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Assim na Terra como no Ceu - On Earth as it is in

Heaven (Portuguese)
Jeffrey R. Holland, Patricia Holland

© 1989 .
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Tradução: Jales Josino da Rocha Filho Revisão e Coordenação do Projeto: Reynaldo Pagura

Library of Congress Catalog Card No. 98-74985

ISBN 1-57345-482-6

Impresso no Brasil 84098-6445

10 9 8 7 6 5 4 3 2 1
A Matt, Mary e Duff
Por criarem nosso céu na Terra
Table of Contents
PREFÁCIO
AGRADECIMENTOS
PPERCEPÇÕES EE REFLEXÕES: Patricia T. Holland
CUMPRIR A MEDIDA DE NOSSA CRIAÇAÕ
A UM SUSSURRO DO CÉU
TUDO A VER COM O CORAÇÃO
OS FRUTOS DA PAZ
A CONSOLAÇÃO COM QUE SOMOS CONSOLADOS
A PERSPECTIVA DE UMA MULHER SOBRE O SACERDÓCIO
AS MUITAS FACES DE EVA
COM O ROSTO VOLTADO PARA O FILHO
UMA CONVERSA: COM JEFFREY R. HOLLAND E PATRICIA T.
HOLLAND
ALGUMAS COISAS QUE APRENDEMOS JUNTOS
GARANTIAS E AFIRMAÇÕES: JEFFREY R. HOLLAND
LEVANTAI OS VOSSOS OLHOS
A VONTADE DO PAI EM TODAS AS COISAS
Ó SENHOR, MANTÉM FIRME O MEU LEME
A TAÇA AMARGA E O BATISMO DE SANGUE
AO ALCANCE DE SEUS BRAÇOS
QUEM SOMOS E O QUE DEUS ESPERA QUE FAÇAMOS
ALMAS, SÍMBOLOS E SACRAMENTOS
ASSOMBRO ME CAUSA
PREFÁCIO
A vida aqui na mortalidade apresenta um número generoso de
dificuldades para cada um de nós, e muitas vezes nos vemos ansiando por um
pouco da paz e segurança do céu. O Salvador expressou não só o desejo de
Seu coração, mas também o de cada um de Seus discípulos, quando orou a
Seu Pai: “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no
céu”. Até podermos estar em segurança no céu novamente, com Deus e
nossos entes queridos, certamente não há nada mais grandioso a que
possamos aspirar do que ver Sua vontade, influência e Seus desígnios serem
plenamente sentidos na Terra.
Uma sociedade de tal pureza e força talvez só seja possível durante o
reino milenar de Cristo como Rei dos reis e Senhor dos senhores, mas isso
não é desculpa para não tentarmos, sempre que possível, fazer com que
“venha o [Seu] reino” mais depressa. E embora condições celestiais talvez
não nos advenham ampla e indistintamente até a segunda vinda, há maneiras
profundas pelas quais elas podem vir a nós pessoalmente, a nossa família e a
grupos de fiéis que vivem o evangelho no coração, no lar e na comunidade.
A chave para qualquer sucesso no tempo e na eternidade é certamente a
obediência ao evangelho do Filho de Deus, a mesma obediência que Ele
demonstrou à vontade do Pai em “todas as coisas”. Este livro, uma coletânea
de alguns de nossos discursos e ensaios, dedica-se aos aspectos da vida em
que efetivamente podemos fazer da vontade de Deus a nossa vontade e de
Seus caminhos os nossos caminhos. Dedica-se ao ideal de tornar a vida aqui
na Terra tanto quanto possível como a no céu.
AGRADECIMENTOS
Queremos agradecer a muitos, principalmente aos alunos da
Universidade Brigham Young, que se dispuseram a ouvir essas idéias bem
antes de elas surgirem em forma de livro. Foi um privilégio único em nossa
vida trabalhar com jovens tão talentosos e participativos.
Somos gratos por várias secretárias que tivemos ao longo dos anos,
principalmente Jan Nelson e Shauna Brady, que produziram inúmeros
rascunhos destes manuscritos. Jan Nelson também produziu a versão final
deste livro. Fazemos ainda um agradecimento especial a Eleanor Knowles,
diretora executiva da Deseret Book, que teve a idéia inicial deste projeto e
cuja paciência levou à sua publicação.
PERCEPÇÕES E REFLEXÕES: Patricia T. Holland
Capítulo 1

CUMPRIR A MEDIDA DE NOSSA CRIAÇÃO

Cada elemento da criação tem seu próprio propósito e função, seu


papel e missão únicos. Se nossos desejos e obras estiverem de acordo
com o que nossos pais celestiais planejaram para nós, vamos sentir-nos
parte de seu plano. Reconheceremos a plena “medida de nossa
criação”, e nada poderá trazer-nos maior paz.

Quando minha filha, Mary, era ainda uma menininha, ela recebeu a
designação de fazer uma apresentação em um concurso patrocinado pela
Associação de Pais e Mestres da escola. Aqui está a experiência conforme
relatada por ela mesma, aos sete anos:
“Um dia eu estava estudando piano, mas estava tocando tão mal que
comecei a chorar. Então decidi treinar balé e mais uma vez acabei chorando:
também estava péssima. Aí decidi fazer um desenho, porque sabia que pelo
menos isso eu fazia bem, mas saiu horrível. E é claro que chorei de novo.
Aí topei com meu irmãozinho de três anos e perguntei: ‘Duffy, o que
posso ser? O que posso ser? Não posso ser pianista, artista nem bailarina. O
que posso ser?’ Ele veio para perto de mim e sussurrou: ‘Pode ser minha
irmã’.”
Em um momento importante, aquelas quatro palavrinhas mudaram a
perspectiva e trouxeram consolo ao coração de uma menina ansiosa. Naquele
mesmo instante, a vida tornou-se mais bela e, como sempre, o amanhã
reservava ainda novas surpresas.
Todos nós em um momento ou outro nos deparamos com perguntas
semelhantes às de Mary, sobre nosso papel, propósito e rumo na vida. E isso
acontece até mesmo bem depois de nossa infância. Converso com muitas
mulheres, o que me permite perceber que várias, talvez a maioria delas,
passam por momentos em que se sentem confusas ou derrotadas, pelo menos
temporariamente. Nessas situações, indagamos: “O que serei? Quando vou-
me formar? Com quem vou-me casar? Qual é o meu futuro? Como vou
ganhar meu sustento? Como posso fazer uma contribuição significativa?
Resumindo, o que posso ser?”
Não fiquem desanimados se ainda estiverem fazendo-se esse tipo de
pergunta, pois acontece com todos nós. Nós até devemos preocupar-nos com
nossos propósitos fundamentais na vida. Todos os filósofos do passado e do
presente certamente concordariam que, por mais importantes que sejam, a
comida e o abrigo não são o suficiente. Queremos saber o que está além.
Qual é o significado? Qual é o meu propósito?
Ao fazer-me essas indagações, conforta-me recordar que uma das
verdades mais importantes e fundamentais ensinadas nas escrituras e no
templo é que “toda forma de vida [cumprirá] a medida de sua criação”.
Devo admitir que quando ouvi essa frase pela primeira vez, achei que
ela se referia apenas a procriar, ter filhos, deixar descendência. E tenho
certeza de que esse é o significado principal. Contudo, como boa parte da
cerimônia do templo é simbólica, pode haver também múltiplos sentidos
nessa declaração. Um significado adicional que agora vejo nesse
mandamento é que cada elemento da criação tem seu próprio propósito e
função; cada um de nós recebeu um papel e missão divinos. Creio que se
nossos desejos e obras estiverem de acordo com o que nossos pais celestiais
planejaram para nós, vamos sentir-nos parte de seu plano. Reconheceremos a
plena “medida de nossa criação”, e nada poderá trazer-nos maior paz.
Certa vez, li uma analogia maravilhosa das limitações que nossa
perspectiva atual nos impõe. A mensagem ensinada era que no processo
contínuo da criação — nossa criação e a criação de tudo o que nos cerca —
nossos pais celestiais estão preparando uma bela tapeçaria com primorosas
cores, matizes e motivos. Eles estão fazendo isso com todo o amor, cuidado e
maestria. E cada um de nós desempenha um papel — o nosso papel — na
elaboração dessa obra de arte magnífica e eterna.
Nesse processo, contudo, precisamos lembrar-nos de que é muito difícil
para nós avaliar com precisão nossa própria contribuição. Vemos o rico tom
de vermelho da linha do vizinho e pensamos: “Essa é a cor que quero ter”.
Em seguida, admiramos o azul ou bege suave e repousante de outro
companheiro e pensamos: “Não, essas cores é que são melhores que as
minhas”. Mas em tudo isso, não vemos nossa tapeçaria da maneira que o
Senhor a vê, nem percebemos que outras pessoas desejariam ter nossas cores,
posição e textura da mesma forma que desejamos as delas.
Talvez o mais importante a se lembrar é que, durante a maior parte do
período criativo, estamos confinados à visão limitada da parte inferior da
tapeçaria, onde tudo às vezes é meio confuso, borrado e pouco nítido. Se
nada faz muito sentido desse ponto de vista é porque ainda estamos no
processo de criação, em uma fase inacabada. Mas nossos pais celestiais têm a
visão geral, do alto, e um dia vamos saber o que eles sabem: que todas as
partes do todo artístico são iguais em importância, equilíbrio e beleza. Eles
conhecem nosso propósito e potencial e deram-nos a oportunidade ideal de
fazermos a contribuição perfeita nessa obra divina.
O Senhor garantiu-nos que a única exigência para participarmos desse
plano magnífico é ter “o desejo de trazer à luz e estabelecer esta obra”. (D&C
12:7) “Sim, aquele que lançar sua foice e ceifar será chamado por Deus.
Portanto, se me pedires, receberás; se bateres, ser-te-á aberto”. (D&C 14:4–5)
Às vezes, em nosso plantar, colher e peneirar, parece que Deus diz
“não”, “agora não” ou “acho que não” quando o que queremos ouvir, quando
o que desejamos que nossa tapeçaria receba é um “sim”, “certamente, agora
mesmo” ou “claro que vou dar-lhe”. No decorrer dos anos, tenho vivido
decepções e esperas, mas tenho percebido que quando continuo a buscar com
fé inabalável e persisto com paciência — esperando no Senhor e Seu próprio
calendário — os “nãos” do Senhor revelam-se meros prelúdios para “sins”
ainda mais grandiosos. Tenho aprendido que as próprias demoras e recusas
com que mais nos preocupamos, ou as diferenças entre nós que mais abalam
nossa auto-estima, são as diferenças e atrasos que se revertem em maior bem
para nossa felicidade e realização.
Sempre tentei imaginar as lutas que devem ter-se travado na mente de
Moisés quando o Senhor pediu-lhe que deixasse seus privilégios e posição
reais para servi-Lo na mais abjeta escassez e pobreza. Contraste a missão de
Moisés com os desígnios do Senhor para José, de ficar no Egito e usar sua
influência e prestígio com propósitos justos. Jeremias aparentemente não
desfrutou as bênçãos do casamento ou filhos, enquanto Jacó contava com a
reconfortante companhia de quatro esposas e uma prole numerosa. Josué
parece ter sido um líder extremamente confiante, carismático e decidido,
enquanto Moisés estava sempre relutante, hesitante e às vezes tinha de pedir
instruções várias vezes ao Senhor. Cada um deles teve um papel essencial,
ainda que bem distinto, a cumprir.
Além do mais, a idade não parece fazer muita diferença na diversidade
dessa tapeçaria. Davi era apenas um menino quando habilmente derrotou
Golias, mas Abraão tinha oitenta anos de idade quando nos deu o supremo
exemplo mortal de fé e obediência. Ester tinha a riqueza e atenção de reis, o
que lhe deu a oportunidade de ajudar a salvar uma nação, enquanto Rute era
uma moabita pobre e desprezada. Ironicamente, foi pelo sangue de Rute que
saiu a linhagem real do próprio Filho de Deus. O Senhor usa-nos por causa
de nossas personalidades e diferenças únicas, e não apesar delas. Ele precisa
de cada um de nós, com todas as nossas imperfeições, fraquezas e limitações.
Então o que eu posso ser? O que eu posso ser? Todos nós, vocês e eu,
podemos ser o que nossos pais celestiais pretenderam, planejaram e ajudam
que sejamos. Como podemos cumprir a medida de nossa criação? Lançando a
foice, ceifando com todo o vigor e regozijando-nos em nossas especificidades
e diferenças. Para alcançarmos nosso potencial, precisamos apenas (1)
apreciar nosso curso e deleitar-nos em nossa unicidade, (2) afastar vozes
conflitantes e ouvir a voz interior, que é a voz de Deus dizendo quem somos
e quem podemos tornar-nos e (3) libertar-nos do amor à profissão, posição
social ou opiniões alheias e lembrar que o que Deus realmente deseja é que
sejamos o irmão de alguém, o amigo de alguém.
Cada um de nós tem um propósito. E para cada um de nós esse propósito
é diferente, é distinto, é divino. Deus vive e ama-nos como somos e como
ainda vamos tornar-nos. Ele vai ajudar-nos a cumprir a medida de nossa
criação.
Capítulo 2

A UM SUSSURRO DO CÉU

Certamente, a oração da fé é sempre ouvida. Ela é eficaz e é


atendida, mesmo quando não entendemos como. Isso acontece
principalmente quando oramos por outras pessoas e mais ainda quando
oramos por nossa própria família e nossos filhos. Nossas orações
precisam ser mais fervorosas e sinceras, como as orações de nossas
mães do passado.

Gostaria de combinar e ficcionalizar nas próximas linhas duas


experiências que me contaram recentemente.
Atordoada pelo som estridente do despertador, Jenny saiu de seu estado
inconsciente e a contragosto levantou-se da cama. Vestiu-se apressadamente,
sem se preocupar com a aparência desleixada de sua camiseta enorme e seus
jeans surrados. Colocou seus tênis gastos, desceu as escadas e saiu de casa
em silêncio. Andando a passos largos, foi seguindo o contorno das árvores e
casas do bairro, a maioria delas ainda com as luzes apagadas.
“Eu sou louca”, ela disse para si mesma. “Todo mundo está dormindo,
por que estou aqui? Por que estou fazendo isso?” Logo em seguida, ela
lembrou-se da razão que a levava a passar por aquilo. “Sou mais do que
louca”, ela pensou. “Sou egoísta! Não deveria estar gastando tanto tempo
comigo mesma quando tenho tanto a fazer.”
Ela continuou a andar e seus pensamentos a fluir. “Ainda não perdi
nenhum quilo. Ah, e aquelas meias. Não agüento mais ouvir falar de meias. É
por isso que estou aqui! Por que as crianças precisam usar meias? Mas acho
que estou dormindo melhor à noite. É verdade, acho que correr ao menos me
ajuda a dormir melhor. Talvez porque ninguém use meias para dormir. Ah, e
a Associação de Pais e Mestres. Para que essa APM? Acho que temos outra
reunião para assistir. Preciso ir. Alguém tem de ir, não é? Que bom que as
crianças não precisam participar. Se tivessem de ir, seriam necessários mais
cinco pares de meias. Não posso ir à reunião da APM hoje à noite e ajudar os
meninos com a lição de casa ao mesmo tempo. Que ironia. Já estou até vendo
a manchete: ‘A APM Ajuda Famílias Reprovadas. Jenny Johnson, Membro
Ativo da APM, Encabeça a Lista’.
Já gastamos dinheiro demais este mês. Estamos gastando uma fortuna
todo mês. E a Carolyn disse que um dia desses roubaram as compras dela,
que custaram dez dólares, do porta-luvas de seu carro.
Espero que o novo governo melhore a economia. Mas pensando bem,
até que não seria uma má idéia ter de viver usando nosso armazenamento
doméstico de um ano. Acho que ia durar um mês e a perda de peso seria
garantida. Será que a Cheryl Tiegs come produtos derivados do trigo? Ah
não! Esqueci que não temos uma reserva de meias na despensa.
Talvez eu devesse pedir para ser desobrigada da Sociedade de Socorro.
Mas não posso. Gosto da sociedade e preciso do socorro. Espero que não me
peçam para ser líder de economia doméstica. Eu nunca conseguiria inventar
coisas do tipo daquela dança samoana que a irmã Diana trouxe aquela vez,
enquanto esperávamos o prato típico polinésio ficar pronto. Acho que aquelas
irmãs têm muito tempo para preparar. Será que os filhos delas não usam
meias?
Qual será a marca do sabão em pó que a mãe do Brad usa? Já estou
cansada de ver aquele menino aparecer lá em casa como se tivesse acabado
de sair de um comercial de amaciante de roupas. Às vezes me dá vontade de
jogar gelatina de uva na máquina de lavar deles. Eles devem ter dado
sugestões de marcas de produtos naquela reunião da APM que faltei por
causa do pneu furado. Foi na mesma noite em que meu filho de quatorze anos
perguntou se eu tinha feito as unhas na idade da pedra lascada. Eu só sorri e
tomei um de seus pares de meias.”
Logo ela já estava de novo em casa. Trinta minutos de caminhada,
quatro quilômetros, tudo em total silêncio. A calma foi interrompida pelo
barulho de um despertador vindo do andar de cima e o som abafado de um
grande tumulto. Alguns minutos depois, outro despertador tocou e ouviram-
se passinhos apressados.
“Mãe, a senhora não lavou roupa ontem? Não tenho mais cuecas
limpas”, disse Dave. Cuecas? Ela achava que a pressão maior era por meias.
No mesmo instante, Jamie gritou: “Mãe, onde estão minhas meias?” Por
alguma razão, aquela pergunta trazia um certo alívio. Era uma espécie de
confirmação de que suas técnicas de administração do lar estavam afiadas.
“Mãe, quem pegou meu suéter azul?” perguntou Sue.
“Mãe, não estou achando meus sapatos”, gritou Steve de dentro do
quarto.
“Benzinho, pode levar-me para o trabalho para não ficarmos com dois
carros durante o jogo do Dave? Do trabalho para lá pego carona com o Ted.”
“Ah não! Essa coisa de trigo no desjejum de novo, mãe? Aposto que a
Cheryl Tiegs não come isso.”
“Que história é essa de meias-calças fervidas, cozidas ou assadas como
único cardápio alternativo? Mãe, a senhora está ficando meio caduca. Acho
que seria bom parar com essas corridas de madrugada.”
Com as pressões cada vez maiores que enfrentamos todos os dias, é
muito difícil não nos sentirmos sobrecarregados. Ouvimos falar de conflitos
no Irã, na China e na Rússia, preços altos, hostilidades e problemas de
energia. E vemos também as dificuldades por que passam as famílias.
Ficamos a perguntar-nos: “Será que vamos conseguir? Vamos conseguir criar
a família em retidão neste mundo cada vez mais difícil?” Procuramos
respostas por toda parte: em livros de psicologia, cursos de desenvolvimento
infantil e até mesmo com Erma Bombeck. Corremos para levar nossos filhos
para os mais variados lugares. Queremos que tirem sempre notas máximas e
tenham dentes perfeitos. Entramos em pânico achando que estamos fazendo
demais por eles e em seguida ficamos com dor na consciência, temendo não
estarmos fazendo o suficiente. Às vezes até ficamos em dúvida na escolha de
prioridades entre deveres familiares e chamados da Igreja, quando ambas as
coisas merecem nossa lealdade e devoção.
Ficamos ainda mais ansiosos quando vemos nossos bebês virarem
adolescentes. Às vezes é difícil vê-los tornarem-se rapazes e moças
independentes, modificando os relacionamentos que nos deixavam tão
seguros quando estavam no berço. E muitos de nossos vizinhos passam por
essas lutas sozinhos, em lares em que há apenas um dos pais presente. E o
problema não se resume apenas a essa lista de desafios, mas inclui o fato de
termos de enfrentá-los junto com o cabelo embranquecendo, o ventre
crescendo e a energia diminuindo. De vez em quando, nós pais também
temos vontade de fugir de casa, mas não conseguimos achar as chaves do
carro.
Deixando o humor de lado, temos consciência da seriedade de nossa
tarefa. Afinal, somos a geração criada com base na admoestação: “Nenhum
sucesso na vida compensa o fracasso no lar”. O peso dessa declaração parece
às vezes maior do que podemos suportar. Mas já percebi que tudo de grande
importância é trabalhoso e difícil. Talvez o Senhor tenha feito isso dessa
maneira para que realmente estimássemos e valorizássemos os tesouros de
maior valor. Como o negociante da parábola, também precisamos estar
dispostos a vender tudo que temos em troca dessas pérolas de grande valor.
Nossa família, nosso testemunho e nossa lealdade ao Senhor são as mais
preciosas dessas pérolas. Acho que vocês concordariam que essas coisas
valem certa agonia e ansiedade. Se tudo fosse fácil, no final acabaríamos
desencaminhando-nos e ficando despreparados para a eternidade.
Creio também que junto com a tarefa, recebemos o talento. Como Néfi,
sei que o Senhor não vai pedir que façamos algo tão grandioso sem antes
preparar um caminho pelo qual possamos cumprir Sua ordem. Os filhos
também são Dele, e nunca devemos esquecer-nos disso, na alegria ou na
tristeza. Contamos com um auxílio paterno a mais do outro lado do véu.
Podemos dizer com os anjos: “Haveria coisa alguma difícil ao Senhor?”
(Gênesis 18:14) No decorrer dos anos, sempre recebo muito consolo ao ler
essa passagem. É uma escritura voltada para a família e constitui a base de
tudo o que chamamos de semente de Abraão, Isaque e Jacó.
No início de nossa vida de casados, parecia que eu, assim como Sara,
era estéril. Meu médico disse que havia uma chance razoável de que não
teríamos filhos. Mas em meu coração eu sabia que não seria assim e lembrei-
me de Sara. Haveria coisa alguma difícil ao Senhor? Não, e o nome deles é
Matthew, Mary Alice e David. Seria difícil demais concebê-los, trazê-los ao
mundo, cuidar deles, consolá-los, ensiná-los, vesti-los, esperar acordados por
sua chegada, ser pacientes com eles, chorar por eles e amá-los? Não, não se
lembrarmos que além de nossos, eles também são filhos de Deus. Não ao nos
lembrarmos do instinto materno, que é, creio eu, a mais forte afeição natural
do mundo. O Presidente David O. McKay disse certa vez que a coisa mais
próxima do amor de Cristo pela humanidade é o amor de uma mãe por seu
filho. Tudo que venho sentindo desde 7 de junho de 1966 mostra-me que ele
tinha razão.
Quando vierem os problemas, e eles virão; quando chegarem os
desafios, e eles chegarão; quando o mal abundar e temermos pela vida de
nossos filhos, poderemos recordar o convênio e a promessa dados a Abraão e
pensar principalmente em Sara. E juntamente com os anjos, poderemos
repetir a pergunta: “Haveria coisa alguma difícil ao Senhor?”
Se acharem que as circunstâncias em que vivem não são ideais, não
desanimem. Estou começando a achar que as circunstâncias nunca são ideais.
Vou usar minha própria vida como exemplo.
Devido a várias designações profissionais e educacionais que
recebemos, mudamos cerca de quinze vezes no decorrer de nosso casamento.
Quando começaram a vir os filhos, essas mudanças começaram a trazer-me
cada vez mais inquietações. Ficava apreensiva, pensando na forma em que as
crianças se adaptariam e fariam novas amizades. Em meio a nossa vida
agitada, a segurança emocional delas era um motivo de grande preocupação
para mim.
Na época da pós-graduação, tínhamos dois filhos pequenos e o
alojamento estudantil em que vivíamos ficava bem no limite de uma
comunidade negra em New Haven, Connecticut. Quase todos os outros
estudantes que residiam naquela área matriculavam seus filhos em escolas
particulares ou transpunham os limites do distrito. Como não tínhamos
dinheiro para pagar um colégio particular e achamos desonesto ultrapassar os
limites estabelecidos, Matt era literalmente o único menino branco de sua
turma no jardim-de-infância e um dos dois únicos alunos brancos da escola
inteira.
Ainda me lembro das lágrimas e do medo. Matt era meu primogênito, o
tesouro de minha vida. Esse era o menino em quem aplicara todos os
conhecimentos de meus cursos de desenvolvimento infantil. Essa era a
criança a quem eu ensinara a ler antes dos três anos de idade. Essa era a
criança que certamente seria uma das figuras legendárias da civilização
ocidental. Como poderiam sua iniciação aos estudos e seus primeiros passos
longe do calor e da proteção do ninho ser tão assustadores, de tão difícil
adaptação? Mas lembrei-me naquele momento, e lembro-me agora, de algo
que disse George Bernard Shaw: “As pessoas estão sempre culpando suas
circunstâncias pelo que são. Não acredito em circunstâncias. As pessoas que
têm sucesso neste mundo são as que se levantam e perseguem as
circunstâncias que desejam, e, caso não as encontrem, as criam.” (Mrs.
Warren’s Profession, ato 2)
Apegando-me à esperança de que talvez essa fosse uma daquelas
oportunidades de crescimento e lutando para controlar meus temores,
envolvi-me na Associação de Pais e Mestres da escola. Também me dispus a
oferecer treinamento musical voluntário na escola uma vez por semana. Bem,
parece que já faz tanto tempo. Muitas coisas aconteceram naquela época e
partir de então, mas basta dizer que toda a nossa família pôde desfrutar um
mundo racial e cultural mais amplo. E nem é preciso dizer que Matt, de todos
os nossos filhos, tornou-se o mais sensível a culturas e raças diferentes.
Mais um exemplo do mesmo período. Estávamos levando uma vida
muito atarefada naqueles anos. Estávamos em uma área em que a Igreja era
ainda pequena, o que exigia que nosso serviço na ala fosse maior que o
normal. Fui chamada para servir como presidente da Sociedade de Socorro,
regente da Escola Dominical e consultora das Lauréis. Eu também me
preocupava sempre que esses encargos poderiam estar afastando-me dos
cuidados intensivos que deveria ter com minha filhinha de poucos meses de
vida. Por vários anos a partir de então, fiquei achando que cada cólica ou
inflamação de garganta dela tinha-se originado naquele período. Minha culpa,
real ou imaginária, era imensa.
Com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, posso ver agora que
devido às minhas preocupações, provavelmente trabalhei em dobro para
compensar todas as perdas. Essa filha hoje é uma bela moça com grande
autoconfiança. Ela acredita muito nela mesma e também em mim. Nosso
relacionamento de mãe e filha é um dos mais gratificantes que conheço.
Quando nos mudamos para Provo, Utah, iniciamos outra época muito
agitada de nossa vida. A esposa do reitor de uma universidade tem funções a
desempenhar em tempo integral e ainda algumas horas extras a cumprir. E
como nossa casa estava situada dentro do campus, meus filhos não tinham
amigos que moravam na casa ao lado. E sempre havia estudantes apontando
para eles — ainda que de forma simpática, desnecessariamente — lembrando
a eles que eram “os filhos do reitor”. Foi uma época difícil sob vários
aspectos, mas que trouxe em seu bojo bênçãos e oportunidades especiais.
Propusemo-nos a tornar essa experiência enriquecedora e gratificante e acho
que conseguimos.
Assim, creio que George Bernard Shaw tinha razão. Não podemos
limitar-nos a aceitar as circunstâncias tal como se apresentam a nós, devemos
moldá-las e utilizá-las para nossos melhores propósitos. As circunstâncias
raramente são ideais, mas nossos ideais podem prevalecer, principalmente
quando afetam nosso lar e nossos filhos.
Acerca da atmosfera que reinou em seu lar na época de sua infância, o
Presidente Spencer W. Kimball escreveu: “O próprio diário de minha
maravilhosa mãe registra uma vida inteira de gratidão pela oportunidade de
servir; seu único pesar era não poder servir ainda mais. Sorri ao ler
recentemente algo que ela escreveu no dia 16 de janeiro de 1900. Ela estava
servindo como primeira conselheira na presidência da Sociedade de Socorro
em Thatcher, Arizona, e a presidência foi até a casa de uma irmã que por
estar cuidando de seu bebê doente estava impedida de fazer suas costuras.
Minha mãe levou sua própria máquina de costura, um pequeno lanche, seu
bebê e uma cadeira, e elas começaram a trabalhar. Naquela noite, ela
escreveu que elas haviam feito ‘quatro aventais, quatro calças e haviam
começado ainda uma camisa para um dos meninos’. Elas tiveram de parar às
quatro horas da tarde para ir a um funeral, por isso ‘só’ tinham conseguido
fazer aquilo. Fiquei impressionado com aquela proeza, em vez de achar que
não fora tanto assim”. O Presidente Kimball disse ainda: “Esse é o tipo de lar
em que nasci, liderado por uma mulher que respirava serviço em todos os
seus atos”. (Woman [Salt Lake City: Deseret Book, 1979], pp. 1–2)
Sabiam que a mãe do Presidente Kimball morreu quando ele tinha
apenas 11 anos de idade, na época em que seu pai presidia uma estaca que se
estendia de St. Johns, Arizona, até El Paso, Texas?
Sabiam que o Presidente McKay tinha apenas oito anos quando se
tornou o homem da casa? Seu pai fora chamado para servir missão na Grã-
Bretanha, duas irmãs mais velhas haviam morrido recentemente e sua mãe
estava esperando outro bebê. O pai do jovem David sentiu que simplesmente
não poderia partir naquelas circunstâncias, mas sua esposa disse
inequivocamente que ele deveria ir. Ela disse: “O pequeno David e eu vamos
cuidar muito bem da casa”.
Sabiam que o pai do Presidente Heber J. Grant morreu quando ele tinha
apenas oito dias de vida? O bispo de Heber achava que ele nunca seria grande
coisa por passar tempo demais jogando beisebol. Mas sua mãe sabia o que só
as mães sabem e moldou o futuro de um jovem profeta.
Sabiam que o Presidente Joseph Fielding Smith nasceu enquanto seu
pai, Joseph F. Smith, servia como membro do Quórum dos Doze? E que
Joseph Fielding tinha apenas quatro anos quando seu pai se tornou membro
da Primeira Presidência?
Sabiam que o Presidente Joseph F. Smith nasceu na época daquelas
terríveis perseguições contra os santos dos últimos dias no Missouri? E que
quando ele tinha apenas cinco anos, viu seu pai, Hyrum Smith, e seu tio,
Joseph Smith, quando os corpos estavam expostos para visitação pública em
caixões na Mansion House, em Nauvoo, depois de serem brutalmente
assassinados por uma turba na cadeia de Carthage. Vocês devem estar
lembrados das enormes provações por que passaram o jovem Joseph e sua
mãe em sua marcha para o oeste. O que talvez não recordem é que pouco
depois de sua chegada a Utah, Mary Fielding Smith morreu, deixando Joseph
órfão. Mas ela já fizera o que ninguém mais poderia ter feito. Posteriormente,
seu filho escreveria a respeito dela: “Ó meu Deus, como estimo e amo a
verdadeira maternidade! Nada além do reino celestial pode superar meu amor
infinito pela alma doce, nobre e fiel que me deu a vida, (…) minha própria
mãe! Como ela era bondosa! Como ela era pura! Ela era de fato santificada!
Uma filha de linhagem divina. A ela devo minha própria existência, assim
como meu sucesso na vida”. (Don Cecil Corbett, Mary Fielding Smith,
Daughter of Britain [Salt Lake City: Deseret Book, 1966], p. 268)
Sabiam que Brigham Young passou seus primeiros anos de vida
ajudando seu pai a abrir clareiras em áreas de floresta e a cultivar a terra? Ele
trabalhava com madeira e juntas de bois no verão e no inverno, mal vestido e
com tão pouca comida que às vezes lhe “doía o estômago”. Quanto tinha
quatorze anos, sua mãe morreu, deixando as numerosas responsabilidades
domésticas para o pai e os filhos.
Quando nos sentirmos tentados a reclamar, quando pedirmos mais
recursos, mais tempo, mais psicologia, mais energia, ou mesmo quando
desejarmos não ter de fazer as coisas sozinhos, façamos uma pausa e
perguntemos mais uma vez: “Haveria coisa alguma coisa difícil ao Senhor?”
Se uma filha perder alguns minutos da aula de balé, talvez o sol ainda vá
nascer amanhã.
Se Mary Fielding Smith pudesse ouvir nossas queixas atuais enquanto
cuidava de seu boi ferido e o levantava da morte, ela talvez risse um pouco de
nossa preocupação com miudezas como o preço da gasolina. Se achamos que
em nosso lar falta algo que estava presente no de nossos profetas, talvez
sejam mais aflições, e não menos. Será que nossas respostas também não
devem ser encontradas enquanto estamos de joelhos, assim como aconteceu
com nossos profetas, que esperaram pacientemente no Senhor?
Não vivemos no mesmo mundo e com os mesmos desafios que nossas
avós e bisavós enfrentaram. À medida que o mundo muda, nossas
dificuldades parecem tornar-se mais novas e complexas, se não
necessariamente mais desoladoras. Contudo, estou convencida de que
falharemos em nossas responsabilidades — assim como elas teriam falhado
nas delas — se não exercermos o mesmo tipo de fé que elas. Uma caminhada
pela manhã pode ajudar-nos a enfrentar uma crise no lar, mas os
mandamentos cristãos são necessários para a verdadeira salvação, tanto
emocional como eterna. Nossas orações precisam ser mais fervorosas e
sinceras, como as de nossas mães do passado, se quisermos obter a salvação
que buscamos.
Talvez vocês estejam pensando: “Mas eu estou orando agora. Estou de
joelhos, com todo o fervor, mas mesmo assim as respostas não vêm”. Tudo o
que posso dizer é que o conselho do Senhor parece ser que peçamos com
mais freqüência, por mais fervorosas que sejam nossas orações no momento.
Nossas mãos já estão machucadas, como dizia o Presidente Kimball, de tanto
bater na porta do céu? Nós “esforçamo-nos em espírito”, na acepção literal da
palavra esforço? As mulheres talvez saibam mais a respeito disso do que os
homens, pois é delas o esforço de dar à luz os filhos. Mas será que agora nos
esforçamos em espírito para livrá-los do mal com a mesma intensidade que o
fizemos para trazê-los ao mundo? Seria justo fazer essa pergunta? Mas seria
justo não perguntar?
“Alma, no entanto, esforçou-se muito em espírito, suplicando a Deus,
em fervorosa oração, que derramasse o seu Espírito sobre o povo.” (Alma
8:10) Precisamos fazer pelo menos o mesmo para convidar o Espírito a nosso
lar e à vida de nossos filhos. De fato, Alma é um excelente exemplo de um
filho que não só foi trazido ao arrependimento de seus pecados anteriores,
mas que também foi chamado para tornar-se um dos maiores profetas dos
nefitas. Tudo isso como resultado da fé e das orações de um pai justo.
Quando um anjo apareceu a Alma, o filho, e aos filhos de Mosias, ele
disse: “O Senhor ouviu as orações de seu povo e também as orações de seu
servo Alma, que é teu pai; porque ele tem orado com muita fé a teu respeito;
(…) portanto vim com o propósito de convencer-te do poder e autoridade de
Deus, para que as orações de seus servos possam ser respondidas de acordo
com sua fé”. (Mosias 27:14)
Creio, de todo coração, que a oração da fé é ouvida, é eficaz, é atendida.
Creio que isso seja verdade especialmente quando oramos por outras pessoas
e mais ainda quando oramos por nossa própria família e nossos filhos.
O estudo dedicado das escrituras parece ser outro hábito citado com
freqüência, se bem que muitas vezes desprezado. Pessoalmente, algo que o
Presidente Kimball disse sobre sua amada esposa Camilla conforta-me
muito.”Penso no espírito de revelação que minha querida esposa convida a
nosso lar por causa das horas que tem passado, durante todos os nossos anos
de casados, estudando as escrituras, para poder estar preparada para ensinar
os princípios do evangelho”. (Woman, p. 1)
Para onde devemos voltar-nos quando ouvimos tantas vozes
contraditórias que tentam definir nosso papel como mães no mundo de hoje?
Estamos estudando as verdades iluminadas do passado, as palavras pelas
quais os profetas deram a vida e anjos desceram à Terra? Poderemos ignorá-
las impunemente como o vasto depositário das mais claras instruções de Deus
e ainda queixar-nos de termos sido deixados sozinhos em um mundo
complicado e cruel? Devemos estudar as escrituras como a antiga Israel, dia e
noite. Dessa forma, nossos problemas e dúvidas receberão o auxílio, como
observou o Presidente Kimball, do “espírito de revelação”.
E assim, com princípios simples, tradicionais, testados e comprovados,
tais como a oração fervorosa, o estudo sério das escrituras, o jejum sincero, o
serviço altruísta e a paciência nas aflições, as bênçãos do céu se derramarão
sobre nós, incluindo as manifestações pessoais do próprio Filho de Deus.
O Presidente Harold B. Lee prometeu: “Se vivermos dignamente, o
Senhor nos guiará — aparecendo-nos pessoalmente, revelando-nos Sua
própria voz, tocando-nos a mente ou trazendo-nos impressões à alma e ao
coração”. (Stand Ye in Holy Places [Salt Lake City: Deseret Book, 1974], p.
144)
O Presidente David O. McKay disse: “Os corações puros em um lar
puro estão sempre a apenas um sussurro do céu”. (Dean Zimmerman, comp.,
Sentence Sermons [Salt Lake City: Deseret Book, 1978], p. 91)
Fui criada em um lar puro, por pessoas de coração puro, e para mim isso
fez toda a diferença. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais
moravam em uma barraca enquanto meu pai procurava emprego durante a
Segunda Guerra Mundial. Pouco depois de minha concepção, minha mãe
ficou doente e sofreu ameaça de aborto. O médico, cujo consultório ficava a
100 quilômetros de distância, disse a ela que, caso não quisesse perder a
criança, deveria ficar de cama os nove meses da gestação. Ela fala, sem
reclamar, das dificuldades que teve ao tentar manter entretidos dois agitados
meninos pequenos em uma barraca, extremamente quente no verão e fria no
inverno, enquanto ficava deitada na cama. Todos os amigos e vizinhos
incentivavam-na a levantar-se e perder o bebê naturalmente — já que talvez
ele viesse a nascer deformado de qualquer jeito. Mas minha mãe, que muito
me ensinou muito sobre oração, sacrifício pessoal, paciência e profunda fé,
perseverou.
Agradeço a minha mãe por sua devoção e reverência à vida. Boa parte
do que sinto a respeito da maternidade e família eu herdei dessa mulher
santificada. Recorrendo ao clichê, mas falando do fundo do coração, devo
minha vida a ela. Ela vive a apenas um sussurro dos céu.
Sim, há respostas para nossas ansiedades. Algumas delas podem vir de
forma dolorosa e outras, extremamente devagar. Mas creio de todo coração
que elas virão se acreditarmos no Senhor Jesus Cristo e O seguirmos.
Capítulo 3

TUDO A VER COM O CORAÇÃO

Todo filho tem de praticar em sua mãe, e de uma forma ainda mais
importante, toda mãe tem de praticar em seu filho. Essa é a maneira que
Deus criou para pais e filhos se prepararem para a salvação. Mas algo
que pode ajudar-nos é lembrarmos que esses filhos, além de nossos, são
também de Deus, e que quando precisarmos de ajuda, poderemos
buscá-la além do véu.

Quando perguntaram a uma menina de quatro anos por que seu


irmãozinho de colo estava chorando, ela olhou para o bebê, pensou por
alguns instantes e disse: “Ah, se você não tivesse cabelo nem dentes e se suas
pernas fossem bambas, você também choraria”.
Todos chegamos ao mundo chorando — e um pouco bambos. Pegar um
recém-nascido, apenas um amontoado de potencialidades, e amá-lo, nutri-lo e
guiá-lo até que aflore um ser humano plenamente amadurecido é o maior
milagre da ciência e a maior de todas as artes.
Quando o Senhor criou os pais, Ele fez algo incrivelmente parecido com
Ele. Nós que já geramos filhos sabemos que esse é o maior dos chamados, a
mais sagrada responsabilidade; por isso, a menor falha que cometemos pode
causar-nos o mais cruciante desespero.
Mesmo com as melhores intenções e os mais sinceros esforços, alguns
de nós achamos que às vezes nossos filhos não estão tornando-se o que
gostaríamos. Às vezes, temos dificuldade para comunicar-nos com eles. Pode
ser que estejam tendo dificuldades na escola, problemas emocionais, que
estejam em franca rebelião ou que sejam extremamente tímidos. Há várias
razões que podem levá-los a ficar um pouco bambos.
E parece que mesmo quando nossos filhos não estão enfrentando
problemas dessa natureza, um desassossego constante faz com que fiquemos
a perguntar-nos o que podemos fazer para evitar que eles enveredem por tais
caminhos dolorosos. Em certos momentos, perguntamo-nos: “Será que estou
cumprindo bem meu papel? Será que eles vão chegar lá? Devo bater neles ou
ter uma boa conversa? Devo controlá-los ou simplesmente ignorá-los?” A
realidade tem uma forma de fazer com que mesmo os melhores de nós se
sintam inseguros no papel de pais.
Recentemente, li o seguinte trecho de meu diário, que escrevi quando
era uma jovem e preocupada mãe:
“Oro continuamente para nunca fazer algo que venha a ferir meus filhos
emocionalmente. Se um dia eu chegar a magoá-los de qualquer forma, oro
para que entendam que o fiz involuntariamente. Muitas vezes choro por
dentro por causa de coisas que possa ter dito ou feito impensadamente e oro
para não repetir tais transgressões. Oro para que eu não tenha feito algo que
venha a comprometer o sonho que tenho para o futuro deles, o que quero que
essas crianças se tornem um dia. Como anseio por ajuda e orientação —
principalmente quando sinto que estou em falta com eles.”
Ao reler isso depois de todos esses anos, sinto que meus filhos estão
saindo-se surpreendentemente bem, a despeito da mãe tão incompetente que
tiveram. Relato-lhes isso porque quero mostrar-lhes que, acima de tudo, estou
na mesma situação em que vocês: de mãe, que carrega um fardo de culpa por
falhas do passado, tem uma confiança vacilante no presente e um enorme
receio de fracassar no futuro. Acima de tudo, espero que cada pai e mãe
tenham esperança.
Uma vez que quase nenhum de nós é um profissional da área de
desenvolvimento infantil, imaginam como me senti motivada ao ouvir o
seguinte de alguém que é. Um professor da Universidade Brigham Young
disse-me certa vez: “Pat, ser pai quase nada tem a ver com treinamento. Tem
tudo a ver com o coração”. Quando pedi mais explicações, ele disse: “Muitas
vezes, os pais acham que a razão pela qual não conseguem comunicar-se com
os filhos é a falta de técnica. A comunicação não é tanto uma questão de
técnica, mas de atitude. Quando nossa atitude é de mansidão e humildade,
amor e interesse pelo bem-estar de nossos filhos, as portas da comunicação se
abrem. Os filhos reconhecem que estamos fazendo um esforço. Por outro
lado, quando estamos impacientes, hostis ou ressentidos, não importa que
palavras escolhamos ou como tentemos camuflar nossos sentimentos. Essa
atitude será percebida pelo sensível coração deles”.
Jacó, no Livro de Mórmon, disse que devemos todos humilhar-nos
profundamente e considerar-nos insensatos diante de Deus se quisermos que
Ele nos abra a porta dos céus. (Ver 2 Néfi 9:42.)
Essa humildade, incluindo a capacidade de admitir nossos erros, parece
ser fundamental tanto para receber auxílio divino como para conquistar o
respeito de nossos filhos.
Minha filha é uma jovem com grande talento musical. Por muitos anos,
achei que ela não desenvolveria esse dom se eu não ficasse constantemente
em seu encalço, supervisionando seu estudo de piano como um general. Certo
dia, no início da adolescência dela, percebi que minha atitude, talvez útil no
passado, naquele momento estava visivelmente prejudicando nosso
relacionamento. Terrivelmente dividida pelo medo de não vê-la desenvolver
um dom dado por Deus e a realidade de um relacionamento cada vez mais
desgastado, fiz o que vira minha própria mãe fazer quando se deparava com
um grande desafio. Isolei-me em meu local de refúgio, ajoelhei-me e abri o
coração ao Senhor em oração, buscando a única sabedoria que poderia
ajudar-me a manter aberto aquele canal de comunicação — o tipo de
sabedoria e auxílio que vem da língua dos anjos. Ao levantar-me, sabia como
deveria agir.
Já que faltavam apenas três dias para o Natal, dei de presente a Mary um
avental do qual facilmente se percebia que eu cortara as tiras. Num pequeno
bolso do avental, pus um pequeno bilhete que dizia: “Querida Mary, desculpe
o conflito que criei ao agir como um general ao piano. Devo ter feito papel de
boba — só você, eu e minha pistola. Perdoe-me. Você está tornando-se uma
jovem bela e independente. Eu só temia que você não se sentisse
autoconfiante e plenamente realizada como mulher se deixasse seu talento
inacabado. Amo você. Sua mãe”.
Naquele mesmo dia, ela procurou-me reservadamente e disse-me: “Mãe,
sei que a senhora quer o melhor para mim, eu sempre soube disso. Mas se for
para eu tocar bem um dia, sou eu que vou ter de estudar, e não a senhora”.
Em seguida, ela abraçou-me e, com lágrimas nos olhos, disse: “Faz tempo
que procuro uma maneira de lhe mostrar isso, mas de alguma forma a
senhora descobriu por si mesma”.
E agora, por decisão própria, ela entrou em uma fase de aperfeiçoamento
musical ainda mais disciplinado. E estou sempre por perto para incentivá-la.
Alguns anos depois, ao relembrar com Mary esses momentos, ela
confidenciou-me que minha disposição de pedir-lhe perdão fez com que ela
percebesse que tinha um grande valor, pois era digna de um pedido de
desculpas materno, e que às vezes os filhos podiam estar com a razão. Será
que podemos receber revelação pessoal sem nos considerarmos insensatos
diante de Deus? Será que para ajudar e ensinar nossos filhos não precisamos
tornar-nos mais semelhantes aos pequeninos? Será que não deveríamos
dividir com eles nossos temores e dores, assim como nossas mais elevadas
esperanças e alegrias, em vez de simplesmente tentar dar-lhes sermões,
dominá-los e reprová-los continuamente?
Quando Duffy, nosso filho mais novo, tinha onze anos e estava
esforçando-se para aprender a jogar na defesa no futebol americano, por três
dias seguidos ele pulou de um canto para outro da casa, jogando-se para cima
de mim, no melhor estilo dos grandes campeonatos da televisão. Na última
vez que ele fiz isso, quando tentei desviar-me, dei de cara com um abajur e
fui parar no chão, com o cotovelo direito alojado perto de minha sobrancelha.
Perdi a paciência e repreendi-o duramente por fazer de mim seu saco de
pancadas.
A reação dele derreteu-me o coração, quando, com lágrimas a escorrer
em ambas as faces, disse: “Mas mãe, a senhora é a melhor amiga que um
menino poderia ter. Achei que fosse tão divertido para a senhora como é para
mim”. Em seguida, acrescentou: “Há muito tempo venho planejando o que
vou dizer na minha primeira entrevista como campeão mundial. Quando
perguntarem como consegui ser tão bom, vou dizer: ‘Pratiquei na minha
mãe!’”
Todo filho tem de praticar em sua mãe, e de uma forma ainda mais
importante, toda mãe tem de praticar em seu filho. Essa é a maneira que Deus
criou para pais e filhos se prepararem para a salvação. Mencionei
anteriormente que todos chegamos ao mundo chorando. Ao recordarmos que
um dos propósitos da vida é ensinar-nos humildade, talvez seja
compreensível que continuemos a derramar uma lágrima ou outra de vez em
quando. Mas algo que pode ajudar-nos é lembrar que esses filhos, além de
nossos, são também de Deus. E acima de tudo, devemos encher-nos de um
perfeito esplendor de esperança ao lembrarmos que quando precisarmos de
ajuda, poderemos buscá-la além do véu.
Testifico que Deus nunca desistirá de nós nessa nossa experiência
terrena de propósitos celestiais, e que jamais devemos desistir de nossos
filhos, ou de nós mesmos.
Capítulo 4

OS FRUTOS DA PAZ

O amor a Deus e ao próximo é a única porta que pode libertar-nos


da prisão de nós mesmas. A região da vida da mulher é uma região
espiritual. Deus, suas amigas, vizinhas, irmãs — este é o vasto mundo
no qual o espírito dela pode achar lugar para crescer.

