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Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino

depois que
os sinos
dobram
depois que
os sinos
dobram
Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino

depois que
os sinos
dobram
Este trabalho está licenciado sob Creative Commons
Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional

Amanda De Castro Spadotto


Caio Valiengo
Marilia Jahnel
Renata Del Vecchio

revisão
Fábio Fujita

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Paciornik, Vitor Flynn


Depois que os sinos dobram / Vitor Flynn Paciornik,
André Bernardino. -- 1. ed. -- São Paulo :
Editora Funilaria, 2021.

ISBN 978-65-993680-5-9

1. Ficção brasileira 2. Histórias em quadrinhos


I. Bernardino, André. II. Título.
21-86136 CDD-741.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Histórias em quadrinhos 741.5


Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
sumário
Prefácio ......................................................................... 7
por Hector Lima

A noite ........................................................................ 11
roteiro e arte Vitor Flynn

O sopro ....................................................................... 55
roteiro Vitor Flynn
arte André Bernardino
cor-base Hayanna Diniz

O fantasma do Paquetá ....................................... 89


roteiro André Bernardino
arte Vitor Flynn

Isabela ......................................................................... 113


roteiro e arte Vitor Flynn

Mitzvá ......................................................................... 149


roteiro Vitor Flynn
arte André Bernardino
cor-base Hayanna Diniz

Quadrinhos em tempos de cólera ............................ 171


posfácio dos autores

Agradecimentos .......................................................... 173


Sobre os autores .......................................................... 174
PREFÁCIO
Hector Lima

Frequentemente, eu me lembro dos meus sonhos. São lembranças que me fazem


bem. Inclusive os pesadelos. Há muitos anos, eu os anotava em cadernos; hoje,
relato-os no Twitter, quando acho que pode divertir quem está lendo. Um e ou-
tro viraram contos, alguns se transformaram em cenas de roteiros de histórias em
quadrinhos que escrevi.
Cito os sonhos como lembranças não apenas pelo fato de nem sempre conse-
guirmos capturá-los após acordarmos. Mas por parecerem, muitas vezes, memó-
rias de outras vidas, uma realidade à parte – com semelhanças ambientais, recortes
de fatos reais de nossas vidas (pelo menos como nossa mente inconsciente os pro-
cessa), lógicas próprias e ações absurdas.
Percorremos longas distâncias em questão de minutos, eventos acontecem em
lugares improváveis, arquiteturas desafiam a lei da gravidade. Revivemos fatos de
nossas vidas, com reviravoltas inesperadas, memórias misturadas como uma fan-
tástica colcha de retalhos. Abraçamos e beijamos pessoas que, no mundo desper-
to, desafiaram nosso bom senso.
A quase totalidade dos meus sonhos se passa em Santos, minha cidade natal.
Estou quase sempre indo para algum lugar e tentando, depois, voltar para casa –
na maior parte das vezes, sem sucesso. Difícil lembrar quando sonho estar em São
Paulo, onde vivo hoje. Meu psicólogo deve ter algo interessante a dizer a respeito
disso.
O que mais levo dos sonhos e dos pesadelos é uma memória viva do que senti
diante das situações vivenciadas em meus teatros mentais. Enquanto estou naque-
le momento, tudo ali para mim se desenrola de verdade, e não questiono a lógica
torta dos acontecimentos. Apenas vivo aquilo instintivamente. Como devem fazer
os animais a todo momento. Nos sonhos, somos nossos “eus” mais verdadeiros e
naturais.
Essa memória tão viva dos sonhos muitas vezes me faz pensar, ao menos por
um momento, que se trata de outras vidas, realidades paralelas, dimensões para
onde me desloco todas as noites. Por mais que algumas vezes experimentemos
pesadelos horríveis, essa outra vivência é tão fantástica que se torna nossa própria
ficção pessoal. Pode parecer estranho admitir, mas até gostaríamos que essas his-
tórias multifacetadas fossem a nossa vida real – em vez desta constante rotina de
resolução de problemas, frustrações, ambições inatingíveis, desigualdade social,
ansiedade, pandemia e boletos.
Depois que os sinos dobram me atingiu como uma coleção de sonhos e pesade-
los. Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino fazem aqui uma antologia de histó-
rias em quadrinhos focadas em pessoas em situações absurdas. Seja tentando sair
delas, seja apenas vivendo dentro das regras internas apresentadas, são cenários
oníricos de um realismo fantástico próprio da tradição latina.
“A noite”, uma moderna adaptação de Guy de Maupassant, é o relato de um
boêmio que ama flanar pelo centro de São Paulo após o pôr do sol, em busca de
aventuras. Até sentir o cenário se fechando sobre si de maneira opressiva, como se
a cidade que ele tanto ama o tivesse abandonado. O fato de retratar lugares reais só
reforça a estranheza típica dos pesadelos.
“O sopro”, baseado em Pirandello, poderia ser uma história de aventura holly-
woodiana mostrando uma pessoa superpoderosa. Em vez disso, temos um suspen-
se muito brasileiro e atual, com detalhes aterrorizantes de uma dura realidade, com
semelhanças arrepiantes com a pandemia que vivemos nestes anos de 2020-2021 (e
além?), quando tivemos a mais dura das provas de a vida ser só um sopro.
“O fantasma do Paquetá” é uma visão de uma lenda conhecida pelos santistas
no cemitério onde está a ossada do meu avô Arnaldo; um conto sobre superstição,
comunicação pela internet e a mídia sangrenta dos programas policiais vesperti-
nos que adubaram o terreno no qual floresceu a cultura neofascista, hoje enraizada
em nosso país.
“Isabela” é justamente sobre a nova vida de uma mulher grávida, a borboleta de
Chuang Tzu em pessoa, após se ver livre de um pesadelo com o qual muitas outras
mulheres hoje podem, infelizmente, se identificar. A caracterização do marido é
tão bem-feita que não seria fora da realidade vê-lo na avenida Paulista com uma
camisa da seleção e uma bandeira verde-amarela amarrada no pescoço.
Fechando a antologia, “Mitzvá” traz a filosofia da obrigação feita com um senso
de bondade no surreal embate entre zumbis que nunca deveriam ter voltado con-
tra almas que só queriam ter descanso. Tudo isso envelopado na violência gráfica
mais sangrenta que um filme trash dos anos 1980 poderia passar. Essa é a história
com final feliz da coleção.
Curioso pensar na expressão “fora da realidade” quando lembro como cada
HQ aqui se parece com um sonho diferente, um pesadelo próprio. Vitor Flynn
captura enredos de lugares quase oníricos, representados de forma bela e dura nos
traços de Bernardino, que desenha personagens muito reais, tornando os aconte-
cimentos ainda mais imersivos e difíceis de serem aceitos.
O conjunto criado pela dupla é real demais, surreal demais, tão impossível
e fantástico quanto nossas vidas, tão lógico e cartesiano quanto nossos sonhos.
Quando fechar Depois que os sinos dobram, talvez você coloque sua máscara, saia
de casa e pense como a vida podia ser tão estranha antes.
A NOITE
Baseado no conto homônimo de Guy de Maupassant
A solidão nunca está com você, ela está sempre sem você e, portanto, ela só é
possível na presença de algo estranho, lugar ou pessoa que seja, que o ignore
completamente, e que você desconheça totalmente, de tal modo que a sua
vontade e o seu sentimento fiquem suspensos e perdidos numa incerteza
angustiosa e, cessando toda afirmação de sua pessoa, cesse também a própria
intimidade de sua consciência. A verdadeira solidão está em um lugar que vive
por si e que para você não tem nem voz nem feição, onde o estranho é você.
Pirandello
Eu amo a noite.

