Você está na página 1de 15

DAVID HARVEY E A VIRADA MARXISTA NA GEOGRAFIA NOS ANOS 1970

Evânio dos Santos Branquinho


Universidade Federal de Alfenas-MG
evanio.branquinho@unifal-mg.edu.br

INTRODUÇÃO

O início dos anos 1970 marca um momento fundamental de renovação da ciência


geográfica, no encaminhamento de uma Geografia Crítica ou Radical, a partir de uma
maior articulação com o marxismo. Havia uma insatisfação com as abordagens da
Geografia neopositivista no período, em explicar o agravamento dos problemas urbanos,
as manifestações pelos direitos civis, entre outras questões sociais.
A conexão da Geografia ao marxismo, do ponto de vista epistemológico nunca foi
uma tarefa simples, articulando o espaço ao método materialismo histórico dialético. O
livro A justiça social e a cidade, de David Harvey, publicado em 1973, é uma obra de
referência desse movimento da Geografia e reflete os desafios desse direcionamento
teórico-metodológico e político.
Por outro lado, pode-se afirmar que a geografia também contribuiu com a
renovação do marxismo, participando do debate da questão espacial articulada à
abordagem temporal, mais comum ao materialismo dialético.

OBJETIVOS

Apresentamos como objetivo principal: compreender o movimento de renovação


da Geografia a partir da década de 1970 e sua articulação ao marxismo, tomando como
base as obras de David Harvey, especialmente o ensaio A justiça social e a cidade,
publicado em 1973. A partir de uma análise e interpretação desta obra, intentamos de
modo mais específico: discutir o contexto de elaboração deste ensaio, os debates sobre o

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
urbano nesse período, suas principais reflexões e o tratamento teórico-metodológico; suas
implicações, verificando em que medida ela contribui para o entendimento da sociedade
atual.

METODOLOGIA

Os procedimentos metodológicos principais são a pesquisa bibliográfica acerca


da ciência geográfica e das ciências sociais de obras referenciais que abordam o contexto
histórico e o movimento de transição da geografia ao marxismo a partir da década de
1970, desenvolvendo uma discussão epistemológica de reformulação das categorias da
geografia urbana, como espaço, cidade, segregação, e de como a geografia também
contribuiu para o movimento de renovação do próprio marxismo, ao propor uma
materialismo histórico-geográfico dialético ou uma ”dialética espacial”.
Portanto, procede-se a uma análise e interpretação considerando uma “crítica
externa e interna” deste material (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 48, 49), de seus
pressupostos teórico-metodológicos, correlacionando com as concepções de outros
autores que trataram a temática, com a exposição e problematização de seus principais
argumentos, os resultados alcançados e suas implicações.

CONTEXTO HISTÓRICO

Ao final da década de 1960, uma série de movimentos sociais, estudantis e


trabalhistas, como o maio de 1968, feministas, anti-racistas e contra a guerra do Vietnã,
sobretudo em cidades da Europa Ocidental e Estados Unidos, expuseram o momento
crítico de reprodução da sociedade capitalista. É nesse contexto que as ciências humanas
se desdobraram para compreender as tensões que ocorriam nas cidades, caracterizando
uma virada urbana nesses estudos; especialmente com um enfoque crítico e de
reformulação das próprias concepções do marxismo.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
Nesse sentido, tais abordagens visam uma mudança de enfoque das análises
marxistas prevalentes do circuito da produção para a esfera do consumo, e articulando-se
com a análise do Estado. O espaço urbano ganha relevância enquanto dimensão
estratégica e condicionante da reprodução socioeconômica e não apenas como um
produto desta.
Uma tríade de obras marxistas sobressai nessas discussões: O direito à cidade, de
Henri Lefebvre, de 1968; A questão urbana, de Manuel Castells, de 1972; e A justiça
social e a cidade, de David Harvey, em 1973. Essas obras tornaram-se referências para
os debates e estudos urbanos, que assumiram um caráter interdisciplinar
(GOTTDIENER,1997).
Em 1969, Harvey havia publicado Explanation in Geography, um tratado de
geografia teorético-quantitativa, em que objetivava uma maior fundamentação a esta
vertente da Geografia, explorando questões teórico-metodológicas. De um modo geral, a
Geografia urbana, até esse momento, fundamentava-se nas concepções de sítio e situação
de influência positivista ou na teoria de modelos e sistemas, do neopositivismo.
Nesse mesmo ano de 1969, Harvey chega aos Estados Unidos para lecionar na
Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, onde chama a atenção as lutas pelos direitos
civis e os problemas de segregação do gueto. Sua tentativa de compreender tais questões
o levou a iniciar a transição para o marxismo. Pois não verificava na geografia teorética
um tratamento adequado dessas questões (HARVEY, 2001).
Entretanto, as manifestações da década de 1960 e 1970, favoreceram os debates
mais à esquerda e a procura por obras mais críticas possibilitaram uma maior difusão e
acesso a essas temáticas e publicações.
Nesse período, a Geografia anglo-americana é marcada pelas discussões acerca de
sua relevância na sociedade e de sua ação na justiça social. O periódico Antipode, fundado
em 1969, também teve um importante papel com a publicação de trabalhos mais críticos.
É nesse contexto que David Harvey, até então ligado à Geografia Teorética, assume cada
vez mais uma perspectiva marxista em seus estudos (PEET, 1977; JOHNSTON, 1979).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
A ORGANIZAÇÃO DE A JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE

A obra, publicada em 1973, trata-se de um conjunto de ensaios estruturado em


três partes: a primeira, intitulada de “formulações liberais”; a segunda, de “formulações
socialistas”; e a terceira, de “síntese”. Destacarei alguns pontos essenciais apresentados
em cada capítulo e uma breve discussão destes.
Também apresenta o eixo da abordagem desenvolvida: articular os processos
sociais e as formas espaciais, nessa intersecção, a proposição de uma teoria do urbanismo,
para a qual é fundamental uma conceituação de espaço.
Nesse sentido, acerca da natureza do espaço, este compreenderia três modos:
absoluto, relativo e relacional, este último apoiado em Leibniz. O que sobressai nesta
definição é a relatividade das interações espaciais inerentes aos seus componentes, a
exemplo das relações centro-periferia.
Em seguida, o autor substitui a questão “o que é o espaço?” por “o que é isso que
as diferentes práticas humanas criam, fazendo uso de distintas conceituações de espaço?”
(HARVEY, 1973, p. 5), indicando que a correta conceituação do espaço é resolvida na
prática humana. Demonstra assim sua orientação ao materialismo histórico dialético,
superando o método hipotético-dedutivo da geografia teorética-quantitativa.

Primeira parte: as formulações liberais


No capítulo I, denominado “Processos sociais e forma espacial: (1) os problemas
conceituais do planejamento urbano”, indica o problema de conceber uma teoria da cidade
a partir da especialização da ciência e dos dualismos na abordagem dos processos sociais
e da forma espacial.
Salienta que entre a imaginação sociológica, isto é a experiência das relações
sociais no tempo, e a imaginação geográfica, ou consciência espacial, situa-se a resolução
do conceito de espaço, pois cada forma de atividade social define seu espaço.
Acerca dos problemas metodológicos na intersecção, a partir dos quais discute as
dificuldades em função dos sistemas de linguagem diferentes entre a ciência sociológica

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
e a geográfica. O resultado seria confusões entre as variáveis empregadas, entre causas e
efeitos espaciais e sociológicos, concluindo que são problemas insolúveis.
As resoluções mais simples resultariam em determinismo espacial ou
determinismo social. A solução seria então “considerar a cidade como um sistema
dinâmico complexo onde forma espacial e sociológica estão em contínua interação” (Ibid,
p. 34).
No capítulo II, “Processos sociais e forma espacial: (2) A redistribuição da renda
real em um sistema urbano”, um desdobramento do primeiro, com escopo na aplicação
das metodologias quantitativas, seus resultados e limites.
A partir disso, o autor busca discutir algumas condições que agem na
redistribuição de renda, entre estas a rapidez de troca e o grau de ajustamento em um
sistema urbano. Esses estudos apoiam-se em análises de equilíbrio (Ótimo de Pareto), ou
seja, em uma alocação ótima de recursos em que a distribuição de renda é dada.
Entretanto, justifica que qualquer sistema urbano está em permanente estado de
desiquilíbrio diferencial. As implicações, mais uma vez, são que “não podemos usar
análises de equilíbrio, mas isso não nos livra de utilizá-las” (Ibid, p. 44).
O autor discute os efeitos das exteriorizações, ou externalidades, e a capacidade
destas ocasionarem economias ou deseconomias, tais como uma praça pública e fontes
de poluição. Especialmente, na área política, onde a tentativa de organizar a distribuição
dos efeitos externos para obter vantagens de renda acaba constituindo uma importante
fonte de desigualdade.
Observa as diferentes oportunidades entre o gueto no centro e os subúrbios nas
cidades estadunidenses, em função das mudanças da localização do emprego e da
moradia, junto à acessibilidade aos transportes, afirmando que houve uma redistribuição
de riqueza regressiva. Daí a necessidade de intervenção pública, mas demonstra pouca
esperança de alcançar uma “solução de equilíbrio natural”.
Harvey chega à conclusão de que um mercado livre não dá origem a preços que
levem a um Ótimo de Pareto, por isso deve ter uma ação coletiva para funcionar. O
mercado de moradias é sensível a pressões econômicas e políticas, assim os mais fracos