O Senhor disse: “Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu
nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. (João 15:5)
Ele disse também, por intermédio de Paulo, “O fruto do Espírito é: amor,
gozo, paz”. (Gálatas 5:22) É sobre o fruto de nosso esforço que desejo falar
— o fruto do amor e do gozo, que por fim será o fruto da paz. É a colheita
que somente pode vir à maneira do Senhor. Suas raízes estão profundamente
fincadas no evangelho de Jesus Cristo.
Infelizmente, parece-me que as próprias mulheres são na maioria das
vezes suas piores inimigas, quando deveriam ser aliadas, apoiando e
fortalecendo umas às outras. Todas sabemos o quanto pode significar a
opinião de um homem a nosso respeito, mas creio que em geral, nosso valor
como mulheres reflete-se melhor nos olhos de outras mulheres. Quando as
outras mulheres nos respeitam, respeitamos a nós mesmas. É comum que só
depois de sermos consideradas agradáveis e dignas por outras mulheres que
assim nos consideremos. Se exercemos esse efeito umas sobre as outras, por
que não demonstramos mais generosidade e amor umas para as outras?
Já pensei muito a respeito disso. Finalmente cheguei à conclusão de que
parte dos problemas está no coração. Temos receio — receio de estender a
mão, receio de envolver-nos, receio de confiar e ser dignas de confiança,
principalmente em nossa interação com outras mulheres. Em suma, não
amamos o suficiente. Não exercemos plenamente o maior dom e poder que
Deus concedeu às mulheres.
O Dr. Gerald G. Jampolsky, psiquiatra da Universidade da Califórnia,
afirma que o amor é uma característica inata. Já está presente em todos. Mas
muitas vezes ele é obscurecido pelo medo que adquirimos ao longo de nossas
experiências na vida. Ele diz: “Quando sentimos amor por todos — não só as
pessoas de nossa escolha, mas todos com quem venhamos a deparar-nos —
sentimos paz. Quando temos medo de todos com quem entramos em contato,
queremos defender a nós mesmos e atacar os outros, e aí surgem os
conflitos”. (Love Is Letting Go of Fear [New York: Bantam Books, 1981], p.
2)
Obviamente, podemos fazer nossa escolha. Se o Dr. Jampolsky estiver
certo, poderemos escolher o amor e sentir paz, ou escolher o medo e viver
conflitos. “Para experimentarmos paz em vez de conflitos, é necessário que
mudemos nossa percepção. Em vez de ver as pessoas como se estivessem
prontas a atacar-nos, podemos vê-las como receosas. Afinal, estamos sempre
tendo sentimentos de amor ou medo. O medo é na verdade um pedido de
ajuda e, portanto, um pedido de amor. Assim, é evidente que para termos paz
só precisamos fazer nossa escolha, determinar a maneira com que vamos
olhar as coisas.”
Morôni fez a mesma observação. Ele declarou que conseguia sobrepujar
o medo porque estava cheio de caridade, que é o amor eterno. “Eis que falo
ousadamente, tendo autoridade de Deus; e não temo o que o homem possa
fazer; porque o perfeito amor lança fora todo o medo.” (Morôni 8:16)
Se o medo de outras mulheres ou dos homens nos causa conflitos e
nosso amor incondicional por eles nos traz a paz que tanto almejamos, não
deveríamos pois dedicar nossa vida inteira a oferecer amor a todos em todos
os lugares? Isso não faz com que queiram empregar toda a energia que
possuem na prática e busca do amor perfeito?
Mas só querer amar não faz necessariamente com que consigamos amar.
E as que mais se empenharem serão as que mais terão consciência de falhar
em suas tentativas. Incentivo-as a não desanimarem. Em certas ocasiões em
que orei para amar mais alguém, às vezes o que aconteceu foi justamente uma
grande divisão entre nós temporariamente, mas a partir da qual, com muito
trabalho, veio posteriormente um amor mais terno e profundo. Erich Fromm
escreveu: “Por não verem que o amor é uma atividade, uma faculdade da
alma, alguns crêem que o que precisam é achar o objeto certo — e tudo mais
virá como conseqüência. Essa atitude pode ser comparada com a de um
homem que deseja pintar, mas em vez de aprender a arte, afirma que precisa
apenas esperar pelo objeto certo, e então fará belas pinturas quando o
encontrar”. (Citado em Secrets to Share, sel. Lois Daniel [New York:
Hallmark, 1971], p. 59) O amor é como qualquer outro talento, arte, técnica
ou virtude. Exige prática, suor, conhecimento e muito tempo. A disposição
não traz consigo o domínio da arte, mas significa que estamos desejosos de
tentar.
Em minha juventude, eu acalentava o doce sonho de tornar-me uma
exímia pianista algum dia. Atingir tal meta exige exercícios diários, audições,
recitais, erros e acertos, tentativas e mais tentativas ao longo de anos a fio.
Podemos encarar a busca do amor duradouro da mesma forma — lembrando,
contudo, que o Senhor ensinou que a caridade é o maior de todos os talentos,
dons e virtudes. E, conforme Mórmon ensinou: “Se não tendes caridade, nada
sois”. (Morôni 7:46) Essa escritura contém uma observação clássica e crucial
a respeito do valor individual de todos nós. Para sermos alguém, precisamos
amar a todos.
Agora, voltando à “prática” do amor, eu gostaria de sugerir três
exercícios básicos que nos ajudarão a desenvolver esse dom.
O primeiro exercício é o perdão. O perdão é a chave para a paz nos
relacionamentos humanos. Se de alguma forma conseguirmos esquecer o
passado e ver todas as pessoas imaculadas, começaremos a ver a nós mesmos
imaculados. Recordem a observação do Dr. Jampolsky sobre o medo e amor.
Poderia ser útil em nossos esforços de perdoar às pessoas lembrar que suas
ofensas e ataques a nós foram motivados pelo medo e não por más intenções.
Certa vez trabalhei com uma mulher na presidência de uma organização
em uma das muitas alas por que já passamos. Ela muitas vezes tecia
comentários em tom de brincadeira que me depreciavam e diminuíam, mas
como ela não levava a sério o que dizia, achava que não estava magoando-
me. Contudo, isso acabou tornando-se uma fonte de grande dor e irritação
para mim. Ao tentar aplicar esse conceito de perdão, percebi que todas as
alfinetadas jocosas de que eu era vítima originavam-se de fraquezas que
aquela irmã tinha dentro de si mesma. Creio realmente que ela era uma
mulher amedrontada. Em sua vida particular, longe de meu campo de visão e
audição, ela estava tão envolvida em suas próprias mágoas que simplesmente
não era capaz de perceber as alheias. Por algum triste motivo, creio que ela
achava que tinha tão pouco a oferecer que qualquer elogio ou agrado que
fizesse a outra pessoa iria de alguma forma rebaixá-la.
O Presidente Spencer W. Kimball garantiu-nos que ao tentarmos
esquecer o mal feito a nós, começaremos a livrar-nos de tudo que for difícil
de perdoar em nós mesmos. Teremos uma sensação de paz e realização e nos
lembraremos de que o Senhor sofreu por nossos pecados para que
pudéssemos experimentar um sentimento de unidade com Ele, com nosso
próximo e, também, com nós mesmos. (Ver Faith Precedes the Miracle [Salt
Lake City: Deseret Book, 1972], pp. 190–196.)
O segundo exercício é a aceitação incondicional das pessoas. O que
queremos acima de tudo é a aprovação, o reconhecimento e o amor das outras
pessoas. Devemos dar a elas menos do que desejamos para nós mesmos?
Em certa ocasião, uma vizinha magoou-me profundamente. Sentindo
que naquele momento tinha o todo o direito de entregar-me à
autocomiseração, fechei-me em meu quarto e, com o coração em pedaços,
comecei a orar. Lembro-me em particular de ter pedido: “Querido Pai
Celestial, por favor, ajude-me a encontrar uma amiga em que possa confiar,
alguém que eu vá amar”. Ele realmente me abençoou — concedeu-me, por
um instante, uma percepção nítida que só poderia vir por intermédio do
Espírito. Ele ajudou-me a ver que eu estava orando por uma amiga perfeita,
quando ele generosamente já me havia cercado de amigas cujas fraquezas
eram semelhantes às minhas.
Um bom relacionamento não é o caracterizado pela perfeição e sim por
uma perspectiva saudável que nos leva a simplesmente minimizar as falhas
alheias.
Aqui apresento uma maneira específica de praticar esse exercício. Por
um dia, tomem nota de cada vez que fizerem uma crítica a alguém. Não é
preciso que seja um comentário oral (embora isso também deva ser levado
em consideração), mas é importante anotar cada vez que vocês fizerem um
julgamento, ainda que mental. Esses julgamentos podem ser dirigidos a vocês
mesmas, seus próprios filhos, seu marido, uma vizinha ou uma amiga. Então,
no dia seguinte, tentem passar o dia inteiro sem fazer críticas ou comentários
negativos sobre ninguém.
Esse pequeno exercício trará grandes surpresas. Meu marido ajuda-me
muito em meus esforços conscientes de nunca falar mal de ninguém. Trata-se
de uma virtude que busco sinceramente, pois considero-a parte fundamental
do verdadeiro cristianismo. Assim, quando me propus a fazer esse exercício,
fiquei assustada com a freqüência com que julgava as pessoas, ainda que
mentalmente. Fiquei ainda mais espantada ao perceber como me sentia tão
bem comigo mesma quando conseguia passar um dia inteiro mantendo essa
tendência sob controle. Lembrem-se de que tudo que emitirem mental ou
verbalmente voltará a vocês de acordo com o plano de compensação de Deus:
“Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida que
com que tiverdes medido vos hão de medir a vós”. (Mateus 7:2) Um
comentário crítico, mesquinho ou maldoso é simplesmente um ataque a nosso
próprio valor individual. Por outro lado, se nossa mente buscar
constantemente o lado bom das pessoas, isso também voltará a nós, e nos
sentiremos verdadeiramente bem com nós mesmos.
O terceiro exercício é a doação sem interesse de retorno. Ao dizer isso,
não estou propondo de forma alguma que sejamos mártires. Mas para
aceitarmos totalmente as pessoas, precisamos reconhecer o fato de que elas
não podem satisfazer a todos os nossos desejos. As pessoas só podem ser o
que são — pelo menos por ora. Elas só podem oferecer o que têm no
momento. Talvez elas não tenham tanto conhecimento ou prática do amor
como nós. Contudo, ao desejarmos que elas nos dêem algo que não podem
dar, sentimo-nos frustradas, zangadas, desanimadas, infelizes, rejeitadas ou
atacadas.
Durante muito tempo de minha vida, havia uma mulher que eu admirava
muito e cujo amor incondicional eu gostaria de conquistar. Tentei aproximar-
me dela de todas as formas que conhecia, mas nada parecia funcionar. Então,
um dia li que o primeiro princípio para uma boa saúde mental é aceitar o que
não pode ser mudado. Finalmente entendi que essa mulher amava o máximo
que sua capacidade permitia e, de repente, nosso relacionamento mudou
completamente. Ainda era mais formal e contido do que eu gostaria, mas era
um relacionamento. Se eu tivesse continuado exigindo mais do que ela
poderia oferecer, esse relacionamento certamente murcharia e morreria. De
certa forma, eu estava cultivando aquela planta em um vaso pequeno demais.
Então, transferi-a para um recipiente mais adequado a seu tamanho, dei-lhe
mais espaço para crescer e assim ela começou a vicejar. Percebi que esse
relacionamento merecia ser nutrido, ainda que unilateralmente, e agora me
contento em esperar até que esteja pronto para produzir frutos.
Quero que saibam que quando pratiquei esses exercícios de maneira
eficiente, eles produziram milagres.
Eu era muito tímida. Era muito penoso para mim mudar a cada dois anos
como exigia a carreira do meu marido. Cada mudança era marcada pelo
medo. Será que eu seria aceita? Será que iríamos viver em um local onde as
pessoas eram mais capacitadas do que eu? Em muitas de nossas primeiras
mudanças, morávamos em uma nova área apenas alguns meses (e eu ainda
estava lutando para criar uma nova identidade) antes de eu ser chamada como
presidente da Sociedade de Socorro da ala. Deus deve ter sorrido ao ver que
foram necessárias várias repetições dessa mesma experiência para que eu
percebesse que no preciso momento em que eu começava a praticar meu
amor pelas irmãs e as famílias daquelas alas, eu imediatamente perdia todo o
medo. Presto testemunho de que, se em vez de enxergarmos a vida pelas
lentes mesquinhas do que podemos receber, mudarmos nosso foco para doar
irrestritamente, esqueceremos o medo e o conflito e começaremos a conhecer
uma paz verdadeira e duradoura.
Esses são os meus três exercícios. Contudo, embora eu as incentive a
praticá-los, vocês devem estar cientes de que a vida real pode colocá-las em
situações inesperadas. As sugestões que ofereço para pequenos conflitos,
mágoas ou irritações podem não ser de muito ajuda se alguém tirou a vida de
um filho seu, roubou o afeto de seu marido ou intencionalmente lhe causou
mágoas de uma forma injusta ou outra.
Com relação a essas necessidades maiores, presto o seguinte
testemunho: há muito neste mundo que só pode ser realizado com a ajuda de
Deus. Se Ele pede que amemos, Ele nos dará forças para fazê-lo.
Talvez vocês já tenham lido o livro The Hiding Place, de Corrie Ten
Boom. Já nos foi pedido que passássemos pelas revoltantes injustiças que ela
descreve? Já experimentamos o pavor da guerra, dos campos de concentração
ou da morte de familiares ou amigos? A seguir está um trecho de seu livro,
no qual ela relata uma experiência já do fim da guerra. Ela já tinha sido
libertada da prisão e seu único desejo era ensinar a seu povo que a única
maneira de reconstruir a vida é por meio do amor. Então, ela depara-se com
um desafio inesperado e desconcertante:
“Foi em uma reunião religiosa em Munique que o vi, o antigo soldado
do exército de Hitler que servia de guarda na entrada do banheiro da prisão
de Ravensbruck. Ele era o primeiro dos nossos carcereiros que eu via desde
aquela época. E, de repente, era como se tudo estivesse voltando — todos
aqueles homens em atitude de zombaria, nossas roupas empilhadas, o rosto
de Betsie, pálido de medo.
Ele veio até mim quando a igreja começou a esvaziar-se, radiante e
reverente. ‘Como sou grato por sua mensagem, Fräulein’, disse ele. ‘Pensar
que, como você disse, Ele pagou por meus pecados!’
Então, ele estendeu a mão para apertar a minha. E eu, que tinha pregado
tanto ao povo de Bloemendaal sobre a necessidade de perdoar, não estendi a
mão.
Embora pensamentos inflamados e vingativos borbulhassem dentro de
mim, percebi que constituiria um pecado alimentá-los. Jesus Cristo morrera
por esse homem, e eu ainda queria pedir mais? Senhor, eu orei, perdoe-me e
ajude-me a perdoá-lo.
Tentei sorrir e esforcei-me para levantar a mão. Não conseguia. Não
sentia nada, nem a menor porção de afeto ou caridade. Então fiz outra oração
silenciosa. Senhor, não consigo perdoá-lo. Dá-me o Teu perdão.
Ao tocar a mão dele, algo incrível aconteceu. De meu ombro,
percorrendo o braço e a mão, uma corrente pareceu passar de mim para ele,
enquanto ardia em meu coração por esse desconhecido um amor que quase
me envolveu por completo.
Naquele dia, descobri que não é de nosso perdão e bondade que depende
a cura do mundo, mas do perdão e bondade de Deus. Quando Ele pede que
amemos nossos inimigos, Ele concede, junto com o mandamento, o próprio
amor.” (The Hiding Place [New York: Bantam Books, 1974], p. 238)
Morôni ensinou o mesmo princípio: “Portanto, meus amados irmãos,
rogai ao Pai, com toda a energia de vosso coração, que sejais cheios desse
amor que ele concedeu a todos os que são verdadeiros seguidores de seu
Filho, Jesus Cristo”. (Morôni 7:48)
Esse amor perfeito, do tipo que traz a verdadeira paz, é uma dádiva. É
um dom concedido por nosso Pai Celestial em resposta à oração da fé. Não
teremos nenhum poder ou capacidade maior do que nossa capacidade de
suplicar a ajuda de Deus.
Gostaria de concluir descrevendo uma relação de irmãs que talvez seja a
mais sagrada de todas as escrituras. Nunca antes ou depois duas mulheres —
amigas, vizinhas e do mesmo círculo familiar — foram incumbidas de
responsabilidades tão grandiosas. Suas raízes tinham de ser profundas, pois o
fruto de seus lombos traria paz ao mundo inteiro.
Sempre me chamou a atenção o fato de, em seu momento de maior
necessidade, confusão, assombro e temor, Maria ter procurado outra mulher.
Ela sabia que podia contar com Isabel. Algo que também sempre me
impressionou nesse episódio foi ver que a diferença de idade entre elas não
representava uma barreira; no amor de Deus não há conflito de gerações.
Maria era muito jovem — provavelmente no meio da adolescência — e
Isabel já passara da idade fértil havia muito tempo. As escrituras informam-
nos que ela já estava na velhice. (Lucas 1:7) Contudo, essas duas mulheres
encontraram-se e saudaram-se de uma forma que só as mulheres conhecem.
De fato, foi o próprio fato de serem mulheres que Deus usou para Seus santos
propósitos. E nos papéis especiais que elas estavam destinadas a
desempenhar, essas duas mulheres amadas — representando o velho e o
novo, tanto em âmbito pessoal como de dispensação — cantaram uma para a
outra, enquanto o bebê no ventre de uma saltava ao reconhecer a divindade
do outro.
Isabel não era medrosa, mesquinha, ou invejosa. Seu filho não teria a
fama, o papel ou a divindade que haviam sido preparados para o Filho de
Maria; mas seus únicos sentimentos eram de amor e devoção. Para essa
parente jovem e atônita, ela disse apenas: “Bendita és tu entre as mulheres, e
bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém isto a mim, que venha
visitar-me a mãe do meu Senhor?” (Lucas 1:42–43, grifo do autor) E para
Isabel, o cântico de Maria dizia: “A minha alma engrandece ao Senhor. (…)
Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações”. (Lucas 1:46, 51)
Esse diálogo entre essas mulheres diferentes, porém semelhantes,
parece-me conter a essência do amor, da paz e da pureza. Certamente, o
desafio para os nossos dias é sermos igualmente puras em nossa feminilidade.
Quando maculamos nosso rico potencial de amor com nossos temores e
mesquinhez, o desassossego substitui o bem-estar emocional e o desânimo
toma o lugar da paz.
Como mulheres, temos a escolha e o privilégio de ligar-nos a Deus
invocando Seu amor revigorador ao mais profundo de nosso ser. Tal paz e
poder podem ser estendidos às outras pessoas. Como Maria, cuja alegria e e
terrível fardo precisavam ser partilhados, cada uma de nós poderá encontrar
uma Isabel a quem poderemos voltar-nos, se cultivarmos tal relacionamento.
Como os ciclos das plantas e da natureza, o amor de uma mulher pode
ser um círculo eterno. Quando amamos o Senhor, amamos uns aos outros; e
quando amamos uns aos outros, amamos a nós mesmos. Então a colheita é de
fato o fruto da paz.
Fazendo apenas uma adaptação de pronomes, gostaria de terminar com o
seguinte pensamento de George MacDonald:
“Esse amor a [Deus e] ao próximo é a única porta que pode libertar-nos
da prisão de nós mesmas. Ter a si mesma, conhecer a si mesma, apreciar a si
mesma, a isso ela chama vida; contudo, se ela esquecer a si mesma, dez vezes
mais abundante será sua vida em Deus e em seu próximo. A região da vida da
mulher é uma região espiritual. Deus, seus amigos, vizinhos e irmãs são o
vasto mundo no qual o espírito dela pode achar seu lugar. Sua prisão é dentro
dela mesma.
[Ao dar de si para os outros] a mulher nunca perderá a consciência de
seu próprio bem-estar. Com muito mais profundidade e intensidade, Deus e o
próximo a devolverão a ela, em toda a sua pureza. Ela não mais padecerá para
ter tal consciência, pois saberá que a glória de seu próprio ser repousa junto a
Deus e suas irmãs.” (George MacDonald, Creation in Christ [Wheaton, Ill.:
Harold Shaw, 1976], p. 304)
Capítulo 5

A CONSOLAÇÃO COM QUE SOMOS


CONSOLADOS

Às vezes, quando sentimos a maior solidão e mágoa é precisamente


o momento em que achamos que Deus não está perto, quando cremos
ter sido completamente abandonados por Ele. Mas a disposição de dar
um salto de fé em direção a Seu abraço — quando finalmente
chegarmos a Sua presença — é o passo isolado mais importante que
poderemos dar na vida.

As coisas de maior valor para mim, as coisas de que eu mais gostaria de


ser um exemplo, são os aspectos mais calmos e menos visíveis da vida. Os
tipos de virtude que desejo defender, se puder, são pessoais, não
profissionais. Gostaria de ser reconhecida como esposa, mãe e amiga — uma
amiga próxima e atenciosa. Espero que essas metas modestas tornem
qualquer mulher exemplar. Aprendi esses valores com meus amados pais —
pais que, junto com minha querida sogra, meu marido e meus filhos —
estiveram a meu lado, dia e noite, apoiando-me, longe dos holofotes das
aparições e aplausos públicos. Eles sempre foram um belo exemplo de amor
genuíno e serviço desprendido.
Para falar de serviço, devo começar onde todas as coisas têm seu início:
em Deus. Muitos de nós queremos servir mas não o fazemos — ou sentimos
que não podemos — seja porque estamos imersos em nossos próprios
problemas ou porque nos falta a confiança para estender a mão. Todos nós
queremos ser mais caridosos, generosos e amorosos. Já ouvimos várias vezes
que o verdadeiro amor-próprio vem quando servimos e que para achar a vida
precisamos perdê-la. Contudo, muitas vezes algo bloqueia nossa capacidade e
nossos esforços.
É àqueles que desejam servir, mas sentem que lhes falta a coragem, a
força ou a capacidade, que desejo dirigir-me. Para tanto, preciso falar sobre
Deus.
Ao orar certa noite pedindo orientação para lidar com esse
desconcertante problema, fui conduzida diretamente às palavras de Paulo.
Numa passagem pouco conhecida e citada de II Coríntios, li: “Bendito seja o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de
toda a consolação; que nos consola em toda a nossa tribulação; para que
também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a
consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus”. (II Coríntios
1:3–4)
Não posso expressar o poder e a paz que senti quando li essa escritura.
Quanto significado e ensinamento condensado nessas poucas linhas!
Concentremo-nos inicialmente na primeira afirmação — que Deus é o Deus
de toda a consolação — e posteriormente trataremos da segunda metade do
versículo. Visto que todos nós precisamos de consolo em tantos momentos
diferentes todos os dias de nossa vida, é extremamente tranqüilizador saber
que nosso Deus, nosso Pai, “é o Deus de toda a consolação”. Essas palavras,
“de toda a consolação” para mim não significam apenas que não há fonte
maior de conforto e força, mas que não há outra fonte.
Depois de vários anos na Universidade Brigham Young, com tantas
oportunidades de discursar para centenas de estudantes, cheguei à conclusão
de que praticamente cada um de nós carrega fardos e temores que nos
consomem e oprimem tremendamente. Creio ser óbvio que os fardos
emocionais e as lutas espirituais que vejo as pessoas enfrentar são muito mais
incômodos e assustadores que quaisquer limitações físicas com que
venhamos a defrontar-nos na vida. De acordo um estudo sobre saúde mental
feito recentemente nos Estados Unidos, a velha e conhecida preocupação é
um dos poucos problemas emocionais que estão em alta, por razões ainda não
de todo claras para os médicos e especialistas em comportamento. A Dr.
Claire Weeks, ao tentar descobrir a causa dessa preocupação emocional e
espiritual, disse: “O problema básico é o medo. A culpa abre as portas para o
medo. A ansiedade, a preocupação, a apreensão, o conflito e mesmo o pesar
são meras variantes do medo em diferentes roupagens”. (Hope and Help for
Your Nerves [New York: Hawthorn Books, 1969], p. 21)
É em resposta a esses desafios modernos que Deus se apresenta a nós
como o “Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação”. Como é
tranqüilizador e recompensador saber que essa ajuda universal está a nosso
dispor em nossos momentos de aflição. Não é de se admirar que O chamemos
amorosamente de Pai.
Mas será que ao orar nós visualizamo-Lo realmente como um pai?
Pensamos Nele — realmente pensamos — como nosso Pai? Passamos algum
tempo de joelhos tentando visualizar o ser a quem oramos? Deixem-me
sugerir um processo que funciona para mim. Não estou recomendando um
ritual para ninguém, é apenas um incentivo.
Achem um lugar tranqüilo e ajoelhem-se confortável e calmamente no
centro do recinto. Por alguns instantes não digam nada, só pensem Nele.
Fiquem ajoelhados lá e sintam a proximidade de Sua presença, Seu calor, Sua
paz. Com humildade, expressem sua gratidão por todas as bênçãos, todas as
coisas boas que possuem. Confidenciem a Ele seus problemas e temores.
Falem com Ele sobre cada um deles e façam uma pausa o tempo suficiente
para receber Seus conselhos. Prometo que verão que os ombros Dele são
largos o suficiente para os seus fardos.
Contudo, colocar todos os nossos fardos nos ombros Dele não é algo
simples; exige um enorme salto de fé. Às vezes, quando sentimos a maior
solidão e mágoa é precisamente o momento em que achamos que Deus não
está perto, quando cremos ter sido completamente abandonados por Ele e por
todos. Mas a disposição de confiar que Ele nos consolará, principalmente nas
horas difíceis, será o passo isolado mais importante que poderemos dar na
vida. Quando entregamos nossos temores e frustrações a Ele, confiando que
Ele nos ajudará a sobrepujá-los, quando dessa forma livramos o coração, a
mente e a alma de toda ansiedade, descobrimos de forma miraculosa que Ele
ainda pode instilar dentro de nós uma perspectiva completamente nova. Ele
pode encher-nos “daquela alegria que é inexplicável e gloriosa”. (Helamã
5:44), mesmo em meio a nossa angústia. É-me significativo que essa
promessa de alegria inexplicável e gloriosa tenha sido feita a Néfi e Leí, os
filhos de Helamã, em um terrível momento de provação. Eles estavam na
prisão, enfrentando uma enorme oposição a seu trabalho. Contudo, foi lá, em
meio a tantos obstáculos, que “o Santo Espírito de Deus desceu do céu e
penetrou-lhes o coração; e encheram-se, como que de fogo”. Então, conforme
lemos, veio-lhes uma voz, dizendo: “Paz, paz seja convosco em virtude de
vossa fé”. (Helamã 5:45–47)
Tive na infância uma experiência que envolveu fogo, medo e fé.
Aprendi algo a respeito dos dons miraculosos e do poder de Deus na tenra
idade de nove anos. Tendo passado a maior parte de minha infância
competindo alegremente com dois irmãos mais velhos e três mais novos,
naquela fase eu fazia o tipo “mulher macho”. Andar a cavalo, ordenhar vacas,
brincar de bolinhas de gude, caçar coelhos do mato e, dependendo da estação,
patinar no gelo ou nadar no Lago Holt — essas eram minhas atividades
recreativas em família preferidas. Tudo isso aconteceu, obviamente, na
cidadezinha de Enterprise, em Utah, uma comunidade inteira de fé —
fundada por meu bisavô.
Minha herança estava baseada ricamente nas histórias da coragem dos
pioneiros mórmons, assim, minha prima e eu, quando não estávamos agindo
como meninos, passávamos a maior parte do tempo juntas fantasiando
sermos grandes mulheres pioneiras. Certo dia, depois da escola, estávamos
cavalgando no alto de um monte acima da fazenda de Andy P. Windsor. Lá,
com grande imaginação e ingredientes autênticos em mãos — uma lata de
feijão, duas costeletas de porco, duas batatas, duas pedras para produzir fogo,
uma caixinha de fósforos (caso as pedras não funcionassem) e uma assadeira
— fazíamos os preparativos para cozinhar a nossa “bóia”.
O jantar correu bem, e como nenhuma refeição pioneira seria completa
sem marshmallows, saímos em busca de varas para assá-los. Não nos
afastamos muito tempo, mas quando voltamos, encontramos um incêndio
completamente fora de controle — pelo menos aos olhos de duas assustadas
meninas de nove anos. Ao aumentar em extensão e velocidade, podíamos ver
que a direção que a fogueira estava tomando acabaria levando-a diretamente
para a casa de Andy Windsor, seus celeiros e animais lá em baixo.
De repente, estávamos diante de um genuíno problema pioneiro. Com a
fé que herdamos de nossos antigos pais, sabíamos que nossa única esperança
teria de ser celestial. Instintiva e simultaneamente, caímos de joelhos em
prantos, orando em voz alta, suplicando ajuda e forças. Oramos de todo
coração, mente e alma. Oramos como se nossa própria vida dependesse disso;
certamente oramos como se a casa de A. P. Windsor dependesse disso.
Oramos como somente meninas de nove anos sabem fazer, com fé inabalável,
sem duvidar. Deus estava conosco no alto daquele monte naquele dia — e
diria que Ele estava com toda a cidade de Enterprise também. (Já até vejo nas
manchetes: “Duas meninas de nove anos assam a cidade de Enterprise
inteira”.) Ele realmente controlou nossa sarça ardente. Creio que foi a partir
daquele momento que eu soube, sem a menor dúvida, que o poder de Deus é
grande e que orações das crianças são respondidas.
Tenho percebido, contudo, ao passar por outras experiências difíceis na
vida, que é quase mais fácil ter fé em milagres — principalmente na
concepção de milagre para uma criança — do que entregar a Deus nossas
preocupações, aflições e ansiedades cotidianas, que podem acumular-se como
uma “nuvem de escuridão”. Naquela mesma passagem em que Néfi e Leí
estavam na prisão, lemos: “O que faremos para que esta nuvem de escuridão
que nos cobre seja removida? E Aminadabe respondeu-lhes, (…) [Tende] fé
em Cristo, (…) e quando fizerdes isso, a nuvem de escuridão que vos cobre
será removida”. (Helamã 5:40–41)
Esse esplendor de esperança e inexplicável alegria no poder e
consolação de Deus só vêm a mim, mesmo em assuntos corriqueiros, quando
fervorosamente exerço meu direito a Seu Espírito. Se em meu coração vou a
Deus no momento em que sinto a menor pontada de medo (ou escuridão, ou
preocupação), em vez de esperar que esses sentimentos se acumulem, se eu
falar com Deus como meu amigo de maior confiança, meu mais sábio
conselheiro, e ali ficar de joelhos conversando com Ele o tempo necessário,
sempre posso ver um raio de luz em meio àquelas névoas sombrias. Com
muita freqüência saio de Sua presença com júbilo no coração. Isso não quer
dizer que meus problemas tenham-se resolvido — talvez não — mas de
alguma forma sou capaz de enxergar acima, ao redor e através daquelas
nuvens de escuridão com maior calma e tranqüilidade. Sei que Ele vai, com o
tempo, ajudar-me a dissipá-las completamente.
Por meio da graça consoladora e protetora de Deus, somos elevados de
nossas fraquezas e desespero para o ápice da transcendência espiritual e
pacífica, com o qual, sem o “Pai de toda a consolação”, nem sequer
poderíamos sonhar.
Um poeta francês, Guillaume Apollinaire, escreveu certa vez:

Vinde para a beira.

Não, hemos de cair.

Vinde para a beira.

Não, hemos de cair.


À beira eles assomaram,

Ele os empurrou e p’ra baixo eles rolaram.

Uma das escrituras favoritas de meu marido encontra-se em Isaías: “Não


sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da terra,
nem se cansa nem se fatiga? (…) Dá força ao cansado, e multiplica as forças
ao que não tem nenhum vigor. (…) Os que esperam no Senhor renovarão as
forças, subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão;
caminharão e não se fatigarão”. (Isaías 40:28–31)
A atitude eletrizante de Jeff é tão incrivelmente contagiante que acho
que poucas pessoas podem ficar perto dele sem sentir que também têm asas.
Tive a oportunidade de vê-lo aplicar essa escritura — assim como outras —
em sua vida muitas e muitas vezes. Uma experiência aconteceu quando
estávamos na pós-graduação. Era uma época em que muito se exigia de nós,
principalmente de Jeff. Ele era um marido dedicado e pai amoroso de dois
filhos pequenos — e estava cursando o programa completo de pós-graduação
da Universidade de Yale. Para sobrevivermos com nosso orçamento apertado,
ele dava aulas no instituto de religião de Yale em New Haven, Connecticut, e
também na Faculdade Amherst em Massachussetts. Para chegar a essa última
localidade, era necessária uma viagem de quase cento e cinqüenta
quilômetros, que era feita uma vez por semana. Ele também servia como
conselheiro em uma presidência de estaca. Parecíamos ter muito pouco
dinheiro e ainda menos tempo. E com muita freqüência parecíamos estar sem
nenhum dos dois.
Por causa da situação de nossa família e da responsabilidade que sentia
em relação a nós, Jeff decidiu, com o incentivo de seus professores,
submeter-se aos exames orais bem antes do previsto no calendário e bem
antes que seus colegas — com a antecedência de quase um ano. Ele começou
sua intensa preparação para o exame, mas a pressão era imensa. Ele sabia que
sua banca examinadora tinha conhecimento do fato de ele estar apresentando-
se antes do tempo e não permitiria que ele fosse aprovado demonstrando
preparação insuficiente. E para piorar a situação, ser reprovado em uma
primeira tentativa agressiva significaria atrasar nosso calendário muito mais
do que se ele simplesmente esperasse para fazer a prova junto com os demais
alunos.
Desde que conheci Jeff, notei que quando ele tem um fardo de qualquer
proporção que seja, ele sempre inicia um jejum e leva o problema
diretamente ao Senhor. Nunca me esquecerei daquela noite decisiva, quando
tínhamos de optar por mudar ou não o calendário — uma questão do tipo
“Ser ou não ser”. Aquelas foram horas de ansiedade, inquietação e, claro,
grande medo — medo do fracasso, medo da responsabilidade, medo do
excesso ou da falta de confiança, medo de um número aparentemente
ilimitado de conseqüências que afetariam pelo menos quatro pessoas, não
apenas uma. Era grande o peso da responsabilidade que sentíamos, mas a
decisão final recaía sobre os ombros de Jeff.
Estávamos jejuando e orando. Estávamos vivendo o evangelho da
melhor maneira que conhecíamos. Estávamos esforçando-nos o mais que
podíamos para ser o que Deus queria que fôssemos e acreditávamos Nele. No
fim daquele dia de jejum, quando oramos sobre o que para nós era um
assunto de grande seriedade, acho que nunca vi um ser humano tão radiante
em toda a minha vida. Jeff verdadeiramente emanava um “esplendor de
esperança” e estava cheio de “inexplicável alegria”. Ainda hoje, consigo
visualizar nitidamente aquela imagem em seu semblante. Todo o seu ser
parecia brilhar. As únicas palavras que me lembro de tê-lo ouvido proferir
naquele momento foram: “Tudo vai dar certo”. E deu. E continua a dar. E
sempre dará.
Essa é uma história bem comum tirada de nossos dias comuns de
estudantes. Tem o objetivo de lembrar-nos de que o Senhor “dá força ao
cansado, e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor”. Com fé
podemos subir “com asas como águias” para os braços do “Deus de toda a
consolação”, que sorri de nossos temores infantis e compreende nossas
intermináveis dúvidas. Ele é o nosso Pai e realmente ouve nossas orações. E
sempre que nos voltarmos para Ele buscando sinceramente o Seu Espírito —
um privilégio sem limite de tempo, lugar ou circunstância — ficaremos
cheios de Sua luz e nossas cargas se tornarão leves. É um dom de Deus.
George MacDonald escreveu: “Onde o Espírito do Senhor está há
liberdade; não há escuridão; a visão é livre, há percepção e entendimento
nítidos e radiantes. Onde o Espírito do Senhor não está, há escravidão em
todos os momentos, embotamento, trevas e tolice”. (Getting to Know Jesus
Christ [New York: Ballantine, 1987], p. 5)
Para ser honesta, não estou interessada em mais “embotamento, trevas e
tolice” do que já sinto. Por que então não temos o Espírito do Senhor conosco
com mais freqüência? Na verdade, nada povoava tanto meus pensamentos
quando eu era mais nova do que o desejo de saber por que, mesmo quando eu
tinha tanta fé e às vezes conseguia até mover uma verdadeira montanha (ou
pelo menos evitar que uma pegasse fogo!), eu continuava a alimentar
temores, ou experimentar “embotamento, trevas e tolice”, como diria George
MacDonald. Esse sempre era um mistério grande e perturbador para mim nos
meus tempos de estudante, e pensei nisso por um bom tempo.
Ao olhar para trás e refletir sobre essa questão com muito mais anos de
experiência e perspectiva, fico perguntando-me se talvez muitas daquelas
dúvidas e inseguranças nos vêm justamente porque tememos a Deus. Será
que ainda O vemos como o Deus do Velho Testamento — cheio de ira, fúria
e vingança? Continuamos a agir ou realizar nossas obrigações porque
tememos Seu juízo e punição? Ou agimos motivados por nosso amor a Ele,
com o perfeito conhecimento de que Ele verdadeiramente nos ama? Ele é o
“Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação”. Agora acredito nisso e
quero que todos acreditem.
Admito com certa vergonha que muitas vezes na vida supus que o amor
de Deus por mim fosse condicional, que de alguma forma eu tinha de ser
absolutamente perfeita para merecê-lo, que algum ato ou pensamento imaturo
de minha parte me tornaria indigna de Seu amor. Algumas vezes senti que
minha capacidade de pedir o auxílio de Deus dependia totalmente de minha
própria retidão. Acho que muitas pessoas já se sentiram da mesma forma.
Tem-me sido reconfortante ver que no decorrer dos anos tenho recebido
inúmeras bênçãos. Tenho recebido bênçãos e recompensas muito além de
meus maiores sonhos e mais otimistas esperanças — e tudo isso apesar
daquelas imperfeições que eu sabia ter e que tanto me preocupavam. A
imperfeita, fraca e insegura Pat Holland vem recebendo todas essas respostas
a orações e todas essas incontáveis bênçãos. Se a imperfeição pode trazer tais
confortos, o que nos espera se realmente estivermos aperfeiçoando-nos na
arte de levar uma vida perfeita?
Catherine Marshall, cujos escritos aprendi a admirar devido a sua grande
confiança em Deus, escreveu sobre um momento de sua vida quando estava
muito insatisfeita consigo mesma, cheia de dúvidas, perguntas e temores a
respeito de sua dignidade e utilidade a Deus. Ela relata que após buscar
ardentemente Seu auxílio, ouviu as seguintes palavras de conforto:
“És Minha filha amada, Catherine. Repousa neste amor. (…) Não faças
mais tantas perguntas. Cessa tais interrogações, cessa de sempre questionar
teu estado espiritual. ‘O Senhor quer que eu faça isso? Ou aquilo? Isso é
certo? Ou seria aquilo?’ Essa é a fonte da confusão que estás sentindo.
És Minha filha, Minha discípula. Aceitei-te há muito tempo — como és
— e como virás a ser.
Ainda és aceita. (…)
As interrogações incessantes provêm de Satanás, para perturbar-te,
confundir-te, destruir o alicerce de tuas crenças. (…)
Não temas. [Minha] alegria expulsará todo o teu medo e tuas
incertezas”. (A Closer Walk [New York: Avon Books, 1987], p. 132)
Após ver alguém ser tranqüilizado para poder sentir-se útil, lembremo-
nos da segunda metade daquela passagem de II Coríntios: “Que nos consola
em toda a nossa tribulação; para que também possamos consolar os que
estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos
somos consolados por Deus”. Que idéia magnífica! Temos direito ao amor,
refrigério e consolação de Deus pelo menos em parte para podermos passar
esse dom às outras pessoas.
A ligação entre a consolação de Deus para nós e nosso serviço às
pessoas é uma grandiosa idéia. O mesmo incentivo de levar o amor de Deus
às pessoas está presente neste maravilhoso conselho que encontramos em Os
Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. O Padre Zósima está falando com uma
mulher que tem grandes temores por causa de suas fraquezas (assim como
Catherine Marshall e todos nós) e por isso isola-se e distancia-se do convívio
das pessoas.
“Não temas nada e nunca tenhas medo”, diz o Padre Zósima, “e não te
apoquentes. (...) Poderá haver pecado que ultrapasse o amor de Deus? (...)
Não sonhes senão com o arrependimento e bane todo o temor. Crê que Deus
te ama como não podes imaginá-lo. (...) Haverá mais alegria nos céus por um
pecador que se arrepende do que por dez justos. Vai e não temas. Não te
aflijas a respeito dos outros e não te irrites com as injúrias. Perdoa. (...)”
“Se te arrependes, é que amas”, prossegue Zósima. “Ora se amas, serás
já de Deus. (...) O amor tudo redime e tudo salva. Se eu, um pecador como tu,
me enterneci, se tive piedade de ti, com mais forte razão o Senhor. O amor é
um tesouro tão inestimável que em troca podes adquirir o mundo inteiro e
redimir não só teus pecados, mas os dos outros. Vai e não temas nada”
(Dostoiévski, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. Tradução de Natália Nunes e
Oscar Mendes. Ediouro, Rio de Janeiro, 1980, p. 50)
O mandamento de ir, seguir em frente com confiança em Deus tem o
propósito expresso de abençoar as outras pessoas, trazê-las à plenitude da fé
em Deus e da alegria no evangelho de Cristo.
Certa noite convidei meu filho, ex-missionário, para sentar-se comigo e
discutir essa idéia, a de adquirir confiança para poder abençoar os demais.
Embora pareça difícil acreditar agora, houve uma época na vida de Matt em
que ele era muito tímido e medroso.
Mudamo-nos para Provo para assumir o novo encargo de Jeff em um
período muito difícil para Matt. Ele estava entrando na adolescência e no
curso secundário, uma época de grande insegurança e, certamente, o quadro
se agravava para ele por ser novo na cidade e não ter um único amigo. Além
do mais, por onde quer que andasse, era como se levasse estampada na testa a
inscrição, em garrafais letras vermelhas: FR — “Filho do Reitor”.
Ao conversarmos naquela noite, ele confidenciou-me algo que nunca me
dissera durante os difíceis anos da adolescência. Ele disse-me que, na
condição de um assustado e solitário novato na escola, ela fez exatamente a
mesma oração, quase palavra por palavra, por vários meses. Ele contou:
“Todas as noites eu orava e pedia: ‘Pai Celestial, ajuda-me a ser escalado
para a equipe de basquete da escola, ajuda-me a ser um bom aluno e ajuda-
me a ter mais confiança para fazer amizades’”.
Não demorou muito para todos aqueles pedidos serem atendidos. Ele foi
escalado para a equipe principal, foi um bom aluno e conquistou muitos,
muitos amigos. Mas ele disse-me naquela noite: “Só foi na missão que
percebi que tinha abordado o assunto da confiança da maneira completamente
errada. Foi no meu desejo sincero e intenso de servir ao próximo como
missionário que descobri o que vem a ser a verdadeira confiança.
Ao concentrar meus pedidos em minhas próprias necessidades nos anos
do curso secundário, não me sentia em paz comigo mesmo. Mesmo hoje, se
peço ajuda para ter mais popularidade ou para parecer bom aos olhos dos
outros, perco essa confiança. Mas durante a missão, quando queria achegar-
me às pessoas pelo bem delas, pelo que eu sabia que poderia oferecer a elas,
eu tinha a confiança de Josué e Jeremias juntos. Eu sabia que podia tocá-las
de alguma forma, de alguma maneira, e eu tinha essa incrível autoconfiança
porque era em benefício de outras pessoas. Para sempre vou encarar a
autoconfiança de forma diferente por causa de minha missão”.
Ele concluiu: “A confiança é um dom de Deus que nos capacita a servir
ao próximo”.
Aquele mesmo Zósima a que aludimos anteriormente no romance de
Dostoiévski reforça esse importante princípio, não com alguém que crê,
como Matt, mas com uma descrente, uma mulher que perdera fé e queria
saber como readquiri-la. Não é de causar surpresa que ele a tenha
aconselhado a servir, a estender a mão ao próximo, a consolar os outros com
o próprio consolo que ela desejava receber.
“[A senhora precisa] da experiência do amor que age”, diz ele a ela.
“Esforce-se por amar seu próximo com ardor e sem cessar. À medida que
progredir no amor, convencer-se-á a senhora da existência de Deus e da
imortalidade de sua alma. Se for até a abnegação total no seu amor ao
próximo, então acreditará indubitavelmente e nenhuma dúvida mesmo poderá
aflorar sua alma. Está isto demonstrado.”
Deus deseja ardentemente que abençoemos os outros, que achemos
nossa vida ao perdê-la, e assim, muitas vezes, Ele propositalmente responde a
nossas orações, assim como as de outras pessoas, por meio de nossos atos de
carinho e consolo. Quantas vezes já ouvi pessoas dizer: “Eu estava orando
para que alguém viesse, e Deus enviou você. Eu estava só, e você apareceu à
minha porta. Eu estava deprimida até você cumprimentar-me. Eu estava triste
e você escreveu-me aquele bilhetinho. Eu estava com medo e você segurou
minha mão”. Essas são experiências do amor que age.
A seguinte história foi-me relatada por um de nossos estudantes da
BYU, David Rodebeck. Podemos aprender muito com os atos de duas jovens
que entendem que o consolo e a compaixão de Deus muitas vezes vão
precisar chegar às pessoas por nosso intermédio.
Essas duas estudantes são o tipo de cristãos que todos gostaríamos de
ser. Elas estudam as escrituras sagradas todos os dias, com o firme propósito
de aprender mais a respeito dos atributos e doutrinas de Jesus Cristo. E, de
forma serena, porém inevitável, elas acabam incorporando essas
características divinas. Essas duas alunas, obviamente, têm suas dificuldades,
algumas das quais não são pequenas, mas não tão sérias se comparadas com
as lutas que outras pessoas precisam travar.
Ao andarem perto do Templo de Provo certa noite, elas viram uma
mocinha índia, em seu primeiro semestre na BYU, sentada do lado de fora do
templo, banhando a grama com suas lágrimas. Ela era uma excelente aluna, e
por toda a vida sonhara em freqüentar a BYU. Finalmente, seu sonho se
realizara. Mas agora, passadas poucas semanas, ela tirara notas péssimas nas
primeiras provas e, longe dali, sua família estava desintegrando-se, com a
mãe em constante risco de vida nas mãos de seu pai alcoólatra. Ela não tinha
mais dinheiro, não conseguia achar emprego, não tinha amigos e sua saúde e
suas notas estavam sendo prejudicadas por causa de tudo isso. Não é de se
admirar que ela estivesse chorando! Não era de se estranhar que ela tivesse
ido aos jardins do templo para orar!
Essas duas moças, levando no semblante a imagem de anjos
consoladores, pararam para falar com ela. Elas conversaram por mais de uma
hora e depois cada uma seguiu seu caminho. Mas elas não se afastaram umas
das outras. Várias vezes por semana, tivessem ou não tempo, essas duas
moças visitavam essa garota assustada ou deixavam um bilhete em sua porta.
A mensagem era essencialmente a mesma, com palavras do tipo: “Nós
amamos você. Deus ama você. Que se console seu coração, ‘pois toda carne
está em minhas mãos’. ‘Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem
presente na angústia. (…) Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus’”. (D&C
101:16, Salmos 46:1, 10)
É claro que as provações não desapareceram da noite para o dia —
algumas delas nem apresentaram melhora. Mas essa moça mudou. Não sei o
que ela sabia sobre Deus antes daquela noite solitária de outubro —
obviamente ela sabia orar — mas agora ela sabe algo a respeito Dele que não
sabia antes. Na forma de duas jovens de sua idade, ela conheceu o “Deus de
toda a consolação”. Ela sabe que várias e várias vezes Ele mandou aquelas
duas discípulas resgatá-la, duas moças cujos sobrenomes nem conhece. E ela
sabe que Ele as mandou porque a ama.
Nosso Pai Celestial ama a todos nós, apesar de nossos temores, erros e
aparente falta de talentos e de confiança. Ao abraçarmos plenamente essa
verdade, ela nos encherá de um esplendor de esperança e inexplicável alegria.
Capítulo 6

A PERSPECTIVA DE UMA MULHER SOBRE O


SACERDÓCIO

Parece-nos claro que nosso maior encargo é viver com retidão


suficiente para saber passo a passo qual é a vontade do Senhor para
nós, lembrando-nos de que ocasionalmente o que queremos hoje, devido
às tendências e vaidades do mundo, pode não ser o que há muito tempo
já prometemos que faríamos. Devemos, como Maria, poder dizer:
“Cumpra-se em mim segundo a tua palavra”.

