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A parábola do bom samaritano e o autoconhecimento

A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO E O AUTOCONHECIMENTO

"Hoje eu vou me visitar. Tomara que eu esteja em casa!"


Karl Valentin
"Sê a favor de ti mesmo!"
Bernardo de Claraval

"Se o médico quiser ajudar uma pessoa, ele tem que aceitá-la assim como ela
é. Mas só o poderá fazer realmente se antes ele houver aceitado a si próprio
assim como é. Isto pode parecer uma coisa muito simples. Mas o mais simples
sempre é o mais difícil. De fato, ser simples é uma grande arte, e assim o
aceitar-se a si próprio constitui a quintessência do problema moral e o núcleo
de toda uma concepção de mundo. O fato de eu dar de comer ao mendigo, de
perdoar o ofensor, de chegar mesmo a amar o inimigo em nome de Cristo, não
resta dúvida que me faz bem. O que eu faço ao menor dos meus irmãos, foi a
Cristo que o fiz. Mas que haveria de acontecer se eu descobrisse que eu
mesmo sou aquele que precisa da esmola da minha bondade, que eu mesmo
sou inimigo que precisa ser amado? Então, por via de regra, toda a verdade
cristã passará por uma reviravolta, então não existirá mais amor nem
paciência, então diremos ao irmão `raca`, então nos condenamos e nos
enfurecemos contra nós mesmos. Para fora escondemos e negamos jamais
haver encontrado este menor em nós mesmos, e se fosse o próprio Deus que
viesse ao nosso encontro nesta figura desprezível nós o teríamos mil vezes
negado antes que o galo cantasse. Alguém que, com o auxílio da moderna
psicologia, lançar um olhar por trás dos bastidores não apenas de seus
pacientes, mas sobretudo de si próprio, terá de confessar que a coisa mais
difícil de todas, talvez mesmo impossível, é aceitar-se em sua própria miséria.
Já o mero pensar nisto é capaz de provocar suor de sangue, por isso com
prazer e sem demora nós preferimos o que é complicado, isto é, o não tomar
conhecimento de mesmos, o ocupar-nos com outras dificuldades e pecados,
quaisquer que eles sejam."
Carl Gustav Jung
A Parábola do Bom Samaritano
Lc. 10, 25-37

Levantou-se um doutor da Lei e, para o testar, perguntou: “Mestre, o que devo


fazer para alcançar a vida eterna?” Jesus lhe respondeu: “O que está escrito na
Lei? Como é que tu lês?” Ele respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o
coração, com toda a alma, com todas as forças e com toda a mente, e o
próximo como a ti mesmo. Jesus, então, lhe disse: “Respondeste bem. Faz
isso e viverás”. Mas, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: “E quem é o
meu próximo?”
Jesus respondeu: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó. Pelo caminho,
caiu nas mãos de assaltantes. Estes, depois de lhe tirarem tudo e de o
espancarem, foram embora, deixando-o quase morto. Por acaso, desceu pelo
mesmo caminho um sacerdote. Vendo-o, desviou-se dele. Do mesmo modo um
levita, passando por aquele lugar, também o viu e passou adiante. Mas um
samaritano, que estava de viagem, chegou até ele. Quando o viu, sentiu
compaixão por ele. Aproximou-se, tratou das feridas, derramando nelas azeite
e vinho. Depois colocou-o em cima da própria montaria, conduziu-o à pensão e
cuidou dele. Pela manhã, tirando duas moedas de prata, deu ao dono da
pensão e disse-lhe: ‘Cuida dele e o que gastares a mais, na volta te pagarei’.
Na tua opinião, quem destes três se tornou o próximo daquele que caiu nas
mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que teve compaixão dele”.
Então Jesus lhe disse: “Vai e faz o mesmo!”

A parábola do bom samaritano é uma pérola da sabedoria de Jesus acerca do


amor ao próximo, que no evangelho se traduz pela categoria de compaixão.
Próximo não é aquele que está geograficamente perto de mim... mas aquele de
quem eu me aproximo, movido pela compaixão, que me leva a estabelecer
uma relação de cuidado!

