhecida como a Nova Lei de
Água, ou, mais tarde, somente Lei de Água.36
Como lembra Magalhães Jr., essa lei, observando uma proposta de gestão
integrada e com enfoque voltado para o planejamento hidrológico e sua compatibi-
lização com os demais planos setoriais, “desenvolveu e complementou a divisão de
competências em matéria de gestão da água no país, defendendo a gestão conjunta
entre o Estado, os organismos de bacia, as comunidades autônomas e os usuários”.37
A Lei de 1985 criou o Conselho Nacional de Água, considerado órgão superior
no sistema de gestão, buscou dar ênfase à gestão integrada, tomando como base o
ciclo hidrológico nos processos, estabeleceu o instrumento de concessão administrativa
para permitir os usos das águas públicas, fez referência à necessidade de se consi-
derar os aspectos de qualidade e quantidade na gestão por bacias, e, contemplou a
participação dos usuários nos processos de gestão.
Em relação à participação em específico, conforme lembra Magalhães Jr.,38
a lei propôs uma reestruturação das confederações hidrográficas, e determinou que
35
BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO (BOE). Constitución Española de 1978. Disponível em: https://www.
boe.es/legislacion/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.
36
Em 1999, a Lei da Água foi modificada por meio da Lei 46, de 13 de dezembro.
37
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 35.
38
MAGALHÃES JR., op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 237
pelo menos 1/3 dos membros de colegiados decisórios de gestão e planejamento dos
organismos de bacia, como os Conselhos de água das Regiões Hidrográficas, seja
constituído por usuários dos diferentes setores envolvidos.39
Em 1986, a Espanha passa a integrar a União Europeia. No mesmo ano, o
país aprova o Regulamento de Domínio Público Hidráulico (RDPH), que contemplou
a possibilidade de cobrança por parte do Estado pelo uso e ocupação dos bens de
domínio público hidráulico.
Em 2000, é publicada a Diretiva Quadro da Água (DQA) pela União Europeia,
que passou a orientar a política de águas espanhola, na condição de Estado-membro.
A adoção da Diretiva buscou estabelecer um marco comunitário de atuação na UE
no âmbito das políticas de águas, deixando evidente, já quando das considerações
iniciais, o status que se visava atribuir à água, ao se prever que ela não é um bem
comercial como os demais, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido,
gerido dentro do ecossistema.40
Essa diretiva propôs-se a reformular e centralizar a política de recursos hídricos
dos Estados integrantes da União Europeia em um único texto normativo, pautado por
três pilares centrais:41 ecologia (em que aparecem as preocupações com o denomi-
nado estado ecológico das águas e com as metas propostas para 2015, por meio dos
Objetivos do Milênio, substituídos na atualidade pelos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentáveis); governança (ao passo que foram propostos novos órgãos de gestão
vinculados às bacias hidrográficas responsáveis por tornar mais participativos os pro-
cessos decisórios); e economia (em que os fornecedores de água foram incumbidos
de alcançar o verdadeiro custo pela água até 2010, para permitir a cobrança desse
recurso).42
39
Ver estrutura do Plano Hidrológico na página da Confederação Hidrológica do Guadalquivir. Disponível
em: http://www.chguadalquivir.es/organos-participantes#%C3%93rganosdeGobierno.
40
ZSÖGÖN, Silvia Jaquenod. Derecho ambiental: la gobernanza de las aguas. Editorial Dykinson. Madrid,
2005.
41
O documento intitulado Cuidando das águas esclarece que “cada pilar engloba uma série de medidas a
serem empreendidas em prazos determinados. O primeiro pilar é o da ecologia. Para atendê-lo a diretiva
estabelece a meta de situação ecológica ‘boa’ e o processo decisório para apurar se determinadas
águas superficiais ou subterrâneas estão em situação ruim, sofrível, moderada ou boa. Para alcançar a
situação ‘boa’, determinados elementos físico-químicos, hidromorfológicos e biológicos devem mostrar
pouca ou nenhuma alteração em relação às condições de referência (áreas de referência escolhidas
para refletir a falta de distúrbios humanos)”. (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA). Cuidando das
águas: soluções para melhorar a qualidade dos recursos hídricos. Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente. Brasília: ANA, 2011. p. 76-77).
42
ANA, 2011, texto digital.
238 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
47
UE, 2000. Diretiva Quadro da Água. Disponível em: https://publications.europa.eu/pt/publication-detail/-/
publication/ff6b28fe-b407-4164-8106-366d2bc02343. Acesso em: 18 dez. 2018.
48
Idem.
49
IRUJO, op. cit.
240 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
50
IRUJO, op. cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 241
Como prevê o texto da própria lei no artigo 1.2, a finalidade desta: “es garan-
tizar las necesidades básicas de uso de agua de la población y hacer compatible el
desarrollo económico y social de Andalucía con el buen estado de los ecosistemas
acuáticos y terrestres”.54
A lei deixa evidente em sua Exposição de Motivos suas principais diretrizes ao
expor que o desenvolvimento econômico e social não pode ser baseado no esgotamento
do recurso hídrico, mas, sim, pelo contrário, na conservação e melhoria da água e do
ecossistema aquático.
Tratando dos processos de participação na gestão, a Lei prevê a obrigatoriedade
de Decreto que regulamente os órgãos nos quais o princípio da participação esteja
assegurado. O princípio também foi previsto no Acordo Andaluz pela Água. Ainda con-
forme a Exposição de Motivos, a gestão coletiva da água é vista como essencial para
fomentar a disciplina social em seu uso e, com isso, propiciar o objetivo de alcançar a
utilização racional das águas.
pela pessoa que a possui; pessoa que representa a Direção Geral de Infraestrutura e
Exploração de Água, designada pela pessoa que a possui; seis pessoas representando
cada um dos Ministérios responsáveis pelo Ambiente, Indústria, Agricultura, Saúde,
Turismo e Ordenamento do Território; uma pessoa representante das Administrações
Locais designadas pela associação de municípios e províncias de caráter autônomo
de maior implantação; as pessoas que detêm os endereços operacionais de cada um
dos sistemas que estão integrados no Comitê de Gestão; b) Para as organizações
socioeconómicas, três membros: uma pessoa representando os sindicatos, uma
representando as organizações empresariais e outra representando as associações
ambientais; c) Pelos usuários, proporcional aos diferentes usos: os representantes dos
usos agrícolas serão escolhidos entre eles; os representantes dos usos industrial e hidre-
létrico serão escolhidos entre eles proporcionalmente aos interesses que representam;
os representantes dos usos urbanos serão escolhidos entre eles proporcionalmente
aos interesses que representam.
O mandato dos membros é de seis anos, renovável por igual período. Uma
vez expirado o prazo e até a nomeação de seus novos membros, eles continuarão no
exercício de suas funções.
Verifica-se, a partir das estruturas e órgãos existentes que, formalmente, são
assegurados espaços para que as mais diversas instâncias da comunidade possam
participar de forma direta ou por meio de representação. Isso, contudo, não é garantia
da participação efetiva, ou ainda ativa e real, uma vez que esta impõe mais do que
espaços formais.
Chama atenção o fato de que a presidência dos Comitês de Gestão é reservada
a cargo indicado, e não eleito. Neste sentido, o compromisso do controle social por
parte dos membros representativos da sociedade é aumentado, pois, além do seu
papel habitual, estes precisam estar atentos às formas de condução das reuniões por
parte da presidência, uma vez que se faz necessário garantir voz a todos e espaços
democráticos de deliberação.
Há de se ter presente, ainda, que todo esse sistema se encontra integrado à
Confederação Hidrográfica do Guadalquivir, pois a Andaluzia tem 90,22% de partici-
pação nesta bacia.
que previu na Meta 1, inicialmente desenhada para o ano de 2015, que 50% dos países
teriam adotado mecanismos de consulta, participação e coordenação que permitam
aos atores de nível local, regional, nacional e internacional contribuir com eficácia na
tomada de decisões de maneira coerente, global e integral. Para o ano de 2021, esta
meta deve atingir 100% dos países.
A Diretiva Quadro da Água, já referida anteriormente, também recomenda
fortemente a participação como um dos pilares da governança hídrica.
Conforme Magalhães Jr., a Diretiva orienta a incorporação dos processos de
participação pública a partir de vários níveis ou etapas de participação.59 O nível preli-
minar, denominado “informação pública”, seria aquele no qual ocorre a disponibilização
e a garantia de acesso a informações ao público, que se colocam como um pressu-
posto para efetiva participação. A etapa seguinte seria a da “consulta pública”, em que
a população popular passa a ser garantida de forma direta, por meio de audiências
públicas (nas quais as observações, diferentes percepções e experiências, devem ser
registrados), possibilidades de intervenções ou sugestões, opiniões. Segundo o autor
“a documentação colocada à disposição da população deve viabilizar a participação
por escrito, por entrevistas ou por aplicação de questionários”.60 A última etapa envol-
ve a “participação ativa”. Esta é responsável por um nível mais alto de envolvimento
social, em que a sociedade passa a ter a possibilidade de não somente discutir os
diversos temas, mas também deliberar sobre estes, assim como formular propostas
de soluções de problemas. Para dar consecução a esta proposta, cabe aos órgãos
gestores a criação de instâncias participativas que podem ser representadas por grupos
de trabalho ou fóruns de discussão.
