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Copyright © 2023 by Netflix CPX, LLC e Netflix CPX International, B.V.

Tradução publicada mediante acordo com Del Rey, um selo da Random House, divisão da

Penguin Random House LLC.

STRANGER THINGS™ é uma marca registrada da Netflix CPX, LLC e NETFLIX CPX

International, B.V. Todos os direitos reservados.

título original

Stranger Things: Flight of Icarus

preparação

Lara Berruezo

revisão

Marcela Ramos

Giu Alonso

arte de capa

Tracie Ching

design de capa

Scott Biel

adaptação de capa

Lázaro Mendes

produção de e-book

Victor Huguet | Intrínseca

e-isbn

978-85-510-0918-5

Edição digital: 2024

Todos os direitos desta edição reservados à

Editora Intrínseca Ltda.

Av. das Américas, 500, bloco 12, sala 303

22640-904 – Barra da Tijuca

Rio de Janeiro – RJ

Tel./Fax: (21) 3206-7400

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Sumário

[Avançar para o início do texto]

Capa

Folha de rosto

Créditos

Mídias sociais

Dedicatória

Capítulo Um

Capítulo Dois

Capítulo Três

Capítulo Quatro

Capítulo Cinco

Capítulo Seis

Capítulo Sete

Capítulo Oito

Capítulo Nove

Capítulo Dez

Capítulo Onze

Capítulo Doze

Capítulo Treze

Capítulo Catorze

Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis

Capítulo Dezessete

Capítulo Dezoito

Capítulo Dezenove

Capítulo Vinte

Capítulo Vinte e Um

Capítulo Vinte e Dois

Capítulo Vinte e Três

Capítulo Vinte e Quatro

Capítulo Vinte e Cinco

Capítulo Vinte e Seis

Capítulo Vinte e Sete

Capítulo Vinte e Oito

Capítulo Vinte e Nove

Capítulo Trinta

Capítulo Trinta e Um

Capítulo Trinta e Dois

Capítulo Trinta e Três

Capítulo Trinta e Quatro

Capítulo Trinta e Cinco

Capítulo Trinta e Seis

Capítulo Trinta e Sete

Agradecimentos

Sobre a autora
Para todas as ovelhas perdidas.

E para as pessoas que lhes oferecem um lugar seguro.


Capítulo Um

— É. Você tá morto.

Do outro lado da mesa, o garoto me olha de queixo caído, o brilhante

aparelho nos dentes bastante chamativo.

— Não estou, não — rebate ele.

— Você enfrentou um Kraken sozinho. Você tá muito morto, cara.

Stan me dá um chute na canela.

— Vê se pega leve. Ele é calouro — diz Stan.

— Mas joga Dungeons & Dragons há quase um ano. Ei, calouro…

— Gareth — resmunga ele de algum lugar sob o cabelo ondulado e

cheio.

— Com quantos pontos de vida você tá? — pergunto.

Gareth murmura alguma coisa que não consigo entender, mas tenho

quase certeza de que rima com Nero.

— Foi o que pensei. Então me deixe explicar a próxima etapa. — Eu

me inclino para a frente, as mãos em cada lado do meu Escudo do

Mestre. — É o golpe final dos tentáculos do monstro o que acaba com

você. A agonia o atinge, sobrepujando sua força de vontade, e sobra para

os seus pulmões.

Ronnie atira uma borracha na minha cabeça.

— Minha nossa, Eddie! — exclama ela, mas há uma risada em sua

voz.

— Por instinto, você tenta inspirar — continuo —, mas está a mais de

sete metros da superfície do oceano Solnor, e o restante do grupo está

longe, na costa. O que significa que não há ninguém para salvar você, e o

mar preenche sua garganta.

— Incrível! — declara Dougie, me observando incrédulo, com olhos

arregalados de admiração.

— E é assim que ninguém testemunha seu corpo se contorcer pela

última vez e afundar, sem vida, nas escuras profundezas do


desconhecido. E assim termina a história de Illian, o Invencível, meio-

elfo, paladino e campeão das Terras Perdidas.

A mesa explode em aplausos, um grande reconhecimento dos

jogadores. Ronnie e Dougie são os mais entusiasmados, Dougie até se

levanta, em uma demonstração de aclamação muito bem-vinda. Gareth,

por outro lado, afunda na cadeira, cutucando desanimado o dado d20.

— Que palhaçada — diz ele.

— Como assim, Gareth? — indaga Dougie. — Você acabou de

receber um monólogo de morte do Munson. Isso é, tipo, imbatível.

Os ombros magros de Gareth se encolhem de desânimo, mas ele

ainda lança um olhar feroz para Dougie.

— E por acaso eu deveria estar feliz? Ele me matou! — exclama

Gareth.

— Você não é especial, beleza? Ele estava tentando matar todos nós!

— Tá bom — digo, levantando as mãos para tentar conter a

animosidade que está se formando. — Como seu humilde Mestre, vocês

me dariam o prazer de calarem a boca?

Eles calam a boca. Isso me dá tempo suficiente para encarar cada um

dos jogadores… e entrar em pânico, pensando no que vou fazer.

O Hellfire Club não é dos mais populares. Contando comigo, somos

apenas seis. Ronnie e eu nos tornamos membros assim que entramos

juntos no ensino médio, e mesmo com a resistência do Dougie para

“entrar num clube de nerd”, um mês inteiro nos ouvindo declamar

piadas internas das sessões do Hellfire Club o fez praticamente implorar

por uma vaga.

Stan, que está no terceiro ano, chegou um ano depois, embora sua

presença seja… imprevisível. A família dele colocou na cabeça que

Dungeons & Dragons é um jogo que vem do próprio Satã e que só de

encostar em dados com mais de seis lados o pequeno e precioso bebê

deles vai cair nas chamas da danação eterna. Stan se esforça para estar

presente, inventa desculpas envolvendo reforço de matemática e deixa os

materiais do RPG na casa da Ronnie, para afastar a mãe bisbilhoteira.

Mas, mesmo assim, ele acaba perdendo uma a cada três sessões.

Jeff, do segundo ano, já faz parte do Hellfire Club há dois anos, mas

parece que está com a gente bem mais tempo. Ele jogava com os irmãos

mais velhos antes de entrar na Hawkins High e conhece quase tanto do


jogo quanto eu. Ele com certeza entende mais de baixo do que eu, e é

por isso que quase de imediato o recrutei para a minha banda, a

Corroded Coffin, e ele toca de uma maneira que nem Ronnie, Dougie e

eu conseguiríamos.

E temos o pequeno calouro Gareth. Ele está olhando intensamente

para a lista de presidentes dos Estados Unidos colada na parede, como

se quisesse usá-la para praticar tiro ao alvo.

É melhor ele se controlar. O grupo não pode arcar com mais um

professor enfurecido, não quando muitos deles já se recusaram a dividir

espaço com “esse culto satânico”. Toda segunda-feira eu dou início ao

processo de encontrar e negociar com o pequeno grupo de professores

que tem a mínima simpatia à nossa causa. Nesses encontros, barganho o

direito de rolar uns dadinhos nas suas salas de aula na quarta-feira,

assim que o último sinal bate, às 14h50. E toda segunda, quando

converso com a sra. Debbs sobre sua futura aposentadoria e limpo o

quadro de giz no laboratório do sr. Vick, me pergunto: por que estou

fazendo isso?

Nunca encontrei uma resposta. Mas continuo aqui, toda semana. Não

seria essa a definição de insanidade?

— Fique feliz, calouro — digo. — Hoje você aprendeu uma lição

importante.

Volto a sentir o olhar de Ronnie sobre mim. Ela está girando uma

caneta entre os dedos, tão rápido que a imagem chega a ficar difusa. Não

olho em sua direção.

Gareth bufa.

— Que importância pode ter essa lição se eu não pôr em prática, já

que não vou estar jogando? — pergunta ele.

Dá para ver que está angustiado, mas isso não é algo com que eu

possa lidar diante de todo mundo.

— Bem, pessoal, acho melhor encerrar nossa sessão de hoje por aqui

— digo, me endireitando.

O grupo suspira em desaprovação, principalmente Stan e Dougie.

— Vamos nos encontrar novamente na próxima semana — continuo

—, quando nossos aventureiros sobreviventes adentrarão as profundezas

do labirinto de… Ralishaz, o Louco.


Gareth está pronto para ir embora, já tinha jogado suas coisas na

mochila o mais rápido que pôde. Ele empurra a cadeira, produzindo um

som agudo de metal contra linóleo e bate a porta, fazendo a parede

tremer.

Dougie bufa, assistindo à porta se fechar.

— Esse cara é um saco.

— Cala a boca, Dougie — comenta Ronnie, tranquila.

Ela levanta a sobrancelha para mim, uma pergunta silenciosa, mas eu

já estou de pé contornando a mesa.

Por cima do ombro, enquanto saio pela porta, aviso:

— Mesmo horário semana que vem. Quem chegar atrasado terá o

mesmo tratamento do Illian. Entendido?

Escuto “com certeza” e “até parece” em resposta.

Gareth já está muitos armários adiante, andando depressa.

— Ei, calouro! — chamo.

Por um segundo, pensei que ele não fosse parar. Mas Gareth se vira

para mim com um revirar de olhos e um suspiro.

— O quê? — pergunta ele.

— Tá atrasado para alguma coisa? — indago.

— Minha mãe vem me buscar em, tipo, menos de dois minutos,

então… Sim.

Ele me lança um olhar furioso, arrumando a mochila no ombro. A

ponta da sua camisa acaba prendendo na alça, e revela uma mancha roxa

e dolorida espalhada na costela.

— Você já me expulsou do clube. O que mais quer de mim?

— Ei, ei, ei… Quem falou em expulsão?

— Você. Quando me matou.

— E daí? — pergunto.

— E daí que… — Gareth hesita, confuso, alternando o apoio dos

pés. — E daí que Illian tá fora. Então eu tô fora também.

— Então você cria um novo personagem.

Gareth me encara, surpreso, como se não tivesse cogitado essa

possibilidade.

— É?

— Você acha que vou deixar alguém doido o suficiente para enfrentar

um Kraken sair dessa campanha? Sem chance. — Eu me inclino para


mais perto, com um sorriso travesso. — Os outros manés não vão durar

um milissegundo no labirinto de Ralishaz sem sua coragem.

— Vai ser difícil, é?

— Vai ser terrível — declaro, dando risada do sorrisão de Gareth. —

A gente só precisa criar um novo personagem para você. Está livre

amanhã depois da escola?

— Só preciso perguntar para minha mãe — diz Gareth.

Ele assente com uma intensidade que deixa evidente que, seja qual

for a resposta da mãe, ele vai estar lá.

Escuto uma buzina de carro vinda do estacionamento da escola.

Alguém parece estar perdendo a paciência.

— Droga — resmunga Gareth. — Preciso…

— Sem problema, cara.

Ele se apressa e desce alguns degraus do corredor principal e de

repente hesita.

— Você está falando sério, né? — pergunta, inseguro. — Posso

mesmo voltar?

— Enquanto quiser ficar no Hellfire Club, vai ser sempre bem-vindo.

Gareth assente e baixa o olhar, como se tentasse memorizar as

palavras.

— Beleza — diz Gareth, e então segue para a entrada principal da

escola.

Eu o acompanho com o olhar até perdê-lo de vista.

— Nossa, e logo hoje deixei minha caixinha de lenço em casa.

Ronnie está atrás de mim, abraçando um fichário lotado de papel. Ela

finge enxugar as lágrimas e solta uma gargalhada quando eu lhe dou um

empurrãozinho no ombro.

— Cuidado! — repreende ela. — Stan vai ficar furioso se eu derrubar

isso aqui.

— Tem alguma coisa a dizer, Ecker?

— A única coisa que eu sonharia em dizer é: me dá uma carona?

Reviro os olhos.

— É a última vez — declaro.

— Última vez — promete Ronnie.

Ela me segue até o estacionamento, e nós dois sabemos que não vai

ser a última vez. Mas esse roteiro é a base da nossa amizade. Ela me
pede vários pequenos favores; eu finjo que sou responsável; os dois saem

ganhando. Tem sido assim desde quando eu meio que herdei a van do

meu pai no começo do ano passado. Tem sido assim desde que nos

conhecemos.

“O que você está fazendo?”, perguntou ela.

Mesmo aos oito anos, Ronnie era mais alta que eu, e surgia atrás de

mim vestindo sua jardineira surrada feito o fantasma de uma fazendeira.

O que eu vinha fazendo era sentir pena de mim mesmo. Um

telefonema de um antigo amigo com um convite para beber fez meu pai

sair às pressas com promessas vazias — “estarei de volta antes que

perceba” e “sabe como o fogão funciona, né?”. Passei a noite toda

vigiando a rua e esperando por ele, esperando, esperando, esperando, até

que adormeci ali mesmo, sentado, com a cabeça encostada na janela.

Foi a primeira vez que ele sumiu da face da Terra; algo que passaria a

acontecer muitas outras vezes. Mas eu não sabia disso ainda. Então

fiquei apenas vagando pela casa vazia durante dois dias, vivendo à base

de sanduíche de manteiga de amendoim e refrigerante sem gás, até que

meu tio Wayne se deu conta do que estava acontecendo e veio me buscar

para morar com ele em seu trailer “até que o Al coloque a cabeça no

lugar e dê o ar da graça”.

Fiquei furioso quando cheguei ao estacionamento de trailers, ainda

mais porque estar naquele lugar significava que meu pai não saberia

onde me encontrar quando voltasse. Mas Wayne não me levou a sério

quando insisti que um aluno do quarto ano do ensino fundamental era

mais do que capaz de cuidar de si mesmo. Então fiquei preso naquele

trailer decrépito e empoeirado sem nada para fazer além de cavar

buracos na floresta ali perto.

Foi então que essa garota apareceu.

Ronnie também havia acabado de se mudar para o estacionamento de

trailers. Ela estava morando com a avó porque, após a morte do pai, sua

mãe ficou doente e começou a falar sozinha. Ronnie tinha cabelos e

olhos castanhos, e as pessoas pensavam que éramos irmãos quando nos

viam juntos. Contei que estava cavando um buraco para chegar ao outro

lado do mundo, e ela me perguntou se poderia ajudar, porque não tinha

mais nada para fazer.


Depois fiquei sabendo que era mentira — na verdade, ela havia

deixado de assistir M*A*S*H com a avó apenas para me fazer

companhia. Só que eu estava muito ocupado tendo uma amiga pela

primeira vez em um bilhão de anos para suspeitar de qualquer coisa. E

mesmo depois que meu pai apareceu e me levou para casa enquanto

contava histórias sobre algum cara babaca no Kentucky que lhe devia

dinheiro, Ronnie e eu continuamos próximos.

Todos os outros integrantes do Hellfire Club têm mães que vão

buscá-los na escola e porta-retratos com fotos de família espalhados na

lareira de casa. Então é muito reconfortante ter alguém por perto que

não representa a imagem perfeita de uma família feliz.

Dou partida na van. Ronnie é tão alta que sua cabeça quase encosta

no teto do carro, e a aba de seu boné de veludo preenche os poucos

centímetros restantes.

— Casa? — pergunto.

Ela assente, largando o fichário no chão da van.

— Vovó quer que eu vá jantar com ela.

— Mas está tudo certo para mais tarde, né?

O soco que Ronnie dá no meu braço é tão forte que machuca.

— Você se preocupa demais — declara ela.

A gente continua implicando um com o outro conforme a van segue

pela estrada em direção aos arredores de Hawkins. É confortável, um

diálogo que já repetimos milhares de vezes. Certa vez, quando tínhamos

treze anos, por um segundo cheguei a pensar que talvez nossa relação

fosse quase um namoro — afinal, ter uma amiga que me conhecia tão

bem me fez sentir que talvez o sentimento fosse romântico. Depois de

conter essa novidade por uma semana ansiosa, decidi que a única opção

era tomar uma iniciativa e chegar em Ronnie.

Não estava preparado para o grito que ela deu ao se afastar de mim

quando me aproximei para beijá-la.

“Qual é o seu problema, Munson?”

Naquele momento, não consegui fazer nada além de gaguejar, ficar

vermelho de vergonha e sair correndo feito um covarde. Alguns dias

depois, quando a poeira baixou e ambos estávamos achando um pouco

menos que aquilo era o fim do mundo, Ronnie me explicou que não era

comigo — na verdade, ela não gostava de ninguém daquele jeito. Ela


achava que nunca tinha sentido interesse romântico em ninguém. E

depois perguntou se eu estava bem com aquilo.

Pensei por um momento.

“Isso significa que podemos continuar amigos?”

Ela deu um soco no meu braço, no mesmo lugar de sempre.

“Não seja idiota”, respondeu.

Solto um suspiro, e Ronnie apoia os pés no painel da van.

— É sério? — indago.

— Não quero pisar nas coisas do Stan. E não é minha culpa sua van

ser tão pequena.

— Minha van não é o problema. Você é que tem essas pernas

enormes.

— Vou te contar um segredinho sobre essas pernas enormes —

começou Ronnie.

Ela continua com os pés no painel, e eu sei reconhecer quando perdi

uma batalha, então fico em silêncio.

Ronnie continua:

— Daqui a… quatro meses? Essas pernas enormes vão entrar no meu

novo apartamento em… Nova. York.

Quase piso no freio com tudo.

— Não!

— Sim.

— Você conseguiu a bolsa?

Ronnie sorri.

— Universidade de Nova York, meu bem. Bolsa. Integral.

Piso fundo no freio e estaciono a van no acostamento.

— Caramba! Caramba! Quando que…

— Ontem à noite.

— Ontem à noite?! Por que não me contou antes?

— Estou contando agora.

Já sei por que ela não me contou antes.

— Ei, você sabe que estou feliz por você, não sabe? — pergunto.

Ronnie encolhe os ombros.

— Sei.

Mas eu não acredito.


Porque Ronnie e eu somos muito parecidos, sabe? Temos famílias

desestruturadas, roupas de segunda mão e o mesmo corte de cabelo. Já

moramos no mesmo estacionamento de trailers. Só que existe uma

grande diferença entre a gente. Sempre existiu.

Veronica Ecker tem potencial. Está indo para a faculdade de direito e

vai sair de Indiana, essa droga de estado.

Mas Eddie Munson? Ele vai apodrecer nesta cidadezinha estúpida.

Não é culpa dela. É óbvio que não. Ronnie sempre teve talento para

estudar, aprender, essa chatice toda. Mas eu nunca entendi bem qual o

objetivo disso tudo. Para mim, a Hawkins High é apenas o lugar onde

gasto oito horas por dia antes de escapar por algumas horas num grid de

batalha e dados d20 — isso se eu for encantador o bastante ao falar do

neto da professora Debbs. Por outro lado, Ronnie tem um boletim

excepcional e vários professores fazendo fila para escrever

recomendações brilhantes para ela. Enquanto isso, eu tenho apenas o

sobrenome…

— Munson.

Seria mentira dizer que o barulho na minha janela é apenas uma

batidinha. Está mais para uma martelada, alta o suficiente para me

deixar, por um instante, preocupado com a integridade do vidro. Ronnie

e eu nos viramos para olhar.

Sinto o coração afundar. Estava tão envolvido com a boa notícia de

Ronnie e minha terrível reação que não percebi quando a viatura de

polícia parou logo atrás de mim. Agora tem um policial do lado de fora,

com um sorrisinho debochado e gesticulando para que eu abaixe o vidro.

— De novo — murmura Ronnie.

— Sempre — sussurro, abrindo a janela da van. — Policial Moore.

Como posso ajudá-lo nessa agradável tarde de primavera?

O cabelo loiro raspado e a mandíbula quadrada dão a Moore um

visual bem americano, como um legítimo Super-Homem, só que

nenhum uniforme engomado ou sapato engraxado disfarça sua barriga

de chope da meia-idade. Ele já foi um grande policial da cidade antes de

eu nascer, praticamente um herói. Pelo menos foi o que me contaram. Só

que ele já me abordou diversas vezes no trânsito, e isso só piorou desde

que completei dezoito anos. Se eu não soubesse quais são suas

verdadeiras intenções, poderia dizer que está me perseguindo.


Ele balança a cabeça, deixando escapar um som fingido de

desaprovação.

— Logo vi que era você, Munson. Quantas vezes vamos precisar ter

essa conversa?

— Isso é algo que deve perguntar a si mesmo, policial. É você quem

sempre arranja um jeito de esbarrar comigo.

— Você estava dirigindo de forma irresponsável — diz Moore. —

Começou a beber um pouco cedo demais hoje?

— Não.

— A gente acabou de sair da escola — comenta Ronnie, tentando me

ajudar.

Não posso dizer a ela que isso não vai funcionar.

— Se eu revistar o veículo, será que vou encontrar alguma substância

ilícita? — pergunta Moore.

— Você nunca encontra — rebato.

A expressão dele se fecha. Ele abre a boca, provavelmente para me

mandar destrancar a porta traseira, e me preparo para perder uma hora

enquanto Moore revista a van inteira, como sempre faz.

Mas o rádio da viatura faz um chiado.

— Policial Moore, temos um 10-16 na Fleming…

Moore solta um suspiro furioso. Se essa abordagem de trânsito fosse

realmente importante, ele avisaria à equipe que está ocupado, mas como

não é…

— Estou de olho em você — avisa ele.

— Promete? — pergunto, piscando de um jeito adorável.

Mantenho a expressão mesmo quando Ronnie me cutuca com o

cotovelo.

O policial bufa.

— Pode rir agora, mas nem o seu pai fazia gracinhas dentro de uma

cela. E é na cadeia onde todos vocês, Munson, vão parar, uma hora ou

outra.

Moore volta à viatura, e a van fica em silêncio. Ele acende os faróis e

acelera, passando à nossa frente na estrada. Eu o vejo se afastar e então

relaxo meus dedos no volante, as articulações brancas da pressão.

— Eddie… — diz Ronnie.


Mas não consigo ouvir nada. Pelo menos não vindo de alguém que

ganhou na loteria da vida, alguém em quem o mundo acha que vale a

pena investir.

— Tira os pés daí — peço.

Ela abaixa os pés sem questionar.

— Você não vai querer chegar tarde para o jantar — declaro.

E então piso fundo no acelerador.

Se estou indo para lugar nenhum, ao menos vou chegar lá o mais

rápido que eu puder.


Capítulo Dois

Não existe em Indiana um lugar com o nome mais apropriado do que o

Esconderijo. Sua localização é de terrível acesso para qualquer pessoa

que more em Hawkins; a construção se esconde entre uma siderúrgica

desativada e um milharal abandonado. Por mais que a vizinhança seja o

fundo do poço para o comércio em geral, é perfeita para um pé-sujo

como esse, o tipo de bar a que as pessoas vão quando não querem ver a

luz do sol. As janelas são fechadas com tijolos desde sempre, porque é

mais difícil atirar alguém para fora quando se tem uma parede sólida em

vez de vidro. O piso de carpete nunca foi limpo nem aspirado, e as

bancadas são tão pegajosas que certamente já desenvolveram um

ecossistema próprio.

E essa espelunca é um dos lugares mais importantes da minha vida. O

que isso diz sobre mim?

— Júnior! Cerveja!

Bev é a orgulhosa proprietária desse estabelecimento encantador

desde que “o vagabundo” de seu marido (nas palavras dela) morreu sob

circunstâncias misteriosas dez anos atrás. Ela pinta o cabelo de acaju,

tem estrabismo e está sempre gritando como se a música estivesse alta

demais ou se o lugar estivesse lotado. Mas o Esconderijo não é um lugar

aonde as pessoas vão para se divertir. É um lugar para se esconder, e se

esconder é uma atividade silenciosa.

Isso significa que os gritos da Bev sempre me assustam.

— Pelo amor de Deus — sussurro.

Quase derrubo um copo na cabeça do Sam Bebum. O velho só

murmura alguma coisa incompreensível e vira uma dose de uísque

barato.

— Ela ainda te chama de Júnior? — pergunta Ronnie. — Pensei que

você tivesse pedido para ela parar.


Ronnie, Jeff e Dougie estão ao redor de uma mesa alta, revezando a

única garrafa de cerveja que seus trocados puderam comprar. Jeff lança

olhares tensos para Bev, como se ela fosse começar a se importar com o

fato de ele ter apenas dezesseis anos. O Esconderijo nunca exigiu

identidade antes, não ia começar agora.

— Eu vou… Eu tenho que… — digo, acenando e indo até o bar antes

que Ronnie peça que eu termine a frase.

Bev já está me olhando quando eu coloco o copo no balcão.

— Eu não te pago para ficar de conversinha com seus amigos —

avisa ela.

— Você praticamente não me paga. Falando nisso… são dez horas.

Bev revira os olhos.

— Você encontra qualquer desculpa para não trabalhar.

Ela só está provocando. Faço uma carinha fofa em vez de morder a

isca e, por fim, Bev acaba cedendo.

— Está bem. Vai lá. Mas vê se não demora muito dessa vez.

— Jamais — garanto, limpando a mão no pano de prato.

Dou uma olhada para Ronnie e assinto. Hora do show.

O palco do Esconderijo não devia ser chamado de palco. Não passa

de uma estrutura elevada que o marido vagabundo da Bev fez e

empurrou num canto. A madeira range de um jeito ameaçador a cada

passo, e com certeza um dia vai ceder e eu vou parar embaixo desse

negócio com o tornozelo quebrado.

Mas, no fim das contas, é um palco. E, mais importante, é onde a

Corroded Coffin vai se apresentar (e, em troca disso e uns trocados,

preciso ralar atrás daquele balcão quatro noites por semana). E isso

basta.

Não demora muito para Ronnie, Jeff e Dougie se ajeitarem com os

instrumentos. Quando posiciono minha guitarra, eles já estão prontos.

Ronnie tinha chegado mais cedo para tirar a bateria da minha van e

montar no palco, e Jeff e Dougie só precisavam plugar a guitarra e o

baixo nos amplificadores surrados que Bev não tirava do lugar. Vou para

perto de Jeff, ignorando o rangido das tábuas, e coloco a alça da guitarra

no ombro.

— Um público e tanto, hein? — comenta Dougie, impassível.

Jeff dá de ombros.
— O Sam Bebum ainda está acordado. Já é alguma coisa.

— Que se dane — digo. — A gente está aqui pra tocar.

Ronnie gira uma baqueta entre os dedos.

— Então vamos incendiar este lugar!

Ela lança um sorriso diabólico para mim, e eu retribuo. Então, tão

intensamente quanto este pequeno palco permite, encaro nosso pequeno

público e…

Tem essa coisa que surge às vezes, quando a Corroded Coffin toca.

Um sentimento de estarmos em sintonia, no mesmo ritmo perfeito, e de

repente é como se, ao tocar, conjurássemos uma ventania, um tornado

ou um impetuoso furacão. Uma força real, primitiva, da natureza. Mas

esse poder avassalador não nos domina. Pelo contrário, nos carrega, nos

conduz, e nós navegamos com ele até que a última nota se desfaça no

silêncio. Levados pelo turbilhão da música, juntos, nós voamos.

E hoje… hoje é noite de furacão. Dá para sentir essa vibração desde a

primeira batida da bateria de Ronnie, nos levando às garras melódicas de

“Whiplash”, do Metallica. Em seguida, entram as guitarras, e eu me

perco por um instante. Ronnie está atrás de mim, mantendo o ritmo que

me leva adiante, e Jeff e Dougie me mantêm concentrado, indo e

voltando entre harmonia, melodia, harmonia…

Quando me dou conta, estou ofegante e suado, e o ruído do retorno

ecoa nos amplificadores. Afasto alguns fios de cabelo do rosto. Meus

dedos estão trêmulos.

— Nós somos a Corroded Coffin! — exclamo para o público, que não

está nem aí. — A nossa próxima música é “E-e…

Começo a gaguejar, então Jeff interrompe tocando os primeiros

acordes de “Electric Eye”, do Judas Priest. Mas eu não acompanho.

— Foi mal — murmuro.

Arrisco cantar a introdução na segunda deixa e consigo sem

problemas. Finalmente entramos na música e estamos indo bem…

Não há tempestades incontroláveis desta vez. Não me perco na

música. Porque não consigo desviar a atenção de uma coisa.

Tem uma pessoa nova no Esconderijo.

Ela está sentada no bar, diante de um copo com um líquido marrom

que deve ter um gosto terrível. Está sentada numa banqueta, e mesmo
que eu não consiga visualizar bem seu rosto por causa da luz baixa dá

para ver que a perna dela está balançando no ritmo da música.

Todas as outras pessoas estão apenas rangendo os dentes e fazendo

hora até a gente dar o fora daqui. Mas essa garota… ela está escutando.

Talvez pela primeira vez eu tenha um público que quer me ouvir.

É inebriante. Esse sentimento atravessa meus ossos, minha pele e

meus dedos. Sob o olhar dessa garota, parece que estou derretendo, e,

em vez de me transformar em água, viro um metal liquefeito, como

mercúrio. A música está terminando, e então faço algo que nunca fiz

antes: conduzo a banda para a próxima. Sem pausa, apenas um acorde

sobreposto ao outro, até estarmos voando.

O show não pode durar para sempre. Afinal, Bev está me encarando,

dando batidinhas no relógio. Mas não quero que tudo termine, ainda

não. Quando uma música do Ozzy termina, levanto a mão.

— Obrigado por serem uma plateia sensacional — grito, alto o

bastante para fazer Bev revirar os olhos.

Posso estar delirando, mas em meio à ausência de resposta, acho que

vi a garota dar uma piscadinha.

— Temos mais uma surpresa para vocês esta noite…

— Júnior… — chama Bev, tentando interromper.

Viro para meus parceiros de banda.

— O que foi, Eddie? — pergunta Dougie.

— “Fire Shroud” — digo. — Vamos tentar essa.

— Mas a gente só tocou no ensaio — protesta Jeff.

— Tudo tem sua primeira vez! — rebato.

Dougie arregala os olhos.

— Enlouqueceu? Essas pessoas mal estão suportando os covers. Elas

com certeza não vão dar a mínima para nossa música autoral.

Eu o ignoro.

— Ronnie? — chamo.

Mas o olhar dela não está em mim. Ela está observando a garota.

— “Fire Shroud”… — diz, de repente me encarando com um olhar

brincalhão. Ronnie sabe muito bem o que estou pensando, e acha isso

hilário. — Quer saber? Acho que é uma ótima ideia.

Dougie não tem tempo para reclamar, porque Ronnie faz a contagem

com as baquetas e começa a música. Jeff e Dougie se esforçam para


acompanhar, e logo entramos em harmonia e…

Estamos tocando nossa própria canção para a plateia. Estou berrando

as palavras de uma composição minha. Não é uma performance

impecável — tropeço na letra algumas vezes e Jeff esquece o refrão —,

mas no fim das contas é tudo perfeito, sim, é perfeito pra caramba. E

sentada no bar, a garota continua mexendo o joelho, ainda acompanha a

batida da música — a batida da minha música.

Estamos na última nota quando os amplificadores soltam um terrível

ruído agudo. Hesito por um instante, o ouvido doendo. Em seguida,

congelo quando vejo Bev. Ela está do lado do palco, furiosa, segurando o

cabo do amplificador.

— Não me provoque — avisa, entre os dentes, soltando o cabo como

se fosse uma cascavel. — Você está me arranjando uma enxaqueca.

— Isso foi sensacional — solta Jeff, enfiando o baixo na capa.

Dougie também está guardando a guitarra, mas muito quieto. Ele

nunca vai me perdoar por levá-lo ao limite daquele jeito.

— Isso foi sensacional — repete Jeff.

Ronnie me cutuca nas costas com as baquetas.

— Bom trabalho — diz ela, enfiando as baquetas no cinto.

— Quer uma bebida? — pergunto. — É por conta da casa. Eu te devo

essa, por me dar cobertura.

Ronnie abre um sorriso.

— Olha só, você pode me pagar desmontando e guardando a bateria,

que tal? Porque se perder a oportunidade que a gente acabou de criar

bebendo comigo, eu nunca vou te perdoar.

O jeito com que ela indica a garota do bar com a cabeça não é nada

sutil, e eu com certeza fico todo vermelho.

— Ronnie…

— Divirta-se! — cantarola ela, descendo do palco.

— Você é terrível — sussurro.

Ronnie dá um “tchauzinho”, sem se virar. Dá para ver que ela está

rindo, porque seus ombros balançam levemente, e em seguida ela sai do

Esconderijo, e a porta bate com força.


Capítulo Três

Bev vai para os fundos, reclamando baixinho que está com dor de

cabeça, como sempre faz depois dos nossos shows, e pega um maço de

cigarros escondido debaixo do caixa. Jeff e Dougie também já foram,

com desculpas sobre precisar fazer a tarefa de casa e horário de dormir.

Essas besteiras envolvendo família, escola… coisas normais.

Já a garota ainda está aqui, sentada ao bar como se fosse uma cliente

assídua, como o Sam Bebum faria. Num impressionante ato de

disciplina, dou duas voltas pelo Esconderijo, recolhendo copos vazios

antes voltar a encará-la. Estou muito consciente da presença dela e fico

até um pouco acanhado pelo movimento dos pés batendo o salto no

balcão, pelo tilintar do gelo que derrete em seu copo. Pelo olhar

penetrante, que parece focado nas minhas costas.

Ela não me olha diretamente quando me aproximo, nem mesmo

quando coloco cinco copos sujos no balcão ao seu lado. Respiro fundo.

Devo ficar quieto? Devo dizer alguma coisa? O que eu digo? “O que

achou do show?” “Você foi a única pessoa que realmente quis nos

ouvir… E aí, gostou?”

“Você gostou de mim?”

— Nada mau.

É ela quem acaba falando primeiro. Sua voz é baixa, um pouco rouca

— mas talvez seja porque o ar do Esconderijo é composto praticamente

apenas por fumaça de cigarro. A garota se apoia no balcão com os

cotovelos, e, como o encarregado da limpeza, considero essa decisão

corajosa. Seus olhos, grandes e escuros à meia-luz, percorrem o bar

como se houvesse algum tesouro escondido no letreiro néon vagabundo

e piscando.

— A bebida ou a música? — pergunto.

— A bebida com certeza não é das melhores.


Ela dá um sorriso contido. Tento adivinhar a cor do seu batom, mas é

difícil decifrar nessa iluminação.

— Pedi um uísque com Coca-Cola. Mas não tenho certeza do que é

isso aqui — comenta ela.

— Todos esses drinques da Bev parecem um acidente. Esse é o nosso

mais refinado drinque Coca-Cola Esquisita. Se tomar mais de dois você

acaba perdendo a visão.

Ela ri. É um som tão agradável que, quando me dou conta, estou

encarando, admirado.

— Paige — apresenta-se ela, estendendo a mão.

A garota enfim olha para mim, e pela primeira vez vejo seu rosto por

completo.

Sardas. É o primeiro pensamento idiota que me ocorre, apenas uma

palavra solta, sem nenhum sentido. Mas isso não é culpa minha, porque

ela tem várias sardas espalhadas pelo nariz, pelas bochechas e

contornando seu cabelo escuro bagunçado na altura do queixo.

— Eddie — digo, e a primeira sílaba sai meio aguda.

Levo alguns segundos para estender a mão e cumprimentá-la.

— Eddie Munson, né?

Eu me esforço para não fazer uma careta. Game over. Acabou para

mim. Ela sabe quem sou eu, o que significa que não existe a menor

chance de ficar para tomar um drinque comigo.

— Sim? — respondo, meio na defensiva, mas é porque eu sei a

reação que vem a seguir.

Então é melhor encarar a situação logo.

Mas Paige apenas sorri, de uma maneira tão alegre que baixa minha

guarda por completo.

— Achei mesmo que fosse você quando te vi no palco — declara ela.

— Vocês mandaram bem.

— Ah… — Isso é tudo que eu consigo dizer.

— Show de talentos, no inverno de 1981. Você tocou aquele cover de

“Prowler” que ninguém gostou.

Ninguém gostou é até elogio. A gente foi expulso do palco na metade

da performance, e na semana seguinte os caras da Associação de Pais e

Professores bateu na porta dos nossos pais, preocupados com a


possibilidade de a Corroded Coffin estar convertendo seus filhos

queridos ao satanismo.

Quem quer que seja essa garota, ela testemunhou aquele desastre.

Sinto que deveria me esforçar para reconhecê-la, mas decido que não.

Depois de alguns instantes em silêncio como quem está numa ligação

em espera, Paige parece ter ficado com pena de mim.

— Paige Warner — diz ela. — Estudei na Hawkins High, me formei

em 1982.

Ao menos isso é familiar.

— Warner…

— Meu irmão ainda estuda lá. Está no terceiro ano e é do time de

beisebol.

Significa que provavelmente ele já foi babaca com os integrantes do

Hellfire Club pelo menos uma vez.

— Quer outro drinque? — pergunto, porque não quero discutir os

altos e baixos dos esportes do ensino médio.

Ela arqueia a sobrancelha como se soubesse muito bem o que estou

fazendo.

— Mas não vou perder a visão? — questiona.

— O que é a vida senão correr riscos?

Dou a volta no bar com uma desenvoltura impressionante. Tenho

mais ou menos cinco minutos até que Bev volte da pausa para se

recuperar da dor de cabeça (que na verdade é uma pausa para fumar) e

grite comigo por fazer tudo errado, então preciso aproveitar cada

segundo.

— Forte ou fraco?

— Fraco. Ainda tenho que passar na casa dos meus pais.

Preparo o drinque, quase esvaziando uma lata de um refrigerante

genérico no copo e deslizando-o na direção dela.

— Então… — começo, observando Paige tomar um gole. — Você

deve estar de passagem, senão já teria te visto por aí.

— Hum. — Ela deixa escapar, olhando para mim.

— Hum — repito, franzindo o nariz. — Não finge que isso é uma

resposta. Você já saiu deste buraco, agora está de volta por… sabe-se lá

quanto tempo. E por alguma razão decidiu vir tomar um drinque aqui,
mesmo havendo vários lugares na cidade em que não acabaria com

alguém vomitando em você no estacionamento.

— E se eu te disser que este é o único bar nas redondezas que tem um

palco, e que eu queria escutar um pouco de música ao vivo?

Olho para os terríveis amplificadores e para o palco capenga.

— Eu diria que seria melhor ir para outro lugar — retruco.

Paige dá outra risada.

Eu continuo:

— A não ser que você tenha vindo ver a gente, especificamente.

— Antes que seu ego comece a inflar, não. Foi só uma feliz

coincidência mesmo.

— Feliz, é?

— Aham — responde ela, encolhendo os ombros e contornando o

copo com o dedo. — Você acertou, estou de passagem. Minha avó

morreu faz pouco tempo, e a casa dela está uma zona de guerra. Ela era

muito acumuladora. Vim passar algumas semanas ajudando meus pais a

arrumar tudo. Mas é coisa demais. Nós encontramos, sei lá… três gatos

mortos.

— São muitos gatos mortos.

— Com certeza. Talvez seja por causa desse massacre felino, mas

sinto muita saudade de Los Angeles. E esse bar é o mais próximo do

Roxy Theatre que dá para achar aqui em Hawkins, Indiana.

Uau. Balanço a cabeça, me esforçando para afastar as visões de areia,

surfe e sol.

— Uau. Los Angeles? — Uau. — Nossa, já me senti mal o suficiente

por você ter sido arrastada de volta pra cá. Mas ter que sair da Califórnia

é ainda pior…

Paige levanta a cabeça.

— Não é tão ruim assim.

O jeito com que ela me olha me deixa tonto, e finalmente entendo por

quê. É tão estranho. No geral, quando alguém olha para Eddie Munson,

vê o pária da cidade, o esquisito. Mas Paige… ela está me vendo apenas

como uma pessoa.

Como se eu fosse uma pessoa que ela quisesse conhecer melhor.

Não tenho sido exatamente um monge desde a tentativa desastrosa de

beijar Ronnie cinco anos atrás. Teve a Nicole Summers no segundo ano,
e — incrivelmente — Cass Finnigan alguns meses atrás. Mas dava para

ver que as duas estavam apenas… se desafiando. Elas não queriam ter

algo comigo de fato. Só queriam contar aos amigos como era ficar com o

esquisito.

Não que isso seja terrível. Não partiu meu coração. Eu não queria

namorar ninguém. Mas o jeito que Paige me olha…

— Então, hum… — Pigarreio. — O Roxy Theatre, hein?

— O Roxy Theatre, o Troubadour, o Whisky a Go Go… dá sempre

para me achar em um deles à noite.

— Isso… Para ser sincero, isso parece o paraíso.

— Parece. E algumas vezes é mesmo. Mas no geral é apenas trabalho.

Eu fico de olho no pessoal.

— Tipo uma segurança…?

Levanto a mão e presto continência. Ela dá um sorriso que franze o

rosto, e reparo em suas sardas de novo.

— Tipo para uma gravadora, engraçadinho. Sou caça-talentos da WR

Music. Trabalho para Davey Fitzroy, ele é…

— Sei quem é Davey Fitzroy.

Sinto como se fosse desmaiar, ou talvez estivesse enlouquecendo. É

insano ouvir alguém em Hawkins mencionar casualmente um nome que

só li nas letras miúdas das capas dos meus discos preferidos.

— Ele é um gênio — declaro.

— É mesmo. Entre outras coisas.

Tento afastar a animação e arqueio as sobrancelhas.

— Tem alguma história para contar? — pergunto.

— Tenho… — começa ela, rindo com pesar. — Há dois anos fujo de

guitarristas drogados e baixistas bêbados que pensam que o caminho

para chegar no meu chefe é ficar comigo. Não que isso fosse ajudar

mesmo se eu estivesse interessada. O passatempo do Davey é rejeitar

pessoas, e a única maneira de ser promovida na WR é conseguindo uma

contratação, o que significa que estou presa em um beco sem saída até

que Davey me demita ou eu peça demissão. — Ela toma um gole do

drinque, as palavras saindo mais rápido agora. — Assisto a vários

shows, em especial de músicos desconhecidos. Procuro por caras como

você, bandas como a Corroded Coffin, que tocam em bares minúsculos.


Mas, mesmo que sejam bons, nunca encontrei uma banda que Davey

quisesse contratar. Elas não têm o que ele está procurando.

— E o que ele está procurando?

— Algo verdadeiro. Sempre dá para saber quando alguém é autêntico

no palco. Quando você encontra algo assim, é impossível desviar o olhar

— diz ela, tocando no gelo dentro do copo com a unha pintada de preto.

— Aqui entre nós, vou te contar um segredo…

Coloco a mão no peito.

— Sigilo entre cliente e bartender — brinco.

— Não sei quanto tempo vou conseguir continuar dando com a cara

na parede. Quer dizer, eu amo música. E até amo a música como

negócio, ou o que seja. Mas se não houver lugar para mim…

— Júnior!

A voz de Bev soa como um chicote. Estremeço e seguro o pano de

prato com as duas mãos como se ele fosse me proteger daquele

minitsunami fedendo a tabaco.

— Avisei para você repor a cerveja já tem dez anos, e o barril ainda

está vazio — grita ela.

— Um segundo, Bev — respondo.

Mas Paige já está terminando o drinque e colocando o copo no

balcão. Em seguida, passa a alça da bolsa pelo ombro.

— Te vejo por aí — despede-se ela.

— Júnior — chama Bev.

— Estou sempre por aqui — digo para Paige.

Ela desvia do Sam Bebum e sai. Quando vou para os fundos fazer o

que Bev pediu, percebo que estou sorrindo.

Algo verdadeiro. Quando você encontra algo assim, é impossível

desviar o olhar.

Acho que sei exatamente o que Paige quer dizer.


Capítulo Quatro

Dirigindo até a Filadélfia, ainda estou animado. Em outro mundo, talvez

onde não fossem duas da manhã, eu pudesse estar cantarolando.

Andando nas nuvens. E todas essas coisas que dizem em comédias

românticas.

Caras como você. Não é bem essa a frase completa, mas é o que

Paige de fato falou. Como se fosse um elogio. Caras como você.

Balanço a cabeça, avançando pelo caminho de cascalho na frente da

casa. Foco, Munson. Durma um pouco, você está pensando demais.

Mas não é tão fácil quanto parece, porque quando abro a porta da van

e piso no gramado, vejo algo que faz meu coração afundar. Percebo que

a luz da cozinha está acesa, escapando fraca por uma fresta entre as

cortinas, mas sei que ela devia estar apagada. Só que não é isso que me

deixa tão nervoso; há dois pares de botas na porta. Um deles é mais

antigo, mas está impecável, alinhado junto à parede com uma precisão

cuidadosa. O outro está cheio de lama, jogado, um dos pés caído para o

lado.

É este último par que está me dando nos nervos. Conheço essas

botas. Já perdi as contas de quantas vezes vi esse calçado desaparecer da

minha vida.

Meu primeiro instinto é arrombar a porta o mais rápido possível. Mas

não vou me apressar; não quero dar às botas essa satisfação. Então levo

um tempo pegando minha guitarra na traseira da van, passando a alça

pelo ombro e me arrastando pelos degraus da entrada.

Meu pai está ocupando as duas cadeiras da cozinha quando entro,

jogado numa delas e apoiando os pés com meias na outra. Na mesa à sua

frente, um macarrão enlatado com uma colher dentro. Ele nem se

preocupou em retirar a tampa da lata por completo. A lâmina de

alumínio está virada para o lado como uma pétala afiada, protegendo o

que deveria ser meu jantar.


Tio Wayne não se deu ao trabalho de lutar por um assento. Está

encostado na bancada com as mãos nos bolsos, e uma sacola plástica de

mercado está caída no chão a seu lado. Não é uma cena incomum; meu

tio insiste em achar que eu não consigo me alimentar sozinho, então a

cada duas semanas mais ou menos, quando chego em casa, o encontro

enfiando refeições congeladas na geladeira mofada e estocando latas de

sopa nas prateleiras bagunçadas.

— Olha ele aí! — diz meu pai, tirando as pernas da cadeira.

Wayne apenas acena com a cabeça, sem tirar os olhos do meu pai.

— Oi, Eddie — cumprimenta ele.

Meu tio nunca foi muito de sorrir, mas agora está com a carranca

típica de quando encontra o irmão.

— Seu velho não ganha nem um oi? — pergunta meu pai.

Só então me dou conta de que estou parado na porta, encarando-o, há

quase vinte segundos.

— Quando você chegou? — questiono.

— Faz algumas horas. Muito trânsito.

— Veio de Joliet?

— E quem falou disso? Talvez eu estivesse em Chicago.

— A penitenciária estadual fica em Joliet — comenta Wayne.

Meu pai mostra a língua para o irmão.

— Homem de pouca fé! — Ele se levanta, abrindo os braços para

mim. — Que tal um abraço?

Eu deveria estar mais relutante conforme avanço devagar na direção

dele. Deveria sair, pegar a van e dirigir noite adentro. Mas essa história

sempre começa da mesma forma: um abraço que cheira a couro, cigarro

e colônia barata. E sempre termina da mesma forma.

Aceito o abraço.

— É bom ver você, garoto. Senti saudade — declara ele, dando

tapinhas nas minhas costas.

Não o suficiente para telefonar, penso. Em seguida, me questiono:

por que não dizer isso, afinal?

— Não o suficiente para telefonar.

Ele dá um passo para trás, ainda me segurando.

— Você é inteligente demais para ficar sendo supervisionado. Não é,

Wayne?
Tio Wayne só olha do meu pai para mim.

— Fiz compras — comenta ele.

— Compras… — Meu pai dá um peteleco na tampa da lata de

macarrão, salpicando molho por toda a mesa da cozinha. — É um

milagre você não estar doente, já que só come essa porcaria.

— Obrigado — digo para Wayne.

— Me lembre de preparar uma refeição de verdade para você —

continua meu pai. — Vamos passar no mercado, comprar uns temperos,

açúcar, farinha. Ingredientes. Sabe o que é isso, Wayne?

O sorriso desafiador dele me convida a participar, a rir do meu tio

com ele. Para ser sincero, é difícil resistir, mas engulo o impulso e me

forço a estudar seu rosto. Meu pai não ia aparecer aqui se não tivesse um

bom motivo, e seus “motivos” no geral são uma bomba. Quanto mais

cedo eu descobrir qual é a de agora, mais cedo posso fugir da explosão.

— Quanto tempo vai ficar desta vez? — pergunto.

Meu pai revira os olhos.

— Você tem passado tanto tempo com seu tio que está falando que

nem ele. “Quanto tempo? Quanto tempo?”

Os ombros do meu tio estão tensos.

— Quanto tempo, Al? — questiona Wayne.

— Sei lá — diz meu pai, dando de ombros.

Pelo menos está sendo honesto. Eu teria chutado ele porta afora se

dissesse algo como “Vou ficar para sempre desta vez”.

— Ótimo — digo, entre os dentes, enquanto pego uma cerveja na

geladeira.

No geral não gosto de beber depois de trabalhar no Esconderijo, já

que o cheiro de cerveja derramada fica entranhado nos meus poros, mas

parece que hoje é uma exceção.

— Eddie, vo…

— Pega você mesmo a sua cerveja — declaro, batendo a porta da

geladeira.

Viro para encará-lo, mas seu olhar logo me faz congelar.

Al Munson é um cara que ocupa bastante espaço. Ar, atenção e até a

segunda cadeira da cozinha — se estiver disponível, é dele. Mas a

verdadeira magia que o envolve é que é muito difícil odiá-lo. Ele pode

roubar um beijo da namorada de um motoqueiro e ainda assim terminar


o dia jogando sinuca com o cara. Ele sorri para todo mundo e tem um

carisma fenomenal. Eu mesmo já testemunhei ele fazendo o delegado

Hopper dar uma risadinha. Todo mundo que conheceu Al Munson sabe

que é impossível não amá-lo.

Eu herdei o cabelo, a van e as palhetas da guitarra dele. Mas ninguém

ama Eddie Munson à primeira vista.

Por isso fico chocado quando percebo que, de pé na cozinha neste

exato momento, Al Munson parece pequeno. Dá para ver que seu sorriso

vitorioso está vacilante, sua magia está tremendo. Ele não para de

encarar o teto. Não olha nos meus olhos.

Tio Wayne também notou. Lança um olhar de aviso para mim, como

se soubesse o que está por vir. Porque é óbvio que sabe. Ele já viu essa

cena se repetir muito mais vezes do que eu.

— Está ficando tarde, Wayne — diz meu pai. — Acho que você

precisa ir para casa.

Wayne trinca a mandíbula com tanta força que parece que vai quebrá-

la. O movimento dura alguns segundos, mas ele enfim alivia a pressão

dos dentes o suficiente para dizer:

— O quarto no trailer está arrumado se você quiser, Eddie.

Balanço a cabeça.

— Não precisa.

— Hum… — Wayne ajeita seu boné e vai até a porta. — Vejo você

por aí, Al.

— Com certeza, nos vemos por aí — responde, irônico.

Em seguida, a porta se fecha. Agora estamos apenas meu pai e eu,

juntos na cozinha pela primeira vez em um ano.

Ele balança a cabeça.

— Dá para acreditar que a gente é parente de um careta desse? —

comenta.

Mas não me distraio tão facilmente, não quando vejo no rosto do meu

pai que algo está errado.

— O que aconteceu?

— Eu… — Ele respira fundo. — Eu fiz merda.

Aí está. O motivo.

— Envolve a polícia?

Ele balança a cabeça.


— Eu… eu me precipitei. Peguei dinheiro emprestado de quem não

deveria. Agora preciso pagar.

Coloco minha cerveja no balcão.

— Que dinheiro?

— Você acreditaria se eu dissesse que doei o dinheiro para uma boa

causa? — indaga ele, e por um breve momento há um lampejo divertido

em seu olhar. — Que dei tudo para uma viúva faminta e seus três filhos?

Apenas olho para ele, em silêncio. O lampejo se apaga.

— Acho que não, né. Tudo bem. É uma dívida de jogo. Acabei de

passar dois meses na prisão federal do Colorado. Frankie e seus caras

me buscaram, e nós fomos dar uma relaxada num cassino. — Ele sorri

para mim, um sorriso amarelo. — Mas agora estou quebrado.

— Quanto?

— Dez mil.

Sinto meu coração disparar.

— Pelo amor de Deus, pai!

— Eu sei, eu sei, escuta…

— Quem é essa gente? Eles estão vindo atrás de você?

Se o seguiram até a cidade, será que eu estou na mira? E se eu estiver,

será que Wayne pode ser um alvo também? E Ronnie? Será que existe

um espaço seguro no meio dessa zona?

— Eles estão vindo pra cá? — insisto.

— Me escuta.

Meu pai dá um passo à frente e põe a mão no meu ombro. É um

toque firme e seguro, de uma maneira que seu sorriso amarelo não era.

Sinto minha pulsação desacelerar.

— Eles não vão chegar nem perto da gente. Eu prometo — garante

ele.

— Por acaso você tem dez mil dólares guardados por aí que eu não

esteja sabendo?

— Ainda não, mas vou conseguir essa grana.

Meu pai pega a cerveja do balcão antes que eu possa reclamar, mas

não bebe. Enfia a garrafa na minha mão e envolve o vidro gelado com

meus dedos.

— Vem — diz ele. — Senta aqui um pouco.


Obedeço e puxo a cadeira que ele tinha usado como apoio para os

pés. Ele senta bem à minha frente para manter contato visual.

— Tem uma carga que vai sair de Pine Meadow, no Oregon, em

apenas algumas semanas. Ela vai atravessar o país, e chega em

Baltimore uns dois dias depois.

— Isso está começando a parecer uma aula de matemática —

observo.

— Então levanta a mão se tiver alguma dúvida.

Não consigo segurar uma risada. A magia dele nunca falha.

— Agora essa carga… — continua. — O lance é o que está dentro

dela. — Apoia os cotovelos na mesa, se aproximando. — Um milhão de

dólares em maconha de cultivo nacional, tudo embalado e pronto para

distribuição por toda a Costa Leste. Tudo de bandeja para nós.

Sinto meu coração disparar de novo. Olho fixamente para ele.

— Você… você quer roubar um milhão de dólares em…

Meu pai dá uma risada, como se eu estivesse falando besteira.

— Tá brincando? — diz ele — Mesmo que eu pudesse virar aquela

merda sozinho, o que faria com um milhão de dólares? Não, só quero o

bastante para quitar a dívida. Pensa assim: com uma torta tão grande,

ninguém vai notar se estiver faltando uma fatia minúscula.

— Uma fatia de dez mil dólares… — murmuro.

— E então? — pergunta ele. — O que você acha?

— Acho… acho que nada que eu disser vai fazer muita diferença.

Então fica à vontade para quebrar a cara.

Faço um brinde com a garrafa.

— Não, garoto, você não entendeu. Eu não dou conta dessa missão

sozinho. Preciso de mais alguém. Preciso de você.

Sinto uma dormência se espalhar pelo meu corpo e sei que não é

porque está tarde ou por causa da cerveja barata no meu sangue. É por

isso que senti meu coração sair pela boca só de ver as botas dele. Pensei

que já tinha descoberto O Motivo, mas eu estava errado.

Tudo de bandeja para nós. Foi o que ele disse. Não basta Al Munson

estar afundado na lama. Ele precisa me usar para se livrar dessa. E se

tudo sair do jeito que meu pai quer, eu não vou ser apenas um dano

colateral — vou ser parte da explosão.


— Esse trabalho é de baixo risco — explica ele, ignorando minha

crise interna. — Pegamos a carga e tiramos o que queremos. Não vamos

tirar muita coisa, não, só o suficiente para fazer a diferença. Um pouco

para mim, um pouco para você.

— … para mim… — repito, em choque.

Meu pai ri.

— Ah, não vai me dizer que um dinheiro assim não mudaria sua

vida.

— Não importa. Não vou cair nessa.

Ele balança a cabeça, só uma vez. É um gesto tão parecido com

decepção paterna que minha nuca se arrepia.

— Você não pode se decidir assim tão depressa — declara ele.

— Posso, sim. Encontre alguém pra te ajudar.

— Tem que ser você, Eddie.

— Por quê?

Ele fica sentado em silêncio, olhando para mim com aquele sorriso

aberto e autodepreciativo que já arrancou uma gargalhada até de Jim

Hopper, e decido que não posso mais ficar aqui. Eu me levanto, termino

a cerveja em poucos goles e limpo a boca na manga da camisa.

— O sofá está no mesmo lugar onde você deixou. Acho que lá tem

um cobertor.

— Pensa nisso — diz meu pai.