Sem esvaziar o sentido profundo do compromisso solidário com o outro que


está na base de toda a mensagem evangélica... podemos ver também nesta
parábola um símbolo do autoconhecimento e um itinerário de descoberta-
aceitação-crescimento pessoal. É nesta perspectiva que vamos visitar este
texto.

Um homem descia... Pelo caminho, caiu nas mãos de assaltantes.


Estes, depois de lhe tirarem tudo e de o espancarem, foram embora, deixando-
o quase morto.

A vida da gente é uma descida. Engana-se quem entende a vida como uma
subida e nesse puro engano se destroi na compulsão de chegar mais alto, pois
aí espreita a tentação de negar o humano, com tudo o que isso implica de
limitações e fragilidades. Ninguém cresce subindo... pois e lógica da perfeição
que mobiliza o esforço pessoal como garantia de salvação pessoal, apenas
consegue afastar a pessoa de si mesma, negando o humano. Descer...
significa ir ao encontro de si mesmo, abrindo os olhos para enxergar sua
realidade pessoal, confrontando-se com suas misérias e abraçando suas
feridas.

Mas esse caminho é perigoso e sofrido! Caímos nas mãos de assaltantes...


que roubam nossa dignidade e nosso brilho original, eu nos tiram seguranças e
auto-estima, que nos maltratam e nos abandonam quase mortos na beira do
caminho... A vida nos maltrata. Desde cedo somos atropelados. Já no ventre
materno somos ameaçados e guardamos marcas que deixam em nós
sensações dolorosas... e esse rosário de maus tratos continua, quando vamos
pela vida interiorizando feridas que nascem do jeito como interpretamos nossa
relação com as figuras paterna e materna, com os outros adultos, com o meio
em que vivemos...

Muitas vezes a vida nos deixa assim... quase mortos na beira do caminho! E
muitas vezes, andamos pela vida como mortos-vivos, arrastando nossas
mágoas pelo chão dos outros...

A vida, ou sobretudo a maneira como nós a experimentamos e interpretamos,


foi tirando de nós a essência original de que somos portadores... e recobrindo
de máscaras nosso ser.

Esse homem quase morto na beira do caminho... é cada um de nós! É esse


estranho que mora dentro de nós e que nós acabamos abandonando na beira
do caminho, porque nos incomoda sua presença dolorosa. Sou eu mesmo,
estranho de mim...

Por acaso, desceu pelo mesmo caminho um sacerdote. Vendo-o, desviou-se


dele. Do mesmo modo um levita, passando por aquele lugar, também o viu e
passou adiante.

Por acaso, nos acasos da vida... a gente sempre acaba, mais cedo ou mais
tarde, cruzando com esse estranho de nós mesmos que ficou quase morto na
beira do caminho! Às vezes tropeçamos nele e sua presença atrapalha nosso
caminho.

O sacerdote e o levita expressam atitudes que temos em relação a nós


mesmos. Sacerdote e levita são gente da lei, gente que confia no exterior das
normas e das instituições. Sacerdote e levita é cada um de nós que passa pela
vida sem olhar para si mesmo. A gente vê esse estranho de mim quase morto
na beira do caminho... e passa adiante! Estamos preocupados com mil tarefas
e responsabilidades, distraídos com nossos projetos, dispersos em nossas
preocupações... ou então nos achamos seguros pelo apoio de ‘bengalas’ que
vêm de fora. Às vezes achamos que uma ideologia ou uma pessoa, uma
religião ou instituição, as normas... nos dão capacidade de continuar
caminhando pela vida, sem necessidade de parar para olhar o estranho de nós
que mora dentro de nós, quase morto, à margem do caminho. Passamos
adiante... e repetimos o gesto inúmeras vezes, sempre que a própria vida joga
na nossa frente o corpo moribundo desse estranho de mim que me
acompanha. Passamos adiante... até quando for possível passar adiante!
Inventamos estratégias para passar adiante... e arrumamos montes de
justificações para passar adiante. Talvez um dia não dê mais para passar
adiante!

