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Arte da

Resistência
Arte da Resistência
Leandro Colling (Org.)



      
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A825 Arte da resistência / organizador Leandro Colling. –
1.ed. 1.ed. – Salvador, BA : Devires, 2022.
350 p.; 16 x 23 cm..

Bibliografia
ISBN : 978-65-86481-77-8

1. Artes. 2. Gênero – Identidade. 3. Raça.


4. Sexualidade. I. Colling, Leandro.
10-2022/51 CDD 700

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Apresentação

Crítica cultural artivista da resistência

A publicação do livro Arte da resistência integra as comemorações


dos 15 anos do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e
Sexualidades (NuCuS). Na verdade, de 2007 a 2018, éramos apenas um
grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS). A transformação para
Núcleo ocorreu no dia 16 de outubro de 2018, quando a congregação do
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da
Universidade Federal da Bahia, aprovou a proposta e o Regimento Interno
do NuCuS, que agora conta com seis linhas de pesquisa e extensão: 1) Artes,
gêneros e sexualidades; 2) Corpos, cidades e territorialidades dissidentes;
3) Estudos trans, travestis e intersexo; 4) Gêneros e sexualidades na edu-
cação; 5) Lesbianidades, interseccionalidades e feminismos; e 6) Processos
de subjetivação, raça, gêneros e sexualidades.
Desde o início, o campo das artes interessou várias pessoas que inte-
gram ou integraram o grupo. Nossa primeira pesquisa coletiva, por exemplo,
tratava sobre a representação de personagens LGBT nas telenovelas da Rede
Globo. Foi através dessa investigação que então o CUS conseguiu ganhar
corpo e começou a sua produção. Nessa época ainda estávamos vinculados
à Faculdade de Comunicação, via Centro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura (CULT). Éramos umas dez pessoas, quase todas estudantes de cursos
de graduação da UFBA que hoje já são doutoras, a exemplo de Cíntia Guedes,
Matheus Santos e Helder Thiago Maia. Esse último, por sinal, continua no
NuCuS desde aquela época, é autor de um dos textos desta coletânea e
hoje é um dos editores de nossa revista, a Periódicus.
Foi por esse grande interesse no campo das artes que resolvemos publi-
car esta coletânea, que reúne pesquisas mais recentes e também algumas
mais antigas realizadas por pessoas que integram ou já integraram o NuCuS
nesses 15 anos. Esse interesse por pesquisar as artes motivou a criação de
uma linha específica sobre o tema no Núcleo, mas este livro também conta
com autores/as de outras linhas de pesquisa do NuCuS. Isso demonstra que,
mesmo dividido em linhas, as pessoas do grupo continuam pesquisando o
campo das artes, através de vários olhares, metodologias e teorias.
Na linha de Artes, gêneros e sexualidades, nos últimos anos temos
pesquisado aquilo que nomeei de cena artivista das dissidências sexuais
e de gênero do Brasil da atualidade. Essa investigação, também coletiva,
já gerou dezenas de produções, uma delas foi o livro, publicado em 2019,
pela EDUFBA, intitulado Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. De
alguma forma, Arte da resistência é uma continuidade dessa obra anterior,
com a qual várias pessoas dialogam. Arte da resistência não reúne ape-
nas reflexões sobre artistas da resistência, mas os seus textos e a próxima
existência do NuCuS também se constituem em uma resistência. Além de
pensar sobre artivismo, também tenho refletido sobre o que tenho nomeado
de crítica cultural artivista. Ou seja, nós, pessoas pesquisadoras, não esta-
mos apenas falando sobre artistas artivistas da resistência, mas também
estamos produzindo críticas culturais artivistas. Isso ficará ainda mais nítido
quando você terminar de ler os 18 textos desta coletânea. Desfrute-a. E vida
longa ao NuCuS!

Leandro Colling
Salvador, 7 de setembro de 2022.
Sumário

5 Apresentação
Crítica cultural artivista da resistência

9 A arte da resistência
Leandro Colling

29 Música pop-periférica transviada brasileira: gênero musicais,


cultura popular e artivismos dissidentes
Leandro Stoffels

49 Eu pesquisadora, elas cantoras, nós encruzilhada: o que aprendi


com Katú Mirim, Bia Ferreira e Ekena na cena musical artivista
brasileira
Deyse Carla Souza Santos Andrade

65 Arte, educação e ativismos interseccionais


Sandro Costa Correia

87 Tensões entre o Complexo Cisheteropatriarcal e os artivismos


das dissidências: a arte como ferramenta de transformação
coletiva
Julia Péret

107 “Não vem me censurar”: (re)partihar o comum da vida pelo


sensível da arte com Mc Amana
Walisson Angélico de Araújo

125 Cinema do Cariri cearense: beatas, multidões e travestis nas


encruzilhadas do tempo
Samuel Macêdo do Nascimento

139 Les Étoiles: meu coração é um pandeiro ou... não brinca que a
chica chia
Djalma Thürler e Jorge Caê Rodrigues

161 Zoologização da vida e taxidermia dos homens negros


Daniel dos Santos

181 Virtualidades performativas: voguing como política do corpo


Roney Gusmão

201 Baltasar do Couto Cardoso/Maria Úrsula de Abreu e Lencastro:


donzela-guerreira?
Helder Thiago Maia
223 Os usos dos afetos: a raiva como agenciamento político negro
sapatão de revide
Mayana Rocha Soares

249 Sou lôka: uma puta travesti


Olinson Coutinho Miranda e Djalma Thürler

265 Alair Gomes e a fabulação erótica na praia carioca


Eduardo Rocha Lima

281 Artes pornosexualigráficas: o romper anti-higiênico com o


cis-tema de arte. Texto gozado de uma dissertação-manifesto
Christian Gustavo de Sousa Aka - Chris, The Red

301 Revisitando as cenas queer de enfrentamento no bolsonaristão


Djalma Thürler, Marcelo de Troi e Paulo César Garcia

319 As vielas do corpo: cidade, sexualidade e doenças


Fábio de Sousa Fernandes

337 O que nos ocorre em permeio de uma defesa?


Ramon Victor Belmonte Fontes

347 Sobre os/as autores/as


A arte da resistência

Leandro Colling

Inicialmente quero informar como cheguei na chave de leitura da resis-


tência. No livro A vontade de expor – arte, gênero e sexualidade (COLLING,
2021a), fiz uma crítica a outras categorias desenvolvidas e utilizadas por
nossas colegas para pensar as artes das dissidências, a exemplo da chave
antissocial e da negatividade, pensada por Lee Edelman (2014), a do fra-
casso, de Jack Halberstam (2018), ou arquivo da infelicidade, de Sara Ahmed
(2019). Tentei mostrar as sintonias entre três chaves e defendi que José
Esteban Muñoz (2020) nos ofereceu uma perspectiva distinta ao propor a
ideia de uma utopia queer por vir.
Ao final do meu livro, influenciado pelo campo artístico que acessei na
Espanha e pelas pesquisas que eu e demais pessoas do Núcleo de Pesquisa
e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS) realizamos no
Brasil nos últimos anos, algumas delas agora reunidas neste livro, comecei
a pensar na chave de leitura da resistência porque essa palavra aparece
constantemente nas obras de várias pessoas artistas ou em entrevistas
que elas concedem sobre os seus trabalhos, como veremos a seguir. Neste
texto, que condensa reflexões realizadas de forma separada em dois outros
artigos (COLLING e SILVA, 2022, e COLLING, no prelo), apresento e reflito
conceitualmente como essa ideia/conceito é importante para a cena arti-
vista1 das dissidências sexuais, raciais e de gênero do Brasil da atualidade
e também potente para pensar muitas de suas produções artísticas.

1
Neste texto não irei refletir sobre o artivismo e como estamos operando com esse conceito. Já fiz isso em,
por exemplo, Colling (2019). Aqui gostaria apenas de enfatizar que, em muitos trabalhos e em intervenções
nos ambientes pelos quais eu circulo, percebo uma enorme incompreensão ou até preconceito em relação
ao conceito de artivismo. Muitas pessoas, críticos e/ou artistas pensam que artivismo seria uma categoria
identitária ou algo que desqualificaria as produções artísticas, uma forma de reduzir a potência das obras.

Arte da Resistência 9
***

No Brasil, a ideia de resistência tem sido muito acionada em várias


obras que integram a cena artivista das dissidências sexuais, raciais e de
gênero. “Eu sou / A voz da resistência preta”, por exemplo, cantou WD no
dia 26 de outubro de 2021, nas audições às cegas do programa The voice
Brasil, da Rede Globo2. A composição autoral emocionou os/as jurados/
as que rapidamente viraram as cadeiras para o intérprete. A letra conta
a história de um menino que foi abusado na infância, estigmatizado em
função de sua voz e sua cor, abandonado pelo pai e pela mãe, criado pela
avó e avô e que endeusava os brancos. “Tudo começou dar certo quando
eu aprendi me amar”, diz o refrão3. Enquanto a letra denunciava o racismo,
a performance no palco evidenciava que o artista também estava disposto
a criticar as normas de gênero e sexualidade, o que ficou ainda mais nítido
no clipe oficial da mesma canção, lançado meses depois. Já na abertura do
clipe, consta a mensagem de que o Brasil é o país que mais mata pessoas
LGBTQIA+ no mundo.
Em janeiro de 2022, a mesma Rede Globo resolveu incluir, entre par-
ticipantes do Big Brother Brasil, a cantora Linn da Quebrada. Em 2017, ela
e integrantes do grupo As Bahia e a Cozinha Mineira protagonizaram uma
campanha publicitária da vodka Absolut, com o slogan A arte resiste, que
contou com um clipe e um imenso mural em um prédio no Centro de São

No entanto, artivismo não é uma identidade para ser carimbada em artistas ou obras, mas uma chave de
leitura que advém da própria análise das obras em que a dimensão artística e ativista está colada, imbri-
cada, indissociada. Rose de Melo Rocha (2021), por exemplo, ao refletir sobre artivismo diz que, “mais do
que uma imbricação, configura-se uma iniciativa de reflexão e de ação cujos princípios norteadores são da
não separação. (...) Trata-se de defender uma junção irrevogável entre arte e política, na proposição de não
separar os dois polos” (ROCHA, 2021, p. 18). Marcelo de Troi (2018) prefere grafar a palavra “a(r)tivismo”
e a liga com o queer para pensar as produções que dialogam com as dissidências sexuais e de gênero. No
entanto, o autor não usa a expressão como uma etiqueta ou identidade para determinados artistas, mas para
pensar a emergência de produções com determinadas características. Ou seja, pensar essa nova cena da
atualidade através da chave de leitura dos artivismos, sejam eles focados nas dissidências sexuais e de gênero
ou em outras lutas, nos possibilita diferenciar essas produções das movimentações mais antigas do campo
das artes e suas imbricações com a política, como as que ficaram conhecidas pelo rótulo de arte popular
revolucionária, nos anos 60, no Brasil. Como detectou Charles Esche (2021, p. 15), “Os artistas socialmente
engajados da década de 2010, (...) parecem menos interessados que seus antecessores em conscientizar
ou despertar um senso de responsabilidade, e mais engajados em entender como movimentos existentes
podem ser apoiados e fortalecidos por meio da modelagem daquilo que já existe. Esses artistas (pelo menos
em parte) fazem arte construindo estruturas, histórias, arquivos e comunidades que instituem o tipo de
estruturas comuns que poderiam emergir em um futuro emancipado. Isso significa uma rejeição tanto da
criatividade, no sentido capitalista de novos produtos inventivos para venda, quanto da ideia de vanguardista
tradicional da autonomia artística que considera primordial a imaginação livre e egocêntrica do artista”.
2
Ver https://globoplay.globo.com/v/9985057/ - Acesso em: 6 de fev. 2022.
3
Clipe oficial pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=QJ8Zp_HYsbI -Acesso em: 29 de ago. 2022.

