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Redefinindo a Diplomacia num Mundo em Transformação

5º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais


De 29 a 31 de julho de 2015, Belo Horizonte

Área temática: Política externa

A POLÍTICA EXTERNA DA CHINA E A AMÉRICA LATINA


(Versão preliminar, 22/06/2015)

Prof. Dr. Valter Ventura da Rocha Pomar


Universidade Federal do ABC (UFABC)

Belo Horizonte
2015

1
RESUMO

Desde 1 de outubro de 1949, a política interna e externa da República Popular da China


sofreu várias alterações. Internamente, a principal destas alterações ocorreu em meados
dos anos 1970, com as chamadas reformas de mercado. Externamente, a principal
alteração foi a aproximação com os Estados Unidos, ocorrida também nos anos 1970.
Desde então e até agora, as políticas interna e externa da China evoluíram dentro de
parâmetros estáveis, que o governante Partido Comunista busca resumir encadeando
categorias como a "teoria de Deng Xiaoping", as "três representações" e a "visão científica
sobre o desenvolvimento". Entretanto, a crescente importância da China vem provocando
inflexões importantes em suas políticas, que podem implicar em mudanças qualitativas. No
caso específico da política externa, isto fica claro quando analisamos os possíveis
desdobramentos da estratégia de "ascensão pacífica", formulada no período de Hu Jintao e
de Wen Jiabao. Fica claro, também, quando analisamos a ação, os discursos e textos de Xi
Jinping, atual secretário-geral do Partido Comunista chinês. Nossa resenha da emergente
"doutrina Xi Jinping" enfatizará seus impactos na América Latina.

Palavras-chave: China, América Latina, política externa

2
Introdução

A versão final deste ensaio foi concluída um mês depois da visita de Li Keqiang, Primeiro
Ministro do Conselho de Estado da República Popular da China, a quatro países da América
Latina: Brasil, Colombia, Peru e Chile.

A visita oficial, realizada entre os dias 18 e 26 de maio de 2015, recebeu intensa cobertura
dos meios de comunicação e foi acompanhada com atenção pelas instituições vinculadas
com a política externa e as relações internacionais.

Cerca de um ano antes, em julho de 2014, o Presidente Xi Jinping participou em Brasília da


primeira Cúpula China-América Latina e Caribe.

Os acordos firmados e os discursos proferidos por Xi Jinping e Li Keqiang evidenciaram que


seguem vigentes as diretrizes detalhadas em documento “A política externa da China para a
América Latina e o Caribe” (STATE COUNCIL, 2008). Tais diretrizes nortearam a exposição
feita pelo então Primeiro Ministro Wen Jiabao na visita que fez à sede da CEPAL em
Santiago do Chile, em junho de 2012 (WEN, 2012).

Ao mesmo tempo, crescem as evidências de que as relações entre China e América Latina
entraram numa nova etapa (CEPAL, 2015). Este texto busca desenvolver este argumento,
da seguinte forma. A primeira seção descreve a atual situação internacional, localizando a
China e a América Latina e Caribe neste contexto. A segunda e a terceira seções abordam
os desafios que o atual cenário internacional coloca para o “socialismo de mercado” chinês.
A quarta e última seção relaciona estes desafios com a América Latina e Caribe.

O contexto internacional

Uma análise completa da situação internacional vai além dos propósitos deste texto. Assim,
nos limitaremos a indicar as variáveis que consideramos principais, atualizando o debate
realizado a respeito na IV Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional
(MOSCARDO, 2010).

