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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

NATHALIA CRISTINA AMORIM TAMAIO DE SOUZA

A INVENTIVIDADE DOCENTE NA RELAÇÃO ENTRE


FORMAÇÃO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS E
PRÁTICAS DE ENSINO DE LEITURA E ESCRITA

Campinas
2022
NATHALIA CRISTINA AMORIM TAMAIO DE SOUZA

A INVENTIVIDADE DOCENTE NA RELAÇÃO ENTRE


FORMAÇÃO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS E
PRÁTICAS DE ENSINO DE LEITURA E ESCRITA

Tese de Doutorado apresentada à


Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do
título de Doutora em Educação, na Área
de Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Guedes-Pinto

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO/TESE DEFENDIDA
PELO(A) ALUNO(A) NATHALIA CRISTINA AMORIM
TAMAIO DE SOUZA E ORIENTADA PELA PROFA.
DRA. ANA LÚCIA GUEDES-PINTO.

Campinas
2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751

Souza, Nathalia Cristina Amorim Tamaio de, 1987-


So89i A inventividade docente na relação entre formação de professoras
alfabetizadoras e práticas de ensino de leitura e escrita / Nathalia Cristina
Amorim Tamaio de Souza. – Campinas, SP : [s.n.], 2022.

Orientador: Ana Lúcia Guedes-Pinto.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.

1. Formação de professores. 2. Alfabetização. 3. Leitura. 4. Escrita. 5.


Professsores alfabetizadores. I. Guedes-Pinto, Ana Lúcia, 1969-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações Complementares

Título em outro idioma: Teaching inventiveness in the relationship between literacy teacher
training and writing teaching practices
Palavras-chave em inglês:
Teacher development
Literacy
Reading and writing
Literacy teacher
Área de concentração: Educação
Titulação: Doutora em Educação
Banca examinadora:
Ana Lúcia Guedes-Pinto [Orientador]
Telma Ferraz Leal
Paula Baracat De Grande
Edson do Carmo Inforsato
Norma Sandra de Almeida Ferreira
Data de defesa: 05-12-2022
Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-6280-1784
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9265421109151956
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

TESE DE DOUTORADO

A INVENTIVIDADE DOCENTE NA RELAÇÃO ENTRE


FORMAÇÃO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS E
PRÁTICAS DE ENSINO DE LEITURA E ESCRITA

Nathalia Cristina Amorim Tamaio de Souza

COMISSÃO JULGADORA:

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Guedes-Pinto


Prof.ª Dr.ª Telma Ferraz Leal
Prof.ª Dr.ª Paula Baracat De Grande
Prof. Dr. Edson do Carmo Inforsato
Prof.ª Dr.ª Norma Sandra de Almeida Ferreira

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na
Secretaria do Programa da Unidade.

2022
Dedico esta pesquisa:

À minha mãe, Rosana Amorim, por ser meu


maior alicerce na vida;

À minha avó, Izabel Amorim (In Memoriam),


pelos cuidados no plano espiritual.
AGRADECIMENTOS

“Sonho que se sonha só


É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade”.
(Raul Seixas – Prelúdio, 1974).

Chegar até aqui e sentir que um dos meus maiores e mais ambiciosos
sonhos enfim se realizou me faz pensar naqueles que, de uma forma ou de outra,
acreditaram, sonharam e trilharam esses quatro intensos anos comigo. Por cada ato
de apoio, carinho, paciência e escuta atenta de vocês, deixo registrada minha eterna
gratidão:

À Ana Lúcia, pelo privilégio de sua orientação tão dedicada, que me ajudou
a amadurecer e desenvolver os caminhos desta tese. Seus direcionamentos, suas
aulas, suas leituras e cada conversa que tivemos marcaram minha trajetória de um
jeito especial. Obrigada pelo apoio incondicional nesses anos, e principalmente pela
amizade.

À banca do Exame de Qualificação, composta pelos(as) professores(as)


Edson Inforsato (Tamoio), Norma Ferreira e Telma Leal, pelas valiosas contribuições
para o aperfeiçoamento desta pesquisa. Agradeço, ainda, à professora Paula Baracat
pelo aceite para integrar a banca da Defesa e colaborar com a versão final do texto.

À minha mãe Rosana, por ser a pessoa mais resiliente e bondosa que já
conheci. Obrigada por me incentivar e depositar toda a confiança do mundo no que
faço. Se estou onde estou, é porque você nunca soltou a minha mão. Te amo além
do amor.

Ao meu companheiro Mairon, por dividir a vida comigo e me encorajar a


perseguir meus sonhos, que se tornaram nossos. Agradeço por compreender minha
ausência nos momentos em que precisei mergulhar profundamente na pesquisa, por
ser esse exemplar raro de marido carinhoso (mais em atitudes do que em palavras),
divertido e parceiro, e pela relação mútua de respeito e admiração que construímos.
Amo você!

Ao meu irmão Renato, pelos diálogos leves, que trouxeram alegria aos
meus dias, e à minha irmã Thayná, pela parceria em todos os momentos, por ouvir
repetidamente meus ‘ensaios’ de apresentação da pesquisa e, especialmente, pela
leitura cirúrgica dos meus textos. Vocês são muito importantes para mim!

À minha prima e melhor amiga Marjorie, simplesmente por existir. A


distância física jamais enfraquecerá o amor e a gratidão que sinto por ter você em
minha vida. Obrigada por nutrir a certeza de que aconteça o que acontecer, você
sempre estará comigo e eu com você.

Aos meus sogros Teresa e Ari, por me acolherem como filha e não medirem
esforços quando o assunto é ajudar. Vocês ressignificaram a visão de família que eu
costumava ter e preencheram espaços únicos em meu coração.

Às minhas queridas amigas unespianas: Evelin, Flávia e Rayana, pelo laço


de companheirismo que transcendeu as portas da universidade. Obrigada pelos
momentos alegres vividos, pelos conselhos na hora certa, pelas confidências e pelos
trabalhos que produzimos juntas.

Aos amigos Daniela, Mellina e Rodrigo, pela amizade que trouxe


serenidade aos dias mais desafiadores da pós-graduação. Vocês são presentes que
a UNICAMP me deu e que desejo manter sempre por perto.

Aos colegas e professores do grupo ALLE /AULA, pelas aprendizagens,


trocas e reflexões ao longo desse período.

À Faculdade de Educação da UNICAMP, representada por seus/suas


professores(as) e funcionários(as), pelas oportunidades de participação em atividades
de ensino, pesquisa e extensão, e pela ajuda prestada durante os anos de curso.

Às professoras e à equipe gestora do SESI Araraquara, que comigo


dividiram conquistas, angústias, posicionamentos, incertezas e todas as dores e
delícias da docência. Em especial, agradeço à Raquel e à Rosângela, professoras de
primeiros anos do Ensino Fundamental, por compartilharem tão generosamente seus
saberes sobre o universo da alfabetização.

Ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio


financeiro. Processo nº 140486/2019-4.

MUITO OBRIGADA!
“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam.
E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em
lembrança, em narrativa. (...)

O fim de uma viagem é apenas o começo doutra. (...)

É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar
caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem.
Sempre.”

José Saramago – Viagem a Portugal (1995, p. 341-342).


RESUMO

Ler e escrever são práticas essenciais para a vida em sociedade e, nesse caminho
que envolve seu ensino, geralmente iniciado nos primeiros anos de escolarização, a
figura da professora / do professor se apresenta como um divisor de águas. Isso
porque, a abordagem, o método e a perspectiva de ensino que consubstanciam as
práticas docentes incidem, em grande medida, na relação que os estudantes
estabelecerão com a leitura e a produção de textos. Discussões em torno das práticas
de leitura e escrita costumam ser recorrentes no âmbito da formação de
professoras/professores. No entanto, a maneira como as/os docentes conduzem esse
processo carrega, além das aprendizagens e orientações provenientes das
formações, modos próprios de agir, conceber e desenvolver a alfabetização. Diante
disso, o presente texto, a partir da realização de pesquisa bibliográfica, cujo material
de estudo reúne teses e dissertações produzidas em universidades públicas paulistas
entre os anos de 2015 e 2019, objetiva inferir a inventividade docente, por meio de
indícios, forjados pelas percepções advindas da relação entre a formação de
professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino da leitura e da escrita, expressas
em tais estudos acadêmicos. O corpus da pesquisa é analisado à luz do referencial
teórico-metodológico da História Cultural, para fundamentar a análise das pesquisas
quanto às ações docentes face às possibilidades de apropriação, desvios e
reempregos em relação às propostas formativas, na interface com os Estudos do
Letramento na perspectiva sociocultural. Os apontamentos resultantes do estudo
evidenciaram pistas de que as professoras alfabetizadoras, narradas nas pesquisas,
manifestam sua inventividade de diferentes maneiras: nas relações entre pares que
protagonizam, nas orientações pedagógicas que ressignificam, nos múltiplos sentidos
que produzem entre si e com seus alunos, na ordem que subvertem, ainda que
sutilmente, enfim, nos rearranjos que fazem em contextos formativos. Assim, ainda
que os indícios inferidos representem realidades específicas e que não se tenha a
intenção de generalizá-los, foi possível concluir que não há uma transposição direta
entre o que as docentes aprendem nos cursos de formação, sejam eles mais
tradicionais ou não, e o que realizam ao alfabetizarem seus alunos.

Palavras-chave: formação de professores; alfabetização; leitura e escrita; professora


alfabetizadora; inventividade.
ABSTRACT

Reading and writing are essential practices for life in society and, in this path that
involves their teaching, usually started in the first years of schooling, the figure of the
teacher and teacher is presented as a watershed. This is because the approach,
method, and teaching perspective that substantiate teaching practices largely affect
the relationship that students will establish with reading and text production.
Discussions around reading and writing practices are often recurrent in the context of
teacher training. However, how teachers conduct this process carries, in addition to
learning and guidance from training, their ways of acting, conceiving, and developing
literacy. Because of this, the present text, based on bibliographic research, whose
study material brings together theses and dissertations produced in public universities
in São Paulo between 2015 and 2019, aims to infer teaching inventiveness, through
evidence, forged by perceptions arising from the relationship between the training of
literacy teachers and the teaching practices of reading and writing, expressed in such
academic studies. The research corpus is analyzed in the light of the theoretical-
methodological framework of Cultural History, to support the analysis of research
regarding teaching actions in the face of possibilities of appropriation, deviations, and
re-employment concerning training proposals, in the interface with Literacy Studies
from a sociocultural perspective. The notes resulting from the study showed clues that
literacy teachers, narrated in the research, manifest their inventiveness in different
ways: whether in the relationships between peers that they star in, in the pedagogical
guidelines that give new or in the multiple meanings they produce among themselves
and with their students, in the order they subvert, albeit subtly, finally, in the
rearrangements they make in formative contexts. Thus, even though the inferred
evidence represents specific realities, and it is not intended to generalize them, it was
possible to conclude, that there is no direct transposition between what teachers learn
in training courses, be they more traditional or not, and what they accomplish when
teaching their students to read and write.

Keywords: teacher development; literacy; reading and writing; literacy teacher;


inventiveness.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Síntese dos documentos que abordam a formação docente 39

Quadro 2 – Teses e Dissertações selecionadas 79

Quadro 3 – Objetivos das pesquisas 81

Quadro 4 – Referenciais teórico-metodológicos das pesquisas 84

Quadro 5 – Temáticas privilegiadas nas pesquisas 87

Quadro 6 – Agrupamento de pesquisas por foco de interesse 90


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Linha do tempo dos documentos oficiais selecionados 30

Figura 2 – Percentual de pesquisas localizadas por região brasileira 75

Figura 3 – Percentual de pesquisas localizadas na UNESP, UNICAMP e USP 75

Figura 4 – Total de Teses e Dissertações localizadas a partir do critério definido 76

Figura 5 – Teses/Dissertações localizadas após triagem e seleção 77

Figura 6 – Instrumentos de coleta de dados privilegiados nas pesquisas 84

Figura 7 – Palavras mais recorrentes nas pesquisas 89


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABC Alfabetização Baseada na Ciência

ALLE/AULA Alfabetização, Leitura e Escrita & Trabalho Docente na Formação Inicial

ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

ATPC Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo

BNCC Base Nacional Comum Curricular

BNCF Base Nacional Comum – Formação

BNCFC Base Nacional Comum – Formação Continuada

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior

FAU/USP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

FE Faculdade de Educação

LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

OBEDUC Observatório da Educação

OEs Orientadores de Estudo

PAs Professores Alfabetizadores

PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais

PIBID Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência

PNA Política Nacional de Alfabetização

PNAIC Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa

PPG Programa de Pós-Graduação

PROFA Programa de Formação de Professores Alfabetizadores

SEA Sistema de Escrita Alfabética

SESI-SP Serviço Social da Indústria de São Paulo

UNESP Universidade Estadual Paulista

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

USP Universidade de São Paulo


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 16
Entre memórias, apropriações e experiências: a constituição do objeto de estudo ... 16

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 23

1. FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL: DO EVIDENTE AO


NEGLIGENCIADO ...................................................................................................... 28
1.1 Aspectos da formação docente à luz dos documentos oficiais .......................... 30
1.1.1. Implicações dos documentos para a formação de alfabetizadoras ....... 41

1.2. Aspectos da formação docente pelas lentes da História Cultural ..................... 47

1.2.1. Michel de Certeau: um olhar para os aspectos das práticas cotidianas ......... 48
1.2.2. Michelle Perrot: um olhar para as táticas de subversão ................................. 50

1.2.3. Anne-Marie Chartier: um olhar para as artes de fazer escolares ................... 52

1.2.4. Carlo Ginzburg: um olhar para os indícios ..................................................... 54

2. ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA: A PERSPECTIVA SOCIOCULTURAL


EM FOCO .................................................................................................................... 57
2.1. Estudos do Letramento .................................................................................... 58

2.2. Eventos e práticas de letramento ..................................................................... 60

2.3. A alfabetização como prática de letramento ..................................................... 62

2.4. A formação docente e o ensino da leitura e da escrita ...................................... 67

3. ABORDAGENS E PERCURSOS METODOLÓGICOS DO ESTUDO ..................... 68


3.1. A compreensão do objeto de pesquisa: a ‘inventividade docente’ ..................... 68
3.2. A abordagem teórico-metodológica: os ‘indícios’ .............................................. 70

3.3. Procedimentos metodológicos: o ‘corpus’ ......................................................... 72

3.3.1. Busca e seleção das teses e dissertações ................................................. 73


3.3.2. Breve panorama das pesquisas investigadas ........................................... 81

3.4. Estratégias de análise de dados: os ‘focos de interesse’ .................................... 86


4. A INVENTIVIDADE DOCENTE NA RELAÇÃO FORMAÇÃO-PRÁTICAS DE
ENSINO DE LEITURA E ESCRITA: INDÍCIOS NAS PESQUISAS .............................. 93
4.1. A formação da futura professora ........................................................................ 93

4.2. A formação da professora atuante ..................................................................... 98

4.3. Programas e políticas voltados à alfabetização ................................................. 108

4.4. Práticas no ensino da leitura e da escrita ........................................................... 121

4.5. Produção de sentidos entre professoras e alunos .............................................. 130

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 139

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 145

REFERÊNCIAS DAS TESES E DISSERTAÇÕES ANALISADAS ............................. 158


16

Apresentação

A definição de um tema de pesquisa constitui-se, em geral, a partir de um


fluxo de inquietações que provocam a pesquisadora / o pesquisador e, geralmente,
estabelece vínculos com experiências anteriores adquiridas ao longo de sua trajetória
formativa. Trata-se de um processo longo que envolve questionamentos, hipóteses,
mudanças de direcionamento, assunção de novos contornos, amadurecimento,
(re)escritas constantes... E foi assim que o presente estudo se desenrolou.

Entre memórias, apropriações e experiências: a constituição do objeto de


estudo

O percurso que deu origem à elaboração do projeto de pesquisa para esta


tese de doutorado iniciou-se em 2010, quando fui aprovada na seleção de bolsistas
para compor o primeiro subprojeto do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de
Araraquara, onde eu realizava a graduação em Pedagogia. Ao ingressar no
Programa, tive a oportunidade de conhecer e integrar de modo privilegiado o interior
de uma escola pública, sob orientação do professor coordenador do subprojeto e da
professora supervisora responsável pela mediação entre nós, bolsistas, e as
professoras que lá trabalhavam.
O contato frequente com o universo escolar, promovido pela atuação no
PIBID, mais do que fazer emergir um olhar atento e reflexivo acerca dos fenômenos
ocorridos na escola como um todo, me permitiu sentir a complexidade do trabalho
docente e seus entrelaçamentos com a formação inicial e as destrezas práticas
arquitetadas cotidianamente ao se experimentar a docência. Assim, à medida que eu
participava das atividades referentes ao processo de ensino (como as de
planejamento de aulas, realização de projetos temáticos, seleção de materiais
complementares e correção de provas) e que observava e registrava os eventos
diários em sala de aula, fui me integrando mais à escola e me recolhendo do contexto
vivenciado, quase que simultaneamente. Ao me perceber integrada àquele universo,
desenvolvia aquilo que cabia à minha função e/ou que era solicitado pela professora;
ao me distanciar, por conta das demandas do projeto PIBID, ponderava sobre a
17

importância de mostrar-me diligente e analisava a qualidade das minhas negociações


como bolsista e das atitudes da professora.
O movimento cíclico e ininterrupto de protagonizar e refletir sobre minha
própria formação engendrou alguns questionamentos que me motivaram a dar
continuidade aos estudos, na mesma instituição, em nível de mestrado acadêmico. O
principal objetivo do estudo em questão consistiu em identificar as potencialidades do
PIBID Pedagogia no que tange ao preparo teórico-prático para a docência nos anos
iniciais do ensino fundamental. Para tanto, busquei descrever e analisar os tipos de
atividades realizadas pelas alunas bolsistas no interior das salas de aula e fora delas,
relacionadas direta ou indiretamente ao ensino, bem como as relações estabelecidas
entre as bolsistas e as professoras em exercício, e entre a universidade e as escolas
parceiras.
A partir da apreciação desses tópicos, compreendidos como determinantes
para a qualidade do preparo para o exercício da prática pedagógica, alguns aspectos
inerentes à aprendizagem da docência puderam ser problematizados, entre os quais
se destacaram: a gradativa evolução das percepções sobre o que é ser professora /
professor; a capacidade de trabalho em parceria; a descoberta de espaços de
autonomia do professor; o desenvolvimento de intervenções práticas, de manejo de
conteúdos e de organização da classe; e a construção de posturas colaborativas.
Entretanto, algumas bolsistas não descartaram o fato de – mesmo o PIBID
se configurando como uma iniciativa paralela ao estágio curricular supervisionado –
permanecerem receosas para exercerem a docência, alegando que a promoção de
práticas de ensino no âmbito da formação inicial mostra-se insuficiente para prepará-
las para a profissão. Supõe-se que esse sentimento expressado por elas durante a
pesquisa de campo, torne visível o descompasso entre o modelo de inserção à
docência, culturalmente fundado, “que privilegia o reconhecimento da face
institucional e estável da escola” (GUEDES-PINTO e FONTANA, 2006, p. 83), e a
realidade vivenciada, que apresenta situações imprevisíveis ao planejado. Por conta
dessa constatação recorrente nas disciplinas de estágio, Guedes-Pinto e Fontana
(2006) enumeram alguns apontamentos teórico-metodológicos para o
desenvolvimento de uma aproximação e compreensão da vida cotidiana das escolas
pelos estudantes estagiários.
18

Por essa perspectiva, nos apontamentos finais da pesquisa mencionada,


sugeri o aprofundamento de estudos que venham a se debruçar em questões
referentes à aprendizagem da docência, considerando-se a faceta do ensino – da
leitura e da escrita, especialmente, já que falamos em formação de professoras
alfabetizadoras –, a fim de que se possam conjecturar profícuos horizontes para o
trabalho docente.
O momento da defesa de minha dissertação de mestrado coincidiu com o
convite que recebi de um professor da universidade para participar, na condição de
formadora da UNESP, do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC)1.
Aceitei sem titubear e, pouco tempo depois, iniciei as atividades previstas.
Os encontros entre formadores 2 do programa e Orientadores de Estudo
(OEs)3 ocorreram, nos dois primeiros anos (2014 e 2015), na Escola de Formação e
Aperfeiçoamento dos Professores (EFAP), em São Paulo. Os OEs eram professores
que se encontravam lotados nos núcleos pedagógicos das Diretorias de Ensino (DEs)
do município e região. A dinâmica dos encontros previa um efeito multiplicador, ou
seja, a formação que os formadores ministravam aos OEs, posteriormente seria
multiplicada por eles para os Professores Alfabetizadores (PAs)4 da rede.
Ciente desse formato da proposta e de minhas atribuições, passei a
preparar-me para o primeiro contato, que aconteceria em um anfiteatro diante de mais
de duzentos profissionais. Por mais que tivesse estudado todo o material e preparado
a apresentação cuidadosamente, lembro-me que algumas incertezas me perseguiam:
Será que as professoras e os professores irão validar a minha fala? Será que
esbarrarei em preconceitos em virtude de minha idade (na época, com 26 anos – o
que correspondia ao tempo de magistério de parcela significativa daqueles

1
O Programa, deliberado em 2012 pelo Ministério da Educação (MEC), iniciado efetivamente em 2013
e vigente até 2018, consiste em um acordo firmado entre o Governo Federal, estados e municípios
com o objetivo de estabelecer o compromisso de alfabetizar os alunos das redes públicas de ensino
ao longo do ciclo de alfabetização, ou seja, até os oito anos de idade ou terceiro ano do Ensino
Fundamental.
2
Professores e/ou pós-graduandos vinculados a Instituições de Ensino Superior para conduzirem a
formação aos Orientadores de Estudo, conforme as propostas presentes nos cadernos de estudo.
3
Profissionais vinculados às Diretorias de Ensino municipais responsáveis por multiplicar a formação
oferecida pelos formadores aos Professores Alfabetizadores.
4
Professores atuantes nos anos iniciais do ensino fundamental responsáveis pelo ensino direto às
crianças no espaço escolar.
19

profissionais)? Enfim, mesmo sem saber qual seria o desfecho, respirei fundo e
enfrentei o desafio. Para minha surpresa, foi melhor do que poderia esperar. Os
docentes, como receado por mim, comentaram sobre a minha pouca idade, ao mesmo
tempo em que ressaltaram uma fala impregnada de otimismo e do oxigênio que eles
precisavam para revigorar suas práticas. E, claro, fiquei muito feliz!
Com o tempo fui estreitando as relações com o grupo docente e esse
movimento, permeado por leituras e releituras constantes, me permitiu identificar suas
necessidades formativas. Embora tenha atuado em diferentes municípios (dois anos
em São Paulo, um ano em Ribeirão Preto e um ano em São José do Rio Preto), com
diferentes demandas e especificidades, mostrou-se comum a urgência por diretrizes
que conduzissem à melhoria da atuação docente face ao que consideravam seu maior
desafio: o ensino da leitura e da escrita da língua portuguesa.
Essa necessidade, que denotou angústias, preocupações e até mesmo
certo imediatismo, me fez recordar a sensação de despreparo relatada pelas
licenciandas participantes de minha pesquisa de mestrado. Em ambos os casos,
pôde-se depreender que existe uma busca por “receitas”, por modelos. E, ainda que
tal busca não seja de todo contestável, uma vez que exemplos bem-sucedidos são
importantes para que os professores balizem e desenvolvam suas aulas, a ideia de
uma formação que visasse fornecer respostas prontas a serem
reproduzidas/aplicadas em qualquer contexto, me provocava desconforto. Nesse
sentido, sempre procurava atuar de modo a realçar a importância da construção de
boas práticas escolares5, apostando na inventividade docente.
Entre transformações e permanências na forma de compreender a
docência, considero que as formações foram bastante produtivas, tanto no que diz
respeito ao seu objetivo principal, centrado na formação de docentes para outras
perspectivas de ensino da leitura e da escrita no ciclo de alfabetização, quanto na
problematização de temas concernentes à constituição da docência em contexto de
mudanças e aprendizagens constantes. Tomando esse último aspecto como chave

5
BATISTA (2019), em sua dissertação, procura abordar a complexa relação entre teoria e prática na
formação continuada de professores. Interessada em conhecer os impactos do PNAIC na perspectiva
teórica das práticas pedagógicas das professoras, por meio da metodologia da História Oral, busca
definir o que seriam “boas” práticas. Seu trabalho indica que, para se atribuir essa qualificação, é
imprescindível levar em consideração os processos particulares de constituição profissional de cada
professora.
20

analítica, em meados de 2017 elaborei o projeto de doutorado que me oportunizou


ingressar na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(FE/UNICAMP) em 2018.
O projeto em questão apresentou como tema central os desdobramentos
das ações do PNAIC no desenvolvimento profissional docente. A proposta de
realização da pesquisa pretendia coletar e analisar relatos de professoras
alfabetizadoras participantes do programa, com o intuito de entender os sentidos
atribuídos por elas ao PNAIC e suas percepções sobre os desdobramentos da
iniciativa em suas práticas pedagógicas. No entanto, o mote que, até pouco tempo
era incipiente na esfera da pesquisa, passou a ganhar relevo nos programas de pós-
graduação com abordagens semelhantes – o que foi evidenciado nas revisões de
literatura e corroborado no recente mapeamento organizado por Alferes e Mainardes
(2019)6 – e, embora cada estudo detenha características próprias, isso resultou na
subtração de originalidade da perspectiva que eu pretendia adotar. Com essa
experiência pude perceber a relevância de consultar regularmente as publicações da
área e de me preocupar com os possíveis avanços que meu trabalho possa suscitar.
Reiterando as linhas iniciais desta Apresentação, enfatizo que o processo
de (re)escrita da pesquisa costuma ser algo esperado, seja em virtude de um
ajustamento do recorte proposto ou de outros olhares que venham a se manifestar.
Conforme salienta Valdemarin (2010), na prática de pesquisa estão presentes
também as apropriações, pelo pesquisador, de bibliografia mobilizada para a
compreensão de determinado tema, que por sua vez, impacta com a atribuição de
novos significados e direcionamentos. Assim, chamo atenção para os efeitos que as
disciplinas cursadas no Doutorado, os estudos e pesquisas promovidos pelo grupo de
estudos “Alfabetização, Leitura e Escrita & Trabalho Docente na Formação Inicial”
(ALLE/AULA), do qual sou membro, as aprendizagens incorporadas ao cumprir o
estágio docente7 com a supervisão de minha orientadora, e as próprias reuniões de

6
O artigo apresenta uma revisão de literatura sobre o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC), abrangendo 64 trabalhos, do período de 2013 até 2016.
7
Trata-se do Programa de Estágio Docente (PED), oferecido pela Faculdade de Educação da
UNICAMP. Minha participação ocorreu durante o primeiro período letivo de 2019, no Grupo C -
Atividades de Apoio à Docência Parcial, junto à disciplina EP152 – Didática: Teoria Pedagógica, e
durante o segundo período letivo de 2021 (de modo remoto no contexto pandêmico), no Grupo B –
Atividades de Docência Parcial, junto à disciplina EP372 – Avaliação, ambas sob supervisão da Prof.ª
Dr.ª Ana Lúcia Guedes-Pinto.
21

orientação, provocaram no repensar do meu objeto de estudo. As leituras e


discussões realizadas no âmbito dessas diferentes atividades acadêmicas me
provocaram a analisar minha trajetória, vislumbrando a possibilidade de estudar a
formação docente com ênfase em um aspecto que já vinha sendo apontado
insistentemente: o complexo e imprescindível processo de ensino da leitura e da
escrita.
Nesse contexto de novas aprendizagens e de transformação de olhares,
encontrei-me imersa em um referencial – fundamentado na História Cultural – que
preencheu lacunas de meus estudos anteriores sobre a formação de professores. Em
meio aos conceitos que movimentaram meu pensar, destaco o de ‘artes de fazer’,
cunhado por Michel de Certeau para designar as astúcias de sujeitos ordinários em
situações de controle e supervisão, e o ‘paradigma indiciário’, explicitado por Carlo
Ginzburg, na compreensão dos detalhes de dados marginalizados e muitas vezes
negligenciados por nossas pesquisas. As proposições destes e outros autores (como
Anne-Marie Chartier, Michelle Perrot) me inspiraram a enxergar no trabalho dos
professores algumas pistas que demarcam, por exemplo, as reapropriações, os
desvios e os reempregos na relação que esses sujeitos estabelecem com as
formações nas quais se engajam ou tenham que se engajar, por conta de solicitações
vindas de seu exercício de trabalho docente.
Também encontrei morada para meus estudos nas reflexões sobre o
conceito de letramento, especialmente em textos que se apoiam na perspectiva
sociocultural sobre a leitura e a escrita. Compreender que o processo de ensinar a ler
e a escrever demanda conhecer as diferentes estratégias do leitor, os diferentes
suportes/ gêneros de textos, e os diferentes tipos/ intencionalidades de atividades de
leitura, foi fundamental para que pudesse visualizar o entrelaçamento entre o ensino
do sistema alfabético de escrita e a formação docente. Parte desse contínuo empenho
culminou na produção de um artigo, publicado na revista Linha Mestra, compondo o
dossiê sobre leitura organizado pela professora Norma Sandra de Almeida Ferreira,
vice coordenadora do grupo ALLE/AULA. Nesse trabalho, objetivei

[...] analisar as contribuições do PNAIC no que se refere às práticas


de ensino da leitura, considerando como fontes geradoras de dados
os registros de Orientadores de Estudo que acompanharam os
22

Professores Alfabetizadores, em 2015, e os cadernos de formação


disponibilizados no mesmo ano. (SOUZA, 2020, p. 28).

Além das apropriações provenientes de minhas memórias formativas e da


linha de pesquisa que passei a integrar na UNICAMP, houve outro acontecimento que
me fez firmar a escolha pelo estudo que ora se apresenta: minha admissão, como
professora alfabetizadora, na escola do Serviço Social da Indústria de São Paulo
(SESI-SP) de Araraquara. Ao ingressar na escola, em meados de 2019, assumindo
uma turma de primeiro ano do Ensino Fundamental, pela primeira vez pude sentir as
principais dificuldades que assolam as professoras que atuam nos anos iniciais e são
responsáveis por alfabetizar. Igualmente, o desafio de realizar o curso de Doutorado
e dar aulas na Educação Básica concomitantemente, me oportunizou uma dupla
aprendizagem, já que os estudos da área deram suporte à minha prática, e situações
cotidianas relacionadas ao ensino da leitura e da escrita contribuíram para o traçado
da tese.
Como se pode notar, a constituição desta pesquisa está enredada a uma
série de episódios que circunscrevem uma década de minha vida enquanto estudante/
profissional da educação. Somente após reunir memórias, apropriações e
experiências desse período cheguei ao denominador comum que passou a
caracterizar o interesse do presente estudo, qual seja: as relações entre a formação
de professoras alfabetizadoras8 e as práticas de ensino da leitura e da escrita. Dentre
os diferentes aspectos que poderiam ser observados nessa relação, instigada pelo
referencial teórico-metodológico que dá suporte a esta pesquisa, optei por buscar
indícios de inventividade docente9, realizando um estudo de base bibliográfica que
toma como fonte de dados um conjunto de teses e dissertações oriundo de programas
de pós-graduação em Educação.
A configuração geral da pesquisa, que inclui seus objetivos, hipótese,
delimitação, caminhos metodológicos, referencial teórico e estrutura dos capítulos, é
apresentada a seguir na seção Introdução.

8
Nesta tese, opto por identificar a categoria docente no feminino: professoras alfabetizadoras. Essa
escolha se dá em virtude de a docência na alfabetização ser ocupada majoritariamente por mulheres.
9
Trata-se do objeto de estudo desta tese. Mais adiante explicitarei a elaboração que construí acerca
do conceito de “inventividade docente’.
23

Introdução

(...) no processo de aprendizagem, só aprende


verdadeiramente aquele que se apropria do
aprendido, transformando-o em apreendido, com
o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo; aquele
que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a
situações existenciais concretas.

Paulo Freire, 1983, p. 27.

Conforme mencionado antes, a formação de professoras alfabetizadoras,


seja aquela realizada inicialmente no curso de Pedagogia, ou a que se desenvolve ao
longo da profissão de forma contínua, tem sido alvo constante de preocupações em
pesquisas que abordam suas contribuições para as práticas de ensino (IMBERNÓN,
2010; 2016; LIBÂNEO, 2015; SOUZA, 2020; SOUZA, LOURENÇO e
PASSALACQUA, 2020), especialmente da leitura e da escrita nos anos iniciais do
Ensino Fundamental. Preocupações essas que são fruto da divergência entre as
concepções de ensino de leitura e escrita mediadas pelas formações e incorporadas/
ressignificadas pelos docentes e/ou da persistente dificuldade deles (dos docentes)
para minimizar os desafios que a leitura e a escrita representam para seus alunos.
De acordo com Kleiman (1989), ao abordar o ensino da escrita na escola
no final dos anos 1980, o contexto escolar tende a não favorecer as atividades de
leitura e escrita, visto que nele, muitas vezes, estas baseiam-se em procedimentos de
decodificação e codificação e constituem-se apenas em pretextos para cópias e outras
atividades relacionadas à língua. Essa postura, nas palavras da autora, faz com que
o estudante se perca em relação aos objetivos da leitura, começando a ler “sem ter
ideia de onde quer chegar, e, portanto, a questão de como irá chegar lá (isto é, das
estratégias de leitura) nem sequer se põe” (KLEIMAN, 1989, p. 30), bem como em
relação à construção da escrita.
Em uma produção mais recente, a autora afirma que se focalizarmos a
concepção do objeto de ensino - a língua escrita -, podemos concluir que, embora
mais bem preparadas do ponto de vista dos objetivos visados, as práticas de uso da
língua escrita mobilizadas atualmente na escola ainda trazem resquícios das décadas
de 1980 e 1990 (KLEIMAN, 2014). Nessa direção, a autora conclui que:
24

[...] assim como o aluno não pode se limitar ao papel de consumidor


acrítico de produtos e de ideias, o professor também deve se constituir
num produtor dos seus próprios pensamentos, criando atividades de
ensino significativas para o aluno por meio do engajamento em
práticas para o acesso, seleção e uso de textos multimodais da cultura
digital. Se é exigido da escola que forme sujeitos autônomos e
emancipados e não autômatos, o ensino superior deve também formar
professores que não se limitem a ‘aplicar’ teorias impostas pela
academia (KLEIMAN, 2014, p. 89).

Assim sendo, a necessidade de uma formação que oportunize aos


professores ensinar a ler e escrever com base na seleção de textos autênticos,
integrais, diversificados e que façam parte do cotidiano de seus alunos, faz-se
urgente. Formação essa em que a mediação docente seja orientada para que os
alunos aprendam modos de ler e de escrever que lhes permitam entender que o
sentido do texto não é um resultado automático da relação entre grafemas e suas
correspondências sonoras, e que o propósito da leitura e da escrita tem suas próprias
especificidades (GUEDES-PINTO, 2002; TERZI, 1995).
Ainda que o processo formativo formal seja inegavelmente importante para
o aprimoramento constante do trabalho docente, o presente estudo assume o
pressuposto de que há um movimento tático e autoral situado entre a formação de
professores e professoras e as práticas de ensino que desenvolvem cotidianamente.
Movimento este aqui denominado inventividade (CERTEAU, 1994), que se manifesta
em reações, falas, olhares, gestos, pontos de vista, registros escritos, na bricolagem10
entre o tradicional e as apropriações e em outros aspectos nem sempre percebidos.
Diante do exposto, o objetivo geral desta tese está centrado em inferir a
inventividade docente, por meio de indícios, na relação entre a formação de
professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino da leitura e da escrita, a partir da
análise de teses e dissertações produzidas entre os anos de 2015 e 2019 em
programas de pós-graduação em Educação das três universidades estaduais
paulistas 11 (Universidade Estadual Paulista – UNESP, Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP e Universidade de São Paulo – USP). Foi, também, delineado
um objetivo específico para dirigir o desenvolvimento do trabalho: 1) Descrever e

10
Oriundo do francês, o termo bricolage se refere a um trabalho manual feito de improviso e que
aproveita materiais diferentes. Certeau (1994) utilizou a noção de bricolagem para representar a união
de diferentes elementos culturais.
11
Esta delimitação é justificada no capítulo sobre o percurso metodológico.
25

analisar como as narrativas de pesquisas abordam as diferentes apropriações feitas


por professoras alfabetizadoras ao ensinarem a leitura e a escrita.
Para atingir tais objetivos, a opção metodológica da pesquisa consistiu na
realização de estudo qualitativo do tipo bibliográfico, o qual fornece contribuições
teóricas ao percurso investigativo mediante orientações temáticas, referenciais, além
de fornecer novas possibilidades investigativas (CARDOSO, SANTOS e COSTA,
2014; FERREIRA, 2001; NÓBREGA-THERRIEN, FARIAS e NUNES, 2011;
SEVERINO, 2007). Fonseca (2002, p. 32 apud MARTINS, SCHUMACHER e
SOARES, 2014, p. 714) delimita uma explicação a respeito dessa abordagem,
afirmando que há pesquisas que se fundamentam

[...] unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando referências


teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou
conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do qual se procura
a resposta.

