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geográfico que possa ser designada dessa forma (Moreira, 2002, p. 47). Outros preferem
falar na existência de várias geografias críticas, já que a expressão no plural seria mais
adequada para expressar a grande diversidade de pensamento dos geógrafos que se
dizem críticos e radicais (Vesentini, 2001). Mas, com base num cotejamento de vários
trabalhos que trataram do assunto (Campos, 2001; Andrade, 1994, p. 76; Abreu, 1994, p.
59; Oliveira, 1991; Vesentini, 1986; Moraes, 1984), é possível afirmar que o elemento
comum mais importante entre os geógrafos críticos é o objetivo manifesto de elaborar
uma teoria crítica radical do capitalismo pelo estudo do espaço e das formas de
apropriação da natureza. Nesse sentido, a geocrítica não deixa de ser um ramo da teoria
social crítica, tradição de pensamento que engloba os autores marxistas e inúmeros
outros intelectuais que produzem seus trabalhos partindo do interesse assumido de
formular uma crítica radical à sociedade capitalista.
Além de todos esses pressupostos comuns aos vários geógrafos identificados e/ou
auto-identificados como críticos ou radicais, cumpre mencionar ainda outro denominador
comum, que é a larga e incisiva influência do marxismo, conforme já foi ressaltado por
vários autores (Diniz Filho, 2003; 2002; Gomes, 2003, p. 274-303; Campos, 2001, p. 14;
Silva, 1984, p. 133). No fundo, isso também é reconhecido por Ruy Moreira ao falar do
caráter “hegemônico” do marxismo na renovação crítica, ainda que enfatizando a
heterogeneidade teórico-metodológica e política desse processo (Moreira, 2000, p. 34-
35). E, se é verdade que poucos autores hoje em dia se propõem a elaborar uma
geografia marxista, isso em nada alterou a hegemonia da geocrítica no Brasil, pois o que
tem havido é somente uma integração entre abordagens marxistas, humanistas e pós-
modernistas com o objetivo de renovar as críticas dos geógrafos ao capitalismo (Diniz
Filho, 2002). Essa questão será discutida com maiores detalhes nos capítulos 1 e 2.
Filho, 1988, p. 3), os quais, presentes nas obras de autores tão diferentes quanto Ratzel,
La Blache e Hartshorne, foram postos em xeque pelo desenvolvimento urbano-industrial,
como a concepção de “ciência de síntese”, por exemplo (Diniz Filho, 2000, p. 8).
Por sua vez, Haesbaert reflete sobre temas como exclusão e ordenamento territorial
trabalhando quase exclusivamente com autores filiados à teoria social crítica, isto é, a
uma tradição de pensamento que se define pela negação do princípio da neutralidade do
método e pelo interesse manifesto de empreender uma crítica radical ao capitalismo e às
suas instituições fundamentais. É realmente visível o predomínio amplo de teóricos
radicais na bibliografia usada por esse autor, que incluem, além de Marx e Engels, uma
gama de marxistas, pós-modernistas e ecléticos, tais como Milton Santos, David Harvey,
Marcelo Lopes de Souza, Carlos Walter Porto Gonçalves, José de Souza Martins, Gilles
Deleuze, Félix Gattari, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Boaventura de Souza Santos
(Haesbaert, 2006; 2004). Não surpreende, pois, que esse autor reproduza um dos
pressupostos fundamentais da geocrítica enumerados anteriormente, qual seja, a tese de
que a lógica do capitalismo tem responsabilidade direta nos problemas econômicos e
socioespaciais (sejam eles reais ou apenas supostos), como se vê nesta passagem:
Se não há exclusão social, como defendem muitos autores, pois ninguém está
completamente destituído de vínculos sociais, e se também não há exclusão territorial ou
desterritorialização em sentido absoluto, pois ninguém pode subsistir sem território,
existem, entretanto, formas crescentes de precarização social que implicam muitas vezes
processos de segregação, de separação/”apartheid” – ou, como preferimos, de reclusão
territorial, uma reclusão que, como todo processo de des-territorialização (sempre
dialetizada), dentro da lógica capitalista dominante, envolve, muito mais do que o controle
territorial e a comodidade social de uma minoria, a falta de controle e a precarização
socioespacial da maioria (Haesbaert, 2004, p. 36 – itálico no original).
Apesar de fazerem afirmações como essas, Souza e Haesbaert não concordam com a
avaliação de que seus trabalhos são exemplos de geografia crítica, conforme eu já tive
oportunidade de verificar. Durante a sessão de perguntas que se seguiu à conferência O
mito da desterritorialização, (Haesbaert, 2009), comentei que Haesbaert trabalha com
autores que podem ser classificados como pós-modernos e que suas análises se
aproximam da geografia crítica, preâmbulo que serviu para que eu indagasse se ele
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classificaria sua obra como pós-moderna e/ou como geocrítica, ou ainda se ele avalia que
seus trabalhos não se enquadram em classificações desse gênero. Sua resposta foi que
ele não se preocupa em classificar o próprio trabalho e que sempre teve a intenção, como
os acadêmicos geralmente têm, de construir um ponto de vista próprio. Como exemplo
disso, afirmou que sua dissertação de mestrado, que versa sobre identidade regional na
Campanha Gaúcha, trabalhava bastante com referenciais marxistas, mas não pode ser
caracterizada como uma aplicação do materialismo histórico dialético à geografia porque
também se baseou na visão de Cornelius Castoriadis sobre a dialética e sobre a
concepção de totalidade aberta.