10 Leandro Colling
Paulo4. Linn já se autodefiniu como bixa preta, bixa travesty5 e, no BBB, se
apresentou como travesti. Na canção Corpo sem juízo, Jup do Bairro (2019),
parceira de Linn, aciona o seu corpo como lugar de resistência e diz: “É
como estar diante da morte e permanecer imortal/ É como lançar à própria
sorte e não ter direito igual/ Mas eu resisto, eu insisto, eu existo/ Não quero
o controle de todo esse corpo sem juízo”.6
Em abril de 2021, o Corre Coletivo Cênico, de Salvador, apresentou, em
seu perfil no youtube7, a série Para-íso, com oito episódios8. A história gira
em torno de um grupo de bixas negras que se reune, em plena pandemia do
Covid-19, após a morte de uma delas em consequência do HIV-Aids. Vividas
por Anderson Dantas, Igor Nascimento, Luiz Antônio Sena Jr, Marcus Lobo e
Rafael Brito, as personagens Leka, Tito, Miguel, Rogério e Paul se encontra-
vam em uma casa, uma espécie de cuíerlombo (NASCIMENTO, 2018), onde
a bixa falecida morava e acolhia as outras.
Em uma das cenas mais tocantes do espetáculo, as personagens olha-
vam pela janela (um casarão no bairro do Comércio, em Salvador, ao lado de
outros prédios semiabandonados) e identificavam como algumas plantas
insistem em crescer nas rachaduras dos antigos casarões. Aí uma das per-
sonagens associou aquela imagem das plantas com a ideia de resistência.
Ou seja, as plantas, que crescem nas fissuras e se proliferam nos locais
mais difíceis, ermos, resistem. Mediante isso, a personagem Leka arremata
para as amigas, ao dizer algo assim: “Nós somos como aquelas plantas, a
gente é resistência”.
Em uma primeira síntese de como a resistência aparece em uma série
de produções artísticas, percebi que se trata de uma resistência à lógica
da competitividade através das produções em parceria, resistência à
cisheteronormatividade e ao racismo através da presença de corpas trans
negras desobedientes às normas de gênero e sexualidade, resistência à
pureza identitária, através da valorização de várias formas de identifica-
ção e recombinação de identidades, como a de bixa travesty, resistência à
pureza de linguagens artísticas, pois nessa cena muitas artistas produzem
uma mistura de linguagens compatíveis às suas críticas aos essencialismos
identitários. Mas o que mais poderíamos dizer sobre a ideia de resistência?
Como tem se pensado e conceituado a resistência em trabalhos de cunho

4
Esse e outros materiais similares também poderiam render um bom debate sobre como o capitalismo se
apropria dessas expressões artísticas dissidentes. Ver https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/04/
vodca-faz-anuncio-artistico-em-defesa-da-diversidade.shtml e https://www.youtube.com/watch?v=uunq-
c97qexU&feature=emb_title – Acessos em: 5 fev. 2021.
5
Referência à música Bixa Travesty e ao filme homônimo de Linn da Quebrada.
6
Ver clipe em https://www.youtube.com/watch?v=6il3RlZSlgM – Acesso em: 09 fev. 2022.
7
Os episódios não estão mais disponíveis, mas o perfil é: https://www.youtube.com/channel/
UChxaYE9UEZTTlqaLVK3_7Hg - Acesso em: 15 jan. 2022.
8
Para saber mais, ler http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/2021/04/15331/AldirBlanc-CORRE-Coletivo-
Cenico-estreia-10-de-abril-espetaculo-teatral-episodico-PARA-ISO.html - Acesso em: 15 jan. 2022.

Arte da Resistência 11
mais acadêmico? Para enfrentar essas questões, primeiro vou recuperar
duas perspectivas bem conhecidas e um tanto distintas em torno da ideia
de resistência, a de Michel Foucault e a de Espinoza, e depois irei refletir
sobre diferentes formas de resistência, com destaque para a resisência
com alegria.

Resistência em uma perspectiva foucaultiana

Como sabemos, Michel Foucault, especialmente em suas últimas pro-


duções, destacava que onde existe poder, existe também resistência a esse
poder. Essa máxima, por exemplo, foi muito útil para ele desconstruir a hipó-
tese repressiva em torno da sexualidade presente nos estudos de Sigmund
Freud e Herbert Marcuse, com os quais o autor se contrapôs, ainda que
nem sempre os citasse diretamente (FOUCAULT, 2020). Para o filósofo, o
poder se estende pelas redes de contato em que as pessoas estão inseridas.
Foucault (1979) argumenta que o poder não está concentrado apenas um
algum lugar, instituição ou pessoa. Cito ele: “Por dominação eu não entendo
o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo
sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer
na sociedade” (FOUCAULT, 1979, p. 181).
Nessa perspectiva, o poder atravessa as relações, ou seja, as pessoas
são efeitos do poder, seja ele o macropoder ou os micropoderes. O autor tam-
bém analisou o poder disciplinador, que atua via organização dos espaços,
produção de saberes e na vigilância social (MACHADO, 1979) e diz que, para
romper essas correntes sociais que vigiam o corpo social, é preciso se pensar
em novas formulações anti-disciplinares e não instituir uma guerra contra
a disciplina. Essa discussão tange questões interligadas aos mecanismos
disciplinares que estão diretamente vinculadas ao que o filósofo nomeou
como dispositivos do poder e, como ele mesmo inferiu, o alvo não seria a
disciplina, mas os efeitos provocados por esse controle social. Por isso,
torna-se imprescindível se pensar em uma nova ética que permita eliminar
esses efeitos nocivos instituídos pelos aparelhos do poder.
Seguindo essas considerações, Daniela Dalbosco Dell´Aglio e Paula
Sandrine Machado (2018) escreveram um artigo para pensar o conceito de
resistência e suas relações com o feminismo anarquista. Inicialmente, elas
destacam que o conceito de resistência tem sido muito atrelado à analítica
do poder via Michel Foucault e pensam que a resistência não estaria, por-
tanto, em oposição ao poder, mas imbricada nessas relações de poder. Ou
seja, a resistência possibilita sim a recusa aos padrões normativos, porém
imbricada na complexa rede das relações de poder.

12 Leandro Colling
Daniela e Paula Sandrine também dialogam com duas outras pessoas
que pensaram sobre as práticas de resistência: o cientista político americano
James Scott e a antropóloga indiana Veena Das. O primeiro, segundo elas,
ainda que pense as formas cotidianas, fragmentadas e difusas de resis-
tência, estaria mais interessado em vincular a ideia de resistência a uma
reflexão e uma intencionalidade. A segunda pensaria a resistência que se
faz diariamente com o próprio corpo.

Para a autora (Veena Das), então, a resistência se faz no dia


a dia e isso não significa que existe ‘alguém’ da resistência,
um agente, mas que o ato de resistir está numa composição
frente a uma existência – aqui podemos pensar os corpos
negados, marginalizados. O agenciamento se faz de uma
maneira indireta, transversal, e também entre pessoas que
não necessariamente pertencem a alguma intenção de agir.
Resistência seria, portanto, a atuação para além da submis-
são, com os seus corpos, o uso que fazemos cotidianamente
com os nossos corpos (DELL´AGLIO e MACHADO, 2018, p. 51).

Daniela e Paula defendem que os corpos queer, “no próprio ato da exis-
tência, por sua performatividade, correm pelas beiradas do que é padronizá-
vel” (DELL´AGLIO e MACHADO, 2018, p. 53). Acompanhando as autoras, sub-
linhamos que é muito interessante pensar essa resistência que não é feita,
necessariamente, de forma intencional, com planos, metas e objetivos, com
ideias apontando para algum propósito. Isso se torna ainda mais producente
quando refletimos sobre as produções artísticas que aqui nos interessam.
No seguinte sentido: nem todas as artistas precisam tratar, diretamente, em
suas obras, sobre como os preconceitos e normas as subalternizam. Ou seja,
as suas próprias existências em cena (e fora dela) se constituem em uma
resistência9. Aqui vale destacar: o ato de existência como ato de resistência.
Talvez por isso algumas pessoas estão propondo a ideia de re(ex)istência.
Carlos Henrique de Lucas (2017), por exemplo, em tese sobre o que ele
chamou de “linguagens pajubeyras”, defende que elas se constituem em
uma “re(ex)sistência cultural para subverter a heteronormatividade”.

Por dizerem respeito às subjetividades daquelas pessoas


que ousam se insurgir contra a heteronormatividade e outros
regimes de assujeitamento, de minoração de si, as lingua-
gens pajubeyras se constituem como poéticas, mais espe-
cificamente como poéticas queer, necessariamente poéticas

9
De outra forma e em outro lugar, em Colling (2021b) refleti sobre esse aspecto ao destacar como a própria
performatividade de gênero dissidente é a obra de arte de muitas pessoas artistas dessa cena, o que borra a
fronteira entre performance e performatividade com a qual Judith Butler opera em alguns dos seus textos.

Arte da Resistência 13
de resistência. Não só as palavras pajubeyras, entendidas
como formas de “rir das categorias sérias” (BUTLER, 2003,
p. 8) – me refiro aos vocábulos, mas também as expres-
sões e toda a performance do corpo envolvida no ato de
enunciação de tais linguagens dizem respeito a uma poé-
tica queer. A risada, a gongação da norma, é também uma
forma de resistir a ela (LIMA, 2017, p.106 – grifos do autor).

Carlos prefere o conceito de re(ex)sistência porque, além de resistir ao


poder das regulações, existiria apesar dele.

