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Arte Da Resistência - Miolo
Arte Da Resistência - Miolo
Resistência
Arte da Resistência
Leandro Colling (Org.)
Bibliografia
ISBN : 978-65-86481-77-8
Apresentação
Leandro Colling
Salvador, 7 de setembro de 2022.
Sumário
5 Apresentação
Crítica cultural artivista da resistência
9 A arte da resistência
Leandro Colling
139 Les Étoiles: meu coração é um pandeiro ou... não brinca que a
chica chia
Djalma Thürler e Jorge Caê Rodrigues
Leandro Colling
1
Neste texto não irei refletir sobre o artivismo e como estamos operando com esse conceito. Já fiz isso em,
por exemplo, Colling (2019). Aqui gostaria apenas de enfatizar que, em muitos trabalhos e em intervenções
nos ambientes pelos quais eu circulo, percebo uma enorme incompreensão ou até preconceito em relação
ao conceito de artivismo. Muitas pessoas, críticos e/ou artistas pensam que artivismo seria uma categoria
identitária ou algo que desqualificaria as produções artísticas, uma forma de reduzir a potência das obras.
Arte da Resistência 9
***
No entanto, artivismo não é uma identidade para ser carimbada em artistas ou obras, mas uma chave de
leitura que advém da própria análise das obras em que a dimensão artística e ativista está colada, imbri-
cada, indissociada. Rose de Melo Rocha (2021), por exemplo, ao refletir sobre artivismo diz que, “mais do
que uma imbricação, configura-se uma iniciativa de reflexão e de ação cujos princípios norteadores são da
não separação. (...) Trata-se de defender uma junção irrevogável entre arte e política, na proposição de não
separar os dois polos” (ROCHA, 2021, p. 18). Marcelo de Troi (2018) prefere grafar a palavra “a(r)tivismo”
e a liga com o queer para pensar as produções que dialogam com as dissidências sexuais e de gênero. No
entanto, o autor não usa a expressão como uma etiqueta ou identidade para determinados artistas, mas para
pensar a emergência de produções com determinadas características. Ou seja, pensar essa nova cena da
atualidade através da chave de leitura dos artivismos, sejam eles focados nas dissidências sexuais e de gênero
ou em outras lutas, nos possibilita diferenciar essas produções das movimentações mais antigas do campo
das artes e suas imbricações com a política, como as que ficaram conhecidas pelo rótulo de arte popular
revolucionária, nos anos 60, no Brasil. Como detectou Charles Esche (2021, p. 15), “Os artistas socialmente
engajados da década de 2010, (...) parecem menos interessados que seus antecessores em conscientizar
ou despertar um senso de responsabilidade, e mais engajados em entender como movimentos existentes
podem ser apoiados e fortalecidos por meio da modelagem daquilo que já existe. Esses artistas (pelo menos
em parte) fazem arte construindo estruturas, histórias, arquivos e comunidades que instituem o tipo de
estruturas comuns que poderiam emergir em um futuro emancipado. Isso significa uma rejeição tanto da
criatividade, no sentido capitalista de novos produtos inventivos para venda, quanto da ideia de vanguardista
tradicional da autonomia artística que considera primordial a imaginação livre e egocêntrica do artista”.
2
Ver https://globoplay.globo.com/v/9985057/ - Acesso em: 6 de fev. 2022.
3
Clipe oficial pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=QJ8Zp_HYsbI -Acesso em: 29 de ago. 2022.
10 Leandro Colling
Paulo4. Linn já se autodefiniu como bixa preta, bixa travesty5 e, no BBB, se
apresentou como travesti. Na canção Corpo sem juízo, Jup do Bairro (2019),
parceira de Linn, aciona o seu corpo como lugar de resistência e diz: “É
como estar diante da morte e permanecer imortal/ É como lançar à própria
sorte e não ter direito igual/ Mas eu resisto, eu insisto, eu existo/ Não quero
o controle de todo esse corpo sem juízo”.6
Em abril de 2021, o Corre Coletivo Cênico, de Salvador, apresentou, em
seu perfil no youtube7, a série Para-íso, com oito episódios8. A história gira
em torno de um grupo de bixas negras que se reune, em plena pandemia do
Covid-19, após a morte de uma delas em consequência do HIV-Aids. Vividas
por Anderson Dantas, Igor Nascimento, Luiz Antônio Sena Jr, Marcus Lobo e
Rafael Brito, as personagens Leka, Tito, Miguel, Rogério e Paul se encontra-
vam em uma casa, uma espécie de cuíerlombo (NASCIMENTO, 2018), onde
a bixa falecida morava e acolhia as outras.
Em uma das cenas mais tocantes do espetáculo, as personagens olha-
vam pela janela (um casarão no bairro do Comércio, em Salvador, ao lado de
outros prédios semiabandonados) e identificavam como algumas plantas
insistem em crescer nas rachaduras dos antigos casarões. Aí uma das per-
sonagens associou aquela imagem das plantas com a ideia de resistência.
Ou seja, as plantas, que crescem nas fissuras e se proliferam nos locais
mais difíceis, ermos, resistem. Mediante isso, a personagem Leka arremata
para as amigas, ao dizer algo assim: “Nós somos como aquelas plantas, a
gente é resistência”.
Em uma primeira síntese de como a resistência aparece em uma série
de produções artísticas, percebi que se trata de uma resistência à lógica
da competitividade através das produções em parceria, resistência à
cisheteronormatividade e ao racismo através da presença de corpas trans
negras desobedientes às normas de gênero e sexualidade, resistência à
pureza identitária, através da valorização de várias formas de identifica-
ção e recombinação de identidades, como a de bixa travesty, resistência à
pureza de linguagens artísticas, pois nessa cena muitas artistas produzem
uma mistura de linguagens compatíveis às suas críticas aos essencialismos
identitários. Mas o que mais poderíamos dizer sobre a ideia de resistência?
Como tem se pensado e conceituado a resistência em trabalhos de cunho
4
Esse e outros materiais similares também poderiam render um bom debate sobre como o capitalismo se
apropria dessas expressões artísticas dissidentes. Ver https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/
vodca-faz-anuncio-artistico-em-defesa-da-diversidade.shtml e https://www.youtube.com/watch?v=uunq-
c97qexU&feature=emb_title – Acessos em: 5 fev. 2021.
5
Referência à música Bixa Travesty e ao filme homônimo de Linn da Quebrada.
6
Ver clipe em https://www.youtube.com/watch?v=6il3RlZSlgM – Acesso em: 09 fev. 2022.
7
Os episódios não estão mais disponíveis, mas o perfil é: https://www.youtube.com/channel/
UChxaYE9UEZTTlqaLVK3_7Hg - Acesso em: 15 jan. 2022.
8
Para saber mais, ler http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/2021/04/15331/AldirBlanc-CORRE-Coletivo-
Cenico-estreia-10-de-abril-espetaculo-teatral-episodico-PARA-ISO.html - Acesso em: 15 jan. 2022.
Arte da Resistência 11
mais acadêmico? Para enfrentar essas questões, primeiro vou recuperar
duas perspectivas bem conhecidas e um tanto distintas em torno da ideia
de resistência, a de Michel Foucault e a de Espinoza, e depois irei refletir
sobre diferentes formas de resistência, com destaque para a resisência
com alegria.
12 Leandro Colling
Daniela e Paula Sandrine também dialogam com duas outras pessoas
que pensaram sobre as práticas de resistência: o cientista político americano
James Scott e a antropóloga indiana Veena Das. O primeiro, segundo elas,
ainda que pense as formas cotidianas, fragmentadas e difusas de resis-
tência, estaria mais interessado em vincular a ideia de resistência a uma
reflexão e uma intencionalidade. A segunda pensaria a resistência que se
faz diariamente com o próprio corpo.
Daniela e Paula defendem que os corpos queer, “no próprio ato da exis-
tência, por sua performatividade, correm pelas beiradas do que é padronizá-
vel” (DELL´AGLIO e MACHADO, 2018, p. 53). Acompanhando as autoras, sub-
linhamos que é muito interessante pensar essa resistência que não é feita,
necessariamente, de forma intencional, com planos, metas e objetivos, com
ideias apontando para algum propósito. Isso se torna ainda mais producente
quando refletimos sobre as produções artísticas que aqui nos interessam.
No seguinte sentido: nem todas as artistas precisam tratar, diretamente, em
suas obras, sobre como os preconceitos e normas as subalternizam. Ou seja,
as suas próprias existências em cena (e fora dela) se constituem em uma
resistência9. Aqui vale destacar: o ato de existência como ato de resistência.
Talvez por isso algumas pessoas estão propondo a ideia de re(ex)istência.
Carlos Henrique de Lucas (2017), por exemplo, em tese sobre o que ele
chamou de “linguagens pajubeyras”, defende que elas se constituem em
uma “re(ex)sistência cultural para subverter a heteronormatividade”.
9
De outra forma e em outro lugar, em Colling (2021b) refleti sobre esse aspecto ao destacar como a própria
performatividade de gênero dissidente é a obra de arte de muitas pessoas artistas dessa cena, o que borra a
fronteira entre performance e performatividade com a qual Judith Butler opera em alguns dos seus textos.
Arte da Resistência 13
de resistência. Não só as palavras pajubeyras, entendidas
como formas de “rir das categorias sérias” (BUTLER, 2003,
p. 8) – me refiro aos vocábulos, mas também as expres-
sões e toda a performance do corpo envolvida no ato de
enunciação de tais linguagens dizem respeito a uma poé-
tica queer. A risada, a gongação da norma, é também uma
forma de resistir a ela (LIMA, 2017, p.106 – grifos do autor).
Mas como seria essa resistência que existe apesar das relações do
poder e como um fim em si mesma? Em uma perspectiva foucaultiana isso
seria praticamente impossível. David Halperin (2007) explica que, para
Foucault, o poder está em todas as partes, é algo que se exerce – e não
algo que se possui – e, ainda que esteja distribuído de forma desigual, não
é exclusivamente negativo, mas também positivo e produtivo, pois produz
possibilidades de ação, de eleição e condições para o exercício da liberdade.
No entanto, o poder não é o oposto da liberdade, pois a liberdade não está
livre do poder. A liberdade é uma potencialidade interior ao poder, inclusive
um efeito do poder.
Para pensar com Foucault em uma resistência que não esteja sempre
tão imbricada nas relações de poder, temos que recorrer ao pensamento
ainda mais tardio do autor, aos volumes 2 e 3 da história da sexualidade e
em textos que foram publicados depois de sua morte e que se constituem
em transcrições dos últimos cursos e palestras realizadas pelo filósofo. É
14 Leandro Colling
isso que defendem Margareth Rago (2020) e o próprio David Halperin (2022).
Para isso, recorrem às reflexões de Foucault em torno da ideia de parrésia,
que o francês recuperou dos antigos filósofos gregos cínicos.
A parrésia consiste em dizer a verdade sem levar em conta os riscos ou
consequências de suas falas e sem exigir que alguém valide como verdade
daquilo que é proclamado. A parrésia também contém uma crítica a si mes-
mo/a e uma crítica aos/às interlocutores/as. Foucault estava interessado na
parrésia especialmente em como ela se diferencia do dispositivo da con-
fissão, desenvolvido pela Igreja Católica e transformado em vários outros
campos a ponto de se constituir como uma prática comum na sociedade
contemporânea. Halperin defende que as reflexões em torno da parrésia, no
pensamento de Foucault, estariam muito vinculadas com o texto O que é a crí-
tica?, em conferência proferida em 197810. A crítica não teria como premissa
a apresentação de um argumento que ofereça o que devemos fazer, mas um
instrumento para aqueles/as que lutam e resistem. A crítica, por ser uma
resistência à governamentalidade dos corpos, se constitui em um pequeno
resquício, em nosso tempo, dos propósitos dos filósofos cínicos. Já para Rago,
os conceitos de escrita de si e cuidado de si se ampliam com o da parrésia.
10
Uma tradução a esse texto pode ser encontrada em http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/
critica.pdf – Acesso em: 31 mar. 2022.
Arte da Resistência 15
autores e autoras para fazer uma distinção entre reação e resistência. Se,
por um lado, o próprio capitalismo extrai sua vitalidade da resistência, “é ver-
dade também que a resistência, pouco a pouco, insidiosamente, em surdina,
subterrânea e clandestinamente, contamina as forças do capitalismo ou as
impele a se dobrarem e curvarem em direções não pretendidas e previstas.
Por isso, é simultânea e dupla ao poder” (PEREIRA, 2017, p. 21).
Pereira entende que resistência não é uma mera reação, mas também
uma nova ação, com curso próprio e possibilidade de afetar a ação dos
outros. Dialogando com uma série de autores decoloniais, Pereira defende
que quando resistimos dentro do sistema capitalista também criamos algo
que não seja próprio do capitalismo. Por isso, o autor também enfatiza a ideia
de r-existência, “aquela que se encontra-se no interior e, ao mesmo tempo,
fora da matriz colonial de poder da modernidade” (PEREIRA, 2017, p. 25).
Para o autor, isso ficaria mais nítido quando pensamos as resistências dos
movimentos camponeses que lutam no campo dos territórios. Essas resis-
tências, argumenta ele, implementam e criam espaços alternativos (e não
apenas opostos ou contrapostos) às espacialidades criadas pelas formas e
forças de dominação existentes em nossa sociedade.
16 Leandro Colling
identidades sexuais e de gêneros têm correspondência com os pensamentos
de Spinoza. O filósofo infere, que:
Arte da Resistência 17
Sobre essa explicação, talvez seja importante entender o que aqui se
chama de bons encontros, para não corrermos o risco de entrar em uma
dicotomia entre bons e maus encontros. Daniel Silva destaca que Espinoza
fugia das dicotomias. Por exemplo, diz que
Gilles Deleuze, que dedicou parte de sua obra para estudar Espinoza,
explica que, para o holandês, quando nos encontramos com outro modo,
pode suceder que esse seja “bom”, ou seja, que a pessoa se componha com
esse outro modo. O contrário também poderia ocorrer, a pessoa poderia se
descompor e isso seria algo mau para ela.
Espinoza dividiu os afetos em dois: afetos ações e afetos paixões e/ou
primários. Os primeiros teriam a força de aumentar a potência e apenas
os segundos é que são subdivididos entre paixões alegres ou tristes. E o
filósofo estava muito interessado nos afetos de ações, aqueles capazes de
aumentar a potência de agir dos sujeitos.
Na filosofia política de Espinoza, seguindo os estudos de Daniel Silva
(2020), o foco está no sujeito que não se submente a um contrato (referên-
cia a Hobbes), que não abre mão da sua potência, não aceita ser tutelado e
que, por isso, constitui um elemento fundamental da democracia. Em uma
democracia, desse modo, é vital a potência dos/as cidadãos/ãs, e não a sua
impotência. Para Espinoza, o contratualismo hobbesiano abafa o direito de
resistir. Espinoza pensa em um direito de resistência.
18 Leandro Colling
criado uma nova forma de governamentalidade do ser, baseada em uma
dimensão farmaco (por ser biomolecular) e semiótico-técnica (pornô). Para
Preciado, estamos em uma era farmacopornográfica.
Se vivemos nessa era farmacopornográfica, capturada e desenvolvida
pelo capitalismo, como resistir a ela? Artistas da cena das dissidências
sexuais e de gênero estariam nada mais do que capturados por essa era?
As respostas de Preciado (2014) aparecem de forma mais nítida em outro
livro, chamado Manifesto contrassexual. Se Foucault sugeriu que, para resis-
tirmos aos dispositivos de poder da sexualidade, deveríamos nos inspirar
nos antigos gregos, através da escrita de si e do cuidado de si, e era crítico
às identidades gays, Preciado, sem necessariamente recusar as identida-
des, embora diga que a ideia de contrassexualidade se inspira em Foucault,
considera a proposta dele de recorrer à antiga Grécia uma “retroficção”
(PRECIADO, 2011) e propõe a abertura do fluxo identitário e um novo contrato
sexual11. Cito Preciado:
11
Para saber mais sobre as diferenças e semelhanças entre Foucault e Preciado, ler Renato Alves Aleikseivz
(2021).
Arte da Resistência 19
Formas de resistência
20 Leandro Colling
Em um dos seus mais recentes livros, Judith Butler (2021) faz uma longa
reflexão e defesa da não violência como forma de resistência. Ela diz que
algumas pessoas da esquerda defendem o uso tático da violência alegando
que já vivem no campo da força da violência, pois a violência já acontece
o tempo todo contra as pessoas das chamadas minorias. Ou seja, dentro
dessa perspectiva, a resistência seria apenas uma forma de contraviolência.
Mas, em seguida, Butler pergunta: “mesmo que a violência circule o tempo
todo – e estejamos todos no campo de força da violência – queremos ser voz
ativa quanto a continuidade dessa circulação? Se ela circule o tempo todo,
é inevitável que circule?” (BUTLER, 2021, p. 24).
Adiante, a autora também diz que outro argumento de parte da esquerda,
para justificar o uso da violência, é de que ela é taticamente necessária para
derrotar regimes violentos. “Isso talvez esteja correto, não discuto. Mas
para que esse argumento funcione, precisaríamos saber o que distingue a
violência do regime da violência que que busca derrubá-lo. Essa distinção é
sempre possível? Ou às vezes é necessário assimilar o fato de que a distin-
ção entre uma violência e outra pode desmoronar?” (BUTLER, 2021, p. 27).
Nessa obra, Butler também questiona o uso da violência como auto-
defesa ao lembrar de quem pode usar a violência com essa razão e ter
o seu argumento aceito. Pessoas negras, LGBT e mulheres dificilmente
conseguem convencer as autoridades de que usaram da violência para se
defender. Judith Butler nos convida a pensar sobre esse tema imaginando
um mundo a ser construído que estaria baseado na premissa de que todas
as pessoas dependem umas das outras.
A resistência nas artes ou fora do campo das artes pode ser feita mobi-
lizando diversos afetos: raiva, ódio ou também alegria. Eu tenho pensado
mais sobre a resistência com alegria. Ao fazer isso, me afasto significativa-
mente dos afetos mobilizados em arte queer do fracasso (HALBERSTAM,
2018), não ao futuro (EDELMAN, 2014) e arquivo da infelicidade (AHMED,
2019). Uma das alternativas – e que me parece potente para pensar parte
Arte da Resistência 21
da cena artivista das dissidências sexuais, raciais e de gênero da atuali-
dade – é recorrer ao pensamento nagô, nos termos explicados por Muniz
Sodré (2017). Ele escreveu sobre uma lógica propriamente corporal, com
outro sistema de pensamento (nagô) que foi produzido pelos povos negros
iorubanos escravizados no Brasil. Diz ele:
22 Leandro Colling
candomblé. Nós não esperamos uma vida só de dor, ou só
de alegria, nem só situada entre esses dois pólos. Devemos
à ancestralidade viver a alegria no presente e construir a
alegria para as próximas gerações. Então sou uma mulher
feliz, que cultua a alegria, crê no futuro e acredita, inclusive,
que nosso passado não é triste, é também feliz.
12
O autor define a marronagem como o fenômeno geral das fugas de escravos, mas elas teriam sido reali-
zadas de variadas formas. “Inútil então procurar uma definição precisa pois, profundamente polifônica, a
Arte da Resistência 23
também destacou que, em diversas comospoéticas negras, que chama de
comospoéticas do refúgio, podemos encontrar a memória do corpo negro
nos gestos, nas posturas e em uma série de práticas corporais, nas quais
ele inclui a dança e a música.
Segundo Sodré, o pensamento nagô estaria vivo ainda hoje nas práticas
litúrgicas dos terreiros, mas também em boa parte da cultura e das artes
brasileiras influenciadas pelos iorubás que no Brasil chegaram entre os fins
do século XVIII e início do século XIX. Em um trabalho anterior, por exem-
plo, Sodré (1998) evidenciou as vinculações religiosas do samba. Traçar as
linhas de continuidade e descontinuidade entre as artes negras brasileiras
de ontem com as atuais, essas que interseccionam questões raciais, sexuais
e de gênero acionadas neste texto, me parece um projeto fundamental,
a ser ampliado, para entender como as resistências negras utilizaram e
ainda utilizam a festa, a dança, o ritmo e também a alegria como formas
de resistência.