13
Amo a noite
loucamente.

Sabe aqueles tesões


inexplicáveis, daqueles
de uma paixão nova?

De sentir na pele.
Tesão de respirar o ar,
de escutar o som que
só a noite tem.

14
O dia me enche o saco.

Todo aquele ruído, seus


barulhos apressados,
sua brutalidade.
Mal consigo me levantar,
tenho dificuldades de me
vestir pra sair de casa.

O sol tem excesso


de luz, já dizia
Lupicínio.

15
No pôr-do-sol,
me sinto melhor.

Enquanto o céu escurece,


vou ficando mais feliz.

Me sinto acordado.

Um novo ânimo toma meu


corpo, uma ansiedade.

16
A cidade muda. Toma novas feições,
mais incertas.

As casas, os
apartamentos, vão,
aos poucos, sumindo.
Suas entradas e janelas,
perdendo a forma.

Sombras se alongam.

É como se a noite, aos


poucos, abraçasse a cidade.

17
Como um véu que se
abate sobre a cidade.
Sinto uma vontade
louca de sair.
Um desejo de
ver gente.

O que amamos com tanta


paixão é o que acaba por
nos matar, dizem.

19
Tem algo de particular São Paulo já não conta
na noite de São Paulo, mais estrelas.
talvez todo lugar tenha
sua própria noite.

Seu céu é vermelho,


as luzes da cidade
refletidas na poluição
ou algo assim.

Tem algo de mágico e de profano


no céu de São Paulo.

20
Se pá, tem alguém
do povo no seu Zé.

Se bem que ainda


é um pouco cedo.

Podia talvez
pegar um teatro.

Será que tá rolando


alguma montagem
bacana?

21
Não, acho que hoje
não tô pra isso.

Às vezes, o teatro
me agonia.

Minha cabeça tá muito


agitada, não quero
espaço fechado.

De teatro, hoje,
basta o mundo.

22
Estranho, nunca vi isso
aqui tão deserto.

O centro tem dessas


coisas, é como se, de
repente, desaparecesse
todo mundo.

Pequenos vazios
na noite.

Tudo fica
mais quieto.

23
Tudo fica mais
calmo, parece.

Uma calmaria
nervosa.

Vai Amanhã,
milho aí, Hoje não, mestre. então, quem
chefia? sabe?

Quem sabe?

24
Eu devia ter
comprado
cigarro antes.

Preciso achar
alguma birosca
aberta.

Parece que tá tudo


fechado…
Não tá tão tarde
assim, ou tá?

25
Dá licença, patrão,
não é assalto,
fica tranquilo!

Teria uma Não vou mentir,


moeda pra é pra comprar
ajudar? cachaça mesmo.

Pra ajudar
a passar a
noite.

Cara, desculpa, vou


ficar te devendo.
Tô sem nada
mesmo!

Cuzão!

Cuzão é o caralho!
Não sou obrigado
a nada, porra!

26
Impressão minha ou deu Parece que tô andando
uma boa esfriada? O há um tempão.
ar parece, não sei, mais
denso…

Vou dar um toque


em alguém.

Deve ter algum


camarada perdido
por aí, como eu.

Como assim?

Como pode não Troço maluco.


ter sinal aqui?

Oi, gatinho!

27
Deixa eu pegar
nesse seu pau
gostoso!

Eita ferro!

Pera! Tô de
boa, moça,
valeu!