Esse movimento de enfrentamento é o que nomeio re(ex)


istência, pois além de resistir ao poder das regulações,
existe apesar dele, a partir do que David Halperin (2007), nas
pegadas de Foucault, denomina “políticas opositoras”, cujo
propósito seria não a “liberação”, mas, sim, a própria “resis-
tência” como fim em si mesma. Talvez porque a liberdade
não passaria, mais uma vez em uma leitura foucaultiana, de
uma ilusão do poder... (LIMA, 2017, p. 46 – itálicos do autor).

Mas como seria essa resistência que existe apesar das relações do
poder e como um fim em si mesma? Em uma perspectiva foucaultiana isso
seria praticamente impossível. David Halperin (2007) explica que, para
Foucault, o poder está em todas as partes, é algo que se exerce – e não
algo que se possui – e, ainda que esteja distribuído de forma desigual, não
é exclusivamente negativo, mas também positivo e produtivo, pois produz
possibilidades de ação, de eleição e condições para o exercício da liberdade.
No entanto, o poder não é o oposto da liberdade, pois a liberdade não está
livre do poder. A liberdade é uma potencialidade interior ao poder, inclusive
um efeito do poder.

A resistência ao poder se produz dentro do mesmo poder, é


parte das relações de poder (...). O que escapa das relações
de poder – e algo sempre escapa, segundo Foucault – não
está situado em um lugar fora do alcance do poder, em vez
disso, representa seu limite, seu lado inferior ou contra-
ponto. O objetivo de uma política opositora, portanto, não é
a libertação, mas a resistência (HALPERIN, 2007, p. 35-36).

Para pensar com Foucault em uma resistência que não esteja sempre
tão imbricada nas relações de poder, temos que recorrer ao pensamento
ainda mais tardio do autor, aos volumes 2 e 3 da história da sexualidade e
em textos que foram publicados depois de sua morte e que se constituem
em transcrições dos últimos cursos e palestras realizadas pelo filósofo. É

14 Leandro Colling
isso que defendem Margareth Rago (2020) e o próprio David Halperin (2022).
Para isso, recorrem às reflexões de Foucault em torno da ideia de parrésia,
que o francês recuperou dos antigos filósofos gregos cínicos.
A parrésia consiste em dizer a verdade sem levar em conta os riscos ou
consequências de suas falas e sem exigir que alguém valide como verdade
daquilo que é proclamado. A parrésia também contém uma crítica a si mes-
mo/a e uma crítica aos/às interlocutores/as. Foucault estava interessado na
parrésia especialmente em como ela se diferencia do dispositivo da con-
fissão, desenvolvido pela Igreja Católica e transformado em vários outros
campos a ponto de se constituir como uma prática comum na sociedade
contemporânea. Halperin defende que as reflexões em torno da parrésia, no
pensamento de Foucault, estariam muito vinculadas com o texto O que é a crí-
tica?, em conferência proferida em 197810. A crítica não teria como premissa
a apresentação de um argumento que ofereça o que devemos fazer, mas um
instrumento para aqueles/as que lutam e resistem. A crítica, por ser uma
resistência à governamentalidade dos corpos, se constitui em um pequeno
resquício, em nosso tempo, dos propósitos dos filósofos cínicos. Já para Rago,
os conceitos de escrita de si e cuidado de si se ampliam com o da parrésia.

Quando analisa a militância filosófica dos cínicos, Foucault


afirma que, para eles, a verdadeira atividade política não se
encontra na discussão de temas como a guerra e a paz, os
impostos, taxas e rendas da cidade, mas na consideração
dos temas essenciais como “felicidade e infelicidade, boa
e má fortuna, servidão e liberdade”, enfim, no cuidado com
o outro (Foucault, 2009; 277). A meu ver, em nosso tempo,
são as feministas aquelas que tomam esse trabalho nas
próprias mãos, pois os feminismos ultrapassam os limites
instituídos entre o público e o privado, corpo e alma, razão e
emoção, essência e acidente, centro e periferia, importante
e fútil, limites que as esquerdas infelizmente respeitaram
(RAGO, 2020, p. 180).

Edir Pereira (2017), em um artigo no qual inicialmente pensa sobre o


conceito de resistência de um modo geral e depois reflete sobre a resis-
tência nos territórios, ao dialogar também com Foucault, defende que a
resistência é inseparável em relação ao poder. No entanto, o autor destaca
que a resistência mantém uma relação tensa, ambígua e problemática com o
poder. Para pensar sobre esse duplo sentido da resistência, aparentemente
contraditório, da resistência em relação ao poder, Pereira aciona outros

10
Uma tradução a esse texto pode ser encontrada em http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/
critica.pdf – Acesso em: 31 mar. 2022.

Arte da Resistência 15
autores e autoras para fazer uma distinção entre reação e resistência. Se,
por um lado, o próprio capitalismo extrai sua vitalidade da resistência, “é ver-
dade também que a resistência, pouco a pouco, insidiosamente, em surdina,
subterrânea e clandestinamente, contamina as forças do capitalismo ou as
impele a se dobrarem e curvarem em direções não pretendidas e previstas.
Por isso, é simultânea e dupla ao poder” (PEREIRA, 2017, p. 21).
Pereira entende que resistência não é uma mera reação, mas também
uma nova ação, com curso próprio e possibilidade de afetar a ação dos
outros. Dialogando com uma série de autores decoloniais, Pereira defende
que quando resistimos dentro do sistema capitalista também criamos algo
que não seja próprio do capitalismo. Por isso, o autor também enfatiza a ideia
de r-existência, “aquela que se encontra-se no interior e, ao mesmo tempo,
fora da matriz colonial de poder da modernidade” (PEREIRA, 2017, p. 25).
Para o autor, isso ficaria mais nítido quando pensamos as resistências dos
movimentos camponeses que lutam no campo dos territórios. Essas resis-
tências, argumenta ele, implementam e criam espaços alternativos (e não
apenas opostos ou contrapostos) às espacialidades criadas pelas formas e
forças de dominação existentes em nossa sociedade.

Resistência em uma perspectiva espinozana

A resistência, na obra de Espinoza, está relacionada aos seus conceitos


de potência, afetos e conatus. A resistência não é uma coisa dada, ela é
gerada em prol da vida e da liberdade. Ela constitui o fazer político. Assim
como Maquiavel pensava os conflitos como constituintes do fazer político,
para Espinoza, defende Daniel Silva (2020, p. 153), “(...) conflito e resistência
são fatores de inteligibilidade e crítica política”.
Conatus, para Espinoza, é o esforço de perseverança no ser e na exis-
tência, o que nos leva a produzir bem-estar, a autopreservação e os atos que
realizamos para alcançá-la. Cito o Daniel, estudioso da obra de Espinoza: “O
conatus, potência existente em ato, mostra-se força plástica como potência
de afetar e de ser afetado, essa capacidade afetiva e o esforço se distin-
guem apenas em conceito, porquanto estabelecem as vias pelas quais res-
pondemos aos encontros que coíbem ou estimulam a atividade individual”.
(SILVA, 2020, p. 166-167). Diz Espinoza: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto
está em si, por perseverar em seu ser” (SPINOZA, 2009, p. 53). O filósofo
parte do pressuposto de que quanto mais se luta para instituir a sua própria
existência, nada pode destruir o que se esforçou para ser, ou seja, ocorre o
contrário disso, pois se aumenta a potência de existir. Dito isso, a perseve-
rança dos grupos de dissidências sexuais ao afirmarem suas (re)existências,

16 Leandro Colling
identidades sexuais e de gêneros têm correspondência com os pensamentos
de Spinoza. O filósofo infere, que:

Por isso, a potência de uma coisa qualquer, ou seja, o esforço


pelo qual, quer sozinha, quer em conjunto com outras, ela
age ou se esforça por agir, isto é (pela prop. 6), a potência
ou o esforço pelo qual ela se esforça por perseverar em
seu ser, nada mais é do que sua essência dada ou atual
(SPINOZA, 2009, p. 53).

Espinoza faz algumas conexões em relação ao esforço que é aplicado


para se persistir na existência do ser. Ele denomina como vontade e desejo
esse esforço que corresponde à palavra resistência. Na sua ótica, todo esse
ânimo aplicado para estabelecer a existência do ser encontra-se no campo
dos desejos e o filósofo defende que os desejos são expressos de duas
formas. Quando esse anseio corresponde não somente a uma necessidade
do corpo, mas que se encontra em consonância com a mente, ele é o próprio
desejo que se manifesta, do contrário, quando esse anseio nasce apenas
da parte mais racional, o que o ser expressa é simplesmente uma vontade
e não o apetite voraz.

Pode-se fornecer, assim, a seguinte definição: o desejo é


o apetite juntamente com a consciência que dele se tem.
Toma-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por jul-
garmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a
queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao
contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por
apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa (SPINOZA,
2009, p. 54).

O conatus pode ser intensificado através dos bons encontros ou pre-


judicado pelos maus encontros. Andrea Zanella, seguindo Espinoza, define
o que seria um bom encontro:

Refiro-me a um bom encontro no sentido que lhe atribui


Espinoza: encontro de corpos que se afetam e potenciali-
zam concomitantemente suas existências, expandindo-as,
intensificando o conatus. […] De um bom encontro sempre
se sai diferente, sempre se produz uma diferença. Um bom
encontro é uma relação estética, é possibilidade de investir
nas sensibilidades em questão e transformá-las, transtor-
ná-las, reinventá-las. É possibilidade de intensificar a força
de existir, a potência da vida. De reinventar ao outro e a si
mesmo/a, de produzir-se outro, de produzir corpos outros
(ZANELLA, 2017, p. 54).

Arte da Resistência 17
Sobre essa explicação, talvez seja importante entender o que aqui se
chama de bons encontros, para não corrermos o risco de entrar em uma
dicotomia entre bons e maus encontros. Daniel Silva destaca que Espinoza
fugia das dicotomias. Por exemplo, diz que

[...] Espinoza não procura dicotomias ao fundar a política


como resistência à dominação – não há humores corretos,
não há desejos imutavelmente úteis; dicotomia, nem entre
liberdade e servidão, pois a incompatibilidade das duas
denota justo que não há paz sem conflito nem vontade de
domínio sem resistência (SILVA, 2020, p. 247).

Gilles Deleuze, que dedicou parte de sua obra para estudar Espinoza,
explica que, para o holandês, quando nos encontramos com outro modo,
pode suceder que esse seja “bom”, ou seja, que a pessoa se componha com
esse outro modo. O contrário também poderia ocorrer, a pessoa poderia se
descompor e isso seria algo mau para ela.
Espinoza dividiu os afetos em dois: afetos ações e afetos paixões e/ou
primários. Os primeiros teriam a força de aumentar a potência e apenas
os segundos é que são subdivididos entre paixões alegres ou tristes. E o
filósofo estava muito interessado nos afetos de ações, aqueles capazes de
aumentar a potência de agir dos sujeitos.
Na filosofia política de Espinoza, seguindo os estudos de Daniel Silva
(2020), o foco está no sujeito que não se submente a um contrato (referên-
cia a Hobbes), que não abre mão da sua potência, não aceita ser tutelado e
que, por isso, constitui um elemento fundamental da democracia. Em uma
democracia, desse modo, é vital a potência dos/as cidadãos/ãs, e não a sua
impotência. Para Espinoza, o contratualismo hobbesiano abafa o direito de
resistir. Espinoza pensa em um direito de resistência.