A Diretiva prevê que as etapas de “informação pública” e “consulta pública”
sejam asseguradas. Já a etapa da “participação ativa”, segundo prevê o texto, deve
ser somente fomentada.
A Espanha possui um histórico importante em relação aos processos de partici-
pação pública. “As comunidades de usuários, tidas como as mais tradicionais instâncias
de participação da sociedade na gestão da água na Espanha”, foram criadas ainda
quando da Lei de Água em 1879.61
A Lei da Água de 1985 não deixou de contemplar esta premissa, prevendo
como um dos seus princípios gerais a gestão participativa dos usuários. Assim também
59
MAGALHÃES JR., op. cit.
60
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 273.
61
MAGALHÃES JR., op. cit., p. 276.
248 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
o fez o Texto Refundido da Lei de Aguas de 2001, que prevê em seu artigo 41.3 a
garantia de participação pública em todo processo de planejamento hidrológico, tanto
nas fases de consultas prévias como nas de desenvolvimento e aprovação ou revisão
dos planos de bacia.62
Na décima segunda disposição adicional, o TRLA,63 de forma a estruturar os
processos de participação pública, prevê que a elaboração de um calendário e um
programa de trabalho referente a elaboração dos planos, com indicação das estratégias
de consulta adotadas, à elaboração de um Esquema Provisional de Temas Importantes
em termos de gestão das águas e a disponibilização dos exemplares do Projeto de
Plano Hidrológico da Demarcação.64
O Decreto nº 907, de 2007, ocupa-se de um capítulo específico sobre a parti-
cipação pública. O artigo 72.1, que prevê a organização e procedimento para tornar
efetiva a participação pública, estabelece que “Los organismos de cuenca formularán el
proyecto de organización y procedimiento a seguir para hacer efectiva la participación
pública en el proceso de planificación”. De forma a contemplar as prerrogativas da
DQA, este instituto também apresenta os conteúdos mínimos a serem seguidos nas
etapas de informação pública (artigo 73), consulta pública (artigo 74) e participação
ativa (artigo 75).65
Considerada inerente aos processos de participação, a informação ambiental
também encontra guarida nas normas. No âmbito da União Europeia, a Diretiva 2003/4/
CE, estabelece as premissas relacionadas ao acesso público da informação ambiental.
No plano espanhol, a Lei nº 27, de 18 de julho de 2006 (AEBOE, 2006), regulamentou
os direitos de acesso à informação, participação e acesso à justiça em matéria am-
biental. Esta lei foi complementada pela Lei nº 19, de 09 de dezembro de 2013, que
buscou ampliar e reforçar a transparência das atividades públicas, bem como regular
e assegurar o direito de acesso à informação, relacionado tais premissas à ideia de
um bom governo.
A legislação da Andaluzia também prevê a participação nas diferentes etapas
dos processos de gestão das águas. A Lei de Águas (9/10) da Andaluzia prevê que,
entre os órgãos que compõem a Administração de Águas da Comunidade, devem ser
62
BOE. TRLA. 2001. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2001-14276. Acesso
em: 13 jan. 2019.
63
Idem.
64
MAGALHÃES JR., op. cit.
65
ESPANHA. Real Decreto 907/2007, de 6 de julio. Reglamento de la Planificación Hidrológica. Disponível
em: http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/r6-rd907-2007.t2.html#c1s2. Acesso em: 13 jan.
2019.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 249
68
POMA, Alice; GRAVANTE, Tommaso. Participación ciudadana y políticas públicas: pensar la gestión
participativa del agua desde un enfoque comunicativo. Revista Jurídica de Los Derechos Sociales - Lex
Social, v. 3, n. 1, ene./jun. 2013. p. 143.
69
JACOBI, Pedro. Poder local, políticas sociais e sustentabilidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 8,
n. 1, p. 31-48, jan./fev. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-12901999000100004. Acesso em: 22 out. 2013. p. 43.
70
JUNTA DE ANDALUCÍA. Órganos Colegiados en materia de agua. Disponível em: http://www.junta-
deandalucia.es/medioambiente/site/portalweb/menuitem.6ffc7f4a4459b86a1daa5c105510e1ca/?vg-
nextoid=f8e1461af55f4310VgnVCM1000001325e50aRCRD&vgnextchannel=8f79566029b96310Vg-
nVCM2000000624e50aRCRD. Acesso em: 24 jan. 2019.
71
MARCOS, cit.
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 251
cultura da água, na qual as pessoas possam alterar suas formas de pensar, valorizar
e utilizar os rios.
O programa propõe uma espécie de automonitoramento da qualidade das águas,
em que as instituições integrantes elegem um trecho do rio (de no máximo 01 km) onde
anualmente são coletadas amostras para se avaliar parâmetros físico-químicos, bioló-
gicos e hidromorfológicos, bem como o estudo das pressões e impactos que suportam
o trecho. A partir destas análises, a cada ano são produzidos Informes contendo os
resultados do Programa e as observações feitas pela população participante.
Outro resultado obtido a partir dos processos de participação ocorridos ao longo
do ano de 2018 foi o Regulamento do Ciclo Integral da Água de Uso Urbano, publicado
em 05 de novembro do mesmo ano. O documento se volta a tornar públicas as con-
clusões do processo do qual participaram vários grupos e instituições. Nele também
são expressas algumas preocupações em relação aos processos de participação. As
conclusões dos envolvidos indicaram que “existe escasa participación ciudadana en
la planificación estratégica”. Diante da constatação, lembram que existem diferentes
possibilidades que devem ser incluídas no regulamento. Citam, por exemplo, a consti-
tuição de grupo de cidadãos nos conselhos de administração das empresas e a criação
de comissões municipais de controle. Estes também vislumbram que o Observatório
da Água pode ser o órgão capaz de assegurar o cumprimento do regulamento.
As análises de cunho legal e documental demonstraram que, formalmente,
a comunidade autônoma da Andaluzia, atende as orientações legais, uma vez que
possui uma ampla legislação de águas e contempla vários mecanismos (programas e
processos) que autorizam a participação do público na gestão das águas. Mesmo que
não se tenha verificado empiricamente a aplicação dos principais projetos (Conheça
suas fontes e Andarrios), os Informes contendo os resultados também dão conta de
comprovar um aumento significativo na participação da população, que, ao longo dos
últimos anos, mais do que dobrou. Tais resultados ainda podem ser melhorados, em
especial se considerada a população da Comunidade, que, na atualidade, é de 8,37
milhões de habitantes.
O avanço nas propostas também se faz necessário diante das críticas trazi-
das ao texto por alguns autores locais. Assim, cabe ao governo local insistir em tais
programas e estimular a população a participar dos processos de forma efetiva, o
que pode ser motivado pela tomada de consciência por parte dos cidadãos da crítica
situação hidrográfica, ou ainda, num viés mais romântico, pelos anseios de concreti-
zação da cidadania.
Conforme defende Wolkmer, o controle Estatal e social da água deve ser recu-
perado como um direito plural e emancipatório, que conduza a uma ressignificação da
A PARTICIPAÇÃO PÚBLICA NA GOVERNANÇA HÍDRICA DA ANDALUZIA 253
NOTAS FINAIS
O presente trabalho demonstra que não existe uma única solução para que os
processos de participação na gestão das águas tornem-se efetivos. Cada região, cada
país, deve buscar as respostas para governança que considerem as peculiaridades
locais, no caso da Andaluzia, em especial as extremas condições climáticas. Além
disso, faz-se necessário superar os modelos que até então imperaram no sentido top-
-down para implementar modelos nos quais a tomada de decisões, e não somente a
participação, ocorra de forma “bottom-up”.
A participação efetiva, ou ainda, como refere a Diretiva Quadro da Água, ativa e
real, não pode se resumir a uma participação representativa ou burocratizada, em que
as relações de poder não ocorrem entre iguais. A participação não pode estar a serviço
dos grupos organizados. É preciso superar as práticas viciadas que se disseminaram
a pretexto de atender os dispositivos legais.
O que se busca é um processo de constituição de um ideal participativo orien-
tado pela inclusão do maior número possível de interessados na determinação do
bem comum.
A construção de um projeto coletivo que permita a correta definição dos usos da
água só será alcançada com a participação efetiva dos diversos atores nos processos
de gestão das águas, em especial daqueles que diretamente dela dependem para sua
sobrevivência. Essa participação deve ser moldada por processos de emancipação e
empoderamento, uma vez que o modelo de representação burocratizado e institucio-
nalizado dá sinais de esgotamento.
Mas sabe-se que a participação emancipada só será alcançada com o fomento
do conhecimento e da informação, pois se pode afirmar que o acesso e compreensão
75
WOLKMER, Maria de Fátima S.; WOLKMER, Antônio Carlos. O desafio ético da água: de necessidade
básica a direito humano. In: WOLKMER; MELO, op. cit., p. 81.
254 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
REFERÊNCIAS
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qualidade dos recursos hídricos. Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Brasília:
ANA, 2011.
BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO (BOE). Constitución Española de 1978. Disponível em: https://
www.boe.es/legislacion/documentos/ConstitucionCASTELLANO.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.
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v. 8, n. 1, p. 31-48, jan./fev. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar
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MAGALHÃES JR., Antônio Pereira. A nova cultura de gestão da água no século XXI: lições da
experiência espanhola. [Livro eletrônico]. São Paulo: Blucher, 2017.
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oecd.org/cfe/regional-policy/OECD-Principles-Water-spanish.pdf. Acesso em: 11 dez. 2018.