Ele está tão confiante. Só por um segundo, me imagino jogando a

garrafa vazia na cabeça dele. Mas tenho que me contentar em abaixar a

tampa do macarrão enlatado.

— Vai para o inferno — falo, indo até a porta da cozinha.

— Isso vai acontecer de qualquer jeito, garoto — solta meu pai, tão

baixo que quase não escuto. — Se vai ser mais cedo ou mais tarde, só

depende de você.
Capítulo Cinco

— Na verdade, a questão é muito simples. Quem você quer ser?

Ao lado da bancada do laboratório, Gareth franze a testa. Começo a

achar que essa é sua expressão normal, e quem sou eu para julgar. Se

tivesse aqueles cachinhos castanhos adoráveis e um sorriso metálico,

provavelmente também ficaria de cara amarrada o tempo todo.

— Quero ser Illian.

— Illian virou comida de peixe. Me ajuda a te ajudar!

— Eu não sei! — rebate Gareth, fincando o lápis no bloco como se o

papel tivesse matado a mãe dele.

Ele está irritado desde que entrou no laboratório de química vinte

minutos atrás, e até agora seu humor não melhorou muito. Estamos com

as luzes apagadas porque não tive tempo de puxar o saco do sr. Vick

para conseguir uma reserva. É fácil arrombar as fechaduras dessas

portas antigas, mas odeio fazer isso. Primeiro porque são altas as

chances de algum professor intrometido passar e me ver. Segundo…

Preciso de mais alguém.

Segundo porque talvez eu não me orgulhe muito de saber fazer isso,

no fim das contas.

Deixei meu pai roncando até chacoalhar a casa, jogado no sofá. Ele

não moveu um músculo quando abri a porta hoje de manhã, e fiquei

observando-o por um momento na luz do sol, engolindo os sentimentos

complicados que brotavam no meu peito.

Al Munson já voltou para minha vida de tudo quanto foi jeito. Às

vezes ele sai da cadeia e precisa de um lugar para dormir. Às vezes ele

precisa pegar dinheiro emprestado com Wayne. Às vezes arruma um

trabalho honesto (“Dessa vez é pra valer”). Essas são as que duram

menos.

Mas ele nunca volta por mim. E mesmo que não esteja tentando

recuperar nossa relação, agora voltou porque quer minha ajuda. Poderia
ter procurado qualquer um de seus amigos, mas veio me procurar.

Eu não deveria ficar feliz por isso, certo? Não, com certeza não.

Mas…

— Como assim você não sabe? — pergunto, confuso. — Você sabia

quando fez Illian.

Gareth está se balançando para trás numa banqueta do laboratório.

Percebo também que ele evita usar o braço esquerdo. Não falei nada

sobre isso ainda — afinal, não quero tomar o lugar de seu bloco de papel

como saco de pancadas.

— Jeff fez Illian. Disse que eu não poderia entrar no Hellfire Club

sem um personagem, e ele não queria esperar um bilhão de anos até que

eu entendesse como preencher uma ficha. Aí só me deu uma pronta.

— Bem… isso não ajuda muito.

— Tanto faz. A gente não precisa…

A banqueta, que estava apoiada apenas em duas pernas, é lançada ao

chão. Gareth dá um salto.

— Tá, vamos focar no mais importante, calouro — digo, me

arriscando e dando um soquinho no bloco de papel, impedindo que ele o

guardasse. — Eu sou o Mestre, certo?

Gareth me olha, cauteloso.

— … Certo.

— Então sou eu quem comanda nossas sessões. E eu digo quando

elas terminam. Entendido?

Gareth assente.

— Ótimo — declaro. — Agora senta essa sua bunda aqui e vamos

pensar.

Ele ajeita a banqueta e volta a se sentar.

— Obrigado — digo. — Agora vamos ao básico. Anão, elfo, humano,

gnomo… o que te chama atenção?

— Illian era meio-elfo…

— Não perguntei o que Illian era, eu sei o que ele era. Ele era do Jeff.

Perguntei o que te chama atenção.

— Eu… gosto de anões — revela Gareth.

— Maravilha. Posso?

Puxo o bloco de papel e gentilmente, como se estivesse desarmando

alguém, pego o lápis da mão de Gareth. Escrevo anão e sublinho duas


vezes.

— A próxima pergunta vai ajudar a definir sua classe, combinado? —

pergunto.

— Certo — diz ele, mais tranquilo.

— Alinhamento. O que você tem em mente?

Ele me olha inexpressivo, e então decido priorizar o item “gritar com

Jeff” na minha lista mental de afazeres.

— Olha… — continuo. — Isso significa quem você é de verdade, lá

no fundo. Ordeiro, caótico. Bom, mau. Então, por exemplo, se você for

jogar com um anão, o livro de regras diz que você está mais para

ordeiro, embora a solução do enigma anão bom versus mau fique a seu

cargo. Quando você entender qual é a combinação que prefere, ordeiro-

bom, ordeiro-mau, até mesmo ordeiro-neutro, você vai desenvolver um

tipo de… não sei. Código moral, eu acho? E aí vai tomar decisões de

acordo com isso durante o jogo.

Gareth franze o cenho, assimilando a informação.

— Então se eu for um anão, tenho que ser ordeiro…

— Você não tem que ser nada. Isso é uma mera sugestão. É o que a

maioria das pessoas pensa que um anão é. Ordeiro-bom.

Gareth franze o nariz, e eu dou uma risada.

— Eu sei, cortei seu barato. Mas quer saber? Eu gosto de misturar as

coisas. Anão caótico-mau? Vamos nessa! Não se limite por causa do que

pensam que você deveria ser, nunca vale a pena. Faça o que acha que vai

ser mais divertido.

— Caótico — declara Gareth assim que paro de falar, tão rápido que

a palavra se une ao fim da minha última frase. Seus olhos estão

brilhando. Parece que pegou o espírito da coisa. — Quero ser caótico.

Caótico… bom.

— Uma escolha clássica, cara — digo, assentindo. — Agora vamos

falar de classes. Você já pensou em jogar como ladino?

Em uma hora nasce Hodash, o Terrível. É impossível pensar no que

aconteceu ontem à noite enquanto vejo Gareth avançar nas ideias e

rascunhar a história de origem do personagem. O entusiasmo do garoto é

contagiante, e dá para ver que Illian nunca foi dele para início de

conversa: Gareth jamais esteve tão imerso numa sessão do Hellfire Club
como está neste momento, debruçado sobre o bloco de papel, dando à

luz para seu anãozinho ladino caótico.

A base para o Hodash já está criada, e começamos a recolher os

papéis e livros para guardar nas mochilas.

— Posso te fazer uma pergunta, calouro? — indago.

Gareth me analisa, na defensiva, segurando sua mochila enorme.

— Aham.

— Calma, não vale nota — brinco, vestindo minha jaqueta. — Só

estou curioso. Se você nunca jogou Dungeons & Dragons antes do

ensino médio, se nunca nem preencheu uma ficha de personagem, por

que quis entrar para o Hellfire Club?

Gareth fica meio sem jeito.

— Para onde mais eu deveria ir?

Não tenho certeza do que responder, então só bagunço o cabelo dele.

— Cai fora daqui. Vejo você quarta que vem.

Ele baixa sua cabeça cacheada e sai correndo. Dou uma olhada ao

redor, arrumando o laboratório e me certificando de que eliminei

quaisquer vestígios de que estivemos aqui. Em seguida, saio e tranco a

porta.

Ronnie está me esperando num banco do lado de fora da biblioteca,

como sempre. Quando me vê, guarda o livro que estava lendo, alguma

bobeira que não vou me dar ao trabalho de ler para a aula de inglês, e se

levanta.

— O calouro teve uma crise?

— Foi contornada.

— Ufa — diz ela, fingindo secar suor da testa. — Não dá para deixar

as ovelhas soltas.

Seguimos devagar pelo corredor, em direção à saída.

— Não acredito que você veio hoje — comenta Ronnie, passando o

braço por cima dos meus ombros. — Pensei que tivesse ido se divertir

por aí com aquela garota de ontem.

— “Se divertir”? Vovó Ecker, é você?

— A vovó Ecker diria: “É melhor você encapar suas partes se não

quiser um outro diabinho Munson por aí.”

— É por isso que sua avó e eu nos damos tão bem. Não me diverti

desse jeito. Fui um perfeito cavalheiro, e ela, uma perfeita dama.


— Que chatice.

Giro minhas chaves no dedo.

— Estou vendo que você não está armando uma situação favorável

para ganhar uma carona. Você quer uma carona?

Ela ri.

— Última vez?

Reviro os olhos.

— Últi…

Atrás de mim, em algum lugar nos corredores vazios, há um barulho

de pancada. Ronnie aperta os olhos.

— Ouviu isso? — questiona.

Dou de ombros.

— Você quer uma carona ou não?

Outra pancada, desta vez seguida por um baque metálico. Era o som

inquestionável de alguém sendo atirado contra os armários.

Olho para Ronnie, que está me encarando.

— Será que…? — pergunta ela.

Quero dar de ombros outra vez e ir logo até a van para contar a

Ronnie sobre Paige, sobre meu pai, sobre todas as doideiras que

aconteceram na noite passada. Mas então ouvimos de novo, e agora com

uma voz que parece ser do Gareth, sussurrando:

— … já te disse, eu não tenho.

— Merda — murmuro.

Ronnie sai em direção ao corredor da confusão, mas eu a seguro pela

manga da camisa.

— Vai chamar alguém — digo.

— Mas…

O protesto de Ronnie desaparece quando ela olha para mim. De nós

dois, é ela quem de fato consegue ajuda se pedir, e ambos sabemos

disso. A contragosto, ela dá meia-volta e sai correndo para a sala dos

professores.

De repente, estou sozinho. Enfio as chaves no bolso e vou atrás do

barulho da confusão.

Gareth está encurralado do lado de fora do auditório, mais uma vez

protegendo o braço esquerdo, encostado nos armários mas sem deixar o

olhar vacilar.
Não que isso faça algum efeito nos três garotos de jaqueta do

Hawkins Tigers que o cercam. Reconheço-os dos poucos jogos a que

Ronnie me levou. Eles são do time de basquete de Hawkins. Qual será

que é o oposto de campeões estaduais? Bem, esse é o título deles.

— Sabe muito bem o que te aguarda, boca de arame — diz o líder

dos babacas, Tommy H, o pior jogador de Indiana. — Um soco por cada

dólar que você me deve. Que são quantos, vinte?

— Vinte e cinco. Tem juros — responde um de seus comparsas.

Esse é o Connor? Caleb? Eu precisaria começar a me interessar

minimamente por esportes para ter certeza, e isso nunca vai acontecer.

— Vinte e cinco — concorda Tommy H. — Negócio fechado.

Gareth parece estar tentando abrir um buraco nos armários.

— Por que você não fecha negócio com outro idiota? — rebate ele.

— Por que eu não fecho sua maldita…

Mas jamais terei o prazer de ouvir a continuação da resposta pouco

criativa de Tommy H, porque Gareth me vê, e seu rosto se ilumina feito

um farol. Não é difícil perceber a mudança de expressão, mesmo para

esses babacas, e de repente cinco pessoas estão me encarando — e três

delas são Tommy H e sua panelinha de amigos atletas…

… e a quarta é uma líder de torcida loira de rabo de cavalo. Conheço

seu rosto de algum lugar, mas não consigo, de jeito nenhum, me lembrar

de onde.

— Quer alguma coisa, esquisito? — rosna Tommy H.

Nada em particular.

— Você está bem? — pergunto a Gareth.

— Aham — diz ele, assentindo.

Apesar dessa resposta, dá para imaginar onde isso vai parar.

— Olha, acho que ouvi sua mãe estacionar ali na frente. Você não

quer deixar ela esperando…

Quando Gareth tenta sair, Tommy H o agarra pelo ombro e o atira de

novo contra os armários.

— Nem pensar — diz ele. — Não até pagar o que me deve.

A líder de torcida puxa a manga da camisa de um dos amigos de

Tommy H, um garoto que parecia um camarão loiro.

— Vamos, Jason, podemos ir embora?


— Só mais um segundo… — Jason afasta a namorada. — Você é

Eddie Munson, certo?

Ele tem um lampejo obsessor no olhar. Isso me apavora muito mais

do que os músculos do Tommy H.

Encosto na parede e cruzo os braços. Se não dá para ficar calmo de

verdade, com certeza posso fingir.

— Qual o problema? — pergunto.

— Munson? — diz Tommy H, me olhando diferente. De repente, um

sorriso sádico cresce em seu rosto. — Cara, isso é hilário.

A garota loira agarra o pulso de Jason, puxando com força.

— Deixa eles pra lá, isso não importa… — suplica ela.

— Você quer que um Munson te ajude? — pergunta Tommy H,

irônico, olhando para Gareth enquanto segura a gola da camisa dele. —

Essa família cheia de fracassados e esquisitos…

Engulo a raiva que surge.

— Cara, não estou a fim de começar uma… — digo, mas ele me

interrompe.

— Ouvi dizer que os policiais ficam apostando em quem será o

próximo a prender seu pai. Ou se ele vai aparecer morto na beira da

estrada antes.

— Para com isso, Tommy — pede a garota, deixando de lado o

namorado maluco e entrando na rodinha para agarrar o punho de

Tommy. — Deixa eles pra lá — repete ela.

A garota puxa a mão dele. E talvez tenha sido o choque de ver

alguém com o uniforme verde do Hawkins Tigers enfrentando-o, mas

Tommy H solta Gareth.

Chrissy Cunningham. O nome dela me vem à cabeça de repente, em

grande parte porque agora há algo além de uma obediência amedrontada

em sua expressão. Chrissy Cunningham. Ela está no segundo ano, e todo

mundo com um mínimo de inteligência sabe que é uma das garotas mais

populares da Hawkins High. Eu achava que ela era apenas uma líder de

torcida de dentes bancos, cabelos impecáveis, toda perfeitinha. Tão

desinteressante que meu cérebro apenas a ignorou, como se tivesse

bocejado diante de sua existência.

Mas esta é outra Chrissy Cunningham. Só não imaginava que ela

tivesse sobrevivido à chegada ao ensino médio. Não imaginei nem


mesmo que ela tinha saído do ensino fundamental, que existisse fora do

auditório da Hawkins Middle.

Uma peculiaridade sobre o Show de Talentos Júnior de Hawkins era

que todo aluno do ensino fundamental tinha que participar pelo menos

uma vez. Em termos de experiência, era bem torturante, e com certeza

atormentou muitos pré-adolescentes ansiosos que precisavam cantar e

dançar diante de um júri formado por colegas que riam das

apresentações e por pais que foram arrastados para a plateia. Mas, com o

objetivo de “exercitar a habilidade de falar em público”, o evento

continuou sendo realizado ano após ano, e, ano após ano, mais uma

geração de crianças em Hawkins era traumatizada.

Tentei adiar esse momento o máximo que pude. Também tentei

passar despercebido pelo nono ano, mas um dia o sr. Fleming me

chamou diante da turma, na aula de inglês, e me forçou a me inscrever.

Mas eu não ia cair naquela cilada sem levar meus amigos junto. Então

fiz Ronnie se inscrever, e ela fez Dougie se inscrever…

E assim… nasceu a Corroded Coffin.

Antes da noite do show de talentos, só tínhamos ensaiado a

apresentação duas vezes. Conseguimos aprovar a música do Judas Priest

com a administração da escola apenas por enfatizar a palavra priest, que

significa “padre”, e eu estava a ponto de vomitar. Por isso meu pai

manteve distância quando foi me levar até o evento — um movimento

em falso e ele teria voltado para casa com os salgadinhos que eu tinha

comido no almoço dos pés à cabeça.

“Aqui”, disse ele, encaixando uma palheta entre meus dedos.

Era a palheta dele. Levantei o rosto, me sentindo o Gollum

admirando o Um Anel.

“Você vai arrasar”, declarou ele.

“Você vem hoje, não vem?”, perguntei.

Meu pai abriu um sorrisinho, e imediatamente me senti melhor.

“Você sabe que sou um espírito livre, garoto”, disse ele, apertando

meus dedos em volta da palheta. “É sua, aliás. Para sempre.”

Horas depois, a escola começara a longa programação, mas eu ainda

segurava a palheta com força o bastante para ficar com câimbra. A

maioria dos artistas relutantes havia acampado no corredor do auditório,

já que o teatro não tinha um camarim muito grande. Mas se você fosse
esperto (e ninguém estivesse a fim de te procurar), havia uma pequena

passagem suspensa que levava ao canto da cortina. Com um pouco de

furtividade, era possível ficar esperando ali procurando rostos familiares

na plateia.

Era isso que eu estava fazendo quando alguém surgiu ao meu lado.

Quase gritei de susto. Estava tão concentrado nos curtos vislumbres

da plateia que nem notei alguém se aproximando. De repente tinha uma

garota ali, os braços magros abraçando as pernas magras, seus olhos

grandes escurecidos pela má iluminação da passagem.

“Está procurando alguém?”, perguntou ela, baixinho.

No palco, cinco alunos do oitavo ano faziam uma coreografia meio

desajeitada com bastões.

Eu não tinha muita certeza do que responder. Pelos meus cálculos, ela

não era o tipo de garota que deveria estar falando comigo. Não era

Ronnie Ecker, não usava uma jardineira de segunda mão e um boné

surrado. Aquela garota era elegante. Tinha cabelo loiro e ondulado.

Parecia estampar a capa de um livro da Nancy Drew.

Mas depois de um longo silêncio, ficou evidente que ela não tinha

cometido nenhum erro terrível ao falar comigo, ou ao menos nenhum

que ela tivesse percebido.

Soltei um pigarro.

“Meu pai”, sussurrei.

“Onde ele está?”, perguntou ela, se inclinando como se fosse capaz

de encontrar Al Munson num mar de adultos estranhos.

Dei de ombros. Ficara ali naquela passagem por quase uma hora e o

máximo que pude encontrar foi tio Wayne plantado no lado esquerdo do

auditório, assistindo a cada apresentação com a mesma expressão

indiferente no rosto barbado.

“Ele não veio?”, indagou ela.

Esperava ver pena nos olhos da garota, mas fiquei surpreso ao

encontrar uma forte inveja.

“Ele só está atrasado”, expliquei.

Até eu ouvi minha mentira. Mas a garota assentiu como se tivesse

acreditado.

“Subi aqui para procurar minha mãe.”

“Ela também está atrasada?”


A garota fez uma careta.

“Quem dera. Ela está bem ali.”

Segui a direção do seu dedo e logo encontrei uma mulher impecável e

elegante sentada no meio da primeira fileira.

“Sinto muito”, disse.

Ela abriu um sorriso.

“Eu também”, murmurou ela, como se fosse um segredo, como se

fosse algo nunca dito a alguém.

Uma das garotas que estavam se apresentando deixou o bastão cair

pela quinquagésima vez, e então percebi que aquele número estava

chegando ao fim. Eu tinha me encolhido para dar lugar a ela, e fiz uma

careta quando a grade da passagem machucou meus joelhos.

“Minha banda é a próxima…”

“Merda pra você”, disse ela. “E, hã…”

“Eddie.”

“Eddie. Se seu pai não conseguir chegar, eu vou torcer por você.”

Ela agitou os braços, e pela primeira vez notei seus pompons.

“Vou torcer por você também.”

Estremeci assim que a frase saiu da minha boca. Mas ela deixou

escapar uma risada, então quase valeu a pena o constrangimento.

Um pouco depois que os últimos acordes de “Exciter”, do Judas

Priest, golpearam os ouvidos ofendidos dos pais e responsáveis de

Hawkins, quando todos estavam dispersos após a última apresentação,

avistei a garota no salão do auditório, entre a mãe e um homem

inexpressivo de terno (talvez seu pai?). A mãe parecia estar brigando

com ela, mas eu não consegui escutar. Pelos gestos, dava para ver que a

mulher estava detalhando a parte da coreografia que a filha errou.

Encontrei o olhar da garota e sussurrei outro “sinto muito”.

Vislumbrei um pequeno sorriso quando a mãe, notando que ela não lhe

dava atenção, a segurou pelo ombro e a puxou pela porta.

Pensei que os últimos quatro anos tivessem eliminado qualquer

vestígio da preocupada, imperfeita e acessível Chrissy Cunningham.

Mas talvez eu estivesse errado.

— Chris tem razão — declara Jason. — Harrington pode chegar a

qualquer momento, e ele não vai gostar…


— Harrington não vai fazer droga nenhuma — rebate Tommy. —

Não desde que a Wheeler colocou o idiota na coleira. E esse garoto me

deve uma…

— Caramba… — digo, bem devagar. — Muito irônico você falar de

coleira, sendo que bate nos calouros só para manter seus amiguinhos de

quatro.

Mandei mal. Sei que mandei mal assim que abro a boca. Meu único

objetivo era salvar o Gareth e cair fora daqui, mas agora Tommy está

virando sua cara vermelha para mim. Qualquer resquício de

personalidade da Chrissy desaparece quando os amigos de Tommy se

aprumam atrás dele, e agora sou apenas eu contra um grupo de atletas

de cara feia.

Que maravilha.

— Parece que o Rei dos Esquisitos andou matando aula — provoca

Tommy. — Cabe a nós fazer com que ele aprenda a lição.

— Gareth… — Isso é tudo o que consigo dizer.

Neste momento, sinto o ombro de alguém golpeando minha barriga, e

vejo Tommy me atacando. Meus dentes batem quando sou arremessado

para trás e aterrisso no chão de linóleo. Sinto meus pulmões falharem ao

inalar, mas estou consciente o bastante para pronunciar apenas uma

palavra, olhando para Gareth:

— Corre.

Por sorte, Gareth consegue se mover depressa, porque vejo seus All

Star disparando na direção oposta em meio à confusão de pernas se

aproximando.

— O garoto nos devia vinte e cinco pratas — diz Tommy, zombando

de mim. — Mas acho que vamos ter que te cobrar o dobro.

Ele se prepara para dar um chute nas minhas costelas…

… e eu agarro sua perna e rolo no chão, trazendo-o comigo. Ele cai,

cuspindo vários palavrões diferentes.

— É essa a lição que você tinha em mente? — indago.

Tommy me empurra com um grunhido, lutando para ficar de joelhos.

Quando recupera o equilíbrio, ele puxa a mão e fica por cima de mim.

Cubro meu rosto com os braços, tentando me defender do melhor jeito

possível dos jogadores de basquete idiotas em volta.

— Posso saber o que está acontecendo aqui?


Não dou o braço a torcer, então a única coisa que vejo é um mar de

pernas se afastando e abrindo espaço para alguém com calças cáqui e

mocassins marrons. Mesmo sem enxergar o rosto dessa pessoa,

reconheço a voz:

— Sr. Hayes — diz o diretor Higgins. — Explique-se.

— Foi o Munson — choraminga Tommy H, ainda de joelhos. — Ele

estava assediando a Chrissy…

Que babaca.

— Mentira — protesta Ronnie, atrás do diretor.

— Isso não é verdade — diz Chrissy ao mesmo tempo.

— Vem, Chris — chama Jason, e a arrasta pelo corredor.

Por fim, relaxo os braços e me levanto, dando uma olhada para

Chrissy antes de ela ser levada embora.

— Não foi isso que aconteceu — explico.

— Esses caras estavam ameaçando um calouro — diz Ronnie para

Higgins. — Eddie só foi ver se ele estava bem…

O diretor Higgins ergue a sobrancelha.

— Onde está o calouro? — pergunta ele.

Não há sinal do Gareth, obviamente. Eu falei para ele correr.

— Ainda bem que o senhor chegou na hora — declara Tommy H. —

Não sei o que esse esquisito faria.

Reviro os olhos.

— Seu puxa-sa… — começo.

— Já chega — interrompe Higgins, gritando. — Sr. Hayes,

circulando. Você e seus amigos. O Hawkins Tigers precisa se concentrar

em aperfeiçoar suas atividades extracurriculares, não se envolver com…

— Ele gesticula para mim. — Isso.

— Obrigado, senhor — diz Tommy H. Em seguida, ele se apoia no

ombro do talvez-Connor e murmura: — Anda logo, idiota.

Os dois vão embora pelo corredor.

— Você também, Veronica — declara Higgins para Ronnie.

— Mas…

— Ronnie — chamo, encarando-a. — Está tudo bem. Cai fora daqui.

Posso ver sua mandíbula tensa, como se ela estivesse prendendo um

protesto entre os dentes. Depois de um longo instante, ela cede.

— Vejo você mais tarde — diz, tentando tirar de mim uma promessa.
— Mais tarde — respondo. Prometo.

E então restamos apenas Higgins e eu sob o zumbido das lâmpadas

do corredor vazio. Enfio as mãos nos bolsos.

— E quanto a mim, senhor? Todos somos Hawkins Tigers. Não tenho

atividades extracurriculares para aperfeiçoar?

O olhar cortante de Higgins poderia perfurar metal.

— Você vem comigo, Munson. E nós dois vamos ter uma

conversinha.
Capítulo Seis

A diretoria está quase vazia, exceto por Janice, a secretária, na mesa da

entrada. Como sempre, sua devoção fanática à cor roxa está estampada

em cada centímetro das roupas dela. Por trás dos óculos fundo de

garrafa, ela me olha de cima a baixo conforme acompanho Higgins até

sua sala. As unhas pintadas de roxo tamborilam ritmadamente em um

bloco de papel amarelo. Ela não parece animada em me ver.

— Esta é a confusão, diretor Higgins? — pergunta ela.

Ele suspira, exausto.

— Está surpresa?

— Hum. Quer que eu pegue o arquivo dele?

É como se eu nem estivesse aqui.

— Boa tarde para você também, Janice — digo, me inclinando ao

lado de Higgins para oferecer a ela meu melhor sorriso. O movimento

faz meu ombro doer, ainda está latejando por causa do Tommy H, mas

ignoro. — Preciso dizer que essa cor realça seus óculos.

— Não será necessário — declara o diretor, como sempre fingindo

que eu não existo. — Creio que todos temos o arquivo dele gravado na

memória.

— Não é pra tanto — reclamo. — Assim parece que isso acontece

com muita frequência! E acho que ambos sabemos o quanto gostamos

das nossas conversinhas particulares.

— O senhor vai precisar de… mais algum documento? — questiona

Janice.

Ela não fala com todas as letras, mas não precisa. O que Janice quer

saber, na verdade, é: Será que hoje Higgins finalmente vai realizar o

sonho da vida dele e expulsar esse garoto?

— Não — resmunga Higgins.

Nem sequer tento esconder meu sorriso. Se Higgins pudesse me

expulsar, já teria feito isso. Mas notas ruins não são suficientes para tirar
um aluno da escola. Não vendo drogas, não xingo professores. E em toda

briga que entrei, sempre fui o único a sair machucado.

Mas Higgins insiste em me arrastar para a diretoria sempre que pode.

— Venha.

Bato continência, dou uma piscadinha para Janice e acompanho

Higgins até sua sala.

Em algum momento nos últimos dois anos, parece que alguém

sugeriu que a porta da sala do diretor poderia ser mais convidativa.

Então Higgins colocou um cartaz grande com as palavras seu diretor

camarada impressas em letras pretas garrafais. É um cartaz fácil de

odiar, e já perdi a conta das vezes que sugeri a Higgins que o tirasse dali.

— Feche a porta — ordena ele.

Obedeço e me jogo na cadeira frágil na frente da mesa. Por um longo

momento, Higgins apenas olha para mim. Eu encaro de volta.

— Eu começo? — pergunto, por fim. — Não preparei nada…

— Pare de gracinha.

— Como se eu tivesse alguma graça.

— Não te trouxe aqui para ouvir suas baboseiras — declara ele.

— Então para que me trouxe, senhor? Já que, e estou dando a cara a

tapa falando isso, o senhor não se importa que o time de basquete esteja

agredindo alunos para ficar com o dinheiro do almoço deles. Ah, eu

esqueci… Eles estão se aperfeiçoando, não é?

O rosto de Higgins fica vermelho de raiva.

— Isso pode ser considerado excelência escolar? — insisto. — Ou

será porque o pai do Tommy H é dono da maior concessionária da

cidade e você não pode se dar ao luxo de irritá-lo?

— Não me provoque, Munson. Seu telhado é de vidro, e já está

rachando…

— Ah, nossa! Vivendo no limite. Nunca fiz isso antes, como deve

ser?

De repente, Higgins parece imune às minhas alfinetadas.

— Trouxe você aqui para que possamos conversar. De homem para

homem.

Isso é enigmático o bastante para fazer soar todos os alarmes

possíveis dentro da minha cabeça.

— Hum…
— Eu me pergunto se você já pensou seriamente sobre seu futuro.

Se eu tivesse uma lista de coisas que esperava ouvir de Higgins,

nunca teria considerado incluir isso. Nunca, nos meus quatro anos nesta

bendita escola, esse homem falou comigo num tom que não fosse de

pura irritação. Mas agora está se fazendo de conselheiro? Só pode estar

vindo uma reviravolta por aí.

— Algo me diz que você já faz isso por nós dois — retruco.

Ele bufa.

— Pela primeira vez seu único instinto está funcionando bem, então

— declara.

Higgins entrelaça os dedos, apoiando os antebraços na mesa. É um

verdadeiro gesto de seriedade, e isso me faz trincar os dentes. Ele

continua:

— Vamos começar pelo presente, então, se essa é a única coisa em

que você consegue pensar. Depois falamos do futuro. Quero fazer só

uma pergunta e quero que pense bem antes de responder. Está pronto?

Pode apostar, cara.

— Manda ver, senhor.

— Por que ainda está aqui?

Talvez Higgins esteja certo e meu QI seja abaixo da média, porque é a

segunda vez na mesma conversa que ele me deixa sem palavras. Olho

para ele, sem saber o que dizer. O diretor balança a cabeça, e a pena

nesse gesto estúpido me faz aumentar a pressão nos dentes.

— Quer que eu simplifique? — pergunta ele. — Muito bem. O que

mantém você na Hawkins High?

— O… fato de estarmos no meio do ano letivo?

— Mas isso é realmente algo relevante para você? Dá para ver que

não liga para as aulas, já que suas notas foram pelo ralo. Não tem como

recuperar, nem mesmo se você ganhar uma estrela dourada de todos os

professores. Você tem dezoito anos. Pode ir para qualquer lugar, fazer

qualquer coisa. Por que continua na escola?

Tenho uma resposta. Que é a seguinte: para onde mais eu poderia ir?

Mas não há nada no mundo que me faça admitir isso. Prefiro morrer a

dar ao diretor a satisfação de ouvir essa frase.

Não que ele precise. Pelo lampejo presunçoso em seus olhos azuis, dá

para ver que ele sabe.


— Você precisa de permissão para ir embora? — questiona ele. —

Então tudo bem. Pode ir.

Forço um sorriso.

— Mas o que vocês vão fazer sem mim?

— Você acha que é fofo — diz Higgins. — Mas vou lhe dizer o que

realmente é: uma maçã podre. E cabe a mim zelar para que o restante da

minha escola não seja contaminado. Mas, antes de tomar uma atitude

extrema, pensei que podia ver se há algo embaixo dessa cabeleira.

Apelar para o seu caráter, sabe? Se é que tem algum.

Sinto meu sangue esquentar.

— Então é uma aposta.

— Pois é. Mas quero que seja honesto: você acha que aquele garoto

teria se metido em encrenca se não fosse por você?

Você é louco, é o que quero dizer, e então você admite que deixou

Tommy H escapar? Mas as palavras ficam presas na garganta.

Há quanto tempo Gareth usa a camiseta do Hellfire Club? Pelo menos

uma vez por semana, desde que ganhou do Jeff, em setembro. Desde

quando o time de basquete tem ficado no pé dele? Não quero pensar

nisso, mas as datas devem coincidir.

Lembro como ficaram furiosos quando apareci para ajudar Gareth.

Me chamaram de Rei dos Esquisitos, como se Gareth fosse um dos meus

súditos. Como se só por isso ele merecesse sofrer.

— Sem o seu… clube, aquele garoto poderia ser um valioso membro

do corpo discente — continua Higgins. — Mas em vez disso, está

perdendo tempo com… com… — Ele não pode falar “satanismo”, já

que o estado é laico e tal. Mas, nossa, dá para ver que a palavra está na

ponta da língua. — … com essa fantasia sem sentido que você promove,

e ele está pagando o preço disso. E não é o único.

— O que quer dizer?

— Quanto tempo acha que vai levar para que a presença de um

delinquente afete todas as pessoas do seu clubinho?

— Não sou um delinquente.

— Você é um Munson.

Era de se esperar. A questão é sempre meu sobrenome. Aconteceu

mais cedo com Tommy H e seu grupinho. Acontece com o policial


Moore toda vez que nos cruzamos. Munson. A única coisa que importa

sobre mim; um sobrenome que revela toda uma história trágica.

— Seu pai não saiu daqui formado — diz Higgins. — Nem seu tio.

Acho que nenhum Munson foi devidamente diplomado na Hawkins

High em cinquenta anos, e não vejo como você pode ser o primeiro.

Então faça um favor a nós dois. Pare de contaminar todas as boas maçãs.

Minhas mãos estão fechadas. Queria muito destruir a expressão

convencida de Higgins, mas fazer isso apenas reforçaria a fama do meu

sobrenome. Então me levanto, num movimento brusco o suficiente para

que a cadeira se desequilibre.

— Já terminamos? — pergunto.

Higgins permanece imóvel.

— Espero que sim — declara ele.

— Ótimo.

Em silêncio, abro a porta com força e passo rápido por Janice (que

com certeza estava ouvindo tudo), batendo os pés ao sair.

Não sei o que estou sentindo quando chego ao corredor. Raiva,

frustração, culpa, desespero — tudo isso misturado, formando um

grande peso que toma meus ouvidos, meus olhos, meu cérebro, até que

tudo em que posso pensar é apenas um som estático, feito ruído branco.

Uma maçã podre.

Não é a pior coisa que já escutei. Mas por que estou me sentindo tão

magoado? Por que Higgins enfim conseguiu me atingir?

Gareth escondendo hematomas debaixo da camiseta do Hellfire

Club. O olhar cortante de Tommy H se intensificando no exato momento

em que ele me vê. Chrissy sendo puxada pelo namorado para longe de

mim. Fico no corredor como uma estátua idiota. Essas imagens giram

em minha mente, várias e várias e várias vezes…

Sinto um golpe no ombro, e finalmente volto a mim, esperando

encontrar Tommy H ou seu grupinho de novo. Mas é apenas Ronnie,

segurando o boné e me dando um soquinho.

— Ai… Pra que isso? — pergunto.

— Estou te chamando há mais de um minuto. Você está bem?

Uma maçã podre, sussurra Higgins no meu ouvido. Mas tudo que

digo é:

— Aham.
Porque Ronnie e eu podemos compartilhar as mesmas raízes, ter

morado no mesmo estacionamento de trailer, mas ela ganhou na loteria.

Ela tem um futuro. E como alguém assim poderia entender…

De repente, sei exatamente o que preciso fazer.

— Tem certeza? — pergunta Ronnie. — Você tá… — Ela hesita. —

Espera, o que o Higgins disse?

Tento abrir um sorriso. Mas com certeza sai bem estranho.

— O mesmo de sempre.

Ela aperta os olhos e analisa meu rosto.

— Eddie…

— Preciso ir a um lugar, então a nave está partindo, tipo, agora. —

Balanço minhas chaves. — A bordo ou não?

— Sempre. Só espero que você saiba disso.


Capítulo Sete

Seria legal ter uma recepção calorosa de Bev, mas, quando me vê, ela só

diz:

— Você não vai tocar hoje.

Balanço a cabeça, apoiando os cotovelos no balcão do bar. Hoje o

Esconderijo está lotado, muitas pessoas aproveitando o dia de

promoção: cerveja por cinquenta centavos. E é exatamente por causa do

aumento nos lucros que Bev não quer a Corroded Coffin no palco

assustando os clientes.

Mas não tem problema. Não é por isso que estou aqui.

— Não vim tocar. Estou procurando uma garota.

— Talvez funcione melhor se você cortar o cabelo.

— Ela estava aqui ontem. Cabelo preto, botas.

Bev me olha inexpressiva.

— Ela foi uma das únicas pessoas na história deste bar que não

terminou a noite desmaiada. Vamos, Bev, você se lembra dela.

Depois de um longo minuto, Bev pergunta:

— Ela estava de jeans? E brincos esquisitos?

— Não sei se concordo com a parte do “esquisito”…

— Maquiagem pesada nos olhos?

— Hum…

Mas Bev não está me olhando. Seu olhar está fixo em um ponto atrás

de mim… na direção da entrada.

Eu me viro, e ela está bem ali.

Parada perto da porta, avaliando a multidão do Esconderijo em dia de

promoção com um misto de alegria e apreensão. Sinto como se a

qualquer momento ela fosse decidir que não está curtindo todo o caos e

desaparecer, e então eu nunca mais fosse encontrá-la.

Vou em sua direção.

— Ainda acho que vale cortar o cabelo! — grita Bev.


Ignoro o comentário, porque Paige me avista no meio da multidão e,

minha nossa, o rosto dela se ilumina. Talvez eu sofra um enfarto, mas

não estou com tempo para pensar nisso agora. Tenho uma missão.

— Eu estava torcendo para te encontrar! — diz Paige. — Você vai

tocar hoje?

Balanço a cabeça.

— Na verdade só estou aqui porque queria te encontrar.

— Ah, é?

Um cara alterado esbarra no meu ombro, e eu me esforço para

recuperar o equilíbrio e evitar tomar um banho de cerveja.

— Não quer ir lá pra fora?

— Com certeza — responde Paige.

Passamos pela porta juntos e então estamos na deliciosa noite fria e

silenciosa.

O estacionamento do Esconderijo está mais para um terreno de

cascalho áspero do que para asfalto liso, mas pelo menos é calmo. Nossa

única companhia são dois homens com barba por fazer, falando

baixinho e fumando um cigarro atrás do outro perto das lixeiras. Sei

quem são — afinal, todo mundo se conhece em Hawkins, e ambos

trabalham com meu tio na fábrica. Estão tão concentrados na conversa

que mal percebem o barulho dos nossos passos sob o luar, então posso

concentrar minha atenção no que me importa: Paige.

— Como está a arrumação? — indago, pegando o maço de cigarros

na minha jaqueta e colocando um na boca.

Pouco depois, vejo a menor supernova do universo, porque Paige foi

mais rápida do que eu, puxou um isqueiro e acendeu meu cigarro apenas

com um estalo do polegar.

— Terrível — declara ela.

Ofereço o maço para ela, que pega um cigarro e acende.

— Hoje foi o dia das caixas de pizza — diz ela, soltando o ar. —

Acho que ela pedia pizza, tipo, duas vezes por semana, e nunca jogou

fora uma caixa sequer.

Nós assistimos às nuvens de fumaça dos cigarros se dissipar.

— Não achou mais nenhum gato? — pergunto.

— Por enquanto não. Mas a gente mal chegou à ponta do iceberg

nessa casa — comenta ela, me olhando de soslaio. — Falei com minha


mãe que devo ficar mais tempo por aqui. Para ajudar.

— Mas e o trabalho?

— Davey mal percebe quando estou lá. Com certeza não vai reparar

se eu ficar aqui por mais tempo. É por isso que você queria me

encontrar? Para falar sobre minha falecida avó acumuladora e fazer me

sentir mal sobre meu trabalho?

— Não.

— Então por que queria me ver, Eddie?

Por que não consigo simplesmente dizer o que quero? Deveria ser

fácil. Foi só no que consegui pensar dirigindo até aqui, ainda com as

palavras de Higgins crepitando como fogo em meu cérebro. Mas agora

parece que o gato comeu minha língua.

— Você perguntou se a gente ia tocar hoje — digo, forçando as

palavras a saírem.

— Aham.

— Então gostou da nossa música. Gostou da Corroded Coffin.

— Sim, vocês são ótimos.

— Então fecha com a gente.

De repente, a brasa vermelha na ponta do cigarro de Paige se apaga.

— O quê?

Fico de frente para ela.

— Nós somos bons. Fecha com a gente.

— Eu… Não é fácil assim…

— Por que não?

— Nossa, Eddie, você tá falando sério? — pergunta ela.

Paige está brava. Já estraguei tudo.

— Pensei que você quisesse… — continua ela. — Meu Deus, como

sou idiota… Você só quer chegar até o Davey, exatamente como todo

mundo…

— Não… Não é isso que estou dizendo. Não é só isso, pelo menos…

— Então o que é?

— Estou dizendo que… Você estava procurando por algo verdadeiro

— digo, baixando as mãos. — Olha pra mim, Paige. Não sou nenhum

boneco californiano produzido em massa. Sou apenas um garoto de

Indiana. Não tenho merda nenhuma: dinheiro, nada. Nada disso aqui

está na moda. Minha calça jeans é rasgada porque rasgou mesmo. Pareço
não ter dinheiro porque de fato não tenho. — Tomo fôlego, e minha

respiração sai ofegante. — Você disse que saberia quando encontrasse.

Você encontrou. E o melhor de tudo, a cereja do bolo, é que você gosta

da minha música.

Paige cruza os braços e fica só me observando. Posso estar louco,

mas parece que o lampejo raivoso dela está se dissipando aos poucos.

— Devia ser proibido chamar uma garota para conversar em

particular e falar de trabalho.

— Não vem me dizer que as pessoas não fazem isso o tempo todo em

Los Angeles.

Paige bufa. Então, tocando com a unha um dos dentes, ela me lança

um olhar que me analisa por inteiro. Sinto seus olhos conforme eles

passeiam por mim, deixando um brilho caloroso em seu rastro.

— Encontrei, então, hein?

— Aham.

— Banda de garagem do interior chega ao topo das paradas.

Atendente de bar vira vocalista e herói do rock.

Herói. Parece bem melhor do que maçã podre.

— Eu gostei.

— É uma boa história.

— Acha que pode fazer alguma coisa pela banda? Por mim?

Ela me olha outra vez, e assim permanece por um tempo.

— Tenho umas ideias — comenta ela, jogando a guimba do cigarro

no chão e amassando com o pé. — Posso, sim.

— Sério? — pergunto, surpreso.

Paige assente.

— Vou te dar uma chance. Só uma. E eu vou te dizer como isso tudo

vai funcionar.

Assinto sem parar.

— O que você quiser. O que disser.

— Posso estar dando um tiro no pé, é importante que você saiba

disso. Quando eu chegar lá falando de vocês, Davey vai achar que estou

dando uma força para amigos da minha cidade. Isso significa que a

primeira coisa que precisam fazer é provar que ele está errado.

— A prática leva à perfeição. Entendido.


— Como nós estamos em Hawkins, e a WR, como você sabe, é bem

longe daqui, vocês vão ter que gravar uma demo. E não serve uma

gravaçãozinha de fita cassete na garagem. Vocês vão precisar de um

estúdio. Uma mixagem. Uma produção profissional.

Profissional. Estou começando a enxergar um formato na fumaça do

meu cigarro, e parece muito com um cifrão.

— Se isso tudo der certo e Davey gostar de vocês, e não estou

fazendo nenhuma promessa quanto a isso, o próximo passo é ir até Los

Angeles para fazer um teste com ele e outros executivos.

— Ele não nos contrataria só pela demo?

— Não é um show de calouros, Eddie. Eles querem saber muito bem

no que estão investindo.

— Entendi.

Entendi. O cifrão de fumaça de repente começa a se multiplicar.

— Mas eu acho… acho que você está certo — declara Paige, quase

surpresa por admitir. — Acho que você, e a Corroded Coffin, vocês têm

uma essência que as pessoas vão curtir. Acho que podemos conseguir

algo.

Ela respira fundo, e eu percebo que tudo isso pode ser um risco tão

grande para ela quanto é para mim.

— Vamos deixar você famoso — completa ela.

Paige estende a mão para fecharmos negócio, mas me sinto um idiota,

porque fico paralisado só de pensar nos custos de estúdio e

deslocamento. Não tenho esse dinheiro. Não tenho nada nem perto

desse dinheiro, e não importa quantos turnos extras eu faça no

Esconderijo, Bev nunca vai me pagar o suficiente para uma viagem para

a Califórnia.

Mas sei um jeito de fazer isso funcionar.

Aperto a mão dela.

— Herói do rock… — digo. — Isso é bom demais de ouvir.


Capítulo Oito

A montanha de panquecas que está na frente do meu pai é tão alta que

quase bate no queixo dele.

— O cozinheiro tinha algumas panquecas sobrando — diz a

garçonete. — Servi todas para você antes que fossem para o lixo…

Ela está com alguns bobes na parte da frente do cabelo, mas fica

enrolando uma mecha na parte de trás com uma unha comprida.

— Você é mesmo um docinho… — comenta meu pai.

Ele olha para os seios dela como se estivesse procurando pelo crachá

com seu nome. Mas ninguém pode ter uma visão tão ruim assim àquela

distância. Após um longo momento, a garçonete dá uma batidinha no

ombro dele, de brincadeira.

— Para com isso! Meu nome é Dot.

— Prazer, Dot. Agora me diga… você tem mel em algum lugar desse

belo estabelecimento? Estou com desejo de alguma coisa doce.

— Vou ver o que posso te oferecer — responde ela, com uma

piscadinha que praticamente grita “eu sou uma coisa doce”.

Quando ela se afasta, meu prato com ovos e bacon, já quase no fim,

está frio. Continuo comendo assim mesmo, esperançoso de que uma boa

porção de ketchup vá ajudar.

— Este lugar é uma merda — diz meu pai, com a boca cheia de

panqueca. — Por que a gente não foi ao Benny’s Burguer?

— Fechou.

— É sério? Mas aquele lugar é sagrado.

— Não depois que o Benny atirou no próprio olho.

— Que merda. — Meu pai solta um assovio baixo, e por um segundo

permanece em silêncio, perdido em algum pensamento distante. —

Aquele cara me devia duzentas pratas.

— Minha nossa…

— Consegui um pouco de mel para você, docinho.


Dot está de volta, e ela sabe usar as palavras. Coloca a garrafa diante

dele, que sorri.

— Posso te oferecer… mais alguma coisa? — pergunta ela.

— Não, valeu — digo, em grande parte para lembrá-la que também

estou bem aqui.

Mas ela não dá seu sorriso charmoso para mim. Dot apenas me olha

e se retira depressa, e meu pai esconde uma risada por trás do monte

Everest de panquecas.

— Você leva jeito com as mulheres, garoto.

Tenho umas ideias. A voz de Paige é um sussurro nos meus ouvidos.

— Ah, eu me viro.

— Ah, é? Está interessado em alguém?

— Pai!

— Isso é um sim.

— Por acaso eu te trouxe aqui para falar sobre minha vida amorosa?

— pergunto.

— Então por que você me trouxe aqui?

É uma pergunta aparentemente simples, mas meu pai fica encarando

a borda da caneca de café. Ele sabe que tem alguma coisa acontecendo.

Já sacou tudo.

E está certo. A gente não toma café da manhã juntos; não somos esse

tipo de família. Mas pensar em ter essa conversa dentro de casa me

pareceu muito… Por falta de palavra melhor, me pareceu muito

desconfortável. Requer certa distância, um afastamento. Algo que torne

tudo menos pessoal e mais protocolar. E é por isso que estou cutucando

os ovos frios no prato e meu pai está comendo uma montanha de

panquecas.

— Naquele dia. Você falou… que tinha informação sobre um

trabalho.

As palavras saem com um gosto ruim, e eu me esforço para cuspi-las.

O rosto do meu pai não move um milímetro.

— Aham.

— Você falou dez mil para você. E… se arrumasse um parceiro…

quanto ficaria para ele?

— De quanto esse parceiro precisaria?


Fiz as contas: somei as quantias exorbitantes para a gravação e a

viagem e acrescentei um pouco mais na esperança de precisar de

dinheiro para me instalar na Califórnia.

— Cinco mil.

Joguei o valor para cima. Achei que meu pai fosse querer barganhar,

mas ele apenas assente. Talvez seja minha imaginação, mas acho que ele

está prendendo o fôlego.

— Combinado.

— Eu disse cinco mil, não quinhentos.

— Eu escutei bem. Combinado — repete ele. — Você está salvando

minha pele, eu te devo uma…

— Espera aí… — digo, me inclinando para trás, tentando não encarar

o alívio doloroso que se espalha pelo rosto dele. — Não topei ainda.

Antes de qualquer coisa, preciso saber exatamente o que me espera.

Vejo um lampejo de aprovação nos olhos do meu pai, e não tenho

certeza de já ter visto algo assim antes.

— Sempre soube que você era um garoto inteligente. Então está bem.

Vamos falar de negócios.

Ele limpa as migalhas de panqueca da boca e afasta o prato para o

lado.

— E nada de dourar a pílula — aviso.

— Nunca. Você já ouviu falar de um cara chamado Charlie Greene?

— pergunta ele.

Balanço a cabeça.

— Que bom. Porque ele é um dos maiores chefes do tráfico do

Oregon. Maconha, cocaína, heroína, metanfetamina, quetamina… O que

ele mesmo não consegue produzir, ele importa. Fica a maior parte do

tempo no Noroeste Pacífico, mas também tem outros postos espalhados

pelo país… Baltimore, Des Moines, Grand Island. E precisa abastecer

todos eles.

— Você disse que ele faz carregamentos. De Pine Meadow para

Baltimore.

Ele assente.

— É nisso que você está se metendo. O próximo reabastecimento

deve sair do Oregon em cinco semanas. Quer dizer, se tudo sair de


acordo com o plano, deve passar pelo interior de Indiana em cinco

semanas e um dia.

Percebo que peguei uma tira de bacon frio e estou partindo em

pedacinhos. Limpo as mãos no guardanapo vagabundo.

— Então a gente precisa fazer um grande show? Montar em cavalos e

subir num trem em movimento, falando “passa a grana”? Ou algo do

tipo?

— É uma possibilidade — diz meu pai — Ou ao menos seria se

Charlie usasse a linha ferroviária. Mas parece que ele prefere ter um

pouco mais de flexibilidade. Não é um trem que vamos roubar, é um

caminhão.

Tenho um rápido vislumbre de faróis vindo em minha direção e uma

buzina ensurdecedora. Pisco, tentando afastar essas imagens. Pego o

bacon de novo. Continuo cortando em pedacinhos minúsculos —

qualquer coisa que me distraia de pensar em morrer esmigalhado que

nem meu bacon.

— Legal.

Meu pai dá uma risada.

— Parece que você está prestes a se borrar — comenta ele.

— Cala a boca. Continua.

Meu pai beberica o café em goles altos e prazerosos. Dot aprecia a

visão por trás do balcão, com o queixo apoiado na mão.

— Como não dá para simplesmente encher um caminhão com

pacotes de droga soltos e esperar que a fiscalização estadual não

desconfie, Charlie tem um esquema. Tudo é transportado como se fosse

frutas e vegetais. Alimentos frescos. Coisas que qualquer pessoa

esperaria encontrar vindo da Costa Oeste, e é óbvio que tudo fica

misturado com produtos de verdade também. Então, para manter a

ilusão e garantir que a maconha não vá parar numa pilha de cenouras

mofadas em Baltimore, Charlie tem uma frota de caminhões

refrigerados, usados pela equipe para fazer esse transporte. Eles mantêm

o ar circulando e deixam tudo fresquinho — explica meu pai, seu sorriso

crescendo. — São chamados de caminhões-freezer.

— Não são chamados assim, não.

— Eu não mentiria para você — diz ele, mentindo descaradamente.

— Esses veículos pegam a estrada estadual no Oregon, mas, quando

É
saem das montanhas, seguem para as estradas locais. É mais fácil

comprar um guarda de trânsito local do que um estadual, e se dinheiro

não funcionar…

Meu pai faz um gesto de arma, apontando o dedo sujo de mel para

mim.

— As instruções do Charlie são extremamente claras — continua. —

A partir do momento em que o motorista começa a dirigir, ele não pode

parar até que chegue a seu destino. E se parar é melhor ter um bom

motivo. É por isso que ele sempre coloca duas pessoas em cada

caminhão, para revezarem e ficarem de olho no retrovisor.

— E atirarem em policiais.

Meu pai dá de ombros de uma maneira que me parece indiferente

demais.

— Só quando necessário.

— Então… Beleza, então… — digo, mas é como se meu cérebro

fosse ferver e escorrer pelos ouvidos. — Só preciso… Então, resumindo:

seu plano é correr atrás de um caminhão que tem instruções explícitas

de nunca parar por nada. Um caminhão com uma carga gigante de

drogas e dois assassinos armados perfeitamente aptos a matar qualquer

um, se surgir a oportunidade.

— E temos pouco tempo — acrescenta ele. — Esqueci de mencionar

isso. Se eles se adiantarem ou a gente se atrasar… perdemos a chance.

De vez.

— Ótimo. — Passo a mão pelo cabelo, provavelmente deixando

algum farelo de bacon. Mas não ligo. — Muito tranquilo.

Tranquilíssimo.

O sorriso astuto do meu pai murcha, e agora ele apenas me observa,

me avalia.

— Você me pediu para não dourar a pílula — lembra ele.

É verdade. E dá para ver que ele foi bastante honesto comigo.

— Eddie… Eu não teria te oferecido esse trabalho se não achasse que

era algo que você conseguiria fazer.

Bem, ele está errado. Não é algo que eu consiga fazer. A coisa mais

próxima de um assalto que já fiz foi há dois anos, numa campanha de

Dungeons & Dragons com o Hellfire Club, quando invadi o castelo de

Strahd. Mesmo assim, duas pessoas do grupo bateram as botas.


Foi tão fácil falar sobre a criação de personagens com o Gareth no

laboratório do sr. Vick. Tão fácil criar o alinhamento. O que você tem

em mente? Simples. Mas aqui, agora, tudo em que consigo pensar é que

eu não sou um criminoso caótico-mau, não importa o que todo mundo

desta cidade pense. Não posso fazer isso. É demais para mim. Não

posso…

Acho que você tem razão.

As palavras de Paige ressoam, trazendo uma animação suprimida,

transbordando com um futuro em que dou o fora de Hawkins e vou em

direção à luz dourada do sol da Califórnia. Mas também…

Eu… eu me precipitei. Peguei dinheiro emprestado de quem não

deveria. Agora querem de volta.

Aquele Al Munson desesperado está bem escondido aqui, neste dia

ensolarado, dentro deste restaurante, com a garçonete babando por ele a

poucos metros de distância. Mas, para mim, é fácil lembrar. Acho que

sempre será assim.

— O que você acha? — pergunta meu pai.

Respiro fundo. Em seguida, puxo o prato de panquecas dele que está

pela metade e começo a comer.

— É melhor eu não me arrepender — digo, com a boca cheia.

Meu pai recosta na cadeira, me observando. O sorriso satisfeito em

seu rosto acende uma chama em meu peito, algo em que tento não

pensar muito.

— De maneira nenhuma, garoto — responde ele. — De maneira

nenhuma.
Capítulo Nove

Dougie mora no final de uma rua sem saída do lado chique da cidade.

Não sei como ele convenceu a família a nos deixar ensaiar lá, mas, pelos

olhares cortantes da sra. Teague que vejo pela janela toda vez que paro

na frente da casa, provavelmente houve coação.

Hoje, porém, quando saio da van, a sra. Teague não me fuzila com o

olhar. Apenas aperta os olhos, confusa, na direção da bicicleta cor-de-

rosa desbotada que está encostada em sua caixa de correio e da garota

em pé ao lado dela.

— Bicicleta legal — digo para Paige.

— Essa senhora está me encarando — sussurra ela, de um jeito

discreto. — Já faz cinco minutos.

— É a sra. Teague.

Em seguida, aceno animado para a mulher como se eu fosse um

vizinho simpático de seriado de TV. Não dá para ouvi-la bufando lá

dentro, mas tenho o prazer de vê-la fechando as cortinas em um

rompante de irritação.

— Ela é um dos nossos inúmeros fãs. Vem, o pessoal está na

garagem.

Levo Paige pelo caminho que contorna a casa. Já dá para ouvir a

bateria, os sacos de batatinha chips, o baixo do Jeff… Todo mundo já

chegou. O que é ótimo, porque significa que não vou precisar tentar

vender essa ideia duas vezes.

— Boa tarde, senhoras e senhores! — digo bem alto e muito feliz,

passando pelo portão aberto da garagem.

Ronnie está sentada atrás da bateria, girando uma baqueta nos dedos.