A situação internacional é marcada, em primeiro lugar, por um extenso predomínio das


relações capitalistas de produção e circulação. Comparado com outros períodos da história,
vivemos naquele onde o capitalismo é mais predominante (HOBSBAWM, 2011).
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A situação internacional é marcada, em segundo lugar, por uma crise do capitalismo. Em
comparação com outras crises, a iniciada em 2007-2008 tem as seguintes características: a)
é uma crise clássica de acumulação, ou seja, revela impasses estruturais no processo de
valorização do capital; b) é uma crise de múltiplas dimensões: militar, política, social,
ideológica, financeira, comercial, ambiental; c) atinge de maneira diferenciada os setores,
regiões e países; d) tem como epicentro os Estados Unidos, a Europa e o Japão.
(BEINSTEIN, 2009)

A situação internacional é marcada, em terceiro lugar, pela intensificação dos conflitos


intercapitalistas. No plano interno aos países ou no plano internacional, isto pode implicar
em redistribuição do poder entre os diferentes Estados e setores sociais (GUIMARÃES,
2013).

A situação internacional é marcada, em quarto lugar, pelo declínio da hegemonia dos


Estados Unidos (e, de maneira geral, pelo esgotamento da “capacidade de governança” das
chamadas instituições de Bretton Woods), bem como pelas tentativas que os EUA fazem
para tentar reverter este declínio (SMITH, 2008).

Uma quinta característica da situação internacional é a busca que outros Estados fazem
para estabelecer uma nova hegemonia, de tipo análogo ou diverso. Uma sexta
característica, resultante das anteriores, é a formação de blocos e instituições com
finalidades essencialmente defensivas (VISENTINI, 2013).

Este conjunto de características (ou variáveis) aponta para um período mais ou menos
prolongado de instabilidade internacional, bem como para o surgimento de “soluções”
intermediárias, temporárias e ineficazes.

No curto e médio prazos, a instabilidade está vinculada à crise do capitalismo e ao declínio


da hegemonia estado-unidense. No longo prazo, corresponde à crescente contradição entre
a “globalização” da sociedade humana versus o caráter limitado das instituições políticas
nacionais e internacionais.

A instabilidade faz com que seja ao mesmo tempo urgente e difícil a construção de
alternativas: o velho padrão não funciona adequadamente, mas continua forte; novos
padrões estão surgindo, mas não são hegemônicos.

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No terreno estrito das políticas econômicas, isto gera uma situação paradoxal: fortes
discursos em favor de uma mudança profunda, acompanhadas de terapias minimalistas que
fazem correções marginais no modus operandi dos chamados mercados. Como resultado, a
crise adquire um caráter crônico, prolongado e com efeitos degenerativos no terreno
ideológico, político e militar (LETIZIA, 2012).

É neste contexto que ganhou organicidade o grupo de países denominado BRICS; é


também neste contexto que ganhou forma o atual processo de integração latino-americano
e caribenho, especialmente entre os países da América do Sul; e é nestes marcos que se
desenvolve a relação entre BRICS e América Latina e Caribe (REIS, 2012).

Uma das questões postas, nos processos citados, é como consolidar laços econômicos,
sociais, políticos, militares e ideológicos, que possibilitem aos países envolvidos conviver,
sem subordinação ou dependência, com o espaço geopolítico e com as dinâmicas
hegemonizadas pelos Estados Unidos, União Européia e Japão? (GUIMARÃES, 2013)

Deste ângulo, uma das perguntas centrais é a seguinte: será possível, mais do que
conviver, substituir o arranjo econômico internacional que tem nos Estados Unidos seu
elemento organizador (e desorganizador) central, por um novo arranjo? E qual seria a
natureza deste novo arranjo?

Estamos diante de disputas de longo curso, que serão travadas num ambiente de acentuada
instabilidade, em pelo menos dois planos distintos, porém articulados: a) a disputa no
interior de cada país; b) a competição entre os diferentes estados e blocos regionais.

O “socialismo de mercado” chinês

Quando da crise de 1929, os defensores do desenvolvimento planejado soviético


apresentavam-no como alternativa ao modelo liberal capitalista. Depois da crise de 2007-
2008, alguns defensores do chamado socialismo de mercado chinês ensaiaram o mesmo
tipo de raciocínio. Ao mesmo tempo, tanto na mídia quanto nos centros de formulação
estratégica, há quem enxergue os conflitos presentes e futuros entre China e EUA com base
num padrão de reflexão similar aos da bipolaridade que marcou a Guerra Fria.
(ANDERSON, 2015).

