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Confins

Revue franco-brésilienne de géographie / Revista


franco-brasilera de geografia
8 | 2010
Número 8

Relações da sociologia com a geografia


Paul Vidal de la Blache
Tradutor: Guilherme Ribeiro

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/confins/6302
DOI: 10.4000/confins.6302
ISBN: 978-2-8218-0636-8
ISSN: 1958-9212

Editora
Hervé Théry

Refêrencia eletrónica
Paul Vidal de la Blache, « Relações da sociologia com a geografia », Confins [Online], 8 | 2010, posto
online no dia 12 março 2010, consultado o 02 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/
confins/6302 ; DOI : 10.4000/confins.6302

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Relações da sociologia com a geografia 1

Relações da sociologia com a


geografia 1
Paul Vidal de la Blache
Tradução : Guilherme Ribeiro

NOTA DO EDITOR
Nota do Tradutor: esta palestra fez parte das Conferências da École des Hautes Études
Sociales e foi publicada na Revue Internationale de Sociologie, 12ème année, n. 5, mai 1904. Sobre
tais conferências, Vidal faz, em nota, menção aos três últimos números da revista acima
citada.

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1 Há um campo comum onde as ciências


sociológicas se encontram com a geografia
já que, no estudo que faz da terra, esta não
saberia se desinteressar do homem. Nas
lições proferidas nesta Escola, muitas vezes
nos dedicamos a manifestar o que há de
geográfico em certos fatos sociais 2.
Inúmeros são os exemplos que nos
mostram causas geográficas agindo através
de outras causas, e pode-se mesmo dizer
que, em nossas sociedades avançadas, é
raro que os fenômenos se apresentem de
outro modo senão em estado de
combinação e repercussão recíprocos.
Assim, se convém estudar os fatos em sua
complexidade real, é necessário não
esquecer porém que, a despeito de seus
frequentes e inevitáveis encontros, as
ciências sociológicas e as ciências geográficas são de ordem diferente. Para elas, seria
lastimável ignorarem-se mutuamente; contudo, devem guardar consciência de sua
autonomia e levar em conta tanto as diferenças que as separam quanto as afinidades que
as unem. Esse é o preço pela reciprocidade de seus serviços.
2 Como geógrafo, tentarei mostrar por qual via a geografia, sem renunciar a seu método, foi
conduzida a encontrar algumas das questões que preocupam as ciências sociológicas.
3 I. O ponto de partida da geografia humana é o mesmo que o da geografia dos animais e das
plantas: trata-se de estabelecer qual é a repartição que a espécie humana ocupa no globo
– em grupos numericamente muito desiguais e apresentando muitas variedades entre si.
Essa repartição revela relações, pois a Terra é um conjunto cujas partes se mantém
relacionadas pelos fatos gerais de estrutura, configuração e clima que presidem a
distribuição da vida. Como os outros seres vivos, os homens irradiaram de um ou mais
focos. Para se estenderem sobre a Terra, eles seguiram rotas que buscamos reencontrar
com a ajuda de indícios etnográficos. Porém, a ocupação humana da Terra ainda é muito
desigual, caracterizando-se por uma evolução que prossegue. Mesmo atualmente, ela está
longe de corresponder às condições mais ou menos favoráveis de solo e clima nas quais
seria permitido esperar a priori; tal ocupação parece ser, sobretudo, o resultado da posição
das diferentes regiões em relação às vias seguidas pelas correntes humanas.
4 É nesse sentido que a idéia de posição é fundamental para a geografia humana. Uma vez
que a França esteja situada entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte, isso implica o
encontro de uma gama de relações sobre seu território onde, em períodos distintos, tais
mares foram os veículos. Uma vez que ela ocupa a extremidade do tronco continental do
Velho Mundo, tal fato teve consequências sobre sua composição étnica. Ele explica a
complexidade; é da sua natureza iluminar de algum modo a origem dos hábitos que nela
foram implantados e transmitidos.
5 II. Abordamos assim o estudo das diversidades regionais. Enormes diferenças nos
surpreendem: não somente na densidade da população, mas também no modo de
apropriação das regiões às necessidades da existência humana. Aqui, prevaleceu a vida