Dougie pegou a outra para tentar puxar uma extensão de uma prateleira

alta, e Jeff está afinando o baixo, se concentrando na corda Ré de testa

franzida.
— Tá atrasado, cara — comenta Dougie. — Minha mãe só vai deixar

a gente ensaiar por uma hora, aí depois ela vai desligar o disjuntor da

garagem… disse que os vizinhos estão reclamando… Fala sério…

O cutucão com a baqueta na prateleira funcionou e a extensão caiu,

se enroscando na cabeça dele feito uma cobra.

Ronnie, no entanto, não se deixou distrair pelas estripulias de Dougie

nem por Jeff estrangulando lentamente o braço do baixo. Com um olhar

aguçado, ela repara quando Paige surge na porta da garagem. Em

seguida, olha para mim.

— Temos companhia, sr. Munson?

— Oi — diz Paige. — Muito maneiro esse baixo.

As mãos de Jeff abaixam como se as cordas tivessem pegando fogo.

— Hum! — solta ele, um som que parece meio exclamação, meio

lamentação.

— Você é uma fã? — pergunta Dougie, encarando sem disfarçar.

Percebo que preciso intervir antes que minha banda faça Paige pensar

que cometeu um erro em ter me levado razoavelmente a sério.

— Chega, seus doidos.

Dou um passo à frente. Com sorte, eles vão recuperar parte da função

cerebral sem a necessidade de um olhar incisivo.

— Podemos nos comportar feito gente? — pergunto.

Obviamente, Ronnie não está prestando atenção. Ela se inclina para

analisar Paige melhor.

— Você viu nosso show no Esconderijo — comenta.

Paige sorri e responde:

— Você tem boa memória.

— Sempre me lembro quando uma garota transforma o cérebro do

Eddie em mingau.

— Mingau, é?

Paige me olha de soslaio. Fico completamente vermelho.

— Cala a boca, Ronnie — protesto.

Mas ela não está disposta a acabar com o momento vamos-ignorar-o-

Eddie.

— É muito bom te conhecer — diz Ronnie, se levantando para

estender a mão e cumprimentar Paige. — Se é… amiga íntima do Eddie,

é minha amiga também. Eu me chamo Ronnie.


Paige aperta sua mão.

— Paige.

— Eddie te arrastou até aqui para assistir ao nosso ensaio? —

pergunta Ronnie. — Acho que isso pode ser considerado crime em

alguns países.

— Deixa eu te pedir desculpas em nome de todos eles — digo a

Paige, antes que Dougie solte alguma coisa que estrague a situação por

completo. — E não, seus manés. Paige e eu não estamos juntos.

— Então ela tá solteira? — indaga Dougie.

— Bem… — começa Paige, recuando.

— Ela trabalha para a WR Records — digo, de repente. Se eu ficar

enrolando por mais tempo, meus colegas de banda vão botar tudo a

perder. — Ela quer que a gente grave uma demo. Para mandar para o

chefe dela, na WR Records.

Para ser sincero, o silêncio que se instala na garagem chega a ser

prazeroso. Essa notícia tem me feito entrar em curto-circuito há dias,

desde que Paige passou a nos considerar uma opção. Precisei me

esforçar para não soltar a novidade para Ronnie primeiro, mas agora,

olhando para as expressões chocadas, fico orgulhoso por não ter dado

com a língua nos dentes.

Ainda assim, em determinado momento o silêncio fica excessivo.

— Não fiquem animados demais — brinco, tentando não

transparecer o quanto estou ansioso.

— WR Records? — pergunta Jeff, como se apenas dizer isso o

deixasse enjoado. — Tipo… tipo a WR Records?

Paige apoia a mão no meu braço e se aproxima.

— Isso mesmo, a WR Records. Sou uma caça-talentos do Davey

Fitzroy. E Eddie está certo. Acho que ele vai gostar de conhecer a

Corroded Coffin.

Abro a boca, mas Paige me lança um olhar sério, então fecho a

mandíbula com um barulho.

— Mas antes de dar os primeiros passos, como agendar o estúdio,

contratar um produtor e até mesmo falar com Davey, preciso confirmar

uma coisa. Vocês querem mesmo isso?

— É óbvio que sim — respondo. — É um contrato com uma

gravadora. Certo, pessoal?


Olho ao redor. Agora que as palavras de Paige estão sendo

absorvidas, o choque começa a passar, mas ninguém esboça o

entusiasmo extremo que eu estava esperando. Só Dougie parece

animado, os olhos brilhando.

— Nossa, com certeza! — diz ele, talvez até salivando um pouco. —

Com certeza!

— Espera aí, então… — começa Jeff, franzindo o cenho com força,

mas eu não consigo decifrar se é confusão ou preocupação. — Então a

WR quer assinar com a gente?

— Eles querem que a gente grave uma demo — explico. — Paige vai

mandar essa demo para o chefe dela. Se ele gostar… nós vamos até Los

Angeles para um teste.

— Los Angeles? — repete Jeff.

Toda essa informação parece congestionar os sentidos dele, que está

lutando para filtrar o que de fato deve processar.

— Cara, sim! — grita Dougie. — É isso, nós topamos. Quando

vamos começar a gravar?

Mas a única pessoa em quem estou prestando atenção é aquela que

ainda não disse nada. Ronnie está parada no meio da garagem,

segurando as baquetas como se estivesse prestes a quebrá-las ao meio, os

nós dos dedos brancos. Ela está inexpressiva, olhando para o espaço

entre mim e Paige.

De todas as reações possíveis, essa é a que eu menos esperava. Vou

até ela e dou um empurrãozinho no seu ombro, para tirá-la do transe e

conseguir uma reação.

— Ainda tá viva, Ecker? — pergunto.

Ela pisca e olha para mim.

— Aham — diz, apenas.

— Então, tipo… — continua Jeff. Sua ficha começa a cair, e sua

expressão está mais tranquila. — Então a gente pode virar estrelas do

rock?

— É essa a ideia — concorda Paige.

— Posso só perguntar uma coisa? — pede Ronnie, olhando para

Paige.

Há um lampejo no olhar de Ronnie; não é aquela fagulha brincalhona

de quando ela achou que Paige era minha quase nova namorada, e sim
algo mais feroz, mais direto.

Paige sorri, descontraída.

— Pode fazer quantas perguntas quiser.

— Você é muito gentil — diz Ronnie.

Em seguida, ela começa a bater a baqueta na coxa, um tá-tá-tá

ritmado.

— Só queria saber… por que a gente? Por que a Corroded Coffin?

Reviro os olhos.

— Porque… — começo.

— Estou perguntando para ela, Eddie.

— É uma boa pergunta — diz Paige. — Acho que a resposta é

simplesmente: gostei do que vi. Acho que vocês têm algo especial, algo

que o mundo da música está buscando.

— E o que seria isso? — indaga Ronnie.

— Uma história — responde Paige, e por um segundo trocamos

olhares. Atendente de bar vira vocalista e herói do rock. — O que eu

mais vejo é um monte de bandas formadas por riquinhos que tratam seus

contratos com as gravadoras como se fossem um mero passatempo. E

ninguém quer torcer por isso, ou por eles. Mas por uma banda formada

por heróis de uma cidade pequena que lutaram pela oportunidade única

de fazer acontecer? Vocês vão se tornar lendas.

A baqueta de Ronnie não parou um só instante.

— Então você está dizendo que está interessada em nós, não na nossa

música — diz ela.

— Estou interessada nas duas coisas. É assim que a indústria

funciona.

— E o que acontece se a história mudar? — questiona Ronnie. — E

se a nossa história não se encaixar mais nos interesses da WR?

— Isso não vai acontecer — interrompo. — É a nossa história. Nós

somos a banda de…

— Heróis de cidade pequena? — pergunta Ronnie. — Quem chama a

gente assim?

— Parece que vocês têm muito o que discutir — declara Paige.

Seu sorriso profissional permanece intacto, mas dá para ver um

vestígio de tensão nos cantos dos lábios.


— Por que não deixo vocês conversarem melhor e depois retomamos?

— sugere ela.

— Eu posso te acompanhar… — digo, porque sinto que eu deveria ir

com ela.

Paige segura meu braço para avisar que não é necessário. Mesmo por

cima do tecido da jaqueta, sinto o calor do seu toque queimando minha

pele.

— Fica aqui — sussurra ela. — Conversa com eles.

Sinto suas palavras também.

E então, com um aperto final, ela sai da garagem. Observo-a se

afastar até que esteja longe demais para enxergar.

— Eu topo — diz Dougie. — Topo muito. Vamos nessa.

— Não sei… — comenta Jeff, mordendo o lábio com tanta força que

está começando a inchar. — Vocês são mais velhos… eu ainda tenho

dois anos até me formar.

— Do que você está falando, cara? — pergunta Dougie. — Se

formar? Por que você está preocupado em se formar quando alguém está

te dizendo que pode ficar famoso?

— Não é assim tão fácil — retruca Jeff. — E por acaso seus pais vão

ficar animados quando você contar para eles que esse é o seu plano?

— Eles que se danem — declara Dougie. — Se fosse seguir a

vontade do meu pai, ia direto da formatura para o banco do carona da

van da empresa dele. Seria Teague & Filho até a aposentadoria. Sem

pausas, sem outras possibilidades… Sem chance. Eu estou dentro.

— A escola vai ser sempre uma opção, cara — digo, olhando para

Jeff. — Se a gente for o próximo Metallica e sair em turnê por décadas

ou se a nossa banda desaparecer em dois meses. A qualquer momento

você pode voltar para a escola, pegar seu diploma, ir para a faculdade e

viver uma vidinha batendo ponto. Mas essa chance com a gravadora tem

um prazo de validade. Pensa em como você vai se sentir daqui a dez,

vinte anos, quando olhar para seu anel de formatura da turma e se der

conta de que perdeu a oportunidade de se tornar alguém incrível.

Talvez eu tenha usado meu tom de mestre de Dungeons & Dragons

para narrar esse futuro sinistro, e talvez Jeff tenha sido condicionado

pelos últimos dois anos a acreditar em tudo que essa voz diz, mas não

estou mentindo. Só garantindo que ele entenda todos os fatos.


— Tudo bem — diz Jeff, por fim.

— Mesmo?

Ele ri, e uma fagulha de animação se espalha por seu rosto como o

clarão de um raio.

— Tudo bem.

— Muito bem! — exclamo. E então, prendo a respiração. — O que

acha, Ecker? — pergunto, virando para Ronnie. — Fama, fortuna,

glória: Corroded Coffin. O que acha?

Ronnie gira a baqueta de novo, rápido como um borrão.

— Está mesmo me perguntando isso? — retruca ela. — Assim, você

quer mesmo saber o que eu acho? Ou só quer que eu concorde?

É uma armadilha. Só há uma maneira de responder sem parecer um

completo babaca.

— É óbvio que eu quero saber o que você acha.

— Eu acho…

Ronnie hesita e suspira, baixando os ombros. Quando olha na minha

direção de novo, já não está mais com aquela expressão impassível.

Então entendo cada pensamento vulnerável que está passando por sua

cabeça.

— Quero muito que isso seja verdade. Acho que quero viver em um

mundo em que coisas assim acontecem. Mas não vivo, Eddie. Nenhum

de nós vive. Olha ao redor. Mas olha mesmo, tipo, com os olhos bem

abertos.

Ela indica com as baquetas o chão de concreto, o emaranhado de fios

em volta dos pés de Dougie e as prateleiras aramadas.

— Não somos gênios do metal. Somos apenas uma banda de

garagem. O máximo que a gente consegue é tocar no Esconderijo toda

semana, e olhe lá…

— Nada a ver! — exclama Dougie. — Aquela mulher disse que a

gente tem alguma coisa especial…

Levanto a mão, interrompendo Dougie antes que ele comece a

tagarelar.

— Paige acha que a gente tem chance — declaro.

— Mas o que isso significa? — pergunta Ronnie. — Eu não sei. Você

não sabe. Também não acho que ela saiba. Mas o que quer que seja é…

é, tipo um molde. Um pacote que ela acha que pode vender. Não é?
Sua relutância me irrita.

— Olha, se você não quer fazer a demo, tu… — começo.

— Não é isso que estou falando — interrompe ela. — Eu só… só não

quero que a gente se vire do avesso para se tornar algo que alguém quer

que a gente seja.

Ou seja, não quero que você se vire do avesso para se tornar algo

que alguém quer que você seja. Sei que foi isso que ela quis dizer. Essa

preocupação me deixa furioso, ainda mais quando Ronnie acrescenta:

— Não temos que provar nada para ninguém, Eddie. Para ninguém

nesta cidade, para ninguém em lugar nenhum.

— Eu só quero fazer música — digo, as palavras saindo de um jeito

ácido.

Não consigo disfarçar a raiva, mas Ronnie já parece ter entendido

tudo.

— É só isso?

O olhar de Ronnie é intenso, analisando meu rosto em busca de…

alguma coisa que eu nunca vou entender.

— Promete? — pergunta ela.

A irritação vai embora de uma só vez, me deixando frustrado e

vulnerável.

— Prometo.

Por fim, Ronnie assente.

— Tudo bem — concorda ela, tão baixo que quase não consigo ouvir.

— Então vamos nos tornar lendas do rock.


Capítulo Dez

A casa parece abandonada. A construção se espalha no meio das árvores

e desce pela encosta até a margem do lago, ocupando o caminho. Eu

observo, buscando por uma qualidade sequer daquela construção e

acompanho meu pai até a entrada principal.

— Este lugar é bizarro — comento.

Ele já está batendo à porta.

— Bizarramente agradável, talvez. Não seja mal-educado.

— Mal-educado com quem? Com o Gasparzinho?

Mas a nuvem que escapa quando a porta se abre com um ruído alto

com certeza não é o fantasminha camarada. Na verdade, é a fumaça de

maconha mais espessa que já vi, tão densa que parece quase sólida.

— É você, Munson? — pergunta alguém por trás da nuvem, com

uma voz arrastada. — Trouxe um amigo para mim?

De repente, começo a visualizar uma sombra, a silhueta de um

homem alto com uma barba cheia e uma bermuda cargo tão largada

quanto a casa.

— Esse aqui é meu filho. Garoto, quero que você conheça Reefer

Rick.

Eu achava que o primeiro passo para planejar um roubo fosse ser

mais legal, uma atividade que envolvesse mapas, esquemas, ou talvez até

ir comprar armas à la James Bond. Pensei que fosse ser perigoso, ou ao

menos interessante.

“Vai ficar mais legal”, garantiu meu pai, sentado no banco do carona,

quando tirei a van da garagem para ir até a Filadélfia, no Condado de

Hancock, em Indiana. “Mas a gente tem que seguir uma ordem de

operação com essas coisas. Não faz sentido fazer o trabalho se não tiver

um comprador interessado.”

Não sei o que eu esperava com a palavra “comprador”, mas não era

nada parecido com esse sujeito com um rosto radiante e simpático que
estou encarando agora. Reefer Rick é um cara bem grande, com olhos

redondos e animados, e usa uma camiseta estampada com um urso

vestido de guarda-florestal e os dizeres salvem nossas florestas.

— Munson Júnior! — exclama Rick, apertando minha mão num

cumprimento tão exagerado que meu ombro balança. — Nossa, é como

se eu estivesse conhecendo alguém da família real!

— Pode me chamar só de Eddie — digo, com os dentes cerrados.

Mas Rick não parece me ouvir.

— Entrem — declara ele, dando passagem. — Bem-vindos à

residência Reefer!

Não sei por que, talvez por conta da cortesia exagerada de Rick, mas

esfrego os pés no capacho antes de entrar, preocupado em não sujar o

piso.

Talvez eu esteja assistindo a muitos filmes, mas quando meu pai

mencionou que me traria à casa de um traficante, imaginei um lugar

mais escuro e triste. Para a minha surpresa, o espaço é amplo e

iluminado, embora a névoa de fumaça faça a luz do sol se dissipar num

borrão alaranjado. Dá para ver que não é uma casa organizada, mas

também não é bagunçada… Não há sinal de poeira ou de líquidos

pegajosos derramados, e as poucas latas de cerveja espalhadas e pratos

sujos não parecem ter mais de dois dias. Para os meus padrões, como

um adolescente que passa meses sozinho, isso é praticamente um nível

militar de limpeza.

Em uma mesa, vejo alguns frascos azuis brilhantes alinhados.

Quando passamos, meu pai dá uma batidinha na tampa de um deles.

— Ampliando os negócios, hein? O que é isso? Anfetamina?

— Tempos difíceis, meu amigo — responde Rick, ainda andando de

um jeito arrastado. — Estou aqui para proporcionar alívio e alegria, não

para julgar ninguém.

A cama de Rick, ainda por fazer, fica diante de uma ampla janela na

parede oposta, e a maior parte do espaço é tomada por uma enorme

mesa de sinuca. É para lá que Rick está indo, arrastando os chinelos até

o taco que tinha deixado apoiado numa cristaleira.

— Você joga? — pergunta para mim.

Dou de ombros.

— Um pouco.

É
— É isso aí.

Ele estende um taco para mim e pega outro de algum lugar embaixo

do sofá de estampa floral, erguendo-se com um gemido alto.

— Não envelheça, garoto.

Rick com certeza não tem mais do que trinta e cinco anos, mas eu

assinto.

— Pode deixar.

— Como andam as coisas, Rick? — pergunta meu pai.

Meu pai tira uma pilha de revistas antigas de uma poltrona e se

acomoda, se recostando nas almofadas macias.

— Shh — diz Rick, concentrado em posicionar as bolas coloridas na

mesa. Elas batem umas nas outras, conforme ele as alinha na posição

inicial. — Quer ir primeiro?

Será que é possível que esta conversa perca ainda mais o rumo do que

já estava perdida?

— Sei lá, pode ser — respondo.

— Faça as honras — sugere ele, se afastando da mesa e segurando o

taco como se fosse uma bengala.

Lanço um olhar confuso para meu pai, que diz:

— Se vai tacar, taca logo.

Então é isso que eu faço. Levo dois segundos para alinhar minha

tacada. Com um ruído alto, as bolas se espalham para todas as direções,

de forma tão caótica que só posso atribuir à pura sorte o fato de a

número seis verde ter caído na caçapa.

— Excelente — elogia Rick, assentindo, como se eu tivesse calculado

o movimento. — Ótima tacada. Então, eu estou ótimo, cara. Só curtindo,

sabe? Os negócios vão bem, a vida também.

Preciso de um momento para me dar conta de que ele está falando

com meu pai, respondendo à pergunta de antes.

— Fico feliz em saber.

Alinho minha próxima tacada.

— Tenho que admitir, fiquei preocupado sem ouvir notícias suas —

comenta Rick. — Sumiu por dois anos… Não pude evitar pensar o pior.

Estou feliz de ver que você ainda está na área.

— Sabe que é preciso mais do que um guardinha frouxo para me tirar

de circulação.
Tum. Encaçapo outra bola. Quando levanto a cabeça, Rick está

observando meu pai com seus olhos vermelhos, confuso. Por sua vez,

meu pai não parece se incomodar. Ele continua na poltrona, as mãos

entrelaçadas atrás da cabeça, como se esta fosse sua casa, e não a de

Rick.

— Com certeza — responde Rick, por fim. — Sei bem disso.

Erro a tacada seguinte.

— Droga — digo, me levantando. — Sua vez.

Rick esfrega giz na ponta do taco.

— Falando de negócios — começa meu pai —, Eddie e eu nos

deparamos com uma oportunidade que talvez possa te interessar.

— Hum.

Rick se inclina sobre a mesa e posiciona o taco na direção da bola

doze, perto do canto oposto.

— Em poucas semanas, vamos ter em mãos… vamos dizer, nove

quilos de maconha. Não se trata de produto de fundo de quintal, não. É

sem semente, sem galho. É maconha da melhor qualidade, tudo vindo

do Oregon.

— Por que você está me falando isso, cara? — pergunta Rick.

Tum. A doze cai na caçapa, e Rick dá a volta na mesa, de olho na

bola quinze escondida atrás de uma parede de bolas lisas.

— O que você acha? — retruca meu pai.

Rick morde o lado de dentro da bochecha e se agacha no nível da

mesa.

— Acho que você quer que eu compre isso de você — diz ele,

acertando a bola branca, que dá um salto improvável por cima das bolas

lisas, atingindo a número quinze e levando-a até a caçapa. — Por…

A expressão fingida de tranquilidade do meu pai se desfaz um pouco,

e a tensão começa a aparecer.

— Quinze mil.

— Quinze mil por nove quilos de maconha da melhor qualidade. —

Rick solta um assovio baixo, mas ainda não tira os olhos da mesa. — É

um belo negócio. Só um idiota deixaria isso passar.

— Então não seja idiota — retruca meu pai, se levantando da

poltrona, que range com o movimento. — Vamos, Rick. Já te enganei

antes?
Rick enfim olha para ele, e seu olhar diz que a resposta não é das

melhores. Provavelmente sim.

— Meu pai estava preso — solto, sem querer. Por algum motivo, só

consigo pensar que essa reuniãozinha não parece estar indo muito bem, e

se meu pai não vai se explicar, então eu preciso arriscar. — Caso você

esteja se perguntando por que ele sumiu, é porque ele foi preso. No

Colorado.

Rick abre um sorriso calmo.

— Nunca fui de me perguntar por que Al Munson desapareceu da

face da Terra, Júnior. E você?

Sim. Não. Não sei.

— Então por que ainda não fechamos? — pergunto.

Rick bufa. Mal olhando para a mesa, acerta outra tacada. Eu me

afasto um pouco, e ele dá outra tacada, divagando.

— Você mesmo disse, é um baita negócio — continuo. — Fazemos

todo o trabalho, você recebe o produto. Pode enriquecer com esses nove

quilos. Tudo que precisa fazer é dizer que topa.

Rick apoia o queixo na ponta do taco.

— E depois? Fazemos negócio, ficamos felizes para sempre, e

depois?

— Eu não…

— É uma pergunta retórica, cara — diz Rick. — Eu sei a resposta.

Depois o problema “de onde será que Munson e companhia roubaram

essa merda?” se torna problema meu. Ainda mais quando os caras

vierem atrás do prejuízo. Um dia vou estar aqui, levando minha vida,

sobrevivendo, e de repente eles vêm bater na minha porta querendo

saber onde está o produto. E se a maconha já tiver sido revendida, o que

vai acontecer comigo?

Não sei o que responder, então ele apenas balança a cabeça.

— Nada de bom, posso te garantir — conclui.

— Isso não vai acontecer — declara meu pai.

— Se você diz, cara — continua Rick, num tom que parece tranquilo,

mas ele revira os olhos, o que mostra o contrário.

Dá outra tacada. Essa ele perde.

— Pensa bem, Rick — insiste meu pai, se aproximando de mim e

pegando meu taco. — Não existe a menor possibilidade de deixar um


rastro até você. Quando Eddie e eu pegarmos essa merda do…

— Não me fale quem é — interrompe Rick.

— … dos nossos benfeitores misteriosos… Eles não vão dar falta até

que seja tarde demais. Não vão saber quem somos, ou onde a maconha

sumiu. Talvez eles nem saibam o peso da carga completa para começo

de conversa. Quem sabe? Mas ninguém, em momento algum, vai ouvir

falar de você.

Meu pai não dá uma tacada, então o jogo está parado. Rick brinca

com seu taco, estudando a disposição das bolas na mesa. Ainda não

parece comprar a ideia. E ele nunca vai comprar mesmo, não do meu pai

— um cara com um histórico de sumiços e (se interpretei direito) de ter

deixado Rick em maus lençóis. Esse plano é tragédia anunciada. Nem

começou e já deu errado. Adeus, WR Records. Adeus, Los Angeles.

Adeus, Paige Warner.

Estou pirando, até que, de repente, uma memória esquisita me atinge

de forma tão vívida que é como se ela tivesse caminhado até mim e me

dado um tapinha no ombro.

Um soco por cada dólar que você me deve.

Foi o que Tommy H falou. Em seguida Gareth o insultou, e Tommy

ficou vermelho. Depois disso, ele não se importou mais com a dívida.

Ele só queria que Gareth sofresse.

— Não vai ter rastro até você — garanto, usando as palavras do meu

pai. — Na verdade, eles não vão nem ligar para você.

Rick apoia o queixo na ponta do taco e estreita os olhos, sob a luz

difusa do sol.

— E como você sabe disso? — indaga Rick.

Estendo a mão e dou um empurrãozinho na bola branca.

— Se descobrirem quem roubou deles, vão ficar furiosos, certo? Só

que isso vai ser direcionado para o meu pai, para mim. Podem vir atrás

da gente por causa do dinheiro, do produto… Mas o que realmente vão

querer recuperar é o orgulho. Você não faz parte disso, você é só, tipo,

um espectador aleatório que deu sorte. Se houver alguma retaliação, com

certeza não vai te atingir.

Pego o taco que está com meu pai e alinho uma jogada. Torço para

encaçapar desta vez, porque esse discurso vai parecer bem menos

maneiro se eu errar a tacada.


— Mas, obviamente — continuo —, se você ainda acha muito

arriscado, podemos procurar outro lugar. Você não é o único fornecedor

em Indiana. É só o que está mais perto.

Toc. Dou a tacada e me levanto para encarar Rick, antes mesmo de

ver o resultado. Sinto o coração martelar no peito, mas me esforço para

abrir um sorriso digno de Al Munson.

Rick me observa por um longo instante. Então, de repente, começa a

rir. O riso alto e bobo parece vir das profundezas de seu peito.

— Uau, Júnior! Você é um vendedor do caramba! Quase me

enganou.

Meu pai me dá um tapinha nas costas. Pela camisa, consigo sentir que

a mão dele está suada.

— Ele é mesmo o cara, né?

— Vou te dizer uma coisa, Júnior. Quando o trabalho com seu velho

cair por terra, você vem trabalhar comigo. Vou te treinar bem.

— E até lá? — pergunto.

Rick tira a ponta de um baseado do bolso da bermuda e o acende,

ainda rindo.

— São nove quilos de erva da melhor qualidade — diz ele, soltando a

fumaça da boca. — O que eu ia fazer, deixar passar? Vocês trazem pra

mim e eu resolvo.

Sou tomado por um grande alívio. Talvez ainda não precise desistir

do meu sonho californiano.

— É um prazer fazer negócio contigo, Rick — declaro.

— Prazer é o próprio negócio — responde Rick, inclinando-se para a

próxima tacada. — Não se esqueça disso.


Capítulo Onze

A negociação ainda está na minha cabeça dois dias depois, quando Paige

e eu estacionamos nos arredores de Lafayette. Puxo o freio de mão e

desligo o motor, mas continuo na van. Ficamos encarando um prédio

que parece uma entediante caixa de concreto de dois andares.

Mas se as aparências fossem tão importantes assim, Paige e eu não

teríamos saído de casa às sete da manhã e dirigido mais de uma hora

para estar aqui. E eu não estaria suando de nervoso simplesmente

sentado no estacionamento.

Acima da entrada, há uma placa amarelada com os dizeres estúdios

mike. Acho que essas palavras estão me observando.

— Tem certeza de que a gente não pode gravar na garagem do

Dougie? — pergunto.

Paige, que passou a maior parte da viagem cochilando, me lança um

Olhar com O maiúsculo que diz, sem precisar dizer: “Não seja covarde”

e também “Se você quisesse desistir, tinha que ter feito isso antes de me

fazer acordar de madrugada”.

— Estou falando sério — digo. — Posso pegar um equipamento de

som emprestado com os nerds do clube de audiovisual. A gente faz isso

numa tarde e…

— Por que você quer mudar de ideia? — pergunta Paige.

Ela pega um espelhinho de algum lugar e ajeita o cabelo.

Mordo a parte de dentro da bochecha. É a minha conta bancária que

me faz querer mudar de ideia. Nos últimos dois dias, catei cada centavo

que pude encontrar, e com todas as almofadas de sofá reviradas e todas

as moedas esquecidas em telefones públicos da cidade, cheguei a um

total de cento e oitenta e quatro dólares. E trinta e nove centavos.

Quando Paige e eu saímos de Hawkins mais cedo, eu estava com uma

tímida convicção, uma esperança de que talvez essa quantia pudesse ser

suficiente para cobrir qualquer valor que surgisse.


Mas agora que chegamos aqui no estúdio, a ficha está começando a…

desmoronar. Não existe a possibilidade de eu ter dinheiro suficiente,

certo? A menor possibilidade.

Como fico em silêncio, catatônico, olhando para o para-brisa, Paige

continua:

— Se você está nervoso, saiba que não precisa ficar. O dono desse

lugar não deve ser pior do que os caras com quem preciso negociar em

Los Angeles. Deixa que eu converso com ele. Vou conseguir um bom

horário. E um bom orçamento também.

Nessa última parte, olho para ela. Paige ainda está se olhando no

espelho, provavelmente evitando fazer contato visual de propósito.

— Já estamos aqui — conclui ela. — Tem certeza de que quer dar

meia-volta e ir embora agora?

É um desafio. Ela está me desafiando a continuar, a dar o próximo

passo. E então faço o que sei fazer de melhor. Rolo os dados.

Abro a porta da van, que range, e desço.

— Você vem? — pergunto.

Paige dá uma risada e solta um palavrão, guarda o espelhinho e me

acompanha até o prédio.

O dono do Estúdios Mike devia ser alguém chamado Mike, mas

quem nos recebe é um coroa carrancudo de uns sessenta anos que se

chama Nate Caputo. É uma espécie hippie das antigas, com cabelo

cacheado e grisalho, vestindo uma jaqueta de franja. Sua careta fica

ainda mais desagradável quando Paige nos apresenta. Tivemos que

agendar a visita antes da gravação das nove da manhã, e dá para ver que

Nate não é uma pessoa matinal.

Quando Paige e eu começamos a apresentar a Corroded Coffin e falar

sobre a demo, ele grunhe:

— Mais baixo.

Baixo minha voz e tento de novo, mas ele apenas solta um gemido e

vai para o corredor, seguindo o cheiro do café.

— Eu cuido disso — diz Paige.

Ela segue Nate. Eu fico sozinho.

Meu plano não é bisbilhotar. É só ficar aqui na minha, esperando

Paige, no máximo batucando os dedos. Mas então…

Vejo uma porta.


Uma porta aberta. Apenas uma fresta, mas o bastante para me

permitir espiar. E lá dentro…

A bateria é o primeiro instrumento que avisto. A sala do estúdio tem

tapetes dispostos uns sobre os outros, formando uma camada alta no

chão. Em seguida, vejo a haste fina do pedestal do microfone. Abro a

porta e, minha nossa, piso num estúdio de gravação pela primeira vez.

Não é um espaço grande, mas, mesmo com todo o equipamento, os

instrumentos e as luminárias, não parece apertado. Quando meu tênis

arrastando no tapete produz um barulho alto, percebo que o lugar tem

um isolamento acústico perfeito. Para testar, bato com a unha nos pratos

da bateria e abro um sorriso quando o tsss ressoa.

Então essa incrível realidade me atinge como um soco na cara: estou

bem aqui, parado em cima dessa pilha de tapetes, respirando esse ar

abafado. Estou em um estúdio de gravação. Um estúdio de verdade. Só

tinha visto isso em fotos ou filmes, fotografias de revistas, em edições

antigas da Rolling Stone, ou imagens granuladas na TV, na MTV. Mas

isso aqui é diferente. Não está em baixa resolução. É…

— Que buraco.

Escuto as palavras entrecortadas, com som de estática e num volume

alto demais, e percebo que vêm dos alto-falantes instalados no teto.

Levanto a cabeça, assustado, e encontro Paige me observando pelo

vidro, na sala de controle. Está escuro do outro lado, mas a luz amena do

meu lado do estúdio ilumina seu rosto, fazendo sua pele reluzir como se

o sol estivesse brilhando em algum lugar dentro dela.

— Rá — solto, e então percebo que, com todo aquele isolamento

acústico, ela só vai conseguir me ouvir se eu falar no microfone. Me

aproximo do pedestal e digo: — Pois é.

Isso é o máximo que consigo dizer sem admitir que, por dentro, estou

surtando. Este lugar pode ser mesmo um buraco, tudo bem. Se fosse a

Abbey Road, eu reagiria igual. Estou dentro de um estúdio de gravação,

como um verdadeiro astro do rock. Será que Munson Júnior alguma vez

sequer cogitou que chegaria aqui?

Paige cobre as orelhas com as mãos em formato de concha, fazendo

um contato visual enfático pelo vidro.

— O quê? — pergunto.
Ela gesticula e cobre de novo as orelhas, e olho para onde ela está

apontando. Ah! Tem um grande par de fones de ouvido pendurado na

beira de um dos amplificadores. Pego e coloco-o na cabeça.

— Meu cabelo está bonito? — indago no microfone, rindo.

Paige revira os olhos, mas dá para ver que está segurando o sorriso.

— Exuberante.

— O que o Nate disse?

— Ele está meio esquisito. Não vou nem tentar conversar muito até

que ele tome uma xícara de café.

Ela inclina a cabeça, indicando alguma coisa atrás de mim.

— Viu a guitarra ali atrás?

Vi assim que entrei, uma Strat pendurada num suporte na parede.

Está um pouco desgastada, com uns arranhões e as cordas começando a

ficar puídas. Essa belezinha já passou por poucas e boas. Pego a

guitarra e penduro a correia no ombro. Plugo o fio e toco um acorde: o

som sai puro, límpido e perfeitamente afinado.

— O que você acha? — pergunto, fazendo uma pose.

— Está ótimo — diz Paige.

— Mesmo para um buraco?

— Eu não estava falando do estúdio — responde ela, inclinando a

cabeça, me analisando. — Você está ótimo. Desse jeito, atrás do

microfone, com a guitarra. Combinou.

Não sei se consigo responder, não sem minha voz falhar. Então

começo a dedilhar a introdução de “Number of the Beast”, do Iron

Maiden.

— Posso te perguntar uma coisa? — diz ela, baixinho.

Escuto sua voz nos fones, entrando pelos meus ouvidos e

preenchendo tudo. Erro uma nota.

— Manda — sussurro, e quase parece que falei “merda”. Deixo Paige

interpretar se eu estava praguejando por ter errado a nota ou

incentivando que ela continuasse.

— Por que música?

É uma pergunta tão abrangente que preciso pausar o Iron Maiden por

um momento, tentando entender o que ela quer dizer.

— Todo mundo gosta de música — respondo.


— Nem todo mundo gosta tanto quanto você — rebate ela,

inclinando a cabeça, fazendo seu cabelo ondular para o lado. — Tá, tudo

bem. Vou reformular. Por que rock?

Acerto um acorde poderoso que reverbera, preenchendo cada

cantinho do estúdio.

— Porque é radical! — grito por cima do barulho.

Quando termina o último eco, ela diz:

— Com certeza. Mas não é a única razão, não é?

Eu fico em silêncio, então Paige solta um suspiro.

— É sério, Eddie. Se vou vender esse pacote, preciso de algumas

informações para constar na embalagem.

Por que música? Por que rock? Brinco com a palheta nos dedos e

tento ordenar meus pensamentos.

Por incrível que pareça, nunca me fizeram essas perguntas. Para mim,

por dezoito anos, a música apenas… existiu. É como comer, respirar,

fazer xixi… fazer música. Ouvir, tocar, falar sobre música. É a vida.

Mas por quê?

— Por causa da minha mãe.

Não sei muito bem o que quero dizer com isso. As palavras meio que

saem num murmúrio no microfone, e eu pareço estar num

confessionário esquisito com ambientação de rock and roll. Imagino

minhas palavras preenchendo o ar na sala de controle da mesma forma

que a voz de Paige preenche minha cabeça.

— Foi meu pai quem me ensinou a tocar guitarra, mas minha mãe,

hum… — Pigarreio. — Ela morava em Memphis, no Tennessee, quando

conheceu meu pai. Cresceu lá, dezenove anos cercada por música em

todo lugar que ia. Country, bluegrass, rock… mas seu gênero favorito

era o blues. Tipo, o blues de Chicago, que realmente te envolve por

completo, sabe?

Paige se endireitou do outro lado do vidro, saindo da parte iluminada.

Não consigo mais ver seu rosto, apenas sua silhueta.

— Aham.

— Então… Quando ela se mudou para Indiana, trouxe também a

música. São mais ou menos nove horas de carro de Memphis até

Hawkins, e ela e meu pai passaram todo esse tempo espremidos num
carro pequeno com vinte caixas repletas de discos. E, quando nasci, ela

começou a compartilhar esses discos comigo.

Toco algumas notas na guitarra surrada, mas não é mais Iron Maiden.

É um riff de Muddy Waters. Conforme o som ressoa no estúdio, é como

se eu ouvisse a estática da vitrola da minha mãe chiando ao fundo, de

um jeito agradável e familiar como um suéter antigo.

— Eu ainda tenho esses discos. Ainda escuto todos eles. Estão

empilhados perto da TV. Minha mãe dizia que eram como passagens de

avião. Que mesmo quando estava presa em Hawkins… — Esperando

que seu marido desistisse de algum esquema ridículo e voltasse para

casa. — … As músicas a levavam para outros lugares, contavam

histórias, ajudavam a conhecer o mundo. — Faço uma pausa. — Eu não

entendia quando era criança. Tudo que ouvia nesses discos eram pessoas

cantando sobre tristeza, sobre como a vida era uma merda. E então,

hum… Ela ficou doente e… morreu. Quando eu tinha, tipo, seis anos.

Aí eu entendi.

Hesito. No geral as pessoas começam a oferecer condolências após

essa revelação, o que me deixa muito nervoso. Mas Paige fica em

silêncio na sala de controle, me observando. Ouvindo.

Então resolvo tocar algo para ela escutar. O solo de guitarra de

“Paranoid”, do Black Sabbath, brota dos meus dedos, metade blues,

metade metal, e pode ser minha imaginação, mas acho que vejo a

silhueta de Paige acompanhando a batida.

— Gosto de rock porque fala sobre tristeza e sobre como a vida é

uma droga — digo. — E as coisas são tristes, a vida é uma droga

mesmo. É a verdade. Mas, além disso, o rock também conta histórias. É

o tipo de música que leva as pessoas numa aventura para outro mundo,

para um lugar onde é possível vencer os demônios. Faz as pessoas

viajarem para as profundezas do inferno. As músicas da minha mãe

eram passagens de avião, mas acredito que a minha música seja um

portal para outra dimensão.

— Você gosta porque é radical — diz Paige.

— Gosto porque é radical pra caramba — corrijo, terminando o riff

e baixando a mão. — Entendido?

Ela se inclina para a frente de novo, voltando para o foco de luz, e

agora posso ver seu rosto. Não está sorrindo, não mesmo. Mas há um
brilho em seus olhos, um lampejo que nada tem a ver com a iluminação

suave do estúdio.

— Eu acho que… — começa ela.

A porta da sala de controle se abre, e em seguida alguém acende a

luz. No mesmo instante, vejo cada detalhe do lugar, cada fio solto

brotando do painel de áudio, cada rasgo no sofá de segunda mão

revelando o estofamento…

E Nate, que tomou café e está pronto para interagir. Vejo que ele fala

alguma coisa com Paige, que assente.

— Preciso ir aí? — pergunto, no microfone, constrangido.

Faz apenas um segundo que minha voz foi filtrada pelos alto-falantes

naquela sala de controle exclusivamente para os ouvidos de Paige, e

parecia que éramos só nós dois no mundo todo. E Nate… Não quero ser

rude com o cara, mas ele não está na mesma vibe no momento.

Paige se inclina na direção do microfone e diz:

— Espera aí, só um minutinho.

Em seguida, se vira para Nate. De repente percebo que estou parado

no meio de uma sala vazia, segurando uma guitarra que não é minha e

com um fone de ouvido tão grande que chega a escorregar das minhas

orelhas. Ah, caramba. Entreguei meu coração para a Paige feito uma

criança brincando de faz de conta. Me sentindo extremamente imaturo

e bobo, começo a guardar tudo. Colocar os brinquedos de volta na caixa.

Depois de arrumar tudo, a conversa de Paige e Nate alcança, tipo, o

grau doze na escala de abalos sísmicos. O homem balança a cabeça

várias vezes, sem parar quieto, cutucando um pedaço de couro falso que

está se soltando do sofá. Paige, por outro lado, está imóvel como uma

árvore. Nate é alguns centímetros mais alto, mas Paige continua

encarando-o como se ele fosse uma formiga, e ela própria, uma lente,

respondendo com uma palavra a cada dez proferidas por Nate.

Não fico surpreso ao ver que Nate cede primeiro, jogando as mãos

para o alto. Não consigo ouvir, mas minha habilidade amadora de leitura

labial me diz que pode ser tanto “feito” quanto “foda-se”. Depois ele sai

da sala de controle.

Quando a porta se fecha com força, Paige suspira, um gesto quase

imperceptível. Sem saber o que fazer, dou uma batidinha no vidro para
chamar sua atenção. Ela olha em minha direção, e seu rosto está

impenetrável.

— E aí? — pergunto, só mexendo os lábios.

Ela não responde. Em vez disso, gesticula, me chamando para a sala

de controle.

De repente, tenho um mau presságio. Saio às pressas para o corredor.

Nate está ali, acendendo um cigarro.

— Como você conseguiu arrumar essa aí? — grunhe ele, acenando

para a sala de controle.

— Ganhei na loteria, cara, sei lá.

Ele solta uma baforada no exato momento em que eu passo.

— Então como ela foi parar com você?

Aperto o passo, piscando rápido para afastar a fumaça de cigarro dos

olhos, e entro na sala de controle.

— Podemos alugar o estúdio — dispara Paige, sem cerimônias.

Não posso evitar o grito que emerge de dentro de mim, alto demais

para esse espaço pequeno.

— Eles têm um horário para daqui a uma semana — continua ela —,

então se o restante da banda puder…

— Eles podem.

— Você nem perguntou ainda, Eddie.

— Mas eles vão poder. Confia em mim.

Ela sorri, o primeiro traço de leveza surgindo no meio daquele caos.

— Eu confio — diz ela.

Respiro fundo, me preparando para a pergunta mais difícil.

— Quanto?

Paige mexe nos controles do painel.

— Sessenta — responde ela.

— Sessenta? Até que não é ruim…

— Por hora.

— Ah…

— Com um mínimo de cinco horas.

O que vai dar trezentos dólares. Esse valor fica muito além do meu

orçamento, mesmo se eu pegar todos os turnos no Esconderijo até o

próximo final de semana.


— Você pode… — começo, mas minha voz falha. Pigarreio. — Será

que a gente consegue pedir um desconto?

Paige balança a cabeça.

— Esse já é o valor com desconto.

Sinto o estômago revirar.

— Não posso pagar, Paige.

— Eu sei.

A notícia é ruim, mas Paige ainda está com um sorrisinho leve e

pesaroso.

— Por isso que vou cobrir esse custo — declara ela.

Como minha mente está ocupada correndo em círculos, feito um

hamster numa rodinha, levo um segundo para processar o que ela diz.

— Você… — começo, mas hesito.

Ela está brincando. É uma pegadinha. Não existe a menor

possibilidade de alguém nesse mundo oferecer trezentos dólares para

Eddie Munson.

— Não pode ser.

— Já fiz o depósito.

Mas… mas…

— Por quê?

— Não me pergunte isso. Me pergunte “por que música, Paige?”.

— Por que música, Paige?

— Porque as coisas são tristes. A vida é uma droga. E a música…

— É algo verdadeiro?

Ela pendura a bolsa no ombro, olhando para mim com o queixo

erguido, da mesma forma que fez para acabar com Nate.

— E quando você encontra algo assim… — diz ela — … é

impossível desviar o olhar.


Capítulo Doze

A notícia de que tínhamos uma data marcada para gravar a demo atingiu

a Corroded Coffin feito um trem desgovernado. Passamos uma semana

enfurnados na garagem do Dougie com as portas abertas, ensaiando até

que nossos dedos cansassem ou a sra. Teague desligasse o disjuntor, o

que viesse primeiro. A Corroded Coffin sempre foi boa — boa o

bastante para Paige querer nos contratar —, mas agora estamos bons e

focados, e essa combinação é inebriante.

Na quinta-feira, ainda sentindo a música reverberar em minhas veias,

arranco com a van pela entrada do estacionamento de trailers. O risco de

um acidente de trânsito é a única coisa que me impede de continuar

batendo o pé no ritmo da música que toca na minha cabeça, mas Ronnie,

no banco do carona, não tem essas restrições. Durante todo o caminho

para casa, com as baquetas nas mãos, ela toca “Fire Shroud”, nossa

música autoral, no painel.

Ronnie faz uma virada final com as baquetas e as guarda na mochila.

— É uma sensação boa, não é? — pergunto.

— É uma sensação maravilhosa — diz ela.

— Achei que o Jeff fosse mandar mal na ponte, mas parece que ele

andou treinando.

— Pois é.

— Ah, então… O que acha de mudar um pouco a letra no último

verso? Tipo, em vez de “Fúria em minha pele, queimando em minhas

veias”, ficar “Raiva em minha pele, queimava em minhas veias”?

— Gosto das duas.

— Mas “raiva” e “queimava” meio que rimam. Acho que vou alterar

— digo, batucando no volante no ritmo da música. — Acho que vou

perguntar para a Paige. Ela entende disso, então provavelmente pode dar

umas dicas.

Ronnie me olha de soslaio.


— O que foi? — pergunto.

— Nada. É que você está… animado de verdade com isso. É legal de

ver.

— O que aconteceu com “a gente é garagem demais pra isso”?

— Não use minhas próprias palavras contra mim, pensei que a gente

fosse amigo.

Dou uma risada e estaciono em frente ao trailer dela. Ronnie começa

a juntar suas coisas.

— Droga, você anotou qual era o dever de casa de biologia? —

pergunta ela.

Nem sabia que tinha dever de casa de biologia. Durante as aulas, só

consigo pensar na demo, no trabalho com meu pai e no Hellfire Club, o

que significa que o que os professores dizem é praticamente ruído

branco para mim. Blá-blá-blá.

Meu rosto inexpressivo já responde à pergunta, porque Ronnie revira

os olhos e abre a porta da van.

— Não sei por que eu ainda pergunto.

— Por que você ainda pergunta?

— Vou pegar com a Jeannie. Mais tarde eu te ligo e te passo. E

depois, amanhã, você vai me explicar a diferença entre DNA e RNA em

dois minutos. Sem desculpas, Munson. Já te ouvi falar por meia hora

sobre as complexidades da política élfica no universo do Tolkien.

— O que você não entende é que, como alto rei em Lindon, Gil-galad

poderia ter reivindicado o governo das dinastias Sindarin em Trevamata

e Lothlórien…

— Aham, já chega.

Ronnie salta da van, colocando a mochila nos ombros.

— … mas essas duas dinastias Sindarin foram estabelecidas

originalmente para escapar da influência dos Noldor, e uma vez que

Lindon tinha um bom número de elfos Noldor…

— Eddie Munson, é você?

A porta do trailer da Ronnie está aberta, e vovó Ecker está no

primeiro degrau, as mãos na cintura. Apesar de já ter passado dos

setenta anos, ela continua tão alta quanto Ronnie, e ainda é bem forte.

Sei disso por experiência própria, já que em geral era ela quem tomava
conta de mim quando eu corria solto na infância. Ainda estremeço toda

vez que vejo uma colher de pau.

— O próprio, vovó! — digo, baixando a janela.

— Saia desse carro e entre para o jantar — ordena ela, com um tom

de voz que não deixa abertura para argumentação.

Mesmo assim, encontro uma brecha.

— Não posso, perdão. Bev precisa que eu trabalhe hoje.

Na verdade, meu pai e eu vamos dar um pulo na War Zone para

comprar alguns suprimentos, mas não tenho como dizer isso sem revelar

meu segredo.

Vovó Ecker solta um grunhido que diz tudo o que pensa de Bev, do

Esconderijo e das minhas prioridades como um todo. Mas, antes que eu

me quebre em pedacinhos sob seu olhar gélido, ela se vira para pegar

alguma coisa no balcão atrás da porta — uma travessa coberta com

papel-alumínio.

— Ronnie — chama ela.

Depressa, a neta corre para pegar a travessa e entregá-la a mim, com

bastante cuidado.

— Não sei se posso aparecer no trabalho com uma travessa — digo.

— Não seja bobo — fala ela. — É para o seu tio. Meu melhor

ensopado de peru. Leva para ele.

O trailer do meu tio Wayne não é muito distante, mas o sol já está

começando a se pôr, e prometi a meu pai que chegaria antes de

anoitecer.

— A senhora não pode entregar?

— Aquele homem não aceita nada de mim — reclama vovó Ecker. —

Mas sabemos que ele precisa se alimentar bem, senão vai ficar só pele e

osso. Preciso pedir mais uma vez?

De repente, me lembro da colher de pau.

— Não, vovó — digo.

Desligo a van e desço. Ronnie me entrega a travessa.

— E ele precisa me trazer a travessa de volta até o fim da semana —

diz ela, voltando para dentro do trailer. — Ou então faço um barraco.

A porta de tela bate antes que eu possa responder. Ronnie me dá um

sorriso de desculpas e sobe os degraus do trailer.

— RNA e DNA — diz ela.


— Sauron usou o ressentimento dos Noldor por Gil-galad para

ganhar a confiança deles! — respondo.

Ronnie bate a porta de casa antes que eu possa infligir mais dano

psíquico. Então, carregando uma travessa quente cheia de ensopado de

peru, queijo e macarrão, marcho em direção ao trailer de Wayne.

Não me dou ao trabalho de bater à porta. Tio Wayne sempre deixa

destrancada, mesmo quando sai para trabalhar ou beber com os amigos.

Sempre que questiono, ele diz que não tem nada que alguém queira

roubar, e como a vida é dele, deixo pra lá.

Abro a porta, e ele quase deixa cair sua tigela de cereal.

— Pelo amor de Deus, Eddie, um dia você ainda vai me causar um

infarto!

Ele está sentado à mesinha no canto da cozinha apertada. Pelas

olheiras, acho que acabou de chegar do trabalho.

— A sra. Ecker me mandou trazer isso — digo, estendendo a

travessa. — É ensopado de peru, acho.

— Alguém precisa dizer àquela mulher que eu não estou passando

fome — grunhe Wayne.

Mas, a julgar pela caixa de cereal vazia caída ao seu lado, não sei se é

bem verdade. Para alguém sempre tão preocupado em verificar se minha

cozinha está abastecida, Wayne não tem o mesmo cuidado quando se

trata de sua própria despensa.

— Não sou eu quem vai fazer isso. Não posso passar a vida inteira de

pombo-correio de vocês dois — falo, com um gesto em direção à porta

amarela da geladeira. — Quer que eu guarde?

— Aham.

Ele se afasta para me deixar entrar na cozinha. Como é de se esperar,

na geladeira só tem duas latas de cerveja e uma embalagem velha de

bicarbonato de sódio. Não é difícil encontrar espaço para a travessa.

Deixo na prateleira inferior e fecho a porta.

Wayne me observa.

— Ainda bem que você veio — comenta ele.

— Achei que tivesse te causado um infarto.

— Não seja engraçadinho. Queria ter uma conversa com você.

— Então tá…

Ele mexe a colher na tigela de cereal, hesitante.


— Como você está? — pergunta, por fim. — Como andam as coisas

em casa?

— Com meu pai, você quer dizer?

— Aham.

— Ah, tudo tranquilo.

Wayne não para de mexer na tigela. Tac, tac. O tilintar da colher vai

me dar dor de cabeça.

— E vocês… Vocês têm passado bastante tempo juntos.

Cruzo os braços, me apoiando na lateral da geladeira.

— Bem, ele é meu pai, então…

Tac, tac.

— Ele te falou por que está de volta desta vez? — pergunta ele.

— Acho que sentiu minha falta.

Em defesa de Wayne, ele não ri dessa mentira ridícula. Continua a

mexer a colher.

— Deve ter sido isso mesmo — diz.

Sinto a dor de cabeça começando a surgir na têmpora esquerda. Pego

a colher dele antes que fique pior.

— Achei que você quisesse ter uma conversa — comento, jogando a

colher na pia. O talher bate na bacia e ecoa alto dentro do trailer. — Era

isso que você queria dizer?

— Não.

— Então pode fazer o favor de dizer logo? Se eu não chegar no

Esconderijo em meia hora, a Bev vai acabar comigo.

— Encontrei com Rick Lipton no mercado ontem.

Preciso de um segundo para processar. Rick Lipton. Reefer Rick.

— É mesmo?

É tudo que digo. Um pânico borbulhante cresce dentro de mim. Na

esperança de não transparecer no meu rosto, tento ignorar a sensação.

— Ele pediu para avisar que, se quiser perder na sinuca de novo, é só

aparecer.

Coloco as mãos nos bolsos.

— Só isso? — pergunto.

— Eddie…

Wayne afasta a tigela de cereal e se levanta. Tenta fazer contato visual

comigo, que eu me forço a manter, arregalando os olhos para que ele


perceba como esta situação é ridícula.

— Está andando com Rick Lipton agora?

— Pelo amor de Deus, isso é crime?

— Você sabe o que ele faz, não sabe?

Reviro os olhos.

— Pelo saquinho na sua mesinha de cabeceira, dá para ver que você

sabe.

Mas a provocação não funciona com Wayne, pelo menos não agora.

Seu olhar é impassível.

— Não estou criticando — diz ele —, mas você não pode me culpar

por juntar os pontos.

— E que pontos são esses?

— Al volta para a cidade. Você não quer me dizer por que e ele,

muito menos. Mas não sou idiota. Sei quando meu irmão está metido

em problemas. Aí, poucos dias depois, você está jogando sinuca com

Reefer Rick.

Wayne não demonstra raiva nem frustração, apenas uma enorme

preocupação, e de alguma forma isso é ainda pior. Sinto um nó na

garganta, um incômodo que parece vergonha, e engulo em seco. Não

importa, digo a mim mesmo. Ele pode achar ruim e se preocupar, mas

não pode me controlar. Não pode controlar o que eu faço.

Então apenas dou de ombros.

— E qual é o problema?

— Estou cuidando de você — fala Wayne, cruzando os braços com

força, como se fossem uma proteção. — Sei como Al se comporta

quando tem um esquema. Ele vai fazer e acontecer, mas vai dar no pé

quando as coisas complicarem. Já perdi as contas de quantas vezes

aconteceu comigo. Não quero que você termine da mesma forma.

— Entendido. Sem esquemas — digo, fazendo um cumprimento

irônico, levantando três dedos. — Palavra de escoteiro.

Mas Wayne só balança a cabeça.

— Estou falando sério, Eddie. Você já é adulto… sabe disso muito

bem. Não vale a pena colocar a mão no fogo por seu pai. A não ser que

queira se queimar.

Sinto uma onda de raiva me atingir. Não sou criança e

definitivamente não sou filho do Wayne. Não preciso de lição de moral.


— Já disse que entendi. Já terminou?

— Você pode me contar as coisas, Eddie. Sabe disso, não é? Mesmo

que queira que… que eu só fique em silêncio, escutando.

Em silêncio, ele parece cabisbaixo. Talvez seja a iluminação, mas

percebo que a barba está mais grisalha do que meses atrás. Há mais

rugas em seu rosto. Estranho como isso acontece tão rápido.

— Sim — responde ele, por fim. — É só isso mesmo.

É só isso. A conversa terminou. E para mim já deu, sem dúvida. Nós

nos despedimos depressa, e num momento estou de novo do lado de

fora, indo até minha van como se o chão tivesse feito algo para me tirar

do sério.

Se vai tacar, taca logo, disse meu pai naquele dia, quando eu estava

jogando sinuca. Bem, eu já dei a primeira tacada. O jogo começou. E

nada vai me impedir de jogar até o final.


Capítulo Treze

— Chega, chega, chega…

Solto um gemido de frustração e paro de tocar.

— Minha nossa — resmungo.

— O que foi agora? — pergunta Dougie.

— Pensei que a gente devia estar gravando — diz Jeff, confuso. —

Por que ela não deixa a gente gravar?

Na sala de controle, do outro lado do vidro, Paige se inclina sobre o

ombro de Nate para falar no microfone do painel de áudio.

— Porque vocês ainda não estão prontos. Estão sem energia, parecem

ensaiadinhos demais.

— É porque a gente ensaiou — murmura Ronnie.

Pela sombra do piso, vejo o joelho dela balançar de um lado para

outro. Ronnie mal consegue conter o nervosismo.

— O nome da música é “Fire Shroud”, que significa mortalha de fogo

— diz Paige. — Então vamos botar fogo nisso aí. Mais uma vez, do

início…

Do início. Toco a introdução e paramos. De novo. Pela milionésima

vez nesta manhã.