WOLKMER, Maria de Fátima S.; WOLKMER, Antônio Carlos. O desafio ético da água: de
necessidade básica a direito humano. In: WOLKMER, Maria de Fátima S.; MELO, Milena Petters
(Org.). Crise ambiental, direitos à água e sustentabilidade: visões multidisciplinares. [Recurso
eletrônico]. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012.
ZSÖGÖN, Silvia Jaquenod. Derecho ambiental: la gobernanza de las aguas. Madrid: Editorial
Dykinson, 2005.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: BREVES
CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO COMITÊ
DE BACIA DO ALTO TIETÊ1
1
Data de recebimento do artigo: 17.09.2018.
Datas de pareceres de aprovação: 20.10.2018 e 11.11.2018.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 05.12.2018.
2
Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Bacharel em Direito pela USP. Professora.
Advogada em São Paulo. E-mail: simonemsn41@gmail.com.
258 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Breve contextualização
Artigo 21º
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos
negócios públicos do seu país, quer directamente, quer por
intermédio de representantes livremente escolhidos.
[...]
revolta; piores decisões políticas se fortemente influenciado por grupos com interesses
opostos aos dos demais cidadãos. Para o governo, por sua vez, as desvantagens
seriam: também o tempo consumido; custos implicados, inclusive, na retirada de orça-
mento para outros projetos relevantes; a iniciativa de participação pode criar hostilidade
contra o governo; perda do controle decisório; possibilidade de serem tomadas más
decisões; falta de interesse por parte dos próprios cidadãos em participar.
Disadvantages to Disadvantages to
citizen participants Government
Panorama geral
7
“Controle, pois, por um lado, elas deveriam mediar e regular os conflitos sociais entendidos como
desvios da ordem. Segregação, porque, por outro lado, apenas o trabalho urbano das indústrias e o
funcionalismo público eram profissões regulamentadas pelo governo e só estes trabalhadores eram
considerados cidadãos, enquanto todos os demais estavam excluídos do sistema de proteção social”
(IPEA, 2011).
8
Ver: http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=85-23-solo-urbano-
e-acao-pastoral&Itemid=251. Acesso em: 28 jun. 2018.
264 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
específicas com este fim, inclusive obrigatórias em alguns setores, como saúde9 e
proteção à criança e adolescente.10
O artigo 1º da Constituição Federal dispõe, em seu parágrafo único, que “todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou dire-
tamente, nos termos desta Constituição”. Tal participação popular, que, nos moldes
da Declaração dos Direitos do Homem, é um misto de democracia representativa
conjugada a instrumentos de participação direta, está fundada tanto nas garantias de
eleições periódicas, do sufrágio universal e voto direto, secreto e igualitário quanto na
consagração e observância dos direitos e garantias fundamentais.
Desde então, conforme dados do IPEA (2011), mais de cinco milhões de pessoas
ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as políticas públicas no Brasil, seja no
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); no Programa Nacional de Habitação;
no plano de expansão das universidades públicas; na criação do Sistema Único de
Assistência Social (Suas), entre outros projetos, programas e iniciativas.
Durante esse período, que teve início nos anos 90, foram criados ou ampliados
diversos canais de diálogo entre Estado e sociedade, tais como conferências, conselhos,
ouvidorias, mesas de diálogo, que, de acordo com alguns, já configuraria a semente
de um sistema nacional de democracia participativa e que, em 2014, foi objeto de uma
norma que tentava institucionalizá-lo, mas que, no entanto, não teve êxito.
9
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
[...]
III - participação da comunidade.
10
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do
orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base
nas seguintes diretrizes:
[...]
II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas
e no controle das ações em todos os níveis.
PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL 265
11
Art. 3º São diretrizes gerais da PNPS:
I - reconhecimento da participação social como direito do cidadão e expressão de sua autonomia;
II - complementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e instâncias da democracia
representativa, participativa e direta;
III - solidariedade, cooperação e respeito à diversidade de etnia, raça, cultura, geração, origem, sexo,
orientação sexual, religião e condição social, econômica ou de deficiência, para a construção de valores
de cidadania e de inclusão social;
IV - direito à informação, à transparência e ao controle social nas ações públicas, com uso de linguagem
simples e objetiva, consideradas as características e o idioma da população a que se dirige;
V - valorização da educação para a cidadania ativa;
VI - autonomia, livre funcionamento e independência das organizações da sociedade civil; e
VII - ampliação dos mecanismos de controle social.
12
Art. 4º São objetivos da PNPS, entre outros:
I - consolidar a participação social como método de governo;
II - promover a articulação das instâncias e dos mecanismos de participação social;
III - aprimorar a relação do governo federal com a sociedade civil, respeitando a autonomia das partes;
IV - promover e consolidar a adoção de mecanismos de participação social nas políticas e programas
de governo federal;
V - desenvolver mecanismos de participação social nas etapas do ciclo de planejamento e orçamento;
VI - incentivar o uso e o desenvolvimento de metodologias que incorporem múltiplas formas de ex-
pressão e linguagens de participação social, por meio da internet, com a adoção de tecnologias livres
de comunicação e informação, especialmente softwares e aplicações, tais como códigos-fonte livres e
auditáveis, ou os disponíveis no Portal do Software Público Brasileiro;
VII - desenvolver mecanismos de participação social acessíveis aos grupos sociais historicamente
excluídos e aos vulneráveis;
VIII - incentivar e promover ações e programas de apoio institucional, formação e qualificação em
participação social para agentes públicos e sociedade civil; e
IX - incentivar a participação social nos entes federados.
13
Art. 5º Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as
especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos
neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e
políticas públicas.
266 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Outro ponto que causou incômodo e recebeu críticas foi a criação da Mesa de
Monitoramento de Demandas Sociais, instância mediadora entre Estado e sociedade
civil que poderia facilmente se tornar um mecanismo de controle e aparelhamento do
Estado sobre os cidadãos. Plausível ou não, fato é que o reconhecimento explícito dos
movimentos sociais como representantes da sociedade civil14 causou desconfiança.
16
Artigo 6º A representação no CBH-AT será paritária entre os segmentos do Estado, Município e Sociedade
Civil, e dar-se-á por meio das pessoas jurídicas dos entes, órgãos e entidades abaixo relacionados,
que terão direito a voz e voto:
[...].
III - 18 (dezoito) membros da Sociedade Civil e respectivos suplentes, eleitos dentre seus pares
constantes de cadastro específico do CBH-AT e indicados pelas respectivas entidades das seguintes
categorias, em conformidade com as alíneas “a” a “c” do inciso III, artigo 24 da Lei 7.663, de 1991.
a) 3 (três) de universidades, instituições de ensino superior e entidades de pesquisa e desenvolvimento
tecnológico;
b) 7 (sete) de usuários das águas, representados por entidades associativas dentre os seguintes setores:
(i) abastecimento público; (ii) industrial; (iii) agroindustrial; (iv) agrícola (irrigação e uso agropecuário);
(v) geração de energia; (vi) comercial; e (vii) serviços;
c) 3 (três) de associações técnicas, entidades de classe e sindicatos com atuação em recursos hídricos,
saneamento e meio ambiente;
d) 2 (dois) de associações ou sindicatos representativos dos agentes promotores da construção civil
e do desenvolvimento urbano; e
e) 3 (três) de associações não governamentais de defesa do meio ambiente, comunitárias e dos
direitos difusos.
268 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
IRVIN, R. A.; STANSBURY, J. Citizen participation in decision making: is it worth the effort?
Public Administration Review, v. 64, n. 1, jan./feb. 2004.
NASCIMENTO RIBAS, João André et al. A Política Nacional de Participação Social: aponta-
mentos sobre a relação do Estado com a Sociedade Civil brasileira. Revista SER Social, [S.l.],
v. 17, n. 36, nov. 2015. ISSN 2178-8987. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/
SER_Social/article/view/14811. Acesso em: 01 maio 2018.
TALDEN FARIAS2
PEDRO ATAÍDE3
and documentary research that intends to study the concept, the objective, the institution
and the institute general regulation in Brazil. These zones impose restrictions on the
surrounding area occupation to avoid or diminish the edge effect (abiotic, direct and
indirect biotic one), which is the external activities negative interference. Although not
part of the Unit, it has an instrumental and ancillary role, having an important function
for its effective protection and consolidation.
KEYWORDS: buffer zones; protected areas; conservation units; edge effect;
urban areas consolidated.
INTRODUÇÃO
UCs. Estas podem ser criadas por ato do Poder Público, mas a supressão só poderá
ocorrer mediante lei (regime de modificabilidade). Já o regime de fruição diz respeito
às atividades que podem ser desenvolvidas no interior da unidade, que irão variar de
acordo com a categoria e com o bioma protegido.
Demais disso, a Lei n. 9.985/2000, dividiu as UCs em dois grupos: as unidades
de proteção integral (cujo objetivo é preservar a natureza, admitindo tão somente o
uso indireto dos recursos naturais) e as unidades de uso sustentável (com o intuito de
harmonizar a conservação do meio ambiente e o uso sustentável dos recursos naturais).6
Segundo o mesmo diploma, pertencem ao grupo de proteção integral as
seguintes categorias de UCs: estação ecológica, reserva biológica, parque nacional,
monumento natural e refúgio da vida silvestre.7 Por sua vez, o grupo de uso sustentável
é composto pelas seguintes categorias: área de proteção ambiental, área de relevante
interesse ecológico, floresta nacional, reserva extrativista, reserva de fauna, reserva
de desenvolvimento sustentável e reserva particular do patrimônio natural.