No pensamento nagô, inclusive a morte ganha outros contornos. Luiz
Antonio Simas e Luiz Rufino (2019), por exemplo, escreveram sobre um
poema de Ifá que conta como os orixás Ibejis venceram a morte (Iku), que
tinha resolvido matar todas as pessoas de um povoado antes do tempo
previsto. Para isso, montou armadilhas para atrair as pessoas. Ninguém
conseguia deter Iku. Os mais velhos perguntaram a Orunmilá sobre o que
fazer e ele disse que apenas os Ibejis seriam capazes de deter a morte. Os
Ibejis tinham um tambor enfeitiçado e foram até Iku e começaram a tocar.
Quando Iku ouviu o som, achou tão bonito que resolveu não matar o menino
que tocava. A morte começou a dançar, cantar e bater palmas, mas não sabia
que o tambor tinha o poder de enfeitiçar os corpos de tal modo que seria
impossível parar de dançar enquanto a música estivesse sendo executada.
Os gêmeos se revezavam para continuar tocando e Iku começou a se sentir
noção de marronagem remete a uma multiplicidade de experiências sociais e políticas, que se espraiam por
cerca de quatro séculos, em territórios tão vastos e variados como os das Américas ou dos arquipélagos do
oceano Índico” (BONA, 2020, p. 16). O autor defende que a memória dessas resistências continua a irrigar
as lutas contemporâneas negras por meio de variadas práticas culturais e artísticas.
24 Leandro Colling
exausta. Implorou para que os gêmeos parassem de tocar o tambor. Os Ibejis
aí disseram: paramos se você levar as pessoas apenas quando realmente
for a hora delas. Simas e Rufino consideram esse poema como uma “potên-
cia criativa de caçar soluções diante da ameaça de desencanto” (SIMAS e
RUFINO, 2019, p. 45).
No dia 13 de abril de 2021, a artista baiana Ani Ganzala Lorde publi-
cou em seu perfil no Facebook13 as imagens de mais uma de suas incrí-
veis obras. O título do quadro é Ìkú ronda a Terra14. Ani se identifica como
mulher baiana, preta, sapatão, candomblecista, artista visual e grafiteira.
Ela escreveu o seguinte em sua rede social junto com a imagem de seu
novo quadro:
“Conta-se que Nanā teve vários filhos, nos quais Ela não
conseguia ver beleza ou encontrava neles algo que dificul-
tava o relacionamento. Todos os filhos foram abandona-
dos por Nanā, menos ÌKÚ que era possuidor de uma beleza
estonteante. Ìkú é o único filho que Nanā conseguiu criar.
Eles nunca se afastaram. Ìkú cresceu e se transformou em
um ser muito belo, forte, guerreiro, que chamava a atenção
de homens e mulheres. Encantados com a beleza de Ìkú,
as pessoas não conseguiam desviar os olhos dele e trata-
vam de segui-lo com a intenção de continuar admirando-o.
Fascinadas, as pessoas não sabiam que toda beleza e
encanto de Ìkú tinham como objetivo atraí-las para o Igbó-
Ìkú (floresta da morte), lugar de onde jamais voltariam. Com
o tempo, todos perceberam o real objetivo escondido na
13
https://www.facebook.com/AnnieGonzagaLorde - Acesso em: 15 out. 2021.
14
Ver imagem em https://www.facebook.com/photo?fbid=10160185334847281&set=pcb.10160185334902281
– Acesso em: 15 out. 2021.
Arte da Resistência 25
beleza de Ìkú e passaram, imediatamente, da adoração ao
pavor. Se Ìkú encanta, também pode ser encantado. Por
isso que para ele se canta: Ìkú siku fo ya yojojo. Nje kó ró ti
awon ómó. Kó ro ti toda
Morte fique encantada.
Dance, dance, dance
Não arme armadilhas contra nossas crianças.
Não arme contra nós”.
26 Leandro Colling
Referências
Arte da Resistência 27
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28 Leandro Colling
Música pop-periférica transviada brasileira:
gênero musicais, cultura popular e
artivismos dissidentes
Leandro Stoffels
Arte da Resistência 29
funk, carimbó, gospel, entre outros. Aqui apresentamos a parte final da
pesquisa de mestrado, que está focada nessa ideia de música pop-periférica
transviada. Explicamos as influências conceituais que embasaram nossa
investigação assim como demonstramos os resultados das análises que
nos permitiram desenvolver esse conceito.
30 Leandro Colling
em especial à segunda, que a autora chama de “música pop-periférica bra-
sileira”. Para articular suas ideias entre gêneros musicais e as tecnologias
de informação e comunicação, Pereira de Sá (2021) se aproxima da Teoria-
Ator-Rede (TAR), tomando emprestada a noção de rede sociotécnica. Esse
conceito compreende que a cultura se constitui a partir da interação entre
diferentes atores, humanos e não-humanos, em redes que são tanto sociais
quanto tecnológicas. Isso quer dizer que uma coletividade – uma rede socio-
técnica – é composta tanto por atores humanos, como artistas, produtores,
consumidores, quanto por atores não-humanos, como instrumentos, sin-
tetizadores, plataformas digitais e meios de comunicação. Nesse sentido,
a autora parte da TAR para propor que “os gêneros musicais são coletivos
compostos por atores humanos e não humanos em ação, e (...) qualquer novo
ator altera sua composição.” (PEREIRA DE SÁ, 2021, p.52). Dessa maneira
fica mais fácil compreender como a entrada de um novo ator (como as plata-
formas digitais, em especial o YouTube) transformou as redes sociotécnicas
que compõem as cenas/gêneros de música pop-periférica brasileira.
A primeira mudança está na superação de certas barreiras geográficas.
As plataformas digitais permitiram que gêneros antes restritos a cenas
regionais passassem a ser consumidos nacionalmente, como o funk, o
bregafunk e o sertanejo. Segundo, o barateamento dos materiais de regis-
tro e gravação permitiram um aumento exponencial da produção musical
independente, deixando os artistas menos “presos” às grandes gravadoras.
Terceiro ponto, o YouTube permitiu que os videoclipes voltassem a tomar
um lugar central no consumo musical, após perderem a importância no fim
dos anos 90. Ao mesmo tempo, com o consumo de músicas via aplicativos, o
álbum foi tomando outro sentido na carreira dos artistas. Antes era essencial
que um artista lançasse um álbum para poder trabalhar e fazer shows, mas
hoje é cada vez mais comum que os artistas trabalhem com singles, músicas
únicas, e que muitas das suas músicas de trabalho não estejam em nenhum
álbum. Por fim, as plataformas digitais permitiram aos/às artistas ter mais
canais de distribuição de suas obras, além de um contato mais direto com
o público, fugindo do controle ou até mesmo do boicote imposto por cer-
tas TVs e rádios tradicionais. Resumindo, a chegada do ator não-humano
representado pelas plataformas digitais provocou mudanças nas redes
sociotécnicas (os gêneros musicais), permitindo a chegada de novos atores
humanos e novas formas de circulação, rompendo com certas fronteiras
regionais e institucionais anteriores.
Nesse contexto de ampliação da produção e distribuição de música
“pop-periférica” brasileira através das plataformas digitais, temos visto uma
multiplicação de vozes dissidentes surgindo em diferentes cenas musicais.
Podemos citar alguns exemplos analisados na pesquisa de mestrado, como
Getúlio Abelha na cena do forró, Leona Vingativa no carimbó moderno e
Arte da Resistência 31
Afrobapho no contexto do pagodão baiano. A seguir, apresentamos esse con-
texto contemporâneo de maior imbricação entre arte e política LGBTQIA+,
descrito por Leandro Colling (2019) como uma “emergência dos artivismos
das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil”.
II. Sobre as dissidências sexuais e de gênero na arte brasileira
Leandro Colling tem dedicado suas pesquisas mais recentes a analisar o
contexto artístico atual, em que temos visto despontar uma multiplicidade de
narrativas artísticas interessadas em expor questões políticas relacionadas
aos gêneros e às sexualidades diversas, contexto que ele descreve como a
“emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gênero no Brasil”.
O autor reconhece que a aproximação entre arte e política no Brasil não é
nova, basta lembrar da importância do teatro negro e das artes feministas,
por exemplo. Entretanto, ele observa que, especialmente no contexto das
lutas das dissidências sexuais e de gênero, os artivismos têm despontado
como uma maneira diferente de fazer política, bem distinta daquelas que
eram habituais até pouco tempo. Até o início dos anos 2000 era mais comum
que as organizações não-governamentais (ONGs) aparecessem como espaço
para formação e articulação política LGBTQIA+. As estratégias políticas
utilizadas também eram distintas, já que as ONGs se aproximam mais das
maneiras tradicionais de fazer política, buscando a transformação social
através do Estado e das leis. Já os artivismos acreditam que a transforma-
ção da sociedade passa necessariamente pelo subjetivo, pelo social, pelo
cotidiano e pela cultura.
Leandro Colling aponta algumas condições para a emergência desses
artivismos: Primeiro, eles surgem como resposta aos setores mais conserva-
dores do Brasil, em especial os religiosos, que elegeram as pessoas LGBTs
como um dos seus principais alvos, e que têm ganhado força política nos
últimos anos. Segundo, os artivismos foram se destacando em oposição às
formas tradicionais de fazer política, pois as pessoas foram se afastando
da lógica estrita da identidade sexual e do paradigma da igualdade, que são
(ou foram) caros à atuação das ONGs. Esses/as artistas/ativistas fogem das
lógicas identitárias rígidas e da ideia de igualdade, preferindo investir num
discurso que celebra a fluidez e a diferença. Segundo Colling, em oposição
às táticas políticas tradicionais, os/as
32 Leandro Colling
entender que as identidades são fluidas e que novas iden-
tidades são e podem ser criadas, recriadas e subvertidas
permanentemente (COLLING, 2019, p. 24).
Arte da Resistência 33
convocam e interpelam o público diretamente, exigindo ação e resposta dele.
Além disso, essas expressões artísticas buscam ocupar espaços diversos,
retirando a arte dos museus, galerias, estúdios e casas de espetáculo e
levando para a rua.
Outra característica importante é que essas obras tomam o corpo como
objeto central. “O corpo das pessoas artistas não é um suporte para a arte – o
corpo já é a sua arte.” (idem, p. 31). O autor parte da hipótese de que a “cena
artivista extrapola os limites do corpo (...). Em vários casos dessa cena (...),
o corpo e a própria performatividade de gênero da pessoa artista são a sua
arte ou são o mote central para a sua produção artística” (idem, p. 31-2). Dito
de outra maneira, essas/es artistas performam sobre suas performatividades
de gênero, ou seja, constroem um número performático que tem como um
dos motes principais a exibição, crítica, estetização da própria expressão
de gênero e sexualidade dos/as artistas. Por fim, artistas e suas obras tra-
balham muitas vezes a partir da alegria, da diversão e da zombaria. Nesse
sentido, o autor afirma ver como característica de muitas dessas obras uma
“felicidade em transgredir” (COLLING, 2019, p. 29). Uma diversão e felicidade
que se projeta pelo fato de corromper regras que definiam limites para os
seus corpos. Para pensar as obras desses/as artistas, podemos lembrar
do verso da música de Belchior que diz: “a felicidade é uma arma quente”.
Em minha pesquisa utilizo a ideia de “transviadagens pop-periféricas”
para apontar músicas e performances que se baseiam em experiências de
gênero e sexualidade que borram padrões hétero e cisnormativos, tendo
como base a utilização de territórios populares e gêneros musicais pop-
periféricos. Me inspiro na ideia de corpos transviados, proposta por Carlos
Guilherme Altmayer (2016; 2020), e influenciada pelos estudos transviados
de Berenice Bento (2017). A ideia de estudos transviados surge como uma
tradução cultural idiossincrática que a autora faz para os estudos queer
no Brasil. Segundo Berenice Bento, “ser um transviado no Brasil pode ser
‘uma bicha louca’, ‘um viado’, ‘uma travesti’, ‘um traveco’, ‘um sapatão’”
(BENTO, 2017, p. 249). Para ela, os estudos transviados apresentam algumas
caraterísticas principais, sendo elas: “1) a negação de identidade como uma
essência; 2) o combate ao suposto binarismo identitário; 3) a interpretação
do corpo como um lugar de combate e disputas” (BENTO, 2017, p. 133).
Altmayer se inspira nas reflexões de Bento para pensar performan-
ces e obras promovidas por artistas dissidentes de gênero e sexualidade.
Para o autor, os corpos transviados podem ser entendidos como “corpos
desobedientes que, a partir de seus trabalhos estético-políticos, questio-
nam e desafiam normas, classificações e lógicas binárias de sexo e gênero”
(ALTMAYER, 2016, p. 11). No dicionário, o termo transviado possui o seguinte
sentido: “aquele/a que se afastou do caminho certo, (...) das referências
morais consideradas boas, do dever ou da retidão” (PRIBERAM, 2022, online).
34 Leandro Colling
Dessa forma, a ideia de transviadagens deve ser lida como uma noção fluida,
como as próprias experiências de gênero e sexualidade a que se referem15.
15
Com o intuito de fazer jus às performances analisadas aqui, utilizamos durante o texto ambos os gêneros para
nos referir às pessoas artistas. Assim, em alguns momentos denominamos “os artistas transviados” e em outros “as
artistas transviadas”, como forma de borrar as noções de gênero, como fazem as próprias obras analisadas aqui.
16
No sentido de “atores sociais” e não “atores e atrizes cênicas”.
Arte da Resistência 35
Abelha, Leona Vingativa, Daniel Peixoto, Kika Boom e Coletivo Afrobapho)
focando em diferentes estratégias comunicacionais utilizadas por essas
artistas, a saber: os gêneros musicais, os memes e viralizações e uso de
outras plataformas e meios. Essa etapa da pesquisa apresenta um caráter
exploratório, buscando pistas que nos auxiliem a pensar e formular essa
ideia de “música pop-periférica transviada brasileira”.
Gêneros musicais
36 Leandro Colling
buscam transitar, assim como o público que desejam alcançar, um público
mais jovem e popular, no caso.
Essa tensão entre diferentes gêneros musicais aparece nos discur-
sos de alguns/mas artistas. Observemos a carreira de Daniel Peixoto, por
exemplo, que pode ser dividida em dois momentos: primeiro na banda de
eletropunk Montage, nos anos 2000, e depois em carreira-solo, nos anos
2010. O Montage já apresentava algumas ligações com a música popular
brasileira, como na canção Raio de fogo, que adapta um ponto de umbanda
para Pombagira em ritmo de música eletrônica. Entretanto, o gênero base
da banda ainda era a EDM e boa parte das letras de suas canções são em
inglês. Peixoto afirmou em entrevista que apenas quando entrou em car-
reira-solo começou a buscar referências brasileiras mais a fundo. Foi nesse
momento que ele conheceu a cantora Gaby Amarantos, que ainda era desco-
nhecida fora do Pará, e se aproximou do tecnomelody, gênero pop-periférico
paraense que influenciou diretamente seu primeiro disco solo Mastigando
humanos. Em entrevista, o artista disse:
Esse gesto de “olhar para suas raízes” parece ser o que mobiliza esses/
as artistas contemporâneos a se aproximar de ritmos populares que eram
comuns em suas infâncias, em suas “origens”. Getúlio Abelha vai num cami-
nho parecido e cita em entrevista que antes de começar a carreira musical
“achava que ia cantar música eletrônica, mais para Depeche Mode ou Marilyn
Manson” (ALOI, 2021), entretanto, influenciado pelas transformações polí-
ticas e identitárias contemporâneas, decidiu se aproximar do ritmo que
cresceu ouvindo. “Já sou esse corpo esquisito, experimento visuais. Sou
considerado louco. Por que não aplicar isso no forró?” (ALOI, 2021). E ele
seguiu explicando as suas inspirações:
Arte da Resistência 37
Observamos então que o trabalho musical desses/as artistas surge do
desejo de construir pontes comunicativas entre a cultura popular e a cultura
LGBTQIA+. As estratégias para promover esse diálogo são diversas, como
podemos observar em algumas obras que envolvem o vogue17. O primeiro
exemplo pode ser visto do videoclipe Popa da bunda, do Coletivo Afrobapho18.
Nesse vídeo coreográfico, as artistas misturam movimentos do vogue com
coreografias do pagodão. Do vogue extraem as performances de mão (ou
“hand performances”), que são passos de dança em que as mãos giram rapi-
damente em direções opostas, com os braços acima ou em frente da cabeça
do/a dançarino/a (figura 1). O pagodão, por outro lado, é representado pelos
intensos movimentos de quadril (figura 2) que caracterizam o gênero. Com
isso, integrantes do coletivo põem em diálogo coreográfico uma expressão
pop-periférica baiana (swingueira) com uma expressão pop-periférica queer
norte-americana (vogue).
Figura 1. Hand performance, associada ao vogue e à cena Ballroom. “Popa da Bunda”. Fonte: YouTube.
17
O “vogue” é uma expressão de dança que faz parte da Cultura Ballroom, uma cena pop-periférica queer
negra e latina de Nova York. O nome vem da revista Vogue, inspiração para muitos passos dessa dança
que reúne referências distintas, como passos de break, movimentos de ginástica, de hieróglifos egípcios,
de uso de estojos de maquiagem, além das poses de revistas de moda, como mencionado (BERTE, 2014).
18
Música original de Attooxxá e Psirico.
38 Leandro Colling
Figura 2. Popa da bunda em frente a barraca de frutas. “Popa da Bunda”, fonte: YouTube.
19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SM_UsYr8uCA - Acesso em: 02 mar. 2022.
20
O vídeo conhecido como Vogue boy foi publicado pelo próprio dançarino, Robert E. Jeffrey, 20 anos após a
performance e viralizou, com mais de dois milhões de visualizações apenas na publicação original. Disponível
em: https://vimeo.com/24750006 - Acesso em: 03 mai. 2022.
21
Conhecida pelo trecho inicial: “Eu quero vê, ô menina eu quero vê // Eu quero vê, você agora embolar”
Arte da Resistência 39
Figura 3. Getúlio Abelha e Robert E. Jeffrey dançam vogue ao som de Pinduca. “Carimbó do Macaco
Vogue”. Fonte: YouTube.
40 Leandro Colling
um gênero musical: seja através da coreografia, como nos casos dos vídeos
de Popa da bunda, no remix de diferentes conteúdos, como em Carimbó do
macaco vogue, ou na citação através de letras como em Voguebike.
Memes e viralizações
Já apontamos anteriormente a importância das novas tecnologias de
informação e comunicação e das plataformas digitais nas carreiras de artis-
tas pop-periféricas transviadas e, dentre os fenômenos que emergem com
essas plataformas, podemos destacar a viralização e a memetização. Os
memes são informações (imagens, vídeos, frases) “viralizadas”, ou seja, que
sofrem uma quantidade desproporcional de compartilhamentos, gerando
uma grande circulação e replicação daquele conteúdo em um curto período
de tempo. Alguns/mas desses/as artistas viveram episódios de viralização, o
que em alguns casos ajudou a promover seus nomes, torná-los mais conhe-
cidos. Outras situações, entretanto, atraíram atenção negativa para eles/as.
Os memes não são exatamente uma estratégia comunicacional consciente,
mas uma condição das próprias plataformas. Não é possível ter um controle
prévio sobre o que se tornará ou não um meme, mas sabemos que novos
memes surgirão todos os dias.
Leona Vingativa é o principal exemplo para se pensar sobre a impor-
tância que os memes e casos de viralização podem ter para as carreiras
das artistas. Antes mesmo de iniciar a carreira musical seu nome já era
reconhecido entre jovens LGBT devido a alguns memes já mencionados,
como a série Leona, Assassina Vingativa, uma paródia dos melodramas lati-
no-americanos, vídeo em que ela recita seu nome completo, assim como
outros vídeos dela dançando (“frescando”) em uma festa de aniversário.
Anos depois ela ressurgiria durante a Copa do Mundo de 2014, lançando
sua carreira musical com videoclipes que também conseguiram viralizar
como Eu quero um boy, paródia de uma das músicas-tema da competição
futebolística, Todo mundo, de Gaby Amarantos e Monobloco, na qual ela
transformou o refrão “Eu quero um gol / Vamos gritar / É gol, é gol” em “Eu
quero um boy/ Bora frescar / Um boy, um boy”. Outro sucesso foi Frescah
no Círio (2015), em que Leona debocha do fanatismo religioso de Marcos
Feliciano e convida as “multidões queer” a comparecer ao Círio de Nazaré,
maior festa religiosa do Brasil que ocorre em Belém. Apesar dos seus vídeos
posteriores não terem viralizado na mesma proporção, seu nome já havia se
tornado bem conhecido entre os jovens LGBT, o que garantiu algum público
para sua carreira.
