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Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Marlene de Souza Dozol
Univ. Federal de Sta Catarina
Rua Frederico José Peres, 67
88035-340 – Florianópolis – SC
e-mail: dozol.carreirao@uol.com.br
*
Trabalho apresentado, em primeira
versão, na 28ª Reunião Anual da
ANPED, realizada em outubro de
2005, na cidade de Caxambu.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007 311
The pedagogical face of Eros
Abstract
Keywords
Contact:
Marlene de Souza Dozol
Universidade Federal de Santa Catarina
Rua Frederico José Peres, 67
88035-340 – Florianópolis – SC
e-mail: dozol.carreirao@uol.com.br
*
A first version of this work was
presented to the 28th ANPED Annual
Meeting at Caxambu in October 2005.
312 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.2, p. 311-322, maio/ago. 2007
No texto “Tabus que pairam sobre a pro- mente difícil determinar, e de um elemento
fissão de ensinar”, Adorno (1995) põe em relevo relativo, circunstancial, que será, se quiser-
as motivações subjetivas ou inconscientes da mos, sucessiva ou combinadamente, a épo-
aversão à docência e o como a sedimentação ca, a moda, a moral, a posição. Sem esse
coletiva de representações orientadas por precon- segundo elemento, que é como o invólucro
ceitos psicológicos e sociais transforma-se em aprazível, palpitante, aperitivo do divino
forças reais que contribuem para o agravamento manjar, o primeiro elemento seria indigerível,
da crise da Educação nos tempos atuais. Dentre inapreciável, não adaptado e não apropriado
as representações comentadas, a figura do pro- à natureza humana. Desafio qualquer pessoa
fessor como alguém destituído de qualquer di- a descobrir qualquer exemplo de beleza que
mensão erótica sugere uma reflexão que busque não contenha esses dois elementos. (p. 10)
recuperar, em algum tempo, o Eros especificamen-
te pedagógico como uma das matrizes da cons- Mesmo considerando o binômio eterno/
tituição do educador que, se não prevaleceu na efêmero na composição de qualquer beleza, cabe
história, coabita, junto com os preconceitos, o uma pergunta a Baudelaire: seria o primeiro ele-
imaginário tecido em torno de sua figura. mento tão indigerível e tão inapreciável assim?
O presente trabalho é antes de tudo um
discurso afirmativo sobre o ato de educar e sobre O porquê do mito
quem educa. Busca uma tradução da mestria e
da figura do mestre em sua poesia e escolhe o Na versão de Eliade (1992), o mito conta
mito grego de Eros como inspiração. A intenção uma história sagrada, um acontecimento primor-
é a de evidenciar o potencial ilustrativo do mito, dial que teve lugar no começo do tempo, tendo
no sentido exemplar de uma beleza intemporal por personagens deuses e heróis civilizadores.
a ser contemplada no que diz respeito ao tema Trata-se, então, de narrações que têm como
em foco. No entanto, se um mito pode inspirar objeto a criação, o como qualquer coisa foi efe-
o que há de permanente na clássica ação de tuada e começou a ser: “Cada mito mostra como
ensinar, é preciso significá-lo no interior da uma realidade veio à tona, seja ela a realidade
paisagem contemporânea. Daí a necessidade de total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma
refletir os elementos do transitório, do efêmero ilha, uma espécie vegetal, uma instituição huma-
ou do contingente. Trata-se, pois, de encontrar na” (p. 82; grifo meu). Estabeleceu-se, no interi-
uma forma de expressar o movimento de guar- or desse começo de tudo, os modelos exempla-
dar e transformar a clássica ação de ensinar. res que servem como parâmetro para as ações
Sendo assim, não é o caso aqui de defender uma humanas, derivando daí uma das funções do
pura e simples reedição do passado da mestria mito: “A função mais importante do mito é, pois
visto em seu aspecto poético e ideal, e sim de ‘fixar’ os modelos exemplares de todos os ritos e
estabelecer, para mais adiante, “[...] encontros de todas as atividades humanas significativas: ali-
criativos com o passado” (Berman, 1986, p. 315), mentação, sexualidade, trabalho, educação etc.”