Não fiz nenhum comentário à resposta porque não se tratava de um debate, mas, pelo
que já foi mencionado aqui, é fácil perceber que essa combinação de marxismo com o
trabalho de Castoriadis está perfeitamente de acordo com o tipo de ecletismo próprio da
geocrítica, o qual consiste numa combinação de autores que, embora de tendências
teóricas e metodológicas heterogêneas, convergem quanto ao objetivo de empreender
uma crítica radical ao capitalismo e, na maior parte das vezes, também no esforço de
refletir sobre as possibilidades de superação desse modelo de sociedade. Não por acaso,
há mais de vinte anos que Castoriadis, Marx, Foucault e Lefebvre são citados entre os
autores que vinham servindo de base para a construção da geografia crítica (Vesentini,
1985, p. 57), o que é mais uma demonstração do vínculo entre o pensamento de
Haesbaert e essa corrente de pensamento.
Postura idêntica a essa foi manifesta por Marcelo Lopes de Souza na sequência da
palestra Da “arqueologia” à “genealogia”: balanço e perspectivas dos vínculos entre a
geografia e o pensamento libertário (Souza, 2009). O autor define o chamado
“pensamento libertário” como uma tradição intelectual que se propõem a fazer a crítica
tanto do capitalismo quanto do socialismo burocrático, a qual abrange autores como
Foucault e Castoriadis, entre outros. Ou seja, alguns dos mesmos autores que Vesentini
já indicava como influências importantes para a geografia crítica há mais de vinte anos.
Do mesmo modo, Souza indica Reclus e Kropotkin como clássicos da geografia que
teriam sido “marginalizados” e que careceriam de maior valorização, na mesma linha do
que já diziam vários geógrafos críticos desde os anos 1980, conforme visto. Após a
palestra, fiz a Souza exatamente o mesmo comentário introdutório e as mesmas
indagações que já havia endereçado antes para Haesbaert. Ele discordou que autores
como Castoriadis possam ser classificados como pós-modernos e, com relação à sua
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própria obra, Souza respondeu apenas: “não sei, nunca pensei nisso; acho que isso não é
pertinente; quem tiver a preocupação de me classificar que o faça”.
Mas por que um autor que passa cerca de uma hora e meia explicando e defendendo
a abordagem do “pensamento libertário” e dos intelectuais que a praticam acha que não é
pertinente definir seu próprio trabalho como uma manifestação dessa linha de
pensamento na geografia, situando-se assim no âmbito da geografia crítica? A resposta
óbvia é que o tipo de influência teórico-metodológica, ética e política que informa os
trabalhos de Souza, por seu caráter anticapitalista explícito, já é tão bem aceito entre os
geógrafos que definir-se como geocrítico serviria apenas para explicitar a identidade do
autor com quase todos os outros trabalhos de peso publicados no Brasil nas últimas
décadas, não a originalidade do seu pensamento. E qual acadêmico não deseja ser o
mais original possível?
Ora, a forma como Haesbaert e Souza pautam suas pesquisas pelos pressupostos e
referenciais teórico-metodológicos da geocrítica, ao mesmo tempo em que não se
consideram integrantes dessa corrente, é sintomático da situação atual da geografia. Nos
dias de hoje, são poucos aqueles que se rotulam nesta ou naquela vertente de
pensamento geográfico, bem ao contrário do que aconteceu nas fases de efervescência
das “revoluções” tentadas pela geografia quantitativa e pela geocrítica. Apesar disso,
elaborar diagnósticos catastrofistas sobre temas como violência urbana, ecologia e
exclusão, para em seguida atribuí-los à lógica do capitalismo e à democracia
representativa, soa para os geógrafos atuais como se fosse a enunciação de verdades
evidentes por si mesmas, e não como a formulação de hipóteses que precisam ser postas
à prova. Os pressupostos da geografia crítica se entranharam tanto no modo de pensar
dos geógrafos que eles já não reconhecem discursos desse tipo como teorias próprias de
uma determinada corrente intelectual, pois é como se os emissores desses discursos
estivessem mencionando dados tão notórios quanto “Cabral chegou ao Brasil em 1500”. É
por isso que os pressupostos da geocrítica são repetidos ininterruptamente por quase
todos os geógrafos e, mesmo assim, há quem diga que a geografia crítica já acabou ou
que nunca existiu como corrente específica de pensamento geográfico!