Como método de produção de conhecimento, a pesquisa bibliográfica


possui uma natureza teórica, partindo da identificação de conceitos chaves do objeto
de estudo, passando pela seleção, organização, sistematização das relações entre
ideias, chegando à elaboração da síntese, possibilitando a ampliação e a produção
de conhecimentos outros sobre o objeto em questão (FARIAS e SILVA, 2009).
Conforme destaca Ferreira (2001), é necessário “inventariar e descrever” a produção
encontrada e, observando os achados, classificá-los a fim de organizá-los. A partir do
inventário construído, consegue-se chegar a focos temáticos, refinando-se então o
próprio foco do estudo.
Destarte, ao delimitar definitivamente o objeto de estudo da pesquisa, no
segundo semestre de 2019, iniciei uma investigação12 por trabalhos acadêmicos no
Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). Dentre os 1530 trabalhos localizados a partir do
refinamento efetuado, foram selecionados, após triagem de títulos, 94 trabalhos.
Destes, 25 foram incorporados à presente pesquisa por corresponderem
especificamente ao propósito do estudo.

12
O detalhamento da busca realizada no banco de teses e dissertações da CAPES é explicitado no
terceiro capítulo, que aborda os aspectos metodológicos da pesquisa.
26

O olhar para os dados suscitados nos referidos trabalhos fundamenta-se


no referencial teórico da História Cultural. Tomando a ótica de autores como Certeau
(1985; 1994; 1996) e Chartier (2000; 2007; 2016), a formação de professores é
entendida como um processo que prevê um conjunto de prescrições / orientações que
podem balizar o trabalho docente, sem, de forma alguma engessá-lo. Isso porque,
apesar de as formações (institucionais ou não), muitas vezes representarem um
espaçotempo de supervisão e padronização de condutas, defende-se que os
professores tenham mecanismos próprios, ou “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) para
driblar / desviar / rejeitar o que não condiz necessariamente com suas realidades ou
necessidades; ou para se apropriar / reempregar / ajustar / ressignificar o que lhes
parecer pertinente e fizer sentido quando integrado a situações cotidianas.
Como se pode notar, o referencial da História Cultural e os estudos que
concebem o ensino da leitura e da escrita na perspectiva sociocultural têm um aspecto
comum: a ideia de que só se aprende algo quando são estabelecidos sentidos /
significados. Em outras palavras, e reiterando a epígrafe que anuncia esta Introdução,
só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o
em apreendido e cultivando-o em situações reais.
Seguindo a lógica supracitada, depreende-se que uma hipótese possível
para esta investigação seja: as pesquisas em Educação notabilizam indícios de
inventividade na ação docente, no que se refere ao ensino da leitura e da escrita, que
ressignificam o rol de conhecimentos mediados em contexto de formação inicial e
continuada. Os professores, focados pelos pesquisadores em seus estudos, com suas
artes de fazer, empregam diferentes sentidos às ações que realizam no “chão da
escola”, lançando mão de artifícios que transcendem as propostas de documentos
que regulamentam a formação docente, por exemplo.
Esta pesquisa encontra-se estruturada da seguinte maneira:
No primeiro capítulo, intitulado “Formação de professores no Brasil: do
evidente ao negligenciado” apresento uma discussão sobre a formação de
professoras / professores no Brasil, trazendo uma discussão sobre seus aspectos
evidentes, como aqueles amplamente difundidos em documentos oficiais sobre a
formação docente, e elementos negligenciados, isto é, questões que representam
sinuosidades do processo de formação de professores, à luz das concepções da
História Cultural; No segundo capítulo, nomeado “Ensino da leitura e da escrita: a
27

perspectiva sociocultural em foco”, faço referência aos estudos sobre a leitura e a


escrita, também em contexto nacional, destacando as contribuições da perspectiva
sociocultural dos Estudos do Letramento; No terceiro, “Abordagens e percursos
metodológicos do estudo” encarrego-me de explicitar a opção metodológica e os
detalhamentos da investigação de trabalhos empreendida; No quarto capítulo, o qual
denominei “A inventividade docente na relação formação-práticas de ensino de leitura
e escrita: indícios nas pesquisas” realizo o tratamento dos dados, dialogando com os
apontamentos dos trabalhos e com as contribuições do referencial. Por último, nas
Considerações Finais, recupero o processo de construção da pesquisa e seus
objetivos ao passo que destaco os principais indiciamentos produzidos pelo material
bibliográfico analisado.
28

Capítulo 1
Formação de professores no Brasil: do evidente ao negligenciado

No âmago das discussões que envolvem a formação docente reside o


questionamento básico sobre qual conhecimento favorece e fortalece a prática dos
professores para realizarem a complexa tarefa de ensinar ao mesmo tempo em que
também aprendem (SOUZA, LOURENÇO e PASSALACQUA, 2020). Essa
preocupação, presente em documentos oficiais que regulamentam a educação
brasileira, prioriza a busca por ações que visem ao desenvolvimento docente nos
cursos de licenciatura e em cursos/propostas de formação continuada.
Em geral, tais documentos, produzidos pelos órgãos federais, estaduais ou
municipais, apresentam os marcos regulatórios, os objetivos, as propostas de ação,
os conteúdos e pressupostos estruturantes da formação de professores, apontando
caminhos a serem perseguidos na esfera inicial ou continuada. Caminhos esses que
determinam algumas questões amplas/normativas 13, as quais organizo, com base na
leitura dos documentos em questão, em: a) o nível de ensino requerido para a
formação docente; b) a regularidade das atividades de formação; c) estruturas
curriculares dos cursos; d) a proposição ou manutenção de programas formativos. E
questões específicas/prescritivas14, entre as quais pontuo: a) o cumprimento, pelos
professores, das competências e habilidades previstas no currículo; b) o engajamento
individual e coletivo para o aprimoramento da prática pedagógica; c) o acolhimento
aos estudos teóricos que nutrem a área da educação; d) a aplicação de orientações
para o planejamento, a definição de métodos e a organização da avaliação no
processo formativo.
Conforme ressalta Neckel (2014), o teor desses documentos está centrado
na busca por contemplar a organização curricular das instituições de ensino, a
concepção, desenvolvimento e o alcance dos cursos de formação, bem como instituir
um eixo aos projetos pedagógicos, às competências profissionais, entre outros
aspectos. Desse modo, e considerando-se que os documentos oficiais se debruçam

13
Nesse contexto, concebo os termos amplo e normativo como análogos por fazerem referência a
fatores gerais da legislação da área que se dirigem às instituições formadoras.
14
Por questões específicas ou prescritivas compreende-se aquelas voltadas aos sujeitos envolvidos
no processo formativo (formadores das universidades, gestores escolares e os próprios professores).
29

em orientações endereçadas a múltiplos contextos, o que eles nos apresentam em


termos de formação de professores são aspectos que denomino neste capítulo como
evidentes, já que traduzem intenções objetivas com finalidade de monitoramento e
legislação. Por outro lado, cabe observar que tais documentos, apesar de objetivarem
a regulamentação do ensino a partir de sua expectativa legal, são ressignificados a
partir de cada contexto e, sobretudo, a partir das especificidades das escolas e da
intencionalidade dos professores.
Diferentemente das orientações de caráter amplo/normativo, que tendem a
ser acolhidas tal como foram projetadas, por corresponderem a ações regulatórias, as
de caráter específico/prescritivo, ao se acomodarem no território do ensino (inicial ou
contínuo; na universidade ou na escola), costumam tomar direções não
necessariamente idênticas ao que é estabelecido nos documentos. Isso porque as
instituições constituem-se como espaços genuínos de formação docente que
envolvem diferentes reações e relações entre sujeitos, numa construção dialógica de
conhecimentos.
Ao se conceber os sujeitos envolvidos no processo formativo como
produtores de conhecimento, assume-se que esses são, também, inventivos.

Sujeitos que inventam e reinventam, não por causa do que fazem ou


do que dizem, mas porque como ‘personagens secretos’ levam uma
vida própria e com suas forças mudas estendem suas ramificações
que penetram toda rede da vida cotidiana no teatro das relações
(SOUZA, 2019, p. 385).

Tais invenções e o repertório de apropriações e ressignificações que os


professores engendram diante da formação que lhes é mediada, caracterizam o que
aqui designo como aspectos negligenciados15 pelos documentos, por representarem
ações subjetivas. Tomando como pressuposto inicial a coexistência de aspectos
evidentes e negligenciados na formação docente, neste capítulo apresento as
características de cada um deles, respaldando-me em documentos oficiais que
abordam a formação de professoras e professores – sobretudo das alfabetizadoras –
para explicar os primeiros, e no referencial teórico da História Cultural para subsidiar
os segundos.

15
De acordo com Ginzburg (1989), aspectos negligenciados são aqueles que transbordam nos
detalhes, nos vestígios, nos indícios, nos sintomas, nas pistas de um dado contexto.
30

1.1. A formação docente à luz dos documentos oficiais

Dentre os documentos que abordam a formação de professores, pode-se


destacar como principais: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –
LDBEN (BRASIL, 1996), a Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de
Professores da Educação Básica em Cursos de Nível Superior (BRASIL, 2000), os
Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002), as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia (BRASIL, 2006),
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior e para
a Formação Continuada (BRASIL, 2015), e as recentes Base Nacional Comum para
a Formação Inicial de Professores da Educação Básica – BNCF (BRASIL, 2019a) e
Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação
Básica – BNCFC (BRASIL, 2020a).
Cada documento adota uma tônica específica, focalizando aspectos
normativos e prescritivos da formação docente no país. Com o objetivo de apresentar
o que trazem para a discussão aqui proposta, opto por seguir a ordem cronológica de
suas publicações, o que contempla também uma lógica de afunilamento temático,
partindo dos documentos mais abrangentes para os mais particulares.

Figura 1 – Linha do tempo dos documentos oficiais selecionados

Fonte: Elaboração da autora.

A LDBEN, considerada o documento mais amplo por versar sobre variados


assuntos atinentes à área da Educação, dispõe de uma regulamentação da profissão
docente e de diretrizes de estrutura e funcionamento para o sistema educacional
brasileiro. Em se tratando da formação de professores, a abordagem mais enfática
31

desse documento se expressa no Título VI: “Dos Profissionais da Educação”,


compreendendo os artigos 61 a 67.
Logo no início do referido Título, no artigo 61, parágrafo único, artigo I,
menciona-se que a formação do professor deve ser ‘sólida’, de modo que propicie o
conhecimento dos fundamentos científicos e sociais requeridos para o trabalho
docente. Na sequência, explicita-se como tal formação deve ser garantida:

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-


se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena,
em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como
formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil
e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em
nível médio, na modalidade Normal.

§ 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime


de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e
a capacitação dos profissionais de magistério.

§ 2º A formação continuada e a capacitação dos profissionais de


magistério poderão utilizar recursos e tecnologias de educação a
distância.

§ 3º A formação inicial de profissionais de magistério dará preferência


ao ensino presencial, subsidiariamente fazendo uso de recursos e
tecnologias de educação a distância (BRASIL, 1996, p. 43).

Além do destaque para a exigência de formação inicial em nível superior, o


artigo 62 da LDBEN pondera sobre um dos aspectos relevantes da formação docente:
a formação continuada. Por meio da LDBEN, princípios, ações e diretrizes orientam a
formação inicial e continuada e as práticas docentes em todo o país, incitando uma
perspectiva de unidade nos cursos de formação e nas exigências de atuação docente.
Nos artigos subsequentes são apresentadas questões sobre: a) os
requisitos mínimos que devem ser acolhidos pelas Instituições de Ensino Superior
(IEs) formadoras; b) a distribuição de carga horária teórica e prática na formação
inicial; c) a imperiosidade da existência e manutenção de programas de formação
continuada; e d) a garantia de plano de carreira no magistério público. Questões essas
que, justamente por serem normativas e, portanto, gerais, possibilitam uma visão
macro sobre as importantes etapas que os professores atravessam ao longo da
trajetória que antecede e acompanha a profissão.
32

Em suma, olhar para os artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional permitiu a constatação de uma atenção pioneira com a formação do
professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental, já que leis de diretrizes e bases
anteriores não a contemplavam a contento 16.
A partir da promulgação da LDBEN, uma série de medidas normativas
passaram a se preocupar com aspectos da formação docente. Algumas de modo mais
incisivo e outras com apontamentos mais superficiais, mas todas com o intuito de
orientar a formação dos professores em âmbito inicial e/ou contínuo. Entre elas, o
documento intitulado Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores
da Educação Básica em Cursos de Nível Superior, proposto em maio de 2000,
destaca-se por levantar um diagnóstico da situação atual da educação brasileira no
tocante à formação de professores.
Esse documento assume como objetivo realizar uma “proposição de
orientações gerais que apontam na direção da profissionalização do professor e do
atendimento às necessidades atuais da Educação Básica na sociedade brasileira”
(BRASIL, 2000, p. 6). A análise que norteou a elaboração da Proposta no ano de
fechamento do século XX, indicou um panorama alarmante em relação ao processo
ensino-aprendizagem na educação nacional, atribuindo-o fundamentalmente à
ausência de preparo dos professores para o cumprimento de ações como:

• orientar e mediar o ensino para a aprendizagem dos alunos;


• responsabilizar-se pelo sucesso da aprendizagem dos alunos;
• assumir e saber lidar com a diversidade existente entre os alunos;
• incentivar atividades de enriquecimento curricular;
• elaborar e executar projetos para desenvolver conteúdos
curriculares;
• utilizar novas metodologias, estratégias e materiais de apoio;
• desenvolver hábitos de colaboração e trabalho em equipe.
(BRASIL, 2000, p. 5).

Diante das demandas pontuadas, o documento defende a necessidade de


mudanças nos modelos de formação docente, responsabilizando a estrutura
universitária pelas lacunas da formação ao afirmar que os diplomas adquiridos após
a conclusão dos cursos de licenciatura se tratam muito mais de uma “certificação

16
A formação de professores polivalentes para as etapas elementares da Educação Básica esteve
historicamente circunscrita à formação em Nível Médio, diferentemente da formação de professores
especialistas (PEDROSO et al., 2019; SAVIANI, 2012).
33

formal, após o cumprimento de créditos burocraticamente definidos para a área


pedagógica, do que preparação integrada que propicie uma reflexão dos conteúdos
da área com a realidade específica da atuação docente” (p. 21). Verbos como
aperfeiçoar / aprimorar / atualizar / fortalecer / melhorar são recorrentes ao longo de
todo o texto e se reportam às alterações que, no contexto de sua elaboração, se
faziam pertinentes ao currículo dos cursos de licenciatura, à capacidade acadêmica
dos formadores e à avaliação dos cursos de formação de professores.
Assentado no suporte legal, o documento faz referência a “superar as
rupturas que também existem na formação dos professores de crianças, adolescentes
e jovens” (p. 14), sugerindo uma formação de professores que “atenda aos objetivos
da educação básica” (p. 15). Admitindo que […] a desarticulação entre a formação de
professores da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental e a formação
dos professores para os anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio tem
trazido para a formação dos alunos prejuízos de descontinuidade, (pp. 17-18), a
proposta preconiza a necessidade de criação de instituições articuladoras,
denominadas Institutos Superiores de Educação, que poderiam existir no interior, ou
não, das universidades. Tal proposta foi alvo de intensa polêmica e intensa reação da
sociedade civil organizada (SAVIANI, 2012).
Outro aspecto abordado refere-se à importância da manutenção das
iniciativas de formação continuada e sua conexão com a formação inicial, de modo
que alimentem o desenvolvimento profissional permanente que possibilita ao
professor manter-se atualizado e fazer opções em relação aos conteúdos, à
metodologia e à organização didática dos conteúdos que ensina (p. 46).
Ao dirigir críticas contundentes à organização da formação de professores,
a Proposta de Diretrizes reúne aspectos de característica normativa. Ainda que não
aponte de modo direto orientações para o trabalho docente em si, sinaliza as principais
mazelas da educação de crianças e jovens e a primordialidade de mudanças nos
modos de condução do processo de ensino e aprendizagem, recomendando algumas
ações para as instituições formadoras em geral.
Frente ao exposto no documento em questão e mediante aprovação da
reforma educacional da década de 1990, o Ministério da Educação (MEC) apresentou
a reformulação dos Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002), que
teve sua primeira versão tornada pública no ano de 1997.
34

Esse documento “retrata as temáticas que estão permeando o debate


nacional e internacional num momento de construção de um novo perfil profissional
de professor” (BRASIL, 2002, p. 16). Nele, consta a necessidade de investimento na
formação docente como uma medida urgente para a mitigação das dificuldades de
aprendizagem dos alunos da Educação Básica. Apesar de não considerar que o
professor seja o principal responsável pelo insucesso escolar, indica que ele é
“imprescindível para a superação de parte dos problemas educativos” (p. 33).
Importante ressaltar que, ao se referir à formação de professores, o
documento abarca tanto a inicial como a continuada, destacando, inclusive, que a
última é uma necessidade intrínseca à educação e deve permear todo o processo de
desenvolvimento profissional. No tocante a essa questão, salienta-se ainda que deve
ser assegurado ao professor “a criação de condições para que a formação continuada
possa ocorrer dentro da jornada regular de trabalho, sem prejuízo das horas de
docência” (BRASIL, 2002, p. 135). Uma formação que propicie “atualizações e
aprofundamento das temáticas educacionais numa reflexão sobre a prática educativa,
promovendo um processo constante de autoavaliação que oriente a construção
contínua de competências profissionais” (p. 70).
Não obstante o documento nos apresente uma perspectiva mais
prescritiva, principalmente na Parte III, “Uma proposta de formação profissional de
professores” – na qual dispõe orientações específicas sobre aspectos epistêmicos,
metodológicos e curriculares para a formação docente –, ressalta que “a realidade
brasileira, complexa e heterogênea, não permite que a formação de professores seja
compreendida como um processo linear, simples e único” (BRASIL, 2002, p. 16).
Nesse sentido, embora as prescrições do documento oficial transpareçam a ideia de
controle, nota-se o reconhecimento das especificidades presentes nos diferentes
contextos educacionais e formativos.
O que se pode depreender em relação às orientações dos Referenciais é
que esse documento, assim como outros promulgados pós LDB, busca a qualificação
da formação de professores a partir de ações consideradas assertivas para o
momento em que foram conjecturados – marcado por intensos problemas na
educação, como a retenção de um número considerável de alunos nos quintos e
sextos anos do Ensino Fundamental.
35

Como principais medidas para a minimização dos percalços identificados


foram propostas mudanças na formação docente com o intuito de provocar impactos
positivos na educação desde as séries iniciais. Destarte, a formação do professor
polivalente, atuante nos primeiros anos do Ensino Fundamental, que se tornou
requerida em nível superior, culminou na deliberação de resoluções, entre as quais
chamo a atenção para a CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006, que institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia.
Tal documento destina-se “à formação inicial para o exercício da docência
na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental [...]” (BRASIL, 2006,
p. 1) e define princípios, condições de ensino e de aprendizagem, procedimentos a
serem observados no planejamento e na avaliação, pelos órgãos dos sistemas de
ensino e pelas instituições de educação superior do país. Trata-se de um documento
que apresenta delineamentos normativos, mas essencialmente prescritivos para a
formação docente no âmbito do curso de Pedagogia, o que se evidencia pela
frequência em que termos como aplicação são mencionados no texto, conforme se
pode observar em:

a) aplicação de princípios, concepções e critérios oriundos de


diferentes áreas do conhecimento, com pertinência ao campo da
Pedagogia, que contribuam para o desenvolvimento das pessoas, das
organizações e da sociedade;
b) aplicação de princípios da gestão democrática em espaços
escolares e não-escolares;
[...]
e) aplicação, em práticas educativas, de conhecimentos de processos
de desenvolvimento de crianças, adolescentes, jovens e adultos, nas
dimensões física, cognitiva, afetiva, estética, cultural, lúdica, artística,
ética e biossocial.
[...]
l) estudo, aplicação e avaliação dos textos legais relativos à
organização da educação nacional. (BRASIL, 2006, pp. 3-4).

Assim como consta em documentos anteriores, o texto das Diretrizes exalta


a autonomia pedagógica das instituições para a idealização dos contornos formativos,
“respeitando a diversidade nacional e a multiculturalidade da sociedade brasileira”
(BRASIL, 2006, p. 3). No entanto, suas orientações assumem um formato
padronizado que não visibiliza aspectos passíveis de reorganização, deixando
algumas interrogações, como as levantadas por Scheibe (2007, pp. 60-61):
36

Qual é efetivamente o grau de autonomia e flexibilização que os


projetos político-pedagógicos têm em relação à constituição dos
cursos? Que critérios serão necessários que para assegurar a
certificação dos trabalhos possíveis de serem realizados pelo
licenciado em Pedagogia? Quanto ao estágio supervisionado (mínimo
de 300 horas), haverá determinações mais específicas, que depois
serão cobradas pelos indicadores de avaliação dos cursos? Sem falar
no desafio contido também na definição dos componentes de
conteúdos necessários para abranger a formação proposta.

Diante de imprecisões dessa natureza, constatadas no documento, nos


anos que sucederam a resolução que institui as Diretrizes para o Curso de Pedagogia
intensificaram-se discussões sobre a necessidade de adequação de suas
disposições, que resultaram na publicação, em 2015, das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior e para a Formação Continuada,
apresentando-se um texto cujos apontamentos foram vistos como frutos de um debate
democrático nacional por refletirem a concepção e os princípios da ideia de base
comum nacional para a formação de professores edificada pelo movimento dos
educadores (ANPEd, 2019).
Esse documento, com características normativas e prescritivas, contempla
aspectos importantes no que se refere, por exemplo, ao exercício do estágio
curricular, ao reconhecimento da escola como lócus privilegiado de formação, e à
relação de unidade entre teoria e prática (BRASIL, 2015). A formação continuada, por
sua vez, é concebida como uma prática que decorre do desenvolvimento dos
profissionais do magistério.

Art. 16. A formação continuada compreende dimensões coletivas,


organizacionais e profissionais, bem como o repensar do processo
pedagógico, dos saberes e valores, e envolve atividades de extensão,
grupos de estudos, reuniões pedagógicas, cursos, programas e ações
para além da formação mínima exigida ao exercício do magistério na
educação básica, tendo como principal finalidade a reflexão sobre a
prática educacional e a busca de aperfeiçoamento técnico,
pedagógico, ético e político do profissional docente.

O documento assume a complexidade da docência e elenca um rol de


conhecimentos essenciais para repertoriar a atuação dos professores nas diferentes
etapas de seu processo formativo. No entanto, com a mudança de governo 17 e a
consequente movimentação no comando de importantes pastas, inclusive a da
Educação, as Diretrizes passaram por uma reformulação. Em 2018, o então Ministro

17
Como golpe de estado, em que foi aprovado o impeachment a Presidente Dilma Rousseff, um novo
governo, com a condução do presidente Michel Temer, há uma nova orientação em movimento.
37

da Educação Rossieli Soares, entregou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a


Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica
(BNCF) com o objetivo de orientar uma linguagem comum sobre o que se espera da
formação de professores – para que tenha foco na prática da sala de aula e esteja
alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC)18, instituída em 2017. A BNCF
foi homologada pela Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de dezembro de 2019. Seu
caráter fundamentalmente prescritivo evidencia-se logo no Artigo 2º, ao afirmar que:

A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando,


das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem
como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos
estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e
emocional (BRASIL, 2019).

A primazia de uma formação pensada para atender aos desígnios da BNCC


– já bastante questionados por profissionais / pesquisadores da educação – bem
como para ‘formatar a educação’ tem provocado incômodo no meio acadêmico e nas
esferas sociais responsáveis pela formação profissional. A Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) publicou em outubro de 2019 seu
posicionamento de apelo à manutenção das Diretrizes de 2015 e de insatisfação em
relação ao documento vigente, pontuando que ele representa:

1. Uma formação de professores de “uma nota só”;


2. Uma proposta de formação que desconsidera o pensamento
educacional brasileiro;
3. Uma proposta de formação docente que desvaloriza a dimensão
teórica;
4. Uma proposta de formação ‘puxada’ pela competência
socioemocional;
5. Um texto higiênico em relação à condição social do licenciando;
6. Uma formação que repagina ideias que não deram certo;
7. Uma proposta que estimula uma formação fast food;
8. Uma formação de professores com menos recurso;
9. Uma formação que não reconhece que o professor toma decisões
curriculares (ANPEd, 2019).

A leitura do referido documento permite a identificação de uma tentativa de


engessamento da formação inicial de professores que, além de ambicionar a
padronização dos processos formativos com ênfase na cultura praticista, privilegia

18
Trata-se de “um documento de caráter normativo, que define o conjunto orgânico e progressivo de
aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 5).
38

aspectos que seguem na contramão das preocupações explicitadas pelo movimento


dos educadores e das entidades científicas da área. O tom prescritivo e tutorial é
exacerbado, chegando a minutar seu processo de orientação (ANPEd, 2019).
Seguindo percursos semelhantes aos adotados na BNCF, em 27 de
outubro de 2020 instituiu-se uma resolução que dispõe sobre a Base Nacional Comum
para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNCFC), “a qual
deve ser implementada em todas as modalidades dos cursos e programas destinados
à formação continuada de Professores da Educação Básica” (BRASIL, 2020a, p. 2).
Esse documento, também prescritivo, define competências gerais e específicas
baseadas em três dimensões: I - conhecimento profissional; II - prática profissional; e
III - engajamento profissional.
Além de orientações bem definidas para as iniciativas de formação
continuada (como os programas institucionais), o documento em seu Artigo 11º apoia
as políticas para a Formação ao Longo da Vida, em Serviço, implementadas pelas
escolas, redes escolares ou sistemas de ensino, por si ou em parcerias com outras
instituições, e estabelece que devem ser desenvolvidas em consonância com as reais
necessidades dos contextos e ambientes de atuação dos professores. No Artigo 13º
complementa que “a Formação Continuada em Serviço deve oferecer aos docentes a
oportunidade de aprender, junto com seus colegas de trabalho, com suporte de um
formador experiente” (BRASIL, 2020, p. 6).
Assim como a Base Comum destinada à formação inicial, a que se
direciona à formação continuada também propaga a supervalorização da esfera
prática da formação. Ainda que seja legítimo as formações considerarem aspectos
relacionados ao contexto de atuação prática, uma vez que os professores tendem a
apreciar momentos formativos que dialoguem com questões demandadas pelo
cotidiano (SOUZA, LOURENÇO e PASSALACQUA, 2020), é importante frisar que os
conhecimentos teóricos ocupam espaço igualmente relevante no território formativo,
como fundamentação para reflexões sobe a própria prática do cotidiano escolar e
sobre as perspectivas didático-pedagógicas. Portanto, a sobreposição de
conhecimentos práticos em prejuízo dos teóricos, tal como é proposto no documento,
é criticável, pois indica uma concepção meramente pragmática e utilitarista.
Outra abordagem considerada questionável no documento é a ênfase
exacerbada nas competências socioemocionais. Segundo o posicionamento da
39

ANPEd, essa preocupação produz uma inversão na lógica da profissão docente, uma
vez que reduz o professor a um mero acolhedor e atenua o papel da escola enquanto
espaço de construção e formação de bases para o desenvolvimento cognitivo.
A linha do tempo dos documentos oficiais, brevemente apresentada,
mostra o movimento dos aspectos evidentes que consubstanciam a formação docente
em suas faces normativa e prescritiva. Trata-se, conforme já explicitado, de questões
objetivas importantes para a orientação dos processos formativos. O quadro-síntese
resgata e ilustra o foco de cada documento selecionado:

Quadro 1 – Síntese dos documentos que abordam a formação docente

Documento / Ano Caráter Apontamentos principais

Lei de Diretrizes e Bases da Determina que a formação do professor dar-se-á em


Educação Nacional Normativo curso de nível superior e reitera a imperiosidade da
(1996) manutenção de programas de formação continuada.

Proposta de Diretrizes para a Realiza um diagnóstico da situação atual da educação


Formação Inicial de Professores da brasileira no tocante à formação de professores.
Educação Básica em Cursos de Preconiza a criação de Institutos Superiores de
Normativo
Nível Superior Educação para a diminuição o distanciamento entre
professores que atuam em diferentes níveis de
(2000) ensino.

Referenciais para Formação de Defende a qualificação da formação inicial e contínua


Professores Normativo e
de professores e dispõe orientações específicas sobre
prescritivo
(2002) aspectos epistêmicos, metodológicos e curriculares.

Diretrizes Curriculares Nacionais Define princípios, condições de ensino e de


para o Curso de Graduação em aprendizagem, procedimentos a serem observados no
Normativo e
Pedagogia. planejamento e na avaliação, pelos órgãos dos
prescritivo
sistemas de ensino e pelas instituições de educação
(2006) superior do país.

Diretrizes Curriculares Nacionais Contempla aspectos importantes no que se refere, por


para a Formação Inicial em Nível exemplo, ao exercício do estágio curricular, ao
Superior e para a Formação Normativo e
reconhecimento da escola como lócus privilegiado de
Continuada prescritivo
formação, e à relação de unidade entre teoria e
(2015) prática.

Base Nacional Comum para a Defende o desenvolvimento, pelo licenciando, das


Formação Inicial de Professores da competências gerais previstas na BNCC-Educação
Educação Básica Prescritivo Básica, e a primazia de uma formação prática que
contemple um conjunto de competências, sobretudo
(2019) socioemocionais.

Base Nacional Comum para a Define competências gerais e específicas baseadas em


Formação Continuada de três dimensões: conhecimento profissional; prática
Professores da Educação Básica Prescritivo profissional; e engajamento profissional. Apoia políticas
de Formação em Serviço que se ancorem em saberes
(2020) essencialmente práticos.

Fonte: Elaboração da autora.


40

O quadro evidencia um movimento que parte do caráter normativo para o


essencialmente prescritivo. Os documentos produzidos em décadas anteriores
concentram seus focos em questões legais, princípios orientadores, a gênese que se
deve conferir ao curso de Pedagogia, panoramas educacionais, e direitos e
atribuições dos professores e das instituições formadoras.
Esses documentos são tratados por pesquisadores(as) que os analisaram
sob a ótica do estado da arte, como o de Gatti, Barretto e André (2011), sendo
considerados relevantes, entre outras razões, por se mostrarem preocupados em
aprimorar os cursos de formação inicial e continuada e de fornecerem um diagnóstico
sobre a situação da educação, que contribuiu para a formulação da Política Nacional
de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica19 (BRASIL, 2009),
enveredada pelos princípios de:

garantia do padrão de qualidade que devem ter os cursos de formação


docente; articulação entre teoria e prática e indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão; reconhecimento da escola como espaço
de formação; importância do professor no processo educativo escolar
e necessidade de sua valorização profissional; articulação entre
formação inicial e continuada e entre os níveis de ensino (OLIVEIRA
e LEIRO, 2019, p. 12)

Embora as análises de estudiosos da área (SCHEIBE, 2010; GATTI e


BARRETTO, 2009; EVANGELISTA e TRICHES, 2008) indiquem fragilidades nos
documentos em questão, sobretudo nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Curso de Graduação em Pedagogia – devido aos impasses para sua efetivação ao
exigir das IES uma estrutura que ainda não é identificada e reconhecida em sua
grande parcela –, o fato de não transparecerem a intenção de padronização da
formação docente e, por conseguinte, do trabalho do professor, configura um aspecto
positivo.
A mesma impressão não se pode ter, no entanto, em relação aos
documentos contemporâneos – BNCF e BNCFC –, que parecem se ocupar da
definição de caminhos específicos para o desenvolvimento da docência em todo e

19
Prevê um regime de colaboração entre União, estados e municípios, para a elaboração de um plano
estratégico de formação inicial para os professores que atuam nas escolas públicas. A Política foi
reformulada em 2016, de modo a ficar em consonância com o Plano Nacional de Educação
(PNE), aprovado pela Lei nº 13.005, de 24 de junho de 2014.
41

qualquer contexto, ferindo a autonomia dos professores e sua capacidade de tomar


decisões, e também das secretarias estaduais e municipais de educação.
As mudanças, nem sempre gradativas, que podemos visualizar nas
elaborações legais ao longo dos últimos anos refletem as prioridades e preferências
assumidas em diferentes perspectivas políticas em detrimento das reais necessidades
de professores e professoras do país. Isso se faz perceptível na gestão atual, que
propõe continuamente o enfraquecimento ou a ruptura de uma série de iniciativas que
vinham sendo desenvolvidas, como o PNAIC20, no âmbito da formação de docentes
que atuam no ciclo de alfabetização.
Na esteira do exposto, vale ressaltar que a formação de alfabetizadoras, a
qual estabelece diálogo direto com o cerne desta tese, e aspectos relacionados ao
ensino da leitura e da escrita, ainda que não sejam explicitamente tratados nos
documentos eleitos para análise, se correlacionam com as propostas das políticas a
eles subjacentes. Sobre isso, discorro a seguir.

1.1.1. Implicações dos documentos para a formação de alfabetizadoras

O conjunto de documentos oficiais eleito para apresentar, neste capítulo,


os movimentos das orientações para a formação docente a partir do marco legal da
LDBEN 21 focalizam aspectos gerais que não citam e, tampouco pormenorizam,
processos formativos específicos, como concepções ou métodos para alfabetizar.
Porém, como comentado anteriormente, os apontamentos oriundos de tais
documentos representam importante fonte de dados para a configuração de medidas
formativas que se materializaram sob a forma de programas e políticas, entre os quais
chamo a atenção para o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
(PROFA), o Pró-Letramento, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC) e a recente Política Nacional de Alfabetização.
Na tentativa de sanar problemas evidenciados nos diagnósticos
educacionais, bem como de fortalecer a formação de professores(as) que cursaram
Pedagogia e que são responsáveis pelo processo de alfabetização, há décadas

20
Não há referência ao PNAIC na recente Política Nacional de Alfabetização – PNE (BRASIL, 2019b).
21
Tomando como referência temporal o Brasil redemocratizado, pode-se afirmar que as políticas
públicas voltadas à alfabetização começaram a ser criadas a partir da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDBEN 9394/96 (TEIXEIRA e SILVA, 2021).
42

considerado defasado em virtude dos altos índices de repetência e do


desenvolvimento insuficiente da leitura e escrita, em 2001, no governo do então
presidente Fernando Henrique Cardoso, a Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação formulou o PROFA.
As ações de formação do PROFA, organizadas em unidades, visavam à
ampliação do universo de conhecimento das professoras sobre teorias de
alfabetização, de base construtivista, e à reflexão sobre a prática profissional. O
documento orientador do programa aponta que se trata de:

[...] curso anual de formação destinado especialmente a professores


que ensinam a ler e escrever na Educação Infantil e no Ensino
Fundamental, tanto crianças como jovens e adultos. Embora seja
destinado, em especial, a professores que alfabetizam, é aberto a
outros profissionais da educação que pretendem aprofundar seus
conhecimentos sobre o ensino e a aprendizagem no período de
alfabetização. Por se tratar de um curso que aborda especificamente
o ensino e a aprendizagem iniciais da leitura e da escrita, não substitui
programas destinados ao trabalho com outros conteúdos da formação
profissional (BRASIL, 2001, p. 20).