Esse
aí não curte
mulher, não!

Dá um
cigarro,
então?

Tô sem, o meu
acabou!

28
Preciso sair daqui.

29
Caramba, minhas
pernas tão me
matando.
Preciso chegar logo em
algum lugar que dê pra
sentar tranquilo.

30
Um cigarro, meu bom Deus!
Tomar uma cervejinha, Meu reino por um cigarro.
descolar um cigarro.

31
Impressão minha
ou as luzes estão
mais fracas?

Onde está
todo mundo?

O céu parece mais


baixo, opressivo.

32
Um táxi! táxi!

Não parou!

O filho da puta
não parou!

33
Mas que
merda!

O que
eu faço?

34
Será que tá Foda-se, se tiver
muito tarde? sinal, vou chamar a
porra de um carro.

Eu recarreguei esta
merda antes de sair
de casa.

Como pode?

Dá licença, o senhor
sabe me dizer que
horas são?

Não sei,
meu filho.
Não uso
relógio.

Importa?

35
Acho que o negócio
é tentar voltar pra
Augusta.

Lá ainda deve ter


gente, deve ter
alguma vida.

Não era pra isso


aqui estar assim.

36
Mano do céu!

Como pode as luzes


estarem apagadas?

Que coisa mais


irresponsável!

Essa gente tá louca?

37
Não consigo É difícil reconhecer
enxergar nada os lugares assim,
direito. se orientar.

Já passei tantas Barulho dos bares,


vezes aqui com as dos carros ao longe.
luzes brilhando.

Pessoas rindo,
gente bebendo,
falando alto.

Parece tudo
morto.

Tudo tão
estranho.

38
Simplesmente não
tem ninguém aqui.

Agora não aparece um


merda de um policial
nessa desgraça.

Preciso ficar calmo,


manter a cabeça
no lugar.

39
40
41
Caralho! Que
porra foi essa?

Caceta! Não tem


porra nenhuma
aberta.

Tenho que dar


o fora daqui.

42
Tá tudo deserto! Não tem ninguém,
nem um mendigo,
nem um bêbado sequer.

43
Há quanto tempo eu
tô andando? Parece
uma eternidade.

Só queria que
amanhecesse logo!
Quanto tempo já
dura esta noite?

44
Não passa um carro,
um táxi, um ônibus
que seja.

O que que está


acontecendo?

Alguém nesses Alguém tem


prédios tem que abrir!
que me ajudar.

Me deixar usar o
telefone, ou ao
menos me dar um
copo d’água.

45
Alguém me abre,
pelamordedeus

Nada.

Ninguém me ajuda! Não sei mais


Que horas o que fazer,
podem ser? tô com medo.

46
Eu não quero
morrer aqui.

Não assim.

Não sozinho.

47
O que é essa
brisa gelada?

48
É água que ouço?
Aqui? Como pode?

49
Tô com fome.

Tá tão frio.

Me sinto tão
cansado.

50
Eu nunca vou
conseguir sair
daqui…

Não vou
ter forças…

51
Eu...

52
O SOPRO
Baseado no conto homônimo de Luigi Pirandello

55
A vida não é mais que uma sombra errante, um mau ator
que se empola e esgarça sua hora sobre o palco e depois não é
mais ouvido. É uma história contada por um idiota, cheia de
som e fúria, significando nada.
Shakespeare

56
Oi, Demi,
que surpresa!

Entra!

57
Como que
ele tá?

Meu anjo…
Tá na mesma,
tem horas em que
parece melhor, ai vem
outra crise…

Nada,
vai ser assim
Tadinho… pra sempre.
e os médicos,
nada de novo? Até não ser mais,
alguns anos, disseram,
10, talvez…

Todos temos
nossas cruzes
pra carregar…

58
Ele tem bebido
mais ultimamente, Isso não tá
depois que perdeu o certo, Mari!
E essa emprego.
cruz?
É a crise. né,
mas ele não faz
por mal, é só
como ele é!

Você sabe
Acho melhor você ir que pode contar
embora, ele deve chegar comigo pro que
daqui a pouco e não vai precisar, né?
gostar de te ver aqui.

Eu sei.

59
Amiga, Não é assim, Tina,
esquece essa a vida passa, as Só tenho
mulher! coisas mudam… um carinho muito
grande por ela. Ela tem
uma vida tão…
sofrida…

Falando em
vida, você viu
quem morreu?

A Bete, do Sim, nossa, Teve um piripaque,


almoxarifado, que triste! Ela era caiu dura… uma hora
se lembra dela? tão jovem, o que a pessoa tá bem, na
aconteceu? outra…

É, a pessoa
vai embora.

Como se
levada por
um sopro…

60
Você tá
Ugh! bem?

Nossa, me deu
uma coisa ruim
no peito agora!

Quer ir pro
hospital? Quer
que chame
um táxi?

Não,
vai passar,

Preciso voltar
pro trabalho, hoje
é dia de fechar as
planilhas, te ligo
mais tarde.

Tá, se
precisar de algo,
me avisa. Podexá!
Beijos!

61
João! Entra,
tava passando
um cafezinho.

Ding Dong
Oi, Demi,
escuta,

Tenho uma É a Tina, ela…


notícia triste. faleceu, ontem
à noite.

Meu Deus,
como assim?

O quê?

Passou mal ontem


à tarde, foi pro
hospital, mas não Eu tava
resistiu. com ela ontem
mesmo. Que horas
foi isso?
Ainda não se
sabe bem o que
aconteceu.