De certa forma, procurar a filosofia de Espinoza, hoje,


significa questionar lógicas de vida política que, sem que
pudessem ser previstas pelo próprio em suas variantes his-
tóricas futuras, ameaçam aniquilar a potência de vida dos
indivíduos nas mais diversas esferas sociais da atualidade
(SILVA, 2020, p. 23).

Vários estudos mais atuais do campo das dissidências sexuais e de


gênero recorreram à filosofia de Espinoza. Um dos trabalhos mais conheci-
dos é o de Paul B. Preciado (2018), que usou a ideia de potência em Espinoza
para pensar o que chamou de potentia gaudendi, ou potência de gozar, que
teria sido apropriada e expandida pelo capitalismo cognitivo para ser redu-
zida e transformada em trabalho reprodutivo e masturbatório. Isso teria

18 Leandro Colling
criado uma nova forma de governamentalidade do ser, baseada em uma
dimensão farmaco (por ser biomolecular) e semiótico-técnica (pornô). Para
Preciado, estamos em uma era farmacopornográfica.
Se vivemos nessa era farmacopornográfica, capturada e desenvolvida
pelo capitalismo, como resistir a ela? Artistas da cena das dissidências
sexuais e de gênero estariam nada mais do que capturados por essa era?
As respostas de Preciado (2014) aparecem de forma mais nítida em outro
livro, chamado Manifesto contrassexual. Se Foucault sugeriu que, para resis-
tirmos aos dispositivos de poder da sexualidade, deveríamos nos inspirar
nos antigos gregos, através da escrita de si e do cuidado de si, e era crítico
às identidades gays, Preciado, sem necessariamente recusar as identida-
des, embora diga que a ideia de contrassexualidade se inspira em Foucault,
considera a proposta dele de recorrer à antiga Grécia uma “retroficção”
(PRECIADO, 2011) e propõe a abertura do fluxo identitário e um novo contrato
sexual11. Cito Preciado:

No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reco-


nhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim
como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como
falantes. Reconhecem a si mesmos a possibilidade de ace-
der a todas as práticas significantes, assim como todas as
posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história
determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por
conseguinte, renunciam não só a uma identidade sexual
fechada e determinada naturalmente, como também aos
benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos
efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas
significantes (PRECIADO, 2014, p. 21).

Sobre a influência de Foucault, Preciado diz:

O nome contrassexualidade provém indiretamente de


Michel Foucault, para quem a forma mais eficaz de resistên-
cia à produção disciplinar da sexualidade em nossas socie-
dades liberais não é a luta contra a proibição (como aquela
proposta pelos movimentos de liberação sexual antirre-
presivos dos anos setenta), e sim a contraprodutividade,
isto é, a produção de formas de prazer-saber alternativas à
sexualidade moderna. As práticas contrassexuais que aqui
são propostas devem ser compreendidas como tecnologias
de resistência, dito de outra maneira, como formas de con-
tradisciplina sexual (PRECIADO, 2014, p. 22).

11
Para saber mais sobre as diferenças e semelhanças entre Foucault e Preciado, ler Renato Alves Aleikseivz
(2021).

Arte da Resistência 19
Formas de resistência

Como já deu para perceber, a depender de como conceituamos resistên-


cia, também podemos pensar quais são as formas que podemos utilizar para
resistir. Por exemplo, se a resistência será intencional, racional, organizada,
ou de forma mais constitutiva em função das nossas existências.
O filósofo e artista Dénètem Touam Bona (2020), que escreveu sobre
as históricas resistências afrodescendentes em vários contextos, propôs
uma diferenciação entre resistência e enfrentamento. Esse último estaria
mais restrito a uma visão heroica do combate ou ao momento específico da
batalha em uma guerra. As resistências negras, defende, teriam operado
mais como um continuum, o que incluiu vários tipos de resistências sutis. E
ele propõe que aprendamos com essas resistências realizadas desde dentro,
seja esse dentro a colônia ou a atual sociedade do controle.

Nesses tempos sombrios em que proliferam os dispositi-


vos de controle, as resistências devem ser furtivas, mais
do que frontais. Atacar em terreno aberto é se oferecer
como carne de canhão aos múltiplos poderes que tendem
a nos sujeitar, expor-se a ser capturado, desacreditado,
criminalizado. Trata-se então de resistir em modo menor,
pois colocar-se como maior, maduro, responsável, significa
obrigatoriamente ter de se render quando a polícia, os servi-
ços secretos, as agências de segurança nos convocam para
prestar contas de nossas vidas furtivas (BONA, 2020, p. 48).

O fato da produção artística negra das dissidências sexuais e de gênero


da atualidade acionar de forma intensa a ideia de resistência condiz com
muitos movimentos e estudos sobre a negritude produzidos na história bra-
sileira. Os estudos sobre a escravidão no Brasil, por exemplo, nas últimas
décadas passaram por uma significativa transformação também nesse sen-
tido. Em vez de de destacar apenas como as pessoas negras escravizadas
foram vítimas do brutal processo escravocrata, dezenas de pesquisadores/as
passaram a enfatizar como negros e negras também resistiram, de variadas
e inteligentes formas, com ou sem violência, à escravidão (ver, por exemplo,
REIS e GOMES, 2021, e REIS, 2003).
Edir Pereira (2017, p. 27), já citado aqui, também destacou que as resis-
tências nem sempre recorrem a “táticas de enfrentamento direto ou desobe-
diência explícita, mas muito mais por pequenas fugas, desvios, deserções,
ironias, recursas parciais, conformação simulada.” Ou seja, as resistências
nem sempre (ou até mesmo raramente) recorrem ao uso da violência.

20 Leandro Colling
Em um dos seus mais recentes livros, Judith Butler (2021) faz uma longa
reflexão e defesa da não violência como forma de resistência. Ela diz que
algumas pessoas da esquerda defendem o uso tático da violência alegando
que já vivem no campo da força da violência, pois a violência já acontece
o tempo todo contra as pessoas das chamadas minorias. Ou seja, dentro
dessa perspectiva, a resistência seria apenas uma forma de contraviolência.
Mas, em seguida, Butler pergunta: “mesmo que a violência circule o tempo
todo – e estejamos todos no campo de força da violência – queremos ser voz
ativa quanto a continuidade dessa circulação? Se ela circule o tempo todo,
é inevitável que circule?” (BUTLER, 2021, p. 24).
Adiante, a autora também diz que outro argumento de parte da esquerda,
para justificar o uso da violência, é de que ela é taticamente necessária para
derrotar regimes violentos. “Isso talvez esteja correto, não discuto. Mas
para que esse argumento funcione, precisaríamos saber o que distingue a
violência do regime da violência que que busca derrubá-lo. Essa distinção é
sempre possível? Ou às vezes é necessário assimilar o fato de que a distin-
ção entre uma violência e outra pode desmoronar?” (BUTLER, 2021, p. 27).
Nessa obra, Butler também questiona o uso da violência como auto-
defesa ao lembrar de quem pode usar a violência com essa razão e ter
o seu argumento aceito. Pessoas negras, LGBT e mulheres dificilmente
conseguem convencer as autoridades de que usaram da violência para se
defender. Judith Butler nos convida a pensar sobre esse tema imaginando
um mundo a ser construído que estaria baseado na premissa de que todas
as pessoas dependem umas das outras.

A não violência talvez seja mais bem descrita como uma


prática de resistência que se torna possível, se não obriga-
tória, precisamente no momento em que a perpetração da
violência parece ser o mais justificável e óbvio. Desse modo,
a não violência pode ser compreendida como uma prática
que não apenas impede um ato ou processo violento, mas
que exige uma forma de ação constante, às vezes agressiva.
Portanto, uma sugestão que apresentarei é que podemos
pensar a não violência não apenas como ausência de violên-
cia, ou o ato de se abster de cometer violência, mas também
como um compromisso permanente (BUTLER, 2021, p. 37).

A resistência nas artes ou fora do campo das artes pode ser feita mobi-
lizando diversos afetos: raiva, ódio ou também alegria. Eu tenho pensado
mais sobre a resistência com alegria. Ao fazer isso, me afasto significativa-
mente dos afetos mobilizados em arte queer do fracasso (HALBERSTAM,
2018), não ao futuro (EDELMAN, 2014) e arquivo da infelicidade (AHMED,
2019). Uma das alternativas – e que me parece potente para pensar parte

Arte da Resistência 21
da cena artivista das dissidências sexuais, raciais e de gênero da atuali-
dade – é recorrer ao pensamento nagô, nos termos explicados por Muniz
Sodré (2017). Ele escreveu sobre uma lógica propriamente corporal, com
outro sistema de pensamento (nagô) que foi produzido pelos povos negros
iorubanos escravizados no Brasil. Diz ele:

Diferente do amor cristão (sempre abstrato frente a um


objeto amado em particular), a alegria é um regime concreto
de sentimentos. No entanto, (…) ela é auto potencializadora,
coincidindo com a própria realização do real, quer dizer
com o fluxo transformador das coisas no espaço-tempo.
No pensamento nagô, alegria é condição de possibilidade do
conhecimento auferido na vida prática, isto é, a experiência
(…) (SODRÉ, 2017, p. 225).

Segundo Sodré, “no pensamento nagô, a alegria não é um afeto cir-


cunstancial, que nasce e morre ocasionalmente, mas um regime concreto e
estável de relacionamento com o real, é uma potência ativa” (SODRÉ, 2017,
p. 150). O autor explica que não existe um sujeito da alegria no pensamento
nagô, “há sim o sujeito da emoção, pois a alegria é regência, é algo que pos-
sibilita experiências e sujeitos” (idem, p. 151). O pesquisador também aponta
mais diferenças da alegria nagô com a de outras culturas: “Diferente da
calma alegria hindu, que é mais próxima da tranquila felicidade dos sábios
orientais, a africana é exuberante” (ibidem, p. 153). Uma síntese: “A alegria
é um princípio ético, de natureza filosófica, empiricamente comprovado na
liturgia dos terreiros, onde se encontra inclusive um ancestral da alegria”
(ibidem, p.154). Segundo Sodré, esse ancestral seria Babá Ayó, egun espe-
cífico relacionado com Iemanjá.
Outros aspectos do pensamento nagô estudados por Sodré e que são
muito potentes para pensar junto com as artes das dissidências sexuais e
de gênero: nessa cosmovisão, existe uma ligação visceral entre o sagrado e
o erótico; o erótico não se refere apenas à sexualidade reprodutiva; a dança
é um elemento central, a música é vibratória. O pesquisador lembra que
Nietzsche disse que só acreditaria num deus que soubesse dançar. Sodré
emenda: e que risse.
Letícia Carolina Nascimento (2021), travesti, negra, gorda, professora
universitária e do candomblé, ao ser perguntada se é feliz, apesar de todas
as circunstâncias de sua vida, respondeu:

A felicidade é um dever ancestral. Nós, de candomblé,


cultuamos a felicidade. Não há casa de candomblé triste,
a tristeza é um contra-axé. E não se trata de não viver a
dor, até porque esses maniqueísmos não pertencem ao

22 Leandro Colling
candomblé. Nós não esperamos uma vida só de dor, ou só
de alegria, nem só situada entre esses dois pólos. Devemos
à ancestralidade viver a alegria no presente e construir a
alegria para as próximas gerações. Então sou uma mulher
feliz, que cultua a alegria, crê no futuro e acredita, inclusive,
que nosso passado não é triste, é também feliz.