O Programa buscou orientar o trabalho de professoras, partindo da


identificação das concepções teóricas de fundamentação para o ensino da língua
portuguesa. Propôs, ainda, o estudo da Psicogênese da Língua Escrita, seguindo os
pressupostos teóricos de Emília Ferreiro, Ana Teberosky e Telma Weisz. Apresentou
uma disposição metodológica de ensino baseada em situações diversificadas, tais
como a escrita de nomes próprios, de listas e de textos que os alunos sabem de cor,
transformação e análise de textos, reflexão sobre a pontuação, ortografia e revisão
textual (CAMPOS, 2006).
Após quatro anos de realização, o PROFA foi encerrado em sua
configuração inicial, mas sua gênese permaneceu inspirando outras propostas
formativas que passaram a existir, especialmente na rede estadual de São Paulo
(como o Programa Ler e Escrever). Em 2005, com o intuito de investir no avanço da
alfabetização, na gestão presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva foi lançado o
programa Pró-Letramento.
De acordo com Teixeira e Silva (2021), que levantaram e analisaram o
histórico das políticas docentes para a alfabetização, contemplando o mesmo período
abordado nesta tese, enquanto no PROFA a professora era orientada a construir
43

estratégias metodológicas para pensar sobre o Sistema de Escrita Alfabética – SEA,


de modo a desafiar seus alunos a construírem suas próprias hipóteses, no Pró-
Letramento legitimou-se o reconhecimento de que explorar apenas materiais
produzidos para alfabetizar não era o suficiente. Desse modo, a formação docente
passou a ampliar o sentido da alfabetização, agregando mais enfaticamente a esse
processo o conceito de letramento. O lema “alfabetizar letrando” se tornou quase um
identificador da proposta, tendo fornecido uma orientação para o ensino do SEA na
relação com as práticas sociais de uso da escrita.
Nas palavras de Gontijo (2014, p. 70) o Pró–Letramento “é um programa
de formação de professores das séries iniciais do ensino fundamental e tem por
objetivo a melhoria dos níveis de desempenho em leitura e escrita”. A autora
prossegue afirmando que é possível verificar, no contexto desse programa, a difusão
rápida entre os professores e professoras da nova perspectiva do letramento adotada
pelo MEC. Os conceitos de alfabetização e letramento que orientam a formação
docente são tratados no fascículo I e os autores que o assinam tentam, por meio da
apresentação de uma perspectiva histórica do conceito de alfabetização, evidenciar
as possibilidades de conciliação entre o ensino do SEA e a participação na cultura
escrita. Segundo eles, o termo alfabetização passa a:

[...] designar o percurso não apenas de ensinar e aprender as


habilidades de codificação e decodificação, mas também o domínio
dos conhecimentos que permitem o uso dessas habilidades nas
práticas sociais de leitura e escrita (BATISTA, et al., 2008, p. 10)

A proposta do Pró-Letramento não apresenta métodos considerados mais


ou menos assertivos para a alfabetização. Em vez disso, enfatiza a potência do
‘alfabetizar letrando’ em que os processos de alfabetização e de letramento são
tomados como complementares e simultâneos do ensino da língua, provocando os
professores a refletirem sobre suas práticas.
O programa vigorou até 2012, sendo considerado bem-sucedido pelo MEC
pelos impactos positivos que atingiu na aprendizagem dos alunos, evidenciados nas
avaliações. Esta constatação foi determinante para a implementação de um novo
programa em 2012, com lançamento em 2013, no governo de Dilma Rousseff: o
PNAIC, cuja aposta centrou-se na tríade formação, materiais e avaliação.
44

Dando continuidade a uma política de formação de alfabetizadoras, e em


perspectiva próxima a do Pró-Letramento, o PNAIC traçou o objetivo de criar uma
proposta de alfabetização contextualizada, procurando consolidar a perspectiva de se
alfabetizar em consonância a práticas cotidianas de leitura e de escrita, aprofundando
a articulação entre os processos de alfabetização e do letramento.
Assim como os programas que o antecederam, o PNAIC não propõe um
método de alfabetização. Elaborou cadernos com referenciais teórico-metodológicos
que “bricolaram as concepções teórico-construtivistas, presentes no PROFA, as
concepções pautadas no letramento, defendida no Pró-letramento, e acrescentaram
os estudos sobre consciência fonológica” (TEIXEIRA e SILVA, 2021, p. 674).
No PNAIC havia uma concepção expandida de alfabetização,
considerando-se que estar alfabetizado significa ter capacidade para interagir, por
meio de textos escritos, em diferentes situações. Os princípios basilares da
alfabetização assumidos no programa correspondiam à interdisciplinaridade, à
abordagem lúdica dos conhecimentos, ao respeito à autonomia do professor e à
heterogeneidade da comunidade envolvida com a educação pública, e aos direitos de
aprendizagem das crianças. Outro ponto que merece destaque e que se refere a mais
passos dados no avanço do ensino: o PNAIC contemplou, além das áreas básicas de
conteúdo (língua portuguesa e matemática), também os campos de ciências e de
estudos sociais.
Embora o programa tenha sido bem acolhido pelos diferentes atores que
dele participaram (alfabetizadoras, orientadores de estudo, formadores,
pesquisadores das universidades parceiras) e mobilizado o repensar da prática de
parcela significativa de professoras alfabetizadoras de todo o país, em 2018 suas
ações foram descontinuadas22.
Em 2019, na gestão do atual presidente Jair Bolsonaro, o MEC assinou o
decreto nº 9.765, instituindo a Política Nacional de Alfabetização – PNA. A PNA foi
lançada por meio do decreto nº 9.765 (BRASIL 2019b), um material que delineia
objetivos, metas e princípios relacionados à alfabetização das crianças brasileiras. O
documento explicita, ainda, as formas de implementação dessa política, suas

22
Cabe mencionar que a descontinuidade das ações do PNAIC e os encaminhamentos posteriores,
quanto à formação de alfabetizadores, foram marcos que evidenciaram o apagamento do termo
letramento nos documentos e nas propostas formativas.
45

estratégias de avaliação e monitoramento. Teixeira e Silva (2021) ressaltam que o


“governo, para legitimar o discurso deste novo programa, diz pautá-lo em evidências
científicas, como se os anteriores não o fossem” (p. 675).
Diferentemente das iniciativas citadas antes, a PNA recomenda uma
abordagem específica para alfabetizar: o Método Fônico, a partir do qual a
alfabetização é conjecturada no campo restrito da fonologia, entendendo que a
palavra é composta apenas por uma sequência de sons. Como fruto dessa política,
instituiu-se o Programa Tempo de Aprender (BRASIL, 2020b), que aponta como ação
formativa23:

Capítulo V
Da formação continuada em práticas de alfabetização
Seção I
Da Formação Continuada On-Line para Professores
Art. 13. A formação continuada on-line de professores alfabetizadores
será realizada por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem do
Ministério da Educação - Avamec.
Art. 14. O curso on-line será composto por textos, vídeos,
questionários e atividades.
§ 1º O professor, ao completar o curso, será submetido a teste on-line
para avaliar o conhecimento adquirido.
§ 2º O professor que atingir o desempenho mínimo estabelecido pelo
MEC terá direito a certificado de conclusão de curso (BRASIL, 2020b,
p. 69).

O fato de, pela primeira vez desde o processo de redemocratização, uma


política pública indicar um único método para alfabetizar crianças das diferentes
realidades brasileiras (o que é expresso no curso de formação24), gerou perplexidades
no meio acadêmico. Várias manifestações contrárias à proposta foram elaboradas.
Magda Soares, referência teórica nacional na área da alfabetização, se posicionou de

23
Refere-se ao curso on-line Alfabetização Baseada na Ciência (ABC), lançada no Ambiente Virtual
de Aprendizagem do Ministério da Educação (AVAMEC), com carga horária de 180 horas. Trata-se
de uma capacitação aberta a qualquer público, mas especialmente voltada para docentes que
trabalham com alfabetização, baseada exclusivamente no Método Fônico.
24
É válido ressaltar que, na intenção de compreender a proposta do curso de formação Alfabetização
Baseada na Ciência, realizei-o por completo no período de 16 de janeiro de 2021 e 10 de fevereiro de
2022.
46

pronto25. Alguns pontos de tensão já foram apresentados, entre os quais Telma Leal,
em publicação recente, destaca que:

não é papel do MEC indicar um método de alfabetização ou uma única


abordagem teórica para se discutir qualquer tema. [...] O MEC valida
apenas uma perspectiva de alfabetização, baseada nas orientações
do Método Fônico, que não tinha hegemonia nos documentos
curriculares brasileiros. [...] Ao dizer que está fazendo uma opção em
função do que é cientificamente comprovado, o MEC está
demonstrando profundo desconhecimento da Ciência (LEAL, 2019, p.
76-77, grifo nosso).

A autora, ao analisar essas tensões, chama a atenção para a


desconsideração, por parte do governo atual, de toda a trajetória de estudos sobre a
alfabetização apresentada em documentos legais, bem como a contribuição de
pesquisadores da área para a formulação de políticas de formação de professores e
professoras. Salienta, ainda, o desprezo aos indicadores de desempenho dos alunos,
uma vez que a história da educação brasileira nos conta que, quando havia
predominância dos métodos sintéticos, entre os quais se situa o Método Fônico,
tínhamos alto nível de reprovação e de evasão escolar (LEAL, 2019).
Frente ao exposto até aqui, pode-se perceber que as políticas e programas
de formação de professoras alfabetizadoras seguiram acompanhando as
características dos respectivos documentos oficiais promulgados em diferentes
gestões no Brasil, sobretudo quanto aos encaminhamentos normativos ou prescritivos
assumidos.
Contemplado esse movimento, no próximo subitem trago aspectos
referentes a como os sujeitos – formadores e professoras que atuam nos anos iniciais
do Ensino Fundamental, retratados mais adiante na análise das pesquisas produzidas
– podem receber, se apropriar e ressignificar o que lhes é oferecido para consumo em
termos formativos, e como os meandros presentes no fazer docente podem ser
percebidos em situações cotidianas. Para tanto, apresento aspectos pautados nos
pressupostos da História Cultural, cujos autores reconhecem a inventividade docente.

25
Na conferência “Contribuições dos estudos linguísticos para alfabetização e letramento”, proferida
em 2 de setembro de 2020, Magda Soares se manifestou de forma enfática contrariamente à recente
política de alfabetização. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DQBKFrlklwY. Acesso
em: 18 /10 /2022.
47

1.2. A formação docente pelas lentes da História Cultural

Em geral, tanto a formação realizada na universidade, ao se cursar a


licenciatura em Pedagogia, como a que se desenvolve com os professores atuantes
em âmbito local, organizadas pela equipe gestora nos momentos destinados ao
trabalho pedagógico coletivo, ou em esfera nacional, como as políticas e programas
formativos, manifestam o objetivo de problematizar junto às professoras e aos
professores, de forma fundamentada, suas atividades de ensino.
Se nos concentrarmos na descrição do objetivo acima mencionado, é
possível que tenhamos a ideia de que se trata de uma ação aparentemente simples.
Afinal, formar professores consiste em uma tarefa antiga e já bastante visada e
explorada como uma obrigação nacional. No entanto, segundo Sacristán (2000), a
formação de professores, metodologicamente falando, é tão complexa como a dos
próprios alunos. O que realmente acontece dentro das universidades e das escolas é
bastante variável e nem sempre a intenção da legislação é contemplada. Em qualquer
área de formação docente, a prática de ensino adquire delineamentos especiais.
Diversos fatores têm de ser considerados para que tal formação não se
restrinja ao “o que fazer” e “de que maneira fazer” 26 , como a conexão com as
atividades reais que os professores realizam, a projeção de um conhecimento que
congregue conhecimentos teóricos e práticos e, especialmente, o incentivo à
autonomia e criação, para que os professores concebam a formação como uma ação
dotada de significados e de possibilidades de ressignificação. Com o intuito de trazer
à luz esses aspectos, negligenciados nos documentos que orientam a formação
docente, neste subitem explicito uma perspectiva, aprofundada em um artigo de minha
autoria (SOUZA, 2019) 27 , acerca da formação docente no Brasil a partir dos
pressupostos teóricos da História Cultural.
As práticas mais sutis – por se constituírem de forma subjetiva, escapam
aos documentos – manifestadas por docentes em contextos de formação e de atuação

26
Saviani (2009) discorre de forma bastante elucidativa a polêmica que tem percorrido a formação de
professores: seu aspecto mais geral que se volta para os seus fundamentos e o aspecto mais didático,
que se detém nas questões de metodologia.
27
Importante salientar que os subitens a seguir, que abordam as contribuições de autores da História
Cultural, constam, também, no referido artigo, cuja publicação constitui parte dos indicativos desta
pesquisa. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rc/article/view/13709. Acesso em:
16 nov. 2022.
48

raramente ganham relevo, já que a tônica costuma residir na padronização e em


generalizações possíveis, como os procedimentos e metodologias de ensino, as
condições de trabalho da categoria, as políticas educacionais, a avaliação do ensino,
o uso adequado de materiais e recursos pedagógicos etc. Nesse sentido, as
professoras e os professores pouco são estimulados a refletir sobre as relações e os
usos que eles, enquanto sujeitos pensantes, fazem entre

[...] uma orientação que recebem e os desdobramentos que praticam


em contexto de sala de aula; entre um ‘concordo’ que pronunciam e
um ‘concordo parcialmente’ ou ‘discordo’ que ponderam; entre a
obediência e a subversão, ainda que a última se apresente de forma
quase imperceptível, e sobre a relevância dessas questões na
formação docente (SOUZA, 2019, p. 383).

Pensando nisso e no cruzamento de ideias de autores pertencentes ao


aporte teórico da História Cultural, especialmente Michel de Certeau e sua concepção
de invenção das práticas cotidianas, Michelle Perrot e sua percepção sobre as
astúcias dos sujeitos comuns, Anne-Marie Chartier e sua desconfiança em relação à
homogeneidade das práticas escolares, e Carlo Ginzburg e sua defesa de um
paradigma indiciário, inicio uma reflexão sobre como podemos interpretar as práticas
pouco visíveis dos professores face aos mecanismos de autoridade que circundam
suas ações no âmbito das formações inicial e continuada. A sequência argumentativa
do texto consiste em apresentar as contribuições dos autores selecionados em seções
independentes, a fim de que se possam evidenciar os diferentes olhares trazidos pelo
referencial sobre o tema proposto. Olhares esses que, enredados, fornecem pistas à
compreensão das sinuosidades existentes no fazer docente.

1.2.1. Michel de Certeau: um olhar para os aspectos das práticas cotidianas

Certeau (1985), ao conduzir uma conferência no ano de 1985 na Faculdade


de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), intitulada:
“Teoria e método no estudo das práticas cotidianas”, pontua que aproximar-se das
práticas significa aproximar-se da maneira de se pôr em prática um lugar, um rito, uma
representação, e de procurar compreender quais usos e operações as pessoas fazem
daquilo que lhes é conferido. A abordagem de estudos eleita pelo autor possibilita
49

decifrar os mecanismos de funcionamento das esferas macro e micro de uma


sociedade e a configuração das formas de organização dos sujeitos sociais.
Segundo Certeau, as práticas cotidianas possuem um triplo aspecto,
caracterizado pelo caráter estético, pelo ético e pelo polêmico. O caráter estético
refere-se aos modos diversos e individuais de se usar um determinado objeto, uma
linguagem, um lugar. Esse modo de uso é qualificado por uma expressividade que
está relacionada ao estilo. Para Certeau (1985), o estilo se traduz basicamente na
maneira de se utilizar as palavras, de se produzir um discurso a partir de um esquema
linguístico que nos é imposto, de se distribuir as mesas de um café nas calçadas das
ruas; é o que se cria e se produz a partir do que nos é apresentado ou instituído por
outros sujeitos. O caráter ético, por sua vez, centra-se na recusa ao alinhamento à
ordem imposta; é uma ação de abrir um espaço que não é fundado sobre a realidade
existente; é uma vontade de inventar, de criar algo, isto é, “uma vontade histórica de
existir” (Certeau, 1985, p. 8). O terceiro aspecto, o caráter polêmico, está marcado por
uma relação de forças. As práticas cotidianas se inserem como intervenções nas quais
o mais fraco se utiliza de forças existentes como maneira de se defender do mais
forte.
Ao considerar os aspectos supracitados, Certeau tece uma analogia entre
as práticas cotidianas e a ação do caçador que adentra florestas alheias para caçar
ilicitamente, apoiando-se na expressão “caça furtiva”.

Penso que a maioria das práticas do cotidiano são práticas de


furtividade. Isto quer dizer que em um espaço que não nos pertence –
a rua, o edifício, o lugar de trabalho – agimos sorrateiramente,
tentamos tirar vantagem, por meio de práticas muito sutis, muito
disfarçadas, de um lugar do qual não somos proprietários (Certeau,
1985, p. 5).

Analisar as práticas cotidianas do ponto de vista da furtividade, como ações


que buscam em lugares alheios algo que as constitua, é desmistificar a ideia de um
sujeito passivo e receptor, atribuindo-lhe um papel de agente, de produtor e de autor
de um modo específico de se fazer presente no mundo. O autor trata, portanto, da
possibilidade da prática de invenção pelos sujeitos que representam o lado não
dominante da sociedade: o sujeito simples, comum ou, de acordo com suas palavras,
o sujeito ordinário (CERTEAU, 1994). Por essa ótica, Certeau nos oferece certa
50

esperança nas condições reais de o sujeito preservar sua autonomia ou descobrir


momentos de escape e de indisciplina, mesmo quando se encontra em um ambiente
repleto de controle e de supervisão.
A partir dessas reflexões, pode-se pensar na sala de aula como um lugar
em que o professor exerce a atividade docente empregando suas maneiras próprias
de agir, praticando suas invenções, impetradas por táticas ou “artes dos fracos”
(VIDAL, s.d, p. 88), “apropriando-se tanto desse espaço quanto do conjunto de normas
intrínseco a ele, e repelindo o que não condiz com sua realidade” (SOUZA, 2019, p.
385).
Um exemplo clássico de invenção docente, refere-se ao uso do material
didático, tão recomendado em momentos formativos. Sabe-se que em muitas redes
escolares são adotados determinados livros ou sistemas apostilados para o
norteamento dos conteúdos curriculares. No entanto, é comum que professores façam
uso esporádico desses materiais, mesmo que nem sempre admitam essa escolha
explicitamente. Nesse tipo de conduta, que transparece resistência, mais do que
visualizar uma mera oposição, concebe-se a arte de imprimir uma marca, de subverter
a ordem para registrar uma existência. Trata-se do desenvolvimento da autonomia
docente em situações caracterizadas pelo monitoramento, de uma forma de controle.

1.2.2. Michelle Perrot: um olhar para as táticas de subversão

O breve, porém, pontual texto de Perrot (1998) intitulado “Mil maneiras de


caçar” evidencia o diálogo que a autora estabelece com Certeau e os conceitos por
ele cunhados para explicar os mecanismos de estratégia e de tática. A maneira como
a autora se apropria das ideias certeaunianas e cria linhas argumentativas, articulando
exemplos palpáveis de práticas cotidianas, proporcionou-me grande valia às
elaborações deste capítulo.
Perrot (1998) nos apresenta um relato de situações cotidianas ocorridas
em uma usina na França, na década de 1970, para mostrar, entre descrições e
comentários, o poder que o sujeito simples, nesse caso específico compreendido
como o operário, tem para garantir espaços de subversão no próprio centro de um
sistema de supervisão. Para ilustrar essa façanha, são mencionados os momentos
em que os operários se refugiavam nos ditos barracos de zinco para terem momentos
51

de conversa em pleno horário de expediente, bem como aqueles reservados para a


ducha, quando podiam se reunir e se distrair. Momentos esses beneficiados no
mesmo ambiente em que “a prática de submissão parecia ser condição permanente
e, o rigor, inexorável” (SOUZA, 2019, p. 386).
À habilidade de esquiva do sujeito comum, que se refere ao conceito de
tática (CERTEAU, 1994), em relação ao controle proveniente dos donos do poder (de
um lugar e do uso do tempo – como o dono da usina), pertencentes em geral à classe
dominante, compreendido como estratégia (CERTEAU, 1994) –, Perrot (1998) sugere
os termos ‘artes de dar golpe’ ou ‘artes da fuga’. Segundo ela, o golpe sempre vem
do mais fraco, isto é, “daquele que, mesmo imerso em contextos cotidianos que lhes
impõe determinado comportamento, encontra brechas para agir com seus modos
próprios, ainda que involuntariamente”28 (SOUZA, 2019, p. 386).
Se nos apoiarmos na lógica do episódio da usina, apresentado por Michelle
Perrot, ao contexto escolar, será possível verificar que golpes de natureza semelhante
são diariamente manifestados por professores em sala de aula. Uma ilustração disso
é a própria organização curricular, consubstanciada por documentos e orientações
formativas para o desenvolvimento do trabalho docente. Embora o currículo disponha
de instruções específicas sobre ‘o que ensinar’ e ‘como ensinar’ no exercício cotidiano
da docência, os professores inevitavelmente lançam mão de diferentes táticas para
compor a aula à sua maneira. Evidentemente, num primeiro momento o professor se
apropria do conjunto de normas estabelecidas, já que não se funda uma prática
profissional em um ambiente de total desordem. No entanto, à medida que as práticas
vão se instituindo, pelas mãos dos professores tomarão novas formas, novos usos e
reempregos. Com isso, o que se quer dizer é que, “para cada arranjo sempre haverá
um rearranjo, pois as práticas cotidianas não são estáticas e tampouco previsíveis”
(SOUZA, 2019, p. 386).
Para Perrot (1998, p. 60), o movimento do golpe significa que, dentro do
espaço da ordem, existe uma “organização clandestina, um verdadeiro contrapoder

28
Ao que sabemos, Certeau (1994) não chega a afirmar que as artes de fazer pertencem a ordem do
inconsciente ou do consciente. A respeito da consciência dos atos do cotidiano, Certeau (1994)
apresenta uma visão ambígua, que em certas análises nos levam a pensar que há uma racionalidade
intencional nos golpes, em outros prevalece uma ideia de uma resposta com astúcia inesperada, vinda
sem planos. Portanto, tomar os golpes como uma ação consciente ou semiconsciente, ainda é uma
questão para ser problematizada e refletida com mais vagar.
52

que permite aos trabalhadores desarticulados a reconstituição de sua identidade” e


até mesmo de sua autonomia profissional.

1.2.3. Anne-Marie Chartier: um olhar para as artes de fazer escolares

Eleger Anne-Marie Chartier como referencial da História Cultural para a


compreensão do trabalho docente face às propostas formativas foi, a meu ver, a
escolha mais coerente para fundamentar a proposta desta pesquisa. Isso porque,
além de a autora produzir um modo de olhar para as práticas inegavelmente inspirado
nas asserções de Certeau, enfatiza as práticas eminentemente escolares a partir de
questões que envolvem alfabetização, leitura e escrita, o percurso histórico da
formação de professores, e o cotidiano escolar.
Em entrevista recente para a revista Espaço Pedagógico, Chartier (2016)
classifica o alcance das obras de Certeau como lufadas de oxigênio em seu trabalho
de investigação sobre o espaço de ação da prática docente. Ela relata que o autor:

[...] tratava como um gesto cultural “a invenção do cotidiano”, ele


obrigava a pensar a “formalidade das práticas” enquanto meus
estudos de filosofia me tinham ensinado a refletir sobre o conteúdo
das teorias. Eram tantas pistas para observar a escola (e seus atores)
de outra maneira. A experiência tornava-se um saber à parte,
completo, fonte de “artes do fazer”, não necessariamente legitimado
no discurso sobre a instituição escolar. [...] Para ele, a cultura era “uma
arte de fazer”, portanto uma prática. Era exatamente disso que eu
necessitava para observar “de outra maneira” o trabalho dos
professores da escola primária (CHARTIER, 2016, p. 223).

É bastante precioso o olhar que Anne-Marie constrói para pensar a


docência. Um olhar de dentro para fora, que considera as práticas do sujeito como
objeto de pesquisa que pode ser explicado pela própria prática mais do que por
qualquer outra teoria. Na obra “Práticas de leitura e escrita: história e atualidade”,
Chartier (2007) nos leva a pensar que um dos desafios da pesquisa educacional é
justamente ‘situar a escola real’, abrir a ‘caixa preta’, isto é, expor e compreender
como a escola funciona, como os sujeitos que a constroem se apropriam das
prescrições do sistema, das heranças da cultura escolar, da diversidade oriunda dos
diferentes modos de vida com que cada um participa das relações estabelecidas
53

nesse espaço, já que, segundo seu entendimento, não há homogeneidade nas


práticas escolares.
Com relação a isso, a autora afirma que é necessário afastar-se das
representações que congelam a escola num estado estável. É preciso procurar ver as
dinâmicas que nela operam, que podem ser positivas, como a diminuição de evasões
escolares e podem também ser nefastas, como a imposição de metas internacionais
que não consideram nem culturas nacionais nem públicos de alunos (CHARTIER,
2016).
No centro desse processo situam-se os professores. Para entender o papel
ativo que desempenham em face de toda essa dinâmica é preciso prestar atenção às
reações que eles esboçam, ao modo como eles aceitam ou recusam prescrições e
quais são os indícios que eles nos dão para detectar essas sutis formas de manifestar
suas “artes de fazer” (CERTEAU, 1994).
Carvalho e Hansen (2009), em um texto que descreve a trajetória e obra
de Anne-Marie, resgatam a visibilidade que a estudiosa dá às práticas enquanto algo
que se compõe de microtáticas elementares que convergem no que ela chama de
‘fazeres ordinários’. Assim, interpretar tais práticas significa compreendê-las como:

[...] caças furtivas em território alheio ou práticas inventivas que, em


campo inimigo, subvertem os dispositivos de poder que, estratégicos,
objetivam moldá-las, cerceá-las, impedi-las; dispositivos de poder que
são também a condição de possibilidade, o solo, a circunstância e a
matéria dessas artes de fazer com que são os fazeres ordinários da
classe (CARVALHO e HANSEN, 2009, p. 39).

Diante dessas formulações, faz-se oportuno pensar que, se os problemas


emergem nas práticas do cotidiano das escolas, nas tensões criadas pelas relações
entre diferentes sujeitos e na forma com que esses sujeitos lidam com os objetos do
conhecimento, é para essas práticas que precisamos olhar. Isso não descaracteriza
a importância de considerarmos também o movimento das políticas públicas voltadas
à formação docente, pois precisamos estar atentos às particularidades que cada
proposta, carregada de marcas políticas e ideológicas, nos trazem. Precisamos,
sobretudo, olhar para o que muitas vezes não é aprofundado, sendo, portanto,
facilmente negligenciado. Sobre isso, o olhar de Ginzburg esclarece a seguir.
54

1.2.4. Carlo Ginzburg: um olhar para os indícios

Segundo Ginzburg (1989), por milênios o homem foi caçador. Aprendeu,


então, a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas, a detectar os mais ínfimos
sinais. É a partir desse tipo de conhecimento, com raízes muito antigas, valendo-se
da própria evolução da humanidade, que Ginzburg anuncia o paradigma indiciário,
compreendido como formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que
suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas (GINZBURG, 1989, p. 179).
Contemplando o conjunto de operações definidoras do paradigma indiciário
e pautado na tripla analogia que estabelece com os exemplos de Morelli, Sherlock
Holmes e Freud, o autor recompõe o complexo de atributos que caracterizam sua
distintiva natureza, atribuindo-lhe identidade metodológica, marcada pela qualificação
da natureza do indício (pistas, traços). Destarte, o modelo indiciário emerge, trazendo
uma importante contribuição ao passo que

desvela o não dito, o não revelado claramente, com os contrassensos,


pausas, silêncios, distrações, negações e repetições e com o relato de
histórias de vida, buscando no passado explicações para o presente
e, possivelmente, elementos para tencionar o futuro (SOUZA, 2019, p.
388-389).

Pelo modelo em questão, é possível buscar o entendimento de atitudes,


mudanças e mecanismos criados pelos sujeitos como forma de mediação com a
realidade. E, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios –
que permitem decifrá-la. [...] Essa ideia constitui o ponto essencial do paradigma
indiciário” (GINZBURG, 1989, p. 177).
Nessa perspectiva, Ginzburg (1989) destaca que “[...] é preciso não se
basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais
facilmente imitáveis [...]. Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais
negligenciáveis” (p. 144) que permitam desvendar “uma realidade mais profunda, de
outra forma inatingível”. (p. 150). Em linhas gerais, o autor defende um modelo
cognoscitivo de se interpretar algo através de um sinal, um ato falho, um desvio. Por
essa via de raciocínio, os pressupostos levantados por Ginzburg mostram-se
fecundos para as discussões que vêm sendo tecidas neste texto na medida em que
fornecem pistas para o entendimento dos aspectos que geralmente passam
despercebidos nas situações sorrateiras do cotidiano.
55

É bastante provável que em algum momento de nossas vidas tenhamos


nos deparado com situações em que, por mais esforços que tenham sido
empreendidos, não conseguimos decifrar problemas aparentemente óbvios. Isso
acontece porque, conforme explica Ginzburg, tendemos a nos apegar aos aspectos
mais evidentes desses problemas. Na visão do autor, o deslocamento do foco de
atenção para aquilo que não é evidente seria o caminho mais fértil para o encontro de
respostas aprofundadas, para uma compreensão mais apurada da realidade vivida ou
observada.
Em educação e, mais precisamente na esfera da formação e do trabalho
docente, podemos visualizar a possibilidade de desdobramento do paradigma
indiciário por intermédio de estudos que encontram morada nas práticas, visto que
nelas contém uma série de desvios que nem sempre são aparentes, como os
mencionados nas seções anteriores, quando das discussões à luz de Certeau, Perrot
e Chartier.
****
Considerando o exposto, ainda que documentos oficiais regulamentem
aspectos normativos e até mesmo prescritivos que muitas vezes têm o objetivo de
padronização da formação de professores, esse processo de forma alguma será
necessariamente moldado / formatado de maneira homogênea. Isso porque as
instituições, em nome dos sujeitos formadores, organizam as orientações formativas
de acordo com o contexto e as necessidades expressadas pelos docentes. Além
disso, as práticas dos sujeitos que protagonizam as formações (inicial ou continuada),
isto é, os próprios professores e futuros professores, manifestam diferentes formas de
receptividade em relação ao que lhes é dado para consumo.
Trata-se, como se pode notar, de uma rede cíclica de ações: os
documentos oficiais, constituídos a partir de debates sobre a educação, determinam
direções para a formação docente; as instituições as ressignificam e mediam ao
público-alvo; e os professores se apropriam das orientações e as reempregam –
inclusive entre si, a partir do que conhecemos como práticas de formação entre pares
– em seus cotidianos. Assim, endossando as palavras de Certeau (1994), não se trata
de desprezar as prescrições ou de situá-las no plano da mera aplicabilidade, mas de
colocar em pauta os limites da natureza dos processos empregados para sua
56

produção e a equívoca ideia de homogeneidade; de deslocar a atenção para as


operações, os usos individuais e as astúcias, que configuram as ‘artes de fazer’.
O reconhecimento das artes de fazer dos professores, discutido neste
subitem, se faz primordial para subsidiar as discussões que virão a posteriori, no
capítulo que analisa os indícios de inventividade docente em pesquisas que abordam
as relações entre a formação de professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino
de leitura e de escrita. Mas, antes de adentrá-lo, faz-se necessário explicitar a
perspectiva que orienta a compreensão de ensino da leitura e da escrita neste
trabalho. Desta tarefa, se encarrega o próximo capítulo.
57

Capítulo 2
Ensino da leitura e da escrita: a perspectiva sociocultural em foco

A temática ‘ensino da leitura e da escrita’ pode ser observada através de


pelo menos duas lentes distintas e, ao mesmo tempo, enlaçadas. A primeira, apoiada
na tendência tradicional, considera a aprendizagem de leitura e produção textual como
a aprendizagem de competências e habilidades individuais atinentes à aquisição de
um sistema baseado na relação entre grafemas e fonemas que permita ao sujeito a
capacidade de decodificar e codificar textos.
Nessa concepção, os textos apresentados são produzidos para alfabetizar
e nem sempre consideram a realidade do aluno, dado que os materiais escolhidos
para leitura não estabelecem, necessariamente, compatibilidade com aqueles que são
encontrados em lugares que ultrapassam os muros da escola (TERZI, 1995), além de
privilegiarem classificações gramaticais que, muitas vezes, se sobrepõem às práticas
de leitura e escrita situadas em contextos sociais de uso da língua (MARCUSCHI,
2001).
A segunda concepção, por sua vez, coaduna com a noção de letramento,
defendendo que a alfabetização deve priorizar o uso de textos que se conectem à vida
cotidiana do aluno. Tal perspectiva, como apresentada anteriormente, defende que o
processo de apropriação do SEA se desenvolve em meio às práticas de uso da língua.
Esse modo de enxergar a leitura e, consequentemente a escrita, leva em conta o
estabelecimento de objetivos, a formulação de hipóteses e a ideia de que a língua se
materializa e ganha sentido por meio de seu emprego pelos sujeitos. Na ótica
supracitada, a conexão entre alfabetização e letramento ocorre na medida em que o
ensino da leitura e da escrita se constitui nas práticas sociais.
Apesar de as concepções, brevemente explicitadas, apresentarem suas
particularidades, é importante que não sejam reduzidas a uma visão maniqueísta,
afinal, sabe-se que em contexto de sala de aula dos anos iniciais do Ensino
Fundamental as professoras lançam mão de diferentes estratégias para ensinar: pela
exploração de textos que circulam na sociedade e, concomitantemente, pelo
58

desenvolvimento da consciência fonológica29 – parte do processo de aprendizagem


do Sistema Notacional 30 –, por exemplo. Ou seja, mesmo que as professoras
trabalhem intensamente com textos diversos, autênticos e dotados de significado
social, é também possível e plausível que ensinem a partir de materiais produzidos
para alfabetizar (atividades que combinam os sons das sílabas para a formação de
palavras e frases, que permitem a identificação de semelhanças sonoras no início das
palavras – aliteração –, ou no final delas – rimas –, que possibilitam a compreensão
global do tamanho da palavra). Seria incomum encontrar um contexto em que uma
concepção ou outra se desenvolvesse em estado bruto.
Por entender que alfabetização e letramento são processos inter-
relacionados por meio de práticas e que a bricolagem de diferentes maneiras de
ensinar seja intrínseca ao trabalho docente, neste capítulo busco apresentar o
embasamento teórico que fundamenta esta compreensão: os Estudos do Letramento,
“que assumem uma perspectiva sociocultural para a compreensão das práticas de
letramento, entendendo-as conforme o contexto em que se desenvolvem” (GUEDES-
PINTO, 2008, p. 420).

2.1. Estudos do Letramento

Os Estudos do Letramento levam em consideração os diversos usos da


língua escrita, as diferentes formas de as pessoas a empregarem, marcada por
práticas diversas que são sociocultural e historicamente determinadas (KLEIMAN,
1995; KLEIMAN e ASSIS, 2016; STREET, 1984; 2014; TFOUNI, 1995; SOARES,
1998). Desse modo, são os contextos em que as práticas acontecem que nos mostram
as diferentes possibilidades de uso da linguagem, de acordo com os objetivos, as
metas de leitura e escrita e as necessidades dos envolvidos nesse processo 31.

29
Leal (2019, p. 78) ressalta que considerar a importância da consciência fonológica não corresponde
a defender o Método Fônico, pois este, “além de propor treino de habilidades que evidências científicas
têm mostrado que não são necessárias, tem muitos limites no que se refere ao trabalho para que os
estudantes compreendam o funcionamento do Sistema de Escrita Alfabética e desenvolvam, de fato, a
leitura e a escrita de textos”.
30
O ensino da escrita alfabética como Sistema Notacional enfatiza que as crianças precisam
compreender os princípios de seu funcionamento, ou seja, refletir sobre como as relações entre a
pauta sonora e o registro gráfico ocorrem (LEAL, 2019).
31
O conceito de letramento surgiu como uma demanda de pesquisadores ingleses (dentre eles, Brian
Street, David Barton e Marly Hamilton) que, interessados em compreender o impacto da escrita na
59

Assumir a diversidade de práticas de letramento que integram a sociedade


envolve a não imposição de rótulos sobre o que é ser ou não ser letrado, refletindo
um conceito de letramento que se manifesta em contextos e em situações específicas.
Para algumas pessoas, ser letrado pode significar, por exemplo, ter a capacidade de
desenvolver um ofício; enquanto, para outros, é ser capaz de escrever uma carta para
amigos e/ou familiares; ou mesmo ser capaz de assinar o seu próprio nome, e assim
por diante (TERRA, 2013). Nessa direção, Rojo (2010, p. 26) acrescenta que:

Numa sociedade urbana moderna, as práticas diversificadas de


letramento são legião. Podemos dizer que praticamente tudo o que se
faz na cidade envolve hoje, de uma ou de outra maneira, a escrita,
sejamos alfabetizados ou não. Logo, é possível participar de
atividades e práticas letradas sendo analfabeto: analfabetos tomam
ônibus, olham os jornais afixados em bancas e retiram dinheiro com
cartão magnético.

É preciso considerar que os letramentos são sempre sociais (STREET,


2014). As práticas de leitura e escrita são permeadas pela história: balizadas por
configurações singulares, dependentes de histórias de vida, das práticas e atividades
de que os sujeitos tomam parte em seu cotidiano, circunscritas aos grupos sociais a
que pertencem e à atividade a que se dedicam, bem como ao contexto sócio-histórico
que emoldura sua existência (VÓVIO e SOUZA, 2005). Essa perspectiva salienta o
reconhecimento dos letramentos em comunidades de práticas, com papéis
diversificados de acordo com os contextos, sujeitos e objetivos.
Isto posto, e reconhecendo a importância da concepção pluralista e
sociocultural das práticas de uso da língua escrita, as contribuições dos Estudos do
Letramento são acolhidas nesta tese, sobretudo por permitirem focalizar atividades
locais – neste caso, de ensino da leitura e da escrita – em contextos sociais, nos quais
podem emergir micro resistências a posicionamentos predeterminados e papeis fixos
já institucionalizados (CERTEAU, 1994). Inculcado nesta ideia está não somente a
percepção da natureza social do letramento, como o caráter múltiplo de suas práticas.
Embora as vivências diversificadas de letramento não demandem,
necessariamente, que os sujeitos sejam alfabetizados, conforme apontado na citação

vida cotidiana das comunidades de cidades da Inglaterra, construíram um constructo teórico – o


conceito de letramento – a fim de compreender como as pessoas, em suas práticas sociais, além das
escolares, fora dos contextos de seu ensino, se relacionavam com a escrita (KLEIMAN, 1995, 2005)
60

de Rojo (2010), a própria autora reconhece que, para participar de práticas letradas
de certas esferas valorizadas, como a escolar, a da informação impressa, a literária,
a burocrática, é necessário não somente ser alfabetizado como também ter
desenvolvido níveis mais avançados de alfabetismo.
É a partir das práticas sociais e escolares de letramento que o indivíduo
pode compreender as funções sociais da escrita, como ela se ajusta aos diferentes
contextos e como nos apropriamos dela (MARCUSCHI, 2001). Desse modo, e para
realçar a especificidade do letramento em contextos escolares, focalizando o ensino
da leitura e da escrita, os conceitos de eventos de letramento e de práticas de
letramento se mostram oportunos são discutidos a seguir.