O modelo chinês se propõe ou pode ser considerado como uma alternativa ao capitalismo
anglo-saxão ou ao capitalismo em geral? O Estado chinês enxerga seu “desenvolvimento

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pacífico” nesta perspectiva? Nestes marcos, qual papel jogam os BRICS, bem como qual
papel jogam as relações entre China e América Latina? (VISENTINI, 2013)

A seguir abordaremos estes temas, retomando algumas ideias desenvolvidas no artigo


“China e Brasil num mundo de crise & transição” (POMAR, 2014).

O movimento socialista, assim como o capitalismo, é historicamente uma criação ocidental.


Não é de se admirar que no século XIX a social-democracia esperasse vencer primeiro onde
o capitalismo estivesse mais desenvolvido, notadamente a Alemanha. Mas a primeira
revolução socialista vitoriosa foi ocorrer numa região de fronteira entre Europa e Ásia, entre
Ocidente e Oriente (ROIO, 2007).

O fato não surpreendeu Lênin, para quem a Rússia constituiria o elo mais fraco da cadeia
imperialista. Admitindo ser mais fácil tomar o poder ali do que na Alemanha, Lênin
reconhecia, entretanto, que na Rússia seria mais difícil construir o socialismo, devido ao
atraso político, social e econômico (LENIN, 1986).

A solução para o paradoxo viria, supostamente, da solidariedade da posterior e subseqüente


revolução socialista nos países europeus mais avançados, estimulada exatamente pelo
exemplo do proletariado russo. Entretanto, ainda que de lá tenha vindo alguma
solidariedade, não houve nenhuma revolução socialista vitoriosa nas potências ocidentais.

Bloqueada a Oeste, a revolução expandiu-se em direção Leste. Já em 1918, Stalin diria que
“o grande significado mundial da Revolução de Outubro consiste principalmente no fato de
ter lançado uma ponte entre o Ocidente socialista e o Oriente oprimido, constituindo uma
nova frente da revolução que, dos proletários do Ocidente, através da revolução da Rússia,
chega até os povos oprimidos do Oriente, contra o imperialismo mundial” (STÁLIN, 1954).

A “ponte” foi lançada sobre uma região já em ebulição, causada em grande medida pela
penetração do capitalismo. Muitos fatos evidenciam isto, entre os quais a vitória do Japão na
guerra contra o Império Russo e a revolução de 1911 na China.

Ao projetar o socialismo no Oriente, o governo soviético e o Partido Comunista Russo


provocaram mutações no projeto e na estratégia originárias de Marx. Para este, o socialismo
seria uma etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo. Levado ao Oriente, pouco
a pouco o socialismo passou a ser apresentado como uma etapa de transição entre o pré-
capitalismo e o comunismo (ROIO, 2007).

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Esta novidade não era totalmente estranha à tradição socialista russa: os narodniks se
caracterizaram exatamente por tentar construir um caminho que fosse do feudalismo russo
ao socialismo, sem passar pelo capitalismo. Lênin iniciou sua trajetória política combatendo
esta teoria, mas o curso dos acontecimentos o levou a capitanear um experimento que
poderia ser considerado uma variante do “populismo”, acusação que lhe foi dirigida à época
por seus adversários no movimento social-democrata (CLAUDIN, 1974).

Assim como o massacre da Comuna de Paris deslocou o centro do movimento socialista da


França para a Alemanha, a derrota do operariado alemão, iniciada nos acontecimentos de
1918-1919 e consagrada com a ascensão do nazismo, consolidou um novo centro: Moscou.
A partir deste centro, se desenvolveu um trabalho sistemático de penetração na Ásia, seja
estabelecendo governos soviéticos nas regiões anteriormente dominadas pelo antigo
Império Russo; seja através da fundação de partidos comunistas (o PC chinês, por exemplo,
será criado em 1921); seja através da difusão da doutrina da “autodeterminação nacional”;
seja através do exemplo, fornecido pela URSS, das possibilidades abertas pelo
planejamento estatal centralizado (VISENTINI, 2012).

