Você está na página 1de 14

210 ARTE & E N S A I O S - N.

2 0 - J U L H O DE 2010
Seis conceitos

Bernard Tschumi
Trata das questões que envolvem a arquitetura contemporânea e o modo como
pode permanecer meio para exploração de novos territórios e para produção de
novo conhecimento em um mundo estetizado e midiático, sem se limitar a um
problema meramente de aparências. Desenvolve seis conceitos referentes à produ-
ção arquitetônica contemporânea que procura enfrentar esse desafio –
desfamiliarização, choque, desestruturação, sobreposição, cruzamento de progra-
mas e turning point – defendendo o papel da arquitetura de proporcionar condi-
ções capazes de criar uma nova cidade e novas relações entre espaços e eventos.
Arquitetura contemporânea, pós-modernismo, desconstrução.

Em artigo publicado em janeiro de 1991 no tar Scully novamente) “destruíam a própria


The New York Times, Vincent Scully, res- estrutura de nossos bairros”. Brasília e
peitado crítico e historiador de arquitetura, Chandigarh eram belas ou feias, sociais ou
afirmou que “o movimento mais importan- antissociais, históricas ou a-históricas?
te na arquitetura de hoje é o retorno às tra-
dições vernacular e clássica, e sua reintegra- Essa reação à modernidade, vista como im-
ção às principais correntes da arquitetura posição da abstração, data de meados dos
moderna em seu aspecto mais fundamental: anos 60, seja por meio de textos acadêmicos
a estrutura de comunidades, a construção ou por meio dos primeiros protestos organi-
de cidades”. As palavras do professor Scully zados contra a demolição de bairros e edifíci-
não podem ser facilmente ignoradas, sobre- os-monumentos em nome do progresso, da
tudo quando, no mesmo artigo, ele mencio- Pennsylvania Station, de Nova York, ao Les
na que as demais atividades em arquitetura Halles, de Paris. Entre os arquitetos, foi certa-
estão em “momento de extrema futilidade mente um livro, Complexity and contradiction
que desconstrói e autodestrói”. in architecture, de Robert Venturi, publicado
pelo Museu de Arte Moderna em 1966, que
Muito da arquitetura pós-moderna foi de- disparou ampla e extraordinária reavaliação
senvolvido em época de reação geral con- dos valores e prioridades na arquitetura, su-
tra aquilo que era percebido como a abstra- gerindo que ela era mais do que a etérea e
ção modernista: abstração porque os mo- abstrata formulação de um ideal utópico. Re-
dernos edifícios comerciais de vidro eram cheado de exemplos que iam do trabalho de
“sem imagens” e frios como a pintura abs- Borromini a “justaposições de linhas expres-
trata. Abstração também porque, dizia-se, sas e construções existentes”, o texto de
arquitetos modernos eram elitistas, distan- Venturi concluía com elogios às “lições vívi-
ZKM, Karlsruhe,
tes ou “abstraídos” da vida cotidiana – das das da Pop Art”, uma vez que ela envolvia
Alemanha, 1988.
Fonte das imagens: Tschumi, pessoas e, sobretudo, da comunidade, cuja contradições de escala e de contexto “que
Bernard . Architecture and
Disjunction. Cambridge: MIT
participação não era permitida, enquanto deveriam ter despertado arquitetos de seus
Press, 1996 áreas, autoestradas e arranha-céus (para ci- elevados sonhos de pura ordem”.

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 211


Quase simultaneamente, uma nova área do te. Raras eram as alusões às megalópolis, às
conhecimento se desenvolvia e se mostra- fábricas, estações de energia e outros traba-
ria formidável instrumento nas mãos de ar- lhos mecânicos que definiram nossa cultura
quitetos e críticos que buscavam resgatar o por mais de um século. Em contraste com
significado daquilo que atacavam como o essas ideias, nos era oferecido um conjunto
grau zero do modernismo. A semiologia e a constante de imagens de uma sociedade pré-
linguística invadiram a cena arquitetônica. industrial – pré-aeroportos, pré-supermerca-
Não raro muito mal compreendidos, os tra- do, pré-computador, pré-nuclear.
balhos de Chomsky, Umberto Eco e Roland
Barthes iriam influenciar novas estratégias em Obviamente, construtores e empreendedo-
codificação de arquitetura, de modo que res eram tão facilmente convencidos por
pessoas comuns e também acadêmicos esses arquitetos “clássicos” como pelos
poderiam finalmente decodificar múltiplos preservacionistas: o mundo da nostalgia, do
sentidos aplicados àquilo que, no entanto, per- conforto, de geborgenheit,1 seria um mun-
manecia sendo abrigos neutros. Ainda em do melhor para se viver, e mais casas seriam
1968, Barthes, em uma de suas raras incur- vendidas. Apesar do recente interesse em
sões ao urbanismo e à arquitetura, concluiu novas formas de arquitetura contemporânea,
que significados fixos seriam impossíveis. Ar- essa Arcádia pré-industrial constitui a princi-
quitetos e críticos pós-modernos desenvol- pal corrente da ideologia arquitetônica e
veram extravagante concepção de uma arqui- política na maior parte do mundo construído.
tetura cheia de significado, na qual as fachadas Os mais inclinados ideologicamente entre os
de edifícios comunicavam um universo de alu- apologistas desse retorno argumentam que
sões, citações e precedentes históricos. no final do século 20, depois de centenas de
anos de desenvolvimento industrial,
Próprio dessas alusões é o fato de todas se tecnológico e social, ainda é possível reto-
referirem a um setor muito limitado da cultu- mar um estilo de vida anterior, ignorando
ra arquitetônica: primeiramente, elas lidavam carros, computadores e a era nuclear. E, mais
apenas com a aparência da arquitetura, com importante, ignorando as mudanças sociais
sua superfície ou imagem, nunca com sua es- e históricas específicas que ocorreram du-
trutura ou uso. Em segundo lugar, um con- rante esse tempo. Esses ideólogos defendem
junto muito restrito de imagens estava sendo que as “cidades” arcadianas que são hoje
proposto – palazzi romanos, villas e constru- desenvolvidas no modelo das vilas de fim de
ções vernaculares inglesas ou aquilo que po- semana irão, graças a sua arquitetura, pro-
deria ser descrito como os sonhos arcadianos mover comunidades ideais em que valores
de uma classe média conservadora cuja sociais e respeito mútuo irão substituir as
homogeneidade de gosto contradizia as pró- diferenças, os conflitos e os intercâmbios
prias teorias de heterogeneidade que Barthes urbanos. Esse tipo de sonho comunitário
e Venturi pareciam sugerir. Devemos acres- (também partilhado por cooperativas e po-
centar que, para outros que estavam propon- líticos) é irônico quando proposto em uma
do um novo vocabulário formalista, a mesma cidade como Nova York, em que as pessoas
situação frequentemente ocorria. Falava-se se mudam em média a cada quatro anos.
quase sempre sobre a imagem, a superfície; No entanto, é sintoma de uma fantasia: que
estrutura e uso não eram mencionados. De a vila de nossos ancestrais – que nunca co-
fato, a cultura industrial e metropolitana de nhecemos – possa ser um modelo para as
nossa sociedade estava notoriamente ausen- gerações futuras.