Em um texto no qual apresenta a Psicologia Preta, Lucas Motta Veiga


(2019) defende que o racismo, o machismo e a LGBTfobia são produtos da
máquina colonial de produção de subjetividades e que, para preservar a
saúde metal, as pessoas negras escravizadas utilizaram o resgate de sua cul-
tura, através do canto, da dança e da espiritualidade. Veiga também retoma
Naim Akbar e o conceito de “ritmo” para entender a produção subjetiva das
pessoas negras.

Considerando que o eu africano é um eu extenso, ou seja,


que o eu é a parte individualizada de uma totalidade origi-
nariamente divina, o ritmo seria o movimento que leva as
pessoas negras a buscar formas de se reconectar com a
dimensão coletiva de sua origem divina. O ritmo, de acordo
com o psicólogo (Naim Akbar), é uma característica que
os africanos do continente e da diáspora trazem geração
após geração de seus ancestrais pela via da memória do
corpo e de uma possível transmissão genética. É o ritmo que
promove a reunião entre africanos e a criação de práticas
coletivas que têm por finalidade expandir o eu individual
no contato com os demais e possibilitar a reconexão com
o divino que nos constitui e nos transborda, fazendo desa-
parecer momentaneamente a fragmentação e a separação
entre os indivíduos. Naim Akbar (1975) afirma que a par-
tir da noção de ritmo podemos compreender a força das
manifestações culturais africanas na música, na dança, no
candomblé. “A motivação básica do eu africano é um esforço
por algo que vai além da individualidade e reconecta o eu
com o eu extenso” (AKBAR, 1975, p. 98). A reconexão com o
divino – o sentido africano do que significa ser humano – por
meio de práticas coletivamente criadas é, historicamente,
condição de possibilidade da manutenção da saúde mental
negra em meio às violências da colonização e do racismo
(VEIGA, 2019, p. 247).

Ao pensar sobre a marronagem12 como uma forma de vida e de resis-


tência que pode ser pensada para além do contexto escravista, Bona (2020)

12
O autor define a marronagem como o fenômeno geral das fugas de escravos, mas elas teriam sido reali-
zadas de variadas formas. “Inútil então procurar uma definição precisa pois, profundamente polifônica, a

Arte da Resistência 23
também destacou que, em diversas comospoéticas negras, que chama de
comospoéticas do refúgio, podemos encontrar a memória do corpo negro
nos gestos, nas posturas e em uma série de práticas corporais, nas quais
ele inclui a dança e a música.

A essa mística “afro” enraizada nas ressonâncias do corpo,


opõe a mística cristã que supõe, inversamente, a extinção
do corpo. Por meio da tatuagem rítmica de seus corpos, é,
portanto, toda uma cosmovisão que foi trazida por esses
migrantes nus no porão do navio negreiro. E as resistências
vão desencadear precisamente a partir da reativação cria-
dora dessa memória, a partir do ritmo, pensamento encar-
nado. A liberação do escravo exige a reapropriação de seu
corpo: um verdadeiro desencantamento (BONA, 2020, p. 30).

Segundo Sodré, o pensamento nagô estaria vivo ainda hoje nas práticas
litúrgicas dos terreiros, mas também em boa parte da cultura e das artes
brasileiras influenciadas pelos iorubás que no Brasil chegaram entre os fins
do século XVIII e início do século XIX. Em um trabalho anterior, por exem-
plo, Sodré (1998) evidenciou as vinculações religiosas do samba. Traçar as
linhas de continuidade e descontinuidade entre as artes negras brasileiras
de ontem com as atuais, essas que interseccionam questões raciais, sexuais
e de gênero acionadas neste texto, me parece um projeto fundamental,
a ser ampliado, para entender como as resistências negras utilizaram e
ainda utilizam a festa, a dança, o ritmo e também a alegria como formas
de resistência.
No pensamento nagô, inclusive a morte ganha outros contornos. Luiz
Antonio Simas e Luiz Rufino (2019), por exemplo, escreveram sobre um
poema de Ifá que conta como os orixás Ibejis venceram a morte (Iku), que
tinha resolvido matar todas as pessoas de um povoado antes do tempo
previsto. Para isso, montou armadilhas para atrair as pessoas. Ninguém
conseguia deter Iku. Os mais velhos perguntaram a Orunmilá sobre o que
fazer e ele disse que apenas os Ibejis seriam capazes de deter a morte. Os
Ibejis tinham um tambor enfeitiçado e foram até Iku e começaram a tocar.
Quando Iku ouviu o som, achou tão bonito que resolveu não matar o menino
que tocava. A morte começou a dançar, cantar e bater palmas, mas não sabia
que o tambor tinha o poder de enfeitiçar os corpos de tal modo que seria
impossível parar de dançar enquanto a música estivesse sendo executada.
Os gêmeos se revezavam para continuar tocando e Iku começou a se sentir

noção de marronagem remete a uma multiplicidade de experiências sociais e políticas, que se espraiam por
cerca de quatro séculos, em territórios tão vastos e variados como os das Américas ou dos arquipélagos do
oceano Índico” (BONA, 2020, p. 16). O autor defende que a memória dessas resistências continua a irrigar
as lutas contemporâneas negras por meio de variadas práticas culturais e artísticas.

24 Leandro Colling
exausta. Implorou para que os gêmeos parassem de tocar o tambor. Os Ibejis
aí disseram: paramos se você levar as pessoas apenas quando realmente
for a hora delas. Simas e Rufino consideram esse poema como uma “potên-
cia criativa de caçar soluções diante da ameaça de desencanto” (SIMAS e
RUFINO, 2019, p. 45).
No dia 13 de abril de 2021, a artista baiana Ani Ganzala Lorde publi-
cou em seu perfil no Facebook13 as imagens de mais uma de suas incrí-
veis obras. O título do quadro é Ìkú ronda a Terra14. Ani se identifica como
mulher baiana, preta, sapatão, candomblecista, artista visual e grafiteira.
Ela escreveu o seguinte em sua rede social junto com a imagem de seu
novo quadro:

Às vezes precisamos olhar de frente nossos medos e só


assim moldar o caos e AGIR, como diz Octávia Butler.
Porque o medo, a ignorância e a dor nos paralisa. Então
quero compartilhar um pouquinho da cosmovisão da minha/
nossa ancestralidade Jeje Yorubá através da sabedoria da
ancestral Mãe Stella de Òsóssi:

Ikú é orísa - o senhor da ancestralidade

(...) “Para o candomblé, a morte é inevitável e imprevisível,


mas tudo deve ser feito na tentativa de adiá-la, a fim de
que se tenha uma vida longeva, quando o tempo adquirido
deve ser utilizado para o cumprimento da missão, o que dá
melhores possibilidades para um maior aperfeiçoamento
de si mesmo”.

“Conta-se que Nanā teve vários filhos, nos quais Ela não
conseguia ver beleza ou encontrava neles algo que dificul-
tava o relacionamento. Todos os filhos foram abandona-
dos por Nanā, menos ÌKÚ que era possuidor de uma beleza
estonteante. Ìkú é o único filho que Nanā conseguiu criar.
Eles nunca se afastaram. Ìkú cresceu e se transformou em
um ser muito belo, forte, guerreiro, que chamava a atenção
de homens e mulheres. Encantados com a beleza de Ìkú,
as pessoas não conseguiam desviar os olhos dele e trata-
vam de segui-lo com a intenção de continuar admirando-o.
Fascinadas, as pessoas não sabiam que toda beleza e
encanto de Ìkú tinham como objetivo atraí-las para o Igbó-
Ìkú (floresta da morte), lugar de onde jamais voltariam. Com
o tempo, todos perceberam o real objetivo escondido na

13
https://www.facebook.com/AnnieGonzagaLorde - Acesso em: 15 out. 2021.
14
Ver imagem em https://www.facebook.com/photo?fbid=10160185334847281&set=pcb.10160185334902281
– Acesso em: 15 out. 2021.

Arte da Resistência 25
beleza de Ìkú e passaram, imediatamente, da adoração ao
pavor. Se Ìkú encanta, também pode ser encantado. Por
isso que para ele se canta: Ìkú siku fo ya yojojo. Nje kó ró ti
awon ómó. Kó ro ti toda
Morte fique encantada.
Dance, dance, dance
Não arme armadilhas contra nossas crianças.
Não arme contra nós”.

Mãe Stella de Òsóssi

A imagem do novo quadro de Ani Ganzala Lorde foi postada na mesma


semana em que o Corre Coletivo Cênico estava exibindo os oito episódios
do espetáculo Para-íso, sobre o qual falei no início deste texto. Livremente
inspirada na obra Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan, as perso-
nagens da peça Para-íso se reúnem para homenagear uma bixa mais velha
que morreu vítima do HIV-Aids em plena pandemia da Covid-19. E tudo isso
foi feito com muitas discussões políticas e reflexões existenciais, que gera-
vam alguns momentos tristes, mas que rapidamente eram sobrepostos por
momentos de muita alegria, com danças, músicas, performances e muita
fechação. Até o funeral da bixa amiga foi feito com alegria, festejando a
sua existência.
Com ou sem alegria, com ou sem intencionalidade, de forma mais contí-
nua ou disruptiva, o que parece nítido neste texto (e também em outros que
compõem este livro) é que estamos, de algum modo ou de outro, falando
de uma arte da resistência das dissidências sexuais, raciais e de gênero no
Brasil da atualidade.