Leona voltaria a se tornar um meme, dessa vez em uma situação mais
delicada. Ela foi detida, acusada de furto em uma loja de roupas de Belém e
foi tema de notícias de programas policiais. Um trecho do programa Cidade
Alerta viralizou, em que Leona aparece numa delegacia fazendo um mala-
barismo argumentativo, negando que furtou, mas reconhecendo que levou
Arte da Resistência 41
as roupas e afirmando de forma elusiva que “pegou emprestado”. O trecho
em que ela responde isso e explica como pegou emprestado (“eu peguei e
saí”) se tornou um meme. Assim como outro momento da reportagem em
que ela performa para a câmera, cantando e dançando Bad romance, da
cantora pop Lady Gaga. Apesar da situação delicada em que estava, Leona
se aproveitou das câmeras para performar. Não há virtuosismo na voz, nem
capacidade de pronunciar a letra da música, mas o que importa é a festa, o
espetáculo, se aproveitar dos holofotes. Além de passar na edição paraense
do programa, a notícia também foi reproduzida por outras edições estaduais.
Getúlio Abelha também viralizou antes mesmo de começar a carreira
musical, numa situação curiosa. Durante um show da cantora Britney Spears,
no Rio de Janeiro, em 2011, Getúlio estava na plateia e foi escolhido para
subir ao palco para participar de um número com a cantora em que ela dan-
çaria sobre ele. Em determinado momento, Britney estava com as pernas
ao redor dos ombros de Getúlio, que aproveitou a situação para beijar suas
panturrilhas. A cantora se assustou e continuou a performance mais afas-
tada. A situação viraria notícia em portais de notícia como o UOL. Entretanto,
ninguém se lembrava disso seis anos depois, quando Getúlio começou sua
própria carreira musical. Mas, não demoraria para ele viralizar novamente.
Em 2019, o artista estava em um shopping center de Fortaleza quando se
deparou com um concurso de karaokê, que premiava com 50 reais. Com um
figurino simples, sandália de dedo, short tactel e camisa de botão florida, o
artista fez uma apresentação bastante “performática” da música Hoje à noite,
da banda Calcinha Preta. Ele começa o número deitado no chão do palco,
emulando o primeiro verso da canção: “A noite passa devagar, estou aqui
deitado só”. Mais adiante surpreende o público quando impõe uma voz aguda,
imitando a vocalista Silvânia Aquino e começa a cantar os versos femininos
da letra: “Amor / Eu sempre estive sozinha / Eu nunca me importei até lhe
conhecer / E agora você me escolhe...”. Getúlio explora a diferença entre
essa entonação aguda e sua voz mais grave, alternando entre os dois regis-
tros para cantar tanto os versos masculinos, quanto os femininos da letra.
O público do shopping center respondeu admirado, aplaudindo, enquanto
o público da internet respondeu replicando, compartilhando o vídeo em
suas redes sociais. O artista ganhou o concurso e o vídeo original já acu-
mula mais de 10 milhões de visualizações22, ajudando a apresentar o forró
“enviadescido” de Getúlio Abelha para um público mais amplo. Além disso,
devido à repercussão o artista voltou ao mesmo shopping center algumas
semanas depois, dessa vez contratado para fazer um show completo com
o tema Forrozão das Antigas.
22
Disponível em: https://www.facebook.com/100044500236677/videos/2306846412707176 - Acesso em:
02 mai. 2022.
42 Leandro Colling
Entretanto, Getúlio Abelha também conheceu o outro lado dessa moeda.
Em outra situação que viralizou o artista atraiu a atenção de um público
indesejado, a direita conservadora. Um vídeo da apresentação de A bicha que
eu encontrei me fez feliz, versão “enviadescida” da música Ânsia, da banda
Companhia do Calypso, no festival Maloca Dragão, circulou em grupos con-
servadores do Ceará, recebendo críticas e sendo apontado como um “mal
uso do dinheiro público”, pois o evento tinha apoio do governo estadual.
Entretanto, o caso não foi repercutido pelo artista em suas próprias redes na
época, visto que ele não queria contribuir para essa viralização. Observamos
então como o processo de viralização é interessante para os/as artistas, por
ampliar sua exposição pública, mas também pode ser perigoso, já que eles/
as não têm controle sobre ele.
Outras plataformas/mediadores
23
Uma versão mais recente da coreografia da música Bixa preta, publicada em 2020, obteve 7 mil visua-
lizações no Youtube, comparado à 315 mil no Facebook. A versão mais antiga da mesma coreografia, de
2017, tem 871 mil visualizações no Facebook e 6 mil no YouTube. Popa da bunda” tem 36 mil visualizações
no YouTube, frente às 307 mil no Facebook. Dito isso, as redes parecem mais firmes e amplas no Facebook,
no caso do AfroBapho, o que também pode ser um desafio, já que vivemos um momento de abandono do
Facebook pelos/as usuários/as jovens.
Arte da Resistência 43
como “três homossexuais falando sobre suas vivências, música e cultura
pop” e segue ativo até hoje.
Além disso, como mostram alguns vídeos guardados no próprio YouTube,
ainda é comum que os/as artistas se utilizem dos meios de comunicação
tradicionais e façam participações em programas de TV (principalmente
regionais, mas alguns nacionais também). Segundo Pereira de Sá,
44 Leandro Colling
permitiu. Uma terceira participação do artista foi no programa de entrevista
Cena Aberta, da TV Assembleia do Piauí, que contou com uma entrevista
extensa com o artista, além de apresentar trechos de videoclipes e apresen-
tações ao vivo. Observamos que em cada uma dessas participações Getúlio
Abelha recebeu uma moldura diferente. Na primeira ele se destacou como
um forrozeiro, na segunda como um meme, enquanto a terceira permitiu ao
artista apresentar uma versão mais ampla e profunda de si mesmo.
O mesmo ocorreu com Leona Vingativa. Além de ter aparecido em um
programa policial, fez participações em programas humorísticos, como o
Paranoia, da RBA TV, afiliada da Bandeirantes no Pará, e o Legendários, da
Rede Record. Ambas as participações apresentaram a artista pela ótica da
comédia. Entretanto, em 2021, ela pôde exibir sua música sob uma moldura
mais “séria”, ao ser convidada para participar do episódio Divas, do especial
Sons do Pará, da TV Globo do Pará, junto a outras cantoras conterrâneas.
Leona, todavia, vai além da TV. Sua obra já foi remediada em diversos meios.
O vídeo Leona, assassina vingativa, por exemplo, recebeu uma versão em
animação stop motion amadora24, assim como inspirou uma peça de teatro25.
Além disso, sua trajetória já foi tema de documentário e inspiração para
exposição de arte contemporânea26.
Considerações finais
24
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=D_LhNXtTlYQ&t=42s>. Acesso em 02 de maio de 2022.
25
“Leona Vingativa – O Espetáculo”, estrelada pela própria artista.
26
Seus vídeos de humor fizeram parte do projeto “Metafluxus”, do curador Rodrigo Maltez Novaes. No
catálogo da exposição a curadoria conecta os vídeos de Leona Vingativa à obra do filósofo Vilém Flusser.
(Fonte: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/leona-vingativa-vira-tema-de-projeto-de-arte-em-sp-e-lanca-
-novo-clipe-com-parodia-da-musica-pitiu.ghtml. Acesso em: 03 mai. 2022.)
Arte da Resistência 45
de compartilhamento de conteúdo como o YouTube, têm uma importância
primordial para o lançamento das carreiras de artistas da música pop-pe-
riférica transviada brasileira.
Se antes boa parte dos/as artistas e do público LGBT sentia que preci-
sava buscar referências e divas estrangeiras ou gêneros musicais reconheci-
dos pela crítica para poder se afirmar artística e subjetivamente, hoje essas
pessoas começam a se apropriar mais nitidamente de referências populares
do Brasil. Dito de outra maneira, observamos que essa população tem bus-
cado construir outras estratégias subjetivas de pertencimento nessa ficção
chamada Brasil, investindo diretamente em signos populares nacionais.
46 Leandro Colling
Referências
ALOI, André. “Marmota”: descubra tudo sobre o álbum de estreia de getúlio abelha. Harper’s
Bazaar Brasil. Disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/cultura/marmota-descubra-
tudo-sobre-o-album-de-estreia-de-getulio-abelha/. Publicado em: 23 mar. 2021. Acesso em:
05 mar. 2022.
ALTMAYER, Carlos Guilherme. Tropicuir: (re)existências políticas nas ações performáticas
de corpos transviados no Rio de Janeiro. 2016. Dissertação (Mestrado em Design), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2016.
ALTMAYER, Carlos Guilherme. Tropicuir: estético-políticas transviadas - memória, arquivo,
design. 2020. Tese (Doutorado em Design), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro. 2020.
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio
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BERTE, Odailso. Vogue: dança a partir de relações corpo-imagem. Dança: revista do Programa
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BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.
BENTO, Emmanuel. Enfrentamentos, referências e novidades de Getúlio Abelha. Diário do
Pernambuco, 29 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.
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COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidên-
cias sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das
dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019, p. 11-40.
PEIXOTO, Daniel. Daniel Peixoto - Se Liga - Globoplay 10/4/2021. Youtube, 02 de maio de 2021.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0AWLoKwEs9k - Acesso em: 03 mai. 2022.
PEREIRA DE SÁ, Simone. Música pop-periférica brasileira: videoclipes, performances e tretas
na cultura digital. Curitiba: Appris, 2021.
PRIBERAM. Verbete: “Transviado”. (online) Disponível em: https://dicionario.priberam.org/
transviado - Acesso em: 06 mai. 2022.
SERÁ q Presta? #13. Entrevistado: Getúlio Abelha. Entrevistadores: Denis Lacerda e Moisés
Loureiro. Fortaleza; agosto de 2021. Podcast. Disponível em https://www.youtube.com/wat-
ch?v=xapC_H9RBKo - Acesso em: 03 mai. 2022.
STOFFELS, Leandro. Transviadagens pop-periféricas: videoclipes, artivismos bastardos e
territórios populares. 2022. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2022.
Arte da Resistência 47
Eu pesquisadora, elas cantoras, nós
encruzilhada: o que aprendi com Katú
Mirim, Bia Ferreira e Ekena na cena
musical artivista brasileira
Eu pesquisadora
Parte deste texto integra a dissertação de mestrado da autora e foi parcialmente publicado nos anais do V
27
Seminário Internacional Desfazendo Gênero, com o título: Quem cê tá pensando que é? Ekena em cenas artivistas.
Arte da Resistência 49
Meu interesse pelos estudos de gênero existe desde as minhas primei-
ras experiências de silenciamento e violências. Não sabendo dar nome, na
infância e adolescência, aos movimentos de (r)existências que ia produzindo,
junto ao desejo por um mundo diferente para mulheres, foi na graduação,
adulta, que o meu ativismo se consolidou e se ampliou para pensar outros
sistemas de opressão, mesmo marcada por sequelas.
Desde a infância fui estimulada (por minha mãe) a realizar atividades
que envolvem a criação e o trabalho manual. A arte me acompanhou por toda
a vida, nunca de maneira central, mas, no mínimo, na admiração e inspiração.
Foi em 2018, com as eleições para a presidência da República, que a arte
passou a ocupar também a função de autocuidado. O trabalho manual da vez
envolvia um resgate (crochê) e uma aprendizagem (macramê). Na medida em
que as peças iam sendo produzidas, eu me sentia sendo construída junto.
Fazia reflexões, adaptações, aproveitamentos, desfazimentos e pequenas
curas eram produzidas.
Esse movimento subjetivo culminou em algumas perguntas ao descobrir
o artivismo, por meio dos estudos no Curso de Especialização em Gênero e
Sexualidade na Educação, oferecido pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), através de uma parceria
entre Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Aberta do Brasil
e a Capes. Após esse curso, ingressei no Mestrado em Cultura e Sociedade,
também da UFBA, com as perguntas que surgiram naquele momento: assim
como pequenas curas me acontecem na medida em que faço nós e pon-
tos, elas também acontecem na vida de outras mulheres que escolhem e
produzem arte posicionada à esquerda? O que mais acontece com elas?
Eu, que já não estava só, fiquei menos ainda com a orientação de Leandro
Colling. Minhas perguntas se tornaram nossas e mudaram um pouco: o que
as experiências em cenas artivistas produzem em mulheres (artistas des-
sas cenas) em diferentes contextos de gênero, sexualidade e raça? Como
a interseccionalidade aparece em suas obras? Quais rupturas e continui-
dades são produzidas na cena artivista em que essas mulheres atuam?
Eu, pesquisadora, não neutra, sou conduzida por minha ancestralidade,
desde as pistas deixadas nos nós de crochê e macramê às escolhas teó-
ricas e metodológicas. Somos (as artistas, a orientação, as mulheres que
compõem o referencial teórico deste trabalho, minha ancestralidade e eu)
vários nós de subjetividades fraturadas e (r)existentes. Escrevo (lendo e
ouvindo elas) porque entendi com a Audre Lorde que, falando, faço pontes
com sujeitos que me interessam. Espero que este texto nos ajude na produ-
ção de novos lugares, mais atraentes do que os que estão disponíveis hoje,
porque construídos por nós. Que sigamos juntas.
50 Leandro Colling
Elas cantoras
Bia Ferreira
Arte da Resistência 51
composições autorais: 1. Brilha minha guia/ 2. Não precisa ser Amélia / 3. De
dentro do ap/ 4. Cota não é esmola/ 5. Levante a bandeira / 6. Só você me faz
sentir/ 7. Boto fé/ 8. Um chamado/ 9. Sharamanayas. As canções De dentro
do ap e Boto fé têm clipes. Igreja Lesbiteriana, um chamado, é um álbum
que mistura influências do reggae, jazz, blues, soul, funk, R&B, maracatu,
manguebeat e gospel. Ela define sua música como MMP (Música de Mulher
Preta), se identifica como artivista e tem como um dos principais objetivos,
com sua música, informar o que está acontecendo nos contextos de raça,
classe, sexualidade e gênero. Em muitos momentos, faz referência a con-
teúdos religiosos. Em entrevista para o Showlivre, Bia disse que
Katú Mirim
52 Leandro Colling
cochichava no ouvido das pessoas pra falar que eu era a filha do coração”
(MIRIM, 2020, online).
Katú teve infância e adolescência marcadas pelo racismo, violências,
conflitos com sua família adotiva e realizou diversas tentativas de contato
com seu povo. Seu falecido pai adotivo foi pastor e Katú era obrigada a
frequentar a igreja, ler a bíblia, mas nunca se identificou com a religião, o
que aumentava as situações de confronto protagonizadas pelo pai adotivo.
Ainda na adolescência, Katú fez contato com alguns povos até chegar no seu
e assim iniciou um caminho de luta junto aos povos indígenas. Foi reconhe-
cida como pertencente a um povo e assumiu seu nome de batismo na aldeia.
Foi em 2017 que Katú Mirim ficou conhecida pela #indionãoéfantasia e,
no mesmo ano, lançou a música Aguyjevete, que conta com 24.217 visua-
lizações no YouTube (janeiro de 2022). Tudo o que produz tem conteúdo
indígena. Em seus perfis no Instagram, Facebook e TikTok, Katú Mirim realiza
um trabalho de educação e luta contra o racismo e a LGBTfobia direcionados
para pessoas indígenas.
Em 2020, lançou cinco músicas, no estilo rap, que compõem o EP Nós:
1. Aguyjevete/ 2. Nativa/ 3. Avisa lá/ 4. Diga não/ 5. Na mira. Fora desse EP,
também lançou outras canções pré e pós EP: Proteja o lar - 2018/ Vestido de
hipocrisia - 2018/ Resistência - 2018/ Filhos da terra - 2018/ Retomada - 2019
part. Marina Peralta & Afrojess/ Xondaria - 2019/ Força - 2019/ Me tira o ar -
2020/ Não cansei - 2020/ A busca - 2021/ Indígena futurista - 2021. No final
de janeiro de 2022, lançou seu primeiro álbum, uma mistura de rap e rock
metal. São 11 faixas: Sem silêncio/ 2. Revolta/ 3. Luto/ 4. Jogo sujo/ 5. Sangue
azul/ 6. Sigo mudando/ 7. Originais/ 8. Click boom/ 9. Falso profeta/ 10. No
alvo/ 11. Não é o fim. Suas letras descrevem as violências sofridas pelos/as
indígenas do Brasil, bem como o movimento de resistência que manteve
viva a cultura de vários povos. Katú também canta sobre o amor dissidente
sexual e de gênero.
Ekena
Arte da Resistência 53
Começou a cantar no coral da escola, aos 6 anos, e uma de suas primei-
ras apresentações foi aos 13 anos, no extinto Tropical Shopping (Araraquara/
SP). Em entrevista para o podcast Revolusom Cultural, em 16 de junho de
2021, contou que seus avós eram muito presentes. Aprendeu a tocar violão
com o avô Zé, que a acompanhava em shows, bares e boates LGBTQIA+. Na
infância, sua avó Cida a levava em um trio elétrico, perto de onde morava,
para fazer cover da Xuxa. Ela relata que tinha uns 3 anos de idade: “Eu me
lembro de uma saia vermelha de bolinha. Todas as memórias que tenho são
de cantar” (ARARAQUARA, 2017).
Ekena canta, compõe e adora o estilo folk moderno. Teve uma banda,
a Opus Acústico, que se desfez. Depois seguiu carreira solo, tocando com
vários músicos em bares, festas e convenções. Participou do projeto indie
folk Johnny Sue. Foi uma das 80 finalistas do programa Ídolos, em 2012.
Também foi backing vocal de Liniker. Atualmente, segue carreira solo can-
tando suas canções autorais.
O primeiro álbum de Ekena, Nó, foi lançado no YouTube, em 2017, e
apresenta 13 canções: 1 - Nó/ 2 - Por enquanto/ 3 - Pois é/ 4 - Bem te vi/ 5
-Abismo/ 6 - Greatest Liar/ 7 - Juro juradinho/ 8 - (...)/ 9 - Todxs putxs/ 10 - Ana/
11 - Agda/ 12 - Passarinho/ 13 - Mais tarde. Trata-se de uma mistura de folk e
MPB e conta com dois clipes nos singles Bem te vi e Todxs putxs. Suas letras
descrevem encontros, desencontros, partidas, despedidas, juramentos. Fala
de abismos, feridas, dores, culpas, faltas e solidão.
Nós encruzilhada
54 Leandro Colling
Nesta investigação não aplicamos uma metodologia aos “objetos” da
pesquisa. O caminho metodológico foi se fazendo e se criando com elas, as
mulheres artistas, no processo de pesquisa, a partir do mapeamento das
obras e do que elas nos provocaram a pensar e a ler. A metodologia, que é
baseada na interseccionalidade, dialoga com saberes dos feminismos negro,
decolonial e queer para analisar algumas das obras das artistas, bem como
algumas entrevistas e performances artísticas encontradas na internet.
Esse diálogo só é possível porque o campo nos levou ao encontro desses
saberes e não o contrário, as cantoras produzem cenas que se sintonizam
com essas perspectivas.
Arte da Resistência 55
“Desconstruir o sujeito do feminismo não é declarar a sua morte, mas liber-
tá-lo de seu caráter normativo e fixo, que mantém e reproduz subordinação”
(MARIANO, 2005, p. 492). Não se trata de negar os sujeitos, mas de redefinir
sua constituição e negar, é verdade, a essência das identidades (MARIANO,
2005, p. 497).
Esse problema teórico da universalização do sujeito mulher não é
identificado apenas por Bia Ferreira e Judith Butler, mas também, e antes
mesmo dessas, por feministas negras e latino-americanas, por feministas
dos países de chamado “Terceiro Mundo” e das ex-colônias e por feministas
lésbicas (NOGUEIRA, 2017). Em 1851, Sojourner Truth, que foi uma mulher
negra escravizada, já trazia o questionamento desse sujeito universal em
seu discurso – Eu não sou uma mulher? – “proferido como uma intervenção
na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em uma
reunião de clérigos que discutiam os direitos da mulher” (ASSIS, 2019, p. 15).
No feminismo negro, as mulheres negras não produzem uma teoria da
diversidade, uma interseccionalidade ornamental (BILGE, 2018). Mulheres
negras são sensíveis ao “ponto de vista feminista” (BAIRROS, 1995, p. 461),
conseguem evidenciar a multidimensionalidade, a interseccionalidade como
uma pluralidade de pontos de vistas que não fragmenta, mas fortalece um
feminismo em que não exista hierarquia de opressão (LORDE, 1984, p. 7 apud
ASSIS, 2019, p. 19), universalismos, sofrimentos fixos e opressão comum
(hooks, 2015). “Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar
na construção da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única”
(hooks, 2015, p. 208).