212 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


Mas será que a questão é mesmo o moder- construtiva. Aqui, porém, terminam as se-
no versus o clássico ou o vernacular? Telha- melhanças. A fachada lisa do prédio da IBM
dos inclinados contra telhados planos? Tra- é revestida de mármore polido e vidro, com
ta-se realmente de uma questão-chave? É detalhamento abstrato e minimalista. Em
claro que não. Defendo que nossa condição contraste, o prédio da AT&T tem tratamen-
contemporânea afeta igualmente os to da fachada ligeiramente articulado, com
historicistas e os modernistas. placas de granito rosa cortadas para lembrar
o trabalho romano e gótico em pedra. O
Parte I
edifício da IBM tem o teto plano; o da AT&T,
Sempre fui fascinado pela fase de constru- um frontão. Até recentemente, o prédio da
ção de dois edifícios em Manhattan que fo- IBM era visto como símbolo de uma era
ram erguidos simultaneamente e lado a lado modernista já superada, e o da AT&T como
na Madison Avenue, entre as ruas 50 e 60. a afirmação heróica do novo historicismo
Esses dois arranha-céus, um projetado para pós-modernista que se tornou o estilo
a IBM, e o outro para a AT&T, são quase corporativo dominante dos anos 80. Am-
idênticos em sua estrutura de aço, função e bos os edifícios são quase idênticos em con-
no estilo comercial. A superfície de ambos é teúdo, volume e uso. Menos de 10 anos
presa a suas estruturas por igual técnica depois, a situação se repetiu em Times

Folie P6, Parc de la


Villette Paris, 1985

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 213


Square, com a proposta de uma assim cha- des estruturantes que mantinham o edifício
mada superfície desconstrutivista substituin- de pé. Embora fosse comum aplicar decora-
do uma clássica pós-moderna. Tais exem- ções de vários estilos a essas superfícies, as
plos também se aplicam a casas em East paredes desempenhavam uma função-cha-
Hampton, Long Island, em que os projetos ve estruturante. Normalmente havia uma
de Robert A. M. Stern e Charles Gwathmey conexão entre o tipo de imagem usada e a
frequentemente servem a programas equi- estrutura da parede. Em torno de 1830, a
valentes e, às vezes, aos mesmos clientes. conexão entre imagem, estrutura e método
Um arquiteto é rotulado como historicista, construtivo deixou de existir. Novos méto-
o outro, como modernista – ambos fabri- dos construtivos empregavam armação es-
cantes de imagens elegantes. trutural interna que sustentava o edifício. Seja
na forma de estruturas tipo “armação de
Tal trabalho de superfícies também pode ser balão”, cobertas por uma superfície, ou “ar-
visto em reformas de edifícios, como no mações estruturais”, cobertas por paredes-
Hotel Biltmore em Nova York, cuja fachada cortina, nessas novas técnicas de construção
de tijolos de 1913 foi substituída 75 anos as paredes não desempenhavam mais um
depois por uma parede curtain wall,2 mais papel estruturante: tornaram-se progressiva-
típica de prédios comerciais. Quase simulta- mente ornamentais. Uma grande variedade
neamente, a fachada de ladrilhos brancos dos de estilos se tornou possível graças ao de-
dormitórios do East Campus da Columbia senvolvimento de painéis pré-fabricados,
University foi substituída por uma imitação prontos para serem moldados, pintados ou
da fachada de tijolos de 1913. Esse comen- impressos a fim de refletir qualquer imagem,
tário não é um juízo de valor: tornou-se uma qualquer período.
condição de nossos tempos. Devemos ob-
servar que a administração da Columbia Com as novas superfícies sem corpo, os pa-
University sofreu considerando o que fazer péis de engenheiros e arquitetos tornaram-
com o edifício quando se descobriu que os se cada vez mais separados: o engenheiro
ladrilhos que caíam não poderiam ser repa- cuidava da estrutura, o arquiteto, da superfí-
rados ou substituídos e que a alternativa se- cie. A arquitetura tornava-se uma questão de
ria encontrar 70 milhões de dólares para aparência: a superfície poderia ser românica,
construir um novo dormitório. Ninguém fi- barroca, vitoriana, “vernacular regionalista”,
cou contente com a decisão que a universi- etc. Essa evolução para a permutabilidade
dade teve de tomar – mudar a superfície –, de superfícies coincidiu com o surgimento
mas, se serve de consolo, podemos pensar de novas técnicas de representação visual.
naquela fachada aos pedaços como um sin- A fotografia e a impressão em massa de pa-
toma da nossa condição contemporânea, péis de parede decorativos democratizaram
mais do que como resultado de uma cons- a comercialização de tratamentos de super-
trução imperfeita. fície em arquitetura. E, além disso, a fotogra-
fia aumentou o poder da imagem acima de
“O triunfo do superficial”, como Stuart Ewen qualquer estrutura essencial.
o chama em seu livro recente sobre as polí-
ticas de estilo, All consuming images, não é Estamos falando do século 19, mas as coisas
fenômeno novo, mas os arquitetos ainda têm se intensificaram tanto, que a mudança quan-
que compreender as consequências dessa titativa levou a um salto qualitativo. Com a
separação entre estrutura e superfície. Até fotografia, revistas, televisão e fax, a chama-
o século 19, a arquitetura se valia de pare- da superficialidade tornou-se o sinal de nos-