26 Leandro Colling
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28 Leandro Colling
Música pop-periférica transviada brasileira:
gênero musicais, cultura popular e
artivismos dissidentes

Leandro Stoffels

Neste texto apresento um conceito que foi esboçado inicialmente em


minha dissertação de mestrado intitulada Transviadagens pop-periféricas:
videoclipes, artivismos bastardos e territórios populares, defendida em 2022
no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal
Fluminense (UFF): aquilo que tenho chamado de “música pop-periférica
transviada brasileira”. Na dissertação realizo uma análise de vídeos e dos
perfis em redes sociais de cinco artistas musicais do Brasil atual ligados aos
gêneros e sexualidades dissidentes: Leona Vingativa, Getúlio Abelha, Daniel
Peixoto, Kika Boom e Coletivo Afrobapho. A partir da análise de músicas,
videoclipes e outros conteúdos audiovisuais compartilhados em suas redes
sociais, fui percebendo algumas características em comum entre esses/
as artistas, assim como algumas diferenças entre esses/as e as gerações
anteriores de artistas LGBTs do Brasil. No contexto contemporâneo, as redes
sociais e plataformas digitais ganham centralidade na produção e circulação
musical brasileira e os/as artistas ligados às dissidências sexuais e de gênero
têm suas carreiras influenciadas por essas transformações comunicacionais.
Ao nos referirmos à música pop-periférica transviada brasileira (ou
música pop-periférica das dissidências sexuais e de gênero no Brasil) esta-
mos apontando para algumas características compartilhadas entre dife-
rentes artistas atuais, que são: a centralidade das plataformas digitais em
suas carreiras (através de memes ou viralizações), a importância dos feats.
em suas obras e, principalmente, uma relação mais profunda entre esses/
as artistas e os gêneros musicais “pop-periféricos” brasileiros, como forró,

Arte da Resistência 29
funk, carimbó, gospel, entre outros. Aqui apresentamos a parte final da
pesquisa de mestrado, que está focada nessa ideia de música pop-periférica
transviada. Explicamos as influências conceituais que embasaram nossa
investigação assim como demonstramos os resultados das análises que
nos permitiram desenvolver esse conceito.

1. A música pop-periférica transviada brasileira

A ideia de música pop-periférica transviada brasileira surgiu de diálogos


intelectuais realizados com dois grupos de pesquisa: primeiro com a linha
de pesquisa em Artes, Gêneros e Sexualidades, do Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), grupo que integro
desde 2014, através do qual nos debruçamos a refletir sobre processos artís-
ticos que envolvem práticas e discursos dissidentes de gênero e sexualidade.
O segundo grupo foi o Laboratório de Pesquisa em Culturas e Tecnologias
da Comunicação (LabCult), ligado à UFF, onde conheci o conceito de música
pop-periférica brasileira, desenvolvido pela orientadora do mestrado Simone
Pereira de Sá, que apresentamos a seguir.
I. A música pop-periférica brasileira
Simone Pereira de Sá dedica seu livro Música pop-periférica brasileira:
videoclipes, performances e tretas na cultura digital a analisar as transfor-
mações recentes ocorridas na música “pop-periférica” brasileira. Tomando
inspiração no trabalho de Paulo César Araújo (2003), a autora compreende
que a ideia de “música popular” no Brasil é disputada por duas constelações
musicais distintas. Na primeira está a MPB, ligada ao samba, ao tropicalismo
e às músicas de protesto e que tem como marca a politização das letras
e a maior aceitação pela crítica e pelos meios de comunicação tradicio-
nais. A segunda constelação que disputa a noção de “músicas populares
brasileiras” está ligada à noção de sucesso de público (em especial entre
as classes populares) e compreende diferentes ritmos regionais do país
como sertanejo, funk, pagodão baiano, brega, tecnobrega, entre outros.
Historicamente a primeira constelação contou com a apreciação das clas-
ses médias urbanas e com o reconhecimento crítico nacional e, em alguns
casos, também internacional. Por outro lado, a segunda constelação por
muito tempo se constituiu por cenas musicais independentes e isoladas,
em grande parte restritas a determinados territórios tidos como periféricos
(como as cidades do interior e as periferias das capitais), contando com suas
próprias gravadoras e espaços de shows.
Entretanto, desde a virada do século as plataformas digitais de com-
partilhamento têm trazido transformações a essas “constelações musicais”,

30 Leandro Colling
em especial à segunda, que a autora chama de “música pop-periférica bra-
sileira”. Para articular suas ideias entre gêneros musicais e as tecnologias
de informação e comunicação, Pereira de Sá (2021) se aproxima da Teoria-
Ator-Rede (TAR), tomando emprestada a noção de rede sociotécnica. Esse
conceito compreende que a cultura se constitui a partir da interação entre
diferentes atores, humanos e não-humanos, em redes que são tanto sociais
quanto tecnológicas. Isso quer dizer que uma coletividade – uma rede socio-
técnica – é composta tanto por atores humanos, como artistas, produtores,
consumidores, quanto por atores não-humanos, como instrumentos, sin-
tetizadores, plataformas digitais e meios de comunicação. Nesse sentido,
a autora parte da TAR para propor que “os gêneros musicais são coletivos
compostos por atores humanos e não humanos em ação, e (...) qualquer novo
ator altera sua composição.” (PEREIRA DE SÁ, 2021, p.52). Dessa maneira
fica mais fácil compreender como a entrada de um novo ator (como as plata-
formas digitais, em especial o YouTube) transformou as redes sociotécnicas
que compõem as cenas/gêneros de música pop-periférica brasileira.
A primeira mudança está na superação de certas barreiras geográficas.
As plataformas digitais permitiram que gêneros antes restritos a cenas
regionais passassem a ser consumidos nacionalmente, como o funk, o
bregafunk e o sertanejo. Segundo, o barateamento dos materiais de regis-
tro e gravação permitiram um aumento exponencial da produção musical
independente, deixando os artistas menos “presos” às grandes gravadoras.
Terceiro ponto, o YouTube permitiu que os videoclipes voltassem a tomar
um lugar central no consumo musical, após perderem a importância no fim
dos anos 90. Ao mesmo tempo, com o consumo de músicas via aplicativos, o
álbum foi tomando outro sentido na carreira dos artistas. Antes era essencial
que um artista lançasse um álbum para poder trabalhar e fazer shows, mas
hoje é cada vez mais comum que os artistas trabalhem com singles, músicas
únicas, e que muitas das suas músicas de trabalho não estejam em nenhum
álbum. Por fim, as plataformas digitais permitiram aos/às artistas ter mais
canais de distribuição de suas obras, além de um contato mais direto com
o público, fugindo do controle ou até mesmo do boicote imposto por cer-
tas TVs e rádios tradicionais. Resumindo, a chegada do ator não-humano
representado pelas plataformas digitais provocou mudanças nas redes
sociotécnicas (os gêneros musicais), permitindo a chegada de novos atores
humanos e novas formas de circulação, rompendo com certas fronteiras
regionais e institucionais anteriores.
Nesse contexto de ampliação da produção e distribuição de música
“pop-periférica” brasileira através das plataformas digitais, temos visto uma
multiplicação de vozes dissidentes surgindo em diferentes cenas musicais.
Podemos citar alguns exemplos analisados na pesquisa de mestrado, como
Getúlio Abelha na cena do forró, Leona Vingativa no carimbó moderno e

Arte da Resistência 31
Afrobapho no contexto do pagodão baiano. A seguir, apresentamos esse con-
texto contemporâneo de maior imbricação entre arte e política LGBTQIA+,
descrito por Leandro Colling (2019) como uma “emergência dos artivismos
das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil”.
II. Sobre as dissidências sexuais e de gênero na arte brasileira
Leandro Colling tem dedicado suas pesquisas mais recentes a analisar o
contexto artístico atual, em que temos visto despontar uma multiplicidade de
narrativas artísticas interessadas em expor questões políticas relacionadas
aos gêneros e às sexualidades diversas, contexto que ele descreve como a
“emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gênero no Brasil”.
O autor reconhece que a aproximação entre arte e política no Brasil não é
nova, basta lembrar da importância do teatro negro e das artes feministas,
por exemplo. Entretanto, ele observa que, especialmente no contexto das
lutas das dissidências sexuais e de gênero, os artivismos têm despontado
como uma maneira diferente de fazer política, bem distinta daquelas que
eram habituais até pouco tempo. Até o início dos anos 2000 era mais comum
que as organizações não-governamentais (ONGs) aparecessem como espaço
para formação e articulação política LGBTQIA+. As estratégias políticas
utilizadas também eram distintas, já que as ONGs se aproximam mais das
maneiras tradicionais de fazer política, buscando a transformação social
através do Estado e das leis. Já os artivismos acreditam que a transforma-
ção da sociedade passa necessariamente pelo subjetivo, pelo social, pelo
cotidiano e pela cultura.
Leandro Colling aponta algumas condições para a emergência desses
artivismos: Primeiro, eles surgem como resposta aos setores mais conserva-
dores do Brasil, em especial os religiosos, que elegeram as pessoas LGBTs
como um dos seus principais alvos, e que têm ganhado força política nos
últimos anos. Segundo, os artivismos foram se destacando em oposição às
formas tradicionais de fazer política, pois as pessoas foram se afastando
da lógica estrita da identidade sexual e do paradigma da igualdade, que são
(ou foram) caros à atuação das ONGs. Esses/as artistas/ativistas fogem das
lógicas identitárias rígidas e da ideia de igualdade, preferindo investir num
discurso que celebra a fluidez e a diferença. Segundo Colling, em oposição
às táticas políticas tradicionais, os/as

[...] artistas e coletivos da cena artivista apostam nos pro-


dutos culturais para produzir novos processos de subjeti-
vação, capazes de sensibilizar e modificar as percepções
que as pessoas possuem em relação às dissidências sexuais
e de gênero. Além disso, explicam as sexualidades e os
gêneros para além dos binarismos, com duras críticas às
perspectivas biologizantes, genéticas e naturalizantes. Em
boa medida, as pessoas que integram essa cena parecem

32 Leandro Colling
entender que as identidades são fluidas e que novas iden-
tidades são e podem ser criadas, recriadas e subvertidas
permanentemente (COLLING, 2019, p. 24).