Conforme aponta José Eduardo Ramos Rodrigues (2005, p. 37-38), embora a
Lei n. 9.985/2000 tenha conceituado de forma clara e atual as UCs, excluiu do Sistema
Nacional uma série de categorias, principalmente as que possuem a função de proteger
a biodiversidade fora de seu habitat natural (ex situ), a exemplo dos hortos florestais,
dos jardins zoológicos e dos jardins botânicos. Por tal razão, alguns autores8 passaram a
considerar a existência de unidades típicas (previstas no mencionado diploma) e atípicas
(as que, embora não estejam contempladas no texto legal, possuem os pressupostos
imprescindíveis à configuração jurídico-ecológica das UCs).
I - constrói, reforma, amplia, instala ou faz funcionar estabelecimento, obra ou serviço sujeito a licencia-
mento ambiental localizado em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento, ou em áreas
de proteção de mananciais legalmente estabelecidas, sem anuência do respectivo órgão gestor [...].
Art. 89. Realizar liberação planejada ou cultivo de organismos geneticamente modificados em áreas de
proteção ambiental, ou zonas de amortecimento das demais categorias de unidades de conservação, em
desacordo com o estabelecido em seus respectivos planos de manejo, regulamentos ou recomendações
da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio: Multa de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos
reais) a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). [...]
§ 3º O Poder Executivo estabelecerá os limites para o plantio de organismos geneticamente modificados
nas áreas que circundam as unidades de conservação até que seja fixada sua zona de amortecimento
e aprovado o seu respectivo plano de manejo.
Art. 93. As infrações previstas neste Decreto, exceto as dispostas nesta Subseção, quando forem
cometidas ou afetarem unidade de conservação ou sua zona de amortecimento, terão os valores de
suas respectivas multas aplicadas em dobro, ressalvados os casos em que a determinação de aumento
do valor da multa seja superior a este.
6
Art. 7º.
7
Art. 8º.
8
Nesse sentido: Paulo de Bessa Antunes (2012, p. 739-741); Antônio Herman Benjamin (2001, p. 299-302);
Édis Milaré (2013, p. 1250-1251).
278 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Segundo o art. 2º, XVIII, da Lei n. 9.985/2000, entende-se por zona de amor-
tecimento “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas
estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os
impactos negativos sobre a unidade”. Tal conceito jurídico deixa claro que a zona de
amortecimento é a área que circunda a UC, possuindo o objetivo de amortecer ou
mitigar os impactos nessa última.
Vê-se claramente que as zonas de amortecimento não podem ser consideradas
como partes integrantes das unidades, mas apenas como o zoneamento obrigatório
dessas, em que se estabelece regramento às atividades econômicas (MILARÉ,
2013, p. 1231). Enquanto a UC busca proteger o meio ambiente de seu próprio território,
a zona de amortecimento possui o objetivo de proteger o bioma constante na área de
entorno daquela (SMOLENTZOV, 2013, p. 60).
Vale dizer, a zona de amortecimento não possui existência per si, na medida
em que é concebida como parte acessória da respectiva UC. Isso significa que os ob-
jetivos, a formação, enfim, todos os seus elementos devem estar atrelados à unidade.
A própria Procuradoria do IBAMA já decidiu nesse sentido (AGU, 2016).
Demais disso, o conceito brasileiro de zona de amortecimento, estabelecido pela
Lei n. 9.985/2000, está em consonância com a doutrina do direito comparado. Nesse
sentido, Sayer (1991, p. 2) conceitua zona tampão9 como a área periférica a parque
9
Não é ocioso destacar que a segunda palavra da expressão zona tampão (buffer zone) aludida por Sayer
possui a mesma ideia do termo amortecimento; o tampo visa proteger determinado objeto. Ademais,
assim como na química tampão diz respeito à solução que impede a variação brusca de pH (LIMA,
1995, p. 34), a zona tampão (ou de amortecimento) possui o objetivo de minorar os impactos externos
sobre a Unidade de Conservação.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 279
consulta ao gestor dessa, o qual poderá (i) concordar com o licenciamento ambiental
da atividade; (ii) concordar em licenciar parte da atividade; (iii) discordar, por completo,
do licenciamento ambiental da atividade. É claro que poderá solicitar complementação
de estudos antes de tomar tal posicionamento.
Na hipótese i, não vislumbramos qualquer controvérsia, uma vez que o enten-
dimento dos órgãos licenciador e gestor são coincidentes.
A celeuma reside nas hipóteses ii e iii, quando a opinião dos órgãos licenciador
e gestor são divergentes. Dessa forma, faz-se mister analisar se a anuência prévia do
órgão gestor é meramente opinativa ou se possui caráter vinculante.
Conforme aponta Eduardo Fortunato Bim (2016, p. 139-143), após a edição da
Lei Complementar n. 140/2011 (que trata das competências e ações administrativas
ambientais), a presente discussão adquire complexidade. Segundo o mesmo autor,
existem três correntes a respeito da vinculatividade.
A primeira delas preleciona que a mencionada Lei Complementar não interferiu
na anuência prévia, permanecendo o caráter vinculativo dado pela Lei n. 9.985/2000.
Tal entendimento é o que predomina na normatização infralegal, conforme será de-
monstrado a seguir.
Já a segunda corrente aduz que o art. 13 da Lei Complementar n. 140/2011
estabeleceu a regra de que o licenciamento/autorização ambiental ocorrerá por um único
ente federado (é a conhecida regra do licenciamento uno). Dessa forma, não poderia o
entendimento de um ente federado vincular outro; a autorização só seria vinculativa se o
órgão gestor da unidade e o órgão licenciador pertencessem ao mesmo ente federado.
Assim, por exemplo, a autorização do ICMBio vincula o licenciamento realizado pelo
IBAMA, pois os dois estão no âmbito da União. Já a autorização emanada pelo gestor
de uma unidade estadual não vincularia, por exemplo, o órgão licenciador municipal.
A terceira corrente, por sua vez, defende que a anuência do gestor da UC não
vincula o órgão licenciador, independente do ente federado a que pertençam, pois a
vinculatividade é exceção; quando a Lei Complementar n. 140 estabeleceu exceções a
respeito da intervenção de outros órgãos no licenciamento, o fez de forma expressa. Em
outras palavras, “admitir o compartilhamento do processo decisório com outro órgão ou
instituição seria reconhecer um colicenciador, no caso, o gestor da UC, mesmo sabendo
que ele não é o único interveniente no licenciamento ambiental” (BIM, 2016, p. 142-43).
No âmbito da União, somente o IBAMA possui competência para licenciar, de
forma que o ICMBio age nessa situação como órgão responsável pela UC. Isso implica
dizer que a atuação dessa autarquia em relação aos órgãos licenciadores, mesmo
que seja na esfera estadual ou municipal, deve se basear nos mesmos pressupostos
e procedimentos.
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 285
Américo Luís da Silva Martins (2005, p. 179) alerta que a maior parte dos pro-
blemas das UCs surge de conflitos, tendo em vista a “restrição ou limitação do uso dos
recursos e devido à falta de entendimento destas populações sobre a importância das
áreas protegidas e os benefícios que elas originam”. Segundo o autor, para a criação e
manutenção de tais áreas, é preciso o entendimento e apoio das populações locais, a
promoção do desenvolvimento socioeconômico das comunidades do entorno e o estabe-
lecimento de processos participativos entre a UC, seus vizinhos e a sociedade em geral.
Além disso, as Zonas de Amortecimento devem compatibilizar conservação e
desenvolvimento, “pois embora a meta principal seja a proteção da biodiversidade, deve-
-se harmonizá-la com a criação de benefícios para a comunidade local” (FERREIRA;
PASCUCHI, 2006, p. 529).
Na verdade, essa necessidade de integração da população e das atividades
do entorno à UC está prevista no art. 27, § 1º, da Lei nº 9.985/2000, quando diz que
o plano de manejo deve abranger a zona de amortecimento com o fito de promover a
integração à vida social e econômica da população local.
A Zona de Amortecimento não pode restringir as atividades econômicas do
entorno existentes anteriormente à criação da própria UC, como adverte Paulo Affonso
Leme Machado (2001, p. 259):
Os usos agrícolas ou pecuários já anteriormente existentes na
área de entorno da unidade de conservação, que se tornará zona
REGIME JURÍDICO DA ZONA DE AMORTECIMENTO 291
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pela administração dessa. Mencionada anuência não possui efeito vinculativo, mas
a opinião do órgão gestor não pode ser descartada sem o embasamento técnico
necessário, tendo em vista a necessidade de proteção do ETEP. A administração da
unidade constitui, em tese, o órgão com maior capacidade técnica de afirmar se o
empreendimento irá inviabilizar a proteção dos bens ambientais da unidade. Para as
atividades desenvolvidas na zona de amortecimento que, embora não sejam de signifi-
cativa degradação, estiverem sujeitas ao licenciamento ambiental, o órgão licenciador
deverá dar ciência ao gestor da respectiva unidade.