O clima anda pesado desde que estacionamos em frente aos Estúdios

Mike. Pisquei forte por causa do sol, e Jeff e Dougie saíram da picape de

Dougie e observaram o letreiro acima da entrada com a mesma

apreensão que Paige e eu sentimos a primeira vez que visitamos o lugar,

uma semana antes.

“Tem certeza de que a gente não pode gravar na minha garagem?”,

perguntou Dougie.

Cutuquei o ombro dele com o meu.

“Já estamos aqui. Tem certeza de que quer dar meia-volta e ir embora

agora?”
Ele fez uma careta insegura, e eu dei um tapinha nas costas dele.

Virei para ajudar Ronnie a tirar a bateria da van e percebi Paige, que me

olhava e abria um sorriso cúmplice enquanto saía pela porta do carona.

“Sábias palavras”, disse ela.

Dei língua para ela. E esse foi o último momento divertido do dia.

Talvez seja a postura totalmente desinteressada do Nate, desleixado

atrás do painel de áudio. Talvez seja a pressão da luz vermelha piscante

da câmera que Paige apontou para nós do outro lado do vidro. Talvez

seja a terrível consciência de que o nosso tempo no estúdio está se

esgotando.

Talvez sejam todas essas coisas somadas a um milhão de outras. Mas

não importa o motivo, porque assim que a Corroded Coffin está pronta

no estúdio…

A gente manda mal.

Ficamos fora de sincronia. E, quando sincronizamos, parecemos

robôs. E, quando não parecemos robôs, ficamos fora de sincronia.

É um ciclo infernal, e nada faz sentido. Por anos, conseguimos sem

esforço conjurar um furacão e conduzi-lo ao ritmo do nosso som —

fizemos isso quando Paige nos viu no Esconderijo, caramba! Mas, aqui

no estúdio, é como se estivéssemos com chumbo nos bolsos, como se

estivéssemos pregados ao chão. Impossibilitados de voar. E não consigo,

de jeito nenhum, descobrir por quê.

Esta gravação de “Fire Shroud” não vai ficar melhor do que as outras.

Mal chegamos ao primeiro terço da música, mas desta vez sou eu quem

interrompe:

— Gente, gente…

Eu me afasto do microfone e me viro para silenciar os pratos da

bateria de Ronnie. Ela me lança um olhar desafiador e reflexivo, que fica

mais suave com o que digo:

— Vamos fazer uma pausa.

— O que houve? — pergunta Paige, sua voz ressoando no meu fone

de ouvido.

— Vamos tirar cinco minutos de intervalo — digo no microfone. —

Vocês poderiam…

Não completo com “nos dar licença”, não em voz alta, porque não sei

como Nate reagiria ao ser dispensado no próprio estúdio. Mas mesmo


que a Corroded Coffin não esteja no mesmo compasso, pelo menos

Paige entende o que quero dizer. Pelo vidro, vejo que ela faz uma

pergunta a Nate, que, sem hesitar, pega um maço de cigarros e vai em

direção à porta.

Paige se inclina sobre o microfone.

— Pausa para fumar. Voltamos em breve — anuncia ela.

— Obrigado — digo.

Ela assente, e em seguida a sala de controle fica vazia.

Respiro fundo. Olho para a banda e tento não reagir com uma careta

ao desânimo estampado no rosto de todos eles.

— Não faz sentido — começa Jeff, com um olhar perdido, como se

as últimas horas o tivessem deixado em choque. — A gente ensaiou… A

gente estava indo bem no ensaio.

— É o único lugar em que a gente estava indo bem — retruca

Dougie, arrastando a ponta do tênis no tapete, com a guitarra Les Paul

pendurada no pescoço. — Olha este lugar… A gente não se encaixa

aqui. Nós somos uma banda de garagem.

Quero rebater, dizer “é óbvio que somos bons o suficiente para este

lugar, é óbvio que não somos só ‘uma banda de garagem’”. Mas com o

evidente desinteresse de Nate e a expressão ansiosa de Paige ainda

girando em minha mente, é difícil pôr os pensamentos em ordem. É

difícil acreditar.

Mas Ronnie encontra as palavras certas.

— Deixa de bobagem — diz ela, ainda sentada, olhando para nós de

um jeito intenso, a testa suada por causa do esforço.

— Mas foi você quem disse que… — começa Dougie.

— E daí? — rebate ela. — Não precisamos ser perfeitos. A gente

veio aqui para tocar. Temos que parar de nos sabotar e mandar ver.

Um sentimento de culpa revira meu estômago. Eu só quero fazer

música, foi o que prometi a eles na garagem do Dougie. E se isso era

tudo que eu queria, estar aqui neste estúdio, tendo só um gostinho da

chance de tirar alguma coisa da nossa banda de fundo de quintal, deveria

ser suficiente. Mas…

Atendente de bar vira vocalista e herói do rock.

Se essa é a minha história, então nunca será apenas “só quero fazer

música”. Heróis do rock não desistem. Fazem coisas grandiosas. Não se


deixam intimidar por um estúdio decadente no centro de Indiana.

— Ronnie está certa — declaro. — Estamos nos sabotando, e isso

está acabando com a gente. Tantos ensaios, toda essa pressão, tudo…

isso. — Faço um gesto abrangendo o ambiente. — Estamos travados. É

como se fôssemos armas, sabem? Armas poderosas. Espadas. Um

pouquinho de prática pode nos deixar afiados. Mas se alguém afiar uma

espada com muita intensidade ou muita frequência… Ela volta a ficar

cega. E foi isso o que aconteceu com a gente. Mas, gente… Não

precisamos deixar isso acontecer.

— Não? — pergunta Jeff, meio inseguro.

— Não mesmo — garanto. — Já fizemos isso antes. Fazemos toda

semana no Esconderijo. Mas não temos que ser um segredo de Hawkins

para sempre. Podemos dizer para o mundo o que está perdendo, e

podemos fazer isso agora.

Não é exatamente um discurso do tipo “só quero fazer música”, e isso

não passa despercebido por Ronnie. Dá para sentir seu olhar.

— Somos a Corroded Coffin — continuo. — Vamos fazer o que a

Corroded Coffin faz de melhor e arrebentar. Jeff, quero ver o garoto que

apareceu para ensaiar dois anos atrás e se recusou a ir embora até que

admitíssemos que precisávamos de um baixista.

Ele sorri, tímido e satisfeito.

— Dougie — digo —, quero ver o cara que chamou o professor Lowe

de fascista na cara dele quando ele parou de deixar a gente ir ao

banheiro durante a aula de geometria.

Dougie bufa.

— Chamei ele de fascista porque ele estava sendo um fascista mesmo.

E então…

— Ronnie…

Ela revira os olhos, mas sua pose de durona é totalmente destruída

por uma risada.

— Ah, eu imploro, me poupa — diz ela.

— … quero ver a garota que ficou na mira dos policiais por tocar

bateria às onze da noite atrás do trailer da avó. A garota que mordeu

Daniel Cirelli no braço quando ele assobiou para ela. A garota que

começou esta banda ridícula comigo. Gente… esqueçam o ensaio.

Esqueçam este lugar, esqueçam a câmera, esqueçam o que está em jogo.


Não importa o público ou onde estamos, porque se tem uma banda que

pode botar para quebrar qualquer lugar e impressionar qualquer um é

a…

— Pessoal?

A voz de Paige ressoa nos alto-falantes. Eles estão de volta à sala de

controle. Nate se joga na cadeira, ainda parecendo preferir estar em

qualquer outro lugar.

— Estão prontos para recomeçar? — pergunta Paige.

Volto a olhar para a banda. Aquele desânimo sufocante se dissipou e

foi substituído por um raio de energia que corre de um jeito elétrico por

cada rosto a meu redor. O sentimento também me atinge, e abro um

sorriso.

— Corroded Coffin — digo —, vamos botar para quebrar!

Então viro para a sala de controle e…

Não é um acorde que sai da minha querida guitarra; é um grito. Pelo

canto do olho, vejo que Nate se virou de olhos arregalados. Até mesmo

Paige está surpresa, endireitando-se e me observando com um calor

familiar que atravessa o vidro.

Meus dedos dançam pelo braço da guitarra, se movendo por puro

instinto. Num piscar de olhos, Jeff entra na melodia, seu baixo vibrando

num pulsar constante e ameaçador que envolve a guitarra de apoio de

Dougie, mesclando-se e fundindo-se por um segundo antes do…

Silêncio. Por dois… três… quatro…

Sinto os primeiros sinais de um furacão às minhas costas. E então…

A bateria de Ronnie surge como um trovão. O som faz o ar vibrar,

reverbera em minha pele. E não é coisa da minha cabeça — dá para ver

que Nate se endireita na cadeira e se inclina sobre o painel de áudio.

Para escutar.

Bem, isso chamou a atenção dele. Vamos ver agora se conseguimos

mantê-la.

O estrondo da bateria de Ronnie se transforma numa britadeira,

abrindo caminho pelos meus ouvidos até minha alma e fazendo meu pé

bater no ritmo. A guitarra de Dougie transforma a harmonia em um

lamento, e o baixo de Jeff esculpe a espinha dorsal que sustenta a canção

em um nível a que não tínhamos conseguido chegar o dia todo…


Mas o verdadeiro desafio está chegando. Arrasamos na introdução, e

agora…

Eu me aproximo do microfone, tirando o cabelo no rosto. Então…

Cantei a manhã inteira, e foi muito trabalhoso, como se eu tivesse

que forçar as palavras a sair cada vez que abria a boca.

Desta vez, porém, não fico rouco. Minha voz não falha. As palavras

não estão vagando sem rumo pelo horizonte. A música simplesmente

jorra de mim, selvagem, pura e incandescente. E sinto a resposta da sala

de controle, como na noite no Esconderijo em que Paige e eu nos

conhecemos… mas a sensação é ampliada pela presença de Nate. O

homem estava prestes a nos mandar embora dois minutos atrás, mas

agora não consegue desviar o olhar. A luz do estúdio brilha sobre mim, e

acho que eu poderia viver neste momento para sempre.

Eu me afasto do microfone para tomar o que parece ser meu primeiro

fôlego em quinze anos. Mas não há tempo a perder; estamos nos

aproximando do solo de guitarra, a bateria de Ronnie nos conduzindo

cada vez mais para o fim da música. Sem esforço, executo o solo,

abrindo as asas, deixando a energia me fazer flutuar em direção ao céu.

O restante da banda sente o mesmo — consigo ver no sorriso travesso

que Ronnie me dá; na maneira com que Dougie está se deixando levar

pela melodia, movendo os lábios a cada nota que tira de sua guitarra;

pela forma como a cabeça de Jeff balança como se ele fosse uma

marionete.

Vencer os demônios. Viajar para as profundezas do inferno. Foi o

que eu disse a Paige sobre como me sentia, e isso nunca foi tão

verdadeiro quanto neste momento. E, enquanto o solo termina, procuro

seu olhar na sala de controle.

Não é difícil encontrar. Seus olhos são como dois faróis, fixos em

mim. Encaro-a de volta conforme o baixo de Jeff nos leva até o fim da

música, e de repente é como se estivéssemos no estúdio na semana

passada — apenas Paige e eu, trocando segredos pelo fone de ouvido.

Só falta o último refrão, o baixo de Jeff nos conduz até o verso final,

implacável. Eu me inclino sobre o microfone e canto para Paige. Eu

canto para ela. Canto até achar que vou perder a voz, e continuo

cantando, e então…

A música termina.
Meus braços relaxam, sem forças, a paleta oscila entre meus dedos

exaustos. Mas, mesmo que eu consiga sentir uma nuvem de exaustão no

horizonte, nada é capaz de deter a adrenalina que corre em minhas veias.

— É isso aí! — exclama Dougie, jogando os braços para cima. — É

isso aí!

— Foi ótimo — diz Jeff, com um sorriso tímido.

— Foi incrível — corrige Ronnie, me dando uma batidinha no ombro

com uma de suas baquetas.

Mas mal sinto o impacto. Meus olhos ainda estão fixos na sala de

controle, onde Nate está fazendo todo tipo de ajuste no painel de áudio,

com mais energia do que jamais vi.

E Paige está sorrindo, inclinada com os braços nas costas da cadeira

de Nate.

No microfone, só pelo prazer de assistir aquele sorriso ficar um

pouco maior, pergunto:

— O que achou?

Paige se inclina para o microfone, mas Nate chega antes dela e aperta

o botão para falar.

— Radical, irmão — declara ele, a voz estalando nos fones e nos

alto-falantes do teto. — Foi. Foda. Demais.


Capítulo Catorze

— Será que é melhor eu tomar a vacina antitetânica logo? Ou devo

esperar até que o sangue fique preto?

Meu pai dá uma risada e continua com os velhos binóculos enfiados

nos olhos. Não sei como consegue enxergar, já que uma das lentes está

completamente rachada. Mas talvez ele tenha comido bastante cenoura

quando estava na prisão, porque sua visão é excelente. De repente, ele

deixa cair os binóculos com uma expressão satisfeita.

— Luzes apagadas — declara.

É algo estranho de se dizer, ainda mais porque o sol está a pino, tão

quente que sinto o suor escorrer na nuca. Estamos sentados na van desde

as quatro da manhã, estacionados atrás de algumas árvores perto de uma

estrada de mão dupla em algum lugar de Illinois. A van está fora do

campo de visão do armazém decadente um pouco mais adiante, mas

perto o bastante para ficarmos de olho nas carrocerias enferrujadas que

cobrem o gramado.

À primeira vista, parece com qualquer outra propriedade caindo aos

pedaços dos arredores. Essa parte do estado está repleta delas, terras

extensas sem ninguém para fazer manutenção. Mas este lugar em

específico tem um armazém com janelas tapadas e amplas portas duplas,

um gerador grande o suficiente para abastecer Hawkins inteira e um

estoque de ferramentas elétricas que deixaria tio Wayne babando.

Tudo isso são sinais de que se trata de uma oficina de desmanche. E

desmanches são feitos à noite. O que significa que neste exato momento,

às onze da manhã, os ilustres cidadãos que administram esse lugar

devem estar se preparando para dormir.

— Pronto? — pergunta meu pai.

A resposta sincera seria “não, não estou nem um pouco pronto para

roubar um desmanche”, mas penso na fita com a demo, que já está

dentro de um envelope acolchoado, a caminho de algum prédio


comercial impecável e ensolarado na Sunset Boulevard. Não deve ser tão

quente assim na Califórnia, provavelmente.

— Aham — digo.

Saio da van e acompanho meu pai em meio às árvores na beira da

estrada.

Quando ele mencionou este plano pela primeira vez, pensei que fosse

uma piada. Estou começando a reparar que essa é a minha reação a tudo

que meu pai me conta. Mas a menos que haja um padre, um rabino ou

um marinheiro na história, ele sempre está falando sério.

“A gente precisa de um caminhão reboque”, disse ele, vasculhando as

prateleiras da War Zone, empilhando armadilhas para furar pneus e

macacões num carrinho enorme. “Um bem grande.”

Pensei que aquilo significava que faríamos outra visita ao Reefer Rick

ou a algum outro… colega do meu pai. Como ele conhece todo tipo de

sujeito na face da Terra, o “cara dos caminhões reboque enormes” não

parecia ser impossível.

Como eu sou idiota, penso agora, atrás do meu pai. Minha ideia de

um “cara dos caminhões reboques enormes” foi pelos ares de um jeito

espetacular quando ele disse que, para essa missão, teríamos que cruzar

as fronteiras do estado.

“É uma maneira um tanto duvidosa de começar as coisas”, comentei,

colocando um alicate no carrinho de compras da War Zone.

Mas meu pai apenas abriu um sorriso.

“É mais legal assim, garoto.”

De acordo com ele, o único problema era que caminhões reboque são

difíceis de encontrar, a não ser que tivéssemos rios de dinheiro para

gastar, e mesmo assim não passaria despercebido pelas autoridades.

Roubar de um mecânico qualquer não é uma solução muito melhor,

ainda mais quando é necessário ser discreto. Só existe um tipo de pessoa

que não vai chamar a polícia para denunciar um ladrão.

Outros ladrões.

“Isso acontece com frequência”, explicou meu pai, empurrando o

carrinho pelo estacionamento em direção à van. “Fiquei sabendo de uma

oficina de desmanche em Illinois que tem exatamente o que a gente está

procurando.”
Agora, saímos do meio das árvores que cercam o lugar. Meu pai está

focado nas portas do armazém trancadas com cadeado, mas eu estou

mais preocupado com o trailer sujo e enferrujado alguns metros à frente.

Foi lá que duas pessoas, um homem e uma mulher, ambos com

macacões manchados de graxa, entraram depois que os barulhos e as

faíscas no armazém cessaram. Faz apenas quarenta minutos que eles

fecharam a porta, mas já dá para ouvir os roncos pelas frestas das janelas

quebradas. Eles estão no décimo sono.

Vamos torcer para que continuem assim.

Meu pai dá uma batidinha no meu ombro para me chamar. Em

seguida, dispara em direção ao armazém. Acaba pisando numa lata de

cerveja, e o mato alto farfalha em sua calça jeans. Mas as pessoas do

trailer continuam roncando, então eu vou em frente, mantendo a

distância de um ou dois passos até ele parar diante do cadeado nas

portas do armazém.

Meu pai pega dois longos arames do bolso da jaqueta de couro. Não

tiro os olhos nervosos do trailer, agora distante, enquanto ele enfia os

arames no cadeado, dá um giro e depois outro. O cadeado se abre com

um clique, destravando no intervalo de um suspiro.

— Como você pode ser tão bom nisso? — murmuro.

— Cordas de metal para guitarra, arames para cadeados — diz ele,

fazendo um gesto com as mãos e os arames desaparecem. É a sua magia.

— Se sabe manipular um, com certeza consegue se dar bem com o

outro.

— Isso é mentira.

— As coisas podem ser verdade e mentira ao mesmo tempo.

É difícil abrir as portas, mesmo juntando nossas forças. Meu pai está

tomando cuidado para não fazer barulho agora, se movendo devagar e

lubrificando as dobradiças das portas para que nenhum rangido nos

denuncie. Uma vez dentro do armazém poeirento e com as portas

devidamente travadas com um tijolo, as gotas de suor que escorriam

pelo meu pescoço já se transformaram num rio, e a camiseta está

encharcada debaixo dos braços. Estou todo ferrado.

Meu pai, no entanto, exala o frescor de uma margarida. Ele está com

um sorriso estampado no rosto, e então percebo que já vi esse sorriso

algumas vezes antes — em mim mesmo, no espelho, depois de sair do


palco do Esconderijo ou de terminar uma sessão mais emocionante no

Hellfire Club. É um sorriso desafiador, confiante.

— Você trouxe essa lanterna por algum motivo? — pergunta. — Ou

foi só porque é um acessório bonitinho?

Reviro os olhos e ligo a lanterna. O foco de luz corta a escuridão

empoeirada do armazém, iluminando pilhas de peças de carros, na

altura de três ou quatro carcaças umas sobre as outras. Há bancadas

dispostas em ângulos esquisitos. O único caminho no meio desse caos é

uma trilha de mais ou menos dois metros de largura, que vai da entrada

até o fundo da oficina de desmanche. Espaço suficiente para um

caminhão passar.

— Aqui — diz ele.

O foco oscilante da lanterna pousa em um fragmento do que só pode

ser a silhueta de um caminhão reboque, e meu pai contorna pelo lado do

motorista para dar uma olhada na janela.

— Cheque as rodas — ordena ele.

— Sim, senhor — digo, irônico.

— Não seja rebelde. Isso aqui é educativo.

Eu poderia discutir, mas não sinto que seja o lugar ideal para isso.

Então me agacho e aponto a lanterna para as rodas.

— Estamos sem sorte — declaro.

As rodas estão sem pneus. Mas meu pai apenas suspira e pega uma

antena de carro largada por ali.

— Os Munson não esperam pela sorte — diz ele. — Nós fazemos a

sorte estar do nosso lado.

Ele enfia a antena pela janela do motorista, e, depois de alguns

segundos fazendo força, a porta abre, tão suave quanto o cadeado

minutos antes.

— Isso tem a ver com as cordas da guitarra também?

— Isso aqui já é nível intermediário — explica ele, segurando a porta

aberta do caminhão. — Entra. Quero ver se você chega no avançado.

Meu pai entra e desliza para o banco do carona. Eu hesito.

— A gente não tem tempo sobrando, garoto — diz ele.

Resisto à necessidade de dar a língua e subo no caminhão, sentando

no banco do motorista.
Usando uma chave de fenda, meu pai abre o painel de plástico abaixo

da coluna de direção. O painel cai sobre meus joelhos, e eu o afasto.

— Muito bem. Dá partida — ordena ele.

Parece que meu coração vai sair pela boca.

— Pai, eu não consigo…

— É óbvio que consegue. Já fizemos isso antes. Ou está me dizendo

que não se lembra?

É óbvio que me lembro. Foi o presente que meu pai me deu quando

fiz dez anos: aulas de como roubar carros. Não precisei perguntar para

meus amigos da escola para ter certeza de que essa não era uma tradição

compartilhada por muitas famílias.

“Um dia você vai precisar de um carro”, disse meu pai, solene.

Na época, interpretei aquilo como um mandamento. É óbvio que eu

precisaria de um carro, todo mundo precisa. Só ainda não tinha me

ocorrido que nem todo mundo conseguia um carro roubando de outra

pessoa.

— Meio bobo da minha parte, mas acho que me esqueci de treinar —

digo, tentando rir, mas sinto um nó no estômago. — Como vou

conseguir me apresentar no Carnegie Hall?

— Não estou brincando, Eddie. Não trabalho com caras que não

colaboram. Se você quer receber sua parte nesse acordo, precisa ajudar.

Então vou falar de novo: dá a partida. — Ele põe um canivete na minha

mão. — E saiba que isso não foi um pedido.

Cerro os dentes para não dar uma resposta ríspida. Em seguida, me

abaixo e pego dois fios vermelhos do painel aberto.

Esses aqui vão acionar a bateria. Ouço essa frase na voz do meu pai,

ecoando desde aquela manhã ensolarada, oito anos atrás. Observei-o

desencapar as pontas com um floreio e torcer as duas juntas. É o que

faço agora, abrindo o canivete com o polegar e conectando os fios.

— Muito bem.

A aprovação do meu pai me atinge em cheio. Queria não me sentir

tão bem com isso.

Agora a ignição. É um fio amarelo, fácil de encontrar. Tiro-o do

emaranhado e junto aos fios da bateria. Meu estômago revira, e parece

que tudo dentro de mim está retorcido, como os fios em minhas mãos.

De repente, percebo que essa emoção que está surgindo é nojo. Estou
com nojo de mim, de como me lembrei disso com tanta facilidade e do

quanto me lembro dessa merda toda, de forma tão clara. Existe uma

razão para eu não ter feito isso desde então. Vinha dizendo a mim

mesmo que eu não era como meu pai, de nenhuma maneira, que se

precisasse de um carro, simplesmente compraria.

Mas aqui estou eu. Não sou mais o Eddie, não dentro deste caminhão

prestes a ser roubado. Sou o Júnior, o garoto que tem o mesmo sorriso

de Al Munson.

E Júnior tem um trabalho a fazer.

Desencapo os fios que dão a partida. Você precisa conectar os dois e

acelerar o motor algumas vezes, lembro, mas desta vez ouço traços da

minha própria voz junto a do meu pai. Sinto um enjoo, mas estou quase

lá…

Quando alguma coisa range.

Sinto um arrepio. Olho pelo retrovisor e vejo que…

— A porta está aberta.

Não está escancarada, mas aberta o bastante para permitir que um

raio de sol entre. Talvez o peso da porta do armazém tenha movido o

tijolo.

— Esquece a porta — diz meu pai.

— Você quer que seus amigos saibam o que estamos fazendo? —

pergunto, já saindo do caminhão. — Daqui a pouco eu volto.

Meu pai fica em silêncio. Apenas me encara, muito sério e

desapontado. Tento não me sentir um covarde e mantenho o peito

estufado enquanto sigo para a porta do armazém. Mas nós dois sabemos

que estou dando para trás.

Você concordou com isso, penso, em uma voz muito parecida com a

do meu pai. Você ajudou a fazer o plano, convenceu o traficante a

comprar o produto. Por que está fugindo agora?

Não tenho uma resposta, não uma que seja boa. Deve ser o Um dia

você vai precisar de um carro. Deve ser o Não trabalho com caras que

não colaboram. A sensação de que a estrada desse trabalho é longa, e

que, mesmo quando chegarmos ao fim, ela vai continuar, se eu quiser

continuar dirigindo. Deve ser o sentimento de que, depois que eu

desencapasse os fios da ignição, não seria apenas o sorriso do meu pai

que veria a próxima vez que olhasse no espelho. Seria ele todo.
Pelo jeito, tudo isso é o bastante para me fazer correr. Então, sim, eu

recuo. Recuo em direção ao único feixe de luz neste cemitério

automotivo dos infernos.

Preciso de um segundo para me acostumar com o sol e observo a

abertura da porta. Mesmo com dificuldade, dá para ver que o tijolo se

moveu mais do que imaginei, porque não consigo mais vê-lo. Franzindo

a testa, abro um pouco mais a porta, apenas o bastante para pegar o

tijolo, onde quer que ele tenha ido parar, e trazê-lo de volta…

… e congelo na mesma hora. Não porque encontro um peso de porta

rebelde.

É uma arma. Apontada bem na minha testa.

— Você estava certo, Sammy — declara a pessoa que está segurando

a arma. — Parece que a gente pegou um rato.


Capítulo Quinze

Sem conseguir evitar, dou uma risadinha. Passei o dia inteiro

aguardando a bomba explodir, e quando explode… é alguém chamado

Sammy?

— Vou atirar mesmo se você der uma de maluco, garoto — diz a

pessoa com a arma. — Para fora. Agora.

Fico em silêncio e saio do armazém.

Os donos desse desmanche, os que estavam roncando como ninguém,

parecem ter a idade do meu pai. A mulher segurando a arma tem um

mullet ensebado que causaria inveja no Bob Seger. Seus olhos estão

vermelhos, mas o dedo está bem firme no gatilho, então descarto

qualquer possibilidade de escapar. Sammy está atrás dela, tão alto e

grande que faz sombra sobre nós dois.

Nenhum deles está feliz em me ver.

— Olá — digo.

De repente, não estou mais surtando. Agora sou apenas um garoto no

meio de um ferro-velho olhando para o cano de uma pistola.

— Ele não parece um policial — murmura Sammy.

— E quem ia pensar que esse moleque é um policial? — retruca a

mulher, cutucando meu peito com a arma. — Tem mais alguém aqui

com você?

Em algum lugar na escuridão, meu pai ainda está sentado num

caminhão reboque, e se esses dois o acharem, a gente está ferrado.

Qualquer esperança de sair desta situação está nas mãos dele.

Apelo para a mesma estratégia que costumo usar quando um atleta

está pegando no pé de alguém do Hellfire Club. Como distração, banco

um grande idiota.

— Somos só nós três, docinho.

Sammy deixa escapar uma risada. Ele é meu favorito. A mulher de

mullet, por outro lado, fica irritada.


— Quer dar uma de engraçadinho, né?

— Você gostou? — pergunto.

— Esqueceu que posso te matar?

Não esqueci mesmo, pode acreditar. Mas espero que o som fraco que

escuto vindo do armazém não seja minha imaginação.

— Ouvi várias promessas — declaro. — Mas não vi nenhuma

determinação.

Não estou imaginando. O som fica mais alto. Sammy franze o cenho,

preocupado.

— Ei, vo… — começa ele.

— Mas se você está hesitante, não precisa ficar nervosa —

interrompo, alto o bastante para interromper Sammy. — Me matar

causaria uma bagunça enorme, e dei uma olhada no negócio de vocês.

Tenho certeza de que são mecânicos muito talentosos, mas limpeza não

é o forte por aqui.

A mulher engatilha a arma.

De repente, as portas do armazém fazem um barulhão e meu pai

passa por nós no caminhão reboque, tão depressa quanto um veículo

daquele tamanho é capaz. Uma das portas bate em Sammy e o arremessa

ao gramado com força o bastante para tremer a terra. Ou talvez seja

apenas meu corpo trêmulo, já que me jogo no chão e cubro os ouvidos,

porque a primeira reação da mulher é apertar o gatilho, e a bala

ricocheteia na parede de aço corrugado a centímetros da minha cabeça.

Fico de joelhos, ouvindo um zumbido, pronto para pegar minha

carona. Mas, quando recupero a visão, vejo os faróis traseiros do

caminhão se afastando em direção à estrada de mão dupla.

Ele não vai me esperar. Não está nem mesmo desacelerando. Meu pai

está me abandonando aqui, nesse ferro-velho miserável, com duas

pessoas que querem explodir minha cabeça.

Não vale a pena colocar as mãos no fogo por seu pai. Foi o que o

Wayne falou. A não ser que queira se queimar. Estou começando a

entender o que ele quis dizer.

Ainda estou olhando para o horizonte, e o caminhão já desapareceu.

De repente, sinto uma pancada quente e brilhante na lateral do rosto. A

dor é atordoante, e então percebo que a) a mulher acaba de me dar uma

coronhada na cabeça e b) estou caído na lama.


— Seu merdinha — sibila ela.

Ela está de pé acima de mim, uma bota em cada lado da minha

cabeça. Nesse ângulo, tenho uma ótima visão do nariz dela. E também

do cano da arma. Não é a melhor vista do mundo.

— Escuta… — começo, mas percebo que não tenho mais nada para

dizer.

Se estivéssemos na escola, nunca chegaríamos a essa parte. A briga já

teria sido interrompida. Eu já teria sido levado até a sala do diretor para

ser julgado pelos meus crimes inexistentes.

Mas agora estou sozinho. Ninguém vai me ajudar. Vou morrer aqui, e

pior… vão desaparecer com o meu corpo. E duvido que alguém sequer

vá me procurar.

— Vou colocar um buraco nesse corte de cabelo ridículo — grita a

mulher.

O insulto é um tanto hipócrita, já que ela mesma tem um mullet, mas

estou ocupado demais tentando não molhar as calças para comentar

qualquer coisa.

— Escuta… — digo novamente, e parece que é a única palavra que

consigo lembrar.

— E depois vou encontrar seu parceiro e fazer a mesma coisa com

ele. E com sua família toda. E com todo mundo com quem você já

cruzou nessa sua vidinha ridícula.

— Escuta — repito, mas agora é de propósito.

Porque aquele som está de volta. O ronco de motor fica cada vez mais

alto.

A mulher só tem tempo de olhar para trás…

… e o caminhão reboque avança contra ela, fazendo-a voar como se

fosse uma boneca de pano. Atônito e chocado, observo a cena, seu

cabelo ao vento, esvoaçando como se fosse uma bandeira ensebada. Ela

bate na lateral do armazém, com força o bastante para amassar a parede

de aço, cai no chão e permanece imóvel.

— Bom trabalho!

Olho para cima e vejo, de cabeça para baixo, meu pai na janela do

caminhão.

— Pensei que tivesse ido embora — confesso.

Ele revira os olhos.


— Você parece o Wayne.

Alguns metros adiante, a silhueta gigantesca de Sammy começa a se

mexer. Meu pai acelera.

— Está confortável aí na lama? — pergunta ele.

— Não.

— Então sai daí, garoto, vamos embora!

Sammy resmunga alguma coisa, e isso é tudo de que preciso para me

levantar. Sinto a cabeça doer, e parece que o mundo está girando. Eu me

esforço para continuar e me jogo na cabine do caminhão. Não consigo

nem mesmo fechar a porta antes de meu pai pisar no acelerador com

tudo, e em instantes estamos avançando em direção à estrada,

contornando peças de carro descartadas e troncos podres. Sammy e a

mulher são deixados para trás, gemendo.

— Consegue dirigir? — grita meu pai sobre o barulho do motor.

— O quê?

— Sua cabeça. Consegue dirigir a van?

Se eu tivesse bom senso, diria que não, com certeza não. Mas a

adrenalina percorre minhas veias. Além disso, apesar de jurar que tudo

ia terminar mal vinte segundos atrás, ainda estou vivo. E, para

completar, meu pai voltou para me buscar, então…

— Que se dane. Consigo, sim.

— É isso aí! — diz ele, sorrindo.

Desta vez não me sinto mal ao sorrir de volta com o mesmo sorriso

desafiador e confiante, porque, contra todas as probabilidades, estou

começando a acreditar que realmente vamos conseguir.

A magia que só os Munson têm é tudo de que precisamos.


Capítulo Dezesseis

— Dá pra parar com isso?

Dou um tapinha no dedo de Ronnie, que não para de cutucar o galo

na minha cabeça desde que a busquei mais cedo.

— Impossível — diz ela.

Ronnie me cutuca de novo e atinge a lesão em cheio. Solto um

assovio e recuo, mas ela nem liga.

— É hipnotizante — comenta.

— Você que está me hipnotizando com isso — retruco. — Vai me

deixar com uma concussão.

— É só um lembrete para você consertar a porta da van. Da próxima

vez que ela bater em você, pode te escalpelar.

Ronnie abaixa a mão, e eu finalmente posso relaxar.

— Vou me lembrar — garanto. — Anda logo, a gente está atrasado.

Estamos nos corredores vazios da escola, indo em direção ao sortudo

local reservado para o Hellfire Club hoje: o laboratório de química do sr.

Vick. (Preço: uma hora inteira limpando os béqueres e varrendo o chão.

Se eu não soubesse o quanto o pessoal da limpeza da Hawkins High é

sobrecarregado, eu faria uma reclamação.) Tento ignorar que o mundo

ainda gira um pouquinho quando piso forte demais, mas está

melhorando a cada minuto, então acho que não preciso ir para o

hospital. De qualquer forma, não quero dar essa satisfação à mulher do

mullet.

Mas, ao contrário do que eu imaginava, o Hellfire Club não estava

dentro do laboratório quando Ronnie e eu chegamos. Eles estavam

dispersos no corredor, suas mochilas jogadas perto da parede. Jeff e

Dougie estão brincando com uma bolinha de elástico, jogando-a para o

teto e um para o outro. Gareth está encolhido no chão, um caderno

aberto no colo. Eu me aproximo e vejo que a página está repleta de


anotações a lápis, e tem um rascunho de um desenho simples de um

anão carrancudo. Notas de personagem.

Ele é o primeiro a notar a nossa presença.

— Eddie! — chama, levantando-se.

Jeff e Dougie largam o jogo bobo deles e se aproximam.

— O que houve? — pergunto. — Vocês não precisam me esperar

para entrar, sabem disso.

— A porta está trancada — reclama Jeff. — Pensamos que talvez o

sr. Vick tivesse te dado a chave.

Ele não deu. Só disse “Vejo você na quarta” e pronto. Sempre

funcionou assim.

— Ele deve ter esquecido — explico, e tento acreditar nisso.

Ronnie joga a mochila no chão.

— Cadê o Stan? — indaga ela, tentando encontrar o fichário dele na

mochila.

Olho ao redor. Nenhum sinal de Stan.

— Ele vem mais tarde? — pergunto.

Jeff balança a cabeça.

— Eu não vi o Stan hoje.

— Ele deve estar doente. Ou então não conseguiu enrolar os pais —

sugiro.

Ronnie franze a testa.

— Ele sempre liga quando não pode vir — comenta ela.

Mas se Stan ligou, eu estava ocupado e não pude atender — seja

acompanhando meu pai, seja ensaiando com a Corroded Coffin ou

fazendo hora no Esconderijo para o caso de Paige resolver dar uma

passada lá. Uma pontada de culpa surge de repente, mas eu a reprimo.

— O que quer que tenha acontecido — começo —, nós honramos o

guerreiro caído e lutamos em seu nome. Será que Arick Barlavento, o

Primeiro Mago, ficaria feliz em saber que seus compatriotas estavam

sentados no corredor quando poderiam estar arrancando os tentáculos de

um Observador?

Gareth se empertiga tão depressa que achei que ele fosse levar um

tombo.

— Não! — exclama.

— Foi o que pensei.


Olho para a porta. Talvez o sr. Vick ainda esteja na sala dos

professores, mas a chance é pequena. Se ele tiver saído sem deixar a

porta aberta, é muito provável que não volte mais, e se eu tiver que ir

procurá-lo, vou perder um tempo precioso.

Mas… a fechadura em questão não é complicada — nem perto da

fechadura do desmanche, com certeza. Eu consigo abrir. Já fiz isso antes.

— Aguardem, por favor, senhoras e senhores — declaro.

Tiro da carteira um velho cartão da locadora de vídeo e fico de

joelhos, deslizando o cartão entre a porta do laboratório e o batente.

Parte de mim protesta, como sempre. Mas agora também ressoa a voz

do meu pai. Cordas de metal para guitarra, arames para cadeados…

— Olhem só! Um Munson arrombando uma porta.

Droga.

No meio do meu pequeno discurso motivacional para o Hellfire Club,

Tommy H e três de seus capangas do basquete aparecem no corredor.

Estão espalhados a nosso redor, seus ombros de atleta formando uma

muralha.

— Deve ser uma quarta-feira, dia de reunião dos nerds — zomba um

garoto, aquele que acho que se chama Connor.

— O que vocês querem? — pergunta Gareth.

Ele encara Tommy H, estufando tanto o peito que poderia sair

flutuando se batesse um vento mais forte.

Mas Tommy H apenas solta uma risada.

— Melhor você tomar cuidado — avisa ele.

— Beleza, lutador — digo para Gareth, dando uma batidinha no

ombro dele. — Melhor ir devagar.

Ele balança a cabeça e sai daquele estado de fúria. Quando relaxa o

suficiente para me deixar mais tranquilo, me levanto e encaro o

esquadrão de atletas com um sorriso digno de Al Munson.

— Se vocês estiverem querendo participar do jogo de hoje, lamento

dizer que já estamos com o quadro completo.

— Acha mesmo que queremos fazer parte dessa bobagem satânica?

— pergunta o atleta baixinho, vermelho como um camarão.

De repente lembro que era Jason, o garoto que levou Chrissy embora

como se fosse uma trouxa de roupa suja.


— Se não querem jogar — digo —, então terei que repetir a pergunta

do meu jovem amigo. O que vocês querem?

— Nada de mais — explica Tommy H, enfiando as mãos nos bolsos

da jaqueta como se não tivesse preocupação alguma. — Estávamos

passando por aqui e lembrei… você e eu, ainda não estamos acertados.

— Por mim está tudo certo. Mas para você, que é careta, não sei —

retruco.

Sinto o coração disparar.

— A gente está aqui só para jogar Dungeons & Dragons, pessoal —

intervém Ronnie, se aproximando de mim. — Só isso. Não estamos

querendo arrumar briga.

— Lamento informar, docinho — diz Tommy H, irônico. — Mas

parece que isso já aconteceu. Pode agradecer ao babaca do seu

namorado por isso.

— Então por que você apareceu com sua comitiva? — pergunto. —

Parece que, seja lá o que for, a sua questão é apenas comigo.

— Acha que as coisas são tão simples assim, esquisitão? — indaga o

talvez-Connor.

— Seu clube é uma vergonha para a escola — completa Jason. —

Para toda a cidade.

— Só vem me falar de vergonha para a escola depois que vencer um

único jogo de basquete — murmura Dougie, atrás de mim.

Queria muito chutá-lo, mas, como não dá, Ronnie faz isso por mim.

— Ai! — reclama ele.

— Aqui não tem lugar para esquisitos — declara Tommy H. — Mas

parece que vocês não conseguem entender isso, então…

Os outros atletas se aproximam, diminuindo o espaço entre o Hellfire

Club e a muralha.

Começo a correr.

Não é glamouroso nem corajoso. Mas é uma jogada calculada, afinal.

Um recuo estratégico. Estou contando com o fato de que Tommy H está

focado em mim, que a minha fuga vai fazer ele e seus comparsas virem

atrás de mim sem pensar duas vezes. Talvez isso dê a Ronnie, Dougie e

ao restante do pessoal tempo suficiente para escapar. Talvez dê tempo

suficiente para que eu mesmo possa escapar.


Ou talvez não, porque um momento depois, ouço gritos e passos

fortes enquanto os quatro atletas disparam atrás de mim. E eles são

rápidos.

Meu tênis guincha no linóleo, os quadrados coloridos viram um

borrão conforme passo correndo. Sinto minha respiração queimar no

peito e percebo que esse é o resultado de matar todas as aulas de

educação física nos últimos quatro anos. Mas não posso diminuir o

ritmo, muito menos fazer uma pausa, porque tem quatro atletas

musculosos na minha cola, e se eles me alcançarem… vou virar

picadinho.

Faço uma curva, e o brilho distante da luz do sol atinge meus olhos.

saída de emergência. A porta corta-fogo está aberta pelo esfregão do sr.

Terry. Se eu conseguir sair, pelo menos não vou estar nesse funil mortal

cheio de armários enfileirados.

Mas a corrida acelerada e as curvas estão afetando minha cabeça,

fazendo-a latejar. Meus joelhos acabam cedendo apenas por uma fração

de segundo, mas é o bastante para diminuir meu passo. Eu me

recomponho e volto ao ritmo anterior…

— Agarrem ele!

É tarde demais. Sinto alguém segurar meu braço, forte o suficiente

para machucar, e em seguida sou arremessado contra os armários, com

tanta intensidade que acaba balançando todas as portas.

— Merda — solto, a palavra explodindo com o restante de oxigênio

ainda em meus pulmões.

Eles nem se dão ao trabalho de me virar de frente antes do primeiro

golpe. Sinto a dor um momento depois, registrando que alguém,

provavelmente Tommy H, acaba de socar minhas costelas. Outra pessoa

chuta a parte de trás dos meus joelhos, e então preciso me escorar na

parede de armários novamente. Se cair, não sei se conseguirei levantar

de novo.

— Acha que pode fugir da gente? — pergunta Tommy H, ofegante.

Dá para sentir o fedor de suor dele. — Errou feio, esquisitão.

Não consigo ver, mas ouço quando ele gesticula para os outros.

— Segurem ele aí — declara Tommy H.

E quando me imobilizam, vou me preparando para o impacto…

Mas, de repente, ouço um grito.


O som é tão alto que, se talvez-Connor não estivesse me segurando

com tanta força, eu teria tapado os ouvidos. É um agudo infernal, um

tom que só pode ser alcançado por coelhos agonizando.

E por calouros querendo morrer, pelo jeito.

Gareth entra na briga feito um diabo-da-tasmânia, uma confusão de

pernas e braços magricelos socando e chutando.

— Deixem. Ele. Em. Paz!

No meio de tudo aquilo, vislumbro a careta adornada por um

aparelho ortodôntico que se contorce a cada golpe que ele desfere.

Gareth já sabe que apanhar dói, mas aposto que agora está descobrindo

que bater também.

— Gareth! — chama alguém.

Percebo que Ronnie também está aqui, batendo nas costas de Gareth

e o puxando pela camisa, tentando afastá-lo, mas ele está muito

determinado. Para se livrar dela, acaba acertando uma cotovelada na

barriga de Tommy H.

O som que ele solta por causa do golpe é violento.

— Seu merda — diz ele, arquejando.

Talvez o basquete seja bom para alguma coisa, afinal, porque o cara

não tem dificuldade alguma para revidar. Com apenas uma das mãos,

Tommy H agarra o calouro pelo colarinho e o ergue. Gareth se balança,

só com a pontinha dos tênis encostando no chão.

Tommy H o encara.

— Então seu Rei dos Esquisitos pensa que eu devo fazer o que ele

manda — provoca o atleta.

Gareth cospe no olho dele.

O grito que Tommy solta seria hilário em qualquer outra situação.

Ele dá um passo para trás, e, desesperado, limpa o rosto com uma das

mãos. A outra, infelizmente, não solta o colarinho de Gareth, que é

arrastado junto.

— Seu merdinha.

— Me solta — rebate Gareth, agarrando os dedos de Tommy H.

— Eu vou te matar.

Não sei se ele está sendo apenas dramático. Há algo familiar na

expressão de Tommy H, aquele mesmo sentimento que percebi na

mulher de mullet no desmanche, logo antes de ela enfiar a arma bem no


meio da minha testa. Algo que diz, sem brincadeira: “Você não vai sair

daqui vivo.”

Droga.

Empurro talvez-Connor, me esforçando para alcançar Gareth, mas o

joelho de Tommy atinge o peito do calouro num golpe que o faz cair no

chão. Quero acreditar que vai parar por aí, de que toda essa cena caótica

está chegando ao fim, que Tommy e seus comparsas vão embora. Mas

então Tommy H recua, dando impulso, e eu só tenho tempo para dizer:

— Não…

Tommy chuta Gareth no rosto. Ou melhor, tenta. Gareth se joga para

trás, desviando o golpe do nariz para o ombro. O garoto é arremessado

para trás e bate nos armários com um estrondo, mas meu estômago

embrulha de verdade quando ele atinge o chão.

O inconfundível som de ossos quebrando. Gareth arfa, se encolhendo

como um tatu e agarrando o pulso.

— Droga — digo, tentando chegar perto dele.

Talvez-Connor ainda está me imobilizando, segurando meus ombros

com mãos de ferro.

Tommy H não vê nada disso. Ele parece um touro, que não vê nada

além de uma bandeira vermelha, e avança na direção de Gareth feito um

demônio vingador.

— Ele já está machucado! — grito. — Você já acabou com ele, tá

bem, cara? Agora chega, a gente já…

Mas Tommy se abaixa, segura o garoto pelo colarinho mais uma vez

e o levanta. Posso ver o rosto de Gareth pálido feito papel, e seu pulso

está torcido num ângulo fora do comum. Ele solta um suspiro com o

movimento. Toda a sua ferocidade desafiadora evaporou, deixando

apenas o que Gareth é: um garoto perdido, encolhendo-se diante de

Tommy…

Mas não é Gareth quem leva o soco.

— Ei!

Ronnie se joga na frente dele.

Tommy nunca foi o melhor jogador da equipe, porque seus reflexos

são ruins demais para recuar de último segundo; ou talvez ele quisesse

mesmo bater numa garota. De qualquer forma, num piscar de olhos,


Tommy dá um soco na cara de Ronnie, e o rosto dela chega a virar para

o lado.

Em todos esses meus anos levando surras — e arrastando o Hell-fire

Club junto —, Ronnie jamais foi atingida. Ela sempre esteve alheia a

tudo isso, sem culpa nenhuma. É como se o mundo todo concordasse

que, independentemente do envolvimento dela com o vírus, jamais seria

infectada. Ela é uma pessoa Boa com B maiúsculo, o que significava que

estaria a salvo. E agora…

Quando vira o rosto de novo para a gente, ela está apertando a

bochecha e lançando a Tommy H um olhar mortal.

— Já terminou? — pergunta ela. — Ou quer se exibir batendo em

calouro um pouco mais?

Tommy está ofegante, o suor pingando da testa. Parece que está

considerando seriamente os prós e contras de continuar a agressão,

talvez um chute, talvez quebrar o outro braço de Gareth, talvez levar

Ronnie com ele…

— Já chega.

É o diretor Higgins. Plantado bem no meio do corredor. E dá para ver

que está de mau humor.

Ele analisa a cena em silêncio, embora a veia saltando de sua

têmpora diga mais do que qualquer outra coisa. Mas, apesar da situação

caótica — Gareth no chão, Tommy com os punhos cerrados, Ronnie

com um vermelho no rosto —, é em mim que ele fixa o olhar.


Capítulo Dezessete

Há mais alunos do que cadeiras na diretoria, ao ponto de Jeff estar

agachado no chão, encostado na parede e com os olhos fechados. Janice,

com uma careta e lábios franzidos, oferece uma bolsa de gelo a Ronnie,

que aceita e a coloca no rosto, estremecendo de dor. Dougie lança um

olhar raivoso para qualquer um que ouse cruzar seu campo de visão.

Por outro lado, Tommy H e seus comparsas parecem muitíssimo

despreocupados. Um deles amassa o comunicado da detenção e joga na

cesta de lixo. Os outros fazem uma algazarra porque ele erra o alvo, e até

mesmo Janice dá uma risadinha. Ela entrega um copo d’água para

Tommy e abre um sorrisinho.

— Sente-se.

Eu me afasto do vidro estreito da porta dentro da sala do Higgins.

Ele está em pé, com as mãos apoiadas na mesa. Parece que vai

explodir de raiva a qualquer minuto.

— Depois de você — declaro.

— Não brinque comigo, Munson. Sente-se. Agora.

Eu me sento. Ele, não. Provavelmente era seu plano desde o começo.

— Quanto a fiança de Tommy H vai custar ao sr. Hayes desta vez? —

pergunto a ele. — Três vezes o valor atual? Quatro? Talvez você precise

de um carro novo. Ouvi dizer que ele tem um grande estoque de Volvos

novinhos.

Higgins me encara.

— Já terminou? — pergunta ele.

Eu me remexo na cadeira. Sua expressão impassível me deixa

nervoso.

— Fique à vontade.

— Ótimo — responde Higgins, se endireitando. — Então. Gostaria

de repassar os eventos desta tarde, porque você parece ter a estranha

habilidade de ignorar os fatos. Primeiro: depois do último sinal, você


conduziu seu… clube até a sala de um professor. Em seguida, violou a

porta sem o conhecimento ou permissão desse professor. Segundo:

quando o sr. Hayes e seus amigos descobriram a invasão, você os incitou

ao ataque…

— Isso é mentira.

— O que me leva ao terceiro ponto: na altercação subsequente,

quatro estudantes foram feridos, um deles com gravidade o bastante para

precisar ser levado ao hospital. Estou certo?

— Não! A gente estava só existindo e esses caras partiram para cima

de nós! — exclamo.

Higgins balança a cabeça.

— Um jovem está no hospital, e você está sentado aqui

choramingando e acusando os outros.

Por fim, ele se senta e abre a primeira gaveta. Vejo algo azul

brilhante, que me lembra vagamente de alguma coisa…

Mas então Higgins pega um papel e coloca na minha frente,

afastando qualquer lembrança que estivesse vindo à tona.

— Leia isso — diz ele. — Se puder fazer essa gentileza.

Dou uma olhada, desconfiado.

— O que é?

— Leia. Use o cérebro pelo menos uma vez na vida. Talvez você

encontre a resposta.

Como se eu estivesse subindo os degraus para a guilhotina, pego o

papel e começo a ler.

Caro diretor Higgins, e tudo vai ladeira abaixo a partir disso. É uma

carta que revela a preocupação de um responsável — pelo sobrenome

deve ser a mãe de Stan. Ela está enojada com a proliferação de

delinquentes e satanistas que a escola resolveu fomentar. Certamente

uma instituição que pretende valorizar a moral e a virtude não pode

continuar a compactuar com uma organização chamada H…fire Club.

Ainda mais quando certos membros do suposto “clube” buscam exercer

sua influência e infligir seus valores em alunos mais jovens e

impressionáveis.

Ela tirou Stan da escola. No fim, a carta é apenas um comunicado. A

mulher descobriu o que o filho fazia todas as tardes de quarta-feira e


tomou a atitude que Stan mais temia: mandou-o para uma escola bem

longe para… Nem sei. Purificá-lo?

— Ela não pode fazer isso — murmuro. — Não pode tirar o Stan da

cidade. Ele não queria…

— Estou ciente de que Stanley não queria sair de Hawkins —

responde Higgins. — Ele me pediu para tentar convencer a mãe a mudar

de ideia. Mas, obviamente, não havia nada que eu pudesse fazer. O

envolvimento dele com seu clube preocupou tanto a família que

decidiram mandá-lo para trezentos quilômetros de distância do Hellfire

Club. Que fique bem claro, Munson — continua ele —, o que aconteceu

com Stanley foi culpa sua. Assim como os ferimentos dos estudantes

que estão lá fora. Assim como o estudante que está aguardando

atendimento de um cirurgião ortopedista no hospital. Os médicos

disseram que foi uma fratura oblíqua desviada. E que, por sorte, não

atingiu o nervo. Não sei exatamente o que isso quer dizer, mas sei que

ele vai precisar passar pelo menos dois meses sem usar o braço.

Crec. O som do punho de Gareth quebrando dá voltas na minha

cabeça. Assim como seu gemido doloroso.

— Vejo que tenho sua atenção agora. Então vou aproveitar a

oportunidade para te dizer mais uma coisinha. O Hellfire Club acabou.

— Não, não — digo, mas é um protesto fraco até para mim. — Você

não pode simplesmente nos expulsar. Somos clube escolar…

— Não são, não. Clubes escolares precisam ter registro e um membro

do corpo docente como responsável — explica ele, estreitando os olhos.

— Tolero a existência da sua… dos seus encontros há tanto tempo

porque havia professores lhe dando o benefício da dúvida. Mas desde o

recebimento desta carta… — Ele aponta para o papel com a caligrafia

perfeita da mãe de Stan. — Bem, esses mesmos membros do corpo

docente foram dissuadidos de que a associação com seu grupo não é

benéfica.

Isso explica o que aconteceu com o sr. Vick.

— Então vou achar um professor responsável. E registrar o clube.

— Estou lhe pedindo que não faça isso.

Estou tão acostumado a ouvir Higgins dar ordens que um pedido me

tira do eixo.

— O quê? — pergunto.

É
Higgins junta as mãos. É a imagem do diretor sensato. Eu queria

socar a cara dele.

— Vamos falar sobre Veronica Ecker.

Sinto algo me atravessar. Não sei dizer se é medo, raiva ou uma

mistura pútrida e explosiva de ambos. Mas, de repente, o mundo entra

em foco, e sinto minha nuca arrepiar.

— Ela não tem nada a ver com isso.

— Ela tem a ver com você. O que quer dizer que tem a ver com isso

também, com toda a certeza.

Higgins não tem outra carta apavorante, mas não é necessário. Ele

sabe que tem minha atenção.

— Hoje ela se envolveu em uma briga séria na escola. É o tipo de

coisa que as universidades consideram… digamos, significativa. Ou

talvez “relevante” seja uma palavra melhor. Ou seja, muitas vezes há

consequências — diz ele, balançando a cabeça. — Estávamos tão

orgulhosos dela… Universidade de Nova York! Uma instituição

maravilhosa. Excelente oportunidade para uma moça tão inteligente. E

com bolsa integral ainda por cima…

Sinto um arrepio, um frio que vai da ponta dos meus dedos até o

coração.

— Ronnie não fez nada de errado — insisto. — Ela estava só

tentando me ajudar…

Higgins inclina a cabeça.

— Então você entende o que estou tentando dizer, certo? — indaga

ele.

Abro a boca. Fecho de novo.

O pior é que… eu entendo. Reparo nisso há um tempo — dias,

semanas, até meses. Sempre está lá, visível pelo canto do olho, mas

nunca tinha de fato ficado claro até…

Crec. De novo, me lembro do punho de Gareth quebrando. Lá fora,

Ronnie pressiona uma bolsa de gelo no rosto machucado. Jeff está

encostado na parede porque ninguém vai ceder uma cadeira. Tommy H e

seus amigos dão risada.

Tudo isso aconteceu por minha causa. O frio se instalou tão

profundamente em mim que dói até os ossos.


— Temos uma oportunidade, na verdade… — declara Higgins, de

algum lugar em meio à névoa gelada.

Continuo olhando para baixo, mas ele não parece se importar.

— Podemos ajudar um ao outro — continua ele. — Você pode me

ajudar a apaziguar todos os pais religiosos da Primeira Igreja Batista que

estão preocupados. E eu posso ajudar você a ajudar seus amigos.

— Como? — pergunto.

Meus dedos estão dormentes. Minha garganta está seca.

— Vá embora.

Não é surpresa. Fico imóvel em resposta, e talvez isso irrite Higgins,

porque ele se inclina na minha direção.

— Vá. Embora — repete ele, baixinho e depressa. — Sem você e

seu… grupo assombrando esta escola, a Hawkins High será capaz de

seguir em frente, imaculada. Assim como Veronica e o restante dos seus

amigos. Não vou fazer nenhuma observação nos registros escolares

deles. Não vou escrever nenhuma carta para a Universidade de Nova

York. Será como se o lamentável incidente de hoje jamais tivesse

ocorrido.

É uma chantagem. Higgins está me chantageando. Quer que eu aceite

ser o pária que esta cidade julga que eu sou. Quer que eu recue. E, como

recompensa…

O vermelho no rosto de Ronnie. A felicidade em seu olhar quando me

contou sobre a bolsa para a universidade. “O que você está fazendo?” e

“Última vez”. Cada vez que ela me salvou…

Encaro Higgins.