no sentido de oferecer elementos para o diálo- (p. 82; grifo meu). E prossegue o autor:
go necessário entre o educador e o seu próprio
tempo. Talvez, as palavras de Baudelaire (1996) Comportando-se como ser humano plena-
sejam oportunas para expressar essa tensão entre mente responsável, o homem imita os ges-
o passado e o presente quando se trata de bus- tos exemplares dos deuses, repete as ações
car algo de belo: deles, quer se trate de uma simples função
fisiológica, como a alimentação, quer de
O belo é constituído por um elemento eter- uma atividade social, econômica, cultural ,
no, invariável, cuja quantidade é excessiva- militar etc. (p. 82; grifo meu)
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Essa espécie de “história espiritual do No tocante à Educação, isso se aplica tanto
mundo” (Grimal, 1987, p. 7), plena de relações às sociedades arcaicas, que depositam no Xamã a
entre o real e o imaginário, remete à eterna luta função de formar homens, como àquelas que pos-
entre o Logos e o Mythos, entre a razão e a teriormente encontravam-se em pleno “[...] proces-
fantasia. Comumente o mito é associado a uma so de racionalização progressiva da concepção re-
maneira pré-científica de procurar origens e ligiosa do mundo implícita nos mitos” (Jaeger,
causações, e raramente é compreendido como 1995, p. 192), a exemplo da sociedade grega. Ain-
uma dimensão da verdade, mesmo que não da assim, a tradição oral e os frutos literários inspi-
identificada com a verdade científica. A esse rados nos mitos e adequados à época não deixaram
respeito, Ricoeur (1988), quando escreve sobre de cumprir suas intenções significantes.
a interpretação filosófica do mito, propõe a
seguinte questão: O mito de Eros e seu
significado pedagógico
A questão é, finalmente saber se a verdade
científica é toda verdade, ou se alguma Antes de tudo, convém lembrar, segundo
coisa é dita pelo mito que não poderia ser a versão que Platão (1971) nos oferece no Ban-
dita de outra forma. (p. 11) quete —, a que, pela beleza e significado, bem
pode ser comparada a uma iguaria — as circuns-
A intenção significante do mito, segundo tâncias do nascimento de Eros e sua filiação.
Ricoeur (1988), pode ser classificada em figurati- Eros nasce numa festa na qual os deu-
va — ou representativa —, paradigmática e afetiva. ses comemoram o nascimento de Afrodite. Seu
A primeira, a figurativa ou representati- vínculo com a deusa do amor torna-o compa-
va, consiste na função de instaurar modelos de nheiro e servo da Beleza. Gerado nesse dia, é
ação; a segunda, a paradigmática, trata da filho de Pênia (a Pobreza) e Poros (o Recurso).
coesão entre a narração das origens e do tem- Por conta de seus progenitores, Eros é duplo.
po presente, uma vez que o mito permite ser Da mãe, herda a carência, a falta e a busca. Do
reativado no rito; e a terceira, a afetiva, ligada pai, o poder ou a possibilidade de saciar a
a fatores essencialmente subjetivos, possui a fome, suprir a falta, urdir estratégias para satis-
capacidade “[...] de criar aquilo a que podemos fazer suas necessidades e seus desejos. No
chamar o núcleo mítico-poético da existência entanto, essa satisfação, que nunca é definiti-
humana” (Ricoeur, 1988, p. 29). va, mas sempre provisória, impõe a Eros uma
O significado conjunto das três inten- espécie de sina: a de viver a festa de uma fome
ções é assim descrito pelo autor: saciada, de uma falta suprida, de um prazer
lúdico propiciado pela estratégia acertada e a
Neste sentido pode dizer-se que os mitos de morrer em seguida, tendo que sentir e reco-
de origem têm eles próprios uma dimensão meçar tudo para novamente viver. Daí seu des-
sapiencial porque compreender como as tino de andarilho (Pessanha apud Civita, 1973).
coisas começaram é saber o que elas agora O que sugere o mito na perspectiva filo-
significam e que futuro continuam a ofere- sófica? Muito, sem dúvida. A começar pela ima-
cer ao homem. (1988, p. 29) gem de Eros como um astuto caçador de saber.