Quando mulheres negras falam, elas rompem o silêncio que protege e
mantém o poder entre os opressores, diversos opressores, aqueles que têm
um “outro” para chamar de seu, incluindo as mulheres brancas heterosse-
xuais, como mostra Bia Ferreira. Elas contam, inclusive, sobre a repercus-
sões dos estereótipos construídos para as mulheres “preta para trabalhar,
branca para casar, e mulata para fornicar” (CARNEIRO, 2002, p. 172): tra-
balho explorado (Ibid. p. 173/174), solidão estrutural da mulher negra (Ibid.
p. 174), turismo sexual (Ibid. p. 176), assédio sexual (Ibid. p. 178).
Mulheres negras estão empenhadas em um projeto político que não se
alinha com a colonização de nenhum corpo, mas em “realizar a igualdade
de direitos e tornar-se um ser humano pleno e prenhe de possibilidades e
oportunidades para além da condição de raça e de gênero é o sentido final
dessa luta” (CARNEIRO, 2002 p. 192).
Bia Ferreira, quando fala, diz:
56 Leandro Colling
contemplada, porque o meu corpo sempre foi exposto, sem-
pre foi mostrado como um pedaço de carne, e nu. Era assim
que a gente era vendida. É assim que a gente é vendida. Esse
ano foi o primeiro em que a Rede Globo colocou a Globeleza
de roupa. Quando eu entendi que existe muita mulher preta
que já está pensando a revolução e tecnologias de sobrevi-
vência para a vida e manutenção de mulheres pretas nessa
sociedade, eu entendi que existe sim uma luta pela vida des-
sas mulheres. É um feminismo sim, mas ele é interseccional.
Não é um feminismo que fala só das mulheres brancas. Fala
das mulheres brancas, pretas, indígenas, trans, travestis.
É sobre a vida das mulheres. Por isso eu me sinto contem-
plada. [...] Para eu segurar a mão de uma pessoa branca
na luta comigo, eu preciso que ela sangre comigo. Porque
eu sei que se eu estiver segurando a mão dela, o tiro vem
em mim, não vai nela. Você nunca vai saber o que é ser eu,
mas se coloca no meu lugar. É sobre isso que eu falo em
“De Dentro do Ap” (CAETANO; HERMANSON, 2019, online).
Arte da Resistência 57
comunidade desde o habitar-se a si mesmos/as”. (Ibid., p. 943). Katú Mirim
faz a resistência, expõe a fratura e evidencia o entendimento decolonial de
que o processo oprimir ← → resistir de que Lugones fala, enfatiza subje-
tividades ativas, criativas, “antitéticas à lógica do capital” (Ibid., p. 498) e
cria um pensamento de fronteira. “A única possibilidade de tal ser jaz em
seu habitar plenamente esta fratura, esta ferida, onde o sentido é contra-
ditório e, a partir desta contradição, um novo sentido se renova.” (Ibid., p.
496). Se renova criando além de pensamentos de fronteiras, coalizações e
aprendizagens coletivas:
58 Leandro Colling
tempo todo uma contra a outra. Cê acha mesmo que eu tô
neutra? Cidade, campo, ponte, aldeia, quilombo, como eu
poderia dormir bem? AGRONEGÓCIO GENOCIDA e nós?
Retomando territórios ancestrais, costumes tradicionais,
língua, dança, trança, voz, calma que ainda vai ter mais.
Katú! Fala pa nois! Pensaram que ficamos pra trás, que não
íamos correr atrás, a gente não só fala mas faz, Genocídio,
escravidão e machismo nunca mais! Genocídio, escravidão
e machismo nunca mais! Uma preta querendo ser branca,
tudo bem, né? Na hora do carinho cês faz em quem? Sou
cria de Tia Eva, bruxa curandeira. Cuidava da comunidade
e sem escolha foi guerreira. Guiada pelas matas, parteira!
Medicina matriarcal, raiz divina. Mulher que ensina, cês abo-
mina. Aprende a responder desde menina! Peço que caiam!
Todas as fronteiras. Sem boas maneiras. Hoje nós viemos
RETOMAR. Recuperação! Dos espaços que nos pertencem.
Calar a voz que sempre nos faz duvidar. Reparação! Deixe
crescer as nossas sementes. A revolta vai fazer eu tomar o
meu lugar. Demarcação! Devolvam as nossas terras, o agro
não é pop - Parem de nos matar. Libertação! Libertação! Se
não for nóis, vai ser quem?
Nós de Ekena
Arte da Resistência 59
feminino, de distintas identidades sexuais, raciais e de classe, em que o
cuidado, a disponibilidade para o homem, incluindo tolerar violências, é
condição para receberem afeto, valor e amparo.
Na canção Todxs putxs não apenas a letra afronta e produz narrativas
transgressoras das normas de gênero e sexualidade, a aparência e perfor-
mance de Ekena em alguns shows também. No Festival Sonora, do Estúdio
Showlivre, divulgado no YouTube em 13 de abril de 2018, por exemplo, a
cantora aparece de vestido transparente e evidencia suas várias tatuagens,
calcinha, seios/mamilos aparentes, vários piercings, pouca maquiagem,
cabelo curto. Ao ser questionada sobre “os peitos de fora”, na entrevista
ao canal Panelaço, em 5 de setembro de 2019, Ekena disse: “é só uma teta,
você tem, eu tenho. É um mamilo, é um peito.” (EKENA, 2019, online). Do
Festival As mina tudo, em Araraquara, realizado em dezembro de 2017, há
vídeos publicados no YouTube com a canção Todxs putxs, em que Ekena
se apresenta de maiô, desce do palco, entrega microfones para mulheres
do público, carrega e dança com uma criança e em coro todas cantam. A
artista realiza o que Mayana Soares e Ramon Fontes (2019), inspirados em
bell hooks, Audre Lorde, Grada Kilomba, Carla Freitas dos Reis e Leda Maria
Martins escrevem sobre corpos que transgridem porque existem: “os corpos,
os sujeitos em dissidência, são a maior transgressão às normas de controle
e opressão” (SOARES e FONTES, 2019, p. 36). E completam:
Ekena transgride com seu corpo gordo, seminu, com sua boca/voz
que denuncia, rompe o silêncio, mas que também celebra a rua, brilho e
flor. Transgride com sua dança em meio ao caos e à dor que a apropria-
ção (GUILLAUMIN, 2014) dos corpos das mulheres produz. E tudo vai
acontecendo na cena dessa canção, nos shows, na dimensão do corpo, no
borramento de muitas normas, e é assim que o corpo vai se fazendo uma
“pedagogia transgressora, só precisamos bagunçar os sentidos”. (SOARES
e FONTES, 2019, p. 41).
A investigação não se findou até a escrita deste artigo e algumas aná-
lises estão em nosso radar. Aprendi até aqui com Katú Mirim que música
é resposta; com Bia Ferreira, que é informação; com Ekena, que é cura,
60 Leandro Colling
questões que são analisadas na dissertação de modo aprofundado. Aprendi
com Ekena que racializar a música não faz parte do seu processo de cura,
mas em Bia Ferreira e Katú Mirim, mulheres racializadas pelo sistema, isso
assume lugar central. O que é irrevogável aqui é a ideia de que “Povoada/
Quem falou que eu ando só?/ Tenho em mim mais de muitos/ Sou uma mas não
sou só”. Ninguém é só mulher, é também raça, sexo, nação etc. São essas
inter-relações que as cenas produzidas por essas cantoras revelam, e isso
é possível de ser visto através da sensibilidade analítica da interseccio-
nalidade. São as inter-relações que produzem sujeitos singulares e cenas
artivistas únicas, apesar de disputarem narrativas, por vezes, semelhantes,
como o antirracismo. É o nó (amarração, encruzilhada) construído pelo nós
(coletivo) reivindicando outras possibilidades de viver esse nós (de nó).
Arte da Resistência 61
Referências
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O Imparcial Araraquara, 4 jun. 2017. Disponível em em: https://www.facebook.com/
JornalOImparcialAraraquara/photos/ekena-monteiro-sua-voz-%C3%A9-a-sua-identidade-e-
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62 Leandro Colling
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Pinheiro. Canal: SalonLineBrasil, 2020. 1 vídeo (19:43). Disponível em: https://www.youtube.
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RODRIGUES, Paula. A desobediência pelo afeto - atração musical do 1º Prêmio Ecoa, cantora
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SOARES, Mayana Rocha; FONTES, Ramon. Pedagogias transgressoras. Salvador: UFBA,
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019.
Arte da Resistência 63
Arte, educação e ativismos interseccionais
28
Termo criado por Lenira Rengel (2016, p.21) a partir do qual defende a inseparabilidade entre matéria,
sentimento, razão e espírito. Para Rengel, tudo acontece junto: dança, movimento, ação e pensamento.
29
Música interpretada por Maria Bethânia. Diva popular brasileira, musa de conservadores e libertários,
heterossexuais e LGBTQIA+.
Arte da Resistência 65
social, o suposto inimigo do povo, da moral e dos bons costumes. O sujeito
em formação, Sandro, já era deformado pelos olhos de seus contemporâ-
neos. O pai me chamava de mulherzinha ao me repreender pela alça da
camiseta folgada que caía pelo ombro, que poderia insinuar uma sensua-
lidade estereotipada como feminina. A vizinhança se escandalizava ao me
ver sambar numa roda de samba, com a irmã mulata30, que considerava
como uma segunda mãe. Amigo só tinha mesmo um, até experimentamos
brincar de espada e rolar pelo chão bem juntinhos. E gostamos. Depois da
separação de meus pais, nos separamos, nunca mais o vi. O tio com nome
de santo, Pedro, destitui-me do lugar de “homem” por não ter o ossinho do
ombro tão aparente como o dos outros meninos da família. Pelo pé sem cava,
fui apelidado de pé-de-pato, inumano, feio. Caí muitas vezes, usei botas
ortopédicas, gesso nos pés e pernas para corrigir uma anatomia considerada
anormal. Tinha os joelhos para dentro também, como se uma espécie de
ancestralidade feminina estereotipada me levasse a manter as pernas bem
fechadas, supostamente castas. Felizmente, tenho uma foto, aos 9 anos,
num desfile da primavera no bairro de Pernambués, em Salvador, vestido
com uma segunda pele preta, tecido de brim encorpado, gorro vermelho e
cachimbo na boca, representando o Saci Pererê, figura lendária do folclore
brasileiro. Nesse registro, tenho uma das pernas mais lindas que já vi. Pele
parda bronzeada do sol. Embora com privilégios de branco, nunca me senti
como um. Meu lugar de classe operária sempre me fez menos branco do que
sou. Como diria Caetano, eu sou bem neguinha. Sempre me vi atravessado
por diversos marcadores sociais de gênero e sexualidade sempre lidos como
nada privilegiados. Filho de pai feirante e mãe costureira, minha família foi
tradicional pelo menos na função de pai machista e mãe heroína. Ela sem-
pre esteve ao meu lado e é minha referência de humanidade. Além disso,
foi ela quem me deu de presente de aniversário meu primeiro LP de Miss
Lene31. Lembro de que cantava e dançava as músicas desse disco, fazendo
as mesmas coreografias da artista na sala de minha casa. Para escândalo
geral da família, da comunidade e da nação.
Nessa mesma época, fui retirado das aulas de Dança pelo meu pai, pois
ele dizia que isso não era para homens, que eu estava ficando afeminado
com a Dança, mais afeminado. Então, minha mãe decidiu que, se eu seria
privado das aulas de Dança, minha irmã Sandra também seria, pois se um
não tinha o direito, a outra também não teria. Tenho o maior orgulho da
atitude de minha mãe diante dessa questão, considero altamente ousada,
feminista e justa naquele tempo. Ela se antecipou ao afirmar o “papel social
da educação” como um “bem comum” independente das diferenças, através
30
Filha de meu pai com outra mulher, antes do casamento com minha mãe.
31
Cantora de disco nordestina, nascida no Ceará, que fez sucesso no final dos anos 1970, influenciada pela
diva do disco brasileiro Lady Zu, nascida em São Paulo.
66 Leandro Colling
da reinvindicação do direito à igualdade de acesso à aula de Dança para
ambos os sexos, que viria a ser proclamada pela Constituição Federal de
1988, no processo de redemocratização do país.
Desse modo, a partir do corpo, desde a tenra infância, descobri o pra-
zer por Dança moderna. Por outro lado, a partir dos estigmas, sexismo e
machismo que atingiam homens e mulheres da Dança nos anos 1970, viven-
ciei imediatamente também castração, interdição e ruptura. Não entendia
quase nada que atingia aquele corpo biopsicossocial em desenvolvimento,
mas sentia no corpo-natureza-complexo os dispositivos de interdição que
impunham disciplina e sofrimentos a quem é inconforme aos padrões hege-
mônicos de masculinidade, cis e heteronormatividades.
Como sabemos, a hierarquização de identidades por classe, raça, sexo,
gênero e sexualidade visa à manutenção do status quo de uns, considerados
“normais”, em detrimento de outros, tidos como “estranhos” ou “patológicos”
(FOUCAULT, 2013a). Desse modo, ao propor um mergulho pelo que sou/
fui/estou nessas encruzilhadas intersecionais de opressão e afirmação,
pretendo problematizar o imaginário colonial das opressões de gênero e
sexualidade para, a partir daí, desestabilizá-las, sobretudo por meio de estra-
tégias artísticas, políticas e culturais que promovam a valorização desses
seres lidos como exóticos e abjetos.
Contudo, como o aprendizado leva a vida toda, cá estou eu de volta ao
começo, em 2022, nessas performances de tempos espiralares32, como estu-
dante na Licenciatura de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
buscando esse reencontro com a minha primeira paixão pela Arte, que desde
a tenra idade me proporcionou meus primeiros voos, mas também foi alvo de
primeiras interdições. Dois anos se passaram entre os altos e baixos de um
período marcado por outra interdição sanitária sobre os corpos. Dessa vez,
a pandemia do COVID-19, que atingiu todes indiscriminadamente, ainda que
com repercussões diferenciadas sobre vidas, atravessadas pelos marcado-
res sociais de geração, raça e classe. De volta à Escola de Dança de forma
presencial, sinto essa experiência como oportunidade única de letramento
de mim na Dança/Arte/Educação, a impulsionar minhas futuras escolhas
estéticas, poéticas e políticas.
Durante os últimos anos33, tenho vivenciado um profundo processo de
descobertas epistemológicas que dialogam com os meus desejos, ideias
32
Conceito cosmológico e filosófico de Leda Maria Martins (2021) que explora as relações recorrentes entre
corpo, memória, tempo, ancestralidade, vida e morte, através das quais defende a construção de saberes em
cronologias não lineares, principalmente, por meio das corporeidades (corpo-tela/corpo em performance)
e desconstrução das dicotomias ocidentais entre oralidade e escritura (oralitura), corpo e mente, passado,
presente e futuro. Assim, ela reafirma a África como continente pensante desde sempre.
33
Mais precisamente 8 anos, decorridos desde 2014, após uma década e meia de atuação como publicitário
social, produtor cultural e ativista LGBTP+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, profissio-
nais do sexo e mais), quando retorno à Universidade Federal da Bahia como estudante do Bacharelado
Arte da Resistência 67
e escolhas referentes à prática e ensino de Arte, que coadunam com o meu
ativismo político, educativo e artístico no quase meio século de minha exis-
tência. Falo em geração porque esse marcador social, dentre outros, afeta
e atravessará irreversivelmente o meu fazer em Dança/Arte/Educação.
Desse modo, neste texto, ao mesmo tempo em que revisito minhas
memórias e marcadores de gênero e sexualidade em articulação com as
experiências artísticas que marcaram a minha constituição enquanto sujeito
ativista, dissidente e utópico, especialmente através da Música, do Teatro,
da Dança e movimentos sociais, pretendo acionar essas experiências para
pensar/desenvolver saberes, estratégias e tecnologias para existirmos. Por
meio do treinamento do corpo não apenas para dançar e atuar, mas sim para
encarnar, movimentar e expressar inquietações e desejos mais profundos,
para sobreviver e resistir, subjetiva e coletivamente, em espaços marcados
historicamente por colonialidades de classe, raça, gênero e sexualidades,
nos quais a promoção e garantia de dignidade, bem-estar, autonomia e liber-
dade são conquistadas através de lutas travadas diariamente na família, na
comunidade e na sociedade.
Interdisciplinar em Artes. Na sequência, realizo o Mestrado em Cultura e Sociedade, de 2018 a 2020, ingresso
no Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS/UFBA) e, atualmente,
curso a Licenciatura de Dança.
34
Termo proposto pelo biólogo Jakob von Uexkull, na primeira metade do século 20, para explicar a forma
como seres vivos interagem com o meio ambiente, servindo de base biológica para a semiótica (VIEIRA, 2009).
68 Leandro Colling
partir de sua sensibilidade, codifique adequadamente as
variações das propriedades dos itens ambientais, sendo
que do ponto de vista do objetivismo realista crítico, tais
variações, constituem o que chamamos informações. A
internalização do fluxo de informações e sua consequente
elaboração à Umwelt, é que embasa os mecanismos de
cognição. É claro que o conhecimento é função vital para
sistemas vivos, a garantia que estes têm de sobrevivência
a partir da adequada e eficiente elaboração da realidade
na forma de representações coerentes (VIEIRA, 2009, s/p).
Arte da Resistência 69
mente” (Idem, p. 41). A partir da Teoria da Relatividade35 e a desconstru-
ção da ação da gravidade como fenômeno constante sobre corpos, propõe
outras possibilidades de tensões e movimentos gerados pelas interações
do corpo-natureza com diversas possibilidades de contato, invenção e cria-
ção através das dinâmicas miofasciais. Para Marta Bezerra, o tecido fascial
representa e constitui um elo entre nossas estruturas internas e externas,
musculares, sensoriais e gravitacionais. Reveste todo o nosso corpo como
uma espécie de “macacão” de membrana fluida. Através dele e das dinâmi-
cas de movimentos com diferentes superfícies, somos capazes de produzir
infinitas tensegridades36 inventivas, criativas e relativamente autônomas,
transformadoras e libertadoras, porque irreversivelmente correlacionais,
com diferentes tecidos naturais: terra, água, pedra, ar: “Com base neste
entendimento, a gravidade provém da interação dos corpos e está, portanto,
diretamente relacionada à deformação do espaço. O peso dos nossos corpos
e de todos os corpúsculos do universo, inclusive a própria Terra, estão sob
a ação da gravidade” (BEZERRA, 2021, p. 46).
Entretanto, essa gravidade não é constante e sim variável conforme
as conexões espaço-temporais, as relações dos nossos corpos com nós
mesmos, com o outro, com a natureza e com o mundo. Eu, você, ele, ela,
estrelas, astros, ar, mar, fogo, terra... Todes temos protagonismos compar-
tilhados nesses processos de movimentos, criações e transformações. Não
há espaço vazio. Até o invisível aos olhos tem presença. Tem intenção, peso,
qualidade e movimento em relação.
Marta Bezerra nos explica que, em todos esses campos de forças sen-
soriais e gravitacionais, estamos susceptíveis aos efeitos da biopolítica do
poder, os quais realizam operações sistêmicas espaço-temporais a partir
35
Teoria desenvolvida por Albert Einstein.
36
Segundo Marta Bezerra (2021), a fáscia constitui uma rede tensional distribuída por todo corpo formando
um componente do movimento denominado tensegridade, a partir do qual são produzidos vetores de energia
capazes de promover equilíbrios dinâmicos na estrutura musculoesquelética, por meio de deslocamentos
de pesos, oposição de forças e apoios entre diferentes superfícies materiais, em articulação com a respi-
ração e a gravidade.
70 Leandro Colling
dos atratores gravitacionais que podem diminuir ou aumentar o “potencial
de acoplamentos bem-sucedidos com o ambiente através da pele” (Idem,
p. 47). Através dessas operações sistêmicas espaço-temporais, os atrato-
res gravitacionais podem afetar a tensegridade dos músculos e relativizar
os processos de emancipações mentais, corporais e emocionais. Exemplo
disso foram os dispositivos de disciplinamento e controle social utilizados
para contenção de corpos e desejos ao longo da história, como hospitais,
quarteis, internatos, escolas, referenciados por Michel Foucault (2013b).