Além disso, esses/as artistas “rejeitam a ideia de que, para serem


respeitadas ou terem direitos, as pessoas devam abdicar de suas
singularidades em nome de uma ‘imagem respeitável’ perante a sociedade”
(COLLING, 2019, p. 24). Como terceira condição de emergência para essa
cena, Colling cita a ampliação das universidades brasileiras durante os
governos petistas e, a partir disso, o crescimento dos estudos queer no país.
A quarta condição seria a ampliação da temática LGBTQIA+ no contexto
midiático em geral, aparecendo mais frequentemente em novelas, filmes e
programas de televisão, que tanto deram mais visibilidade ao tema quanto
mobilizaram as pessoas LGBTQIA+ a contarem suas próprias narrativas, para
que não ficassem dependentes das narrativas da mídia tradicional. Outra
condição citada como importante para o aparecimento dos artivismos queer
é a maior presença das identidades trans e de pessoas que se identificam
como não-binárias no discurso público. Isso permitiu uma maior abertura
em relação às distintas expressões identitárias.
Dentre todos os argumentos apresentados pelo autor destacamos este
que trazemos por último: a ampliação do acesso às tecnologias de infor-
mação e comunicação e a massificação do uso de sites de redes sociais.
Segundo Colling, é “através das redes que as pessoas [artistas] conseguem
se conectar com as outras, divulgar suas produções e ações, tudo com um
custo bastante reduzido” (COLLING, 2019, p. 25). Todavia, nem tudo são
flores, já que essas/es artistas também precisam lidar com “muitos pro-
blemas de censura em função das preconceituosas regras das redes, em
especial do Facebook” (COLLING, 2019, p. 26). Apesar do autor destacar o
Facebook, outras plataformas também recebem críticas, como o Instagram,
por censurar seios femininos, e o YouTube, por excluir videoclipes de alguns/
mas artistas.
Para desenvolver o seu argumento, Colling descreve algumas caracte-
rísticas artísticas desses artivismos. Algumas delas se relacionam com as
obras estudadas aqui, como: a valorização das experiências hibridas, seja
de gênero e sexualidade, assim como de linguagens artísticas. As frontei-
ras entre performance, teatro, música etc. são borradas constantemente,
assim como as fronteiras de gênero e sexualidade. Nesse sentido, o autor
destaca que “a crítica da pureza identitária realizada pela cena artivista
das dissidências sexuais e de gênero se alia com a crítica de uma pureza
artística, que já tem longa trajetória na história da arte contemporânea”
(COLLING, 2019, p. 28). Outro ponto em comum é a rejeição à ideia de que
caberia ao público um lugar de contemplação passiva. Muitas vezes as obras

Arte da Resistência 33
convocam e interpelam o público diretamente, exigindo ação e resposta dele.
Além disso, essas expressões artísticas buscam ocupar espaços diversos,
retirando a arte dos museus, galerias, estúdios e casas de espetáculo e
levando para a rua.
Outra característica importante é que essas obras tomam o corpo como
objeto central. “O corpo das pessoas artistas não é um suporte para a arte – o
corpo já é a sua arte.” (idem, p. 31). O autor parte da hipótese de que a “cena
artivista extrapola os limites do corpo (...). Em vários casos dessa cena (...),
o corpo e a própria performatividade de gênero da pessoa artista são a sua
arte ou são o mote central para a sua produção artística” (idem, p. 31-2). Dito
de outra maneira, essas/es artistas performam sobre suas performatividades
de gênero, ou seja, constroem um número performático que tem como um
dos motes principais a exibição, crítica, estetização da própria expressão
de gênero e sexualidade dos/as artistas. Por fim, artistas e suas obras tra-
balham muitas vezes a partir da alegria, da diversão e da zombaria. Nesse
sentido, o autor afirma ver como característica de muitas dessas obras uma
“felicidade em transgredir” (COLLING, 2019, p. 29). Uma diversão e felicidade
que se projeta pelo fato de corromper regras que definiam limites para os
seus corpos. Para pensar as obras desses/as artistas, podemos lembrar
do verso da música de Belchior que diz: “a felicidade é uma arma quente”.
Em minha pesquisa utilizo a ideia de “transviadagens pop-periféricas”
para apontar músicas e performances que se baseiam em experiências de
gênero e sexualidade que borram padrões hétero e cisnormativos, tendo
como base a utilização de territórios populares e gêneros musicais pop-
periféricos. Me inspiro na ideia de corpos transviados, proposta por Carlos
Guilherme Altmayer (2016; 2020), e influenciada pelos estudos transviados
de Berenice Bento (2017). A ideia de estudos transviados surge como uma
tradução cultural idiossincrática que a autora faz para os estudos queer
no Brasil. Segundo Berenice Bento, “ser um transviado no Brasil pode ser
‘uma bicha louca’, ‘um viado’, ‘uma travesti’, ‘um traveco’, ‘um sapatão’”
(BENTO, 2017, p. 249). Para ela, os estudos transviados apresentam algumas
caraterísticas principais, sendo elas: “1) a negação de identidade como uma
essência; 2) o combate ao suposto binarismo identitário; 3) a interpretação
do corpo como um lugar de combate e disputas” (BENTO, 2017, p. 133).
Altmayer se inspira nas reflexões de Bento para pensar performan-
ces e obras promovidas por artistas dissidentes de gênero e sexualidade.
Para o autor, os corpos transviados podem ser entendidos como “corpos
desobedientes que, a partir de seus trabalhos estético-políticos, questio-
nam e desafiam normas, classificações e lógicas binárias de sexo e gênero”
(ALTMAYER, 2016, p. 11). No dicionário, o termo transviado possui o seguinte
sentido: “aquele/a que se afastou do caminho certo, (...) das referências
morais consideradas boas, do dever ou da retidão” (PRIBERAM, 2022, online).

34 Leandro Colling
Dessa forma, a ideia de transviadagens deve ser lida como uma noção fluida,
como as próprias experiências de gênero e sexualidade a que se referem15.

2. Os artisvismos transviados em diálogo com a música


pop-periférica brasileira

A música pop-periférica transviada brasileira surge do encontro des-


ses dois fenômenos da cultura brasileira contemporânea: de um lado as
tecnologias de comunicação transformando a produção e circulação de
música por e para as classes populares brasileiras e, do outro lado, a mul-
tiplicação de discursos “artivistas” promovidos por corpos transviados no
campo artístico do país. Dessa forma, a música pop-periférica transviada
expressa características de ambos os processos, como a importância das
redes sociais e plataformas digitais para o desenvolvimento e circulação
das obras; a utilização de humor e paródia em muitos discursos; a prática
de regravar e fazer versões de obras musicais anteriores; e, principalmente,
a aproximação com gêneros musicais pop-periféricos brasileiros.
Partimos da hipótese de que essas/es artistas transviados são atores16
de uma rede de música pop-periférica (PEREIRA DE SÁ, 2021) ligada às
identidades LGBTQIA+ que têm se consolidado na última década, e que
encontrou território midiático nas plataformas digitais de compartilhamento,
em especial no YouTube.
Nosso esforço analítico toma como inspiração o trabalho realizado no
livro de Simone Pereira de Sá (2021). Nessa obra, a autora propõe a aná-
lise da cena pop brasileira contemporânea como uma rede socio-técnica,
investigando os gêneros musicais, a trajetória de artistas (particularmente
Anitta), as parcerias entre eles (feats.), suas posições nas paradas de sucesso
etc. Vamos na direção indicada no livro, que propõe uma cartografia dos
atores – humanos e não-humanos – que constituem as redes sociotécnicas
da música pop-periférica brasileira “privilegiando os laços, as ligações e
as mediações entre artistas, videoclipes, plataformas e gêneros musicais
diversos e buscando entender como a agência de cada um dos atores con-
tribui para a definição dos contornos do coletivo a cada momento” (PEREIRA
DE SÁ, 2021, p. 59).
A seguir apresentamos a análise de obras musicais (audiovisuais) e dos
perfis em redes sociais dos cinco artistas analisados na dissertação (Getúlio

15
Com o intuito de fazer jus às performances analisadas aqui, utilizamos durante o texto ambos os gêneros para
nos referir às pessoas artistas. Assim, em alguns momentos denominamos “os artistas transviados” e em outros “as
artistas transviadas”, como forma de borrar as noções de gênero, como fazem as próprias obras analisadas aqui.
16
No sentido de “atores sociais” e não “atores e atrizes cênicas”.

Arte da Resistência 35
Abelha, Leona Vingativa, Daniel Peixoto, Kika Boom e Coletivo Afrobapho)
focando em diferentes estratégias comunicacionais utilizadas por essas
artistas, a saber: os gêneros musicais, os memes e viralizações e uso de
outras plataformas e meios. Essa etapa da pesquisa apresenta um caráter
exploratório, buscando pistas que nos auxiliem a pensar e formular essa
ideia de “música pop-periférica transviada brasileira”.

Gêneros musicais

Iniciamos a análise da música pop-periférica transviada (ou ligada às


expressões de gênero e sexualidade dissidentes) pensando a estratégia
comunicacional mais básica das canções populares: o gênero musical. Essa
estratégia consiste em mobilizar expectativas estéticas compartilhadas
entre artistas e público, girando em torno de marcas como ritmos, conteú-
dos, figurinos e territorialidades. Segundo Pereira de Sá (2021), os gêneros
musicais “permitem que músicos e audiência estabeleçam balizas para
as disputas de gosto, ao mesmo tempo que possibilitam a construção de
assinaturas específicas dos artistas” (p. 94). Entretanto, a autora destaca
que, “longe de ser definitiva ou imanente ao universo musical, a noção de
gênero supõe sempre disputa, negociação e rearranjos sucessivos” (p. 94),
ou seja, gêneros musicais não são fixos, mas dinâmicos e instáveis.
Dito isso, entendemos que, na última década, os/as artistas LGBT não
apenas se multiplicaram, mas passaram a se apropriar mais diretamente
de marcas e gêneros pop-periféricos do Brasil. Isso é um dado importante,
pois aponta para uma mudança de estratégia comunicacional dos artistas
transviados visto que, como observamos, cada gênero musical mobiliza
diferentes noções de política, território e pertencimento identitário.
Nesse sentido, chama a atenção em nossa análise como artistas da
música pop transviada contemporânea se diferenciam de artistas LGBTs
do Brasil anteriores, pela escolha dos gêneros musicais. Se pensarmos em
nomes como Ney Matogrosso, Les Étoiles, Cássia Eller ou mesmo Jardins
das Delícias (banda de Cláudia Wonder) ou Textículos de Mary, que são artis-
tas musicais LGBTQIA+ das décadas anteriores, percebemos que todos/as
esses/as se apropriam majoritariamente de ritmos populares que não são
periféricos, como a MPB, o EDM (Eletronic Dance Music) e rock’n roll. Esses
gêneros permitiam a esses/as artistas conquistar mais aceitação da crítica
e dos públicos urbanos. Os/as artistas LGBTQIA+ que têm surgido nos últi-
mos 10 anos, por outro lado, têm se aproximado de ritmos como forró, funk,
sertanejo e pagodão, por exemplo. Nesse sentido há uma mudança de foco,
já que, através desses ritmos, os/as artistas indicam em quais territórios

36 Leandro Colling
buscam transitar, assim como o público que desejam alcançar, um público
mais jovem e popular, no caso.
Essa tensão entre diferentes gêneros musicais aparece nos discur-
sos de alguns/mas artistas. Observemos a carreira de Daniel Peixoto, por
exemplo, que pode ser dividida em dois momentos: primeiro na banda de
eletropunk Montage, nos anos 2000, e depois em carreira-solo, nos anos
2010. O Montage já apresentava algumas ligações com a música popular
brasileira, como na canção Raio de fogo, que adapta um ponto de umbanda
para Pombagira em ritmo de música eletrônica. Entretanto, o gênero base
da banda ainda era a EDM e boa parte das letras de suas canções são em
inglês. Peixoto afirmou em entrevista que apenas quando entrou em car-
reira-solo começou a buscar referências brasileiras mais a fundo. Foi nesse
momento que ele conheceu a cantora Gaby Amarantos, que ainda era desco-
nhecida fora do Pará, e se aproximou do tecnomelody, gênero pop-periférico
paraense que influenciou diretamente seu primeiro disco solo Mastigando
humanos. Em entrevista, o artista disse:

[...] quando eu era mais novo eu tinha a cabeça muito


focada nos astros internacionais: Madonna, David Bowie.
Mas depois eu fui começando a olhar pra trás, pras minhas
raízes e entender que a gente é muito rico. Óbvio que são
legais as referências internacionais, mas eu fui voltando pra
uma coisa mais local (PEIXOTO, 2021, online).