O Presidente Spencer W. Kimball declarou certa vez em uma reunião


para as mulheres da Igreja: “Nós tivemos total igualdade como seus filhos
espirituais”. E então prosseguiu: “Dentro dessas grandes garantias, contudo,
nosso papel e designações diferem”. (A Liahona, março de 1980, p. 152)
Creio que cada um de nós tem uma missão específica a cumprir nesta
Terra. “Pois cada homem [e mulher] [têm] um tempo designado, de acordo
com suas obras”. (D&C 121:25) “Pois a todos não são dados todos os dons;
pois há muitos dons e a cada homem é dado um dom pelo Espírito de Deus.
A alguns é dado um, a outros é dado outro, para que desse modo todos sejam
beneficiados”. (D&C 46:11–12)
Acredito que nos conselhos pré-mortais fizemos promessas sagradas
relacionadas a nosso papel na edificação do reino de Deus na Terra. Como
parte do convênio, foram-nos prometidos os dons e poderes necessários para
realizar essas tarefas especiais. Gostaria de citar o Presidente Kimball
novamente: “[Lembrem-se], no mundo antes deste, foram dados encargos às
mulheres fiéis, enquanto os homens fiéis foram preordenados para certos
deveres [no sacerdócio]. (...) Vocês vão prestar contas dessas coisas que há
tanto tempo se espera de vocês, exatamente como aqueles que apoiamos
como profetas e apóstolos!” (A Liahona, março de 1980, p. 152) Também
creio que essas designações e esses papéis diferem tanto de uma mulher para
outra quanto de um homem para uma mulher.
Todos fomos ensinados a ter modelos a seguir. É bom ter alguém a
quem admirar. Contudo, há um grande perigo em querermos parecer demais
com outra pessoa, pois poderemos envolver-nos em competições vãs e
sentirmo-nos fracassados. Duas pessoas nunca são iguais. Algumas mulheres
têm famílias numerosas; outras, pequenas; outras, nem têm família. Muitas
mulheres estão aplicando seus dons e talentos apoiando o marido em sua
posição de líderes na comunidade ou no mundo dos negócios, presidentes de
estaca, bispos ou Autoridades Gerais e acompanhando o crescimento dos
filhos. Outras exercem seus dons e talentos diretamente como líderes por seus
próprios méritos. Outras mulheres, ainda, conciliam ambos os papéis,
cumprindo uma tarefa de duplo alcance. Todos conhecemos, por exemplo, a
grande diferença entre a designação de Mary Fielding Smith e a de Eliza R.
Snow, embora as duas tenham buscado ardentemente a vontade do Senhor.
Ambas se dedicaram também ao casamento e à família. Ambas deram tudo
que possuíam ao reino.
Assim, parece-nos claro que nosso maior encargo é viver com retidão
suficiente para saber passo a passo qual é a vontade do Senhor para nós,
lembrando-nos de que ocasionalmente o que queremos hoje, devido às
tendências e vaidades do mundo, pode não ser o que há muito tempo já
prometemos que faríamos. Devemos estar dispostas a viver e a orar como
Maria, a mãe de Jesus, que ao saber pelo anjo da designação que logo
receberia, disse: “Cumpra-se em mim segundo a tua palavra”. (Lucas 1:38)
Deixem-me usar um exemplo pessoal. A irmã Ardeth Kapp, uma de
minhas melhores amigas, é uma das mulheres mais puras, doces e fortes que
conheço. Seu marido, Heber, é um grande líder e serviu como nosso
presidente de estaca em Bountiful, Utah. Eles não foram abençoados com
filhos. Joan Quinn é outra querida amiga e também uma das pessoas mais
puras, doces e fortes que conheço. Seu marido, Ed, é um homem brilhante e
capaz — outra influência estável e inspiradora em nossa vida. Eles foram
abençoados com doze filhos. Meu marido e eu estamos fazendo o que
podemos no reino. Fomos abençoados com três filhos.
Algumas mulheres que conheço ainda não foram abençoadas com um
companheiro, com o casamento. E ainda assim elas estão edificando o reino
todos os dias e abençoando-me com sua influência. Seis exemplos bem
distintos são Maren Mouritsen e Marilyn Arnold, que estimo como queridas
amigas na BYU; Carolyn Rasmus, com quem trabalhei nas Moças; e três que
serviram como talentosas secretárias de meu marido, Randi Greene, Janet
Calder e Jan Nelson, cuja contribuição a nossa vida é pessoal além de
profissional. Obviamente, a lista de mulheres que abençoam a mim e a Igreja
é grande demais para ser lida. O que quero demonstrar é que Ardeth, Joan,
Carolyn, Maren, Marilyn, Randi, Janet e Jan são todas bem diferentes umas
das outras. No momento, todas temos papéis diferentes na vida. Talvez esses
papéis venham a mudar para cada uma de nós no futuro. Contudo, nós
amamos muito umas às outras e amamos também os homens de nossa vida —
pais, irmãos, amigos, maridos e filhos. E amamos o sacerdócio. Cada uma de
nós precisa desejar as coisas certas, buscar as coisas certas e dar tudo o que
tem ao reino com os olhos fitos na glória de Deus e nos convênios realizados.
Como o Presidente David O. McKay sempre dizia: “Onde quer que estiveres,
cumpre bem teus deveres”.
É claro que para fazer isso precisamos viver perto do Espírito por meio
da oração, do estudo e da retidão, para evitar os desvios de rota e metas
egoístas que poderiam frustrar os desígnios de Deus para nós e levar-nos a
abandoná-los. Pois sei que quando isso acontece, sentimos frustração e
abandono, em vez da paz e segurança que só podemos desfrutar ao cumprir
nossa missão. Parafraseando John F. Kennedy, não pergunte o que o reino
pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo reino. Qualquer que seja
o nosso papel, precisamos buscá-lo por meio do viver digno e da revelação
pessoal. Não devemos confiar no braço da carne ou nas filosofias dos homens
— ou das mulheres. Devemos ter nossa Liahona pessoal. Isso é exatamente o
que o Senhor espera também dos portadores do sacerdócio.
De fato, tudo isso é para salientar que temos diferenças — não só de
homem para mulher, mas de mulher para mulher. Ao discutir a relação das
mulheres com suas designações especiais e os homens com seus deveres do
sacerdócio, acho mais útil falar em termos de obrigações e responsabilidades,
em vez de “direitos”. Honestamente, já estou cansada de ouvir falar de lutas
por direitos, movimentos por direitos e marchas por direitos — sejam para
homens, mulheres ou qualquer outra coisa. Assim, quero falar de obrigações
e cito como fonte essas marcantes palavras de Aleksander Solzhenitsyn:
“Está na hora, no Ocidente, de defender-se nem tanto os direitos humanos,
mas as obrigações humanas. A liberdade destrutiva e irresponsável recebeu
um espaço ilimitado [no mundo livre]. A sociedade [ocidental] parece ter
pouca defesa contra (…) a decadência humana (…) e o mau uso da liberdade
para a violência moral. (…) Isso é considerado parte da liberdade, (…) mas a
vida organizada dessa forma, com tanta liberalidade nas leis, tem mostrado
sua incapacidade de defender a si mesma contra a corrosão do mal”. (“A
World Set Apart”, National Review, 7 de julho de 1978, p. 838, grifo do
autor)
Creio que se agirmos de acordo com nossas responsabilidades, nossos
direitos cuidarão de si mesmos — para homens e mulheres. Quando eu estava
ao lado de meu marido enquanto ele cursava o doutorado na Universidade de
Yale, uma vizinha nossa que fazia residência em psiquiatria comentou certo
dia que eu estava dando sinais incontestes de exaustão. Motivada por uma
preocupação genuína e com a intenção de ajudar-me, ela disse: “Pat, por que
você não faz valer os seus direitos e manda tudo isso para o espaço?”
Naquela ocasião, eu já sabia por meio da oração, que meus direitos, quaisquer
que fossem, tinham de ser vistos na perspectiva de minha obrigação de
trabalhar para alcançar metas de longo prazo. Eu sempre soube que o título de
Jeff não era apenas para o futuro dele. E ele nunca achou que as crianças
pertencessem somente a mim. Estávamos juntos nisso tudo e não
desperdiçamos nem um pouco de nossa energia protestando e reivindicando
direitos. Aquela foi uma época difícil e desgastante, mas durou apenas três
anos. Em conseqüência direta de meu papel de apoio naquela época, agora
tenho tempo, meios e oportunidades maravilhosas para dedicar-me a muitos
de meus interesses e talentos, além de continuar a ser uma esposa e mãe.
Além do mais, sei — e amo saber — que minha meta e missão finais sempre
incluirão as alegrias de oferecer apoio, amor e conselhos a outras pessoas que
cumprem suas próprias designações.
Se o que nos toca é um papel de apoio — e muitas de nós com
freqüência desempenharemos esse papel — precisamos estudar e preparar-
nos o suficiente para anunciar ao mundo que não precisamos desculpar-nos
por fortalecer o lar, pois estamos dedicando-nos a nossas mais elevadas
prioridades: pessoal, social e teologicamente.
Vários anos atrás participei com meu marido de um seminário de duas
semanas em Israel para muçulmanos, cristãos e judeus. Os participantes eram
jornalistas, ex-embaixadores, sacerdotes, rabinos, reitores e professores
universitários. Durante aquelas duas semanas, quase todos os participantes
fizeram questão de fazer-me perguntas sobre as mulheres mórmons. Embora
muitas outras esposas presentes no evento também fossem donas-de-casa, eu
era a única que sempre era lembrada. Como mulheres mórmons, nós
realmente nos destacamos. Devemos ser uma luz sobre o monte. Temos a
responsabilidade de estudar, preparar-nos e empenhar-nos para termos
desenvoltura suficiente para ensinar a verdade a respeito de nossas
prioridades e privilégios como mulheres da Igreja.
À luz de tais obrigações (em contraste com direitos), pensem na
revelação que todos amamos, recebida por Joseph Smith quando ele estava na
cadeia de Liberty. Não nos parece irônico que um momento de tanta
restrição, tão pouca liberdade e tanto abuso de poder tivesse sido o cenário
para uma revelação tão profunda sobre direitos, liberdade e o uso da
autoridade? Suponho que somente em situações assim é que o Senhor tem
nossa completa atenção. Dessa forma, Ele usa nossa dor (nesse caso, a dor de
Joseph Smith) para dar-nos instruções de grande significado. Esta bela
passagem, tão conhecida, é um pouco longa, mas de extrema importância:
“Eis que muitos são chamados, mas poucos são escolhidos. E por que
não são escolhidos? Porque seu coração está tão fixo nas coisas deste mundo
e aspiram tanto às honras dos homens, que eles não aprendem esta lição: que
os direitos do sacerdócio são inseparavelmente ligados com os poderes do
céu e que os poderes do céu não podem ser controlados nem exercidos a não
ser de acordo com os princípios da retidão.
Que eles nos podem ser conferidos, é verdade; mas quando nos
propomos a encobrir nossos pecados ou satisfazer nosso orgulho, nossa vã
ambição ou exercer controle ou domínio ou coação sobre a alma dos filhos
dos homens, em qualquer grau de iniqüidade, eis que os céus se afastam; o
Espírito do Senhor se magoa e, quando se afasta, amém para o sacerdócio ou
a autoridade desse homem. (…)
Aprendemos, por tristes experiências, que é a natureza e índole de quase
todos os homens, tão logo suponham ter adquirido um pouco de autoridade,
começar a exercer imediatamente domínio injusto. (…)
Nenhum poder ou influência pode ou deve ser mantido em virtude do
sacerdócio, a não ser com persuasão, com longanimidade, com brandura e
mansidão e com amor não fingido; com bondade e conhecimento puro, que
grandemente expandirão a alma, sem hipocrisia e sem dolo — reprovando
prontamente com firmeza, quando movido pelo Espírito Santo; e depois,
mostrando então um amor maior por aquele que repreendeste, para que ele
não te julgue seu inimigo; para que ele saiba que tua fidelidade é mais forte
que os laços da morte.
Que tuas entranhas também sejam cheias de caridade para com todos os
homens e para com a família da fé; e que a virtude adorne teus pensamentos
incessantemente; então tua confiança se fortalecerá na presença de Deus; e a
doutrina do sacerdócio destilar-se-á sobre tua alma como o orvalho do céu. O
Espírito Santo será teu companheiro constante, e teu cetro, um cetro imutável
de retidão e verdade; e teu domínio será um domínio eterno e, sem ser
compelido, fluirá para ti eternamente.” (D&C 121:34–37, 39, 41–46)
Parece relevante observar que ao falar de direitos a Joseph Smith — e o
Senhor realmente fala de direitos — Ele os restringe e cerca de todo tipo de
instruções sobre obrigações e responsabilidades. Os privilégios do sacerdócio
não estão separados dos deveres, assim como não estão os privilégios das
mulheres. Observemos novamente as linhas iniciais. Por que tão poucos são
escolhidos depois de tantos terem sido chamados? “Por que seu coração está
tão fixo nas coisas deste mundo e aspiram tanto às honras dos homens”.
(D&C 121:35)
O mundo não é nosso lar definitivo, e embora tenhamos de viver aqui e
levar uma vida construtiva, nunca devemos, como cristãos, realmente ser
deste mundo, tampouco buscar seu louvor. O Presidente Kimball declarou:
“Entre as verdadeiras heroínas que ingressarão na Igreja, estão mulheres mais
preocupadas com a própria retidão do que com seu egoísmo. Essas
verdadeiras heroínas são autenticamente humildes, dando mais valor à
integridade que à fama. [Lembrem-se] de que é errado fazer algo só para
impressionar as mulheres, como o é só para impressionar os homens”. (A
Liahona, março de 1980, p. 155)
Não posso falar por ninguém além de mim mesma; assim, pelo menos
para mim, não há nem jamais poderá haver um assunto político neste mundo
mais importante do que minha vida eterna no próximo. Não que eu não ache
os assuntos políticos do mundo importantes, pois são. É que o reino eterno de
Deus é muito mais. Se eu quiser ser escolhida e chamada (incidentalmente,
um privilégio, e não um direito, a que aspiro ardentemente), minha devoção
deve estar centrada em um governante que é o Rei dos reis e o Senhor dos
senhores, que conhece a mim e minhas necessidades e a quem devo ser leal.
Fiz essa digressão simplesmente para reafirmar que este mundo, por
mais que tenhamos de trabalhar nele, não é o nosso lar. Nosso coração não
deve estar fixo demais nas coisas daqui. Não devemos buscar o louvor dos
homens mais do que o louvor de Deus. Isto é, não devemos se cremos que o
reino de Deus, que hoje responde pelo nome de A Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias, está avançando sob Sua mão para que o reino dos
céus venha a estabelecer-se. Não devemos deixar que nada nos afaste dessa
crença e dessa missão, para podermos estar prontos para o returno triunfal do
Príncipe da Paz. Posso prometer-lhes que esse retorno será dirigido por meio
da Igreja, com sua missão eterna, e não pela política, com seu poder
temporal. Vendo as coisas por esse prisma, os membros da Igreja são todos
soldados do mesmo exército, um batalhão comandado por Cristo e treinado
pelos profetas. (Essa é uma infantaria justa, e nela as mulheres serão
voluntárias e não terão de ser convocadas)
Voltando à seção 121, por que as pessoas presas a essa preocupação
mundana não se lembram desta única lição: “Que os direitos do sacerdócio [e
da feminilidade] são inseparavelmente ligados com os poderes do céu e que
os poderes do céu não podem ser controlados nem exercidos a não ser de
acordo com os princípios da retidão”? (D&C 121:36)
Não é interessante notar que os direitos, conforme tratados na linguagem
do Senhor, não parecem dizer nada sobre homem ou mulher? Embora o
versículo trate do sacerdócio, certamente os direitos e poderes de toda mulher
baseiam-se exatamente nas mesmas premissas. As regras do jogo são as
regras para todos: homens, mulheres, negros, brancos, escravos ou livres.
(Ver 2 Néfi 26:33.) Será que se guardarmos os mandamentos —
mandamentos que são comuns a todos nós — chegará o dia em que, como
recompensa eterna, Deus dirá a todos, homens e mulheres: “Bem está, servo
bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei”? (Mateus
25:21)
Na seção 121, observamos a solução para muitos problemas em
potencial. Por exemplo, o versículo 37 ensina-nos a não “encobrir nossos
pecados ou satisfazer nosso orgulho, [nem] nossa vã ambição”. Esses
mandamentos são só para os homens? Só para as mulheres? Ou para ambos?
Também somos advertidos a não “exercer controle ou domínio ou coação”
sobre as pessoas injustamente. Esse conselho se aplica somente aos homens?
Somente às mulheres? Ou a ambos? Como os homens devem exercer
influência no reino de Deus? E as mulheres? Qualidades como persuasão,
longanimidade, brandura, mansidão, amor não fingido são apenas
masculinas? Ou femininas? Ou seriam qualidades intrínsecas de uma vida
cristã, tanto para homens como para mulheres? Fico com a última opção.
E em relação aos dois últimos versículos da seção 121, as mulheres são
as únicas que devem ter as entranhas “cheias de caridade”? Os homens são os
únicos que devem “adornar” os pensamentos com virtude? O Espírito Santo é
um companheiro constante somente para os portadores do sacerdócio? As
mulheres são as únicas que devem portar um “cetro imutável de retidão e
verdade”? Poderia um homem ou uma mulher ter “um domínio eterno” sem o
outro? As próprias perguntas já trazem resposta. Quando o Senhor fala de
retidão, não há conflito algum de gênero.
Tudo isso me leva a perguntar: por que homens e/ou mulheres santos
dos últimos dias despendem tanta energia em questões como as mulheres e o
sacerdócio?
Ofereço a seguinte resposta à minha própria pergunta: parece-me que
quando há conflito é porque alguém, homem ou mulher, não está vivendo o
evangelho de Jesus Cristo. Com isso não quero dizer que a pessoa que tem a
preocupação não esteja vivendo o evangelho. Isso pode ser ou não verdade. O
que digo é que alguém não está vivendo o evangelho. Uma mulher que esteja
sofrendo pode estar vivendo o evangelho da melhor maneira possível. Mas se
tal for o caso, ainda acho que alguém na vida dela não esteja vivendo — ou
não tenha vivido — o evangelho. Em algum lugar, de alguma forma,
promessas ficaram por serem cumpridas e obrigações a serem honradas, e daí
provém o conflito. Mas esse não é um problema do sacerdócio. O máximo
que podemos dizer é que se trata de um problema pessoal. Assim, a
responsabilidade de viver o que ensina a seção 121 — e de seguir os demais
mandamentos cristãos — é de todos nós, homens e mulheres. Se todos
vivessem esses princípios e fossem dignos dessas promessas, as relações
entre homens e mulheres seriam regidas pelo mais puro amor e toda dor,
desespero e frustrações deste mundo desapareceriam. Creio nisso de todo o
coração. As respostas para nossas dificuldades estão no evangelho e
independem de nosso sexo. São promessas a todos os fiéis.
O último exemplo concreto que gostaria de relatar vem de uma pessoa
que nem pertence à Igreja. Foi o Élder Dallin H. Oaks que me contou essa
inspiradora experiência, uma aplicação do tema de direitos e obrigações que
estou tentando desenvolver. Quando era um jovem professor de Direito, o
Élder Oaks mantinha um contato bem próximo com o juiz Lewis M. Powell,
da Suprema Corte. A filha do juiz também havia-se formado em direito
recentemente e estava iniciando uma bem-sucedida carreira de advogada
quase simultaneamente com seu casamento. Pouco depois, ela teve o
primeiro filho. Ao fazer uma visita de cortesia à família, o Élder Oaks teve a
agradável surpresa de encontrar essa jovem mãe em casa, dedicando-se ao
filho em tempo integral. Quando o Élder Oaks perguntou-lhe sobre essa sua
opção, ela respondeu: “Ah, posso voltar a advogar no futuro, mas no
momento, não. Para mim foi uma decisão simples. Qualquer um pode cuidar
de meus clientes, mas só eu posso ser a mãe dessa criança”. Que resposta
incisiva a uma questão que ela considerava simples! E realmente parece ter
sido simples, pois ela não encarou a situação em termos de direitos, mas,
acima de tudo, em termos de responsabilidades. Acho que não teria sido tão
simples se a atitude dela tivesse sido: “O corpo é meu” ou “carreira é minha”
ou “a vida é minha”. Contudo, a preocupação dela era com suas obrigações.
Olhando dessa perspectiva, não havia mesmo nada de complicado nessa
questão.
Todos temos direitos e a liberdade de desfrutá-los. Isso o Senhor nos
garantiu. Assim, creio que a questão crucial que precisamos lembrar como
homens e mulheres santos dos últimos dias é não permitir que sejamos
forçados a tomar decisões corretas, mas que cheguemos ansiosamente a elas
de nossa própria vontade. Ao nos sentirmos compelidos ou forçados, vivemos
a dor, a frustração e a depressão de que tanto ouvirmos falar. Devemos buscar
fervorosa e diligentemente a luz que fará com que nosso coração e mente
desejem verdadeiramente tomar decisões corretas. Em nossas orações,
devemos pedir para ver como Deus vê, ter uma perspectiva eterna. Se
ouvirmos demais as vozes do mundo, ficaremos confusos e nos sentiremos
impuros. Precisamos ancorar-nos no Espírito, e isso exige constante
vigilância.
Em Gálatas 5, em uma tradução para linguagem atual, lemos a seguinte
conclusão:
“Vocês, meus amigos, foram chamados para ser homens livres [em
outras palavras, vocês têm seus direitos]; mas não façam com que essa
liberdade [seus direitos] dê vazão a seus instintos mais baixos. (...) Se
continuarem lutando uns contra os outros, sem trégua, tudo que devem
esperar é a destruição mútua. (...)
O fruto do Espírito é o amor, a alegria, a paz, a paciência, a cordialidade,
a bondade, a fidelidade, a mansidão e o autocontrole. Não devemos
envaidecer-nos, desafiando uns aos outros, rivalizando uns com os outros e
invejando-nos mutuamente. Como o Espírito é a fonte da vida, devemos
deixá-lo guiar nosso curso.” (Gálatas 5:13, 22 e 25–26)
Capítulo 7

AS MUITAS FACES DE EVA

Vivemos em um mundo incrivelmente estressante. Todos parecem


estar apressados ou preocupados, ou ambas as coisas. Somos
pressionados a dividir-nos entre muitas obrigações, e parece haver
pressões crescentes em relação ao que se espera de nós, quanto
devemos esperar de nós mesmos e como podemos achar o tempo, as
energias e os meios para realizar tudo isso. Se quisermos ser bem-
sucedidos, precisamos permanecer concentrados e calmos. Precisamos
organizar o “caos”.

Antes de chegarmos, como filhas de Eva, à plena fruição de nossa


feminilidade, todas nós usamos várias faces nos diferentes papéis que
desempenhamos no teatro da vida — de filhas, mães, irmãs, vizinhas e
amigas, para enumerar apenas alguns deles. Nosso semblante demonstra
caridade, inveja, paciência, ansiedade, orgulho, humildade, generosidade,
ganância, paz, perplexidade. Essas imagens refletem juntamente alegria e
pesar, e por meio dessas mudanças, as linhas acabam entrelaçando-se e
combinando-se. Estamos todas ainda aprendendo a maneira lenta e
equilibrada pela qual Deus esculpe as experiências por que devemos passar
“até termos a nossa face”.
Qual face é realmente minha? Qual é o meu papel na vida? E se as faces
mudarem tão rápido e as exigências se tornarem tão grandes que nem
saibamos quem somos em momento algum? Como podemos esperar ter o
controle da situação o tempo todo?
Vou modestamente tentar oferecer um pouco de esperança. Em primeiro
lugar e acima de tudo, se olharmos bem de perto essas muitas faces refletidas,
sempre veremos os cuidados constantes de Deus no processo de fazer quem
somos e o que nos estamos tornando. Vamos ver a maneira terna com que Ele
nos afaga o cabelo ou mesmo enxuga uma lágrima. Ele ajusta o ângulo da luz
e faz maravilhas com linhas, traços e sombras. Com grande mansidão e aos
sussurros, Ele incentiva-nos a suportar as dificuldades ou o desânimo,
oferecendo-nos em troca iluminação e beleza eterna. Sob Sua mão, nossa
pessoa interior torna-se a pessoa exterior, e o Artista molda Sua imagem
perfeita.
Ao participarmos individualmente desse processo em santidade, essas
percepções e impressões de nosso relacionamento com nosso Pai Celestial
poderão trazer-nos grande paz e propósito. Quando nos envolvemos nesses
momentos santificadores de adoração, é mais fácil para nós manter essa
perspectiva, em vez de sucumbirmos ao constante redemoinho de faces,
papéis e atividades. Com as complexas e rápidas mudanças que estão
ocorrendo no mundo de hoje, é fácil perder de vista nosso potencial divino ou
mesmo avaliar nossas possibilidades. Em meio aos rigores da jornada, às
vezes duvidamos de nossa capacidade de simplesmente sobreviver, quanto
mais de triunfar.
Em seu livro In Search of the Simple Life (Em Busca da Vida Simples),
David E. Shi escreveu: “Os americanos hoje levam a vida em um “desespero
silencioso”. Em meio a todo o glamour e encanto da prosperidade está a
preocupante constatação de que as três drogas receitadas com mais freqüência
[nos Estados Unidos] são os tranqüilizantes e os medicamentos contra a
úlcera e a hipertensão. (Layton, Utah: Gibbs M. Smith, 1986, p. 1)
Vivemos em um mundo incrivelmente estressante. Todos parecem estar
apressados ou preocupados, ou ambas as coisas. Somos pressionadas a
dividir-nos entre muitas obrigações, e parece haver pressões crescentes em
relação ao que se espera de nós, quanto devemos esperar de nós mesmas e
como podemos achar o tempo, as energias e os meios para realizar tudo isso.
O flagelo de nossos dias é a ansiedade. Talvez um pouco de nossa
ansiedade se deva, ironicamente, ao fato de a abundância e as bênçãos de
nossa época terem-nos concedido oportunidades e escolhas com que nossos
antepassados nem sequer poderiam sonhar. Com a automação e a tecnologia
temos mais tempo à nossa disposição. Com um conhecimento mais amplo,
estamos tendo uma saúde melhor e mais energia. E com a prosperidade temos
agora mais oportunidades de proporcionar a nós mesmos e à nossa família
crescimento e experiências especiais. Nossas avós e bisavós nem poderiam
conceber tal liberdade de escolha nem tal infinidade de opções.
Essas bênçãos, contudo, contribuem tremendamente para a nossa
ansiedade, quando as escolhas com que nos deparamos não são apenas entre
o certo e o errado, mas também entre o certo e o certo. Devo levar as crianças
a mais uma aula de balé ou participar de um debate sobre “Como ser uma
melhor mãe”? Devo passar a noite com meu marido ou correr para a capela e
assistir a uma palestra com o tema “O que todo homem espera de sua
esposa”? Preocupamo-nos e perguntamo-nos se devemos viver
relacionamentos mais significativos ou dedicar o tempo necessário para
cultivá-los. E quem deve vir em primeiro lugar: nosso marido? nossos filhos?
a Igreja? nossos demais familiares? nossos vizinhos? os não-membros? os
mortos? nós mesmos?
Às vezes, não sabemos para que lado ir, nem qual tarefa realizar
primeiro. Sentimo-nos frustradas, por vezes amedrontadas e com freqüência
completamente exaustas. Muitas vezes achamos que somos um fracasso total.
Onde podemos buscar ajuda? Como podemos manter a fortaleza e
concentração? Como podemos conservar- nos equilibradas e calmas, em vez
de perdidas em meio à confusão reinante? Resumindo, como podemos
organizar o caos?
Prefiro acreditar que o Senhor não nos colocaria neste mundo solitário e
triste sem um plano para nossa vida. Em Doutrina e Convênios 52:14, lemos:
“E também eu vos darei um modelo em todas as coisas, para que não sejais
enganados”. Ele deu-nos modelos nas escrituras e nas cerimônias do templo.
Escolhi os símbolos do templo para exemplificar o que está por detrás
das muitas faces que já tive de usar. Oro humildemente para que por meio das
coisas íntimas que relatar, vocês consigam aplicar algo em sua própria busca
de identidade individual e segurança eterna.
O templo é altamente simbólico. Alguém já o chamou de Universidade
do Senhor. Surpreendo a mim mesma aprendendo continuamente quando vou
ao templo com a mente aberta. Faço um esforço, um exercício para encontrar
significados mais profundos. Procuro paralelos e símbolos. Busco temas e
motivos, assim como o faria numa composição de Bach ou Mozart, e busco
padrões repetidos.
Meu hábito de buscar símbolos sagrados e meu testemunho de encontrar
respostas para meus problemas pessoais foram passados para mim de mãe
para filha para neta. Aprendi com várias gerações de filhas de Eva a relação
próxima que existe entre nossos desafios temporais e o mundo espiritual, e
como um ajuda o outro quando freqüentamos o templo. Para que entendam
meus sentimentos profundos relacionados a isso, decidi relatar minha
primeira experiência com o poder de proteção do templo.
Eu tinha doze anos de idade e vivia em Enterprise, Utah, quando meus
pais foram chamados como oficiantes no Templo de St. George, a quase cem
quilômetros de distância. Ao contar-me sobre seu chamado, minha mãe
explicou-me o que eram os templos, por que as pessoas serviam lá e que
experiências espirituais alguns santos tinham lá. Ela verdadeiramente
acreditava que o mundo visível e o invisível se encontravam e se misturavam
no templo. A partir daquele chamado, minhas tarefas incluiriam sair mais
cedo da escola uma vez por semana e correr para casa para cuidar de cinco
irmãos menores, o mais novo ainda dando os primeiros passos. Lembro-me
de reclamar dessa designação certa vez e nunca esquecerei a veemência com
que minha mãe disse: “Quando seu pai e eu fomos designados para esse
chamado, foi-nos prometido que nossa família seria abençoada e protegida,
até mesmo por anjos ministradores”.
No fim da tarde de um daqueles dias em que meus pais estavam no
templo, quando eu já estava exausta de entreter meus irmãozinhos, pus o
bebê em um carrinho e, com os outros meninos, caminhei cinco quarteirões
para visitar minha avó.
Após um cumprimento caloroso, minha avó sugeriu que ficássemos
brincando no quintal enquanto ela ia comprar algo para preparar um lanche.
Distraída com os outros meninos, nem percebi quando o bebê começou a
seguir nossa avó. De repente, apavorada, percebi que ele não estava mais à
vista. Instintivamente, corri na direção do carro e ainda vi a roda traseira
passar por cima da cabecinha dele, imprensando-a contra o chão de cascalho.
Tomada de desespero, gritei o mais alto que podia. Minha avó sentiu o
impacto, ouviu meu grito e soube imediatamente do que se tratava. Contudo,
em vez de parar o carro, entrou em pânico e atropelou-o novamente. Por duas
vezes a roda do carro deu uma volta completa sobre a cabeça dessa amada
criança que fora colocada sob minha inteira responsabilidade.
Os gritos histéricos de duas vozes femininas logo chamaram a atenção
de meu avô. Ele veio correndo de dentro da casa e tomou nos braços o bebê,
(que eu e minha avó tínhamos certeza que estava morto) e os três correram
desatinadamente até o médico mais próximo, que ficava a cerca de oitenta
quilômetros. Orei e chorei, chorei e orei. Contudo, as crianças lembram-se de
promessas mesmo quando os adultos podem vir a esquecê-las, e curiosamente
me senti calma e confortada. Lembrei-me da parte da promessa que falava de
“os anjos ministradores”.
Depois do que pareceu uma eternidade, meus avós telefonaram e
disseram-me que o bebê estava bem. Seu rosto tinha arranhões e contusões no
local em que a roda passara sobre sua cabeça e face, mas não havia
traumatismo craniano. Contudo, por duas vezes vi claramente a força daquela
roda sobre cabecinha dele.
Aos doze anos não se pode conhecer muitas coisas espirituais. Em
especial, eu não sabia o que acontecia dentro do templo de Deus. Mas eu
sabia por experiência própria que era algo sagrado, pois sentira que havia
anjos celestiais para proteger e amparar as pessoas envolvidas em seu
trabalho. Eu já conhecia um pouco da ajuda divina do outro lado do véu.
Em Doutrina e Convênios 129, a seção que nos ensina acerca da
santidade do templo, no versículo 22 lemos: “E rogamos-te, Pai Santo, que
teus servos saiam desta casa armados de teu poder; e que teu nome esteja
sobre eles e tua glória ao redor deles e que teus anjos os guardem”.
Essa é uma grande promessa para os que se sentem sobrecarregados com
as pressões e o stress da vida diária, um poder e uma promessa que
comprovei pela primeira vez já aos doze anos de idade. Hoje, com as muitas
outras experiências que já tive, posso declarar que isso é verdade. O templo
oferece-nos proteção, símbolos e promessas que podem acalmar-nos,
fortalecer-nos e estabilizar-nos, por mais ansiosos e estressantes que sejam
nossas circunstâncias. Se dominarmos os princípios lá ensinados,
receberemos a promessa que o Senhor nos deu por intermédio de Isaías:
“Fixá-lo-ei como a um prego num lugar firme “. (Isaías 22:23)
O Senhor muitas vezes permite que fiquemos em estado de confusão
antes que o mestre que existe dentro de nós siga a claridade que ilumina
nosso caminho. Jeff e eu éramos um jovem casal de estudantes de pós-
graduação com dois bebês e chamados de responsabilidade na Igreja quando
o Presidente Harold B. Lee deu um ensinamento profético sobre “ordem no
caos”. Um médico ansioso, preocupado que, por causa de sua profissão e
responsabilidades na Igreja, estivesse negligenciando seu próprio filho,
perguntou ao Presidente Lee: “Como devo administrar meu tempo? O que é
mais importante na vida? Como posso fazer tudo isso?” O Presidente Lee
respondeu: “A primeira responsabilidade de um homem é para consigo
mesmo, depois para com sua família, depois para com a Igreja, sem esquecer
tampouco que ainda temos a responsabilidade de destacar-nos em nossa
profissão”. Em seguida, ele ressaltou que um homem deve primeiro cuidar de
sua própria saúde, tanto física como emocional, antes de poder ser uma
bênção para as outras pessoas.
Quando jovem, eu tinha dificuldade para entender esse conselho. Afinal,
como alguém que se preocupasse primeiro consigo mesmo poderia perder-se
pelos outros? Com o passar dos anos, percebi como a verdade contida no
conselho do Presidente Lee parecia encaixar-se perfeitamente na ordem
ensinada no templo. O templo ensina sobre prioridades, ordem, crescimento,
alegria e realização. Vejamos os seguintes ensinamentos do templo. (Retirei-
os das escrituras para não parecer estar tratando com leviandade de coisas
sagradas.)
No capítulo 4 de Abraão, os Deuses planejam a criação da Terra e de
toda a vida que nela há. Nesses planos (que precisam de trinta e um
versículos para serem delineados), a palavra ou uma forma da palavra ordem
são usadas dezesseis vezes. Os Deuses organizam e dão ordem a toda forma
de vida. “E os Deuses disseram: Faremos tudo o que dissemos e organizá-los-
emos; e eis que serão muito obedientes.” (Abraão 4:31) Se quisermos tornar-
nos como os Deuses, deveremos começar pela ordem e obedecer às leis e aos
princípios do céu que conduzem a ela.
Uma das primeiras verdades ensinadas no templo é que “toda forma de
vida [cumprirá] a medida de sua criação”. Esse é um grande mandamento!
Pensem nele à luz do conselho do Presidente Lee. Devo admitir que quando
ouvi essa diretriz pela primeira vez, pensei que se referia apenas à procriação,
ter filhos, deixar descendência. Tenho certeza de que a essa é a parte mais
importante do significado, mas como muito na cerimônia do templo é
simbólico, certamente há vários outros sentidos contidos nessa afirmação. De
que outra forma uma mulher pode cumprir a medida de sua criação? Como
ela pode tornar-se tudo que seus pais celestiais pretenderam que ela fosse? O
crescimento, a realização, o empenho, a superação de limites e o
desenvolvimento de nossos talentos fazem parte do processo de tornarmo-nos
mais semelhantes a Deus, a medida final de nossa criação.
Como poderemos ser boas esposas, mães, missionárias, oficiantes no
templo, cidadãs ou vizinhas se não nos esforçarmos para trazer o que há de
melhor dentro de nós ao realizar essas tarefas? É certamente por essa razão
que o Presidente Lee nos disse que precisamos ser fortes física e
emocionalmente para podermos ajudar os outros a serem fortes. Essa é a
ordem da criação.
Qualquer um que lê os jornais ou revistas sabe que uma alimentação
balanceada, exercícios regulares e descanso adequado aumentam nossa
capacidade diária, assim como nossa expectativa de vida. Mas muitas de nós
deixamos de lado até mesmo esses cuidados mínimos, achando que nossa
família, nossos vizinhos e nossas muitas responsabilidades devem vir em
primeiro lugar. Contudo, ao agirmos assim, colocamos em risco o que essas
pessoas mais precisam de nós: nós mesmos — saudáveis, felizes e dispostos.
Quando eles nos pedirem pão, talvez estaremos cansados demais e lhes
daremos pedra.
A questão primordial para mim, portanto, é que vale a pena dedicarmos
todo o tempo e o esforço que se fizerem necessários para atingirmos a plena
medida de nossa criação. Pensar desse modo não é egoísta, errado ou ruim;
de fato, é essencial para nosso desenvolvimento espiritual.
Meu filho mais velho tentou ensinar-me esse princípio alguns anos atrás.
Eu não estava sentindo-me bem em certo dia que prometera levar esse
menino de três anos ao zoológico. O incômodo e as dores estavam apenas
aumentando e, finalmente, disse meio exasperada: “Matthew, não sei se devo
ir ao zoológico e tomar conta de você ou se devemos ficar em casa e tomar
conta da mamãe”. Ele ficou olhando para mim por alguns instantes com
aqueles grandes olhos castanhos e logo disse enfaticamente: “Mãe, acho que
deve cuidar de você, para poder cuidar de mim”. Mesmo tão novo, ele teve a
sabedoria suficiente para saber de que forma seus interesses deveriam ser
encarados. A menos que cuidemos de nós mesmos, será praticamente
impossível cuidar de outras pessoas.
Pesquisadores da área médica estão confirmando, por meio de estudos
com pessoas que se preocupam e trabalham excessivamente, que muitas
doenças estão relacionadas ao stress. Portanto, as perguntas básicas que
devemos fazer-nos ao servir altruisticamente ao próximo são: Quanta tensão
na vida é demasiada? Quando ela se torna contraproducente? Jennifer James,
ex-membro do departamento de psiquiatria da Universidade de Washington,
dá-nos algumas sugestões:
“Todos precisam de certa quantidade de tensão corporal. É ela que nos
mantém de pé. Mas como saber se ela não está ultrapassando os limites
aceitáveis? Você tem prestado atenção a seu corpo? Como está sentindo-se?
E seu pescoço — ele está tenso? E seus ombros? Você consegue manter o
equilíbrio? Você consegue encontrar seu centro de gravidade? Você está
sempre irritado? Você gritou com alguém recentemente? E seu estômago?
Seu estômago sempre diz a verdade, a menos que você lhe dê um antiácido e
o ensine a mentir. Sabemos quando estamos tensos, mas às vezes preferimos
ignorá-lo. E pergunto: por quê?
Sabemos que os exercícios proporcionam um alívio quase instantâneo da
tensão. Sabemos que se abandonarmos a cafeína e o açúcar, pararmos de
fumar e deixarmos de ser viciados em trabalho, poderemos aliviar o stress.
Mas muitas vezes não agimos assim.
Alguns acham que outras pessoas vão assumir a responsabilidade — os
pais, os amigos, o cônjuge, talvez até mesmo a mãe natureza. Mas se você
não cuidar de si mesmo, ninguém mais o fará. Qual é a sua escolha? Por que
você está decidindo não cuidar de suas tensões? Acha que não merece sentir-
se melhor? Certamente merece.” (Success Is the Quality of Your Journey
[New York: Newmarket Press, 1986], p. 23)
Nosso médico em Provo, que também é um de nossos líderes na estaca,
repreendeu-me certo dia durante um exame ao perceber que o último item de
minha lista de preocupações era o cuidado comigo mesma. Ele olhou-me
firmemente nos olhos e pediu que eu recordasse as promessas feitas na
investidura, e depois as promessas das iniciatórias. Nossos filhos e netos e
toda a nossa posteridade dependem, de certa forma, de nossa saúde física.
Cuidar dela é, portanto, um requisito para a segunda prioridade do Presidente
Lee — a saúde emocional.
Fomos criados para tornar-nos como os Deuses. Isso quer dizer que já
temos dentro de nós atributos divinos inerentes, e o maior de todos eles é a
caridade cristã. E a chave para a saúde emocional é a caridade — o amor. A
alegria vem de amar e ser amado. Quando esse atributo divino está em ação
em nossos sentimentos por nossa família, nossos vizinhos, nosso Deus e nós
mesmos, sentimos alegria. Quando ele está imobilizado por conflitos com
outras pessoas, Deus e nós mesmos, nosso crescimento e nossa atitude são
afetados.
A depressão, o conflito ou o negativismo são em geral uma mensagem
de que não estamos crescendo rumo à direção da medida plena para a qual
Deus nos criou. Nossa dor — a dor emocional — indica que devemos parar e
dedicar um pouco de tempo para realizar mudanças em nossa vida porque
talvez estejamos desviando-nos de nosso curso. Como o Élder Richard L.
Evans costumava dizer: “De que adiantará correr se estivermos no caminho
errado?” Obviamente, todos nós entramos no caminho errado de vez em
quando; todos temos conflitos, sentimos desânimo e cometemos erros
ocasionalmente. Mas adoro o seguinte pensamento da irmã Teres Lizia: “Se
você estiver disposto a suportar com serenidade a provação da [decepção e
fraqueza pessoal], você será para Jesus um agradável local de refúgio”. A
palavra-chave é serenidade. Se suportarmos nossas fraquezas e erros, mágoas
e dúvidas com serenidade, se aceitarmos os tempos difíceis e aprendermos
com eles, eles passarão e voltarão com menos freqüência.
Em meio à confusão que impera neste mundo, muitos afirmam que o
amor-próprio e a auto-estima são formas de egoísmo e presunção. Contudo,
sei por experiência própria que quando não aceito completamente a mim
mesma e todas as minhas falhas, defeitos e imperfeições, minha caridade para
com Deus e meu próximo é incompleta. Assim, não se sintam culpadas por
aspirarem ao amor-próprio, que em parte nos vem quando buscamos
honestamente o autoconhecimento e a auto-aceitação.
Talvez estejamos todos de acordo quanto a essa premissa, sem contudo
conhecer bem o processo para alcançá-la. Para mim, fica mais fácil
compreender quando a vejo aplicada a alguém que não eu. Por exemplo,
começo a amar meu próximo quando crio experiências que me permitirão
conhecê-lo e entender o que o leva a agir e reagir de determinada maneira em
diferentes circunstâncias e ocasiões. Quanto mais o conheço, mais o entendo.
E quanto mais o entendo, mais o amo. Meu conhecimento de Deus também
aumenta quando passo mais tempo com Ele em oração, estudando Suas
escrituras e a Seu serviço. E quanto mais O conheço e entendo, mais O amo.
Esse mesmo princípio aplica-se a nós. Amar a nós mesmos da maneira
correta exige que olhemos para dentro de nós mesmos profunda, honesta, e
como sugere a irmã Teres, serenamente. Exige que olhemos com amor o ruim
assim como o bom. Quanto mais entendemos e sabemos, mais amamos.
Nosso Pai Celestial precisa de nós como somos e como podemos vir a
tornar-nos. Ele fez-nos diferentes uns dos outros intencionalmente, para que
mesmo como nossas imperfeições pudéssemos cumprir Seus propósitos. O
que mais me desagrada é sentir que preciso adequar-me ao que os outros
estão fazendo ou ao que acho que esperam de mim. Gozo a maior felicidade
quando me sinto à vontade sendo eu mesma e tentando fazer o que eu e meu
Pai Celestial esperamos de mim mesma.
Por muitos anos tentei comparar a calada, reflexiva e pensativa Pat
Holland com o robusto, falante, expansivo e ativo Jeff Holland e outros com
qualidades semelhantes. Aprendi por meio de repetidos fracassos que não se
pode ter alegria sendo expansivo se você não é uma pessoa expansiva. É uma
contradição. Já desisti de considerar-me uma pessoa inferior por ter um nível
de energia menor do que o de Jeff, ou por não falar tanto quanto ele, nem tão
rápido. Ter desistido disso me trouxe liberdade para assumir e apreciar meu
próprio jeito de ser e minha personalidade na medida de minha criação.
Ironicamente, isso me permitiu admirar e desfrutar ainda mais a maneira de
ser eletrizante de Jeff.
Em algum lugar, de alguma forma, o Senhor fez-me entender que minha
personalidade foi criada para encaixar-se precisamente na missão e nos
talentos que Ele me concedeu. Por exemplo, o talento reservado e calmo de
tocar piano revela muito a respeito da verdadeira Pat Holland. Eu nunca teria
aprendido a tocar piano se não tivesse passado as longas horas em solidão
que são necessárias para o desenvolvimento dessa habilidade. O mesmo
princípio aplica-se a meu amor à escrita, leitura, meditação e principalmente
o meu imenso prazer de ensinar meus filhos e conversar com eles. De forma
miraculosa, descobri que tenho fontes ricas e inesgotáveis de energia para ser
eu mesma. Mas no momento em que decido imitar alguém, sinto-me dividida
e fatigada, nadando inutilmente contra a corrente. Quando frustramos o plano
de Deus para nós, privamos este mundo e o reino de Deus das contribuições
que só nós podemos fazer, e uma séria cisão instala-se em nossa alma. Deus
nunca nos deu tarefa alguma acima de nossa capacidade de realizá-la. Só
precisamos estar dispostos a fazê-la à nossa própria maneira. Sempre teremos
recursos suficientes para sermos quem somos e o que podemos tornar-nos.
Conhecer a nós mesmos não é egoísmo; é uma jornada espiritual
prioritária. Paulo exorta-nos: “Examinai-vos a vós mesmos, se permaneceis
na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que
Jesus Cristo está em vós?” (II Coríntios 13:5) Precisamos, cada um de nós,
preparar-nos agora para intensificarmos nossa própria jornada interior. Em
nenhum outro local ou ambiente podemos receber mais esclarecimento e luz
para nosso autoconhecimento do que no templo. Se formos lá com
freqüência, o Senhor nos ensinará que fomos criados para ter alegria, e a
alegria virá quando aceitarmos a verdadeira medida de nossa criação.
Em Doutrina e Convênios, lemos: “E permite, Pai Santo, que a todos os
que adorarem nesta casa sejam ensinadas palavras de sabedoria (…) e que
cresçam em ti e recebam a plenitude do Espírito Santo e organizem-se de
acordo com tuas leis e preparem-se para obter todas as coisas necessárias”.
(D&C 109:14–15)
Depois de nossa saúde física e emocional, nossa próxima prioridade é a
família, e a família dos santos dos últimos dias começa onde termina: com
um homem e uma mulher, unidos no templo de Deus. No templo,
entendemos que “nem é o homem sem a mulher, nem a mulher sem o
homem, no Senhor”. (I Coríntios 11:11) Em Abraão 4:27, lemos: “Então os
Deuses desceram para organizar o homem a sua própria imagem, para formá-
lo à imagem dos Deuses, para formá-los, homem e mulher”. É preciso tanto o
homem como a mulher para formar a imagem completa de Deus.
Quando nos casamos, Jeff e eu nos tornamos uma nova entidade. Juntos,
Jeff, com toda a sua masculinidade, e eu, com a toda a minha feminilidade,
criamos uma nova unidade, completa e homogênea. Nessa integração, Jeff
partilha de minha feminilidade e eu de sua masculinidade para que o todo,
habilmente encaixado, seja muito maior do que a soma das partes. Mas
Satanás não quer que sejamos um: ele sabe que quando o somos, temos
grande poder.
Assim, ele insidiosamente insiste em nosso individualismo,
independência e autonomia; caso cedamos, a unidade conjugal acaba por
fragmentar-se e romper-se.
Quanto ao casamento, vejamos o que escreveu Madeleine L’Engle: “O
relacionamento original entre homem e mulher foi concebido para ser uma
relação de realização e alegria mútuas, mas infelizmente acabou marcado por
suspeitas, brigas, desentendimentos e exclusão e só será restaurado em sua
plenitude no fim dos tempos. Entretanto, são-nos dados vislumbres do
relacionamento original para que tenhamos condições de alegrar-nos em
nossa participação”. (The Irrational Season [New York: The Seabury Press,
1977], p. 9)
Há duas perspectivas que procuro ter sempre em mente pois ajudam a
manter união entre Pat e Jeff Holland.
Primeiramente, andamos juntos como parceiros iguais, plenos,
participativos e em desenvolvimento. A maior parte de nossos movimentos
dá-se em um relacionamento lateral. Caminhamos lado a lado, próximos um
do outro, simultaneamente, como dois bois puxando o mesmo arado. Mas há
ocasiões em que, em nome do progresso e desenvolvimento divinos, sigo
meu marido em um relacionamento vertical. A casa de Deus é uma casa de
ordem. Nós sempre estamos atrás de alguém naquele curso estreito que leva à
felicidade eterna. Sou muito grata por ter-me tocado estar atrás de Jeff.
Em boa parte do tempo, ajo de forma autônoma e independente. De fato,
Jeff confirmaria que sou uma das mulheres mais independentes que ele
conhece. Mas quando tomamos grandes decisões, e mesmo algumas
pequenas, quando estou preocupada com os filhos ou minhas designações na
Igreja ou sentindo fraqueza e dor, dou ouvidos e obedeço aos conselhos de
meu marido, pois sei que ele obedece aos conselhos do Pai. Sei que essa é a
ordem do céu.
Se Deus nos criou para que juntos fôssemos um, devemos ser a
prioridade um do outro. “Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez
macho e fêmea. Por isso deixará o homem a seu pai a sua mãe, e unir-se-á a
sua mulher, e serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma
só carne”. (Marcos 10:6–8)
Creio firmemente que meu marido vem em primeiro lugar — antes dos
amigos, do pai, da mãe, da comunidade, da Igreja e mesmo dos filhos.
Estávamos juntos e sós no início de nosso casamento e, se os céus
permitirem, estaremos juntos no final. Felizmente, acho que já estamos
amadurecidos o suficiente para perceber quando as necessidades dos filhos
devem sobrepor-se às nossas. Além disso, nossos filhos hoje reconhecem que
a melhor coisa que fizemos por eles, o que lhes trouxe mais segurança no
decorrer dos anos, foi o amor e cuidado que sempre tivemos um para com o
outro.
Quando nossa filha, Mary, tinha cerca de nove anos, ela percebeu com
grande sensibilidade que tanto Jeff quanto eu estávamos abatidos e com o
relacionamento um pouco desgastado. Assim, ela disse: “Mãe, está na hora
de a senhora e o papai saírem para passear”. As crianças percebem que o
tempo que passamos juntos como casal é uma das melhores e mais
renovadoras coisas que podemos fazer por eles e por nós mesmos.
Amo a instrução que o Senhor deu a Emma Smith e a todas as esposas:
“O dever de teu chamado será confortar meu servo, (…) teu marido, em suas
aflições, com palavras consoladoras, com espírito de mansidão”. (D&C 25:5)
Sinto que estou no auge de minha criação quando estou confortando e
consolando meu marido. Nada me é mais recompensador e me traz tanta
alegria. Os sons mais doces para meus ouvidos são quando Jeff sussurra para
mim: “Você é minha âncora, meu alicerce, meu porto seguro. Eu nunca
poderia ter feito essa tarefa sem você”.
Amo igualmente o conselho de Paulo a todos os maridos: “Assim devem
os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos.
Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque nunca ninguém odiou a
sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à
Igreja; porque somos membros do seu corpo, da sua carne, e dos seus ossos”.
(Efésios 5:28–30)
Em segundo lugar, os casamentos são formados para que procriem, para
que levantem posteridade — tendo alegria e regozijo com isso. Uma parte
crucial de qualquer prioridade em um casamento, portanto, são os filhos,
ainda que eu reconheça prontamente que alguns casais não receberam essa
bênção. De fato, grande parte de minha ansiedade na vida gira em torno de
meus filhos. Uma vez que o mundo em que vivo é complexo e cheio de
desafios, às vezes temo e tremo ao tentar prever o que os espera. Já estamos
vendo os sinais dos tempos. Enoque teve visões do futuro que os aguarda; ele
viu suas dificuldades e tribulações; ele viu “o coração dos homens, que
desfalecia, esperando com temor os julgamentos”. (Ver Moisés 7:58–59)
Jeff e eu concordamos que, depois de nossa espiritualidade individual e
conjugal, nossa maior prioridade espiritual é sermos pais conscientes e
dedicados, fazendo com que nossos filhos não “[temam] maus rumores; que
seu coração [esteja] firme, confiando no Senhor”. (Salmos 112:7) Sabemos
que, para que nossos filhos sejam pacíficos, firmes e confiantes no Senhor,
em grande parte isso dependerá se nós mesmos formos pacíficos, firmes e
confiantes no Senhor. Creio que a influência mais poderosa na vida de uma
criança é a imitação, principalmente a imitação dos pais. Se estivermos
inquietos, preocupados ou desequilibrados de qualquer forma, certamente
nossos filhos ficarão inquietos, preocupados e desequilibrados.
Viver de maneira calma e tranqüilizadora para nossos filhos exige tempo
— um tempo de paz, amor e dedicação. Isso significa aprender a dizer ‘não’
para algumas coisas que nos forem pedidas, sem sentirmos culpa. Ainda não
aprendi a fazer tudo, mas com a enorme prática que venho tendo ao longo dos
anos, tenho-me tornado especialista em dizer ‘não’ sem sentir dor na
consciência. Recebo quase que diariamente um ou dois convites importantes
para discursar. Mas uma pessoa só não pode fazer isso tudo. Jeff e eu já
conversamos e decidimos tentar dedicar uma quantidade de tempo adequada
para nós individualmente, os dois juntos, nossos filhos, nossas
responsabilidades na Igreja e nossa comunidade. Isso é bastante para
conciliar.
Assim, aprendi a dizer ‘não’ a certas coisas para poder dizer ‘sim’ a
outras. O ‘sim’ mais importante que podemos dizer a nossos filhos é: “Sim,
tenho tempo para você”. E para mim isso quer dizer tanto quantidade como
qualidade de tempo.
Passei dois anos maravilhosos como conselheira na Presidência Geral
das Moças da Igreja. Por muitas razões sou grata ao Senhor por ter-me
chamado do lar para aqueles dois anos de serviço em tempo integral. Tive o
privilégio de contribuir para a vida de pessoas que talvez não tenham tido as
vantagens que desfrutamos em nosso lar. Ao mesmo tempo, meu marido e os
filhos aprenderam a importância de se fazer sacrifícios, de servir uns aos
outros e a alegria de saber que Cristo vai recompensar-nos e carregar-nos
quando formos chamados para servir a Ele.
Ter uma responsabilidade em tempo integral fora do lar também me
ensinou um pouco a respeito dos desafios encontrados quando tentamos
conciliar a família e as expectativas do local de trabalho. Tenho consciência
das dificuldades enfrentadas pelas mulheres que têm de trabalhar enquanto os
filhos ainda estão em casa. Certamente não quero emitir julgamentos nem
causar ofensas ao falar de um assunto tão penoso e delicado. Mas o que sei é
que por meio de minha experiência, o Senhor ensinou-me valiosas lições
acerca das necessidades de meus filhos.
As pessoas que levam à sério seu trabalho acabam colocando-se em
situações em que receberão ainda mais obrigações. Com o passar dos meses
em que estava servindo, comecei a ver como essas crescentes
responsabilidades estavam começando a ir diretamente de encontro a meus
deveres de esposa e mãe. Como Deborah Fallows escreveu: “quanto mais
‘bem-sucedida’ for a posição, em termos de prestígio, poder, dinheiro e
responsabilidade, mais corriqueira e restritiva pode ser a sua tirania”. (A
Mother’s Work [Boston: Houghton Mifflin, 1985], pp. 18–19) É mais fácil
pedir a nossos filhos que se adaptem a nosso horário do que solicitar a nosso
empregador que o faça. As crianças ainda não aprenderam a reivindicar seus
direitos.
Certa tarde, minha filha Mary chegou da escola um pouco mais cedo do
que o normal. Se fosse na época em que estava servindo em Salt Lake City,
eu não estaria em casa para recebê-la, mas naquele dia, o Senhor me colocou
onde mais precisavam de mim. Ela entrou na cozinha em prantos, falando de
uma conversa que tivera com alguns amigos e um professor sobre assuntos
polêmicos e preocupantes. Isso deu ensejo à experiência mais doce, íntima e
edificante que tivemos na adolescência dela. Tanto foi assim, que ela disse
posteriormente: “Sabe, mãe, se a senhora não estivesse em casa, nunca
teríamos tido essa conversa, porque acho que depois de comer um sanduíche
e ver um pouco de televisão, nem acharia mais necessário”.
Como a conversa tinha a ver com virtudes e valores extremamente
importantes, tenho agradecido ao Senhor muitas vezes por aquela simples
oportunidade. Nossos melhores momentos e de maior qualidade muitas vezes
não vêm quando estamos preparados e buscando-os, mas como episódios
surpreendentes e fugazes que não poderíamos ter previsto. Se tivermos sorte
e estivermos alertas, poderemos desfrutar tais momentos.
Estar por muito tempo longe de meus filhos durante dois anos ajudou-
me a entender que quando um ou mais de meus filhos estão confusos, em
apuros ou dificuldades, eu, como mãe, reajo de forma diferente do que
reagiria uma babá, amiga ou avó, por mais amorosas e cuidadosas que sejam.
Ironicamente, foi por meio de meu serviço em tempo integral para um
programa da Igreja que aprendi que nenhuma outra pessoa pode ser a mãe de
meus filhos e que minha maior tarefa e alegria é ser uma esposa e mãe em
meu próprio lar.
Deborah Fallows sintetiza com exatidão os meus sentimentos: “Para
alcançar meus padrões de maternidade responsável, preciso conhecer [meus
filhos] o melhor que puder e vê-los no maior número possível de ambientes e
situações para assim poder saber como ajudá-los melhor a crescer,
confortando-os, disciplinando-os, sendo confiáveis, deixando que tomem
iniciativas ou estando a seu lado, sem os sufocar. O que preciso é de tempo
com eles, em quantidade, não [apenas] ‘qualidade’”. (Ibid., p. 16)
O conhecido psicólogo Scott Peck escreveu: “Os pais que dedicam
tempo aos filhos, mesmo quando não motivados por uma má ação visível das
crianças, perceberão necessidades sutis de disciplina e reagirão a elas com
recomendações, reprimendas, punições ou elogios, administrados com
consideração e cuidado. Eles observarão como seus filhos comem, como
estudam, quando contam pequenas mentiras, quando fogem dos problemas
em vez de enfrentá-los. Eles se preocuparão em fazer essas pequenas
correções e ajustes, ouvindo os filhos, dando-lhes atenção, apertando um
pouco aqui, afrouxando um pouco ali, fazendo pequenos sermões, contando
histórias, dando beijos e abraços, advertências e tapinhas no ombro”. (The
Road Less Traveled [New York: Touchstone, 1978], p. 23)
Algo essencial para a saúde mental de toda criança é sentir-se
valorizada. E a forma com que despendemos nosso tempo revela aos filhos
exatamente o valor que eles têm para nós. Dessa forma, os filhos
proporcionam aos pais seu maior desenvolvimento espiritual. Os filhos são
nossa prática para sermos pais celestiais.
A prioridade final em nossa espiritualidade está relacionada à edificação
do reino de Deus. Sempre tento lembrar-me de que todas as nossas
prioridades principais estão interligadas, de que a Igreja é uma estrutura
terrena com o objetivo de ajudar-me em minha responsabilidade eterna para
com Deus, minha família e demais pessoas sobre quem eu possa vir a exercer
influência justa, estejam elas vivas ou mortas. A Igreja ajuda-me muito nas
tarefas em que estou disposta a fazer minha parte, a desempenhar meu papel
de ajudar meu próximo em seu progresso.
É claro que o Senhor sabe que nosso serviço na Igreja, além de abençoar
e ajudar as outras pessoas, favorece nosso próprio desenvolvimento pessoal.
Tenho a plena consciência de que, devido a meu serviço na Igreja, comecei a
desenvolver talentos que nem sabia possuir: talentos de oratória, escrita,
música, ensino, aprendizado e principalmente amor. Acima de tudo, a Igreja
concede-me uma estrutura propícia ao desenvolvimento de meu atributo
divino da caridade.
A escolha que às vezes temos de fazer entre família e Igreja é a mais
difícil de todas que poderemos enfrentar. Mas também nesse caso, nossos
profetas deram-nos diretrizes para que decidíssemos o que é essencial e o que
é secundário. Quando todo lar tomar como modelo o templo, “uma casa de
oração, uma casa de jejum, uma casa de fé, uma casa de aprendizado, uma
casa de glória, uma casa de ordem, uma casa de Deus” (D&C 109:8), o reino
de Deus virá a nós. Mas como nem nosso lar nem nós mesmos somos
perfeitos, e uma vez que muitos ainda estão iniciando a caminhada, com
menos privilégios do que outros, nós nos valemos da estrutura e dos
programas da Igreja para ensinar, abençoar, servir e sacrificar-nos por
pessoas que não são de nossa família, até sermos iguais em todas as coisas.
Somos todos abençoados generosamente por nosso serviço na Igreja. É a
melhor maneira de que dispomos para guardar os dois grandes mandamentos:
amar a Deus e a nosso próximo como a nós mesmos.
Agora vou fechar o círculo, terminando onde comecei. De maneira bem
pessoal, abri-me e relatei minha perspectiva da organização e da ordem que
os ensinamentos do templo me inspiram, mas não com o intuito de fazer com
que sua vida seja exatamente igual à de Pat Holland, pois cada um de nós só
terá paz se cumprir a medida de sua própria criação. Espero ter simplesmente
conseguido estimulado seus processos cognitivos, para levá-los a estabelecer
prioridades para sua vida. Espero que essa mensagem venha a criar em cada
um de nós o desejo de delimitar mentalmente nosso propósito na vida, para
que não sejamos presa fácil para preocupações sem importância, temores,
fraquezas, fracassos, contratempos ou infelicidade momentânea. Como
podem ver, assim como vocês, há dias em que me levanto sentindo-me
alegre, disposta, em paz e confiante de que tudo está bem. Mas há tensões
dinâmicas em ação dentro de todos nós e às vezes somos acometidas por
dúvidas, descontentamento com o Senhor e inquietações que impedem que
sintamos satisfação e que armazenemos energia divina para buscar novas
verdades.
Nos dias em que me sinto fora de ritmo, sem poder de concentração ou
emocionalmente instável, quando sinto que não tenho tempo, sabedoria ou
força para solucionar meus problemas, sei que o conforto de que preciso está
no templo. Antes de ir até lá, isolo-me por alguns instantes em um quarto da
casa, onde vou com tanta freqüência para orar que sinto ser um local em que
posso aproximar-me grandemente do Pai Celestial. Ali, ajoelho-me e
expresso meus sentimentos mais profundos de amor e gratidão. Também
exponho meus problemas ao Senhor, um por um, colocando todos os meus
fardos e todas as minhas decisões aos pés Dele. Após essa preparação, retiro-
me deste nosso mundo de vaidades, loucura e falsidade e vou à Casa do
Senhor. Lá, vestida da mesma forma que meu próximo e sem janelas ou
relógios para distrair-me, consigo ver o mundo de maneira mais objetiva. Ali,
lembro-me de que a vida é essencialmente uma jornada do espírito para uma
esfera mais elevada e sagrada. Lembro-me de que o sucesso de minha
caminhada depende de minha obediência aos passos seqüenciais que Deus
colocou no meu mapa rodoviário individual.
Ao servir a outra irmã no templo, alguém que não teve os mesmos
privilégios que eu em sua vida, tenho a oportunidade e o tempo de estar só,
orar reservadamente e meditar. Tenho tempo para ouvir e para refletir sobre
os passos que devo dar, os que forem certos para mim. O Senhor
freqüentemente me mostra a melhor maneira de fazer escolhas entre o certo e
o errado e também entre o certo e o certo. Ele abençoa-me para que eu veja o
que é essencial e o que é secundário. Sinto-me confortada em meus
momentos de desânimo e sou capaz de vê-los como meras mensagens que me
guiam na direção de meu destino eterno. Se o Senhor em Seu amor e
benevolência faz isso para mim, presto testemunho de que Ele fará o mesmo
para vocês!
Somos filhas de pais celestiais que nos convidaram a empreender uma
jornada para nos tornarmos semelhantes a eles. Eles colocaram a nossa
disposição uma casa sagrada aonde podemos ir e recordar que há alegria
nessa caminhada, que tudo tem um propósito, que a vida pode ser vivida com
tanto amor na Terra como o é no céu. Que todas as nossas faces — nossas
muitas faces de Eva — reflitam o espírito radiante do Senhor e a grande
glória de Deus que é nossa.
Capítulo 8

COM O ROSTO VOLTADO PARA O FILHO

Somos todas filhas de Eva, sejamos casadas ou solteiras, férteis ou


estéreis. Fomos criadas à imagem de Deus para nos tornarmos deusas.
E podemos oferecer um pouco desse protótipo materno umas para as
outras e para as que virão depois de nós. Sejam quais forem nossas
circunstâncias, podemos estender a mão, tocar, segurar, levantar e
nutrir, mas não podemos fazê-lo de forma isolada. Precisamos de uma
comunidade de irmãs apaziguando a alma e fechando as feridas da
fragmentação.