No curso deste processo, se consolidam três alternativas fundamentais de desenvolvimento


para os países da Ásia: 1) a adesão subordinada às metrópoles imperialistas, 2) o
nacionalismo “burguês” e 3) o anti-imperialismo de orientação “comunista”.

A guerra de 1939-1945, que começou antes na Ásia, com a ofensiva japonesa de 1937, é o
pano de fundo da segunda grande revolução socialista vitoriosa. Desta vez não mais em
território de fronteira, mas totalmente oriental: a revolução chinesa de 1949.

Em se tratando da história da China, há que se considerar o período entre a Guerra do Ópio


e a fundação da República Popular como um longo período de transição, que em 1911
obtém uma solução provisória e em 1949 uma solução definitiva para o grande dilema da
“autodeterminação” do povo chinês (VISENTINI, 2013).

O curso da milenar civilização, interrompido de maneira violenta pelo imperialismo europeu


e japonês, é desobstruído com a vitória do Exército Popular de Libertação dirigido pelo
Partido Comunista da China, vitorioso fundamentalmente devido ao seu apoio nas massas
camponesas.

Se o Partido Operário Social-Democrata Russo (apelidado de bolchevique e, em 1918,


renomeado Partido Comunista) soube ser heterodoxo frente aos seus congêneres europeus,
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os comunistas chineses souberam ser heterodoxos diante de muitas das orientações da
chamada Terceira Internacional.

Integraram de maneira nova a teoria do imperialismo, a questão colonial, a


autodeterminação dos povos e a luta pelo socialismo. Construíram uma fórmula que fazia do
campesinato força principal da revolução, mas preservando o “papel dirigente do
proletariado”, na prática encarnado no próprio Partido. Inviabilizada a cópia da insurreição
urbana de tipo russo, aplicaram uma estratégia de “cerco da cidade pelo campo”, apoiada
numa “guerra popular prolongada”. E através da “Nova Democracia”, buscaram construir
uma ponte de longo curso entre o atraso econômico chinês e o projeto comunista que
animava a direção revolucionária (MAO, 1949).

Sessenta anos depois, seguem visíveis os três pilares daquela “ponte”: a defesa da
soberania nacional, a modernização econômica capitaneada pelo Estado e a consideração
pelos interesses do campesinato.

A radicalização dos camponeses pobres (sem os quais a revolução não teria vencido) é uma
das principais explicações para os ziguezagues que marcaram os primeiros trinta anos do
poder instalado em 1949. O “grande salto adiante” e a “revolução cultural proletária”
expressavam, em essência, a vontade de ultrapassar rapidamente o capitalismo, lançando
mão do voluntarismo ideológico e apoiando-se em forças produtivas muito atrasadas. Este
socialismo camponês (ou pequeno-burguês, ou populista) fracassou em grande medida por
não ter sido capaz de oferecer senão um igualitarismo na pobreza (POMAR, 1987).

As reformas chinesas iniciadas em 1978 (de maneira similar à Nova Política Econômica
soviética implementada nos anos 1920) representaram, por sua vez, a reafirmação de um
aspecto central da tradição marxista: a idéia de que um modo de produção só desaparece
quando desenvolve todas as forças produtivas capaz de conter. Noutras palavras: só é
possível superar o capitalismo, desenvolvendo-o. O que, aliás, corresponde à acepção
hegeliana do termo “superação” (JABBOUR, 2012).

Do ponto de vista teórico, o conceito de socialismo enquanto transição ao comunismo é


totalmente compatível com a existência, mesmo que por um longo período, da propriedade
privada, de mercado e de relações capitalistas de produção. Mas para os marxistas do
século XIX, aquela transição era vista como temporalmente curta, uma vez que teria início

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nos países capitalistas avançados; ou, pelo menos, contaria com o apoio destes. Tal era,
por exemplo, a expectativa dos bolcheviques ao tomar o poder em 1917 (BOFFA, 1964).