Destarte, a normatização da zona de amortecimento ainda não alcançou o grau
de estabilidade dos dispositivos que regulamentam as UCs. Por isso, os problemas
envolvendo a parte acessória são, na maior parte das vezes, mais complexos que
os da parte principal. Além disso, a disciplina legal é inadequada quando determina
que as unidades de proteção integral e as respectivas zonas de amortecimento são
consideradas área rural. Conforme já asseverado, é até mais indicada a instituição de
unidades em espaços urbanos, visto que está diretamente relacionada à qualidade de
vida de considerável contingente populacional.
Contudo, as zonas de amortecimento de UCs urbanas devem buscar a máxima
harmonização com as atividades humanas. Ou seja, as limitações devem levar em
consideração também as características peculiares ao cotidiano das cidades. Caso
as restrições cheguem a inviabilizar a ocupação humana, haverá a necessidade de
desapropriar a área do entorno. Tal situação poderia funcionar como subterfúgio para
que os governantes suprimissem áreas do interior da unidade para servir de zona de
amortecimento.
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294 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
1
Data de recebimento do artigo: 15.01.2019.
Datas de pareceres de aprovação: 18.02.2019 e 26.02.2019.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 07.03.2019.
2
Professor do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná -
UFPR. Professor de Direito Animal na Graduação, em cursos de extensão e em projetos de integração
da Faculdade de Pinhais - FAPI-PR. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná
- UFPR. Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Juiz Federal/PR. Ex-Promotor
de Justiça do Ministério Público de Rondônia. Diretor de Ensino do Instituto Paranaense de Direito
Processual - IPDP. Professor dos cursos de Pós-Graduação na Escola da Magistratura Federal do
Paraná - ESMAFE/PR; UNINTER; Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul - ESMAFE/
RS; Escola da Magistratura do Trabalho da 9ª Região - EMATRA-IX; Escola da Magistratura do Estado
do Paraná - EMAP; Escola da Magistratura Tocantinense - ESMAT-TO; Fundação Escola do Ministério
Público do Estado do Paraná - FEMPAR; Instituto de Direito Romeu Bacellar; Academia Brasileira de
Direito Constitucional - ABDCONST; Faculdade de Direito de Francisco Beltrão - CESUL; Faculdade de
Direito das Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu - UNIGUAÇU, em União da Vitória/PR; Pontifícia
Universidade Católica do Paraná - PUC-PR; UNICURITIBA; Curso Verbo Jurídico, em Porto Alegre,
Curso Jurídico e Centro Europeu em Curitiba. E-mail: vicente.junior@ufpr.br.
296 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
compartilhem regras e princípios. Para esse novo campo do Direito, o animal não
humano interessa como indivíduo, dotado de dignidade própria e, a partir disso, como
sujeito do direito fundamental à existência digna, posta a salvo de práticas cruéis. O
artigo aponta, como fontes normativas federais gerais, o Decreto 24.645/1934 e o art.
32 da Lei 9.605/1998, mas também indica uma série de diplomas legais estaduais e
municipais, os quais também integram o ordenamento jurídico animalista. Defende o
julgamento da ADIn 4983 (caso vaquejada), no Supremo Tribunal Federal, como mar-
co da consolidação jurisprudencial do Direito Animal brasileiro. Indica a existência de
uma doutrina animalista, mas ressalva a necessidade de aprofundamento dos estudos
dogmáticos. O artigo termina por concluir que o Brasil já conta com um Direito Animal
positivado, inclusive quanto à capacidade dos animais de poderem estar em juízo.
PALAVRAS-CHAVE: direito animal; regra da proibição da crueldade aos animais;
direitos animais no Brasil; direito fundamental à existência digna; dignidade animal;
animais como sujeitos de direitos; capacidade processual dos animais.
ABSTRACT: The article presents the concept and other propaedeutic elements
of Animal Law and examines its constitutional, legal, jurisprudential and doctrinal
development in Brazil, establishing, as the initial framework for its scientific autonomy,
the constitutional rule of prohibition of cruelty, inscribed in the final part of subsection
VII of § 1º of art. 225 of the Republican Constitution of 1988. Animal Law is presented
as a separate legal discipline of Environmental Law, even though they share rules and
principles. For this new field of law, the nonhuman animal interests as an individual,
endowed with its own dignity and, from this, as subject of the fundamental right to a
dignified existence, safe from cruel practices. The article points out, as general federal
normative sources, the Decree 24.645/1934 and the art. 32 of Federal Law 9.605/1998,
but also indicates a series of state and municipal legal documents, which also are part
of the animal legal system. Defends the judgment of ADIn 4983 (case vaquejada),
in the Federal Supreme Court, as a landmark of the jurisprudential consolidation of
Brazilian Animal Law. It also indicates the existence of an animalistic law doctrine, but it
emphasizes the need to deepen the dogmatic studies. The article concludes that Brazil
already has a positive Animal Law, including the standing of animals to be in court.
KEYWORDS: animal law; rule of prohibition of cruelty to the animals; animal
rights in Brazil; fundamental right to dignified existence; animal dignity; animals as
subjects of rights; standing to sue of animals.
INTRODUÇÃO
Com outro olhar, apresenta-se como uma introdução ao Direito Animal brasileiro,
dogmaticamente considerado, sem perpassar as bases ético-filosóficas sobre a posição
dos animais no mundo e das suas relações com os seres humanos.3
Para a consecução dessa proposta, elabora-se, de início, um conceito sobre a
nova disciplina jurídica, fixando seu objeto e esboçando seus princípios e contornos
na atual fase de elaboração epistemológica.
A partir daí, são abordadas as várias manifestações do Direito Animal no Brasil,
em cada plano de produção e investigação normativa: constitucional, legal, jurispru-
dencial e doutrinário.
No plano constitucional, destaca-se a singular regra da proibição da crueldade,
prevista no art. 225, § 1º, VII, , da Constituição brasileira de 1988, repetida em
Constituições estaduais, a partir da qual o Direito Animal brasileiro se inaugura e se
espraia pelo ordenamento jurídico nacional.
No plano legal, apontam-se o Decreto 24.645/1934 e o art. 32 da Lei 9.605/1998
como as normas gerais do sistema de proteção de direitos animais, sem ignorar a
existência de diversos códigos e leis de defesa animal, com matizes e pontos de vista
diversos, no âmbito dos Estados e Municípios brasileiros, carentes, ainda, de adequada
sistematização científica e integração com o sistema geral de proteção animal.
O Direito Animal se consolida, no plano jurisprudencial, a partir do julgamento,
no final de 2016, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADIn da vaquejada),
pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda que outros precedentes da mesma Corte
já tivessem proibido certas práticas humanas cruéis contra animais - como a “farra do
boi” e as “rinhas de galos” -, esse foi o marco histórico da autonomia do Direito Animal
e da sua separação epistemológica em relação ao Direito Ambiental.
Por fim, a doutrina do Direito Animal se expande, contando, hoje, com vários
livros e publicações especializados, além de gradual presença nas faculdades de
direitos, não apenas nos cursos de graduação, como também em pós-graduações.
3
O material já publicado, principalmente em língua inglesa, sobre a filosofia e ética animal é inesgotável.
Mas, três autores - e três obras - costumam ser indicados como os representantes dos principais mo-
vimentos filosóficos-animalistas: Peter Singer, líder do benestarismo, a partir do livro Animal liberation,
de 1974; Tom Regan, a partir do livro The case for animal rights, de 1983, e Gary Francione, com
Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement, de 1995, ambos representantes do
abolicionismo. Da produção original em língua portuguesa, vale a pena consultar as obras A hora dos
direitos dos animais (2003), do professor lusitano Fernando Araújo, que aborda as principais discussões
filosóficas sobre os animais, com ampla varredura de quase tudo o que se escreveu sobre o assunto
até então, e Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas, de 2008, do professor brasileiro
Daniel Braga Lourenço, que também procede a um alentado levantamento das premissas filosóficas
do Direito Animal.
298 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
5
“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica” e as práticas que “provoquem a extinção de espécies.”
6
“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a crueldade.”
7
Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) - elaborada por neurocientistas,
neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos,
reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido -, “A ausência de um neocórtex não parece impedir
que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais
não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de
consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente,
o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos
que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras
criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”. Conferir o texto original,
em inglês. Disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf.
Acesso em: 04. abr. 2018.
8
HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). : ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 75, 81-83.
9
Assim como a dignidade humana é a base axiológica dos direitos fundamentais humanos (LIMA, George
Marmelstein. Curso de direitos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 17).
300 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Como também se sabe que a criação intensiva do gado gera resíduos potencialmente
poluidores.29 Nesses casos, bois e vacas interessam ao Direito Ambiental e atraem a
incidência das regras e princípios do art. 225 da Constituição. Para o Direito Animal,
cada animal não humano interessa, independentemente da sua função ou influência
ecológica, esteja isolado ou em grupo, seja silvestre, seja doméstico ou domesticado,
por causa da sua individualidade peculiar de ser vivo que sofre e que, por isso mesmo,
merece respeito e consideração. O fato de um ser humano maltratar, ferir, abusar ou
mutilar um animal não humano pouco importa para a manutenção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado.30 Esse fato viola a dignidade individual do animal submetido
à crueldade e não a sua função ecológica.