2.2. Eventos e práticas de letramento

Eventos de letramento e práticas de letramento são expressões


estreitamente relacionadas e, por isso, serão abordadas conjuntamente.
A conjectura desses dois conceitos apoia-se na compreensão da natureza
social do letramento, oriunda do conjunto de pesquisas denominado Novos Estudos
32
do Letramento (New Literacy Studies) . Práticas e Eventos de letramento são
modelos analíticos utilizados por pesquisadores que investigam os usos e os
significados da escrita e da leitura para diferentes grupos sociais e as consequências
educacionais, políticas e sociais de tais usos e significados para os indivíduos e para
os grupos a que pertencem (STREET, 1995)
O conceito de evento de letramento, cunhado por Shirley Brice Heath
(1982), postula a seguinte definição: “Um evento de letramento é qualquer situação
em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações
entre os participantes e de seus processos de interpretação” (p. 93). Tal noção se
mostra relevante ao passo que traz à luz as diferentes faces do letramento na
sociedade, que podem se estabelecer pelas interações orais entre pessoas, mediadas
pela leitura ou pela escrita, circunscritas por eventos específicos. O evento de
letramento, como unidade de análise, permite o recorte de situações específicas, que
possibilite ao pesquisador se concentrar em momentos de uso da escrita. Trata-se de

32
No texto-base de apresentação na reunião da ANPEd, de 2010, publicado no Cadernos CEDES
(vol. 33, n. 89, 2013), Street retoma a história do conceito de letramento na Inglaterra e o que significa
os Novos Estudos do Letramento, procurando construir relações de seu uso no contexto brasileiro.
61

um recurso de pesquisa para uma análise mais aprofundada de um dado aspecto de


manifestação de uma ou mais pessoas em torno da escrita.
Como dito antes, o letramento está conectado às atividades cotidianas das
pessoas, não se restringindo à escola. No entanto, é importante salientar que a vida
escolar proporciona ricos momentos de interação, isto é, de eventos de letramento,
que favorecem o uso social da língua. De acordo com Kleiman (2005, p. 23), um
evento de letramento inclui atividades que:

[...] têm características de outras atividades da vida social: envolve


mais de um participante e os envolvidos têm diferentes saberes, que
são mobilizados na medida adequada, no momento necessário, em
prol de interesses, interações e objetivos individuais e de metas
comuns. Daí ser um evento essencialmente colaborativo.

As práticas de letramento 33 dizem respeito à maneira como um grupo


social faz uso da língua escrita e revela as suas concepções, valores, ideias, crenças
a respeito da escrita ao longo de um período histórico, que pode ser demarcado por
uma geração, um ciclo de décadas, século, enfim, por uma datação específica que se
queira especificar. Elas têm um sentido mais amplo do que eventos de letramento,
pois englobam as concepções sociais e culturais envolvidas nos eventos. Em outras
palavras, “são múltiplas e diversas, pois dependem das formas como as pessoas e
grupos sociais integram a língua escrita em seu cotidiano e dos processos e
estratégias interpretativas utilizadas pelos participantes de um processo de interação”
(MORTATTI, 2004, p.106).
Como as práticas de letramento que ocorrem fora da escola são
fundamentalmente colaborativas, é imprescindível que o processo de aquisição da
língua escrita desenvolvido na escola acompanhe a premissa da colaboração, do
‘fazer junto’, da interação, da contribuição mútua, de modo que seja superada a
individualidade com que tal processo tende a ser concebido. Sobre isso, Kleiman
(2005) anuncia que “quanto mais a escola se aproxima das práticas sociais em outras
instituições, mais o aluno poderá trazer conhecimentos relevantes das práticas que já
conhece”.

33
Como define Brian Street (1995), práticas de letramento são comportamentos exercidos pelos
participantes em um evento de letramento, onde as concepções sociais que o configuram têm uma
raiz histórico-cultural, impregnada da prática social.
62

A escola é, sem dúvida, o lugar onde se espera que as práticas de leitura


e escrita validadas socialmente sejam privilegiadas. Por esta razão, vislumbra-se na
alfabetização a possibilidade de ampliação do repertório de práticas cotidianas de
letramento. Entretanto, é importante ressaltar que, embora os dois conceitos –
alfabetização e letramento – estejam imbricados, cada um deles tem características
próprias.
Como explica Kleiman (2005), letramento não é um método. Segundo a
autora, vários métodos podem garantir o acesso à leitura e à escrita, possibilitando a
imersão dos sujeitos no mundo da escrita e a participação em diferentes práticas
sociais. O letramento também não é sinônimo de alfabetização, mas a abrange; o
letramento também não se reduz a uma habilidade, mas envolve um conjunto de
habilidades e competências.
A alfabetização, por sua vez, é uma das práticas de letramento que faz
parte das práticas sociais de uso da escrita da instituição escolar. Como prática
escolar, ela é essencial: “todos, - crianças, jovens ou adultos – precisam ser
alfabetizados para poder participar, de forma autônoma, das muitas práticas de
letramento [...]” (KLEIMAN, 2005, p. 16), e das diferentes experiências que se
constituem na sociedade.
A prática de alfabetização se consolida em eventos situados no espaço da
sala de aula conduzidos pela professora / pelo professor, ao qual incumbe-se a tarefa
de ensinar as regras do Sistema Notacional. O processo constitui-se de interação
constante, uma vez que ambos os sujeitos envolvidos – docente e aluno – possuem
papeis que se interrelacionam: a/o docente ensina, mobiliza procedimentos, planeja,
organiza as aulas e avalia; e o aluno realiza as atividades, participando do que lhe é
proposto.
A alfabetização pode – e precisa – promover eventos de letramento
autênticos e mobilizar a participação ativa em outras práticas de letramento além dela
mesma.

2.3. A alfabetização como prática de letramento

Embora se trate de uma abordagem amplamente conhecida e discutida no


meio da pesquisa e entre professoras que atuam nos primeiros anos do ensino
63

fundamental, a alfabetização como prática de letramento ainda é considerada um


campo de tensões. A primeira delas reside em questionamentos como: “Preciso
‘ensinar’ o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?”, que, inclusive,
inspiraram o título de um volume da coleção Linguagem e Letramento em Foco, escrito
por Kleiman (2005). Indagações dessa natureza permanecem atravessando a prática
de professoras até os dias atuais, pois a sensação que têm é de que lhes foram
confiscados os métodos para alfabetizar.
Como mencionado antes, o conceito de letramento começou a ganhar
relevo há mais de três décadas. Segundo Kleiman (2005), em meados de 1980 no
Brasil, pesquisadores que trabalhavam com as práticas de uso da língua escrita em
diferentes âmbitos da sociedade sentiram falta de um conceito que se referisse a tais
práticas, mas estivesse desassociado das ideias de ensino, então vigentes, que eram
atribuídas à alfabetização. Desse movimento, surge o termo letramento para se referir
a “um conjunto de práticas de uso da escrita que vinham modificando profundamente
a sociedade, mais amplo do que as práticas escolares de uso da escrita, incluindo-as,
porém” (ibidem, p. 21).
34
Diante dos dados educacionais que indicavam altos índices de
analfabetismo na década de 1990, passou-se a perceber a progressiva apropriação
do termo letramento nos discursos sobre educação. Foi assim que sua definição
começou a penetrar, também, nas diretrizes nacionais, como os Curriculares
Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997), os quais adotaram como orientação didática o
ensino da língua pautado em textos reais.
Desde então, as relações entre letramento e alfabetização tornaram-se
amplamente discutidas na área, contando com as contribuições de pesquisadores(as)
que se dedicam ao tema, como Leda Tfouni, Roxane Rojo, Angela Kleiman e Magda
Soares. No entanto, apesar da diferenciação sempre proposta nas produções
acadêmicas, houve – e ainda há – uma inadequada fusão ente os dois processos,
com prevalência do conceito de letramento, que tem conduzido a certo “apagamento
da alfabetização” (SOARES, 2004, p. 8).

34
Dados esses apresentados em documentos oficiais, como os apresentados no primeiro capítulo
deste estudo.
64

A valorização do letramento em detrimento da alfabetização e a


consequente ausência de precisão sobre como trabalhar o letramento – o que de fato
não há, pois não se trata de um método (KLEIMAN, 2005) – culminou em outra tensão,
expressa na seguinte polarização: Afinal, vamos ensinar a partir de textos autênticos
de diferentes gêneros que circulam em eventos de letramento fora da escola ou vamos
trabalhar com textos produzidos para alfabetizar?
Romper esta visão dicotomizada é algo que se faz necessário, pois em uma
abordagem da alfabetização na perspectiva do letramento, diferentemente das
abordagens sintéticas 35, considera-se que:

o conhecimento das letras deve ocorrer de modo simultâneo às outras


aprendizagens, sem ordem fixa de sua apresentação para as crianças.
Assim, as letras são aprendidas no próprio processo de reflexão sobre
o funcionamento da escrita e nas próprias práticas de leitura e
produção de textos (LEAL et al., 2013, p. 85).

Considerando as contribuições dos Estudos do Letramento na perspectiva


sociocultural, pensar a alfabetização requer uma reflexão sobre as especificidades do
contexto em que ela se desenvolve. Não se trata de um processo que se desenrola
da mesma maneira em todo e qualquer lugar, já que as práticas de letramento sociais
têm particularidades em seus cotidianos.
A esse pensamento, conecta-se a indagação que Street (2014, p. 121) faz
na obra Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento,
na etnografia e na educação, originalmente publicada em inglês, em 1995, ao se referir
ao ensino da língua: “se, como argumentamos, existem múltiplos letramentos, como
foi que uma variedade particular veio a ser considerada como único letramento?”,
referindo-se à ideia de desenvolvimento do letramento na escola. Esta questão nos
provoca a refletir sobre a importância, por exemplo, do ensino da língua a partir da
diversidade de gêneros textuais 36 pautando-se em exemplos e movimentos de

35
Essas abordagens “propõem um ensino linear, com progressão fixa, em que as letras, fonemas e
sílabas são objetos de reflexão que antecedem o trabalho com os textos autênticos, que circulam
socialmente” (LEAL, 2022, p. 164).
36
A concepção de gêneros textuais defendida nesta tese não se reduz a unidades textuais dadas,
estáticas, descontextualizadas; leva em conta a situação comunicativa de produção e recepção do
texto, ou seja, considera os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica e funcionalidade
(MARCUSCHI, 2005).
65

apresentar a escrita dando lugar a textos autênticos e plurais que ampliem o repertório
de práticas de letramento intra e extraescolares dos alunos.
Conforme visto no subitem anterior, a alfabetização é uma das muitas
práticas de letramento que se faz presente na vida dos jovens estudantes. Aprender
a ler e a escrever proporciona que as crianças interajam com textos escritos e
escrevam os seus próprios, com autoria. E, junto da escola, em diferentes espaços da
sociedade elas se defrontam com outros textos que podem ser encontrados e
interpretados. A aprendizagem da leitura e da escrita permite a inserção e
participação efetiva em esferas mais complexas da vida social.
Desse modo, faz-se imprescindível que as professoras alfabetizadoras
explorem, além de textos diversificados, estratégias variadas para o ensino da leitura
e da escrita, a fim de que os alunos sejam incitados a usar diferentes formas de
relação entre textos. Brandão e Rosa (2010) acreditam que essas estratégias podem
ser ativadas já nos anos iniciais de escolarização, através, por exemplo, de rodas de
conversa sobre textos.
Outro aspecto que merece atenção ao se discutir práticas de leitura e
escrita na escola, na perspectiva sociocultural, diz respeito às finalidades da leitura.
Ler para compor um repertório comum; ler para comentar/argumentar sobre o que foi
lido; ler para se entreter (leitura deleite); ler para aprender a ressignificar; ler para
partilhar textos que apreciamos: são diversas as possibilidades e os objetivos da
leitura. Objetivos esses que

[...] se diferenciam daqueles estritamente pedagógicos, pois ainda que


saber ler seja condição essencial para a realização de tarefas
escolares, concentrar os objetivos da leitura nesse fim seria limitar a
experiência do leitor (SOUZA, 2020, p. 30).

Assim, ao refletirmos sobre as finalidades da leitura, é importante levarmos


em conta que ler é um diálogo que:

[...] sempre começa com uma pergunta que fazemos a um texto, não
importa que essa pergunta seja para nos distrair, para nos emocionar,
para nos confortar, para esquecer, para lembrar, para identificar ou
para compartilhar. Se a leitura é um diálogo, todo diálogo começa
essencialmente com uma pergunta, com uma questão, cuja resposta
nos leva a outra pergunta e a outra resposta e a outra pergunta...
(COSSON, 2014, p. 4).
66

Conceber a leitura desse modo muda expressivamente a forma de


arquitetar e de organizar o ensino. É preciso contribuir para que os alunos criem
estratégias de leitura e percebam a finalidade do ato de ler, reconhecendo a
propriedade da intertextualidade - considerando a presença de elementos de
determinados textos em outros textos e em situações vivenciadas cotidianamente.
Isso significa dizer que:

[...] o leitor – um sujeito que atua socialmente, construindo


experiências e história – compreende o que está escrito a partir das
relações que estabelece entre as informações do texto e seus
conhecimentos de mundo. Ou seja, o leitor é sujeito ativo do processo.
Na leitura, não age apenas decodificando, isto é, juntando letras,
sílabas, palavras, frases, porque ler é muito mais do que apenas
decodificar. Ler é atribuir sentidos. E, ao compreender o texto como
um todo coerente, o leitor pode ser capaz de refletir sobre ele, de
criticá-lo, de saber como usá-lo em sua vida (CAFIERO, 2010, p. 86).

A alfabetização, nesse sentido, além de se constituir como prática de


letramento, é, também, concebida como prática cultural, que é aprendida e ensinada
na relação entre professores, crianças e material didático a eles destinados. Nesta
relação, sempre singular, já que se estabelece nas condições de produção em que
ela se insere, organizações distintas e combinadas acontecem.

Ora com mais ênfase em uma adesão às orientações oficiais, ora com
mais resistência às formas tradicionais, ou então, com um movimento
que é dado pelos sujeitos que as praticam. Alfabetização como prática
cultural não é espelho ou aplicação exclusivamente das orientações
oficiais do governo ou mesmo da gestão escolar. Em suas práticas, os
professores as significam no interior de condições reais e cotidianas
da sala de aula (BORTOLAZZO, 2019, p. 157).

Situada a noção supracitada e o entendimento de que a alfabetização é


uma prática cultural e de letramento responsável por abrir portas a outras práticas,
cada vez mais sofisticadas, passo a expor o papel da formação de professores no
preparo de profissionais – especificamente professoras alfabetizadoras – para a
compreensão da relação recíproca entre a alfabetização e o letramento.
67

2.4. A formação docente e o ensino da leitura e da escrita

Inicio este subitem com o intuito de refletir sobre o papel da formação


docente na preparação de futuras professoras e professoras alfabetizadoras atuantes
para o ensino da leitura e da escrita da língua portuguesa.
Uma vez que a alfabetização possibilita a imersão em práticas
contextualizadas de letramento, de tal forma que o aluno “desenvolva certas
competências básicas para o trato com as línguas, as linguagens, as mídias e as
múltiplas práticas letradas, de maneira crítica, ética, democrática e protagonista”
(ROJO, 2009, p. 119), depreende-se que seria basilar a formação inicial e continuada
apostarem em estudos e trocas de experiências que visibilizem caminhos para isso.
Em artigo que discute os estudos de letramento e a formação de
professores, Kleiman (2008) destaca que as universidades e iniciativas de formação
continuada devem levar em conta as situações sociais em que os textos são lidos e
produzidos, assim como os valores e as representações a eles atribuídos, de modo
que os professores vivenciem eventos de letramento ao manipularem tais textos. Para
a autora, o conhecimento dos mundos de letramento (BARTON, 1993) e as histórias
de leitura (GUEDES-PINTO, 2002) dos professores que inserem os alunos em
práticas diversificadas de uso da língua escrita são fundamentais para as instituições
formadoras orientá-los para as demandas, também contextualizadas, do mundo do
trabalho.
Trata-se, portanto, da possibilidade de conexão entre a abordagem teórico-
metodológica da formação de professores e sua relação com as micro realidades do
mundo social. Esse movimento permite às professoras ou futuras professoras pensar
e repensar, por meio da reflexão crítica, os modos de usar e ensinar a língua escrita.
E, ao sentirem-se preparadas para selecionar textos autênticos, estarão ainda mais
cientes de seu papel transformador e de sua autonomia para se apropriarem,
desviarem ou reempregarem aquilo que lhes é colocado para consumo, lançando mão
das, já explicadas no capítulo anterior, ‘artes de fazer’, haja vista que a alfabetização
é uma prática cultural socialmente e cotidianamente construída.
68

Capítulo 3
Abordagens e percursos metodológicos do estudo

Este capítulo apresenta as diferentes etapas que deram sustentação à


realização da presente pesquisa. Em um primeiro momento, objetiva-se compartilhar
a compreensão acerca do objeto de estudo – a inventividade docente –, destacando
as apropriações de tal conceito incorporadas a esta tese. Na sequência, é discutida a
fundamentação teórico-metodológica acolhida para orientar a interpretação do
material eleito para análise. O passo a seguir destina-se à explicitação dos
procedimentos metodológicos e critérios assumidos para a composição do corpus da
pesquisa, bem como à descrição preliminar do material. Por fim, são abordadas as
estratégias de análise dos dados e a configuração das categorias, aqui denominadas
‘focos de interesse’, que organizam as teses e dissertações em blocos temáticos.

3.1. A compreensão do objeto de pesquisa: a ‘inventividade docente’

Antes de trazer à luz quaisquer formas de explicação sobre como esta


pesquisa se configurou, faz-se necessário problematizar o conceito central que
mobilizou seus contornos: a inventividade docente.
Afinal, o que é inventividade? O que pode ser considerado inventivo? O
sentido lexical 37 nos traz definições para este adjetivo, como: Que tem o dom de
inventar, de criar coisas a partir da imaginação, da prática, dos próprios saberes, de
dar novos usos a coisas existentes; engenhoso, criador. Mas, seria este o significado
aqui impresso? Em parte, sim, mas não somente.
Michel de Certeau, que representa um dos autores essenciais para a
fundamentação deste estudo, apresenta-nos o conceito de inventividade atrelado a
termos como astúcia, criatividade, inteligência, ‘maneiras de fazer’; palavras que, de
fato, se assemelham àquelas aludidas no dicionário. No entanto, o autor agrega
profundidade ao conceito ao relacioná-lo a ações dos ‘mais fracos’ nas organizações
sociais. Conforme já discutido no Capítulo 1, quando da apresentação do olhar de
Certeau sobre as práticas cotidianas, os sujeitos comuns lançam mão de sua
inventividade, seja como forma de escape, de existência e/ou de resistência, diante

Dicio – Dicionário On-Line de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/inventivo/. Acesso


37

em: 07/03/2022.
69

de situações de controle. Nos diversos exemplos citados pelo autor em suas obras,
assim como os citados por Perrot (1998), a inventividade, ora chamada de furtividade
ou, ainda, ‘arte de dar golpe’, se manifesta de múltiplas maneiras, sendo em alguns
casos um pouco mais evidente, enquanto, em outros, mais camuflada. O que se
coloca em discussão, no entanto, não é o destaque para a maior proporção ou a maior
nitidez do ato inventivo, como se configurassem uma transgressão mais expressiva,
mas a compreensão de que ele se apresenta em diferentes nuances. A inventividade
não ‘é’, ela ‘se faz’.
Como é característico do referencial adotado (História Cultural), Certeau e
outros autores que também desenvolvem reflexões envolvendo a inventividade, não
fazem uso de definições inflexíveis para definir precisões e objetividades e tampouco
para gerar comprovações. Ao contrário, reconhecem as sinuosidades existentes em
diferentes contextos, evitando dicotomias, como obediência versus subversão, teoria
versus prática, inventivo versus acomodado.
Pensando nessa possibilidade de redimensionar um conceito, e com apoio
nas ideias centrais de Certeau (1994; 1996), ressalto que o olhar sobre inventividade
produzido nesta tese diz respeito a ações táticas – impregnadas de criatividade,
astúcia – de sujeitos (neste caso, professoras alfabetizadoras) em narrativas sobre
suas práticas cotidianas, que podem ser expressas na descrição de olhares (e
mudanças de olhares), na combinação entre o tradicional e as apropriações, no jogo
de palavras, nas histórias, na bricolagem de diferentes elementos culturais para a
construção de um modo próprio de ressignificar, imbricado ao que lhes é dado para
consumo (em contexto de formação inicial ou continuada).
Tão importante quanto explicitar o que é considerado inventividade neste
trabalho, é especificar o que não a representa, pois há uma linha tênue que separa o
entendimento de ser inventivo e de ‘ser inovador’ ou ‘andar sempre na contramão do
sistema’. Assim, a título de exemplo, não se quer dizer que uma professora que faz
uso de tecnologias, sendo pertencente a um grupo de professoras que não o faz,
esteja sendo, necessariamente, inventiva. Também não significa ser inventiva uma
professora que se recusa veementemente a atribuir menção numérica a seus alunos
em dinâmicas avaliativas, como é estabelecido pelos sistemas de ensino. Não se
trata, portanto, do oposto de autoridade, de instituído, de tradição ou de imposição,
70

mas das condições de produção do movimento (docente) na ação (práticas de ensino


de leitura e escrita).
Nesse sentido, apostar na existência da inventividade docente e pressupor
que ela se manifesta, mesmo que sutilmente, na prática desenvolvida pelas
professoras, significa acreditar que a realidade está repleta de ações que “curto-
circuitam as encenações institucionais” (CERTEAU, 1994, p. 41) e que não há uma
transposição direta entre o que aprendem nos cursos de formação, sejam eles mais
tradicionais ou não, e o que realizam ao alfabetizarem seus alunos.
Por se tratar de uma pesquisa bibliográfica que tem como fonte um conjunto
de teses e dissertações que analisam as relações entre a formação de alfabetizadoras
e as práticas de ensino de leitura e escrita, a inventividade será captada nas narrativas
de pesquisadores e em suas formas de compreenderem as práticas por eles
estudadas. Embora não se trate de um estudo que toma a prática em si para a
produção de conhecimento, acredita-se que as maneiras como os pesquisadores as
narram trazem indícios (pistas, sinais) de como a inventividade pode se manifestar.

3.2. A abordagem teórico-metodológica: os ‘indícios’

Diante da intenção deste estudo de compreender a inventividade docente


a partir de indícios, é possível que o leitor desta tese esteja buscando situar a
viabilidade da realização de uma pesquisa cujo material de análise é composto por
teses e dissertações.
Embora o termo ‘práticas’ seja constantemente empregado pelos autores
que adoto como referência, faz-se oportuno destacar que a História Cultural
contempla, também, a análise de um conjunto de estudos e/ou documentos que
tomam a prática como objeto de estudo, tais como as pesquisas bibliográfica e
documental. Inventariar resultados de pesquisa pode constituir-se em uma prática
metodológica como operação tática (CERTEAU, 1994), no campo do conhecimento
acadêmico, inspirada nas artes de fazer. Inclusive, Certeau, ao tecer os passos que
delimitaram os caminhos em sua pesquisa:

[...] articulou questões teóricas, métodos, categorias e pontos de vista


para dialogar com o que havia sido pensado a respeito, fazendo uso
de conceitos e procedimentos para formular seu próprio repertório e
modos de ver a questão. O percurso metodológico realizado por
71

Certeau [...] consistiu, principalmente, em alternar a análise descritiva


de algumas maneiras de fazer [...] com usos de uma literatura científica
suscetível de fornecer hipóteses que permitam levar a sério a lógica
desse pensamento que não se pensa (FERRAÇO, SOARES e ALVES,
2018, p. 42-43).

Ainda na obra citada, os autores dissertam sobre as possibilidades de


pesquisa “nos/dos/com os cotidianos”, o que legitima tanto aqueles estudos realizados
em campo, nos quais o pesquisador, participante ou observador, coleta dados
referentes ao que deseja identificar em determinado contexto, como aqueles
respaldados por métodos que envolvem aplicação de entrevistas ou questionários
com os sujeitos que fornecerão a fonte de dados para análise; ou mesmo aqueles que
se pautam em produções de outros pesquisadores ou em documentos (anais de
congressos; arquivos oficiais; registros históricos) a fim de localizar indícios sobre o
objeto delimitado e explorá-lo com base em formulações teóricas.
Dentre elas, idealizo ao presente estudo um direcionamento à
problematização dos cotidianos e das práticas a partir da terceira possibilidade
mencionada, ou seja: dos aspectos levantados por pesquisadores que realizaram
estudos majoritariamente empíricos, a fim de observar os detalhes incorporados em
suas produções que permitam inferir a inventividade docente nas relações entre a
formação de professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino de leitura e escrita.
Cabe elucidar que, com base em Marin, Bueno e Penna (2011), o olhar
direcionado às pesquisas buscou responder a questões como: “Quem fala sobre o
tema?”; “Sobre o que os trabalhos narram?”; “Como lidam com o tema?”; “Há debates
instalados? Quais?”. Assim como os autores, considero as teses e dissertações como
produções narrativas de natureza científica e, portanto, textos “[…] concebidos como
práticas de produção cultural específica de um campo, práticas que sofreram
inúmeras influências sociais dos locais em que foram compostas” (ibidem, p. 91).

Narrativas são textos orais, escritos e/ou visuais que há séculos


circulam nos diferentes espaços de convívio social. Tomada como
prática humanizadora, a narrativa comporta um conhecimento
intergeracional ao mesmo tempo em que possibilita o estranhamento
e a ampliação acerca da consciência daquilo que é vivido. Por isso,
extrapola a dimensão do próprio indivíduo que narra ou pesquisa, pois
se conecta com aspectos da cultura e da sociedade, atualiza-se e é
ressignificada ao ser interpretada pelo interlocutor. (AGUIAR e
FERREIRA, 2021, p. 3, grifo nosso).
72

No que se refere à escolha de entender a inventividade docente por meio


de indícios, ressalta-se que este estudo toma o paradigma indiciário (GINZBURG,
1989) como método de investigação. Sobre ele, pode-se afirmar que se “trata da
construção de um conhecimento que busca a totalidade sobre um objeto cujo acesso
só se dá de maneira indireta” (AGUIAR e FERREIRA, 2021, p. 6), ou seja, através de
sinais que são, segundo Ginzburg (1989), “zonas privilegiadas” para interpretar uma
realidade que é “opaca”.
Posto que que os indícios da inventividade serão inferidos a partir das
narrativas de pesquisadores, com inspiração na pesquisa desenvolvida por Leandro
e Passos (2021, p. 8), passo a denominá-los de “indícios narrativos”. Esta
denominação se justifica pela especificidade do material analisado: as narrativas
trazem um tipo de indício que o pesquisador interessado procura identificar – no caso
deste estudo, a inventividade docente, especificamente, por pressupor sua existência
nas relações que envolvem a docência –, diferentemente dos indícios materiais, como
as pistas de crimes encontradas por Sherlock Holmes ou os signos pictográficos
descobertos por Morelli, que são citados por Ginzburg (1989).
Aguiar e Ferreira (2021), ao abordarem as possibilidades do paradigma
indiciário para o estudo de narrativas escritas, sugerem que cada narrativa indica os
caminhos a serem percorridos para sua análise – que deve ser flexível – mas essa
flexibilidade não inviabiliza a atenção para alguns elementos presentes nas narrativas.
Ou seja, mesmo que o paradigma indiciário não seja um modelo epistemológico de
interpretação de dados estruturalista 38, há características formais que podem auxiliar
o processo de compreensão dos indícios, como os que apresentarei mais adiante, no
subitem que focaliza as estratégias de análise dos dados.

3.3. Procedimentos metodológicos: o ‘corpus’

Os procedimentos metodológicos adotados nesta tese caracterizam-na


como pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica. Segundo André (2002), esse tipo
de trabalho incorpora um balanço do conhecimento produzido sobre uma temática,

38
Segundo Thiry-Cherques (2006), o método estruturalista considera o objeto como totalidade
passível de descrição a partir dos elementos que a constituem e das relações que mantém entre si.
O estruturalismo, ao construir um método de análise formal, pretende dar objetividade ao estudo do
humano.
73

permitindo a indicação das principais tendências da área da educação, além de


possíveis lacunas das pesquisas desenvolvidas. Sua relevância consiste em verificar
o crescimento no número de pesquisas no âmbito dos programas de pós-graduação,
estabelecer uma síntese dos tipos de pesquisa que têm sido produzidas e apurar os
programas que têm sido lócus privilegiado dessa produção, identificando as questões
que provocam os pesquisadores, os direcionamentos priorizados e as contribuições.
Autores como Brzezinski e Garrido (2006), Nóbrega-Therrien, Farias e
Nunes (2011) e Severino (2007) compreendem a metodologia em questão como uma
análise da produção do conhecimento que reúne os trabalhos de pesquisa e explora
as relações que existem entre os objetos estudados, os referenciais teóricos, as
tendências e as abordagens, os recursos metodológicos utilizados, identificando os
pontos de convergência e divergência entre eles.
Segundo Gil (2008, p. 50) “a principal vantagem da pesquisa bibliográfica
reside no fato de permitir ao investigador uma cobertura de fenômenos muito mais
ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”. Como a presente pesquisa
assume o objetivo de inferir a inventividade docente nas relações entre a formação de
professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino de leitura e escrita, por meio de
indícios, tendo como fonte de dados um conjunto de teses e dissertações, a opção
pela pesquisa bibliográfica fez-se, de fato, a mais pertinente por se tratar de uma
investigação abrangente.
Soares e Maciel (2000) salientam a necessidade de o pesquisador, ao
delimitar seu recorte focal, traçar critérios precisos sobre o que busca explorar,
evitando imprecisão e um desgaste de energia e tempo. O recorte depende, conforme
assinala Toci-Dias (2009), da realização de estudos preliminares que viabilizem a
apreensão da amplitude do corpus de análise, que pode surgir no primeiro contato
com a fonte documental: banco de dados, catálogos e bibliotecas institucionais.

3.3.1. Busca e seleção das teses e dissertações

Embora no processo da pesquisa as etapas estejam inter-relacionadas,


sendo realizadas no movimento de imersão e afastamento, de ir e vir, cumpre
apresentar ao leitor e à leitora, da maneira mais organizada possível, os
procedimentos assumidos para a seleção e disposição dos dados, revelando-lhe os
74

encaminhamentos do estudo. Assim, no que tange aos caminhos metodológicos, o


curso deste trabalho contemplou as seguintes etapas:

1) Busca e seleção de pesquisas no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.


Esta etapa envolveu a localização de trabalhos para a delimitação do corpus que
compõe a tese a partir de alguns passos:

a) Busca por descritores: tendo em vista o interesse em analisar as relações entre


a formação de professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino de leitura e
escrita, determinou-se como descritores os seguintes termos: práticas
pedagógicas de leitura e escrita > formação de professores > trabalho docente
> professora alfabetizadora > alfabetização > letramento > ensino de leitura e
escrita > anos iniciais do ensino fundamental.

b) Refinamento: uma vez que os descritores revelaram a existência de milhares


de trabalhos, optou-se por refinar a busca efetuada. Para isso, selecionou-se
as opções: Grande área do conhecimento: Ciências Humanas; Área do
conhecimento: Educação; Nome do Programa: Educação. Além disso, optou-
se pela delimitação do período de 2015 a 2019 por ter sido verificado um
aumento exponencial de pesquisas na área durante esses anos. Nesta etapa
verificou-se a existência de 10.383 pesquisas.

c) Determinação de critério por região: diante da quantidade elevada de estudos


localizados, fez-se necessário assumir como critério a escolha de uma região
do Brasil para incorporar os trabalhos selecionados à pesquisa. Assim, optou-
se pela região Sudeste e, mais especificamente, pelas universidades públicas
estaduais paulistas pelas seguintes razões: familiaridade prévia com os
trabalhos e seus pesquisadores, integrantes de grupos de estudos conhecidos
por adotarem a perspectiva de ensino da leitura e da escrita defendida nesta
tese; necessidade de realizar uma delimitação (abarcar pesquisas em nível
nacional, numericamente, demandaria um tempo que extrapola o período de
integralização do curso de doutorado); constatação de concentração
significativa de pesquisas aderentes à busca efetuada – o que certamente
decorre da quantidade elevada de programas de pós-graduação – na região
sudeste/ território paulista/ universidades estaduais, conforme mostram as
figuras a seguir:
75

Figura 2 – Percentual de pesquisas localizadas por região brasileira39

Distribuição das pesquisas por região

8%
9% Norte
34%
8% Nordeste
Centro-Oeste
Sudeste
41%
Sul

Fonte: Elaboração da autora com base nos dados da CAPES.

Figura 3 – Percentual de pesquisas localizadas na UNESP, UNICAMP e USP40

Distribuição das pesquisas por


universidade

USP
37% 40% UNESP
UNICAMP

23%

Fonte: Elaboração da autora com base nos dados da CAPES.

Referem-se às seguintes quantidades de pesquisas localizadas: Norte – 812; Centro-Oeste – 861;


39

Nordeste – 974; Sul – 3494; Sudeste – 4242.


Referem-se às seguintes quantidades de pesquisas localizadas: UNESP – 350; UNICAMP – 563;
40

USP – 617. Das 4242 pesquisas situadas na região sudeste, 1530 são oriundas de tais universidades.
76

Das 10.383 pesquisas inicialmente encontradas, 1.530 permaneceram


após a aplicação do filtro por região e universidades. A próxima figura retrata a visão
obtida no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES nesta etapa:

Figura 4 – Total de Teses e Dissertações localizadas a partir do critério definido

Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.

d) Triagem: mesmo após o refinamento efetuado, notou-se que parte significativa


das pesquisas não revelou aderência ao recorte delimitado para esta tese.
Nesse sentido, foi realizada uma triagem manual, considerando-se,
77

inicialmente, os títulos 41 das pesquisas encontradas. Das 1530 pesquisas,


elegeu-se 94.

e) Seleção: após a triagem por títulos, realizou-se uma seleção com critérios ainda
mais específicos, a fim de acolher para este estudo as pesquisas que, de fato,
apresentassem contribuições ao objeto de investigação delineado. São eles:
alusão à formação de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental,
seja ela na esfera inicial (curso de Pedagogia) ou continuada; e referência ao
ensino da leitura e/ou da escrita e ao processo de alfabetização/letramento.
Destarte, procedeu-se com a leitura minuciosa dos resumos das 94
teses/dissertações. Dessas, 25 foram selecionadas. A figura abaixo ilustra a
origem e o total de pesquisas localizadas após triagem e seleção definitiva:

Figura 5 – Teses/Dissertações localizadas após triagem e seleção42

USP

UNICAMP

UNESP

0 10 20 30 40 50
Triagem Seleção

Fonte: Elaboração da autora com base nas pesquisas do Catálogo de Teses e Dissertações
da CAPES.