Logo depois de ser desobrigada da Presidência Geral das Moças em


abril de 1986, tive a oportunidade de passar uma semana em Israel. Aqueles
haviam sido dois anos difíceis e estafantes para mim. Ser uma boa mãe —
com bastante tempo para poder ter sucesso nesse esforço — sempre foi
minha principal prioridade, assim tentei ser uma mãe em tempo integral para
um menino na escola primária, uma jovem no secundário e um rapaz
preparando-se para sair em missão. Também tentei ser uma esposa em tempo
integral para um reitor extremamente ocupado. E ainda precisava ser
conselheira em tempo integral naquela presidência geral, da melhor forma
que alguém morando a oitenta quilômetros do escritório conseguiria. Mas em
um importante período de formação de princípios e estabelecimento de
programas, preocupei-me que não estivesse fazendo o bastante e tentei correr
um pouco mais rápido.
Lá pelo fim de meu segundo ano naquele chamado, minha saúde
começou a declinar. Comecei a perder peso de maneira acentuada e não
estava dormindo bem. Meu marido e meus filhos estavam tentando recompor
meus pedaços, e eu procurava fazer o mesmo com eles. Estávamos exaustos.
Contudo, eu ainda ficava a perguntar-me como poderia administrar tudo isso
melhor. As Autoridades Gerais, sempre cheias de compaixão, estavam
observando e amorosamente me desobrigaram. Minha família e eu ficamos
extremamente gratos pela conclusão de meu chamado; contudo, eu sentia
falta do convívio com aquelas mulheres que eu aprendera a amar tanto e devo
confessar que senti até uma certa perda de identidade. Quem era eu e onde eu
estava em meio a todo esse tumulto de obrigações? A vida devia ser tão
difícil assim? Ate que ponto eu tinha tido sucesso em minhas várias e
conflitantes designações? Ou será que eu tinha sido um fracasso em todas
elas? Os dias que sucederam minha desobrigação foram quase tão difíceis
quanto as semanas que a antecederam. Meu tanque estava vazio, e eu não
tinha certeza se haveria um posto à frente para que eu me reabastecesse.
Poucas semanas depois, meu marido recebeu uma designação para ir a
Jerusalém, e as Autoridades Gerais que o acompanhariam pediram que eu
fosse junto. “Vamos”, disse ele. “Você pode recuperar-se na terra do
Salvador, de água viva e pão da vida”. Apesar do cansaço, arrumei as malas,
crendo — ou ao menos esperando — que a estada lá fosse um período de
descanso e cura.
Em um dia de céu límpido e belíssima claridade, sentei-me de frente
para o Mar da Galiléia e reli o décimo capítulo de Lucas. Mas em vez do que
estava na página, pensei ver com a mente e o coração as seguintes palavras:
“[Pat, Pat, Pat,] estás ansiosa e afadigada com muitas coisas”. Logo, o poder
da revelação pura e pessoal envolveu-me quando li: “Mas uma só — somente
uma — é verdadeiramente necessária”. (Ver Lucas 10:40–41.)
O sol de maio em Israel é tão forte que parece que estamos no topo do
mundo. Eu acabara de visitar o local em Bete-Horom onde o sol parara para
Josué (ver Josué 10:12), e de fato, naquele dia parecia acontecer o mesmo
para mim. Ao ficar ali sentada pensando em meus problemas, senti os raios
purificadores daquele mesmo sol como se fosse um líquido quente sendo
destilado em meu coração, relaxando, acalmando e consolando minha alma
perturbada.
Nosso Pai amoroso parecia estar sussurrando para mim: “Você não
precisa preocupar-se com tantas coisas. A única coisa necessária, a única
coisa verdadeiramente necessária, é manter os olhos voltados para o sol, a
Luz do mundo: Meu Filho”. De repente, eu estava sentindo uma paz
verdadeira. Eu sabia que minha vida sempre estivera em Suas mãos, desde o
início. O mar que estava tão calmo ali diante de meus olhos já se mostrara
encapelado e perigoso muitas e muitas vezes. Tudo que eu precisava era
renovar minha fé e agarrar firmemente a mão Dele, e juntos poderíamos
andar sobre as águas.
Gostaria de fazer uma pergunta para levar todos nós à reflexão. Como
nós mulheres podemos fazer aquele salto quantitativo de um estado de
perturbação e preocupação, incluindo-se aí as preocupações legítimas, para o
de mulheres de maior fé? Um estado de espírito certamente parece negar o
outro. A fé e o medo não podem coexistir por muito tempo. Pensem em
algumas das coisas que nos inquietam.
Servi como presidente da Sociedade de Socorro em quatro alas
diferentes. Duas dessas alas eram para adultos solteiros e duas eram alas com
muitas jovens mães. Ao sentar-me em conselho com as irmãs solteiras, meu
coração muitas vezes doía ao ouvi-las descrever-me seus sentimentos de
solidão e desânimo. Elas sentiam que sua vida não tinha significado ou
propósito em uma Igreja que, com toda a razão, dá tanta ênfase ao casamento
e à vida familiar. O mais doloroso de tudo era ouvir os comentários de alguns
que insinuavam que a culpa por estarem solteiras era delas ou que elas não
estavam casadas devido a um desejo egoísta seu. Elas estavam buscando
ansiosamente paz e propósito, algo de real valor a que pudessem dedicar a
vida.
Contudo, parecia-me que as jovens mães tinham um número de
preocupações igualmente alto. Elas contavam-me a luta que era tentar criar os
filhos em um mundo cada vez mais difícil, nunca ter tempo, recursos ou
liberdade para se sentirem pessoas de valor, por estarem sempre no limite da
sobrevivência. E havia muito poucas evidências palpáveis de que iam ter
sucesso em seus esforços. Não havia ninguém para dar-lhes um aumento no
salário e, além do marido (que nem sempre se lembrava), não havia ninguém
para elogiá-las quando faziam algo bem. E elas estavam sempre cansadas! O
que lembro mais vividamente é como elas pareciam exaustas.
Havia ainda aquelas mulheres que, não por falha alguma sua,
encontravam-se na situação de único provedor para seu lar financeira,
espiritual, emocionalmente e em todos os outros aspectos. Eu mal conseguia
compreender os desafios que elas precisavam enfrentar. Obviamente, as
condições dessas irmãs eram, de certo modo, as mais difíceis de todas.
A perspectiva que ganhei ao longo desses muitos anos ouvindo as
preocupações de mulheres é que nenhuma mulher ou nenhum grupo de
mulheres — solteiras, casadas, divorciadas, viúvas, donas-de-casa ou
profissionais — esgotaram o estoque infinito de preocupações. Parece haver
desafios suficientes para todas.
Todas nós temos privilégios e bênçãos, assim como temores e
tribulações. Parece ousadia dizer, mas o senso comum tende a mostrar-nos
que nunca antes na história do mundo as mulheres, incluindo as mulheres
santos dos últimos dias, enfrentaram maior complexidade em suas
preocupações.
Reconheço que o movimento feminista despertou uma maior
consciência para o princípio do evangelho que temos desde o tempo de nossa
Mãe Eva e mesmo antes — o do livre-arbítrio, do direito de escolha. Mas um
dos efeitos colaterais mais infelizes ligados a essa questão é que, por causa da
diversidade cada vez maior nos modos de vida das mulheres de hoje, ficamos
mais incertas e inseguras umas com as outras. Não nos aproximamos, mas
nos afastamos daquele senso de comunidade e irmandade que nos susteve e
nos deu força por gerações inteiras. Parece haver um aumento em nossa
competitividade e uma diminuição em nossa generosidade umas para com as
outras.
As mulheres que encontram tempo e energia para aprimorar seus dotes
domésticos, como fazer conservas e armazenar frutas e legumes,
desenvolvem importantes técnicas que lhes serão de grande proveito em
tempos de necessidade. (Com a instabilidade econômica que vemos hoje, isso
pode acontecer a qualquer momento.) Mas não devemos menosprezar aquelas
que compram suas frutas, não apreciam enlatados ou que simplesmente
fizeram uma escolha consciente de usar seu tempo e energia de outras
maneiras igualmente úteis.
Aonde estou querendo chegar com tudo isso? Durante três quartos da
minha vida, senti-me culpada até o âmago por detestar costurar. Agora, eu sei
costurar; se for absolutamente necessário, eu o faço, mas continuo odiando.
Podem imaginar o fardo que carreguei nos últimos vinte e cinco ou trinta
anos, tendo de aparentar estar adorando as reuniões de economia doméstica e
tentando sorrir quando via seis garotinhas entrar na Igreja vestidas
exatamente da mesma forma com roupas feitas a mão, cheias de babados,
rendas, laços e anáguas, desfilando na frente da mãe que usava um traje
semelhante? Não acho que minha atitude seja necessariamente virtuosa,
amável, de boa fama ou louvável, mas sou honesta em relação à minha
antipatia pela costura.
Cresci um pouco desde aquela época de pelo menos duas formas: agora
genuinamente admiro uma mãe que possa fazer algo assim para seus filhos e
já não me sinto culpada por não gostar de costurar. A questão é que não
podemos denominar-nos cristãos e continuar a julgar tão duramente uns aos
outros ou a nós mesmos. Coisas tão pequenas não compensam um confronto
que poderia comprometer nossa compaixão e irmandade.
Obviamente, o Senhor criou-nos com personalidades diferentes e
distintos graus de energia, interesse, saúde, talento e oportunidades. Contanto
que estejamos comprometidas à retidão e a levar uma vida de devoção e
fidelidade, devemos regozijar-nos com essas diferenças, lembrando que elas
são um dom de Deus. Não devemos sentir-nos tão amedrontadas, ameaçadas
e inseguras; não precisamos achar réplicas exatas de nós mesmas para poder
valorizar-nos. Há muitas coisas que podem dividir-nos, mas uma coisa é
necessária para a nossa união: a empatia e a compaixão do Filho de Deus.
Casei-me em 1963, no mesmo ano em que Betty Friedan publicou The
Feminine Mystique (A Mística Feminina) um livro que abalou a sociedade.
Assim, hoje só posso olhar para os inocentes anos 40 e 50 com minhas
lembranças de criança. Deve ter sido mais cômodo para vocês ter um modo
de vida já estabelecido, com vizinhas de todos os lados cuja vida lhes
proporcionou modelos. Contudo, deve ter sido mais doloroso para as
mulheres naquela época que, não por culpa sua, eram solteiras, tinham de
trabalhar ou viviam em famílias desfeitas. Hoje, em um mundo cada vez mais
complexo, aquele modelo anterior está fragmentado, e parecemos ter menos
certeza de quem somos e aonde estamos indo.
Certamente, não houve nenhum outro período da história em que as
mulheres questionassem seu valor pessoal de forma tão dura e crítica como
na segunda metade do século vinte. Muitas mulheres estão buscando, quase
desesperadamente, como nunca antes, um senso de propósito e significado na
vida; e muitas mulheres SUD dias estão buscando também sabedoria e
significado eterno em sua feminilidade.
Se eu fosse Satanás e quisesse destruir a sociedade, acho que
concentraria meus ataques nas mulheres. Eu as manteria tão distraídas e
perturbadas que elas nunca encontrariam a força e serenidade tão
características de seu sexo.
Satanás vem fazendo isso com grande eficácia, incitando-nos a querer
ser super-humanos em vez de esforçar-nos para alcançar nosso potencial
único, dado por Deus e de grande diversidade. Ele provoca-nos
sarcasticamente, dizendo que se não tivermos tudo — fama, dinheiro, família
e prazer — em todos os minutos, fomos injustiçadas e somos cidadãs de
segunda categoria no jogo da vida. Como mulheres, estamos enfrentando
momentos difíceis, assim como as famílias e a sociedade como um todo. As
drogas, a gravidez entre adolescentes, o divórcio, a violência familiar e o
suicídio são alguns dos efeitos colaterais cada vez mais visíveis desse modo
de vida que nos cerca.
Muitas de nós estão em dificuldades, sofrendo, muitas estão correndo
mais rápido do que permitem suas forças, esperando demais de si mesmas.
Como resultado, estamos vendo surgir novas e ainda não diagnosticadas
doenças relacionadas ao stress. A doença causada pelo vírus Epstein-Barr,
por exemplo, ficou conhecida como no jargão médico como a doença dos
anos 80. As vítimas apresentam sintomas como “febres baixas, dores nas
juntas e às vezes, garganta inflamada — mas não é gripe. Elas estão
completamente exaustas, fracas e debilitadas — mas não se trata da AIDS.
Elas ficam confusas e esquecidas — mas não é o mal de Alzheimer. Muitos
pacientes apresentam propensão para o suicídio, mas não se trata de
depressão clínica. (…) A incidência de casos no sexo feminino é três vezes
maior que no masculino e muitas das vítimas são pessoas inteligentes e bem-
sucedidas que levam uma vida estressante”. (Newsweek, 27 de outubro de
1986, p. 105)
Precisamos ter a coragem de ser imperfeitas em nossa busca pela
perfeição. Não devemos deixar que nossa própria culpa, livros feministas,
apresentadores de programas de televisão ou toda a cultura de massa nos
vendam um lote de mercadorias ruins. Podemos ficar tão confusas em nossa
busca compulsiva pela identidade e auto-estima que poderemos achar ser
possível alcançá-las no dia em que atingirmos as medidas perfeitas de nosso
corpo, graus acadêmicos elevados, status profissional ou mesmo sucesso total
como mães. Contudo, nessa busca externa, podemos vir a ser separadas de
nosso ‘eu’ interior e eterno. Muitas vezes nos preocupamos tanto em agradar
aos outros ou mostrar-nos para eles que acabamos perdendo o que nos é
único — a aceitação tranqüila e plena de nós mesmas como pessoas de valor
e individualidade. Ficamos tão assustadas e inseguras que não conseguimos
ser generosas para com a diversidade, a individualidade e os problemas
alheios. Muitas mulheres vitimadas por tal ansiedade ficam a observar
inutilmente sua vida sair dos eixos e afastar-se do centro que as mantém
seguras e equilibradas. Muitas estão em um barco em alto mar sem vela ou
leme, levadas “em roda”, como disse o apóstolo Paulo (ver Efésios 4:14), até
que cada vez mais delas fiquem terrivelmente mareadas.
Onde está a certeza que permite que dirijamos nossa nau a despeito da
força dos ventos, com o grito triunfal do comandante: “Avante!”? Onde está a
calma interior que tanto prezamos e que é tão tradicionalmente associada às
mulheres?
Creio que poderemos encontrar equilíbrio e paz na alma se evitarmos as
insatisfações físicas, as realizações de supermulheres e a preocupação
demasiada com a popularidade, e retornarmos à inteireza da alma, aquela
harmonia em nosso ser que equilibra a difícil e inevitável diversidade da vida.
Uma mulher, que não é membro da Igreja, cujos livros aprecio
imensamente é Anne Morrow Lindbergh. No seguinte trecho, ela comenta
acerca do desespero feminino e dos tormentos em geral de nossos dias:
“A feministas não tiveram uma boa visão do futuro (…); elas não
estabeleceram regras de conduta. Para elas bastava reivindicar privilégios.
(…) E [assim] a mulher hoje ainda está buscando. Temos consciência de
nossa fome e necessidades, mas ainda ignoramos o que as satisfará. Com
nosso tempo livre amontoado, estamos mais propensas a esgotar nossas
fontes criativas do que a repô-las. Com nossos mangueiras tentamos (…)
aguar um campo de futebol [em vez de] um jardim. Lançamo-nos
indiscriminadamente em comitês e causas diversas. Sem saber como
alimentar o espírito, tentarmos abafá-lo com distrações. Em vez de deter o
centro — o eixo de nossa roda — adicionamos mais atividades centrífugas à
nossa vida — o que tende a desequilibrar-nos. Mecanicamente nós ganhamos
na última geração, mas espiritualmente, (…) perdemos.” Independentemente
do período, ela acrescenta, para as mulheres “o problema [ainda] é alimentar
a alma”. (Anne Morrow Lindbergh, Gift from the Sea [New York: Pantheon
Books, 1975], pp. 51–52)
Já ponderei longa e detidamente sobre como alimentar nosso “eu”
interior com a “coisa necessária”, em meio a tantas distrações e perturbações.
Não se trata de coincidência o fato de falarmos em nutrir o espírito, da
mesma forma que falamos em nutrir o corpo. Precisamos de constante
alimento para ambos. Na língua inglesa, por exemplo, as palavras para sadio,
são, saúde, cura e sagrado têm o mesmo radical. O Presidente Ezra Taft
Benson disse: “Não há dúvida de que a saúde de nosso corpo afeta o espírito
ou o Senhor não nos teria revelado a Palavra de Sabedoria. Deus nunca deu
nenhum mandamento temporal; o que afeta nosso físico afeta nossa alma”.
Precisamos muito que nosso corpo, mente e espírito se unam em uma alma
saudável e estável.
Deus certamente é equilibrado, assim talvez estejamos mais perto Dele
quando também o formos. De qualquer forma, eu gosto da ligação que existe
entre a saúde, a cura, a sanidade e a santidade. Para alcançar unidade em
nossa alma em meio às mais diversas circunstâncias — para “deter nosso
centro” — qualquer esforço é válido.
Muitas vezes deixamos de perceber as gloriosas possibilidades dentro de
nossa própria alma. Precisamos lembrar-nos daquela promessa divina: “O
reino de Deus está entre vós”. (Lucas 17:21) Talvez esqueçamos que o reino
de Deus está dentro de nós por darmos demasiada atenção a esse invólucro
carnal, nosso corpo humano, e ao frágil e insignificante mundo em que ele se
move.
Vou relatar uma analogia que criei a partir de algo que li alguns anos
atrás. Na época, ela foi-me de grande ajuda e continua auxiliando-me em meu
exame da força interior e do crescimento espiritual.
A analogia é de uma alma — uma alma humana, com todo o seu
esplendor — sendo colocada em uma caixa belamente trabalhada, mas
firmemente trancada. Reinando com majestade e iluminando a nossa alma
nessa caixa está o nosso Senhor e Redentor, Jesus Cristo, o Filho do Deus
vivo. Essa caixa então é colocada e trancada dentro de outra caixa maior, e
assim por diante, até que haja cinco belas caixas firmemente trancadas,
esperando a mulher hábil e sábia o suficiente para abri-las. Para conseguir
livre comunicação com o Senhor, ela precisa encontrar as chaves e destrancar
as caixas. Ao ter sucesso, ser-lhe-á revelada a beleza e divindade de sua
própria alma e seus dons e graça como filha de Deus.
Para mim, a oração é a chave que abre a primeira caixa. Ajoelhamo-nos
para pedir ajuda em nossos esforços e ao nos levantarmos percebemos que a
primeira fechadura já está aberta. Mas não se trata apenas de um milagre
conveniente e gratuito, pois se estivermos buscando a verdadeira luz e o
conhecimento eterno, devemos orar como os profetas antigos. Já somos
mulheres, não crianças, e espera-se que oremos com maturidade. As palavras
usadas com mais freqüência para descrever um esforço fervoroso e urgente
são luta, súplica, clamor e fome. De certa forma, a oração pode ser o tipo de
luta mais árdua que poderemos realizar, e talvez assim deva ser. A oração é
uma proteção essencial contra a tendência de ficarmos tão envolvidos com os
bens, as honras e o status mundanos que não mais desejemos empreender
uma jornada interior, rumo a nossa própria alma.
Aqueles que, como Enos, oram com fé e ganham acesso a uma nova
dimensão de sua divindade, são conduzidos à segunda caixa. Aqui, só orar
não parece ser o suficiente. Precisamos buscar nas escrituras os ensinamentos
de Deus registrados há tanto tempo sobre a nossa alma. Precisamos aprender.
Certamente, todas as mulheres da Igreja estão sob a divina obrigação de
aprender, crescer e desenvolver-se. Temos diversos talentos em estado bruto
e não devemos enterrá-los ou esconder nossa luz. Já que a glória de Deus é a
inteligência, ao aprendermos, principalmente a partir das escrituras, nós nos
aproximaremos Dele.
O Senhor utiliza muitas metáforas para referir-se a Sua influência, tais
como “água viva” e “pão da vida”. Descobri que quando meu progresso
pessoal estaciona, isso ocorre devido à desnutrição de que sou vítima quando
não como e bebe diariamente de Suas escrituras sagradas. Enfrentei
dificuldades em minha vida que me teriam destruído completamente se eu
não tivesse as escrituras junto a mim dia e noite para amparar-me, tanto ao
lado de minha cama como em minha bolsa. As escrituras têm-me salvado
diversas vezes. Elas são para mim como um soro intravenoso celestial. Elas
têm o poder de unir-nos a Deus, como disse meu filho certa vez, por um
cordão “angelical”. Assim, a segunda caixa abre-se por meio do aprendizado
a partir das escrituras. Descobri que ao estudá-las, posso ter, repetidas vezes,
um encontro maravilhoso com Deus.
Contudo, quando começamos a ter êxito na emancipação da alma,
Lúcifer fica mais inquieto, principalmente quando nos aproximamos da
terceira caixa. Ele sabe que estamos prestes a aprender um princípio muito
importante e fundamental — que para encontrar-nos precisamos perder a nós
mesmos — assim, ele começa a querer sabotar nossos esforços de amar a
Deus, nosso próximo e a nós mesmos. No decorrer das últimas décadas,
Satanás tem instigado toda a humanidade a canalizar quase todas as suas
energias para a busca do amor romântico, o amor às coisas e o excessivo
amor-próprio. Ao cedermos, esquecemo-nos de que o amor-próprio e a auto-
estima adequados são a recompensa prometida por colocarmos as outras
pessoas em primeiro lugar. “Qualquer que procurar salvar a sua vida, perdê-
la-á, e qualquer que a perder, salvá-la-á”. (Lucas 17:33) Assim, a terceira
caixa é aberta pela chave da caridade.
Com a caridade, o crescimento real e a genuína sabedoria começam a
aflorar. Mas a quarta caixa parece quase impossível de se penetrar.
Infelizmente, os medrosos e covardes muitas vezes desistem nesse ponto. O
caminho parece difícil demais, a entrada muito bem lacrada. É hora de uma
auto-avaliação. Ver a nós mesmos como realmente somos muitas vezes traz
dor, mas é somente por meio da verdadeira humildade, do arrependimento e
da renovação que viremos a conhecer a Deus. “Aprendei de mim, que sou
manso e humilde de coração”, disse Ele. (Mateus 11:29)
Precisamos ser pacientes com nós mesmas ao vencermos nossas
fraquezas e também lembrar-nos de exultar com tudo que há de bom em nós.
Isso nos fortalecerá interiormente e nos deixará menos dependentes dos
aplausos alheios. Quando nossa alma presta menos atenção aos louvores
públicos, ela também se preocupa menos com a desaprovação pública. A
competitividade, os ciúmes e a inveja começam agora a perder o sentido.
Imaginem por um instante o maravilhoso espírito que existiria em nossa
sociedade feminina se por fim chegássemos ao ponto em que, como o nosso
Salvador, o desejo sincero de cada uma fosse ser contada como a menor entre
as irmãs. As recompensas são de uma força tão profunda e um triunfo da fé
tão sereno que somos levadas a uma esfera ainda mais brilhante. Assim, a
quarta caixa, diferentemente das outras, deve ser quebrada para ser aberta,
assim como um coração contrito é quebrantado. Passamos por um
renascimento, como uma flor que abre caminho no solo para crescer.
Para relatar-lhes meus sentimentos relacionados à abertura da quinta
caixa, devo comparar a beleza de nossa alma com a santidade de nossos
templos. Lá, em um ambiente que não é deste mundo, onde as vaidades, a
posição social e as profissões passam despercebidas, temos nossa
oportunidade de encontrar paz, serenidade e calma que servirão de âncora
para nossa alma para sempre, pois lá podemos encontrar a Deus. Aquelas de
nós que, como o irmão de Jarede, tiverem a coragem e a fé de romper o véu
para aquele local sagrado, acharão o brilho da caixa final mais reluzente que
o sol ao meio-dia. Lá encontramos unidade e santidade. Isso é o que está
escrito na entrada da quinta caixa: Santidade ao Senhor. “Não sabeis vós que
sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (I Coríntios
3:16) Testifico que cada um de nós é santo — essa divindade habita dentro de
nós e só está esperando para ser revelada, libertada, demonstrada e
magnificada.
Já ouvi algumas pessoas dizer que a razão pela qual as mulheres da
Igreja têm certa dificuldade para conhecer a si mesmas é porque não têm um
modelo feminino divino. Mas nós temos. Acreditamos ter uma mãe no céu. O
Presidente Spencer W. Kimball declarou em uma Conferência Geral:
“Quando cantamos aquele hino doutrinário (…) ‘Ó Meu Pai’, sentimos o
verdadeiro fulgor da modéstia maternal, da elegância recatada, majestática,
de nossa Mãe Celestial e, sabendo quão profundamente nossas mães mortais
nos têm moldado aqui, será que poderemos supor que a influência de nossa
Mãe Celestial sobre nós como indivíduos será menor? (A Liahona, outubro
de 1978, p. 7)
Nunca questionei por que nossa Mãe Celestial parece escondida de nós,
pois creio que o Senhor deve ter Suas razões para revelar o pouco que
revelou acerca do assunto. Além do mais, creio que sabemos muito mais a
respeito de nossa natureza eterna do que supomos; e é nossa obrigação
sagrada expressar nosso conhecimento, repassá-lo a nossas irmãs mais novas
e filhas; e ao fazê-lo, fortalecer sua fé e ajudá-las a dissipar as confusões
reinantes nestes difíceis últimos dias. Deixem-me dar alguns exemplos.
O Senhor não nos colocou neste mundo solitário e triste sem um plano
para a nossa vida. Em Doutrina e Convênios, lemos as palavras do Senhor:
“Eu vos darei um modelo em todas as coisas, para que não sejais enganados”.
(D&C 52:14) Ele certamente inclui as mulheres nessa promessa. Ele deu-nos
modelos como a Bíblia, o Livro de Mórmon, Doutrina e Convênios e Pérola
de Grande Valor e deu-nos modelos também na cerimônia do templo. Ao
estudarmos esses padrões, devemos perguntar continuamente: “Por que o
Senhor escolhe essas palavras em particular e apresenta-as dessa maneira em
especial?” Sabemos que Ele usa metáforas, símbolos, parábolas e alegorias
para ensinar-nos Seus propósitos eternos. Todos reconhecemos o paralelo
entre o incidente de Abraão e Isaque e a angústia de Deus quando do
sacrifício de Seu próprio Filho, Jesus Cristo. Mas, na condição de mulheres,
será que vamos mais além e procuramos imaginar também a dor de Sara
nessa experiência? Devemos agir dessa maneira, precisamos sempre procurar
significados mais profundos. Devemos procurar paralelos e símbolos.
Devemos buscar temas e motivos, como os que encontramos em uma
composição de Bach ou Mozart, e padrões repetidos.
Um padrão fácil de se notar é que tanto a Bíblia como o Livro de
Mórmon começam com um tema familiar, incluindo conflitos familiares.
Sempre acreditei que isso trouxesse uma simbologia eterna sobre a família,
algo muito além da simples história daqueles pais e filhos em particular.
Certamente, todos nós, casados ou solteiros, vemos situações semelhantes às
de Adão e Eva e de Caim e Abel todos os dias de nossa vida. Sendo ou não
casados, todos temos alguns dos sentimentos de Leí, Saria, Lamã, Néfi, Rute,
Noemi, Ester, os filhos de Helamã e as filhas de Ismael.
Esses são exemplos e modelos para nós, prefigurações de nossos
próprios pesares e alegrias, assim como José e Maria são, de certa forma, um
exemplo de dedicação como pais por criarem o Filho de Deus. Tudo isso para
mim são símbolos de verdades e princípios mais elevados, símbolos
escolhidos cuidadosamente para mostrar-nos o caminho, sejamos casados ou
solteiros, jovens ou velhos, tenhamos família ou não.
E obviamente, o templo é altamente simbólico. Gostaria de relatar uma
experiência que tive alguns meses atrás relacionada à escolha cuidadosa de
palavras e símbolos. Vou procurar usar as palavras com todo o cuidado para
não dizer de forma inadequada algo que não deva ser mencionado fora do
templo. As citações que farei serão retiradas das escrituras publicadas.
Talvez tenha sido coincidência (alguém definiu coincidência como um
pequeno milagre no qual Deus prefere permanecer anônimo), mas em todo
caso, ao esperar na capela do templo, sentei-me ao lado de um senhor de
idade que, de maneira inesperada e gentil, virou-se para mim e disse: “Se
quiser uma idéia clara da Criação, leia Abraão 4”. Ao começar a procurar o
livro de Abraão, deparei-me acidentalmente com Moisés 3:5: “Pois eu, o
Senhor Deus, criei todas as coisas das quais falei espiritualmente, antes que
elas existissem fisicamente na face da Terra”. Outra mensagem de
prefiguração, um modelo espiritual que dá significado às criações mortais.
Depois li Abraão 4 cuidadosamente e tive a oportunidade de participar de
uma iniciatória. Saí de lá com um entendimento maior a respeito de algo que
eu sempre soubera no coração: que os homens e as mulheres são co-herdeiros
das bênçãos do sacerdócio e embora os homens levem a maior
responsabilidade de administrá-las, as mulheres também não são desprovidas
de responsabilidades ligadas ao sacerdócio.
Depois, ao participar da sessão de investidura, perguntei a mim mesma:
se eu fosse o Senhor e pudesse dar a meus filhos na Terra apenas um exemplo
simbólico simplificado, porém veemente, de seu papel e missão, quanto eu
daria e por onde começaria? Prestei atenção a todas as palavras. Procurei
modelos e protótipos.
Citando Abraão 4:27: “Então os Deuses desceram para organizar o
homem a sua própria imagem, para formá-lo à imagem dos Deuses, para
formá-los, homem e mulher”. (Grifo do autor) Eles formaram o homem e a
mulher à imagem dos Deuses, em Sua própria imagem.
Depois, em uma pungente conversa com Deus, Adão declara que
chamará a mulher de Eva. E por que chamá-la de Eva? “Porque ela [é] a mãe
de todos os viventes”. (Gênesis 3:20, Moisés 4:26)
Reconhecendo a grande dor que muitas mulheres solteiras, ou mulheres
casadas que não tiveram filhos, sentem em qualquer discussão sobre a
maternidade, poderíamos pensar na maternidade em termos de nossa
identidade feminina eterna, nossa unidade na diversidade? Eva recebeu a
identidade de “mãe de todos os viventes” anos, décadas e talvez até séculos
antes de gerar um filho. Sua maternidade estava presente bem antes de ela
poder dar à luz, assim como a perfeição do Jardim do Éden precedeu as lutas
da mortalidade. Creio que mãe é uma daquelas palavras escolhidas
cuidadosamente, uma daquelas palavras de grande riqueza, de significados
infinitos. Não podemos deixar que essa palavra cause divisões ente nós, custe
o que custar. Creio de todo o coração que ela é acima de qualquer coisa uma
declaração sobre nossa natureza e não está relacionada ao número de filhos.
Tenho apenas três filhos e muitas vezes chorei por não poder ter mais. E
sei que muitas mulheres sem nenhum também choraram. E em certos casos,
algumas ficaram irritadas com a simples menção do assunto. Em nome de
nossa maternidade eterna, suplico que não ajam assim. Algumas mulheres
dão à luz e criam filhos mas nunca são verdadeiras mães para eles. Outras, a
quem amo de todo o coração, são mães a vida inteira sem nunca terem gerado
filhos. Somos todas filhas de Eva, sejamos casadas ou solteiras, férteis ou
estéreis; e podemos oferecer um pouco desse modelo divino, desse protótipo
materno, umas para as outras e para as que virão depois de nós. Sejam quais
forem nossas circunstâncias, podemos estender a mão, tocar, segurar, levantar
e nutrir, mas não podemos fazê-lo de forma isolada. Precisamos de uma
comunidade de irmãs apaziguando a alma e fechando as feridas da
fragmentação.
Sei que Deus nos ama individual e coletivamente como mulheres e que
Ele tem uma missão para cada uma de nós. Conforme aprendi naquele monte
da Galiléia, testifico que se nossos desejos forem justos, Deus intervirá para o
nosso bem e que cuidará calmamente de nossas necessidades. Em nossa
diversidade e individualidade, oro para que permaneçamos unidas — unidas
na busca de nossa missão preordenada e específica; unidas para, em vez de
perguntar “O que o reino pode fazer por mim?”, perguntar: “O que posso
fazer pelo reino? Como posso cumprir a medida de minha criação? Em
minhas circunstâncias, minhas dificuldades e com minha fé, como está minha
percepção da imagem divina a partir da qual fui criada?”
Com fé em Deus, Seus profetas, Sua Igreja e em nós mesmas — em
nossa criação divina — sejamos pacíficas e deixemos de preocupar-nos e
afligir-nos com tantas coisas. Acreditemos, sem duvidar, na luz que brilha,
mesmo em lugares sombrios.
UMA CONVERSA: COM JEFFREY R. HOLLAND E
PATRICIA T. HOLLAND
Capítulo 9

ALGUMAS COISAS QUE APRENDEMOS JUNTOS

O casamento é o mais sublime e sagrado de todos os


relacionamentos humanos — ou pelo menos deveria ser. Ele oferece
infinitas oportunidades para a prática de todas as virtudes cristãs e
para a demonstração de amor verdadeiramente divino. Da mesma
forma, o casamento também pode ser o cenário para lutas e
dificuldades, principalmente se o marido e a mulher não trabalharem
em união. Esta discussão, realizada em 1983, está da forma em que a
apresentamos: juntos.

JRH: Este ano atingimos um marco em nossa vida: vivemos o mesmo


tempo casados, vinte e dois anos, que vivemos antes do casamento. Isso
certamente nos permite oferecer alguns conselhos baseados em nossa
experiência. Disseram-me naquele dia decisivo de 1963 que, com o
casamento, eu chegara ao fim de todos os meus problemas. Só não consegui
perceber a qual fim estavam referindo-se.
PTH: A última coisa que queremos é parecer é falsos moralistas, então
nossa primeira afirmação é que nosso casamento não é perfeito, e temos
cicatrizes como prova disso. Citando meu pai, as pedras da cabeça de Jeff
ainda não preencheram completamente os buracos da minha.
JRH: Assim, perdoem-nos por usar o único casamento que conhecemos,
com todas as suas imperfeições. Já faz algum tempo que desejamos refletir
sobre a metade de nossa vida que passamos juntos desde que éramos
estudantes da BYU e tentar ver o que virá a significar daqui a vinte e dois
anos.
PTH: Deixem-me tranqüilizá-los dizendo que este não vai ser um
daqueles discursos sobre casamento que vocês estão habituados a ouvir.
Primeiro, porque vamos tentar aplicar essas pequenas lições que aprendemos
a todos, solteiros ou casados. Segundo, por sabermos que muitas pessoas,
principalmente as mulheres, já estão exageradamente ansiosas a respeito do
assunto. Então, não fiquem ansiosos.
JRH: Por outro lado, conheço homens que deveriam estar mais ansiosos
do que estão no momento. Homens, fiquem ansiosos, inquietem-se um pouco
mais.
PTH: Acreditamos sinceramente que o romance e o casamento virão
bem mais naturalmente se os jovens se preocuparem muito menos a respeito.
Da mesma forma, sabemos que é mais fácil dizer isso do que fazer. É difícil
porque muito de nossa vida na Igreja é medida numa seqüência temporal
precisa. Somos batizados aos oito anos. Aos doze anos, os rapazes são
ordenados diáconos e as jovens entram para as Moças. Depois, podemos
namorar aos dezesseis anos, terminamos o secundário aos dezoito e vamos
para a missão aos dezenove ou vinte e um anos.
JRH: Mas de repente, tudo fica menos estruturado e menos certo a partir
daí. Quando vamo-nos casar? Deve haver com certeza em algum manual da
Igreja um ano específico para isso! Bem, não há. Os assuntos ligados ao
casamento são pessoais demais para encaixar-se em um calendário celestial
pré-publicado. Assim, nosso nível de ansiedade aumenta.
PTH: Levando isso em consideração, temos consciência de que alguns
não se casarão durante seus anos da faculdade, e talvez nem nos anos
seguintes. Ao tocar nesse assunto, não queremos torná-lo mais doloroso do
que já é, e sim fazer algumas observações baseadas em nosso próprio
casamento que poderiam ser de valor para todos — os mais jovens, os mais
velhos, os solteiros e os casados. Oramos para que o Senhor nos abençoe ao
relatarmos algo de nossa breve, comum e às vezes tumultuada vida em
conjunto. Trabalhando juntos, daqui a vinte e dois anos poderemos dar um
discurso ainda melhor.
JRH: Com essa longa introdução, não sei se esse é nosso primeiro
conselho ou o último, mas em todo caso, não se apressem de forma
desnecessária ou antinatural. A natureza tem seus ritmos e harmonias.
Convém que nos adeqüemos da melhor maneira possível a esses ciclos em
vez de precipitar-nos desatinadamente na direção contrária.
PTH: Hoje, olhando para trás, vinte e dois anos parece ser muito cedo
para casar-se, embora essa tenha sido a época certa para nós. Quando é o
certo, devemos fazê-lo, e para alguns acontecerá ainda mais cedo, ou mais
tarde, do que para outros. Mas não marchem pelo ritmo de um tambor
arbitrário que parece estar aumentando alucinadamente a cadência a cada ano
que passa.
JRH: Vinte e um —
PTH: (Ah não, estou chegando lá...)
JRH: Vinte e dois —
PTH: (Será que vou achá-lo algum dia?)
JRH: Vinte e três —
PTH: (Ai de mim, ai de mim.)
JRH: Vinte e quatro —
PTH: (Ó morte, leva-me contigo! Recebe-me, sepultura!)
JRH: Bem, parece um pouco melodramático, mas não destoa tanto assim
da realidade...
PTH: Conhecemos algumas pessoas — não muitas, mas algumas — que
entraram em pânico porque elas...
JRH: ou eles...
PTH: não conseguiram atingir a meta matrimonial traçada aos dez anos
de idade, ou, pior ainda, proposta por uma tia bem-intencionada cujo cartão
de natal todos os anos parece dizer: “Bem, você já está na BYU há um
semestre inteiro. Já achou o seu eleito?”
JRH: Ou aquele tio solícito que diz: “Já faz seis semanas que você
chegou da missão. Acho que vou ser convidado para um casamento logo, não
vou? Vou mesmo, não vou?
PTH: Obviamente não somos as melhores pessoas do mundo para falar
sobre esse assunto em particular; afinal, ficamos noivos trinta dias depois que
Jeff voltou da missão.
JRH: Bem, eu tinha um tio solícito.
PTH: Mas é preciso esclarecer que já nos conhecíamos bem dois anos de
começar a namorar, namoramos mais dois anos antes de Jeff sair em missão e
mantivemos correspondência durante os dois anos em que Jeff ficou fora. Ou
seja, foram seis anos de amizade antes de ficarmos noivos. Além do mais,
quando comecei a sair com o Jeff eu não o suportava. (Digo isso só para
tranqüilizar as mulheres que não suportam os homens com quem saem.)
JRH: Deixo que ela o faça para tranqüilizar os homens que se acham
insuportáveis!
PTH: Então, para não sair em desvantagem no jogo da espera, fui para
Nova York no dia em que ficamos noivos, deixando Jeff compenetrado em
seus estudos na faculdade enquanto eu estudava música e cumpria uma
missão de estaca a três quartos de continente de distância. Nisso se passaram
mais dez meses, assim acho justo dizer que não nos precipitamos.
JRH: Independentemente de estudos, missão, casamento ou coisas do
tipo, devemos apreciar cada fase de nossa vida, sem sermos apressados,
pressionados ou forçados a seguir um curso antinatural que
preestabelecemos, mas que talvez nem seja o plano pessoal do Senhor para
nós. Ao olharmos para trás hoje, percebemos que talvez tenhamo-nos
apressado em muitos aspectos e ficado ansiosos e impacientes demais em
relação a coisas demais em nossa vida, e talvez vocês também cometam o
mesmo erro. Acho que todos nós às vezes pensamos que a vida real ainda
está por começar, um pouco mais à frente em nosso caminho.
PTH: Não esperem para viver. É óbvio que a vida para todos nós
começou há muito tempo — vinte e dois anos a mais para nós do que para
vocês — e que a areia continua a cair pela ampulheta com a mesma
regularidade com que o sol se levanta e que os rios correm para o mar. Não
permitam que a vida os pegue de surpresa e lhes tire a firmeza dos pés; ela
tende a ser um visitante mais calmo e prosaico. Em uma Igreja que entende
mais sobre o tempo e seu relacionamento com a eternidade do que qualquer
outra, mais do que ninguém deveríamos saborear cada momento, aproveitar o
tempo de preparação antes do casamento, preenchendo-o com todas as coisas
verdadeiramente boas da vida. E uma das mais valiosas delas é uma formação
universitária.
JRH: Permitam-me acrescentar somente mais uma advertência
relacionada ao assunto. No tempo de minha vida eclesiástica e profissional
em que trabalhei com jovens adultos — aproximadamente a mesma segunda
metade de minha vida que corresponde a nosso casamento — venho-me
deparando com freqüência com jovens, tanto do sexo masculino como do
feminino, que estão procurando o parceiro idealizado, que seria uma
combinação perfeita de características e virtudes vistas nos pais, entes
queridos, líderes da Igreja, astros do cinema, ídolos do esporte, líderes
políticos ou quaisquer outros maravilhosos homens e mulheres que possam
ter conhecido.
PTH: Com certeza é importante ter refletido sobre as qualidades e os
atributos que vocês mais admiram nas pessoas, e que vocês também devem
estar desenvolvendo. Mas lembrem-se do que disse a irmã Camilla Kimball
quando um grupo de jovens comentou com ela como devia ser maravilhoso
ter-se casado com um profeta: “É maravilhoso estar casada com um profeta,
mas não me casei com um profeta. Só me casei com um ex-missionário”.
Vejamos agora a seguinte declaração do Presidente Kimball sobre essas
escolhas, práticas por excelência:
JRH: “Duas pessoas com formações diferentes logo aprendem que,
depois da cerimônia do casamento, devem encarar a dura realidade. Já não há
uma vida de fantasias ou faz-de-conta; é preciso descer das nuvens e fixar os
pés em terra firme. (...)
Percebe-se pouco tempo depois do casamento que o cônjuge possui
fraquezas não reveladas ou percebidas anteriormente. As virtudes
superestimadas durante o namoro tornam-se agora relativamente menores e
as fraquezas que antes pareciam tão pequenas e insignificantes agora
aumentam até atingir proporções consideráveis. (...) Contudo, a felicidade
real e duradoura é possível. (...) Ela está ao alcance de todo casal, toda
pessoa. (...) ‘Almas gêmeas’ são parte da ficção, são uma ilusão; e ainda que
todo rapaz e moça deva procurar com toda a diligência e devoção o
companheiro com maior afinidade, com quem a vida venha a ser mais
agradável e bela, é verdade que quase qualquer bom rapaz e boa moça
poderão encontrar a felicidade e um casamento bem-sucedido se ambos
estiverem dispostos a pagar o preço.” (Marriage and Divorce [Salt Lake
City: Deseret Book, 1976], pp. 13, 18)
PTH: Ainda neste assunto, gostaria de relatar um exemplo nosso da
“dura realidade” que mencionamos. De vez em quando, Jeff e eu temos
conversas para podermos “descer das nuvens”, usando a expressão do
Presidente Kimball. Querem saber o que eu disse a ele, quando revelei o que
mais me irrita nele? O fato de ele andar sempre apressado: primeiro cinco,
depois dez e então quinze passos na minha frente. Agora aprendi
simplesmente a gritar e pedir que reserve um lugar para mim quando chegar
aonde estiver indo.
PTH: Bem, já que estamos revelando segredos, querem saber o que me
irrita nela? É que ela está sempre atrasada, assim estamos sempre correndo
para chegar aos lugares, e acabo tendo de correr cinco, depois dez e
finalmente quinze passos na frente dela.
PTH: Aprendemos a rir um pouco dessa situação e agora fazemos
concessões. Presto mais atenção ao relógio e ele diminui um pouco o ritmo
das passadas. Assim, até chegamos de vez em quando a tocar a ponta dos
dedos da mão um do outro ao caminhar.
JRH: Mas ainda não resolvemos todas as pendências — por exemplo, a
questão da temperatura. Eu costumava brincar a respeito de estudiosos das
escrituras SUD que se preocupavam com a temperatura corporal de seres
transladados. Agora não brinco mais, pois preocupo-me seriamente com a
temperatura corporal de minha esposa. Ela mantém o cobertor elétrico ligado
no nível máximo onze meses do ano. Ela sofre de hipotermia no início do
verão; descongela entre 14h30 e 15h30 do dia mais quente do ano e a partir
daí, já é hora de esconder-se debaixo da coberta novamente.
PTH: Ele tinha de falar sobre isso. Mas sabem o que ele faz? Escancara
a janela toda noite como se fosse um almirante em busca da estrela polar.
Mas é só alguém sugerir uma corrida matinal no inverno que ele age como
um cão siberiano ferido. O nosso Sr. Saúde não consegue amarrar os
cadarços sem recorrer a um balão de oxigênio.
JRH: Quanto a formações diferentes, é difícil conceber que dois jovens
de St. George poderiam ter tido formações diferentes — se é que tiveram uma
formação. Mas falando-se em termos financeiros, Pat vinha de uma família
cujo pai tinha muito cuidado com o dinheiro (e assim sempre tinha o
suficiente para fazer doações generosas), enquanto meu pai passou a infância
sem dinheiro algum, mas posteriormente passou a gastar com liberalidade,
como se sempre tivesse tido. Ambas as famílias eram felizes, mas quando nós
dois nos unimos, foi um sufoco...
PTH: ...foi um “salve-se quem puder”. Realmente não foi fácil. Isso nos
leva a mais uma daquelas “duras realidades” do casamento. Citando o Élder
Marvin J. Ashton em um de seus discursos dirigidos aos membros da Igreja:
“Qual é a importância da administração do dinheiro e das finanças no
casamento e nos assuntos familiares? É de suma importância. A Ordem dos
Advogados dos Estados Unidos informou recentemente que 89 por cento dos
divórcios têm origem em desentendimentos e acusações ligados ao dinheiro.
[Outro estudo] estima que 75 por cento de todos os divórcios resultam de
divergências em relação às finanças. Alguns terapeutas profissionais indicam
que de cada cinco famílias, quatro debatem-se com sérios problemas
relacionados ao dinheiro. (...) Uma futura esposa não deveria preocupar-se
tanto com a quantia que seu marido ganhará por mês, e sim com a maneira
com que administrará o dinheiro que chegar a suas mãos. (...) Um futuro
marido que está noivo de uma moça que já possui todas as virtudes deveria
dar mais uma olhada para ver se ela tem o senso de administração do
dinheiro.” (“One for the Money”, Ensign, julho de 1975, p. 72)
O controle de nossas condições financeiras é outra daquelas “técnicas
para o casamento” que são importantes para todos muito antes do casamento.
Uma das grandes leis do céu e da Terra é a que determina que nossas
despesas devem ser menores do que nossa renda. Vocês podem reduzir sua
ansiedade, dor e desavenças conjugais — de fato, podem reduzir a ansiedade,
dor e as desavenças conjugais de seus pais agora! — se aprenderem a
administrar um orçamento.
JRH: Como parte dessas advertências financeiras gerais, incentivamos,
caso necessário, um cirurgia plástica tanto para o marido como para a mulher.
Trata-se de uma operação indolor, que pode contribuir mais para sua auto-
estima do que um novo nariz ou um lipoaspiração na barriga. É só cortar seus
cartões de crédito. A menos que estejam preparados para usar esses cartões
somente nas mais restritas situações e com a maior moderação, jamais devem
usá-los — não enquanto os juros estiverem na casa dos 18, 21 ou 24 por
cento. Nenhuma facilidade posta à disposição do homem moderno colocou a
estabilidade financeira da família em tanto perigo quanto o onipresente cartão
de crédito. “Não saia de casa sem ele?” É justamente por isso que ele está
saindo de casa...
PTH: ...e ela também, e as famílias se desintegrando. Gostaria de
parafrasear o que o Presidente J. Reuben Clark disse em certa conferência
geral:
“[A dívida] nunca dorme, adoece ou morre e nunca vai para o hospital;
ela trabalha aos domingos e feriados; nunca tira férias (...), nunca é demitida
(...); não compra comida; não usa roupas; não tem casa (...); não conhece
casamentos, nascimentos ou mortes; não sente amor ou solidariedade; é dura
e sem alma como um penhasco de granito. Ao contrairmos uma dívida, ela
torna-se nossa companheira todos os minutos do dia e da noite; não se pode
evitá-la ou desviar-se dela; não se pode fugir dela (...); e sempre que nela
tropeçarmos, que ela cruzar nosso caminho ou que deixarmos de cumprir
suas exigências, ela nos esmagará.” (Conference Report, abril de 1938, p.
103)
JRH: Sua religião deve protegê-los contra a imoralidade, violência e
quaisquer das outras inúmeras tragédias familiares que atingem os
casamentos por toda a parte. E caso permitam, sua religião os protegerá
também do caos financeiro. Paguem em primeiro lugar o dízimo e as ofertas.
Não pode haver proteção maior. Então simplesmente façam um orçamento do
que restar, para administrar as despesas do mês. Façam com que o que têm
seja suficiente. Cortem os supérfluos. Digam não. Vocês podem manter sua
dignidade ainda que suas roupas não sejam as mais sofisticadas e que sua
casa não seja das mais luxuosas. Podem manter a dignidade pela simples
razão de não estarem oprimidos ou sobrecarregados pelo fardo da dívida.
PTH: Bem, falamos até mais do que pretendíamos sobre dinheiro, mas é
que ainda nos lembramos de como foi quando estávamos começando.
JRH: Lembro-me do mês passado.
O último assunto é o mais difícil de todos, e talvez o mais importante.
Espero que consigamos transmitir nossos sentimentos relacionados a ele. Já
se falou muito sobre a inadequação da intimidade antes do casamento. É uma
mensagem que esperamos que continuem a ouvir sempre e que honrem com a
integridade que se espera de um santo dos últimos dias, homem ou mulher.
Mas agora gostaria de falar um pouco sobre a intimidade depois do
casamento, uma intimidade que vai muito além do relacionamento físico que
duas pessoas casadas desfrutam. Este assunto parece-nos estar no cerne do
verdadeiro significado do casamento.
PTH: O casamento é o mais sublime e sagrado dos relacionamentos
humanos. E por causa disso, é o mais íntimo. Quando Deus uniu Adão e Eva,
quando ainda nem havia a morte física para separá-los, Ele disse: “Portanto
deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão
ambos uma carne”. (Gênesis 2:24) Para reforçar a simbologia dessa união, as
escrituras afirmam que Deus figurativamente tirou uma costela do lado de
Adão para fazer Eva; não de sua frente, para que ela não o dominasse e
tampouco de suas costas, para que ele não a desprezasse, mas de seu lado,
debaixo de seus braços, perto de seu coração. Assim, osso dos seus ossos e
carne da sua carne, marido e mulher devem estar unidos em todas as coisas,
lado a lado. Eles devem dar tudo de si um para o outro, e não apegar-se a
ninguém mais. (Ver D&C 42:22.)
JRH: Dar de nós tão integralmente para outra pessoa talvez seja o passo
mais crucial e que exija mais confiança em nossa vida. Parece um tremendo
risco e um grande ato de fé. Nenhum de nós que se aproxima do altar
pareceria ter a confiança para revelar tudo que somos, todos os nossos
temores, esperanças, sonhos e fraquezas para outra pessoa. A segurança, o
bom-senso e nossa experiência no mundo ensinam-nos a esperar um pouco,
para que não deixemos nosso coração em uma posição vulnerável para ser
ferido por alguém que saiba tanto sobre nós. Tememos, como Zacarias ao
profetizar a respeito de Cristo, ser feridos “em casa dos [nossos] amigos”.
(Zacarias 13:6)
Contudo, nenhum casamento é digno desse nome, pelo menos não no
sentido em que Deus espera que nos casemos, se não investirmos
inteiramente tudo o que temos e somos nessa outra pessoa que foi selada a
nós pelo poder do santo sacerdócio. Só quando estamos dispostos a partilhar
plenamente a vida é que o Senhor nos considera dignos de gerar vida. A
analogia de Paulo para esse comprometimento irrestrito foi o de Cristo e a
Igreja. Poderia Cristo, mesmo em Seus momentos mais difíceis no Getsêmani
e no Calvário, retroceder? Apesar da dor que decorreria disso, poderia Ele
deixar de dar tudo que era e possuía para a salvação de Sua noiva, Sua igreja,
Seus seguidores — aqueles que tomariam sobre si o nome Dele assim como
em um voto de casamento?
PTH: Da mesma forma, Sua Igreja não pode ser relutante, indecisa ou
receosa em seu compromisso para com Ele, de quem somos membros. Assim
também é no casamento. Cristo e Sua Igreja, o Noivo e a Noiva, o homem e a
mulher devem insistir na mais completa união. Todo casamento mortal deve
procurar recriar o casamento ideal almejado por Adão e Eva, por Jeová e os
filhos de Israel. Sem voltar atrás, sem se apegar a ninguém mais, cada frágil
espírito humano é deixado nu, por assim dizer, sob a proteção de seu cônjuge,
da mesma forma que nossos primeiros pais estavam naquele belo jardim.
Certamente é um risco. Certamente se trata de um ato de fé. Mas o risco é
parte central do significado do casamento, e a fé move montanhas e acalma o
mar revolto.
JRH: Se conseguíssemos passar-lhes a noção da sagrada obrigação que
marido e mulher têm um para com o outro quando a fragilidade,
vulnerabilidade e delicadeza da vida de um são entregues aos cuidados do
outro, consideraria bem gasto nosso tempo aqui. Pat e eu vivemos juntos há
vinte e dois anos, aproximadamente o mesmo tempo que cada um de nós
viveu sozinho antes do dia do casamento. Posso não saber tudo sobre ela, mas
sei o equivalente a vinte e dois anos, o mesmo que ela sabe de mim. Conheço
os gostos e as preferências dela, e ela conhece os meus. Conheço seus
interesses, esperanças e sonhos, e ela conhece os meus. À medida que nosso
amor foi crescendo e nosso relacionamento se desenvolvendo, ficamos cada
vez mais abertos um com o outro sobre tudo nesses últimos vinte e dois anos.
Conseqüentemente, sei com muito mais clareza como ajudá-la e como
magoá-la. Posso não conhecer todos os detalhes, mas conheço a maioria
deles. E certamente vou responder perante Deus por qualquer mágoa que
causar intencionalmente a ela ao pisar nos pontos vulneráveis, uma vez que
ela confiou tanto em mim. Brincar com uma confiança tão sagrada — seu
corpo, seu espírito, seu futuro eterno — e explorá-los em meu próprio
benefício, ainda que unicamente emocional, me tornaria indigno de ser seu
marido e mandaria minha alma para o inferno. Ser egoísta a tal ponto
significaria que eu seria um inquilino ou companheiro de quarto dela, que
goza de sua presença, mas não seu marido em qualquer acepção cristã da
palavra. Eu não teria sido como Cristo foi para a Igreja. Não seríamos osso
do mesmo osso ou carne da mesma carne.
PTH: Deus espera um casamento, e não apenas um acordo ou arranjo —
com a bênção do templo — de um arrimo de família com uma dona-de-casa.
Todos que estão ouvindo-me certamente entendem os severos juízos que
recaem sobre os participantes de compromissos feitos dessa forma antes do
casamento. Creio que um juízo ainda mais grave abata-se sobre mim depois
do casamento se tudo que faço é dividir a mesma cama de Jeff, seu trabalho,
seu dinheiro e até mesmo seus filhos. Não temos um casamento a menos que
literalmente compartilhemos um ao outro, os momentos bons e os ruins, a
doença e a saúde, a vida e a morte. Não temos um casamento a não ser que eu
esteja à disposição sempre que ele precisar de mim.
JRH: Não podemos ser boas esposas, bons maridos, bons companheiros
de quarto ou bons cristãos só quando nos estamos “sentindo bem”. Certo dia,
um aluno entrou na sala do Decano LeBaron Russell Briggs, na Universidade
de Harvard, e disse que não fizera um trabalho porque não se sentira bem.
Fitando o aluno diretamente nos olhos, o decano disse: “Sr. Smith, acho que
com o tempo o senhor vai perceber que a maior parte do trabalho do mundo é
feito por pessoas que não estão sentindo-se muito bem”. (Citado por Vaughn
J. Featherstone, “Self-Deal”, New Era, novembro de 1977, p. 9)
É claro que alguns dias vão ser mais difíceis do que outros, mas se ao
entrarmos no avião já deixarmos a saída de emergência aberta achando que
vamos precisar usá-la durante o vôo, posso garantir que será uma viagem
bem difícil. Fechemos a porta, ponhamos o sinto de segurança, respiremos
fundo e relaxemos. Essa é a única maneira de fazer o casamento alçar vôo.
PTH: Seria mero acaso o fato de nos vestirmos de branco, irmos à casa
do Senhor e nos ajoelharmos diante de representantes de Deus para
comprometer-nos um ao outro, recebendo as bênçãos da expiação de Cristo?
De que outra forma poderemos trazer o poder de Cristo a essa união? De que
outra forma poderemos trazer Sua paciência, paz e preparação? E acima de
tudo, de que outra forma poderemos trazer Seu poder de resistência e
perseverança? Devemos estar unidos de forma tão próxima que nada possa
separar-nos do amor desse homem ou mulher.
JRH: Nesse aspecto, temos a mais tranqüilizadora de todas as promessas
finais: Esse poder que nos une em retidão é maior do que qualquer outro
poder — qualquer poder — que venha a tentar separar-nos. Esse é o poder
dos convênios e das ordenanças do sacerdócio. Esse ó poder do evangelho de
Jesus Cristo.
PTH: Gostaria de contar apenas uma experiência final, que, embora seja
de nosso casamento, aplica-se a todos vocês — jovens e velhos, casados e
solteiros, recém-conversos ou membros antigos.
Vinte e dois anos atrás, Jeff e eu, com a certidão de casamento em mãos,
fomos para a Universidade Brigham Young. Colocamos todos os nossos
pertences em um Chevrolet de segunda mão e seguimos para Provo. Não
estávamos preocupados nem amedrontados. Estávamos apavorados. Éramos
dois interioranos de St. George, Utah, e ali estávamos nós em Provo, na
Universidade Brigham Young, onde o campus seria nosso mundo.
As pessoas que nos orientaram quanto ao alojamento foram muito gentis
e forneceram-nos extensas listas de apartamentos. A equipe da secretaria
ajudou-nos nos procedimentos de reconhecimento de créditos já cursados em
outras instituições. Os funcionários da central de empregos deram-nos
sugestões de locais para trabalharmos. Arrumamos nossos móveis e
encontramos alguns amigos. Em seguida, decidimos esbanjar um pouco:
saímos de nosso apartamento de dois cômodos e um banheiro, alugado a 45
dólares por mês, e fomos jantar na lanchonete do Wilkinson Center.
JRH: Lembro-me de uma daquelas belas noites de verão em que
andávamos de nosso apartamento, situado na Third North e First East, até o
topo do monte onde se localiza majestosamente o Prédio Maeser. Pat e eu
estávamos de mãos dadas, apaixonados um pelo outro, mas as aulas ainda
não haviam começado e havia tantas coisas em jogo. Éramos estudantes
desconhecidos, sem nome, sem rosto, sem importância, em busca de um lugar
ao sol. E éramos recém-casados, um confiando seu futuro totalmente ao
outro, embora ainda sem muita consciência disso. Lembro-me de ter parado
no meio do caminho entre o Prédio Maeser e a casa do reitor, pensando no
enorme desafio a nossa frente — nova família, nova vida, nova educação —
sem dinheiro e sem confiança. Lembro-me de ter-me voltado para Pat e a
abraçado naquela linda noite de agosto, procurando conter as lágrimas.
Perguntei: “Acha que vamos conseguir? Acha que temos condições de
competir com todas essas pessoas nesses prédios, que sabem muito mais do
que nós e são tão capazes? Acha que cometemos um erro?” E logo em
seguida, indaguei: “Acha que devemos desistir e voltar para casa?”
Gostaria de agradecer a ela, nesta que de forma geral já tem sido uma
mensagem bastante pessoal, por ter demonstrado naquele momento o que
tantas vezes viria a continuar demonstrando em nossa vida de casados: amor,
confiança, perseverança, tranqüilidade, o manejo cuidadoso de meus receios e
o fortalecimento de minha fé, principalmente a fé em mim mesmo. Ela —
que deveria também estar apavorada, especialmente naquela situação, selada
a mim pelo restante da vida — pôs de lado suas próprias dúvidas, fechou
bruscamente a saída de emergência do avião e segurou-me pelo cinto de
segurança. “Claro que vamos conseguir”, disse ela. “Claro que não vamos
voltar para casa.” Depois, levantou-se e, literalmente cercada pelas trevas da
noite em frente à casa que, muitos anos depois, chamaríamos de nosso lar, ela
lembrou-me com ternura que muitos outros deveriam estar sentindo-se da
mesma maneira e que o que tínhamos no coração era suficiente para nos
levar-nos até o fim, com ajuda de nosso Pai Celestial.
PTH: Do pátio sul da casa do reitor, pode-se ver o local onde dois
estudantes da BYU recém-casados, vulneráveis e amedrontados ficaram vinte
e dois anos atrás, lutando para conter as lágrimas e olhando para o futuro com
toda a fé que conseguiam amealhar. Há noites em que olhamos para aquele
local — em geral, noites em que as coisas se mostram um pouco difíceis — e
recordamos aqueles dias tão especiais.
Por favor, não sintam que são as únicas pessoas que já se sentiram
fracas, amedrontadas ou solitárias — antes ou depois do casamento. Todos já
se sentiram assim, e de tempos em tempos talvez todos ainda passem por isso
novamente. Ajudem uns aos outros. Vocês não precisam estar casados para
isso. Apenas sejam um amigo, um santo dos últimos dias. E se forem
casados, não poderá haver bênçãos maiores em sua união do que os
problemas e desafios que enfrentarem sem titubear, seguindo em frente,
mesmo em meio a relâmpagos, trovões, turbulência e tudo o mais que lhes
sobrevier.
JRH: Parafraseando James Thurber, em uma das melhores e mais
concisas definições de amor já formuladas: “Amor é o que se passa junto”.
Isso não se aplica só a maridos e mulheres, mas também a pais e filhos,
irmãos e irmãs, companheiros de quarto, amigos, companheiros de missão e a
todos os demais relacionamentos humanos dignos de se viver.
O amor, como as pessoas, é testado pela chama da adversidade. Se
formos fiéis e determinados, ela nos moldará e refinará, mas não nos
consumirá. Apreciem o que têm agora. Sejam discípulos de Cristo. Vivam de
modo a serem dignos do casamento, ainda que ele não venha em um futuro
próximo. E desfrutem-no de todo coração quando chegar o momento.
GARANTIAS E AFIRMAÇÕES: JEFFREY R. HOLLAND
Capítulo 10