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agrícola; lá, a vida pastoral; alhures, uma vida da caça e da pesca. Causas geográficas se
apresentam para explicar essas diferenças: é assim nas regiões onde o solo é fácil de ser
trabalhado e, principalmente, naquelas onde os elementos fertilizantes são seguidamente
renovados pelos rios, assentam-se as sociedades agrícolas e sedentárias; é nas regiões
onde, seguindo as estações, a seca devora sucessivamente os pastos, que a tenda dos
pastores desloca-se periodicamente; em suas migrações regulares, as tribos dos Extremo-
Norte seguem as migrações dos animais que lhes servem de caça. Portanto, estamos
autorizados a considerar estas formas de existência como fatos geográficos, bem como
determinar suas áreas de extensão e definir seus limites. Entretanto, podemos constatar
também que em mais de um caso essas formas de existência se penetram, se entrecruzam
na mesma zona; é assim em quase toda a extensão da região subtropical do Velho
Continente. Além do mais, em certas épocas produz-se transformações radicais no modo
de exploração de imensas zonas. Em nossos dias, é o que ocorre na América, na Sibéria e
alhures: estepes são transformadas em cultivos, o arado do moujik3 substitui a tenda do
kirghize4. Numa escala menor, sem sair da França, mudanças do mesmo gênero podem ser
notadas. Atualmente, não vemos em muitos pays franceses o gado, com todas as
modificações de gênero de vida que ele acarreta, substituir às culturas de cereais?
6 Portanto, é mister admitir que não é sob a forma de um contrato rigoroso e irrevogável
que as relações entre o homem e o solo são tecidas. As condições geográficas são bastante
maleáveis, deixando um jogo muito amplo à iniciativa, às preferências e às escolhas do
homem. A natureza não nos oferece o espetáculo de imperiosas intimações às quais o
homem não responderia senão por uma dócil obediência – pelo contrário. Estudada bem
de perto, a natureza nos mostra, no equilíbrio instável onde acontece a concorrência dos
seres vivos, na vitória sempre pendente entre a floresta e a pradaria, nas possibilidades
oferecidas pela irrigação e nas nuances climáticas uma gama de aberturas favoráveis
pelas quais o homem pode fazer sentir e prevalecer sua ação. Seguramente, isso não é
nem absoluto e nem universal. Seria um evidente exagero aplicar essa idéia a todas as
partes da superfície terrestre; em algumas delas, condições rigorosas de clima fazem-nas
refratárias a toda transformação humana. Porém, as superfícies sobre as quais tal
transformação hoje opera são assaz consideráveis para que possamos reconhecer o que, a
partir da diferença de densidade da população que a ocupe, uma mesma região pode se
tornar.
7 Assim, uma região marcada pelo selo de uma civilização torna-se o que se pode chamar de
humanizada. Intenções e combinações se manifestam na escolha dos sítios de
estabelecimento, na direção das rotas e na própria composição do mundo vegetal e
animal que o homem agrupou em torno de si a título de meios de nutrição e meios
auxiliares. O homem se liga ao meio que ele adotou e fez seu na proporção do que ele
próprio fixou.
8 III. Uma vida local tende assim a se enraizar, com toda a força que acrescentam aos
hábitos os ritos, as crenças e as idéias que nela se introduzem. O estudo desse meio
geográfico oferece uma dupla matéria de observações, tanto para a sociologia quanto para
a geografia. Contudo, mais férteis ainda em ensinamentos são as modificações produzidas
quando, por efeito de novas circunstâncias, uma sociedade habituada a viver recolhida em
si mesma é posta em contato com povos, costumes e necessidades que ela não conhecia.
Abre-se, então, um novo ciclo de civilização. Tal fenômeno é aquele que, por muitas
causas inúteis de recordar, nossa época nos apresentou. Certamente, ele acrescentou um