— Posso fazer uma pergunta?

Ele contorce a boca, mas dá um breve aceno de cabeça.

— Faça.

— Por que eu?

Seu maxilar se move. Ele não sabe como responder.

— Por que você o quê?

— Você tem razão. Sou o inimigo número um de todo mundo nesta

escola. Nesta cidade. E sendo sincero… Não sei como cheguei nisso.

Esperava que você soubesse, já que tem tanta certeza do que eu deveria

fazer com a minha vida.


Higgins afunda na cadeira. Está me observando — na verdade, está

me estudando, me analisando de uma maneira um tanto distante,

chocado, e percebo que talvez seja a primeira vez que ele realmente

reflete sobre o assunto.

— Porque… — começa ele, e faz uma longa pausa. — Porque esse é

você.

Um esquisito. Um ferrado. Al Munson Júnior. Uma maçã podre.

Munson. Tudo isso grita cada vez mais alto na minha mente, sem

parar…

Atendente de bar vira vocalista…

Espera…

… e herói do rock.

Estufo o peito. É isso aí. Só porque todo mundo nesta cidadezinha

ridícula me julga assim, não quer dizer que preciso concordar. Não

preciso ser nada disso. Talvez eu seja o cara para quem uma garota

bonita, inteligente e divertida olha e vê um herói do rock.

E talvez eu tenha impedido que os nerds do Hellfire Club vivenciem

essa mesma experiência. Talvez o Hellfire Club seja um empecilho.

Posso dar um jeito nisso. Posso fazer tudo dar certo. Posso proteger o

futuro de Gareth, Ronnie e talvez ainda trazer Stan de volta. E assim que

eu me tornar um verdadeiro astro do rock, vou dar o dedo do meio para

esta escola e todo mundo nela.

— Então meus parabéns, diretor Higgins — digo, com um sorriso

digno de Al Munson. — Você está olhando para o mais novo desistente

da Hawkins High.
Capítulo Dezoito

As fotos batem no balcão, bem em cima de uma poça pegajosa de

bebida.

— É essa — diz meu pai.

— Que nojo.

Recolho as fotografias antes que estraguem com cerveja, vodca ou

sabe-se lá o quê.

— Pode acreditar — continua ele, pegando as fotos de volta e

batendo com elas no balcão de novo. — Serviços Automotivos Topp

24h. É exatamente isso. É nesse lugarzinho bosta que a mágica vai

acontecer.

Ele aperta os olhos para me encarar sob a fraca iluminação do

Esconderijo. Então, um segundo depois, se inclina por cima do balcão

para puxar o canto da minha boca com o dedo.

— Pode fazer o favor de sorrir? Uma boa notícia dessas! Comemore,

garoto!

Ele está pedindo muito, mas tento esboçar um sorriso. Revelações à

parte, saí da Hawkins High e vim direto para meu expediente no

Esconderijo. Parece que tem um peso gigantesco no meu peito, e passar

três horas lavando copos e esfregando o chão sujo de cerveja não ajudou

muito a melhorar meu humor. Então meu pai chegou do nada, com

várias fotografias, tagarelando sobre mecânica automobilística, logística

e ideias, ideias e ideias. Não consegui dizer nenhuma palavra, meu

cérebro nem mesmo conseguiu processar todas as informações.

— Serviços Automotivos Topp 24h — digo. — Legal.

— Legal à beça. É perfeito. Apenas dois funcionários, fica aberta até

tarde, é a única oficina em cinquenta quilômetros…

— Legal.

— “Legal. Legal.” Qual é o seu problema? Parece que alguém

quebrou sua guitarra com um martelo e fez um colar com os pedaços.


Inspiro forte e deixo o ar sair.

— Abandonei a escola.

Meu pai pisca, surpreso.

— Hoje?

— É.

Ele olha para um lado. Olha para outro. E então…

— Vamos abrir um champanhe!

Por um segundo, parece que vai subir no balcão para me abraçar.

— O que deu em você…?

— Já era hora! — grita meu pai.

As pessoas ao redor, bêbadas, se viram para olhar a gente.

— Você estava se matando, perdendo tempo naquele buraco dos

infernos em vez de estar livre, viver a vida!

Por causa da reação escandalosa do meu pai, Bev se aproxima como

um raio.

— Ei! Falem baixo. Isso aqui não é um rodeio.

Mas meu pai apenas abre os braços.

— Bev! Chega mais, me dá uma beijoca!

— Ficou doido, Munson?

— Não, estou comemorando! Meu filho é um homem livre!

— Cala a boca, pai — murmuro.

— Traga sua melhor cerveja, minha bela Beverly!

Meu pai apoia os braços no balcão, então Bev tem uma visão

privilegiada do poder de sua piscadela. Sob aquela luz fraca, não dá para

afirmar, mas tenho quase certeza de que Bev ficou vermelha.

— Homem livre, hein? — pergunta Bev.

Dou de ombros, e ela suspira.

— Bem… — diz ela. — Acho que posso servir uma jarra de cerveja

por conta da casa. Já que vocês estão comemorando.

Meu pai sorri.

— Gentil e adorável — comenta ele.

Eu, por outro lado, fico em silêncio. Na verdade, tenho certeza de que

nunca mais vou falar uma palavra sequer. Trabalho aqui há um ano e

nunca vi Bev dar nada de graça para ninguém, e o choque de

testemunhar isso talvez tenha mudado até as moléculas do meu corpo.

— Estou orgulhoso de você, garoto — declara meu pai.


Bev se vira e então enche uma jarra com a cerveja mais barata do

Esconderijo.

— É sério — continua ele. — Abandonar a escola talvez tenha sido

fácil para mim, mas eu sei que para você é diferente.

Ele me dá um tapinha firme no braço.

Quando lembro como falar, digo:

— Obrigado. Mas… Vamos deixar isso entre a gente por enquanto,

beleza? Não sei… Não sei quando vou contar para todo mundo.

— Está preocupado com Wayne? Não precisa. Ele abandonou a

escola antes de mim.

— Estou preocupado com… — Estou preocupado com o que vou

falar para Ronnie quando ela me perguntar o motivo. — Exatamente,

com o tio Wayne.

— Se ele esquentar com isso, só diga para ele falar comigo — sugere

meu pai.

Bev coloca a jarra de cerveja bem diante dele, que abre um sorriso

deslumbrante. Depois ele se vira para mim.

— Eu cuido de Wayne. Você pode só aproveitar sua nova liberdade

— diz, servindo dois copos e deslizando um para mim. — Um brinde ao

seu futuro.

Brindamos e tomo um gole. Quando abaixo o copo, ele está me

observando de um jeito que faz os pelos da nuca se arrepiarem.

— Por que está me olhando assim? O que houve? — pergunto.

— Nada.

— Diz logo.

— Estava só pensando no desmanche. Sua cabeça ficou no lugar,

você pensou rápido. Lembrou o que eu tinha te ensinado, mesmo oito

anos depois. Você já cogitou que… poderia ser bom nisso?

— Bom em… ser um ladrãozinho?

— Aquilo foi um roubo qualificado de automóvel, seu idiota. Coisa

grande. Nada disso. O que estou perguntando é se você já pensou em

parar de se importar com as regras da sociedade e começar a fazer o que

é melhor para si mesmo.

Atrás do meu pai, vejo alguém entrando no Esconderijo. Não preciso

nem olhar para o rosto da pessoa para saber que é Paige. Ela hesita,

aperta os olhos e examina o bar. Está procurando por alguém.


— Ou você estava planejando ficar por aqui? — continua meu pai. —

Conseguir um empreguinho qualquer numa fábrica como o meu irmão e

esperar que a vida sugue a alegria de você?

Paige olha para mim, e seu rosto se ilumina por completo. Sinto uma

reação química no peito, um formigamento se espalhando ao perceber a

expressão dela, uma reação improvável ao me ver. Ela acena, e começo a

acenar de volta, mas…

— A gente podia pegar a estrada assim que esse trabalho acabar —

diz meu pai. — Continuar juntos, você e eu. Ser um time, sabe? Munson

& Munson, tipo uma dupla ou algo assim…

Ela está se aproximando. Ela está se aproximando. Sinto uma onda de

pânico me atravessar de uma só vez, desfazendo aquele formigamento

com um alarme tão alto e estridente que parece gritar a frase

“TOMARA QUE ELA NÃO DESCUBRA”.

Porque todo mundo em Hawkins sabe o que esperar de Al Munson.

E, como o diretor Higgins enfatizou, eu herdei essa reputação. Não

existe outra possibilidade, não para o Júnior.

Mas Paige, de alguma forma… não faz ideia disso. Para ela, eu sou

verdadeiro, digno de investimento, dos riscos. Sou um astro do rock. Ela

fica feliz só de me ver, e eu quero continuar sendo essa pessoa. Mas se

ela conhecer meu pai…

— Imaginei que fosse te encontrar aqui! — exclama Paige, sentando

numa banqueta no balcão.

A reação do meu pai é quase cômica, expressões diferentes passando

por seu rosto conforme ele percebe que a) a garota é deslumbrante, b)

ela não está falando com ele, c) ela está falando comigo, e d) isso

significa que já nos conhecemos.

— Até que horas vai o seu turno hoje? — indaga ela.

— Hum… — É tudo que consigo dizer, e mesmo assim é apenas um

ruído estrangulado.

— Eddie — chama meu pai, olhando de mim para Paige com

divertimento —, você não vai me apresentar para sua amiga?

Paige se vira, um pouco constrangida.

— Desculpa, interrompi alguma coisa?

— De forma alguma — responde meu pai, girando na banqueta para

estender a mão para Paige. — Sou o pai do Eddie, Al.


— Essa é a Paige — digo em meio a um colapso total.

Observo, com dificuldade, Paige apertar a mão do meu pai. Talvez o

véu se rasgue no momento que eles se encostarem, e não exista mais

possibilidade de reparo. Depois disso, ela não vai enxergar nada além da

repulsa que toda a cidade sente por mim.

Mas, na verdade, eles se cumprimentam e nada mais.

— Que prazer conhecê-la, Paige. Como você conhece Eddie?

— A gente se encontrou por aí — digo, depressa.

— Estou trabalhando com a banda dele — fala Paige ao mesmo

tempo.

Ela me lança um olhar confuso, que questiona minha estabilidade

mental. É isso. Acabou. Preciso cair fora daqui.

Meu pai arqueia as sobrancelhas.

— A banda dele, hein? Não sabia que valia a pena trabalhar com a

Corroded Coffin.

Bato nele com o pano de prato.

— Ei!

— Você não contou ao seu pai sobre a demo? — pergunta Paige.

— Eu estava… esperando o momento certo.

Um lampejo de mágoa cintila no olhar do meu pai, mas ele disfarça e

balança a cabeça com exagero para demonstrar desaprovação paterna.

— Ele sempre foi assim. Devia ver como Eddie era com as histórias

em quadrinho dele na infância. Escondia as revistinhas em todo lugar

que podia: debaixo da cama, atrás da cabeceira, embaixo do tapete…

Parecia um esquilinho.

Em uma terrível mudança de clima, Paige fica encantada com a

história.

— Um esquilinho!

— Não… Pai, para com isso…

— Eu até já achei alguns exemplares de X-Men na geladeira!

Não foi na geladeira, foi no congelador, e foi tio Wayne quem

encontrou meu exemplar de Uncanny X-Men nº 98 escondido atrás de

uma pilha de comida congelada porque você não dava as caras em

casa. Mas Paige dá uma risada alegre demais para um pé-sujo desses,

então mordo a língua e tento ficar calmo, apesar da crescente ansiedade

que esmaga meu peito feito aço.


— Posso te pagar uma bebida? — pergunto a Paige.

Faço qualquer coisa para acabar com essa interação o mais rápido

possível.

— Pode deixar por minha conta — intervém meu pai.

Paige balança a mão.

— É muito gentil, mas…

— Você precisa ir? — indago. — Nós podemos nos encontrar mais

tarde…

— Esperem aí — fala meu pai. — Antes de você sair correndo… O

que essa Paige está falando sobre uma demo e a Corroded Coffin? —

indaga ele, se inclinando na direção dela, levando a mão à boca para

fingir um sussurro. — Sabe, fui eu quem ensinou o Eddie a tocar

guitarra. Ele herdou os piores vícios de mim.

Paige sorri.

— Ainda bem que agora sei a quem culpar — comenta ela.

— É só uma gravação idiota — explico para meu pai. — A Paige

trabalha para a WR Records…

— Caramba, sério?

— E eu enchi o saco dela até ela dar uma chance para a Corroded

Coffin…

Paige me cutuca.

— Não foi bem assim — responde ela.

— … e fizemos uma demo. É só isso.

Eu não deveria odiar esse encontro. Esse é o tipo de momento pelo

qual as famílias comuns passam desde sempre — conhecer os amigos

dos filhos. É algo tão banal que eu nunca pensei que fosse viver algo

assim. Eu deveria estar animado, não ansioso, assustado e desejando que

Paige vá embora o mais rápido possível, ainda mais quando ela pega

uma das fotos que estão sobre o balcão.

— O que é esse lugar? Serviços Automotivos Topp 24h?

Meu pai não hesita, não se incomoda com a mudança de assunto nem

toma a fotografia das mãos dela. Ele apenas estica o pescoço para

observar a imagem também.

— É que passei por lá e vi uma plaquinha avisando que estão

contratando — mente ele. — Tirei a foto para não esquecer o nome da

oficina quando tivesse que voltar. Você conhece?


— Não.

— Droga. Queria saber se o dono é chato. Os caras na oficina não vão

me falar a real.

— O que provavelmente confirma que ele seja — diz Paige,

entregando a foto para meu pai. — Boa sorte.

— Obrigado, querida.

Não consigo adivinhar os pensamentos dele, mesmo quando meu pai

olha para mim. Seja o que for, se esconde por trás daquele sorriso.

— Música, hein? — pergunta ele.

Então nada de Munson & Munson? É isso que ele está perguntando

de verdade. Dou de ombros.

— É uma opção — declaro.

Ele fica em silêncio por um segundo. Eu me pergunto se está

pensando nos discos da mamãe perto da TV. Aqueles que ele trouxe do

Tennessee.

— Beleza — diz ele, por fim, assentindo. Em seguida, lança um

sorriso para Paige. — Eddie já estava terminando aqui.

— O quê? — Não consigo entender o rumo da conversa. — Não, Bev

precisa de mim até fechar.

— Não se preocupe com isso — retruca ele, cutucando meu braço. —

Quando uma moça bonita pergunta quando seu turno termina, seu turno

já terminou.

— Seu pai é um homem inteligente — elogia Paige.

— Eu cuido da Bev — diz ele. — Vocês dois caiam fora daqui.

Olho com dúvida para Bev, que está limpando um copo e me

repreendendo com o olhar por procrastinar.

— Tem certeza? — pergunto.

— Para de molengar, idiota! Você não prefere passar a noite vendo as

estrelas com a srta. Paige do que ficar limpando poças de cerveja?

Meu pai pega o pano de prato no meu ombro. A agitação irritada que

estava sentindo fica mais suave; é mais como uma exasperação gentil.

— Pai — murmuro.

Paige dá uma risada.

— Vai, garoto — insiste ele, gesticulando em direção à porta. — E

faça o favor de comemorar.

Paige se levanta, sorrindo para mim sob a luz baixa do Esconderijo.


— E então? — pergunta ela.

Seus olhos escuros ainda estão brilhando, exatamente como no

momento em que ela me encontrou. De repente, aquele arrepio volta a se

espalhar por meu peito, e estou saindo de trás do balcão sem nem

perceber.

— Não vá dizer que nunca fiz nada por você — declara meu pai.

Já estou acompanhando Paige até a saída. Ele não fez uma pergunta,

não é nada que exija uma resposta, mas, quando abro a porta e o ar

gelado da noite limpa a névoa de cigarro dos meus pulmões, eu sussurro:

— Pode deixar.
Capítulo Dezenove

Abro a porta da van para Paige. É um gesto bobo, e me arrependo assim

que percebo o que estou fazendo. Mas Paige apenas se apoia em mim, e

eu, feito um cavalheiro, a ajudo a subir.

Ela abre um sorriso.

— Obrigada.

— Aham.

Não é o que um cavalheiro diria, mas isso também já seria pedir

demais. Dou a volta e entro, depressa. Quero ter um vislumbre daquele

sorriso de detrás do volante.

— Para onde vamos? — indago.

Ela recosta no banco e suspira. Paige está olhando para algum ponto

além do para-brisa, para a lua cheia.

— Vamos só sair dirigindo.

Então é isso que faço. Dou partida e saio do estacionamento do

Esconderijo, entrando numa estrada de mão dupla. Não estamos

sozinhos, ainda é cedo, mas não há muitos carros por aí. Desço o vidro

da janela e deixo o vento frio bagunçar meu cabelo.

— Seu pai… — diz ela.

— Hum.

— Posso te perguntar uma coisa?

Trinco os dentes.

— Aham.

— Se o nome dele é Al… Albert?

— Alan.

— … e o seu é Eddie… Então por que a Bev te chama de Júnior?

Não é a pergunta que eu estava esperando.

— Porque sim. Todo mundo me chama assim.

Paige murmura alguma coisa, como se estivesse repassando a

informação em sua mente.


— Ele é simpático — comenta ela, por fim. — Engraçado.

— É, sim. Quando quer.

— Você não tinha contado sobre a demo?

Tento pensar em uma maneira de explicar que não seja “Não queria

que você soubesse que ele existia”.

— Eu… não queria que ele criasse expectativas. Não antes de receber

um retorno da WR. — Dou de ombros. — Sabe como são os pais, né?

Eles ficam animados.

— Entendo bem. É preciso saber controlar as expectativas.

Nunca uma frase resumiu tão bem minha relação com Al Munson.

— Isso.

Estamos passando pelo desvio para a estrada Briggs, seguindo em

direção à fronteira de Hawkins.

— Esqueci quantas estrelas dá para ver daqui — observa Paige.

Lanço um olhar para ela. Seus pés estão apoiados no painel, e eu

deveria estar incomodado com isso, deveria reclamar como faço com

Ronnie, meu pai e qualquer pessoa que já entrou nesta van…

… mas a visão dela com os joelhos colados ao peito e o queixo

virado para o céu impede a irritação de surgir.

— Pensei que vocês tivessem estrelas o bastante em Los Angeles —

comento. — Sylvester Stallone. Harrison Ford. John Travolta.

— Temos um grande fã de Os embalos de sábado à noite presente?

Faço uma pose com a mão erguida.

— O maior.

Ela ri.

— Vira aqui — pede, apontando para a direita.

E, como já estou ciente de que sempre estarei a serviço dessa garota,

obedeço. Faço a curva e entro na estrada de cascalho no meio da

floresta.

— Você não vai me matar, vai? — pergunto.

— Não é o plano de hoje.

— E qual seria esse plano, então?

Ela olha para mim de um jeito que me faz esquecer o que eu estava

falando. Engulo em seco, segurando o volante com as duas mãos, e me

esforço para não bater com a van até que a gente chegue seja lá aonde

ela quer ir.


Os faróis não conseguem iluminar muito bem por conta das muitas

árvores. Os galhos arranham a carroceria, e eu estaria surtando se me

importasse com a pintura. A estrada vai ficando cada vez mais estreita

conforme avançamos, até que…

— Aqui — avisa Paige do nada.

Mas não era necessário. A apertada estrada de cascalho se abre de

repente, nos levando a uma clareira grande o suficiente para estacionar

três vans uma ao lado da outra. Ela aponta, e paro bem no meio,

silenciando o motor.

Por um momento não se ouve nada. Paige continua olhando para o

céu, para as estrelas (talvez tenha sido contagiada por Os embalos de

sábado à noite). A lua está bem alta, acima de nós. É uma visão perfeita

demais para ser verdade.

— Davey me respondeu — diz ela.

Eu me endireito no banco. De uma hora para outra, meu coração

dispara. Está batendo a um bilhão de quilômetros por hora.

— Vou ser obrigado a perguntar mais…?

— Ele disse que nunca ouviu um estúdio de gravação tão ruim. E

que, se isso é o que chamam de mixagem em Indiana, todo o estado

deveria ser varrido do mapa.

Eu deveria encolher, murchar com cada palavra. Mas há algo no tom

dela que faz com que a adrenalina percorra meu corpo, e não consigo

desviar os olhos do seu rosto, que, por sua vez, ainda está voltado para a

lua.

— Ele fez algum comentário sobre nossos instrumentos? Nossas

roupas? Sobre a gente?

— Sim.

Paige se vira para mim com um sorriso enorme. Ela está radiante.

— Ele gostou de você.

Pisco, hesitante.

— Ele…

Ela segura meu braço.

— Ele gostou de você. Toda aquela baboseira com o estúdio e a

demo… ele gostou que fosse ruim. É verdadeiro, foi o que ele disse.

Você é verdadeiro.

É
Não consigo respirar. É impossível parar de olhar para ela. Se fizer

isso, vou perder este momento. Terei que seguir com a minha vida, o que

seria terrível, porque, agora, alguém acha que eu valho alguma coisa.

Alguém em Los Angeles me viu, com minha calça jeans surrada e uma

blusa do meu pai, e pensou “Opa, é isso que estou procurando”.

— Ele quer ver você tocar.

As palavras maravilhosas dela me deixam sonhar ainda mais. Percebo

que estou segurando a mão de Paige desde quando ela segurou meu

braço. Quando isso aconteceu?

Ela continua:

— Ele quer que você vá até Los Angeles fazer um teste para o pessoal

da gravadora. Eddie, vai rolar.

— Vai rolar — repito, baixinho. — Minha nossa, vai rolar.

Todas aquelas noites planejando o assalto com meu pai, todas as

vezes que o diretor Higgins me descartou como se minha presença fosse

um incômodo. Cada vez que a Bev gritou comigo e cada expressão triste

do tio Wayne. Tudo isso me trouxe até aqui. Tudo isso me tornou

verdadeiro ou algo assim. E vou deixar tudo isso para trás quando for

embora.

— Você conseguiu — diz ela.

Paige aperta meu braço, só uma vez, mas é o suficiente para me tirar

do transe. Eu me aproximo, as mãos trêmulas. Mas não importa. Tudo

que noto é que ela não se afasta quando deslizo meus dedos pelo seu

rosto, pelos seus cabelos. Ela pestaneja, e isso é algo que eu não pensei

que acontecesse fora dos livros de romance.

— Então? — pergunta ela, mas o que realmente quer dizer é: O que

você está esperando?

Não preciso esperar por nada. Não há nada além de uma longa

estrada aberta diante de mim agora, apenas caminhos abertos e os olhos

escuros de Paige, então me inclino e dou um beijo nela.

Paige abraça meu pescoço e agarra minha jaqueta. Vou de zero a

cem, de zero a mil, tudo de uma só vez. Caramba. Parece que estou

bêbado, chapado. É a combinação das palavras de Paige com os lábios

dela e ela própria rodando na minha cabeça. Vejo as fronteiras do

universo. Sei que sou verdadeiro, e alguém aprecia isso.


Paige tenta passar por cima da marcha para sentar no meu colo. Estou

a fim, com certeza, mas…

— Espera, espera, espera… — digo.

Recuo. Paige se desequilibra com um gritinho, e preciso segurá-la

pelos ombros.

— A banda…

— Eddie.

— Preciso contar para a Ronnie, ela vai surtar…

Paige tapa minha boca com a mão. Seu batom está borrado,

provavelmente manchou minha cara inteira.

— Eddie… — repete ela. — Eu disse que Davey gostou de você.

— Eu sei — digo, mesmo com a mão dela sobre minha boca.

— Ele gostou de você. Não da Corroded Coffin. Você.

Qual seria o oposto desse sentimento de voo frenético? É isso que

embrulha meu estômago. Com cuidado, seguro o pulso dela e o afasto

do meu rosto.

— A demo era da banda toda.

— Mas ele só falou de você. Ele acha que o restante da banda é… Sei

lá.

— De garagem.

Ainda posso ouvir a voz de Ronnie naquele dia em que ela apresentou

os fatos para todos nós.

— Caipira — corrige Paige. — De uma maneira que você não é.

— Então você está dizendo que ele quer que eu vá para o teste…

— Ele só quer você. Davey acha que você pode ser uma estrela,

Eddie. Sylvester Stallone. Harrison Ford. John Travolta. Eddie Munson.

Ela imita minha pose de Os embalos de sábado à noite.

Mas eu não consigo sorrir.

— Mas sem a Corroded Coffin… não dá.

— Não?

Não? Ela pergunta como se fosse óbvio. Não pode ir sozinho? Não

pode arriscar? Você queria deixar para trás tudo de ruim em

Hawkins… Esqueceu que teria que deixar as coisas boas também?

Parece que as paredes da van estão se fechando à minha volta. O

perfume de Paige faz meu cérebro derreter.

— Preciso de…
Abro a porta da van e salto para a grama. O ar fresco de maio atinge

meu rosto, e respiro fundo, sentindo a umidade preencher meu peito.

— Eu entendo que é muita coisa para absorver — diz Paige, que saiu

da van e está vindo atrás de mim.

Ela recosta no para-choque dianteiro com os braços cruzados. Dá

para perceber que está me dando espaço.

— Mas eu juro… — continua. — Juro que não teria te falado se não

achasse que você era capaz.

Eu me lembro do meu pai me observando, uma pilha de panquecas

diante de nós num restaurante xexelento. Eu não teria oferecido isso se

não achasse que era algo que você conseguiria fazer.

Pelo jeito tem muitas pessoas por aí que pensam que sabem mais

sobre mim do que eu mesmo.

— É só que… Ir para lá sozinho é…

— Você não vai sozinho — interrompe ela, com um olhar ardente

que me aquece por dentro. — Você e eu. Estamos nisso juntos.

É verdade. Conseguir uma chance com Davey também é uma vitória

dela. Fiquei tão envolvido com a história da banda que nem me dei conta

disso.

— É mesmo? — pergunto, tentando não me afetar com o quanto

pareço patético.

— É, sim. Vou ser um pouquinho cafona agora, então aguenta aí,

mas… você tem alguma coisa especial. Percebi isso aquela noite do

Esconderijo. Percebi anos atrás, naquele show de talentos idiota.

Qualquer coisa que você toca é verdadeiro. É sempre vida ou morte. E

as pessoas sentem isso também. Acho que é isso que faz algumas

pessoas…

— Me odiarem?

Ela assente meio sem jeito e dá um passo com cuidado, se

aproximando como se eu fosse algum animal ferido. Deixo que ela

venha.

— Você pode ser uma lenda. Eu acredito nisso de verdade. Você

pode ser um herói, mas esta cidade nunca vai permitir isso.

Ela tem razão. Enquanto eu estiver em Hawkins, sempre serei o

Júnior, mais um Munson que deu errado. Todo mundo à minha volta

está fazendo contagem regressiva até que eu esteja numa cela de prisão
ou morto em uma vala. E, quando isso acontecer, todos vão falar que

não é nenhuma surpresa.

Mas finalmente tenho uma chance, uma chance de escapar de tudo

isso. De criar uma nova reputação. E se meus amigos forem meus

amigos de verdade… eles vão entender.

Eles precisam entender.

Paige está na minha frente, me olhando com expectativa.

— E então, vamos fazer isso?

Respiro fundo e baixo a cabeça.

— Vamos.

— Ainda bem — diz ela, suspirando aliviada.

Paige pula em cima de mim, me agarrando com os braços e as

pernas. Perco o equilíbrio e caímos na grama juntos, o peso dela me

tirando o ar. Não consigo recuperar o fôlego antes de Paige me beijar,

arruinando o que restava do batom.

As mãos dela começam a passear pelo meu corpo.

— Ah… — murmuro. — Vamos fazer isso também?

— Fica quieto e tira a calça.

Isso é tudo o que ela diz durante um tempo.


Capítulo Vinte

Estou voando.

Pelo menos é como eu me sinto na semana seguinte. Saí da rampa de

decolagem e agora estou em meio ao vasto céu azul, e não há nada mais

a fazer além de subir, subir, subir…

Com a questão da escola, a notícia sobre o teste e o caminhão de

Charlie Greene, que vai atravessar Indiana domingo que vem, é como se

cada parte da minha vida estivesse num precipício. Tudo agora é questão

de vida ou morte, ficar ou correr, acertar ou falhar…

Eu deveria acordar no meio da noite suado por causa do estresse.

Deveria ter um ataque de pânico toda vez que pensasse em qualquer

coisa mais complicada do que o que vou comer no almoço. Mas em vez

disso…

Subir, subir, subir.

Agora que não estou mais preso na Hawkins High, passo os dias com

meu pai. Na maior parte do tempo, ficamos repassando os detalhes do

nosso assalto. Mas também ficamos, sei lá, só conversando. É a maior

quantidade de tempo que já passei com ele desde sempre, e está sendo…

bom. Conhecer ele de fato.

As noites, eu passo com Paige.

“Desculpe por não podermos ir para a minha casa”, disse ela,

sussurrando.

Estávamos na traseira da van, no escuro. A bateria de Ronnie limitava

o espaço, fazendo com que ficássemos ainda mais próximos um do

outro. Não que eu me importe. Eu toparia uma prisão perpétua se isso

me fizesse permanecer naquele momento para sempre.

“Nunca gostei de ter que sair de fininho pela janela mesmo”,

retruquei, me virando para ela.

“E a sua?”, indagou Paige, cautelosa. “Será que seu pai se importaria

se você… levasse uma amiga?”


“Não, mas…”

Imaginar Paige na minha sala de estar, no meu quarto e no mesmo

lugar que meu pai era aterrorizante.

“Acho que ir para minha casa é uma opção ainda pior”, respondi.

Tive a sensação de que Paige imaginou uma cena similar, porque

bufou, alto o bastante para balançar a van.

“Talvez seja melhor ficar aqui mesmo”, disse ela, por fim.

Levantei a sobrancelha. Apesar da escuridão, eu ainda conseguia

vislumbrar seu sorriso malicioso, o luar iluminando seu ombro nu.

“Eu gosto daqui”, falei.

Subir, subir, subir. Flutuo em direção às nuvens.

Há apenas dois pontos negativos nisso tudo. O primeiro é que meu

sono está completamente desregulado. Só volto para casa depois das

duas da manhã, e meu pai me acorda por volta das sete para planejarmos

o assalto. “Pega os walkie-talkies, precisamos testar o alcance.” “Pega a

chave da van, vamos distribuir panfletos da oficina.” “Pega as luvas, me

mostra como consertar isso aqui.”

O segundo é que não tive tempo de dar a notícia — nem para Ronnie,

nem para a Corroded Coffin, nem para o Hellfire Club.

Parece que você está evitando isso, sussurra uma voz na minha

cabeça, que silencio rapidamente. Terei tempo para falar com todo

mundo depois deste fim de semana. Depois de definir meu futuro.

Depois que eu pousar de volta no chão.

* * *

Estou funcionando à base de café barato, adrenalina e quase mais nada

quando chega o sábado. Ao me acordar naquela manhã, meu pai olha

para mim e balança a cabeça.

— Você não vai servir de nada se estiver assim amanhã.

Ainda enrolado nos lençóis, pisco, confuso.

— Hã?

— Nada, volta a dormir. Eu te chamo se precisar de alguma coisa.

Então a luz se apaga e o quarto fica escuro, e isso é tudo de que me

lembro pelas próximas dez horas.


Volto à consciência não por lembrar do meu pai balançando a cabeça,

meio desapontado, mas por causa de um aroma maravilhoso invadindo

meu quarto. Aperto os olhos, tentando identificar o cheiro. Minha nossa,

já deve ter anoitecido, por quanto tempo eu dormi? Sei que é um aroma

familiar… Mas não neste contexto, não na minha casa terrível e nesta

rua horrorosa.

Vou me arrastando até a cozinha, com o cabelo grudado no rosto e o

sono ainda pesando nos olhos. Então tudo começa a se encaixar.

— Isso é… cebola?

Meu pai está diante do fogão velho. Ele me bate com a espátula

quando tento me aproximar, deixando um rastro de gordura na minha

mão.

— Você quer se queimar? — pergunta.

— Não acredito que você está cozinhando.

— Eu disse que cozinharia, não disse? E que ocasião seria melhor

que esta? Não podemos sair para a batalha com a barriga cheia de

comida enlatada e cerveja quente. Pega os pratos.

Levo um segundo para atender ao pedido. Estou muito ocupado me

perguntando de onde surgiu aquela espátula, porque tenho quase certeza

de que nunca tive uma dessas. Mas o utensílio misterioso vem em minha

direção de novo, então me afasto com um grito.

— Já vou!

Abro o armário, pego os dois pratos menos gastos e assisto à tentativa

do meu pai de fazer uma montanha de espaguete em cada um deles,

cobrindo uma delas com três almôndegas. Quando ele está colocando a

quarta almôndega, puxo o prato.

— Desse jeito vou passar mal de tanto comer.

Vamos para a mesa (com cuidado, para evitar um acidente com as

almôndegas). Sento em uma das cadeiras, mas meu pai continua em pé.

Vejo alguma coisa em seus olhos. Está pensando em algo.

— Tem mais — diz ele.

Olho do meu prato cheio para o dele.

— Acho que não vou aguentar, melhor deixar para…

Mas fico em silêncio quando meu pai coloca uma garrafa de vinho na

mesa. Está empoeirada, o rótulo soltando. Mas eu a reconheceria em

qualquer lugar.
— Está falando sério? — questiono.

Ele dá de ombros, tentando demonstrar indiferença.

— Sua mãe iria querer que tomássemos esse vinho juntos.

Pego a garrafa, com o mesmo cuidado que teria com um filhotinho de

gato. Percorro os cantos do rótulo amarelado com o dedo, identificando

as palavras já quase apagadas. alan munson & elizabeth franklin, 12

de março de 1966.

— Que… — começo, engolindo o nó que se formou na minha

garganta. — Que tipo de vinho é este?

Meu pai bufa. Seus olhos estão um pouco marejados.

— Não tínhamos dinheiro para escolher o tipo de vinho, garoto. Só

entre tinto ou branco. Aqui. — Ele pega dois copos de plástico. —

Esqueci de comprar taças de verdade quando fui na loja.

— Sabia que a espátula era nova.

Sirvo duas doses generosas nos copos. A cor do vinho é intensa

mesmo através do plástico fosco. Estendo um dos copos para meu pai.

— Devemos… devemos brindar? — pergunto.

Ele estuda a bebida, como se encarar aquele líquido escuro por tempo

o bastante lhe permitisse captar um vislumbre do rosto de minha mãe.

— Sim.

Tudo bem. Então… Levanto meu copo.

— A nós. A amanhã. Que dê tudo certo — digo.

Aquele olhar pensativo do meu pai só ficou mais intenso desde que

ele se sentou, e agora se espalha pelo rosto todo. Ele levanta o copo, e

fico esperando que diga “Saúde!” ou “Cala a boca e vamos comer”.

Mas, tudo que ele diz é:

— A você, garoto. E a tudo que conseguiu fazer, apesar dos pesares.

Eu… eu estou orgulhoso de você.

Sinto o nó na garganta voltar.

— Obrigado — resmungo.

Nós dois lutamos contra os sentimentos afogando-os em grandes

goles de vinho. A bebida faz arder o céu da boca, é mais amarga que

cerveja e mais suave que uísque, mas incendeia minhas papilas

gustativas de uma maneira que eu poderia me acostumar. Passo a língua

nos lábios e percebo o sorriso travesso do meu pai.

— É bom — digo, envergonhado.


— Eu sei. Por que você está me olhando, hein? Come. Vai esfriar.

É essa resposta que eu estava esperando. Sorrio e enterro o garfo no

espaguete, mandando tudo para dentro de forma rápida e perigosa. Meu

pai dá uma risada e faz o mesmo, e de repente há apenas os barulhos de

dois caipiras mastigando de boca aberta.

— Andei pensando… — começa meu pai, depois de alguns minutos.

— Sobre… o que a gente estava falando, sabe? Numa noite dessas.

— O quê?

Limpo o queixo com a manga da camisa.

— Eu te perguntei, lembra? O que você achava de sermos Munson &

Munson.

O macarrão se revira no meu estômago, e me sinto culpado.

— Pai…

Mas ele continua, interrompendo qualquer pedido de desculpa que eu

estivesse prestes a fazer:

— Eu entendo. Não é o que você quer para a sua vida, e, sendo

sincero, eu não deveria querer isso para você também.

Meu pai finca o garfo em uma almôndega e a deixa ali, parada na

ponta como uma pedra de Stonehenge.

— Você já está de saco cheio de Hawkins. Quer coisas melhores,

mais grandiosas. E acho… acho que eu deveria querer isso também.

Um frio atravessa meu peito.

— Então é isso? Você vai sumir de novo?

— O quê? Não… Não, não, não, não é bem assim… — Ele se afasta

da mesa, tentando organizar os pensamentos. — Olha, depois de

amanhã, você vai sair desta cidade, vai para a Califórnia. E, com sorte,

nunca mais vai voltar. Certo?

Apenas fico encarando-o, em silêncio. Não quero dar mais nada de

mim pro meu pai, para que depois ele desapareça e leve uma parte

minha.

— Então. Se você for embora, bem… Não há nada mais que me

prenda aqui. Seus avós já se foram, sua mãe… Bem… E Wayne ficaria

feliz se nunca mais tivesse que olhar na minha cara. Então… E se eu for

com você?

— Para Los Angeles?

— Aham.
— Eu…

Para ser sincero, não sei o que dizer. Jamais pensei que Al Munson

mudaria o rumo de sua vida por qualquer coisa que não fosse dinheiro, e

agora ele está se oferecendo para mudar de estado comigo?

— Sei que você não quer seu velho te rondando, e tudo bem por mim

— interrompe, depressa. Ele gira o garfo nos dedos, olhando a

almôndega rodar, sem me encarar. — A gente ficaria em lugares

diferentes, você arranja um espaço só seu, e eu não vou me meter, claro

que não. É que tem muito trabalho em Los Angeles, até para alguém

como eu, então… O que você diz? — pergunta ele, tocando a borda do

prato com o dedo. — Quer fazer disso uma tradição? Sábado do

espaguete?

Levanto a sobrancelha, torcendo para que ele não escute meus

batimentos cardíacos acelerados como os de um coelho.

— Tipo uma família de verdade? — pergunto.

Meu pai assente.

— Tipo as malditas famílias que passam na TV. Munson & Munson.

— Sim — respondo antes que ele termine de falar, por cima de suas

últimas palavras. — Quer dizer, sim. Seria… legal. Se você quiser vir.

— Mesmo?

O sorriso que ele abre agora é ainda maior do que o sorriso mágico

dos Munson. É um sorriso verdadeiro, bobo e largo, e é apenas um

sorriso, sem segundas intenções.

— Combinado, então — diz ele.

— Mas está falando sério sobre não morar juntos, né? — indago.

— Com certeza, garoto. Já vi como é o banheiro daqui, não vou me

submeter a isso se puder evitar. Não, não, vou procurar um lugar

pequeno. Alguma quitinete no Westside, perto da praia.

— Mas em Los Angeles não fica tudo perto da praia?

Ele dá uma risada incrédula, alta o bastante para balançar as janelas.

— Cara… É nisso que aquela garota está te fazendo acreditar?

Melhor mesmo que eu vá com você.

Sinto que estou ficando vermelho e não tenho certeza de que é por

causa do vinho, do constrangimento ou da felicidade que se espalha por

mim. Mas, antes que eu arremesse uma almôndega nele para

interromper a gargalhada…
… alguém bate na porta.

Meu pai enxuga os olhos, a risada se acalma.

— Está esperando alguém?

— Não que eu lembre. Será que é o Wayne?

Outra batida.

— Bem, diz pra ele entrar e se servir ou dar o fora. Temos um grande

dia amanhã. Vamos precisar estar focados.

Eu me levanto, e meu pai começa a recolher os pratos.

Já está escurecendo lá fora. Eu me preparo para enfrentar uma

conversa preocupada, irritante e bem-intencionada com o meu tio, mas

não é o rosto de Wayne que encontro quando abro a porta.

— Oi — diz Ronnie, muito séria. — Você tem um minutinho para

falar comigo?
Capítulo Vinte e Um

Eu não deveria ficar tão nervoso por ver minha melhor amiga, mas

também não deveria ter passado a última semana a evitando, então aqui

estamos. Abro um sorriso amarelo, como se isso fosse aliviar sua cara

preocupada, e tento fechar a porta com o pé.

— Não sabia que você vinha.

— Eu te avisaria, mas não tenho te visto — diz ela, esticando a

cabeça para analisar cada centímetro do meu rosto amassado pelo sono.

— Você está doente?

— Não, eu, é… Só tenho ajudado meu pai com algumas coisas.

— Sempre bom te ver, Ronnie — grita meu pai da cozinha. — Não

se preocupa, garoto, eu cuido da limpeza aqui.

Ele está nos dando espaço. Mas, diante de seja lá que raios esta

conversa esteja prestes a se tornar, fico tentado a correr para dentro de

casa e bater a porta; entrar na minha van e dar a partida; me enfiar na

traseira junto com a bateria; me esconder em qualquer lugar onde

Ronnie não possa me encontrar.

Mas me forço a agir com maturidade. Desço os degraus da frente e

encaro meu destino.

— O que aconteceu? — pergunta Ronnie, quando nos afastamos da

porta fechada. — Você sumiu da face da Terra. Faltou a reunião do

Hellfire Club.

Eu sei. É óbvio que eu sei.

— Já disse, tive que ajudar meu pai com…

— Você nunca falta ao Hellfire Club. Dougie pensou que você tivesse

sumido, tipo aquele garoto, Byers. Gareth quase começou um grupo de

buscas.

Dou de ombros.

— Bom, me achou. Não precisa mais fazer busca nenhuma.


— Ei… — chama Ronnie, dando um soquinho no meu ombro, bem

no lugar de sempre. — Para de me enrolar. O que está acontecendo com

você?

Estremeço. Há tantas maneiras de responder, e eu descarto todas.

Mas Ronnie está bem diante de mim agora, a apenas um metro de

distância, perto o bastante para que eu possa ver o hematoma amarelado

desbotando em seu rosto. Não posso continuar omitindo os fatos.

— Eu abandonei a escola.

Dá para ver que ela prende a respiração.

— Você o quê?

— Está tudo bem, não é nada muito importante.

Talvez, se eu tratar esse assunto com desdém, Ronnie acredite em

mim.

— Eu não ia me formar este ano mesmo… — comento.

— De onde você tirou isso?

— Higgins me disse.

— Higgins… — repete ela, enojada.

Desfruto do calor e da gratidão que sinto por ela por um segundo.

— Esse homem te persegue — continua Ronnie —, você sabe.

— Não quer dizer que ele esteja errado. De qualquer forma, não tem

nada a ver com notas.

— Por que raios você abandonaria a escola se não fosse por causa das

notas?

Temos uma oportunidade. Podemos ajudar um ao outro.

O acordo que fiz com Higgins faz meu corpo inteiro pinicar. (Quando

um acordo se torna chantagem? É uma linha tênue.) Minha ausência em

troca do futuro de Ronnie. É uma troca justa, sem dúvida. Ergo a

cabeça.

— Você acha que minha presença faz bem para alguém naquela

escola? — pergunto.

Ronnie me encara, como se não soubesse o que responder.

— Do que você está falando?

— Estou falando… das surras que Gareth levava todo dia de Tommy

H e companhia. De Stan mentindo para os pais para jogar Dungeons &

Dragons, porque, no momento em que descobriram, mandaram o garoto


ser exorcizado. Eles… eles merecem algo melhor do que o rótulo de

esquisito que eu carrego. Sem mim por perto, sem o Hellfire Club…

— Sem o Hellfire Club?!

— … eles vão ficar bem. E você…

— O que tem eu?

Você é o que ele tem contra mim. Você é meu ponto fraco. Você é o

elo rachado na minha armadura.

Não posso contar. Se eu revelar o verdadeiro motivo, ela vai surtar.

Ronnie vai tirar essa história a limpo com Higgins. Vai colocar em risco

suas chances de sair deste lugar, e então seremos só dois fracassados.

Não. A chantagem é assunto só meu. Mas o resto… bem. Não é

segredo pra ninguém. O que significa que tudo o que preciso fazer é dar

uma risada tranquila.

— Não finge que não sabe — digo.

Ela sabe. Está escrito em seus olhos, ardendo, brilhante como um

farol. Mas Ronnie nunca admitiu em voz alta, e é por isso que preciso

dar o primeiro passo e dizer por nós dois.

— Estou atrasando você — afirmo. — Todo mundo nesta cidade te

vê como uma Cinderela, indo dos trapos à realeza, abrindo caminho para

longe do estacionamento de trailers…

— Minha avó não é trapo…

— Eu sei. Mas isso não importa para o resto das pessoas. Já criaram

uma narrativa para você, e é uma boa história, mas eu não faço parte

dela. Sou apenas o sujeito que pode estragar o enredo.

Ronnie está inexpressiva.

— E se eu não me importar com tudo isso?

— E se eu me importar?

Encolho os ombros e percebo que não estou cruzando os braços

diante do peito, como de costume. Meus braços estão em volta da

barriga, protegendo meus órgãos vulneráveis, como se eu estivesse

prestes a receber um golpe. Não que isso ajude.

— Você passou dez anos se esforçando para fazer com que eu

sentisse que valia alguma coisa — continuo. — Teve momentos que

pensei que você era a única pessoa no mundo que tinha algo bom a dizer

sobre mim. Você me ajudou, me guiou. É loucura querer retribuir isso?

— pergunto, forçando um sorriso. — Você é minha melhor amiga. E


tenho certeza de que vai fazer coisas incríveis. Vai ser a melhor

advogada do mundo. Como acha que eu me sentiria se atrapalhasse seu

futuro?

— Então… Então você vai ficar em Hawkins para sempre? —

pergunta Ronnie.

Ela parece exausta, como se tivesse desabado inteira. Mas se ela não

concordasse comigo, ainda estaria argumentando.

— Você vai passar o resto da sua vida… esperando seu pai voltar

para casa, ou trabalhando num emprego horrível numa fábrica, que nem

o seu tio? É sério que você vai me dizer que vai ficar feliz vivendo

assim?

— Não — respondo, baixando os braços e me aprumando. — É por

isso que vou me mudar para a Califórnia.

Ronnie franze a sobrancelha.

— Então… a Corroded Coffin vai…

— Não. Mas, hum… Eu vou — revelo, inspirando fundo, trêmulo. —

O chefe da Paige ouviu a demo, e ele… ele quer que eu vá lá fazer o

teste. Em Los Angeles. Só eu.

Talvez eu estivesse esperando uma reação explosiva, mas Ronnie

parece absorver a informação como uma esponja. Ela congela feito uma

estátua. Por um momento, tenho a sensação insana de que, se desse um

cutucão nela, tocaria em mármore.

— Certo… — diz Ronnie, bem lentamente. — Certo…

— Você está chateada?

— Não… Eu… — Ela balança a cabeça, como se tentasse organizar

os pensamentos. — Só estou tentando entender. Você vai para Los

Angeles. Fazer um teste para a WR.

— Em, tipo, duas semanas. Paige acha que tenho chance.

— Aham.

— O chefe dela gostou da… da minha energia, sei lá. Sou exatamente

o tipo de pilantra do interior que o mundo está procurando. Então, se

tudo correr bem, eles vão ter que descobrir, tipo… como me vender.

Dou uma risada, porque parece que alguém deveria rir disso, mas

Ronnie não morde a isca e fica em silêncio.

— Devo passar por uma transformação no visual também —

continuo. — Quem diria que tem algo em mim que vale a pena, hein?
Ronnie continua sem dizer uma palavra. A conversa fiada já está

ficando chata.

— Não fique animada demais — brinco —, não quero incomodar os

vizinhos.

— Desculpa — diz ela, mordendo o lábio, como sempre faz quando

está refletindo. — Eu estou só … pensando.

— Eu disse que tenho uma chance de assinar um contrato com uma

gravadora. Pense menos. Comemore mais.

O sorriso que ela me dá é, na melhor das hipóteses, chocho.

— Parabéns.

Caramba…

— Olha, sinto muito que a Corroded Coffin não tenha conseguido —

falo. — Mas você vai para a Universidade de Nova York de qualquer

forma, Dougie já tem um emprego garantido com o pai, e Jeff ainda tem

alguns anos até se formar…

— Aham.

— Vocês vão ficar bem.

— Eu sei.

— Então… Você disse que não estava chateada.

— Eu…

— Mas parece que está.

— É óbvio que estou, Eddie! — irrompe Ronnie. — Você achou que

eu não ficaria?

— Bom, achei! Olha, Ronnie, essa é uma grande oportunidade para

mim…

Ela bufa de um jeito irônico, e fico magoado. Respiro fundo e olho

para ela.

— Eu disse que sentia muito pela Corroded Coffin. Mas preciso fazer

isso. Achei que fôssemos amigos o suficiente para que você não ficasse

irritada por eu aceitar a única chance que consegui na vida inteira.

— Meu Deus, eu não estou chateada porque nossa banda não

conseguiu um teste idiota! — exclama Ronnie, com um brilho perigoso

nos olhos. — Você está abandonando o Hellfire Club. Está deixando que

ele morra, na verdade, o que é pior do que simplesmente abandonar…

— Porque o Hellfire Club só traz coisas ruins. — Porque é minha

única opção.
— Não traz, não! — grita Ronnie. — Sim, pois é, Tommy H ferrou

com o Gareth por causa da camiseta do clube. Mas se Gareth não

estivesse com a camisa, você acha que ele só ia andar de skate por aí,

intacto? Ele é esquisito, quer esteja com você ou não. E a única coisa

boa na vida dele é o fato de existir um lugar para ficar com outros

esquisitos.

Ronnie dá um passo em minha direção, e embora eu tente parecer

corajoso, recuo e sinto a grade do cercado atrás de mim.

— Se você acabar com o Hellfire Club e for embora… — diz ela. —

Onde é que esses garotos vão parar? Quem é que vai cuidar deles?

Porque com toda a certeza não vai ser o Higgins.

— Então eu sou obrigado a ficar em Hawkins para sempre? —

retruco. — Pensei que você estivesse me incentivando a fazer algo maior

com a minha vida.

— Não imaginei que você estivesse disposto a apagar parte de quem

é porque quer tentar ser um astro do rock idiota.

— Quem disse que estou apagando quem eu sou? A WR gostou de

mim. De mim. Eles acham que sou verdadeiro, e acham que isso é bom.

— Eles gostam da história que estão contando a si mesmos sobre

você. E você gosta dessa história também. É por isso que está doido para

ir correndo para lá.

— E daí? Se tiver que escolher entre ser um astro do rock e ser

escorraçado desta cidade, já sei minha decisão. Que droga, Ronnie, é por

isso que eu não queria te contar nada. Sabia que você não entenderia.

— Então me ajude a entender!

— Não dá. — Estou furioso. Nunca fiquei irritado com Ronnie antes,

nem quando ela me deu um fora. — Não dá para explicar como… como

é ser tratado por anos que nem lixo por todo mundo. E é ainda mais

difícil ouvir você me dizer que preciso permitir que continuem fazendo

isso.

— Não é isso que estou dizendo…

— É isso, sim.

— Não é — insiste ela, batendo o pé, como se fôssemos crianças de

novo e ela tentasse impor sua vontade. — Estou dizendo que você está

trocando uma história pela outra. Astro do rock, escorraçado pela

cidade. São todas histórias, e nenhuma delas é a verdade completa.


Nenhuma delas é o Eddie completo. Você só está fugindo de uma para

outra, mas ambas são contos de fadas. Não são de verdade.

Sinto como se as palavras dela fossem uma faca perfurando meu

pulmão.

— Você não acredita que eu vou conseguir. Acha que vou para a

Califórnia e vou quebrar a cara.

— Eu acho que… Só estou preocupada com o que vai acontecer

quando essa ilusão acabar. O que você vai fazer?

— Bem, então qual é o seu majestoso conselho, Ronnie? Já que você

sabe de tudo. Ficar aqui e apodrecer em Hawkins? Deitar no chão e me

fazer de capacho para todo mundo que quiser limpar as botas em mim?

— Para de bancar a vítima. Só estou dizendo para não deixar isso

subir à cabeça! Dá um jeito de continuar com o Hellfire Club. É muito

importante para os garo…

— Estou fazendo um favor para eles acabando com o Hellfire Club

— corto Ronnie. — Eles vão descobrir o que fazer sem o clube. Eu

descobri. No fim das contas, todos vamos precisar fazer isso, cedo ou

tarde. Olha só para você: conseguiu um convite para o baile, Cinderela.

Já está fora daqui e não vai precisar nunca mais pensar nós, os ratos

falantes.

O golpe baixo atinge Ronnie.

— Então é isso mesmo o que você pensa, não é? — diz, parecendo

magoada.

Ela está me encarando de uma maneira diferente, como se estivesse

me vendo pela primeira vez. Como se tivesse sido ferida pelo que

acabou de encontrar.

Percebo que é minha última chance. É minha última chance de me

explicar, de dizer a ela sobre a chantagem e tudo o que o diretor Higgins

me falou. Se soubesse, ela me perdoaria. Poderíamos ter essa conversa

agora, nos entender e seguir em frente…

Mas tudo que eu disse sobre acabar com o Hellfire Club é verdade.

Se posso impedir que a fama Munson recaia sobre a próxima geração de

esquisitos de Hawkins… então preciso colocar um ponto-final nisso.

Assinto.

— Aham.

Após um segundo, Ronnie também assente.


— Acho que é isso, então — declara ela. — Não se incomode em

contar a novidade para o pessoal. Pode deixar que eu mesma faço isso.

Quanto menos pessoas ouvirem esse seu discursinho, melhor.

Ela sobe na sua bicicleta.

— Ronnie — chamo, mas não há mais o que dizer.

Fico em silêncio, engolindo o “espera”, o “desculpa”, e o “não vai

embora”, tentando ignorar o olhar de pena dela. Ronnie começa a

pedalar e a perco de vista. Nunca me senti tanto como a pessoa que

Higgins diz que sou quanto agora.

— Garoto.

Ouço a voz do meu pai e reparo que não sei quanto tempo fiquei

parado nos degraus da entrada olhando na direção que Ronnie foi. Ele

está na porta, um pano de prato pendurado no ombro por cima da

camiseta surrada dos Stooges.

Quanto será que ele ouviu? As paredes dessa casa parecem de papel.

— Você está bem? — diz ele, mas não parece uma pergunta. Parece

uma afirmação.

Percebo, naquele momento, que eu não tenho opção além de estar

bem. Tudo para o que meu pai e eu nos preparamos, tudo que

fantasiamos durante o jantar, cada pedaço de futuro pelo qual lutamos…

Tudo se resume a amanhã. E, se eu não estiver bem, tudo vira pó.

— Aham — respondo, tirando o pano de prato do seu ombro e

passando por ele. — Vamos entrar.


Capítulo Vinte e Dois

Quando o caminhão cruza a divisa do estado em direção a Indiana, não

é difícil acompanhar. O logotipo estampado na lateral deixou bem

evidente — fazendas farris, com uma ilustração de um pequeno

fazendeiro com chapéu de palha —, mesmo estando a mais de cem

quilômetros por hora.

A parte complicada é que os filmes fazem parecer que seguir alguém

é muito fácil. Mantenha alguns veículos de distância. Não dê seta. Não

perca o carro da frente de vista. Mas nenhuma dessas histórias idiotas

se passa no interior de Indiana, e com certeza não às onze da noite. Isso

quer dizer que eu e o caminhão somos os únicos veículos neste trecho

escuro da estrada, então nenhuma dessas dicas hollywoodianas é útil.

“Espera um pouco, desacelera”, disse meu pai pelo walkie-talkie,

minutos atrás. “Você precisa enxergar a lanterna traseira do caminhão de

longe. E não se esquece de respirar, garoto.”

— Esperar… — murmuro para mim mesmo, olhando para o walkie-

talkie no painel como se meu pai ainda pudesse me ouvir. — Certo.

Minhas mãos suadas estão firmes no volante. Respiro fundo e

continuo dirigindo. Quilômetros da estrada de Indiana passam depressa.

Sinto o coração acelerado na silenciosa cabine do caminhão reboque,

mas não quero ligar o rádio para não me distrair e acabar perdendo

alguma coisa.