No meio da tarde,
ela voltou do almoço
não se sentindo bem
e, quando foi pro
hospital, já era tarde
demais.

62
A gente não
sabe os detalhes
de velório e funeral, o Meu Deus,
corpo não foi liberado ela falou que tinha
ainda, parece que vai sentido algo, mas não
ter que fazer imaginava que
autópsia. fosse sério.

Nossa…

A vida
é assim…

Não é mais
que um sopro!

63
Tá tudo
bem?

Ugh!

Sim, sim,
só um mal-
estar…

cof c
of!

64
A gente precisa
de uma ambulância,
por favor, moça,
é meu amigo, ele tá
passando mal…
Eu, eu não
sei, ajuda a
gente, moça!

Desculpa,
eu não queria
soprar, eu…

Eu tô
ficando
louca!

65
Ele tá
morto!

O que
aconteceu?

Nada, eu
não sei… não
pode ser… Soprou?

A gente tava
conversando
sobre uma amiga
que morreu, ele
começou a
passar mal
de repente.

Depois que
eu… que eu
soprei…

Não acreditam
Assim, com em mim?
a mão desse jeito,
eu soprei nele… Primeiro foi
Hmm… a Tina, agora
o João, um
sopro!

66
Faça você,
sopre em mim
se não acredita!
Vai, faça você!

Moça, é melhor
você se sentar, é
uma situação difícil,
você deve estar
em choque.

Eu poderia Moça,
soprar em vocês sente-se,
agora, mas não vou! por favor!

Não vou soprar,


não, eles morreram,
morreram!

Eu preciso
sair daqui!

67
Não pode ter
Não pode sido eu!
ser!

Qual é mina?

68
Um sopro,
simples assim…

69
Plantão
urgente…

Mais 15 mortes
confirmadas…

Subindo o total pra 217,


os médicos continuam
sem saber a causa…

A gente nunca
imagina que essas
coisas vão acontecer,
assim tão perto
da gente…

70
Eu tô viajando,
alucinando, só
pode ser!

Coisa horrível
essa epidemia,
hein?

É isso!

71
Se for uma
epidemia, as pessoas
vão continuar a morrer!
Essas coisas não
passam de uma
hora pra outra!

Cruz-credo, moça!
Vira essa boca pra lá,
em nome de Jesus!

Mas eu vou
saber, entende?
Que não sou eu!
Mulher louca!

72
É isso, já
se passou uma
semana, nenhuma
morte nova.

Não pode
ser uma epidemia,
não resta dúvida,
fui eu.

O que fazer?
Ninguém vai
acreditar
em mim!

Deus, nem eu
sei se acredito
em mim mesma!

Mas são
pessoas! Não
posso sair por
aí matando
gente!

A não ser
que eu mate uma
pessoa que mereça
morrer! Sim! Uma
morte justa!
Preciso
fazer um
teste!

73
Que que você
quer agora?
Já falei pra…

Deixa eu
entrar, preciso
falar com a
Mari!

Ugh!

74
Demi!
O que você…

A vida é
assim, basta
um sopro!

75
O que
você fez?

Você está
livre agora,
viva sua vida
amiga!

Não, não,
não!

Meu
anjo…

76
Mas eu
não posso fazer
Sou eu, isso, não tenho
fui eu que fiz esse direito! Devo tirar
isso, tudo os dedos?
isso! cortar fora?

Eu sou Ou será
a morte! que basta
o sopro?

Olha, não é
aquela maluca
do sopro?

77
não me provoque!
Sou eu, fui eu que
fiz tudo isso! eu
sou a morte!

Basta isso,
um leve sopro!
Nada mais!
Louca!
Quer fazer
um teste? É isso
que você quer?

Ah, eu sou louca?


Que epidemia é essa
que desaparece da noite
pro dia, como num
passe de mágica?

78
Quem disse Temos casos
que a epidemia novos todos os dias,
acabou? só não dá no jornal,
notícia velha,
parece…

Mas é
a mesma
doença?

Casos
idênticos!

Do que
vocês tão
rindo?

79
Essa mulher
diz que provocou a
epidemia soprando
na cara das
pessoas.

Se eu sou louca,
então não vai fazer mal
se eu soprar na cara de
HAHAHAHA vocês, hein? O que acham?
É isso que querem?

Pode soprar,
querida, tô com
um cisco no
olho mesmo.

HAHAHAHA Uma gracinha


como você pode
soprar em mim
quando quiser!

80
HAHAHAHA

Se algo acontecer
com vocês, não fui eu,
foi a epidemia! HAHAHAHA

Ugh!

81
A epidemia!

a epidemia!

82
Eu! Eu sou
a epidemia!

83
84
85
86
87
88
O FANTASMA
DO PAQUETÁ

89
A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida
no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do
rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e
chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho.
[…] Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do
rebanho.
Nietzsche

90
Um forte nevoeiro irá
assolar as noites de Santos Isso ocorre por conta de
nos próximos dias, Augusto. uma grande massa de ar
frio chegando à região…

Oi, amor.
Eu...

Você tá bem? Eu… vi um


O que houve? fantasma.

Que, junto com


a umidade…

91
Eu vi um fantasma,
porra! Eu vi! Tava lá,
Ah, me poupe… em frente ao cemitério
Como assim? do Paquetá.

Calma!

Era uma mulher,


uma freira, sei lá!
Só sei que eu vi.
Apareceu do nada
e veio na minha
direção.

92
93
Ai, meu
Deus!
Ai, meu
Ai, meu Deus!
Deus!