Muitas vezes utilizados como dispositivos para atrofias sociais, culturais,
cognitivas e emocionais. Arquitetadas, inclusive, nas organizações espaciais
de comunidades economicamente desfavorecidas, nas favelas, nos barracos,
nas casas minúsculas, nos únicos banheiros, nos quartos coletivos, que fun-
cionam como estruturas de concentração e/ou dissipação de energias vitais,
de atrofias e/ou desenvolvimentos, de opressão/castração e/ou autonomias/
liberdades. Representam atratores gravitacionais opressivos, inibidores e
castradores de vida, inventividade, criação e realização.
Em contrapartida, penso como é possível a emergência de atratores
gravitacionais dissidentes, já que, a partir do conhecimento de limitações
e potencialidades, podemos acionar outras estratégias individuais e coleti-
vas de resistência de atração de seres vivos/matérias vivas que nos poten-
cializem e nos fortaleçam criativa, emocional, cognitiva e artisticamente.
Exemplos são os guetos, as tribos, os grupos, espaços de sociabilidade,
como as universidades públicas, as ruas, as praças, por onde se articulam
processos materiais e subjetivos de empoderamento, vivências e expressões
nas quais o corpo ecossomático sensorial háptico está no centro desses
campos de forças: existência, fortalecimento, inventividade, transformação
e desenvolvimentos mesmo com todas as limitações hegemonicamente
impostas pelos atratores gravitacionais racistas, xenófobos, sexistas, misó-
ginos, heteronormativos e lgbtqifóbicos.
Arte da Resistência 71
e outros voos agenciados pelo sujeito corpo-natureza-gravitacional-sen-
sorial-háptico. É nesse sentido que, em sua tese, defende a emergência
de um corpo território gravitacional geopolítico, situado no espaço-tempo
contra-hegemônico, com a possibilidade de “insurgência de atratores gra-
vitacionais historicamente invisibilizados pelos processos de dominação
colonial” (BEZERRA, 2021, p. 49).
Coadunando com a proposta da dança sensorial háptica, penso nos
estudos artivistas, queer e feministas como epistemologias fundamentais
para a emergência de uma abordagem de Dança/Arte/Educação ecosso-
mática interseccional. Na perspectiva de reposicionamentos sociocultu-
rais, através de movimentos, experiências e vivências decoloniais, sujeitos
e coletivos se posicionam artisticamente engajados contra os binarismos,
opressão e exclusão e tomam seus corpos como territórios legítimos de
reinvindicação e desconstrução social para emergência de outros saberes
legítimos, outras formas de vidas e relações consigo, com o outro, com a
natureza e com o mundo de forma mais ética e solidária. Abordagens de
Dança/Arte ecossomática interseccional, por meio das quais a inventividade,
os movimentos e seus próprios corpos e vidas estejam engajados em atitu-
des humanitárias, ecológicas e éticas. Do ponto de vista de sensibilidades,
percepções e criações decoloniais e multirreferenciais:
72 Leandro Colling
físicas, materiais, econômicas, culturais, espaciais, temporais. Corpos que
“se resolvem” dinamicamente no mundo, através de seus movimentos, vivên-
cias e criações, capazes de “dançar com a natureza que somos” (Idem, p. 40).
Arte da Resistência 73
acúmulo de múltiplas identidades marginalizadas. Em contrapartida, através
de possíveis parcerias com diversos grupos sociais, com os quais compar-
tilham os efeitos nocivos das mesmas matrizes de subordinação, opressão
e exploração, podem também estabelecer alianças para amplificar suas
forças, formas de denúncia, reivindicação, luta e resistência. Como explica
Leandro Colling:
74 Leandro Colling
Acredita-se que os modelos clássicos de compreensão dos
fenômenos de opressão dentro da sociedade, como os mais
comuns baseados no sexo/gênero, na “raça”/etnicidade, na
classe, na religião, na nacionalidade, na orientação sexual
ou na deficiência (as designadas categorias master) não
agem de forma independente uns dos outros; pelo contrário,
essas formas de opressão inter-relacionam-se criando um
sistema de opressão que reflete a interseção de múltiplas
formas de discriminação (NOGUEIRA, 2017, p. 142).
Arte da Resistência 75
coalizões de pensamentos, experiências e ações, especialmente pelos jogos,
gingas, atitudes, comportamentos e expressões que problematizam sec-
tarismos e impulsionam outros encontros, cumplicidades e engajamentos
estéticos, políticos, educacionais e existenciais.
De acordo com Jorge Larrosa Bondía (2002), o saber advindo da expe-
riência é adquirido a partir da articulação entre conhecimento e a experiência
singular e concreta dos sujeitos envolvidos, o qual impulsiona a emergência
de saberes particulares e potentes para expansão dos processos de educa-
ção, fortalecimento e desenvolvimento de seres humanos e comunidades.
Para o autor, o saber da experiência se distingue das sensações e percep-
ções efêmeras provocadas pelos acontecimentos, já que esses não passam,
muitas vezes, de estímulos que sucumbem à instantaneidade dos momentos,
por serem estimulados ininterruptamente pelos interesses da sociedade de
consumo capitalista através da realização de desejos infinitos, do acúmulo
de informações inúteis, do excesso de atividades e de trabalho.
76 Leandro Colling
maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira
de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de
“ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade
e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que
se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se
“ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe
passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede,
a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre (BONDÍA, 2002, p. 25).
Arte da Resistência 77
fala interseccional, marcado pelo gênero inconforme, pela sexualidade
abjeta, pela existência social pária, de classe periférica, economicamente
desfavorecida. Etnia mestiça que, em certos momentos, garante privilégios
brancos, passabilidades mestiças e opressões obscuras.
Para Santos, a ciência do paradigma emergente é analógica e tradutora
porque parte da existência material, concreta, real e dialoga com outros
contextos ampliados. Emigram e intercambiam saberes ecológicos susten-
táveis a serem utilizados fora dos lugares de origem. Assim, é constituída
a partir da pluralidade metodológica, da “transgressão metodológica”: “Só
uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada
língua que pergunta” (SANTOS, 2005, p. 77-78).
As epistemologias do Sul indagam, reivindicam, levantam questões e
utopias, articulando saberes científicos e sociais que admitem o racional e
irracional, superando a pseudoneutralidade moderna de um suposto dis-
tanciamento entre sujeito/objeto/campo/comunidade. Santos defende que,
no paradigma emergente, “todo conhecimento é autoconhecimento” (Idem,
p. 80) porque não é neutro, mas engajando no processo de revelação de si
mesmo, do outro, das relações e do mundo, já que o sujeito está “conta-
minado” por outros meios, naturais e artificiais, analógicos, tecnológicos
e digitais. E, consequentemente, toda explicação é autobiográfica porque
busca conhecimentos compreensivos, íntimos, autorreferenciais, localizados
e plenamente assumidos, com os quais possamos unir o que estudamos com
a busca do saber-poder-viver subjetiva e coletivamente (SANTOS, 2005).
Para Boaventura de Sousa Santos, “todo o conhecimento científico visa
constituir-se em ‘senso comum’, ‘conhecimento vulgar e prático’” (2005, p.
88-89) com o qual orientamos as nossas ações no mundo e damos sentido
à vida no cotidiano, com o qual difundimos a dimensão utópica e libertadora
fundamental para ampliação do diálogo entre o conhecimento científico e a
realidade material, com intenção, criatividade e responsabilidades.
É a partir desse processo que reconheço minha trajetória epistemoló-
gica como somática, interdisciplinar e interseccional. Já que forjada pelos
fluxos de sensibilidades, interesses e contaminações pela Dança, Arte,
Teatro, Comunicação, Produção Cultural, políticas sociais e Educação.
Comprometidas com o meu lugar e meu local, minhas aspirações mais ínti-
mas e comunitárias.
Percebo como o meu fazer no mundo se constitui, historicamente, por
investimentos para apropriação de tecnologias que me possibilitem a visi-
bilidade, sobrevivência e existência no mundo, que me afastem da fome
biopsicossocial, da exclusão social e possibilitem alternativas de desen-
volvimentos sociais, cognitivos, materiais, culturais, artísticos, espirituais
e existenciais. Passei pela formação em Química, atuei como operário de
78 Leandro Colling
laboratório industrial e migrei para a Comunicação Social, Produção Cultural,
gestão de projetos sociais, Educação, Teatro e Dança.
Nessa trajetória, o fazer artístico tem contribuído para a minha loca-
lização ativa nos campos de forças dos sistemas de signos, opressões e
virtudes e, consequentemente, possibilitado autoconhecimento para o posi-
cionamento de forma sensível e sustentável nesses contextos de jogos de
saberes e poderes. A Dança moderna e o samba de roda, ao lado de minha
irmã mulata no bairro periférico de Salvador; as performances ao som do
meu primeiro LP de Miss Lene no meio da sala de casa; o aconchego/con-
solo da MPB, dentre outras vivências culturais, foram fundamentais para
a percepção desses lugares simbólicos/materiais/subjetivos/coletivos e a
assunção e dissidência de tantos papeis sociais imprescindíveis para me
manter vivo/visível/ativo/insurgente.
Simultaneamente, o Teatro, com suas possibilidades de realizações
coletivas, criativas, comunitárias, me possibilitou experimentar tantos outros
papeis e descobrir que muito existe no mundo que se assemelha a mim para
além do que vivo neste instante. Perspectivas de outras alteridades, outrida-
des, invenções e existências. O fazer teatral e artístico têm me possibilitado
sempre reconfigurações de rotas, tomadas de desvios, aproveitamentos de
encruzilhadas e sido função vital para apreensão, manejo e representação
de realidades adequadas às minhas expectativas, desejos, sonhos e utopias.
A gestão de projetos sociais, realização de eventos culturais, formação,
qualificação profissional, atravessadas pelas questões de gênero, sexuali-
dade, raça, classe, religiosidades, artes, coadunam e me impulsionam para
uma perspectiva de ativismos interdisciplinares e interseccionais. Por meio
de uma prática de Dança/Teatro/Arte/Educação engajada em questões polí-
ticas e estéticas que suscitem ideias, reflexões, valores e utopias que con-
tribuam para descolonização de corpos, mentes, espíritos e relações. Uma
Arte/Educação ativista que promova a superação de binarismos, explora-
ções, desigualdades, exclusões, ignorâncias e violências e disseminem sabe-
res estéticos, poéticos, ecológicos, feministas, antirracistas e sustentáveis.
Artivismos intersecionais
Arte da Resistência 79
Evidenciamos, nestes últimos anos, a emergência de um engajamento
entre diversos artistas comprometidos com realizações estéticas em arti-
culação com atitudes políticas. Nesse cenário, propõem visibilizar e pro-
blematizar contradições socioculturais que atingem diversas populações,
sobretudo aquelas marcadas pelas desigualdades de raça, gênero, sexua-
lidade e religiosidade no sentido de questionar a ordem hegemônica que
impõe limitações, opressões, repressões e violências a diversos sujeitos e
populações que não correspondem às normas dominantes vigentes.
Isso não quer dizer que essas manifestações sejam inéditas, mas que
aparentemente se intensificam na atualidade como uma espécie de fenô-
meno cíclico que retoma a ordem do dia, fissurando as bases estruturais das
hierarquias socialmente construídas. De acordo com Leandro Colling (2018),
não se pretende dizer que existe uma origem pura, essencialmente datada do
fenômeno do artivismo, haja vista a emergência de outros movimentos enga-
jados em décadas anteriores, como em 1960/70, responsáveis pelo questio-
namento às normatividades de sexo, gênero e raça, especialmente através
da Música, Dança, transformismos, estéticas feministas, andróginas, gays,
lésbicas, trans e Black Power, mas que, recentemente, têm assumido expres-
sões, cada vez mais, provocativas desde a primeira década do século XXI.
80 Leandro Colling
reafirmam a inventividade, a criatividade e a sofisticação estética e política
presentes em suas existências transgressoras e reivindicam outros lugares
para travestis e transexuais, sobretudo através da arte, política e cultura.
Promovem deslocamentos quanto à suposta linearidade sexo-gênero-de-
sejos-práticas sexuais para além do âmbito das identidades trans e geram
um legado para a redefinição de concepções identitárias menos binárias
que afetam héteros, homos, bissexuais, cisgêneros ou transexuais. Enfim,
favorecem a consolidação de lugares de autonomia e cidadania para diver-
sos sujeitos, inclusive em relação à liberdade de expressão sexual, social,
artística, política e cultural.
Arte da Resistência 81
estratégias poéticas e performativas [...]. A sua natureza
estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga
temas e situações num dado contexto histórico e social,
visando a mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se
assim como causa e reivindicação social e simultaneamente
como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição
de cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição,
de participação e de criação artística (RAPOSO, 2015, p. 5).
38
Profa. Lenira Rengel durante aula do componente ECA I/UFBA/2022-1.
39
Profa. Mirella Misi durante aula do componente ECA I/UFBA/2022-1.
82 Leandro Colling
por meio de um acontecimento cênico, um happening, uma improvisação,
uma vivência somática/performática/poética de encontro, troca, trans-
gressão, revolução e/ou cura. Nessa direção, venho denominando minha
Dança/Arte/Educação como experiências performáticas multissensoriais,
multirreferenciais, políticas e interseccionais. Trago nelas rastros, signos e
representações de gênero, sexualidade, religiões, divindades, orixás, etnias,
geração e classe.
Exemplo disso é que, durante esses dois primeiros anos, na Escola
de Dança da UFBA, realizei três performances. Duas primeiras em vídeo,
Cosmolog(eu)ia40 e Caboclo afrobrancobixameríndio41, realizadas em um
quarto e quintal de casa da família, durante o confinamento, em decorrên-
cia da pandemia do COVID-19; já a terceira performance foi apresentada
presencialmente durante o 38º Painel Performático da Escola de Dança,
que intitulei GaYXistência42. Todas resultam de processos criativos abertos/
inacabados mediados por professoras/es dos componentes cursados, as
quais identifico como emergências de coreografias/encenações autobio-
gráficas de um corpo dissidente no mundo em busca de ressignificações,
que desvia de desencantos e violências, e ginga, samba e goza, de algum
modo, nas encruzilhadas da vida.
40
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1KimdCNFKidE9LKTcwx6-xqKQEEzOp-hM/view?usp=sha-
ring. Acesso em: 09 ago. 2022.
41
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/16-Nzkl0zp9U0o3BnnKqUp5mU5ovsLz_g/view?usp=sha-
ring. Acesso em: 09 ago. 2022.
42
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/11didP6bCotlbkraQa90USyJAiMWX5aFl/view?usp=sharing.
Acesso em: 09 ago. 2022.
Arte da Resistência 83
códigos, registros, memórias, linguagens, signos, significados na intenção
de mais instigar que distrair.
Então, a Dança/Arte/Educação somática, interdisciplinar e interseccio-
nal que proponho ultrapassa o sentido clássico de entretenimento e busca
promover questões que afetam os corpos no cotidiano. Inquietações, angús-
tias, reivindicações. Configurando-nos como corponectivo, corpo mídia,
corpo plataforma que materializa um hipertexto na carne, traz suas ideias
encarnadas no fluxo de processos e contaminações históricas, reveladas
em suas expressões, comunicações, sensibilizações e artivismos.
Nesse sentido, intenta proporcionar afetos recíprocos entre artista e
público e estimular ressignificações mútuas: “Na medida em que a noção do
sujeito mudou, tudo mudou. A arte não seria mais uma atividade do espírito,
mas uma atividade do corpo-no-mundo” (MISI, 2015, p. 13). Arte deixa de
ser transcendente para ser imanente, engajada no presente, constituída e
compartilhada na coexistência entre artistas e público. Prioriza a estética
relacional, a interatividade, a materialidade e a interpretabilidade nas quais a
forma, a mensagem e a poesia finais só existem a partir da relação dinâmica
entre artista e público.
E somos todes copartícipes em qualquer espaço-tempo forjado pela
“negociação de sentidos que se estabelece no processo de experiência”
(MISI, 2015, p. 14). Espectador/leitor não é um mero receptor de informa-
ções, mas coautor da investigação, vivência e obra, dialógica e ativamente
durante os processos de sensibilização, criação e comunicação: “A dança
contemporânea acontece num pacto entre palco e plateia. Não há emissor
e receptor, mas um fluxo que atravessa todos os envolvidos com graus dife-
renciados de responsabilidades compartilhadas” (KATZ, 2004, s/p). Eu, você,
nós, artistas e público, somos todes implicades, engajades nos processos de
significação, cocriação, coautoria, com responsabilidades e protagonismos
compartilhados. E, ao mesmo tempo, disseminadores e transformadores dos
conteúdos apreendidos, construtores daquilo que percebemos, mobilizado-
res de outras realidades e utopias, que nos marcam e interessam estética,
política e eticamente.
84 Leandro Colling
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Arte da Resistência 85
Tensões entre o Complexo
Cisheteropatriarcal e os artivismos das
dissidências: a arte como ferramenta de
transformação coletiva
Julia Péret
Introdução
43
Antes de se tornar um núcleo, o NuCuS se intitulava grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS).
Arte da Resistência 87
entre a Psicologia Analítica pós-junguiana e os estudos das dissidências,
utilizando como ponto de intersecção o artivismo.
Para essa interlocução entre teorias será utilizado o conceito de
Inconsciente Cultural, formulado por Joseph Henderson (1903-2007), e
de Complexos Culturais, formulado por Singer e Kimbles (2004), e como
esses aparecem nas artes. Os autores, a partir dos conceitos formulados
por C. G. Jung, se debruçaram a estudar questões socioculturais tentando
compreender como elas impactam na psique individual do sujeito. Bebendo
dessas fontes, Gustavo Pessoa (2021) trabalha o conceito de Complexo
Heteropatriarcal e o aproxima à teoria junguiana dos Estudos de Gênero.
Esse será o gancho utilizado para trabalharmos com a hipótese de que os
artivismos das dissidências funcionam também como uma espécie de ferra-
menta de defesa arquetípica – criativa e positiva – do grupo, grupo este com-
posto por todes aquelus que não se encaixam na normatividade de gênero
e sexualidades que lhes é imposta por esse complexo heteropatriarcal.
Introdução sobre conceitos-chave formulados por C. G. Jung
Para começo de conversa, C. G. Jung entendia a psique, nome que deu
ao seu aparelho psíquico44, da seguinte forma:
44
Referência à Primeira Tópica formulada por Sigmund Freud.
88 Leandro Colling
Para Jung (2015a), o Inconsciente Coletivo encontra-se nos níveis mais
profundos da psique, com conteúdos de ordem impessoal e coletivos, sob a
forma de categorias herdadas ou, como ele chamou mais tarde, arquétipos.
É importante ressaltar que “a psique não é uma coisa dada, imutável, mas
um produto de sua história em marcha” (JUNG, 2020, p. 17), ou seja, as cate-
gorias herdadas não foram “coisas” criadas espontaneamente pela psique,
ao contrário, foram categorias que acumularam “o resultado formado por
inúmeras experiências típicas de toda uma genealogia. Elas são, por assim
dizer, os resíduos psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo” (JUNG,
2013, p. 82 § 127) que estão sendo constantemente atualizadas pelo tempo
e a história. Essas características coletivas diferem do Inconsciente Pessoal
que, para Jung, possui características e conteúdos pessoais adquiridos ao
longo da vida, que compreendem não só os materiais pessoais reprimidos,
como também os componentes psíquicos subliminais e as sementes de
futuros conteúdos conscientes (predisposições latentes), ou seja, as capa-
cidades que não desenvolvemos ao longo da vida. É no Inconsciente Pessoal
que os Complexos de tonalidade afetiva se manifestam.
Apesar de essas imagens serem comuns à humanidade, sua ativação e
manifestação em cada sujeito não é igual, mas sim pessoal. Se um arqué-
tipo será ativado ou não na psique pessoal, e como será a sua expressão
nessa psique, dependerá da trajetória de vida, das dores e das delícias que
constituem o processo de individuação45 de cada pessoa; e, claro, a cultura,
a racialização, o gênero, a sexualidade e outros marcadores sociais influen-
ciarão nesse processo. Os arquétipos funcionam como “moldes” psíquicos,
de natureza abstrata, carregados de afeto nos quais são despejadas as
experiências individuais e coletivas do sujeito. Esses podem assumir na
psique um caráter positivo ou negativo (HOPCKE, 2012).
Jung elencou alguns arquétipos-chave46 para o funcionamento saudável
da psique e elegeu o Self como o principal deles. O Self, ou Si-mesmo, na
teoria junguiana, aparece como um centro regulador, o arquétipo da tota-
lidade, aquele que direciona e organiza a energia psíquica na psique. Jung
atribuía fenômenos como intuições, insights e a sincronicidade à existência
desse centro (HOPCKE, 2012). O Self é uma instância que tanto engloba o
45
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendemos nossa
singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio
Si-mesmo. Podemos traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si-mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do
Si-mesmo (Selbstverwirklichung) [...] A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e
mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das
peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social (JUNG, 2015a, p. 63 §266-267).