Era um longo trajeto do Oregon até Maryland. Mapeamos a rota mais

vezes do que posso contar, traçando-a sobre o mapa vagabundo de posto

de gasolina, e essa foi a principal conclusão que tirei. Era um longo

trajeto do Oregon até Maryland, e se tornou ainda mais dirigindo um

caminhão frigorífico. Ele precisava parar para abastecer a cada

quatrocentos, quinhentos quilômetros, mais ou menos. Se eu estivesse

cogitando virar motorista de caminhão, esse detalhe teria me feito

desistir.
Mas não estou cogitando virar caminhoneiro. Estou tentando roubar

um caminhão. E, nesse contexto, as frequentes pausas para abastecer

estão a meu favor.

Parece que se passou uma eternidade desde que estou seguindo o

caminhão. Mas, na verdade, faz só quarenta e cinco minutos. E então…

— Eles estão parando — digo para o walkie-talkie silencioso. —

Estão parando. Estão parando.

Não se esquece de respirar, garoto, sussurra a voz do meu pai no meu

ouvido.

Eu me controlo para não afundar o pé no acelerador. De um jeito

despretensioso, saio da estrada principal um minuto depois do

caminhão. Devagar e sempre.

Com certeza é para abastecer. Vejo a ilustração do fazendeiro no

caminhão das Fazendas Farris indo em direção ao posto. Ainda me

esforçando para manter o ritmo lento, sigo pela via lateral, contornando

o posto. Logo me afasto dos focos de luz fracos e bruxuleantes dos

postes. Estaciono, desligo o motor e…

… nada. Fico ali sentado. Eu me recosto no banco e não me mexo.

Levanta, digo a mim mesmo. Você está perdendo tempo. Levanta!

Mas todo o papo motivacional que me fez seguir em frente durante a

última hora de tensão está perdendo o efeito — o que não faz sentido.

Porque, no fim das contas, essa ideia estúpida foi minha.

De todas as tarefas impossíveis deste esquema, existe uma que é

ainda pior que as outras. Porque não importava o quão protegido fosse o

caminhão, o quão trabalhosas eram as trancas, ou mesmo o quanto de

maconha realmente estava sendo transportado. O que importava era que

o veículo estava atravessando o país a cem quilômetros por hora e, se

quiséssemos ir atrás dele, isso precisava mudar. Para piorar, era

necessário que isso acontecesse sem que aqueles caminhoneiros

armados percebessem.

“Pregos, estrepes, arame farpado e outras armadilhas para furar os

pneus…”, disse meu pai naquele dia, ticando os itens com os dedos, um

por um, como se fizesse uma lista de mercado. “Esses são truques fáceis,

mas óbvios. Além disso, um pneu estourado dá para consertar sozinho

no acostamento.”
Sentados à mesa da cozinha, havia um caderno aberto entre nós. Eu

tinha chegado tarde do Esconderijo, e o cansaço estava estampado nas

minhas olheiras. Despertei um pouco só depois de tomar duas latinhas

de Coca-Cola, e então vi, impressionado, meu pai tomar uma segunda

dose de uísque barato sem bocejar uma única vez.

Ele continuou:

“Nós precisamos mesmo é de uma maneira de ferrar com o caminhão

só o suficiente para que eles parem e procurem ajuda… Mas sem dar

perda total.”

“Bem fácil, né?”, comentei, num tom irônico.

“São ossos do ofício, garoto”, respondeu meu pai, recostando na

cadeira, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. “Alguma sugestão?”

Dei umas batidinhas na lata de refrigerante, ouvindo o tilintar do meu

anel no alumínio.

“Se não dá para atingir os pneus…”, comentei, pensando alto. “Então

pode ser… o motor?”

“Não dá para abrir o capô de um caminhão em alta velocidade.”

“Mas não precisaria abrir”, respondi. “Não abrimos quando demos

partida no caminhão reboque. E não é agora que vamos fazer isso.”

Senti o coração bater na garganta. Era o mesmo sentimento de

quando, durante as batalhas no Hellfire Club, eu sabia que tinha

vantagem sobre os jogadores.

Meu pai ficou sério. Dava para ver que não estava brincando. Ele

também me olhou assim no desmanche, e comecei a achar que era uma

expressão reservada apenas para mim.

“Não faça suspense, garoto”, reclamou ele.

Suspense era a última de nossas preocupações. Tudo pareceu muito

fácil sob a luz amarela da cozinha. Mas agora, suando de nervoso, acho

que eu gostaria de encontrar o Eddie que teve essa ideia e dar um soco

nele. Minha língua está grudada no céu da boca. Talvez a hesitação

repentina seja meu corpo me dando uma última chance de desistir.

Porque é agora ou nunca. Quando eu sair do caminhão, não tem volta.

Mas tomei minha decisão semanas atrás, quando joguei sinuca com

Reefer Rick, quando vi meu pai comer uma montanha de panquecas

numa lanchonete xexelenta, quando tomei uma bebida barata no

Esconderijo. Tudo o que resta é seguir em frente.


— Me deseje sorte — digo para o walkie-talkie.

E não preciso de sinal para saber qual seria a resposta do meu pai,

clara como o dia: Os Munson não esperam pela sorte.

Então bato a porta e estou pronto para botar o plano em ação.


Capítulo Vinte e Três

Havia dois carros na frente do caminhão das Fazendas Farris na fila para

reabastecer com diesel, então quando eu terminei de contornar o posto e

estava estacionando, tentando ao máximo me manter escondido, já era a

vez deles. Gostaria de estar com os binóculos quebrados do meu pai,

mas preciso das mãos livres para carregar o garrafão de água de vinte

litros que tirei do banco de trás.

Ao contrário da estrada, o posto está um pouco movimentado — era

de se esperar, já que é o único posto de gasolina em quilômetros. Vou

me esgueirando em torno da loja de conveniência, o suor escorrendo, e

espio a área com quatro bombas disponíveis para abastecimento.

Carregar o garrafão até aqui já está fazendo meus ombros queimarem,

então eu ajusto o peso nas mãos e planejo o próximo passo.

Estou escondido a mais ou menos quatro metros do caminhão das

Fazendas Farris — tão perto que até eu, mesmo com a minha pouca

habilidade atlética, conseguiria atirar uma pedrinha na lateral do veículo.

Como eles estacionaram de costas para mim, me aproximo da traseira do

veículo. Enquanto observo, dois homens saem de cada lado da cabine e

batem as portas.

Fico surpreso com a altura desses caras. Fiquei fantasiando com esse

momento, imaginando meu pai e eu contra dois brutamontes, tipo Davi

contra Golias. Mas os homens que saem do caminhão têm, no máximo,

um metro e setenta, e não são nada musculosos — na verdade são muito

magros, com jaquetas largas. Se existe algum Golias neste confronto,

estou começando a achar que sou eu.

Está frio, então não culpo o motorista por estar tremendo e puxando

o gorro de tricô até as orelhas. Não consigo ouvir o que ele resmunga

com o outro homem, mas o cara aponta com o polegar para a loja de

conveniência, então acho que quer entrar para pagar pelo combustível e

provavelmente ir ao banheiro. Como esperado, minutos depois, ele vai


para a loja com a pressa inconfundível de um homem prestes a mijar nas

calças.

Mantenho o olhar fixo no parceiro dele. Agora é a hora da verdade: se

ele voltar para a cabine do caminhão por qualquer motivo, estou ferrado

e este plano acaba antes mesmo de começar. Mas se ele continuar do

lado de fora…

O homem se alonga, estalando a coluna com um crec. Em seguida,

apesar das plaquinhas de proibição por toda parte, ele põe um cigarro na

boca e… acende.

A chama rubra do isqueiro é praticamente um sinal verde. Então,

mantendo o caminhão entre mim e o fumante, agarro o garrafão de água

bem apertado e vou me esgueirando até chegar ao outro lado da cabine.

À tampa do tanque de combustível.

Naquele dia, na cozinha com meu pai, inclinado sobre a mesa, eu

disse:

“Há mais ou menos dez meses tivemos duas semanas de chuva forte.

Choveu muito, sem parar. Muitos vazamentos, deslizamentos de terra,

estradas fechadas… E então começaram as enchentes. O sul de

Hawkins, logo abaixo da estrada, foi a parte mais atingida. Ouvi dizer

que os gêmeos Baker usaram um bote inflável para chegar na Persimmon

Street. Mas, assim que a chuva parou, tudo voltou ao normal, certo?”

Esperei meu pai pegar a deixa.

“Certo.”

“Errado. O problema foi que, depois que abasteci a van, em questão

de uns quatro quilômetros o motor morreu. E não aconteceu só comigo:

quase todo mundo que foi naquele posto acabou parado no acostamento

da estrada.” Me inclinei mais sobre a mesa. “A água da enchente entrou

nos tanques de combustível do posto de gasolina e consequentemente foi

parar nos nossos carros. Tive que pagar um reboque até o mecânico, lá

eles deram uma descarga no tanque de gasolina e nas linhas de

combustível para tirar a água. Levou só cinco minutos. E depois… a van

já estava funcionando normalmente.”

“Água no tanque de combustível”, disse meu pai, pensativo. “É bem

simples. Mas como vamos fazer isso?”

“Não sou o único planejando esse trabalho, sou?”, indaguei, tomando

um último gole do refrigerante. “Agora é contigo, meu velho.”


No fim das contas, acho que eu deveria ter tomado as rédeas do

planejamento. Porque a ordem das operações ficou definida assim: 1)

chegar de fininho no caminhão parado no posto de gasolina e 2) despejar

água no compartimento de gasolina. “Bem simples”, disse meu pai. Mas

agora que estou aqui, sentindo o cheiro do cigarro do caminhoneiro e

vendo as tatuagens em seu pescoço, acho que um plano mais complexo

não seria ruim.

Conforme fui avançando devagar, o homem seguiu para o canto do

estacionamento. Daqui, vejo as botas dele pelo espaço abaixo do

caminhão, enquanto me aproximo, nervoso, cada vez mais da tampa do

tanque. Estou tão perto… Falta apenas um metro… Alguns

centímetros…

… mas talvez eu devesse ter prestado menos atenção no cara do

cigarro, porque não vi o degrau da bomba de abastecimento até tropeçar

nele. Por causa da porcaria do garrafão, me desequilibro e tombo para o

lado, e é por um triz que consigo me segurar e evitar cair no chão. Por

outro lado, não consigo abafar o baque do meu ombro contra a bomba,

e…

Crrrr.

Conheço esse barulho. É o som de calçado arrastando no asfalto.

Depressa, sabendo o que vai acontecer, entro debaixo do caminhão —

e vejo as botas do homem se virarem na minha direção.


Capítulo Vinte e Quatro

Por um segundo, entro em pânico. Talvez ele não tenha escutado. Há

outras pessoas no estacionamento, conversando com vozes cansadas por

viajar tarde da noite, fazendo barulho com pacotes abertos de

salgadinhos. Com sorte, tudo vai ficar bem. Com sorte…

Os Munson não esperam pela sorte.

Mas as botas não se aproximam. Eu as observo, pronto para sair

correndo. Meus olhos estão começando a lacrimejar porque ficaram

abertos por muito tempo. Prendo a respiração. E espero.

Depois de poucos segundos que mais pareceram uma eternidade, a

guimba ainda acesa é jogada no chão, perto das botas. O homem a

amassa com o pé ao mesmo tempo que escuto o inconfundível som de

um isqueiro acendendo outro cigarro.

Não se esquece de respirar. Solto o ar, sem fazer barulho. Inspiro.

Expiro. Talvez seja a adrenalina, mas assim que o ar fresco chega em

meus pulmões, é como se alguém tivesse bombeado líquido inflamável

em mim. Estou desperto, vivo e, mais importante, motivado.

Você nunca vai se mudar para a Califórnia se ficar perdendo tempo,

digo a mim mesmo. Então para de enrolar e faz logo o que precisa

fazer.

Menos de um metro para a tampa do tanque. Menos de um metro.

Saio do esconderijo debaixo do caminhão e cruzo essa distância com

apenas um passo. Consigo abrir a tampa sem dificuldade. Abro o

garrafão d’água e o levanto, inclinando-o com cuidado para o tanque de

combustível aberto.

Esta é a parte complicada — mais complicada do que seguir um

caminhão cheio de mercadoria ilegal cruzando a fronteira do estado,

mais complicada até do que se esconder de dois traficantes num posto de

gasolina no meio do nada. Água de mais vai fazer o caminhão dar

defeito antes de chegar aonde queremos. Água de menos vai acabar


ultrapassando em alguns quilômetros o ponto certo. E nos dois casos

vou ter estragado tudo.

Se fosse o posto de Russiaville, seria um litro. Percorro a lista que

meu pai e eu fizemos juntos. Posto em Pine Village, quatro litros. Mas

este aqui é o posto de Chalmers. Quanto de água devo colocar para o

posto de gasolina em Chalmers?

Ouço um sino e o chiado de uma dobradiça enferrujada. Pouco

depois, passos na direção do caminhão.

— Demorou, hein — resmunga o fumante.

— O banheiro é uma merda. Melhor mijar em outro lugar.

Não tenho mais tempo. O cara está pisando no segundo cigarro. Se

for o posto em Chalmers… se for o posto em Chalmers…

De repente lembro e quase me atrapalho com o garrafão de água na

pressa de despejá-lo no tanque. Se for o posto em Chalmers… dois

litros. Fico ofegante vendo a água cair. Treinei esta parte servindo

bebidas no Esconderijo e observando com cuidado o volume. Dois

litros. Duas garrafas de Jack Daniel’s, Smirnoff, licor, entornadas até o

fim como se fosse aniversário do Sam Bebum.

Assim que a última gota escorre para o tanque, volto a me mover.

Não existe erro agora, nenhuma dificuldade, nenhum tropeço. Os dois

contornam a cabine do caminhão, e eu vou para a direção oposta, dando

a volta no baú de carga. Escuto um dos homens pegar o bico de

abastecimento, e me abaixo atrás das portas traseiras.

— CJ! — chama ele. — Você já tirou a tampa do tanque?

O tatuado, CJ, responde com um grunhido antes que o medo se

alastre por mim:

— Hã?

— Deixa pra lá — resmunga o outro. — Idiota.

Ele encaixa o bico no caminhão e, quando o ruído da bomba fica

mais alto, corro até a lateral da loja de conveniência como se dois

traficantes estivessem me seguindo.

Os faróis do caminhão das Fazendas Farris se acendem de novo, e me

sinto prestes a vomitar. Observo, certo de que a qualquer momento os

caminhoneiros vão notar alguma coisa, alguma coisa errada, voltar com

o caminhão e meter uma bala bem no meio da minha testa. Mas o motor

liga e o caminhão segue rumo à rodovia. Eles voltam para a estrada.


Corro até o telefone público do posto de gasolina e deixo de lado o

garrafão com água entornando. Tento não pensar nos germes que podem

estar se proliferando no aparelho ao encostá-lo na orelha, inserir a

moeda no compartimento e discar o número bruscamente.

Mal toca antes de meu pai atender.

— Eddie?

Meus ombros relaxam. Não imaginava o quanto precisava ouvir a voz

dele.

— Estou aqui — digo, a voz uma mistura de rouquidão e cansaço.

— Você está bem?

— Estou, estou.

Deixo escapar uma respiração lenta, tentando recuperar o controle.

Em meio à escuridão de Indiana à noite, vejo o caminhão ao longe.

— Consegui — declaro.

— Eles te viram?

— Acho que não — respondo, e então penso melhor. — Não. Não me

viram.

Se tivessem me visto… eu estaria caído no estacionamento coberto

de sangue.

— Graças a Deus — diz meu pai, aliviado.

O tom dele é mais intenso do que eu esperava, e agora percebo como

estava preocupado comigo. Sinto conforto nisso, mas uma parte de mim

tem calafrios ao perceber que este trabalho é perigoso o bastante para

deixar até meu pai apreensivo.

— Eles já foram. Agora é contigo, pai.

— Então é melhor você parar de tagarelar e me deixar agir.

Dou uma risada e desligo, ouvindo o tilintar da moeda no telefone.

O plano está em ação. O caminhão reboque ainda está nos arredores

do posto de gasolina, imperturbável. Não tenho tempo a perder.

No fim desta longa noite, a Califórnia estará me esperando.


Capítulo Vinte e Cinco

Serviços Automotivos Topp 24h. Meu pai mostrou as fotografias

granuladas daquela oficina suja no Esconderijo como se fossem

passagens de primeira classe para Bali. É nesse lugarzinho bosta que a

mágica vai acontecer.

Mágica ou não, foi nesse lugar que o telefone deve ter tocado alguns

minutos atrás — o próximo passo depois da minha ligação para o meu

pai do posto de gasolina. Os mecânicos da Serviços Automotivos Topp

24h teriam atendido o chamado desesperado de um homem numa picape

Ford F-150 enguiçada. E, como estava muito tarde e o cliente, muito

distante, os dois mecânicos da oficina deveriam estar num caminhão

reboque rumo à parte rural de Indiana. E, se não fossem cuidadosos e

não tivessem observado o caminho por onde dirigiam, passariam por

cima de algumas armadilhas para furar pneus no meio da estrada, bem

próximo do destino. Talvez ainda tivessem o azar de cair na vala que

alguém cavou na lateral da estrada, do tamanho perfeito para prender um

pneu de caminhão. E então, a quilômetros de um telefone público — o

último resquício de civilização —, os mecânicos deveriam perder horas

tentando sair do buraco e voltar à estrada. Nesse meio-tempo, a oficina

deveria ficar vazia, sem monitoramento. Aberta para qualquer pessoa

entrar, ocupar… e usar para seus próprios fins.

Havia muitas suposições nesse plano. Tantas que deixariam qualquer

um tenso, e é impossível saber se as hipóteses se tornaram, tipo, fatos,

até conseguir sinal no walkie-talkie.

“Depois que me ligar”, disse meu pai, ofegante por cavar mais uma

porção de terra, “você vai esperar eu dar sinal pelo walkie-talkie.”

Nós estacionamos numa estrada de terra entre duas pastagens, e pela

primeira vez eu não fiquei em desvantagem no trabalho. Meu pai

escolheu a pá sem nem mesmo tentar empurrar isso para mim, e como
eu não estava a fim de contrariar, coloquei luvas e peguei os estrepes

sem questionar.

“Vai ser difícil encontrar sinal para o walkie-talkie se eu estiver a

mais de quarenta quilômetros de distância”, comentei, colocando um

estrepe na estrada.

Tchunc. Meu pai fincou a pá na terra num golpe violento.

“Se aquele caminhão enguiçar onde queremos, a Topp deve ser a

primeira opção deles”, disse.

Outra suposição. A Topp é a única oficina numa distância bastante

significativa — um dos detalhes que deixaram meu pai em êxtase

quando encontrou o lugar. Além disso, passamos um dia tedioso

espalhando e colando panfletos de propaganda em cada hotel de beira de

estrada, cada posto de gasolina e poste. Era uma garantia extra. Mas,

mesmo assim… não dava para ter certeza de que os caminhoneiros

ligariam para lá. Não havia garantia nenhuma. Só inúmeras hipóteses.

Não que meu pai se deixasse desencorajar por isso. Ele fez um gesto

em direção à vala que estava cavando, às armadilhas para furar pneus,

aos arredores vazios.

“E se tudo isso der certo? Quem vai atender o telefone sou eu. O que

significa que, se você não estiver ao alcance do sinal, vai ter que tirar

esse sinal da bunda.”

“A gente não sabe onde eles vão parar para abastecer”, protestei,

colocando outro estrepe na estrada. “Posso estar do outro lado do

estado.”

“Não importa”, respondeu meu pai. “O cronômetro vai começar a

contar no momento certo. E, depois disso, é com a gente.”

Planejamos tudo. Desenhamos um círculo em volta da oficina no

mapa, delimitando a área que teríamos sinal, e obviamente, porque nada

neste mundo é fácil, esse lugar fica a sessenta e cinco quilômetros de

Chalmers. Começo a dirigir num ritmo moderado, encostando a cabeça

na janela para aproveitar o vento. É quieto demais aqui, então eu ligo o

rádio, girando o botão até encontrar algo para ouvir.

São todas histórias.

Balanço a cabeça, tentando afastar a voz de Ronnie. Mas não adianta.

Desde que brigamos, as palavras dela ecoam na minha mente nos piores
momentos possíveis. Astro do rock, escorraçado pela cidade. São todas

histórias, e nenhuma delas é a verdade completa.

Procuro pela próxima estação de rádio e só encontro ainda mais

estática.

— Atendente de bar vira vocalista e herói do rock — sussurro para

mim mesmo como um mantra. — Atendente de bar vira…

Meus dedos param no rádio. Porque, em meio à estática da área rural

de Indiana, a antena do caminhão captou um leve sinal.

One-and-two-and-one…

É a voz do Muddy Waters ressoando pelos alto-falantes ruins do

caminhão, cantando os versos de “Rollin’ Stone”. Essa mesma voz ecoa

numa lembrança distante, vinda da antiga vitrola da minha mãe, que

conjurava a música de um disco preto como se fosse um feitiço.

One-and-two-and-one-and-two… now you’re gettin’ it!

Minha mãe ria, dançando comigo pelo carpete gasto. Eu ficava sobre

os pés dela, que me girava cada vez mais rápido, e eu dava risada

também, porque quando Elizabeth Munson estava feliz… o mundo

inteiro também sorria.

Mas Elizabeth Munson não está aqui agora, neste caminhão. Talvez

por isso de repente meus olhos começam a arder, cheios de lágrimas.

Fungo bem forte, me segurando no volante, e me concentro na sensação

do vento batendo no rosto.

Gosto de rock porque fala sobre tristeza e sobre como a vida é uma

droga. É a verdade. Foi o que eu disse a Paige semanas atrás, no

microfone do estúdio.

Algo verdadeiro. O sussurro de Paige naquela primeira noite no

Esconderijo ecoa em mim.

São todas histórias. E então Ronnie, num tom magoado e furioso,

prestes a ir embora da minha vida. Você só está fugindo de uma para

outra.

E daí?, respondo em pensamento. Pelo menos agora posso escolher.

Pelo menos tenho opções. E qual é a alternativa? Um meio-termo? O


que seria isso? O que isso quer dizer?

Até onde sei, as pessoas são definidas pelas histórias que contam

sobre si. E eu vou escolher uma história que não me coloca à margem de

Hawkins.

Com apenas um toque, desligo o rádio, interrompendo Muddy

Waters. No silêncio, relaxo os ombros e respiro fundo, tirando as teias

de aranha e as vozes confusas da minha cabeça. Foco, Júnior, digo a

mim mesmo.

Eu foco o presente.

E é então que ouço a sirene da polícia bem atrás de mim.


Capítulo Vinte e Seis

Estou com o coração na boca, a ponto de que, se trincar os dentes, é

capaz de eu mastigar uma aorta pulsante. As luzes piscantes estão cada

vez mais próximas toda vez que olho pelo retrovisor, e os nós dos meus

dedos no volante, esbranquiçados, estão tingidos pela iluminação

vermelho-azul-vermelho.

Então é isso, penso, confuso de pânico e distante. Sei como isso vai

acabar. Já estive nessa com o policial Moore muitas vezes. Ainda que

me parem apenas para fazer um teste do bafômetro, ainda que eu seja

muito educado… eu sou um Munson. E isso significa que estou

marcado. O policial vai acender a lanterna nos meus olhos, pedir meus

documentos e disparar várias perguntas sem sentido até que decida que

precisa revistar o veículo, e vai demorar bastante para fazer isso. Vou

perder a oportunidade de ganhar quinze mil dólares porque um babaca

decidiu que queria fazer hora extra antes de encerrar o turno.

Penso em começar uma perseguição em alta velocidade, mas essa

ideia dura apenas uma fração de segundo. Por um lado, eu nunca seria

capaz de despistá-lo, não com esse caminhão gigantesco. Por outro, qual

seria o propósito? Mais alguns anos na minha sentença? Não, obrigado.

Eu me obrigo a pisar no freio, dar a seta e parar no acostamento.

Tudo o que resta a fazer é cerrar os dentes, ouvir a sirene aumentar cada

vez mais e esperar pelo pior.

E continuo esperando.

E então… percebo que a viatura não reduz a velocidade. Nem mesmo

está virando em minha direção. Apenas segue em frente, bem depressa.

O único sinal de que os policiais perceberam minha existência foi um

rápido piscar de faróis quando passaram por mim, em agradecimento

por dar passagem.

Fico atônito por trinta segundos, observando, até que eles fazem uma

curva e desaparecem atrás das árvores. E uma vez fora de alcance…


Começo a rir. Histericamente. De um jeito insano, até. Aquela

adrenalina que pulsava em mim desde o posto de gasolina borbulha e

transborda, e eu rio sem parar. Não passo de um garoto magricela

jogado no assento do motorista de um caminhão reboque duplamente

roubado.

É óbvio que aqueles policiais não deram a mínima para mim. Eles

não sabem que sou um Munson. Para eles, sou apenas um cara que

pegou o turno da noite, assim como eles. E eu estava tão ocupado

pensando em besteira que não cogitei isso.

Foco, ordeno a mim mesmo, esticando as costas e estufando o peito.

Hoje não tem espaço para Ronnie, Hellfire Club e nem mesmo Paige. Só

posso pensar no trabalho. O restante terá que esperar. Desejando que

meus pensamentos se acalmem, passo a marcha e, devagar, volto para a

estrada.

Oito quilômetros. Oito quilômetros até captar o sinal do walkie-

talkie. Se fingir que não conheço os limites de velocidade, dá para

chegar em quatro minutos. E vou precisar fazer isso, porque a viatura

acabou com o meu cronograma. Se eu me atrasar mais um pouco…

Piso fundo no acelerador, rasgando a escuridão como se o morcego

que Ozzy Osbourne mordeu estivesse atrás de mim, avançando com as

placas de quilometragem voando do lado de fora da janela.

Por fim, vejo um letreiro surgir no meio da escuridão, verde brilhante

como se fosse um óvni. estrada creekside. É apenas uma transversal

pequena, mas se meu mapa estiver certo é onde consigo sinal para o

walkie-talkie. Pego o aparelho e aperto o botão.

— Pai? Pai!

Mas do outro lado só há estática. Tento de novo:

— Está me ouvindo? Pai?

Continuo ouvindo apenas o silêncio estático, por tempo o bastante

para me fazer pensar que algo horrível pode ter acontecido com ele.

Talvez tivesse um terceiro mecânico na oficina, alguém que ficou para

tomar conta do lugar e pegou meu pai tentando entrar escondido. Talvez

os mecânicos não tenham saído. Talvez alguém tenha visto meu pai

tentando invadir a oficina e chamado a polícia, talvez o policial que

passou por mim estivesse a caminho de lá, talvez…


Estou à beira de abandonar o plano e ir direto para a Serviços

Automotivos Topp 24h (para ajudar meu pai a lutar contra um exército

de mecânicos? Para recolher seu corpo baleado?) quando o walkie-talkie

na minha mão suada emite um chiado.

— Eddie…

— Pai!

— … nde você está…

É mesmo meu pai, sem dúvida. Mas a voz dele fica oscilando, com

ondas de interferência.

— Não estou te escutando — grito para o walkie-talkie, como se isso

pudesse me ajudar a escutar melhor.

— Do lado de fora da velha chácara Kenney.

Isso me deixa de boca aberta, confuso. Não é meu pai. Não tenho a

menor ideia de quem seja.

— Hã?

— Caiu uma árvore, umas duas horas atrás.

É a mesma voz, bem mais clara que a do meu pai. Um chiado

preenche as ondas do walkie-talkie enquanto quem quer que esteja

falando respira fundo, e em meio à estática consigo identificar uma única

palavra.

— … ligue…

Mas então o homem volta a falar, por cima do que meu pai estava

tentando dizer:

— Mas eu acho que a equipe deve resolver isso até o amanhecer, no

máximo.

O que está acontecendo? Mal terminei de me perguntar isso quando

faço uma curva e entendo. Mais à frente, tem uma equipe de obras

rodoviárias iluminando um trecho da estrada, e conforme me aproximo

vejo luzes vermelhas e azuis de uma viatura da polícia. Foi por isso que

aquele policial passou correndo por mim: uma árvore caída derrubou

um cabo de energia.

A equipe de obras, os policiais… Os walkie-talkies deles são muito

mais potentes do que as porcarias que meu pai e eu compramos na

Radio Shack. Não é de se espantar que estejam dominando a

transmissão.
— Vai ser uma noite longa — diz o policial. — Pode pedir a Jessie

para mandar…

— … eles chamaram… — murmura meu pai, só por um segundo.

E então o policial fala por cima dele de novo.

— … algumas pizzas da Reggie’s. Espere. Acho que estamos tendo

interferência.

A linha fica em silêncio por um momento — o bastante para todos

entendermos o que está acontecendo. Mas, se nós podemos ouvi-los,

eles também podem nos ouvir. Vou precisar ser esperto. Pigarreio e

aperto o botão.

— Reboque para oficina — digo. — Pode repetir?

Outro momento silencioso.

— Oi, Matty — fala meu pai, agora ininterrupto e sem ruído. —

Recebi uma ligação, tem um caminhão enguiçado no restaurante Taylor,

na Madison. Acha que consegue trazê-lo?

Madison. Vou precisar procurar, mas…

— Entendido, Jerome — respondo, tentando parecer o mais

profissional possível. — Estou a caminho.

Assim, passo pela árvore caída e pela viatura estacionada e pisco os

faróis de volta. Obrigado, policial. Esses não são os droides que vocês

estão procurando. Podem seguir.

É impossível não enxergar o caminhão. Está parado na diagonal,

atravessando umas cinco vagas de estacionamento, sob o letreiro néon

que diz restaurante taylor. Estaciono ali, num pequeno espaço

asfaltado.

Na cabine do caminhão das Fazendas Farris, dois homens levantam a

cabeça para me olhar. Estão tomando café, e ambos me observam com

certo nível de desconfiança e hostilidade. Eu os cumprimento com o

mais simpático dos sorrisos de Al Munson. Em seguida, desço o vidro

da janela.

— E aí, camaradas? — digo. — Ouvi dizer que estavam precisando

de um reboque.
Capítulo Vinte e Sete

A cabine do caminhão reboque nunca esteve tão apertada. Esse banco

com certeza não foi feito para três homens adultos.

— Ainda bem que vocês deram sorte de enguiçar tão perto da oficina

— comento.

Sinto alguma coisa rígida que com certeza é uma arma enfiada no cós

da calça do homem sentado ao meu lado.

O sujeito é o CJ, o que estava fumando quando me escondi para jogar

água no tanque de combustível, e ele é um cara de poucas palavras.

Como foi o primeiro a subir no reboque, fez questão de pressionar a

arma contra mim forte o bastante para deixar um hematoma. Acho que

nunca recebi um aviso tão silencioso e efetivo quanto esse.

CJ contribui na conversa apenas com alguns grunhidos ocasionais,

mas seu parceiro, Toby, fala pelos cotovelos. O homem é tagarela para

dizer o mínimo, e nos quinze minutos percorridos desde o restaurante,

acho que ele não parou para respirar mais de duas vezes.

— … por isso que você nunca deve contar sua rota para sua

namorada, porque se ela se der ao trabalho de checar, você não vai

querer que ela realmente consiga te encontrar…

Só entendo por que ele não para de falar quando nos aproximamos do

letreiro gasto serviços automotivos topp 24h. Ele está tentando evitar

que eu faça perguntas.

Tudo bem por mim, cara. Não quero saber mais nada sobre esses dois

além do necessário. Estaciono.

— Muito bem — digo, interrompendo Toby.

A oficina Topp fica num recuo da floresta, a alguns metros da estrada

principal. O aspecto sujo da fachada não inspira muita confiança, e

como CJ está bem perto, dá pra ver que ele desaprova o estabelecimento.

Luzes acesas iluminam as janelas e a porta da garagem está aberta,

acendendo o lugar como uma abóbora de Halloween. Isso, somado ao


fato de que esta é a única oficina mecânica aberta a essa hora em

quilômetros, é o suficiente para impedir que CJ reclame.

— Vou deixar vocês saírem aqui — comento.

No fundo da garagem, vejo uma figura esguia perambulando. É meu

pai, usando um macacão que compramos na War Zone, as mãos sujas de

graxa e óleo até os pulsos. Com o boné baixo na altura dos olhos, é fácil

perceber a semelhança com tio Wayne.

— Há uma sala de espera bem na entrada, com uma TV e tudo mais.

Não passa nada muito interessante a essa hora, mas pelo menos deve ter

café quentinho.

— Um atendimento de primeira — diz Toby.

Ele está inclinado para a frente, abrindo um sorriso radiante e

encantador diante do carrancudo CJ. Acho que consigo contar cada um

de seus dentes, mesmo no escuro.

— O que acha desse atendimento, CJ? — indaga Toby.

CJ solta um grunhido. Começo a entender que se trata mais de um

monólogo.

— Fazemos nosso melhor aqui na Serviços Automotivos Topp 24h —

declaro. — Vou só deixar vocês saírem e…

— Excelente atendimento mesmo — fala Toby, parecendo um disco

arranhado. — CJ e eu não somos chiques, então não precisamos de uma

sala de espera confortável. Só estamos tentando retomar nossa rota o

mais depressa possível.

Nervoso, tento dar uma risada.

— Aposto que sim. Vamos consertar o caminhão e vocês vão voltar

pra estrada rapidinho…

— Maravilha. Então você não se importa se a gente ficar pela oficina

enquanto vocês trabalham — sugere Toby.

Meu pai observa a cena. Ele ainda está no fundo da oficina, então não

dá para ver seu rosto, mas o jeito como passa a estopa na mão me diz

tudo que preciso saber. Ele está ansioso. Queria ter eu mesmo uma

estopa, qualquer coisa para fazer com as mãos e, assim, acalmar os

nervos. Porque entrar no baú do caminhão não é algo que vá passar

despercebido, ainda mais se eles estiverem a três metros de distância.

— Carga preciosa — acrescenta Toby.


Percebo que, mesmo após meu longo momento silencioso de pânico,

ele não se moveu um centímetro sequer. Ainda está sorrindo para mim, e

não é que eu possa ver seus dentes no escuro, é que eles são a única

coisa que eu consigo ver. O restante de Toby é só uma silhueta escura,

tampando as estrelas no céu.

CJ se mexe no banco ao meu lado e, mais uma vez, sinto o cabo da

arma contra o meu quadril. E então…

Não é que eu tenha tomado uma decisão, exatamente. Ela foi imposta

a mim.

— Legal — resmungo.

Piso no acelerador, entrando na oficina e alinhando o caminhão

reboque nas sapatas amarelas desgastadas que emolduram o poço de

inspeção.

Desligo o motor e desço da cabine. Não vejo meu pai em nenhum

canto. Mas escuto um barulho, e algo me diz que ele já está lá embaixo.

— E aí, Jerome? Temos visita.

— Clientes não podem ficar na área de trabalho — diz ele, sob os

pneus do caminhão. — Política da empresa.

Lanço um sorriso de desculpas para CJ e Toby, que estão bem à

vontade num banco por perto. Toby assente de um jeito amigável. CJ

apenas acende mais um cigarro.

— Parece que vão ter que abrir uma exceção — declara Toby.

Sinto algo bater no bico da minha bota. Baixo a cabeça e vejo meu

pai me encarando, sob o caminhão. Tento agir o mais naturalmente

possível, dadas as circunstâncias, e me ajoelho para ficar a distância de

um sussurro.

— Que droga é essa, garoto? — pergunta ele.

— Eles não querem sair — sussurro.

— Dá um jeito.

— Eles estão armados, Jerome.

— Então você vai ter que pensar em alguma coisa. A gente não se

arriscou desse jeito até aqui para arruinar tudo agora.

Ele está certo. Sei que sim. Mas isso não significa que não queira

pegar a chave soquete mais próxima e arremessar na fuça dele.

Eu me levanto, ignorando o suor de nervoso que escorre debaixo dos

meus braços. Ainda bem que estou usando esse macacão idiota.
— Jerome disse que pode ser um problema com o cano de

combustível — declaro. — Mas nada é tão simples com esses

frigoríficos antigos. Vocês se importam se eu der uma olhada geral?

— Se isso colocar essa coisa para funcionar — diz Toby.

— Esse é o plano, chefe — retruco.

Então, como não tenho mais ideias, começo a andar em volta do

caminhão.

Pense. Tento me forçar a encarar essa situação como se fosse uma

sessão do Hellfire Club, como se eu estivesse em um cerco a um castelo.

Pense. Os portões estão protegidos. Os arqueiros estão em posição.

Ergueram a ponte levadiça, soltaram os crocodilos no fosso…

Observo o lado mais comprido do baú de carga. É bem extenso,

parece não ter fim, uma eterna e inquebrável placa de aço. Não dá para

entrar no baú, a não ser pelas portas reforçadas que Toby e CJ estão

vigiando como um par de gárgulas.

Por fim, chego à outra ponta do baú. No espaço que se conecta à

cabine, a unidade de refrigeração se projeta para fora, passando por cima

do engate feito uma espinha no rosto de um adolescente. Está em pleno

funcionamento; dá para ouvir o barulho do ar-condicionado quando

chego mais perto, e o metal está quente ao toque.

Se eu soubesse alguma coisa sobre mecânica ou conserto de ar-

condicionado, talvez isso me ajudasse. Mas tudo que vejo, encarando

esse compartimento que mais parece uma ferida inchada, é outro

empecilho entre mim e a Califórnia. Outro obstáculo. Outro freio.

Castelos, fossos, pontes levadiças. Balanço a cabeça. Isto aqui não é

um jogo. Você não é um nobre paladino. Você é um criminoso. É um

caminhão frigorífico, caramba. E não tem crocodilos impedindo a

entrada do inimigo. São dois criminosos da pesada.

Embaixo do caminhão, ouço um som estridente. Meu pai se esforça

para executar o trabalho levando o máximo de tempo possível para

drenar os canos de combustível e fazer o caminhão funcionar de novo.

Mas ele não pode enrolar para sempre, e Toby e CJ não são idiotas. Uma

hora ou outra vão começar a suspeitar.

Me dou alguns tapas mentais, passando a mão no metal da cabine,

dando a volta. Vejo o fazendeiro das Fazendas Farris sorrindo para mim.

Desvio o olhar, evitando contato visual…


E congelo.

É isso. Toby e CJ podem vigiar as portas traseiras o quanto quiserem.

É um caminhão frigorífico, não um castelo. E caminhões frigoríficos não

podem ter apenas uma entrada.

Encontro o que estou procurando ao contornar a cabine. Não sei

como não reparei nisto antes; está tão perto da parte maior da unidade

de resfriamento que quase desaparece na sombra.

Eles mantêm o ar circulando. Foi o que meu pai me disse atrás de

uma montanha de panquecas e das indiretas de Dot, a garçonete. E

deixam tudo fresquinho.

Bem, para o ar circular, ele também precisa sair. Ventilar.

É exatamente o que vejo na frente do baú de carga. Uma pequena

abertura, do tamanho de uma folha de papel. Uma saída de ventilação.

Dou uma olhada ao redor, observando o fundo da oficina. Toby e CJ

estão exatamente onde os deixei, jogados no banco. Estão falando baixo,

então não consigo entender. Mas, pelo jeito como CJ assente com

firmeza e pela cara fechada de Toby, parecem estressados — como se

este atraso fosse a última coisa de que precisassem.

E talvez eu use isso a meu favor. Vou na direção deles fazendo

bastante barulho, meus passos chacoalhando as sapatas. Acorda, pai,

tive uma ideia.

— Acho que encontramos, camaradas.

— Qual é o problema? — pergunta CJ.

Fico surpreso. Acho que essa foi a maior quantidade de palavras que

ouvi dele durante toda a noite.

— É o que eu imaginei, cano de combustível — digo, tentando

parecer indiferente. — É simples, mas leva um tempinho para deixar

tudo certo. Afinal, vocês não vão querer fazer mais paradas antes de…

Toby não completa minha frase. Apenas lança um sorriso enervante.

— Ótimo — diz ele.

— Ótimo — repito. — Ah, vocês se importam se a gente ligar o

rádio? Trabalhar em silêncio a essa hora da noite dá um pouco de…

— Aham, tanto faz — interrompe Toby.

Ele cruza os braços e se recosta na parede. Seus olhos estão

entreabertos, mas sei que ainda está me observando. Pego o rádio

portátil pendurado num gancho na parede e ligo. A melodia de um


saxofone preenche o ar. Pelo jeito, os mecânicos da Serviços

Automotivos Topp 24h são fãs de jazz. Não seria minha primeira opção

para encobrir os barulhos de um roubo, mas é o que temos para hoje.

— Vocês vão estar de volta à estrada num instante — digo, pegando a

bolsa de ferramentas preta largada no chão embaixo do rádio. — Podem

confiar.
Capítulo Vinte e Oito

Em meio a uma onda de adrenalina, já estou com os dedos na trava

quando penso melhor. Cuidado, Júnior, digo a mim mesmo. Não estraga

tudo agora. Baixo as mãos e penso no próximo passo. Não posso

cometer erros.

Uma imagem surge na minha mente: meu pai, agachado do lado de

fora da oficina de desmanche, lubrificando com cuidado as dobradiças

do portão para que nenhum ruído nos denunciasse. Lutando contra o

ímpeto, me abaixo e abro a bolsa de ferramentas.

O que estou procurando rola para o fundo, se enfiando entre chaves

de fenda, martelos e brocas. Pego a lata de óleo, agradecendo a quem

quer que seja por ainda não estar vazia. Confiando no poder de Grover

Washington Jr. e seu majestoso solo de saxofone para cobrir o som,

borrifo o spray nas dobradiças da abertura.

A trava se abre em silêncio, deslizando contra o ferrolho que a

mantém no lugar. Agora, tudo o que me resta é prender a respiração e…

abrir.

A tampa balança para trás, instável, tremendo nas dobradiças. Se eu

não tivesse usado bastante óleo lubrificante, a oficina inteira escutaria o

rangido do metal. Mas, nos segundos que fazem meu coração disparar,

não ouço nada além do murmúrio contínuo da conversa entre Toby e CJ.

Está tudo dando certo. Mas o tempo está passando. Eu me inclino

para a frente, espiando dentro do baú refrigerado. A unidade de

refrigeração acima do meu ombro está sendo muito eficiente em manter

este caminhão e sua carga bem-conservados, e conforme me aproximo,

sinto um sopro de ar frio na pele. De início, o baú está muito escuro.

Mas depois, quando minha visão começa a se ajustar, percebo algumas

formas — caixotes de madeira e engradados sem tampa, cobertos com

uma lona azul brilhante e amarrados com tiras de náilon, todos presos às

paredes e ao chão para que não deslizem.


— Posso usar o telefone? — grita Toby.

Quase escorrego e caio com o susto.

— Ah! — grito em resposta, depois de recuperar o equilíbrio. —

Sim, sim. O telefone…

Antes que eu possa entrar em pânico por não saber onde fica o

telefone, Toby diz:

— Obrigado.

Descubro que não preciso me preocupar, porque o aparelho está

literalmente a dois passos dele, na parede ao lado do banco, e Toby já

está a caminho, tirando o fone do gancho e discando.

Assim que ele vira de costas, volto ao trabalho. Há um caixote

amarrado à parede logo abaixo da abertura, e a lona está ao meu alcance.

Ignorando o repuxar tenso dos meus ombros, enfio o braço no buraco e

agarro a ponta da lona. Puxo para o lado, revelando…

Cenouras.

Um monte de cenouras amontoadas, transbordando da caixa, com

cheiro de terra. Mas, quando enfio a mão no caixote o mais fundo que

consigo, não sinto apenas a textura áspera e firme dos legumes frescos.

Logo abaixo, encontro alguma coisa diferente. Tem o mesmo

tamanho de uma cenoura, mas cede um pouco ao meu toque e afunda

como um saco de areia. Quando pego o objeto e retiro do caminhão,

entendo por quê.

O que está na minha mão parece uma cenoura, mas qualquer olhar

cuidadoso vai entender o que realmente é: um pacote em formato de

cone, embrulhado em plástico laranja e preso com fita adesiva. Trago-o

ao nariz e inspiro. Como imaginei, mesmo com o embrulho, sinto o

aroma inconfundível e penetrante de maconha.

Nove quilos da melhor qualidade. Foi o que prometemos a Reefer

Rick em sua casa bizarra, no que parece ter sido muito tempo atrás.

Nove quilos por quinze mil dólares. Fico olhando para o pacote na

minha mão. Quanto de maconha tem numa cenoura falsa? Quanto seria

em dinheiro? Não ensinam isso na Hawkins High.

— Isso vai levar quanto tempo, Matty? — pergunta Toby.

Ele ainda está ao telefone, mas me encara por cima do ombro.

— Não muito — digo, confiante. — O que acha, Jerome?

— Não muito — repete meu pai, com uma voz abafada.


Toby se vira, e continua a falar no telefone:

— Estão dizendo que não muito, chefe. — Ele segura o telefone entre

o ombro e a orelha enquanto procura por lápis e papel na bancada. —

Acho que podemos ganhar meia hora se pegarmos a I-70 por Ohio em

vez de ir pelas estradas secundárias…

CJ faz um comentário que não consigo escutar, mas não posso perder

tempo tentando decifrar suas palavras. Ponho a cenoura de plástico na

bolsa de ferramentas e logo volto para procurar a próxima. É um tipo de

exercício estranhamente difícil, porque preciso virar o braço num espaço

muito apertado e com cuidado. Se eu me mexer muito rápido ou fizer

muita força, corro o risco de jogar algumas cenouras verdadeiras no

chão do baú, e então nem o mais melodioso jazz da Serviços

Automotivos Topp 24h vai encobrir o barulho.

Pego mais duas cenouras, depois mais três. O estoque da minha bolsa

de ferramentas cresce até completar duas dúzias de cenouras falsas

empilhadas, cada uma com cerca de cinco centímetros de diâmetro. E,

quando tento pegar mais uma, minha mão volta vazia. Não há mais delas

nesta caixa, pelo menos não que eu consiga alcançar.

Olho para a bolsa de ferramentas. Será que aqui tem nove quilos?

Quanto são nove quilos? Talvez se eu tiver um pouco menos de cuidado,

me esticar um pouco mais, vou conseguir enfiar a mão bem no fundo e

encontrar mais um pacote…

— Entendido — diz Toby, de algum lugar da oficina. — Estaremos

lá. Obrigado, chefe.

Ouço o clique do telefone no gancho e o murmúrio das vozes de Toby

e CJ discutindo alguma coisa…

… e passos.

Um deles está vindo para cá.

Droga. Não tenho mais tempo. Depressa, agarro a lona e a puxo de

qualquer jeito por cima da caixa. Fecho a abertura, estremecendo com o

ruído agudo da trava quando a coloco no lugar. O laranja das cenouras

se destaca no material preto da bolsa de ferramentas. É quase um farol,

impossível de não ver mesmo quando me agacho e começo a jogar as

ferramentas por cima. Martelos, chaves inglesas, brocas e chaves de

fenda vão caindo em camadas, e mesmo assim consigo ver pontinhos

laranja entre eles.


Os passos param bem atrás de mim, mas não posso me virar para

olhar quem é, não quando ainda há uma sirene berrando bem debaixo do

meu nariz. Fecho a bolsa de ferramentas cheia demais com dificuldade,

os dedos tremendo ao forçar o zíper, tentando esconder, tirar de vista

qualquer evidência…

Finalmente — finalmente — o zíper cede e a bolsa fecha. Então me

levanto, pendurando a bolsa no ombro e me esforçando para não cair

com o peso.

CJ está plantado a alguns passos de mim, me analisando com frieza.

Será que ele viu alguma coisa? Não sei, e não é ele quem vai me dizer.

— Terminei por aqui — digo. — Jerome?

— Sim, tudo certo.

É tudo que ouço do meu pai, que já terminou de drenar o cano de

combustível faz pelo menos vinte minutos.

— Quanto? — pergunta CJ.

Pensei que não me incomodaria com um homem que fala tão pouco,

mas percebo que talvez isso se aplique apenas ao tio Wayne. CJ tem um

jeito estranhamente assustador.

Tento ignorar a repentina sensação de boca seca e ajusto a bolsa com

a droga roubada no ombro.

— Podemos fazer por cem.

— Aceita dinheiro? — pergunta Toby, ainda sentado.

Não faço ideia de qual seja a política de pagamento da Topp, mas

também não gastaram muito tempo com esse conserto de qualquer

forma.

— É sempre bom — respondo, pulando do engate para o chão. —

Pode deixar aí que eu tiro o caminhão da oficina para você…

— Espera.

A palavra me atinge com tudo.

Hesito, os nós dos dedos ficando mais pálidos em torno da alça da

bolsa de ferramentas. A ordem de CJ atinge meu sistema nervoso que

nem um balde de água fria.

Não quero me virar. Há tantas coisas que posso ter deixado passar

nesses últimos segundos, nem imagino quantas. Será que deixei a

abertura exposta? Será que minha terrível tentativa de fechar a lona fez

com que algumas cenouras caíssem da caixa? Ou então — e meu sangue


congela só de pensar — será que alguma das embalagens caiu da bolsa

de ferramentas quando eu estava tentando guardar tudo? Várias

hipóteses terríveis passam pela minha cabeça…

Sinto uma batidinha no meu ombro. É algo longo e metálico, é meio

que pesado o suficiente para machucar.

— Você esqueceu isso aqui — diz CJ.

Eu me forço a virar e encontro-o segurando uma chave inglesa.

— Obrigado — respondo, e a voz não sai tão amedrontada quanto

realmente estou. Pego a chave e a enfio no bolso de trás do macacão. —

E aí, prontos pra ir?

Ele assente. Dou a volta e subo no caminhão reboque. De alguma

forma, apesar da dormência nos meus músculos e da mente congelada,

reboco o caminhão das Fazendas Farris da garagem e o estaciono do

lado de fora. Como não sei onde meu pai está, eu mesmo desacoplo o

reboque.

— Vocês salvaram a gente, sério — comenta Toby, dando uma

batidinha no meu ombro com a mão pesada.

A imagem da bolsa de ferramentas queima diante dos meus olhos. Na

minha cabeça, é como se eu tivesse um letreiro néon apontando para ela.

o bagulho (roubado) está aqui. Mas Toby e CJ sobem no caminhão

como se nada tivesse acontecido, como se esta não tivesse sido a noite

mais estressante da humanidade, como se as últimas seis horas não

tivessem me feito perder dez anos de vida.

— Sem problema. Se cuidem.

Dou alguns passos para trás para abrir espaço.

— Diga ao seu colega para sair daquele buraco de esquilo alguma

hora — brinca Toby, girando a chave na ignição. — Ou ele vive lá

embaixo mesmo?

Dou uma risada, e é o máximo que consigo fazer. Toby

provavelmente não estava esperando uma resposta, porque só me dá um

aceno. CJ faz uma careta, o motor acelera, e então o caminhão começa a

se mover, saindo do estacionamento em direção à estrada…

Meu pai só aparece depois que as luzes traseiras do caminhão se

tornaram pontinhos vermelhos a distância. Então ele ressurge, limpando

as mãos sujas de graxa numa estopa. Ficamos lado a lado por um longo
momento, em silêncio, apenas observando a estrada até que o caminhão

das Fazendas Farris desapareça.

— E aí? — pergunta ele, suas palavras flutuando no ar da noite

silenciosa.

Abro a bolsa de ferramentas. As cenouras falsas brilham com a

iluminação da oficina. É a magia dos Munson.

E, desta vez, sou eu quem dá aquele sorriso desafiador e confiante, e

ele retribui, abrindo seu sorriso como se fôssemos o reflexo um do

outro.

— Abracadabra — digo.

Ele dá risada. Eu dou risada. E então ficamos feito dois idiotas,

pulando um por cima do outro em frente a uma oficina mecânica às duas

da manhã porque agora nosso futuro tem a forma de um monte de

cenouras falsas numa bolsa de ferramentas. Porque nós conseguimos.

Porque, o mais importante de tudo…

… porque finalmente, finalmente acabou.


Capítulo Vinte e Nove

Quinze. Mil. Dólares. É mais dinheiro do que jamais vi na vida inteira;

mais dinheiro do que jamais achei que veria. E está aqui dentro de uma

sacola de papel no chão da van entre mim e meu pai, balançando a cada

pancada no asfalto enquanto dirijo.

— De olho na estrada, garoto — diz meu pai, rindo.

Envergonhado, volto a olhar para a frente.

Quando virei a bolsa de cenouras falsas diante do Reefer Rick, na

mesa de sinuca, ele perguntou, com as sobrancelhas arqueadas:

“Será que eu quero saber o que aconteceu?”

Meu pai balançou a cabeça.

Rick nos examinou, semicerrando os olhos com os raios do sol da

manhã que entravam pela janela.

“Estão com todos os dedos das mãos e dos pés?”

O que ele gostaria de perguntar é: se meteram em algum problema? E

a resposta, por incrível que pareça, seria: não. Faz dois dias desde aquela

noite insana na Serviços Automotivos Topp 24h, e não ouvimos nada

sobre o assunto. Nenhum sinal do caminhão das Fazendas Farris, nada

do Charlie Greene, do Toby e muito menos do CJ. Contrariando todas as

probabilidades, parece que nos demos bem.

Meu pai apontou para o pulso para que Rick o observasse e, depois

de levar um chute dele, fiz a mesma coisa.

“Tique-taque…”

“Tudo bem”, declarou Rick, depois de uma longa, longa pausa.

“Então vamos trocar umas verdinhas por uma bolada.”

Acho que nunca vou enjoar de ver dinheiro na minha frente. Por isso

fico me distraindo enquanto dirijo, e por isso meu pai enfim resolve

dobrar a boca da sacola de papel e prendê-la entre as pernas para mantê-

la fechada.
Não há dúvidas quanto ao destino da minha parte do pagamento.

Assim que deixo meu pai em casa, vou direto para o amigo mecânico do

tio Wayne, tentando ignorar as lembranças da Serviços Automotivos

Topp 24h.

Assisto a Greg fuçar embaixo do capô da van.

— Quantos quilômetros? — pergunta ele depois de se levantar.

— Tipo… três mil. Talvez um pouco mais.

Ele solta um assovio baixo, pendurando a chave inglesa no cinto.

— Você sabe que isso aqui é uma porcaria, né?

— Mas vai aguentar a viagem?

— Com os cuidados certos, sim — responde ele, fechando o capô. —

Mas esse tipo de tratamento de spa tem seu preço.

Reparo que o olhar dele está vidrado no maço de notas enfiado no

meu bolso de trás.

— Preço é relativo — digo a ele. — Deixa que eu mesmo julgo se é

barato ou caro.

Uma semana atrás, o valor teria me causado um derrame. Mas agora

eu apenas assinto, entrego uma pilha de notas de vinte e deixo que Greg

comece a trabalhar. Tenho só uma semana até pegar a estrada para a

Califórnia, então é melhor ele não perder tempo.

Eu me permito contemplar, pela primeira vez, os aspectos práticos de

sair de Hawkins. Então os próximos dias são uma dose frenética de

afazeres, e um dos primeiros itens que risco da lista é passar no

Esconderijo.

— Você não está na escala de hoje.

É desse jeito que Bev me cumprimenta quando me encontra na porta

dos fundos, esperando por ela antes do horário de abertura do bar.

— Aham — digo. — Você, hã… não precisa mais fazer isso. Não é

necessário.

Bev me examina por baixo da franja frisada.

— Está me dizendo o que eu acho que está dizendo?

— Aham.

— Hum — diz ela, pisando na guimba do cigarro e destrancando a

porta dos fundos. — Isso tem a ver com seu pai? Ou com aquela garota

dos brincos?

Dou de ombros.
— Tem.

— Bem… — Bev olha para mim por um longo momento. Em

seguida, assente. — Se cuida, Júnior.

— Obrigado, Bev.

Contornar o Esconderijo e atravessar o estacionamento é uma longa

caminhada, especialmente quando a minha van está na oficina. Já estou

me afastando do lugar quando escuto Bev dizer:

— Diga ao pessoal daquela sua banda que estou com saudade de

ouvir o som deles.

Mas, quando me viro para confirmar se não estou delirando, a porta

já se fechou e Bev não está mais lá.