Sabe que não é sábio (o que, por outro lado,
É o mesmo autor que, recorrendo a indica sabedoria), mas deseja e se esforça para
Jean-Paul Audet, expressa um significado mais conhecer. Etimologicamente, eros vem do ver-
profundo do mito: “[...] uma ‘apropriação bo grego érasthai, que significa desejar arden-
totalizante’ da herança total de uma comunida- temente. Quando filho de entidades menores,
de” (1988, p. 30). Eros não é propriamente um Deus, mas uma
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diferentes e contrárias, integrando-as numa só e Tão logo nascem, as musas instauram o
mesma unidade. (Brandão, 1993, p. 189) coro e a festa, acompanhadas das Graças
(Khárites) e o Desejo (Hímeros). Este tam-
Sua condição de causa da fome e seu bém participa do séqüito de Afrodite, onde
poder aglutinador de idéias e pessoas, escolhen- emparelha com Eros (v. 201). A arte das
do, no plano do humano, a linguagem como uma musas não é apenas persuasão [...], mas a
das setas disparadas por seu arco, em muito su- sedução, a envolvência da beleza e do ape-
gerem a arte da mestria. Pois bem, é a metáfora lo sensual. Acompanha-as o Desejo, que elas
de linguagem como seta disparada do arco de despertam e o companheiro deste, Eros, in-
Eros que pretendo examinar daqui em diante. vade os ouvintes através da força da voz
Lembremos primeiramente as relações de delas, que pela presença de Eros é uma voz
Eros com as musas. ‘amável’ [...] e ‘bem-amável’ [...]. (p. 33)
Ao analisar a Teogonia, Torrano (1995)
discorre sobre as funções das musas: Sob o patrocínio da Memória, reis e poe-
tas são artífices da palavra. Observem-se os ver-
As deusas musas cantam no Olimpo para sos da Teogonia:
deleite de Zeus o mesmo canto que o aedo
servo das musas, pela outorga que estas lhe Pelas musas e pelo golpeante Apolo há can-
fizeram, canta — não só para o deleite dos tores e citaristas sobre a terra, e por Zeus,
ouvintes — mas também para a manutenção reis. Feliz é quem as musas amam, doce de
da vida, para a vivificante comunhão com sua boca flui a voz. (v. 95)
o Divino, para a transmissão do Saber e
para que se possa ter uma visão da totali- O uso da palavra requer especialização e
dade do Ser. (p. 95; grifo meu) qualificação e é isso que distingue reis e poetas
dos demais. Para serem ouvidos, precisam seduzir,
Por estarem acompanhados pelas musas, e quando seduzem, transformam-se em autorida-
os aedos são agraciados por Mnemósine, que re- des. Nas palavras de Torrano (1995): “[...] a auto-
presenta o poder do espírito sobre a matéria ins- ridade de ambos se estriba na sedução e no fas-
tantânea e funda toda a inteligência. Mnemósine cínio que através da Palavra exercem sobre seu
também quer significar memória universal, a lem- ‘entourage’” (p. 37). Ora, lembrar o que passou,
brança que contesta Cronos (o Tempo) — que a transmitir o saber de maneira sedutora e suscitar
tudo devora: seres, momentos, destinos, sem desejo em relação ao conhecimento são, sem
qualquer apego ao que passou — e luta para dúvida, atribuições clássicas da mestria. E nesse
preservar a lúcida matéria sobre a qual reina. aspecto, mesmo que soterrada sob sua atual iden-
No entanto, não basta que o canto lembre, tidade profana, há um quê de sagrado em seu
mas que o canto seduza pela palavra proferida: exercício. Não só nas narrativas míticas, como tam-
bém na longa história que preside a configuração
É preciso que primeiro o nome das Musas das mais variadas modalidades de mestria, nunca
se pronuncie e as musas se apresentem foi ignorado o poder da palavra. Desde seus inícios,
com numinosa força que são das palavras assistimos a uma polifonia de vozes que se preten-
cantadas, para que o canto se dê em seu dem educativas e ensinantes. Detenhamo-nos um
encanto. (Torrano, 1995, p. 21) pouco mais nos mitos.
A associação entre musas e aedos com a
As forças que movimentam a sedução figura do mestre quer apenas indicar que tan-
exercida pelas musas na Teogonia são assim to a memória como a sedução são vitais para
traduzidas, ainda por Torrano (1995): o exercício de um determinado tipo de mestria.