A idéia de uma transição “curta” perde sentido, entretanto, quando o ponto de partida é uma
sociedade essencialmente pré-capitalista, fazendo com que o Estado produto da revolução
seja obrigado não apenas a controlar, mas também estimular a exploração capitalista da
força de trabalho, como meio para aumentar a riqueza social e a produtividade média.
Processo que para alguns autores deveria ser denominado de acumulação primitiva
socialista, termo rejeitado por outros (NABUCO, 2009).

Os comunistas chineses consideram respeitar a tradição marxista clássica, quando


sustentam que estão ainda na “fase inicial do socialismo”, que esta fase durará muito tempo
e que seu objetivo nesta fase é o de construir uma sociedade “modestamente acomodada”.
E que devem perseguir este objetivo relacionando-se de forma pacífica com o restante do
mundo (XI, 2014).

Entretanto, o sucesso (nos seus próprios termos) do “socialismo de mercado” chinês criou
um excesso relativo de capitais. Ao exportar estes capitais, o Estado chinês torna-se
participante ativo da disputa global por mercados, matérias-primas, valorização do capital e
áreas de influencia. Será possível participar desta disputa, sem adotar os mesmos
comportamentos dos países imperialistas?

A política externa da China

Há uma vasta bibliografia acerca do “consenso de Pequim” (BRITTO e FILHO, 2014), de


sua doutrina de relações internacionais (LEITE e MÁXIMO, 2013) e da política externa da
China (AMARAL, 2012). Como já foi apontado, “é praticamente impossível acompanhar de
modo satisfatório o que foi recentemente escrito sobre a China e sua trajetória
revolucionária” (VISENTINI, 2013).

O Estado chinês considera essencial a preservação da paz, seja por conhecer o custo
econômico-social das guerras, seja por perceber os limites que têm -- para um projeto de
orientação socialista -- o tipo de desenvolvimento proporcionado pelo investimento no
complexo militar, ou ainda por entender que neste terreno os Estados Unidos dispõe de
vantagem (XI, 2014).

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Em decorrência, a China adota uma política externa que enfatiza a solução pacífica dos
conflitos. Ao mesmo tempo, busca a capacidade militar necessária para defender a
soberania nacional, proteger o entorno geopolítico e dissuadir ataques (CARRIÇO, 2013).

Portanto, a China implementa uma política de coexistência e competição pacífica com os


demais pólos de poder mundial. As ideias de coexistência e competição pacíficas estiveram
no centro da controvérsia entre os partidos comunistas da China e da URSS, nos anos 1950
e 1960 (PRAVDA, 1963). Mas há duas diferenças fundamentais em relação àquela época.
Internamente, a China fez reformas que mudaram estruturalmente sua relação com o mundo
capitalista. Externamente, a China atua num cenário totalmente distinto da Guerra Fria: não
mais equilíbrio relativo entre dois campos e sim um defensiva estratégica do movimento
socialista.

Nos anos 1970 teve início o refluxo dos processos revolucionários: o Vietnã foi a última
grande revolução socialista vitoriosa no século XX. Caberia pesquisar em que medida esta
percepção influenciou a reaproximação com os Estados Unidos e a retirada estratégica
praticada desde então. Igualmente caberia analisar o movimento praticado pelos chineses à
luz das reflexões de Antonio Gramsci (GARCIA, 2011) acerca da disputa de hegemonia,
formação de blocos históricos, a longa duração dos processos de transformação, a
prevalência da guerra de posição. Aliás, já foi notada certa simetria entre algumas das
propostas de Gramsci para o movimento comunista ocidental dos anos 1930 e a política
seguida pelos comunistas chineses no mesmo período: o “cerco da cidade pelo campo” e a
construção de “áreas libertadas”, por exemplo, constituem exemplos práticos da “guerra de
posição”. Hoje, estas afinidades podem ser percebidas com mais nitidez (PORTANTIERO,
1977).