46
Dentre eles estão os arquétipos de Anima e Animus, fundamentais para entendermos a visão, no mínimo
polêmica, que Jung tinha sobre o gênero. Não seria possível abordá-los neste único artigo e, por isso, reco-
mendo as leituras dos livros: Anima, de James Hillman (2020); Jung: a feminist revision, de Susan Rowland
(2002) e Psicologia pós-junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade, organizado por Clarissa
de Franco (2022). Todas essas obras abordam as problemáticas desses conceitos.
Arte da Resistência 89
consciente – eu – quanto o inconsciente, funcionando como uma ponte, um
eixo entre o ego e o inconsciente (JUNG, 2015a). A ideia de Self assemelha-
-se a ideia de “alma”, um “verdadeiro eu”, cada um nasce com seu próprio
Self que sempre saberá para onde nos guiar nos caminhos da individuação.
Quando preenchido pelas vivências, experiências e afetos do sujeito, o
arquétipo perde seu caráter de “molde” e torna-se um complexo de tonali-
dade afetiva, habitando o Inconsciente Pessoal. Jung considera como com-
plexos os agrupamentos de sentimentos, imagens, símbolos, carregados
de afetividade; seu núcleo caracteriza-se como uma intensa carga afetiva e
energética (um arquétipo), que estabelece associações com outros elemen-
tos afins, cuja coesão é mantida pelo afeto comum entre eles. Essa estrutura
permite que o complexo se torne uma unidade viva, que se comporta como
um imã para todo fenômeno psíquico que esteja no seu campo de atração
(SILVEIRA, 1992). Jung (2011, p. 79 § 140) afirma que:
90 Leandro Colling
isso que nos torna animais tão criativos, imprevisíveis e complexos. Por isso,
na Psicologia Analítica se diz que não possuímos uma identidade fixa, mas
fluída, em que o ego se movimenta entre complexos de polaridades posi-
tivas e negativas afetando-se e transformando-se infinitamente ao longo
do processo de individuação. Jung (2015b, p. 104 § 151) não fala em seus
escritos sobre o conceito de identidade, mas fala sobre uma “unidade de
consciência” ilusória:
Arte da Resistência 91
Os Complexos Culturais
Ao longo dos seus escritos, principalmente nos volumes 10/2 e 10/3 das
Obras Completas47, Jung vai oferecendo pistas sobre a relação do incons-
ciente com a cultura sem nunca ter formulado um conceito que se dirija dire-
tamente a ela. A ideia de Inconsciente Cultural foi formulada pela primeira
vez após a morte de Jung, pelo analista junguiano Joseph Henderson que,
ao longo da sua trajetória, produziu escritos que relacionavam o indivíduo, a
psique e a cultura, passando pelas ideias de inconsciente cultural, arquétipos
culturais e atitudes culturais (SILVA; SERBENA, 2021). Henderson (1990, p.
103 apud THOMPSON, 2016, p. 17, tradução nossa) definiu formalmente o
inconsciente cultural (the cultural unconscious) como:
47
As Obras Completas de C.G. Jung são divididas em 18 volumes, totalizando 35 livros. Os volumes 10/2 e
10/3 são respectivamente os livros intitulados: Aspectos do drama contemporâneo (2020) e Civilização em
transição (2013).
92 Leandro Colling
automaticamente uma linguagem corporal e posturas com-
partilhadas ou expressam sua angústia em queixas somá-
ticas semelhantes [...] complexos culturais são baseados
em experiências repetitivas e históricas de grupo que se
enraizaram no inconsciente cultural do grupo. [...] A socio-
logia interna dos complexos culturais pode apoderar-se da
imaginação, do comportamento e das emoções da psique
coletiva e desencadear forças tremendamente irracionais
em nome da sua “lógica”.
O Complexo Heteropatriarcal
Arte da Resistência 93
gênero e sexualidade instalados nas academias latino-americanas48. Para
dar continuidade à sua linha de raciocínio e utilizar corretamente a ideia
de “Complexo Heteropatriarcal”, como foi originalmente formulada, optei
por não me afastar das suas escolhas teóricas e permanecer com essas/es
mesmas/os autoras/es. A única alteração que farei será acrescentar, ente
colchetes, o prefixo “cis” na palavra heteropatriarcal, a fim de evidenciar
que todo sistema heteropatriarcal é necessariamente cissexista49.
A princípio, esse complexo cultural se refere à memória coletiva
dos povos que foram submetidos a uma série de tecnologias de gênero50
(LAURETIS, 1987) e dispositivos51 (FOUCAULT, 1996) ocidentais que inven-
taram o conceito de sexo, gênero e sexualidade em nome de uma lógica
autoritária e capitalista, produzindo uma série de normas que ditam como
o gênero e a sexualidade devem ser expressados. Por isso, Pessoa (2021,
p. 91) diz:
[...] filho do capitalismo, o complexo heteropatriarcal abarca
os conflitos que emergem entre os impulsos sexuais e o sis-
tema socioeconômico que erigimos, indisposto por natureza
a abarcar múltiplas possibilidades que não sejam padroni-
záveis e comercializáveis em larga escala.
48
A feminista decolonial e pesquisadora Yuderkys Espinosa (2021), atualmente, está conduzindo uma
pesquisa brilhante em que analisa como a produção de conhecimento do chamado “campo do gênero e da
sexualidade”, em universidades da América Latina, é dependente das epistemologias americoeurocentra-
das. Os resultados encontrados até agora estão disponíveis no capítulo de livro intitulado Colonialidade e
dependência nos estudos de gênero e sexualidade na América Latina: o caso da Argentina, do Brasil, do Uruguai
e do Chile, disponível no livro Por que o feminismo descolonial é necessário?
49
Como evidencia Viviane Vergueiro (2015).
50
Baseada nas ideias foucaultianas, Lauretis (1987) postula que as tecnologias de gênero são compostas
por dispositivos, mecanismos, instituições ou discursos que produzem sujeitos a partir da identificação
entre homem ou mulher, estando os homens hierarquicamente mais bem posicionados do que as mulheres.
A cultura e a arte são dispositivos importantíssimos para essas tecnologias.
51
Utilizo aqui o conceito de dispositivo pensado por Foucault (1996, p.138) no livro A microfísica do poder, onde
ele diz: “Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”.
94 Leandro Colling
natural, saudável e sagrada. Qualquer manifestação fora desta é tida como
doentia e patológica, passível de correção. Gayle Rubin (2012) desenvolve
muito bem essa ideia quando diz que a noção de sexo e sexualidade é
construída na sociedade e na história. A noção moderna da sexualidade
produziu uma hierarquia de valor sexual, em que o “bom sexo” é feito por
heterossexuais (obviamente cis), casados, monogâmicos, com finalidade
reprodutiva e em casa. E o “mau sexo”, tido como anormal, não-natural,
doentio e pecaminoso é praticado por travestis, transexuais, fetichistas,
sadomasoquistas ou por dinheiro. Pessoas que praticam o “mau sexo” estão
na base da pirâmide e têm menor valor sexual e social. Sendo assim, “a
noção de uma sexualidade ideal singular caracteriza a maioria dos sistemas
de pensamento sobre o sexo” (RUBIN, 2012, p. 20). A heterossexualidade
necessariamente contém uma hierarquização entre os gêneros, na qual
o masculino se sobrepõe ao feminino e, acrescento aqui, o cisgênero se
sobrepõe ao transgênero/travesti.
A ficção de uma sexualidade normativa está entrelaçada a uma noção
de gênero na qual o sexo biológico será determinante para os papeis de
gênero que cada indivíduo desempenhará na sociedade. Butler (2018, p.
06, grifo meu) se refere ao gênero como:
E continua:
Arte da Resistência 95
[...] moral e ético, determinando o que é certo e errado em
relação a nossos desejos e cumprindo um papel político de
organização e ordenação social. Dessa forma, o complexo
atua em sua formação mais sombria, transformando em
estrutura lógica aquilo que inicialmente era uma pulsão
erótica. Tudo é dois. Todo dois é homem e mulher, masculino
e feminino.
52
A Resolução nº 01/1999 veta que as profissionais da Psicologia exerçam qualquer atividade que favoreça
a patologização de comportamentos ou práticas homossexuais. Proíbe, ainda, a adoção de ações coercitivas
que busquem orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. A norma impede, portanto, a prática
de terapias que remetam a chamada “cura gay”.
96 Leandro Colling
sobre sujeitos que estão em não conformidade com os
estereótipos da cisheteronormatividade. Entende-se que
o preconceito, a discriminação e a exclusão social são dis-
positivos que promovem a manutenção do sofrimento e
adoecimento dos sujeitos. Dessa forma, não é a condição
existencial de ser LGBTTQIAP+ que gera o sofrimento, mas
sim, as vivências de exclusão e marginalização causadas
pela discriminação e preconceito (CFP, 2021, p. 02).
Arte da Resistência 97
disso, podemos imaginar que as pessoas LGBTTQIAP+ que permaneceram
vivas, apesar de toda a estrutura [cis]heteropatriarcal que tenta encaixá-
-las no discurso patologizante e na imagem de fracasso, estão de algum
modo ativando seu próprio “sistema de autocuidado” para, minimamente,
preservarem sua integridade física e mental. Ao me referir a esse grupo não
pressuponho que suas demandas sejam universais nem que seus objetivos
políticos estejam alinhados. A própria história do movimento LGBTTQIAP+,
conhecido antigamente como GLS, no Brasil expõe a heterogeneidade desse
grupo. Atualmente, me atrevo a dizer que a principal substância aglutinadora
desse emaranhado de pessoas, atravessadas por raça, classe, identidade
de gênero e sexualidade diversas, é a dor da violência, da exclusão e do
desafeto misturada com a esperança e alegria de vislumbrar dias melhores.
Existem muitas formas de defender o “espírito de grupo” – mesmo se
tratando de um tão heterogêneo –, como, por exemplo, através de movi-
mentos sociais, manifestações/passeatas/paradas políticas, organizações
em coletivos, partidos políticos e através das artes. Pensando nesses cole-
tivos das dissidências inconformes que, através da arte, criam imagens que
confrontam esse complexo cultural, formulo a hipótese de que a produção
artivista pode ser, em termos psicológicos, como uma “defesa arquetípica
do espírito de grupo”. A arte aqui seria usada como uma ferramenta de
defesa (criativa) que, além de ser uma via de expressão dos sentimentos pes-
soais de cada artista, age também como um transformador social, tecendo
imagens e narrativas de outras existências possíveis na malha da cultura.
Transformando o que antes era segredo ou fantasia em um objeto palpável
com cheiro, textura, cor, forma, espaço e volume.
O Complexo Heteropatriarcal e os artivismos
Como dito anteriormente, os complexos possuem em sua anatomia
imagens e símbolos carregados de afetos. Jung (2020), em seu texto As duas
formas de pensamento, de 1911, discorria sobre o “pensar dirigido” e o “sonhar
ou fantasiar”. O primeiro consiste no pensamento linguístico, estruturado e
lógico, “é um pensamento da realidade” (JUNG, 2020, p. 31 § 11). O segundo
é um pensamento que se dá através das imagens criadas espontaneamente
pela psique, como, por exemplo, os sonhos, as fantasias e os devaneios. Por
fim, Jung (2020, p. 39 § 20) caracteriza-os como:
98 Leandro Colling
liberta tendências subjetivas e é improdutivo com relação
à adaptação.
Arte da Resistência 99
das artes. Apela a ligações, tão clássicas como prolixas
e polémicas entre arte e política, e estimula os destinos
potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão.
Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas,
produzidas por pessoas ou coletivos, através de estraté-
gias poéticas e performativas [...]. A sua natureza estética
e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas
e situações num dado contexto histórico e social, visando
à mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se assim
como causa e reivindicação social e simultaneamente como
ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de cená-
rios, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de par-
ticipação e de criação artística.
Essa fala ressoa nas palavras proferidas anos depois por Fernando Lins,
que não só se recusou a incorporar as imagens que lhe foram oferecidas
como também criou novas imagens e universos para, a partir daí, conseguir
visualizar sua própria possibilidade de existência. Ao incorporar na sua obra
o discurso político de desobediência à norma – vivenciada no próprio corpo
ou através de relações afetivas – amplia e cria novas formas de subjetivação
que, através das imagens/símbolos, vão dialogar com a psique do espectador,
emancipando-o, pouco a pouco, desses complexos culturais que limitam a
atuação do Self e constroem obstáculos no processo de individuação dos
sujeitos.
A simples ação de observar uma obra de arte estática pode parecer
pouco revolucionária ou emancipatória para alguns, conferindo apenas ao
artista esse lugar de notoriedade. Contudo, dispor-se a entrar em contato
com imagens que não possuem narrativas típicas da sua bolha de “verdades”
e aconchegos; ou que reforcem um desejo íntimo que é tratado com descon-
fiança e culpa pelo ego, é o primeiro passo para “desinflar” um complexo
unilateral ativado na psique individual. Jacques Rancière (2019, p. 17), ao
escrever sobre o papel de espectador, supostamente “passivo”, diz muito
assertivamente que:
Considerações finais
Derivas introdutórias54
53
Trabalho produzido com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES).
54
Este artigo com Marciano Souza/Mc Amana emergiu mediante reflexões para a composição do artigo para
a disciplina Imagem, história e direitos humanos, ministrada pelo professor Marcelo Ribeiro, no Programa
de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, da Universidade Federal da Bahia, no
semestre de 2021.2.
55
O território é composto por nove municípios, a saber: Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Jardim, Missão
Velha, Caririaçu, Farias Brito, Nova Olinda e Santana do Cariri Informações disponíveis no link: https://www.
cidades.ce.gov.br/regiao-metropolitana-do-cariri/. Acesso em: 25 out. 2021.
56
A origem do termo drag é incerta, mas há indícios de que surgiu no século XIX, no teatro. Na tradução
do inglês, a palavra significa “arrastar”, representado geralmente no contexto do “se montar”, encenar um
desempenho da masculinidade, feminilidade ou outras formas de expressão de gênero.
57
Instagram da artista: https://www.instagram.com/amana.mc/. Acesso: 02 nov. 2021. Canal do Youtube:
https://www.youtube.com/channel/UCrwPg3l8sm5NTiepiEmrgVw. Acesso: 02 nov. 2021.
58
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y0Vqdc7Cu54. Acesso: 04 out. 2021.
59
Imagem de lançamento disponível em: https://www.instagram.com/p/BvT7hKXnger/. Acesso em: 04 out. 2021.
60
Em uma busca no Instagram do estúdio, a primeira publicação, de 18 de fevereiro de 2018, nos apresenta
um breve resumo sobre a gravadora: “Com o acúmulo de mais de uma década potencializando o mercado
musical do rap cearense, sob o comando de Erivan Produtos do Morro, o estúdio Produtos do Morro parte
para um novo desafio: em parceria com a OneRPM, a gravadora sai do anonimato para mostrar ao Brasil e o
mundo o que há de melhor na música autoral cearense. […]”. Link: https://www.instagram.com/p/BfHfrDXl-3s/.
Acesso em: 05 out. 2021.
61
Imagem de lançamento disponível também no perfil de Mc Amana: https://www.instagram.com/p/
BvVI5BGjzHk/. Acesso em: 31 out. 2021.
62
Videoclipe Abraço, beijo, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_qyXvrVNUSM&t=2s. Acesso
em: 25 dez. 2021.
63
LGBTQIA+ é a sigla utilizada para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros, queer,
intersexuais, assexuais. O sinal “+” procura alcançar a reverberação das dissidências sexuais e de gênero
nos contextos específicos.
64
Página do grupo NEET no Facebook: https://www.facebook.com/neetsesc/. Acesso em: 23 dez. 2021.
65
Link do canal no YouTube: https://www.youtube.com/c/PANDORABURTON/videos. Acesso em: 22 dez. 2021.
66
A “Rota Cariri”, lançada em 2020, iniciativa da Secretaria do Turismo do Ceará (Setur), em parceria com
a Secretaria da Cultura do Estado (Secult) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae), nos apresenta discursos e imagens que são institucionalmente articulados e repassados sobre o
turismo do território. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2020/03/03/rota-cariri-e-lancada-e-sera-di-
vulgada-no-mercado-nacional/. Acesso em: 10 dez. 2021.
67
Para explicar além da linha dos afetos, pontuo aqui as duas outras linhas do desejo explicadas por Suely
Rolnik (2016). A segunda linha seria a da simulação e ela faz um duplo traçado inconsciente e ilimitado:
“um primeiro, que vai da invisível e inconsciente produção de afetos, para a visível e consciente composição
de territórios. É o percurso do movimento de territorialização.” e um “[…] outro traçado, inverso: ele vem
do visível, consciente, dos territórios, para o invisível, inconsciente, dos afetos escapando. É o percurso do
movimento de desterritorialização.” (p. 50). Já a terceira linha seria a linha finita, visível e consciente, funcio-
nando como organização dos territórios. “[A linha três] […] cria roteiros de circulação no mundo: diretrizes
de operacionalização para a consciência pilotar os afetos.” (ROLNIK, 2016, p. 51).
68
Informações checadas em 05 de setembro de 2022.
Link para saber mais sobre o complexo cultural localizado em Fortaleza, capital do Ceará: http://www.
69
72
De forma resumida e breve são as batidas, o ritmo da música.
Considerações finais
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73
A beata Maria de Araújo foi a principal protagonista dos milagres do Padre Cícero no fim do século XIX.
A hóstia dada pelo padre tornou-se sangue na boca da beata Maria de Araújo, em mais de 40 cerimônias
religiosas (NETO, 2006)
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1.
74
Nome do primeiro LP dos Les Étoiles.
75
Referência artistas da Bahia que protagonizaram o movimento Tropicalista, entre eles, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, etc. (Ver FAVARETTO, 1996; CALADO, 1997; DUNN, 2001)
76
Ver imagens do programa Divino Maravilhoso. O programa estreou na TV Record em outubro de 1968 e
teve 15 edições - https://www.tropicaliaviva.com/post/tropicalistas-na-tv-15-hist%C3%B3rias-sobre-o-pro-
grama-divino-maravilhoso - Acesso em: 2 set. 2022.
Fig. 1 - Les Étoiles – Rolando Faria (esq.) e Luiz Antônio. Arquivo dos autores.
2.
Apesar do sucesso e do impacto que a dupla causou na Europa, especial-
mente na França, no Brasil não há nenhum estudo mais aprofundado sobre
a carreira de Luiz Antônio e Rolando Faria, além de verbetes no Dicionário
Cravo Albin da Música Popular Brasileira e uma ou outra notícia na internet,
razões que destacam o ineditismo desse projeto de pesquisa77, assim como
77
No Brasil há as seguintes matérias: 1. “Frequência Modulada, devidamente intitulada: “Les Étoiles: as
3.
78
Os festivais da canção começaram em 1965, atravessaram as décadas de 1970 e chegaram a 1980 (MELLO,
2003).
4.
79
Na história da MPB, os programas de calouros foram importantes espaços de surgimento de nomes como
Elza Soares, Emilio Santiago, Alcione. Luiz Antônio ganhou como melhor cantor no programa Flavio Cavalcanti.
80
Em 1964, a música Garota de Ipanema esteve durante 12 semanas na lista das mais tocadas nos EUA e
Frank Sinatra gravou um disco totalmente dedicado ao gênero em 1967.
81
Marly gravou um disco em 1963, Eu também canto, RCA. (CASTRO, 1990, p. 443).
82
Elis Regina, discípula de Lennie, dizia que a ideia do famoso gesto de "puxar a rede com os braços" quando
cantou Arrastão, de Edu Lobo, e venceu a 1º Festival de MPB da TV Excelsior em 65, tinha sido de Lennie Dale.
83
Em 1964, a dupla Miele-Boscoli criou um show para Elis Regina, que era acompanhada do Copa Trio de
Dom Um Romão, Marly Tavares e o pandeirista Gaguinho (CASTRO, 1990).
84
Martine Brillad (2021) e Zé Luiz Mazzioti (2021), em entrevistas aos autores deste artigo.
85
Nesta entrevista, concedida em 17 de fevereiro de 2021 aos autores deste artigo, Lucinha Lins diz que era
cantando o seu nome de batismo, Lúcia Maria [Werner Viana Lins], que Rolando a chamava nos tempos do
MAU, época em que foram muito próximos e se tornaram grandes amigos. Lucinha imita a melodia, tentando
mostrar-nos como era e se emociona profundamente.
