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RESENHA CRÍTICA: HISTORICIDADE

LEPETIT, Bernard. É possível uma hermenêutica urbana? In: LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana.
São Paulo: EDUSP, 2001, p.137-153.

JACQUES, P.B. Pensar por montagens. In: JACQUES, P.B., and PEREIRA, M.S., comps. Nebulosas do
pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar. Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 208-231.

SCHWARZ, Lilia M. Tempo, historicidade e história ou a falta dela, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume
47, n. 2,123-136 · 2013. Disponível em:

Anna Karoline Oliveira Santiago1

No início da década de 70, o filósofo e sociólogo Lefevbre (1970)2 descrevia a sociedade


urbana como uma definição e uma hipótese, resultados de um processo histórico contínuo e
descontíuo sobrepostos e de uma prática urbana. Após três décadas, o geo-historiador francês
Bernard Lepetit (2001) retoma essa reflexão e nos convida à pensar “a cidade como uma prática
social” (LEPETIT, 2001, p.145) através de dois pontos de tensão: um que absorve a
interpretação e a explicação como análises dos processos históricos e o outro sendo a própria
tensão temporal que perpassa a cidade, articulando as modalidades de presentificação do
passado em uma constante relação e valorização da memória enquanto conteúdo possível de ser
historicizado. Segundo Lepetit (2001, p.147):
“[...] o problema está menos em associar uma trajetória histórica e uma evolução
futura do que em estudar as modalidades de presentificação dos passados. As
sociedades urbanas não se alojam em conchas vazias encontradas por acaso: procedem
continuamente a uma reatualização e a uma mudança de sentido das formas antigas.
Elas as reinterpretam. (LEPETIT, 2001)”
Concentrando-se na história e na geografia urbana, Bernard Lepetit integrou a quarta
geração da Escola dos Annales na França, sendo influenciado pela Nova História Cultural que
ampliou o escopo das análises espaço-temporais, com uma crítica direcionada ao método
positivista histórico que vigorava no século XIX. Lepetit afirma que a cidade não é um
palimpseto, um manuscrito de intervenções históricas com vestígios do passado, pois isso
sugere uma visão simplista da história urbana a partir de uma progressão linear do tempo que
pressupõe uma perspectiva teleológica da História. Para Lepetit, as temporalidades ubanas não

1
Mestranda PPGPROCIDADE Projeto e Cidade (FAV/UFG). Contato: karoline@discente.ufg.br
2
LEFEVBRE, Henri. The Urban Revolution. University of Minnesota Press. Minneapolis, London. 1970
são síncrônicas, pois existem momentos diferentes que coexistem no espaço, provenientes de
diversos grupos sócio-culturais.
Nesse sentido, a historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarz (2013) dialoga com
Lepetit, ao reconhecer nos antrópologos culturalistas norte-americanos do século XIX uma
abordagem diacrônica das temporalidades urbanas, em oposição as percepções sincrônicas dos
funcionalistas ingleses que condenavam o evolucionismo pela subjetividade envolvida nas
análises avessas ao rigor científico. Ambas as perspectivas são cruciais para a antropologia,
entretanto Schwartz afirma que também devemos considerar as muitas maneiras pelas quais as
civilizações conceituam o tempo e a história. Segundo Schwartz, o tempo é uma construção
social e cultural, e sua compreensão depende de onde o observador se situa na sociedade, tendo
a diocronia como instrumento fundamental para análise das mudanças sociais contemporâneas.
Não havendo povo sem história, as críticas epistemiológicas do século XX ao viés
metodológico de uma historiografia linear e cumultativa culminaram em investigações da
história dos comuns e das experiências do cotidiano em contraposição à visão unidimensional
do tempo histórico. As arquitetas e urbanistas Paola Jacques e Margareth Pereira (2018),
repercutem essas críticas no texto “Pensar por montagens” através de uma abordagem teórica-
metodólogica das Passagens3 de Walter Benjamim que enfatiza a importância de compreender
o processo multifacetado da História, marcado por uma série de momentos descontínuos e
heterogêneos. Além da montagem literária de Benjamin, as autoras recorrem à iconologia do
intervalo de Aby Warbug através da coleção de paineis com recortes intercambiáveis, como um
legado metodológico que influencia as formas tradicionais e hegemônicas, particularmente da
história da arte, ao desafiar as relações simplistas entre memória e história.
Os textos de Lepetit (2001), Schwartz (2013) e Jacques; Pereira (2018) evidenciam a
necessidade do pensamento crítico diante dos desafios epistemológicos na criação de uma
historiografia que valoriza diferentes pontos de vista, as lacunas, imprevisibilidades e rupturas
do tempo. Lepetit (2001) traz no que chama de bifurcações, o rumo das trajetórias e nos
decompassos a pluralidade das temporalidades, evidenciando que a cidade é feita de
cruzamentos. Schwartz (2013) nos exemplifica através da sua experiência pessoal e do seu
arcabouço teórico-metodológico, como as múltiplas temporalidades e formas da história são
subjetivas. Finalmente, Jacques; Pereira (2018) sugere uma narrativa não linear da história
através das heterocronias, que reconhece o caráter multifacetado do tempo histórico e espaços
simultâneos que se interpenetram.

3
Passagens é uma obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1927-1940). É uma coleção de obras sobre a vida
urbana do século 19 em Paris, com foco nas ferragens da cidade. telhados com "arcadas" de vidro.

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