94
Dragon Ball
é uma bosta,
para!

Melhor que
Naruto!

Se liga, Naruto
tem muito mais
história!

Eita...
o que é
aquilo ali?

95
Caraca, que
bizarro.

Manda
pra mim…

Mano, vamo
embora daqui…

96
Boa tarde, Augusto.
Parece que a alta umidade
não trouxe apenas a neblina O Fantasma do Paquetá,
para as noites santistas. uma lenda da região do ano
de 1900, vem assombrando
o local, segundo algumas
testemunhas.

Essa imagem, que bate com


a descrição do fantasma do
Paquetá do século retrasado,
viralizou nos últimos dias.

Numa rápida conversa,


encontrei várias testemunhas
aqui que dizem tê-la visto.
Vamos ver…

97
Eu tava voltando
pra casa por volta da Ela para no portão
meia noite e do nada ela do cemitério e, de
saiu do cemitério e veio repente, desaparece.
na minha direção.

Eu vi sim!
Ela dava uns gritos O povo está
horríveis no portão assustado mesmo,
do cemitério. Meu vizinho hein Sandra?
a viu de perto e
disse que ela tem
olhos vermelhos.
Você, vai ficar
aí até a meia-noite
pra encontrar o
fantasma?

Eu não, Augusto.
Morro de medo
dessas coisas.

98
Mas, olha, apesar das A história original do
brincadeiras, o pessoal aqui fantasma do cemitério do
está bastante assustado. Paquetá data de julho de 1900 e,
na época, tal como agora, várias
pessoas garantiam ter visto
Muitas pessoas juram uma mulher com trajes de
de pés juntos que freira circulando por aqui,
viram o fantasma. perto da meia-noite.

Inclusive
a polícia já foi
acionada, por
incrível que
pareça.

Ela parava no portão, acenava com


um lenço para o interior do cemitério
e voltava de onde tinha vindo.

Mais tarde, descobriu-se que o fantasma


era uma mulher real, uma beata que havia
tido filho com um padre, mas a criança
morreu de tétano ainda pequena.

Como se tratava de Realmente, é uma


um período extremamente história muito triste,
conservador, a mãe vinha Sandra. Por sorte, vivemos
manifestar sua dor somente tempos melhores. Tchau e
à meia-noite, evitando outras muito obrigado.
pessoas e seus julgamentos.

99
Já passou
da meia-noite,
cadê ela?

100
Disseram aqui no
grupo que o fantasma tá
lá dentro do cemitério. Disseram
que ela tá
lá dentro. Dentro?

Alguém
tá vendo? Muita
neblina…

101
Pra casa,
pessoal!
Circulando!

Tá tarde
e não tem Parece que
nada aí! o fantasma tá
lá dentro.

102
Ali! Ela tá ali!
Ela tá lá dentro!
Abram o portão!

Tá aberto!

103
O cemitério foi
invadido, precisamos
de reforços!

104
Duerme, duerme, negrito,
que tu mamá está en el
campo negrito.
Duerme, duerme, mobila,
que tu mamá está en el
campo, mobila.

Te va traer
codornices para ti.
Te va a traer
rica fruta para ti.

Te va a traer
carne de cerdo para ti.
Te va a traer
muchas cosas rara ti.

Y si el negro no se duerme,
viene el diablo blanco y, ¡Zas!
le come la patita…

Chacapumba,
chacapum…

105
Se passando
Então por fantasma…
era você!

Vadia!

Você não tem


Mas vergonha? Uma adulta
o que… fazendo essas coisas?

O que… gente,
eu não sei…

106
Não foge,
não!
Você é uma sem-vergonha,
fazendo isso com a gente!

Me deixa
sair…

107
108
109
Uma tragédia ocorreu
no cemitério do Paquetá Segundo familiares, ela
na noite de ontem. Maria costumava chegar do
de Souza, 37 anos, foi trabalho em Cubatão e ir
linchada por pessoas direto para o cemitério
que procuravam o visitar o túmulo do
fantasma do Paquetá. filho, que faleceu há
poucas semanas.

Obrigado, Sandra. Isso também


A neblina acabou não é hora de
mesmo, Rachel? frequentar
Como está a previsão cemitério.
do tempo…

Ao ser abordada pelos


caçadores do fantasma,
ela reagiu e a situação
saiu do controle. Quando
a polícia chegou, ela
já estava morta. Os
agressores não foram
identificados, Augusto.

110
111
112
Isabela

113
O sonho da razão produz monstros.
Goya

114
Pegou a mala Tá aqui dentro,
do bebê? vamos que tamos
atrasados.
O que a gente
tá esquecendo?

Putz, a chave
Como a gente do carro! Que
vai saber o que tá viagem! Haha!
esquecendo, sua Segura a
idiota? porta do
elevador.

Eu só…

115
Tô nervosa, Relaxa, os
médicos sabem Mas e se acontecer
e se der alguma alguma coisa, alguma
coisa errada? o que tão fazendo,
complicação?

Eles estudam
pra isso.

Nosso filho
vai nascer com
três pernas!
Hahaha!

Não brinca
com isso!

Puta que pariu! Você não tem


senso de humor
nenhum mesmo!

116
Queria que minha
mãe tivesse aqui,
ela estaria tão feliz.
Tenho certeza
que onde estiver, ela
está feliz querida!

Onde Não gosto quando


estiver? Eu que não boto você fala assim da
a mão no fogo por minha mãe…
aquela megera. Só tô falando
a verdade…

Presta atenção
na pista, Rô!

Cala a boca,
porra!