86
A tese de Fléchet é de 2013 e foi traduzida para o português com o título “Madureira chorou... em Paris:
a música popular brasileira na França do século XX”, editada pela EDUSP, em 2017.
87
A morte de Villa-Lobos marcou o fim de um período no campo da música erudita, enquanto o filme Orfeu
negro permitiu que os franceses se familiarizassem com um novo género do Brasil: a bossa nova.
5.
88
Cláudio Tovar cedeu entrevista aos autores em 16/12/2020.
A dupla Les Étoiles nunca foi parceira criativa dos Dzi, sequer traba-
lharam juntos, mas tinham em comum, além da profunda amizade, o tesão
pelo palco, a estética camp e a ousadia na suas perfomances.
A classificação de Luiz Antônio e Rolando Faria enquanto drag queens,
ou que faziam “shows de travesti”, será discutida na construção do livro. Por
ora, para situar o/a leitor/a, basta dizer que as discussões sobre identidade
de gênero sequer tinham chegado aos espaços de sociabilidade LGBT+, aos
guetos, elas inexistiam nessa época, inclusive nos meios acadêmicos. Para
se ter uma ideia da indefinição do que, de fato, era o Les Étoiles, o canal da
TV francesa que veiculou o documentário sobre a dupla e já citado aqui, no
resumo afirma se tratar de um “Retrato de dois cantores travestis brasileiros”.
O Étoiles utilizava roupas, maquiagem e gestual feminino, “vestia um
gênero” que não era considerado o deles, na verdade de nenhuma identidade
fixa, na medida em que exacerbavam e ultrapassavam o que seria a visua-
lidade feminina, ou seja, algo caro ao universo queer e à visualidade camp.
Suas performances subverteram a cena tradicional e, sob certo ângulo,
sublinhavam sua grande musicalidade, aspecto que todos os entrevistados
foram unânimes em destacar: a beleza das vozes e da harmonia musical que a
dupla apresentava. Como podemos ver no convite/anúncio que o compositor,
pianista, arranjador e ganhador do Oscar Michel Legrand faz sobre a dupla.
O Les Étoiles gravou o seu primeiro álbum em França em 1976: Meu cora-
ção é um pandeiro, o que os tornou famosos na Europa. A atitude transgres-
sora de suas performances no palco se repetiu nas capas de seus álbuns.
As capas de disco, de um modo geral, tentam ser mais do que apenas uma
embalagem de proteção do vinil, elas registram graficamente questões
comportamentais ou estéticas do conteúdo musical. Segundo Rodrigues,
“as capas de disco a partir de 1966/1967 assumem seu papel de objeto
expressivo. Além de divulgar artistas e proteger o vinil, vão servir de suporte
para experiencias artísticas, projetos audaciosos do design gráfico e, por
meio desses, apontar, espelhar, retratar todo o imaginário de uma época
(RODRIGUES, 2007, p. 15).
A dupla gravou seis LPs durante sua carreira. São eles: 1976: Meu cora-
ção é um pandeiro ou... (distribuído pela RCA/Paris e RCA/Madrid); 1977:
Piratas do sentimento (distribuído pela RCA/Paris); 1977: Les Étoiles: Rolando
e Luiz Antônio (distribuído pela RCA/Alemanha89); 1979: Ao vivo no Discophage
(distribuído pela WEA/Paris); 1981: Les Étoiles (distribuído pela RCA/Paris);
1985: Sina de ciganos, para o décimo aniversário do duo (distribuído pela
Mélodie/Paris; 1986: Les Étoiles au Forum, álbum gravado ao vivo no Forum
des Halles, em 26 de novembro de 1985.
Em fevereiro de 2022, os autores deste texto foram a Paris para a última
etapa da pesquisa, que consistia em algumas entrevistas presenciais e
consultas, tanto em centros de documentação como no acervo pessoal
89
Este LP tem o mesmo repertório do álbum lançado em 1976.
AFFONSO, Leila; SANTOS, Jorge Fernando dos. Jaceguai, 27. Sorocaba: Recanto das Letras, 2017.
ALBIN, Ricardo Cravo. MPB, a história de um século. Rio de Janeiro: Instituto Cravo Albin e
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Vértice, 1990.
LEGRAND, Michel. Les étoiles de Michel Legrand. Pariscope, 1982, s/pg.
(...)
90
Ver o filme A hora do show (2000), de Spike Lee, e a série Them (2021), de Little Marvin.
Contudo, afirmar-se enquanto qualquer outra coisa que não seja aquilo
que é definido e imposto pelas relações de poder como humano, sendo
as noções de humanidade conflitantes baseadas em princípios racialistas
ilusórios e fabulatórios, se torna uma forma controversa de inteligibilidade
de si. Ser animal, monstro ou divindade rompe com as políticas identitárias
que enclausuram o sujeito outrificado em cárceres puramente raciais. O
prazer do pugilista Mike Tyson em ser reconhecido como um animal tam-
bém se situa na sua não correspondência às expectativas das políticas de
masculinidades baseadas na raça, sejam elas provenientes da branquitude
ou da negritude, limitadas e restritas às dinâmicas antagônicas de poder
entre branco versus negro, opressor versus oprimido, colonizador versus
colonizado. Para Gilroy, os significados da liberdade para as populações
negras são definidos pelas políticas de representação: se representar fic-
cionalmente como um personagem animalesco é uma forma intencional de
não-ser e uma tentativa de neutralização das relações de dependência direta
com a metafísica racial predominante para tornar a existência inteligível,
dinâmica performativa que subverte o campo de forças e se assemelha
às dinâmicas performativas agenciadas pelos sujeitos das dissidências e
inconformidades sexuais e de gênero, como informa e demonstra a Teoria
Queer. Assim, afirmar-se orgulhosamente de ser um macaco, como Kendrick
Lamar na poética da música The blacker The Berry, ou se transfigurar em
borboleta na sua própria mitologia é uma forma de fabulação da liberdade
existencial para além dos paradigmas raciológicos universalizados acerca
do humano, visto que as predeterminações dos marcadores socioculturais
das diferenças perdem suas funcionalidades e deixam de fazer sentido para
os animais, apesar de esses serem também interpelados pelas ordenações
e classificações científicas biologicizantes e pela arbitrariedade e compul-
sividade normativista da cultura.
Roney Gusmão
Introdução
91
Afirmar que a disciplina fabrica corpos dóceis não significa dizer que ela fabrica corpos obedientes. A
docilização diz respeito à maleabilidade do corpo ao ser manejado para fins produtivos. Também não se
trata de uma moldagem imposta, mas consentida no nível do corpo e dos saberes (VEIGA-NETO, 2007).
92
A compressão do espaço pelo tempo, de que falou David Harvey (1992), é um processo acelerado pelas
tecnologias que possibilitaram o sobrepujamento de barreiras espaciais em função da otimização temporal.
93
Entendo não ser produtivo precisar datações ou condições tão acuradas sobre o nascimento do voguing.
Embora existam muitas especulações e tensionamentos sobre quem o inventou ou sobre o ano em que
nasceu, prefiro entender voguing como expressão performática da comunidade gay underground nascida
no Harlem na Nova York de meados do século XX.
94
Refiro-me às metanarrativas legitimadoras de movimentos sociais tradicionais, cujo escopo de contes-
tação se estruturou em função de bifurcações como oprimido/opressor, capitalismo/socialismo, incluído/
excluído etc.
95
Essa reviravolta discursiva ocorreu no voguing de modo análogo e contemporâneo ao que sucedeu com
a reapropriação do vocábulo “queer”.
Virtualidades performativas
Conforme lembra Pierre Lévy (2011), o virtual não se opõe ao real, mas
ao atual. Ainda segundo ele, onde existe ação, há produção de virtualidade,
há condução de energias de devir que antecipam virtualmente o movimento
e seus efeitos. As coisas que nos cercam, por exemplo, possuem ações vir-
tuais, pois estão impregnadas de inúmeros usos possíveis e apontam para
infinitos agenciamentos. Um leque, uma farda, uma ferramenta, um adorno
96
Se, por um lado, a dialogicidade é prerrequisito das plataformas virtuais mais acessadas na internet, por
outro há que considerar o fato de que a mineração, a seleção e a distribuição algorítmica de informações é
indicativo da permanência de forças institucionais nos ciberespaços.
97
Cita-se como exemplo: o marxismo, o idealismo, o racionalismo, o mito do progresso iluminista, o evolu-
cionismo etc.
98
A metáfora nietzschiana para o dionisíaco como pulsão coletiva dos prazeres também carrega o lado cruel
e perverso das massas. Para pensar a cibercultura, é preciso acautelar sobre a propagação algorítmica de
negacionismos, fake news e afins como oportunismo num contexto de colapso das instituições (metáfora
do apolíneo).
Considerações
99
Apesar de publicar pelo menos três outros relatos não literários (1942, 1948 e 1958), podemos dizer que o
estudo “absolutamente histórico” se refere à publicação de 1949. Uma análise de todos os textos de Barroso
pode ser encontrada em Maia (2020b).
Em Nota ao final do romance, Barroso (1932, p. 205-206) indica, como fontes bibliográficas para o seu
100
romance, as efemérides de Teixeira de Mello (1881) e de Rio Branco (1891), além do relato de Souza Silva (1862).
101
Sobre D. Sebastião como uma figura bela, desejada, mas celibatário ler Hermann (2012).
A capa, como podemos ver acima, recria uma cena, presente em quase
todas as narrativas históricas, a tomada de um forte, provavelmente o de
Amboino. Nesta, não só podemos ver Baltasar entrando sozinho e à frente
de todos na fortaleza, empunhando uma espada e uma bandeira portu-
guesa, como também podemos ver ao fundo da imagem um oficial, cujas
roupas indicam pertencer à alta patente do exército português, que parece
comandar a ação e também celebrar a entrada de Baltasar no forte. Entre o
capitão que comanda e celebra a ação e Baltasar que avança sozinho sobre
o forte, a massa anônima e sem rosto de soldados luta pela posse da for-
taleza. Desde a capa, portanto, podemos ver que o guerreiro centralizado e
destacado pela imagem não só se diferencia da massa anônima dos outros
soldados, como também ofusca os seus comandantes.
A imagem da capa também nos apresenta um guerreiro elegantemente
vestido e de aparência excessivamente jovem. O leitor que desconhece a
história que será narrada provavelmente entenderá, pela capa, que o herói
é um adolescente. No entanto, a primeira imagem de Baltasar, após a capa,
aproxima-o de uma imagem mais andrógina, o que certamente provoca e
perturba a perspectiva cisgênera de alguns leitores. Nessa página, como
podemos ver abaixo, aparecem os rostos das quatro personagens principais,
além de breve fragmento escrito de Barroso. No entanto, o texto, contra-
dizendo o indicado pelo prefácio do romance, no qual o autor afirma se
tratar de romance e não de biografia, e por isso teria se utilizado da “fan-
tasia” (BARROSO, 1940, p. 9), como se também respondesse e provocasse
Sobre a relação entre texto escrito e texto visual, podemos dizer que há
um uso excessivo de palavras, uma vez que não só quase todos os quadros
possuem longos textos, como há também quadros que dispensam comple-
tamente o uso de imagens. Ademais, os desenhos em sua grande maioria
servem unicamente para materializar o que está descrito no texto, normal-
mente sem trazer qualquer informação nova à narrativa. Nesse sentido,
podemos dizer que o texto escrito por Barroso, copiado quase integralmente
de seu livro homônimo, não só se sobrepõe às imagens de Monteiro, como
também as tornam muitas vezes dispensáveis.
Há no romance um jogo dúbio sobre o trânsito de gênero que também
se repete nos quadrinhos. Nesse sentido, enquanto no romance há uma
constante sugestão, através do canto do jovem soldado, de que há algo de
feminino em Baltasar, nos quadrinhos essa sugestão é simplesmente supri-
mida do texto. No entanto, enquanto no romance há pequenos trechos que
apenas sugerem ser o trânsito conhecida por Manuela, nos quadrinhos esse
possível conhecimento é explicitado pelo texto. Dessa forma, ainda que o
trânsito de gênero do personagem seja desconhecido, as duas narrativas
4. Considerações finais
Cena 1:
Escrevo agora para os brancos – para os homens brancos assim como para
todas as gentes brancas – cuja brancura é menos uma cor, e mais um modo de
perceber a si e organizar a vida, uma inscrição particularmente privilegiada na
história do poder e uma forma de presença no mundo: nós vamos nos infiltrar
em seus sonhos e perturbar seu equilíbrio.
Cena 2:
Minha raiva de mulher negra é um lago de larva que está em meu cerne, o
segredo que guardei de modo mais intenso. Eu sei o quanto de minha vida como
mulher de sentimentos poderosos está emaranhado por essa fúria. Ela é um
fio elétrico entrelaçado em cada tapeçaria emocional em que coloco o que há
de essencial na minha vida – uma fonte quente e borbulhante que pode entrar
em erupção a qualquer momento, irrompendo da minha consciência como fogo
numa paisagem. Como adestrar essa raiva com precisão, em vez de negá-la,
tem sido uma das tarefas mais importantes da minha vida.
Este ensaio compõe a tese de doutorado, defendida em 2021, Nós: afetos e literatura, no Programa de
102
pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA). Na tese, o ensaio aparece como o nome “Devolução”.
Cena 4:
A vereadora Marielle Franco foi morta a tiros dentro de um carro na Rua
Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, na Região Central do Rio, por volta das
21h30 desta quarta-feira (14/03). Além da vereadora, o motorista do veículo,
Anderson Pedro Gomes, também foi baleado e morreu. Uma outra passageira,
assessora de Marielle, foi atingida por estilhaços. A principal linha de inves-
tigação da Delegacia de Homicídios é execução”
“Aquilo que não nos mata, nos fortalece”. Esse era um dos ditados popu-
lares que eu mais ouvia da minha família quando era criança. Experimentar
afetos que nos atingem e magoam em pontos vitais de produção de energia,
de bem-viver e de força: amargura a vida e nos enlouquece. A raiva é mais
um afeto colonial com essa capacidade de minar nossa potência de vida,
visando quebrar nossas forças em continuar vivas. É um afeto poderoso de
adoecimento e morte. E muitas de nós adoecemos e morremos (ou somos
mortas). Mas nem sempre. Daí a pergunta que precisamos nos fazer é: quais
os usos podemos fazer da raiva para que ela não nos mate mas, ao contrário,
nos fortaleça? Quando não morremos, em que/quem nos transformamos?
Eu nem sempre escuto a minha raiva. Ela sempre me adoeceu.
Frequentemente transformava esse afeto legítimo em culpa: “Por que estou
com raiva?” “Será que esse motivo é justificável para sentir tamanha raiva?”.
O sintoma no corpo é geralmente de sufocamento. Não conseguir respirar
de raiva. Não tenho como precisar a primeira vez em que senti o gosto da
raiva inundar meu corpo. Mas tenho a lembrança de marcas roxas pelo corpo,
sem ter havido qualquer machucado. Lembro-me de minha mãe falando
que essas marcas são sinais de que eu guardei a raiva e não botei pra fora.
Então, é preciso compreender o porquê de esse afeto colonial nos atingir
tanto, quais seus propósitos nas corpas pretas e quais os usos fazemos dele.
Trazido pelas águas marítimas e literárias, o ódio ao suposto “Outro”
também veio na bagagem do colonialismo e sua subjetividade violenta. Ódio
ao que não é branco cristão e ao que não é espelho sempre compôs o cenário
afetivo das terras brasilis desde seu marco inaugural, seja pelos europeus
enquanto penso sinto isso, não consigo esquecer, no corpo, que mataram
Marielle Franco, em 2018. Não esqueço porque a raiva que me atravessou
quando vi a notícia pela televisão me transformou em desespero e medo. O
corpo carrega a memória dos afetos e esses afetos me atravessam mais fortes
e ativos que qualquer outra coisa. Esquenta meu corpo, meu ori. Eu sinto as
labaredas enfurecidas. Marielle foi assassinada pelo ódio. Um ódio dirigido a
todas as corpas pretas e das dissidências sexuais e de gênero. E que está em
todos os lugares. Não estamos a salvo.
[...]
Será que você não viu Não entendeu o meu toque
No coração da América eu sou o jazz, Sou o rock
Eu sou parte de você Mesmo que você me negue Na beleza do afoxé
Ou no balanço no reggae Eu sou o sol da Jamaica Sou a cor da Bahia
Eu sou você (sou você) E você não sabia [...]
Como dizem esses trechos da canção, “eu sou parte de você / mesmo
que você me negue”. Funciona como um cistema103 de projeção reversa em
que devolvemos à subjetividade colonial branca a raiva produzida. Esses
trechos poderiam, inclusive, ser uma citação da Grada Kilomba ou Stuart
Hall (2016), em seu trabalho Cultura e representação, visto que, nesses
versos, há uma devolutiva espelhada ao sujeito branco, escancarando em
sua face o racismo cissexista que ele tanto quer negar. É exatamente essa
a operação de espetacularização feita por Stuart Hall, para compreender
os mecanismos de outrificação estética e midiática do sujeito negro no oci-
dente. A subjetividade colonial europeia criou, portanto, todo o imaginário
social sobre os corpos não-brancos, não-masculinos, não-heterossexuais,
não-cristãos. E, às vezes, acreditamos em tal imaginário e nos odiamos
também por isso. Esse mecanismo de projeção é mobilizado pelo afeto da
raiva. Raiva projetada e negada para que o sujeito branco possa nos odiar
livremente.
Audre Lorde (2019), traduzida por Stephanie Borges, poeta e intelectual
lésbica afro-estadunidense, construiu um importante saber sobre como os
afetos mobilizam os corpos e os agenciamentos políticos que ecoam nos
corpos das mulheres negras, em especial o afeto da raiva:
Grafia mais apropriada para a palavra “cistema”, tendo em vista a sua estruturação cisgênera e colonial.
103
Certa vez, estava com uma amiga querida e também parceira de estu-
dos e comentamos sobre o que sentimos quando experenciamos a raiva. Eu
disse que não sentia raiva com muita facilidade. Tinha de ser um aconteci-
mento que mexesse demais comigo para ficar com raiva. Ela me disse que,
se parasse pra pensar bem, sentia raiva todos os dias. É uma dor profunda
na boca do estômago que parece que vai rasgá-la ao meio e que, por isso,
evita sentir, mas nem sempre dá. Pensei que posso, ao contrário de minha
amiga que já identificou os efeitos da raiva em seu corpo, estar tentando
camuflar os efeitos desse afeto em mim. Por medo de não aguentar a raiva,
tentamos frequentemente negá-la. Sem contar a estereotipia que nos apri-
siona no lugar de raivosas. É horrível, porque, assim como minha amiga bem
descreveu, tenho essa mesma sensação de dor profunda quando sinto raiva
e, muitas vezes, meu primeiro impulso é reprimi-la.
Tenho aprendido com Audre e uma constelação de muitas outras
pretes que, em inúmeras circunstâncias, o melhor que podemos fazer por
nós mesmas é libertar a raiva de nós. Botar a zanga pra fora é um caminho
fecundo de liberdade. A raiva é energia afetiva de cura. Sobonfu Somé diz,
acerca das experiências Dagara, que vivenciar a raiva é importante para que
ela não nos domine e mate. Por isso, o empreendimento colonial afetivo é
tão poderoso sobre nós: porque separou corpo e mente, nos fez acreditar
que a mente sempre tem razão, que não devemos confiar no que sentimos
(ou seja, no que os afetos nos dizem) e que devemos silenciar e nos afastar
de nossas emoções.
104
Para melhor compreender a literatura, em seu caráter institucional, e seus projetos, indico a leitura dos
seguintes livros: Devir darkroom e a literatura hispano-americana (2014), de Helder Thiago Maia, e Feitiçarias, terrorismos
e vagabundagens: a escritura queer de João Gilberto Noll (2019), de minha autoria.
acredito que esse afeto do ódio foi mobilizador do ataque contra à vida
de marielle franco. arrisco dizer que essa mesma pergunta, feita por joão
romão a si mesmo, no final desse trecho acima, em relação à bertoleza, deve
ter sido feita pelas pessoas que orquestraram e executaram marielle. “e se
ela morresse?”. desejo colonial branco cismasculino secular se reanima a
cada ataque a qualquer uma de nós. é preciso não fugir à pergunta: a quem
interessa a morte de mulheres negras?
atire a.
marielle franco tingia tudo de preto. e depois que a tinta preta preenche
todos os espaços e incorpora é dificíl de tirar, que nem mancha de azeite, que
não sai.