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
sofrem mais, “a menos que existam controles institucionais de correção de uma situação
que emerge naturalmente mas que é eticamente inaceitável” (Ibid, p. 55).
Nesse quadro, o autor encaminha a discussão aos processos políticos e à
redistribuição da renda real, o que leva a interpretar a atividade política da cidade como
um modo de lutar e barganhar o uso e o controle dos “mecanismos ocultos” da
redistribuição.
Harvey sintetiza essa condição observando que os grupos de renda mais alta e
melhor educados tendem a fazer uso ativo do espaço enquanto os de renda mais baixa
tendem a ficar à mercê do espaço. Se os recursos significam coisas diferentes para pessoas
diferentes, como podemos medir seu impacto sobre a renda real dos indivíduos. Harvey
inquiri: como medir o medo, o estresse?
Portanto, há alguma estrutura ou série de estruturas espaciais que maximizem a
equidade e eficiência do sistema urbano ou pelo menos maximizem nossa habilidade em
controlar os poderosos mecanismos ocultos que produzem a redistribuição? A resposta
seria a provisão e controle de bens públicos impuros1 no sistema urbano.
Sobre a atuação do mercado, o autor aponta que há imperfeições e
interdependências suficientes para pôr em dúvida qualquer suposição de eficiência
competitiva “natural”, mesmo dada uma distribuição de renda aceitável eticamente, o que
justifica a interferência pública.
Em paralelo, não é simples determinar uma teoria da localização da atividade
pública. Como no setor privado algum tipo de arranjo hierárquico na localização será
necessário, a exemplo da localização das atividades médicas.
O problema do ordenamento estaria em parte na modificação contínua nas
localizações das fontes dos custos externos. Além disso, as variações nos valores culturais
e daí na variação das necessidades e demandas da população complicam as decisões

1
Bens públicos impuros são aqueles que “não podem ser providos através do mecanismo normal do
mercado porque é difícil determinar uma série de preços” (Harvey, 1973, p. 72), podem impactar de modo
positivo, negativo ou misto as condições de moradia, a exemplo dos serviços educacionais, bombeiros ou
poluidores do ar.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
políticas, o mesmo vale para a moradia. Não possui um nível de informação suficiente,
agindo pela pressão do voto, o que acentua a desigualdade.
Propõe que qualquer organização territorial deve ser flexível e reativa à dinâmica
do sistema urbano, sendo este o problema mais difícil de resolver. Fica evidenciado ai
uma crítica ao planejamento territorial, concebido de um modo rígido em relação às
mudanças.
Harvey inicia o capítulo III, “A justiça social e os sistemas espaciais”, com o
seguinte questionamento: o pensamento normativo tem papel importante na análise
espacial. A justiça social é um conceito normativo mas não entra na análise geográfica?
Os instrumentos usados na geografia têm como base a teoria da localização, que
visa à eficácia dos padrões, enquanto as questões de distribuição são deixadas de lado,
principalmente por envolverem desagradáveis juízos éticos e políticos.
Esclarece então que o objetivo é construir uma teoria normativa de alocação
espacial baseada em princípios de justiça social, na qual o propósito é a articulação da
eficácia e da justiça social.
Segundo Harvey, o conceito de justiça social deve ser pensado como um princípio
para resolver direitos conflitivos: “A justiça social é uma aplicação particular de
princípios justos e conflitos que surgem da necessidade de cooperação social na busca do
desenvolvimento social” (Ibid, p. 82). Assinala que para alcançar justiça social sem alterar
basicamente a totalidade do processo de circulação do capital, seria impossível, pois, os
fins capitalistas não são compatíveis com os objetivos da justiça social.
A economia capitalista funciona por meio da escassez artificial a fim de manter
os preços estáveis através de uma maior demanda. Essa lógica de acumulação pode ser
associada ao urbanismo, que se baseia na apropriação do produto excedente.
A exploração singular do pensamento em eficiência constitui um endosso tácito
do status quo. Portanto, é necessário explorar a eficiência e a distribuição conjuntamente.
Harvey encerra o capítulo de um modo bastante crítico, apontando para uma
abordagem que articule à totalidade do modo de produção capitalista e suas contradições