214 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


sos tempos. Para citar Jean Beaudrillard em mos chamar de “realidade”, é tal, que uma
A transparência do mal, “… as coisas conti- realidade objetiva, única, é cada vez mais di-
nuam funcionando quando a sua ideia já fícil de se conceber. Estamos familiarizados
desapareceu há muito tempo. Elas continuam com o aforismo de Nietzsche em Crepús-
a funcionar com total indiferença a seu pró- culo dos ídolos: “O mundo real, finalmente,
prio conteúdo. Paradoxalmente, elas funcio- se tornará uma ficção”. Inevitavelmente, a
nam até melhor desse modo.” arquitetura e sua percepção se tornarão uma
ficção, tal como outros objetos da realidade
Vistos assim, edifícios modernistas tornaram- contemporânea.
se “melhores” nos anos 30, quando os ideais
sociais começaram a mostrar-se ilusórios e Classicismo eclético, racionalismo, neomo-
finalmente desapareceram. Por extensão, não dernismo, desconstrutivismo, regionalismo
são os edifícios de Richard Meier hoje mais crítico, arquitetura verde, ou, no mundo da
“estéticos” do que os de Le Corbusier? Uma arte, neogeo, novo expressionismo, nova
forma generalizada de estetização de fato se abstração ou figuração – todos coexistem e
deu, trazida pela mídia. Do mesmo modo cada vez mais nos provocam profunda indi-
que os Bombardeiros Stealth foram ferença: indiferença à diferença. Do New
estetizados no pôr do sol televisionado da York Times à Vanity Fair, de P/A e A.D. a
Arábia Saudita e que o sexo é estetizado Assemblage, vemos uma realidade múltipla
nas publicidades, também toda cultura – e, progressivamente baseada em constante
é claro, isso inclui a arquitetura – é agora oscilação de tendências, teorias, escolas,
estetizada, xeroxada. Além disso, a apresen- movimentos e modismos. A questão é: por
tação simultânea dessas imagens leva a uma que se opor a esse mundo mediado? Nos
redução da história a imagens simultâneas: deveríamos opor em nome de alguma reali-
não apenas àquelas da Guerra do Golfo in- dade sólida, unificada? Deveríamos, mais uma
tercaladas com jogos de basquete e comer- vez, ansiar por uma Gesamtkunstwerk3 coe-
ciais, mas também àquelas de nossas revis- rente? Hoje, porém, o projeto do início do
tas de arquitetura e, finalmente, àquelas de século 20 parece o desejo de se restaurar
nossas cidades. uma sociedade na qual cada elemento está
em relação hierárquica fixa com os demais
O apetite da mídia pelo consumo de ima- – um mundo de ordem, de certezas e de
gens arquitetônicas é enorme. E uma permanência.
consequência da mudança de atenção em
direção à superfície foi que muito da história De fato, se a maior parte da arquitetura se
da arquitetura se tornou imagem impressa, tornou superfície, decoração aplicada, super-
a palavra impressa e sua disseminação, e não ficialidade, arquitetura de papel (ou, para usar
o edifício em si. Até a redação deste texto, a celebrada expressão de Venturi “galpão
personalidades influentes na arquitetura – decorado”), o que distingue arquitetura de
Daniel Liebeskind, por exemplo, ou Wolf outras formas de design de outdoors? Ou,
Prix, Zaha Hadid ou Rem Koolhaas – cons- mais ambiciosamente, o que distingue arqui-
truíram relativamente pouco. Nossa geração tetura de edições, layouts, gráficos? Se os
de arquitetos é o tema de inúmeros artigos, assim chamados contextualismos e
mesmo que raramente lhe seja dada a opor- historicismos tipológicos nada são além de
tunidade de construir. Ela domina, ainda, a um conjunto de disfarces oportunos aplica-
informação na mídia. A intensidade dessa dos a uma fórmula pronta – em outras pala-
ofensiva informacional, ou o que podería- vras, uma superfície em um suporte que res-