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que Sócrates, ao dizer, diz que quem está di- do de sua inteligência e afastado da divina fi-
zendo é o seu parceiro ou, então, leva-o a dizer losofia . Tais palavras indicam mais uma faceta
aquilo que tem em mente. De fato, as chances nociva que pode ganhar a linguagem quando
do interlocutor são mínimas. Nesse sentido, exercida pelos ditames da retórica, pela adulação
cabe perguntar sobre sua autonomia de pensa- e pela promessa de proteção sob o comando do
mento e ainda se não haveria possíveis desvi- desejo egoísta e da volúpia do apaixonado. Mais
os além do caminho ditado pelas acrobacias adiante, Sócrates comenta: “[...] o lisonjeiro, por
racionais do mestre. De qualquer modo, é bom exemplo, é horrível monstro e traz grandes preju-
não esquecer que o artifício utilizado forja ízos, mas, simultaneamente, a natureza lhe conferiu
conclusões de caráter provisório, ficando as certo atrativo que não deixa de ter seu encanto”
questões exasperadamente em aberto. O cará- (Platão, 1971, p. 214). Encantos da lisonja, encan-
ter permanentemente provisório da linguagem tos da verdade, a escolha é de cada um.
socrática é seu componente atrativo, embora se Sócrates tem a pretensão de encantar
aplique na busca do invariável ou do eterno. com a busca da verdade, mesmo que o resul-
Em todo o caso, é essa sua forma aporética tado seja a dúvida. Seu poder de seduzir é
que certamente sinaliza para a intenção de uma metaforizado, aqui e ali, por aqueles que se
busca compartilhada, na qual mestre e discípulo submetem ao seu exame. No Mênon, é compa-
experimentam uma erótica diferenciada: a do rado a uma tremelga e, no Banquete, Alcebíades
primeiro marcada pelo jogo da condução estra- o associa às estátuas de silenos, ao sátiro
tégica e a do segundo sentida em função da Mársias e às sereias, símbolos que lhe traduzem
exigência de abandono do hábito e da acomo- a figura de Sócrates.
dação em nome do desejo de ir além. Na metáfora da tremelga , Sócrates é
Ao mesmo tempo em que a linguagem, em assim referido por Mênon:
Sócrates, exclui e não exclui a verdade absoluta
— pois se apenas não a excluísse, estaria morta a [...] eu sabia que nada mais fazes do que
vontade da procura —, condena a forma de duvidar e despertar dúvidas no espírito dos
bajulação que facilmente pode adquirir a língua outros! E é por isso que agora, segundo
falada. Também não é possível, em Sócrates, me parece, me tens enganado e enfeitiçado
entendê-la como um artifício para iludir. e embruxado por ti, e cheio de dúvidas! Se
Sócrates não fala o que agrada, mas me permites uma brincadeira direi que pelo
aquilo que precisa ser dito com o fim de levar teu corpo e por muitas outras característi-
os homens a operarem as transformações ne- cas de teu ser, fica sabendo que és muito
cessárias em si próprios. Tanto que, na Apolo- parecido com a tremelga do mar: esta com
gia, no momento no qual os juízes o condenam efeito, entorpece a quem quer que se lhe
à morte, o filósofo afirma: aproxime e toque e parece que me entorpe-
ceste a mim! (Platão, 1971, p. 83)
E, contudo, fui apanhado em dificuldades,
não de palavras, decerto, mas de ousadia e Ao ser tocado, esse peixe produz descar-
desvergonha e falta de vontade de vos di- gas elétricas, entorpecendo quem o toca. Mênon,
zer aquelas coisas que mais vos agradaria ao tocar Sócrates, se vê enfeitiçado pela dúvida.
ouvir. (Platão, 1993, p. 96) Note-se que Sócrates admite a comparação se, ao
entorpecer os outros, a tremelga entorpecer a si
No Fedro, em seu primeiro discurso so- mesma, o que lhe confere certo encanto, já co-
bre Eros, Sócrates chama a atenção do jovem nhecido como a sua estudada modéstia.
que dá nome ao diálogo quanto ao risco do O feitiço da dúvida é aqui entendido
amado, ao ser seduzido pelo amante, ser priva- como um bem. Depois de examinar o escravo
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Uma outra face do Eros pedagógico. Aquela que mento central da sedução sofista. Do tipo per-
se revela pela promessa que o mestre faz ao dis- suasiva, acredita-se capaz de forjar uma segun-
cípulo de ensinar-lhe algo. Por um discurso-monó- da natureza, mais bela, fruto da linguagem.