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
enquanto produtor de desigualdades e a necessidade de um engajamento político
contraposto ao status quo, indicando a transição à segunda parte.

Segunda parte: as formulações socialistas


No Capítulo IV, “A teoria revolucionária e contra-revolucionária em Geografia e
o problema da formação do gueto”, inicia esta seção com uma questão central: “Como e
por que tentaríamos chegar a uma revolução no pensamento geográfico?” (Ibid, p. 103).
Harvey afirma que a “revolução quantitativa” alcançou o seu limite e identifica a
incapacidade desta em explicar os problemas ecológico, urbano e econômico colocados
naquele momento. Para impulsionar uma revolução epistemológica, o autor propõe uma
articulação de certos aspectos do positivismo, materialismo e fenomenologia.
O propósito é aplicar esses pressupostos à questão da formação do gueto, a qual a
teoria mais evidente é o uso do solo urbano. Harvey critica a teoria zonal concêntrica da
Escola de sociologia de Chicago, que, apoiada em uma abordagem ecológica, falha em
explicar o gueto. Enquanto Engels, que também aborda as zonas concêntricas na cidade,
mas interpretou em termos econômicos de classe, alcança melhor resultado.
Sobre o problema nas cidades americanas dos pobres localizarem-se nos guetos
na área central, próximos às áreas de emprego, e os ricos nos subúrbios, os quais têm mais
condições de mobilidade. O problema é agravado pois a oferta de emprego acompanhou
as áreas mais valorizadas nos subúrbios.
As políticas destinadas a corrigir esse problema têm como base restituir o
equilíbrio que fora rompido. Mas tais políticas não alcançam a raiz do problema pois,
“Essas soluções são liberais no sentido de que reconhecem a iniquidade, mas buscam
curá-la dentro de um forte mecanismo social existente” (Ibid, p. 117).
Harvey defende que a única política válida é eliminar as condições que tornam
verdadeira a teoria de von Thunen. Para isso, é necessário eliminar a competição crescente
pelo uso do solo, por meio de “um mercado do solo urbano socialmente controlado e um
controle socializado do setor de moradias” (Ibid, p. 118).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
Afirma que o teste da teoria deve ser feito para mostrar que o mecanismo de
mercado competitivo está falhando, como as contradições do gueto: as áreas de maior
adensamento são também as áreas com maior número de casas vagas, a exemplo de
Baltimore.
Esse contexto deve considerar o modo de produção baseado na escassez e na
extração da mais-valia: “Formulações baseadas na obtenção da igualdade na distribuição
são também contra-revolucionárias, a menos que elas sejam derivadas do entendimento
de como a produção é organizada para criar mais-valia” (Ibid, p. 126).
A partir dessa crítica, Harvey assevera que uma nova teoria de caráter
revolucionário, deve contemplar novas ideias, conceitos e teorias em um nível superior e
em oposição ao sistema de pensamento estabelecido.
No capítulo V, “Valor de uso, valor de troca e a teoria do uso do solo urbano”, o
valor de uso é a base conceitual dos tratamentos geográficos e sociológicos tradicionais
dos problemas de uso do solo e constitui uma ponte entre estes.
O solo e suas benfeitorias são na economia capitalista contemporânea
mercadorias, porém, em função de sua imobilidade, o solo apresenta estratégias diferentes
de valorização, a localização absoluta confere monopólio, da propriedade privada; como
implica em um bem de alto valor, o capital financeiro é atrelado a este mercado.
Os valores de uso do solo urbano refletem um misto de necessidade e
reivindicações sociais, idiossincrasias, hábitos culturais etc. Todavia, as análises se
concentram no valor de uso ou no valor de troca e muito pouco como os dois podem ser
relacionados.
Alega que geógrafos e sociólogos focaram suas análises nos padrões de uso (zonas
concêntricas, setoriais e núcleo múltiplo) e embora muito possa ser obtido por tais
descrições, estudos como esses não contemplam uma teoria do uso do solo urbano.
Em relação à teoria microeconômica do uso do solo urbano, caracteriza os atores
no mercado de moradia, onde cada um tem um modo distinto de determinar o valor de
uso e o valor de troca. Os principais grupos são: a) os usuários de moradia; b) corretores