Mas um samaritano, que estava de viagem, chegou até ele. Quando o viu,
sentiu compaixão por ele. Aproximou-se, tratou das feridas, derramando nelas
azeite e vinho. Depois colocou-o em cima da própria montaria, conduziu-o à
pensão e cuidou dele. Pela manhã, tirando duas moedas de prata, deu ao dono
da pensão e disse-lhe: ‘Cuida dele e o que gastares a mais, na volta te
pagarei’.
Um samaritano... é um estrangeiro. Samaritanos e judeus não se entendiam.
Somos estrangeiros em relação a nós mesmos e, muitas vezes, andamos
brigando conosco, num desgaste de energia sem fim. Temos dificuldade de
entrar em contato conosco e de nos comunicarmos com nossas áreas
vulneráveis. Sentimo-nos, ao olhar para dentro, como alguém pisando em terra
estranha...

Mas esse samaritano estava ‘de viagem’... e talvez aí more a diferença! Ele
não estava fechado na sua terra, no seu comodismo, alienado ao novo... mas
percorria uma terra estranha, avançando em paisagens desconhecidas,
enfrentando desafios novos, pisando um chão que lhe era estranho. Ele estava
a caminho... Essa é a atitude de quem se predispõe a uma jornada de
crescimento. Partir... implica deixar seguranças e horizontes conhecidos, para
ousar novas paisagens navegando por mares nunca antes navegados. Quem
parte chega a algum lugar porque o caminho se faz caminhando!

Chegou até ele... porque a vida o conduziu até si mesmo! Na viagem rumo ao
nosso interior, mais tarde ou mais cedo acabamos nos deparando com nossa
realidade, com nossas misérias e feridas, com nossas riquezas e aspirações
mais profundas. Quando nos predispomos e colocamos o pé nessa viagem
interior, acabamos chegando até nós mesmos!

Quando o viu... sentiu compaixão por ele! Não é fácil encarar esse estranho
que mora dentro de nós e incomoda nosso olhar. Muitas vezes, quando nos
defrontamos conosco mesmos, sentimos resistências e queremos fugir,
desviando o olhar. É difícil suportar esse confronto do qual fugimos a vida
inteira e que nossos olhos se acostumaram a não enxergar numa miopia
defensiva. Mas este samaritano sentiu compaixão! Aí está o diferencial: a
compaixão! Sentir compaixão significa sentir com o coração, sentir com... fazer
suas as dores do outro, colocar-se na pele do outro.

Enquanto não formos capazes de sentir compaixão por nós mesmos... nunca
poderemos crescer como pessoas autênticas. Sentir compaixão por nós
mesmos significa a gente se aceitar do jeito que é: aceitar nossa realidade
física-biológica, nossa dimensão psico-afetiva e nosso ser racional-espiritual,
nossa história e nossa identidade, nossa personalidade, com suas riquezas e
suas misérias. Aceitar-se! Enquanto não chegarmos aí, teremos ainda um
longo caminho a percorrer antes de vislumbrarmos horizontes de harmonia
pessoal!

Sentir compaixão... vai acontecer quando aceitamos que não dá mais para
continuar fugindo de nós mesmos! Aí resolvemos definitivamente amar o que
somos!

Aproximou-se... o samaritano do homem ferido! Aproximar-se de si mesmo.


Aproximar-se de suas áreas vulneráveis. Descer no mais profundo de si
mesmo onde moram sombras. Não basta conhecer e olhar de longe. É um
olhar de longe o saber racional. Aproximar-se significa acolher, sentir... e só
quando o sentir emerge, as feridas começam a ser curadas! Aproximar-se
implica conviver, dialogar, entrar em contato. Aproximar-se desperta
resistências... mas gera encontro!

Tratou das feridas... diz a parábola! É preciso tratar as feridas! Abraçar a


criança ferida que mora em cada um de nós. Não adianta ignorar as feridas ou
escondê-las debaixo de máscaras: elas sempre voltam sangrando mais! É
preciso tratá-las... mesmo sabendo que é doloroso mexer em feridas! Mas
sabemos que estamos mexendo para curar! A cura exige acolhimento! Cuidar
as feridas... significa no processo de crescimento aceitar nossas marcas,
acolher nossa ‘criança ferida’, abraçar nossas sombras... amar o que somos!
Quando nossas sombras são amadas, elas se transformam em luz! Acolher as
feridas e aceitá-las... deixar a dor doer... sentir: eis aí o vinho e o azeite para
cuidar das feridas!