41
Nesta etapa foram desconsiderados os trabalhos que trazem em seus títulos elementos que
evidenciam explicitamente a não aderência ao foco deste estudo, como: referência a níveis de ensino
não correspondentes aos anos iniciais do Ensino Fundamental; foco em outras áreas ou cursos.
42
As universidades USP, UNICAMP E UNESP registraram, respetivamente, 39, 29 e 26 pesquisas
após a triagem e 9, 12 e 4 após a seleção definitiva.
78

A pesquisa efetuada no Catálogo da CAPES representou uma das etapas


mais fadigosas do processo de produção da tese, visto que o refinamento do sistema
se mostrou impreciso. Ainda que os descritores tenham sido bastante específicos,
foram incluídos na busca trabalhos que fazem referência à Educação Infantil, ao
Ensino Médio e à Educação e Jovens e Adultos, pesquisas com outros cursos de
licenciatura (Matemática, Letras, Geografia e Biologia, principalmente) e até mesmo
com cursos de bacharelado. Tal imprecisão gerou um empenho constante, ao ponto
de as pesquisas terem de ser selecionadas manualmente. Ferreira (2001), citada
anteriormente43, em seu estudo já advertia a respeito das dificuldades em relação a
investigações que tenham que se pautar em plataformas de dados e que dependem
da alimentação de sistemas. Apesar de seu trabalho se referir a duas décadas atrás
(a autora relata que muitos passos ela teve que solucionar manualmente), sua
observação se faz presente uma vez que problemas de alimentação equivocada, ou
faltante, permanecem ainda hoje.
Além disso, o site manifestou erros persistentes, forçando que dezenas
de tentativas fossem necessárias para aplicar os filtros de busca e obter sucesso na
operação. Ao selecionar uma das opções de refinamento (grande área; área; nome
do programa e período) o sistema anulava a opção marcada anteriormente,
desconfigurando a busca. Devido a esse empecilho, a seleção iniciada em 2019 só
pôde ser concluída em 2020, quando a plataforma apresentou estabilidade. Uma vez
finalizada a etapa citada, prosseguiu-se para a etapa subsequente:

2) Organização das Teses e Dissertações selecionadas. Esta etapa incluiu a


disposição preliminar das pesquisas, a fim de que fossem devidamente organizadas
para posterior apreciação. Optou-se por atribuir uma abreviatura a cada uma delas,
representada pela inicial P (Pesquisa), seguida da numeração correspondente (entre
1 e 25), seguindo a lógica cronológica crescente de publicação (da mais antiga para
a mais recente). Também foram dispostos os níveis de estudo, sendo D pesquisa de
doutorado (totalizando 9 trabalhos) e M pesquisa de Mestrado (totalizando 16
trabalhos), e os programas de Pós-graduação, universidade de origem e localização
do campus universitário. Tais informações são apresentadas no Quadro 2:

43
Seu estudo será retomado com vagar.
79

Quadro 2 – Teses e Dissertações selecionadas

Título da pesquisa Abreviatura* D ou M** Autora PPG - Universidade Ano

Da vivência à elaboração: uma proposta de plano de ensino de Maria da Conceição Educação / USP / São
P1 D 2015
língua portuguesa nos anos iniciais do ensino fundamental Costa Paulo
Organização e funcionamento do Programa Sala de Leitura Josany Leme da Educação / UNESP /
P2 M 2015
nas escolas da diretoria de ensino de Presidente Prudente Silva Batista Presidente Prudente
A escrita na formação inicial docente: o que escrevem os Bruna Fabiane Educação / UNESP /
P3 M 2015
futuros professores? Baptistella Rio Claro
Como a prática de leitura da professora, através da literatura Cristiane Begalli Educação / UNICAMP /
P4 M 2015
em sala de aula, pode contribuir na formação da criança leitora Evangelista Campinas
O livro de imagem como base para produções orais e escritas Vera Lúcia Fellipin Educação / USP / São
P5 M 2015
de crianças do Ensino Fundamental dos Santos Paulo
A supervisão de estágio: interlocuções sobre a inserção de
Rita de Cássia Educação / UNICAMP /
professores em formação nas escolas de Educação Infantil e P6 D 2015
Cristofoleti Campinas
nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
Alfabetização e letramento: ampliação dos saberes didáticos Marilene Bortolotti Educação / UNESP /
P7 M 2015
por meio da formação continuada online Boraschi Presidente Prudente
Projeto colaborativo de avaliação do desempenho escolar:
Railene Menezes Educação / USP / São
contribuições para a formação de professores da Educação P8 M 2015
Naranjo Policaro Paulo
Básica
Alfabetização no Ensino Fundamental: novas bases Educação / USP / São
P9 M Natalia Bortolaci 2015
curriculares Paulo
Educação / UNICAMP /
O trabalho docente com.par.t(r)ilhado: focalizando a parceria P10 D Marissol Prezotto 2015
Campinas
A formação continuada de professores/as nas cidades de
Educação / UNICAMP /
Campinas e Hortolândia: um balanço do período de 2000 a P11 M Raquel Pereira Alves 2015
Campinas
2012
O ensino de leitura literária nos anos iniciais do ensino
Iracema Santos do
fundamental: dimensões relativas à gestão e à estrutura da P12 D Educação / USP / São 2016
Nascimento
escola Paulo
80

Práticas pedagógicas no ensino de leitura nas séries iniciais: o Fernanda Caroline Educação / UNICAMP /
P13 M 2016
processo de constituição de uma professora Teixeira Campinas
Leitura Fruição na escola: o que alunos e professores têm a Fabiana Bigaton Educação / UNICAMP /
P14 D 2016
dizer? Tonin Campinas
As representações de práticas de ensino de leitura e escrita no
Silvia Aparecida Educação / UNICAMP /
processo de elaboração do Programa Ler e Escrever: P15 D 2016
Santos de Carvalho Campinas
prioridade na escola municipal
(Re)ensinando a alfabetizar: um estudo sobre os livros de Bárbara Pereira Educação / USP / São
P16 M 2016
orientação pedagógica do PNAIC (2012) Leme Barletta Paulo
Elaine Cristina
Projetos didáticos em salas de alfabetização: desafios da Educação / USP / São
P17 M Rodrigues Gomes 2016
transposição didática Paulo
Vidal
O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: Eliana Aparecida Educação / UNESP /
P18 M 2016
resultados da experiência em Campinas Barbosa Boscolo Rio Claro
A voz de uma professora - formadora que se inventa e Renata Barroso de Educação / UNICAMP /
P19 M 2016
reinventa a partir da/com/na escola Siqueira Frauendorf Campinas
Práticas pedagógicas: como se ensina ler e escrever no ciclo Renata Rossi Fiorim Educação / USP / São
P20 M 2018
de alfabetização? Siqueira Paulo
A sala de aula como espaço de interlocução e produção de Giovana Tolesani Educação / UNICAMP /
P21 M 2018
sentidos Camargo Barbosa Campinas
A professora-pesquisadora-iniciante e seus outros: caminhos Vanessa França Educação / UNICAMP /
P22 D 2018
partilhados na invenção de ser professora Simas Campinas
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: as
Edna Rosa Correia Educação / USP / São
estratégias e táticas de apropriação de uma alfabetizadora e P23 D 2018
Neves Paulo
seus formadores
Modos de ensinar a ler e a escrever: alfabetização como uma Educação / UNICAMP /
P24 D Mariana Bortolazzo 2019
prática cultural Campinas
Interlocuções no contexto de pesquisa com professoras Daniele Aparecida Educação / UNICAMP /
P25 M 2019
iniciantes em turmas de alfabetização Biondo Estanislau Campinas

Fonte: Elaborado pela autora, com base no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.
* Refere-se à abreviatura atribuída a cada pesquisa, cuja ordem se baseia na cronologia crescente.
** D = Nível de Doutorado; M = Nível de Mestrado.
81

3.3.2. Breve panorama das pesquisas investigadas

Ao concluir as etapas de seleção e organização do material de análise,


prosseguiu-se com a apreciação geral das pesquisas, com especial atenção aos
objetivos delineados, tipo de pesquisa e base teórica.
Observa-se, nas 25 pesquisas que integram o corpus deste estudo, que
seus objetivos buscaram analisar, compreender, investigar, caracterizar aspectos que
contemplam a formação docente e a leitura e escrita, conforme mostra o quadro 3:

Quadro 3 – Objetivos das pesquisas

Pesquisa Objetivo

Analisar os entraves e as possibilidades postas pelas condições reais em


P1 - Tese que o trabalho escolar se materializa nos anos iniciais, durante a
(COSTA, 2015) elaboração de uma proposta curricular em linguagem, com foco na
entrada das crianças no mundo da escrita

P2 - Dissertação Compreender como o programa sala de leitura implantado pelo estado de


São Paulo desde 2009 funciona nas escolas estaduais da diretoria de
(BATISTA, 2015) Presidente Prudente.

Investigar a potencialidade das práticas da escrita na formação inicial de


P3 - Dissertação professores e inventariar e problematizar as práticas da escrita dos
futuros professores no curso, explicitando de que forma eles as
(BAPTISTELLA, 2015) compreendem e como enxergam suas contribuições para a formação
docente.

P4 - Dissertação Compreender como a prática de leitura de literatura de uma professora


dos anos iniciais do ensino fundamental pode contribuir na formação da
(EVANGELISTA, 2015) criança leitora.

P5 - Dissertação Investigar como crianças do terceiro ano do Ensino Fundamental de uma


escola pública de São Paulo produzem textos narrativos orais e escritos
(SANTOS, 2015) a partir de um livro de imagem.

Analisar os encontros de supervisão de estágio em um curso de


P6 - Tese Pedagogia, buscando compreender como, ao instaurarem um espaço de
(CRISTOFOLETI, 2015) interlocução sobre as vivências experimentadas na escola, formavam os
professores e seus formadores.

Analisar as contribuições e os desafios de um curso de formação


P7 - Dissertação continuada on-line para a ampliação do saber didático de professores dos
(BORASCHI, 2015) anos iniciais do ensino fundamental no trabalho de alfabetização e
letramento.

Compreender se o fato de os professores continuarem seus estudos por


P8 - Dissertação meio da participação em pesquisas financiadas pelo Observatório de
(POLICARO, 2015) Educação da CAPES contribui para seu processo de formação para a
docência.
82

P9 - Dissertação Contribuir para as políticas públicas, enfatizando a relevância do ensino


(BORTOLACI, 2015) da escrita e da leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental.

P10 - Tese Perceber como se desenvolve o processo de construção da parceria no


cotidiano do trabalho docente, quais são os seus elementos constitutivos
(PREZOTTO, 2015) e quais as implicações educacionais deste processo.

Investigar o papel que os Centros de Formação de Professores das


P11 - Dissertação cidades de Campinas e de Hortolândia vêm desempenhando na
condução das políticas de formação continuada, através do levantamento
(ALVES, 2015) e da análise dos Programas de Formação ofertados aos docentes do
Ensino Fundamental.

P12 - Tese Verificar e analisar as dimensões relativas à gestão e à estrutura da


escola no ensino de leitura literária nos anos iniciais do Ensino
(NASCIMENTO, 2016) Fundamental.

P13 - Dissertação Caracterizar uma prática pedagógica no ensino de leitura considerada


bem-sucedida e identificar os agentes mediadores do processo de
(TEIXEIRA, 2016) constituição da professora que a propõe.

P14 - Tese Entender um pouco mais da leitura fruição e seus desdobramentos, como
se concretizaram no ambiente escolar, bem como seus impactos, e como
(TONIN, 2016) poderiam influenciar a formação de leitores, em especial, dos alunos.

Analisar o processo de constituição do Programa Ler e Escrever a partir


P15 - Dissertação de documentos oficiais que instituíram esse processo e de dois
(CARVALHO, 2016) depoimentos de profissionais que atuaram na elaboração dessa política
pública.

P16 - Dissertação Investigar como os materiais do PNAIC orientam docentes em serviço,


que já são alfabetizadores, quanto a um modo específico de ensinar a ler
(BARLETTA, 2016) e escrever.

P17 - Dissertação Compreender como o trânsito entre conceber, planejar e executar


subsidia os professores na construção de sua prática pedagógica de
(VIDAL, 2016) projetos didáticos.

P18 – Dissertação Verificar de quais práticas pedagógicas os docentes participantes do


PNAIC fizeram uso com seus alunos em sala de aula, que provinham
(BOSCOLO, 2016) dessa formação continuada.

P19 – Dissertação Entender como se constitui o trabalho do formador externo ao longo de


um programa de formação continuada, aumentando seu envolvimento
(FRAUENDORF, 2016) com o cotidiano da escola.

P20 - Dissertação Analisar as práticas pedagógicas nas classes de 1º ao 3º ano do Ensino


Fundamental, com o intuito de registrar as propostas de trabalho no
(SIQUEIRA, 2018) ensino da Língua Portuguesa.
83

P21 - Dissertação Problematizar as relações que se estabelecem na sala de aula,


procurando encontrar indícios dos sentidos produzidos pelos sujeitos
(BARBOSA, 2018) sociais (professora e alunos) nas interlocuções cotidianas.

P22 - Tese Compreender como ocorre o processo pelo qual a profissional recém-
formada constitui-se professora, ou melhor: como é que esse processo
(SIMAS, 2018) ocorre com o meu eu, como me invento e me reinvento professora.

P23 - Tese Ampliar e aprofundar o entendimento das particularidades inerentes à


implementação do PNAIC, procurando entender os processos de
(NEVES, 2018) desenvolvimento dessa política educacional de alfabetização.

P24 - Tese Descrever e analisar a prática de uma docente alfabetizadora, que é


(BORTOLAZZO, 2019) considerada representativa da comunidade da qual participa.

P25 – Dissertação Compreender como as professoras iniciantes nas turmas de


alfabetização passam por ressignificações, a partir da mediação da
(ESTANISLAU, 2019) pesquisadora, no processo de reflexão sobre a própria experiência.

Fonte: Elaboração da autora com base na leitura das pesquisas.

É válido ressaltar que, mesmo alguns objetivos não explicitando a questão


da inventividade docente perante o ensino da leitura e da escrita e suas relações com
a formação inicial ou continuada de professoras alfabetizadoras, tais aspectos
(inventividade, autoria) puderam ser reconhecidos e inferidos nos textos, fazendo-os
representar relevância ímpar ao presente estudo.
Outro dado importante diz respeito ao tipo de pesquisa e aos instrumentos
utilizados nos estudos analisados. Nesse tocante, foi possível verificar que todas as
pesquisas pertencem à vertente qualitativa e que, das 25 selecionadas, 24 são
empíricas (distribuídas entre pesquisa de campo, pesquisa participante, etnografia e
pesquisa-ação), contando com o envolvimento de diferentes sujeitos (alunos dos anos
iniciais, professoras alfabetizadoras, estudantes do curso de Pedagogia), e 1
caracteriza-se como documental, valendo-se da análise de materiais voltados à
formação de professoras alfabetizadoras. Os instrumentos utilizados para coleta de
dados, por sua vez, apresentaram diversidade mais acentuada, já que algumas
pesquisas adotaram mais de um instrumento para a coleta dos dados. No entanto, o
instrumento entrevista destacou-se pela frequência, como se pode notar na figura a
seguir:
84

Figura 6 – Instrumentos de coleta de dados privilegiados nas pesquisas

Instrumentos de coleta

7% Entrevista
7%
Registros orais informais
7% 38% Diário de bordo / campo
Questionário
21%
Relato da própria prática
20% Produções escritas

Fonte: Elaboração da autora.

O fato de a parcela predominante das pesquisas ter sido realizada com a


participação de sujeitos diretamente envolvidos no processo educativo (práticas de
ensino de leitura e escrita e formação docente), embora não configure um dos critérios
da busca efetuada, vai ao encontro do que se procura nesta tese, que é justamente
compreender o que as produções acadêmicas nos apresentam sobre a inventividade
docente existente na relação entre formação e práticas de ensino da leitura e da
escrita por meio dos indícios narrativos.
Igualmente relevante, ainda que também não caracterize um critério, é
constatar que os referenciais teóricos e metodológicos que fundamentam as
pesquisas de alguma forma dialogam com as concepções de ensino da leitura e da
escrita e de formação docente defendidas no presente estudo, conforme mostra o
quadro 4:

Quadro 4 – Referenciais teórico-metodológicos das pesquisas

Pesquisa Referencial teórico/metodológico

P1 (COSTA, 2015) Tríade educação, linguística e psicanálise (Lacan; Freud; Havelock)

P2 (BATISTA, 2015) Processo de formação do leitor literário (Silva; Zilberman)


85

P3 (BAPTISTELLA,
História Oral (Ataíde; Guedes-Pinto; Meihy)
2015)

P4 (EVANGELISTA,
História Cultural (Lajolo; Certeau; Chartier)
2015)

Concepção sociointeracionista da educação (Vygotsky) e dialógica da


P5 (SANTOS, 2015)
língua (Bakhtin)

P6 (CRISTOFOLETI,
Teoria enunciativa (Bakhtin)
2015)

P7 (BORASCHI, 2015) Estudos do Letramento (Kleiman; Tfouni; Rojo; Mortatti)

Processo formativo do professor pesquisador/reflexivo (Imbernón;


P8 (POLICARO, 2015)
Zeichner; Nóvoa; Schon; Sacristán)

P9 (BORTOLACI, 2015) História da escrita, cultura oral, psicanálise e educação (Freud; Havelock)

P10 (PREZOTTO, 2015) História Cultural (Certeau; Charlot; Ginzburg)

Escola como lócus de formação continuada (Imbernón; Gatti; Marin;


P11 (ALVES, 2015)
Nóvoa)

P12 (NASCIMENTO, Perspectiva sócio-histórica (Vygotsky); e histórico-cultural (Lajolo;


2016) Zilberman)

P13 (TEIXEIRA, 2016) Psicologia histórico-cultural (Vygotsky)

Teoria enunciativa (Bakhtin); História Cultural (Certeau; Chartier) e


P14 (TONIN, 2016)
Letramento Literário (Cosson)

P15 (CARVALHO,
História Cultural (Chartier; Hébrard; Ginzburg)
2016)

P16 (BARLETTA, 2016) História Cultural (Chartier)

Concepção interacionista da linguagem (Vygotsky) e dialógica da língua


P17 (VIDAL, 2016)
(Bakhtin); Paradigma indiciário (Ginzburg)

Estudos sobre a formação de professores (Chauí; Saviani; Nóvoa;


P18 (BOSCOLO, 2016)
Perrenoud, Nogueira e Catani; Charlot)

P19 (FRAUENDORF, Estudos sobre a formação de professores (Contreras; Gatti; Imbernón;


2016) Libâneo; Marcelo; Nóvoa; Prado).

Concepção interacionista da linguagem (Vygotsky) e dialógica da língua


P20 (SIQUEIRA, 2018)
(Bakhtin)

P21 (BARBOSA, 2018) História Cultural (Certeau); concepção dialógica da língua (Bakhtin; Brait)

P22 (SIMAS, 2018) Concepção dialógica da língua (Bakhtin)


86

P23 (NEVES, 2018) Abordagem etnográfica (Rockwell); História Cultural (Certeau; Chartier)

P24 (BORTOLAZZO,
História Cultural (Certeau; Chartier; Geraldi; Ginzburg)
2019)

P25 (ESTANISLAU, Perspectiva histórico-cultural (Vigotski); e teoria enunciativo-discursiva


2019) (Bakhtin).

Fonte: Elaboração da autora

Como se pode perceber, aproximadamente metade das pesquisas toma o


referencial da História Cultural como parâmetro teórico-metodológico. Esse indicador,
mesmo não sendo determinante para a análise tecida nesta tese, sugere algumas
pistas sobre a maneira como os pesquisadores olharam para as informações
provenientes dos sujeitos investigados. Uma delas, e talvez a mais importante, é a
valorização das práticas construídas em contextos específicos, nos cotidianos dos
sujeitos, ou seja, nas micro realidades (CERTEAU, 1994). Outra pista indica um olhar
para os aspectos pouco evidentes, os indícios (GINZBURG, 1989), que interessam
fortemente a este estudo.
Também se mostram presentes os Estudos do Letramento, os quais optam
por considerar a pluralidade e a contextualização de práticas de letramento no
processo de ensino da leitura e da escrita, entre outros referenciais que, apesar de
não corresponderem necessariamente aos mesmo que fundamentam este trabalho,
estão em consonância com as perspectivas defendidas.
Apresentado o panorama geral das pesquisas, que contou com a
organização de seus objetivos, referenciais e instrumentos de coleta de dados, passo
a expor o subitem que aborda as temáticas privilegiadas nessas produções.

3.4. Estratégias de análise de dados: os ‘focos de interesse’

Como todas as pesquisas selecionadas para compor o corpus deste estudo


atendem aos critérios estabelecidos na busca, sobretudo no que tange à relação entre
a formação de professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino de leitura e escrita,
é certo que tal tema enveredou as discussões e análises das pesquisadoras 44 .
Assumindo a premissa de que em estudos nos/dos/com os cotidianos se buscam “a

44
Aqui já as identifico no feminino, dada a constatação de que todas as produções acadêmicas
selecionadas foram escritas por mulheres.
87

proliferação de histórias e operações heterogêneas que compõem os ‘patchworks’ do


cotidiano” (CERTEAU, 1994, p. 46), apresento as delimitações de cada pesquisa.

Quadro 5 – Temáticas privilegiadas nas pesquisas

Pesquisa Temática principal

Focaliza uma proposta interdisciplinar de alfabetização que investiga os


P1 (COSTA, 2015) processos de entrada das crianças nas formalizações da modalidade oral
e escrita e a permanência delas em sua escolarização.

Investiga o funcionamento do programa Sala de Leitura no âmbito de


escolas estaduais de Presidente Prudente /SP (busca identificar se o
P2 (BATISTA, 2015)
espaço destinado às atividades na biblioteca escolar oportuniza livros e
materiais para informação e fruição).

Discute as práticas de escrita promovidas em um curso de Pedagogia de


P3 (BAPTISTELLA,
uma universidade pública brasileira no contexto das disciplinas
2015)
curriculares oferecidas, dos programas de extensão e do PIBID.

Apresenta, a partir de um estudo realizado em uma turma de 2º ano do


P4 (EVANGELISTA,
município de Hortolândia, indícios de como as leituras orais da professora
2015)
podem influenciar as crianças em momentos de leitura.

Enfoca a imperiosidade do investimento na formação do leitor e a


P5 (SANTOS, 2015) importância de se pautar o ensino da língua na escola como um processo
reflexivo, ajustado às necessidades das crianças.

Se debruça na dinâmica interlocutiva produzida nos encontros formativos


P6 (CRISTOFOLETI,
de supervisão do estágio, problematizando a relação entre teoria e prática
2015)
promovida nas discussões entre estudantes e formadora.

Relata as contribuições e os desafios de um curso de formação


P7 (BORASCHI, 2015) continuada on-line para a ampliação do saber didático de professores dos
anos iniciais no trabalho de alfabetização e letramento.

Focaliza um projeto desenvolvido no âmbito do programa Observatório


da Educação, do qual participaram professores da rede pública do estado
P8 (POLICARO, 2015)
de Sergipe, cujo intuito é desenvolver instrumentos avaliativos para os
alunos do Ensino Fundamental.

Apresenta dados e discussões oriundos de uma experiência coletiva de


P9 (BORTOLACI, 2015) pesquisa que analisa as bases curriculares da alfabetização no Ensino
Fundamental de nove anos.

Discute a narrativa tecida a partir de vivências específicas da professora-


pesquisadora e de um grupo de professores em diferentes espaços de
P10 (PREZOTTO, 2015) conversa e de parceria (formais ou não) que foram possibilitando a
reflexão, o diálogo e a construção de conhecimento sobre o trabalho
com.par.t(r)ilhado.
88

Estuda o papel que os Centros de Formação de Professores das cidades


P11 (ALVES, 2015) de Campinas e de Hortolândia desempenham na condução das políticas
de formação continuada voltados ao ciclo de alfabetização.

Tece considerações sobre as relações entre gestão e estrutura escolar


P12 (NASCIMENTO, no ensino de leitura literária nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
2016) com foco nas dimensões que devem ser conjugadas para garantir um
trabalho pedagógico consistente.

Toma como alvo de investigação o trabalho de uma professora atuante


P13 (TEIXEIRA, 2016) nas séries iniciais do Ensino Fundamental I de uma escola do interior
paulista, considerada como uma docente de sucesso no ensino da leitura.

Analisa os depoimentos de alunos e professores sobre as práticas de


P14 (TONIN, 2016) leitura fruição – a leitura que não é obrigatória –, feita por escolhas dos
professores, em momento e espaço privilegiados.

Discute as marcas deixadas pelo programa Ler e escrever,


P15 (CARVALHO,
especialmente as representações de práticas de ensino determinadas no
2016)
processo de elaboração dessa iniciativa.

Toma como objeto de pesquisa os livros do PNAIC que foram escritos


P16 (BARLETTA, 2016) para orientar o trabalho pedagógico de professores atuantes nos anos
iniciais do Ensino Fundamental (ciclo de alfabetização).

Focaliza os projetos didáticos voltados à alfabetização nos anos iniciais


P17 (VIDAL, 2016) do Ensino Fundamental, atendando-se à formação das professoras e à
construção de práticas pedagógicas.

Analisa como os professores alfabetizadores que participaram do PNAIC


no município de Campinas-SP entre os anos de 2013 e 2014 aproveitam
P18 (BOSCOLO, 2016)
os saberes pedagógicos propostos por esta formação continuada com
seus alunos.

Reflete sobre o sentido da atuação do formador externo a partir de


P19 (FRAUENDORF, registros elaborados enquanto formadora externa e de quatro devolutivas
2016) escritas durante um programa de formação em que a autora participou
como consultora.

Apresenta registros de propostas de trabalho no ensino da Língua


Portuguesa a partir de quatro eixos: a natureza da atividade; a natureza
P20 (SIQUEIRA, 2018)
da demanda feita ao aluno; a natureza linguística da proposta; e a
natureza interacional na dinâmica de produção da turma.

Discute as relações que se estabelecem na sala de aula, procurando


P21 (BARBOSA, 2018) encontrar indícios dos sentidos produzidos pelos sujeitos sociais
(professora e alunos dos anos iniciais) nas interlocuções cotidianas.

Enfoca, a partir da própria prática da pesquisadora, o processo de


P22 (SIMAS, 2018)
constituição da professora alfabetizadora no início da carreira

P23 (NEVES, 2018) Investiga a apropriação de uma política educacional por seus
destinatários (neste caso, professora alfabetizadora e orientadores de
89

estudo), observando as formas como tais sujeitos a tem interpretado em


suas práticas diárias.

Focaliza o estudo de cenas de aulas de uma professora considerada


P24 (BORTOLAZZO,
referência em sua comunidade, com o intuito de observar sua capacidade
2019)
inventiva de produzir sentidos em sala de aula.

Tematiza as dificuldades enfrentadas pelos professores que iniciam a


P25 (ESTANISLAU, docência em turmas de alfabetização, observando como acontece a
2019) mobilização dos conhecimentos na busca de práticas pedagógicas em
favor da formação do sujeito leitor.

Fonte: Elaboração da autora.

Diante de tais temáticas, e tomando as contribuições teórico-metodológicas


de Ginzburg (2012) no que se refere a elementos formais45 que auxiliam a decifração
de indícios, foi possível notar similaridades entre as pesquisas, como o uso frequente
de determinadas palavras. Realizou-se, então, a verificação de palavras mais
recorrentes nos resumos das teses e dissertações com recurso da ferramenta
PowerPoint e sua extensão Pro Word Cloud, que possibilitaram a construção de uma
nuvem de palavras, conforme mostra a imagem:

Figura 7 – Palavras mais recorrentes nas pesquisas

Fonte: Elaboração da autora.

45
Ressalta-se que os elementos formais são utilizados por Ginzburg quando estes são meios para
encontrar indícios (LEANDRO e PASSOS, 2021).
90

A frequência da ocorrência de palavras46 percebida configurou importante


pista sobre o que se estuda nas pesquisas, permitindo que, como forma de análise de
dados, as teses e dissertações fossem organizadas em blocos, cujos títulos
representassem seus enfoques comuns.
Vale chamar a atenção, no entanto, para o fato de que a percepção da
frequência não equivale ao exercício de quantificar a menção de palavras e frases.
“Não é preciso dizer ‘o sujeito usou 25 vezes tal expressão’. Frequência de palavras
e frases, nesse caso, não é fim, mas meio para encontrar alguns indícios narrativos”
(LEANDRO e PASSOS, 2021, p. 14).
Assim, diante da combinação de palavras elencadas pela frequência e com
inspiração na investigação de caráter bibliográfico do tipo estado da arte, realizada
por Norma Sandra de Almeida Ferreira, que se debruçou no estudo de pesquisas
sobre a leitura no Brasil entre os anos 1980 e 1995, considerou-se pertinente pensar
em agrupamentos por assuntos que se aproximam – ou “focos de interesse 47 ”
(FERREIRA, 2001), como denomina a autora – para, posteriormente, prosseguir com
a análise, de acordo com o referencial teórico-metodológico adotado.
O quadro 6 apresenta a distribuição efetuada:

Quadro 6 – Agrupamento de pesquisas por foco de interesse

Foco de interesse Pesquisas Total

A formação da futura professora P3 / P6 2

A formação da professora atuante P7 / P10 / P13 / P17 / P22 / P25 6

P2 / P8 / P11 / P15 / P16 / P18 /


Programas e políticas voltados à alfabetização 8
P19 / P23

Práticas no ensino da leitura e da escrita P1 / P4 / P5 / P9 / P12 5

Produção de sentidos entre professoras e alunos P14 / P20 / P21 / P24 4

Fonte: Elaboração da autora.

46
As palavras, em ordem alfabética, são: alfabetizadora; alfabetização; alunos; aprendizagem;
contexto; diálogo; Educação Básica; ensino; entrevista; escola; escrever; escrita; estágio; formação
continuada; formação inicial; leitura; ler; livros; narrativa; Pedagogia; PIBID; PNAIC; prática;
professores; saberes; sala; sentidos; teórico; textos; universidade.
47
O termo “focos de interesse” parece mais coerente com o referencial adotado do que “categorias de
análise”.
91

Os focos de interesse elencados emergiram da apreciação das temáticas


priorizadas nas pesquisas e das palavras mais recorrentes nos textos. Cada um deles
abrange um conjunto de assuntos que de alguma maneira se relacionam.
A forma como estão dispostos no quadro representa a sequência em que
serão analisados no próximo capítulo, e foi pensada considerando-se as diferentes
fases trilhadas pela professora alfabetizadora: inicia na formação inicial, é inserida na
profissão, sendo continuamente formada e, em muitos casos, participando de
programas formativos, se apropria de modos singulares de ensinar a ler e a escrever
ao passo que constrói sentidos com seus alunos nas atividades do cotidiano.
Ainda que essas fases não sejam lineares, uma vez que se entrelaçam nos
movimentos da formação e atuação docentes, a forma como estão apresentadas pode
favorecer a identificação e compreensão dos traços de inventividade que se
constroem em momentos / situações / experiências diversos.
O primeiro foco de interesse, nomeado A formação da futura professora,
inclui discussões sobre as práticas de escrita de licenciandas em contexto de
formação inicial (curso de Pedagogia) e discussões engendradas em encontros
formativos de supervisão de estágio e no PIBID que enfocam a relação entre
conhecimentos teóricos e práticos, fundamentais para o exercício da docência.
O foco A formação da professora atuante abarca questões sobre os limites
e as potências da formação continuada direcionada a docentes que trabalham nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, destacando o processo de constituição da
docência em início de carreira, as trocas entre pares e exemplos de práticas
formativas que levam uma professora a ser considerada bem-sucedida em seu
trabalho educativo.
Por sua vez, o foco de interesse referente aos estudos que contemplam
Programas e políticas voltados à alfabetização, como o PNAIC, Ler e Escrever e Sala
de Leitura, tematiza os alcances de tais iniciativas na formação e no trabalho de
professoras que ensinam a leitura e a escrita, considerando as perspectivas de
sujeitos diretamente envolvidos.
O foco Práticas no ensino da leitura e da escrita engloba teses e
dissertações que se dedicam, principalmente, à compreensão de como as professoras
ensinam seus alunos a ler e a escrever, ressaltando a importância da influência que
essas docentes, enquanto leitoras, têm sobre os modos de constituição de crianças
leitoras nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
92

Por fim, o foco Produção de sentidos entre professoras e alunos envolve


as relações estabelecidas entre esses sujeitos no fazeres cotidianos de sala de aula,
permeadas pelas práticas de leitura e produção de textos.
Importante salientar que, no capítulo a seguir, a narrativa das
pesquisadoras e a análise empreendida caminham juntas. Os pontos de vista dos
narradores e aqueles assumidos intencionalmente nesta tese, com base nas
elaborações construídas a partir do referencial teórico-metodológico, serão abordados
de forma entrelaçada, procurando tecer com eles diálogos.
93

Capítulo 4
A inventividade docente na relação formação-práticas de ensino de
leitura e escrita: indícios nas pesquisas

Nos capítulos anteriores apresentei os pressupostos teóricos que orientam


o presente trabalho e o percurso metodológico que guiou a busca, seleção e
organização do material tomado para estudo (produções acadêmicas publicadas entre
2015 e 2019). Neste momento, ocupo-me da análise dessas produções, buscando
encontrar os indícios de inventividade docente na relação estabelecida entre a
formação de professoras e práticas de ensino de leitura e escrita. Para isso, direciono
meu olhar às diferentes realidades narradas pelas pesquisadoras, na tentativa de
estabelecer conexões entre elas a partir dos focos de interesse. Embora as narrativas
das pesquisas sejam individuais, juntas constituem um fenômeno social capaz de
fornecer pistas para a compreensão do objeto de estudo.
A seguir, remeto-me às teses e dissertações, enfatizando os seus
percursos e conclusões, com o intuito de organizar o conhecimento já produzido pelas
pesquisadoras, analisando-os à luz do referencial teórico-metodológico que embasa
esta tese para, em outro momento, possibilitar ao leitor, à leitora, uma síntese dos
estudos.

4.1. A formação da futura professora

[...] a escrita na qual se permite que o sujeito da escrita se coloque e


até mesmo escreva sobre si, sobre sua história de vida e formação, é
potente no sentido de ressignificar tais experiências e ainda explicitar
que nos formamos ao longo da vida, nas relações que estabelecemos
com pessoas no passar dos anos e que também produzimos nossas
contra-palavras a partir de tudo o que ouvimos e lemos.
(Baptistella, 2015, p. 127-128).

De que lugar e como fala a futura professora? Das possibilidades de


interlocução entre as duas pesquisas selecionadas que focalizam a formação inicial,
acredito que a reflexão sobre tal pergunta seja o principal ponto de encontro.
A pesquisa de mestrado desenvolvida por Bruna Fabiane Baptistella, em
2015, também identificada como P3 nesta tese, objetivou explicitar de que forma as
futuras professoras compreendem as práticas da escrita no exercício da profissão
docente e inventariar tais práticas no contexto do curso de Pedagogia de uma
94

universidade pública brasileira (a mesma universidade e curso de formação


frequentados pela autora). “Queria saber o que os alunos diriam frente às perguntas
que eu me fiz durante o ano de 2012, ao me deparar com a temática da escrita e sua
potencialidade na formação docente” (BAPTISTELLA, 2015, p. 37), relata ela,
desenvolvendo um estudo de base empírica que contou com entrevistas como
instrumento de coleta de dados, analisados à luz da História Oral.
Assim, a autora convidou as licenciandas a rememorarem os primeiros
contatos que tiveram com a produção escrita em suas vidas, perpassando a que
praticaram em família, na escola, nos diários, até chegar no contexto da universidade.
Num movimento rico de minúcias e histórias, que ela própria caracteriza como
“garimpar ouro escondido no discurso dos sujeitos da pesquisa” (ibidem, p. 27),
buscou encontrar sentidos para o tema que é abordado.
Em seus diálogos com as participantes da pesquisa sobre o processo de
construção da escrita universitária, a autora narra que, em detrimento às escritas ‘mais
livres e espontâneas’ desenvolvidas em momentos anteriores ao ingresso na
graduação, esta atividade passa a ser privilegiada em momentos pontuais, como em
avaliações e trabalhos acadêmicos, sendo impregnada de formalidade científica.
Sem negar a relevância das produções formais realizadas no curso para a
formação de futuras professoras, coloca-se em discussão na pesquisa as raras
oportunidades de as licenciandas se apropriarem da escrita acadêmica para se
posicionarem do ponto de vista como sujeitos, expressarem suas angústias e
confrontarem situações experienciadas ao mergulharem em atividades de inserção à
docência com os textos estudados, e o quão potentes essas produções autênticas se
configuram no processo formativo. Guedes-Pinto (2012), focalizando as produções
escritas das licenciandas ressalta o papel dos textos escritos por elas referentes às
idas às escolas, “ao sistematizarem suas dúvidas, dificuldades e conflitos
protagonizados com os sujeitos da escola, trazem à tona o desafio de se posicionarem
e de refletirem sobre a profissão docente” (p. 147).
Apesar de os relatos sugerirem pontos de vista aparentemente suficientes
para determinar a conclusão da pesquisa – que poderia ser: em virtude da rigidez
acadêmica, as licenciandas não vislumbram condições para exprimir suas percepções
mais profundas através da escrita – a pesquisadora, orientada pelo referencial da
História Cultural, optou por expandir suas questões, investigando práticas de escrita
95

informais na universidade. Nesse sentido, destaca a escrita de bilhetes entre as


alunas durante as aulas, muitas vezes marcadas pelo pedido de silêncio do professor:

“Em relação aos bilhetes, acho que é uma escrita que não tem como
o professor controlar. Tem bastante, principalmente com quem senta
do seu lado. O professor fala ‘não conversa’, então troca bilhetinhos.
E querem fugir da aula, ou combinar um trabalho que tem que ser feito.
Ou ‘oi tudo bem, como está hoje?’. Quando uma amiga chega meio
cansada, abatida, eu sempre vou lá e escrevo alguma coisa no
cantinho do caderno dela” (BAPTISTELLA, 2015, p. 107 - excerto de
uma entrevista).