LEVANTAI OS VOSSOS OLHOS

Ao andar no meio de pessoas comuns da Galiléia e Judéia e


conversar com elas, não havia nada de comum no impacto que Jesus
tinha sobre aquela gente. Embora ensinasse de modo simples, Ele
elevava a vida das pessoas de forma tão notável que não caberia
considerar simplórios Seus extraordinários ensinamentos. Em Sua
passagem pela Terra, Ele ressaltou o significado das coisas celestiais.

Jesus deixou-nos uma extensa lista de virtudes por meio do exemplo de


Sua experiência cotidiana. Uma dessas virtudes que é especialmente
necessária em nosso contato rotineiro
com as pessoas — com a família, os amigos, membros e não-membros
— é a rara habilidade de aceitar as pessoas como são, ao mesmo tempo em
que procuramos elevá-las e ajudá-las a atingir seu potencial. Fosse no trato
com os dedicados discípulos que estavam sempre junto a Ele ou com
publicanos e prostitutas menos habituados a tal amor, Jesus via a todos como
filhos de Deus. Ele tinha consciência de que alguns estavam saindo-se melhor
do que outros, mas ainda assim, todos precisavam da visão mais elevada e
celestial que Ele viera trazer.
Ao associar-se com homens e mulheres de todas as origens e classes,
Jesus demonstrava uma habilidade incomum de tocar a todos. Suas parábolas
eram dirigidas às pessoas comuns — pescadores e agricultores, maridos e
mulheres, servos e pastores. E Ele dava uma atenção toda especial aos
pobres, forasteiros famintos e devedores na prisão; àqueles que as pessoas
poderiam considerar os menos importantes. (Ver Mateus 25:35–40.)
Mas ainda que andasse no meio das pessoas comuns da Galiléia e Judéia
e conversasse com elas, não havia nada de comum em Seu impacto sobre
aquela gente. Embora ensinasse de modo simples, Ele elevava a vida das
pessoas de forma tão notável que não caberia considerar simplórios Seus
extraordinários ensinamentos. Temos muitos exemplos de Sua compaixão,
que transparecia em Seus veementes conselhos, e de Sua paciência, aliada a
uma urgente persuasão. Vejamos os seguintes exemplos retirados do livro de
João.
Nicodemos era uma figura de certo destaque na sociedade judaica da
época. Contudo, era alguém que necessitava muito ter a visão ampliada e a
vida elevada. Por precisar do toque do Mestre, percebe-se o quão geral era
essa necessidade. Aos olhos de Deus, todos precisavam do “novo testamento”
escrito no coração, independentemente de sua posição social ou importância
eclesiástica em relação à lei de Moisés. (Ver Jeremias 31:33.)
João descreve Nicodemos como um homem entre os fariseus, um
“príncipe dos judeus”, um membro do influente sinédrio. Mas em sua busca
de luz e verdade, Nicodemos era, de certo modo, tão ingênuo quanto todos os
demais que estavam obscurecidos pela apostasia e prejudicados pela falta de
revelação em sua vida. Ele certamente estava assombrado pelo que ouvira e
vira de Jesus e pelos sentimentos que Ele despertara nele. Entretanto, ele não
tinha coragem de procurá-Lo publicamente durante o dia e reconhecer que
Ele era o Messias. Em suas primeiras palavras, que demonstravam certa
hesitação, ele parecia tentar explicar-se. “Bem sabemos que és Mestre, vindo
de Deus”, diz ele, mas conforme lemos nas escrituras, ele detém-se e não
admite ser Jesus o Messias, e receia perguntar o que deve fazer para ser
salvo.
Felizmente, como no caso de outras pessoas que tinham outros tipos de
limitações, Jesus tocou Nicodemos e fez-lhe um convite direto: “Na verdade,
na verdade, te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino
de Deus”.
A reação de Nicodemos demonstra como ele estava confuso.
Condicionado por seu literalismo farisaico, ele não quis — ou não conseguiu
— entender o significado das palavras do Salvador, preferindo relacionar
nascimento a seu significado mais literal.
“Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a
entrar no ventre de sua mãe, e nascer?” perguntou ele.
Jesus pacientemente esclareceu: “Na verdade, na verdade, te digo que
aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de
Deus”.
Nicodemos deve ter-se mostrado pasmo ou incrédulo, pois Jesus
prosseguiu, trazendo ao nível de entendimento do rabino um ensinamento que
de outra forma estaria acima de sua capacidade de compreensão. Mestre dos
mestres que era, Jesus valeu-se do duplo significado de uma palavra hebraica
e usou-a para conduzir Nicodemos do temporal para o espiritual. Em
hebraico, a palavra para espírito, ruah, queria dizer também sopro ou lufada
(como uma lufada de vento). Assim, procurando ensinar a respeito do
Espírito, Jesus utilizou esse termo.
“Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O
vento assopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes de onde vem, nem
para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.”
A essa altura, Nicodemos estava mais atônito do que nunca. “Como
pode ser isso?” indagou ele.
Jesus respondeu: “Tu és mestre de Israel e não sabes isto? (…) Se vos
falei de coisas terrestres, e não crestes, como crereis, se vos falar das
celestiais?” (João 3:1–12)
De fato, como poderia alguém entender verdades espirituais e eternas se
está enredado em fatos físicos e temporais? Se ele não compreende os
sussurros do espírito, talvez ele compreenda os sussurros do vento como uma
aplicação terrena de um ensinamento na verdade celestial. Precisamos buscar
um entendimento das coisas celestiais partindo do ponto em que estamos.
Essa mesma lição é repetida duas vezes no capítulo seguinte do
evangelho de João. A localização geográfica, as circunstâncias e os
participantes são diferentes, mas obviamente, uma necessidade comum
permeia a vida judaica. É óbvio que todas as pessoas precisarão da influência
incomparável do Mestre para que as névoas de escuridão lhes sejam
removidas dos olhos.
Ao passar por Samaria, entre pessoas intensamente desprezadas pelos
judeus daquela época, Jesus e Seus discípulos passaram pela cidade de Sicar,
“junto da herdade que Jacó tinha dado a seu filho José”. Nessa área, que em
seus limites incluía a fonte de Jacó, presenciava-se um aspecto interessante da
animosidade existente entre judeus e samaritanos. Os samaritanos afirmavam
veementemente serem descendentes de Jacó, e os judeus refutavam essa
alegação com o mesmo ardor. Não teria Jesus escolhido esse local justamente
para elevar ambos os grupos, limitados por tradições obscuras de tantos
séculos?
Enquanto Seus discípulos foram até a cidade para comprar comida (era
meio-dia), Jesus sentou-se na beira do poço de pedra e ficou observando uma
mulher samaritana aproximar-se com um cântaro. A mulher deve ter-se
surpreendido ao ouvir um viajante judeu dirigir-lhe a palavra enquanto ela se
preparava para baixar o cântaro para pegar água. Além do estranho fato de
um homem estar falando com uma mulher que não conhecia, tratava-se de
um judeu dirigindo-se a uma samaritana. Apesar disso, Ele disse-lhe: “Dá-me
de beber”.
Ela questionou aquele pedido, como seria de se esperar, o que criou a
situação de ensino que Jesus queria. “Se tu conheceras o dom de Deus”, disse
Ele, “e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria
água viva.”
Nesse instante, o Salvador deu indícios de Sua verdadeira identidade,
uma revelação que poderia ser de fato “água viva” para essa mulher se ela
conseguisse entender as coisas celestiais. Mas ela não se mostrou propensa a
tal, perguntando como esse homem poderia dar-lhe água viva ou qualquer
outra que fosse, se Ele nada tinha para retirá-la daquele poço tão profundo.
Assim como Nicodemos, ela tinha dificuldade até para entender as coisas
terrenas.
Jesus prosseguiu. Referindo-se ao sustento material, Ele disse:
“Qualquer que beber desta água tornará a ter sede”. Em seguida, acrescentou:
“Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água
que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna”.
Essa declaração tão profunda e expressa de forma tão tocante claramente
chamou a atenção da samaritana. Mas ela ainda não conseguia enxergar o
significado mais profundo. Ela não conseguia ver Seus propósitos mais
elevados, mas certamente tinha interesse na fonte inesgotável de água que
poderia poupá-la daquelas penosas viagens diárias ao poço. “Senhor”, disse
ela respeitosamente, “dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, e não
venha aqui tirá-la.”
Jesus mais uma vez preocupou-se em ajudá-la a entender, falando de
coisas terrenas bem íntimas dela, e pediu que chamasse seu marido. Ela
respondeu que não o tinha. Jesus confirmou que ela realmente não tinha,
incluindo nessa negação não apenas o homem com quem ela estava vivendo
agora, mas talvez também os cinco que o haviam precedido.
Diante dessa revelação estarrecedora, a mulher exclamou: “Senhor, vejo
que és profeta”.
Certamente seria razoável supor que Cristo preferisse conversar com a
mulher sobre água viva em vez de maridos ilegítimos. Mas como fizera com
Nicodemos, Ele precisou ir ao ponto em que se encontrava a aprendiz para
poder levá-la aonde ela necessitava chegar. De fato, Ele estava perante uma
mulher comum, praticante de um dos pecados mais comuns, embora dos mais
sérios, e ofereceu-lhe uma oportunidade extraordinária. Diante da confissão
dela: “Eu sei que o Messias (que se chama Cristo) vem”, Ele respondeu de
forma vigorosa e contundente: “Eu o sou, eu que falo contigo”. (João 4:25–
26)
Jesus valeu-se de coisas terrenas que a mulher conseguia entender para
poder elevá-la a coisas celestiais que ela ainda não tinha capacidade de
assimilar.
Mas e aqueles que estavam bem próximos a Cristo e eram mais fortes
espiritualmente? Era de se esperar que um membro do sinédrio, preso a suas
tradições, e uma mulher infiel de Samaria tivessem certa dificuldade para
livrar-se da banalidade que os envolvia. Mas e os discípulos de Jesus?
Encontramos uma resposta para essa pergunta, ao menos em parte, logo
adiante na narrativa de João.
Quando Jesus estava quase terminando Sua conversa com a samaritana,
Seus discípulos retornaram da cidade com comida e disseram: “Rabi, come.
Ele, porém, lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não
conheceis”.
Obviamente, Jesus estava referindo-se ao alimento da experiência que
acabara de ter com a mulher samaritana. Ele elevara-a, dentro de um curto
espaço de tempo, da hostilidade e estupor espiritual para um estado em que
ela ao menos começava a ter um vislumbre de assuntos espirituais e
declarara, em um momento maravilhoso e raro, ser o próprio Filho de Deus, o
tão esperado Messias. Isso era “comida” para alguém que se alimentava de
coisas do Espírito — mais do que de um pedaço comum de pão ou de
cordeiro, conseguido com tanto custo na cidade por Seus irmãos.
Mas de forma muito semelhante a Nicomedos e a samaritana, que ainda
estava diante deles, os discípulos não tinham experiência suficiente para
compreender.
“Trouxe-lhe, porventura, alguém algo de comer?” indagaram eles,
perplexos. Eles ficaram a perguntar-se: se Ele tem comida que não
conhecemos, quem Lhe trouxe e por que nos mandou à cidade? Por que Ele
pediu que fizéssemos um esforço tão grande enquanto comia aqui com outras
pessoas antes que voltássemos?
Por sabermos o que ocorrera na ausência dos discípulos, sorrimos diante
de tal reação. Talvez se soubessem por que Jesus estava falando com a
mulher e o que Ele dissera, eles teriam entendido mais prontamente que Ele
se referia a uma comida bem diferente. A “comida” de Cristo, assim como
Sua “água viva”, deixaria alguém satisfeito por toda a eternidade. Com Sua
maneira dócil, paciente e incomum, Cristo levou Seus seguidores amados
para além do lugar-comum.
“A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a
sua obra. Não dizeis vós que ainda há quatro meses até que venha a ceifa? Eis
que eu vos digo: Levantai os vossos olhos, e vede as terras, que já estão
brancas para a ceifa.” (João 4:27–35)
Jesus vira uma oportunidade de significado eterno, e não a deixou
passar. Para Ele, o campo estava sempre pronto para a ceifa. Ele enxergava
muito além das tradições, disputas e mesquinhez dos homens. De fato, Ele
enxergara até além dos graves pecados daquela mulher. O que Ele viu foi a
chance de engrandecer uma vida, ensinar uma alma humana, fortalecer uma
filha de Deus e ajudá-la a buscar sua salvação. Essa era Sua “comida” e
“obra”. Certamente era a vontade de Seu Pai que Ele viera cumprir. Até
mesmo aqueles discípulos que estavam tão perto do Mestre precisavam ainda
remover completamente as névoas das tradições que lhes embotavam a visão.
Eles também precisavam do convite incomum, apesar de tão comumente
oferecido, de levantar os olhos para propósitos mais nobres, significados mais
elevados, mais sustento espiritual.
Depois de estudar alguns desses incidentes, torna-se claro que a mesma
lição é ensinada pelo Salvador diversas vezes. Jesus falou de Templos e as
pessoas pensaram que Ele estivesse falando de templos. (João 2:18–21) Ele
falou de Pão e as pessoas acharam que Ele se referia a pão. (João 6:30-58) E
isso foi uma constante. Contudo, aquelas não eram meramente parábolas no
sentido de aplicações múltiplas de um único relato. Elas eram em todos os
casos um convite para “levantar os olhos” e ver as “coisas celestiais”; ou seja,
vê-Lo e entendê-Lo. Mas elas eram também repetidas manifestações de Sua
disposição de ir até onde as pessoas estavam, levando em conta suas
limitações, e partir desse ponto elevá-las para planos superiores. Por fim, se
permitissem, elas seriam levadas além do tempo e do espaço, rumo à
eternidade.
Como um lembrete de nossa obrigação de agir da mesma forma, vejam
este exemplo final.
Após a crucificação e ressurreição de Jesus, a situação de confusão e
desarranjo em que se achavam os discípulos pode ser melhor visualizada ao
lermos a declaração de Pedro: “Vou pescar”. Pensando talvez que sua missão
no evangelho tivesse terminado com a fim do ministério mortal de Cristo, os
outros discípulos disseram: “Também nós vamos contigo”. Em resumo, eles
voltaram para seus afazeres terrenos.
Mas após uma noite de pouco sucesso no trabalho com as redes, os
discípulos viram Jesus aparecer na costa ao nascer do dia. Depois que eles
vieram até a praia para estar com Ele, Jesus mais uma vez elevou-os com Seu
jeito singular.
A Simão Pedro, o líder dos apóstolos e a quem Ele passara o manto do
ministério mortal e da liderança, Jesus perguntou: “Simão, filho de Jonas,
amas-me mais do que estes?” Pedro rapidamente assegurou ao Mestre: “Sim,
Senhor, tu sabes que te amo”.
Pela segunda vez Jesus perguntou: “Simão, filho de Jonas, amas-me?”
Pedro, agora mais perturbado, ansiosamente reafirmou: “Sim, Senhor, tu
sabes que te amo”.
Ainda uma terceira vez, o Salvador indagou: “Simão, filho de Jonas,
amas-me?” e Pedro, agora visivelmente magoado pelo fato de o Senhor
duvidar tanto dele, respondeu: “Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te
amo”. (João 21:3–17)
Talvez seja desnecessário, assim como injusto, examinar esse diálogo
muito a fundo. O grande mandamento dado a Pedro e aos demais discípulos
era apascentar os cordeiros de Cristo, o pequeno rebanho de seguidores que já
O havia aceitado e a multidão além de seu círculo imediato que ainda
precisava ouvir e abraçar a mensagem do evangelho. Pedro claramente
deveria ser um pescador de homens pelo resto de sua vida e precisaria
abandonar suas redes na Galiléia. Talvez seja tudo o que precise ser dito
sobre esse episódio.
Além do mais, basta observar que a pergunta e convite feitos três vezes
poderiam simplesmente ter servido para reforçar a grande importância dessa
missão. Pedro talvez tenha-se entristecido com aquelas três perguntas por ter
negado três vezes sua ligação com o Salvador (ver Mateus 26:34), mas não
temos motivos para duvidar da sinceridade do amor que declarou. Contudo, a
linguagem empregada nesse trecho do Novo Testamento mais uma vez nos
faz o convite veemente para que nos voltemos das banais coisas terrenas para
as possibilidades únicas das celestiais.
Embora Jesus e Pedro provavelmente estivessem falando aramaico, o
relato que temos do evangelho de João chegou a nós pelo grego. Duas
palavras gregas diferentes para amor são usadas nessa passagem. Tanto na
primeira como na segunda vez, a pergunta de Jesus a Pedro é feita com a
palavra agape, a forma mais pura de amor — o que chamaríamos de puro
amor de Cristo. Mas ao responder, Pedro utiliza em ambas as vezes uma
palavra diferente, menos forte — philos, ou algo mais parecido com o amor
fraternal. Assim, seria significativo observar que em Sua terceira pergunta, o
próprio Jesus usa philos, e não agape, e Pedro pela terceira vez responde com
philos.
Parece oportuno notar que uma das grandes coisas que o último capítulo
do livro de João nos ensina é que Cristo nos ama onde estamos, ainda que
não seja ainda onde deveríamos estar. O amor fraternal de Pedro era
aceitável, embora Jesus naquela mesma situação tenha profetizado sobre o
amor sublime que Pedro logo viria a demonstrar e a forma grandiosa com que
o faria. (Ver João 21:18–19.)
Contudo, assim como no caso de Nicodemos, da samaritana e dos outros
discípulos, Pedro só atingiria esse estágio bem depois. O que ele e os demais
poderiam efetivamente fazer naquele instante era começar, estivessem onde
estivessem, por menor e mais comum que fosse sua capacidade. E ao
fazerem-no, por meio do toque da mão do Mestre eles poderiam ser levados a
fruir momentos de inigualável grandiosidade.
Onde quer que nos encontremos, nós também poderemos iniciar nossa
jornada rumo às coisas celestiais se buscarmos e aceitarmos a influência
paciente, engrandecedora e incomparável do Salvador.
Capítulo 11

A VONTADE DO PAI EM TODAS AS COISAS

A obra dos demônios e das trevas nunca tem mais probabilidade de


malograr do que quando as pessoas, mesmo sem achar justo ou
agradável, porém determinadas a fazer a vontade do Pai, olham para
sua vida, da qual às vezes parece ter desaparecido qualquer vestígio de
auxílio divino, e, mesmo perguntando-se por que foram abandonadas,
abaixam a cabeça e obedecem.

Permitam-me usar algumas linhas para contextualizar a cena para este


capítulo. Utilizei a palavra cena intencionalmente, pois quero sugerir um
drama divino. Ralph Waldo Emerson escreveu certa vez: “Se as estrelas
aparecessem em uma única noite em mil anos, como os homens preservariam
por gerações inteiras a crença, lembrança e adoração da cidade de Deus que
lhes fora mostrada!” (Nature [1836], section 1)
No espírito desse pensamento instigante, convido-os a voltar a atenção a
outra extraordinária, e muito mais importante, cena que deveria evocar crença
e adoração, uma cena à qual, como no caso das estrelas à noite, certamente
não damos o devido valor. Imaginem-se a si mesmos no meio do povo de
Abundância por volta do ano 34 d.C. Temporais, terremotos, furacões e
tempestades, acompanhados de fortes relâmpagos e trovões, cobriram a face
da terra. Algumas cidades inteiras pegaram fogo como que em um caso de
combustão espontânea. Outras foram tragadas pelo mar, para nunca mais
serem vistas. Outras foram ainda soterradas por montes de terra e outras
levadas pelo vento.
Toda a face da terra foi alterada e toda a paisagem a seu redor está
desfigurada. Então, enquanto vocês e seus amigos estão no terreno do templo
(um local que subitamente pareceu um excelente lugar para se estar), vocês
ouvem uma voz e vêem um homem, vestido com uma túnica branca,
descendo do céu. É um espetáculo deslumbrante. Ele parece emanar a própria
essência da luz e da vida, um esplendor que constitui um contraste violento
com os três dias de trevas e morte há pouco testemunhados.
Ele começa a falar, com simplicidade, mas com uma voz que penetra até
a medula de seus ossos: “Eu sou Jesus Cristo, cuja vinda ao mundo foi
testificada pelos profetas”. (3 Néfi 11:10)
Lá está Ele. O ponto central e a figura principal de cada serão
domingueiro, devocional e noite familiar realizada por aqueles nefitas nos
seiscentos anos que antecederam aquele dia, e por seus antepassados
israelitas durante milhares de anos antes disso.
Todos falaram Dele, cantaram sobre Ele, sonharam com Ele e oraram
em nome Dele — mas aqui está Ele, pessoalmente. Hoje é o grande dia e por
sorte foi em sua geração. Que momento grandioso! E você percebe que não
se preocupou em olhar se há filme na máquina fotográfica, e sim como está a
fé em seu coração.
“Eu sou Jesus Cristo, cuja vinda ao mundo foi testificada pelos
profetas.” De todas as mensagens que poderiam vir dos anais da eternidade,
qual Ele trouxe para nós? Todos param para ouvir.
Ele diz: “Eu sou a luz e a vida do mundo; (…) bebi da taça amarga que o
Pai me deu e glorifiquei o Pai, tomando sobre mim os pecados do mundo,
(…) me submeti à vontade do Pai em todas as coisas desde o princípio”. Eis a
mensagem. Poucas linhas. Quarenta e duas palavras. “E (…) quando Jesus
pronunciou estas palavras, toda a multidão caiu por terra.” (3 Néfi 11:11–12)
Muitas vezes pensei nesse momento da história nefita, e não creio que
tenha sido por mero acidente ou casualidade que o Bom Pastor, recém-
exaltado, ao aparecer a uma significativa porção de seu rebanho, tenha
decidido falar em primeiro lugar de Sua obediência, lealdade, respeito e
submissão amorosa a Seu Pai. Após um momento inicial e profundo de
fascínio e assombro, após ter atraído a atenção de todos os milhares de
homens, mulheres e crianças diante Dele, Sua submissão ao Pai é a primeira e
mais importante coisa que Ele deseja que saibamos Dele.
Francamente, fico um pouco perturbado com o fato de ser essa a
primeira e mais importante coisa que Ele desejará saber sobre nós quando O
encontrarmos um dia. Fomos obedientes, mesmo quando nos era doloroso?
Fomos submissos, mesmo quando a taça era verdadeiramente amarga?
Aceitamos uma visão mais elevada e santa que a nossa, mesmo quando não
entendíamos o porquê?
Um a um, Jesus convida-nos a apalpar as marcas de Seus pés, mãos e
lado. E ao nos aproximarmos, tocarmos Nele e nos admirarmos, talvez Ele
sussurre: “Se alguém quiser vir a após mim, renuncie-se a si mesmo, tome
sobre si a sua cruz, e siga-me”. (Mateus 16:24)
Tal auto-renúncia e disposição de carregar a cruz eram, por definição, a
coisa mais difícil que Cristo ou qualquer homem jamais teria de fazer, um ato
de submissão que faria com que, pelo relato do próprio Salvador, Ele, “Deus,
o mais grandioso de todos, tremesse de dor e sangrasse por todos os poros; e
sofresse, tanto no corpo como no espírito”. Se obedecer, submeter-se e
curvar-se à vontade divina envolve tanto, não seria de estranhar-se que até
mesmo o Unigênito do Deus vivo e verdadeiro “desejasse não ter de beber a
amarga taça e recuar”! (D&C 19:18)
Enquanto nós exercitamos nossa capacidade de fazer sacrifícios,
podemos estar seguros de que para algumas pessoas deste mundo, não é
elegante ou lisonjeiro falar de submeter-se a alguém ou a algo. Às portas do
século 21, parece algo errado, algo típico de pessoas fracas e subservientes;
não faz parte do jeito de ser moderno.
Como o Élder Neal A. Maxwell escreveu há algum tempo: “Na
sociedade de hoje, diante da mera menção das palavras obediência e
submissão, os ânimos inflamam-se e as pessoas põem-se nervosamente na
defensiva. (…) As pessoas prontamente fornecem exemplos da história para
ilustrar como a obediência a autoridade insana e o servilismo a maus líderes
causaram tanto infortúnio e sofrimento. É difícil, portanto, fazer com que as
pessoas ouçam o que realmente significam as palavras obediência e
submissão — mesmo quando acrescentamos o complemento ‘a Deus’”. (Not
My Will, But Thine [Salt Lake City: Bookcraft, 1988], p. 1)
Afinal, viemos à Terra, pelo menos em parte, para cultivar a
autoconfiança e a independência, para aprender a agir por nós mesmos. Não
foi o próprio Cristo que disse: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará”? (João 8:32) Então como os céus falariam de tal liberdade espiritual
em um momento e no outro pediriam que fôssemos submissos e
dependentes?
É assim porque nenhum grau de instrução ou outro tipo de experiência
desejável e engrandecedora deste mundo nos ajudará na hora de nosso
confronto com Cristo se não fomos capazes — e se naquele momento não o
formos — de entregar ao Pai e ao Filho tudo o que somos, temos e esperamos
ter.
O caminho rumo a uma experiência cristã completa passará
invariavelmente pelo Jardim do Getsêmani. Aprenderemos lá, se já não
tivermos aprendido antes, que nosso Pai não terá outros deuses diante Dele
— até mesmo (ou principalmente) se esse deus em potencial formos nós
mesmos. Ser-nos-á exigido que nos ajoelhemos quando talvez não queiramos
ajoelhar-nos, que nos curvemos quando talvez não desejemos curvar-nos, que
nos confessemos quando talvez não estejamos dispostos a confessar-nos —
talvez uma confissão nascida da experiência dolorosa de que os pensamentos
de Deus não são os nossos pensamentos, nem seus caminhos os nossos
caminhos, diz o Senhor. (Ver Isaías 55:8.)
Creio que é por isso que Jacó diz que ser instruído — e talvez possamos
acrescentar que ser qualquer coisa de valor — é bom quando se dá ouvidos
aos conselhos de Deus. (Ver 2 Néfi 9:29.) Mas a instrução acadêmica, o
serviço comunitário, a responsabilidade social e a realização profissional de
qualquer tipo serão vãos se não pudermos, naqueles momentos cruciais de
nossa história pessoal, submeter-nos a Deus mesmo quando todas as nossas
esperanças e temores nos tentarem a agir de forma diferente. Devemos estar
dispostos a depositar tudo o que temos — não só nossas posses (que são as
coisas mais fáceis de se abdicar) mas também nossa ambição, orgulho,
obstinação e vaidade — no altar de Deus. E depois de ajoelharmo-nos lá e
fazermos a nossa oferta, devemos partir sem olhar para trás.
Creio que o que estou descrevendo aqui é a definição escriturística de
santo, alguém que cede “ao influxo do Espírito” e, “pela expiação de Cristo”,
(…) [torna-se] como uma criança, submisso, manso, humilde, paciente, cheio
de amor, disposto a submeter-se a tudo quanto o Senhor achar que lhe deva
infligir, assim como uma criança se submete a seu pai”. (Mosias 3:19)
Como o Grande Exemplo e Estrela Guia de nossa vida, seria de se
estranhar que Cristo tenha escolhido antes de tudo definir a Si mesmo em
relação a Seu Pai — a quem Ele amava, obedecia e se submetia como o Filho
leal que era? E o que Ele como Filho de Deus fez, devemos nós também de
todas as formas procurar fazer.
A obediência é a primeira lei dos céus. E, caso não tenhamos notado,
alguns mandamentos não são fáceis. Com muita freqüência parecemos estar
enfrentando uma dificuldade maior do que esperávamos inicialmente. Pelo
menos se estivermos levando realmente a sério nossa responsabilidade de
tornarmo-nos santos, perceberemos estar nessa situação. Vou usar como
exemplo o que é considerado por inimigos, e até por alguns amigos, o
momento mais indigesto do Livro de Mórmon inteiro. Escolhi-o
precisamente porque há bastante no episódio que ofende a muitos. Ele pode
ser considerado de fato uma taça amarga.
Refiro-me à incumbência que Néfi recebeu de matar Labão para
preservar registros, salvar um povo e por fim contribuir para a restauração do
evangelho na dispensação da plenitude dos tempos. O que teria passado pela
cabeça de Néfi no momento em que se viu diante do hostil Labão, caído de
embriaguez, eu não poderia dizer com exatidão, mas sei que não foi pouco. O
irônico de tudo isso é que nós sabemos como esse momento foi decisivo,
ainda que talvez Néfi não o soubesse. E ainda que tanto estivesse em jogo,
como poderia ele fazer tal coisa? Ele é uma pessoa boa, talvez até uma pessoa
instruída. Do alto do Sinai ele recebera o mandamento: “Não matarás”. E ele
fizera convênios no evangelho.
“Fui compelido pelo Espírito a matar Labão; mas (…) contive-me; e
desejei não ter de matá-lo”. (1 Néfi 4:10) Um teste doloroso? Um desejo de
recuar? Já se deparou com isso antes? Não sabemos por que aquelas placas
não poderiam ter sido obtidas de outra forma — talvez sendo esquecidas
acidentalmente em algum lugar após um polimento de rotina, ou quem sabe
caindo da carruagem de Labão durante um passeio vespertino de domingo.
Mas já que não foi assim, por que simplesmente Néfi não omitiu essa história
do livro? Por que ele não disse simplesmente algo como: “E após grande
esforço e angústia de espírito, obtive as placas de Labão e parti para o deserto
para a tenda de meu pai”? Pelo menos ele poderia ter escondido esse relato
em algum lugar no meio dos capítulos de Isaías, dessa forma garantindo que
permanecesse oculto até hoje.
Mas ali está ele, bem no início do livro, na página 8, onde até mesmo
um leitor menos diligente poderá vê-lo e terá de lidar com ele. Nem Néfi nem
nós fomos poupados da luta contida nesse relato.
Creio que essa história foi colocada nos versículos iniciais de um livro
de 620 páginas e contada em dolorosos detalhes para levar cada leitor desse
registro a concentrar-se nesse tema absolutamente essencial do evangelho que
é a obediência e submissão à vontade expressa do Senhor. Se Néfi não tivesse
conseguido cumprir essa ordem tão dolorosa, se ele não tivesse obedecido,
então seria totalmente improvável que tivesse êxito ou sobrevivesse às
espinhosas tarefas que estavam logo à frente.
“Eu irei e cumprirei as ordens do Senhor.” (1 Néfi 3:7) Confesso que
estremeço um pouco ao ouvir essa promessa citada de maneira tão casual em
nosso meio. Jesus sabia o que esse tipo de compromisso acarretava, e Néfi
também, assim como muitos outros saberão antes do fim. Tal voto levou
Cristo à cruz do Calvário e permanece no cerne de todos os convênios
cristãos. “Eu irei e cumprirei as ordens do Senhor”? Bem, é o que vamos ver.
Em tudo isso, estamos obviamente experimentando o problema de
Lúcifer, o do ego desenfreado; ele que levou a megalomania às últimas
conseqüências e sempre quis fazer tudo à sua maneira. Lúcifer deveria ouvir
os sábios pastores escoceses que advertiram: “Há um tipo de religião em que
quanto mais dedicado for um homem, menos adeptos conseguirá: o culto a si
mesmo”. (C. S. Lewis, ed., George MacDonald: An Anthology [New York:
Macmillan, 1947], p. 110)
Contudo, temos a aprender com o que aconteceu com Satanás. Por
também termos um ego, sofremos a tentação de querer pô-lo em evidência,
colocá-lo em primeiro lugar e no centro de tudo. E quanto maiores formos —
social, intelectual, política ou economicamente — maior será o risco de
aumentarmos a adoração a nós mesmos. Certa vez, um casal trouxe um
recém-nascido diante do respeitável general Robert E. Lee e, cheios de
esperança, pediram-lhe conselhos, perguntando: “O que devemos ensinar a
essa criança? Como ele deveria agir no mundo?” O velho e sábio general
respondeu: “Ensinem-no a negar a si mesmo. Ensinem-no a dizer ‘não’”.
Normalmente, exercitar a submissão é uma tarefa solitária e desgastante.
Às vezes, nos momentos em que parecemos mais precisar do Senhor, somos
deixados aparentemente sós para demonstrar nossa obediência. O salmista
fala por todos nós nesses momentos difíceis: “Por que estás longe, Senhor?
Por que te escondes nos tempos de angústia?” “Por que te alongas do meu
auxílio e das palavras do meu bramido? (…) Eu clamo de dia, e tu não me
ouves; de noite, e não tenho sossego”. “Não escondas de mim a tua face,
[Senhor], (…) não me deixes nem me desampares, ó Deus da minha
salvação”. “Não emudeças para comigo”. (Salmos 10:1; 22:1–2; 27:9; 28:1)
As súplicas do salmista lembram a suprema angústia do Calvário, aquele
clamor que caracterizou o ato mais sublime de submissão: “Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27:46. Ver Salmos 22:1.) E em
menor grau, ouvimos os lamentos vindos da cadeia de Liberty: “Ó Deus,
onde estás? E onde está o pavilhão que cobre teu esconderijo? Até quando tua
mão será retida (…)? Sim, ó Senhor, até quando?” (D&C 121:1–3)
Temos ciência dos maus-tratos que Joseph e seus companheiros
sofreram nas mãos de seus carcereiros. Além do mais, temos consciência do
espírito de submissão de Joseph naquela época, que escolheu aquele dentre
todos os momentos para redigir um dos trechos mais grandiosos das
escrituras, um apelo para mantermos influência somente com “persuasão,
com longanimidade, com brandura e mansidão e com amor não fingido”.
(D&C 121:41) Que cenário para falar-se com tanta benignidade! Que
ambiente brutal para que aflore tanta compaixão!
Contudo, uma parte da história de que não nos lembramos tão bem é a
relativa a seu companheiro de prisão, Sidney Rigdon. Sidney, na verdade, foi
libertado cerca de dois meses antes que o Profeta Joseph Smith e os demais,
mas saiu dizendo que os sofrimentos de Cristo haviam sido insignificantes se
comparados aos dele.
Não nos compete, na segurança e conforto de nosso lar, julgar o irmão
Rigdon ou os demais que sofreram tantas injúrias no Missouri. Mas dizer que
o sacrifício expiatório de Cristo e o peso dos pecados de toda a humanidade
que Ele tomou sobre Si — desde Adão até o fim do mundo — eram
insignificantes comparados ao confinamento do irmão Rigdon na cadeia de
Liberty dá indícios da arrogância obstinada e fatal que tantas vezes vemos
naqueles que acabam por apostatar.
O Professor Keith Perkins escreveu que esse foi um momento que
marcou uma mudança para pior na vida de Sidney Rigdon. (Ver “Trials and
Tribulations: The Refiner’s Fire” em The Capstone of Our Religion: Insights
into the Doctrine and Covenants [Salt Lake City: Bookcraft, 1989], p. 147)
Após essa experiência, ele já não era o líder de destaque que fora nos
primeiros anos desta dispensação. Logo Joseph Smith sentiu que ele não era
mais de utilidade na Primeira Presidência, e após a morte do Profeta, Rigdon
conspirou contra os Doze em um esforço para conseguir o controle da Igreja
só para si. No fim, ele morreu como um homem mesquinho e amargo,
alguém que perdera a fé, o testemunho, o sacerdócio e as promessas que lhe
haviam sido feitas.
Joseph, por outro lado, haveria de perseverar e ser exaltado ao fim
daquelas tribulações. Não é de se estranhar que o Senhor lhe tenha dito
anteriormente: “Sê paciente nas aflições, pois terás muitas; suporta-as,
contudo, pois eis que estou contigo até o fim dos teus dias”. (D&C 24:8)
“Estes que estão vestidos de vestes brancas, quem são, e de onde
vieram?” pergunta João, o Revelador, em sua grandiosa visão. A resposta:
“Estes são os que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as
branquearam no sangue do Cordeiro”. (Apocalipse 7:13–14)
Parece-nos particularmente difícil submeter-nos às grandes tribulações
quando olhamos a nosso redor e vemos tantas vezes pessoas aparentemente
menos obedientes que sempre triunfam enquanto choramos. Mas o tempo é
medido somente pelos homens, como diz Alma (ver Alma 40:8), e Deus tem
uma excelente memória.
O Élder Dean L. Larsen escreve sobre um fazendeiro que guarda o dia
do Senhor, mas fica perturbado e desanimado ao ver seu vizinho que não
cumpre esse mandamento conseguir colheitas muito melhores e lucros bem
mais altos. Mas em tais situações de aparente injustiça, devemos lembrar-nos
de que “nem sempre o acerto de contas com Deus se dá em outubro”. (“The
Peaceable Things of the Kingdom”, em Hope [Salt Lake City: Deseret Book,
1988], p. 200)
Às vezes, também subestimamos a disposição do Senhor de ouvir nossas
súplicas, atender a nossos pedidos, declarar que nossa vontade não é contrária
à Sua e que Sua ajuda está a nosso alcance se a buscarmos. Vejamos o
seguinte exemplo retirado da biografia do Presidente Marion G. Romney,
escrita pelo Élder F. Burton Howard. Vou citar bastante o Élder Howard para
resumir a história.
Em 1967, a irmã Ida Romney sofreu um grave derrame. Os médicos
disseram ao então Élder Romney que os efeitos da hemorragia eram muito
sérios. Eles ofereceram-se para mantê-la viva por meio de aparelhos, mas não
acharam que fosse recomendável. A família preparou-se para o pior. O irmão
Romney confidenciou às pessoas mais próximas que apesar de sua angústia
com a doença da esposa e seu desejo ardente de ver a saúde dela restabelecida
para contar de novo com sua companhia, acima de tudo ele queria que a
vontade do Senhor fosse feita. Ele “estava disposto a submeter-se a tudo que
o Senhor lhe infligisse, sem lamúrias”.
Com o passar dos dias, a irmã Romney respondia cada vez menos a
estímulos externos. Ela obviamente já recebera bênçãos de saúde, mas o
Élder Romney estava “relutante em aconselhar o Senhor naquele assunto”.
Devido a experiências anteriores malsucedidas ao orar pedindo que ele e Ida
tivessem filhos, ele sabia que nunca devia pedir em oração algo que não
estivesse em harmonia com a vontade do Senhor. Ele jejuou para saber como
demonstrar ao Senhor que tinha fé e que aceitaria Sua vontade na vida deles.
Ele queria ter certeza de que fizera tudo que podia. Mas o estado dela só
piorava.
Em uma noite em que estava vivendo uma situação particularmente
deprimente, pois Ida não era capaz de falar ou reconhecê-lo, o irmão Romney
voltou para casa e foi estudar as escrituras, como costumava fazer para entrar
em comunhão com o Senhor. Ele pegou o Livro de Mórmon e continuou do
ponto em que havia parado na noite anterior. Ele estivera lendo no livro de
Helamã sobre o profeta Néfi, que havia sido acusado injustamente de sedição.
Depois de livrar-se miraculosamente de seus acusadores, Néfi voltou para
casa meditando sobre as coisas que tinha vivido. Nesse momento, ele ouviu
uma voz.
Embora o Élder Romney já tivesse lido aquela história várias vezes,
naquela noite ela tocou-o como uma revelação pessoal. As palavras da
escritura sensibilizaram tanto seu coração que pela primeira vez em semanas
ele sentiu paz verdadeira. Parecia que o Senhor estava falando diretamente
com ele. A escritura dizia: “Bem-aventurado és tu, (…) pelas coisas que tens
feito; (…) não (…) te preocupaste com tua própria vida, mas procuraste
conhecer minha vontade e cumprir meus mandamentos. E agora, por teres
feito isso com tanta perseverança, eis que te abençoarei para sempre e te farei
poderoso em palavras e ações, em fé e em obras; sim, para que todas as
coisas se realizem segundo tua palavra, pois nada pedirás que seja contrário a
minha vontade”. (Helamã 10:4–5)
Ali estava a resposta. Ele procurara apenas conhecer e seguir a vontade
do Senhor, e Ele a manifestara. O Élder Romney ajoelhou-se e abriu o
coração ao Senhor, e ao terminar sua oração com a frase “Seja feita a tua
bondade”, ele sentiu, ou realmente ouviu, uma voz que dizia: “Não é contra
minha vontade que Ida se cure”.
Sem hesitar por um minuto, o irmão Romney levantou-se. Já eram mais
de duas horas da manhã, mas ele sabia o que deveria fazer. Rapidamente,
colocou uma gravata e um terno e saiu em plena madrugada para visitar Ida
no hospital. Ele chegou pouco antes de três de horas. O estado de sua esposa
não havia mudado. Ela não apresentou reação alguma quando ele pôs as mãos
sobre sua pálida fronte. Com uma fé inabalável, ele invocou o poder do
sacerdócio em favor dela. Proferiu uma bênção simples e em seguida deixou
a incrível promessa de que ela recobraria a saúde e as faculdades mentais e
ainda desempenharia uma “grande missão” na Terra.
Embora não tivesse duvidado, o Élder Romney ficou perplexo ao ver os
olhos de Ida abrirem-se quando ele terminou a bênção. Um tanto surpreso por
tudo que acontecera, ele sentou-se na beira da cama e ouviu a voz debilitada
de sua esposa pela primeira vez em vários meses. Ela disse: “Puxa vida,
Marion! O que você está fazendo aqui?” Ele, sem saber se devia rir ou chorar,
disse: “Ida, como você está?” Com o senso de humor que era tão
característico a ambos, ela respondeu: “Em comparação a que, Marion? Em
comparação a quê?”
A partir daquele momento, Ida Romney iniciou o processo de
reabilitação, em pouco tempo recebeu alta e viveu o bastante para ver seu
marido ser apoiado como membro da Primeira Presidência da Igreja; de fato,
“uma grande missão na Terra”. (F. Burton Howard, Marion G. Romney: His
Life and Faith [Salt Lake City: Bookcraft, 1988], pp. 137–142)
Devemos ter o cuidado de não deixar escapar a mão do Senhor quando
Ele a estende a nós, quando Ele deseja ajudar-nos. Minha filha, Mary,
ressaltou esse ponto durante uma conversa comigo pouco tempo depois de
voltar de um semestre de estudos em Jerusalém. Ela estava referindo-se à
irônica tendência de temer e evitar nossa própria fonte de ajuda e libertação,
de recuar em vez de ir em direção à segurança. Ela lembrou o relato que se
encontra em Mateus, quando houve uma tempestade no mar da Galiléia e o
barco que levava os discípulos foi “açoitado pelas ondas; porque o vento era
contrário”. Em meio a toda essa ansiedade, os discípulos olharam para a praia
e viram um ser, um fantasma, uma aparição que andava na direção deles. Isso
só aumentou o pânico, e eles começaram a gritar de medo. Mas era Cristo
andando sobre as águas, ao encontro deles. “Tende bom ânimo”, ele
exclamou. “Sou eu, não temais.” (Mateus 14:24–27) Ele estava vindo para
ajudá-los em um momento de necessidade, e eles, sem compreender, estavam
fugindo.
“Esse milagre tem uma grande riqueza de simbolismo e sugestões”,
escreveu o Élder James E. Talmage. “Por meio de que lei ou princípio o
efeito da gravidade foi substituído, de forma que um corpo humano pudesse
ser mantido sobre a superfície líquida, o homem é incapaz de dizer. O
fenômeno é uma demonstração concreta da grande verdade de que a fé é um
princípio de poder, pelo qual as forças naturais podem ser condicionadas e
controladas. Na vida de cada ser adulto, existem experiências semelhantes à
luta dos navegantes sacudidos pela tempestade, com ventos contrários e
mares ameaçadores; freqüentemente a noite da lua e do perigo já está bem
adiantada quando chega o socorro. E, então, muitas e muitas vezes o auxílio
salvador é confundido com um terror maior. Assim como chegou a Pedro e a
seus companheiros aterrorizados, no meio das águas, turbulentas, assim
chega a todos que labutam arduamente, com fé, a voz do Libertador — ‘Sou
eu; não temais’.” (Jesus o Cristo [A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias: São Paulo, 1964], pp. 326–327)
Com a imagem de Cristo aparecendo em grande glória diante de nós,
permitam-me concluir esse drama onde o comecei. Aprendemos que cada um
de nós irá encontrar-se face a face com Cristo para ser julgado por Ele, assim
como o próprio mundo será julgado em Sua grandiosa Segunda Vinda. Vou
encerrar com uma adaptação de uma história de C. S. Lewis intitulada “The
World’s Last Night”, de que me apoderei e modifiquei de acordo com os
propósitos de minha mensagem. A metáfora e muito da linguagem são de
Lewis, mas a aplicação é minha. Na peça Rei Lear (no Ato III, cena vii) surge
um homem que tem uma participação tão pequena na história que
Shakespeare nem lhe deu nome: ele é chamado simplesmente de “Primeiro
Servo”. Todos os personagens em volta dele — Regan, Cornwall e Edmund
— têm planos bons e de longo prazo. Eles acham que sabem como a história
vai terminar, mas estão redondamente enganados. O servo, contudo, não se
ilude dessa forma. Ele não tem a menor noção de como a peça vai-se
desenrolar. Mas ele entende a cena presente. Ele presencia uma abominação,
quando cegam o velho Gloucester, e não fica impassível. No mesmo instante,
desembainha sua espada e aponta-a para o peito de seu senhor. Em seguida,
Regan apunhala-o pelas costas. Essa é sua participação inteira: contada em
não mais que oito linhas. Mas, como salienta Lewis, caso se tratasse da vida
real e não de uma peça, essa é a parte que mais valeria ser representada.
A doutrina da Segunda Vinda ensina-nos que não sabemos nem
podemos saber quando Cristo voltará e quando todo o drama chegará ao fim.
Ele pode aparecer e a cortina pode abrir-se a qualquer momento, mesmo
antes de você terminar de ler este parágrafo. O fato de não termos esse
conhecimento traz grande frustração a algumas pessoas. Muitas coisas seriam
interrompidas. Talvez você estivesse planejando casar-se mês que vem, ou
comprar uma casa ano que vem. Talvez você estivesse pensando em sair em
missão, pagar o dízimo ou negar a si mesmo alguns prazeres. Certamente, um
Deus tão bom e sábio não seria tão arbitrário a ponto de interromper tudo
isso, seria? Pelo menos não agora.
Ao pensarmos assim, achamos que conhecemos as regras do jogo. Mas
na verdade, sabemos bem pouco sobre ele. Cremos estar a par de tudo no Ato
II, mas não sabemos quase nada do que sucedeu no Ato I e nem o que vai
acontecer no Ato III. Nem sabemos com certeza quem são os personagens
principais e os secundários. O Autor sabe. A audiência — uma vez que há
uma audiência de anjos lotando o camarote e os corredores — tem uma
prévia. Mas nós, que nunca vemos a peça de fora, que conhecemos apenas o
diminuto número de personagens que está junto conosco no palco, que em
grande parte ignoramos o futuro e dispomos apenas de informações
imperfeitas do passado, não podemos prever o momento em que Cristo virá e
nos encontrará face a face. Nós nos depararemos com Ele um dia, disso
podemos estar seguros; mas se tentarmos adivinhar que dia será esse,
estaremos perdendo tempo. Podemos estar certos de que esse drama humano
tem um grande significado, ainda que agora não consigamos perceber sua
dimensão plena. Quando ele chegar ao fim, aprenderemos muito mais do que
sabemos agora. Podemos estar seguros de que o Autor terá algo a dizer a cada
um de nós acerca da parte que desempenhamos. Desempenhá-la bem,
portanto, é o que mais importa. Poder dizer ao fechar da última cortina:
“Submeti-me à vontade do Pai em todas as coisas” é a única coisa que nos
garantirá aplausos no final. (Ver “The World’s Last Night”, in Fern-Seed and
Elephants and Other Essays on Christianity by C. S. Lewis, ed. Walter
Hooper [Great Britain: Fontana/Collins, 1975], pp. 76–77)
A obra dos demônios e das trevas nunca tem mais probabilidade de
malograr do que quando as pessoas, mesmo sem achar justo ou agradável,
porém determinadas a fazer a vontade do Pai, olham para sua vida, da qual às
vezes parece ter desaparecido qualquer vestígio de auxílio divino, e, mesmo
perguntando-se por que foram abandonadas, abaixam a cabeça e obedecem.
(Parafraseado de C. S. Lewis, The Screwtape Letters [New York: Macmillan,
1961], p. 39)
Obedecer à vontade de Deus “em todas as coisas” e até o fim é o único
caminho seguro para os que crêem. É a única maneira de fazer vir Seu reino e
tornar a vida na Terra como a no céu.
Capítulo 12

Ó SENHOR, MANTÉM FIRME O MEU LEME

Uma pessoa desleal talvez não tenha más intenções. Ela pode estar
até convencida de estar fazendo o bem com suas ações. Nesses casos,
vale lembrar que alguns tipos de traição têm o poder de produzir
resultados fora de nosso controle. Talvez não tenhamos pretendido
prejudicar alguém com nossas palavras e atos, mas, por vezes, vemos
mais tarde que as conseqüências foram desastrosas.