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 215


peita ou desfaz o volume das construções te estruturante, talvez nos devêssemos livrar
adjacentes –, então como a arquitetura pode completamente dos pilares.
permanecer um meio pelo qual a sociedade
explora novos territórios, desenvolve novo Embora os arquitetos envolvidos pudessem
conhecimento? não professar alguma inclinação em direção
à exploração de novas tecnologias, tais tra-
Parte II balhos costumavam tirar proveito das ino-
vações tecnológicas contemporâneas. Curi-
Conceito I: tecnologias de desfamiliarização osamente, as tecnologias específicas – ar-
Nos últimos anos, pequenos focos de resis- condicionado ou a construção de estruturas
tência começaram a formar-se quando ar- leves, ou modos computadorizados de cál-
quitetos de várias partes do mundo – Ingla- culo – ainda têm de ser teorizadas na cultu-
terra, Áustria, Estados Unidos, Japão (na ra arquitetônica. Enfatizo isso porque outros
maioria das vezes, em culturas pós-industriais avanços tecnológicos, tais como a invenção
avançadas) – começaram a tirar proveito do elevador ou o desenvolvimento da cons-
dessa condição de fragmentação e su- trução em aço no século 19, foram tema de
perficialidade e a voltá-la contra si mesma. inúmeros estudos de historiadores, mas há
Se a ideologia predominante era a da familia- poucos estudos do gênero sobre tecnologias
ridade – familiaridade com imagens conhe- contemporâneas, uma vez que essas
cidas, derivadas do modernismo dos anos tecnologias não necessariamente produzem
20 ou do classicismo do século 18 –, talvez formas históricas.
o papel do arquiteto fosse desfamiliarizar. Se Faço esse desvio pela tecnologia porque ela
o mundo novo, mediado, ecoava e reforça- é inextricavelmente ligada a nossa condição
va nossa realidade desmantelada, talvez, ape- contemporânea: afirmar que a sociedade ago-
nas talvez, se deveria tirar proveito de tal ra diz respeito à mídia e à mediação nos faz
desmantelamento, celebrar a fragmentação conscientes de que a direção tomada pela
ao celebrar a cultura de diferenças, ao ace- tecnologia é menos a dominação da natureza
lerar e intensificar a perda da certeza, do do que o desenvolvimento de informação e
centro, da história. construção do mundo como um conjunto de
imagens. Arquitetos devem mais uma vez
Na cultura, em geral, o mundo da comuni-
entender e tirar partido do uso de tais novas
cação nos últimos 20 anos certamente aju-
tecnologias. Nas palavras do escritor, filósofo
dou na expressão de uma multiplicidade de
e arquiteto francês Paul Virilio, “não estamos
novos pontos de vista sobre a história
mais lidando com a tecnologia da constru-
canônica, dando voz a mulheres, imigrantes,
ção, mas com a construção de tecnologia”.
gays, minorias e várias identidades não oci-
dentais que nunca se estabeleceram confor- Conceito II: o choque “metropolitano”
tavelmente na suposta comunidade. Na ar- mediado
quitetura, em particular, a noção de
desfamiliarização era uma ferramenta clara. A cintilação constante de imagens nos fasci-
Se o projeto de janelas apenas reflete a su- na, tanto quanto fascinava Walter Benjamin
perficialidade da decoração de superfície, em A obra de arte na era de sua reprodutibi-
então deveríamos começar a procurar um lidade técnica. Destesto citar um “clássico”
modo de fazê-lo sem janelas. Se o projeto como esse, mas a análise recente de Gianni
de pilares reflete a convenção de um supor- Vattimo desse texto indicou aspectos que

216 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


são ilustrativos de nossa condição contem- O público em geral – para quem a arquite-
porânea. Quando discutiu a reprodutibilidade tura trata de conforto, de abrigo, de tijolos e
de imagens, Benjamin mostrou que a perda de argamassa – ficará quase sempre do lado
de seu valor de troca, sua “aura”, tornou-as dos tradicionalistas. Para quem, no entanto,
intercambiáveis e, em uma era da pura in- a arquitetura não trata necessariamente de
formação, a única coisa que contava era o conforto e Geborgenheit, mas também de
“choque” – o choque das imagens, seu fator impulsionar a sociedade e seu desenvolvi-
surpresa. Esse fator choque foi o que permi- mento, o artifício do choque pode ser uma
tiu que uma imagem se destacasse: além dis- ferramenta indispensável. Cidades como
so, era também característico de nossa con- Nova York, apesar de – ou talvez por causa
dição contemporânea e dos perigos da vida de – seus sem-teto e do índice de dois mil
na metrópole moderna. Esses perigos resul- assassinatos por ano, tornaram-se o equiva-
taram em constante ansiedade por lente pós-industrial da Grosstadt4 pré-indus-
encontrarmo-nos em um mundo no qual trial de Georg Simmel, que tanto fascinou e
tudo era insignificante e gratuito. A experiên- horrorizou Benjamin. A arquitetura na
cia de tal ansiedade era uma experiência de megalópole pode-se voltar para soluções não
desfamiliarização, de Un-zu-hause-sein, de familiares dos problemas mais do que bus-
Unheimlichkeit, do inquietante. car as soluções reconfortantes da comuni-
dade dominante.
De muitos modos, a experiência estética, de
acordo com Benjamin, consistia em manter Recentemente, vimos novas e importantes
a desfamiliarização viva, em contraste com pesquisas sobre cidades nas quais a fragmen-
seu oposto – a familiarização, a segurança, tação e o deslocamento produzidos pela jus-
Geborgenheit. Gostaria de destacar que a taposição fora de escala de autoestradas,
análise de Benjamin corresponde exatamente shopping centers, arranha-céus e pequenas
ao dilema histórico e filosófico da arquitetu- casas são vistos como sinal positivo da vitali-
ra. A experiência da arquitetura é algo pen- dade da cultura urbana. Em oposição às ten-
sado para desfamiliarizar – digamos, uma tativas nostálgicas de restaurar uma continui-
forma de “arte” – ou, ao contrário, para ser dade impossível de ruas e praças, essas pes-
reconfortante, heimlich, aconchegante – algo quisas implicam fazer do choque urbano um
que protege? Aqui, é claro, podemos cons- evento, que, mediante o conflito e a disjunção,
tatar a oposição constante entre aqueles que intensifica e acelera a experiência urbana.
veem a arquitetura e as cidades como luga-
res de experiência e experimentação, como Retornemos à mídia. Em nossa era de re-
reflexões estimulantes sobre a sociedade produção, vimos como as técnicas para cons-
contemporânea – aqueles que gostam de trução convencionais, de estrutura e reves-
“assombrações”, que desconstroem e timento, correspondem à superficialidade e
autodestroem – e aqueles que veem o pa- à precariedade da cultura midiática, e como
pel da arquitetura como refamiliarização, uma constante expansão da mudança era
contextualização, inserção, em outras pala- necessária para satisfazer às necessidades fre-
vras, aqueles que se descrevem como quentemente banais da mídia. Vimos tam-
historicistas, contextualistas e pós-modernis- bém que endossar essa lógica significa dizer
tas, uma vez que pós-modernismo em ar- que qualquer trabalho é intercambiável com
quitetura hoje tem conotação definitivamen- qualquer outro, tanto quanto o revestimen-
te classicista e historicista. to de um dormitório, que retiramos e subs-

