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TEORIA E ANÁLISE MUSICAL EM PERSPECTIVA DIDÁTICA PARTE II - O ENSINO DA TEORIA DA MÚSICA: CONTEXTO CONTEMPORÂNEO E REALIDADE BRASILEIRA

TEORIA E ANÁLISE MUSICAL:


______. 2015. O Pensamento musical criativo: tradição e transgressão. O Pensamento musical
criativo: teoria, análise e os desa�os interpretativos da atualidade. Série Congressos da TeMA, v.
1. Salvador: TeMA, 11-14.
______. 2016. “Contemporary Knowledge and Musical Creation: Ethic and Paradigms”. Musica
Theorica. Salvador: TeMA, 1-21. INSTRUMENTOS DE LEGITIMAÇÃO
CULTURAL
Universidade de Brasília. 2017. Currículo da habilitação composição. Disponível em <https://
matriculaweb.unb.br/graduacao/curriculo.aspx?cod=5614>. Acessado em 31 de maio de 2017.
Universidade Federal da Bahia. Projeto pedagógico do curso de composição e regência. Salvador. 2010.
______. Programa de componente curricular. 2016. Disponível em <http://dmusufba.com/conteudos- Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros
programaticos/>. Acessado em 31 de maio de 2017.
Universidade Federal de Minas Gerais. Projeto pedagógico do curso de Música. Belo Horizonte. 2011. (...) As disciplinas Harmonia e Análise Musical são obrigatórias a todo saber
Universidade Federal do Mato Grosso. Projeto de criação do curso de bacharelado em Música. 2012. e fazer musical, possuindo ainda relevante carga horária nos currículos
Universidade Federal da Paraíba. “Bacharelado em habilitação em práticas interpretativas da música das diversas instituições musicais (formais ou não). (...) No entanto, o
e composição”. Projeto político-pedagógico. João Pessoa. 2008. ensino dessas disciplinas é fundamentalmente baseado numa literatura
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programas de disciplinas. Rio de Janeiro. 2014. referencial teórica e aplicada – que de maneira exaustiva e quase exclusiva
faz recorrência, para a demonstração de seus pressupostos teórico-
Universidade Federal do Paraná. 2017a. Programas de disciplinas. Disponível em <http://www.sacod.
conceituais, a amostragens e ilustrações emprestadas da música estrangeira
ufpr.br/portal/artes/graduacao/musica/programa-de-disciplinas/>. Acessado em 31 de maio de
(em particular da europeia, do final séc. XIX). (Kater, Carlos apud Gianelli
2017.
2012, 34]
______. 2017b. Currículo do curso de música da UFPR. Projeto político-pedagógico. Disponível
A construção de uma música erudita brasileira não é assunto premente.
em <http://www.sacod.ufpr.br/portal/artes/wp-content/uploads/sites/8/2016/07/PPC_DO_
A construção de um conhecimento brasileiro de processos compositivos
CURSO_DE_MUSICA_UFPR_2014_em_diante.pdf>. Acessado em 31 de maio de 2017.
em música, esse sim, é assunto indispensável e que tarda. (Chaves, Celso
Universidade de São Paulo. Grade curricular. 2017. Disponível em <https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/
Loureiro apud Freire 2015, 95)
listarGradeCurricular?codcg=27&codcur=27420&codhab=101&tipo=N&print=true>.
Acessado em 31 de maio de 2017. O tema desta exposição foi definido em meio ao conturbado cenário político de 2016,
Whittall, Arnold. “Analysis.” The Oxford Companion to Music. Oxford Music Online. Oxford University cujos desdobramentos continuam, num progressivo agravamento da crise política e
Press. Disponível em <http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/opr/t114/e257>. econômica que atravessamos. Por mais que desejemos expurgar as práticas que
Acessado em 31 de maio de 2017. fragilizam e constrangem nosso país perante a comunidade internacional, através de
Young, Michael. 2014. “Teoria do currículo: o que é e por que é importante”. Cadernos de Pesquisa. soluções drásticas e definitivas, o fato é que temos uma longa história a ser conhecida
Traduzido por Leda Beck. N.º 44:151,190-202. e melhor compreendida, especialmente a história recente do país.
______. 2013. “Overcoming the Crisis in Curriculum Theory: a Knowledge-based Approach”.
Mas, por onde começar? Quais fontes e métodos utilizar? Algumas áreas, como
Journal of Curriculum Studies. Routledge. N.º 2:45, 101-118.
economia e literatura, podem vir a contribuir para a busca de respostas, apontando
alguns caminhos que nós, pesquisadores em música, também podemos trilhar.
Celso Furtado, em “O Capitalismo Global”, exalta os poderes da imaginação sobre
o conhecimento institucionalizado:
Cedo percebi que, se me atrevesse a usar a imaginação, conflitaria com o
establishment do saber econômico da época. A alternativa seria reproduzir