Algo que aconteceu no campus da Universidade Brigham Young vários


anos atrás recebeu uma cobertura ostensiva da mídia. A data era 16 de
novembro de 1985. A BYU entrou para a história. A televisão noticiou o fato,
a imprensa escrita também e, no melhor estilo do ator Clint Eastwood, o
acontecimento fez o dia do comentarista esportivo Beano Cook, conhecido
nacionalmente. A BYU vaiara o zagueiro de sua própria equipe de futebol
americano.
Um dos filósofos de maior destaque dos Estados Unidos, Josiah Royce,
escreveu: “A lealdade é para o homem leal não apenas um princípio, mas o
mais importante de todos os princípios morais de sua vida, pois lhe provê
(…) a solução moral para o mais difícil de [todos os] problemas humanos, o
dilema: ‘Para que vivo?’” (The Philosophy of Loyalty [New York:
MacMillan, 1908], p. 57)
É a lealdade — lealdade a princípios verdadeiros, pessoas corretas,
instituições respeitáveis e ideais dignos — que unifica nosso propósito na
vida e define nossa moral. Quando não possuímos tal lealdade ou convicções,
nem padrões para medir nossos atos e suas conseqüências, ficamos sem
âncora, à deriva, “[levados] pelo vento e [lançados] de uma para outra parte”
(ver Tiago 1:6), até que outra tempestade, problema ou paixão nos arraste
para outra direção por um período igualmente curto e instável. Quanto mais
velho fico, mais eu acredito que o Professor Royce tinha razão. “Para que
vivo?” é, de certa forma, a pergunta que todo missionário SUD convida seus
pesquisadores a fazer. Se a pergunta for objeto de uma ponderação sincera, a
verdade eterna tem grandes chances de abençoar os filhos de Deus. E temas
como lealdade e honra são importantes na BYU, pois “tornar [os jovens]
capazes de serem honestos”, afirmou John Ruskin, “é o início da educação”.
Samuel Johnson disse-o de forma ainda mais expressiva: “A integridade sem
o conhecimento é débil e inútil, e o conhecimento sem a integridade é
perigoso e assustador”.
O incidente da vaia incomoda-me por vários motivos. Em primeiro
lugar, incomoda-me o fato de um torcedor da BYU vaiar qualquer pessoa em
qualquer situação que seja. Se alguém conseguir mostrar-me o que há de
cristão nesse ato, convido-o a fazê-lo neste exato momento. Obviamente,
incomoda-me o fato de Beano Cook ter fixado esse evento na memória
nacional como o momento mais lamentável do campeonato universitário
nacional de futebol americano daquele ano. Incomoda-me o fato de terem
feito tal coisa com um colega de estudos, um vizinho, um amigo, um
converso à Igreja, no caso em questão. Sem mencionar, é claro, que ele foi o
responsável por dois dos melhores anos da história do futebol americano na
BYU, garantindo dois títulos em campeonatos regionais, dois convites para
amistosos de alcance nacional, uma vitória na célebre partida Kick-Off
Classic, uma temporada inteira sem derrotas e um título no campeonato
nacional.
Incomoda-me o fato de um pequeno grupo de pessoas ter estragado uma
ótima partida (que, a propósito, a BYU acabou vencendo, contra um time que
acabaria em quinto lugar no país), ter prejudicado também a temporada
inteira e ter, ao menos a meu modo de ver, manchado a reputação do próprio
futebol da BYU. Contudo, tenho certeza que , em praticamente todos os dias
da semana, esse pequeno grupo de torcedores enfurecidos são pessoas de bem
que nem sequer pensariam em ser tão cruéis com alguém ou agir de maneira
tão vergonhosa, mas que de alguma forma se exaltam — ou melhor, se
rebaixam — levados pela emoção causada por um jogo. Nessa situação, seu
comportamento grosseiro intensifica-se em proporção direta à animosidade
da multidão, e eles ainda se sentem protegidos pela distância que os separa
dos jogadores. Alguém já disse que nenhum floco de neve individualmente
jamais se sentiu responsável por uma avalanche. Talvez isso se aplique
também aos torcedores de futebol americano.
Devemos ser o tipo de pessoa que permanece fiel aos princípios, às
pessoas e instituições com quem nos comprometemos e que talvez tenham
nos dado a maioria das bênçãos que desfrutamos. De certo modo, o que digo
aqui tem pouco a ver com torcedores, futebol ou Beano Cook, quem quer que
ele seja. A vaia a um semelhante talvez seja logo esquecida (exceto para a
vítima), assim peçamos desculpas a ele e a todos os outros que receberam
tratamento cruel de nossa parte e prossigamos, fazendo uma pergunta mais
abrangente. Se todas as pessoas tivessem exatamente o mesmo senso de
lealdade que nós, que tipo de comunidade, igreja, nação ou mundo teríamos?
Quanta pressão pode ser considerada demasiada para que permaneçamos
fiéis? Quanta decepção é demasiada para que nos mantenhamos firmes? Qual
distância é grande demais para que andemos com um amigo desanimado, um
cônjuge com dificuldades ou um filho problemático? Quanto do que
considerávamos importante estaremos dispostos a defender e quanto de nós
mesmos, nos altos e baixos da vida, estaremos dispostos a doar quando a
oposição aumentar e o caminho tornar-se mais penoso?
Assim como no caso de muitas outras abstrações que precisam tornar-se
concretas, nosso lar e família dariam exemplos excelentes para uma aplicação
inicial. Ficaríamos, por exemplo, do lado de um irmão mais novo ou de uma
irmã mais velha em momentos de desespero ou dor? Defenderíamos até a
morte nossos pais se eles realmente precisassem de nossa ajuda? Mesmo que
nossas orações sejam vergonhosamente breves, não oramos ao menos pelos
membros de nossa família? Suponho que essas perguntas sejam fáceis de
responder, pois dizemos coisas do tipo: “Bem, eu os amo”, “Devo tudo a
eles” ou “Eles fariam o mesmo por mim”.
Contudo, o que muitas vezes esquecemos é que devemos ter esses
mesmos sentimentos para com todos, que “família” é o verdadeiro nome
cristão para toda a raça humana. A forma com que nos cumprimentamos na
Igreja, “irmão Pedro e irmã Maria”, já se tornou tão banal que esquecemos o
motivo pelo qual o fazemos? Nossa freqüente menção ao “Pai Celestial” já se
tornou corriqueira e insignificante? Será que vamos alargar nosso círculo de
influência além dos limites já alcançados peles fariseus, que mesmo em seu
estado de ignorância não vaiavam outros fariseus? “Que galardão tereis? (…)
E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem
os publicanos também assim?” (Mateus 5:46–47) Em matéria de lealdade,
todos temos ainda um longo caminho a percorrer.
O irmão Alvin R. Dyer, já falecido, deparou-se com uma situação
parecida quando era bispo muitos anos atrás. Um membro de sua ala dissera
que fumar era o que mais lhe trazia prazer na vida. Ele disse ao Bispo Dyer:
“À noite, coloco meu despertador para tocar de hora em hora e levanto-me
para fumar um cigarro. Bispo, adoro fumar e seria impossível parar”.
Algumas dias depois, a campainha daquele homem tocou às dez horas
da noite. Ao abrir a porta, ele deu de cara com o bispo.
“Nossa, bispo, que raios o senhor está fazendo aqui a esta hora? Já
estava indo dormir.”
“Eu sei”, disse o bispo Dyer. “Queria ver você pôr o despertador para
tocar e levantar-se para fumar.”
“Puxa vida, não vou conseguir fazê-lo na sua frente”, disse o homem.
“Ah, claro que vai. Não se preocupe comigo. Vou ficar sentado num
canto qualquer e prometo permanecer em silêncio.”
O homem convidou-o a entrar e eles conversaram sobre os mais diversos
assuntos. O bispo Dyer foi muito hábil em manter o interesse do homem.
“Puxei conversa sobre todos os assuntos e idéias que me vinham à mente,
para mantê-lo falando”, contou ele. “Em diversos momentos achei que ele ia
expulsar-me, mas pouco depois das três da manhã, eu disse: ‘Nossa! Você já
perdeu cinco toques do despertador. Por favor, perdoe-me. Estraguei sua
diversão desta noite. Você deve estar tão aborrecido que deve estar querendo
mesmo é ir para a cama e esquecer o despertador por hoje’.”
Vejamos o que se passou em seguida: “Naquele momento, percebi nele
um senso de humor e dignidade. (…) Ele olhou para mim com um sorriso
todo peculiar (…) e disse: ‘Tudo bem, vou dormir mesmo’. [E] ele nunca
mais tocou em outro cigarro [pelo resto de sua vida]”. (Ver Alvin R. Dyer,
Conference Report, 5 de abril de 1965, p. 85)
Como descreveríamos a lealdade do Bispo Dyer? Será que se tratava de
lealdade àquele homem menos ativo, lealdade aos membros de sua ala em
geral, lealdade a seu chamado de bispo, lealdade à Palavra de Sabedoria,
lealdade ao princípio da revelação, lealdade à Igreja, lealdade a Deus ou —
bem, acho que já entenderam o que quero dizer.
O Pai Celestial pergunta a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” e Caim
dispara: “Não sei; sou eu guardador do meu irmão?” (Gênesis 4:9) Talvez a
resposta à pergunta seja, como o Professor Chauncey Riddle disse-me certa
vez: “Não, Caim, não se espera que você seja o guardador de seu irmão. Mas
espera-se que você seja o irmão de seu irmão”.
Pensemos por um momento no tipo de deslealdade que Caim introduziu
no mundo: traição à família, aos amigos e cidadãos. Ele deixou um terrível
legado, e milhares são os seus seguidores. “Dante reservou o círculo central
do inferno para [essas pessoas], aquelas que [se voltam contra os seus]. Lá ele
colocou Judas, Brutus e Cassius — os traidores mais famosos — nas três
bocas do próprio Satanás. O interessante é que o poeta não se utiliza da
imagem do fogo para descrever o tormento deles. A alma dos traidores é
mantida em um lago de gelo. Evidentemente, o pior dos pecados contra um
irmão ou irmã é a frieza de coração. Aqueles que são desleais aos outros
escolheram uma vida isolada e imóvel, uma vida, na verdade, hostil à própria
vida, para a qual a única imagem adequada é um sombrio deserto de gelo.”
(William F. May, A Catalogue of Sins [New York: Holt, Rinehart and
Winston, 1967], pp. 111–112]
Se não nos for pedido tão abertamente que guardemos um membro de
nossa família, como no caso de Caim, talvez tenhamos a oportunidade de
fazê-lo em relação à Igreja, precisando defendê-la.
Após quatro anos de serviço missionário no Havaí, um trabalho que
iniciara aos quinze anos de idade, o jovem Joseph F. Smith voltou à parte
continental dos EUA e começou sua jornada rumo ao Vale do Lago Salgado.
Aqueles eram tempos difíceis, e os sentimentos negativos contra os santos
dos últimos dias eram muito fortes. A terrível experiência do massacre de
Mountain Meadows ainda estava bem viva na mente de muitas pessoas. A
poligamia tornara-se uma questão política nacional e naquele mesmo período,
o exército, sob o comando de Albert Sidney Johnston, estava a caminho do
território de Utah cumprindo ordens do presidente dos Estados Unidos. Além
dos soldados do exército americano, havia muitos homens espalhados pela
região que juravam abertamente que matariam todo mórmon que
encontrassem.
Foi nesse mundo tão conturbado que Joseph F. Smith, então com
dezenove anos, dirigiu seu carroção. Certa noite, a pequena caravana com
quem viajava mal teve tempo de parar para acampar quando chegou a cavalo
um grupo de homens embriagados, vociferando, xingando e fazendo ameaças
de morte. Alguns dos homens mais velhos, ao ouvirem a aproximação do
bando, correram e esconderam-se atrás de arbustos na beira de um riacho
próximo, na esperança de não serem vistos pela turba. Mas Joseph F. Smith,
que estava um pouco distante colhendo lenha para a fogueira, não sabia do
problema em potencial. Com toda a inocência de um jovem, ele voltou para o
acampamento e ao chegar lá, deu-se conta tarde demais das difíceis
circunstâncias que iria enfrentar quase que totalmente só.
O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi deixar a lenha e correr
para o riacho, procurando abrigo nas árvores durante a fuga. Mas logo ele
pensou: “Por que deveria fugir de [minha fé]? Com esse impressionante
senso de lealdade firme na mente, ele não se deteve e levou a lenha até a
beira da fogueira. Quando estava prestes a colocar a madeira no chão, um dos
salteadores, com uma pistola apontada diretamente para a cabeça do jovem e
praguejando como somente um bandido embriagado conseguiria, perguntou
de forma ruidosa e irritada: “Sou um matador de mórmons, rapaz. Você é
mórmon?”
Sem hesitar um só instante e olhando aquele homem bem nos olhos,
Joseph F. Smith, que mal tinha idade para entrar no Centro de Treinamento
Missionário, respondeu ousadamente: “Sim, senhor. Sou mórmon roxo, dos
quatro costados, até debaixo d’água”.
A resposta foi dada com tanto destemor e audácia que desarmou aquele
malfeitor. Surpreso, ele largou a arma, apertou a mão do rapaz e disse:
“Sabe? Você é o (...) sujeito mais simpático que já conheci! Aperte minha
mão, rapaz, fico feliz em ver um homem que não tem vergonha de suas
convicções”.
Anos depois, já como presidente da Igreja, Joseph F. Smith disse que
realmente esperava que aquele homem descarregasse à queima-roupa todas as
balas de sua pistola. Mas ele disse também que, após aquele seu primeiro
pensamento de fuga, nunca mais lhe ocorreu fazer nada senão defender suas
crenças e enfrentar até mesmo a morte caso ela fosse o resultado inevitável de
tal convicção. (Joseph Fielding Smith, Life of Joseph F. Smith [Salt Lake
City: Deseret News Press, 1938], pp. 188–189)
Vem-me agora à mente, da obra de Montaigne, o antigo clamor do
marinheiro atingido por uma tempestade: “Ó Deus! Tu me salvarás se
quiseres e me destruirás se preferires; mas, ainda assim, manterei firme o meu
leme”. (Montaigne, Ensaios, livro II, capítulo 16)
É claro que não basta ser leal a uma causa qualquer. O que deu tanta
coragem ao jovem Joseph F. Smith, na época com apenas dezenove anos, foi
sua resposta à pergunta: “Para que vivo?” Era pela causa da verdade e do
evangelho que ele se havia alistado e por ela ele estava disposto até mesmo a
morrer.
Brigham Young certamente teve várias oportunidades de seguir um
curso firme, em especial naqueles primeiros e difíceis dias da restauração, ao
lado do Profeta Joseph Smith. Enquanto a Primeira Presidência estava em
Kirtland tentando estabilizar as difíceis circunstâncias financeiras que a Igreja
estava enfrentando no final de 1836 e início de 1837, os opositores à
continuidade de Joseph Smith como profeta e presidente da Igreja
convocaram uma assembléia.
“Nessa ocasião, [Brigham Young] levantou-se (…) e de maneira franca
e convincente, disse-lhes que sabia que Joseph era um profeta e que eles
podiam difamá-lo e caluniá-lo o quanto quisessem, mas jamais poderiam
destruir a missão do Profeta de Deus, só conseguiriam destruir a autoridade
deles mesmos, cortar o elo que os unia ao Profeta e a Deus e afundar no
inferno. Alguns dos presentes reagiram violentamente [contra Brigham].
Jacob Bump (...) quis mostrar seus dotes de pugilista. Enquanto várias
pessoas o seguravam, ele debatia-se e contorcia-se, gritando: ‘Preciso pôr as
mãos nesse homem!’ Brigham respondeu:’Faça-o, se isso for trazer-lhe
algum alívio’.”
Mas o homem não ousou fazê-lo. Alguns dias depois, Brigham ouviu
um homem correndo pelas ruas de Kirtland à meia-noite, gritando e
caluniando o Profeta Joseph. Mesmo sendo tão tarde, Brigham saltou da
cama, correu para a rua, “deu uns safanões no homem e assegurou-lhe que se
não parasse com o barulho e deixasse as pessoas dormir”, ele iria “açoitá-lo
ali mesmo, pois como tínhamos o Profeta do Senhor ali em nosso meio, não
queríamos o profeta do diabo vociferando pelas ruas”.
Aquela era verdadeiramente uma época de crise, ele relatou, “quando a
Terra e o inferno pareciam mancomunados para derrubar o Profeta e a Igreja
de Deus. Muitos dos homens mais fortes da Igreja fraquejaram”. Brigham
Young não vacilou, mas antes do fim daquele ano, sua própria vida foi posta
em perigo por conta de tal lealdade. Em 22 de dezembro, ele disse: “Precisei
partir para salvar minha vida. (...) Saí de Kirtland por causa da fúria da turba
e do espírito que prevalecia entre os apóstatas, que ameaçavam destruir-me
por proclamar tanto em público como em particular que sabia pelo poder do
Espírito Santo que Joseph Smith era um Profeta do Deus Altíssimo”.
(Leonard J. Arrington, Brigham Young, American Moses [New York: Alfred
A. Knopf, 1985], pp. 56–61)
E o Profeta Joseph Smith? Ao ser arrastado para longe da esposa e dos
filhos mais uma vez, ele disse: “Os traidores de nosso meios constituem um
perigo maior do que os inimigos externos. (...) Todos os inimigos da face da
Terra podem bramir e empregar todas as forças para ver-me morto, mas nada
conseguirão, a menos que alguns que estão entre nós e desfrutam nosso
convívio (...) se unam em sua vingança e a tragam sobre nossa cabeça”.
(History of the Church 6:152)
E a vingança que Joseph profetizou não tardou a chegar. Um profeta de
Deus mereceria isso de seus “amigos”? O que deveríamos esperar daqueles
que “desfrutam nosso convívio”? (Lembrem que o crime de Macbeth contra
seu rei foi ainda mais pérfido porque Duncan estava como hóspede em sua
casa.) Será que cada um de nós, que alegamos gozar dos privilégios e
benefícios do reino de Deus, teremos nossa própria fornalha para atravessar,
na qual nossa lealdade será purificada de forma tão extraordinária como no
caso de Sadraque, Mesaque e Abednego? Haverá algum campo de batalha a
nossa espera, uma espécie de Kirtland moral ou Carthage metafísica, que nos
dará a oportunidade de erguer-nos e sermos contados, como os dois mil
jovens guerreiros de Helamã, de quem se disse: “Eles eram (…) fiéis em
todas as ocasiões e em todas as coisas que lhes eram confiadas”? (Alma
53:20)
Karl G. Maeser, o primeiro reitor da Universidade Brigham Young,
escreveu: “Perguntaram o que significa para mim a palavra ‘honra’. Vou
tentar explicar-lhes. Coloquem-me por detrás das grades de uma prisão, com
paredes extremamente altas e espessas, e de uma forma ou outra eu talvez
consiga fugir; mas ponham-me no chão, desenhem uma linha com giz ao
redor de mim e façam com que eu empenhe minha palavra de que não
transporei esse limite. Eu sairia desse círculo? Não, jamais! Preferiria
morrer!”
De tempos em tempos, devemos todos fazer uma reflexão profunda
sobre nossa alma, nossos hábitos, inclinações e avaliar nossa lealdade usando
o padrão divino de nosso Salvador, Jesus Cristo. Até que ponto estamos
preparados para os difíceis testes que viremos a enfrentar ao adquirirmos
instrução, servirmos uma missão, criarmos uma família ou defendermos
nossas crenças? Em preparação para as investidas que nosso caráter e
convicções certamente hão se sofrer, seria esperar demais que apreciássemos
linguagem pura, divertimento sadio, trabalho árduo e comportamento
disciplinado? Se estivéssemos, neste exato momento, em uma trincheira
ficcional em algum lugar, lutando contra um inimigo que pusesse nossa vida
eterna em perigo, eu estaria seguro nas suas mãos? E vocês, estariam seguros
nas minhas?
Há mais de trinta anos, cerca de quinze soldados SUD aglomeraram-se
em um abrigo antiaéreo em uma linha de frente na Coréia, para realizar uma
reunião dominical. Eles usaram seus cantis e os biscoitos fornecidos pelo
exército para abençoar e tomar o sacramento. Em seguida, fizeram uma
reunião de testemunhos. Um rapaz apresentou-se simplesmente como
Sargento Stewart, de Idaho. Ele era baixo e franzino, com apenas cerca de
1,60 m e pouco mais de sessenta quilos. Seu maior sonho era tornar-se um
grande atleta, mas seus professores de educação física consideravam-no
pequeno demais para a maioria dos esportes de equipe. Assim, ele
especializou-se em competições individuais e teve relativo sucesso como
lutador e maratonista. Depois de apresentar-se, o Sargento Stewart contou a
seus quatorze irmãos de batalha uma experiência que tivera recentemente
com o comandante de sua companhia, um gigante chamado Tenente Jackson,
que tinha mais de 1,90 m, pesava mais de 100 quilos e era um excelente atleta
na faculdade. O sargento referiu-se a ele usando termos elogiosos, louvando-
o como um ótimo oficial e excelente cristão, que inspirava todos os que
tinham o privilégio de servir sob seu comando.
Pouco antes daquela reunião, o Sargento Stewart tinha sido designado
para uma patrulha sob a direção do Tenente Jackson. Ao andarem pelo sopé
de um monte, foram surpreendidos por fogo inimigo. O tenente, que estava à
frente, “foi atingido (…) por armas automáticas de pequeno porte. Ao cair,
ele conseguiu esconder-se sob uma rocha, (…) enquanto o restante da
patrulha subiu o monte para reagrupar-se. Já que era o segundo na linha de
comando, a responsabilidade agora recaía sobre o Sargento Stewart. Ele
[mandou] o homem mais alto e aparentemente mais forte (…) morro abaixo
para resgatar o tenente. Os demais dariam cobertura.
Depois de cerca de meia hora, ele voltou dizendo que não conseguira
carregar o oficial ferido, pois era pesado demais. (…) Os homens começaram
a resmungar, manifestando o desejo de partir antes que alguém mais se
ferisse. [Então] alguém disse: ‘Vamos deixar o tenente para lá, afinal, ele é só
um crioulo!’ Nesse momento, o Sargento Stewart virou-se para seus homens
e do alto de seu 1,60 m, falou com clareza e seriedade: ‘Não quero saber se
ele é negro, verde ou de qualquer outra cor. Não vamos embora sem ele. Ele
não nos deixaria para trás se fôssemos nós que estivéssemos na mesma
situação. Além do mais, ele é nosso oficial comandante e amo-o como a um
irmão’”.
Em seguida, ele desceu o morro sozinho.
O Sargento Stewart finalmente chegou até o oficial e verificou que ele
estava bastante debilitado pela perda de sangue. O tenente garantiu ao
sargento que era um caso perdido, pois não haveria como levá-lo de volta ao
posto médico. “Foi aí que a grande fé do Sargento Stewart em seu Pai
Celestial veio a calhar. Ele tirou o capacete, ajoelhou-se ao lado de seu líder
caído e disse: ‘Ore comigo, tenente’. (…)
“‘Querido Senhor’, ele suplicou, ‘preciso de força, uma força que está
muito além da capacidade de meu corpo físico. Esse grande homem, teu
filho, que está aqui gravemente ferido a meu lado, precisa de atendimento
médico urgentemente. Preciso de força para carregá-lo morro acima até o
posto médico, onde poderá receber o tratamento de que precisa para salvar
sua vida. Sei, Pai, que tu prometeste a força de dez para aquele cujo coração e
mãos forem limpos e puros. Sinto que sou digno dessa promessa. Por favor,
querido Senhor, concede-me essa bênção.’”
Ele agradeceu ao Pai Celestial pelo poder da oração e pelo privilégio de
ser um portador do sacerdócio. Em seguida, colocou o capacete, abaixou-se e
pegou seu líder caído, acomodou-o nos ombros e carregou-o para o alto do
morro, em segurança. (Ben F. Mortensen, “Sergeant Stewart”, The Instructor,
março de 1969, pp. 82–83)
Há outra pessoa que certa vez subiu um penoso monte sozinho —
levando nos ombros, com todo amor e cuidado, todos nós. E à medida que se
aproximava do Calvário, Seus defensores diminuíam cada vez mais. Com o
aumento da pressão e das dificuldades, Ele disse: “Há alguns de vós que não
crêem. Porque bem sabia Jesus, desde o princípio, quem eram os que não
criam, e quem era o que o havia de entregar. (…) Desde então muitos dos
seus discípulos tornaram para trás, e já não andavam com ele”. (João 6:64,
66)
Posteriormente, quando os soldados romanos e os príncipes dos
sacerdotes — uma “grande multidão com espadas e varapaus”, nas palavras
de Mateus — vieram prendê-lo, “todos os discípulos, deixando-o, fugiram”.
(Mateus 26:47, 56)
Logo veio Judas com o frio beijo da traição.
Não podemos saber exatamente o que Judas estava pensando, nem
porque ele escolheu aquele caminho. Talvez ele não achasse que tudo fosse
terminar da forma que terminou. Como William F. Mary disse, uma pessoa
desleal talvez não tenha más intenções — “ela pode estar até convencida de
estar fazendo o bem com suas ações. Nesses casos, vale lembrar que [alguns
tipos] de traição [têm] o poder de produzir resultados fora [de nosso] (…)
controle. [Uma conseqüência] mais cruel do que o pretendido. [Ao ter
determinada atitude ou falar algo sobre uma pessoa], sem intenção de
prejudicá-la, talvez vejamos mais tarde que as conseqüências foram
desastrosas. (…)
Quando Judas, o traidor [de Jesus], viu-O ser condenado, arrependeu-se
e trouxe as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e anciãos e
disse: ‘Pequei, traindo o sangue inocente’. Eles disseram: ‘Que nos importa.
Isso é contigo’. Precisamente por tudo ter sido colocado fora do alcance do
traidor, (…) a sensação de irreversibilidade é extremamente opressora. Não
há nada mais a ser feito. Judas enforca-se, [talvez] como forma de expiação,
(…) mas [talvez também] porque nenhum [ato] de expiação de sua parte seja
mais possível”.
Contudo, é também nessa hora que, em absoluta e total solidão, a
lealdade aos princípios e ao amor a Seus irmãos atinge sua manifestação
exaltada e eterna. Suando grandes gotas de sangue por todos os poros e
suplicando ao Pai que passasse o cálice, Ele ainda assim permanece fiel,
submetendo Sua vontade à do Pai e determinado a fazer a obra do reino.
Alguns momentos depois, com insultos, cuspidas, escárnio, zombaria e
espinhos lacerando Sua pele perfeita, os princípios triunfam tanto sobre os
sentimentos como sobre a dor, quando o Salvador de todos nós ora por Seus
irmãos: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. (Lucas 23:34)
Devemos nossa mais profunda lealdade às causas mais sublimes da
eternidade — as contidas na vida, na missão, no evangelho e nos
ensinamentos do Filho Unigênito de Deus. Se pudermos permanecer fiéis,
com os olhos fitos nesse padrão, a lealdade a todas as outras coisas ocupará
seu devido lugar. Vejamos as seguintes estrofes de dois conhecidos hinos. A
todos que desejem conhecer a disposição do céu de estar a seu lado em
momentos difíceis, cantamos:

A alma que em Cristo confiante repousar,


A seus inimigos não há de se entregar.

Embora o inferno a queira destruir,

Deus nunca, oh, nunca o há de permitir.

Hinos, nº 42

E para ajudar-nos a ter a força interior para permanecermos fiéis, mesmo


em meio à tribulação, cantemos com esperança:

E por fim, entronizado, às nações há de julgar;

Todos, grandes e pequenos, o Juiz vai encarar.

Os remidos, triunfantes, com louvor hão de cantar —

Vencendo vem Jesus!

Hinos, nº 180
Capítulo 13

A TAÇA AMARGA E O BATISMO DE SANGUE

Deus quer que sejamos mais fortes do que somos, mais firmes em
nosso propósito, mais seguros em nossos compromissos, cada vez menos
dependentes Dele, demonstrando mais disposição de carregar parte de
Seu pesado fardo. Em poucas palavras, Ele deseja que sejamos como
Ele.

Nas semanas finais de 1944, vestiram-me com pesados casacos e


levaram-me por volta das seis da manhã, conforme me lembro, para o Big
Hand Café, na esquina da rua principal com a Rodovia 91, em St. George,
Utah. Era ali que o ônibus interestadual parava em nossa cidadezinha e,
naquela manhã, meu tio Herb, do alto de seus dezessete anos, iria partir para
uma tal de San Diego, Califórnia. Parecia que estava havendo uma guerra em
algum lugar, e consideraram que ele tinha idade suficiente para ir e dar sua
contribuição. Ele fora convocado pela Marinha dos Estados Unidos e
estávamos ali para a despedida.
Na verdade, eu deveria ter feito uma apresentação formal naquela
despedida no terminal. Haviam programado que eu fizesse um solo, com
minha voz de quatro anos, e eu já tinha até ensaiado. Eu iria cantar uma
música que exaltava os marinheiros e que começava assim: “Calças boca de
sino, / Casaco azul como o mar. / Ela quer bem a seu marinheiro, / E ele só a
ela sabe amar”. Contudo, como aconteceria em outras designações em minha
vida, entrei em pânico diante do olhar do público e fiquei mudo. Recusei-me
a entoar uma nota que fosse.
Mas acho que meu silêncio foi até bom, pois minha mãe e minhas tias
estavam chorando tanto que ninguém mesmo se importaria se eu cantasse ou
não. Perguntei por que estavam chorando, e elas disseram que era por que o
tio Herb estava indo para a guerra. Perguntei: “Quando tempo ele vai ficar
longe?” — sem saber que alguns rapazes nunca voltavam. Com lágrimas nos
olhos, minha avó disse: “Ele vai ficar longe o tempo que for necessário. Ele
vai ficar longe durante todo o período da guerra”.
Bem, eu não tinha a menor idéia do que ela queria dizer com aquilo. “O
tempo necessário para fazer o quê?” Não via razão para que elas chorassem
tanto. E o que significava “durante todo o período da guerra”? Eu estava
extremamente confuso e feliz por não ter cantado a música, pois só teria
contribuído ainda mais para a confusão, e o Big Hand Cafe não comportava
mesmo muito tumulto.
Tenho pensado muito mais nas palavras de minha avó nos últimos anos
do que em minha juventude. Quanto mais tempo vivo, mais percebo que
algumas coisas da vida são muito verdadeiras, duradouras e importantes. São
questões que poderiam ser classificadas como eternas. Sem pretensões de
fazer uma relação completa dessas posses de valor permanente, basta dizer
que todas estão incluídas coletivamente, de uma forma ou de outra, no
evangelho de Jesus Cristo. Como Mórmon disse a seu filho: “Em Cristo
[vêm] todas as coisas boas”. (Morôni 7:22) Assim, com o passar do tempo,
devemos — para crescer e amadurecer no evangelho — passar mais tempo e
dedicar mais energia às coisas boas, às melhores coisas, às coisas que duram
e prevalecem.
É por isso, creio eu, que a família e os amigos verdadeiros se tornam
cada vez mais importantes à medida que ficamos mais velhos, assim como o
conhecimento, os atos simples de bondade e a preocupação com as outras
pessoas. Pedro enumera várias dessas virtudes, chamando-as de “natureza
divina”, e promete-nos “poder divino” para possuí-las e partilhá-las. (Ver II
Pedro 1:3–8.) Esses princípios e qualidades do evangelho, conforme os
entendo, são as mais importantes e permanentes aquisições da vida. Mas há
uma guerra sendo travada no campo de tais posses pessoais, e haverá pelo
menos mais uma ou duas grandes explosões que hão de atingir em cheio
nossa vida e exigirão que examinemos cuidadosamente as coisas em que
afirmamos crer, que supomos estimar ou que confiamos ser-nos de valor
permanente.
Quando os tempos difíceis se abaterem sobre nós ou quando a tentação
parecer cercar-nos, estaremos (e estaríamos agora) preparados para manter-
nos firmes e rechaçar o invasor? Estamos equipados para o combate, para
permanecermos fiéis o tempo que for necessário, para lutarmos fielmente
durante o todo o período da guerra? Podemos agarrar-nos aos princípios e às
pessoas que realmente têm importância eterna para nós?
De modo a avaliarmos a qualidade de nossa fé e a determinação de
nosso propósito, devemos entender claramente o compromisso que fizemos
quando nos batizamos não só na Igreja de Cristo, mas em Sua vida, morte e
ressurreição, em tudo que Ele é e significa no tempo e na eternidade. Nós
fizemos promessas, a nós mesmos e a Deus. E quem recebeu a investidura no
templo sagrado tomou sobre si os mais elevados convênios e as mais
sagradas ordenanças a nosso alcance na mortalidade.
Somos um povo que já se envolveu no que há de mais sério e eterno. Há
uma guerra e nós nos alistamos. É certamente uma guerra em que se vale a
pena lutar. Mas somos tolos, fatalmente tolos, se acharmos que se trata de
algo cômodo ou trivial. Somos tolos se acharmos que não se exigirá nada de
nós. De fato, Cristo, a figura principal e o grande comandante dessa peleja,
advertiu-nos a não tratar o novo testamento de Seu corpo e sangue com
leviandade. Não podemos de forma alguma furtar ou ser profanos, mentir ou
fornicar, saciar nossos apetites e instintos com espécie alguma de indulgência
e violação aos mandamentos e ainda assim achar que somos bons soldados.
Não, não neste exército, não ao defendermos o reino de Deus.
Espera-se mais do que isso de nós. Muito mais. E em um sentido bem
real, a própria eternidade está em jogo. Creio firmemente que não possa haver
cristãos eventuais, pois se não estivermos continuamente em estado de alerta
e prontidão, seremos, no auge da batalha, contados entre as baixas. E todos
nós conhecemos casos assim. Talvez nós mesmos já nos tenhamos ferido.
Não fomos fortes o bastante. Não nos importamos o bastante. Não paramos
para pesar as conseqüências de nossos atos. A guerra era mais perigosa do
que supúnhamos. A tentação de cometer transgressões e fazer concessões está
por toda a parte, e muitos de nós, mesmo como membros da Igreja, já fomos
vítimas. Já participamos indignamente da carne e do sangue de Cristo e
comemos e bebemos condenação para nossa alma. (Ver 3 Néfi 18:28–29.)
Pode ser que alguns de nós ainda não estejam levando tal transgressão a
sério, mas pelo menos o Mestre compreende o significado do lado que
afirmamos ter escolhido. Seu entendimento foi revelado de maneira veemente
em Seus ensinamentos aos discípulos.
Na conclusão de Seu ministério na Peréia, Jesus e os Doze estavam
voltando para Jerusalém para aquela última semana, tão profetizada, que
culminaria na prisão, julgamento e crucificação do Salvador. Naquela
seqüência de eventos sombria e fatídica, Ele, o único que sabia o que O
aguardava e como seriam difíceis Seus momentos finais, foi abordado pela
mãe de dois de Seus discípulos, Tiago e João. Ela pediu, de forma bem direta,
um favor ao Filho de Deus: “Dize que estes meus dois filhos se assentem, um
à tua direita e outro à tua esquerda, no teu reino”. (Mateus 20:21)
Essa boa mãe e talvez grande parte do pequeno grupo que seguira
fielmente a Jesus estavam obviamente preocupados com o sonho e a
expectativa do tempo em que seu Messias teria todo o domínio e reinaria em
esplendor — quando, como as escrituras dizem: “logo se havia de manifestar
o reino de Deus”. (Lucas 19:11)
A pergunta que a mãe fez, longe de ser inconveniente, simplesmente
denotava ignorância, e Cristo não proferiu uma só palavra de censura. Ele
respondeu mansamente como alguém que sempre media as conseqüências de
cada compromisso.
“Não sabeis o que pedis”, disse Ele calmamente. “Podeis vós beber o
cálice que eu hei de beber?” Apesar de a pergunta ser surpreendente, Tiago e
João responderam sem pestanejar: “Podemos”. E a resposta de Jesus a eles
foi: “Na verdade bebereis o meu cálice e sereis batizados com o batismo com
que eu sou batizado”. (Mateus 20:22–23)
Sem alusão alguma à glória ou aos privilégios especiais que Tiago e
João estavam buscando, esse favor que o Senhor lhes estava oferecendo
parecia um tanto estranho. Mas Ele não estava zombando deles ao oferecer-
lhes o cálice de Seu sofrimento em vez de um trono em Seu reino. Não, Ele
nunca falara tão sério. O cálice e o trono estavam inseparavelmente ligados e
não poderiam ser concedidos separadamente.
Tenho certeza de que nós, santos dos últimos dias, menos dignos do que
Cristo e também do que apóstolos como Tiago e João, deixaríamos tais
assuntos espinhosos de lado se possível. Em geral, não costumamos procurar
a taça amarga e o batismo de sangue, mas às vezes eles vêm em nosso
encalço. Devemos lembrar que Deus realmente convoca homens e mulheres
para a guerra espiritual deste mundo, e se qualquer um de nós chegar a uma
genuína fé e convicção religiosa como resultado disso — como no caso de
tantos soldados — será uma fé e convicção que nos primeiros momentos da
batalha não desfrutávamos e nem sequer esperávamos. (Ver A. B. Bruce, The
Training of the Twelve [New York: Richard R. Smith, 1930].)
Coloquemo-nos no lugar de Tiago e João ou no lugar de santos dos
últimos dias aparentemente comprometidos e fiéis e perguntemo-nos: “Se
estamos com Cristo e se Ele está conosco, estamos dispostos a permanecer
firmes para sempre? Estamos nesta Igreja para valer, durante todo o período
da guerra, até o fim? Estamos nela com a taça amarga, o batismo de sangue e
tudo mais?” Não estou indagando simplesmente se podemos perseverar em
nossos anos de adultos solteiros ou em nosso chamado como professor de
doutrina do evangelho. Estou fazendo perguntas de natureza muito mais
profunda e fundamental. Estou perguntando sobre a pureza de nosso coração.
Qual é o valor que nossos convênios têm para nós? Nós, que talvez tenhamos
iniciado nossa vida na Igreja por insistência de nossos pais ou por uma
casualidade geográfica, já pensamos alguma vez em uma vida que tem o
propósito final de dar-nos a oportunidade de sermos tentados, testados e
purificados pelo fogo? Já nos preocupamos com nossas convicções o bastante
e as estamos renovando constantemente de forma a poderem ajudar-nos a
fazer a coisa certa, no momento certo, pelo motivo certo, principalmente
quando se trata de algo que nos torne impopulares, que não nos seja
conveniente, vantajoso ou quase não possamos suportar?
De fato, poderemos vir a ser desobrigados um dia de nosso cargo
glamouroso de professor de doutrina do evangelho e ser chamados para o
posto tantas vezes vago de seguidor e praticante da doutrina do evangelho.
Isso porá à prova nossa força! Certamente, nossas declarações — por vezes
meros lugares-comuns — de testemunho e dos privilégios que gozamos
nestes últimos dias não significam muito até termos recebido um convite
aberto para testá-las na frente de batalha, e termo-nos provado fiéis nessa
guerra espiritual. Podemos falar desenvoltamente nas reuniões domingueiras
de possuir a verdade, ou mesmo de conhecer a verdade, mas só ao nos
confrontarmos com o erro e o vencermos, por mais difícil e penoso que seja,
poderemos verdadeiramente falar de amar a verdade. E creio que Cristo
deseja que algum dia honestamente O amemos — Ele que é o caminho, a
verdade e a vida.
Infelizmente, a tentação de rebaixar nossos padrões ou ser menos
valentes perante Deus muitas vezes vem de outro membro da Igreja. O Élder
William Grant Bangerter escreveu a respeito de sua experiência no exército,
no qual ingressara pouco depois de voltar da missão. “Percebo”, concluiu ele,
“que durante todos aqueles anos, eu era considerado diferente. (…) [Mas]
nunca vi necessidade de quebrar meus padrões, retirar os garments ou
desculpar-me por ser membro da Igreja.” Em seguida, fez a surpreendente
observação: “Posso dizer com honestidade que nenhum não-membro jamais
tentou induzir-me a abandonar meus padrões SUD. As únicas pessoas, pelo
que me lembro, que tentaram compelir-me a deixar de lado meus princípios
ou que ridicularizam meus padrões foram membros não-praticantes de
[minha própria] Igreja”. (“Don’t Mind Being Square”, New Era, julho de
1982, p. 6)
Por termos recebido tanto, precisamos estar preparados para defender
nossos princípios e agir por convicção, mesmo que isso pareça deixar-nos
sós. Lembremo-nos dos seguintes versos do célebre Paraíso Perdido, de John
Milton:

Parecia eu

Ser o único no mundo a de todos dissentir,

Como vês pelos que me cercam. Agora, tarde demais aprendi

Quão poucos são os que às vezes sabem, enquanto milhares erram.

— Livro VI, versos 145–148

Trabalhamos e vivemos em um mundo em que muitas pessoas erram —


muito mais do que os milhares de Milton. Contudo, por mais isolados que
fiquemos e por mais difícil que seja, não podemos ser contados entre os que
erram; precisamos viver de acordo com os mais elevados princípios e ser
amparados firmemente por nossa fé. Seremos certamente tentados, mas
devemos ser fortes. O cálice e o trono estão inseparavelmente ligados.
Até o momento tratamos de transgressões bastante óbvias com que os
santos dos últimos dias se deparam, as tentações que Satanás parece nunca se
esforçar por manter muito sutis. Mas e a prática diária do evangelho, que não
é tão óbvia e está em um patamar ainda mais elevado? Mudemos um pouco o
enfoque e as tentações e vejamos outros exemplos de nosso desafio cristão.
Na noite de 24 de março de 1832, em Hiram, Ohio, um bando de
homens invadiu a casa onde estavam Joseph e Emma Smith. Ambos estavam
esgotados física e emocionalmente, não só devido ao trabalho na Igreja, que
na época dava seus primeiros passos, mas também por estarem cuidando
naquela noite de seus dois gêmeos adotivos, que haviam nascido onze meses
antes no mesmo dia em que Emma também dera à luz gêmeos e logo em
seguida os perdera. Emma deitara-se enquanto Joseph cuidava das crianças;
então, ela se levantara para revezar-se com ele, incentivando-o a dormir um
pouco. Ele mal começara a cochilar quando sua esposa soltou um grito de
pavor, e ele foi arrastado violentamente para fora da casa pelos pés e braços.
Em meio a impropérios e xingamentos, aqueles homens que estavam
carregando Joseph juravam matá-lo caso resistisse. Um deles segurou-o pelo
pescoço até que ele perdeu os sentidos por falta de ar. Ao voltar a si, ele
ouviu a turba discutindo se devia ou não matá-lo. Por fim, decidiram naquela
ocasião apenas despi-lo, espancá-lo até que desmaiasse, cobri-lo de piche e
penas e deixá-lo ao relento naquela fria noite de março.
Nu, tentando defender-se dos socos e da aplicação do piche e lutando
para não ingerir um líquido desconhecido, talvez veneno, cujo recipiente ele
quebrou com os dentes quando tentaram forçar que o tomasse, ele
miraculosamente conseguiu livrar-se dos criminosos e por fim voltou para
casa. Na penumbra, sua esposa achou que as manchas de piche que cobriam
seu corpo fossem sangue, e ao vê-lo, desmaiou. Amigos passaram a noite
inteira removendo o piche e aplicando ungüentos em seu corpo ferido e
debilitado. A seguir, lemos um trecho tirado dos próprios registros do Profeta
Joseph:
“Pela manhã eu já estava pronto para vestir roupas novamente. Como
era domingo, os membros reuniram-se cedo para a adoração no horário de
sempre e entre eles estavam os malfeitores [da noite anterior, cujos nomes ele
cita]. Com a pele desfigurada e cheia de cicatrizes, fiz minha pregação à
congregação como de costume e, na tarde daquele mesmo dia, batizei três
pessoas.” (History of the Church, 1:264)
Infelizmente, um dos gêmeos adotivos, cujo estado de saúde piorou
depois do tumultuo da noite anterior, morreu na sexta-feira seguinte. “Com a
pele desfigurada e cheia de cicatrizes, fiz minha pregação à congregação
como de costume”. Pregar àquele grupo repugnante de covardes que eram
literalmente os assassinos de seu filho? Estar de pé, com dores desde os fios
de cabelo que haviam sido arrancados e colados com piche, até a planta dos
pés, que haviam sido feridos quando ele foi tirado de sua própria casa e
arrastado pelas ruas? Pregar o evangelho a um bando tão abominável de
indignas criaturas? Certamente não seria a hora de manter-se leal a
princípios! Estamos agora em plena luz do dia, e as chances não são mais
doze contra um, como na noite anterior. Seria muito fácil concluir essa
reunião dominical um pouco antes para acertar as contas do dia anterior.
Afinal, aquela noite havia sido bastante longa para Joseph e Emma; nada
mais justo que fosse bem breve para aqueles doze patifes que haviam vindo
sorrateiramente à Igreja.
Mas os sentimentos que tenho agora só por ler sobre essa experiência
ocorrida cento e sessenta anos atrás — sentimentos que sei que teriam feito
ferver meu sangue irlandês naquela manhã — indicam apenas uma diferença
existente entre mim e o Profeta Joseph Smith. Um discípulo de Cristo, que
testifico que Joseph foi e é, tem de ser sempre um discípulo; o Juiz não
concede intervalos em que se permitem comportamentos ruins. Um cristão
deve sempre manter-se fiel a seus princípios, ainda que eu consiga imaginar-
me naquela situação agitando uma faca no ar e gritando “olho por olho e
dente por dente”, esquecendo, como uma dispensação após a outra
esqueceram, que isso só deixa todos cegos e desdentados.
Não, as pessoas boas e fortes devem estar acima disso e encontrar uma
saída melhor. Como Cristo, elas sabem que é precisamente quando é mais
difícil ser bom que se devê-lo. Sempre temi que não poderia ter dito na cruz
do Calvário: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Não depois
das cuspidas, dos impropérios, espinhos e cravos. Não se eles não se
importam nem entendem que esse preço terrível de dor e sofrimento está
sendo pago por eles. Mas esse é justamente o momento em que deve
prevalecer o tipo mais aguerrido de integridade e lealdade a propósitos
elevados. Esse é o exato momento em que isso mais tem importância e tudo
mais perde a razão de ser — e certamente foi assim naquele dia. Nunca
vamos encontrar-nos naquela cruz, mas repetidas vezes nos achamos ao pé
dela. E como agimos lá revela de maneira contundente o que achamos da
natureza de Cristo e de Seu convite para sermos Seus discípulos.
Nossas tribulações não incluirão pena e piche e certamente não exigirão
que sejamos crucificados. E talvez elas nem mesmo serão assuntos muito
pessoais. Talvez elas envolvam outras pessoas — uma injustiça feita contra
um vizinho, uma pessoa com menos privilégios e popularidade do que nós.
Ao pensarmos nas diferentes pequenas batalhas da vida, esse parece ser-
nos o tipo de guerra menos atraente, uma taça amarga que em especial não
desejamos beber por aparentemente nos trazer muito pouca vantagem. Afinal,
o problema é de outra pessoa, e como tal como Hamlet, talvez lamentemos:
“Dos gonzos saiu o tempo. Maldição! Ter vindo ao mundo para endireitá-lo”.
(Hamlet, William Shakespeare, Ato I, Cena 5. Tradução de Carlos Alberto
Nunes, Edições Melhoramentos, São Paulo, p. 52.) Mas realmente devemos
endireitá-lo, pois “quando o fizestes a um destes meus pequeninos, a mim o
fizestes”. Devemos fazê-lo, ainda que venha a ser arriscado, ou até mesmo
perigoso, permanecer fiel.
Martin Luther King disse certa vez: “A medida de um homem não é seu
modo de agir em momentos de conforto e conveniência, mas sua atitude em
época de dificuldades e controvérsias. O verdadeiro próximo arrisca sua
posição, prestígio e até mesmo a vida pelo bem-estar dos demais. Em vales
perigosos e atalhos arriscados, ele eleva o homem ferido e abatido para um
patamar superior e uma vida mais nobre”. (Martin Luther King Jr., Strength
to Love [New York: Harper and Row, 1963].)
E se nessa guerra não for nosso vizinho nem nós mesmos que
estivermos em risco, e sim alguém que amamos profundamente e que seja
ferido, difamado ou até mesmo morto? Como poderíamos preparar-nos para o
dia distante em que nosso próprio filho ou cônjuge esteja em perigo de vida?
Um homem extremamente talentoso, um converso ao cristianismo, viu a
mulher lentamente morrer de câncer. Ao observá-la definhar — com tudo que
ela significava para ele e tudo que lhe dera — sua jovem fé, sobre a qual ele
tanto escrevera e com a qual fortalecera a tantos outros, começava agora a
vacilar. C. S. Lewis escreveu que, em momentos de tão grande pesar, corre-se
o risco de dizer: “Onde está Deus? (…) Quando estamos felizes (…)
voltamo-nos para Ele com gratidão e louvor [e] somos recebidos de braços
abertos. Mas quando vamos a Ele em um caso de grande necessidade, quando
toda a ajuda é vã, o que encontramos? Uma porta fechada e o eco vazio de
nossas próprias batidas. Depois disso, silêncio. Valeria mais a pena partir de
uma vez. Quanto mais esperarmos, mais profundo se tornará o silêncio. Não
há sequer luzes nas janelas. Deve ser uma casa abandonada. (…) [Contudo,
Ele já esteve lá.] O que isso poderia significar? Por que [Deus] é um
comandante tão presente em nossos períodos de prosperidade e um auxílio
tão distante nos momentos de tribulação?” (C. S. Lewis, A Grief Observed
[New York: Seabury Press, 1961], pp. 4–5)
Aquela sensação de abandono, expressa em meio a um terrível pesar,
gradativamente passou e o consolo da fé de Lewis retornou, ainda mais forte
e puro após o teste. Observem que revelação pessoal essa taça amarga, esse
batismo de sangue, constituiu para ele. De forma dolorosa, ele percebeu que
alistar-se para todo o período da guerra não é um assunto trivial e que no
auge da batalha ele não fora tão heróico como ele próprio incentivara milhões
de seus leitores a ser.
“Nunca sabemos o quanto acreditamos em uma coisa”, confessou ele,
“até que sua veracidade ou falsidade se torne um assunto de vida ou morte
para nós. É fácil dizer que uma corda é forte e firme quando a estamos
usando meramente para amarrar um embrulho. Mas suponhamos que
tivéssemos de ficar pendurados por ela em um precipício. Não procuraríamos
primeiro descobrir o quanto podíamos confiar nela? (…) Somente um risco
real põe à prova a realidade de uma crença.” (Ibid., p. 25)
“Nossa visão da (…) vida eterna (…) não será [muito] séria se não
houver quase nada em jogo. (…) Um homem (…) tem de tornar-se tolo antes
de gozar do pleno exercício de seus sentidos.” (Ibid., p. 43)
“Eu fora advertido — [de fato] eu advertira a mim mesmo. (…) [Eu
sabia] que nos haviam sido prometidos sofrimentos. [Isso fazia] parte do
plano. Foi-nos dito inclusive: ‘Bem-aventurados os que choram’, e eu aceitei.
Não me sobreveio nada com que eu já não tivesse [concordado]. (…)
[Assim], se minha casa (…) desmoronasse com um único golpe, é porque era
uma casa de cartas. A fé que possuía não era adequada. (…) Se eu realmente
me importasse, como pensava importar-me, com as dores das [outras pessoas
deste] mundo, eu não teria ficado tão arrasado quando chegasse a vez de
passar por minhas próprias aflições. (…) Eu achava que confiava na corda até
o momento em que realmente precisei dela. (…) [E quando essa hora chegou,
descobri que ela não era forte o suficiente.]
(…) Nunca descobriremos a real seriedade de nossas crenças até sermos
duramente provados; [e Deus conhece a maneira de fazê-lo]. (…) [Às vezes]
só por meio do sofrimento poderemos consegui-lo.” (Ibid., pp. 41–43)
“[Assim Deus é uma espécie de médico divino.] Um homem cruel
poderia ser abrandado, poderia cansar-se de suas perversidades — ter um
acesso de bondade — assim como os alcoólatras às vezes passam por
períodos de sobriedade. Mas suponhamos que estejamos diante de um
cirurgião [extremamente qualificado] cujas intenções sejam [única e
absolutamente] boas. [Então], quanto mais bondoso e consciente ele for,
[quanto mais se importar com você], mais impiedosamente ele vai continuar
cortando [apesar do sofrimento que possa causar]. Se ele cedesse a seus
pedidos e parasse antes do fim da operação, toda a dor sentida até aquele
momento teria sido em vão. (…)” (Ibid., pp. 49–50)
“[Assim, como vêem, sou] um dos pacientes de Deus, ainda não
completamente curado. Sei que não há somente lágrimas [ainda] por secar,
mas feridas [ainda] por cicatrizar. [Minha] espada se tornará ainda mais
brilhante.” (Ibid., p. 49)
Deus quer que sejamos mais fortes do que somos, mais firmes em nosso
propósito, mais seguros de nossos compromissos, cada vez menos
dependentes Dele, demonstrando mais disposição de carregar parte de Seu
pesado fardo. Em poucas palavras, Ele deseja que sejamos como Ele.
A pergunta, então, para todos nós que estamos no terminal prestes a
tomar o ônibus que nos levará à frente de batalha é fundamental: quando os
princípios do evangelho se tornarem impopulares ou desvantajosos de se
viver, ainda vamos defendê-los “durante o período da guerra”? Essa é a
pergunta que em nossas experiências como santos dos últimos dias mais
devemos estar prontos a responder. Em que acreditamos verdadeiramente e
até que ponto estamos dispostos a permanecer fiéis? Como irmãos e irmãs,
iluminados e abençoados, ávidos e prósperos, já sabemos o que a fé —
especificamente a fé no Senhor Jesus Cristo — realmente é, o que ela exige
em termos de comportamento humano e o que ela ainda exigirá de nós antes
que nossa alma seja finalmente salva?
Precisamos lembrar que embora o que se exija de nós seja muito, as
bênçãos são ainda maiores. Devido ao Salvador, Seu evangelho restaurado e
o trabalho dos profetas vivos, há um futuro brilhante de bênçãos do
evangelho para cada um de nós. Se permanecermos firmes e fiéis em nossos
propósitos, haverá um grande momento final em algum lugar quando
estaremos com os anjos “na presença de Deus, em um globo semelhante a um
mar de vidro e fogo, onde todas as coisas passadas, presentes e futuras
manifestam-se para [nossa] glória”. (D&C 130:7)
Esse é o triunfante dia que é prometido, condicionado a nossa retidão,
pelo qual tão ansiosamente esperamos. Para conquistarmos o direito de estar
lá, devemos, como disse Alma, “servir de testemunhas de Deus em todos os
momentos e em todas as coisas e em todos os lugares em que [nos
encontremos], mesmo até a morte”. (Mosias 18:9)
Capítulo 14

AO ALCANCE DE SEUS BRAÇOS

Se quisermos que nossos filhos aprendam os princípios do


evangelho, se desejarmos que eles amem a verdade e a entendam, se
quisermos que eles nos sejam obedientes e fiquem unidos a nós,
precisamos amá-los. E precisamos provar que os amamos por meio de
cada ação e palavra nossa.