logo, artefato da linguagem, que convida a razão A prática pedagógica que tradicional-
e o sentimento alheios a uma aventura do pensa- mente se erigiu pelo discurso tem sido alvo de
mento, sem preconceitos ou reservas quanto aos duras críticas por parte das referências moder-
tipos de saberes. Por uma fala que conduz as nas e contemporâneas. Não raras vezes assisti-
potências internas a remexerem-se em silêncio. E, mos a representações literárias e imagens cine-
é claro, por um discurso que também poderá es- matográficas nas quais o professor aparece
tar repleto de ciladas, dada a sua sinuosidade. comicamente como uma caricatura que fala, de
No entanto, deixemos a sinuosidade dos modo monótono e sem parar, a alunos cujos
sofistas por um instante e atentemos para o tipo rostos oscilam entre o tédio e o escárnio.
de Eros discursante inaugurado por eles e que se Se, no entanto, recuperarmos o núcleo ori-
constituiu em força modelar para a pedagogia que ginal das teorias educacionais que têm o discurso
se erigiu aos moldes da tradição. Mestres itinerantes como principal aliado, esse ponto de vista pode
de retórica e oratória atraíam governantes, políti- ser relativizado. Podemos encontrar, até mesmo
cos e cidadãos em geral com o brilho de seus naqueles modelos pedagógicos que encarnam o
ensinamentos, suas técnicas e suas habilidades, tão que há de mais canônico em termos de tradição
necessários para a participação na democracia educativa, o tipo de Eros discursante.
ateniense. Entretanto, o que chama a atenção, Num pequeno opúsculo intitulado De
considerando o tema aqui proposto, é a impres- Magistro — uma das questões disputadas sobre a
são de um logos também itinerante, característi- verdade, a de número onze —, São Tomás de
co nos sofistas. Artistas ou técnicos do discurso Aquino (2000), ao tratar da natureza do ensino,
argumentativo exibem uma atuação quase lúdica afirma que as formas naturais são preexistentes na
de malabarismos com as palavras, num movimen- matéria como potência (aluno) e são conduzidas
to abstrato de prós e contras (seja para, em se- ao ato por um agente extrínseco próximo (profes-
gredo, antecipar possíveis objeções ou para, em sor). A potência ativa, como um dado preexistente
público, evidenciar e valorizar as contradições la- no educando, tem duas formas de adquirir o co-
tentes das crenças comuns), em busca de consen- nhecimento (o ato): pela descoberta, quando a
so ou convergência de interesses. Aparece aqui, razão por si mesma atinge o conhecimento e, pelo
no sentido estratégico, um Eros verbal do tipo ensino, quando a razão recebe ajuda de fora para
bélico que no fundo deseja metamorfosear-se atingi-lo. Para o caso do ensino, a interação entre
naquele Eros, já descrito por Brandão (1993), o agente intrínseco (natureza) e o agente extrín-
que, entre trocas materiais, espirituais, sensíveis, seco (arte) é premissa para definir a própria idéia
choques e comoções, persegue a união dos opos- de educação: eduzir o conhecimento em ato a
tos e a alegria da unidade. partir da potência. O professor, por meio da lingua-
Por essa razão, não há como operar uma gem, mostra ou envia sinais para que o aluno, por
oposição drástica entre discursos e diálogo na si próprio, transforme a potência em ato (estado de
pedagogia sofista. Embora essa relação não saber propriamente dito). Para melhor ilustrar esse
tenha a pretensão verticalizante dos diálogos processo, Tomás recorre a uma engenhosa ana-
platônicos, apresenta-se como uma modalida- logia entre a cura e o ato de adquirir conheci-
de não menos relevante de formação humana. mento. Explicando melhor: a cura poderá ser
É certo que o discurso, adornado por arranjos conseqüência da ação da própria natureza do
gramaticais e poéticos (imagens, metáforas e doente (agente intrínseco) ou da ação dessa
figuras de linguagem como recursos estilísticos, mesma natureza auxiliada pelo médico que pres-
nos quais Platão também era mestre), é o ele- creve os remédios devidos (agente extrínseco);
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_____. Diálogos
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1971.
PLATÃO. Diálogos
Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Recebido em 23.01.06
Aprovado em 05.03.07
Marlene de Souza Dozol é doutora em Educação pela USP e professora do Centro de Educação da UFSC. Publicou artigos
pela Humanitas da USP, pela ANPED e outros eventos, os livros Da figura do mestre, co-edição entre EDUSP/AA, e Rousseau
– Educação: a máscara e o rosto, pela Vozes.