Diante de falas como a do excerto acima, a autora aponta para as “táticas”,


isto é, as capacidades de aproveitar o tempo para interferir em espaços onde se
destaca a “estratégia do poder” (CERTEAU, 1994), que conferem às alunas a
possibilidade de ‘burlar’ determinadas situações. Nas palavras da pesquisadora:

Esse gênero textual (bilhete) produzido pela aluna, assim como outras
anotações no final do caderno, na agenda, por exemplo, são práticas
da escrita não reconhecidas pela universidade como escritas que
fazem parte da formação. Tais produções dos alunos podem ser
compreendidas dentro do eixo que chamo de “práticas de escrita
marginais”, que se referem às escritas não legitimadas pela academia,
mas que estão presentes no contexto da formação inicial docente.
Elas estão inscritas nas “brechas” (BAPTISTELLA, 2015, p. 108).

O olhar da pesquisadora traz à luz a percepção de que, mesmo as futuras


professoras ocupando um lugar marcado pelo controle, não consomem acrítica e
exclusivamente o que lhes é promovido na formação inicial. Com suas experiências
socialmente construídas, transcendem as orientações formativas e produzem, seja
pela escrita ou por outras práticas cotidianas, modos próprios de agir, pensar e se
constituir professora. Essa noção, consubstanciada pelas lentes do paradigma
indiciário, de Ginzburg (1989), o qual preocupa-se com os detalhes facilmente
negligenciados, permitiu à autora da pesquisa P3 compreender e disseminar o
conhecimento sobre a potencialidade de ressignificação de experiências e a
reinvenção de realidades no âmbito da formação docente inicial. Tal indício não
suprime, no entanto, a importância de as universidades expandirem os momentos de
escrita livre de padronizações por seus alunos. Nessa direção, Baptistella (2015, p.
128) conclui que “a formação de professores autores que assumem sua própria
palavra na escola e na sala de aula afetará também a formação de alunos que sabem
96

da importância de escrever e se escrever”, referindo-se às implicações do processo


formativo nas práticas de ensino futuras.
A pesquisa de doutorado de Rita de Cássia Cristofoleti, também publicada
em 2015 e denominada P6 nesta tese, constitui-se em um estudo de campo realizado
no lócus de trabalho da própria autora. Seus contornos são delimitados a partir de
encontros de supervisão de estágio, realizados entre ela (a pesquisadora) e alunas
de um curso de Pedagogia, para identificar e explorar os assuntos mais recorrentes
expressos pelas estagiárias em relação ao processo de inserção nas escolas.
A autora, diretamente envolvida nos acontecimentos vivenciados pelas
estagiárias, baseada em suas experiências anteriores, descreve suas recomendações
feitas para as alunas, enfatizando que elas “instaurem, desde o primeiro dia do
estágio, espaços de atuação junto aos professores, de forma a não se limitarem a
observar as práticas docentes produzidas” (CRISTOLOLETI, 2015, p. 72). Tal
orientação vai ao encontro do que Guedes-Pinto e Fontana (2006) defendem como
“experimentar-se no lugar da docência”, uma posição que vai além da mera
observação dos eventos cotidianos da sala de aula.
No entanto, ao longo dos encontros de supervisão (sempre gravados e,
posteriormente transcritos) a pesquisadora constatou que os temas mais frequentes
apresentados pelas alunas estagiárias se referiam às dificuldades que encontravam
para se relacionar harmoniosamente com as professoras e gestoras das escolas,
cujas recepções não costumavam ser das mais acolhedoras. Falas do tipo “Aqui já
tem muita estagiária”; “Não mandem estagiária para a minha sala”, foram corriqueiras,
instalando nas futuras professoras a sensação de receio. Receio para chegar, para se
aproximar, para fazer as anotações no diário de campo e até mesmo para oferecer
ajuda nas atividades com os alunos.
Posta esta situação, segundo seu texto de tese, a pesquisadora investiu
em interlocuções que estimulassem as estagiárias a conquistarem seus espaços na
escola, de modo que elas compreendessem por que as professoras que as recebem
dizem o que dizem e fazem o que fazem. Esse movimento se visibiliza na seguinte
passagem, que transcreve a fala da autora (também supervisora de estágio):

nós estamos tentando entender a prática da professora. Embora a


gente discuta, problematize, é sempre na tentativa de entender a
prática e para vocês também se colocarem no lugar do outro. E se
fossem vocês? Como é que lidamos com uma porção de coisas que
acontece na escola, que a gente vê que a professora não está dando
97

conta? Mas e se fosse a gente no lugar da professora? O que você iria


fazer? Será que a gente estaria dando conta também?
(CRISTOFOLETI, 2015, p. 98 – trecho da transcrição).

As perguntas elaboradas pela autora no trecho citado (e em muitos outros),


mais do que promoverem o olhar de “colocar-se no lugar da professora” parecem
exercer, também, a função de mostrar às estagiárias que nem sempre o que está
aparente nas relações e nos fazeres cotidianos é o que os representa. Refletir,
questionar, atentar-se aos detalhes, mudar a perspectiva, imaginar caminhos outros,
são atividades que fazem parte do processo de aprendizagem da docência. A
pesquisadora apresenta o exercício de angariar pistas (GINZBURG, 1989) a fim de
construir no coletivo compreensões acerca do trabalho docente.
As questões provocam, ainda, uma dupla interpretação de estágio pelas
licenciandas, que a autora denominou como estágio tarefa e estágio formação. No
estágio tarefa, a compreensão e o “colocar-se no lugar” da professora representam
uma maneira de buscar a permanência na escola para cumprir um dos requisitos da
graduação. No estágio formação, no entanto, o que está em jogo é a problematização
das situações, as possibilidades de pensar: “O que você, como professora, faria de
diferente?”; ou “Como ensinaria?”. Tais questões possibilitam aproximações com as
preocupações delineadas por Chartier (2007; 2016) em construir reflexões a respeito
das práticas pedagógicas baseando-se no exercício reflexivo das próprias professoras
sobre seu fazer. A perspectiva de investigar aspectos do cotidiano escolar fundando-
se no diálogo com os sujeitos imersos no ensino formal (CHARTIER, 2007),
posicionando-se com escuta e com objetivo de elucidação em conjunto com o outro,
parece se configurar como uma opção de pesquisa quando se deseja problematizar a
formação em uma proposta que engloba a intervenção.
As narrativas construídas em ambas as pesquisas que tomam a formação
inicial como foco de interesse apresentam situações que, embora sejam contextuais
e partam de experiências pessoais, fornecem pistas para o entendimento da temática
discutida nesta tese. As autoras mostram, nas suas análises, que o lugar da futura
professora, apesar de efêmero e cercado de controle (um dia se está aluna/estagiária,
no outro não se está mais), é um lugar que produz sentidos, com as relações que
estabelece, e deixa marcas que registram falas, existências e inventividades, seja nas
conversas de supervisão de estágio, nas produções escritas acadêmicas ou mesmo
nos bilhetes anotados no canto do caderno.
98

4.2. A formação da professora atuante

Analisar situações em sala de aula, desvelar as concepções teóricas


que as sustentam e interagir com seus pares trocando experiências,
impressões e identificando as próprias necessidades formativas
parecem ser oportunidades privilegiadas para a formação de
professores.
(Vidal, 2016, p. 295).

A formação de professoras alfabetizadoras atuantes é um tema abordado


nas pesquisas analisadas sob diferentes perspectivas: da formação oferecida em
cursos específicos, da formação desenvolvida nas partilhas entre pares, da formação
advinda da reflexão sobre a própria trajetória de vida pessoal e profissional, da
formação adquirida nos fazeres cotidianos, e também da bricolagem das diferentes
esferas formativas que mobilizam o trabalho docente como um todo e, mais
especificamente, as práticas de ensino de leitura e escrita.
Tomando como enfoque a primeira possibilidade formativa anunciada no
parágrafo anterior, isto é, a formação continuada mediada por meio de um curso, a
pesquisadora Marilene Bortolotti Boraschi, desenvolveu sua dissertação de mestrado,
defendida no ano de 2015, e aqui identificada como P7.
A autora realizou um estudo do tipo pesquisa e intervenção com nuances
do modelo construtivo-colaborativo, que teve como principais instrumentos de coleta
de dados o questionário, o diário de bordo da pesquisadora e as narrativas escritas
produzidas no ambiente virtual de aprendizagem por professoras dos anos iniciais do
Ensino Fundamental de uma escola pública, que participaram de um curso on-line de
formação. O objetivo de tal estudo consistiu em analisar as contribuições e os desafios
do referido curso para a ampliação do saber didático das docentes envolvidas no
trabalho de alfabetização e letramento.
Ao longo da pesquisa, a autora registra as vozes das professoras e, a partir
dos dados produzidos pelas interlocuções diárias, pontua aspectos que configuram as
principais dificuldades para a efetivação do trabalho com alfabetização que contemple
o letramento.
Dentre os principais impasses enfrentados na tarefa de alfabetizar letrando,
relatados pelas professoras e analisados pela pesquisadora, destaca-se a ausência
de uma formação continuada (permanente) que possibilite o repensar das práticas de
ensino, mas que, ao mesmo tempo, não as induza ao engessamento dos modos de
ensinar. Segundo a autora,
99

[...] esse é um dos fatores que explica por que muitas vezes os
programas de formação continuada para professores
alfabetizadores dos anos iniciais do ensino fundamental não trazem
os resultados esperados, mesmo tendo grandes investimentos
financeiros. Embora sejam bem elaborados, são planejados de
acordo com as intencionalidades de quem os desenvolveu, que
podem não ter as mesmas intenções de quem será formado
(BORASCHI, 2015, p. 89).

Como consequência da insuficiência formativa, ainda que as professoras


participantes do estudo reconheçam, em suas narrativas escritas, a importância de a
alfabetização e o letramento acontecerem de forma simultânea e indissociável,
Boraschi (2015, p. 77) observa que “quando a professora descreve como acontecem
os processos de alfabetização e de letramento em sua sala de aula, primeiro é
trabalhado a alfabetização para depois dar início ao processo de letramento”.
Sabe-se, com base em estudos que se debruçam na temática do
letramento (KLEIMAN, 1995; 2005; ROJO, 2009; TFOUNI, 1995), que o processo de
alfabetização, embora detenha suas especificidades, deve estar constantemente
conectado às outras tantas práticas de letramento experienciadas socialmente. Para
tanto, faz-se imprescindível que as professoras alfabetizadoras promovam eventos de
letramento que apresentem características de atividades sociais (por meio de textos
que circulam no dia a dia, de rodas de conversa estimuladas por notícias ou temas
comuns aos contextos em que os alunos estão inseridos, ou até mesmo de (re)escritas
conjuntas sobre algo que aconteceu na escola e lhes chamou a atenção, por
exemplo).
A alta incidência de narrativas docentes que admitiram, diretamente ou não,
dificuldades para alfabetizar na ótica do letramento, constatada no mapeamento
realizado pela pesquisadora, levou-a a inferir que as ações formativas do curso on-
line, do qual ela própria se assumiu proponente, deveriam focalizar as práticas de
ensino de leitura e escrita. Como resultado da proposta, a autora ressalta aspectos
positivos, sobretudo no que tange “aos efeitos da interlocução dos professores para a
construção de uma rede de apoio para o processo de alfabetização e letramento”
(BORASCHI, 2015, p. 121).
O desfecho da dissertação de Marilene Boraschi, que elucida a importância
da partilha de ideias entre pares para a transformação de práticas e minimização de
100

impasses no processo de ensinar a leitura e a escrita, dialoga intimamente com a tese


de doutorado de Marissol Prezotto, publicada em 2015 e aqui denominada P10.
Esta pesquisa constitui-se da narrativa tecida a partir de vivências
específicas da professora-pesquisadora e de um grupo de professores em diferentes
espaços de conversa e de parceria, sendo eles formais ou informais, que foram
possibilitando a reflexão, o diálogo e a construção de conhecimento sobre o trabalho
com.par.t(r)ilhado 48 , evidenciando alguns princípios que o atravessam: confiança,
diálogo, negociação, afetividade e escuta sensível (PREZOTTO, 2015). Com o olhar
fundamentado na Teoria Histórico-Cultural, no Cotidiano e na Reflexividade, a autora
foi buscando compreender como parcerias se desenvolvem na escola.
Sem desabonar a importância da formação inicial e continuada de
professores, a pesquisadora-professora e as outras professoras que fizeram parte do
estudo indicaram, em suas narrativas, que a ação docente experienciada na escola e,
principalmente em sala de aula, lhes possibilitou um conhecimento mais aprofundado
sobre a profissão do que os cursos formais em si. Tal afirmação ratifica a ideia de que
é “na prática cotidiana daquele que conduz a classe, que se podem formular e resolver
os problemas engendrados pelas dinâmicas de evolução do ofício” (CHARTIER, 2000,
p. 164).
Uma das docentes participantes, concordando com tal ponto de vista,
acrescenta que:

Certamente a troca de experiências e o estudo entre pares na rotina


das escolas foi fundamental para o movimento de constante reflexão,
para o entendimento da realidade de turmas, alunos e suas famílias e
para a adequação de práticas e buscas de soluções para as
dificuldades encontradas (PREZOTTO, 2015, p. 137 – trecho da
transcrição).

Sobre narrativas desta natureza, a autora infere, com base em estudos


bakhtinianos, o quão potente se torna um processo quando assumimos que o Outro
nos constitui. Para ela, as professoras participam dos processos de formação umas
das outras e, neste movimento, permite a consecução de importantes reflexões sobre
a prática.

48
A autora comenta que brinca com o verbo “compartilhar”, mesclando-o com o verbo “trilhar”. Para
ela, com.par.t(r)ilhar é estar com o outro na caminhada que se estabelece ao longo do caminho
percorrido ou até mesmo o isolamento que vivemos quando estamos realizando o trabalho docente.
101

As considerações engendradas ao longo da tese sinalizam que


compartilhar experiências e trilhar caminhos comuns podem favorecer o entusiasmo
das professoras para ensinar, uma vez que a confiança e a parceria edificadas nesse
processo favorecem que as docentes “contemplem seu trabalho pelo olhar do Outro”,
“desenvolvam suas competências no âmbito pessoal e profissional” e “encontrem
fôlego para ver outras possibilidades” (PREZOTTO, 2015, p. 203). Ainda na ótica da
autora, a formação engendrada no movimento de ir e vir, de olhar para si, olhar para
o Outro e se olhar pelo Outro, também gera a construção de outra postura em relação
aos alunos, pois ao serem ouvidas e vistas, as professoras passam a sentir a
importância de ver e ouvir o que suas turmas têm a dizer.
Tendo em conta as aprendizagens provenientes do permanente
deslocamento de professora-pesquisadora a pesquisadora-professora ao longo da
escrita de sua tese, Prezotto, 2015 (pp. 205-206) conclui:

Acredito no trabalho com.par.t(r)ilhado como possibilidade de


formação e de melhores estratégias de ensino e de aprendizagem.
Valorizo todas as experiências que tive ao longo da minha vida.
Situações que me levaram a querer o Outro comigo sempre, nas
tristezas de não ser ouvida ou compreendida, ou na alegria da
concretização de um trabalho. [...] Sei dizer que o que é claro e dito
não sai caro a ninguém e, por isso, insisto sempre em declamar
que quando nos respaldamos no trabalho com.par.t(r)ilhado não há
quem desmereça o trabalho pedagógico feito nas minúcias do
cotidiano da escola e da formação contínua que ali ocorre.

De modo articulado ao reconhecimento do valor que o Outro tem em


nossos processos formativos, expresso na tese de Prezotto, apresenta-se a
dissertação de mestrado de Fernanda Caroline Teixeira. Sua pesquisa, defendida no
ano de 2016 e aludida como P13 na presente investigação, buscou analisar o trabalho
de uma professora atuante nos anos iniciais do Ensino Fundamental I, considerada
como uma docente de sucesso no ensino da leitura, de modo a compreender como
essa professora se constitui e se forma profissionalmente na interação com o Outro.
Para tanto, procedeu com a coleta de dados por meio de observações videogravadas
e registradas em diário de campo.
As narrativas da professora envolvida na pesquisa apresentam diferentes
aspectos sobre o processo pessoal e profissional de tornar-se professora
alfabetizadora, cujas práticas de ensino são consideradas exitosas: os incentivos à
102

leitura recebidos na infância, a avidez em leitura adquirida com o tempo, as conversas


e trocas de experiências com colegas, e o consequente estímulo à leitura aos seus
alunos. A pesquisadora pondera que a professora em questão, ao mostrar-se
encantada pelo universo da leitura, parece ter despertado o gosto de seus alunos pelo
hábito de ler.
As observações cultivadas pela autora vão ao encontro das considerações
que Guedes-Pinto (2002) nos traz ao afirmar que, quando as leituras têm sentido para
as professoras, quando elas são reconhecidas em suas histórias de vida, quando suas
experiências como leitoras são valorizadas, é factível que as possibilidades de trocas
com seus alunos tonem-se mais ricas e expressivas.
Teixeira (2016), analisa ainda que o sucesso obtido pela professora
participante da pesquisa, embora enaltecido na escola, mostrou-se fruto de um
trabalho docente isolado, já que as trocas entre pares não costumavam ser frequentes
e tampouco representaram a tônica de seu processo formativo. Nesse sentido, e à
guisa de conclusão, a pesquisadora chama a atenção para o fato de que é
indispensável que as boas práticas de ensino da leitura proporcionadas pelas
professoras alfabetizadoras ultrapassem as portas da sala de aula e sejam
espalhadas, compartilhadas com e equipe docente como um todo.
Os apontamentos levantados pela autora se mostram pertinentes,
sobretudo se considerarmos que as professoras costumam agir a partir dos
referenciais adquiridos por meio da socialização em seu contexto de trabalho
(SACRISTÁN, 2000). A esse respeito, Libâneo enfatiza ainda que se faz necessário

[...] ter objetivos comuns e compartilhados, buscar o envolvimento da


equipe de profissionais com esses objetivos, contar com estrutura
organizacional em que as responsabilidades estejam muito bem
definidas, dispor de várias formas de comunicação entre a
organização e as pessoas, ter uma liderança que consiga motivar e
mobilizar as pessoas para uma atuação conjunta em torno de objetivos
comuns (Libâneo, 2013, p. 90).

Como se pode notar, as três pesquisas (P7, P10 e P13) que inauguram o
foco de interesse sobre a formação da professora atuante, aqui tratado, acolhem o
pressuposto de que um dos aspectos centrais para a formação profissional de
professoras alfabetizadoras reside na interação entre pares e na constante reflexão
sobre a própria prática. Ao analisarem as narrativas das docentes envolvidas em seus
103

estudos, as pesquisadoras inferem que a formação adquirida nos fazeres cotidianos,


com os Outros, mostra-se fundamental para a ressignificação de suas práticas e para
o enfrentamento de dificuldades que delas emergem, aproximando-se do pensamento
de Chartier (2007; 2000) no que se refere ao reconhecimento da grandiosidade das
práticas nas quais e pelas quais as professoras se constituem.
Por um lado, as considerações tecidas pelas autoras, ao longo de suas
pesquisas, permitem a compreensão de que a formação docente se desenrola
‘apesar’ das iniciativas institucionais de formação continuada, que muitas vezes não
correspondem aos reais anseios das professoras e que ainda tentam homogeneizar
suas maneiras de ensinar. Depreende-se, desse modo, que a própria formação que
acontece no cotidiano das escolas em que as professoras trabalham pode ter o efeito
de enunciar microtáticas (CERTEAU, 1994) individualizadas ou grupais em relação
aos discursos hegemônicos de formação.
Por outro lado, uma segunda interpretação possível aponta para o fato de
que as ações deliberadas de formação continuada, sejam elas oriundas de cursos,
programas ou da própria gestão pedagógica local, precisam se atentar ao que
acontece nas práticas cotidianas de sala de aula, ao que as professoras têm a dizer e
ao que esperam, em termos de orientação teórico-prática, para aprimorarem o
trabalho que realizam – neste caso, o ensino da leitura e da escrita, especialmente.
Endossando tal ponto de vista, Anne-Marie Chartier, em palestra apresentada, em
2010, na V Semana da Educação da Fundação Victor Civita, em São Paulo, esclarece
que:

[...] os professores têm necessidade de saberes científicos e não


param de introduzir em sua cultura profissional categorias de análise
que esclarecem suas práticas, dão precisão a seus valores empíricos
e modificam seus pontos de vista sobre as aprendizagens das
crianças. Estes saberes são ferramentas, não são dogmas. Os
pesquisadores deveriam ter mais atenção para essas expectativas e
ajudar os docentes a selecionar, entre as categorias científicas, quais
são pertinentes ou não para se falar das práticas de alfabetização
(CHARTIER, 2010, p. 20).

Precisamente na esteira desta asserção, é possível situar a pesquisa de


Elaine Cristina Rodrigues Gomes Vidal, a P17, cuja conclusão indicia a necessidade
de iniciativas que possam ampliar a produção de conhecimento didático e, ainda,
promover a reflexão das professoras sobre o próprio trabalho. Os caminhos que a
104

conduziram à tal inferência partiram de uma investigação sobre o processo de


concepção, planejamento e execução de atividades voltadas à alfabetização,
realizado por professoras atuantes nos três primeiros anos do Ensino Fundamental.
Por meio de observações não participantes em sala de aula e de entrevistas
semiestruturadas, a autora atentou-se a aspectos concernentes à formação docente
e à construção de práticas pedagógicas.
Respaldando-se no fundamento teórico-metodológico do paradigma
indiciário proposto por Ginzburg, Vidal (2016) buscou indícios sobre como as
professoras compreendem e ensinam a leitura e a escrita. As professoras envolvidas
em seu estudo manifestaram, verbalmente ou nas minúcias de seus fazeres
cotidianos, o que a autora denomina como ‘concepção híbrida do processo de ensino
e aprendizagem’. A esta designação, ela atribui a combinação entre uma perspectiva
mais empirista / pragmática (tanto o ensino como a aprendizagem acontecem nas
relações experienciadas pela prática intencional) e outra caracterizada por uma visão
de embasamento teórico (seja pautado no inatismo: os alunos são predispostos a
aprender; ou no interacionismo: os alunos aprendem através das interações com o
outro).
A partir dos achados de sua pesquisa, a autora salienta a importância de
se conduzir processos formativos que permitam às professoras analisarem
criticamente suas próprias práticas, de modo que possam identificar as perspectivas
teóricas que consubstanciam o trabalho docente que exercem, bem como as
necessidades mais prementes para o aprimoramento do ensino da leitura e da escrita.
Para arrematar as discussões sobre a formação continuada das
professoras alfabetizadoras, passo a apresentar as duas últimas pesquisas que
integram este foco de interesse, a P22 e a P25, cujos enfoques aludem a temática da
professora iniciante na docência nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
A tese de doutorado P22, da autoria de Vanessa França Simas, defendida
em 2018, trata-se de uma pesquisa narrativa sobre a própria prática que teve como
objetivo compreender como ela – a pesquisadora e professora iniciante - se constitui
profissionalmente.
Ao narrar sua prática, (re)construída por memórias e escritas constantes
enquanto se iniciava na docência, a pesquisadora analisa que, ao mesmo tempo em
que atuava como professora, precisava se colocar em um lugar outro, onde era
possível “enxergar os acontecimentos de outra maneira, perceber outros aspectos do
105

vivido e, assim, construir compreensões que viabilizavam outros horizontes de


possibilidades” (SIMAS, 2018, p. 45). Esse exercício, que desencadeou um olhar
privilegiado para sua autoformação, foi também responsável por permitir à professora-
pesquisadora-iniciante (como ela própria se autodenomina) entender como a escrita,
as dificuldades enfrentadas, os outros e os diferentes saberes que permeiam o
trabalho docente a constituíram como professora. Sobre isso, Cunha (1997, p. 188),
ressalta que:

A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas


compreendem a si próprias e aos outros. Tomando-se distância do
momento de sua produção, é possível, ao "ouvir" a si mesmo ou ao
"ler" seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de
ir teorizando a própria experiência. Este pode ser um processo
profundamente emancipatório em que o sujeito aprende a produzir sua
própria formação, autodeterminando a sua trajetória.

Em diversas partes de seu texto, Simas admite que se torna professora de


muitas maneiras: “ao refletir sobre o vivido, ao narrar, ao partilhar as narrativas e ao
dialogar com o grupo de interlocutoras, bem como com as autoras e os autores que
lia” (SIMAS, 2018, p. 320). Desse modo, ela parece reafirmar o que as pesquisadoras
dos outros trabalhos aqui descritos e analisados pensam sobre a importância de a
formação docente se enredar nas esferas teórico-práticas.
Interessante ressaltar que, ao longo das auto narrativas que compõem a
tese em questão, a autora, muitas vezes, altera o termo “me constituir professora” por
“me inventar professora”. Como não há passagens que demarquem a intencionalidade
desta alternância, é possível inferir que o processo de se tornar professora,
combinado à escrita da pesquisa, tenha provocado maneiras outras de ser e de fazer
(CERTEAU, 1994) que culminaram na percepção de que a formação e a prática
docentes movimentam-se em função de diferentes eventos do cotidiano, e que ela,
enquanto professora, ao ressignificar tais eventos, inventa-se.
A pesquisa P25, produzida por Daniele Aparecida Biondo Estanislau e
publicada em 2019, tematiza as dificuldades enfrentadas pelas professoras que
iniciam a docência em turmas de alfabetização. Seu objetivo consistiu em
compreender as inquietações e as reflexões dessas professoras a partir das
interlocuções produzidas em encontros individuais que contaram com conversas no
contexto de pesquisa. Para tanto, a autora buscou indícios no que concerne ao
106

movimento das professoras alfabetizadoras que se encontravam em processo de


formação e que ao mesmo tempo são responsáveis pela formação de alunos leitores
e escritores (ESTANISLAU, 2019).
Um dos dados que mais chama a atenção nas transcrições das conversas
com as professoras, e que é analisado pela pesquisadora, reside no fato de as
docentes em início de carreira manifestarem, diretamente ou nas entrelinhas,
angústias em relação à conciliação da teoria, aprendida essencialmente na formação
inicial, com as práticas de ensino em sala de aula. Há uma passagem no texto em que
uma das docentes sinaliza esta preocupação por ter dificuldades em classificar a
hipótese de escrita de seus alunos: “Eu não sei direito como classificar as escritas das
crianças, como fazer...” (ESTANISLAU, 2019, p. 53 – trecho da transcrição).
É importante salientar que relatos como o apresentado são, de certo modo,
esperados por professoras em início de carreira. Isso porque a capacidade de refletir
sobre a relação entre teoria e prática tende a ser mais efetiva para professoras que já
têm um repertório prático que lhe permita fazer associações ou reprogramar caminhos
que em outro momento podem não ter sido favoráveis. A novata, por sua vez,
naturalmente esboçará dificuldades para externar uma situação pedagógica, de
relacioná-la aos documentos oficiais de fazer uma análise crítica dela, pois lhe falta o
saber fazer da prática, que naquele momento encontra-se em pleno processo de
elaboração (CHARTIER, 2010).
No entanto, ao se depararem com situações cotidianas que lhes
demandaram posicionamentos, as professoras parecem confrontar vieses teóricos. A
título de exemplo, destaco um trecho em que uma professora, embasada na
perspectiva construtivista, tece comentários acerca de sua reflexão diante dos erros
de seus alunos: “Então não é errado” [referindo-se ao ato de corrigir] “Hum... Então
eu posso ensinar?!” (ESTANISLAU, 2019, p. 65 – trecho da transcrição).
Para a pesquisadora, o enunciado citado evidencia que, embora se tenha
uma concepção de linguagem enquanto professora, fios de outras correntes de
pensamento transpassam pelos espaços de ensino e aprendizagem e, justamente
porque não estamos em um campo neutro, não podem deixar de serem também
discutidas, problematizadas. Sua percepção parece endossar que, mesmo apoiadas
essencialmente nas propostas teóricas de ensino que se apresentaram dominantes
num determinado momento histórico, e mesmo sendo iniciantes na carreira, as
docentes manifestaram atitudes inventivas em um espaço (a sala de aula) que passou
107

a representar um novo campo formativo, no qual elas foram se constituindo


professoras alfabetizadoras e se desenvolvendo profissionalmente.
Acrescenta-se, nesta perspectiva, que ao se criar uma atmosfera favorável
para pensar, confrontar e repensar as bases que orientam as práticas da
alfabetizadora,

a formação docente se mostra voltada para um ato de ressignificar o


ambiente alfabetizador, considerando a aprendizagem da língua em
sua dimensão social, cognitiva e estética. Uma prática marcada por
ações que permitem ao professor organizar e reorganizar, fazer e
refazer [...], a fim de exercer atividades específicas relacionadas à
leitura e à escrita (GOULART, 2013, p. 221).

Assim, as constantes reapropriações incorporadas pelas professoras


revelam-se pertinentes em aspectos que atingem o processo de ensino, haja vista que
o movimento de reempregar sentidos também acontece na esfera dos “conteúdos e
métodos de ensino, que mudam à medida que a demanda social de alfabetização se
transforma” (CHARTIER, 1998, p. 4).

Em suas considerações finais, Estanislau (2019, p. 97), aponta que

compreender as inquietações das professoras iniciantes possibilitou


trazer para o espaço de conversa construído na pesquisa leituras que
nos levaram a refletir sobre as práticas de ensino mobilizadas no
cotidiano escolar. As interlocuções produzidas nesse contexto
evidenciaram o processo de afetamento e transformação a partir da
reflexão acerca da própria experiência, o que também se configurou
como formação continuada.

Os diferentes pontos de vista em torno da formação da professora


alfabetizadora atuante trouxeram indícios de inventividade em contextos nos quais a
formação continuada se constituiu, sobremaneira, no bojo das relações construídas
cotidianamente. Embora constatado em detalhes que podem passar facilmente
despercebidos – como a ressignificação de conceitos, a mudança gradativa de modos
de ser e de fazer (CERTEAU, 1994), o enfrentamento de desafios que a formação
institucional parece não ter dado conta de minimizar, a fuga dos mecanismos de
controle (como os discursos hegemônicos de formação), as pequenas transgressões
relatadas às pesquisadoras –, foi possível constatar que o ato inventivo se fez
presente na formação docente narrada nas pesquisas, gerando implicações nas
práticas de ensino da leitura e da escrita.
108

4.3. Programas e políticas voltados à alfabetização

Por um lado, são ações importantes porque desejam contribuir para


melhoria da qualidade da educação e pretendem ajudar o professor,
coordenador, diretor a se encontrar em sua atuação profissional. Em
compensação, muitos desses programas são substituídos, algumas
vezes antes de findarem, por outros que pretendem ser mais
eficientes: prometem melhores resultados em menos tempo e com um
custo menor. Ou seja, vai-se de um compromisso prévio não cumprido
ao seguinte, sem tomarmos consciência de nossa própria história de
fracassos.
(Frauendorf, 2016, p. 60).

O foco de interesse que ora se apresenta pode ser compreendido, de certa


forma, como uma extensão do foco anterior, pois aqui também será tematizada a
formação de professoras alfabetizadoras em exercício. No entanto, optei por tratá-lo
à parte para enfatizar as nuances de inventividade possivelmente existentes em
contextos de formação continuada institucionalizada oferecida por programas e ações
políticas que se dirigem à alfabetização.
Nos dois focos de interesse anteriores, estruturei o texto de modo que as
teses e dissertações fossem descritas seguindo uma lógica cronológica (da mais
antiga para a mais recente) por notar que havia fios invisíveis que as conectavam
nessa sequência. Agora, porém, ao me deparar com um conjunto de pesquisas que
se dedicam a investigar programas em comum, escolho aglutiná-las por proximidade
temática, independentemente das datas de suas publicações.
Das oito pesquisas que compõem este foco, três (P16, P18 e P23) abordam
especificamente o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC); uma
(P2) focaliza as ações do Programa Sala de Leitura; uma (P8) se direciona à iniciativa
Observatório da Educação (OBEDUC); uma (P15) enfoca o programa Ler e Escrever;
e outras duas (P11 e P19) formulam considerações sobre as implicações de diferentes
programas, mas também voltando seus olhares à formação docente.
A dissertação de mestrado P16, da autoria de Bárbara Pereira Leme
Barletta, defendida em 2016, teve como objeto de estudo os cadernos do PNAIC e
objetivou compreender como esses materiais orientam professoras alfabetizadoras
para um modo específico de ensino da leitura e da escrita. Importante ressaltar que
se trata da única pesquisa, selecionada para compor o corpus da presente tese,
caracterizada como bibliográfica e documental, diferenciando-se das demais,
consideradas de base empírica.
109

A autora narra em seu texto que os livros do PNAIC, voltados ao ensino da


Língua Portuguesa, propõem uma forma de (re)invenção da alfabetização aos
docentes atuantes do ciclo de alfabetização, denotando, de um lado, a aparente
defasagem do alunado e, de outro, uma formação docente deficitária. Ao termo
(re)invenção ela atribui o sentido de ‘criação de possibilidades outras para ensinar’.
Ao acolher uma investigação sobre o processo formativo possibilitado pelo
programa a partir da análise de materiais de orientação pedagógica, a pesquisa
assume a finalidade de entender as implicações das leituras dos diversos textos que
compõem cada fascículo para as práticas das professoras. Textos esses que
privilegiam um determinado embasamento teórico e sugerem / anseiam determinados
estudos, reflexões e ações. Ou seja, textos impregnados de intenções, que não são
neutros.

[...] todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma
atitude de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou
produzida mecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra
da obra como também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo
de leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso
adequado do texto, ao mesmo tempo que esboça seu leitor ideal.
Deste último, autores e editores têm uma clara representação: são as
competências que supõem nele que guiam seu trabalho de escrita e
de edição; são os pensamentos e as condutas que desejam nele que
fundam seus esforços e efeitos de persuasão. É possível, portanto,
interrogando de novo os textos e os livros, revelar as leituras que
pretendiam produzir, ou aquelas tidas como aptas para decifrar o
material que davam a ler. (CHARTIER, 2011, p. 20 apud ALMEIDA,
2013, p. 8)

Ainda que em um primeiro momento os direcionamentos dos materiais


possam transparecer a ideia de que todas as professoras alfabetizadoras terão as
mesmas percepções acerca do que é proposto, a autora salienta que as formas de
receptividade das leituras podem variar de pessoa para pessoa. Nesse tocante, Roger
Chartier (1994, p. 13) reitera que “aqueles que são capazes de ler textos não o fazem
da mesma maneira”.
Concordando com o ponto de vista do historiador, Lajolo (1996) acrescenta
que quando nos referimos a livros didáticos orientadores do ensino, torna-se mais
conveniente falar, também, em ‘usos’ do que somente em ‘leitura’, pois os textos
convidam as professoras que os leem a usá-los / consultá-los em suas práticas – de
110

modos que também não são únicos. E sobre tais usos, Barletta (2016, p. 97) enfatiza,
como uma de suas principais considerações, que:

Os entendimentos e proposições da coleção não podem ser


confundidos com palavras que são simplesmente reproduzidas ou
aceitas. Os livros do PNAIC participam de um processo de leitura,
sujeito a diferentes adesões, interpretações ou até mesmo a negações
por parte de seus leitores.