O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da adequada interpretação
constitucional,31 já teve a oportunidade de manifestar o entendimento sobre a auto-
nomia da regra da proibição da crueldade e sua desconexão com a preservação do
meio ambiente. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADIn da
vaquejada), no final de 2016, o STF, por meio do voto-vista vencedor do Ministro Luís
Roberto Barroso, afirmou que:
posta a salvo dos meios cruéis utilizados no processo produtivo. Permanecem como
sujeitos do direito fundamental à existência digna. O fato de a Constituição referir à
pecuária e à pesca não faz retroceder seu avanço ético em reconhecer os animais
não humanos como sujeitos sencientes - e não como meras coisas ou bens sujeitos
à arbitrária disposição humana. A pecuária e a pesca, bem como qualquer forma de
exploração dos animais, passam a ser entendidas como atividades contingentes, des-
tinadas a atender às
. Ademais, note-se, a permissão constitucional para
a atividade pecuária e pesqueira como suposto fundamento para rebaixar os animais
não humanos ao status de coisa, não pode ser evocado para uma faixa significativa
de espécies animais, não submetidos à exploração econômica.37
Como o direito fundamental animal à existência digna é direito individual, atribuí-
vel a cada animal em si, constitui-se em cláusula constitucional pétrea, não podendo ser
objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-lo
(art. 60, § 4º, IV, Constituição).38
Mas a tutela constitucional dos animais não humanos, considerados em si
mesmos, desperta uma série de reações políticas, especialmente por parte dos setores
que lucram com a exploração animal em todas as suas formas. O grau de influência
e mobilização do poder econômico - e do consequente poder político - da indústria
da exploração animal bem pode ser visualizado por intermédio do efeito backlash39
à decisão da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, já referida, que
declarou a inconstitucionalidade de lei cearense que regulamentava a vaquejada.40 O
julgamento pelo plenário da Suprema Corte brasileira ocorreu em 06.10.2016, mas o
respectivo acórdão somente foi publicado em 27.04.2017. Após intensa cobertura jor-
nalística e midiática, com mobilização dos respectivos setores, organizando passeatas
e caravanas de “vaqueiros” em prol da “regularização” da atividade,41 o Congresso
37
Os animais silvestres, por exemplo, não podem ser mortos, perseguidos, caçados, apanhados ou uti-
lizados, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo
com a obtida (art. 29, Lei 9.605/1998). Os cetáceos não podem ser pescados, nem sequer molestados
(art. 1º, Lei 7.643/1987).
38
Em sentido mais amplo, considerando cláusula pétrea todo o conteúdo do art. 225 da Constituição:
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição,
direitos fundamentais e proteção do ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 83-84.
39
LIMA, George Marmelstein. Efeito backlash da jurisdição constitucional: reações políticas à atuação
judicial. Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-cons-
titucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/. Acesso em: 22 mar. 2018.
40
FIGUEIREDO, Francisco José Garcia; GORDILHO, Heron José de Santana. A vaquejada à luz da
Constituição Federal. Revista de Biodireito e Direitos dos Animais, Curitiba, v. 2, n. 02, p. 78-96, jul./
dez. 2016. p. 91-94.
41
Confira-se: TV BRASIL. Milhares de vaqueiros ocuparam hoje a Esplanada dos Ministérios em protesto.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TayQcOPdiYU. Acesso em: 22 mar. 2018.
308 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
com os valores adotados pela Constituição. No julgamento da ADIn 4983, o STF reco-
nheceu, por meio de dados empíricos, que a prática da vaquejada é intrinsecamente
cruel, não havendo como existir vaquejada sem crueldade.47 Essa mesma conclusão
poderá ser estendida a outras práticas similares à vaquejada - como os rodeios -, caso
se constate, por dados empíricos, que também são intrinsecamente cruéis. Ora, não
há como alterar a natureza das coisas!48 Se a vaquejada é cruel, não há como criar
regra - como a criada pela Emenda Constitucional 96 - simplesmente dizendo que não
se considera cruel sob determinadas condições!49
Não obstante esse episódio, o Direito Animal, no plano constitucional brasileiro,
está bem estabelecido para possibilitar uma dogmática sólida e ampliativa.
princípio da precaução. Tal princípio significa que, na esfera de sua aplicação, mesmo na ausência de
certeza científica, isto é, ainda que exista dúvida razoável sobre a ocorrência ou não de um dano, o
simples risco já traz como consequência a interdição da conduta em questão. Com mais razão, deve
este relevante princípio jurídico e moral incidir nas situações em que a possibilidade real de dano é
inequívoca, sendo certo que existem inúmeras situações de dano efetivo” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator
Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
47
Segundo o Ministro Marco Aurélio, relator da ação direta, “tendo em vista a forma como desenvolvida,
a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir
animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não
mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o boi não
sofrer violência física e mental quando submetido a esse tratamento” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator
Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
48
Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado: “A crueldade não se transforma em benignidade só por
efeito de uma lei, ainda que constitucional, pois uma lei não tem força para transmudar ‘água em vinho’,
rompendo a ordem natural das coisas. Quem vibra com o sofrimento de um animal está a um passo de
brutalizar o seu próprio irmão” (op. cit., p. 172).
49
Na parte final do seu voto, o Ministro Marco Aurélio refuta a prevalência de valores culturais sobre a regra
da não crueldade. Segundo ele, “A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas
do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e
médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado
desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade”
constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de
dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se
intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito
de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão
de proteção ao meio ambiente” (STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em
06.10.2016, publicado em 27.04.2017).
310 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
ou os privem de ar ou luz; III - obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas fôrças
e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes
possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou
tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas
em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência;
V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o
que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VI - não dar morte rápida,
livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário, parar consumo ou
não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;
VIII - atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares
ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho etc. conjunto a animais da mesma espécie; IX -
atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças
ou com arreios incompletos incômodos ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os
molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo; X - utilizar, em serviço, animal cego, ferido,
enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso somente se aplica a localidade
com ruas calçadas; XI - açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veículo
ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se; XII - descer ladeiras com veículos
de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório; XIII - deixar de revestir
com couro ou material com idêntica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro;
XIV - conduzir veículo de terão animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha boleia
fixa e arreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca; XV - prender animais atraz dos
veículos ou atados ás caudas de outros; XVI - fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros,
sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas continuas sem lhe dar água e alimento; XVII -
conservar animais embarcados por mais da 12 horas, sem água e alimento, devendo as emprêsas de
transportes providenciar, saibro as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 mêses a
partir da publicação desta lei; XVIII - conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de
cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de qualquer outro modo que lhes produza sofrimento;
XIX - transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho
e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por
uma rêde metálica ou idêntica que impeça a saída de qualquer membro do animal; XX - encerrar em
curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou
deixá-los sem água e alimento mais de 12 horas; XXI - deixar sem ordenhar as vacas por mais de 24
horas, quando utilizadas na explorado do leite; XXII - ter animais encerrados juntamente com outros
que os aterrorizem ou molestem; XXIII - ter animais destinados à venda em locais que não reúnam as
condições de higiene e comodidades relativas; XXIV - expor, nos mercados e outros locais de venda,
por mais de 12 horas, aves em gaiolas; sem que se faça nestas a devida limpeza e renovação de
água e alimento; XXV - engordar aves mecanicamente; XXVI - despelar ou depenar animais vivos ou
entregá-los vivos à alimentação de outros; XXVII - ministrar ensino a animais com maus-tratos físicos;
XXVIII - exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem, exceto sobre os pombos, nas
sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca; XXIX - realizar ou promover lutas
entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda
mesmo em lugar privado; XXX - arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculo e exibi-los, para
tirar sortes ou realizar acrobacias; XXXI - transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano,
aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores e outras aves de pequeno porte, exceção feita para
as autorizações com fins científicos, consignadas em lei anterior.
312 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
Os animais, muito embora ainda não contem com personalidade civil positivada, são
titulares do direito fundamental à existência digna, derivado da regra constitucional
da proibição da crueldade, e podem ir a juízo, como dito anteriormente, por meio do
Ministério Público, de seus substitutos legais ou das associações de defesa animal,
conforme regra, positiva e vigente, do art. 2º, § 3º, do Decreto 24.645/1934.
Mesmo que a repressão penal à crueldade e aos maus-tratos a animais tenha
sofrido alterações legislativas posteriores, especialmente por intermédio da Lei de
Contravenções Penais59 e da atual Lei dos Crimes Ambientais,60 o Decreto 24.645/1934
mantém, no âmbito penal, sua relevância para o preenchimento normativo das condutas
que podem, efetivamente, caracterizar maus-tratos. A tipologia de práticas cruéis do
Decreto 24.645/1934, ainda que não mais represente as modalidades criminosas da
atualidade, pode servir como elemento interpretativo para os tipos penais mais abertos
e genéricos existentes hoje. De qualquer maneira, mesmo que se considere a completa
revogação dos tipos penais contidos no Decreto 24.645/1934, esse estatuto jurídico
ainda permanece vigendo, com seu status de lei ordinária,61 a orientar as
que tenham por objeto a prevenção ou repressão de práticas cruéis contra animais
59
Decreto-Lei 3.688/1941, art. 64: Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena
- prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis. § 1º Na mesma pena
incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao
público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se
o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.