105
Informações sobre a autora retiradas do próprio livro Periférica.
Há uma profícua discussão sobre o tom meritocrático que a série dá, no sentido de que ela “se esforçou”,
106
portanto, “ela conquistou”, mas não vou adentrar nesse tema aqui.
107
Para mais informações, ler https://www.observatoriodaimprensa.com.br/genero-e-inclusao/as-ameacas-a-
-erika-hilton/ - Acesso em: 1 set. 2022.
Algo muito importante que aprendi sobre os afetos é que eles, como
energia e movimento, não nos definem, porque não agem sozinhos em nos-
sos corpos. Annalise não é só raiva. É também a filha amorosa e cuidadosa
com a mãe, a professora e advogada dedicada, a protetora das suas/seus,
a mulher que exala vitalidade, que adora sorvete e vodka. E tudo isso ao
mesmo tempo. O que acho mais bacana é que Annalise Keating não incor-
pora a típica narrativa da mocinha ou da vítima (não podemos esquecer que,
sendo uma mulher preta retinta, numa posição de poder e autoridade, tal
imaginário jamais a abarcaria). É uma personagem com uma grande carga de
complexidade. Uma complexidade que a política das identidades manipulada
pela branquitude busca frequentemente retirar de nós. O looping represen-
tacional do delírio branco que dualiza a existência em “O bem vence o mal”
– sendo o “bem” o sujeito branco e o “mal” o sujeito negro, como trouxe com
Grada – perde seu efeito nessas produções literárias e culturais que vimos.
Na série, Annalise bebe o veneno do ódio, mas não morre. Ela usa sua
raiva para se reerguer. E quando adoece, cai e se vê sem condições de levan-
tar, conta com uma outra mulher preta, que aparece sempre para levantá-la e
ajudar a curar suas feridas: sua mãe, com a sabedoria e os afetos poderosos
das mais velhas. E há uma certa lembrança ancestral dessa nossa relação
de apoio mútuo, mesmo quando tudo o que esperam é que nos matemos a
nós mesmas, nos odiemos.
post-its
108
Tradução livre de todas as cenas.
109
Na tese, tratei também do afeto do medo, no ensaio chamado “Quebrada”.
110
Uma ressalva importante: Sokari Ekine traz o termo queer em seu contexto semântico do inglês nigeriano,
que significa estranho, esquisito, diferente, sem relação direta com os usos e abusos da “teoria queer” estadunidense. Por
isso, mantive o termo aqui, a partir da leitura localizada dessa intelectual nigeriana.
111
Aqui, sugiro o livro Como fabricar um gangsta: masculinidades negras nos videoclipes de Jay-Z e 50 cent, lançado pela
editora Devires, em 2019, do professor e intelectual negro Daniel dos Santos. Nesse trabalho, Daniel traz para
a cena acadêmica, de certo modo, literária, uma importante reflexão acerca da construção das masculinidades negras
estadunidenses a partir do Hip Hop.
AFRONTOSA
Frase pronunciada por Marielle Franco em discurso na Tribuna da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
112
talhos
aprender a tempestade, soltar seu peso,
secar o sol: rugir trovões
derramar a tempestade despir de peso,
pairar no sol: cantar trovões
suceder a tempestade,
fluir seu peso,
2beijar o sol: gozar trovões
antecipar a tempestade, ruir seu peso,
lunar o sol:
cuír trovões
y para que nada te desfaça se refaça, se refaça
se re- faca.
Introdução
113
Uma primeira versão deste artigo foi publicada na revista Pontos de Interrogação, em 2021.
Fonte: https://twitter.com/amoiramara/status/1067402373662982144
“Destino Amargo”, Amara Moira: eis o que és, eis o que sig-
nifica. Um nome, o meu nome, mas ninguém o diz. Sonoro,
alegre talvez, como a cara que faço ao receber proposta de
um oral por dez, completo vinte. Atender na rua é o que dá,
coisa que aprendi de cara. Travesti rodando os insta, mas
se dizendo vinte, militante LGBT, feminista, escritora, dou-
toranda em teoria literária pela UNICAMP nas horas vagas:
e puta. “E puta”, mas como?! Mas por quê?! Sem, “mas. Puta
porque puta (MOIRA, 2018, p. 32).
Considerações finais
AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
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114
O arquivo, com cerca de 150.000 negativos e 17.000 ampliações e também diversas cadernetas e anota-
ções, sistematicamente criado e organizado por Alair Gomes, foi doado em 1994 por sua irmã, Aíla Gomes,
à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e encontra-se atualmente totalmente catalogado e disponível aos
interessados.
115
A fotografia urbana é o gênero que torna Alair Gomes reconhecido e atualmente valorizado enquanto
artista importante da fotografia homoerótica no Brasil. Reconhecimento esse surgido apenas pós a sua
morte, em 1992. Alair trabalhou intensamente sobre a prática fotográfica nas últimas décadas de vida, mas
só conseguiu ver partes mínimas do seu trabalho expostas em exposições coletivas e publicadas em revistas
especializadas fora do Brasil. Hoje, venerado mundialmente, os corpos urbanos retratados pelo fotógrafo
já compuseram diversas exposições individuais, ilustram páginas de publicações especializadas em todo
o mundo, sua fotografia é tema de teses e dissertações em diferentes áreas do conhecimento científico,
além de sua produção fotográfica fazer parte do acervo de importantes instituições do circuito comercial
das artes, como: Itaú Cultural, Museu de Arte de São Paulo, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
Museu de Arte Moderna de Nova York, Fondation Cartier pour L’art Contemporaine de Paris, dentre outras.
116
“Eu podia supor que a emoção do Operator (e, portanto, a essência da fotografia-segundo-o-fotógrafo)
tinha uma relação com o ‘pequeno orifício’ (estênopo) pelo qual ele olha, limita, enquadra, e coloca em
perspectiva o que ele quer ‘captar’ (surpreender).” (BARTHES, 2015, p. 17)
117
“E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eidolon
emitido pelo pequeno objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da fotografia, porque essa palavra
mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível
que há em toda fotografia: o retorno do morto.” (BARTHES, 2015, p. 17)
118
“Nas décadas de 1950 e 1960, estudou filosofia, estética, história da arte, física, biologia, mitologia,
neurociência, matemática, entre outras disciplinas. Em 1958, tornou-se professor assistente do Instituto de
Biofísica da UFRJ; em 1961, ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim para estudar filosofia da ciência;
ficou até 1963 nos Estados Unidos como pesquisador visitante da Universidade de Yale. Entre o final da
década de 1970 e meados da década de 1980, intensificou sua ação como crítico de arte e ministrou palestras
e cursos sobre fotografia e história da arte contemporânea na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na
Oficina de Escultura e Gravura do Ingá e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro” (COELHO, 2014, p. 12).
“De modo que, na hora em que larguei o Diário Erótico para fazer fotografia, houve uma mudança bastante
119
acentuada na minha abordagem do problema. A despeito de todas as dúvidas tão grandes que até hoje eu
tenho relativas ao possível valor literário de meus Diários Eróticos - e talvez a imensa maioria do material
registrado seja aceitável ou não do ponto de vista literário, o que preciso verificar quando tiver tempo -,
minha pretensão com o diário nunca deixou de ser literária. Eu me preparei sistematicamente do ponto de
vista literário para escrever os diários, eu fiz um estudo sistemático de Literatura por causa dos diários.
Não houve absolutamente correspondente nenhum disso quando peguei fotografia.” (GOMES, 1983, p. 07)
120
Poucos anos antes, entre 1961 e 1963, Alair teve a sua primeira experiência de estadia fora do Brasil por
ter sido contemplado com uma bolsa de estudos do Museu Guggenheim, com a qual viaja para os Estados
Unidos e vai estudar filosofia na Universidade de Yale como pesquisador visitante.
“A fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi.
121
Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não toma necessariamente a via nostálgica da
lembrança (quantas fotografias estão fora do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente
no mundo, a via da certeza: a essência da fotografia consiste em ratificar o que ela representa” (BARTHES,
2015, p. 73).
Sonatina a 4 pés
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional
122
Os títulos das séries fotográficas criadas por Alair, assim como a grande maioria de seus manuscritos
íntimos e teóricos sobre arte, encontram-se registrados em língua inglesa.
123
Para compor as Sonatinas, fotografando da janela de seu apartamento, ele utilizava lente de 35mm,
teleobjetiva e grande angular; para as fotografias realizadas na praia, ele utilizava lentes de 50mm, 135mm
e 300mm (GOMES, 1983).
Em 1983, na entrevista a Joaquim Paiva, Alair revelou: “Tudo que eu campus até agora com fotos tiradas
124
da janela foram as Sonatinas. Todas as minhas outras fotos de praia, a imensa maioria dos meus negativos
de praia, foram tiradas diretamente na praia” (GOMES, 1983, p. 13).
Trípticos de Praia
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional
Importante enfatizar que o termo mulher aqui se refere a todas às pessoas que se identificam com
125
mulheres e não em relação ao significado socialmente construído e normatizado como pessoas que nas-
ceram com buceta.
126
De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra jornada, entre outros significados, como caminhada e
percurso, é como se designava, no teatro espanhol e português, cada ato de uma peça (disponível em https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/jornada/).
127
God control é faixa do álbum Madame X, lançado em 2019.
Imagem 01: Registro de vídeo do La Lito com DJ Johnnybigu. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São
Paulo/SP. 2021. Frame: Chris, The Red
Isso, para mim, é muito próximo do que tenho buscado fazer na minha
própria pesquisa, para pensar as construções da normatividade dentro da
academia. Banida traz isso de uma forma muito interessante e rica na sua
Imagem 02: Registro de vídeo do La Lito com Su & Cláudio. Chris, The Red. FotoLivePerformance. Porto
Alegre/RS. 2021. Frame: Chris, The Red
Desde cedo, criei uma conexão direta com as artes em suas várias lin-
guagens, desenho, pintura, poesia, dança, teatro, música, livros etc. Aprendi
cedo o poder da arte em minha vivência, como espaços de imaginação e
fantasias. Como espaço de vivenciar outras histórias ou criar outras perso-
nas, não como escape, mas como potencialização.
Da mesma forma, com a descoberta da minha sexualidade, desde
quando entendi a anatomia do meu corpo e os meus desejos, busquei explo-
rá-los sem reprimi-los, sem tabus ou preconceitos e, desde então, me per-
mito às mais loucas taras. Já fui amarrado, dedado, fistei, mijei, sondei, fui
sondado, vendei, fui vendado, dildos, plugs, prendedor de mamilos e cock
rings são meus brinquedos. Fiz a 3, 4, 10, surubas e festas mil, filmei, fui
128
“As feministas negras, como bell hooks, reconhecem os impactos supremacistas brancos na trajetória
individual e coletiva, mas rejeitam o lugar político de vítimas passíveis da compaixão branca. Neste sentido,
a noção de “vitimado” resguarda o caráter político de afetação e alcance das injustiças sociais aos grupos
identitários – já as noções de agência política e autodefinição negras correspondem ao lugar histórico dos que
foram escravizados e não escravos, portanto, são vítimas no sentido de vitimados” (AKOTIRENE, 2019, s/p).
129
O termo “pós-pornografia” surgiu oficialmente em 1988, com a artista, diretora, sexóloga, performer, que
também foi prostituta e atriz pornô estadunidense, Annie Sprinkle. Em 1989, Annie e uma série de outras
artistas assinaram o The Post Porn Modernist Manifesto. Sprinkle passou a chamar o pornô que produzia
e dirigia de Pós-Pornô, “com a intenção de descrever uma pornografia que não era a dominante; era mais
Imagem 05: Registro de vídeo do La Lito com BixaPuta. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São Paulo/
SP. 2022. Frame: Chris, The Red
É por isso que, quando penso nas minhas putarias artísticas e pes-
quisas pós-pornográficas, estou muito mais alinhado ao pensamento das
“Pornografias do Sul” (NOGUEIRA, 2015, p. 18), como, por exemplo, nos escri-
tos sobre a construção de uma pós-pornografia sudaka da Bruna Kury, bra-
sileira, anarcatransfeminista, performer, artista visual e sonora, que escreve
“a pósporno como resistência política” (KURY, 2021, p. 15), de possibilida-
des a partir de outras narrativas e histórias. “A pós-pornografia fala que a
gente pode sentir prazer de diversas formas. Por isso, traz questões como
a ‘desgenitalização’ do sexo, que é exatamente a expansão do prazer para
o corpo inteiro, e a noção de que todos os corpos podem ser ‘desejantes’ e
desejáveis” (KURY, 2018, s/p)131.
As palavras kuryanas soam como o gemido no pé do ouvido, pois não
é apenas entender o que é pós-pornografia. É também pensar nas produ-
ções pós-pornográficas sudakas que temos feito e que subvertem as do
norte, principalmente, as que reproduzem espaços da colonialidade e da
branquitude “anulando corporalidades e/ou não deixando um ambiente
confortável para determinadas corpas, um projeto político que exclui cor-
pos dissidentes do Sul Global e incorpora supremacia branca, binaridade
de gênero, gozo pro olhar do macho, higienização, jovialidade, classe social
etc.” (KURY, 2021, p.13).
130
Também poderíamos refletir sobre uma série de outros papéis, como o negro ativo para satisfazer o desejo
da branquitude ou, ainda, as duas mulheres para satisfazer o fetiche do homem. Mesmo quando temos dois
homens e uma mulher no vídeo pornográfico mainstream, a mulher ainda está lá como um mero elemento do
gozo do outro. No caso de duas mulheres, geralmente, as duas se tocam, se beijam, se lambem. Enquanto,
no caso inverso, os dois homens mal se tocam.
131
Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/05/09/pos-pornografia-conheca-
o-movimento-que-mistura-sexo-politica-e-arte.htm. Acesso em: 31 jul. 2022.
Imagem 06: Registro de vídeo do La Lito com Mauro, Beto & Junior. Chris, The Red. FotoLivePerformance.
São Paulo/SP. 2022. Frame: Chris, The Red
132
La Lito significa cama em Esperanto.
133
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134
Sobre esse assunto sugerimos a dissertação de Gilvan Santana de Jesus (2017).
135
Todas as traduções existentes neste texto são nossas.
136
No Brasil, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o então ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, alertou os ministros sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da
Covid-19, utilizando a expressão “passar a boiada”. O que ficou conhecido como o “método Salles” significava
aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus para
mudar regras então vigentes. Ludivine Bantigny e Ugo Palheta concluem que a luta anti-fascista não deve
ser separada das lutas anticapitalistas, feministas, anti-racistas etc., mas deve constituir a parte defensiva
da luta pela emancipação.
137
Para nós, o campo cultural engloba as artes, claro, mas também o entretenimento, a moda, os meios de
comunicação e a publicidade, basicamente tudo o que se destina a apelar às nossas sensibilidades.
138
Após o golpe do impeachment, o presidente Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura, mas voltou
atrás por grande pressão da classe artística, mas não conseguiu, politicamente, manter um ministro à frente
da pasta. Passam por ela Marcelo Calero, Roberto Freire e, interinamente, João Batista de Andrade. Com a
eleição de Bolsonaro, o MinC foi, definitivamente, extinto.
Aqui, também subvertemos essa escrita falando em “cistema-mundo” com “c”, em conexão com o pen-
139
samento da transfeminista Viviane Vergueiro (2015), para caracterizar esse cistema normatizador a partir
da cisgeneridade.
140
Instagram da Companhia, post disponível em: https://www.instagram.com/p/CbD2WnLvlj9/. Acesso em:
02 ago. 2022.
141
Dzi Croquettes também foi o espetáculo de maior projeção de um grupo teatral brasileiro homônimo que
teve o seu debut em 1972 na cena cultural carioca. Seu sucesso (e a censura) os levou a ocupar palcos também
em São Paulo, Salvador, Lisboa, Paris, Turim e Milão. Seus componentes foram treze e homens – Wagner
Ribeiro, Roberto de Rodrigues, Cláudio Gaya, Reginaldo e Rogério di Poly, Bayard Tonelli, Paulo Bacellar,
Ciro Barcelos, Lennie Dale, Cláudio Tovar, Benedicto Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões – entre 18
e 40 anos quando de sua entrada no grupo.
dores/as, é seguro assumir que a referida obra teatral não possuía objetivo
definido, pois definir um objetivo e traçar estratégias para atingi-lo per-
tence ao domínio da razão e esse não era um espetáculo racional, antes,
era uma experiência para os sentidos, daí o seu potencial transformador,
transgressor. “Talvez não valha a pena, se é que um dia valeu, comentar os
Dzi Croquettes em nível puramente racional” (TRIGUEIRINHO, 1974, sp, apud
LOBERT, 2010, p. 46). O espetáculo Dzi Croquettes possuía por finalidade o
desenvolvimento do grupo – que passa pelo desenvolvimento de cada com-
ponente; suas falas e atuações tinham referências internas e deixavam os/
as espectadores/as em suspenso, no vazio, num terreno ambíguo no qual
teriam de decidir por si o sentido das piadas e, assim, poderiam experimentar
um sem número de emoções de um espetáculo mutante, ambíguo e caótico
realizada por seus próprios sentidos. Era a oportunidade e o convite de
olhar para si, para suas referências internas, com valores e julgamentos
temporariamente e, na medida do possível, em suspensão. A obra oportu-
nizava a cada sujeito uma visada de si e de suas relações para muito além
de qualquer moral, lição ou sentido sobre o qual a racionalidade pudesse
se debruçar, esmiuçar, reter.
Com o foco nas vivências do grupo, os dzis apresentavam um espetá-
culo que evoluía, como um organismo, sem se fixar, sem se institucionali-
zar, e essa evolução era compartilhada com o público à medida em que se
desdobrava – não se aguardava os seus resultados para sobre eles incidir
Gírias da época do espetáculo e abundantemente utilizada pelos dzis e seus seguidores, os tietes, em
142
entrevistas e depoimentos.
143
ATeliê VoadOR Companhia de Teatro foi criada em 2002 e é inspirada na peça homônima de Valère
Novarina cujo formato das palavras, inclusive, obteve referência ao espetáculo de estreia, O lustre, de
Antonio Hildebrando. Mais sobre o repertório da ATeliê pode ser consultado em https://www.atelievoador-
teatro.com.br/.
Norge Espinosa Mendoza, crítico de teatro em Cuba, assistiu ao espetáculo, que teve grande repercussão
144
em Havana, durante o Festival de Teatro de Cuba, em 2015, onde a peça foi encenada com a presença do
embaixador do Brasil. O diário de Genet foi aplaudido com grande expectativa pela classe artística local.
Encenada pelos atores Duda Woyda e Rafael Medrado, em espetáculos encenados no Brasil, a peça tem
gerado repercussões e críticas louváveis.
4. Considerações finais
145
Dissertação de mestrado defendida em 2014 no Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura
e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia.
146
A dicotomia entre transformista e drag queen, no contexto brasileiro, historicamente se estabeleceu na
distinção entre a primeira ser realizada pelo ator que se metamorfosearia no ideal de mulher estabelecido
pelos códigos do gênero social. A ilusão seria o efeito buscado. A drag queen, no entanto, subverteria essa
intenção de “parecer mulher” apresentando o exagero e a explícita artificialidade. Com o uso cada vez mais
recorrente do termo drag queen, ambas as propostas têm sido situadas nesse termo. Para mais informações,
consultar Benedetti (2005).
147
Peggy Phelan (1997) refere-se aqui à Teoria dos atos de fala, de J.L. Austin (1990).
Refiro-me aqui à pesquisa de doutoramento em andamento sobre aids, discursos e identidades, realizada
148
149
Gregg Bordowitz participou da importante coletânea oitentista sobre aids, arte e ativismo cultural, inti-
tulada AIDS: cultural analysis/cultural activism (1987). Ele é escritor, artista visual e ativista e atualmente
trabalha como professor no departamento de Vídeo, Novas Mídias e Animação na Escola do Instituto de
Arte de Chicago, se autointitulando como vídeo-ativista. Ele construiu, no interior da ACT UP (Aids Coalition
to Unleash Power), uma série de produtos audiovisuais que compuseram a estratégia basilar no ativismo
da organização.
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A dissertação, intitulada Infâncias, violências e sexualidades: uma aventura autobiográfica com Pedro
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Christian Gustavo de Sousa Aka - Chris, The Red - mestrando em Poéticas Visuais,
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integrante NuCuS (linha de pesquisa
em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: thered@thered.com.br