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 217


tituímos por outro. Também vimos que o trutura. Ela deve ser firme – afinal, o que
choque vai contra a nostalgia da permanên- aconteceria com as apólices de seguros (e
cia ou da autoridade, seja na cultura em ge- com as reputações) se a construção ruísse?
ral ou na arquitetura em particular. Depois O resultado é quase sempre uma recusa a
de mais de 50 anos da publicação do texto questionar a estrutura – que deve ser está-
de Benjamin, podemos dizer que o choque vel ou o edifício cai; o edifício, que é ao
ainda é tudo o que nos resta para nos co- mesmo tempo a construção e todo o edifí-
municarmos em uma época de informação cio do pensamento. Pois em comparação
generalizada. Em um mundo muito influen- com a ciência ou a filosofia, a arquitetura
ciado pela mídia, essa necessidade inexorável raramente questiona seus fundamentos.
de mudança não deve ser necessariamente
entendida como negativa. O aumento em O resultado desses “hábitos de pensamen-
mudanças e em superficialidade também sig- to” na arquitetura é que não se espera que
nifica um enfraquecimento da arquitetura a estrutura de uma construção seja questio-
como forma de dominação, de poder e de nada mais do que o mecanismo de uma pro-
autoridade, tal como historicamente tem sido jeção quando se assiste a um filme ou do
nos últimos seis mil anos. que as peças de uma televisão quando se
veem as imagens em sua tela. Críticos em
Conceito III: desestruturação geral questionam a imagem, embora muito
raramente questionem o aparato, a estrutu-
É interessante examinar esse “enfraquecimen- ra. Ainda que, por mais de um século, e em
to” da arquitetura, essa relação alterada entre especial nos últimos 20 anos, tenhamos vis-
estrutura e imagem, estrutura e superfície, à to o início de tal questionamento. A filosofia
luz de um debate que ressurgiu recentemen- contemporânea tocou essa relação entre
te nos círculos de arquitetura – a saber, es- moldura6 e imagem – aqui, a moldura é vista
trutura versus ornamento. Desde o como a estrutura, a armação; e a imagem,
Renascimento, a teoria arquitetônica sempre como o ornamento. Jacques Derrida, em
distinguiu estrutura e ornamento, e demons- Parergon, faz esse questionamento entre
trou a hierarquia desses elementos. Citando moldura e imagem como tema. Embora
Leon Battista Alberti, “o ornamento caracte- possamos argumentar que a moldura de uma
riza-se por ser um adendo ou um comple- pintura não equivale à armação de um edifí-
mento”; é pensado para ser um acréscimo e cio – uma sendo exterior ou hors d’oeuvre,
não deve desafiar ou enfraquecer a estrutura. e a outra interior – eu manteria isso apenas
O que significa essa hierarquia hoje, quando como uma objeção superficial. Tradicional-
a estrutura frequentemente permanece a mente, tanto moldura como estrutura de-
mesma – um grid sem fim, neutro e sempenham a função de “manter unido”.
repetitivo? Na maioria das construções atuais Conceito IV: sobreposição
neste país,5 a prática estrutural é rigorosa-
mente similar em conceito: armação básica Esse questionamento da estrutura levou a um
em madeira, aço ou concreto. Como já apon- aspecto particular do debate contemporâneo
tado, a decisão de se construir a armação sobre a arquitetura, a saber, a desconstrução.
em qualquer um desses materiais costuma Desde o início, as polêmicas da desconstrução,
ser deixada para os engenheiros e econo- juntamente com muito do pensamento pós-
mistas, mais do que para os arquitetos. Não estruturalista, interessaram a um pequeno
se espera que o arquiteto questione a es- número de arquitetos porque eles pareciam