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o saber convencional, que era particularmente pobre em razão de nossa Em um contexto estritamente musical, podemos traçar como paralelo o estudo das
dependência em matéria de saber científico. Que tenhamos nos revoltado obras e dos estilos pessoais de compositores brasileiros (e latino-americanos) e a
e começado a usar a imaginação para pensar por conta própria é algo formulação de teorias a partir desse repertório, a fim de consolidar ferramentas
que não é fácil de explicar. Mas a verdade é que isso ocorreu no âmbito
conceituais que dêem conta da nossa realidade cultural – evitando os excessos do
da América Latina: passamos a identificar nossos problemas e a elaborar
um tratamento teórico dos mesmos. Havia uma realidade histórica latino-
ufanismo, de um lado, e o sentimento de inferioridade perante o cânon europeu,
americana, e mais particularmente brasileira, a captar. A confiança em nós de outro. Isso já vem sendo feito, através de inúmeros projetos de longo prazo e
mesmos para dar esse salto tornou-se possível graças à emergência da alcance, em diversas instituições do país. O que pretendo, somente, é enfatizar e
CEPAL1 no imediato pós-guerra. (Furtado,1998, 10. Grifo meu) trazer à consciência a importância dessas iniciativas.
A originalidade de pensamento cultivada na CEPAL visava a fazer frente ao status Outra inspiração, como eu disse, advém da crítica literária. Remeto-me a dois
quo da ciência econômica que se praticava no Brasil. Ainda segundo Furtado, uma autores. O primeiro é Eça de Queirós que, numa carta a Eduardo Prado, faz a crítica
academização precoce da ciência “acaba sendo uma forma de subordinação a daquilo que viu quando esteve no Brasil. A carta é datada de1888, ano em que a
constrangimentos inibidores da criatividade: quem não usa certa linguagem e adota escravatura foi oficialmente abolida no Brasil.
certos modelos é desqualificado, independentemente do que tenha a dizer. A ciência Nos começos do século, há uns 55 anos, os brasileiros, livres dos seus dois
institucionalizada é sempre conservadora.” (Ibid., p.12) males de mocidade, o ouro e o regime colonial, tiveram um momento
Contradizendo as teorias de inferioridade de raça, inadequação do clima, que, na único e de maravilhosa promessa. Povo curado, livre, forte, de novo em
pleno viço, com tudo por criar no seu solo esplêndido, os brasileiros
esteira do positivismo, serviam para explicar a inferioridade econômica do Brasil na
podiam nesse dia radiante fundar a civilização especial que lhes apetecesse,
cena mundial, Furtado adotou como método de trabalho uma extensa coleta de dados
com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte que
históricos sobre o país, ou seja, “um modelo com perspectiva histórica multissecular da tem sobre a tripeça de trabalho, e fazer dele, à vontade, uma vasilha ou um
economia brasileira. (...) o importante foi observar o Brasil, desde os seus primórdios, deus. Não desejo ser irrespeitoso, caro Prado, mas tenho a impressão que
como ator relevante na cena econômica mundial.” (Ibid., 16. Grifo meu) o Brasil se decidiu pela vasilha. (Queirós 1996, 10 e 11)
Para além de questões essencialmente de cunho econômico, cuja natureza Mais adiante ele descreve aquilo que o incomodou tão profundamente em sua
não cabe aqui debater, o fato é que Celso Furtado rapidamente percebeu que “a
visita à América:
ciência econômica acadêmica criava obstáculos à formulação de uma política de
Apenas as naus do senhor D. João VI se tinham sumido nas névoas atlânticas,
industrialização do Brasil, e que essa doutrina contava com fortes apoios externos.
os brasileiros, senhores do Brasil, abandonaram os campos, correram a
Havia, portanto, um imperialismo velado a ser enfrentado.” (Ibid., 18) Guardadas as
apinhar-se nas cidades e romperam a copiar tumultuariamente a nossa
diferenças entre música e economia, não podemos menosprezar o lugar da música civilização européia, no que ela tinha de mais vistoso e copiável. (...)
na nossa cultura e o fato de que ela constitui um importante fator identitário. Percorri todo o Brasil à procura do novo e só encontrei o velho, o
Minha intenção ao evocar o trabalho de Furtado, é ressaltar o método utilizado, que já é velho há cem anos na nossa Europa – as nossas velhas idéias, os
qual seja, o estudo extensivo e exaustivo das fontes e o uso da criatividade e da nossos velhos hábitos, as nossas velhas fórmulas, e tudo mais velho, gasto
imaginação2 na formulação de perspectivas teóricas, a partir dessas mesmas fontes. até ao fim, como inteiramente acabado pela viagem e pelo sol. Sabe o
que me parecia, para resumir a minha impressão numa imagem material,
1 Comissão Econômica para a América Latina. A CEPAL é uma das cinco comissões regionais das Nações Unidas e como recomenda Buffon? Que por todo o Brasil se estendera um antigo e
sua sede está em Santiago do Chile. Foi fundada para contribuir ao desenvolvimento econômico da América Latina, coçado tapete, feito com os remendos da civilização européia, e recobrindo
coordenar as ações encaminhadas à sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as
outras nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho foi ampliado aos países do Caribe e se incorporou o objetivo o tapete natural e fresco das relvas e das flores do solo…” (Ibid., 17 e 25)
de promover o desenvolvimento social. (Fonte: http://www.cepal.org/pt-br/about)
2 A imaginação é uma faculdade dupla, simultaneamente sensível e intelectual, o que favorece esse movimento de Passado um século, a situação não parecia muito diferente. Transcrevo um trecho
construção teórica a partir de dados concretos. [conferir KANT, Critica da Faculdade de Julgar]