Há um vínculo estreito entre as economias da China e dos Estados Unidos. A vinculação


entre URSS e EUA era de tipo distinto: a existência da primeira dava ao segundo pretextos
para exercer sua hegemonia, ao tempo que estimulava o complexo industrial-militar. Por
isto, a vitória obtida pelos EUA na Guerra Fria colaborou – num aparente paradoxo -- para
enfraquecer, no curto espaço de uma década, a hegemonia dos Estados Unidos
(ANDERSON, 2015). Do bilateralismo fomos ao multilateralismo, após um brevíssimo
período de suposto unilateralismo.

Já os vínculos entre China e Estados Unidos são de tipo diferente. Desde a diplomacia do
ping-pong, na qual os Estados Unidos embarcou na perspectiva de derrotar a URSS e

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reorganizar sua presença no sudeste asiático, a China veio assumindo crescente
importância econômica, para o capitalismo em geral e para os Estados Unidos em particular
(KISSINGER, 2011).

Embora as razões sejam muitas, destaca-se algo absolutamente incompreensível para os


autores que defendem a tese da morte do trabalho (GORZ, 2003): a abundância e o baixo
valor relativo da força de trabalho chinesa, proporcionando a um capitalismo ocidental
maduro, envolto com o drama dos retornos decrescentes, o frescor de altas taxas de mais-
valia, associado a um mercado consumidor reprimido.

O diferencial é que a China aproveitou os capitais estrangeiros para dinamizar sua própria
economia. Quase quarenta depois do início das reformas, a China consolidou a condição de
principal pólo do desenvolvimento econômico mundial. Chegou a esta condição exatamente
porque no ponto de partida: a) não concentrava o estoque principal de riquezas acumuladas;
b) possuia uma renda per capita baixa; c) dispunha de uma composição orgânica do capital
diferente da existente nos países de capitalismo maduro (JABBOUR, 2012).

Há fortes vínculos entre os sucessos do desenvolvimento chinês, a aceleração da expansão


capitalista nos anos 1990 e a crise de 20078-2008. Entre outros aspectos, podemos
estabelecer a seguinte analogia: um século depois do eixo do movimento socialista ter se
deslocado a Leste, o mesmo ocorreu no âmbito do capitalismo.

Desde 1978 até o momento, o Estado chinês conseguiu administrar as tensões decorrentes
do crescimento, evitando que os conflitos internos interrompessem a dinâmica atual de
desenvolvimento. Frente à crise internacional de 2007-2008, por exemplo, a China reagiu
dobrando a aposta no seu mercado interno, na integração do seu entorno geopolítico e
ampliando a exportação de capitais (CUNHA, 2012).

Se a ascensão da China já provocava apreensões e tensões – e não apenas para os


Estados Unidos e seus aliados diretos --, o que poderá ocorrer nesta nova etapa de ainda
mais intensa exportação de capitais chineses?

A América Latina e o “sonho chinês”

A China constitui um importante desafio para os Estados Unidos – mas também para a
União Européia e o Japão -- nos termos próprios da competição intercapitalista por dinheiro

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e poder. Por este motivo, os modelos estratégicos herdados da Guerra Fria mais confundem
do que esclarecem (LANXIN, 2009).

A China constitui, igualmente, um desafio para países como a Índia e a Rússia, assim como
para os países do seu entorno direto, inclusive para o Japão. Por razões e de maneiras
diversas, estes países são atraídos pela força gravitacional do desenvolvimento chinês
(VISENTINI, 2013).

A China também constitui num desafio importante para os países da África e da América
Latina e Caribe. Por um lado, constitui uma possibilidade alternativa à hegemonia dos
Estados Unidos e seus aliados. Por outro lado, independente do que pensemos acerca das
qualidades do “socialismo de mercado” para a sociedade chinesa, sua projeção externa é
extremamente contraditória. A China é uma grande potência, com interesses a defender,
plano em que todos os gatos parecem ser pardos. O que acaba enfatizando mais o
“mercado” do que o “socialismo”.