Os desdobramentos do texto parecem fazer alusão às reapropriações,


desvios e reempregos (SOUZA; LOURENÇO e PASSALACQUA, 2020) que as
professoras tendem a expressar no processo formativo e nas práticas de ensino de
leitura e escrita. A representação de diferentes formas de as professoras se colocarem
em relação às políticas, as diferentes formas de “caça não autorizada” (CERTEAU,
1994) que vai reorganizando o cotidiano de suas práticas são presumidas e
problematizadas pela pesquisadora.
Abordando também o PNAIC, Eliana Aparecida Barbosa Boscolo realizou
uma pesquisa de mestrado (P18), defendida em 2016, cujo objetivo consistiu em
verificar de quais práticas pedagógicas as docentes participantes do programa fizeram
uso com seus alunos em sala de aula, que provinham dessa formação continuada.
Para alcançar tal objetivo, a autora apostou em uma investigação quanti-qualitativa,
cujos instrumentos de coleta foram: questionário com perguntas fechadas e abertas e
entrevista semiestruturada.
A autora subdivide as partes de sua pesquisa de modo a explicitar: como o
referencial teórico adotado retrata ideias e modelos promissores para a formação
continuada; de que modo o PNAIC corresponde a tais modelos; e, por fim, como as
professoras alfabetizadoras, que representam a ponta da profissão, recebem e
desenvolvem o conjunto de reflexões e práticas sugeridos em formações no âmbito
do PNAIC.
A leitura da dissertação como um todo favoreceu o entendimento do PNAIC
enquanto um programa detentor de características de programas que o antecederam
(como o PROFA e o Pró-Letramento), mas que apresenta particularidades que o
tornam um potente propulsor da reorganização do trabalho docente a partir de ações
teórico-práticas que, de fato, condizem com as expectativas das professoras
alfabetizadoras.
111

A análise das narrativas das participantes do estudo permitiu à autora inferir


que as atividades do PNAIC em si não estamparam as principais possibilidades que
dele suscitaram; o ponto alto do programa parece ter sido a mobilização para a
reinvenção das práticas de ensino, compreendida como a consolidação de propostas
antes não realizadas com tanta frequência (como a leitura deleite, trabalho com
situações-problemas e a própria reflexão e partilha das atividades consideradas
exitosas).
A autora reforça em diferentes momentos do texto que o modo como as
formações foram conduzidas às professoras no município que selecionou para realizar
sua pesquisa, especificamente, foi revelador de um salto qualitativo nas práticas
docentes e, consequentemente, na alfabetização dos alunos. Ela relata que a
organização das formações privilegiou, nesse caso, o processo de utilização do
tempo/espaço formativo, oportunizando uma maior troca de experiências entre pares.
Tal observação leva em conta que a autonomia dos formadores foi
fundamental para determinar os contornos de uma ação, mesmo que ela seja parte
de uma proposta nacional. Como já ponderado por Duran (2007), se, de um lado, as
invenções cotidianas são pessoais, individuais, do professor, e ocorreram no interior
das unidades escolares, de outro, podem ser, também, institucionais, perpassando
todo o percurso de uma gestão política, todo um processo de formação de
professores, ressignificado pelos sujeitos que o conduzem.
A discussão que coloca em pauta as invenções do cotidiano em contexto
de formação do PNAIC é algo que se faz ainda mais presente na tese de doutorado
de Edna Rosa Correia Neves, defendida mais recentemente, em 2018, e denominada
P23 neste estudo. A autora, que adotou o referencial da História Cultural como alicerce
teórico metodológico, realizou uma pesquisa empírica com o objetivo de analisar como
o PNAIC foi compreendido por uma professora alfabetizadora e três formadoras
(Orientadoras de Estudo). Como instrumentos de coleta de dados, ela utilizou
entrevistas semiestruturadas e observações.
Por estar pautada em um referencial que pressupõe a inventividade
docente e os diferentes modos de apropriação dos sujeitos face a propostas, leituras
e processos formativos, a autora inicia seu texto assumindo a hipótese de que os
participantes de sua pesquisa relatariam compreensões particulares (retraduções,
como ela própria denomina) sobre os efeitos do programa em suas práticas
cotidianas.
112

Considerando os limites de seu estudo, restringido a sujeitos de um


contexto determinado, a pesquisadora expõe, com base nas narrativas de suas
entrevistadas, que o PNAIC pouco atendeu às expectativas do público envolvido. As
críticas trazidas no estudo “revelam uma compreensão aguçada dos problemas que
se repetem nas outras propostas de formação docente” (NEVES, 2018, p. 184).
Trechos das entrevistas trazem à tona questões como: o PNAIC oferece
um conteúdo prático raso; os textos dos materiais não apresentam reflexões além
daquelas já aludidas em programas anteriores (como o Pró-Letramento, o PROFA e
o Letra e Vida); o programa não foi capaz de romper a visão de que as iniciativas
nacionais não se preocupam em corresponder às necessidades de cada escola.
Diante de tais dados, a autora argumenta que o sentimento das professoras em
relação ao programa revela entraves que decorrem do histórico distanciamento entre
as práticas pedagógicas cotidianas e as idealizações das políticas de formação
docente, da deslegitimação do saber-fazer das professoras e de sua culpabilização
pelos males da educação.
Não obstante reconheça que por trás das ações políticas (mesmo as que
mais aparentam dedicar-se a uma mudança qualitativa da formação docente) exista a
intenção deliberada de controle, a autora ressalta, fundamentada em Certeau (1994),
que as professoras não são sujeitos passivos, disciplinados pela indústria cultural ou
por mecanismos de poder, e que por isso muitas vezes reagem com resistência e
produzem críticas à formação institucional.
A título de exemplo, pode-se citar a passagem em que uma professora
parece negar a relevância dos materiais do PNAIC para a reconfiguração de suas
concepções e práticas de ensino na alfabetização: “Não mudou nada (nem ajudou e
nem atrapalhou)... Não abandonei uma proposta e adotei outra. Uso o que a Prefeitura
utiliza nas capacitações” (NEVES, 2018, p. 186 – transcrição da entrevista). Toda essa
insatisfação, revestida de resistência

[...] parece corresponder às características das astúcias e das


surpresas táticas: gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo
‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores,
mobilidades nas manobras (CERTEAU, 1994, p. 104).

As três pesquisas sobre o PNAIC elucidam diferentes cernes e


interpretações. A primeira delas (P16) pautou-se na assunção dos diferentes usos da
113

leitura dos materiais formativos, a segunda (P18) focalizou as possibilidades de


reorganização do trabalho docente inspiradas nas contribuições das formações
realizadas, e a terceira (P23) apontou críticas e resistências fundadas no
reconhecimento da formação incipiente proporcionada pelo programa.
Embora cada uma delas desvele facetas da inventividade docente, é
justamente nas contrastantes percepções em torno de um mesmo programa que, a
meu ver, reside o mais minucioso e intrigante indício do ato inventivo: os efeitos que
os modos de fazer e de pensar dos ‘sujeitos ordinários’ (CERTEAU, 1994) podem
provocar em suas práticas e nas práticas de outrem, produzindo sentidos diversos.
Afinal: Por que as formações advindas do PNAIC teriam alcançado resultados tão
positivos em um contexto e pouco relevantes em outro? O que poderia indicar essa
discrepância, senão as próprias reapropriações e os fazeres dos sujeitos praticantes?
Remetendo-me a Certeau (1994, p. 104), compreendo, então, que a
formação docente na esfera do PNAIC possa representar “um espelho de cem faces
[...], mas um espelho partido e anamórfico [...]”, que reflete perspectivas singulares,
de acordo com o ângulo de quem o observa.
Ainda no âmago da discussão sobre programas formativos, situa-se a
pesquisa de mestrado P2, de Josany Leme da Silva Batista, publicada em 2015. Esta,
diferentemente das anteriores, não focaliza o PNAIC, mas o Programa Sala de Leitura.
Trata-se de uma investigação sobre como o referido programa se desenvolveu em
escolas estaduais de um dado município, a partir da análise de questionários
aplicados às professoras que atuavam nas salas de leitura das escolas.
De acordo com a pesquisadora, o programa teve diferentes
desdobramentos, sobretudo porque não se pôde constatar parâmetros em relação aos
encaminhamentos e à estrutura física (como a existência ou não de biblioteca e a
iluminação do local) de cada instituição. Inclusive, constatou-se na pesquisa que os
espaços que não contavam com biblioteca ou que as bibliotecas não estavam
organizadas de modo a favorecer o acesso prático, agradável e autônomo aos livros,
tiveram implicações negativas quanto à frequência e ao encantamento dos alunos.
Em relação às concepções de leitura e alfabetização que permearam as
formações, a autora analisa que as professoras envolvidas na iniciativa pareciam
concordar que ler é um ato que deve se fazer presente em discussões e ambientes
diversos, transcendendo as portas da sala de aula e a usual prática de leitura que
serve de pretexto para o ensino de conteúdos escolares (KLEIMAN, 1989).
114

Formações estas que costumavam ocorrer primordialmente durante as Aulas de


Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC), contando com momentos em que os
professoras participantes do programa partilhavam as atividades que haviam
desenvolvido e ouviam das outras docentes e da equipe gestora sugestões de
aprimoramento.
Além da formação que ocorria no próprio lócus de trabalho, as professoras
também participavam de reuniões de orientação na diretoria de ensino do município.

[...] sempre que convocado, o professor precisa comparecer a essas


orientações, que, por serem planejadas por um bibliotecário,
colaboram com os docentes na medida em que apresentam a eles
olhares técnicos e específicos sobre a função da sala de leitura
(BATISTA, 2015, p. 68).

As formações parecem ter propiciado um outro olhar para as professoras


em relação à leitura fora da sala de aula. O que se pode notar, com base nas
apreciações da autora, é que o espaço de leitura nas bibliotecas passou, salvo
algumas exceções, por um processo de desburocratização. Os momentos, antes
restritos a agendamentos, ganharam força para acontecerem, também, durante os
intervalos.

Segundo Kleiman (2005) já apontava, há tempos as múltiplas


possibilidades de trabalho com a leitura, fundamentais para a construção de práticas
de ensino na alfabetização, têm sido negligenciadas na formação de professores.
Nesse sentido, uma iniciativa que se dedicou a transformar esta realidade – mesmo
que ante a alguns entraves –, de modo que as professoras pudessem se sentir mais
preparadas para trabalhar com as potencialidades, os tipos e as intencionalidades da
leitura, decerto teve um bom propósito.
Outro programa referenciado em uma das pesquisas é o Observatório da
Educação Básica (OBEDUC), tratado na dissertação de Railene Menezes Naranjo
Policaro (P8), de 2015. Seu estudo buscou compreender, a partir de observações
participantes e entrevistas, se o fato de as professoras continuarem seus estudos por
meio da participação em pesquisas financiadas pelo OBEDUC gerou contribuições
para seus processos de formação docente.
Primeiramente, a autora esclarece que o OBEDUC é um programa
governamental que destina bolsas para profissionais da Educação Básica
115

participarem de projetos de pesquisa, com especial interesse nos estudos sobre o


processo de alfabetização e de domínio da língua portuguesa e da matemática. A
escolha de investigá-lo se deu, de acordo com a pesquisadora, pela crença de que

O professor/pesquisador/reflexivo, ao passar por um processo de


formação através da pesquisa possivelmente apresentará maior
possibilidade de se apropriar e usar conhecimentos produzidos de
forma a melhorar sua prática e superar as dificuldades de
ensino/aprendizagem (POLICARO, 2015, pp. 18-19).

O conjunto de trechos das entrevistas, bem como as anotações que a


pesquisadora fez ao observar o trabalho das professoras junto ao programa,
indicaram que a atuação em iniciativas de pesquisa focalizou as principais dificuldades
enfrentadas no preparo e condução das aulas. Dentre elas, foram citadas: elaboração
de questões; adequação e clareza da linguagem; seleção de textos e conteúdos que
dialogassem com a realidade dos alunos; trabalho interdisciplinar com textos.
Nesse sentido, foram propostos estudos sobre tais temas que,
posteriormente, tomaram a forma de artigos acadêmicos e foram submetidos a
periódicos e eventos da área. A autora chama a atenção para o fato de que o exercício
de pesquisar, refletir e escrever sobre os temas contribuiu expressivamente para a
formação docente à medida que o grupo de professoras

[...] teve a necessidade de desenvolver algumas tarefas para assim


conseguir concluir esta etapa da pesquisa. As tarefas que se
mostraram necessárias foram: interação e diálogo de grupo, leitura de
textos para fundamentação do artigo, reflexão sobre a experiência em
elaborar questões, e estudo de teorias que os possibilitasse realizar
análise confiável do processo de elaboração de ferramenta de
avaliação e dos dados coletados com as questões aplicadas
(POLICARO, 2015, pp. 141-142).

A análise realizada sugere que a pesquisa serviu de inspiração para que


as professoras estudassem e, ao passo que produzissem textos acadêmicos,
reavaliassem suas práticas de ensino. De acordo com André (2001), o professor, ao
participar de pesquisas, apresentará variados níveis de apropriação do processo
investigativo, que será influenciado pela experiência vivenciada e suas
representações.
Outro tópico que a dissertação elucidou nos detalhes das observações
narradas pela autora refere-se à maneira como as professoras se desviavam, em
116

determinados aspectos, do que costuma acontecer em momentos de formação. Pelo


que se pôde notar, no lugar de se atentarem primordialmente às aprendizagens dos
textos estudados, aos procedimentos de pesquisa e às posturas esperadas em um
ambiente acadêmico (para o qual o programa certamente abriria portas), as docentes
do grupo traziam consigo modos próprios de se aproximarem dos temas abarcados.
Com isso, subvertiam a autoridade dos textos lidos, embutindo o horizonte prático que
lhes faltava, sobretudo quando escreviam sobre o que haviam lido. Como diriam
Chartier e Hébrard (1998, p. 38), “passar da leitura para a escrita não é, pois, mudar
de ponto de vista sobre o objeto, é mudar de objeto”.
Tal percepção denota a pista (GINZBURG, 1989) de que as professoras se
apoiavam no que Certeau (1994) denomina como “tática de consumo” para se
deslocarem da posição de receptoras de um texto para a posição (ainda que
temporária) de criadoras ou reorganizadoras do texto. “O leitor caça em terras alheias,
demarca com os olhos, com o dedo, com o franzir das sobrancelhas, com o sorriso,
seus caminhos em busca do sentido” (CHARTIER e HÉBRARD, 1998, p. 33).
Beneficiando-se furtivamente desta posição, faziam prevalecer suas reinterpretações
em relação aos discursos estabelecidos (CHARTIER, 1994).
Focalizando também a formação docente enredada a um programa de
amplo alcance, a tese de doutorado de Silvia Aparecida Santos de Carvalho (P15), de
2016, analisou as representações de práticas de ensino de leitura e escrita presentes
nas ações do Programa Ler e Escrever do estado de São Paulo. A pesquisa contou
com o estudo de documentos norteadores do programa e com depoimentos de
profissionais que estiveram diretamente envolvidos em sua elaboração.
A autora narra, nos capítulos iniciais da tese, quais foram as principais
influências que marcaram a constituição do Ler e Escrever, destacando programas
anteriores como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA)
e o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores Letra e Vida. Iniciativas
essas que foram conjecturadas com o propósito de minimizar as dificuldades das
professoras alfabetizadoras em planejar e organizar suas propostas de ensino de
leitura e escrita.
Como uma ação política que se instaurou no estado de São Paulo, em
2007, a autora esclarece que o Ler e Escrever assumiu o objetivo de formar docentes
para reverter o quadro de fracasso escolar, e a meta de ver plenamente alfabetizadas,
até 2010, todas as crianças com até oito anos de idade (2ª série / 3º ano) matriculadas
117

na rede estadual de ensino. Diferentemente das políticas que o antecederam, este


programa:

[...] previa a prescrição de práticas de ensino de leitura e escrita.


Considerando que nem sempre a prescrição de práticas de ensino foi
valorizada nas políticas educacionais implementadas pelos governos
anteriores da cidade, o convencimento e persuasão dos profissionais
envolvidos eram estratégicos para que a política pública fosse
assumida nas escolas (CARVALHO, 2015, p. 96).

A autora destaca, nessa direção, que a elaboração do programa levou em


consideração que “era importante evidenciar quais as práticas de ensino e de trabalho
seriam as mais adequadas e eficazes” (ibidem, p. 109). Nesse momento, privilegiou-
se a concepção construtivista de aprendizagem.
Na análise tecida, embora não sejam discutidos os efeitos da formação
advinda do Ler e Escrever na prática das professoras, explicita-se a ideia de que as
prescrições do programa não configuram uma ação inteiramente questionável, uma
vez que as professoras tendem a aderir a propostas que lhes forneçam alguns
parâmetros práticos. No entanto, defende-se que o ensino da leitura e da escrita, deve
ser pensado a partir da realidade dos educandos envolvidos e, por isso, não poderia
ser, em essência, previsto.
Com relação às representações de práticas de ensino de leitura e escrita,
objeto de pesquisa da autora, verificou-se que, assim como outros programas que
foram se instituindo com o objetivo de suprir as lacunas de iniciativas anteriores, o Ler
e Escrever também não se isentou da intenção de solidificar um ideal em termos de
alfabetizar. E como já advertia Roger Chartier (1990, p. 7),

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:


produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para
os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta
investigação sobre as representações supõe-nas como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de competições
cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As
lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
que são seus, e o seu domínio.
118

Por fim, a pesquisadora faz um convite para que professoras


alfabetizadoras leiam seu trabalho, de modo que possam entender o processo de
elaboração de programas formativos, para os quais costumam ser convocadas sem
conhecer, e pensar em suas maneiras de ressignificá-los, com ainda mais
propriedade, em suas práticas.
Também focalizando o ponto de vista de formadores envolvidos em
programas de formação de professoras alfabetizadoras, se assenta a pesquisa de
mestrado (P11) de Raquel Pereira Alves, defendida em 2015. Seu estudo, de natureza
empírica, contou com a análise de documentos e entrevistas concedidas por
profissionais de centros de formação docente de dois municípios, e objetivou
investigar a condução de políticas de formação continuada nesses contextos.
Tomando como ponto de partida uma descrição minuciosa dos principais
programas formativos direcionados às professoras alfabetizadoras no Brasil, bem
como uma retomada histórica sobre o que os estudos do campo da formação
continuada nos contam a respeito de seu processo evolutivo ao longo das últimas
décadas, Alves (2015) inicia uma problematização em torno da centralização da
formação docente.
A autora questiona se os programas de amplo alcance, entre os quais cita
o PROFA, o Ler e Escrever, o Pró-Letramento e o PNAIC, de fato, estariam
correspondendo às necessidades mais urgentes sentidas pelas professoras ao
ensinarem seus alunos a ler e a escrever. Ainda que reconheça a importância de tais
ações políticas para o provimento de parâmetros nacionais e concepções de
educação que precisam ser levados em conta ao se conceber a formação, em sua
dissertação, alerta para a distância entre as propostas e o que acontece e no cotidiano
das salas de aula.
Além disso, tematiza-se na pesquisa a constante sobreposição de políticas
e programas. Esta questão – também discutida no primeiro capítulo da presente tese,
quando da apresentação dos programas implementados nas diferentes gestões
presidenciais – afeta, nas palavras da autora, diretamente as professoras,
“consumindo o tempo destinado à formação, na descontinuidade de processos
formativos [...] que provoca o deslocamento da concepção da educação como política
pública social para focá-la nas questões econômicas” (ALVES, 2015, p. 7).
Frente ao exposto, a pesquisadora indaga se somente as formações
institucionalizadas, sejam elas oferecidas por programas ou cursos, dos quais as
119

docentes são impelidas a participar, são capazes de formar a alfabetizadora. Como


resposta a tal questão, os desdobramentos do texto indiciam a potencialidade e a
legitimidade formativa dos momentos em que as professoras planejam suas aulas,
escolhem autonomamente cursos que melhor se adequam às suas necessidades,
partilham atividades e frequentam outros espaços formativos, como os centros de
formação municipais.
Isto posto, entende-se, com base na dissertação em questão, que os
referidos centros de formação operam numa perspectiva colaborativa em relação às
escolas, mostrando-se a serviço de suas principais demandas, e atuando junto às
docentes dentro de um planejamento integrado à jornada de trabalho. Autores como
Imbernón (2016; 2010), Nóvoa (2009; 2007) defendem justamente este tipo de
formação continuada (em serviço) por acreditarem que ela permite adquirir e
desenvolver conhecimentos que se pautam nas práticas cotidianas.
Aproximando-se de discussões presentes nas pesquisas abordadas neste
foco de interesse, o estudo de Alves postula que a formação continuada

[...] deve ocorrer em todos os espaços onde grupos de professores


possam, com liberdade, expressar suas angústias, necessidades num
movimento de busca de respostas e ao mesmo tempo, disponibilizar
suas experiências bem-sucedidas aos seus pares. As posturas
individualizadas e ou colaborativas podem ser expressas
independente do lócus da formação. Todas as modalidades de
formação podem servir para ajudar os professores na tarefa de ensinar
e educar sejam elas de cunho teórico e/ou prático. (ALVES, 2015, p.
222).

A autora, ao longo de sua narrativa, parece endossar a relevância de uma


formação continuada que possibilite, deliberada e conscientemente, o movimento
inventivo das professoras embasado em um respaldo teórico e prático, a elas
indispensável (CHARTIER, 2010).
Ainda que não se possa afirmar precisamente que a inventividade, refletida
nas “artes de fazer” das professoras, ocorra no plano da consciência (ou não) – já que
tendem a se manifestar tanto nos golpes intencionais que a categoria dá ao subverter
a ordem de textos de orientação pedagógica ou teórica, por exemplo 49, como na
“liberdade gazeteira” expressa em “micro táticas” cotidianas (CERTEAU, 1994) –

49
Vide narrativas das pesquisas P8 e P16, já apresentadas.
120

contar com uma formação continuada que dê visibilidade às mais autênticas


expressões docentes, representaria, inegavelmente, um avanço.
Para encerrar este foco de interesse, que traz em seu cerne as políticas e
os programas de formação docente, passo a apresentar a dissertação de mestrado
de Renata Barroso de Siqueira Frauendorf (P19), publicada em 2016. Nela, a autora
realiza uma investigação narrativa acerca das ações formativas promovidas por
formadores externos à escola, analisando os próprios registros referentes ao período
em que atuou como formadora externa.
Ao se caracterizar como ‘formadora externa’, a autora explica:

Sou uma profissional especializada que presta serviço para programas


de formação continuada. Não sou vinculada ao quadro da escola ou
secretaria de educação. Eu posso atuar, diretamente ou não, com
professores, coordenadores, professores–formadores e outros
profissionais da educação em diferentes segmentos. E ainda faço
parte de um coletivo de formadores, às vezes vinculado a uma
instituição, universidade ou empresa, e tenho como uma das ações
orientar, provocar, apoiar, instrumentalizar, informar a equipe em
formação seja na secretaria, seja na escola e/ou demais espaços
(FRAUENDORF, 2016, p. 67).

A partir deste esclarecimento, ela pontua que o distanciamento da escola


legitima sua ação enquanto formadora de professoras dos anos iniciais de
escolarização, uma vez que pode ter um olhar para os problemas e as possibilidades
diferente, complementar ou contrastante daquele que os sujeitos imersos nos fazeres
cotidianos construíram.
O distanciamento, narrado pela autora, e sua potencialidade para
compreender o cenário investigado me faz recordar a narrativa sobre Menocchio na
obra O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, apoiada num pressuposto que
considera ‘de que posição se vê’. Ginzburg (2006, p. 9) perseguiu as pistas deixadas
pelos documentos sobre Menocchio e, assim, criou condições para saber “quais eram
suas leituras e discussões, pensamentos e sentimentos: temores, esperanças, ironias,
raivas, desesperos”. O paralelo entre os dois casos salvaguarda, entretanto, a
diferença que existe entre reconstituir uma história a partir de indícios representativos
de um modo de pensar em determinada época, presentes em documentos, como o
fez Ginzburg, e entender uma realidade a partir do que pessoas, com toda sua
imprevisibilidade, expressam nas relações que estabelecem.
121

De fato, a autora narra que o ângulo em que estava posicionada – o externo


– favoreceu o entendimento de necessidades prementes dos grupos de professoras
e coordenadoras com as quais atuou, sendo capaz de fomentar ações de formação
que atendiam às demandas do trabalho nas escolas. No entanto, cumpre mencionar
que tal posição não a isentou de experienciar tensões ao longo de sua trajetória. Isso
porque o fato de ser uma profissional não vinculada às escolas ou à secretaria, de
certo modo, reiterou a visão, enraizada indiretamente em discursos dominantes, de
que os profissionais da rede de ensino não são qualificados o suficiente para conduzir
seus processos formativos, gerando alguns descontentamentos e até mesmo
resistências no meio do caminho. Também foram narrados episódios de divergências
entre as propostas formativas de programas e os ideais que a autora – e formadora –
projetava, culminando, em inevitáveis “golpes ou fugas” (PERROT, 1998). Além disso,
a descontinuidade dos programas e políticas, seguida da sobreposição de outros que
prometiam suprir as falhas do anterior, também gerou implicações negativas para a
receptividade das professoras e, inclusive, da própria formadora.
Interessante notar que, no decorrer do texto e nas considerações finais, a
autora reconhece que as tensões, por mais que despertem sentimentos de
desacolhimento quando sentidas, fazem parte do processo de formação e
transformação de todos os envolvidos (tanto das professoras alfabetizadoras, como
dela própria). Essa noção reforça os indícios encontrados em outras pesquisas (como
a P18), de que a inventividade também se manifesta nas ações daqueles que pensam
a formação docente. As reapropriações que a autora estampou em seus modos de
pensar e agir evidenciam que as atividades de formar ou de ser formado, de ensinar
ou de aprender, não significam fazer uma transposição direta de conteúdos e práticas
(CHARTIER, 2010).

4.4. Práticas no ensino da leitura e da escrita

[...] ainda que a aprendizagem da escrita e da leitura esteja no centro


das preocupações da escola, o conhecimento ainda elementar não
pode se constituir como um impedimento para que o aluno construa e
expresse saberes em outras áreas. Inclusive, é no investimento do
professor para o desenvolvimento de múltiplas linguagens que pode
estar a chave para a superação de dificuldades específicas de escrita.

(Santos, 2015, p. 159).


122

Como é possível notar, até aqui foram discutidos trabalhos que, de


diferentes maneiras, trouxeram à luz questões acerca da formação docente e os
indícios de inventividade percebidos nesse processo. Neste foco de interesse, porém,
o exercício de angariar pistas de atos inventivos das professoras alfabetizadoras dar-
se-á a partir dos olhares para as práticas docentes no ensino – que também não
deixam de se entrelaçar a aspectos formativos – de leitura e escrita da Língua
Portuguesa narradas em cinco pesquisas acadêmicas.
Sobre tais pesquisas, cumpre antecipar que as principais temáticas
desenvolvidas versam sobre: propostas e bases curriculares voltadas ao ensino da
leitura e da escrita (P1 e P9); produções orais e escritas na fase de alfabetização (P5);
práticas de ensino de leitura da literatura nos anos iniciais do Ensino Fundamental (P4
e P12). Pelas conexões que estabelecem, opto por apresentá-las nesta sequência.
A pesquisa de doutorado realizada por Maria da Conceição Costa (P1), de
2015, buscou analisar os entraves e as possibilidades de uma proposta curricular no
campo da linguagem, com foco na entrada das crianças nos processos formais de
aquisição da escrita. Os dados produzidos resultaram do acompanhamento de
diferentes processos de ensino de crianças do 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental,
e de registros docentes.
Nos capítulos iniciais de sua tese, a autora narra as características e
condições do cotidiano da escola pública que investigou para, posteriormente, situar
a principal razão que motivou a elaboração da proposta curricular no campo da
linguagem, qual seja: preencher as lacunas no processo de implementação do Ensino
Fundamental de nove anos, “acompanhando a inserção das crianças na escrita
através de atividades diagnósticas e interventivas” (COSTA, 2015, p. 73).
Segundo seus registros, a palavra ‘heterogeneidade’ foi, sem dúvida, o
denominador comum encontrado para caracterizar a escola, a formação das
professoras alfabetizadoras, as práticas de ensino, as formas e ritmos de
aprendizagem dos alunos e os próprios alunos. Pensando nisso e, portanto, na
necessidade de uma proposta de trabalho na alfabetização que fosse plural, flexível e
inclusiva, a pesquisa em questão lançou o desafio de:

Articular oralidade, leitura e escrita na alfabetização, por meio de


diagnósticos de aprendizagem que deem conta do desempenho dos
alunos desde a Educação Infantil, sem cortes entre níveis de ensino,
123

em que sejam respeitados os diferentes processos de inserção das


crianças na escrita (COSTA, 2015, p. 74).

A partir do trabalho iniciado, que consistiu principalmente na aposta de


partilhar olhares e escutas que se complementaram no contexto de sala de aula, a
pesquisadora conta que foram detectados avanços tanto na escrita docente quanto
no processo de aprendizagem dos alunos.
O insistente trabalho com oralidade – proveniente da escuta e do olhar
minuciosos –, culminou em reposicionamentos e no interesse crescente pela leitura e
escrita, por parte dos alunos, e no reconhecimento da importância do registro, pelas
professoras. As docentes foram estimuladas a refletirem sobre suas práticas,
procurando entender, ao olharem para seus registros, quais delas parecem ser mais
profícuas para o ensino da língua. A esse respeito, uma das professoras envolvidas
admite à pesquisadora durante uma conversa em reunião:

Existem tantas experiências significativas que realizamos em sala de


aula semelhantes a algumas que lemos em publicações ou ouvimos
falar. Mas, parece que nos prendemos a lamentarmos sobre as
condições de trabalho e não deixamos essas experiências
aparecerem, a falta de registro contribui muito para isso, a escrita
sobre o que fazemos e sobre as experiências boas com nossos alunos
(COSTA, 2015, p. 131 – informação oral registrada pela
pesquisadora).

A autora pondera que essa percepção certamente representou um dos


principais ganhos da proposta curricular preconizada, pois despertou nas professoras
o entendimento de que a sistematização da escrita permite uma visão crítica e
inventiva sobre as ações pedagógicas. Tal observação é reafirmada por Chartier e
Hébrard (1998) ao enfatizarem que os registros – próprios ou partilhados – favorecem
o resgate e o surgimento de ideias, beneficiando as práticas de ensino, já que os
professores privilegiam o “como fazer” mais do que o “porque fazer”, lançando mão
de atividades, encaminhamentos e intervenções já validadas pelos seus pares ou de
outras que deram certo nas suas práticas de alfabetização.
Refletindo sobre a perspectiva de conceber os registros como uma forma
de a professora se olhar e perceber o trabalho realizado como algo legítimo e
memorável, Fontana (1997, p. 172) acrescenta:
124

O registro, como relato para si, significa a comunicabilidade da


experiência: preserva nossa memória profissional, nossos modos de
constituição no cotidiano e nossa produção nesse cotidiano. É a
produção de conhecimento sobre o nosso próprio trabalho e sobre o
nosso ser professora. Ressignifica as relações que, mais do que
manter, construímos, ano a ano, com aquelas pessoas que pequenas
ou crescidas, parecidas, mas, irrepetíveis, compartilham conosco a
relação de ensino.

Transitando, também, pela temática das práticas no ensino da leitura e da


escrita, encontra-se a dissertação de mestrado de Natalia Bortolaci, defendida em
2015 e aqui denominada P9. A pesquisa-ação realizada apresenta dados e
discussões oriundos de uma experiência coletiva e de entrevistas com
alfabetizadoras, articulando-as às bases curriculares do Ensino Fundamental de nove
anos. Seu objetivo centrou-se em refletir sobre as ações de um plano em específico
(desenvolvido em uma Escola de Aplicação) que considerou as transições entre anos
e ciclos, respeitando suas continuidades.
Assim como na pesquisa anteriormente apresentada, a P9 constatou a
heterogeneidade como principal marca do contexto tomado para estudo. Por focalizar
o período de entrada das crianças no universo da leitura e da escrita, foram pontuados
diferentes níveis de apropriação e a necessidade intrínseca de se criar um projeto
atento ao real manejo da heterogeneidade e com olhar singularizado.
Segundo a autora, a ludicidade teria espaço ampliado no desenvolvimento
da iniciativa, de modo a minimizar os impactos que as crianças costumam sentir ao
deixarem a Educação Infantil. Além disso, são narradas atividades que passaram a
integrar o cotidiano das professoras com seus alunos com mais frequência, como: a
leitura da rotina, a diversificação dos espaços, a contação de histórias e o reconto,
além de oficinas artísticas e esportivas. Tais atividades foram pensadas de modo a
estimular o que a autora chama de “harmonia corpo-oral”, ou “corporalidade”
(BORTOLACI, 2015, p. 149), por convocar as crianças de forma mais integral para a
aprendizagem.
Ao longo do texto, a pesquisadora narra as devolutivas que obteve das
professoras durante o desenvolvimento do projeto, ressaltando os arranjos coletivos
e individuais que fizeram em suas práticas para ressignificarem, à sua maneira, voz e
corpo como instrumentos importantes para um ensino mais dinâmico da leitura e da
escrita e o encantamento das crianças. Esse retorno positivo pode ser verificado no
relato a seguir:
125

Deparamo-nos com crianças empolgadas frente às demandas


escolares [...] Recebemos, como equipe, muitas avaliações positivas
das transformações ocorridas no trabalho [ ...] Individualmente, herdei
uma inestimável bagagem formativa como professora alfabetizadora,
pude trabalhar com materiais didáticos inovadores produzidos pela
equipe, incorporei diversas linguagens do mundo contemporâneo em
meu cotidiano de trabalho. (BORTOLACI, 2015, p. 152 – trecho de
entrevista).

Diante de um contexto heterogêneo e das múltiplas possibilidades de as


professoras reorganizarem suas práticas, o espaço de ensino narrado na pesquisa
parece trazer indícios de que a sensibilidade estética50 (CERTEAU, 1994) passou a
permear as ações docentes. Ou seja, o projeto permitiu que cada professora sentisse
que pode transcender o espaço físico da sala de aula “para criar algo que lhe seja
próprio, que a identifique, com seus gostos, uma forma de organização mais favorável
à sua prática pedagógica” (GOULART, 2013, p. 219). Desse modo, reitera-se que

a prática do professor se efetua num processo de articulação e de


interação com o espaço físico sobre o qual ele realiza determinadas
ações, gestos, ritos e posicionamentos que lhe garantem certa
furtividade (ibidem, p. 220).

A pesquisa de mestrado de Vera Lúcia Fellipin dos Santos (P5), defendida


em 2015, teve por objetivo investigar como crianças do terceiro ano do Ensino
Fundamental de uma escola pública produzem textos narrativos orais e escritos a
partir de um livro de imagem. Para coleta do material, a autora convidou dez crianças
a produzirem um texto oral e outro escrito.
A autora inicia seu texto abordando as diferentes concepções de ensino e
aprendizagem, de alfabetização e de letramento, de modo a embasar as análises
construídas a posteriori.
No capítulo em que se realiza a análise dos dados, observa-se que as
crianças participantes da pesquisa já estavam familiarizadas com produções escritas
e orais, e a pesquisadora considera que isso pode ter relação com o fato de terem
sido alfabetizadas em período concomitante às formações do PNAIC – das quais a
professora da sala participou – que tratou de modo privilegiado estas habilidades.

50
Cumpre relembrar que a dimensão estética das práticas cotidianas é entendida por Certeau como
os modos diversos e individuais de se usar um determinado objeto, uma linguagem ou mesmo um
lugar.
126

Mostraram-se capazes de realizar as atividades propostas, sem discrepâncias


aparentes, contemplando, de maneira inventiva, os diferentes estágios de produções
narrativas.
De acordo com a autora, para a professora, o uso do oral e do escrito
possibilita não somente o diagnóstico mais preciso acerca das habilidades dos alunos,
como também a realização de intervenções condizentes com os níveis de
dificuldades. Para que estas possibilidades sejam efetivadas, no entanto, salienta-se
a necessidade de fomento à formação continuada de professores.
Na realidade observada, especificamente, a pesquisadora pôde inferir que
as professoras alfabetizadoras certamente haviam sido bem formadas em, pelo
menos duas frentes: a da aquisição de conhecimentos teóricos, que possibilitam o
reconhecimento do potencial de discurso das crianças; e a de formar pesquisadores
de sua classe, com habilidade de saber identificar as dificuldades e os saberes já
conquistados, organizando o ensino conforme o perfil da turma. Chartier (2009, p. 5)
complementa, ainda, que o bom desenvolvimento de alunos em leitura e produção de
textos requer, sobretudo, uma boa formação docente de frente prática, com base na
qual a professora possa “fazer trabalhar toda uma turma, mobilizá-la, saber utilizar
bem um livro, qualquer que seja, guardar na memória o desempenho de cada aluno
para adaptar suas exigências”.
Além do aspecto formativo em si, faz-se oportuno chamar a atenção para
as práticas leitoras da professora. Conforme aludido anteriormente, quando a
professora expressa seu interesse em mergulhar na leitura de histórias – e é possível
que isso também faça sentido à atividade de produção de textos – os alunos tendem
a se sentirem mais entusiasmados para tornar a leitura um hábito, já que passam a
ter um “modelo de leitura oral” (LAJOLO, 2005, p. 32). Nesse tocante, isto é, em
relação à leitura de literatura, se inscrevem as duas últimas pesquisas deste foco de
interesse: P4 e P12.
A P4 trata-se de uma dissertação de mestrado, concluída em 2015, da
autoria de Cristiane Begalli Evangelista. Este trabalho, através de pesquisa
participante, buscou mostrar como a prática da leitura da literatura na sala de aula
pode contribuir na formação da criança leitora. A autora produziu os dados de seu
estudo a partir da própria prática e da observação das práticas de seus alunos do
segundo ano do Ensino Fundamental.
127

A autora conta em seu texto que, antes mesmo de iniciar sua pesquisa,
refletia sobre a importância de fazer anotações regularmente sobre o que tivesse
relação com as práticas leitoras de seus alunos. Ao ingressar na pós-graduação, no
entanto, passou a ter um olhar ainda mais atento a tais anotações descritivas,
compreendendo-as à luz do referencial teórico da História Cultural e, portanto,
concebendo-as como importantes registros do cotidiano e das ações dos sujeitos
ordinários, imersos em culturas plurais (CERTEAU, 1994; 1996).
No período que abrange a pesquisa, ao iniciar o trabalho com a literatura
infantil, a autora optou por escolher obras de autores renomados da literatura infantil,
entre os quais foram eleitos: Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ziraldo, Eva Furnari,
Ricardo Azevedo e Ana Maria Machado. As leituras, realizadas sempre no início de
suas aulas, eram previamente submetidas a um ‘rito’ de preparação:

Selecionava na biblioteca da escola livros de literatura que conhecia,


os relia e ensaiava para no ato da leitura ler pausadamente e com
clareza. Essa seleção era feita a cada vez que concluía as leituras de
um determinado autor. A quantidade de livros de cada autor variava
de acordo com os títulos encontrados.
Antes de iniciar a leitura, explorava a capa dos livros que seriam lidos,
apresentando também aos alunos: o autor, o ilustrador e a editora.
Fazia perguntas a eles, tais como: Observando o desenho, as
ilustrações conseguimos saber do que a história fala? Quais são os
personagens? (EVANGELISTA, 2015, p. 67).