Pensei que empacotar tudo fosse ser mais fácil do que pedir

demissão. Na verdade, pensei que fazer as malas fosse ser a parte mais

tranquila de todo o processo. Afinal, estou acostumado a pegar meus

trapos e ir dormir em outro lugar, mas percebo agora que há uma

diferença entre ficar no trailer do tio Wayne por algumas semanas e me

mudar para o outro lado do país… para sempre, talvez? A primeira coisa

que aprendi foi que sacos de lixo não servem direito para isso. Nunca me

considerei uma pessoa acumuladora, mas pelo jeito muita coisa se

acumula naturalmente ao longo de dezoito anos morando no mesmo

lugar, e eu levei um dia inteiro só vasculhando uns trabalhos de escola

antigos que eu nem sabia que ainda tinha.

Em uma noite conversando com Paige pelo telefone, ela me pergunta,

brincando:

— Mas já achou algum gato morto?

Estou com a cabeça enfiada no fundo do guarda-roupa, em meio à

pilha de potes Tupperware falsificados que nem sabia que estavam aqui,

sentado no chão com o telefone preso entre a orelha e o ombro.

— É só uma questão de tempo — retruco, jogando uma tampa

rachada por cima do ombro. — Ei, então, quando eu chegar em Los

Angeles… Queria te perguntar, onde eu devo começar a procurar por

hospedagem? Tipo, em que parte da cidade?

— Em que bairros você está pensando?

— Não conheço bairro nenhum, Warner. É por isso que estou te

perguntando.

— Bem, se você está me perguntando, eu diria… Fica lá em casa.


Fico feliz por ela não estar aqui agora. Não quero que Paige veja a

expressão idiota e surpresa que deve estar se formando no meu rosto.

— … com você?

— Q-quer… quer dizer…

Ela está gaguejando. Gaguejando mesmo. De alguma forma deixei

Paige Warner nervosa o bastante para gaguejar.

— Eu só… — continua ela. — Eu moro numa casa em West

Hollywood. É bem legal, e lá tem, tipo, uma laranjeira no jardim e… E

não estou dizendo para, tipo, a gente morar junto. Isso seria loucura.

Mas tem um quarto extra…

— Você quer que eu seja seu… colega de casa?

Tudo que eu estava pensando sobre os potes fugiu da minha cabeça.

Com uma travessa nas mãos, viro o objeto de um lado para outro,

olhando para ele inexpressivo, como se aquilo fosse uma bola de cristal.

— Talvez — diz ela.

— Um colega de casa com quem você transa.

— Minha nossa, Eddie…

De repente, ela dá uma risada, e a incerteza que eu estava sentindo se

esvai.

— É uma opção — continua Paige. — A menos que você queira

encarar os hotéis baratos de beira de estrada de Sunset Strip.

— Não quero encarar esses hotéis — digo na mesma hora.

— Muito bem. Certo.

— Certo.

Há um chiado do outro lado da linha, então imagino que Paige está

mudando de posição.

— Hum… Então — fala ela. — Meus pais vão fazer, tipo, um jantar

de despedida. Antes de eu voltar para a Califórnia. Amanhã à noite.

Você… você gostaria de vir?

Olho ao redor do meu quarto, para os lençóis amarrotados na cama,

para a infiltração no teto e para os vários potes quebrados. Nunca estive

na casa de Paige, mas deve ser uma mansão comparada a isso.

— Você quer que eu vá… conhecer seus pais?

— Aham.

— Como seu colega de casa?

— Vou desligar na sua cara.


Prendo a respiração. Agora é a hora, penso. Depois disso, não tem

mais volta. Por dezoito anos, vivi como um eterno fracassado. Mas

agora vou deixar tudo isso para trás. Este é o nascimento de um novo

Eddie Munson — o cara que tem um futuro, o cara por quem as pessoas

criam expectativa. Este é o Eddie que vai para a Califórnia. Este é o

Eddie que os produtores da WR Records querem conhecer.

Talvez este seja o Eddie que pode impressionar os pais de Paige. Só

preciso ter certeza de que ele vá aparecer.

— Só me diga que horas vai começar — digo, com mais coragem do

que estou sentindo. — E estarei lá.


Capítulo Trinta

Sempre imaginei uma mansão toda vez que Paige falava sobre sua

família ou sua casa, e não sei o que isso diz sobre mim. Mas, quando me

aproximo da residência, vejo uma casa comum de dois andares na

Cherry Street, com dois carros antigos estacionados na entrada e um

jardim mal cuidado na calçada da frente. Não é nada chique nem

extravagante. É apenas… confortável.

Lembre-se, digo a mim mesmo enquanto subo os degraus da entrada,

com um buquê de flores numa das mãos e uma caixa de chocolates

muito cara na outra. Começa agora. Nunca mais Júnior. Nunca mais

maçã podre. Paige quer um herói do rock, e é isso que ela vai ter.

Endireito os ombros, alongo a coluna. Bato na porta.

Paige abre antes que eu abaixe a mão. Com uma expressão

preocupada, a primeira coisa que sai de sua boca é:

— Desculpe.

Um começo não muito promissor.

— Hã?

Ela abre mais a porta, então vejo que não está sozinha. E que o

homem e a mulher atrás dela só podem ser seus pais.

A sra. Warner, de quem Paige herdou as sardas, é baixinha, e seu

sorriso iluminado me atinge com tudo. Ela está radiante perto de Paige,

o cabelo volumoso com permanente com uma presilha enorme de

estampa de tartaruga.

O marido está atrás dela. Logo que a porta se abre, dá para ver que

ele está me analisando — não com desconfiança, mas com interesse.

Assim como a esposa, o sr. Warner não é um homem alto, com muita

boa vontade eu diria que tem um metro e setenta, mas é robusto e está

usando blusão surrado e calça jeans. Algo nele faz soar um alerta

familiar na minha mente.


Nunca mais maçã podre, lembro a mim mesmo. Pigarreio e digo, o

mais animado possível:

— Olá, sou Eddie Munson.

— Eddie! — diz a sra. Warner. — Que prazer em te conhecer. Meu

nome é Julia, e este é meu marido, Hank…

— Munson, é? — pergunta o homem.

O sr. Warner estreita os olhos do mesmo jeito assustador que sempre

fazem quando ouvem meu sobrenome.

— Você é parente do… — Ah, não. — Wayne Munson?

Quase caio de alívio. Então isso que é tão familiar nele — ele é o

exato tipo de cara que eu via com o tio Wayne, bebendo em algumas

noites de sexta.

— Ele é meu tio.

O homem assente, satisfeito.

— Bom homem, o Wayne.

— Sim, senhor.

Paige arregala os olhos para mim. Socorro. Não faço a mesma coisa

porque, ainda que seja só o início, tem alguma coisa legal rolando entre

mim e os pais dela, e vou me esforçar para não colocar tudo a perder.

A sra. Warner dá um tapinha no ombro do marido.

— Por que ainda estamos na porta? Entre, entre…

A família Warner se afasta para que eu entre na sala. Assim como o

exterior da casa, o melhor adjetivo para descrever este lugar é

confortável. Sofás desgastados e macios ficam diante da TV, e a mesinha

de centro tem arranhões e marcas dos anos de uso. Há caixas em todo

lugar, empilhadas, às vezes até o teto. Algumas delas têm palavras

escritas em marcador preto — livros; panelas; casacos —, mas a maioria

não está identificada.

— Obrigado pelo convite — digo, da mesma maneira que ensaiei

enquanto dirigia até aqui.

Feito um robô, estico os braços e entrego as flores e os chocolates

para a sra. Warner.

Ela toma o buquê das minhas mãos com tanto entusiasmo que eu fico

surpreso.

— Narcisos!
— Mamãe ama narcisos — explica Paige, revirando os olhos, mas

com carinho na voz.

A sra. Warner balança a mão para a filha, modesta.

— Vá buscar um vaso para mim. Um dos bonitos.

— E onde estão os bonitos?

— Na despensa.

— Mas lá não estão as coisas da vovó?

A sra. Warner solta um suspiro irritado e vai para o que, a julgar pelo

aroma de frango assado que vem de lá, deve ser a cozinha. Ela não larga

o buquê, e meio que fico feliz por isso.

— Lamento pelo estado da casa — declara o sr. Warner, vendo a

esposa sair correndo. — Minha mãe faleceu há dois meses…

— Paige me contou. Sinto muito.

Ele assente. Tem os mesmos olhos escuros de Paige, e talvez por isso

eu tenha facilidade em identificar um traço de tristeza neles.

— Obrigado — diz ele. — De todo modo, a casa virou um estoque de

todas as coisas dela, e como já não estávamos com espaço sobrando…

— Ele aponta para as montanhas de caixas amontoadas em todo canto.

— A casa se tornou essa bosta de bagunça.

— Olha a boca — cantarola Paige, mas o tom revela que se trata de

uma piada interna.

— Ai, merda, me desculpem.

O sr. Warner esbarra o ombro no de Paige.

— Olha a boca! — diz a sra. Warner, esticando o pescoço para dentro

da sala e ignorando a expressão de divertimento da filha e do marido. —

Venham comer antes que esfrie.

O jantar é tão surpreendente quanto a casa. A mãe de Paige faz

algumas viagens curtas para trazer a comida do fogão até a mesa — uma

refeição caseira sem frescura. Quando o frango assado dourado e

crocante é posto na minha frente, finalmente entendo o que estava me

deixando tão ansioso desde que cheguei.

É o mesmo sentimento que me atravessou durante aquele trabalho

noites atrás, quando o carro da polícia passou por mim. Eu estava me

preparando para uma luta, para que as coisas tomassem o pior rumo

possível. Mas não foi assim. Imaginei que Paige e sua família morassem

numa mansão da Maple Street, me preparei para ter que me provar, para
me defender a cada segundo. Mas eles estão servindo vagem no meu

prato, enchendo meu copo com o mesmo refrigerante genérico que o tio

Wayne compra, perguntando sobre minha vida e brincando uns com os

outros enquanto comem coxas de frango.

Pensei que as coisas nunca fossem ser fáceis. Mas agora que deixei o

Júnior para trás… talvez elas possam ser.

A sra. Warner está mostrando como os narcisos ficaram bonitos no

vaso (coberto de umas manchas cinzentas que aparentemente são

elefantes; Paige fez na aula de artes do sétimo ano) quando a porta da

cozinha se abre. Um garoto de uniforme de beisebol sujo entra, a

mochila pendendo de um ombro e uma luva de beisebol na mão. O

irmão mais novo de Paige.

— Mark! — exclama a sra. Warner. — Você disse que o treino ia até

tarde… senão teríamos te esperado.

— Gabe torceu o tornozelo — explica Mark, largando a mochila no

chão de linóleo. — Quem é ele?

O garoto aponta para mim com a cabeça.

— Foi assim que eu te eduquei? — pergunta o sr. Warner, num tom

suave.

Mark suspira.

— Quem é ele, por favor?

— Este é o Eddie — diz Paige.

— Ele está na minha cadeira — reclama Mark.

— Não era para você estar aqui agora, pirralho — retruca Paige.

— Posso me sentar em outro lugar — ofereço.

— Mark pode pegar outra cadeira — diz o sr. Warner.

A sra. Warner se levanta para buscar mais um prato em um dos

armários da cozinha.

— Como você chegou em casa? — pergunta ela acima do tilintar da

louça. — É melhor que nenhum dos seus colegas do time tenha te

trazido, você sabe que eu não confio neles dirigindo.

— A mãe do Simon me deu carona. Pode perguntar para ela se não

acreditar em mim. Mas eu não faria isso. Ela estava superirritada hoje.

Mark está no canto, tirando uma pilha de caixas de uma cadeira do

mesmo jogo das outras que estamos usando. Ele continua falando, mas

Paige se inclina na minha direção.


— Você está bem? — pergunta.

Abro um sorriso.

— Com uma comida boa dessas? Estou ótimo.

— Ela pediu para eu te avisar — continua Mark, arrastando a cadeira

para perto da mesa — que vão fazer uma reunião na Primeira Igreja

Batista na, hã… quinta-feira, eu acho. Alguma coisa sobre demônios

correndo à solta, depois de toda aquela esquisitice que aconteceu em

novembro.

— Coitadinhos dos Holland — murmura a sra. Warner, colocando

um prato diante do filho. — Ainda não ouviram um pio sobre a Barbara.

Primeira Igreja Batista. Não é a igreja dos pais do Stan? Não é a

igreja que os fez tirar o Stan da escola porque…

— A mãe do Simon diz que é porque tem um culto satânico na

Hawkins High — conta Mark, com óbvia satisfação.

De repente o jantar já não está tão gostoso quanto há dois segundos,

porque sei muito bem qual o rumo dessa conversa. Engasgo com um

pedaço de batata.

— Deixa de ser idiota — diz Paige para o irmão. — Não tem culto

nenhum em Hawkins.

— Como você sabe? — replica Mark. — Você não mora mais aqui,

agora é uma surfista da Califórnia.

— Eu não sou…

— E mesmo que não tenham cultos — interrompe ele —, existe um

clube de Dungeons & Dragons. Um clube de verdade. Isso que Simon

estava contando… e que deixou a mãe dele irritada. Eles se reúnem toda

semana e tal.

Eu baixo meu garfo.

O sr. e a sra. Warner trocam olhares.

— Não sei se gosto disso — declara ela.

— Na escola? — pergunta o sr. Warner. — Dentro da escola?

Paige me lança um olhar carregado, mas não consigo retribuir.

— É só um clube — diz ela para os pais. — É um clube de nerds.

Eles se encontram, ficam jogando. Não é um ritual de sacrifício.

— Não estou falando isso — responde seu pai, também baixando o

garfo e recostando na cadeira de braços cruzados. — Só não sei se gosto

do fato de a escola concordar com esse tipo de… ideias.


Abro a boca para dizer que a coisa mais absurda que já aconteceu no

Hellfire Club foi quando Stan arremessou uma bola de elástico tão forte

para Jeff que quase fez o garoto bater as botas. Que o mais perto de

satanismo durante os encontros é a sequência de palavrões que Dougie

dispara quando não acerta um ataque.

Mas Paige intervém antes que eu possa organizar os pensamentos:

— É inofensivo, pai, juro pra você. Não é, Eddie?

Ela está tentando me apoiar. Não é segredo que várias músicas da

Corroded Coffin são cheias de referências a Dungeons & Dragons — a

primeira música nossa que a Paige ouviu ganhou o nome de um dos

feitiços. E o Hellfire Club foi uma grande parte da minha vida desde que

entrei na Hawkins High.

Mas aquele era o antigo Eddie. O garoto que não tinha futuro na

escola, que espalhava sua podridão para quem quer que chegasse perto.

E eu disse a mim mesmo que o deixaria no passado a partir de hoje.

— Não faço ideia — digo, dando de ombros. — Não conheço essas

coisas. Pode me passar o feijão?

Mais uma vez, Paige está olhando para mim, confusa. E, mais uma

vez, não consigo retribuir o olhar. Em vez disso, observo a sra. Warner

abrir um sorriso aliviado pela tensão ter sido quebrada e passar a

travessa para mim.

— Sirva-se do quanto quiser — oferece ela.

E eu obedeço. Talvez se eu comer o bastante, serei capaz de

preencher o buraco que sinto no estômago.

— Agora… — declara a sra. Warner — Alguém ainda tem espaço

para a sobremesa?
Capítulo Trinta e Um

Mal tenho tempo de buscar a van com Greg na manhã seguinte antes de

levar Paige para o aeroporto. Os longos quilômetros entre Hawkins e

Indianápolis passam num piscar de olhos, minutos correndo depressa

pelas rodas que estremecem bem menos desde que busquei a van na

oficina. Antes que eu perceba, já estou estacionando numa longa fila de

carros, e os aviões decolam e pousam no horizonte. Paige abre a porta

traseira e pega suas duas malas gigantes.

— Eu ligo quando chegar — diz ela pela janela. — E aqui… — Ela

deixa um pedaço de papel na minha mão. — É da minha casa em Los

Angeles. Nossa casa.

É um número de telefone, que no mesmo instante se grava a fogo no

meu cérebro. Nossa casa.

— Vou sentir saudade — acrescenta ela, e sua risada é meio contida.

— É idiota dizer isso?

— Logo estarei lá. — Mas isso não muda o fato de que… —

Também vou sentir saudade.

— Que bom.

Ela se enfia pela janela, e de repente estou envolto em seus cabelos

escuros. Paige me beija, e eu fecho os olhos, me esforçando para

memorizar essa sensação; os lábios dela nos meus, seus dedos

percorrendo minha bochecha.

Alguém buzina. Paige se afasta apenas alguns centímetros.

— Até logo — sussurra ela, no pouco espaço entre nós.

O beijo reverbera pelos próximos dias.

Termino de empacotar minhas coisas, entulhando tudo em duas

malas de mão. Afino minha guitarra e ensaio até meu pai dizer que vou

perder a voz antes mesmo de chegar à Califórnia. Arrumo a van,

tentando abrir espaço suficiente para nossas coisas. Repasso todos os

itens que estão na minha lista de tarefas. Tudo pronto.


Bem, quase tudo. Mas há uma ou duas coisas que não sei bem como

resolver…

Cheguei a pegar o telefone. Três vezes, na verdade. Mas congelei em

todas, encarando o maldito telefone e refletindo se seria mais difícil ter

essa conversa pessoalmente.

Desisti todas as vezes. Coloquei o telefone de volta no gancho e

procrastinei, principalmente porque não fazer essa ligação me dava mais

tempo… mais algumas horas, quem sabe mais um dia.

Um dia virou dois, que viraram quatro, que viraram “droga, eu vou

para Los Angeles amanhã de manhã”. Ou seja, se eu quiser realmente ter

essa conversa, é agora ou nunca.

Mesmo assim, continuo adiando. Sentado na van, parado entre o

trailer da Ronnie e o do tio Wayne, como um covarde.

Que se dane. O tempo está passando, e eu já gastei gasolina dirigindo

até aqui, então… Levanta esse traseiro, Júnior.

A porta de Ronnie chacoalha sob meus dedos, de forma curta e

ritmada. Bato duas vezes e então enfio as mãos nos bolsos do casaco,

olhando para o céu, para o chão, para qualquer coisa que não a porta.

Há um longo momento antes que alguém atenda, mais longo do que

eu jamais tive que esperar para que vovó Ecker ou Ronnie me

atendessem. Pensei que não houvesse ninguém em casa, mas o carro

surrado da vovó está estacionado na frente do trailer, vazando óleo. E,

prestando atenção, consigo ouvir alguém sussurrando lá dentro.

Por fim, a porta se abre. Com uma bandana amarela amarrada nos

cachos volumosos, vovó Ecker olha para mim.

— Sr. Munson — diz ela por trás da porta, suas palavras frias como

gelo.

— Oi, vovó.

Ela não fez nenhum movimento de abrir a porta de tela, então decido

não me mexer também. Continuo com as mãos nos bolsos.

— A Ronnie está?

Ela nem sequer piscou desde que abriu a porta.

— Hum… Não está, não.

É uma mentira deslavada. Dá para ver a mochila da Ronnie no chão

perto do sofá, e havia duas vozes sussurrando antes de vovó abrir a

porta.
— Vovó… — começo.

Mas ela balança a cabeça, e não tenho mais palavras.

— Ela não está aqui, Eddie. Não agora.

Não para você.

E a menos que eu saia entrando e passe pela vovó e sua colher de pau

para ver alguém que não quer me ver…

Murmuro alguma coisa educada que não dá para ouvir e saio. Passo

pela minha van no caminho até a segunda parada da Turnê de Despedida

Munson de 1984.

Abro a porta do trailer do Wayne. Como sempre, está destrancada.

Agora que acabei de estrear como criminoso, sinto que talvez deva

conversar com ele sobre isso. Levá-lo para uma loja e comprar uma

fechadura de trinco. Qualquer coisa. Mas já é tarde, o comércio vai

fechar em breve. E, como eu não vou estar aqui amanhã…

Sinto um nó na garganta, que fica mais apertado quando Wayne olha

para mim. Engulo em seco e entro.

— Oi.

— Oi, Eddie.

Ele larga a revista que estava folheando, e eu vejo uma foto de flores

na capa. A Revista do Jardineiro. Wayne sempre teve dedo verde.

— Você está bem? — pergunta ele.

— Estou. Só passei para dar um oi.

Ele assente, estoico como sempre, mas dá para ver um pequeno

sorriso satisfeito no meio da barba.

— Bem, eu já comi, mas tem comida no congelador se você estiver

com fome — diz ele.

— Não, hum…

Eu tusso, tentando desfazer aquele nó teimoso na garganta. Percebo

que o problema não era ter essa conversa por telefone — a verdade é que

eu não queria ter essa conversa de jeito nenhum.

— Eu queria… Hã…

Ele franze as sobrancelhas, preocupado.

— Eddie, aconteceu alguma coisa?

— Eu queria… — começo de novo, porque é melhor dizer isso de

uma vez. — Eu queria te agradecer. Por tudo que você já fez por mim.

— Me agradecer?
Sua expressão fica ainda mais preocupada.

— Por, você sabe… Cuidar de mim quando meu pai não estava por

perto. Se certificar de que eu não morresse de fome, ou que não ficasse

doente por só comer salgadinhos.

— Bem, imagina…

Ele me observa desconfiado, como se estivesse prestes a me obrigar a

contar o que está acontecendo. Mas não vai ser preciso.

— Falei que estava passando para dar um oi. Mas, na verdade, eu vim

dizer adeus.

— Vai viajar?

— Estou… de mudança.

— Vai embora de Hawkins?

— Isso.

É uma grande notícia. Ele afunda no sofá. A revista escorrega e cai,

mas ele nem tenta pegar de volta. Sua mandíbula está tensa, e dá para

ver que ele está sem palavras. Pigarreio.

— Vou para a Califórnia. Eu tenho um… um teste, na verdade. Numa

gravadora, na WR Records. Daqui a uma semana. É bem importante.

Mas Wayne fica apenas me olhando.

— Então… Eu só queria… te contar. Sabe, antes de ir embora.

— Califórnia…

— Aham.

— Como você vai para lá? — pergunta ele.

— Vou dirigindo, saio amanhã de manhã.

Vou com meu pai. A frase está na ponta da língua, mas eu não ouso

falar. Sabe-se lá que tipo de reação essa informação poderia causar. Mas

mesmo com minha tática de mentir por omissão, dá para ver algo mais

nos olhos do meu tio.

— Parabéns — diz ele.

— Ah, obrigado.

— É sério, parabéns — insiste Wayne.

Sinto que está sendo sincero.

— Você é talentoso — continua. — Sempre achei. Só não vê quem

não quer.

Fico surpreso. De tudo que eu esperava que acontecesse, não

imaginei essa reação.


Como fico em silêncio, Wayne continua:

— Mas Califórnia… É caro por lá.

Mais um comentário que não imaginei.

— Vou dar um jeito — retruco.

— Seu pai me falou que você largou a escola.

— É uma tradição da família.

Dou um sorriso digno da família Munson, convidando Wayne a se

juntar a mim, a rir de todos nós. Apenas uma família de gente ferrada,

nada além disso…

— Então você usou o tempo livre para fazer turnos extras no bar? —

pergunta ele, o olhar mais intenso. — Andou economizando?

— Como você disse, viver na Califórnia é caro. — Não é uma

resposta, mas pelo menos não é uma mentira. — Tenho dezoito anos.

Sou adulto, Wayne. Vou ficar bem.

— Então me prometa que não tenho com que me preocupar, e então

não vou ficar preocupado.

Eu quero. Tento concordar, dizer que está tudo bem. Mas o nó na

garganta segura minhas palavras, que morrem ali. Abro e fecho a boca

várias vezes, como um peixe sufocado. De repente, seu olhar fica mais

sério em questão de segundos.

O que foi que ele disse da última vez que estive neste trailer, ouvindo

seus conselhos? Você não pode me culpar por juntar os pontos.

— O que você fez? — pergunta ele.

Wayne se levanta com uma calma resignada e cruza os braços. Ouço

o eco de cada vez que ele fez a mesma pergunta — não para mim, mas

para o meu pai. Sei-lá-quantas-décadas atrás.

E agora ele está perguntando para o Júnior também. O que você fez?

— Eu me dei uma chance de me tornar algo melhor — respondo.

— Melhor do que o quê?

— Do que, do que… você sabe o quê.

— Não sei. Melhor do que o quê, Eddie? Melhor do que você?

Jogo as mãos para cima. Esta conversa não vai a lugar algum.

— Não deveria ter vindo aqui — declaro. — Só queria me despedir,

deixar tudo bem entre a gente. Mas se você quer mesmo ficar me

interrogando…
— Essa é uma escolha importante. Só quero que tenha certeza de que

está tomando a decisão pelas razões certas.

É muito parecido com o que Ronnie me disse. De repente, não

consigo mais ficar neste trailer.

— Deixa pra lá — falo, indo em direção à porta.

— Eddie…

— Talvez meu rosto esteja estampado na próxima revista que você

comprar.

— Tomara que sim — diz ele. E mais uma vez dá para ver que ele

está sendo sincero.

De alguma forma, isso me deixa ainda mais irritado. Abro a porta

com força o bastante para batê-la na parede.

— Espero que você tenha uma ótima vida — murmuro.

No caminho para casa, trinco os dentes e dirijo feito um louco. Se o

policial Moore me visse, pela primeira vez teria motivos para fazer

alguma coisa além de vasculhar minha van numa busca sem sentido.

Dirijo como se tentasse me livrar do estacionamento de trailers, para

deixar para trás todas as lembranças desconfortáveis que ele abriga.

Mas não funciona. Tudo ao longo da estrada aumenta minha

irritação, e quando paro diante de casa aperto o volante com tanta força

que chego a amassar o couro.

Então me prometa que não tenho com que me preocupar.

Ninguém pediu para ele se preocupar. Ninguém pediu para ele fazer

nada. Se quer ficar chateado, problema dele. Isso significa que vai se

sentir bem idiota quando eu assinar um contrato de três discos com

Davey Fitzroy.

Ainda estou tentando conter a raiva quando saio da van, tão irritado

que minha visão turva. Deve ser por isso que só percebo os dois sujeitos

que se materializam do nada na varanda quando eles surgem na minha

frente. E quando isso acontece… é tarde demais.

É Toby. CJ está ao lado como um demônio da paralisia do sono.

— E aí, Matty? Se importa se a gente entrar? — pergunta Toby.


Capítulo Trinta e Dois

Abro a boca, mas não sei se é para gritar, avisar meu pai ou pedir

socorro. De qualquer forma, não adianta, porque CJ me agarra pela

camisa. De repente, o pouco de voz que pensei que ainda tivesse some.

— Entra aí — rosna ele, sem esperar minha resposta.

Ele me empurra. Mais uma vez, sinto o cano de uma arma

pressionado contra mim. Subo os degraus da entrada e, depois de enfiar

a chave na fechadura, passo pela porta.

— Pai! — grito, como se isso fosse lhe dar tempo suficiente para

pular pela janela e fugir.

Desta vez, Toby e CJ não tentam me calar. Para eles, é suficiente que

eu saiba: eles estão no controle. E, não importa o que eu tente, nada vai

mudar.

A porta se fecha, e os dois mal olham para mim. Estão concentrados

na cozinha, onde meu pai se afasta da pia devagar.

Toby balança a cabeça, desapontado.

— Eu sabia que vocês estavam por trás disso.

— Posso ajudá-los, rapazes? — pergunta meu pai.

Ele enxuga as mãos num pano de prato, como se os dois homens de

cabeça raspada fossem apenas convidados inconvenientes. Mas sei que

esse gesto não quer dizer nada... vejo no seu rosto que meu pai está se

esforçando para mascarar um tremendo pavor.

— Pode — replica CJ. — Pode nos dizer onde está a maconha que

vocês roubaram.

— Acho que pegaram o cara errado — declara meu pai. — Estou

esquentando uma comidinha de ontem. Se quiserem, posso preparar

marmitas para a viagem.

— Não se faz de idiota, Jerome — ordena Toby, cerrando os punhos.

Meu pai parece não ter ouvido.

— Eddie, pega alguns pratos descartáveis no armário da sala…


Num piscar de olhos, CJ está do meu lado, me segurando pelo

colarinho de um jeito tão firme que ouço a costura ceder.

— Não, não — diz ele.

— O garoto fica — completa Toby. — Se nos contarem onde está a

maconha rápido, talvez a gente até deixe um de vocês vivo quando tudo

isso terminar.

Gostaria que essas palavras não me fizessem entrar num furacão de

pânico. Gostaria de ser como os heróis dos filmes de ação a que Ronnie

e eu sempre assistíamos — Snake Plissken, Han Solo, Conan, o

Bárbaro… Todos esses caras que não surtam nunca.

Mas não tem nada de útil passando pela minha cabeça agora. Não

quando sei que CJ está armado, quando vejo meu pai apavorado. Na

verdade, a única coisa que consigo pensar no momento é que esta casa é

pequena demais para isso. Sei, graças ao último microscópico neurônio

do meu cérebro, que estou histérico, mas isso não me impede de ficar

repassando o mesmo pensamento mil vezes sem parar. Esta casa é

pequena demais. Mesmo se fôssemos para a sala, ficaríamos

imprensados com as coisas do meu pai. Será que devemos ir lá para

fora? Como é possível negociar com esses caras do lado de uma pia

cheia de louça suja?

Meu pai levanta as mãos, alto o suficiente para mostrar que estão

vazias.

— Certo, o garoto fica — concorda ele. — Tudo bem. Só me faça o

favor de tirar as mãos dele.

CJ nem se mexe. Para não dizer que não fez nada, apertou ainda mais

o meu colarinho.

— Onde está o bagulho, Munson? — pergunta ele.

Munson.

Meu pai não olha para mim.

— Tenho boas e más notícias para vocês — diz ele.

Munson. Os caras sabem o sobrenome dele.

— Vou começar com as más. Meu velho sempre dizia que é melhor

assim, porque a gente sempre quer a sobremesa por último, né?

Se eles sabem o nome dele… é porque o conhecem.

— A má notícia é… não tem mais maconha.

Toby balança a cabeça.


— Resposta errada.

Talvez tenham procurado por ele, tipo, na lista telefônica antes de

virem.

Meu pai levanta as mãos um pouco mais e continua:

— Mas vocês ainda não me deixaram dar a boa notícia! Estão vendo?

É por isso que a gente deixa o doce pro final. Para tirar o gosto amargo

da boca.

Talvez tenham perguntado por aí. Talvez seja por isso que

descobriram o nosso sobrenome.

— Nós já tivemos o trabalho de despachá-la para vocês — continua

meu pai. — Então não precisam fazer todas aquelas negociações

arriscadas e encontros de madrugada.

CJ contorceu tanto a cara que poderia ter sido esculpida em mármore.

— Vocês receberam o dinheiro?

— Recebi… recebi, sim. A maior parte, pelo menos.

CJ praticamente rosna.

— Mais respostas erradas, Al.

Não posso continuar me enganando. Não aqui, nesta casa pequena,

com um homem que mais parece um bloco de cimento puxando o

colarinho da minha camisa. Ninguém aqui pesquisou sobre meu pai.

Ninguém aqui saiu perguntando nada para ninguém. CJ e Toby pararam

na minha porta porque sabiam quem estavam procurando. Porque…

— Você conhece esses caras — afirmo. Não é uma pergunta, e não

falo como se fosse.

Mas meu pai continua encarando Toby, e então percebo que ele está

me evitando de propósito. Porque, se trocarmos olhares, vou saber o que

está pensando. E essa é a última coisa no mundo que ele quer agora.

— Olha só… — diz meu pai, baixo e rápido, como se suas palavras

fossem apenas para Toby. — Não precisa ser assim. Que tal se eu te der

o dinheiro? Aí você diz para o Charlie que não conseguiu me achar.

Ficamos fora disso, todos saem ganhando e, melhor de tudo, nem

precisamos olhar na cara um do outro de novo.

— Espera, espera, espera… — Toby faz um gesto com a mão,

querendo afastar as palavras do meu pai como se fossem fumaça. —

Espera um segundo. Garoto…


CJ dá um puxão na minha camisa, e agora estou na porta da cozinha,

olhando diretamente para o meu pai, que diz:

— Deixa ele fora disso…

Mas Toby interrompe:

— Seu velho chamou você para esse trabalho e nem te disse por quê?

— Ele não tem nada a ver com… — começa meu pai.

Mas, se Al Munson vai me ignorar, eu farei o mesmo.

— Ele disse que estava devendo dinheiro — explico. — Que estavam

atrás dele.

— Tsc, tsc, tsc — diz Toby. — Bem, agora isso com certeza é

verdade. Deixa eu te contar um segredinho sobre o seu papai, garoto.

Cerca de… três meses atrás, foi isso?

— Três meses — confirma CJ.

— Al tinha isso armado. Ele não era um ex-presidiário azarado. Não

era um ladrão com dificuldades. Não era um homem bom se esforçando

num mundo injusto. Não importa a história que ele te contou, não era

nada disso. — Toby abre um sorrisinho vingativo. — Ele era o braço

direito de Charlie Greene. Ele era um de nós. Ou pelo menos até

desaparecer da face da Terra.

Não quero acreditar nisso, mas faz sentido demais para ser mentira.

Depressa, repasso as últimas semanas e tento encontrar falhas nesse

quebra-cabeça; o encaixe continua perfeito por mais que eu implore por

peças fora do lugar. A insistência do meu pai que fosse eu quem

mostrasse o rosto, mesmo ele sendo mais experiente. Tudo que ele sabia,

como o lugar exato onde o caminhão estaria e como entrar nele. Os

avisos de Reefer Rick sobre a dificuldade da operação.

— Por quê? — indago, porque essa é a única pergunta sem resposta,

a única pergunta que deixa espaço para uma explicação plausível.

Talvez meu pai tenha se desiludido trabalhando com essas pessoas.

Talvez houvesse algum segredo, alguma razão altruísta para ele ter me

envolvido nisso… Para ter mentido para mim…

— O que você acha? — retruca CJ.

Ele está parado atrás de mim, bloqueando o caminho para a porta.

Meu pai dá um passo à frente.

— Chega — diz.

O sorriso de Toby fica mais largo.


— Ele achou… — começa Toby.

— Chega — interrompe meu pai.

E então… o mundo começa a girar, assim como meus pensamentos,

porque CJ me jogou para o lado e eu bati na parede. Levo alguns

segundos para entender o que aconteceu. Recupero a consciência só

porque dois tiros foram disparados a pouca distância da minha cabeça, e

agora meus ouvidos estão zumbindo. Há dois buracos na parede na

altura do ombro do meu pai, e vejo que ele congelou no meio de uma

ação, os braços ainda estendidos, prontos para atacar Toby.

— Não é assim que as coisas vão funcionar — grita Toby, alto o

bastante para que eu possa ouvir mesmo com a audição abafada. —

Entendido?

Em silêncio, meu pai assente. Em seguida, finalmente olha para mim,

como se os tiros constatassem que estou aqui e que o próximo buraco de

bala pode ser em um de nós dois.

— Ele achou — retoma Toby — a parte dele pequena. Achou que se

daria melhor arrumando tudo sozinho. E achou que fosse conseguir isso

roubando da gente. Será que entendi direito?

Eu não deveria estar decepcionado. Não deveria mesmo. Não é como

se eu achasse que eu e meu pai tínhamos embarcado juntos numa nobre

missão — com certeza não éramos Sam e Frodo subindo a Montanha da

Perdição para salvar o mundo. O plano era entrar no caminhão de um

traficante, furtar parte da mercadoria e vender. Mas pensei… pensei que

estivesse ajudando meu pai a sair de uma enrascada. Achei que estivesse

fazendo uma coisa boa mesmo que indiretamente. Mas agora…

Agora entendo que foi tudo um golpe. Uma estratégia para conseguir

o que ele queria, usando quem encontrasse no caminho. Durante todo

esse tempo, ele não me viu como filho. Não fui nem mesmo um

comparsa. Eu nem sequer trabalhei com Al Munson. Ele apenas me

usou, assim como usa todo mundo que é idiota o suficiente para confiar

nele.

Tem que ser você, Eddie. Foi o que ele disse na primeira noite em que

deu as caras e voltou para minha vida de repente. Pensei que isso

significasse que ele queria especificamente que eu participasse do

trabalho. Mas agora entendo que eu era a única pessoa que tinha sobrado

no mundo, a única que era idiota o bastante para ajudá-lo.


— Cadê o dinheiro? — pergunta CJ, ainda segurando a arma.

Desorientado, observo que o cano da pistola está apontado para mim.

Dá para ver a derrota estampada na postura do meu pai, dos ombros

caídos ao tremer das pálpebras.

— Na sala. Num saco atrás do sofá.

Toby acena, e CJ desaparece, indo para a sala. Meu pai não diz nada

enquanto CJ procura o dinheiro, fazendo um barulho destruidor.

Também estou calado. Apenas ficamos na cozinha, nos encarando, e de

repente a casa parece bem maior do que antes. Talvez haja espaço

suficiente para um acordo, afinal.

— Está vendo? — pergunta Toby, gesticulando para nós dois. — Por

isso nunca trabalho com parentes. Dá problema demais.

— Eu ia te contar — diz meu pai para mim.

Eu bufo.

— Ah, é? Quando?

— Quando chegássemos à Califórnia.

Mentira. É mentira, e eu sei que é. Mesmo assim, ainda tem uma

partezinha ridícula dentro de mim que quer acreditar nele.

Mas eu a ignoro.

— Por quê? — pergunto.

— Por que na Califórnia? Ou…

— Por que você ia me contar? Por quê?

Cruzo os braços. Um olhar consternado surge no rosto do meu pai.

— Me diz — insisto. — Me diz só uma razão para você me contar

por que tinha mentido pra mim.

— Eu achei que… Eu ia…

— Você não ia nada — retruco, aumentando a força nos braços

cruzados, apertando minhas costelas, querendo tirar a dor do meu

coração. — Você nunca ia me contar. Você só ia continuar mentindo e

mentindo enquanto conseguisse o que quer.

Toby bufa.

— Agora ele te pegou, Al — diz ele.

Meu pai balança a cabeça.

— Não é bem assim…

— E você continua mentindo! — Dou uma risada. — Inacreditável.

Quer saber? Acho que você não disse uma só verdade desde que voltou.
Talvez nunca tenha sido sincero comigo, em toda a minha vida.

— Agora você que está mentindo — acusa ele.

Estico o pescoço.

— Como assim? — questiono.

— Eu disse que estava orgulhoso de você.

É golpe baixo, e esqueço de respirar por um instante. Antes de

conseguir me sentir confiante para responder com uma voz que não seja

estrangulada, CJ volta para a cozinha com o saco na mão.

— Achei.

— Bem… — diz meu pai, endireitando a postura assim que desvia o

olhar de mim. — Deve ter mais ou menos oito mil aí. Vai ser mais do

que suficiente para me cobrir com o Charlie. Ou para encher seus bolsos

e mudar de rumo. A escolha é de vocês. Agora façam o favor de sair da

minha casa.

— Com certeza — retruca CJ, sorrindo largo o bastante para revelar

seus dentes tortos.

É quando começo a sentir cheiro de fumaça.

— O que… — digo, e o restante da frase some em uma tosse.

Isso, mais do que a fumaça no ar, é o que faz meu pai juntar as peças.

Ele se vira para CJ e fica pálido.

— Seu psicopata…

— Só fizemos o justo — declara Toby. — Um pequeno acerto de

contas.

— Vocês já estão com o dinheiro!

— Mas você nos envergonhou, Munson — diz Toby. — Vocês nos

custaram respeito. Sabe quanto tempo vai levar para Charlie confiar na

gente de novo? Isso aqui não é nada.

Talvez meu pai tenha gritado alguma coisa, mas eu já estou passando

por CJ e correndo para a sala. Surpreso, percebo que CJ me deixou

escapar sem atirar em mim, e então me pergunto: afinal, que problema

eu seria para ele? A esta altura, é evidente que estou mais para um peão

ignorante do que para um mestre do crime.

CJ deixou a sala de cabeça para baixo. O suporte da TV está

tombado, e a TV de quinze polegadas está caída no carpete gasto, a tela,

virada para cima, com uma rachadura grande na diagonal. As coisas do


meu pai, empacotadas para a mudança, estavam empilhadas no sofá, que

foi tombado para trás e…

Incendiado.

Mal sinto o calor. A temperatura deve ter subido aos poucos enquanto

meu pai e eu discutíamos na cozinha. Mas estava me cozinhando vivo

como uma rã na água fervente.

Meu primeiro instinto é fazer alguma coisa para deter o fogo que já

está atingindo as paredes, se alastrando para o teto. Vejo as manchas

escuras crescerem e penso “minha casa, minha casa, minha casa”, como

um mantra. Se havia algo nesta sala que pudesse apagar as chamas, CJ

usou para alimentá-las.

Como os vinis da minha mãe.

Senti falta deles assim que entrei aqui. Transtornado, dei uma olhada

nos discos espalhados que CJ deve ter jogado no tapete antes de golpear

os móveis com toda a raiva. Agora é tudo o que vejo — os rostos de

Muddy Waters, Bob Dylan e Jimi Hendrix se partindo e derretendo nas

chamas, cada disco que minha mãe trouxe do Tennessee para Indiana,

cada música que ela ouvia comigo até tarde enquanto esperávamos meu

pai chegar em casa, cada lembrança…

Não, não, não…

Se eu conseguir atravessar a sala, talvez possa salvar alguma coisa,

talvez dê para apagar o fogo, talvez… talvez seja possível evitar tudo

isso…

Estou prestes a entrar na fumaça, mas alguém me segura pela jaqueta,

e cambaleio para trás. Um instante depois, alguma coisa no fundo do

sofá range e estala, então uma chuva de faíscas vem do estofado e se

espalha pelo cômodo, atingindo justamente o lugar onde eu estaria se

meu pai não tivesse me puxado.

— Me larga… — Tenho dificuldade para falar por causa da fumaça.

— Vai buscar água, faz alguma coisa…

Escuto outro estalo, e desta vez o barulho não para. É o isolamento

barato da parede, que cai todo de uma vez só, e uma onda de chamas

gigantesca varre as paredes num piscar de olhos.

— Temos que sair daqui — grita meu pai no meu ouvido.

Preciso admitir que ele tem razão. A casa não tem salvação, e o fogo

está começando a se alastrar pelo tapete até a cozinha.


— Eddie…

Mas não é a mão do meu pai que aperta meu ombro e me empurra

para a porta de entrada. É CJ. E, quando por fim desvio o olhar do

inferno flamejante que era minha casa, vejo que meu pai também foi

empurrado por Toby. Nós dois somos jogados para o lado de fora.

— Achei que tinham acabado — reclama meu pai, virado para trás,

tentando olhar para Toby. — Você já está com o dinheiro, já incendiou a

minha casa… Não é o suficiente?

Mas Toby fica em silêncio. Sua mandíbula está tensa, e ele parece

estressado. Fico sem saber por que até que meu pai e eu somos

empurrados mais uma vez.

Há uma viatura de polícia estacionada na diagonal do outro lado da

rua, as luzes vermelhas e azuis ainda piscando. Atrás do carro, agachado

e com a arma apontada para nós…

— Munson e Munson — diz o policial Moore. — Por que eu não

estou surpreso?
Capítulo Trinta e Três

— Boa noite, policial — diz meu pai, sorrindo como se isso pudesse

disfarçar o fato de que estamos sendo feitos de escudos humanos.

O policial não morde a isca. Ele estreita os olhos, tentando enxergar

Toby e CJ.

— Recebemos uma denúncia de tiros disparados aí dentro. Esses

caras são seus amigos?

A arma de CJ está nas minhas costas.

— Definitivamente não — resmungo.

— Ainda tem alguém na casa? — pergunta ele.

Balanço a cabeça.

— Não queremos problema — grita Toby, atrás do meu pai. — Se

afaste e nos deixe passar. Só assim todos vão sair dessa.

O policial Moore olha de mim para meu pai.

— Vão levar esses dois? — pergunta ele.

— Quer que a gente faça isso? — retruca Toby. — A cidade ficaria

melhor com uns Munson a menos, não acha?

Dá para ver que Moore está pensando. O filho da mãe realmente está

considerando deixar CJ e Toby nos levarem sabe-se lá para qual vala

eles cavaram para nós, em algum lugar nos limites da cidade.

— O reforço está a caminho — declara o policial, por fim.

Não é o tom fervoroso negando a proposta de Toby que eu preferia ter

ouvido, mas ao menos ele não está oferecendo nossa cabeça de bandeja.

— A propriedade vai estar cercada pela polícia em poucos minutos

— continua ele —, então se quiserem que as coisas saiam do seu jeito, é

melhor começarem a colaborar desde já. Abaixem as armas.

Pelo canto do olho, vejo Toby e CJ trocarem um olhar demorado.

Moore segura a pistola com mais firmeza.

— Abaixem as armas. Agora! — grita ele.

As janelas da casa explodem.


— Merda! — grita Moore.

Eu me jogo no chão de um jeito que fica entre um mergulho e uma

boneca de pano girando no ar. Estilhaços de vidro caem à minha volta.

Agora com certeza sinto o calor das chamas. O fogo vem em nossa

direção, devorando o ar fresco da noite, queimando o revestimento de

madeira das paredes externas.

— Ele se levantou — comenta Toby.

Mal posso ouvi-lo em meio ao rugir do fogo, mas fico arrepiado com

suas palavras. Com cuidado, levanto a cabeça, sentindo cacos de vidro

no meu cabelo e torcendo para não ver o que acho que estou prestes a

ver.

Moore está mesmo de pé, uma das mãos no teto da viatura e a outra

na cabeça. Chocado, ele observa a casa pegando fogo, a luz trêmula das

chamas realçando sua expressão atônita. E além disso, o mais

importante: ele está distraído.

— Atira! — ordena Toby.

Se eu mal estou ouvindo, Moore com certeza não consegue ouvir de

onde está, porque continua imóvel. Nem mesmo recuou. Estou prestes a

avisá-lo, a gritar para ele se abaixar, mas CJ aperta o ga-tilho e…

Não é a primeira vez que ouço uma arma ser disparada, nem mesmo

a primeira vez hoje. Mas é a primeira vez que vejo uma bala atingir

alguém. Ela cruza a janela aberta do carro e perfura o corpo de Moore.

Um líquido espirra, mas o sangue parece preto em meio ao luar e ao

fogo ardente. Moore gira, cambaleia e cai, e o grito dele soa mais como

se tivesse levado um soco de surpresa do que a dor terrível que deve

estar sentindo.

Não que isso tenha causado qualquer impacto nos visitantes

indesejados. Toby dá um tapinha do ombro de CJ.

— Vamos.

Uma poça de sangue se espalha pelo chão. Não consigo desviar os

olhos.

— Vocês vão largar ele aqui? — pergunto.

— Apenas agradeça por não ter sido o seu pai, garoto — diz CJ. —

Ou você.

O ruído que estou escutando é por causa do choque? Ou são sirenes

de polícia? Deve ser a segunda opção, porque CJ e Toby trocam olhares


sutis de preocupação.

— Vamos — repete Toby.

Ele e CJ disparam pela rua até um velho Mustang parado ao longe,

que só consigo ver por entre as sombras de uma árvore enorme.

O policial Moore não está se movendo. Com dificuldade, dou um

passo até ele…

— O que está fazendo? — sussurra meu pai, agarrando meu braço.

Puxo o braço e cambaleio até Moore, caindo de joelhos perto dele.

Há uma enorme mancha escura se formando do seu lado direito, e a

respiração dele está ficando irregular. Seus olhos estão abertos, virados

para o céu e as estrelas, e percebo que suas pupilas estão dilatadas.

Pânico? Choque? Vai saber. Esse não é o tipo de coisa que ensinam na

escola.

— Policial Moore? Ei, está me ouvindo?

Toco em seu ombro, me sentindo inútil.

— Eddie — chama meu pai. — Não seja idiota. Temos que dar o fora

daqui.

Moore solta um gemido.

— Munson?

— Ei… Ei… Vai ficar tudo bem…

— Alguém me deu um tiro? — pergunta ele.

— Eddie — sussurra meu pai.

Ele puxa meu braço forte o bastante para me fazer levantar. Ele não

desiste, não importa o quanto eu resista.

— Tem outros policiais chegando — lembra. — Entra na van.

— Não posso deixá-lo aqui.

— Pode, sim.

— Está falando sério? Ele levou um tiro por nossa causa…

— Ele levou um tiro porque CJ atirou nele, só isso. O que você acha

que vai acontecer se ainda estivermos aqui quando as viaturas

chegarem?

Olho para o meu pai, para o rosto sujo de fuligem e os olhos

arregalados. No canto dos lábios, vejo um traço daquele seu sorriso

típico.

— Vamos logo, garoto — chama ele, irradiando a mágica que envolve

os Munson. — Pense na sua namorada, no seu teste. Você quer ir para a


Califórnia, não quer?

Sinto o estômago revirar. Califórnia. Ele tem razão. Se eu ficar, não

vou ter como explicar a situação para Paige. Esse saco de bosta que foi

arremessado na minha direção, com direito a luzes vermelhas e azuis,

não tem justificativa.

Moore geme a meus pés.

Puxo meu braço de volta e ajoelho ao lado dele de novo. Só vi isso

em filmes, mas resolvo tentar e pressiono com as mãos a parte do corpo

de Moore que parece mais úmida. Ele solta um arquejo de dor.

O sorriso do meu pai se transforma numa linha reta e sinistra.

— Não achei que você fosse idiota a esse ponto.

— Fica aqui comigo — insisto. — Podemos explicar aos policiais,

vai ser mais fácil se nós dois ficarmos.

— Não é bem assim que a banda toca.

Ele já está recuando. Vejo algo brilhando em sua mão, e percebo que

são as chaves da van. Ele deve ter pegado quando me puxou para longe

de Moore. Eu nem reparei. Cordas de metal para guitarra, arames para

cadeados... Deve ser a mesma coisa para roubos. Se sabe fazer um, com

certeza consegue se dar bem em outro.

— Nada do que dissermos vai fazer diferença para eles — argumenta

meu pai.

— Então fica porque… porque eu preciso de você.

Tento dar um sorriso digno dos Munson também, mas alguma coisa

faz meus olhos arderem, então o efeito não é o mesmo. Digo a mim

mesmo que é apenas a fumaça do incêndio na casa.

— Seria péssimo se você me abandonasse de novo logo agora —

continuo. — Depois de a gente ter feito todos aqueles planos.

A luz das chamas ilumina o rosto do meu pai, fazendo com que ele

pareça uma estátua de mármore. Ele me observa por um longo tempo, e

as sirenes estão cada vez mais altas. Moore se contorce e pragueja.

— É você quem está mudando os planos, Eddie — diz meu pai, por

fim. — E eu não concordo com esse novo plano.

Ele assente, decidido. Balança as chaves e as segura na mão outra

vez.

— Vou deixar a van nos arredores de Hawkins. Boa sorte, garoto.

— Os Munson não esperam pela sorte.


— Olha… Acho que você vai precisar.

Em seguida, tudo o que vejo são suas costas, se afastando… As luzes

traseiras da minha van, se afastando… Meu pai, se afastando. E, assim

como em todas as vezes em que ele saiu da minha vida, sou deixado

para trás e vou ter que catar os pequenos cacos que restaram.
Capítulo Trinta e quatro

Deveria estar surpreso por ter levado dezoito anos para acabar preso pela

primeira vez. Isso com certeza choca todo mundo. Porém, encarando a

tranca da cela enquanto ouço o barulho dos policiais trabalhando na

delegacia, só consigo me sentir anestesiado.

“Policial atingido…”

“Isso mesmo, na casa dos Munson…”

“Ambulância a caminho…”

“Vamos precisar dos bombeiros no local…”

O caos se instaurou assim que duas viaturas pararam na frente do

jardim. Não sei quantos policiais estavam por lá — poderia ser qualquer

número entre dois e vinte, pelo que consegui raciocinar. As únicas

coisas que passavam pela minha cabeça era que eu precisava continuar

pressionando a barriga do policial Moore e a lembrança de meu pai se

afastando.

Foram necessários dois policiais para me tirarem de perto de Moore,

cada um me segurando por um braço.

“Ele vai ficar bem?”, perguntei, meio atordoado, um pouco fora de

mim. “Acho que acertaram na altura do estômago dele… Será que ele

vai ficar…”

“Temos um suspeito”, rosnou um dos policiais para um walkie-talkie

pendurado no ombro. “É o Munson mais novo. Vamos levá-lo.”

Não reclamei quando me algemaram nem quando me jogaram na

traseira da viatura. Afinal, por que reclamaria? Eu sabia que isso ia

acontecer. Meu pai sabia que isso ia acontecer. Mas eu decidi ficar

mesmo assim, então teria que arcar com as consequências.

Não pude lavar as mãos antes de me deixarem aqui. O sangue do

policial Moore ainda está debaixo das minhas unhas e na minha calça

jeans. E como Hawkins não é grande o bastante para ter mais de uma
cela na delegacia, não há pia ou vaso sanitário na cela. Os bêbados que

acabam parando aqui precisam ficar na sujeira que eles mesmos fazem.

Esfrego os olhos. Que se dane o sangue encrustado, tudo o que quero

é arrancar meu rosto fora. Se um novo rosto nascer no lugar, talvez isso

faça de mim uma pessoa diferente. Uma pessoa que não seja

completamente ferrada.

— Oi, Júnior.

O delegado Hopper surge diante do meu olhar vazio. Ele é grande e

chega quase a bloquear a luz. Impassível, ele me observa do outro lado

das grades. Pela primeira vez, não sinto a necessidade de corrigi-lo por

me chamar assim.

— Está te incomodando? — pergunta ele, fazendo um gesto com a

cabeça em direção às luzes da cela.

A maioria das lâmpadas está queimada ou bem fraca.

— Não — respondo, num tom esganiçado por causa da fumaça que

inalei.

Só agora percebo o quanto estou com sede.

Ele assente. Um segundo depois, se aproxima das barras. Levo um

instante para entender por quê, meus olhos lutando para enxergar em

meio à luz fraca e ao choque. Ele está me oferecendo um copo

descartável com água.

— Achei que fosse precisar — diz ele. — Pega, meu braço está

cansando.

Vou até ele e pego o copo. Um gole desce pela minha garganta seca e

parece a melhor bebida de todas. Viro o copo antes de lembrar que

gostaria de guardar um pouco para limpar as mãos, e o delegado me

observa beber feito um labrador desidratado. Seco a boca na manga.

Talvez eu possa resgatar uma minúscula parte da minha dignidade se

ficar encarando-o. Talvez pareça desafiador.

Talvez não, porque dá para ver uma mudança na expressão de

Hopper. Parece quase pena.

— Moore foi encaminhado para a cirurgia — diz ele.

— Como ele está?

— Os médicos disseram que a bala, por milagre, não atingiu nenhum

órgão vital. A perda de sangue não foi muito grave. Ele vai sair do

hospital mancando e com uma cicatriz, nada além disso. Ele está bem,
garoto. — Hopper faz uma pausa, como se buscasse pelas próximas

palavras. — Ele contou que você tentou ajudar.

Eu me remexo e encolho os ombros.

Talvez falar qualquer coisa vá apenas me enfiar em um buraco ainda

mais fundo.

— Ele também contou que tinha outra pessoa — continua ele —,

alguém que não ficou no local. Um homem que se parecia muito com

você.

Encolho os ombros outra vez. Nisso com certeza eu não vou me

meter.

— Conheci seu pai na escola — revela Hopper, como se uma coisa

não tivesse nada a ver com a outra, mas ambos sabemos a verdade. —

Ele era alguns anos mais novo, mas eu o conheci. Todo mundo o

conhecia. Se acontecesse uma confusão, Al Munson era sempre a pessoa

mais distante dela. — Ele encosta o ombro na parede e cruza os braços.

— Engraçado que, se prestasse atenção, qualquer um ia perceber que era

ele quem começava a confusão.

Não preciso de outro lembrete de como fui idiota por confiar no meu

pai, então largo o copo vazio no banco.

— Já posso ir embora?

A pergunta parece sem sentido. Sei a resposta antes de ver Hopper

torcer os lábios. Sei antes mesmo de perguntar.

— Não sem pagar fiança — diz ele. — Sua casa foi incendiada,

Júnior. Alguém ateou fogo na sua casa. Trata-se de um incêndio

criminoso, e até que a gente investigue isso…

Por um segundo, minha mente fica enevoada, e de repente surgem

explosões de raiva. Por que eu incendiaria minha própria casa? Você se

esqueceu dos dois caras que atiraram em um dos seus policiais? Não

está óbvio quem é a vítima?