Importa destacar que o “sonho chinês” de Xi Jinping (RUIZ, 2014) depende muito do êxito
da exportação de capitais chineses para a África e para a América Latina e Caribe. Neste
último caso, o “Documento sobre la Política de China hacia América Latina y el Caribe“
(State Council, 2009) explicita que a política chinesa é se tornar “sócia” dos países
latinoamericanos e caribenhos.

No dia 8 de janeiro de 2015, em discurso proferido por ocasião do I Foro Ministerial China-
CELAC, Xi Jinping afirmou1: “trabajemos juntos por realizar la meta de que en los
próximos 10 años el intercambio comercial entre China y la Región Latinoamericana y
Caribeña llegue a los 500,000 millones de dólares, y el stock de la Inversión Directa de
China en la Región, a los 250,000 millones de dólares”.

No dia 22 de maio de 2015, Li Keqiang -- primeiro ministro do conselho de Estado -- num


discurso intitulado “Forjar la „versión actualizada‟ de la cooperación práctica entre China y
América Latina y el Caribe mediante el nuevo modelo 3x3”2, explicou que este modelo diz

1
http://www.el19digital.com/articulos/ver/titulo:25167-presidente-xi-jinping-en-i-foro-celac-
china acessado em 22/6/2015.

2
http://www.fmprc.gov.cn/esp/zxxx/t1266013.shtml acessado em 22/06/2015.

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respeito a “la construcción cooperativa en América Latina y el Caribe en tres grandes vías, la
logística, la electricidad y la informática”, a “interacción virtuosa entre las empresas, la
sociedad y el Gobierno” e a “ampliación de los tres canales de financiamiento que son los
fondos, los créditos y los seguros”.

No citado discurso, Li Keqiang explica como o Estado chinês vê o contexto:

En la actualidad, la recuperación de la economía global se encuentra todavía


en un proceso tortuoso, las naciones emergentes, con China y la región
incluidas, encaran en general presiones de un crecimiento descendente de la
economía. El comercio bilateral también presenta una tendencia a la
relentización tras registrar un alto crecimiento en los últimos diez y tantos
años a raíz del nuevo siglo. Frente a las nuevas circunstancias y retos,
debemos tomar a la cooperación en capacidad productiva y fabricación de
equipos como punto rompedor, fusionando el reajuste de nuestras respectivas
estructuras económicas y estrategias de desarrollo, para fomentar
activamente el desarrollo sobre un nivel más elevado de la cooperación
económico-comercial bilateral, ofreciendo un mejor servicio a las necesidades
de nuestro sendo desarrollo. Tenemos razones para quedarnos a la
expectativa de que, la "versión actualizada" de la cooperación práctica entre
China y la región, forjada con el nuevo modelo 3x3, traerá una gran fuerza
motriz al desarrollo de los lazos sino-latinoamericano y caribeños, elevará la
confianza de los países emergentes y de los en vías de desarrollo y
favorecerá también al proceso de la recuperación de la economía mundial.

O grupo dirigente encabeçado por Xi Jinping e Li Keqiang está diante de desafios


equiparáveis aos que foram postos frente a Mao ou a Deng. A saber: manter o sucesso do
“socialismo de mercado” num ambiente de crise do capitalismo e declínio da potência
hegemônica, administrando a crescente tensão entre o “desenvolvimento pacífico” e a
exportação de capitais, dosando as quantidades relativas de socialismo e de mercado.

Como os países da América Latina e Caribe, particularmente o Brasil, vão se comportar


neste contexto? Isto dependerá de vários fatores, entre os quais a interpretação que se faça
da oferta chinesa de uma “sociedade”. Alguns podem tomar a oferta chinesa como mera
retórica, para encobrir um neoimperalismo. Mas o oferta de sociedade pode decorrer da
diferença entre necessidade e meios. A China necessita muito da América Latina e Caribe.
E não tem outros meios para atuar na região, que não oferecendo benefícios mútuos. O que
abre um enorme espaço de cooperação estratégica, em bases distintas daquelas oferecidas
pelos Estados Unidos e Europa, desde que os Estados de nossa região estejam à altura do
desafio.

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