Fiquei de
mandar um zap
pros bróder
do pôquer!

117
118
119
Meu bebê…

Meu…

120
121
Meu bebê!

O que
Isa! Você aconteceu com
acordou! meu bebê?

Calma!

122
Tá tudo Tem alguém
bem! que eu quero que
você conheça.

123
Os médicos disseram
que ele não apresentou
nenhuma sequela.
E o Rô?

Foi
instantâneo,
falaram.

O assento
dele concentrou
todo o impacto
da batida,

Não
sentiu dor
nenhuma.

Nós o enterramos Segundo os médicos,


faz dois meses. tá tudo certo com você,
Você ficou em eles não entendiam por que
coma bastante você não acordava.
tempo.

124
Minha
cabeça dói.

Deve ser
normal, depois
de tanto
tempo.
Vou chamar
alguém.

Meu filho!

125
Ah, como
é bom estar
em casa de
novo.

Escuta, tava
pra te falar, você não
tem que se preocupar
com a papelada toda do
inventário e afins.

Deve ficar
pronto logo, aí é só
assinar, e todos os
bens de vocês passam
oficialmente pro
seu nome.

Nosso
escritório já
tá cuidando
de tudo.

Ah, mana, Taí uma


o que eu faria boa pergunta!
sem você?

126
Mas tem Bem,
uma coisa que você com outras
precisa saber, tem mulheres…
um apartamento…

Parece
que o Roberto
usava…

Eu… sabia,
acho. Não sobre Que merda, Olha, eu
o apartamento, Isa. realmente
digo. preciso ir.
Mas dessas
outras, eu
desconfiava.

Quando
quiser conversar
sobre essas
coisas todas,
me dá um
toque.

Tá tudo
bem! Te amo,
Vai lá, viu?
não quero
te prender.

Também.
Obrigada.
Por tudo.

127
Agora
é só nós
dois.

Nós dois,
contra o
mundo!

128
Diga adeus
pro seu pai!

129
Vamos, filho!
Sem olhar
pra trás!

130
Tá aqui,
querida!

Ai, brigada!

Desculpa Cansada!
os canos semana o gordo dá
passada, o escritório trabalho.
tá uma loucura! Mas tô bem!
Realmente
bem!
Mas conta,
como você tá?

Que
ótimo!

Eu me Como assim?
sinto… livre.

Acho que
pela primeira
vez em muito
tempo.

131
Mas é como
se eu conseguisse
respirar de verdade
pela primeira vez em
muito tempo.
Sei que é feio
dizer isso agora,
depois que ele
morreu.

Eu penso em antes,
e era como se houvesse algo
me sufocando, como se eu
tivesse um pano amarrado
no meu pescoço, bem
apertado.

E por tanto
tempo que eu já
nem lembrava
que ele tava ali,
entende?

Ah, eu entendo. Você me Claro que não!


lembra como eu acha frágil? Você é uma das
era com o pessoas mais
Marcelo? fodas que eu
conheço.

132
A gente tinha
problemas com o
Roberto, você sabe, Tem uma
mas sempre imaginei coisa…
que você sabia
o que tava
fazendo.

O quê?

Eu não sei,
às vezes eu tenho Como assim, Não,
uma sensação… tipo um stalker? eu não sei
parece que tem E eu acho explicar.
alguém me que vi alguém,
seguindo. mas não tenho
certeza, eu
não sei.

Às vezes parece Acho


uma presença ruim, que você tá
só que, ao mesmo paranoica!
tempo, tem algo de Como tão
familiar… as dores de
cabeça?

Pararam, quase.
Tirando uma tontura
de vez em quando e a
dor no joelho, eu tô
nova em folha.

133
Duvido!
Talvez seja tudo Você nunca foi
coisa da minha cabeça, tão criativa
alguma sequela do assim!
acidente, sei lá.
Talvez eu
esteja ficando Vai se
louca, imaginando fuder!
coisas. Besta!

Bem, tenho que


voltar pro trabalho, E com a grana
tá precisando que tá entrando do apê,
de algo? tá dando pra segurar
de boa.

Não querida, tá Então eu me vou.


tudo tranquilo, Qualquer coisa, mas
eu e o gordo qualquer coisa mesmo,
tamos bem. me liga, viu?

Vamos
Te amo, passear um
Te amo, pouco?
pirralha. velha.

134
Jesus,
quanta coisa
feia!

135
136
DEIXA A GENTE
EM PAZ, SEU
DOENTE!

Senhora, Sim…
tá tudo
bem? Acho
que sim,
obrigada.

137
Oi, sou eu,
tudo bem?

Ah, vai indo,


tudo tranquilo.

Ei, tava pensando,


Sim, ele tá acho que tô precisando
ótimo, cada dia sair daqui por uns dias,
mais esperto… dar uma arejada.

O que você acha


de a gente ir pra
praia esse fim
de semana?

É, o pai sempre Tá, então


reclamava que eu vou pro seu
a gente usava escritório lá pelas
pouco a casa. 14h e a gente vai
direto de lá.

É, eu sei.
Não precisa,
não dá nem dez
minutos de
Sim, caminhada.
posso sim.

Brigada, mana,
te devo essa,

Até sexta,
então.

Beijo.

138
O que pode
acontecer também?
Tá de dia e tamos
numa região
movimentada.

Me recuso a
viver na paranoia
o resto da
minha vida.

139
140
!?

141
só o carrinho do bebê sem bebê

142
Não!
Não! Não!
Não! Não! Não!
Não! não!

Meu bebê!
Pelo amor de deus,
Meu bebê!