Mas, tão depressa quanto se dissipa, a névoa volta. Tudo o que posso

fazer é escutar.

— Não estamos fazendo acusações, não até descobrirmos o que

aconteceu — explica ele, me observando de perto, do outro lado das

grades. — O que significa que vamos fazer algumas perguntas. E é do

seu interesse permanecer aqui para respondê-las. Não posso obrigar

você a ficar em Hawkins, não vou nem tentar. Mas devo dizer que, se
sumir, vai criar muitos problemas para si mesmo. Só vai fazer o que seu

pai teria feito. — O que ele fez. — E você não está preso. Por enquanto.

— Ele se endireita e suspira. — Obviamente, você tem a vida toda para

provar que estou errado.

Apenas o encaro com um olhar vazio. É como se quisessem tornar o

mundo mais aceitável, tornar a mim mesmo mais aceitável.

— Tenho direito a um telefonema? — pergunto.

Vejo pena em seus olhos. Hopper pega as chaves no cinto.

— Aham — responde. — Vem comigo.

Talvez Hopper realmente tenha pena de mim, porque ele não me leva

para a sala de ligações da delegacia, mas por um longo corredor, e eu

aperto os olhos por causa da luz que entra pelas janelas. Em algum

momento entre o incêndio na minha casa e agora, o sol nasceu e um

novo e terrível dia começou.

Hopper para diante de uma porta. No vidro fosco, estão os dizeres

delegado de polícia. Ele está me deixando usar a própria sala.

— Não tente roubar nada, eu vou perceber — diz ele, abrindo a porta

para mim.

— Sim, senhor.

— Você tem quinze minutos, e aí eu puxo o fio.

— Sim, senhor.

— A lista telefônica está na mesa. O número do Wayne está nela, eu

conferi.

Apenas assinto. Ele observa meu rosto, procurando… alguma coisa.

Não me importo com o que ele encontra.

— Certo — fala ele, me dando espaço.

Vou até a mesa. Não preciso olhar para saber que ele ainda está ali,

com a porta aberta. De olho em mim. Por que não estaria, afinal?

Ninguém em sã consciência deixaria um criminoso sem supervisão.

Ainda de costas para ele, pego o telefone e disco. Não preciso da

lista. Sei de cor.

— Alô?

A voz de Paige está rouca de sono, e eu acrescento mais um item na

lista de merdas que já fiz. Em Los Angeles são três horas mais cedo,

então está de madrugada. Provavelmente eu a acordei.

— Paige, oi… É o Eddie.


— Eddie?

Ouço um chiado, então ela deve estar sentando na cama. Nunca vi a

casa dela, mas estou imaginando agora — aberta e arejada. Janelas

grandes, com os primeiros raios dourados do sol da Califórnia entrando.

O cabelo escuro de Paige, bagunçado em torno do seu lindo rosto cheio

de sardas. Uma laranjeira do lado de fora, no jardim. Um paraíso.

— Você já está na estrada? Que horas são?

— Não, eu…

— Minha nossa, são quatro da manhã. Por que está me ligando essa

hora, seu psicopata? — Ela ri com o insulto. — Está animado para me

ver? Não faz nem uma semana.

Engulo em seco. Isso vai doer.

— Eu sei. Escuta, Paige. Preciso te dizer uma coisa.

— Você está bem? O que houve? — pergunta ela.

A risada já foi embora, desapareceu completamente. Por minha

culpa.

— Estou bem. É que… eu não vou fazer o teste.

O silêncio é pesado. Fica sobre o meu peito, me sufocando.

— Se explique, por favor — diz ela, enfim, em tom neutro.

— Não posso ir para a Califórnia. Não agora.

O que Hopper disse apenas confirmou o que eu já tinha percebido ao

ver meu pai se afastar do corpo ensanguentado do policial Moore na

frente da nossa casa incendiada. Quando Toby e CJ apareceram na nossa

porta, trouxeram Júnior com eles. Não havia como escapar dessa sombra

agora, nem mesmo na Costa Oeste. Se eu tivesse fugido com meu pai,

nunca teria sido capaz de parar. Teria que passar o resto da vida me

esquivando da lei como meu pai faz. Como todo mundo nesta cidade já

pensa que eu faço.

— Está falando sério? — indaga Paige. — Olha, essa é uma piada de

mau gos…

— Não é uma piada.

— Caramba, Eddie!

Estremeço, me afastando do telefone. Atrás de mim, ouço Hopper

pigarrear, desconfortável. Mesmo a distância, ainda dá para ouvir a voz

de Paige.
— Não dá para simplesmente remarcar esse tipo de coisa. Você sabe

o quanto isso é importante!

— Eu sei — tento dizer, mas ela explode logo em seguida.

— É a sua grande chance. Você quis isso.

— Eu sei — repito.

— Essa era a minha chance.

Ah, minha nossa… Ela está chorando?

— Eu me arrisquei para conseguir esse teste para você — continua

Paige. — Isso faria com que conseguíssemos juntos. Você e eu. Uma

dupla, juntos nisso.

— Eu sei.

É tudo que consigo dizer, como um disco arranhado idiota.

— Então onde você está? O que é mais importante do que vir para

Los Angeles?

Já dá para perceber. O que ela pensa sobre mim… está mudando.

Mesmo que eu tivesse a melhor desculpa do mundo, agora sou o cara

que estragou tudo. E daqui pra frente… só vai piorar.

Trinco os dentes.

— Estou na delegacia — revelo.

Mais um momento de silêncio do outro lado da linha.

— O que você fez? — pergunta ela.

Aí está. Ela não perguntou “O que aconteceu?” ou “Você está bem?”.

Só quis saber o que eu fiz.

— Importa?

— Claro que importa — rebate ela.

— Importa porque não foi esta a história que você vendeu para Davey

Fitzroy.

— Não é is…

Mas eu ainda não acabei, então a interrompo:

— Atendente de bar vira herói do rock. Não tem espaço para

nenhuma imperfeição, né? Está dizendo que ninguém da WR nunca foi

preso?

— Não seja babaca — diz ela.

Mas é tarde demais. Já estou sendo babaca. Venho sendo babaca esse

tempo todo. Só fui a última pessoa em Hawkins a aceitar isso.


— Não. Obviamente vocês só aceitam músicos delinquentes depois

que eles começam a render grana para vocês.

— Vai se ferrar.

Em seguida, escuto apenas o som do sinal de discagem. Olho para o

telefone na minha mão esperando que, em algum lugar na Califórnia

ensolarada, Paige consiga me entender.

— Terminou? — pergunta Hopper.

Droga. Esqueci que ele estava aqui ouvindo todo esse desastre.

— Sim — digo, batendo o telefone de volta no gancho. — Terminei.


Capítulo Trinta e Cinco

Não consigo dormir. Nem mesmo cochilar. Apenas me remexo e reviro

no banco, contando as rachaduras no teto e tentando não tocar nas

feridas que o “vai se ferrar” da Paige deixou na minha alma.

Não tenho ideia de quanto tempo passo odiando a mim mesmo. Por

alguma razão, não é prioridade dos policiais colocar um relógio na cela.

Mas, depois de um longo tempo, a porta se abre de novo. Eu me levanto.

Desta vez não é Hopper. Da porta aberta, outro policial franze a testa.

É o Powell, eu acho. Quase certeza de que ele já prendeu meu pai pelo

menos uma vez. Parabéns para ele, colecionando todos os Munson.

— Já pode ir — diz ele.

Sem dúvida, essa é a última coisa que eu esperava ouvir, então fico

paralisado, encarando-o. Ele faz uma careta e mexe a boca, o bigode se

movendo.

— Você é surdo, garoto? Cai fora daqui.

— Mas…

De alguma forma, meu primeiro impulso é reclamar. Eu mereço estar

aqui, não é? Estraguei tudo. E pessoas que fazem merda vão para a

prisão. Eu pertenço a este lugar.

Volto para a realidade e fico de pé.

— Obrigado — sussurro.

Saio antes que ele mude de ideia e resolva me prender de novo.

Quando piso no corredor, percebo o quanto estou ferrado. Minha casa

virou cinzas, meu pai está sabe-se lá onde. Não tenho dinheiro, não

tenho trabalho, não tenho para onde ir. Talvez dê para morar na minha

van por alguns meses, mas primeiro preciso descobrir onde meu pai a

largou…

— Oi.

Tio Wayne está de pé na delegacia. Segurando o boné, como se

estivesse na igreja ou algo assim, encostado na parede tentando ficar o


mais afastado possível da movimentação dos policiais.

— Oi — digo.

O que mais tenho para dizer?

Pelo jeito nada, porque Wayne se vira e começa a ir para a porta. Eu

o acompanho com o olhar, confuso. Ele se vira para mim.

— Você vem ou fica? — pergunta ele.

Eu saio da delegacia atrás dele.

A picape do meu tio está nas últimas há mais de dez anos. Wayne sai

do centro de Hawkins, e tudo que escuto são os tinidos e estalos do

veículo. Apoio a cabeça na janela e olho para a saída de ventilação no

painel. Não quero arriscar olhar para fora, porque isso pode significar ter

que fazer contato visual com algum fofoqueiro da vizinhança. Quantas

pessoas me viram sendo levado para a delegacia ontem à noite? Quantas

pessoas me viram sair de lá?

É só quando saímos de Pine que percebo para onde Wayne está me

levando — para o estacionamento de trailers. Franzo a testa e me viro no

assento, olhando para a caçamba. Em parte cobertas por uma lona, vejo

várias sacolas. A manga de flanela chamuscada pendendo de uma delas

indica que estão cheias de roupas. Minhas roupas.

— Peguei o que deu — explica Wayne.

Ele permanece com o olhar na estrada.

— Você achou… — Quase não quero perguntar, mas… — Você

achou algum dos vinis da mamãe?

Wayne morde o lábio.

— O fogo tomou toda a frente da casa. Cozinha, sala. Não sobrou…

nada.

Não sobrou nada. Todas as músicas da minha mãe, que eram suas

passagens de avião, seu escape, não existem mais. Respiro fundo, e o ar

é como uma lâmina cortando meus pulmões. De qualquer forma, me

mantenho forte e tento evitar a ardência nos olhos.

— Meu pai estava dormindo na sala — comento. — Era onde

estavam as coisas dele.

Wayne balança a cabeça.

— Al vai ficar bem. Ele sempre fica.

— Você teve notícia dele?

É
Wayne me olha de soslaio. É um olhar triste, mas não de pena. Eu me

endireito.

— Não.

Assinto. Não é surpreendente, mas magoa mesmo assim; uma dor

quase física. Wayne assente, e tenho a impressão de que ele também se

sente assim. Uma mágoa pelo irmão, uma dor mais antiga que a minha.

Ele estaciona perto do trailer e desliga o carro. Momentos depois, eu

saio devagar, olhando em volta como se fosse um astronauta em Marte

ou coisa parecida. Já estive aqui inúmeras vezes, mas agora, de alguma

forma, a sensação é diferente.

Wayne fecha a porta da picape com um estrondo. Ele dá um passo

para trás, e por um segundo encara a lona na caçamba. Meu tio

comprime a boca e, depois de um instante, me olha, um tanto inseguro.

— Não estou dizendo que você tem que ficar aqui — começa ele. —

Não quero que pense que estou… te forçando a fazer isso. Mas… — Ele

hesita, e volta a abrir a boca, agora em silêncio. — Droga, Eddie. Você

sabe o que estou tentando dizer.

Sei. Mas ao mesmo tempo não faço ideia.

— Você ainda quer que eu fique com você? — pergunto. — Você

acabou de pagar a fiança para me tirar da cadeia.

Ele encosta na picape e cruza os braços. Encolhe os ombros de uma

maneira cansada, e percebo que ele acabou de chegar do trabalho, do

turno da noite. Deve ter ido até a delegacia direto da fábrica.

— O delegado me contou o que aconteceu. Ele disse que você tentou

ajudar um dos policiais.

— Sim, mas ele foi ferido por minha causa.

— Ele foi ferido porque Al é idiota demais para saber quando seu

plano genial está prestes a se tornar uma ideiazinha estúpida de novo.

— Ninguém liga — retruco, alto demais para a manhã silenciosa,

para o canto dos pássaros e o farfalhar do vento.

Mas nada disso importa agora, porque o choque esmagador da noite

passada começou a se dissipar, e estou sentindo tudo o que aconteceu.

Os sorrisos convencidos dos policiais quando me levaram para a viatura.

Meu pai de costas, se afastando na escuridão, fugindo do problema que

ele mesmo criou. O sangue do policial nas minhas mãos — minha


nossa, o sangue dele ainda está nas minhas unhas; ainda não consegui

me limpar.

O rosto de Ronnie se endurecendo feito pedra quando criei um

abismo na nossa amizade.

A voz de Paige logo antes de desligar na minha cara. Instantes antes

de aquele sonho ser incinerado, assim como a minha casa. Assim como

a minha vida toda.

— Não importa de quem é a culpa — grito. — O que importa é que

eu estava lá. É tudo que precisam saber: Eddie Munson estava lá. Mas é

óbvio que estava! Ele é o fracassado de Hawkins. Eu poderia ter puxado

o gatilho ou ter distribuído algodão-doce para a vizinhança, não faz

diferença. De uma forma ou de outra, para todo mundo nessa droga de

cidade, eu sou o culpado.

Calmo, Wayne apenas me observa, deixando que eu faça um

escândalo, o que só torna tudo ainda pior.

— Eu tentei. Tentei muito. Eu me esforcei para fazer com que me

enxergassem, para que vissem meu valor. Mas, não importa o que eu

faça, eu sempre termino aqui. O maior inimigo da cidade, um zero à

esquerda. É impossível decepcionar as pessoas, porque todo mundo já

espera pelos meus erros. E elas estão certas. Eu estrago todas as chances

que tenho. E no fim sou igualzinho ao meu pai. Na verdade, sou pior do

que ele. Eu sou o Júnior.

— Você não é o Júnior — diz Wayne, baixinho.

Preciso calar a boca para ouvi-lo, e talvez esse seja o objetivo dele.

— Al não te deu o nome dele — continua meu tio. — Talvez tenha

sido a única decisão inteligente que ele já tomou.

Sinto o peito apertar de uma só vez. Se eu tentar falar qualquer coisa,

ou mesmo respirar, vai ser um estrago, então apenas trinco os dentes.

— Escuta bem o que eu vou dizer, Eddie, porque estou tentando te

fazer entender isso já faz tempo. Al Munson é um fracassado, e eu não

vou discutir isso. É por isso que ele não ficou para limpar a bagunça que

ele mesmo fez. Por isso que ele nunca fica. Mas você, não, Eddie. Você

está aqui. Você fez a coisa certa. Isso não é coisa de fracassado.

— Mas todo mundo ainda pensa que eu sou…

— Eles que se danem! — É o mais alto que já ouvi Wayne falar. —

Dá para passar a vida toda se lascando por causa do que as pessoas


acham que você deveria ser. Todo mundo sempre vai querer taxar as

pessoas de anjo ou demônio. Herói ou vilão. Perverso ou santinho. Mas

a gente não foi feito para caber nessas caixinhas, não até que a gente

esteja morto e enterrado. Só você sabe quem é. Então para de tentar se

encaixar nessas definições e se permita ser você mesmo.

— Não é assim tão fácil.

— E você acha que eu não sei? — Wayne bufa, tirando a lona da

traseira da picape. — Eu estou aqui há muito mais tempo que você,

enfrentando essa mesma questão. Mas o que posso te dizer é que…

mesmo sendo difícil, vale a pena. Aqui.

Ele tira da picape um objeto grande, embrulhado nos meus lençóis

velhos e queimados, e me entrega. Desembrulho com dificuldade, até

que me vejo diante da minha guitarra reluzente.

Aquele aperto no peito subiu para a garganta.

— Pensei que ela tivesse sido destruída — comento.

— O fogo não pegou nela. Achei que você ia querer ficar com a

guitarra.

— Obrigado — sussurro.

Os nós dos meus dedos ficam brancos em volta do braço da guitarra.

Acho que nunca mais vou me separar dela.

— Vou fazer um café — diz Wayne, pegando um saco cheio de

roupas. — Você quer?

Tudo o que ele disse ainda está girando na minha mente,

ziguezagueando por cada canto do meu cérebro. Não sei o que fazer com

isso nem se algum dia vou saber. Mas, por enquanto…

— Sim — respondo, indo até a picape para pegar outro saco.

Ele assente, e vejo certo alívio em seu rosto.

— Ah… — diz ele, quando começamos a entrar no trailer. — Olha,

você estava errado sobre mais uma coisa.

— Sobre o quê?

— Não paguei sua fiança — revela ele. — Acha que eu tenho

dinheiro para isso? O delegado me disse que já estava paga quando eu

cheguei lá.

Franzo as sobrancelhas, sem entender.

— Então quem pagou?


— Foi uma garota — conta Wayne. — Transferiu o dinheiro direto da

Califórnia.

O que você fez?, perguntou Paige. E claro que importa.

Com certeza importa, ainda mais quando é preciso saber o valor para

cobrir a fiança.

— Parece que nem todo mundo acha que você é culpado — observa

Wayne, abrindo a porta da frente. — Talvez ainda haja esperança para o

sobrenome Munson.
Capítulo Trinta e Seis

Morar no trailer é esquisito e fácil ao mesmo tempo. Não que Wayne

seja rigoroso — desde que eu trouxe minhas coisas para cá, ele não

impôs nenhuma regra de convivência. Mas ter alguém por perto o tempo

todo é estranho. Como eu morava sozinho, me acostumei com o silêncio,

a poder fazer o que quisesse a hora que quisesse. E não era muito

diferente quando meu pai estava. Estou começando a perceber que Al

Munson nunca me viu como filho. Ele me via mais como colega. E não

é necessário tomar conta dos colegas.

Por outro lado, é evidente que Wayne sente algum tipo de

responsabilidade em relação a mim. Nos primeiros dias depois da

mudança, ele teve até o cuidado de abastecer a geladeira com legumes e

verduras. Mas desistiu disso bem rápido, ainda mais depois que as

primeiras cenouras murcharam, intocadas. Ainda estou surpreso de ter

visto folhas verdes na geladeira.

Passei a primeira semana meio que… sem rumo. Estava acostumado

a ter várias tarefas durante o dia — escola, trabalho, Hellfire Club e

ensaio com a Corroded Coffin. Mas agora não tenho nada para fazer.

O delegado Hopper veio aqui duas vezes, uma com o policial Powell

e outra sozinho. Ele balançou as chaves da minha van e me falou que a

tinha encontrado atrás de um outdoor nos limites da cidade. Respondi às

perguntas feito um robô, declamando as respostas como se estivesse a

quilômetros de distância, até Hopper dar um aperto de mãos em Wayne

com firmeza, me cumprimentar com um aceno de cabeça misterioso e

sair.

Passo a maior parte do tempo no trailer tocando guitarra e folheando

os livros da trilogia Gormenghast, que Wayne salvou da minha antiga

casa. Mas a claustrofobia é insuportável, e sinto como se as paredes

estivessem se fechando. Parece que todo mundo consegue dormir, menos

eu. Vago pelo trailer de madrugada, olhando o céu pelas janelas.


Os embalos de sábado à noite, mencionou Paige, apontando para as

estrelas. Tento afastar sua voz da minha mente. Ela não retornou nenhum

dos meus telefonemas, e não dá para insistir sem ultrapassar os limites

do Reino da Falta de Noção. Se quiser falar comigo, ela sabe onde me

encontrar.

É em uma dessas noites insones que decido fazer alguma coisa. Tive

uma noite produtiva deitado de barriga para cima no chão do quarto,

tentando contar um milhão de trás para a frente quando escuto a porta

do trailer se abrir. Wayne entra, e um momento depois ouço o barulho

da cadeira da cozinha em que ele se acomoda. O silêncio que se segue

só é quebrado por um suspiro profundo.

Eu me viro e vou engatinhando em direção à fresta da porta.

Espiando por ali, vejo meu tio debruçado na mesa. Há alguma coisa

entre seus dedos — um papel. Na luz do amanhecer, leio as palavras

pagamento em atraso impressas em vermelho no topo.

Fico deitado no chão, descansando o queixo nas mãos. Wayne me

acolheu. É o único que está do meu lado. Não posso ficar aqui perdendo

tempo enquanto ele vai à falência. E, mesmo que ninguém nesta cidade

idiota vá me contratar, conheço alguém que vai.

Rick atende a porta à primeira batida. Ele está de roupão, segurando

uma caneca com algum líquido quente que exala vapor em seu rosto.

Rick sorri quando me vê, o que me deixa confuso.

— Munson Júnior! — exclama, alto o suficiente para espantar os

patos no lago a distância.

— Pode me chamar só de Eddie mesmo — digo. — Você tem um

minuto?

— Sim, sim, com certeza. — Ele dá passagem. — Quer um chá? É

chá preto Darjeeling.

Aceito. Então me apoio no balcão da cozinha e Rick ferve a água

numa panela e depois a despeja numa caneca. Não está completamente

limpa, mas quem tem tempo para se preocupar com uma besteira dessas?

— O que te traz aqui? Ouvi dizer que você saiu da cidade com seu

pai.

Percebo que ele está usando pantufas de coelhinho, mas um deles

perdeu a orelha.

É
— Não, não — digo. — Continuo em Hawkins. É por isso que estou

aqui, na verdade.

— Precisa de um lugar para ficar?

Fico surpreso.

Parece que ele está sendo sincero.

— Preciso de… Bem, você disse para te procurar. Se eu precisasse de

dinheiro.

— Ah, sim, sim.

Ele assente e abre o armário. O móvel está um caos de potes e

panelas jogados, mas Rick parece saber onde procurar. Ele puxa uma

pilha de utensílios de cozinha, tipo escorredores e peneiras.

— Se quiser, você pode começar hoje — declara.

— Como funciona?

— Ah, é fácil, cara. Para resumir, eu consigo maconha e outras coisas

e trago para cá. Então você compra de mim o que achar que consegue

distribuir, e daí pode vender pelo preço que quiser. Não fica me devendo

nada, todo o dinheiro que fizer é seu.

— Eu compro de você, então?

— Bem, sim. Isso aqui não é uma pizzaria delivery. Não vou te pagar

para você ficar circulando com maconha pela cidade.

Rick levanta a cabeça, e vejo seus olhos vermelhos. Talvez ele tenha

desconfiado que estou duro, porque dá uma risadinha.

— Os primeiros trinta gramas são por minha conta, beleza?

Ele separa os últimos utensílios e pega um saquinho de plástico no

meio. Rick balança o saquinho para mim, e eu o pego.

— Você pode me pagar depois que vender — completa. — Vamos

fechar em trinta dólares? E depois a gente conversa sobre expandir os

negócios.

Vejo algo no canto do balcão, mais um daqueles frascos azuis cheios

de comprimidos com que meu pai ficou brincando quando vim aqui pela

primeira vez.

— Expandir tipo…

Rick percebe que chamou minha atenção e solta uma risada.

— Com certeza, cara — diz ele. — Esses têm muita saída também.

Muita gente nesta cidade gosta de ter esses camaradas por perto.
Mais uma pequena peça do quebra-cabeça se encaixa, ainda que eu

não saiba o que fazer com ela. Mas até que eu descubra…

Estou dentro. Trinta dólares por trinta gramas é um negócio e tanto, e

nós dois sabemos disso. Guardo a mercadoria.

— É um prazer fazer negócio contigo, Eddie — fala Rick.

Sorrio.

— Prazer é o próprio negócio, cara.

— Olha só! Fico feliz de ter você na equipe.

Rick faz um brinde com a caneca de chá.

O sol parece mais agradável quando saio da casa dele. Levo um

segundo para levantar o rosto, deixando que a luz aqueça minha pele. Eu

podia ficar aqui, penso. Só um pouquinho, vagueando em direção ao

rio… Há uma casa de barcos mais à frente; dá para ver por entre as

árvores. Eu devia parar um momento e… ouvir os pássaros. É esse o

tipo de coisa que as pessoas fazem quando saem da prisão, quando

ganham uma nova oportunidade na vida? Será que elas entram em

comunhão com a natureza?

Mas eu não quero isso agora. Quero normalidade. E, pela primeira

vez na semana, sei muito bem que tipo de normalidade estou

procurando. Então, em vez de me tornar um homem das montanhas,

entro na van e volto para a cidade.

O sino na porta da loja de vinil tilinta quando eu entro. Está escuro

de um jeito agradável aqui, e Jerry mal levanta a cabeça para me olhar.

Algum disco antigo do Ray Charles está tocando, alto o bastante para

abafar o som dos meus tênis no carpete rumo aos fundos da loja.

Eu deveria estar me sentindo bem. Sei disso, em teoria. Meu lado

racional sabe disso. Já deveria ter alcançado a saída desse buraco escuro

em que eu mesmo me joguei. Afinal, tenho onde morar. Logo vou ter

dinheiro entrando e vou poder ajudar meu tio. Estou dando pequenos

passos. Mas a tempestade ainda paira sobre mim, tão intensa que mesmo

a familiaridade da loja de discos não consegue desfazê-la. E acho que sei

o porquê.

Posso estar dando pequenos passos, mas não sei em que direção. Não

tenho ideia. Não estou pegando o trem expresso para a penitenciária de

San Quentin como meu pai. Não serei um astro do rock bronzeado pelo

sol da Califórnia. Então onde Eddie Munson vai parar? Vai ser um
traficante de cidade pequena para sempre? Isso também não me parece

bom.

Se permita ser você mesmo, disse tio Wayne. Mas como vou saber

quem eu sou?

Ouço o sino da porta soar e dou uma olhada em quem está entrando.

Se for alguém que vai me trazer problemas, é melhor eu sair antes que

Jerry me expulse da loja.

Mas os dois garotos que entram se esgueirando não parecem estar

procurando confusão. Reconheço o mais velho. Os olhos tristes e o

cabelo bagunçado… Eu o vi no início do ano, colando cartazes perto da

escola. Jonathan Byers. Ele estava procurando pelo irmão mais novo que

tinha desaparecido. Ouvi que, apesar de terem feito um funeral para o

garoto, de alguma forma ele foi encontrado.

O garoto menor atrás de Jonathan é o menino sorridente dos cartazes.

Ele parece inquieto, sempre observando todos os lados. Passando os

olhos pela loja, o garoto cruza o olhar com o meu por um instante. Seu

rosto fica ainda mais pálido, e ele baixa a cabeça, se aproximando do

irmão.

— Sr. Byers — diz Jerry quando os garotos vão até ele. — Esperei

que viesse antes.

— Tive que ajudar minha mãe esses dias — responde Jonathan. —

Desculpa.

Jerry se levanta, fazendo o banco ranger.

— Está lá nos fundos. Venham.

— Obrigado.

Jonathan e Will seguem Jerry em direção à cortina nos fundos da

loja, perto de onde estou. Volto o olhar para os discos na minha frente,

passando pelas capas sem prestar atenção nos títulos ou cantores.

— Espere… — fala Jerry. — Crianças não são permitidas atrás das

cortinas.

— Ele é tranquilo — garante Jonathan. — Prometo.

— Sem crianças — insiste Jerry. — Não posso vender discos

arranhados. Já é difícil vender os manchados.

— Ele não vai tocar em nada. Certo, Will?

Mas Jerry é irredutível.

— Você quer o disco ou não?


Jonathan quer. Dá para ver que sim. Discreto, vejo que ele se inclina

para perto do irmão e sussurra:

— Você vai ficar bem aqui fora?

— Vão ser só uns dois minutos — diz Will, revirando os olhos.

— Eu sei, mas… — começa Jonathan, mas se desarma diante do

olhar de advertência do irmão. — Só não conta para a mamãe.

— Eu não sou doido — retruca ele.

Jonathan ri e afaga o ombro do irmão. Em seguida, acompanha Jerry

para os fundos, atravessando as cortinas barulhentas de miçanga.

Will vai até os discos no canto da loja, passando sem prestar atenção

pelas cópias da lamentável coleção de funk e soul do Jerry. Faço o

mesmo, e ficamos em silêncio por um logo momento até que “I Got a

Woman” começa a tocar.

Ray Charles está quase cantando o primeiro refrão quando o sino da

porta tilinta mais uma vez, mais alto do que quando os Byers entraram.

Um segundo depois, a porta bate na parede quando surgem dois garotos

de jaquetas esportivas da Hawkins High, disputando para ver quem é

mais rápido.

Esse é o tipo de problema que eu estava tentando evitar. Parece que

Will pensa a mesma coisa, porque vejo seus ombros ficando tensos.

Tento me manter mais afastado, meio escondido no fundo da loja, mas

Will está bem na entrada. O que significa que ele é o primeiro na mira

dos atletas da escola.

— Caramba! — exclama um dos garotos, que é alto e bochechudo.

Ele é grande, então sua jaqueta praticamente o engole. — Não é o

zumbizinho?

Will fica em silêncio, olhando para os vinis, mas agora parou de

passar pelos títulos e está apenas segurando firme um disco. Já vi essa

postura outras vezes, em geral antes de um dos integrantes do Hellfire

Club ser arremessado numa lata de lixo. Ele está se preparando para

levar uma porrada. E eu…

Fico imóvel, nos fundos da loja, ouvindo os atletas falarem besteira.

Meus dedos estão grudados no disco que acabei de encontrar, e não

consigo tirar os olhos da capa. Muddy Waters me encara com uma

guitarra no peito. E, de uma lembrança distante, eu ouço…


One-and-two-and…

— Zumbizinho! — chama o outro. — Ei, zumbizinho!

Mas Will não se vira, o que só incentiva os caras.

— Você é surdo? — pergunta o primeiro.

— O ouvido dele está cheio de terra do cemitério.

— Talvez de larvas.

O primeiro garoto empurra o ombro de Will, que perde o equilíbrio e

se apoia nos discos.

— Você tem larvas na cabeça, zumbizinho?

— N-não — gagueja Will, trêmulo.

— O único jeito de matar um zumbi é dar um tiro na cabeça — diz o

outro garoto. Ele tem algo na mão, que joga para cima e para baixo. Uma

bola de beisebol. — Olha só.

Ele leva o braço para trás e se prepara para o arremesso, mirando na

cabeça de Will, no cabelo cortado em forma de cuia, e…

Minha mãe cantarola, dançando comigo pelo carpete:

Now you’re gettin’it…

… de repente, percebo que estou no meu limite.

— Merda — murmuro.

Enfio uma das mãos no bolso, e na outra continuo segurando o disco

do Muddy Waters, que nunca mais vou perder de vista. Saio dos fundos

da loja e vou na direção dos agressores, me deliciando com a

inquietação no rosto deles.

— Eu sabia que atletas eram idiotas — digo num tom gentil, como se

eles fossem burros —, mas pensei que pelo menos sabiam identificar um

campo de beisebol. Isso aqui… Isso aqui é o que os adultos costumam

chamar de loja. O que vocês estão procurando fica do lado de fora.

Os atletas ainda estão perto de Will, mas é para mim que eles olham

agora. Então continuo:

— Vou dar algumas dicas para vocês, está bem? Pensem em… céu.

Nuvens. Grandes árvores… Aquelas de madeira, sabe? Com folhas e

galhos.

— Você é amigo desse esquisito, zumbizinho? — pergunta um deles.


Esquisito. A palavra me atinge em cheio, e fico esperando o golpe.

Mas é apenas um eco silencioso que me atravessa, sem despertar a já

conhecida raiva acalorada.

Ouço a voz de Wayne lá no fundo, ressoando como o sino da porta da

loja. Eles que se danem. Pela primeira vez, sinto a frase tomar conta de

mim. Cravada nos meus ossos, injetada na minha corrente sanguínea.

Ela me ilumina profundamente.

Abro um sorriso. Um sorriso cínico. Ou talvez essa não seja a melhor

palavra. Meu sorriso é diabólico, tanto que faz os babacas darem um

passo para trás. Will está me observando com os olhos arregalados.

— Vocês querem jogar essa coisa em alguém? — indago. — Joguem

em mim, então.

Eles ficam me olhando, em silêncio.

— Joguem — repito, abrindo os braços e tornando o alvo o mais

amplo possível. — Tiros na cabeça devem funcionar com esquisitos

também, não acha?

— Você é maluco — declara o outro.

Mas seus dedos apertam a bola de beisebol. Sinto uma ligeira

pontada em algum lugar por trás de toda essa coragem. Esses garotos são

do time de beisebol, então devem conhecer o irmão da Paige. Ele vai

saber desse embate mais cedo ou mais tarde, e se contar para Paige o

que o amigo esquisito dela fez na loja de discos…

— Muito papo e pouca ação, hein? — digo, mais para interromper

meus pensamentos. — Fico pensando na decepção da sua namorada…

Ele arremessa a bola no meu peito, e eu chego a me encolher de dor.

Mas estou agitado, um fogo infernal ainda corre nas minhas veias, então

me apoio nos discos e abro um sorriso para os garotos vermelhos de

raiva.

— Não foi grandes coisas, garotão.

— Seu esquisito!

Ele se prepara de novo, pronto para um novo arremesso…

— Ei!

Não ouvi o barulho da cortina de miçanga, mas vejo Jerry parado nos

fundos da loja, a cortina ruidosa atrás dele. Jonathan está do lado, com

um disco do The Smiths na mão. Parece prestes a sair correndo pela loja

para envolver o irmão em um cobertor isotérmico ou algo assim.


— Só preciso de cinco segundos para alcançar aquele telefone. —

Jerry aponta para o aparelho cor de creme no balcão. — Se vocês não

estiverem fora daqui quando eu chegar lá, vou ligar para a polícia.

Sem aviso, ele vai até a mesa, mas não é necessário. Os dois garotos

trincam os dentes e trocam olhares. Um deles balança a cabeça.

— Dane-se — murmura.

Então ele se vira, abrindo a porta com força o suficiente para tremer a

parede. O amigo vai junto. Um olhar cortante para mim é seu único

adeus.

Não sei se fui incluído na ameaça de Jerry, mas fico na loja. Estou

muito ocupado tentando recuperar o fôlego. Quando Jerry chega no

balcão, ele resmunga e se senta no banco, pegando uma revista e abrindo

numa página qualquer. Não pega o telefone.

Jonathan dispara até Will como uma mãe ursa.

— Você está bem? — pergunta ele, tateando a cabeça do irmão, os

ombros, os braços.

— Estou bem.

— Mesmo?

Will ignora a pergunta. Ele olha para mim.

— Obrigado — diz.

Consigo estufar o peito. Respirar está começando a ficar mais fácil,

finalmente.

— Aqueles caras são uns babacas — comento. — Não liga para eles.

— O que eles disseram? — pergunta Jonathan, lançando um olhar

furioso para a porta. — Foi…

— Não são só eles! — exclama Will, como se estivesse querendo

dizer isso há muito tempo. — É todo mundo! Todo mundo olha para

mim como se eu fosse um esquisi…

— Ei — interrompo. Minha nossa, minhas costelas estão doendo.

Aquele garoto arremessa muito melhor do que eu pensava. — Eles que

se danem.

Os olhos grandes de Will brilham, marejados.

— Mas…

— É sério — digo. — Eles podem te chamar do que quiserem. Isso

não te define. Na verdade, isso só diz muito sobre eles. Afinal, só você

sabe quem é. — Abro um sorriso. — Fora que… Zumbizinho? Olha,


pela minha experiência com apelidos, esse aí é o mais maneiro que eu já

ouvi.

Will franze as sobrancelhas, e dá para ver que está processando

minhas palavras. E vai continuar assim por mais um tempo — esse não é

o tipo de conselho que se absorve de primeira. Ninguém sabe disso

melhor que eu. E nesse meio-tempo…

— Você joga Dungeons & Dragons? — pergunto.

O garoto abre um sorrisinho.

— Como você sabe?

Como se não fosse óbvio. Está estampado na cara dele.

— Quando chegar ao ensino médio, procure o Hellfire Club. Acho

que você vai gostar.

— Ah, é?

— Acho que vai ser perfeito para você.

— Precisamos ir para casa — diz Jonathan. — Daqui a pouco nossa

mãe vai voltar do trabalho.

Ele me observa com cautela, como se tentasse encontrar segundas

intenções. Passando o braço em volta dos ombros do irmão, ele o

conduz até a porta.

— Prazer em te conhecer! — exclama ele, sendo levado.

— Também, zumbizinho. — E, em seguida, porque não existe dia

nem hora para começar meu negócio: — Ah, Jonathan! Espera aí.

Ele se vira e arqueia a sobrancelha, curioso. Olho para trás, checando

se Jerry está prestando atenção.

— Você fuma? — pergunto, baixinho.

Ele fica chocado demais para alguém com aquele corte de cabelo.

— Não, cara. Não me meto com essas coisas.

— Me avisa se mudar de ideia.

Ele apenas balança a cabeça. Um momento depois, os irmãos saem

da loja. Eu os observo pela vitrine até que sumam de vista.

Eles que se danem. Foi bom quando eu disse. E isso está se

acomodando em meu peito agora, é um sentimento perfeito. Só você

sabe quem é.

E, pela primeira vez, acho que tenho uma ideia de quem essa pessoa

deve ser.
Capítulo Trinta e Sete

— Sr. Munson… Pensei que nunca mais daria o ar da graça nos

corredores da escola.

Atrás das lentes grossas, o olhar de Janice é afiado. A correntinha dos

óculos tartaruga faz barulho quando ela levanta a cabeça para me

analisar. Estava trabalhando numa interminável pilha de papéis, e suas

longas unhas roxas nunca paravam de arranhar as folhas.

— Esse era o plano, Janice — digo, apoiando o cotovelo na mesa e

dando meu melhor sorriso digno de Al Munson. — Mas só de pensar

em passar mais um dia sem o vislumbre do seu belo rosto… não

consegui suportar.

— Hum.

Ela escreve alguma coisa em um dos papéis e faz um biquinho de

quem não está nem um pouco impressionada.

— Sabia que sentiria saudade também — retruco. — Poderia fazer

um favor a nós dois e providenciar a sua melhor papelada de

rematrícula?

Janice fica em silêncio, e sua caneta, inacreditavelmente, nem sequer

vacila quando ela abre um arquivo e tira uma pilha de formulários. Eu

pego os documentos antes que ela bata com os papéis na mesa.

— Você é uma fofa. Agora uma última pergunta…

— Estou muito ocupada.

— Dá para ver, mas é uma pergunta rápida. O diretor Higgins está?

Ela não responde, mas dá uma olhada para o lado onde fica, para a

sala do Higgins. Essa informação já me basta.

— Maravilha.

Dou a volta na mesa dela, indo até a porta fechada da sala do diretor.

— Ele está em reunião — informa ela.

Posso sentir uma energia crescendo em mim de novo, zumbindo no

meu corpo.
— Tenho certeza de que ele tem tempo para mim — declaro, sem

hesitar. — Afinal, seria rude da minha parte visitar e não dizer oi.

seu diretor camarada diz o cartaz colado na porta que eu odiei com

tanta força durante os últimos quatro anos. Bato com o nó do dedo do

meio.

— Toc toc — cantarolo, abrindo a porta e entrando. — Como vai

meu tirano do interior favorito?

Pelo jeito, a “reunião” de Higgins desapareceu num passe de mágica,

porque ele está jogado num canto lendo um livro de mistério de

qualidade duvidosa.

— Que por… — grita ele, interrompendo a si mesmo antes de deixar

escapar um palavrão.

Quando me vê, seu rosto avermelhado fica ainda mais rubro.

— Munson.

— Jeremy — digo, no mesmo tom grave e venenoso.

Tudo pelo simples prazer de fazer a pressão arterial de Higgins subir.

— Não sei se você está ciente, mas egressos não podem circular pelo

campus. O que está fazendo agora é invasão.

— Então ainda bem que eu não sou um egresso.

Balanço a papelada da rematrícula e vejo a fúria nos olhos dele.

— Não.

— Ah, sim — retruco.

— Não. Você está fora. Você já saiu.

Devagar, vou até ele e paro ao lado da sua mesa para que tenha que

me encarar.

— Por acaso você sabe mais do que eu?

— Não permitimos que criminosos se matri…

— Quantas vezes vou ter que te dizer? Não sou criminoso. Pode

perguntar ao delegado Hopper. Minha ficha está limpíssima, mais do que

nunca.

— Inferno — esbraveja Higgins.

Ele se levanta, e por um segundo eu penso que vai vir para cima de

mim.

— Será que você não entende? Ninguém quer você aqui.

Penso em Gareth e na tristeza em seu olhar quando achou que não

teria mais o Hellfire Club. Penso no pequeno Will Byers, se encolhendo


na loja de discos. Penso no meu tio me esperando, com o boné nas

mãos, na delegacia de Hawkins.

— Talvez — digo. Talvez isso não seja verdade.

— Então por que raios você quer voltar?

— Tenho muitos motivos. Mas no topo da lista está o Hellfire Club.

Higgins estreita os olhos.

— Fizemos um acordo, Munson — lembra ele. — Ainda posso

escrever uma carta preocupada para a Universidade de Nova York. A

vaga da srta. Ecker está longe de estar garantida.

A ameaça ao futuro de Ronnie me atinge e faz uma onda de fúria

correr pelas minhas veias, mas eu a escondo atrás de um sorriso.

— Sem mencionar que — continua Higgins —, mesmo que isso não

o preocupe e ainda assim você queira seguir com seu clubinho, não há

responsáveis disponíveis ou que aceitem participar. O Hellfire Club

acabou.

— Mas nós temos um responsável.

A boca de Higgins se contorce num escárnio cruel.

— Não nesta escola — rebate ele.

— Nós temos um responsável — repito. — E é alguém que você

respeita. Alguém que você admira. — Eu me inclino na mesa dele. —

Eu ainda não tive a chance de agradecer. Então obrigado, diretor

Higgins, por concordar em ser o responsável pelo Hellfire Club aqui na

Hawkins High.

Ele fica boquiaberto.

— Você realmente perdeu o juízo se pensa…

— Ah, droga. — Balanço a cabeça. — Esperava que eu pudesse…

Como você disse? Apelar para o seu caráter? Mas dá para ver que você

está tendo dificuldade para entender. Tudo bem. — Eu me abaixo e abro

a primeira gaveta da mesa. — Vou tentar ser mais didático.

Como eu já esperava, porque estava no mesmo lugar quando Higgins

tirou a carta da mãe do Stan dali semanas atrás, um frasco azul brilhante

com comprimidos rola e fica à mostra. Eu o seguro bem diante dos

olhos, então Higgins e eu nos encaramos por um longo momento.

— O que você acha que esses religiosos preocupados e fofoqueiros

vão fazer — começo, calmo e curioso — se souberem que o diretor da

escola está usando drogas?


Pela primeira vez na vida, Higgins fica sem palavras. Ele olha de

mim para o frasco de comprimidos, de olhos arregalados e rosto pálido.

— Entendeu agora? — pergunto.

A forma brusca com que ele assente me enche de prazer.

— Que ótimo — declaro. — Porque eu não quero muita coisa. Não

estou pedindo que você mexa nas minhas notas, nada disso. Só que seja

responsável pelo Hellfire Club. E fique sabendo que, se não aceitar essa

proposta… — Balanço o frasco. — Todas as pessoas ricas na prefeitura

e nas igrejas da cidade vão saber disso. E aí sua reputação vai acabar.

Não sei para você, mas isso não me parece muito divertido, né?

Como um peixe fora d’água, a boca de Higgins abre e fecha.

— Isso é chantagem — diz ele.

— Pareceu tão legal quando você fez isso comigo — retruco. —

Queria experimentar também. — Coloco o frasco de volta na gaveta e a

fecho. — Você perguntou por que eu quero voltar para a escola, senhor.

Quero voltar porque você acha que eu não consigo. — Dou um aceno.

— Tchauzinho, responsável. Vejo você em setembro.

Saio da sala com Higgins ainda me encarando.

— Obrigado, Janice — cantarolo.

Ela não consegue responder, porque o diretor a chama aos berros, e

ela vai depressa até a sala dele.

Solto uma risada. Ainda estou rindo quando chego ao corredor e

continuo até que o peso do que preciso fazer em seguida se acomode no

meu peito e me cale. Então enfio as mãos nos bolsos da jaqueta e

atravesso a multidão de alunos de Hawkins no último dia de aula,

ignorando os cochichos e olhares que me seguem.

Vou direto para a sala da sra. Debbs, professora de sociologia, que já

foi o refúgio de algumas reuniões do Hellfire Club. A porta está fechada

quando eu chego, mas nem é preciso ter uma audição aguçada para

identificar a voz de Dougie.

— É… hum. Ela atira em você com os espinhos. Três vezes!

— Tá de brincadeira? — rebate Jeff, com uma irritação que nunca vi

nele antes. — Cara, eu estou a, tipo, quinze metros de distância!

— … e então ela chega mais perto para te morder — continua

Dougie, mais alto que as reclamações de Jeff. — Causando… vinte e

dois pontos de dano. E aí?


— E aí o quê? Estou fora, cara. Eu…

Abro a porta.

— Parece que as coisas estão indo bem por aqui — digo.

Cinco pessoas se viram na minha direção, todos com diferentes graus

de desconfiança. Vão de meio-feliz-por-te-ver (Jeff) a se-eu-pudesse-

jogaria-uma-bomba-bem-onde-você-está (Gareth).

Ronnie está impassível. Não existe nenhum traço de surpresa em seus

olhos.

Pigarreio.

— Quanto tempo, né? — falo.

— Bom te ver, Eddie — diz Jeff, cauteloso.

— Achei que estaria na Califórnia agora — comenta Dougie, irônico.

— Com sua namorada.

— Vocês não vão se livrar de mim assim tão fácil. Não mesmo —

digo, balançando os documentos da rematrícula. — Ainda tenho coisas a

fazer por aqui.

Os papéis são como ondas pré-tsunami, a maré recuando.

— Você vai liderar o Hellfire Club ano que vem? — pergunta Jeff.

Dougie lança um olhar cortante para o amigo.

— Não, quer dizer — continua Jeff —, Dougie tem sido ótimo,

mas…

— Eu… acho que isso está nas mãos de vocês — declaro. E me forço

a olhar nos olhos de cada um, e deixo a expressão petrificada de Ronnie

por último. — Sei que decepcionei vocês. Eu… eu abandonei vocês, e

nem me despedi. Achei que estava fazendo a coisa certa…

Os olhos de Ronnie se estreitam, apenas um milímetro, e isso me

estimula a continuar:

— Mas não importa, porque eu estava errado — digo, e respiro

fundo. — A Califórnia… Não vai rolar.

— Porque você atirou em um policial? — pergunta Jeff.

Fico confuso.

— O quê? É isso que as pessoas estão dizendo?

— Sim — responde Dougie.

— Não — rebate Jeff.

— Algumas pessoas estão dizendo isso, sim — argumenta Dougie.


— Algumas pessoas estão dizendo que foi o seu pai — intervém

Gareth, com um tom seguro. Ele não olha para mim, está concentrado

no papel à sua frente. — Mas o delegado está acabando com esse

falatório. Não gerou muito interesse.

Vou precisar processar essa informação em outro momento.

— Está bem. Hum… Legal. O que eu queria dizer é… me

desculpem. Eu não deveria ter desaparecido. Vocês não merecem isso. O

Hellfire Club não merece isso.

— É fácil pedir desculpas depois que tudo já explodiu na sua cara.

É a primeira coisa que Ronnie diz desde que entrei na sala, e suas

palavras me atingem como uma rajada de vento polar.

— Eu sei — respondo. — Me desculpe mesmo assim.

— Higgins disse que vai fechar o clube ano que vem — comenta

Gareth.

Ele olha para mim, e naquela fração de segundo vislumbro o garoto

agitado que pensou que sua vida acabaria junto com a de Illian, o

Invencível.

— Para a surpresa de todos, ele mudou de opinião — revelo, sorrindo

um pouco.

Mas sei que o orgulho não vai me fazer cruzar a linha de chegada.

Então fico mais sério.

— Não importa o que aconteça, vocês são meu grupo. Meus

aventureiros. E espero que possam me perdoar. Eu… eu quero prometer

uma coisa. Nunca, nunca mais vou abandonar este grupo nem ninguém

que faça parte dele, nunca mais. — Respiro fundo, trêmulo, e me esforço

para me conter. — Então, o que vocês dizem? Tem espaço para mais

um?

Todos ficam em silêncio. Apenas trocam olhares, longos o bastante

para que eu comece a sentir o coração na boca. Jeff é o primeiro a

quebrar o silêncio, soltando uma risada aliviada como se ele estivesse

tentando contê-la há um tempo.

— O clube é seu, cara — diz ele.

— O clube não é dele — reclama Dougie.

— Você nem vai estar aqui ano que vem, Dougie — replica Jeff. —

Por mim, sim. Eddie pode voltar.


— Tudo bem — declara Dougie, afundando na cadeira de braços

cruzados.

Mas dá para ver um sorriso se formando no canto da boca dele.

Eu me viro para Gareth.

— Calouro? Gareth?

Ele volta a olhar para a mesa, para o anão desenhado em seu caderno.

— Se você quer voltar — diz, devagar —, então deve voltar.

Ronnie fica em silêncio. Apenas assente uma única vez. E isso é o

suficiente para mim, por enquanto. Tem que ser.

— Droga — sussurra Dougie. — Já são quatro e quinze. Debbs

queria que saíssemos às quatro.

É um tempo bem curto para uma sessão do Hellfire Club. Acho que

Dougie não limpou o quadro de giz tão bem. Mas como acabamos de

nos entender e foi uma situação delicada, não falo isso em voz alta. Só

dou um passo para trás e observo a familiar cena dos esquisitos da

Hawkins High guardando suas coisas e saindo da sala. E então…

Ficamos apenas Ronnie e eu.

Eu me preparo para mais um momento de silêncio mortal. Mas ela se

compadece, como sempre.

— Você está morando com seu tio — comenta, cruzando os braços.

Assinto.

— Meu pai foi embora.

— Fiquei surpresa por você não ter ido com ele.

Balanço a cabeça.

— Eu deveria ter ido falar com você — digo.

— Quando se mudou para o estacionamento de trailers?

— Não, antes. Quer dizer, até tentei, mas… Droga, Ronnie. Me

desculpe.

Ela vira o rosto para o lado.

— Você tem dito muito isso ultimamente.

— Eu sei — admito.

Dez minutos atrás, eu estava esfregando minha existência no nariz do

diretor Higgins… Mas agora tudo que quero é sair correndo e sumir.

— Você não tem que acreditar em mim, mas eu preciso dizer. Eu me

acostumei tanto a sentir como se ninguém estivesse do meu lado que

esqueci que tinha, sim, alguém comigo. Você viu valor em mim, em
quem eu sou. Eddie Munson. Não achou que eu era um… herói do rock

nem um demônio satanista. Só eu. E provavelmente fui muito, muito

idiota por demorar tanto para juntar essas peças, mas agora entendo

muito bem…

— Ai, minha nossa, não vai dizer que está apaixonado por mim…

Eu solto uma risada. Não dá para evitar.

— Eu ia dizer que… que sei como você é importante para mim. Você

é alguém que me dá apoio, que me avisa quando estou estragando tudo.

Que me ajuda a ficar atento.

— Mas eu não posso mais fazer isso, Eddie. Você deixou bem claro

que não queria isso de mim.

Ainda não estou perdoado.

— Eu sempre quero. Mas você cuida de mim há muito tempo, é

minha vez agora, minha vez de cuidar desta ovelhinha perdida.

— Então vai ter que encarar Higgins para sempre?

— Não vamos exagerar — respondo. — Ele vai ter que deixar eu me

formar uma hora ou outra. E até lá, vou continuar por aqui. — Mexo na

bainha da jaqueta. — Não vou deixar que ele esteja certo sobre mim.

Não vou deixar isso acontecer. Não importa quanto tempo isso leve.

Ronnie assente.

— É isso.

Seu ar feroz é estimulante. Finalmente — finalmente me arrisco a

abrir um sorriso.

— Então… — digo. — Você… precisa de uma carona?

Ronnie não sorri de volta. Ela fica pensando por um longo momento,

e eu resisto ao impulso de me contorcer. Depois de um silêncio tortuoso,

ela estica o pescoço.

— Última vez, está bem?

Mas a tristeza em seus olhos me tira o ar dos pulmões.

— Eu…

— Ei, esquisito!

Viro o rosto para olhar. Vem do corredor, e vou até a porta antes de

me dar conta do que estou fazendo. Quando entrei na sala da sra. Debbs,

os corredores estavam lotados de alunos correndo para aproveitar o

verão. Mas agora há poucas pessoas, que estão limpando o fundo de seus

armários ou conversando enquanto planejam a primeira festa das férias.


Meu primeiro impulso é procurar por Tommy H. Mas, em vez disso,

encontro um de seus comparsas, aquele cara que deve se chamar Cooper

ou Colin, ou alguma coisa assim, correndo em direção a um garoto de

cabelo ensebado usando uma calça jeans com a barra bem curta.

— Esse garoto não é do Hellfire Club — murmura Ronnie, atrás de

mim.

Enfio as mãos nos bolsos para esconder meus punhos cerrados.

— Eu sei.

— Você não precisa ajudá-lo — lembra ela.

— Aham.

Ronnie pigarreia.

— Quer saber? Vou de bicicleta hoje. Não preciso de carona, não.

Olho para ela e finalmente vejo seu sorriso evasivo.

— Tem certeza? — pergunto.

Mas o que quero dizer é: Então é isso?

Seu sorriso triste fica mais intenso.

— Gareth toca bateria — conta Ronnie. — Ele é muito bom.

O que ela quer dizer é: adeus. Ronnie me dá um soquinho no ombro

no mesmo lugar de sempre, e então percebo que nessas semanas, desde

que decidi partir sozinho, o hematoma sumiu. E levou tudo junto.

— Ei, Eddie… Você não precisa ser exatamente o Clark Kent para

ser o Super-Homem, sabe?

Seguro a mão dela. Aperto de leve. E… solto.

— Ei, pessoal! — Chego no corredor com os tênis guinchando no

chão. — Ouvi dizer que vocês estavam procurando por mim!

Talvez o delegado Hopper esteja mesmo fazendo um ótimo trabalho

contendo aqueles boatos, porque só metade dos garotos dá um passo

nervoso para trás quando me aproximo. O restante deles — inclusive

Colin, provavelmente — só faz a única coisa que sabe fazer: lançar

olhares raivosos.

— E por que eu estaria procurando por você? — retruca um deles.

O garoto de cabelo ensebado é inteligente o bastante para sair de

fininho. Depois de passar por mim, ouço o som dos seus tênis quando

ele começa a correr. Então sobramos apenas eu e o lobo mau, e meu

sorriso é grande o bastante para deixar Al Munson orgulhoso.


— Porque você estava atrás de um esquisito, meu querido — digo. —

Parabéns. Encontrou o maior esquisito da cidade.


Agradecimentos

Obrigada, obrigada, do fundo do coração…

À equipe da Penguin Random House, em especial a Gabriella

Muñoz, por me guiar nesse processo turbulento e por sempre perguntar:

“Mas será que não vai ser mais doloroso se você fizer isso aqui…?”

Ao meu agente, John Cusick, que ajudou a abrir a porta do mercado

editorial, do qual eu jamais imaginei que chegaria perto.

À Sociedade (sim, isso mesmo): Matt, Ross, Curtis, Paul e Kate.

Vocês têm um dedo na criação do Eddie, e me considero sortuda por ter

trabalhado com vocês nisso. Matt e Ross: muito obrigada novamente por

me deixarem embarcar nessa viagem louca.

Às equipes da Netflix e da Upside Down Pictures, por me darem a

chance de contar esta história.

A Joe Quinn, pelo sopro de vida para o nosso desajeitado favorito.

A minha família: mãe, pai, Willa e Nick, por serem a razão de eu

fazer o que faço e a razão de eu poder fazer o que faço. Amo vocês.

E, por fim, obrigada a todos que já foram um Eddie Munson, que já

foram salvos por um Eddie Munson ou que já amaram um Eddie

Munson. Vocês não estão sozinhos.


Sobre a autora

© Capturely, Inc.

Caitlin Schneiderhan é escritora, roteirista e trabalha na aclamada série

da Netflix Stranger Things. Leitora do autor Terry Pratchett desde os

treze anos, tornou-se apaixonada por narrativas. Nasceu em Silver

Springs, em Maryland, e atualmente mora em Los Angeles. Caitlin ainda

tem os livros que leu na adolescência em sua estante

caitlinschneiderhan.com

Twitter: @schneiderjamz

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