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LUIZ TATIT
Não nos preocupemos com a canção. Ela tem a idade das culturas humanas e
certamente sobreviverá a todos nós. Impregnada nas línguas modernas, do
ocidente e do oriente, a canção é mais antiga que o latim, o grego e o
sânscrito. Onde houve língua e vida comunitária, houve canção. Enquanto
houver seres falantes, haverá cancionistas convertendo suas falas em canto.
Diante disso, adaptar-se à era digital é apenas um detalhe.
Uma canção renasce toda vez que se cria uma nova relação entre melodia e
letra. É semelhante ao que fazemos em nossa fala cotidiana, mas com uma
diferença essencial: esta pode ser descartada depois do uso, aquela não. O
casamento entre melodia e letra é para sempre. Por esse motivo, existem
meios de fixação melódica, muito empregados pelos compositores, que
convertem impulsos entoativos em forma musical adequada para a condução
da letra.
Um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a
acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale a dizer que ela
perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que
uma fala explícita que neutraliza as oscilações “românticas” da melodia e
conserva a entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros
gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção. Ou seja, canção não é
gênero, mas sim uma classe de linguagem que coexiste com a música, a
literatura, as artes plásticas, a história em quadrinhos, a dança etc. É tudo
aquilo que se canta com inflexão melódica (ou entoativa) e letra. Não importa a
configuração que a moda lhe atribua ao longo do tempo.
Nessa mesma época, com o ingresso quase que repentino do país na era
digital, a gravação em CD e derivados tornou-se algo cada vez mais simples,
barato e viável. Assim, a intervenção independente, que dez anos antes
representava um ato heróico de bandas e artistas frontalmente marginalizados
pelas gravadoras, tornou-se a forma habitual de lançamento de novos nomes
no mercado e um modo de produção atraente até mesmo para os próprios
artistas das majors. Maria Bethânia, Djavan e Chico Buarque, entre muitos,
trocaram suas multinacionais por outros modelos de realização.