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novo atrativo aos estudos comparativos e complexos das formações sociais e dos meios
geográficos. Pôs em movimento causas que estavam latentes ou adormecidas.
9 Por esse contato, é possível ver como novos fermentos se introduzem em sociedades que
pareciam fixadas em seus quadros; tentar mensurar as mudanças sociais e econômicas
que resultam da nova demanda de mão-de-obra por todos os lugares onde recursos antes
inutilizados são valorizados; apreciar os efeitos das ferrovias, das vias de transportes
aperfeiçoadas e, em geral, da aplicação do maquinismo nas regiões até então estrangeiras
ao instrumental da civilização moderna. Há, aqui, matéria para reflexões e observações
inesgotáveis de filosofia social.
10 Para o geógrafo, esses fatos oferecem o interesse das mudanças na fisionomia terrestre.
Suas consequências sociais e econômicas saem do domínio da geografia e,
consequentemente, seria pouco sábio de sua parte engajar-se fora de suas próprias vias.
Ele recairia assim num inconveniente contra o qual luta hoje e no qual tem grande
dificuldade de se livrar. No entanto, esses fatos são geográficos conquanto eles modificam
a composição da vida, o aspecto das superfícies, a quantidade e as relações dos grupos
humanos. Seguindo o grau de intensidade na qual se exerce a ação humana, a hidrografia,
a flora e a fauna submetem-se a transformações, às vezes, radicais. Tornado legião, o
homem cessa de se acantonar em certas formas de existência, de estabelecer-se quase que
exclusivamente em certos sítios e de restringir-se a um estreito círculo de relações. A
partir do momento em que as planícies viram salubres e habitáveis, abrem um campo
mais vasto à atividade humana – e o contrário não é menos verdadeiro. Os mares tornam-
se ligações entre os povos e as mais econômicas vias de transporte. Sobre os meios de
comunicação, a repartição das culturas e o agrupamento humano, a vida urbana exerce
uma gama de influências, que se traduz em dados e em formas geográficas. Nesse sentido,
as avaliações das extensões, das distâncias e das proporções são, para a geografia, o que a
cronologia é para a história.
11 Assim, a geografia humana se reconhece como uma parte do estudo da Terra e deve, por
isso, permanecer distinta das ciências sociológicas. Ela procede da terra ao homem e não
pela via inversa. Tal via é, porém, aquela que praticamos voluntariamente, seguindo
velhos hábitos do espírito. Tão logo um fato histórico ou econômico nos surpreendeu e
vamos buscar, no arsenal de causas geográficas, algum meio de explicá-lo. Não é
permitido pensar que tal método é viciado pela característica inevitavelmente
tendenciosa de sua pesquisa? Não seria surpresa se, comumente, ele alcançasse apenas
meias-verdades. Não escondo de mim mesmo que o emprego do método verdadeiramente
geográfico, estando menos adaptado ao gênero de instrução que prevalece entre nós,
exige um esforço de nos apartar do ponto de vista humano subjetivo e encontre alguma
dificuldade para se familiarizar a nossos espíritos. É uma razão a insistir para que ele seja
melhor conhecido e praticado com mais frequência. Com certeza, o estudo das sociedades
humanas ganhará em clareza se situar-se no plano da perspectiva dos fatos físicos e
biológicos, através e por meio dos quais opera a inteligência humana.

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NOTAS
1.
2. Notadamente, ver: Les conditions géographiques des faits sociaux. (Annales de Géographie, t. XI, 1902,
pp.13-23). N.T. Nós apresentamos e traduzimos este artigo na revista Geographia, ano 9, n. 18, dez. 2007,
p. 117-132.
3. Na Rússia imperial, camponês de baixo nível social, comparável aos servos (N.T.)
4. Povo de tradição nômade descendente de tribos indo-européias, cujas tendas são feitas
colocando feltro de lã de ovelha sobre uma armação de madeira (N.T.).

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