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
de imóveis; c) proprietários; c) incorporadores e indústria da construção; e) instituições
financeiras; f) instituições governamentais.
Destaca que é difícil agrupar tais atores numa análise, pois o que é valor de uso
para um é valor de troca para outro, e cada um concebe o valor de uso diferentemente.
O fenômeno do monopólio de classe é muito importante para explicar a estrutura
urbana, o que os modelos de equilíbrio não alcançam. Nesse aspecto, aponta uma
conclusão essencial: “[...] o rico pode dominar o espaço enquanto o pobre está aprisionado
nele” (Ibid, p. 146).
Como solução propõe investigar o significado e o papel da renda como um
esquema alocativo no sistema urbano junto à suposição de que a teoria do equilíbrio
espacial geral deve ser buscada através da fusão da teoria da renda do solo (especialmente
em Marx) com a teoria da localização.
Sintetiza que o espaço urbano não é absoluto, relativo e relacional, mas todos os
três simultaneamente. Dentro dessa acepção, o valor de qualquer parcela do solo
“contém”, atualmente, os valores de todas as outras parcelas, assim como as expectativas
supostas de valores futuros.
Este é o capítulo principal da obra, onde o autor alcançou mais resultados na
construção de uma teoria do solo urbano. A dinâmica dos atores no espaço urbano
constitui atualmente uma importante abordagem da Geografia urbana, atualizando a teoria
da renda da terra de Marx.
Vemos o esforço de Harvey para articular os conceitos de espaço absoluto, relativo
e relacional, integrar a teoria da localização e da renda da terra, visando desenvolver uma
teoria do uso do solo urbano, mas faltou explicar porque a terra urbana pode não conter
valor mas ter preço e explicar a precificação dessa mercadoria particular.
Harvey retomará essas questões em estudos posteriores, aprofundando-se no
marxismo, o que culminará em Os limites do capital, publicada em 1982, depois de dez
anos de estudos, sua obra principal, segundo o autor.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
No Capítulo VI, “O urbanismo e a cidade – um ensaio interpretativo”, prossegue
na articulação com as categorias mais amplas do marxismo, a exemplo do modo de
produção, assim como a mudança do capitalismo concorrencial para o monopolista.
No tópico Modos de produção e modos de integração econômica, o autor define:
“A cidade pode, por isso, ser olhada como um ambiente tangível construído – um
ambiente que é um produto social” (Ibid, p. 168).
O conceito de “ambiente construído” aparece aqui em elaboração, e será uma das
principais concepções do autor sobre o urbano, visando às interações dos processos
sociais e formas espaciais; constitui um dos conceitos chave da Geografia Crítica.
A partir daí, realiza uma regressão histórica para entender a produção do
excedente que gera a cidade, apoiado em Polanyi, caracteriza três modos de integração
econômica: a reciprocidade, ligada a comunismo primitivo; a redistribuição, referente a
sociedades teocráticas, como no feudalismo; e o mercado de troca, à sociedade capitalista.
Portanto, as cidades formam-se através da concentração geográfica de um produto
social excedente. Nisso reside a relação crucial entre o urbanismo e o modo de integração
econômica
Harvey discute as condições principais na base econômica que permitiram a
redistribuição e ao recente mercado de troca emergirem como modos de integração
econômica. Assim conclui que o urbanismo nas sociedades capitalistas pode ser analisado
em termos de criação, apropriação e circulação de mais-valia.
Propõe o conceito de economia espacial voltado ao entendimento do excedente
em relação à geografia e a ciência regional apoiadas basicamente na demanda e oferta.
Preconiza uma abordagem mais histórica para interpretar as formas existentes de
urbanismo, avaliando o equilíbrio de influência entre os vários modos de integração
econômica em determinada época, e examinar a forma assumida desses modos.
Em relação ao capitalismo contemporâneo salienta sua tendência concentradora,
dando origem a monopólios, que entram em contradição com o próprio modo de
produção, exigindo mudanças no Estado como regulador dessas relações. Nesse aspecto,