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TEORIA E ANÁLISE MUSICAL EM PERSPECTIVA DIDÁTICA PARTE II - O ENSINO DA TEORIA DA MÚSICA: CONTEXTO CONTEMPORÂNEO E REALIDADE BRASILEIRA

de “Que Horas São?”, livro de ensaios de Roberto Schwarz, publicado em 1987: Na dissertação de mestrado da acadêmica Raísa Silveira3 defendida em 2016 sob
Nos vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao trânsito da minha orientação, utilizamos a perspectiva proposta por Schwarz sobre ‘o nacional”
crítica por impressionismo, historiografia positivista, new criticism americano, para analisar o estilo composicional de Radamés Gnattalli, cuja obra é persistentemente
estilística, marxismo, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo e vista como problemática, do ponto de vista do popular e do erudito, do nacional e
agora teorias da recepção. A lista é impressionante e atesta o esforço do estrangeiro. Cito uma passagem da referida dissertação:
de atualização e desprovincianização em nossa universidade. Mas é fácil Voltemos à posição de Radamés como mediador: traços da função
observar que só raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, volubilidade podem ser reconhecidos nos mais variados lugares de seu
como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se convívio, e transparecem tanto em suas obras – na maneira que utiliza
deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta materiais de diferentes estilos e linguagens – quanto nos discursos que o
a impressão – decepcionante – da mudança sem necessidade interna, e circundam – através da maneira como se auto define (ou como outros
por isso mesmo sem proveito. O gosto pela novidade terminológica e o definem) de forma às vezes contraditória ou ambígua. As relações de
doutrinária prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro semelhança e diferença nos choros que estamos estudando [Manhosamente,
exemplo, agora no plano acadêmico, do caráter imitativo de nossa vida Canhoto e Negaceando] são bastante latentes e geram contrastes que
cultural. Veremos que o problema está mal posto, mas antes disso não implicam em um revezamento de poses semelhante àquele que Schwarz
custa reconhecer sua verdade relativa. identifica na obra de Machado.
Tem sido observado que a cada geração a vida intelectual no Brasil (...) As análises [de Schwarz] exploram a maneira pela qual a ordem
parece recomeçar do zero. O apetite pela produção recente dos países social vigente na época da composição do romance é representada em
avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da forma de estrutura narrativa nas Memórias. A relação é mimética; para além
geração anterior, e a conseqüente descontinuidade da reflexão. (Schwarz daquilo que é dito por Brás, a própria fórmula imita a ordem social. Ou
1987, 30) seja, as contradições que decorrem dos vínculos de dominância fundadas
Para a intelectualidade brasileira, no tripé latifundiário-escravo-trabalhador livre são transpostas para a forma
do texto. O brasileirismo nas obras da segunda fase de Machado estaria,
(...) o sentimento de viverem entre instituições e idéias que são copiadas
portanto, no estilo da narração enquanto regra de escrita, deixando de ser
do estrangeiro e não refletem a realidade local [é algo familiar]. Contudo,
não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver de modo autêntico. uma questão de temática. (Silveira 2016, 52)
Aliás, esta renúncia aqui é impensável. Por outro lado, a destruição O Nacional não poderia, portanto, ser reduzido ao conteúdo; ao contrário, sua
filosófica da noção de cópia [Foucault, Derrida] tampouco faz desaparecer manifestação estaria relacionada à forma, a uma fórmula narrativa.
o problema. Idem para a não-ciência programática com que o antropófago