Um recente estudo realizado pela Igreja confirmou estatisticamente de


maneira incontestável o que já ouvimos tantas vezes. Isto é, se em casa os
pais não forem um exemplo e não oferecerem amorosamente ensinamentos
inspirados, nossos esforços para o sucesso dos programas da Igreja serão
extremamente limitados. É cada vez mais evidente que precisamos ensinar o
evangelho de forma próxima e pessoal e viver esses ensinamentos em nosso
lar, ou correremos o risco de descobrir tarde demais que a professora da
Primária, o consultor do sacerdócio ou o professor do seminário não puderam
fazer por nossos filhos o que nós não nos propusemos a fazer.
Posso oferecer um incentivo relacionado a essa grande
responsabilidade? O que mais me alegra em meu relacionamento com Matt é
saber que, junto com a mãe e os irmãos dele, ele é meu amigo mais próximo
e querido. Eu adoro estar perto dele. Nós conversamos e rimos muito.
Jogamos basquete juntos, só nós dois. Jogamos também tênis e squash, mas
me recuso a jogar golfe com ele. (E ele sabe muito bem por quê!) Nós
discutimos problemas. Sou o reitor de uma pequena universidade, e ele é o
representante de uma grande turma em sua escola. Nós trocamos idéias,
fazemos comparações, oferecemos sugestões um ao outro e aprendemos com
os desafios um do outro. Oro por ele, já chorei com ele e tenho um grande
orgulho dele. Quantas vezes já conversamos até altas horas da noite no seu
colchão d’água, essa aberração do século vinte que, como parte dos castigos
dos últimos dias, sei que um dia vai estourar e levar os Hollands rua abaixo
em meio à enxurrada.
Sinto que posso conversar com Matt e ouvir o que está achando do
seminário, pois tento conversar sobre todas as suas aulas da escola. Muitas
vezes tentamos imaginar juntos como vai ser sua missão, porque ele sabe o
quanto minha missão significou para mim. E ele faz-me perguntas sobre o
casamento no templo, pois sabe o quanto amo sua mãe. Ele quer que sua
futura esposa seja como ela e que eles juntos venham a ter o mesmo que
desfrutamos agora.
Contudo, sei que há muitos pais e filhos que sentem que não têm nem
em parte o que descrevi aqui. Sei que há pais que dariam a própria vida para
aproximar-se de novo de um filho rebelde. Sei que há filhos que queriam ter
o pai a seu lado. A única coisa que tenho a dizer a todos, jovens e velhos, é:
nunca desistam. Continuem tentando, continuem esforçando-se, continuem
dialogando, continuem orando — mas nunca desistam. Acima de tudo, nunca
se afastem uns dos outros.
Gostaria de relatar um momento doloroso por que passei em meus
esforços como pai.
Logo no início de nossa vida de casados, minha jovem família e eu
estávamos em Connecticut, onde eu lutava para terminar minha pós-
graduação na Universidade de Yale. Pat era a presidente da Sociedade de
Socorro da ala e eu estava servindo na presidência da estaca. Eu era um
estudante em tempo integral e ainda dava aula meio período. Tínhamos dois
filhos pequenos naquela época, pouco dinheiro e muitas pressões.
Certa noite, voltei para casa depois de um longo dia na escola, sentindo
que estava carregando o mundo inteiro nas costas. Tudo parecia mais difícil,
desanimador e sombrio do que nunca. Fiquei a perguntar-me se o sol ia
mesmo nascer de novo algum dia. Então, ao entrar em nosso minúsculo
apartamento de estudante, deparei-me com um silêncio incomum na sala.
“Qual é o problema?” indaguei.
“Matthew tem algo a dizer-lhe”, respondeu Pat.
“Matt, o que você tem para dizer?” Ele estava bem sossegado brincando
com seus carrinhos em um canto da sala, fazendo um esforço enorme para
não me ouvir. “Matt”, eu disse um pouco mais alto, “você tem algo a dizer
para mim?”
Ele parou de brincar, mas inicialmente não levantou os olhos. Em
seguida, seus olhos castanhos, cheios de lágrimas, voltaram-se em minha
direção, e com uma dor que só um menino de cinco anos poderia sentir, ele
disse: “Fui malcriado com a mamãe hoje, respondi a ela”. Após aquela
confissão, ele caiu em pranto, e todo o seu corpo tremia de remorso. Depois
de um pequeno erro e uma dolorosa confissão, eu poderia simplesmente
ensinar-lhe uma lição para seu crescimento e, em clima de amor, promover a
reconciliação.
Tudo poderia ter corrido maravilhosamente bem, mas fiz tudo errado. Se
é que podem conceber algo tão idiota, perdi a paciência. Não com Matt —
eram as centenas de outras coisas que eu tinha em mente. Mas ele não sabia
de nada, e não tive a disciplina de reconhecer isso. Descontei tudo nele.
Disse-lhe como estava decepcionado e como achava que poderia esperar
mais dele. (Pode-se notar o quão inexperiente eu era como pai.) Então fiz o
que nunca fizera antes na vida: mandei-o direto para a cama, e disse que não
iria orar com ele no quarto nem lhe contar uma historinha. Tentando abafar os
soluços, ele obedeceu e foi para seu quarto, onde se ajoelhou sozinho para
orar. Depois, molhou o travesseiro com as lágrimas que seu pai deveria estar
enxugando.
Se o silêncio em minha chegada estava grande, agora estava
infinitamente maior. Pat não disse uma palavra, nem precisava. Eu sentia-me
péssimo!
Mais tarde, quando Pat e eu nos ajoelhamos ao lado de nossa cama,
minha tímida oração pedindo bênçãos para minha família soou em meus
próprios ouvidos horrível e vazia. Eu queria levantar-me naquele momento e
pedir perdão a Matt, mas ele já estava dormindo havia muito tempo.
Ainda demorei a acalmar-me, mas finalmente peguei no sono e comecei
a sonhar, algo que raramente faço. Sonhei que Matt e eu estávamos
colocando vários objetos dentro de dois carros, arrumando-os para uma
mudança. Por algum motivo, sua mãe e irmãzinha não estavam presentes. Ao
terminar, voltei-me para ele e disse: “Tudo pronto, Matt. Pode dirigir um dos
carros, que eu dirijo o outro”.
Esse obediente menino de apenas cinco anos logo se sentou no banco e
tentou alcançar o enorme volante. Fui até o outro carro e iniciei o motor. Ao
arrancar, dei uma olhada para ver como meu filho estava saindo-se. Ele
estava tentando, e como estava! Ele se esforçava para alcançar os pedais, mas
não conseguia. Ele também estava mexendo no painel e apertando todos os
botões, na tentativa de iniciar o motor. Eu mal conseguia vê-lo, pois ele mal
chegava à altura do pára-brisa; mas ali, olhando para mim, estavam aqueles
mesmos imensos e lacrimejantes olhos castanhos. Ao distanciar-me, ele
gritou: “Pai, não me deixe. Eu não consigo dirigir, sou muito pequeno”. Mas
segui em frente.
Pouco tempo depois, ao atravessar uma estrada desértica em meu sonho,
subitamente dei-me conta, em um momento pungente e aterrador, do que
fizera. Dei uma freada brusca, abri a porta e comecei a correr o mais rápido
que podia. Deixei para trás o carro, as chaves, nossos pertences e tudo mais, e
apenas corri. O chão estava tão quente que me queimava os pés, e lágrimas
ofuscavam-me a visão, enquanto tentava desesperadamente ver meu filho em
algum lugar do horizonte. Continuei a correr e a orar, suplicando perdão e
pedindo para encontrar meu menino são e salvo.
Ao fazer uma curva, quase caindo de exaustão física e emocional, vi o
mesmo carro desconhecido que entregara a Matt. Fui até o acostamento da
estrada e vi meu filho rindo e brincando ali perto. Ele estava acompanhado
por um homem de idade, que estava brincando com ele e dando-lhe atenção.
Ao ver-me, Matt gritou algo como: “Oi, pai. A gente está se divertindo
muito”. Obviamente, ele já me perdoara e esquecera a terrível maldade que
lhe fizera.
Mas o olhar daquele senhor, que seguia cada movimento meu, deixou-
me assustado. Tentei agradecer, mas os olhos dele estavam cheios de mágoa
e decepção. Meio sem jeito, gaguejei algumas desculpas, mas o estranho
disse simplesmente: “Você não deveria ter deixado o menino sozinho para
fazer algo tão difícil. Ninguém pediria isso a você”.
Depois disso, o sonho acabou, e levantei-me apressadamente. Meu
travesseiro estava todo molhado, se de suor ou lágrimas, eu não saberia dizer.
Deixei para trás os cobertores e corri para a caminha desmontável de meu
filho. Ali, de joelhos e com lágrimas nos olhos, embalei-o nos braços e
conversei com ele enquanto ele dormia. Disse-lhe que todos os pais cometem
erros, mas não o fazem de propósito. Disse-lhe que ele não tinha culpa de
meu dia ter sido ruim. Disse-lhe que quando os meninos estão com cinco ou
quinze anos, os pais às vezes acham que eles já têm cinqüenta. Disse-lhe que
queria que ele fosse um garotinho ainda por muito tempo, pois sabia que logo
ele iria crescer, virar homem e não iria mais estar brincando com seus
carrinhos no chão quando eu chegasse do trabalho. Disse-lhe que amava a
ele, sua mãe e sua irmã mais do que qualquer coisa do mundo, e qualquer
dificuldade que viéssemos a enfrentar, enfrentaríamos juntos. Disse-lhe que
nunca ia negar-lhe de novo minha afeição ou meu perdão e que esperava que
tampouco ele viesse a fazê-lo algum dia. Disse-lhe que me sentia honrado de
ser seu pai e que ia tentar de todo o coração estar à altura de tão grandiosa
responsabilidade.
Bem, acho que não consegui ser o pai perfeito que prometi ser naquela
noite e em mil outras ocasiões antes e depois disso. Mas ainda quero ser, e
acredito nesse sábio conselho dado pelo Presidente Joseph F. Smith: “Irmãos,
(…) se mantiverem [seus] filhos junto a seu coração, ao alcance de seus
braços, (…) se fizerem com que sintam que vocês os amam, (…) e os
conservarem sempre por perto, eles não se afastarão muito de vocês, nem
cometerão nenhum pecado muito sério. Mas é quando vocês os afastarem de
casa e de sua afeição, (…) que eles se distanciarão de vocês. (…)
Pais, se quiserem que seus filhos aprendam os princípios do evangelho,
se desejarem que eles amem a verdade e a entendam, se quiserem que eles
lhes sejam obedientes e fiquem unidos a vocês, amem-nos! E provem que os
amam por meio de cada ação e palavra sua”. (Gospel Doctrine, 5th ed. [Salt
Lake City: Deseret Book, 1966], pp. 282, 316)
Todos sabemos que a paternidade não é uma tarefa fácil, mas é uma das
mais importantes designações confiadas ao homem, no tempo e na
eternidade. Não devemos afastar-nos de nossos filhos. Devemos continuar
tentando, continuar esforçando-nos, continuar orando, continuar ouvindo.
Devemos mantê-los “ao alcance de nossos braços”. É para isso que servem os
pais.
Capítulo 15

QUEM SOMOS E O QUE DEUS ESPERA QUE


FAÇAMOS

A educação tem o objetivo de ajudar-nos a aprender quem


realmente somos e a descobrir o que Deus espera que façamos. Algo
que Ele espera que lembremos é que somos herdeiros de uma
dispensação do evangelho que teve entre seus primeiros mandamentos o
seguinte desafio: “buscai diligentemente e ensinai-vos uns aos outros
palavras de sabedoria; sim, nos melhores livros buscai (…)
conhecimento, sim, pelo estudo e também pela fé”. A glória de Deus é a
inteligência e deve ser a nossa glória também.

Pelo menos um escritor acredita que a maior parte do que precisamos


saber nos foi ensinado mais de uma década atrás em nossa vida. Levando-se
em conta os custos de um curso superior, valeria a pena examinar uma
afirmação dessa natureza. Vejamos o argumento:
“A maior parte do que realmente preciso saber a respeito de como viver,
o que fazer e como portar-me, aprendi no jardim-de-infância. A sabedoria
não estava no topo da montanha da pós-graduação, mas lá na base, no pré-
escolar.
Estas são as coisas que aprendi: Reparta tudo o que tem. Jogue limpo.
Não bata nas pessoas. Coloque as coisas de volta onde as achou. Arrume a
bagunça que fizer. Não pegue coisas que não sejam suas. Peça desculpas
quando machucar alguém. Lave as mãos antes de comer. Tenha uma vida
equilibrada. Aprenda um pouco e pense um pouco, desenhe, cante, dance,
brinque e trabalhe todos os dias um pouco.
Tire uma soneca à tarde. Quando sair de casa, tenha cuidado com o
trânsito, segure na mão de alguém e fiquem sempre juntos. Esteja atento aos
milagres. Lembre-se da sementinha no pote de plástico. As raízes crescem
para baixo e a planta para cima, e ninguém realmente sabe por quê, mas
somos todos assim.
Os peixes, os hamsters, os ratinhos brancos e até mesmo as sementinhas
do pote de plástico, todos eles morrem. E nós também.
Então lembre o livro de Joãzinho e Mariazinha e a primeira palavra que
você aprendeu, a maior de todas: olhe. Tudo o que você precisa saber está lá
em algum lugar, é só olhar e procurar. A regra de ouro, o amor e as regras
básicas de higiene. A ecologia, a política e uma vida sã.
Imagine como nosso mundo seria um lugar melhor se todos parássemos
para o lanche da tarde e depois nos deitássemos em esteiras para tirar um
cochilo. Ou se adotássemos uma diretriz básica em nosso país e em outras
nações que exigisse que colocássemos as coisas no lugar onde as tivéssemos
achado e arrumássemos a bagunça que fizéssemos. Mas o lembrete continua
valendo, não importa a idade: ao sair pelo mundo, o melhor é dar as mãos e
ficar juntos.” (Robert Fulghum, “We Learned it All in Kindergarten”.
Reader’s Digest, outubro de 1987, p. 115)
Admito que é uma lista muito boa, tenhamos cinco anos ou cinqüenta.
De fato, talvez a maioria das coisas importantes que precisamos ouvir na vida
já nos foram ditas há muito tempo, e provavelmente muitas vezes. O grande
escritor Samuel Johnson certa vez disse que as pessoas precisavam mais ser
lembradas do que ensinadas; assim, permitam-me usar alguns lembretes que
tirei em grande parte do passado.
Preservar nosso passado sem comprometer o presente muitas vezes não
é uma tarefa fácil — podemos ficar numa situação difícil, de certa forma
como um violinista no telhado. De fato, desejo pedir a ajuda de Tevye para
que reconte e nos lembre de verdades que a maioria de nós aprendeu no
jardim-de-infância ou até antes. Lemos a seguir o que Tevye escreveu a
respeito de “tradição”:
“Um violinista no telhado. Parece loucura, não é verdade? Mas em
nosso pequeno povoado de Anatevka, poderíamos dizer que cada um de nós é
um violinista no telhado, tentando produzir uma melodia agradável e simples
sem quebrar o pescoço. Não é fácil. Poderiam perguntar por que ficamos lá
em cima, se é tão perigoso. Ficamos porque Anatevka é nosso lar. E como
mantemos o equilíbrio? Posso dizer com uma única palavra: tradição!
Devido às nossas tradições, mantemos o equilíbrio há muitos e muitos
anos. Aqui em Anatevka temos tradições para tudo: para comer, dormir e
para nos vestir. Por exemplo, sempre mantemos a cabeça coberta e sempre
usamos um pequeno manto para fazer nossas orações. Isso mostra nossa
constante devoção a Deus. Muitos poderiam perguntar: ‘como essa tradição
começou?’ Vou dizer-lhes: não sei! Mas é uma tradição. Por causa de nossas
tradições, todos sabem quem são e o que Deus espera de cada um deles.”
(“Fiddler on the Roof”, em Great Musicals of the American Theatre, Ed.
Stanley Richards, vol. 1 [Radnor, Pennsylvania: Chilton Book Company,
1973], p. 393)
Quem somos, afinal? O que Deus espera que façamos? Por um lado, Ele
espera que lembremos que somos herdeiros de uma dispensação do
evangelho que teve entre seus primeiros mandamentos o seguinte desafio:
“buscai diligentemente e ensinai-vos uns aos outros palavras de sabedoria;
sim, nos melhores livros buscai (…) conhecimento, sim, pelo estudo e
também pela fé”. (D&C 88:118; ver também 88:78.) Esse mandamento
crucial está ligado intrinsecamente à profunda verdade restaurada que nos
ensina que somos literalmente filhos de Deus e que podemos algum dia
tornar-nos como Ele. A verdade restaurada ensina-nos que a glória de Deus é
a Sua inteligência e que há de ser a nossa glória também.
Essa doutrina de valor inestimável, restaurada há mais de um século e
meio em um mundo em trevas, criou desde então uma forte tradição entre os
santos dos últimos dias, que desde o início trabalhavam durante o dia e à
noite liam livros, num esforço para tornarem-se mais semelhantes a Deus
“pelo estudo e também pela fé”.
É significativo recordar que o símbolo central de sua fé e único
instrumento de proselitismo de que dispunham inicialmente era um livro, um
registro escrito que dava sentido a tudo que faziam e a tudo em que
acreditavam. Ninguém precisava ensinar-lhes a importância da leitura: era um
“hábito do coração”. Posteriormente, eles passaram a reunir-se no andar
superior do templo de Kirtland para estudar não apenas teologia, mas também
matemática, filosofia, gramática inglesa, geografia e hebraico. E às margens
do Mississippi, eles planejaram Nauvoo, a Cidade Bela, a cidade-estado
idealizada para ser sua Sião, em torno de dois grandes centros de
aprendizado: um templo e uma universidade. Mesmo quando foram expulsos
de casa, os santos mantiveram vivo esse sonho. Em abrigos temporários e
cabanas, carrinhos de mão e carroções, eles tinha aula. Não era fácil, mas
fazia parte da doutrina. “É impossível (…) ser salvo em ignorância”, seu
Profeta e professor ensinara, e “qualquer princípio de inteligência que
alcançarmos nesta vida, surgirá conosco na ressurreição”. (D&C 131:6;
130:18) Eles acreditavam nele. Eles tinham a mesma fome de Erasmo, um
filósofo do século dezesseis que escreveu: “Quando tenho um pouco de
dinheiro, compro livros; e se sobrar, compro [pão]”.
“Sempre que se estabeleciam colônias mórmons, a escola do povoado
era uma das primeiras coisas planejadas e providenciadas”, disse Lorenzo
Snow, que posteriormente se tornou presidente da Igreja. Nas áreas do novo
território mórmon em que não havia prédios, os professores simplesmente
faziam o melhor que podiam. O Élder George A. Smith escreveu a respeito
de sua experiência no sul de Utah: “Minha choupana é um estabelecimento
muito importante, composto de uma moita, alguns ladrilhos e três carroças.
[Há uma] fogueira no meio e vários bancos de ordenhar vacas e tocos
espalhados, dois deles cobertos com pele de búfalo. (…) [Contudo, não me
agradava] ver minha escola em certas noites frias de fevereiro, com meus
alunos reunidos ao redor da enorme fogueira, o vento sendo aplacado pela
moita e a amplidão do céu cobrindo-nos como único teto. O termômetro
chega às vezes a 15 graus negativos! (…) Eu ficava de pé com minha
gramática, a única da escola, lia uma frase de cada vez e passava o livro para
ser lido por todos.” (Ernest L. Wilkinson e W. Cleon Skousen, Brigham
Young University: A School of Destiny [Provo, Utah: Brigham Young
University Press, 1976], p. 15)
Dessa tradição de estudo, dessa quase insaciável sede de conhecimento,
surgiu a Universidade Brigham Young — uma diferença gritante de bancos
de ordenhar, peles de búfalo e um único livro didático; algo por que nossos
antepassados pioneiros lutaram e com o qual sonharam por um século, mas
em sua maioria não viveram o suficiente para ver.
Nós devemos algo a eles. Nós, que somos os beneficiários de seu
sacrifício e fé, devemos a eles os melhores esforços que pudermos fazer para
adquirir uma educação verdadeiramente edificante, libertadora e que eleve o
espírito. Precisamos trabalhar muito, tirar proveito de cada oportunidade,
brincar bem menos e estudar muito mais. Precisamos aprender a escrever e a
falar bem, fazer um investimento em nós mesmos da mesma forma que os
dizimistas da Igreja fazem em nós, e ver aquele pão acadêmico lançado sobre
as águas retornar a nós e nossa posteridade centuplicado. Enchamos de livros
os nossos carrinhos de mão e partamos rumo a Sião, trilhando o mesmo
caminho que nossos antepassados seguiram — muitas vezes com nada mais
tangível para apoiá-los do que seus sonhos e tradições.
“A glória de Deus.” “Luz e verdade.” A maior parte de nós vem ouvindo
tudo isso desde o jardim-de-infância, ou mesmo antes. A pergunta para nós
agora é: “O que faremos com esse ideal?” Lembrem-se de Anatevka. “Todos
sabem quem são e o que Deus espera de cada um deles.” Tradição!
Intimamente ligada a essa busca de conhecimento dos santos dos
últimos dias está outra importante tradição. No meu primeiro ano como reitor
da universidade, cunhei uma concisa frase latina, virtus et veritas, para definir
uma missão de alcance duplo. Acrescentei à busca da verdade (veritas) uma
segunda tarefa, a busca da virtude (virtus), crendo de todo o coração que o
teste supremo da instrução é a forma com que se vive, que a verdade não
defendida e não vivida é indigna do investimento feito para chegar-se a ela.
Ao agir assim, eu tinha a meu lado não apenas os filósofos, mas também
os profetas de Deus, do passado e do presente. De fato, uma Primeira
Presidência da Igreja nestes últimos dias tratou desse assunto com uma
lucidez igualada por poucos educadores profissionais. Brigham Young,
Heber C. Kimball e Willard Richards disseram:
“Se os homens [e deveríamos acrescentar também as mulheres]
quiserem ser grandes na bondade, eles devem ser inteligentes, pois ninguém
pode fazer o bem sem saber como; portanto, busquem conhecimento, todo o
conhecimento, e principalmente o que vem do alto, que é a sabedoria para
dirigir-nos em todas as coisas. E se descobrirem alguma coisa que Deus não
saiba, não precisam aprendê-la; mas empenhem-se por saber o que Deus sabe
e por utilizar esse conhecimento como Deus o utiliza, e assim serão como
Ele; terão (…) caridade, amarão uns aos outros e farão o bem uns aos outros
continuamente, e para sempre. (…) Mas se alguém tiver todo o conhecimento
e não usá-lo para o bem, ele será uma maldição em vez de bênção, como no
caso de Lúcifer, o Filho da Manhã.” (Millenial Star 14 [January 15, 1852]:
22)
Que filosofia educacional impressionante! Parece tão simples: aprendam
a viver, esforcem-se para saber o que Deus sabe, usem esse conhecimento
como Deus o usa e vocês serão como Ele. Empenhem-se por obter
conhecimento para poderem fazer o bem continuamente e para sempre. Mas é
óbvio que ouvimos isso pela primeira vez nos tempos do jardim-de-infância.
Joguem limpo. Não batam nas pessoas. Arrumem a bagunça que fizerem.
Dêem-se as mãos e fiquem juntos. Nossa educação sempre trouxe consigo
inevitáveis obrigações morais.
Qual é a importância de tudo isso na hora de equilibrar-nos
perigosamente no telhado? Uma grande importância, creio eu. Como nação,
estamos envolvendo-nos — e aparentemente afundando — em um verdadeiro
caos, ético e político. As implicações morais para a nossa sociedade, tão
graves quanto as outras que osEstados Unidos vêm sofrendo, são sérias em
parte porque ameaçam diretamente o próprio conceito de sociedade. Essas
violações do bem comum prejudicam nossos esforços para vivermos juntos
com confiança mútua e reciprocidade.
“Os Estados Unidos precisam readquirir um pouco de idealismo”, diz a
recente manchete de um jornal. “As universidades estão produzindo bárbaros
altamente qualificados”, anuncia uma revista de notícias nacionais. Somos
uma “nação sem honra”, declara um periódico mensal; uma “nação de
mentirosos”, alardeia outro. Até mesmo o Papa precisa ir aos Estados Unidos
para lembrar-nos de nossas virtudes perdidas. E ninguém menos que a revista
Time, um árbitro da virtude nacional, apresentou uma história de capa sobre
“fraqueza, escândalos e hipocrisia”, documentando a busca frenética da nação
por seus valores, uma procura desenfreada por novos rumos em uma época de
completa desestruturação moral.
Os estudantes universitários também têm sua parcela de culpa nessa
confusão geral. Vejamos o que diz um recente periódico da área de educação:
“A imagem que normalmente se faz da atual geração de estudantes
universitários é a de um bando de cépticos ávidos por dinheiro, dispostos a
fazer qualquer coisa para “se dar bem”. (…) Infelizmente, (…) os estudantes
[hoje] não valorizam ou entendem os princípios básicos de honestidade
acadêmica. A evidência, confirmada por eles mesmos, mostra claramente que
os níveis de plágio e “cola” na universidade são muito altos. (…) O quadro
que se mostra (…) é o de uma geração de estudantes egocêntrica,
competitiva, insegura e céptica, interessada em tirar o máximo proveito do
presente [sem preocupar-se muito com o que isso venha a custar para as
outras pessoas]. Neste contexto, não é de se causar espanto que as faculdades
e universidades estejam começando a preocupar-se com os padrões éticos de
seus alunos.” (Richard A. Fass, “By Honor Bound: Encouraging Academic
Honesty”, Educational Record, Fall 1986, p. 32)
Começando a preocupar-se? “Os padrões éticos de seus alunos” não são
meramente um tema da moda na Igreja. Eles fazem parte de nosso legado,
nossa tradição. E deveriam ser uma tradição em todas as universidades. Mas,
francamente, as universidades que existem apenas como universidades não
podem fazê-lo. Quando Hitler subiu ao poder e criou a infâmia do Terceiro
Reich, a Alemanha tinha a melhor tradição universitária de toda a Europa
continental. E grande parte dos problemas mais urgentes e graves dos Estados
Unidos a que me referi há pouco — sejam eles morais, políticos ou culturais
— surgiram no meio de homens e mulheres com treinamento universitário.
(Usei o termo treinamento intencionalmente, em vez de formação.) Não, o
“rigor científico” ou o “ensino, pesquisa e extensão” sozinhos não poderão
fazê-lo. A formação acadêmica desassociada e desprovida de integridade, a
instrução sem a influência das forças civilizadoras e obrigações morais que
devem acompanhar a verdade simplesmente continuarão a produzir mais e
mais “bárbaros altamente qualificados”. E em praticamente todos os jornais
escritos e noticiários televisivos noturnos podemos ter a confirmação disso.
Lembrem-se, “se alguém tiver todo o conhecimento e não usá-lo para o bem,
ele será uma maldição em vez de bênção, como no caso de Lúcifer, o Filho
da Manhã”.
Obviamente, o mais triste para mim de tudo isso não é o fato de o
mundo não entender os valores da civilização ou, pior ainda, de muitos
educadores às vezes também não. O mais triste de tudo é que alguns santos
dos últimos dias tampouco parecem compreender — mesmo com as antigas e
tantas vezes repetidas tradições que temos para guiar-nos. As infrações dessa
minoria muitas vezes prejudicam a experiência e oportunidade de outras
pessoas.
Nem é preciso dizer que nós, santos dos últimos dias, carregamos uma
responsabilidade a mais por salientarmos que somos diferentes, por
afirmamos defender algo tradicional e espiritualmente importante. É claro
que no momento em que dizemos isso, somos homens e mulheres marcados:
há multidões que adorariam derrubar-nos. Mas tudo bem, é só uma razão a
mais para nós, depois da hora do lanche da tarde, dar-nos as mãos e ficarmos
juntos.
Quando chegamos à universidade, já tivemos bastante tempo para
refletir sobre o senso de responsabilidade que devemos ter em relação à vida
em sociedade. A Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma
que a democracia vivida da maneira correta exige um compromisso que
envolve nada menos que “nossa vida, nosso destino e nossa honra sagrada”,
conforme expresso por Thomas Jefferson. Penso que o desrespeito à virtude e
moralidade por parte de nossos jovens no século vinte não é muito diferente
da situação difícil dos Estados Unidos no século dezoito. Benjamin Franklin
falou em nome de todos nós quando disse, por ocasião da assinatura da
Declaração de Independência naquele histórico 4 de julho de 1776:
“Precisamos permanecer juntos ou por certo pereceremos todos
isoladamente”.
Não é preciso a essa altura citar John Donne para recordar que nenhum
homem é uma ilha. Todos os que entram para uma universidade SUD,
ingressam, de forma bem literal, em uma sociedade do convênio. Assumimos
nossa posição no telhado, com o violino em mãos, e declaramos ao resto do
mundo: “Tradição”.
Tradição? Tradição! Muita, adquirida com custo e com mais custo ainda
defendida. Não é fácil manter o equilíbrio em um telhado escorregadio, mas
ali estamos, determinados a ficar. A única forma de conseguirmos é por meio
da integridade e do comportamento disciplinado de nossos cidadãos que
voluntariamente decidem viver em uma sociedade rigorosamente
disciplinada. Todos nós devemos ser leais a Cristo e a nossos convênios. Em
uma época em que a cultura tem dez quilômetros de extensão e alguns
milímetros de profundidade, peço algo menos superficial. Quero um passado,
presente e futuro inspiradores: em poucas palavras, tradição, que
proporcionará profundidade, altitude e milênios de significado às pessoas.
Isso só será possível se compreendermos a glória de Deus e estivermos
determinados a apreciar plenamente as bênçãos que Ele tem para nós.
Lembram-se da semente e do pote da citação do jardim-de-infância? “As
raízes crescem para baixo e a planta para cima, e ninguém realmente sabe por
quê”. Quero que nossas raízes sejam cada vez mais profundas e nossas
plantas cada vez mais altas — e quanto mais visíveis forem o caule, os ramos
e as flores, mais fundo irão as raízes para dar-lhes apoio. Não fiquemos em
solo raso, intelectual ou espiritualmente. O Salvador ensinou grandes
parábolas a respeito de sementes que precisavam ser plantadas em terreno
profundo e casas que tinham de ser construídas sobre um alicerce seguro.
Vou concluir contando uma história sobre tradição. Karl G. Maeser foi
certamente um dos homens mais cultos e instruídos a filiar-se à Igreja nos
primeiros cinqüenta anos de sua existência restaurada. Treinado na grande
tradição clássica e conhecido na Saxônia por seu vasto conhecimento, ele
renunciou a praticamente tudo que tinha para entrar nas águas do batismo.
Relegado ao ostracismo em sua comunidade e sem condições de sobreviver,
levou a esposa e dois filhos para os Estados Unidos, onde serviu missões
assim que chegou e, posteriormente, uniu-se aos santos nos vales das
Montanhas Rochosas. A partir de então, ele dedicou o resto de sua vida aos
esforços educacionais da Igreja, incluindo quinze anos em condições
econômicas precárias como o primeiro e maior diretor da então nova e
vacilante Brigham Young Academy em Provo, Utah.
Em dezembro de 1900, dois meses antes de sua morte, o irmão Karl
Maeser foi trazido novamente ao modesto campus, formado por apenas um
prédio e situado na University Avenue, que ele construíra, amara e defendera.
Foi amparado para subir a escada e para chegar a uma das salas, onde os
alunos instintivamente se levantaram ao vê-lo entrar. Não se disse uma
palavra. Ele olhou para eles e em seguida dirigiu-se ao quadro-negro. Com
sua caligrafia clássica, ele escreveu quatro frases e então partiu da escola para
sempre, encerrando assim uma das vidas mais notáveis que a universidade
jamais conheceu.
Vários anos após a morte do irmão Karl Maeser, propuseram que se
construísse um prédio memorial em seu nome, não no centro da cidade, na
University Avenue, mas no alto do Monte Temple, onde um novo campus
poderia vir a ser construído algum dia, formado por três ou talvez até quatro
prédios. O custo chegaria à cifra astronômica de 100.000 dólares, mas o
prédio em homenagem a Karl Maeser seria um símbolo do passado, uma
declaração de tradição e uma âncora para o futuro da universidade.
Apesar da difícil crise financeira daquela época, que comprometia o
próprio futuro da universidade, os professores e alunos animaram-se ante a
perspectiva de o Prédio Maeser estar concluído pelo menos parcialmente em
1912 e de verem a formatura da primeira turma de um curso de quatro anos.
Mas no mesmo período em que se faziam planos para a formatura, outros
projetos igualmente urgentes estavam sendo cogitados, como o de vender o
restante do Monte Temple para a criação de um novo bairro em Provo. A
universidade simplesmente precisava desse dinheiro para sobreviver. Dezoito
alunos estariam formando-se naquela primeira turma de quatro anos, e
mesmo que o corpo estudantil triplicasse nos anos seguintes, certamente
haveria espaço mais que suficiente para acomodá-los no espaço hoje ocupado
pelos prédios Maeser, Brimhall e Grant de nosso campus atual. Não havia o
que se discutir, o restante de terreno do monte deveria mesmo ser vendido.
As cerimônias de formatura se encerrariam com uma oferta de venda aos
líderes da comunidade que estivessem presentes.
Quando naquela manhã anunciaram o estudante Alfred Kelly como o
orador da turma, ele levantou-se e ficou em total silêncio por vários minutos.
Alguns na platéia acharam que ele perdera a voz. Ele começou a falar
lentamente, explicando que se preocupara tanto com o que iria dizer que
escrevera várias versões e as jogara fora, uma a uma. Então, certa manhã,
bem cedo, disse ele, dominado pelo desespero relacionado a sua designação
de orador, ele começou a caminhar na direção norte, a partir de seu
apartamento situado no centro da cidade, até chegar ao Prédio Maeser, (na
época ainda em construção), ao qual Horace Cummings se referiria
posteriormente como um “castelo etéreo” que baixou à Terra no Monte
Temple. Alfred pretendia adquirir inspiração para aquela esperança de um
novo campus, mas sentia apenas uma grande frustração. A aurora começava a
despontar no céu, mas a silhueta escura do Prédio Maeser parecia somente
um símbolo das trevas.
Alfred então voltou o olhar e contemplou o vale lá embaixo, que
também estava ainda na escuridão. A luz do sol nascente estava apenas
começando a iluminar as colinas a oeste do Lago Utah, com um brilho
dourado incomum. Quando a manhã rompeu, a luz gradualmente se deslocou
do topo dos montes, varreu todo o vale e avançou lentamente na direção de
Alfred.
Ele contou que fechou os olhos parcialmente à medida que a luz se
aproximava dele e que ficou impressionado com o que viu, completamente
paralisado. Com a chegada do sol, tudo que ele via parecia assumir a
aparência de jovens de sua idade, andando em direção ao Monte Temple. Ele
viu centenas, milhares de jovens diante de seus olhos. E ele sabia que eram
estudantes, pois carregavam livros à medida que surgiam.
Então, o Monte Temple foi banhado de luz, e toda a área que
corresponde ao campus atual foi iluminada e nela não havia apenas um
prédio em construção, nem casas de um bairro moderno, mas o que Alfred
descreveu àquela turma de formandos como “templos do conhecimento”,
grandes e belos prédios, centenas deles cobrindo o cume daquele monte e
estendendo-se até a foz do Cânion Rock.
Os estudantes então entraram naqueles templos do conhecimento com
seus livros debaixo do braço. Ao saírem, Kelly afirmou, tinham no rosto um
sorriso de esperança e fé. Ele observou ainda que eles demonstravam alegria
e autoconfiança. Eles caminhavam com leveza, porém, com determinação, e
acabaram por tornar-se novamente parte da luminosidade que se dirigia para
o topo da Montanha Y, de onde não mais puderam ser vistos.
Kelly sentou-se. Reinava o mais completo silêncio. Ninguém disse nada.
E a oferta de venda que estava prevista? Ninguém se mexeu, nem mesmo
sussurrou. Então, Jesse Knight, desde muito tempo um benfeitor da BYU,
levantou-se abruptamente e exclamou: “Não vamos vender um acre que seja.
Não vamos vender um pedaço sequer do terreno”. Voltando-se para o
Presidente George Brimhall, ele prometeu uma doação de milhares de dólares
em prol do futuro da universidade. Em seguida, outros se puseram de pé e
fizeram o mesmo, alguns fazendo apenas a oferta da viúva, mas todos
acreditando no sonho de um estudante de Provo, todos crendo no destino de
uma grande universidade que naqueles dias mal iniciara suas atividades. (B.
F. Larsen, speech to BYU Alumni, 25 de maio, 1962)
Pensem agora no campus que hoje se estende do Prédio Maeser, já
reformado, até a desembocadura do Cânion Rock, onde um templo especial
do conhecimento, construído no terreno da BYU, domina a paisagem do Vale
Utah. Pensem nos prédios, nas pessoas que por eles passaram e também na
tradição.
Ah, sim. Creio que devem estar curiosos para saber as quatro coisas que
Karl Maeser escreveu no quadro-negro naquele dia. Elas também fazem parte
da tradição:
1. [Amar] a Deus é o início de toda a sabedoria.
2. Esta vida é uma grande lição de casa (...) nos princípios da
imortalidade e vida eterna.
3. O homem só cresce ao buscar atingir suas metas mais elevadas.
4. Nunca deixem nada impuro entrar aqui.
Ser um violinista no telhado? É uma tarefa difícil, mas estamos todos
estamos juntos nisso, defendendo esse legado. Que venhamos a descobrir, em
nossa tradição do conhecimento, amor e pureza, quem realmente somos e o
que Deus espera que façamos.
Capítulo 16

ALMAS, SÍMBOLOS E SACRAMENTOS

O espírito e o corpo constituem a alma do homem. Devemos ver


esse corpo como algo que permanecerá mesmo além do túmulo, algo a
ser mantido puro e sagrado. Não temam sujar as mãos, não temam as
cicatrizes que poderão vir em conseqüência de esforços sinceros; mas
tenham cuidado com as marcas adquiridas em lugares em que vocês
não deveriam ter estado. Cuidado com as feridas surgidas em batalhas
em que vocês estejam lutando do lado errado.