O cuidado da professora para se preparar para a leitura evidencia uma das


características principais do professor, enquanto bom leitor, descritas por Marisa
Lajolo: a performance de leitura oral. “A qualidade da leitura em voz alta que o
professor proporciona à sua classe pode ser decisiva para o aluno gostar ou não de
ler” (LAJOLO, 2003, p. 49).
A narrativa da autora acerca dos processos de leitura por ela enveredados
denota que suas formas de ler e de incitar a curiosidade e a discussão sobre os livros
para além dos momentos em que foram lidos, produzia uma importante liberdade de
invenção para a formação do leitor, de modo que os alunos relacionavam os livros às
suas experiências de vida. Sobre isso, Roger Chartier elucida:

[...] a relação da leitura com o texto depende, é claro, do texto lido,


mas depende também do leitor, de suas competências e práticas, e da
forma na qual ele encontra o texto lido ou ouvido. Existe aí uma trilogia
absolutamente indissociável se nos interessamos pelo processo de
128

produção de sentido. O texto implica significações que cada leitor


constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe
ou se apropria desse texto de forma determinada (CHARTIER, 1999,
p. 152).

Isto posto, é importante ressaltar que as práticas de leitura da professora /


pesquisadora da dissertação, parecem conectar-se às bases do letramento, já que
abriram espaço para o estabelecimento de conexões com outras práticas vivenciadas
nas micro realidades do mundo social (KLEIMAN, 1989; ROJO, 2009; STREET, 1995;
TFOUNI, 1995).
A autora relata, ainda, episódios em que alunos faziam leituras, imitando-
a. A imitação, no entanto, é analisada no texto não como uma mera reprodução, mas
como uma reconstrução individual do que foi observado no outro. Nesse sentido,
pode-se depreender que as práticas de leitura da professora, as quais incluíam
escolhas autônomas e deliberadas dos livros, intencionalidade, preparação para o ato
de ler, gestos, gosto pela leitura – que, de acordo com Lajolo (2005), é algo a ser
ensinado –, intervenções, peculiaridades, entonações, enfim, seus “modos de fazer”
(CERTEAU, 1994) promoveram apropriações, pelos alunos, que lhes permitiram
construir seus próprios olhares sobre a leitura e “remodelar o horizonte cultural de
referência” (HÉBRARD, 1996).
Também abordando a leitura literária nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, a tese de doutorado de Iracema Santos do Nascimento (P12), de 2016,
objetivou analisar as dimensões do trabalho pedagógico e suas implicações no ensino
da leitura e da escrita na fase de alfabetização. Os dados empíricos da pesquisa foram
coletados em uma escola da rede pública, contando com observações de aula e
entrevistas com professoras alfabetizadoras.
As observações e entrevistas analisadas pela autora revelaram que, de
modo geral, as professoras procuram diversificar as estratégias de leitura ao
ensinarem seus alunos. Apesar disso, também pôde ser observado o baixo
engajamento de algumas docentes, que resultaram na falta de ânimo dos alunos em
relação às práticas de leitura. Cabe mencionar, porém, que a autora não atribuiu em
seu texto a responsabilidade dessa situação exclusivamente às professoras.
Relatos das entrevistadas trouxeram à luz questões sobre o
empobrecimento da formação docente, especialmente no horário coletivo,
129

transparecida na falta de conexão entre as propostas e o trabalho desenvolvido pelas


docentes, e até mesmo na partilha entre pares, visivelmente comprometida.

Teve outra professora que era efetiva da noite e pegou a coordenação.


Ela queria impor uma coisa que não tinha a ver. E aí cismou. Cada
uma cisma com uma coisa. Essa daqui é com a rotina. A outra cismou
com projeto de jornal. [...] Não estou querendo dizer que eu sou a
melhor, mas eu faço um trabalho diário de leitura, você viu. De
conversa sobre os temas, sobre as coisas. Fazendo relação direto.
Então, vamos pensar: ‘Será que todas as professoras têm essa
dinâmica?’ Porque aí o cara chega no quarto ano, ele não teve essa
dinâmica. [...] (NASCIMENTO, 2016, p. 186 – transcrição de
entrevista).

Como já discutido anteriormente, a formação entre pares se constitui como


um dos principais artifícios para a melhoria do trabalho docente, pois as professoras
tendem a revisitar, refletir e reconstruir suas práticas a partir das trocas de
experiências (CHARTIER, 2009; 2010). Desse modo, havendo conflitos e tensões no
lugar da parceria, é possível que frequentes desencontros se instalem, refletindo
problemas no ensino e na aprendizagem da leitura e da escrita.
Ao longo da tese, a autora problematiza momentos em que as professoras,
diante de situações de controle, desviam-se para caminhos outros. Um dos exemplos
citados refere-se ao uso do livro didático para alfabetizar. Algumas docentes declaram
que simplesmente optaram por não utilizá-los, enquanto outras disseram fazer usos
ajustados ao que compreendem atender melhor às necessidades de aprendizagem
da turma. Esse exemplo reflete bem a linha tênue existente entre a inventividade
docente e a mera negação. Resistir ao uso de livros didáticos pode ou não constituir
um ato inventivo, o que vai diferenciar qual dessas facetas prevalece no trabalho
docente é a “ação tática” (CERTEAU, 1994) da professora de se apropriar e
ressignificar o uso do material, avaliando criticamente suas potencialidades.
Em relação à leitura literária, ainda que na maioria dos relatos analisados
se possa identificar a intenção de trabalhar com uma multiplicidade de livros, houve a
manifestação do sentimento de dificuldade para explorar a leitura em decorrência de
afirmações como “as crianças não sabem ler”, “a prioridade é alfabetizar, senão o
aluno chega ao quinto ano sem saber ler, e seria difícil pegá-lo nessa fase para
começar do AEIOU”, “os alunos não se interessam pela leitura”.
130

Tais declarações parecem destoar do que se viu nas análises de pesquisas


anteriores, pois algumas professoras participantes da tese de Nascimento (2016)
demonstram fragilidades em suas concepções de alfabetização.
Ao tomarem a alfabetização em um plano distinto das práticas de leitura
literária nos anos iniciais, as professoras denotaram inclinação aos métodos
sintéticos, os quais preconizam que primeiro é importante alfabetizar (no sentido de
prover a relação entre grafemas e suas correspondências sonoras), para somente
depois inserir a criança no universo da leitura (LEAL, 2019).
A autora também chama a atenção para as práticas leitoras das
professoras. Para ela, uma professora que não seja leitora dificilmente conseguirá
motivar seus alunos para a leitura, uma vez que a educação literária requer uma
didática específica, que evidencia a necessidade de um bom modelo de leitor para
que o encontro entre os alunos e a leitura seja, de fato, encantador e munido de
sentido (LAJOLO, 2005).
A descrição das teses e dissertações pertencentes ao foco de interesse
sobre práticas no ensino da leitura e da escrita, bem como os diálogos estabelecidos
com o referencial da História Cultural e dos estudos do letramento, permitiram
constatar que a inventividade docente se manifesta, independentemente dos
contextos nos quais as professoras estejam inseridas. No entanto, parece-me que as
professoras, analisadas pelas pesquisadoras, que puderam desfrutar de um amparo
formativo consistente, tiveram condições mais favoráveis para fazer uso dos
momentos de furtividade em benefício da aprendizagem de seus alunos. Embora tal
premissa não seja regra, as pesquisas indicaram ganhos expressivos na ampliação
do repertório de conhecimentos que permitiram a diversificação dos modos de ensinar
e a bricolagem de sentidos mobilizados nas práticas cotidianas, entre professoras e
alunos. Sobre este assunto, encarrega-se o foco de interesse a seguir.

4.5. Produção de sentidos entre professoras e alunos

A alfabetização é, pois, considerada uma prática cultural, já que é


acessada pelas representações que norteiam os modos de relação
com a sociedade e com os objetos culturais, ao mesmo tempo em que
os sujeitos são guiados pelas singularidades, em uma constante
produção de sentidos marcados e situados histórica e culturalmente.

(Bortolazzo, 2019, p. 21).


131

Este foco de interesse se ocupa de discutir, essencialmente, a produção de


sentidos entre professoras alfabetizadoras e alunos em contextos de ensino da leitura
e da escrita. Embora as pesquisas que integram este foco se entrelacem a reflexões
sobre a formação docente e as práticas de ensino, serão priorizadas as diferentes
maneiras como as professoras interagem e criam espaços de interlocução
significativos e inventivos com o alunado.
Os trabalhos serão apresentados de acordo com a lógica de aproximação
temática, obedecendo a seguinte ordem: P14, P21, P20 e P24.
A pesquisa P14 se trata de uma tese de doutorado desenvolvida por
Fabiana Bigaton Tonin, defendida em 2016. A pesquisadora objetivou analisar os
depoimentos de ex-alunos e professoras/professores sobre as práticas de leitura
fruição desenvolvidas em um projeto de leitura que contemplava todos os segmentos
de ensino. Para cumpri-lo, realizou entrevistas com esses sujeitos, de um colégio
particular, as quais foram apreciadas à luz do enfoque teórico-metodológico da
História Oral.
A autora conta em sua pesquisa que os alunos egressos que lhe
concederam entrevistas encontravam-se na faixa dos 18 anos, e que as professoras
e professores participantes haviam ministrado aula a tais alunos, com exceção de um,
que tinha sido contratado há pouco tempo.
Ao iniciar as conversas, a autora solicitou que os envolvidos esboçassem
suas impressões sobre a proposta da leitura fruição conforme a tinham conhecido no
colégio. “Algo como uma avaliação ampla, uma opinião pessoal sobre essa prática de
leitura: como eles a compreendiam; que valores tal leitura assumia para cada um; se
era válida como incentivo à leitura, obrigatória ou não” (TONIN, 2016, p. 181).
Os ex-alunos relataram em seus depoimentos que as práticas de leitura
fruição foram muitos boas, interessantes, bem aproveitadas, frisando a ampliação do
repertório de conhecimento possibilitado pelo contato com autores e obras que até
então não conheciam, sobretudo as obras de literatura infantil. Ressaltaram também
o caráter não impositivo desse tipo de leitura, sendo compreendida por eles como um
estímulo a leitura e não uma leitura por obrigação. Pontuam, por fim, que seria muito
132

produtivo a leitura fruição também ser realizada por outros docentes (especialistas) e
não apenas pela professora responsável por ensinar a Língua Portuguesa 51.
As professoras e professores entrevistadas(os), por sua vez, reconhecem
que as iniciativas de leitura fruição obtiveram sucesso por terem sido bem acolhidas
pelos estudantes. No entanto, comentam que nem todos os docentes da escola
aderiram ao projeto de leituras por prazer em suas aulas.
Dentre as contribuições da leitura fruição, foram elencadas, pelo grupo
docente, a aproximação dos alunos com as obras literárias, estímulo ao gosto pela
leitura, incorporação crítica das habilidades de análise literária, apropriação da(s)
cultura(s) (CERTEAU, 1996; CHARTIER, 1999).
Diante das conversas realizadas com os diferentes interlocutores, a autora
chama atenção para o aspecto performativo daquele que lê para o outro, indicando
que no ato da leitura se fazem presentes questões ligadas à atuação do corpo, à
entonação, ao espaço, às trocas, e que estas culminam em sentidos produzidos entre
os atores.

É modo de ler e dar-se a ler; é possibilidade de reconhecer-se num


espaço de leitura e de partilhar saberes e apreciações – tanto para os
alunos quanto para os professores. Enfatizo, ainda, que é um
processo dinâmico e que comporta sentidos múltiplos que vão se
ressignificando, se reelaborando em movimentos de revisão,
construção e desconstrução a cada nova leitura, a cada novo diálogo
que se estabelece e se põe em cena (TONIN, 2016, p. 49).

Importante salientar que os sentidos também se constroem de acordo com


as obras lidas, pois cada uma delas tem múltiplas significações, que se constituem no
“encontro de uma proposição com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas
formas e aos motivos dependem das competências ou das expectativas dos diferentes
públicos que delas se apropriam” (CHARTIER, 1994, p. 9). Isso quer dizer que
docentes e alunos podem se apropriar, interpretar e atribuir sentidos outros a uma
leitura, não sendo possível controlar ou prever seus modos de compreendê-la.
Pensando na liberdade que se instala ao se atribuir sentidos diversos a uma
leitura, a autora recorre a Certeau (1994) para referir-se ao exercício das “táticas do

51
KLEINFELDER (2021), em sua pesquisa de mestrado, intitulada: “Mas leitura de literatura não é só
na aula de Língua Portuguesa, prô?: Desenvolvendo práticas pedagógicas de Geografia com o auxílio
de textos literários” narra sua experiência com a leitura literária, incluindo a leitura fruição, destacando
o enriquecimento do componente de Geografia por meio de tais práticas.
133

leitor” e seus efeitos no enfraquecimento das estratégias da instituição. Embora as


leituras, de modo geral, permitam que os leitores construam suas próprias
interpretações, sabe-se que as instituições escolares tendem a privilegiar
determinadas leituras (sobretudo de obras canônicas, conhecidas pelo prestígio de
seus autores) e determinados direcionamentos (ler para estudar, ler para ampliar o
vocabulário, ler para recontar). Nesse sentido, pode-se conceber a leitura fruição
como uma prática que mescla a inventividade de professores(as) e estudantes, dado
que se trata de uma atividade que incita a liberdade no modo como cada um (docente
e aluno) vai lidar com a leitura.
Seguindo em uma direção próxima àquela tomada na pesquisa de Tonin
(2016), se insere a dissertação de mestrado de Giovana Tolesani Camargo Barbosa
(P21), de 2018. Com o objetivo de problematizar as relações que se estabelecem na
sala de aula, procurando encontrar indícios dos sentidos produzidos pelos sujeitos
sociais (professora e alunos) nas interlocuções cotidianas, a autora realizou uma
investigação empírica com base em seu caderno de registros.
A autora narra, no capítulo de embasamento teórico, que as cenas do
cotidiano registradas em um caderno, por serem representativas de uma micro
realidade, se inserem na perspectiva certeauniana das “artes de fazer”, ou então das
“artes de dizer”, já que se tratam de narrativas.

Ora, é preciso entender outra coisa do que a que se diz. O discurso


produz então efeitos, não objetos. É narração, não descrição. É uma
arte do dizer. [...] Algo na narração escapa à ordem daquilo que é
suficiente ou necessário saber e, por seus traços, está subordinado ao
estilo das táticas (CERTEAU, 1994, p. 142).

Em meio a leituras literárias e diálogos entre os alunos e entre ela (a


professora e pesquisadora), narrados no caderno, a autora salienta as múltiplas,
porém gradativas, construções de sentido. Segundo ela, é comum que os alunos
sejam enquadrados no papel de meros consumidores, dos quais costuma ser tolhida
a manifestação de liberdade leitora. Por essa razão, frente a situações nas quais a
professora mostrava a possibilidade de expressarem seus pontos de vista, alguns
alunos insistiam em perguntar se suas compreensões estavam ‘corretas’ para
saberem se haviam correspondido a uma pretensa expectativa da docente.
As ressignificações gradativas me fizeram lembrar as palavras de Certeau,
ao afirmar que “a autonomia do leitor depende de uma transformação das relações
134

sociais que sobredeterminam a sua relação com os textos. Tarefa necessária” (1994,
p. 244).
As relações que foram se estabelecendo entre a professora e seus alunos
parece ter cultivado a sensação de que inventar, imaginar, criar, atribuir significados
outros, seria ‘permitido’. Permissão esta que não precisou ser dita, pois como declara
Certeau (1994), ao subir, descer e girar ao redor das práticas, algo escapa sem
cessar, que não pode ser dito ou ensinado, mas deve ser praticado. E assim, aos
poucos, as crianças se deram conta de que foram produzidas diversas interpretações
para uma mesma história.
Nos dizeres conclusivos da autora, as crianças, no contexto da pesquisa,
foram fornecendo pistas de como vinham se apropriando das atividades de leitura e
escrita e das práticas culturais, por ela (professora) mediadas. Tal conclusão enseja,
também, a compreensão de que o processo de inventividade dos alunos no que diz
respeito aos modos de pensar e de fazer as práticas de leitura floresceu quando
encorajado pela professora. Esta, por sua vez, mostrou-se inventiva na medida em
que reconhecia, validava e registrava suas próprias práticas cotidianas como terreno
fértil e astucioso para a produção de múltiplos sentidos.
Partindo do pressuposto de que a função primeira da escola é formar
leitores e escritores proficientes, Renata Rossi Fiorim Siqueira idealizou sua
dissertação de mestrado (P20), concluída em 2018. A pesquisadora, a partir de um
estudo de caso, envolvendo observações de seis turmas do Ciclo de Alfabetização
(duas turmas do 1º, duas do 2º e duas ao 3º ano do Ensino Fundamental), objetivou
compreender as implicações das diferentes intervenções e práticas docentes para a
aprendizagem dos alunos.
Nos capítulos iniciais, a autora descreve os espaços físicos das salas de
aula, destacando como elemento comum a presença de caixas com livros,
posicionadas no fundo da sala, que ficavam à disposição das crianças para leituras
após o término das atividades.
Na sequência, são explicitadas as práticas rotineiras das professoras, as
quais também apresentaram um aspecto comum: a escrita de um cabeçalho,
contendo as seguintes informações: nome da escola, nome do aluno, nome da
professora, o dia da semana e a condição climática. O que variava era o tipo de letra
utilizado (maiúscula de imprensa nos primeiros anos e cursiva nos demais).
135

Percebendo a recorrência do registro do cabeçalho, a pesquisadora


procurou descobrir o que motivava as professoras a escrevê-lo todos os dias, e a
resposta baseou-se no argumento: “é que assim eles aprendem a memorizar o nome
da escola e próprio nome”. A autora analisa que esta prática denota indícios de uma
concepção subjacente de alfabetização que se dá pela repetição e pela memorização,
de modo descontextualizado e revestido de um pretexto para cópias (KLEIMAN, 1989;
2005).
Com relação às atividades de leitura e escrita, no entanto, foram percebidas
algumas diferenças: nos primeiros anos, as atividades de cunho notacional
(focalizando a escrita alfabética), predominaram, enquanto nos segundos e terceiros
anos, atividades de natureza notacional e discursiva foram proporcionalmente
trabalhadas. Leituras literárias foram realizadas nos três anos, em situações
diversificadas, enquanto a produção de textos foi percebida nos segundos e terceiros
anos (ainda que timidamente), ficando os primeiros mais inclinados às cópias.
Diante desses dados, adensados nas narrativas da autora, concluiu-se que,
com foco nas propostas de intervenções docentes, houve uma oscilação pedagógica.
A essa denominação, a autora atribui o esforço das professoras para tornar as salas
de aula um ambiente alfabetizador e ampliar o contato dos alunos com a literatura,
apesar de a cultura escolar e a formação docente proporcionada lhes provocar
hesitações e incertezas acerca de possibilidades para ensinar a leitura e a escrita que
transcendam as tradicionais práticas que realizam cotidianamente.
Apesar de as práticas de ensino terem sido consideradas frágeis pela
autora da pesquisa, alguns trechos de suas observações transpareceram que as
professoras produziam sentidos nas relações com seus alunos e o universo da leitura
e da escrita. Propostas de reescritas de histórias, de escrita coletiva de um texto, de
ilustração do que as crianças compreenderam sobre determinada leitura foram
realizadas e, ainda que não com a intensidade que poderiam, fomentaram discussões
que deram ênfase à invenção e à liberdade para a interpretação de leituras.
Certeau (1994) ajuíza que a inventividade se manifesta mesmo que
disfarçada ou contida, pois experiências que transformam a atividade leitora
distanciam os leitores da passividade. Segundo suas palavras, “ler é estar alhures,
onde não se está, em outro mundo” (p. 245), ao se produzir liberdades refreadas
(CHARTIER, 1999).
136

Partindo para a finalização deste foco de interesse, passo a apresentar a


última pesquisa que o compõe. Trata-se da tese de doutorado de Mariana Bortolazzo
(P24), de 2019, que relatou e analisou as práticas docentes de uma professora
alfabetizadora, com o objetivo de identificar como tais práticas, construídas
cotidianamente, promovem sua capacidade inventiva de produzir sentidos. A tese se
desenvolveu por meio de pesquisa de campo, e reuniu materiais escolares, cenas de
aulas registradas em caderno de campo e diálogos com a professora como
instrumentos de coleta de dados.
Por se apoiar na perspectiva teórico-metodológica da História Cultural, a
autora pressupõe em seu trabalho – do mesmo modo como se defende nesta tese –
a existência da inventividade docente e a produção de sentidos. Ainda que deixe claro
que sua pesquisa não tem a intenção de captar a interação entre professoras e
crianças, especificamente, a leitura de seu trabalho permitiu inferir indícios dos
sentidos produzidos entre esses sujeitos, por meio das ações inventivas manifestadas
pela professora observada.
A autora inicia seu texto apresentando as contribuições do referencial para
entender seu objeto de estudo e segue explicitando os motivos que lhe mobilizaram a
escolher analisar as práticas de uma professora em particular: “para que fosse
possível observar e refletir sobre práticas docentes em alfabetização”
(BORTOLAZZO, 2019, p. 20).
Seu trabalho traz à tona uma discussão sobre a intenção de controle
característica das determinações oficiais. Assim como já abordado na presente tese,
no capítulo 1, quando da apresentação dos documentos oficiais e suas implicações
para a configuração de iniciativas de formação docente, a autora afirma que a
regulação pretendida por essas determinações legitima determinadas pessoas,
gestos, palavras e compreensões em detrimento do que, de fato, se realiza no
cotidiano das escolas e das salas de aula.
No entanto, reafirmando o que foi pontuado nas análises das pesquisas já
apresentadas, e dialogando com autores como Certeau (1985; 1994; 1996) e Chartier
(1990; 1999), a pesquisa considera que os sujeitos que recebem o que lhes é dado
para consumo, não são meros reprodutores, pois criam e atuam com seus próprios
modos de agir.
Isto posto, ao narrar as práticas da professora participante de sua
investigação, as quais mesclavam o registro de atividades diárias (cabeçalhos),
137

leituras, produções e reproduções escritas, estudo do alfabeto e das famílias silábicas,


a autora relata que a docente em questão lhe confidenciou a realização de práticas
‘veladas’, ou seja, de atividades de alfabetização que não condiziam fidedignamente
com as orientações oficiais, advindas de programas de formação e incorporadas pela
gestão escolar.
Muitas vezes, professoras que combinam práticas de ensino baseadas em
textos autênticos e conectados à realidade da turma ao uso de materiais produzidos
para alfabetizar (atividades voltadas ao ensino do sistema notacional e de estímulo à
consciência fonológica), acabam sendo taxadas como tradicionais e por isso, quando
sentem a necessidade de recorrer à silabação, por exemplo, o fazem ‘às escondidas’.
No entanto, como defendem os estudos que se debruçam na temática do letramento,
alfabetizar é preciso e isso implica o cruzamento de escolhas, táticas e métodos que
cada docente, com base em seu repertório formativo e em seus saberes experienciais,
constitui (KLEIMAN, 1989; 1995; 2005; LEAL, 2013; ROJO, 2009).
Nessa direção, a autora da pesquisa P24 acrescenta:

a alfabetização é um desafio, e tentar defini-la por métodos ou


correntes teóricas é pouco, pois trata-se de um processo que está
muito além disso. Porque professores – aqueles encarregados de
alfabetizar as crianças – são pessoas e não máquinas. Por isso, suas
raízes culturalmente estabelecidas, juntamente com seus valores,
sentimentos e emoções também constituem seus modos de ensinar a
ler e a escrever (BORTOLAZZO, 2019, p. 161).

No caso narrado, destaca-se que a professora ‘burlava’ as prescrições


norteadoras do trabalho docente, por acreditar que estas não seriam suficientes para
ensinar o Sistema de Escrita Alfabética (SEA). Desse modo, ainda que os discursos
oficiais exprimam a imposição do que se é ou não apropriado ou correto em termos
das escolhas pedagógicas, gerando, muitas vezes, tensões nas escolas, a interação
da professora com as crianças e as produções de sentido que criou ao improvisar
caminhos outros e ressignificar o estabelecido, evidenciam traços de sua
inventividade.
Neste momento, que demarca o rumo conclusivo deste foco de interesse e
da própria tessitura da presente tese, faz-se importante retomar a ideia de que a
inventividade docente pode ser reveladora de práticas que permitem rearranjos no
138

cotidiano, mas não reflete a determinação de desarranjos, pois como diria Certeau
(1994), as práticas não se fundam em um ambiente de total desordem.
Alunos e professores fazem parte de um sistema de ensino que orienta a
realização de um rol de atividades pertinentes à posição que cada sujeito ocupa.
Portanto, não se pode afirmar, por exemplo, que os docentes de uma escola têm ‘carta
branca’ para modificarem ou rejeitarem toda e qualquer proposta. Igualmente, não é
concedido aos alunos o manejo indiscriminado de situações que envolvem o
direcionamento das aulas. Nessa linha de raciocínio, Bortolazzo (2019, p. 156) reflete:

O professor, que ao mesmo tempo é “obediente” – em menor ou maior


grau – está “sendo comandado”, mas também “comanda”: exerce mais
(ou menos) o controle sobre as crianças: organiza o tempo da aula,
enfatiza aspectos, corrige ou ignora algumas falas e escritas, enfim,
dá o seu “tom” ao processo de alfabetização. E as crianças também
“escorregam” nessa relação tensa, dando golpes ou obedecendo
direitinho, fazendo rir ou chorar, colocando em xeque as orientações
dadas pela professora ou se mostrando bons executores de tarefas.

Assim, pode-se inferir que a inventividade que subjaz a relação entre uma
professora e seus alunos, se dá na medida em que tais sujeitos produzem sentidos,
criam seus próprios modos de fazer e seus acordos / negociações em um contexto
que, historicamente, é marcado pelo controle – a escola.
139

Considerações Finais

A origem do modo de compreender a pesquisa

Iniciar as Considerações Finais desta tese com cenas de uma obra52 infantil
significa, para mim, uma escolha bastante emblemática, sobretudo porque elas me
remetem aos sentidos que atribuí a este livro, especificamente, em diferentes
momentos de minha trajetória: ao lê-lo pela primeira vez, na infância, pensei no quanto
era interessante entender uma mesma história do começo para o final e do final para
o começo; já ao apresentá-lo para meus alunos do primeiro ano do Ensino
Fundamental, ponderei sobre a relevância de existirem livros que podem ser lidos e

52
BANYAI, I. Zoom. (Tradução de Gilda Aquino). São Paulo: Brinque-Book,1995.
140

interpretados por todos, até mesmo por crianças que ainda não sabiam ler, por
contarem com imagens que falam por si; mas foi ao revê-lo, em outro contexto,
durante uma disciplina do doutorado, no momento de leitura fruição sempre realizado
no início das aulas por minha orientadora, Ana Lúcia, que adquiri uma outra e preciosa
percepção: a possibilidade de o livro inspirar o olhar metodológico que eu viria a
projetar neste estudo.
Zoom é um livro que pode ser lido da perspectiva do afastamento (do início
para o meio) ou da aproximação (do meio para o fim), assim como de trás para frente.
Dentre as múltiplas interpretações que ele permite, uma delas é o movimento de partir
do micro para o macro e vice-versa. Considerando a vertente teórica que passei a me
apropriar no doutorado, a História Cultural, cujos estudos valorizam as sinuosidades
das práticas cotidianas de sujeitos comuns, a primeira possibilidade pareceu-me
promissora.
O movimento de começar uma leitura pela perspectiva do ‘zoom’, isto é, da
menor unidade, que foi aproximada, em muito se assemelha ao exercício realizado de
“angariar pistas” (GINZBURG, 1989) a partir de detalhes presentes em teses e
dissertações. No livro, a figura do galo recebe visibilidade imediata, sendo a partir dela
que outras perspectivas vão tomando forma. Do mesmo modo, nesta pesquisa, são
os indícios narrativos de micro realidades que ganham relevo e que se tornam
subsídios para a compreensão de um fenômeno maior: a inventividade docente.

****
Breve retomada dos caminhos do estudo

Embora a existência da inventividade docente já fosse por mim presumida,


em decorrência dos estudos que iniciei na UNICAMP sobre as contribuições da
História Cultural para a Educação, entender como ela se manifesta em contextos
marcados pelo controle e pela supervisão – as escolas e as iniciativas de formação
docente, orientadas pelas determinações oficiais – configurou uma inquietação que
passei a perseguir.
Assim, considerei pertinente, num primeiro momento, diferenciar o que
seriam aspectos evidentes – presentes em documentos oficiais prescritivos e / ou
normativos – e os aspectos negligenciados: as artes de fazer (CERTEAU, 1994) da
formação de professores. Inicialmente, apresentei o ponto de vista legal da formação
141

docente de modo geral, para depois prosseguir com um afunilamento que focalizou
as políticas e os programas voltados à alfabetização. Estas especificações se
mostraram importantes, uma vez que as teses e dissertações também as
problematizaram.
Por se tratar de uma pesquisa que investiga a inventividade docente forjada
nas relações entre a formação de professoras alfabetizadoras e as práticas de ensino
de leitura e escrita, fez-se necessário explicitar a concepção teórica sobre
alfabetização aqui assumida: os estudos do letramento na perspectiva sociocultural.
Igualmente, considerei basilar elucidar os caminhos metodológicos do estudo,
desenvolvendo a compreensão do objeto de pesquisa – a inventividade docente –,
bem como do método de investigação adotado – o paradigma indiciário, a partir de
uma pesquisa bibliográfica.
Contempladas estas etapas e já com o corpus definido (as 25 produções
acadêmicas), dei início às descrições das pesquisas, ao passo que estabeleci
diálogos entre elas e os autores que fundamentam a tese.

****
Diante das produções acadêmicas: a(s) inventividade(s)

Com as pesquisas lidas, resenhadas e organizadas em focos de interesse


por aproximação temática, pude dar início ao processo de inferir os indícios da
inventividade docente, ou ainda das inventividades, no plural, dada a constatação de
que elas não se expressaram de uma única maneira, e tampouco revelaram
homogeneidade em seus sentidos, já que não há homogeneidade nas práticas.
Em cada foco de interesse foi possível notar diferentes faces inventivas nas
práticas das professoras narradas e analisadas nas teses e dissertações. Embora a
maioria das pesquisas não tivesse assumido a opção deliberada de se atentar a
indícios de atos inventivos, estes foram constatados em todas elas; em algumas foram
inferidos com um pouco mais de nitidez, enquanto em outras, exigiu-se um olhar ainda
mais atento aos detalhes sorrateiros que, embora inicialmente parecessem habituais,
trouxeram pistas importantes ao trabalho.
No primeiro foco de interesse, cuja tônica incidiu na formação inicial de
professoras, a inventividade foi inferida em escritas / registros de licenciandas, que
colocaram em xeque o controle oriundo das práticas na universidade e abriram espaço
142

para uma expressão de escrita autêntica, não se limitando à realização de tarefas e


anotações exclusivamente acadêmicas.
O foco de interesse sobre a formação da professora atuante, por sua vez,
trouxe diferentes nuances da inventividade. As pesquisas apresentaram pontos de
vista que, ora se aproximavam, ora se contradiziam, mostrando que, mesmo
propostas formativas aparentemente semelhantes, podem suscitar reações e
percepções antagônicas, representando, em alguns casos, aspectos positivos e, em
outros, fortes tensões. Assim, o que era considerado como ato inventivo em algumas
pesquisas, não o era necessariamente em outras.
De modo geral, este foco de interesse indiciou que a formação entre pares,
desenvolvida com os professores em seu próprio lócus de trabalho, além de melhor
corresponder às expectativas e necessidades das professoras, as possibilitou driblar
as estratégias formativas dominantes e criar seus modos de fazer. Diante disso,
refletiu-se sobre a importância de as formações institucionalizadas cumprirem o papel
de favorecer a aprendizagem teórico-prática da profissão, pois conforme Chartier
(2010), os professores têm necessidade de saberes científicos e não param de
introduzir em sua cultura profissional categorias de análise que esclarecem suas
práticas.
Como uma espécie de extensão do foco de interesse sobre a formação
continuada, se inscreveu o foco que abarcou os programas e políticas voltados à
alfabetização. Nele, foram apresentadas pesquisas que tematizaram as implicações
de alguns programas formativos para a formação docente. Assim como no foco
anterior, houve relatos discrepantes em relação a uma mesma iniciativa. Tal
constatação levantou a suposição de que são as reapropriações e os fazeres dos
sujeitos praticantes que determinam, de certo modo, os encaminhamentos de uma
proposta formativa. Assim, enquanto em algumas narrativas a inventividade residiu na
capacidade de os formadores conduzirem processos ajustados ao contexto,
beneficiando as práticas docentes, em outras, foi justamente a “arte de dar golpes”
(PERROT, 1998) nas orientações formativas que sinalizou a invenção.
O foco de interesse que se debruçou nas práticas no ensino da leitura e da
escrita, desvelou elementos importantes para a construção de práticas capazes de
enriquecer o trabalho docente, tais como o registro frequente e a leitura e literatura –
entusiasmada e bem performática – para os alunos. Essas práticas parecem ter dado
artifícios para as professoras revisitarem, apreciarem e reorganizarem o ensino a
143

partir das próprias experiências, mantendo o que foi considerado exitoso e


ressignificando o que inicialmente não surtiu o efeito desejado.
Por fim, o foco que debateu as produções de sentido entre professoras e
alunos explicitou que as atividades realizadas cotidianamente em sala de aula
envolvem acordos, negociações e modos de fazer que refletem como os sujeitos
enredados no processo educativo atribuem sentidos ao que ensinam ou aprendem.
Uma das práticas mais recorrentes nas narrativas, considerada elucidativa de tais
produções, foi a prática de leitura, a qual permitiu que professoras e alunos
manifestassem sua liberdade inventiva de compreensão para além do que costuma
ser esperado pelas escolas ou mesmo pelos que idealizaram as obras, impregnadas
da “ordem dos livros” (CHARTIER, 1994).

****
Contribuições da tese para a Educação

Logo que iniciei o processo de organização desta tese, perguntava-me:


como poderia este estudo contribuir para as discussões em torno da Educação?
Confesso que no começo fui atravessada por dúvidas sobre a validade que minha
pesquisa, por se tratar de um estudo bibliográfico, poderia ter.
Agora, ao me aproximar da finalização do estudo empreendido, vejo que
analisar as narrativas das pesquisas, buscando indícios de um fenômeno em
específico (a inventividade docente), além de me proporcionar o exercício da
angariação de pistas em textos escritos representativos de práticas, culminou no
levantamento de importantes aspectos sobre a formação docente para fomentar
reflexões futuras sobre o papel que ela tem exercido nas práticas cotidianas de
professoras alfabetizadoras.
As diferentes expressões da inventividade que puderam ser inferidas
mostraram que, muitas vezes, a formação oferecida às professoras, seja em âmbito
nacional, por meio de programas formativos, ou local, mediada pelas equipes
gestoras, dialoga pouco com as necessidades enfrentadas na prática profissional. Por
esta razão, ainda que as apropriações, os desvios e os reempregos sejam esperados,
haja vista que as docentes não fazem uma transposição direta daquilo que aprendem,
a ausência de uma formação que invista na ampliação do repertório de conhecimentos
para a diversificação e bricolagem nos modos de ensinar, tende a reforçar o
144

persistente descompasso entre o que se espera e o que, de fato, se efetiva no


processo formativo docente.
Admitindo os limites das considerações aqui tecidas, por serem oriundas
de uma amostra específica de pesquisas, que compreendem um período determinado
(2015-2019), pondero que a inventividade se faz presente nas práticas das
professoras alfabetizadoras, conscientemente ou não, e que esta configura uma
imprescindível tática para as docentes existirem e resistirem em meio a determinações
que, via de regra, são pensadas para elas e não com elas.
145

Referências Bibliográficas

AGUIAR, T. B.; FERREIRA, L. H. Paradigma indiciário: abordagem narrativa de


investigação no contexto da formação docente. Educar em Revista. Curitiba, v. 37,
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