[andradiano] ignora o constrangimento, o qual teima em reaparecer. (...) a fórmula narrativa de Machado consiste em certa alternância sistemática
‘Tupi or not Tupi, that is the question’, na famosa fórmula de Oswald, de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido
cujo teor de contradição – a busca da identidade nacional passando pela pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira. O dispositivo literário
língua inglesa, por uma citação clássica e um trocadilho, diz muito sobre o capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra da escrita.
(...) Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja,
impasse. (Ibid., 39)
ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da
Schwarz toma como exemplo a obra de Machado de Assis, para chegar à conclusão sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito
de que o nacional é essencialmente uma “regra de estilo”, e que a “mudança de particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica. O
poses” efetuada pela personagem Brás Cubas não constitui um problema, mas antes “homem do seu tempo e do seu país” deixava de ser um ideal e fazia figura
uma solução. A passagem do estilo culto para o coloquial, do tom trágico para o de problema [grifo nosso]. (Schwarz apud Silveira 2016, 53)
satírico, seriam, segundo Schwarz, traços identitários brasileiros, configurados no
3 A dissertação Mediações nos choros para piano solo de Radamés Gnattali (1906-1988) encontra-se disponível em:
estilo machadiano. <http://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/00001d/00001d32.pdf>.

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TEORIA E ANÁLISE MUSICAL EM PERSPECTIVA DIDÁTICA

O exemplo acima é eloquente das vantagens que retiramos da aproximação entre


diferentes áreas de estudo. A crítica literária apontou um caminho frutífero para se
pensar “o caso” Radamés, desviando o foco dos impasses estilísticos que sua obra
geralmente suscita.
A pesquisa em música no Brasil tem sofrido intensas mudanças nas últimas décadas,
a própria TeMA é um reflexo do movimento de atualização do campo. Trata-se
de assumir como principal virtude o pensamento crítico e autônomo, o único que
permite aproveitar, independentemente da origem, as idéias e métodos realmente
interessantes e construtivos para determinada situação, determinado contexto.
O trabalho cumulativo, esforço coletivo de todos os pesquisadores, docentes e
discentes, dos Programas de Pós-Graduação em Música são uma via segura para a
formação de uma massa crítica4 e para o amadurecimento da pesquisa acadêmica em
música e em teoria musical no país. Como já disse antes, este trabalho vem sendo
realizado e deve continuar a sê-lo, com a consciência do papel político fundamental
que a teoria e a pesquisa desempenham na sociedade.

Referências
Freire, Vanda Lima Bellard (org.). Horizontes da pesquisa em Música. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
Furtado, Celso. O Capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
Queirós, Eça de. Eça de Queirós-Júlio Pomar. São Paulo, SP, Editora Giordano Ltda, 1996.
Silveira, Raísa. Mediações nos Choros para piano de Radamés Gnattalli (1906-1988). Dissertação.
Florianópolis: UDESC, 2016.
Schwarz, Roberto. “Nacional por subtração” in Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
______. Um Mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4ed. São Paulo: Edições 34, 2000.

4 Em dinâmica social, massa crítica é a mentalidade de um grupo em relação a um determinado assunto necessária
e suficiente para, em quantidade e qualidade, estabelecer e sustentar determinada ação, relação ou comportamento.
Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Massa_crítica_(sociologia)>.

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