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
procura atualizar as abordagens de Marx ao contexto de um capitalismo monopolista, de
uma economia cada vez mais financeira e globalizada.
Em conclusão reafirma a necessidade de entender o espaço urbano, no sentido da
formulação de uma teoria urbana, especialmente no caso das metrópoles, em termos da
circulação e apropriação da mais-valia, e assim também a concepção de uma economia
espacial:

Terceira parte – síntese


No capítulo VII, Conclusões e reflexões, retoma as questões apresentadas na
introdução e discutidas ao longo dos capítulos. Neste último capítulo, o propósito é
realizar uma síntese do conteúdo, consubstanciando o movimento do método dialético.
Em Ontologia, afirma que os dois pilares de Marx são a concepção da realidade
como uma totalidade e a concepção dessas partes como relações abertas.
Procede a uma discussão acerca de estrutura e superestrutura, apoiado em Piaget
e no estruturalismo, um dos principais debates epistemológicos na época. Porém, esboça
uma posição ambígua em relação a essa corrente, conforme discutiremos mais à frente.
Sobre as diferenças de abordagem do trabalho entre as duas partes, salienta que a
Parte1, consiste numa totalidade de seções interativas, mas de modo contingente como
em um agregado, o que acaba, segundo o autor, em um relativismo desproporcional.
Enquanto a Parte 2 contém uma metodologia apropriada, a sociedade é vista como
uma série de estruturas em processo contínuo de transformação. O conceito de modo de
produção compreende estruturas que estão em conflito entre si, chave para entender as
questões de distribuição.
Em Epistemologia, salienta que sujeito e objeto devem ser compreendidos, não
como entidades, mas como relações. Essa concepção é muito diferente do empirismo
tradicional da Geografia. Argumenta que “É irrelevante perguntar se os conceitos, as
categorias e as relações são verdadeiras ou falsas. Devemos perguntar, antes, o que é que
as produz e o que elas se destinam a produzir” (Ibid, p. 257).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
Assim, de modo dialético, afirma que a transformação radical de método entre as
partes 1 e 2, não nega as formulações da parte 1, ela enriquece ao assimilá-las a uma
ordem mais alta de conceitos.
Harvey assinala que as questões predominantes nos anos 1960 foram as da
urbanização, ambiente e desenvolvimento econômico. Reforça que estas devem ser
entendidas de modo interdisciplinar, cujo único método capaz de integrá-las é o
materialismo dialético em sua concepção de totalidade.
Em A natureza do urbanismo, Harvey procura responder se o urbanismo pode ser
considerado uma estrutura, assim como questiona Henri Lefebvre sobre esse tema.
Sobre o urbanismo ser considerado uma estrutura, Lefebvre defende que este não
é apenas uma superestrutura a reboque das relações de produção, ele torna-se uma força
produtiva. Harvey questiona a inversão do urbanismo que agora domina a sociedade
industrial: “A produção, apropriação e circulação de mais-valia não se tornaram
subordinadas à dinâmica interna do urbanismo, mas continuam a ser reguladas pelas
condições derivadas da sociedade industrial” (Ibid, p. 269). Considera uma hipótese
difícil de ser provada.
Harvey faz uma referência importante, que aponta à ideia de produção do espaço:
“Um elemento significativo neste processo geral de diferenciação é que o espaço criado
substitui o espaço efetivo [ecológico] como princípio dominante de organização
geográfica” (Ibid, p. 267).
Aplica o método regressivo-progressivo do materialismo histórico dialético tendo
como referência o valor excedente como base para compreender a formação da cidade e
sua evolução, visando à elaboração de uma teoria do urbanismo, articulada à totalidade
do modo de produção capitalista contemporâneo.
Entretanto, a inflexão ao marxismo em um curto espaço de tempo deixou lacunas
teórico-metodológicas. Harvey ainda estava preso ao debate na época, do estruturalismo
e de um marxismo ortodoxo, sobre estrutura e superestrutura, que atualmente está
superado. Enquanto, Lefebvre é crítico ao estruturalismo, e seu foco está na elaboração
de uma teoria da produção do espaço (LEFEBVRE, [1974] 2000).