60
Lei 9.605/1998, art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos
ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente,
ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas
mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo
com a obtida; II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende,
expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos,
larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela
oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização
da autoridade competente. § 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada
ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. § 3º São
espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer
outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos
limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. § 4º A pena é aumentada de metade, se
o crime é praticado: I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente
no local da infração; II - em período proibido à caça; III - durante a noite; IV - com abuso de licença;
V - em unidade de conservação; VI - com emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar
destruição em massa. § 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça
profissional. § 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca. Art. 32. Praticar ato de
abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza expe-
riência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem
recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
61
O que torna inócua qualquer tentativa posterior de revogação por simples edição de Decreto Executivo,
sem passar pelo devido processo legislativo, como se tentou fazer através do Decreto 11/1991, assinado
pelo ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Nesse sentido: BENJAMIN, cit., p. 155.
314 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
(art. 2º, parte final, Decreto 24.645/1934), legitimando os próprios animais a estarem
em juízo por meio do Ministério Público, dos seus substitutos legais ou das associações
de proteção animal.62 Segundo o magistério de Fernando Araújo,
67
Como exemplos: Rio Grande do Sul (art. 13, V e art. 251, § 1º, VII), Santa Catarina (art. 182, III e IX)
e Paraná (art. 207, XIV).
68
A Constituição do Estado de São Paulo repete o dispositivo constitucional federal, porém, inclui a fisca-
lização da exploração econômica dos animais (proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos
os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, fiscalizando
a extração, produção, criação, métodos de abate, transporte, comercialização e consumo de seus
espécimes e subprodutos, art. 193, X), o que, a título de proteção, acaba por autorizar a exploração
econômica dos animais. A Constituição do Ceará contém esse mesmo dispositivo (art. 259, XI).
69
Nesse sentido, foi pioneiro o Estado do Rio Grande do Sul (Lei Estadual 11.915/2003), que foi seguido,
quase que literalmente, pelos demais Estados, tratando do bem-estar animal, mas ressalvando a ex-
ploração econômica. A partir do Código gaúcho, seguiram-se outros, como por exemplo: no Estado do
Paraná, com a Lei Estadual 14.037/2003; no Estado de Santa Catarina, com Lei Estadual 12.854/2003; no
Estado de São Paulo, com a Lei Estadual 11.977/2005; em Pernambuco, pela Lei Estadual 15.226/2014;
e em Sergipe, pela Lei Estadual 8.366/2017.
70
Disponível em: http://sapl.al.pb.leg.br/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/13016_texto_integral.
Acesso em: 27 nov. 2018.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 317
Com menor espectro, mas também importante pelas definições que contém, o
Código Estadual de Proteção Animal de Santa Catarina foi ampliado para estabelecer
que:
Para os fins desta Lei, cães, gatos e cavalos ficam reconhecidos
como seres sencientes, sujeitos de direito, que sentem dor e
angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade
e das suas características em face de outros seres vivos (art.
34-A, acrescido pela Lei Estadual 17.485/2018).71 72
75
A partir de um caso sobre uma política pública de controle de zoonoses utilizando eutanásia de cães
e gatos por gás asfixiante, o Superior Tribunal de Justiça construiu um importante precedente sobre a
proteção e a consideração jurídica de animais. No seu voto, o Ministro Relator Humberto Martins afirmou
que “Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso de-
senvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e
psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais.
Essa característica dos animais mais desenvolvidos é a principal causa da crescente conscientização
da humanidade contra a prática de atividades que possam ensejar maus-tratos e crueldade contra tais
seres. A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas
sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite
sofrer e sentir dor. A rejeição a tais atos aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão,
de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem
justificativa razoável. A consciência de que os animais devem ser protegidos e respeitados, em função
de suas características naturais que os dotam de atributos muito semelhantes aos presentes na espécie
humana, é completamente oposta à ideia defendida pelo recorrente, de que animais abandonados
podem ser considerados coisas, motivo pelo qual a administração pública poderia dar-lhes destinação
que convier, nos termos do art. 1.263 do CPC” (STJ, 2ª Turma, REsp 1.115.916/MG, Relator Ministro
Humberto Martins, julgado em 01.09.2009, publicado em 18.09.2009).
76
STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 06.10.2016, publicado em 27.04.2017.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 319
Direito Animal, tende a incentivar a produção acadêmica na área, ampliando, cada vez
mais, os horizontes jurídicos do animalismo. E, de uma maneira geral, especialmente
a partir do voto-vista do Ministro Barroso, o precedente pode servir como instrumento
pedagógico e educativo para incentivar as reflexões sobre a ética animal.87
No plano jurisprudencial, ainda é possível encontrar diversos julgados, nas de-
mais instâncias judiciárias, tratando da tutela jurisdicional dos animais, tanto no âmbito
penal, no que diz respeito ao crime de maus-tratos do art. 32 da Lei 9.605/1998,88 como
no âmbito cível.89 90 91
produtiva pecuária e pesqueira precisa passar por esse mesmo crivo de constitucionalidade, avalian-
do, por exemplo, o de animais - a exemplo das galinhas poedeiras que ficam
engaioladas durante toda a vida -, a debicagem de pintinhos, a marcação com ferro em brasa de
bovinos, a castração animal sem analgesia etc. Sobre casos de crueldade em animais, especialmente
os utilizados na produção, com interesse econômico, ver: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de.
Curso de direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 378-381; DINIZ, Maria Helena.
Ato de crueldade ou de maus-tratos contra animais: um crime ambiental. Revista Brasileira de Direito
Animal, Salvador: Evolução, v. 13, n. 01, p. 96-119, jan./abr. 2018.
87
Como instrumento pedagógico e educativo para uma ética animal, temos a educação animalista, que
pode ser conceituada como os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem
valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a abolição das
práticas que submetam os animais à crueldade (conceito elaborado a partir do art. 1º da Lei 9.795/1999,
que trata da educação ambiental).
88
Na repressão penal aos maus-tratos a animais foi notabilizado o caso da “serial killer” de cães e gatos
em São Paulo, que recebia os animais abandonados para destiná-los à adoção, mas acabava por
exterminá-los com perfurações no corpo, especialmente na região do coração; foram encontrados 33
gatos e 4 cães mortos em sacos de lixo próximos à residência da acusada. A pena final pelos crimes,
em função do reconhecimento do concurso material, foi fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em
16 anos e 6 meses de reclusão, com expedição de mandado de prisão (TJSP, 10ª Câmara de Direito
Criminal, Apelação 0017247-24.2012.8.26.0050, unânime, Relator Des. Rachid Vaz de Almeida, julgado
em 09.11.2017).
89
No Superior Tribunal Justiça há precedente, já citado neste trabalho, proibindo a utilização de gás
asfixiante na eutanásia de animais, quando ela for imprescindível à preservação da saúde humana,
por ser meio cruel. Nesse julgamento, é expressamente citado o Decreto 24.645/1934 e a Declaração
Universal dos Direitos Animais, de 1978 (STJ, 2ª Turma, REsp 1.115.916/MG, Relator Ministro Humberto
Martins, julgado em 01.09.2009, publicado em 18.09.2009). Citando esse precedente do STJ, o Tribunal
Regional Federal da 4ª Região deu parcial provimento à apelação do Ministério Público do Estado do
Paraná, em ação civil pública, para condenar o IBAMA a fiscalizar adequadamente as condições de
animais usados em atividades circenses (TRF4, 4ª Turma, AC 2006.70.00.009929-0/PR, por maioria,
Relator Des. Fed. Valdemar Capeletti, Relator p/ acórdão Des. Fed. Márcio Antônio Rocha, julgado em
21.10.2009, publicado em 04.11.2009).
90
Também é digna de nota a histórica admissão, em 2005, do habeas corpus como meio processual
adequado para a libertação da chimpanzé Suíça, mantida no Zoológico de Salvador, BA, visando a sua
transferência para um santuário ecológico; infelizmente, antes do julgamento do writ, houve a morte
da primata, impossibilitando a análise do mérito da causa (cf. GORDILHO, Heron José de Santana.
Abolicionismo animal. p. 97-101).
91
Mais recentemente, no início de 2018, grande repercussão social e midiática obteve a propositura da
Ação Civil Pública, registrada sob nº 5000325-94.2017.4.03.6135, perante a 25ª Vara Federal de São
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 323
Paulo, por meio da qual houve a concessão de tutela provisória de urgência para “impedir a exportação
de animais vivos para o abate no exterior, em todo território nacional, até que o país de destino se
comprometa, mediante acordo inter partes, a adotar práticas de abate compatíveis com o preconizado
pelo ordenamento jurídico brasileiro e desde que editadas e observadas normas específicas, con-
cretas e verificáveis, por meio de parâmetros clara e precisamente estabelecidos, os quais possam
efetivamente conferir condições de manejo e bem estar [sic] dos animais transportados”, como também
para determinar “o desembarque e retorno à origem, mediante plano a ser estabelecido pelo MAPA
e operacionalizado pelo exportador, sob fiscalização das autoridades sanitárias, de todos os animais
embarcados no navio NADA, cuja embarcação somente poderá prosseguir viagem depois de comple-
tamente livre de animais vivos”. Na decisão liminar, o Juiz Federal Djalma Moreira Gomes, citando a
Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Animais, afirmou que os animais são sujeitos de
direitos. No entanto, no Agravo de Instrumento 5001513-63.2018.4.03.0000, a Des. Fed. Diva Malerbi,
do TRF3, afirmando que a manutenção dos animais a bordo do MV NADA provocaria maior sofrimento
e penoso desgaste aos animais do que o prosseguimento do curso marítimo, autorizou o imediato início
da viagem; por fim, no incidente de suspensão de liminar 5001511-93.2018.4.03.0000, a Des. Fed.