O tema da intimidade humana é sagrado como poucos que conheço. Ao


discuti-lo, o tema pode resvalar facilmente de sagrado para meramente
sensacionalista. É preferível deixar de abordar o assunto a deturpá-lo
tratando-o de forma descuidada ou inadequada.
Alguns poderiam achar que esse é um tópico que receba demasiada
atenção. Mas levando-se em consideração o mundo em que vivemos, talvez
não estejamos ouvindo o suficiente. Todos os profetas do passado e do
presente pronunciaram-se sobre o assunto. A maioria dos membros da Igreja
está saindo-se muitíssimo bem na área da pureza pessoal, mas alguns não
estão indo tão bem, e boa parte do mundo a nossa volta está saindo-se muito
mal.
Em 1987, a imprensa nacional registrou: “Nos Estados Unidos, 3.000
adolescentes engravidam por dia. Um milhão por ano. De cada cinco, quatro
são solteiras. Mais da metade delas recorre ao aborto. ‘Bebês tendo bebês’.
[Bebês] matando [bebês]”. (What’s Gone Wrong with Teen Sex”, People, 13
de abril de 1987, p. 111)
A mesma pesquisa nacional indicou que quase 60 por cento dos
estudantes secundários da classe média dos Estados Unidos havia perdido a
virgindade; 80 por cento, no caso dos estudantes universitários. Um jornalista
do The Wall Street Journal escreveu: “A AIDS [parece estar assumindo]
proporções epidêmicas. E ela continua fazendo vítimas inocentes: recém-
nascidos e pessoas que recebem transfusões de sangue. Para que se torne
generalizada entre os heterossexuais, é apenas uma questão de tempo. (…) A
AIDS deve servir-nos de lembrete de que vivemos em um mundo hostil. (…)
Quanto mais promíscuos formos, maior será a probabilidade de adquirirmos
essa e outras doenças. (…) Por motivos médicos ou morais, fica claro que a
promiscuidade tem o seu preço”. (21 de maio de 1987, p. 28)
Obviamente, mais difundida em nossa sociedade do que a indulgência
nas atividades sexuais é a pornografia. A respeito dessa atmosfera
permissiva, um observador contemporâneo escreveu: “Vivemos em uma
época em que o voyeurismo já não é considerado um desvio de alguns poucos
libertinos e sim um passatempo nacional, plenamente institucionalizado e
[divulgado] na mídia”. (William F. May, citado por Henry Fairlie, The Seven
Deadly Sins Today [Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame, 1978],
p. 178)
De fato, à medida que a civilização progrediu, ironicamente, a
promiscuidade real ou fantasiada parece ter-se agravado, em vez de
diminuído. Edward Gibbon, um grande historiador inglês do século 18,
escreveu: “Embora o progresso da civilização tenha certamente contribuído
para amenizar as paixões mais violentas da natureza humana, parece ter tido
um efeito menos favorável sobre a virtude da castidade. (…) Os refinamentos
da vida [parecem] corromper, [mesmo quando] aprimoram o
[relacionamento] entre os sexos”. (The Decline and Fall of the Roman
Empire, vol. 40 de Great Books of the Western World, 1952, p. 92)
Mas é inútil documentar problemas sociais ou atormentarmo-nos devido
ao perigo que essas influências externas poderiam representar para nós. Por
mais preocupantes que sejam essas realidades contemporâneas, desejo
discutir esse assunto com um enfoque diferente, dirigindo-o especificamente
para os santos dos últimos dias. Vou intencionalmente deixar de lado os
horrores da AIDS e as estatísticas nacionais sobre gestações ilegítimas e
concentrar-me preferencialmente em uma visão da pureza pessoal baseada no
evangelho.
De fato, desejo fazer algo ainda um pouco mais difícil do que enumerar
o que se pode e o que não se pode fazer em termos de pureza moral. Desejo
examinar, da melhor maneira que conseguir, por que devemos ser limpos,
por que a disciplina moral é de tão grande valor aos olhos de Deus. Sei que
isso talvez soe um pouco presunçoso, mas um filósofo disse certa vez: “Dê-
me motivos suficientes para que algo seja realizado e moverei céus e terra
para fazê-lo”. Na esperança de que vocês sintam o mesmo que ele, e com a
plena consciência de minhas limitações, gostaria de dar uma resposta pelo
menos parcial à pergunta: “Por que devemos ser moralmente limpos?” Vou
precisar primeiramente expor de modo breve o que vejo como a seriedade
doutrinária do assunto e depois oferecer três razões para tal seriedade.
Vou começar com a primeira metade de um poema de nove estrofes do
poeta americano Robert Frost. (A outra metade também mereceria um
discurso, mas vamos deixá-la para outra ocasião.) Aqui estão as linhas
iniciais de “Fogo e Gelo”: “Alguns dizem que o mundo acaba em fogo, /
Outros dizem que em gelo./ Do que sei do desejo, eu mesmo advogo / Por
aqueles que opinam pelo fogo”. (Tradução de Paulo Vizioli. Em Dicionário
Universal de Citações.[Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira], p. 380)
Uma segunda opinião, menos poética, porém mais específica, encontra-
se no livro de Provérbios: “Tomará alguém fogo no seio, sem que suas vestes
se queimem? Ou andará alguém sobre brasas, sem que se queimem os seus
pés? (…) O que adultera com uma mulher é falto de entendimento; aquele
que faz isso destrói a sua alma. Achará castigo e vilipêndio, e o seu opróbrio
nunca se apagará”. (Provérbios 6:27–28, 32–33)
Ao tocarmos na seriedade doutrinária, por que o tema das relações
sexuais é tão sério a ponto de o fogo ser quase sempre a metáfora utilizada,
com a paixão retratada vividamente em chamas? O que há de potencialmente
tão perigoso nesse calor que deixa destruída a alma — ou talvez o mundo
inteiro, segundo Frost — se as chamas não forem controladas e as paixões
refreadas? O que há de tão grave em tudo isso, que leva Alma a advertir seu
filho Coriânton que a transgressão sexual é “uma abominação à vista do
Senhor; sim, mais [abominável] que todos os pecados, salvo derramar sangue
inocente ou negar o Espírito Santo”? (Alma 39:5, grifo do autor)
Deixando de lado os pecados contra o Espírito Santo, que constituem
uma categoria à parte, a doutrina SUD ensina que a transgressão sexual só
fica atrás do assassinato na lista dos pecados mais sérios desta vida. Ao
atribuir tal posição a um apetite físico tão evidente em todos nós, o que Deus
está tentando dizer-nos a respeito do lugar que ele deve ocupar em Seu plano
para todos os homens e mulheres na mortalidade? Sugiro que Ele esteja
ensinando a respeito do próprio plano da vida. É claro que duas das maiores
preocupações de Deus em relação à mortalidade são como entramos neste
mundo e como saímos dele. Essas duas questões de extrema importância para
nosso próprio progresso — que Ele supervisiona cuidadosamente — são as
duas questões que nosso Criador, Pai e Guia mais deseja reservar para Si.
Esses são os dois domínios com os quais Ele repetidas vezes nos indicou que
nunca devemos lidar ilegal, ilícita ou infielmente, sem Sua aprovação.
Quanto a tirar a vida de alguém, em geral somos bastante responsáveis.
A maioria das pessoas, ao que me parece, prontamente reconhecem a
santidade do dom da vida e, na maioria dos casos, não saem por aí brincando
de roleta russa. Ninguém tampouco corre atrás dos amigos, coloca um
revólver carregado na cabeça deles e aperta o gatilho. Ao ouvir-se um estalo
oco em vez de uma explosão de chumbo, e uma possível tragédia parece ter
sido evitada, ninguém nessas circunstâncias seria louco o suficiente para
suspirar: “Que bom! Não fui até o fim”.
“Até o fim” ou não, a insanidade de tal ação que envolve pólvora e
armas é óbvia e dispensa comentários. Esse lunático que estivesse correndo
com um arsenal de pistolas carregadas ou de armamentos militares apontados
para jovens seria detido, processado e encarcerado, se por acaso ainda não
tivesse morrido em meio ao pandemônio. Após um fictício momento de
horror dessa natureza, provavelmente ficaríamos aterrorizados, perguntando-
nos ainda durante vários meses como algo assim poderia acontecer,
especialmente com membros da Igreja.
Felizmente, como disse anteriormente, acho que somos bastante
responsáveis quanto a tirar a vida de alguém. Em geral, a seriedade disso nem
precisa ser explicada em detalhes e prescinde de maiores sermões. Contudo,
no que diz respeito à importância e santidade de dar a vida a um ser, alguns
de nós não são tão escrupulosos, e no mundo como um todo, o que vemos é
uma irresponsabilidade que chega a ser criminosa. O que traria absoluto
horror e invocaria os rigores da justiça no que tange a tirar a vida, no caso de
conceder a vida dá apenas ensejo a piadas de mau gosto, palavras de baixo
calão e grosseira imoralidade nas telas de cinema e de vídeo.
Seria tudo isso realmente errado? Essa pergunta vem sendo feita
repetidas vezes, principalmente por quem se sente culpado. “O caminho da
mulher adúltera é assim: ela come, depois limpa a sua boca, e diz: Não fiz
nada de mal!” (Provérbios 30:20) Não há assassinato algum nesse caso. Bem,
talvez não. Mas e a transgressão sexual? “Aquele que faz isso destrói a sua
alma.” (Provérbios 6:32) Isso me soa praticamente fatal.
Tudo isso para introduzir a seriedade doutrinária. Agora, com o desejo
de evitar tais momentos dolorosos, evitar o que Alma chamou de o
“inexprimível horror” de estar na presença de Deus indignamente e fazer com
que a intimidade que é seu direito, privilégio e deleite desfrutar no casamento
não seja prejudicada por tal remorso e indescritível culpa — gostaria de
enumerar as três razões que mencionei anteriormente, que justificam por que
considero esse assunto tão importante.
Em primeiro lugar, precisamos entender a doutrina SUD revelada e
restaurada acerca da alma e o papel elevado e indissociável que o corpo
desempenha nessa doutrina.
Uma das doutrinas “claras e preciosas” restauradas nesta dispensação é a
que ensina que “o espírito e o corpo são a alma do homem” (D&C 88:15;
grifo do autor) e que quando o espírito e o corpo se separam, homens e
mulheres “não [podem] (…) receber a plenitude da alegria”. (D&C 93:34)
Certamente, isso explica em parte a razão pela qual receber um corpo é tão
fundamental no plano de salvação, por que o pecado de qualquer natureza é
algo tão sério (a saber, porque sua conseqüência automática é a morte: a
separação do espírito do corpo e a separação da alma de Deus) e por que a
ressurreição do corpo é tão essencial ao grande e eterno triunfo da expiação
de Cristo. Não precisamos ser uma vara de porcos possuídos por demônios
precipitando-se de um despenhadeiro no mar em terras gadarenas para
entender que o corpo é o grande prêmio da vida mortal, e até mesmo o de um
porco satisfaria os espíritos desesperados que se rebelaram e até hoje
permanecem em seu primeiro estado, desprovidos de um tabernáculo físico.
O Élder James E. Talmage, proferiu em 1913 um discurso sobre essa
doutrina:
“Fomos ensinados (…) a ver nosso corpo como uma dádiva de Deus.
Nós, santos dos últimos dias, não consideramos o corpo algo condenável,
abominável. (…) Vemos [o corpo] como uma marca de nossa linhagem real.
(…) Reconhecemos o fato de que àqueles que não guardaram seu primeiro
estado (…) foi negada essa bênção de valor inestimável. (…) Cremos que
esse corpo (…) pode tornar-se, verdadeiramente, o templo do Espírito Santo.
(…)
É bem próprio da teologia dos santos dos últimos dias considerar o
corpo parte essencial da alma. Consultem seus dicionários, léxicos e
enciclopédias e verão que em nenhum lugar senão na Igreja de Jesus Cristo
poderemos encontrar a verdade solene e eterna de que a alma do homem é a
reunião do corpo e do espírito.” (Conference Report, outubro de 1913, p.
117)
Assim, respondendo em parte ao porquê dessa seriedade, afirmamos que
quem brinca com o corpo — dado por Deus e cobiçado por Satanás — de
outra pessoa, brinca com a própria alma dela, brinca com o propósito central
e o produto da vida, “a própria chave” da vida, conforme definiu certa vez o
Élder Boyd K. Packer. Ao banalizar a alma de outra pessoa (por favor,
incluam aí a palavra corpo), banalizamos a expiação, que salvou essa alma e
garantiu a continuação de sua existência. E quando se brinca com o próprio
Filho da Retidão, a Estrela da Manhã, brinca-se com fogo, uma chama mais
quente e sagrada que o sol do meio-dia. Não se pode agir assim sem se
queimar. Não se pode “de novo [crucificar] o Filho de Deus” (Hebreus 6:6)
impunemente. A má utilização do corpo (incluam aí a palavra alma) é, em
última análise, a má utilização Daquele que é a Luz e a Vida do mundo.
Talvez aqui, o conselho de Paulo aos coríntios assuma um significado
inteiramente novo, mais elevado:
“Mas o corpo não é para a prostituição, senão para o Senhor, e o Senhor
para o corpo. (…) Não sabeis vós que os vossos corpos são membros de
Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo, e fá-los-ei membros de uma
meretriz? Não, por certo. (…) Fugi da prostituição. (…) O que se prostitui
peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo
do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de
vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus
no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus.” (I Coríntios
6:13–20, grifo do autor)
É nossa alma que está em jogo — nosso espírito e nosso corpo. Paulo
entendia muito bem essa doutrina da alma, assim como o Élder James E.
Talmage, pois é uma verdade do evangelho. O preço pelo qual se comprou a
plenitude da alegria — o corpo e espírito eternamente unidos — foi o sangue
puro e inocente do Salvador do mundo. Não podemos dizer, de forma
ignorante e rebelde: “A vida é minha”, ou pior ainda, “O corpo é meu”. Não
é. “Não sois de vós mesmos”, disse Paulo. “Fostes comprados por bom
preço.” Assim, a resposta à pergunta: “Por que Deus se preocupa tanto com a
transgressão sexual?” é em parte por causa do precioso dom oferecido por
meio de Seu Filho Unigênito para redimir as almas — corpos e espíritos —
que tantas vezes utilizamos mal, de maneira tão vil e egoísta. Cristo restaurou
as próprias sementes da vida eterna (ver D&C 132:19, 24) e ao profaná-las,
fazemo-lo sob grande risco. A primeira grande razão para a pureza pessoal?
Nossa própria alma está em jogo e correndo perigo.
Em segundo lugar, a intimidade humana, essa união sagrada e física
ordenada por Deus para os casados, envolve um símbolo que exige uma
santidade especial.
Esse ato de amor entre homem e mulher é — ou certamente foi
ordenado que fosse — um símbolo da união total: a união de seu coração, de
suas esperanças, de sua vida, de seu amor, de sua família, de seu futuro, de
tudo. É um símbolo que tentamos propor no templo com a palavra selamento.
O Profeta Joseph Smith certa vez referiu-se a esses laços como um elo — os
que estão unidos no matrimônio e na família eterna estão unidos como em
uma corrente, de maneira inseparável, para resistir assim às tentações do
adversário e às aflições da mortalidade. (Ver D&C 128:18.)
Mas tal união total e indissolúvel, tal compromisso inarredável entre um
homem e uma mulher, só pode ocorrer com a proximidade e permanência
existentes no convênio do casamento, com a união de tudo que eles possuem
— a própria mente e o coração, todos os seus dias e todos os seus sonhos.
Eles trabalham juntos, choram juntos, apreciam Brahms, Beethoven e o
desjejum juntos, fazem sacrifícios, passam por dificuldades e vivem juntos
toda a abundância que uma vida íntima oferece a esse casal. E o símbolo
exterior dessa união, a manifestação física do que é uma ligação espiritual e
metafísica muito mais profunda, é o enlace físico, que faz parte da expressão
mais bela e gratificante da mais ampla e completa união de propósitos e
promessas eternos.
Ainda que seja delicado mencioná-lo, confio, contudo, na maturidade
dos leitores para entender que fisiologicamente fomos criados como homens
e mulheres para formar tal união. Nesse aspecto físico, homens e mulheres
unem-se da forma mais próxima e literal que dois corpos físicos distintos
jamais poderiam. É nesse ato supremo de intimidade física que chegamos
mais perto de cumprir o mandamento dado a Adão e Eva, símbolos vivos
para todos os casais casados, quando o Senhor ordenou-lhes que se
apegassem um ao outro e assim se tornassem “uma carne”. (Gênesis 2:24)
Obviamente, esse mandamento dado ao primeiro marido e à primeira
mulher da família humana tem implicações ilimitadas: sociais, culturais e
religiosas, além das físicas, mas é exatamente disso que quero tratar. Quando
os casais se unem pelo casamento aqui na mortalidade, deve haver uma união
completa. Esse mandamento não poderá ser cumprido e o simbolismo de uma
só carne não poderá ser preservado, se cheios de pressa, culpa e volúpia nos
entregarmos a relações íntimas em situações e locais escusos e
sorrateiramente voltarmos, com a mesma pressa e culpa, cada um para nosso
mundo — sem comer, viver, chorar ou rir juntos, sem lavar roupa, os pratos
ou lidar com os demais afazeres domésticos, sem administrar o orçamento,
pagar as contas, cuidar dos filhos ou juntos fazer planos para o futuro. Não,
não podemos fazer isso até sermos verdadeiramente um — unidos, ligados,
enlaçados, associados, fundidos, selados, casados.
Percebem a esquizofrenia moral que resulta de fingirmos sermos um,
partilhando os símbolos físicos e a intimidade física de nossa união, e em
seguida fugir, recuar, dissociando todos os outros aspectos e símbolos do que
era para ser uma obrigação intrínseca, e depois nos unirmos de novo
furtivamente outra noite, ou pior ainda, nos unirmos furtivamente (devem ter
percebido meu sarcasmo ao usar essa palavra) com outro parceiro, a quem
tampouco estamos selados, que não é um conosco, assim como o da próxima
semana ou do próximo mês ou de qualquer época antes de assumirmos o
compromisso do casamento?
Vocês devem esperar até poderem dar tudo, e não podem fazê-lo até
serem pelo menos legalmente e, para efeitos SUD, eternamente declarados
uma só carne. Dar ilicitamente o que não é seu (lembrem-se, “não sois de vós
mesmos”) e dar apenas parte do que não pode ser acompanhado da entrega de
todo o seu coração, toda a sua vida e todo o seu ser é uma forma de roleta
russa emocional. Se persistirem em querer aproveitar da parte sem o todo,
buscar satisfação desprovida de simbolismo e dar apenas porções, pedaços e
fragmentos, vocês correm o terrível risco de sofrer danos espirituais e
psíquicos que poderão prejudicar tanto sua intimidade física quanto sua
devoção sincera a um amor verdadeiro no futuro. Pode ser que quando
chegarem àquele momento do real amor, da união total, vocês percebam
horrorizados que o que deveriam ter guardado foi gasto e que somente a
graça de Deus poderá reaver esse desperdício de sua virtude fragmentada.
Um bom amigo santo dos últimos dias, o doutor Victor L. Brown Jr.,
escreveu a respeito desse tema:
“A fragmentação concede a seus participantes uma intimidade ilusória.
(…) Se nos relacionarmos uns com os outros em fragmentos, deixaremos de
desfrutar relacionamentos plenos, na melhor das hipóteses. E na pior delas,
estaremos manipulando e explorando os outros para nossa gratificação
pessoal. A fragmentação sexual pode ser particularmente prejudicial porque
nos dá fortes recompensas fisiológicas que, embora enganosas, podem
persuadir-nos temporariamente a subestimar as sérias deficiências de nosso
relacionamento como um todo. Duas pessoas podem casar-se visando apenas
à satisfação física e descobrir mais tarde que a ilusão da união desmorona
diante do peso das incompatibilidades intelectuais, sociais e espirituais.
A fragmentação sexual em particular é perigosa por ser extremamente
enganosa. A intensa intimidade humana que deveria ser desfrutada na união
sexual, e ser por ela simbolizada, é falsificada por episódios sensuais que
sugerem — mas não podem oferecer — aceitação, compreensão e amor. Tais
encontros confundem o fim com os meios, quando pessoas solitárias e
desesperadas buscam um denominador comum que lhes proporcione uma
satisfação mais fácil e rápida.” (Human Intimacy: Illusion & Reality [Salt
Lake City: Parliament Publishers, 1981], pp. 5–6)
Vejamos uma observação ainda mais contundente de um não-membro
acerca desses atos desprovidos tanto da alma como do simbolismo que temos
discutido. Ele escreveu: “Nossa sexualidade foi animalizada, arrancaram-lhe
a complexidade de sentimentos com que os seres humanos lhe atribuíram,
fazendo com que tenhamos olhos apenas para o ato e temamos nossa
incapacidade nele. Essa é a animalização da qual os manuais de sexo não
podem escapar, nem mesmo quando tentam fazê-lo, pois são um reflexo
disso. Eles poderiam ser muito bem livros didáticos para veterinários”.
(Fairlie, The Seven Deadly Sins Today, p. 182)
Enquanto estamos no tema da intimidade ilusória e da satisfação
enganosa, chamo em especial a atenção dos homens que estão lendo esta
mensagem. Ouvi durante minha vida inteira que é a moça que deve assumir a
responsabilidade de controlar os limites da intimidade no namoro, pois o
rapaz não consegue. Poucas opiniões relacionadas a esse assunto deixam-me
tão irritado quanto essa. Que espécie de homem é esse, que sacerdócio, poder
ou autocontrole esse homem possui, que permite que ele viva e se desenvolva
na sociedade, chegue a uma idade amadurecida, em alguns casos freqüente
uma universidade e se prepare para exercer influência sobre o futuro de
colegas, de países e sobre o próprio curso da história do mundo, mas não tem
a capacidade mental ou a vontade moral de dizer: “Não vou fazer isso”? Não,
essa lamentável psicologia de botequim é do tipo que nos levaria a dizer:
“Não posso evitar. Minhas glândulas controlam completamente minha vida
— minha mente, minha vontade, todo o meu futuro”.
Dizer que a moça em um relacionamento precisa arcar com sua
responsabilidade e com a do rapaz é uma das afirmações mais descabidas que
posso conceber. Na maioria dos casos de transgressão sexual, coloco o peso
da culpa nos ombros do rapaz — em nosso meio, provavelmente um portador
do sacerdócio — e é aí onde creio que Deus determinou que deveria recair a
responsabilidade. Ao dizer isso, não quero dar desculpas para as moças não
impor limites e não ter a força de caráter e convicção para permitir a
intimidade somente da forma legítima. Com minha larga experiência em
chamados na Igreja, posso afirmar que tanto as mulheres como os homens
podem levar a culpa. Mas também me recuso a aceitar a falsa inocência de
certos rapazes que querem pecar e chamam isso de psicologia.
De fato, infelizmente é a moça que na maioria das vezes é a vítima; é ela
que na maior parte das vezes sofre a dor maior; é ela que quase sempre se
sente usada, abusada e terrivelmente impura. E por ter causado tal impureza,
o homem há de responder, tão certo quanto o sol se põe e os rios correm para
o mar.
Observemos a linguagem direta que o profeta Jacó usa no seguinte
trecho do Livro de Mórmon. Após discorrer audaciosamente sobre as
transgressões sexuais dos nefitas, ele cita Jeová: “Porque eu, o Senhor Deus,
vi a dor e ouvi o lamento das filhas de meu povo na terra. (…) E não
permitirei, diz o Senhor dos Exércitos, que o lamento das belas filhas deste
povo (…) suba até mim contra os homens de meu povo, diz o Senhor dos
Exércitos.
Porque não levarão em cativeiro as filhas de meu povo, por causa de sua
ternura, sem que eu os visite com uma terrível maldição, até mesmo
destruição”. (Jacó 2:31–34, grifo do autor)
Não se deixem enganar e não se deixem destruir. A menos que esse fogo
seja controlado, suas roupas e seu futuro serão queimados e seu mundo, falho
no arrependimento doloroso e perfeito, será consumido com as chamas. Digo
isso como amigo e também em nome de Deus.
Em terceiro lugar, junto das palavras alma e símbolo, está a palavra
sacramento, um termo intimamente relacionado com os outros dois.
A intimidade sexual não é apenas uma união simbólica entre um homem
e uma mulher — a união da própria alma de cada um deles — mas simboliza
também a união entre os mortais e a Deidade; de humanos, que apesar de
comuns e falhos, unem-se para um momento raro e especial com o próprio
Deus e todos os poderes pelos quais Ele concede a vida neste nosso vasto
universo.
Nesse último sentido, a intimidade humana é um sacramento, um tipo
muito especial de símbolo. Em nosso caso, um sacramento poderia ser
qualquer um dos gestos, atos ou ordenanças que nos unem a Deus e a Seus
ilimitados poderes. Somos imperfeitos e mortais; Ele é perfeito e imortal.
Mas de tempos em tempos — de fato, sempre que possível e oportuno —
encontramos maneiras, vamos a lugares e criamos circunstâncias que poderão
levar-nos à união simbólica com Ele e, ao fazermos isso, ganhamos acesso a
Seu poder. Esses momentos especiais de união com Deus são momentos
sacramentais, como quando nos ajoelhamos no altar do templo para o
casamento, abençoamos um recém-nascido ou participamos dos emblemas da
Ceia do Senhor. Essa última ordenança é a que nós na Igreja tradicionalmente
tendemos a associar à palavra sacramento, embora tecnicamente seja apenas
um dos muitos momentos em que formalmente tomamos a mão de Deus e
sentimos Seu poder divino.
Esses são os momentos em que literalmente unimos nossa vontade à de
Deus, nosso espírito ao Dele, em que a comunhão com o que está além do
véu se torna bastante real. Nesses momentos, não só reconhecemos Sua
divindade, mas também de forma bastante literal tomamos para nós mesmos
um pouco dela. Esses são os santos sacramentos.
Não conheço ninguém que correria para a reunião sacramental,
arrancaria a toalha da mesa do sacramento, espalharia o pão por todo o
recinto, derrubaria as bandejas de água no chão e às gargalhadas sairia da
capela esperando para repetir o espetáculo no domingo seguinte. Ninguém
faria isso durante um de nossos momentos sagrados de adoração religiosa.
Ninguém tampouco violaria os outros momentos sacramentais de nossa vida,
as ocasiões em que invocamos conscientemente o poder de Deus e a Seu
convite temos o privilégio de estar a Seu lado.
Desejo salientar, como terceira razão para permanecermos puros, que a
união sexual é também, de forma única e profunda, um sacramento real dos
mais sublimes, uma união não apenas de um homem e uma mulher, mas
também a união desse homem e dessa mulher com Deus. De fato, se nossa
definição de sacramento é um ato de invocar, partilhar e exercer o
inestimável poder do próprio Deus, então não conheço nenhum outro
privilégio divino dado tão rotineiramente a todos nós — homens ou
mulheres, ordenados ao sacerdócio ou não, santos dos últimos dias ou não —
que o poder milagroso e extraordinário de transmissão da vida, o poder
indescritível, insondável e indestrutível da procriação. Há aqueles momentos
especiais de nossa vida em que as outras ordenanças mais formais do
evangelho — os sacramentos, se preferirem — ajudam-nos a sentir a graça e
grandiosidade do poder de Deus. Muitas são experiências que só acontecem
uma vez (como nossa confirmação ou casamento) e outras podem repetir-se
(como as bênçãos aos enfermos e as ordenanças que realizamos em favor de
outras pessoas no templo). Mas não conheço nada tão assombrosamente
forte, universal e indistintamente concedido a nós a partir da adolescência
quanto o poder divino de criar um corpo humano, essa maravilha das
maravilhas, um ser genética e espiritualmente único, que jamais foi visto
antes na história do mundo e nunca poderá ser duplicado em toda a
eternidade: um filho, nosso filho — com olhos, orelhas, dedos e um futuro de
inexprimível grandeza.
Paremos um instante para pensar nisso. Desde a puberdade e por várias
décadas de nossa vida, levamos dentro de nós todos os dias, horas, minutos,
todos os momentos de sono ou vigília, o poder, a química e as sementes da
vida transmitidas eternamente para conceder a alguém a oportunidade de
passar por seu segundo estado, seu nível seguinte de desenvolvimento no
plano de salvação divino. Afirmo-lhes que nenhum poder, sacerdócio ou
coisa do gênero é dado de forma tão universal a tantas pessoas sem
praticamente nenhum controle sobre seu uso salvo o autocontrole. E
asseguro-lhes que nunca seremos mais semelhantes a Deus em qualquer
momento de nossa vida do que quando estivermos exercendo esse poder. De
todos os títulos que Ele escolheu para Si, Pai é o que Ele ordenou que O
chamássemos, e criação é Sua palavra de ordem — especialmente a criação
humana, a criação a Sua imagem. Sua glória não é uma montanha, por mais
magníficas que elas sejam. Não está no mar, no céu, na neve ou no nascer do
sol, por mais lindos que se mostrem. Não está tampouco na arte ou na
tecnologia, seja um concerto ou um computador. Não, Sua maior glória — e
Seu maior desgosto — está em Seus filhos. Nós — vocês e eu — somos Seus
bens mais preciosos, somos a evidência terrena, ainda que imperfeita, do que
Ele verdadeiramente é. A vida humana é o maior dos poderes de Deus, a
química mais misteriosa e magnífica de todas, e vocês e eu a recebemos,
porém dentro dos mais sérios e sagrados limites. Vocês e eu — que não
podemos criar uma montanha ou o luar, uma gota de chuva ou uma única
rosa — temos esse dom ainda maior de forma absolutamente ilimitada. E o
único controle exigido de nós é o autocontrole — autocontrole nascido do
respeito por esse poder sacramental divino.
A confiança que Deus tem em que respeitemos esse dom capaz de
formar o futuro é assombrosa, impressionante. Mesmo alguém que não
consiga consertar uma bicicleta ou montar um quebra-cabeças de dificuldade
mediana, alguém cheio de fraquezas e imperfeições, leva dentro de si esse
poder de procriação que nos torna tão semelhantes a Deus pelo menos nesse
aspecto tão grandioso.
Almas. Símbolos. Sacramentos. Essas palavras ajudam-nos a
compreender por que a intimidade humana é um assunto tão sério? Por que
ela é tão correta, gratificante e incrivelmente bela quando expressa dentro do
casamento e aprovada por Deus (não apenas “boa”, mas “muito boa”,
conforme Ele declarou a Adão e Eva) e tão ultrajantemente errada —
comparável ao assassinato — quando fora do convênio? Entendo que ao
agirmos de forma errada ou andarmos no limite, estaremos pondo nossa
própria vida em perigo. A punição pode não vir no mesmo dia de nossa
transgressão, mas certamente virá e se não fosse por um Deus misericordioso
e pelo privilégio inestimável do arrependimento, muitos estariam sentindo
agora a dor infernal que, como a paixão que estamos discutindo, é também
sempre descrita com a metáfora do fogo. Algum dia, em algum lugar, os
moralmente impuros vão, até que se arrependam, orar como o homem rico,
que desejava que Lázaro molhasse na água a ponta de seu dedo e lhe
refrescasse a língua, “porque [estava] atormentado nesta chama”. (Lucas
16:24)
Para terminar, vejamos a seguinte citação de dois estudantes da longa e
instrutiva história da civilização:
“Nenhum homem [ou mulher], por mais brilhante e informado que seja,
chegará durante sua vida a ter um entendimento tão amplo a ponto de poder
julgar com segurança e desprezar os costumes e instituições de sua sociedade,
pois eles representam a sabedoria de gerações e séculos de experimentos no
laboratório da história. Um jovem com os hormônios em ebulição poderia
perguntar-se por que não deveria dar total vazão a seus desejos sexuais. Se
não fosse refreado pelos costumes, pela moral e pelas leis, ele poderia
arruinar sua vida antes de amadurecer o suficiente para entender que o sexo é
um rio de fogo que precisa ser represado e resfriado por centenas de
restrições para que não consuma no caos tanto o indivíduo como o grupo.”
(Will and Ariel Durant, The Lessons of History [New York: Simon &
Schuster, 1968], pp. 35–46)
Ou nas palavras de cunho mais espiritual de James E. Talmage:
“Foi declarado em solene revelação que o espírito e o corpo constituem
a alma do homem; portanto, devemos ver esse corpo como algo que
permanecerá em nosso estado ressurreto, além do túmulo, algo a ser mantido
puro e sagrado. Não temam sujar as mãos, não temam as cicatrizes que
poderão vir em conseqüência de esforços sinceros, ou em lutas honestas; mas
tenham cuidado com as marcas deformantes, adquiridas em lugares em que
vocês não deveriam ter estado, em empreendimentos indignos [realizados
aonde vocês não deveriam ter ido]; cuidado com as feridas surgidas em
batalhas em que vocês estejam lutando do lado errado”. (Conference Report,
outubro de 1913, p. 117)
Se alguns de vocês são vítimas de “cicatrizes (…) adquiridas em lugares
em que vocês não deveriam ter estado”, há a paz e a promessa especial
oferecidas por meio do sacrifício expiatório do Senhor Jesus Cristo. Seu amor
e os princípios e ordenanças restaurados do evangelho — que tornam esse
amor disponível a nós com seu poder de purificação e cura — são oferecidos
liberalmente. O poder desses princípios e ordenanças, incluindo o
arrependimento completo e redentor, só existe em sua plenitude nesta, a
verdadeira e viva Igreja do Deus vivo e verdadeiro. Devemos todos “vir a
Cristo” para receber a plenitude da alma, dos símbolos e dos sacramentos que
Ele tem a oferecer-nos.
Capítulo 17

ASSOMBRO ME CAUSA

Certamente, a razão pela qual Cristo disse: “Pai, perdoa-lhes” era


que mesmo naquela hora terrível de provação, Ele sabia que essa era a
mensagem que Ele teve de atravessar toda a eternidade para trazer.
Todo o plano de salvação teria se perdido se Ele tivesse retirado Seu
perdão da família humana. Esse foi o momento crucial do ministério de
Cristo, tão puro em seu exemplo como difícil foi de suportar.

Um de nossos hinos mais cantados começa com as palavras: “Assombro


me causa”. (Hinos, nº 112) Em qualquer momento em que pararmos para
pensar na vida de Cristo, certamente há motivos para ficarmos assombrados
em todos os sentidos. Ficamos assombrados com Seu papel pré-mortal como
o grande Jeová, Agente de Seu Pai, Criador da Terra, Guardião de toda a
família humana. Ficamos assombrados com Sua vinda à Terra e as
circunstâncias que cercaram Seu advento, que ocorreu após Ele ter durante
milênios guiado e instruído Adão, Abraão, Moisés, Leí e todos os profetas da
antigüidade. Ficamos assombrados com Seu bom e humilde padrasto e com a
jovem virgem que foi Sua mãe terrena. Ficamos assombrados com o milagre
de Sua concepção. Ficamos assombrados com a pobreza e solidão de Seu
nascimento, que foram uma prefiguração de toda a solidão que enfrentaria em
Sua estada na Terra.
Ficamos assombrados com o fato de, aos apenas doze anos, Ele já estar
tratando dos negócios de Seu Pai, sentado no meio dos doutores da lei,
enquanto “eles estavam ouvindo-o e fazendo-lhe perguntas”. (TJS, Lucas
2:46) Ficamos assombrados com a iniciação formal de Seu ministério, Seu
batismo, Seus dons espirituais e o chamado para cada homem comum unir-se
a Ele e ensinar doutrinas extraordinárias, porém tantas vezes impopulares.
Ficamos assombrados com o fato de que onde quer que Ele fosse, as forças
do mal iam à frente e conheciam-No desde o início, mesmo quando os
mortais não. Ao mesmo tempo em que alguns diziam: “Não é este Jesus, o
filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos?” (João 6:42), os demônios
clamavam: “Ah! que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste a destruir-
nos? Bem [sabemos] quem és: O Santo de Deus”. (Lucas 4:34)
Ficamos assombrados ao ver essas forças do mal serem expulsas,
rechaçadas e derrotadas, assim como os coxos andarem, os cegos verem, os
surdos ouvirem e os enfermos se levantarem. De fato, ficamos assombrados a
cada ação e momento de Sua vida — como devem ficar todas as gerações
desde Adão até o fim do mundo.
Mas para mim, não há maior assombro ou desafio mais difícil do que
quando, após a angústia do Getsêmani, depois de ser ridicularizado,
espancado e açoitado, Jesus, cambaleante sob a o peso da cruz no topo do
Calvário, diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. (Lucas
23:34)
Se é que há um momento em que fico assombrado, é aqui, e é um tipo
diferente de assombro. Muito do mistério de Seu poder e ministério instiga-
me a mente. As circunstâncias de Seu nascimento, a grandeza e variedade de
Seu ministério e milagres, Seu poder de ressurreição; diante de tudo isso, fico
assombrado e pergunto-me: “Como Ele fez isso?” Mas aqui, abandonado
pelos discípulos em Sua hora de maior necessidade, desfalecendo sob o peso
de Sua cruz e dos pecados de toda a humanidade que estavam ligados a ela,
dilacerado pelos cravos perfurantes em seus pés, mãos e pulsos — aqui o
assombro instiga-me não a mente, mas o coração, e não me pergunto “Como
Ele fez isso” e sim “Por que Ele fez isso?” É aqui que examino minha vida,
não tentando compará-la à grandiosidade de Sua vida, mas à luz da
misericórdia nela encontrada, e é aqui que me dou conta do quão longe estou
do exemplo do Mestre.
Para mim, esse é um assombro de natureza mais elevada. Surpreende-
me bastante a habilidade do Salvador de curar os doentes e levantar os
mortos, mas já passei por algumas experiências semelhantes, ainda que de
maneira limitada, assim como muitos outros. Somos vasos inferiores, e
inquestionavelmente, indignos do privilégio, mas temos presenciado os
milagres do Senhor repetindo-se em nossa própria vida, em nosso lar e com
nossa própria porção do sacerdócio. Mas misericórdia? Perdão? Expiação?
Reconciliação? Com muita freqüência, essa é outra história.
Como Ele pôde perdoar Seus algozes naquele momento? Com toda
aquela dor, tendo perdido sangue por todos os poros, Ele certamente não
precisava estar pensando nos outros naquele momento, precisava? Ele
seguramente não precisava pensar nos outros todo o tempo, em todos os
minutos, ainda mais com aquele bando de assassinos rindo e cuspindo Nele,
tirando-Lhe a roupa, os direitos e a dignidade. Ou será que se trata de mais
uma evidência surpreendente de que Ele era perfeito e espera o mesmo de
nós? Seria mera coincidência — ou absolutamente intencional — que no
Sermão da Montanha, como espécie de último requisito antes de declarar a
perfeição como nossa meta, Ele tenha-nos advertido: “Amai a vossos
inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e
orai pelos que vos maltratam e vos perseguem”? (Mateus 5:44)
Eu preferiria levantar os mortos. Preferiria restaurar a visão de um cego
ou curar mãos mirradas. Preferiria fazer qualquer coisa a ter de amar meus
inimigos e perdoar aos que ofendem a mim, meus filhos ou netos, e
principalmente aos que riem e se deleitam na brutalidade de tal ato.
“E, tendo [Pilatos] mandado açoitar a Jesus, entregou-o para ser
crucificado. E logo os soldados do presidente, conduzindo Jesus à audiência,
reuniram junto dele toda a corte. E despindo-o, o cobriram com uma capa de
escarlate. E, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça, e em sua
mão direita uma cana; e, ajoelhando diante dele, o escarneciam, dizendo:
Salve, Rei dos judeus. E, cuspindo nele, tiraram-lhe a cana, e batiam-lhe com
ela na cabeça. E depois de o haverem escarnecido, tiraram-lhe a capa,
vestiram-lhe as suas vestes e o levaram para ser crucificado.” (Mateus 27:26–
31)
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” E daí se eles sabem
ou não o que fazem! Essa é uma injustiça cruel, bárbara e ultrajante ao ser
mais puro e perfeito que já viveu. Ele é a única pessoa em todo o mundo de
Adão até o presente que merece adoração, respeito, admiração e amor. Ele
merece-o porque “Não houve quem pudesse do pecado resgatar / Além do
irmão querido que ao mundo quis baixar”. (“No Monte do Calvário”, Hinos,
nº 113) E é isso que Ele recebe em troca?
Não há justiça? Não deveria Ele gritar: “Retirai-vos!”, como fez com
outros demônios? Não deveria Ele condená-los todos e chamar as legiões de
anjos que estavam a Sua disposição constantemente?
Cada geração em todas as dispensações do mundo teve suas próprias
multidões reunidas ao redor daquela cruz, rindo e escarnecendo, quebrando
mandamentos e violando convênios. Não foi apenas um pequeno grupo de
pessoas no meridiano dos tempos que teve a culpa. É a maioria das pessoas,
na maioria dos lugares, a maior parte do tempo, incluindo todos nós, que nem
sempre agimos como sabemos que devemos.
O que está por trás de tudo isso, que O levou a agir assim? Que lição há
para nós? Devemos voltar ao início.
Adão e Eva, depois de passarem pela experiência no Jardim do Éden,
foram expulsos de lá. E “Adão começou a lavrar a terra e a exercer domínio
sobre as bestas do campo e a comer o pão com o suor de sua fronte, como eu,
o Senhor, lhe ordenara: E Eva, sua mulher, também trabalhava com ele. (...)
E Adão e Eva, sua mulher, invocaram o nome do Senhor e eles ouviram
a voz do Senhor que vinha do caminho, em direção ao Jardim do Éden,
falando-lhes; e eles não o viram, porque estavam excluídos de sua presença.
E ele deu-lhes mandamentos de que adorassem ao Senhor seu Deus e
oferecessem as primícias de seus rebanhos como oferta ao Senhor. E Adão
foi obediente aos mandamentos do Senhor.
E após muitos dias, um anjo do Senhor apareceu a Adão, dizendo: Por
que ofereces sacrifícios ao Senhor? E Adão respondeu-lhe: Eu não sei, exceto
que o Senhor me mandou.
E então o anjo falou, dizendo: Isso é à semelhança do sacrifício do
Unigênito do Pai que é cheio de graça e verdade. Portanto farás tudo o que
fizeres em nome do Filho; e arrepender-te-ás e invocarás a Deus em nome do
Filho para todo o sempre”. (Moisés 5:1, 4–8)
Invocar a Deus para quê? Qual é a natureza dessa primeira instrução à
família humana? Por que devem eles invocar a Deus? Trata-se de uma
interação social? Uma conversa amigável entre vizinhos? Não, esse é um
pedido de ajuda do mundo solitário e triste. Esse é um pedido que beira ao
desespero. “Arrepender-te-ás e invocarás a Deus em nome do Filho para todo
o sempre.” Esse é um apelo vindo da prisão pessoal de um coração pecador.
É um apelo para o perdão dos pecados.
E assim o Deus e Pai de todos nós estabeleceu com aqueles primeiros
pais na primeira geração dos tempos certos princípios e ordenanças moldados
de forma a representar como poderia vir tal perdão dos pecados. Assim como
tudo mais que é importante e significativo em nossa vida, o perdão viria por
meio do sacrifício e exemplo de Seu Unigênito, que é cheio de graça e
verdade.
Para servir de constante lembrança da humilhação e sofrimento que o
Filho padeceria para resgatar-nos, para servir de constante lembrança de que
Ele não abriria a boca e seria levado como um cordeiro ao matadouro (ver
Mosias 14:7), para servir de constante lembrança da mansidão, misericórdia e
bondade — e sim, do perdão — que deveriam caracterizar toda vida cristã:
por todas essas razões e outras mais, aqueles cordeiros primogênitos, limpos
e sem manchas, perfeitos em todos os aspectos, eram oferecidos naqueles
altares de pedra ano após ano e geração após geração, apontando-nos o
grande Cordeiro de Deus, Seu Unigênito, o Primogênito, perfeito e sem
mácula.
Ao oferecer nosso sacrifício simbólico, mas muito mais modesto, em
qualquer dispensação que seja — o de um coração quebrantado e um espírito
contrito (ver D&C 59:8) — prometemos “recordá-lo sempre e guardar os
mandamentos (…) para que [possamos] ter [conosco] o seu Espírito”. (D&C
20:77) Os símbolos de Seu sacrifício, nos dias de Adão e nos nossos, têm o
objetivo de ajudar-nos a viver em paz, sendo obedientes e misericordiosos. E,
como resultado dessas ordenanças, foi-nos ordenado que demonstrássemos
nossa lealdade ao evangelho de Jesus Cristo sendo pacientes e bondosos uns
com os outros, como Ele demonstrou naquela cruz.
Mas no decorrer dos séculos parece que nunca foi assim, pelo menos
não com a freqüência necessária. Caim rapidamente conseguiu fazer tudo da
maneira errada. Como o Profeta Joseph Smith observou: “Deus (…) preparou
um sacrifício oferecendo Seu próprio Filho, que seria enviado no devido
tempo para preparar um caminho, ou abrir uma porta por meio da qual o
homem pudesse entrar na presença do Senhor, de onde fora expulso por
desobediência. (…) Com fé nessa expiação ou plano de redenção, Abel
ofereceu a Deus um sacrifício que foi aceito, as primícias do rebanho. Caim
ofereceu o fruto da terra, que não foi aceito, porque ele (…) não poderia
exercer uma fé contrária ao plano dos céus. Seria preciso que o Unigênito
derramasse Seu sangue para expiar pelo homem, pois esse foi o plano de
redenção, e sem o derramamento de sangue não haveria remissão. Como o
sacrifício foi instituído como um modelo pelo qual o homem poderia
discernir o grande Sacrifício que Deus preparara, ao oferecer-se um sacrifício
contrário a isso, não poderia exercer-se fé, pois a redenção não fora comprada
dessa maneira, nem o poder da expiação instituído por essa ordem. (…)
Obviamente, o derramamento do sangue de animais não poderia ser benéfico
a homem algum; ele era feito como imitação, como um protótipo ou
prefiguração da oferta que seria feita pelo próprio Deus; e essa ordenança
devia ser feita com o olhar da fé voltado para o poder do grande Sacrifício
para a remissão dos pecados”. (History of the Church 2:15–16)
E assim, muitos de nós, em todas as épocas e lugares, agindo de forma
bem semelhante à de Caim, ao voltarmos para casa revigorados após
oblações matinais, gritamos com o cônjuge, maltratamos um filho, chutamos
o cachorro, ou simplesmente mentimos um pouco, enganamos um pouco e
abrimos uma cova para o vizinho. O nível de atenção que temos dedicado a
nossas ordenanças de salvação no decorrer das dispensações faria,
comparativamente, crianças da pré-escola parecer doutores da universidade.
Muitas vezes esquecemos o real motivo mesmo antes do sangue secar no
altar, as bandejas voltarem à mesa do sacramento ou as roupas do santo
sacerdócio serem dobradas e guardadas para mais uma sessão.
Saul, rei de Israel, é um exemplo desse problema. Em contradição
explícita às ordens do Senhor, ele trouxe dos amalequitas o “melhor das
ovelhas, e das vacas, para as oferecer ao Senhor [seu] Deus”. Samuel, tomado
de profunda angústia, clamou: “Tem porventura o Senhor tanto prazer em
holocaustos e sacrifícios, como em que se obedeça à palavra do Senhor? Eis
que o obedecer é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a
gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado da feitiçaria, e o
porfiar é como a iniqüidade e idolatria. Porquanto tu rejeitaste a palavra do
Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei”. (I Samuel 15:15,
22–23)
Por que a rebelião (ou teimosia ou desobediência em nossas ordenanças)
é como a feitiçaria? Porque ela faz uma declaração acerca de nossa lealdade a
Deus e do entendimento que temos de Sua natureza e do que Ele realmente
quer. Saul, que compreendia o método, mas não o significado de seu
sacrifício, e o santo dos últimos dias que fielmente vai à reunião sacramental,
mas ainda assim não é misericordioso, paciente ou disposto a perdoar —
ambos são bem semelhantes ao bruxo e ao idólatra. Eles participam
mecanicamente das ordenanças sem comprometer-se ou entender as razões
pelas quais elas foram estabelecidas: a obediência, mansidão, bondade e amor
na busca do perdão de nossos pecados.
Ordenanças realizadas de forma errônea e com alterações no significado
caracterizam um sacerdócio apóstata e uma nação idólatra. Como o Profeta
Joseph Smith ensinou, Deus não tinha interesse na morte de inocentes
animaizinhos — a menos que o significado desses altares verdadeiramente
modificasse nossa vida.
Num momento particularmente difícil da história israelita, o Senhor
disse a Seus filhos: “Odeio, desprezo as vossas festas. (…) E ainda que me
ofereçais holocaustos, ofertas de alimentos, não me agradarei delas; nem
atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais gordos. Afasta de mim o
estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias das tuas violas.
Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso”.
(Amós 5:21–24)
E assim foi boa parte do tempo, até chegarmos a essa parábola final:
“Houve um homem, pai de família, que plantou uma vinha, e circundou-
a de um valado, e construiu nela um lagar, e edificou uma torre, e arrendou-a
a uns lavradores, e ausentou-se para longe. E, chegando o tempo dos frutos,
enviou os seus servos aos lavradores, para receber os seus frutos. E os
lavradores, apoderando-se dos servos, feriram um, mataram outro, e
apedrejaram outro.
Depois enviou outros servos, em maior número do que os primeiros; e
eles fizeram-lhes o mesmo. E, por último, enviou-lhes seu filho, dizendo:
Terão respeito a meu filho.
Mas os lavradores, vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro;
vinde, matemo-lo, e apoderemo-nos da sua herança. E, lançando mão dele, o
arrastaram para fora da vinha, e o mataram.” (Mateus 21:33-39)
Esse é o momento em que nos achamos no topo do Gólgota. Não é uma
história agradável. Com uma paciência que parece por demais generosa, o Pai
e o Filho aguardaram, observaram e trabalharam na vinha para que a
misericórdia corresse como as águas e a justiça como um ribeiro impetuoso.
Mas a misericórdia e a justiça não correram. Não só mataram os profetas
fiéis, mas agora também chegou a hora do mesmo acontecer com o Filho do
Senhor da vinha. Um preço terrível e incalculável deve ser pago, e contá-lo
fere o coração humano.
Em meio aos impropérios, maus-tratos, espinhos, ameaças, escárnio e
rasgamento de Suas roupas, somados ao peso esmagador de Seu próprio
corpo, esforçando-se para apoiar-se nos cravos que foram fincados em Seus
pés e mãos; com os amigos em debandada e os inimigos por todo lado, o
inesperado acontece, a pior cena dessa história divina desenrola-se.
Podemos ter um vago vislumbre das terríveis emoções e forças em ação
nesse momento ao ler as linhas intencionalmente preservadas para nós no
aramaico original: “Eli, Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?” (Mateus 27:46)
Há uma coisa, e somente uma, de que o Unigênito tinha certeza: do
amor, presença e apoio incondicional de Seu Pai. Observem essas linhas
tiradas quase ao acaso do evangelho de João. Elas são uma amostra de um
tema que permeia todos os escritos desse evangelista.
“O Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma, se o não vir fazer o
Pai. (…) Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo que faz.” (João 5:19–
20)
“Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade
daquele que me enviou.” (João 6:38)
“Eu não vim de mim mesmo, mas aquele que me enviou é verdadeiro, o
qual vós não conheceis. Mas eu conheço-o.” (João 7: 28–29)
“De mim testifica também o Pai que me enviou. (…) Se vós me
conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai.” (João 8:18–19)
“Ele me deu mandamento sobre o que hei de dizer e sobre o que hei de
falar.” (João 12:49)
“Eis que chega a hora, e já se aproxima, em que vós sereis dispersos
cada um para sua parte, e me deixareis só; mas eu não estou só, porque o Pai
está comigo.” (João 16:32)
E então a seguinte afirmação, talvez a mais pungente de todas: “Não sou
eu só, mas eu e o Pai que me enviou. (…) Aquele que me enviou está
comigo. O Pai não me tem deixado só, porque eu faço sempre o que lhe
agrada”. (João 8:16, 29)
E agora, “Eli, Eli, lamá sabactâni. (…) Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste?”
Permitam-me citar algo dito pelo Élder Melvin J. Ballard há vários anos:
“Pergunto-lhes, que pai ou mãe suportaria ouvir o choro angustiado de
seus filhos (…) sem correr para auxiliá-los? Já ouvi muitas histórias de mães
que se jogaram em correntes violentas, quando nunca haviam nadado antes,
para salvar seus filhos que se afogavam, [já ouvi histórias de pais] que se
lançaram em prédios em chamas [arriscando a própria vida] para resgatar
seus entes queridos.
Não podemos ouvir seus gritos sem que nosso coração seja tocado. (…)
Deus tinha o poder para salvar e amava Seu Filho, e poderia tê-Lo salvo. Ele
poderia tê-Lo livrado do insulto das multidões. Ele poderia tê-Lo protegido
quando a coroa de espinhos foi-Lhe colocada na cabeça. Ele poderia tê-Lo
libertado quando o Filho, crucificado entre dois ladrões, foi humilhado com
as palavras: ‘Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz. Salvou os outros, e não
pode salvar-se a si mesmo’. Ele ouviu tudo isso. Ele viu aquele Filho ser
condenado, Ele viu-O arrastar a cruz pelas ruas de Jerusalém e desfalecer sob
o peso dela. Ele viu o Filho por fim no Calvário, Ele viu Seu corpo ser
colocado na cruz de madeira, Ele viu os impiedosos cravos serem pregados
em Seus pés e mãos e os golpes que Lhe laceraram a pele, rasgaram a carne e
derramaram o sangue da vida de Seu Unigênito. (…)
[Ele] observou [tudo isso] com grande agonia e dor por Seu [Filho]
Amado, até o momento em que nosso Salvador gritou de desespero: ‘Deus
meu, Deus meu, por que me desamparaste?’
Naquele instante creio poder ver nosso querido Pai do outro lado do véu
presenciando essa dor e a morte iminente do Filho, (…) com Seu grande
coração em pedaços devido ao grande amor que tinha por Ele. Ah, naquele
momento, quando Ele poderia ter salvo Seu Filho, agradeço a Ele e louvo-O
por não nos ter abandonado. (…) Regozijo-me por Ele não ter interferido, e
por Seu grande amor por nós ter permitido que suportasse ver os sofrimentos
de Seu [Unigênito] e O ofertasse a nós, nosso Salvador e Redentor. Sem Ele,
sem Seu sacrifício, não poderíamos progredir e jamais poderíamos voltar
glorificados a Sua presença. (…)
Foi esse o custo, em parte, para que nosso Pai Celestial oferecesse como
dádiva Seu Filho aos homens. (…)
Nosso Deus é um Deus zeloso — e se ressentirá caso venhamos a
ignorar, esquecer ou menosprezar Sua maior dádiva a nós” — a vida de Seu
Filho Primogênito. (Melvin J. Ballard, Crusader for Righteousness [Salt
Lake City: Bookcraft, 1966], pp. 136–38)
Então, como podemos certificar-nos de nunca “ignorar, menosprezar ou
esquecer” a maior de todas as Suas dádivas que recebemos?
Podemos fazê-lo mostrando nosso desejo de receber a remissão de
nossos pecados e nossa gratidão eterna por aquela que foi a mais corajosa das
orações: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. (Lucas 23:34)
Podemos fazê-lo ao nos esforçarmos para perdoar os pecados das pessoas.
“‘Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo’,
[Paulo exorta-nos]. (Gálatas 6:2) (…) A lei de Cristo, que temos a obrigação
de seguir, é tomar a cruz sobre nós. A carga de meu irmão que devo levar não
é somente o que é visível aos olhos (suas circunstâncias), (…) mas
literalmente seu pecado. E a única forma de levar esse pecado é perdoá-lo no
poder da cruz de Cristo que agora partilhamos. Assim, o chamado para seguir
a Cristo sempre significa um chamado para participar do trabalho de perdoar
aos homens seus pecados. O perdão é o sofrimento cristão que cabe aos
seguidores de Cristo carregar.” (Dietrich Bonhoeffer, The Cost of
Discipleship, 2nd ed. [New York: Macmillan, 1959], p. 100)
Certamente a razão pela qual Cristo disse: “Pai, perdoa-lhes” era que
mesmo naquela terrível e debilitante hora de provação que estava vivendo,
Ele sabia que essa era a mensagem que Ele teve de atravessar toda a
eternidade para trazer. Todo o significado e majestade de todas as
dispensações — de fato, o plano de salvação inteiro — teria se perdido se Ele
se tivesse esquecido disso, apesar da injustiça, brutalidade, maldade e
desobediência, pois precisamente por causa disso Ele viera oferecer perdão à
família humana. Qualquer um pode ser agradável, paciente e estar propenso a
perdoar em um dia bom. Contudo, um cristão precisa ser agradável, paciente
e estar pronto para perdoar todos os dias. Esse foi o momento crucial do
ministério de Cristo, e tão puro em seu exemplo como difícil foi de suportar.
Há alguém que talvez precise de perdão? Há alguém em nosso lar, em
nossa família, em nossa vizinhança que talvez tenha feito algo injusto,
indelicado ou anticristão? Todos nós somos culpados de tais transgressões,
assim há certamente alguém que ainda precisa de nosso perdão.
E por favor, não perguntem se isso é justo — a parte ofendida ter de
levar o fardo do perdão para o ofensor. Não perguntem se a “justiça” não
exigiria que fosse da forma contrária. Não, independentemente de nossas
ações, não devemos pedir justiça. Sabemos que o que suplicamos é
misericórdia, então é isso que devemos estar dispostos a oferecer.
Podemos ver a grande e trágica ironia de não darmos aos outros o que
precisamos tanto para nós mesmos? Talvez o mais elevado, sagrado e puro
ato de purificação seria dizer, em meio à maldade e injustiça, que
verdadeiramente amamos nossos inimigos e bendizemos os que nos
maldizem, fazemos bem aos que nos odeiam e oramos pelos que nos
maltratam e perseguem. Esse é o árduo caminho da perfeição.
Um maravilhoso ministro escocês escreveu certa vez:
“Nenhum homem que não quiser perdoar a seu próximo pode crer que
Deus estaria propenso, sim, disposto a perdoar-lhe. (…) Se Deus dissesse:
‘Eu te perdôo’ a um homem que odiasse seu irmão, e (se possível fosse!) se
aquela voz do perdão pudesse chegar ao homem, o que ela significaria para
ele? Como o homem a interpretaria? Não significaria para ele: ‘Podes
continuar odiando. Eu não me importo. Sofreste uma grande provocação e
estás justificado em teu ódio’?
Com certeza Deus leva em conta a ciência do erro e das provocações de
que somos vítimas: mas quanto maior a provocação, quanto maior a desculpa
para odiar, maior a razão (…) para que a parte ofendida [perdoe, e] se liberte
do inferno de seu [ódio].” (George MacDonald, An Anthology, ed. C. S.
Lewis [New York: Macmillan, 1947], pp. 6–7)
Lembro-me vários anos atrás de uma cena que presenciei no aeroporto
de Salt Lake. Naquele dia, ao sair do avião e dirigir-me para o desembarque,
percebi imediatamente que havia um élder chegando do campo missionário,
pois o aeroporto estava em polvorosa, com amigos e parentes agitados.
Tentei adivinhar quais eram os membros da família imediata. Havia um
pai que não parecia muito à vontade num terno que não lhe caía muito bem e
estava meio fora de moda. Ele parecia ser um homem do campo, com grandes
mãos bronzeadas e calejadas. Sua camisa branca estava um pouco gasta e
provavelmente nunca era usada, exceto aos domingos.
Havia uma mãe muito magra, aparentando ter trabalhado arduamente na
vida. Levava nas mãos um lenço — acho que um dia fora um lenço de linho,
mas agora parecia um pedaço velho de pano, amassado pela expectativa que
somente a mãe de um missionário prestes a retornar poderia conhecer.
Havia uma bela moça que — bem, vocês já conhecem essa história de
moças e ex-missionários. Ela parecia estar à beira de um ataque do coração.
Achei que se ele não viesse logo, ela iria precisar de um balão de oxigênio.
Dois ou três irmãos mais novos estavam correndo e saltando, alheios à
cena que rumava para um gran finale.
Passei por eles e prossegui em direção à saída do aeroporto. Então
pensei comigo mesmo: “Este é um dos dramas especiais da vida humana.
Fique por perto por alguns instantes e aprecie-o”. Então parei. Fiquei por trás
da multidão, observando. Os missionários estavam começando a sair do
avião.
Distraí-me tentando adivinhar quem seria o primeiro a recepcionar o
élder. Vi que a namorada era a que mais desejava fazê-lo, mas sem dúvida ela
estava lutando para manter certa discrição. Afinal, dois anos é muito tempo, e
talvez não fosse prudente ser tão direta. Então, ao olhar o lenço surrado,
convenci-me de que a mãe seria a primeira. Ela obviamente precisava abraçar
algo, assim o filho que ela carregara e nutrira e ao qual fora até o vale da
morte para dar à luz era tudo de que precisava para acalmar-se. Ou talvez
fosse o irmãozinho agitado — isto se ele parasse um pouquinho que fosse
para ver que o avião havia chegado.
Ao sentar-me e pensar nessas opções, vi o missionário começar a descer
os degraus. Eu sabia que era ele devido aos gritos da multidão. Ele parecia o
Capitão Morôni, limpo, belo e puro. Sem dúvida, ele sabia o sacrifício que
essa missão significara para seu pai e sua mãe e isso o tornara exatamente o
missionário que aparentava ser. Seu cabelo estava cortado e aparado para essa
ocasião especial; seu terno estava gasto, mas limpo, e seu velho sobretudo
ainda o protegia da friagem contra a qual sua mãe sempre o prevenia.
Ele chegou ao fim da escada e dirigiu-se à plataforma de desembarque e
então, alguém não pôde mais conter-se. Não foi a mãe, nem a namorada, nem
o irmãozinho irrequieto. Foi aquele gigante meio desajeitado, calado e
bronzeado que, esbarrando num comissário de bordo, simplesmente saiu
correndo para a plataforma e tomou o filho nos braços.
O balão de oxigênio que antes se destinaria à namorada agora bem que
viria a calhar para o missionário. O grande pai agarrou-o, suspendeu-o do
chão e abraçou-o por um bom tempo. Ele só o abraçou e não disse nada. O
rapaz largou a bolsa, pôs os dois braços ao redor do pai e eles deram-se um
abraço muito apertado. Parecia que por um instante toda a eternidade parara,
e por alguns preciosos segundos o aeroporto de Salt Lake era o centro de todo
o universo. Era como se o mundo tivesse ficado em silêncio em respeito a um
momento tão sagrado.
Então pensei em Deus, o Pai Eterno, vendo Seu garoto sair para servir,
para fazer um sacrifício que não precisava fazer, arcando com Seus próprios
custos, por assim dizer, gastando tudo que levara a vida inteira para
conseguir. Naquele momento precioso não seria muito difícil imaginar aquele
Pai falando com certa emoção àqueles que pudessem ouvir : “Este é meu
Filho Amado, em quem me comprazo”. E também era possível imaginar
aquele Filho que voltava, dizendo: “Está consumado. Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”.
Eu não saberia dizer exatamente como um pai percorre a imensidão da
eternidade. Mas mesmo em minha limitada imaginação, posso visualizar esse
reencontro nos céus. E oro para que todos nós tenhamos um semelhante. Oro
para que alcancemos a reconciliação, o perdão, a misericórdia, o crescimento
e o caráter cristão que precisamos desenvolver se quisermos desfrutar
plenamente esse momento.
Fico assombrado ao ver que há chance para um homem cheio de
egoísmo, transgressões, intolerância e impaciência como eu. Mas se entendi
bem as “boas novas”, há chance — para mim e para todos os que estiverem
dispostos a manter a esperança e os esforços e a permitir que os outros gozem
do mesmo privilégio.

Surpreso estou que quisesse Jesus baixar

Do trono divino e minh’alma resgatar, (…)

Relembro que Cristo na cruz se deixou pregar;

Pagou minha dívida, posso eu olvidar?

Não! Não! E por isso a Cristo exaltarei

A vida e tudo o que tenho eu lhe darei. (…)

Que assombroso é! Assombroso, sim!

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