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
O debate na época acerca do estruturalismo, implica um esforço de crítica e
superação, que significa também um embate com ele mesmo, evidenciado nos primeiros
capítulos, no tratamento da cidade como sistema urbano, de cunho quantitativo, e nos
últimos capítulos, o esforço de chegar ao conceito de ambiente construído, na junção do
social e do espacial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Decorridos quase cinquenta anos da publicação de A justiça social e a cidade, que


se tornou uma referência na transição da geografia ao marxismo, indubitavelmente muita
coisa mudou e diversos temas abordados parecem datados, mas naquele momento eram
um debate necessário para avançar o conhecimento geográfico - teoria urbana, a exemplo
dos conceitos de espaço e ambiente construído, na intersecção entre as ciências sociais e
a geografia.
David Harvey não se eximiu ao esforço de abordar os complexos mecanismos de
distribuição de renda, os limites dos métodos quantitativos e a quem eles servem,
denunciando-os mesmo na primeira parte das formulações liberais, preparando-se para a
superação desses procedimentos, o que implicou também assumir uma posição política
mais radical e articulada à prática.
Portanto, pode-se afirmar que não há uma cisão entre as duas partes do ensaio, há
dialeticamente uma subsunção da primeira na segunda parte.
Nesse sentido, a questão ética da justiça social, que acaba num relativismo e desvia
uma posição que é iminentemente política. Como uma questão ética, a solução é colocada
no próprio individuo, esvaziando a questão social e política. Assim, Harvey afirma que a
primeira parte é liberal pois tais análises procuram uma solução reformista, dentro do
próprio capitalismo e não uma superação desse modo de produção.
Se as teorias de localização hoje estão superadas e, Harvey deu uma grande
contribuição nesse sentido, a perspectiva do homo economicus prevalece junto com o
neoliberalismo.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758
A ideia de justiça social encontra-se cooptada por programas de gestão urbana
neoliberais. No planejamento urbano, os princípios da função social da propriedade,
assim como o “direito à cidade”, apesar de alcançarem o estatuto de leis, como o Estatuto
da Cidade, aprovado no Brasil em 2001, foram banalizados, assim como o ideário da
reforma urbana.
Como pensar as manifestações anti-racistas e os problemas do gueto no final da
década de 1960 às jornadas de junho de 2013, especialmente sobre os problemas da
mobilidade em várias cidades brasileiras e o momento atual? As situações não são as
mesmas, mas os problemas permanecem ou se avolumam, as lutas contra o racismo
continuam, a criminalização de pobres, pretos e periféricos, assim como de movimentos
sociais e LGBTQ.
,
REFERÊNCIAS

CASTELLS, Manuel [1972]. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
GOTTDIENER, Mark [1993]. A produção social do espaço urbano. São Paulo:
EDUSP, 1997.
HARVEY, David [1969]. Explanation in geography. London: Edward Arnold, 1969.
HARVEY, David [1973]. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
HARVEY, David [1982]. Os limites do capital. Sâo Paulo: Boitempo, 2013.
HARVEY, David [2001]. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume,
2005.
JOHNSTON, R. J. [1979]. Geografia e geógrafos: a geografia humana anglo-americana
desde 1945. São Paulo: DIFEL, 1986.
LEFEBVRE, Henri [1968]. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
LEFEBVRE, Henri [1974]. La production de l'espace. Paris: Éditions Anthropos, 2000.
MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria [1985]. Fundamentos de
metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003.
PEET, Richard [1977]. O desenvolvimento da Geografia Radical nos Estados Unidos.
In: CHRISTOFOLETTI, Antonio (org). Perspectivas da Geografia. São Paulo: Difel,
1985, p. 225-254.

Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Diretoria Executiva Nacional (2020-2022) –


Av. Lineu Prestes, 338, Geografia/História – Cidade Universitária/USP, São Paulo – SP, CEP:
05508-900, telefone: (11) 3091-3758

Você também pode gostar