Cecília Marcondes, também no TRF3, suspendeu, a pedido da Advocacia-Geral da União, a parte da
liminar que impedia o embarque, em todo o território nacional, de animais vivos para abate no exterior,
sob o fundamento de risco à ordem administrativa, até o trânsito em julgado da decisão definitiva de
mérito da ação civil pública. Digno que nota, no entanto, foi parecer do Ministério Público Federal,
nesse incidente de suspensão de segurança, da lavra do Procurador Regional da República, Sérgio
Monteiro Medeiros, no qual opinou pelo provimento de agravo interno interposto pelo Fórum Nacional
de Defesa e Proteção Animal para manter a decisão liminar que impedia a exportação de animais vivos
para abate no exterior, em todo o território nacional. O parecer ministerial foi fundamentado no Direito
Animal, a partir da regra constitucional da proibição da crueldade. Não obstante o resultado prático final
desfavorável, o Direito Animal ocupou espaço significativo nos principais noticiários do País, gerando
diversas manifestações públicas, a favor e contra.
92
Eis a ementa do julgado: AMBIENTAL. CAÇA AMADORÍSTICA. EMBARGOS INFRINGENTES EM
FACE DE ACÓRDÃO QUE, REFORMANDO A SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA EM AÇÃO
CIVIL PÚBLICA AJUIZADA COM VISTAS À VEDAÇÃO DA CAÇA AMADORISTA NO RIO GRANDE
DO SUL, DEU PROVIMENTO ÀS APELAÇÕES PARA JULGAR IMPROCEDENTE A ACTIO. PRÁTICA
CRUEL EXPRESSAMENTE PROIBIDA PELO INCISO VII DO § 1º DO ART. 225 DA CONSTITUIÇÃO
E PELO ART. 11 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS, PROCLAMADA EM
1978 PELA ASSEMBLEIA DA UNESCO, A QUAL OFENDE NÃO SÓ I. O SENDO COMUM, QUANDO
CONTRASTADO O DIREITO À VIDA ANIMAL COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER DO HOMEM
(QUE PODE SER SUPRIDO DE MUITAS OUTRAS FORMAS) E II. OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO
E DA PRECAUÇÃO, MAS TAMBÉM APRESENTA RISCO CONCRETO DE DANO AO MEIO AMBIENTE,
REPRESENTADO PELO POTENCIAL TÓXICO DO CHUMBO, METAL UTILIZADO NA MUNIÇÃO DE
CAÇA. PELO PROVIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES, NOS TERMOS DO VOTO DIVER-
GENTE. Com razão a sentença ao proibir, no condão do art. 225 da Constituição Federal, bem como
na exegese constitucional da Lei nº 5.197/67, a caça amadorista, uma vez carente de finalidade social
relevante que lhe legitime e, ainda, ante à suspeita de poluição ambiental resultante de sua prática
(irregular emissão de chumbo na biosfera), relatada ao longo dos presentes autos e bem explicitada
324 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
pelo MPF. Ademais, i. proibição da crueldade contra animais - art. 225, § 1º, VII, da Constituição - e a
sua prevalência quando ponderada com o direito fundamental ao lazer, ii. incidência, no caso concreto,
do art. 11 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 1978 pela Assembleia da
UNESCO, o qual dispõe que o ato que leva à morte de um animal sem necessidade é um biocídio, ou
seja, um crime contra a vida e iii. necessidade de consagração, in concreto, do princípio da precaução.
3. Por fim, comprovado potencial nocivo do chumbo, metal tóxico encontrado na munição de caça.
4. Embargos infringentes providos. (TRF4, 2ª Seção, EINF 2004.71.00.021481-2, Relator Des. Fed.
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, D.E. 02.04.2008).
93
Para um panorama dos precursores do Direito Animal: OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da
natureza e direitos dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa,
Portugal, ano 2, n. 10, p. 11325-11370, 2013, p. 11345-11346.
94
A segunda edição, de 2004, reduziu o título do livro para, apenas, Direito dos animais (LEVAI, op. cit.).
95
DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
96
Alguns exemplos de livros específicos, além dos já citados: ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos animais.
São Paulo: Themis, 2001; CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos direitos dos animais. Rio de Janeiro:
Record, 2009; FELIPE, Sonia Teresinha. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de
Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003; FERREIRA, Ana Conceição
Barbuda Sanches Guimarães. A proteção aos animais e o direito: o status jurídico dos animais como
sujeitos de direitos. Curitiba: Juruá, 2014; GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal.
Salvador: Evolução, 2008; LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas
perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de.
Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa.
Personalidade jurídica dos grandes primatas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012; NOGUEIRA, Vânia Márcia
Damasceno. Direitos fundamentais dos animais: a construção jurídica de uma titularidade para além
dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes, 2012; OBERST, Anaiva. Direito animal. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2012; RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito e os animais: uma abordagem ética, filosófica
e normativa. Curitiba: Juruá, 2003; SANTOS, Cleopas Isaías. Experimentação animal e direito penal.
Curitiba: Juruá, 2015; SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. Salvador: Evolução, 2014.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 325
101
MACHADO, op. cit., p. 169-172; MUKAI, Toshio. Direitos e proteção jurídica dos animais. Revista do
Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Brasília: TRF1, v. 30, n. 1/2, p. 63-68, jan./fev. 2018.
102
FIORILLO, op. cit., p. 272-273.
103
GRECO, Luís. Proteção de bens jurídicos e crueldade contra animais. Revista Liberdades, São Paulo:
IBCCrim, n. 3, p. 47-59, jan./abr. 2010.
104
SZNICK, Valdir. Direito penal ambiental. São Paulo: Ícone, 2001. p. 299-305; FREITAS, Vladimir Passos
de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 95-100.
105
TEIXEIRA NETO, João Alves. Tutela penal dos animais: uma compreensão onto-antropológica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
106
Paulo Lôbo realiza uma das mais importantes incursões civilistas na análise da natureza jurídica dos
animais, a partir do art. 225, § 1º, VII, da Constituição, da Declaração Universal dos Direitos Animais,
dos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal e da experiência estrangeira. Transparece
da sua doutrina que o enquadramento jurídico dos animais não pode mais ser como bens semoventes
(Direito civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 1, 2018. p. 228-229).
107
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1,
2018. p. 304-305.
108
FRAUZINO, Marivaldo Cavalcante. Teoria geral do processo civil. Goiânia: Editora do Autor, 2014. p. 92.
Fredie Didier Júnior, ao menos até a 12ª edição de seu Curso de direito processual civil: teoria geral
do processo e processo de conhecimento (Salvador: JusPodivm, v. 1, 2010), negava expressamente
a capacidade de ser parte ao morto e aos animais (p. 233). O mesmo se verifica na monografia
: o juízo de admissibilidade do processo, ao menos
na edição de 2005 (São Paulo: Saraiva, 2005, p. 113). No entanto, em edições posteriores do Curso
essas negativas desapareceram, o que faz transparecer que o processualista baiano não mais está
convencido desse impedimento peremptório.
A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL 327
CONSIDERAÇÕES FINAIS
109
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito animal e ensino jurídico: formação e autonomia de um
saber pós-humanista. p. 239-277; OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direitos
dos animais: um enquadramento. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, Portugal, ano 2,
n. 10, p. 11325-11370, 2013. p. 11345-11346. Segundo esse último autor, “a primeira cadeira de Direito
dos Animais criada no país, constante da grade curricular, teve espaço na recém-inaugurada Faculdade
de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A cadeira está a cargo do Prof.
Daniel Lourenço. A Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), ao que se sabe, foi a primeira a oferecer de fato uma disciplina no bacharelado voltada para
a matéria, incorporando também a discussão da Ecologia Profunda, denominada Direito dos Animais,
Ecologia Profunda, lecionada pelo autor deste artigo. O Mestrado em Direito da UNIRIO foi o primeiro
(e o único até agora) a prever matéria com este teor, Direito dos Animais, Ecologia Profunda, igualmente
sob minha responsabilidade. Impõe registrar também a criação, na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda, hoje de caráter
interinstitucional, reunindo, além de mim, o Prof. Daniel Lourenço (UFRRJ), a Profa. Rita Paixão (UFF),
a Profa. Maria Clara Dias (IFCS/UFRJ) e a Profa. Larissa Pinha de Oliveira (FDUFRJ)” (p. 11.346).
110
Como é o caso da Universidade Federal de Santa Catarina (sigla DIR5988) e da Universidade Federal
Rural do Rio Janeiro (sigla IM746); o autor deste ensaio também passou a oferecer a disciplina opta-
tiva de Direito Animal na Faculdade de Pinhais (FAPI, localizada na região metropolitana de Curitiba),
desde 2017, além de Curso de Extensão (2018) e disciplina de Projeto Integrador (2018) (cf. http://www.
fapi-pinhais.edu.br). O autor deste ensaio também conseguiu aprovar a inclusão da disciplina tópica
de Tutela Jurisdicional dos Animais (registrada sob a sigla DC080) no currículo do Curso de Direito
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a qual passará a ser oferecida, na graduação, a partir do
primeiro semestre de 2019.
111
Cf. www.ppgd.ufba.br.
328 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VIII - nº 22 - janeiro-abril de 2019
REFERÊNCIAS
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o Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo: a quem cabe a última palavra? Revista de
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