218 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


questionar os próprios princípios de fascinação por imagens complexas que eram
Geborgenheit que a principal corrente pós- simultaneamente “ambos” e “nem um, nem
modernista tentava promover. Quando en- outro” – imagens que eram a justaposição e
contrei Jacques Derrida pela primeira vez, para a sobreposição de muitas outras imagens. A
tentar convencê-lo a tratar da arquitetura em sobreposição tornou-se um artifício-chave,
seu trabalho, ele me perguntou: “Mas como o que pode ser visto em meu próprio traba-
poderia um arquiteto estar interessado em lho. Em The Manhattan Transcripts (1981)
desconstrução? Afinal, desconstrução é ou The Screenplays(1977), os dispositivos
antiforma, anti-hierarquia, antiestrutura, o usados nos primeiros episódios eram em-
oposto de tudo o que a arquitetura repre- prestados da teoria do cinema e do nouveau
senta.” “Exatamente por isso”, respondi. roman. Em Transcripts, a distinção entre es-
trutura (ou moldura), forma (ou espaço),
Com o passar dos anos, as diferentes inter- evento (ou função), corpo (ou movimento)
pretações que os diversos arquitetos deram e ficção (ou narrativa) era sistematicamente
à desconstrução tornaram-se mais variadas obscurecida por sobreposição, colisão,
do que a teoria da desconstrução, de distorção, fragmentação, e assim por diante.
diversificadas leituras, jamais poderia espe- Encontramos a sobreposição usada de modo
rar. Para um arquiteto, tratava-se de dissi- bastante notável no trabalho de Peter
mulação; para outro, de fragmentação; para Eisenman, em que as camadas sobrepostas
outro ainda, de deslocamento. Novamente para seu projeto Romeo and Juliet levaram
citando Nietzsche, “não há fatos, apenas uma paralelos literários e filosóficos a extremos.
infinidade de interpretações”. E, logo, talvez Essas realidades diferentes desafiaram qual-
porque muitos arquitetos compartilhassem quer interpretação única, constantemente
a insatisfação com o Geborgenheit dos tentando problematizar o objeto
“historicistas pós-modernistas” e igual fasci- arquitetônico, cruzando as fronteiras entre
nação pela vanguarda do princípio do sécu- cinema, literatura e arquitetura (“Era uma
lo 20, o desconstrutivismo nasceu – e ime- peça de teatro ou de arquitetura?”).
diatamente foi chamado de “estilo”; precisa-
mente o que esses arquitetos tentavam evi- Muito desse trabalho tirou proveito do am-
tar. Qualquer interesse no pensamento pós- biente universitário e da cena artística – suas
estruturalista e na desconstrução tem ori- galerias e publicações – nos quais o cruza-
gem no fato de que eles desafiam a ideia de mento de diferentes campos permitiu que
conjunto único e uniforme de imagens, a ideia arquitetos diluíssem a distinção entre esti-
de certeza e, é claro, a ideia de uma lingua- los, constantemente questionando a disci-
gem identificável. plina da arquitetura e suas hierarquias. Se,
contudo, eu fosse examinar tanto meu tra-
Arquitetos teóricos – como eram chama- balho dessa época como o de meus cole-
dos – queriam confrontar as oposições bi- gas, eu diria que ambos se desenvolveram a
nárias da arquitetura tradicional, a saber, for- partir de uma crítica da arquitetura, da natu-
ma versus função ou abstração versus figu- reza da arquitetura. Ela desmontou concei-
ração. No entanto, eles também queriam tos e se tornou notável ferramenta
desafiar as hierarquias implícitas escondidas conceitual, mas não poderia atingir aquilo que
nessas dualidades, tais como “a forma segue justamente faz o trabalho de arquitetos di-
a função” e “o ornamento é subordinado à ferente, de modo fundamental, do trabalho
estrutura”. Esse repúdio à hierarquia levou à de filósofos: materialidade.

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 219


Assim como há uma lógica das palavras ou parte da teoria de Sergei Eisenstein sobre a
dos desenhos, há uma lógica dos materiais, montagem do filme.
e elas não são iguais. E não importa o quan-
to elas sejam subvertidas, algo no fim das Conceito V: cruzamento de programas
contas resiste. Ceci n’est pas un pipe.7 Uma
A arquitetura sempre tratou do evento que
palavra não é um bloco de concreto. O con-
acontece em um espaço tanto como do es-
ceito de cachorro não late. Citando Gilles
paço em si. A rotunda da Columbia
Deleuze, “os conceitos do cinema não são
University já foi uma biblioteca; já foi usada
dados no cinema”. Quando metáforas e
como salão de banquetes; é normalmente o
catacreses se transformam em edifícios, nor-
local em que ocorrem as palestras da insti-
malmente se transformam em cenários de
tuição; algum dia poderá satisfazer à neces-
contraplacado ou papel machê: mais uma vez,
sidade de se ter um espaço esportivo na
o ornamento. Colunas de gesso acartonado
universidade. Que piscina maravilhosa a
que não tocam o chão não são estruturais,
rotunda seria! Podem pensar que estou sen-
são ornamento. Sim, ficção e narrativa fasci-
do jocoso, mas, nos dias de hoje, em que
naram muitos arquitetos, talvez porque, di-
estações de trem se tornam museus, e igre-
riam nossos inimigos, nós entendíamos mais
jas, discotecas, uma posição está sendo to-
de livros do que de edifícios.
mada: a total permutabilidade entre forma e
Não disponho do tempo necessário para função, a perda das relações tradicionais,
discorrer sobre uma diferença relevante en- canônicas, de causa e efeito, tais como fo-
tre as duas interpretações do papel da fic- ram santificadas pelo modernismo. A fun-
ção na arquitetura: as assim chamadas fren- ção não segue a forma; a forma não segue a
te historicista pós-modernista e frente função – ou ficção. No entanto, elas certa-
desconstrutivista neo-modernista (os rótu- mente interagem. Mergulhar nessa grande pis-
los não são meus). Embora ambas tenham cina azul da rotunda – uma parte do choque.
origem em interesses iniciais em linguística e Se o choque não pode mais ser produzido
semiologia, o primeiro grupo considerava a pela sucessão e justaposição de fachadas e
ficção e a narrativa partes do domínio das lobbies, talvez ele possa ser produzido pela
metáforas, de uma nova architecture justaposição de eventos que ocorrem por
parlante, de forma, e o segundo grupo en- trás dessas fachadas e desses espaços. Se “a
tendia ficção e sinopses como análogas a respectiva contaminação de todas as cate-
programas e função. gorias, as constantes substituições, a confu-
são de estilos” – como descritas igualmente
Eu gostaria de concentrar-me na segunda por críticos de direita e de esquerda, de
visão. Mais do que manipular as proprieda- Andreas Huyssens a Jean Baudrillard – con-
des formais da arquitetura, deveríamos in- figuram a nova direção de nossos tempos,
vestigar o que de fato acontece dentro de elas podem muito bem ser usadas em nos-
edifícios e cidades: a função, o programa, a so proveito, em proveito de um rejuvenes-
dimensão propriamente histórica da arqui- cimento geral da arquitetura. Se arquitetura
tetura. O livro Análise estrutural da narrati- é, ao mesmo tempo, conceito e experiên-
va, de Roland Barthes, é fascinante nesse cia, espaço e uso, estrutura e imagem super-
sentido, já que pode ser diretamente trans- ficial – de modo não hierárquico –, então a
posto numa sequência tanto espacial como arquitetura deveria parar de separar essas
programática. Isso também se aplica a boa categorias e, ao contrário, fundi-las em com-