Alguém me
ajuda, roubaram
meu bebê!

Devolve
meu bebê!

143
Rô, devolve
meu filho, Rô!

Eu faço
o que você
quiser, mas
devolve meu
bebê!

144
Meu bebê!

Meu bebê!
Calma, amor,
tá tudo bem!

Você perdeu
a criança,
amor.

145
A gente
Os médicos tiveram teve sorte,
que fazer um parto de na verdade.
alto risco, o bebê só
viveu alguns dias. Eu não tive
nenhuma sequela
do acidente.
Nós o enterramos,
já faz uns meses,
você ficou em coma
um tempão.

E os médicos
disseram que seu Vai ficar
quadro é muito tudo bem.
otimista.

146
147
148
MITZVÁ
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também
os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin
Passa o goró
aí, mano!
Ai, gente, não
sei se isso tá
certo…

Ela acha que o


O que é, tá fantasma do Issac vai
com medo de vir puxar seu pé à noite, né,
cadáver judeu? amante de judeus?

Não… mas
não sei se é
certo mexer
com morto.

Se gosta
tanto, leva
Não devia nem pra casa! Eu não sou
enterrar, dava amante de judeus,
pros porcos. é só que…
Hmm... Tá faltando
alguma coisa
aqui!

Ah, ficou bem


melhor!

Me empresta
Agora sim o spray, quero
tá certo! fazer também!
Preciso
dar um mijão.
Que porra tá
acontecendo?
Que merda
você fez, seu
idiota?

Cala a boca,
fiz nada, não!
Ai, gente…
Eita porra!

Perdão, Deus
eu não quero
morrer!

Eu faço
qualquer coisa,
Deus, me ajuda!
AAAA
AAAA
AAAA
AAAA
AAAh!
Sai da frente
seu bando de
frouxo!

Cai pra dentro


seus merdas!
AAAAAAAAA
AAAAAh!

Caceta!
Mano
do céu!
NÃO!

Não
encosta Por favor,
em mim! não!
Mas…
Quadrinhos em
tempos de cólera

Há uma famosa tira de Tom Gauld em que uma escritora se isola para escrever
uma distopia e quando ela termina o mundo lá fora virou justamente uma distopia.
Com este livro foi um pouco assim.
Os sinos que dobram apontam para uma dimensão de coletividade, nas igrejas,
no poema de Donne, no livro de Hemingway. Coletividades diferentes, talvez, mas
formadas pela noção inextricável de que compartilhamos uma mesma condição
humana. O que nos acontece quando esse sonho de coletivo se esfacela? As histó-
rias aqui reunidas de certa forma giram todas em torno dessa questão.
Mas se a questão do coletivo em nossa sociedade é um problema em aberto
desde sempre, o ciclo que nos coube viver nos últimos anos se configura como um
abismo todo novo – ainda que recendendo aos autoritarismos passados.
Fazer histórias que tratam da impossibilidade de conexão durante uma pande-
mia que nos forçou ao isolamento, em mais formas do que imaginávamos possí-
veis, não foi exatamente fácil. Se fôssemos iniciar este livro do zero hoje, certamen-
te muita coisa seria feita diferente.
A gente jura que quando ele começou a ser esboçado ainda não havia covid-19,
não havia as agruras da quarentena e do isolamento. Quando algumas das histórias
deste volume foram pensadas, céus! não havia nem tido o golpe. Cada uma das
histórias aqui tem sua própria trajetória, algumas vinham amadurecendo de longa
data, outras foram pensadas já para este volume – que começou a tomar as feições
atuais como um projeto para o Proac (Programa de Ação Cultural) – programa de
incentivo à cultura do Estado de São Paulo –, em meados de 2019.
É da natureza das coletâneas, e uma de suas graças, nos parece, que tragam
múltiplas temporalidades. E ao se justapor histórias que foram pensadas de forma
independente, em momentos distintos, novas camadas de significado talvez sejam
criadas. O que era todo vira parte, e o conjunto se impõe, às vezes em teias de rela-
ções que escapam às intenções de seus criadores.
Inclusive porque este é também um livro coletivo, um coletivo pequeno, é ver-
dade, mas, ainda assim, coletivo. Cada parte do processo de um quadrinho tem
suas especificidades, desenhar uma história escrita por outrem é bem diferente
de conceber o todo de uma obra de forma autônoma, e o mesmo vale para cor,
arte-final, letreiramento e edição. Então, se não aparece como tal em sua forma, ao
menos para seus criadores, durante o processo, este livrinho teve algo de experi-
mental. E nisso há sempre uma abertura, e o que passou por essa abertura, parece,
foi o mal-estar de nossos tempos.
Fazer quadrinhos demora, e este livro se materializa em um momento bem di-
verso do inicial. É até um pouco assustador perceber como o tempo ressignificou
essas histórias, isoladamente e em seu conjunto. Coisas que foram pensadas como
figuradas viraram literais, o que era sugerido tornou-se óbvio e, quem sabe, coisas
que eram literais sejam lidas figuradamente hoje.
O que podemos dizer agora, de nossa parte, é que alimentamos a esperança de
que, em breve, os tempos mudem novamente. Que o terror dessas historinhas logo
se torne menos palpável. E que possamos novamente declamar com o poeta que a
morte de toda pessoa nos diminui, pois fazemos parte do gênero humano. Mas, se
isso for pedir demais, que possamos ao menos sentar em uma mesa de bar, numa
calçada qualquer, e falar bobagem sobre quadrinhos, a vida e tudo mais. Saúde.
Agradecimentos