Colocou-o em cima da própria montaria... porque é preciso carregar-se a si


mesmo! Não adianta olhar as feridas e cuidar delas um dia! Não adianta tirar
um tempo um ia na vida para cuidar de nossas ‘criança ferida’... é preciso
carregá-la cada dia, ao longo de toda a vida! Carregar nossos limites, nossas
fraquezas, nossas vulnerabilidades! Carregar-se! ‘Tomar a cruz de cada dia e
carregá-la’!

Conduziu-o à pensão e cuidou dele... porque na vida é preciso parar de vez em


quando e buscar espaços favoráveis para cuidar do estranho ferido que
carregamos! Precisamos encontrar ‘pensões’... porque há feridas que não
podem ser tratadas na beira do caminho! Algumas requerem mais cuidado e
mais tempo, um ambiente especial, um clima, uma concentração maior.
Precisamos encontrar ‘ pensões’ ao longo da vida: tempos, espaços,
ferramentas, métodos, ajudas... para darmos uma geral, de vez em quando, em
nossas feridas!

Pela manhã, tirando duas moedas de prata... Sim! Porque há um preço a pagar
por tudo isso! E não é barato! É o preço do sofrimento, da angústia, do ficar só,
do enfrentar-se e do expor-se, do conhecer-se! Me lembro daquela senhora
alegando seu desinteresse pelo autoconhecimento, com a razão de que tinha
medo de conhecer quem era e não gostar! É o risco e o preço! Mas... preço
bem maior, é o que pagamos quando teimamos em não nos conhecermos!

...deu ao dono da pensão e disse-lhe: ‘Cuida dele’... É preciso que cada um


cuide de si mesmo! Ninguém poderá substituir-nos neste imperativo de cuidar
de nós mesmos! Os outros nunca poderão nos dar o amor que esperamos, a
segurança que desejamos, o reconhecimento que ansiamos... se não
cuidarmos de nós mesmos, se não cuidarmos das feridas desse estranho que
carregamos em nossa montaria, nada e ninguém poderá curar as feridas!
Passaremos a vida na vã ilusão de encontrar calmantes e analgésicos,
entorpecentes para enganar a dor e sanar os sintomas, sem nunca curar as
feridas. Passaremos pela vida dando ‘picolés’ à nossa ‘criança ferida’... que
logo voltará a chorar! No entanto... além desse cuidado que nós mesmos
precisamos dispensar-nos, há momentos na vida em que precisamos buscar
ajuda. Não vamos cair na tentação de buscar bengalas... mas algo e alguém
que nos ajude a mapear feridas, a descobrir remédios, a perceber as melhoras,
a discernir os sintomas.

Acredito que essa ‘pensão’ podemos chamá-la de vida! A vida do jeito que ela
é. Ela cura! ‘ A vida cura a vida’, como dizia ter aprendido de seu pai o filho de
Carl Jung. Não podemos demitir-nos de viver... pois é na vida, na sua
normalidade, que nossas feridas serão curadas...

E acredito que é Deus o ‘dono dessa pensão’... e por isso precisamos saber
que também Ele cura! Só um amor incondicional e absoluto pode curar
verdadeiramente! Claro que é preciso que cuidemos de nós mesmos, sem nos
demitirmos de nossa responsabilidade... mas a graça de Deus continuará a
obra por nós começada e a fará chegar bem mais além!

É bem provável que nossas vozes interiores da tentação, chamem isto de


egoísmo ou de narcisismo! Muitas vezes se mascara de altruísmo e de
ativismo o medo de olhar para si mesmo! Mas o próprio Jesus falou em outro
canto do Evangelho: ‘ ama o próximo como a ti mesmo’! Como poderemos
amar o outro, se nunca aprendemos o amor por nós mesmos? Como
poderemos cuidar das feridas do outro, se as nossas continuam sangrando?
Como poderemos doar-nos, se não nos possuimos? Como poderemos amar-
nos se não nos conhecemos?

Precisamos aprender a compaixão por nós mesmos, para sermos capazes de


cultivar a compaixão pelo outro!
É certo que também amando o outro e no outro cuidando de suas feridas,
encontramos remédio para as nossas. Mas este processo sempre será
dialético e nunca nele poderemos nos alienar de nós mesmos, sob o riso de
cairmos na advertência do Evangelho sendo ‘cegos guiando cegos’!

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