220 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


binações de programas e espaços sem pre- quicas entre forma e função deixam de exis-
cedentes. “Cruzamento de programas”, tir. Essa combinação improvável de eventos
“transprogramas”, “desprogramas”: desenvol- e espaços era carregada de capacidades sub-
vi esses conceitos em outras ocasiões, suge- versivas, pois desafiavam tanto a função
rindo o deslocamento e a mútua contami- como o espaço. Tal confronto é similar ao
nação dos termos. encontro surrealista de uma máquina de
costura e um guarda-chuva em uma mesa
Conceito VI: eventos: o turning point de dissecação ou, mais próximo de nós, a
descrição por Rem Koolhaas do Downtown
Meu próprio trabalho, nos anos 70, cons-
Athletic Club: “Comer ostras com luvas de
tantemente reiterava que não havia arquite-
boxe, nu, no enésimo andar.”
tura sem eventos, sem ação, sem atividades,
sem funções. A arquitetura era vista como a Encontramos isso hoje em Tóquio, com di-
combinação de espaços, eventos e movimen- versos programas espalhados pelos andares
tos, sem nenhuma hierarquia ou precedên- dos arranha-céus: uma loja de departamen-
cia quanto a esses conceitos. A relação hie- tos, um museu, uma academia de ginástica e
rárquica de causa e efeito entre função e uma estação de trem com uma pequena
forma é uma das grandes certezas do pen- quadra de golfe no terraço. E encontrare-
samento sobre arquitetura – aquele que jaz mos também nos programas do futuro, em
por trás daquela idée reçue tranquilizadora que aeroportos serão simultaneamente es-
de vida em comunidade que nos diz que vi- paços de diversão, espaços esportivos, cine-
vemos em casas “projetadas para satisfazer mas, etc. Independentemente de se tratar
a nossas necessidades”, ou em cidades pla- do resultado de combinações do acaso ou
nejadas como máquinas de morar. de serem devidas à pressão do aumento
Conotações Geborgenheit dessa noção vão constante do preço dos terrenos, essas re-
contra o “prazer” real da arquitetura, nessa lações não causais entre forma e função ou
inesperada combinação de termos, e tam- entre espaço e ação vão além de encontros
bém contra a realidade da vida urbana con- poéticos de amantes improváveis. Michel
temporânea em suas direções mais estimu- Foucault, de acordo com citação feita por
lantes e inquietantes. Portanto, em trabalhos John Rajchman, expandiu o uso do termo
como The Manhattan Transcripts, a defini- evento de tal modo, que foi além da ativida-
ção de arquitetura não poderia ser forma nem de ou ação isolada e mencionou “eventos
paredes, mas tinha de ser a combinação de do pensamento”. Para Foucault, um evento
termos heterogêneos e incompatíveis. não é simplesmente uma sequência lógica
de palavras ou ações, mas “o momento da
A inserção dos termos evento e movimen- erosão, colapso, questionamento ou
to foi influenciada pelo discurso situacionista problematização das próprias premissas de
e pela era 68. Les événements, como eram um esquema dentro do qual um drama pode
chamados, não configuravam eventos ape- acontecer – ocasionando a chance ou pos-
nas em ação, mas também em pensamento. sibilidade de outro esquema diferente”. O
Levantar uma barricada (função) em uma rua evento aqui é visto como um turning point
de Paris (forma) não é de modo algum equi- – não uma origem nem um fim –, em oposi-
valente a ser um flaneur (função) nessa mes- ção a premissas tais como a forma segue a
ma rua (forma). Jantar (função) na rotunda função. Quero aqui propor a ideia de que o
(forma) não equivale a nadar ou ler nesse futuro da arquitetura está na construção de
mesmo lugar. Aqui todas as relações hierár- tais eventos.