Foi um longo caminho até aqui e eu devo um grande obrigado a um punhado de


pessoas que me ajudaram a trilhá-lo com mais leveza.
Ao parceiro e amigo André Bernardino, que topou esta empreitada com toda
dedicação e generosidade que lhe são próprias.
Ao Caio Valiengo e toda equipe da editora Funilaria por terem abraçado este
livrinho.
À equipe do Proac, da Secretaria de Cultura, pelo empenho e paciência.
Aos amigos que estiveram sempre presentes: Eduardo Fernandes, Rafael
Versolato, Daniela Alarcon, e, em especial, à Natalia Guerrero, que leu diversas
versões e deu preciosas contribuições.
À minha família por todo o apoio, de tantos modos, sempre.
E ao meu amor, Yukari Tome, que não só leu, apontou caminhos e deu todo o
apoio que tornou este livro possível, como foi meu porto seguro nestes tempos
estranhos.

Vitor Flynn

Fazer quadrinhos é um trabalho demorado e, muitas vezes, cansativo, mas não


precisa ser solitário. Por isso, agradeço ao Vitor Flynn pelo convite, incentivo e
cumplicidade, e por ficar ao meu lado, ombro a ombro, nas trincheiras desta luta
diária.
Agradeço à Hayanna Diniz por aceitar de bom grado fazer parte dessa
empreitada.
Agradeço ao Jarino pelo suporte e pela ótima sugestão da Duerme negrito, da
Mercedes Sosa, música que encaixou perfeitamente com seu momento em O
fantasma do Paquetá.
Por último, gostaria de agradecer à minha família, Fernanda, Arthur e Alice, por
suportarem meu ocasional mau humor e minhas ausências enquanto desenhava e
continuarem me amando mesmo assim.

André Bernardino
Sobre os autores

Vitor Flynn Paciornik é paulistano,


formado em artes plásticas e em ciências
sociais pela usp. Trabalha como ilustrador e
quadrinista, tendo publicado, em 2016, o álbum
Xondaro, sobre a luta dos Guarani Mbya de
São Paulo pela demarcação de seu território.
Em 2020, publicou Os donos da terra, em
parceria com Daniela Fernandes Alarcon e
Glicéria Jesus da Silva, sobre a vida e a luta dos
Tupinambá do sul da Bahia. No mesmo ano
publicou Aquarela, com André Bernardino.
Mantém, desde 2013, o blog Quadrinhos B,
dedicado a narrativas curtas e pirações
quadrinísticas.

André Bernardino nasceu em São Paulo,


formou-se em artes plásticas pela usp e mora em
Santos desde 2007. Professor de arte e ilustrador,
trabalhou para o blog do Torero no uol e para
agências de publicidade. Lançou a adaptação
Santos, Um Time dos Céus em 2015. Em 2016,
participou da coletânea Visões de Guerra: pátria
armada, tendo desenhado a história 51. No ano
seguinte, lançou a história em quadrinhos Uma
Estrela na Escuridão, que ficou entre as cinco
melhores adaptações daquele ano, segundo o
hqmix. Seu último quadrinho foi Aquarela.
Lançada em 2020, trata-se de uma adaptação do
conto homônimo de José Roberto Torero feita em
parceria com Vitor Flynn.
Fontes Komika e Arno
Tiragem 1000 exemplares
Papel do miolo couchê fosco 90 g/m²
Impressão Gráfica Expressão e Arte
Novembro 2021
O anonimato da cidade nos anula. Esfria nossas emoções. Muitas vezes, oferece conforto.
Mais que tudo, esconde muitos mistérios. Em Depois que os sinos dobram, Vitor Flynn
Paciornik e André Bernardino usam do sobrenatural para escancarar as ironias e contradições
dos pensamentos e acontecimentos da vida urbana, e convertem em mágico e misterioso o
banal das vidas insignificantemente cotidianas dos paulistanos cansados.
George Schall é escritor, ilustrador e quadrinista.

Em Depois que os sinos dobram, Vitor Flynn Paciornik e André Bernardino mostram as
cidades de São Paulo e Santos sob novas feições. Como personagens à parte, elas se adaptam
a cada narrativa que irão abrigar, podendo ser, ao mesmo tempo, ambientes inóspitos,
opressores, ou terrenos férteis e plurais. O leitor local irá reconhecer esquinas, passagens,
prédios e monumentos dessas cidades, mas a falta de tal reconhecimento não será problema
para o leitor que, através da hq, poderá fazer seu primeiro passeio pelas noites paulistanas,
santistas, e por outras noites. A já conhecida solidão da metrópole encontra aqui uma
ambientação sombria e misteriosa, construindo protagonistas que agonizam em uma São
Paulo e uma Santos surrealmente assustadoras, que levam o leitor a embarcar junto nesse
delírio. As cidades nos acompanham à medida que seguimos os personagens em busca de
respostas para desaparecimentos, mortes misteriosas, fantasmas. Lendas são revividas e
reformuladas, em uma ambientação muito familiar para todo brasileiro que já ouviu e passou
adiante histórias assustadoras de sua cidade – assim como para todo brasileiro que conhece as
injustiças do país. A obra leva ao ponto máximo o seu jogo entre o gênero terror e a discussão
de desigualdades, tanto brasileiras como universais. Esta hq se dirige aos apaixonados por
quadrinhos que exploram o gênero do terror em suas camadas narrativas mais profundas.
Boa leitura!
Aline Zouvi é quadrinista, ilustradora e tradutora.

Realização

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