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"Se o médico quiser ajudar uma pessoa, ele tem que aceitá-la assim como ela
é. Mas só o poderá fazer realmente se antes ele houver aceitado a si próprio
assim como é. Isto pode parecer uma coisa muito simples. Mas o mais simples
sempre é o mais difícil. De fato, ser simples é uma grande arte, e assim o
aceitar-se a si próprio constitui a quintessência do problema moral e o núcleo
de toda uma concepção de mundo. O fato de eu dar de comer ao mendigo, de
perdoar o ofensor, de chegar mesmo a amar o inimigo em nome de Cristo, não
resta dúvida que me faz bem. O que eu faço ao menor dos meus irmãos, foi a
Cristo que o fiz. Mas que haveria de acontecer se eu descobrisse que eu
mesmo sou aquele que precisa da esmola da minha bondade, que eu mesmo
sou inimigo que precisa ser amado? Então, por via de regra, toda a verdade
cristã passará por uma reviravolta, então não existirá mais amor nem
paciência, então diremos ao irmão `raca`, então nos condenamos e nos
enfurecemos contra nós mesmos. Para fora escondemos e negamos jamais
haver encontrado este menor em nós mesmos, e se fosse o próprio Deus que
viesse ao nosso encontro nesta figura desprezível nós o teríamos mil vezes
negado antes que o galo cantasse. Alguém que, com o auxílio da moderna
psicologia, lançar um olhar por trás dos bastidores não apenas de seus
pacientes, mas sobretudo de si próprio, terá de confessar que a coisa mais
difícil de todas, talvez mesmo impossível, é aceitar-se em sua própria miséria.
Já o mero pensar nisto é capaz de provocar suor de sangue, por isso com
prazer e sem demora nós preferimos o que é complicado, isto é, o não tomar
conhecimento de mesmos, o ocupar-nos com outras dificuldades e pecados,
quaisquer que eles sejam."
Carl Gustav Jung
A Parábola do Bom Samaritano
Lc. 10, 25-37
A vida da gente é uma descida. Engana-se quem entende a vida como uma
subida e nesse puro engano se destroi na compulsão de chegar mais alto, pois
aí espreita a tentação de negar o humano, com tudo o que isso implica de
limitações e fragilidades. Ninguém cresce subindo... pois e lógica da perfeição
que mobiliza o esforço pessoal como garantia de salvação pessoal, apenas
consegue afastar a pessoa de si mesma, negando o humano. Descer...
significa ir ao encontro de si mesmo, abrindo os olhos para enxergar sua
realidade pessoal, confrontando-se com suas misérias e abraçando suas
feridas.
Muitas vezes a vida nos deixa assim... quase mortos na beira do caminho! E
muitas vezes, andamos pela vida como mortos-vivos, arrastando nossas
mágoas pelo chão dos outros...
Por acaso, nos acasos da vida... a gente sempre acaba, mais cedo ou mais
tarde, cruzando com esse estranho de nós mesmos que ficou quase morto na
beira do caminho! Às vezes tropeçamos nele e sua presença atrapalha nosso
caminho.
Mas um samaritano, que estava de viagem, chegou até ele. Quando o viu,
sentiu compaixão por ele. Aproximou-se, tratou das feridas, derramando nelas
azeite e vinho. Depois colocou-o em cima da própria montaria, conduziu-o à
pensão e cuidou dele. Pela manhã, tirando duas moedas de prata, deu ao dono
da pensão e disse-lhe: ‘Cuida dele e o que gastares a mais, na volta te
pagarei’.
Um samaritano... é um estrangeiro. Samaritanos e judeus não se entendiam.
Somos estrangeiros em relação a nós mesmos e, muitas vezes, andamos
brigando conosco, num desgaste de energia sem fim. Temos dificuldade de
entrar em contato conosco e de nos comunicarmos com nossas áreas
vulneráveis. Sentimo-nos, ao olhar para dentro, como alguém pisando em terra
estranha...
Mas esse samaritano estava ‘de viagem’... e talvez aí more a diferença! Ele
não estava fechado na sua terra, no seu comodismo, alienado ao novo... mas
percorria uma terra estranha, avançando em paisagens desconhecidas,
enfrentando desafios novos, pisando um chão que lhe era estranho. Ele estava
a caminho... Essa é a atitude de quem se predispõe a uma jornada de
crescimento. Partir... implica deixar seguranças e horizontes conhecidos, para
ousar novas paisagens navegando por mares nunca antes navegados. Quem
parte chega a algum lugar porque o caminho se faz caminhando!
Chegou até ele... porque a vida o conduziu até si mesmo! Na viagem rumo ao
nosso interior, mais tarde ou mais cedo acabamos nos deparando com nossa
realidade, com nossas misérias e feridas, com nossas riquezas e aspirações
mais profundas. Quando nos predispomos e colocamos o pé nessa viagem
interior, acabamos chegando até nós mesmos!
Quando o viu... sentiu compaixão por ele! Não é fácil encarar esse estranho
que mora dentro de nós e incomoda nosso olhar. Muitas vezes, quando nos
defrontamos conosco mesmos, sentimos resistências e queremos fugir,
desviando o olhar. É difícil suportar esse confronto do qual fugimos a vida
inteira e que nossos olhos se acostumaram a não enxergar numa miopia
defensiva. Mas este samaritano sentiu compaixão! Aí está o diferencial: a
compaixão! Sentir compaixão significa sentir com o coração, sentir com... fazer
suas as dores do outro, colocar-se na pele do outro.
Enquanto não formos capazes de sentir compaixão por nós mesmos... nunca
poderemos crescer como pessoas autênticas. Sentir compaixão por nós
mesmos significa a gente se aceitar do jeito que é: aceitar nossa realidade
física-biológica, nossa dimensão psico-afetiva e nosso ser racional-espiritual,
nossa história e nossa identidade, nossa personalidade, com suas riquezas e
suas misérias. Aceitar-se! Enquanto não chegarmos aí, teremos ainda um
longo caminho a percorrer antes de vislumbrarmos horizontes de harmonia
pessoal!
Sentir compaixão... vai acontecer quando aceitamos que não dá mais para
continuar fugindo de nós mesmos! Aí resolvemos definitivamente amar o que
somos!
Pela manhã, tirando duas moedas de prata... Sim! Porque há um preço a pagar
por tudo isso! E não é barato! É o preço do sofrimento, da angústia, do ficar só,
do enfrentar-se e do expor-se, do conhecer-se! Me lembro daquela senhora
alegando seu desinteresse pelo autoconhecimento, com a razão de que tinha
medo de conhecer quem era e não gostar! É o risco e o preço! Mas... preço
bem maior, é o que pagamos quando teimamos em não nos conhecermos!
Acredito que essa ‘pensão’ podemos chamá-la de vida! A vida do jeito que ela
é. Ela cura! ‘ A vida cura a vida’, como dizia ter aprendido de seu pai o filho de
Carl Jung. Não podemos demitir-nos de viver... pois é na vida, na sua
normalidade, que nossas feridas serão curadas...
E acredito que é Deus o ‘dono dessa pensão’... e por isso precisamos saber
que também Ele cura! Só um amor incondicional e absoluto pode curar
verdadeiramente! Claro que é preciso que cuidemos de nós mesmos, sem nos
demitirmos de nossa responsabilidade... mas a graça de Deus continuará a
obra por nós começada e a fará chegar bem mais além!