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 221


Igualmente importante é a espacialização que heterogeneidade da definição de arquitetu-
ocorre com o evento. Tal ideia diverge con- ra – espaço, ação e movimento – a transfor-
sideravelmente do projeto modernista, que ma nesse evento, nesse lugar de choque ou
procurou afirmar certezas em uma utopia no lugar da invenção de nós mesmos. O
unificada, ao contrário de nosso atual evento é o lugar em que a reconsideração e
questionamento, de terrenos múltiplos, frag- a reformulação de diferentes elementos da
mentados, deslocados. arquitetura, muitos dos quais provocaram ou
contribuíram para as desigualdades sociais
Alguns anos depois, em ensaio sobre as folies contemporâneas, podem levar a alguma so-
do Parc de la Villette, Jacques Derrida ex- lução. Por definição, é o lugar da combina-
pandiu a definição de evento, chamando-o ção de diferenças.
de “a emergência de uma multiplicidade dis-
crepante”. Eu havia constantemente insisti- Isso não acontecerá pela imitação do passa-
do, em nossas discussões e em outras ocasi- do e dos ornamentos do século 18. Tam-
ões, na ideia de que esses pontos chamados bém não acontecerá por simplesmente se
de folies eram pontos de atividades, de pro- comentar, por meio do projeto, os vários
gramas, de eventos. E Derrida a desenvol- deslocamentos e incertezas de nossa condi-
veu, propondo a possibilidade de uma “ar- ção contemporânea. Não acredito que seja
quitetura do evento” que iria “eventualizar” possível, nem faz sentido, projetar edifícios
ou abrir aquilo que, em nossa história ou que formalmente tentem dissolver estrutu-
tradição, é entendido como fixo, essencial, ras tradicionais, ou seja, que disponham for-
monumental. Ele havia também sugerido mas que estejam em algum lugar entre abs-
antes que a palavra “evento” tinha raízes tração e figuração, ou entre estrutura e or-
iguais às de “invenção”, daí a noção do even- namento, ou que tenham sido cortadas e
to, da ‘ação-no-espaço’, do turning point, a deslocadas por razões estéticas. A arquite-
invenção. Quero aqui associá-la à noção de tura não é arte ilustrativa; ela não ilustra
choque; um choque que, para ser efetivo em teorias. (Não acredito que se possa proje-
nossa cultura mediada, em nossa cultura de tar a desconstrução.) Não se pode projetar
imagens, deve ir além da definição de Walter uma nova definição de cidades e sua arqui-
Benjamin e combinar a ideia de função ou tetura. Mas podem-se projetar as condições
ação com a ideia de imagem. De fato, a ar- que tornarão possível que essa sociedade
quitetura se encontra em situação singular: não hierárquica, não tradicional, aconteça. Ao
é a única disciplina que, por definição, com- compreenderem a natureza de nossas cir-
bina conceito e experiência, imagem e uso, cunstâncias contemporâneas e os processos
imagem e estrutura. Filósofos podem escre-
midiáticos que as acompanham, arquitetos
ver, matemáticos podem desenvolver espa-
têm a possibilidade de construir as condi-
ços virtuais, mas arquitetos são os únicos
ções que criarão uma nova cidade e novas
prisioneiros dessa arte híbrida, na qual a ima-
gem quase nunca existe sem alguma ativida- relações entre espaços e eventos.
de a ela combinada. A arquitetura não trata das condições de
Meu argumento é que, longe de ser um cam- projeto, mas do projeto de condições capa-
po que sofre da incapacidade de questionar zes de deslocar os aspectos mais tradicio-
suas estruturas e fundamentos, a arquitetu- nais e reacionários de nossa sociedade, e si-
ra é o campo no qual se darão as maiores multaneamente reorganizar esses elementos
descobertas no próximo século. A própria do modo mais libertador possível. De ma-

222 ARTE & E N S A I O S - N. 2 0 - J U L H O DE 2010


neira que nossa experiência se torne a ex- Bernard Tschumi é arquiteto e teórico. Foi professor na
periência de eventos organizados por meio Architectural Association in London, na Princeton
da arquitetura, e cuja estratégia é pensada University e na Cooper Union em Nova York e atual-
mente leciona na Columbia University. Alguns de seus
também por seu intermédio. Estratégia é projetos mais conhecidos são o Parc de La Villette, em
palavra-chave em arquitetura hoje. Não mais Paris, e o Novo Museu da Acrópole, em Atenas. Publi-
grandes planos, não mais localizações em cou diversos livros com textos teóricos e a respeito de
pontos fixos, mas uma nova heterotopia. É sua prática, como Architecture and Disjunction (MIT
para chegar a isso que nossas cidades de- Press, 1994), The Manhattan Transcripts (Academy
Editions e St. Martin’s Press, 1981 e 1994) e a série Event-
vem empenhar-se e é isso o que os arquite- Cities (MIT Press, 1994, 2000, 2005).
tos devem ajudá-las a atingir, ao intensificar
a rica colisão entre eventos e espaços. Tó- Notas
quio e Nova York são só aparentemente
1 Em alemão, sentimento de proteção e segurança. (N.R.)
caóticas – marcam, no entanto, o apareci-
mento de uma nova estrutura urbana, uma 2 Termo inglês que significa a fachada de vidro dos prédios
nova urbanidade. Seus confrontos e combi- modernos. (N.R.)
nações de elementos podem proporcionar 3 Obra de arte total. (N.T.)
o evento, o choque que, espero, faça da ar- 4 Em alemão, metrópole. (N.R.)
quitetura de nossas cidades o turning point
na cultura e na sociedade. 5 Estados Unidos. (N.T.)
6 Frame no original, podendo ser tanto armação, estrutura,
Tradução: Ana Mannarino como moldura. (N.T.).
Revisão técnica: Paulo Venancio Filho 7 Título de quadro de René Magritte sobre o qual Michel
Foucault escreveu um ensaio. (R.R.)
Tschumi, Bernard. “Six concepts”. In:
Architecture and disjunction. Cambridge: MIT
press, 1994.

TEMÁTICAS • BERNARD TSCHUMI 223

Você também pode gostar