Esse gesto de “olhar para suas raízes” parece ser o que mobiliza esses/
as artistas contemporâneos a se aproximar de ritmos populares que eram
comuns em suas infâncias, em suas “origens”. Getúlio Abelha vai num cami-
nho parecido e cita em entrevista que antes de começar a carreira musical
“achava que ia cantar música eletrônica, mais para Depeche Mode ou Marilyn
Manson” (ALOI, 2021), entretanto, influenciado pelas transformações polí-
ticas e identitárias contemporâneas, decidiu se aproximar do ritmo que
cresceu ouvindo. “Já sou esse corpo esquisito, experimento visuais. Sou
considerado louco. Por que não aplicar isso no forró?” (ALOI, 2021). E ele
seguiu explicando as suas inspirações:

[...] como pegar o gênero que está na minha essência e


misturar com todas as outras coisas que eu vivi? Misturar
a minha paixão por club kid e por drag queens, com todos
esses gêneros musicais que estão impregnados na minha
cabeça, com letras que falam sobre a vida que vivi aqui em
Fortaleza (SERÁ..., 2021).

Arte da Resistência 37
Observamos então que o trabalho musical desses/as artistas surge do
desejo de construir pontes comunicativas entre a cultura popular e a cultura
LGBTQIA+. As estratégias para promover esse diálogo são diversas, como
podemos observar em algumas obras que envolvem o vogue17. O primeiro
exemplo pode ser visto do videoclipe Popa da bunda, do Coletivo Afrobapho18.
Nesse vídeo coreográfico, as artistas misturam movimentos do vogue com
coreografias do pagodão. Do vogue extraem as performances de mão (ou
“hand performances”), que são passos de dança em que as mãos giram rapi-
damente em direções opostas, com os braços acima ou em frente da cabeça
do/a dançarino/a (figura 1). O pagodão, por outro lado, é representado pelos
intensos movimentos de quadril (figura 2) que caracterizam o gênero. Com
isso, integrantes do coletivo põem em diálogo coreográfico uma expressão
pop-periférica baiana (swingueira) com uma expressão pop-periférica queer
norte-americana (vogue).

Figura 1. Hand performance, associada ao vogue e à cena Ballroom. “Popa da Bunda”. Fonte: YouTube.

17
O “vogue” é uma expressão de dança que faz parte da Cultura Ballroom, uma cena pop-periférica queer
negra e latina de Nova York. O nome vem da revista Vogue, inspiração para muitos passos dessa dança
que reúne referências distintas, como passos de break, movimentos de ginástica, de hieróglifos egípcios,
de uso de estojos de maquiagem, além das poses de revistas de moda, como mencionado (BERTE, 2014).
18
Música original de Attooxxá e Psirico.

38 Leandro Colling
Figura 2. Popa da bunda em frente a barraca de frutas. “Popa da Bunda”, fonte: YouTube.

Em outro exemplo, temos a vídeo-performance Carimbó do macaco vogue19,


na qual Getúlio Abelha propõe um remix entre dois produtos culturais: um
de gênero pop-periférico brasileiro (o carimbó) e um produto cultural queer
norte-americano (o vogue). No vídeo observamos uma tela que reproduz a
imagem de uma criança viada norte-americana dançando passos da música
Vogue, de Madonna, num vídeo de 199120. Em frente à tela, Getúlio sobre-
põem sua própria imagem dançando. A música que toca, entretanto, não é a
de Madonna e sim Carimbó do macaco21 na voz do artista paraense Pinduca.
Ou seja, os gestos, da criança e de Getúlio são do vogue, mas a música que
ouvimos e que os lábios dublam é o clássico de um ritmo popular do norte
do Brasil (figura 3). Dessa maneira, a vídeo-performance realiza uma reme-
diação de produtos culturais distintos, um norte-americano e um brasileiro,
incorporando duas camadas de sentido pop-periférico diferentes, o vogue e
o carimbó. Aqui o pop-periférico queer americano, tornado mainstream pela
Madonna (os passos de vogue), se encontra com o pop-periférico amazônico
de Pinduca, artista pioneiro do gênero carimbó moderno.

19
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SM_UsYr8uCA - Acesso em: 02 mar. 2022.
20
O vídeo conhecido como Vogue boy foi publicado pelo próprio dançarino, Robert E. Jeffrey, 20 anos após a
performance e viralizou, com mais de dois milhões de visualizações apenas na publicação original. Disponível
em: https://vimeo.com/24750006 - Acesso em: 03 mai. 2022.
21
Conhecida pelo trecho inicial: “Eu quero vê, ô menina eu quero vê // Eu quero vê, você agora embolar”

Arte da Resistência 39
Figura 3. Getúlio Abelha e Robert E. Jeffrey dançam vogue ao som de Pinduca. “Carimbó do Macaco
Vogue”. Fonte: YouTube.

Outro exemplo é a faixa de música Voguebike, também de Getúlio


Abelha. No enredo da letra o vogue e forró se encontram na pista de dança. O
eu-lírico da canção convida o parceiro/amante para irem juntos, de bicicleta,
a uma festa de forró. Ao chegar lá o casal começa a fazer passos de vogue
sob os olhares do público.

Eu te convidei pra garupa da minha bicicleta


E perguntei se você queria ir comigo ali
Naquele forrozim, dançar juntim, bem coladinho
Vem aqui que eu tô pra ti
[...]
Chegamo no terreiro comecei a dançar
Era vogue pra lá, era vogue pra cá
A gente foi insano sem querer lacrar
No meio duma sanfonada eu queria me rasgar
Fizero uma rodinha ao redor de nóis
Gritaram tanto, até ficar sem voz
Tava bom demais e tava bom assim
Eu fui grudando em você e você veio grudando em mim”
(Voguebike, Getúlio Abelha)

Na fábula de Abelha a festa de forró se torna território para “transvia-


dagens”, uma sanfonada é o toque que convoca para o vogue. Isso não se
apresenta apenas na letra, mas também na sonoridade, já que os primeiros
minutos da canção são de forró, mas nos últimos momentos a canção faz
uma virada para uma batida eletrônica de vogue. Podemos observar nesses
exemplos diferentes estratégias de utilização do vogue para “enviadescer”

40 Leandro Colling
um gênero musical: seja através da coreografia, como nos casos dos vídeos
de Popa da bunda, no remix de diferentes conteúdos, como em Carimbó do
macaco vogue, ou na citação através de letras como em Voguebike.
Memes e viralizações
Já apontamos anteriormente a importância das novas tecnologias de
informação e comunicação e das plataformas digitais nas carreiras de artis-
tas pop-periféricas transviadas e, dentre os fenômenos que emergem com
essas plataformas, podemos destacar a viralização e a memetização. Os
memes são informações (imagens, vídeos, frases) “viralizadas”, ou seja, que
sofrem uma quantidade desproporcional de compartilhamentos, gerando
uma grande circulação e replicação daquele conteúdo em um curto período
de tempo. Alguns/mas desses/as artistas viveram episódios de viralização, o
que em alguns casos ajudou a promover seus nomes, torná-los mais conhe-
cidos. Outras situações, entretanto, atraíram atenção negativa para eles/as.
Os memes não são exatamente uma estratégia comunicacional consciente,
mas uma condição das próprias plataformas. Não é possível ter um controle
prévio sobre o que se tornará ou não um meme, mas sabemos que novos
memes surgirão todos os dias.
Leona Vingativa é o principal exemplo para se pensar sobre a impor-
tância que os memes e casos de viralização podem ter para as carreiras
das artistas. Antes mesmo de iniciar a carreira musical seu nome já era
reconhecido entre jovens LGBT devido a alguns memes já mencionados,
como a série Leona, Assassina Vingativa, uma paródia dos melodramas lati-
no-americanos, vídeo em que ela recita seu nome completo, assim como
outros vídeos dela dançando (“frescando”) em uma festa de aniversário.
Anos depois ela ressurgiria durante a Copa do Mundo de 2014, lançando
sua carreira musical com videoclipes que também conseguiram viralizar
como Eu quero um boy, paródia de uma das músicas-tema da competição
futebolística, Todo mundo, de Gaby Amarantos e Monobloco, na qual ela
transformou o refrão “Eu quero um gol / Vamos gritar / É gol, é gol” em “Eu
quero um boy/ Bora frescar / Um boy, um boy”. Outro sucesso foi Frescah
no Círio (2015), em que Leona debocha do fanatismo religioso de Marcos
Feliciano e convida as “multidões queer” a comparecer ao Círio de Nazaré,
maior festa religiosa do Brasil que ocorre em Belém. Apesar dos seus vídeos
posteriores não terem viralizado na mesma proporção, seu nome já havia se
tornado bem conhecido entre os jovens LGBT, o que garantiu algum público
para sua carreira.
Leona voltaria a se tornar um meme, dessa vez em uma situação mais
delicada. Ela foi detida, acusada de furto em uma loja de roupas de Belém e
foi tema de notícias de programas policiais. Um trecho do programa Cidade
Alerta viralizou, em que Leona aparece numa delegacia fazendo um mala-
barismo argumentativo, negando que furtou, mas reconhecendo que levou

Arte da Resistência 41
as roupas e afirmando de forma elusiva que “pegou emprestado”. O trecho
em que ela responde isso e explica como pegou emprestado (“eu peguei e
saí”) se tornou um meme. Assim como outro momento da reportagem em
que ela performa para a câmera, cantando e dançando Bad romance, da
cantora pop Lady Gaga. Apesar da situação delicada em que estava, Leona
se aproveitou das câmeras para performar. Não há virtuosismo na voz, nem
capacidade de pronunciar a letra da música, mas o que importa é a festa, o
espetáculo, se aproveitar dos holofotes. Além de passar na edição paraense
do programa, a notícia também foi reproduzida por outras edições estaduais.
Getúlio Abelha também viralizou antes mesmo de começar a carreira
musical, numa situação curiosa. Durante um show da cantora Britney Spears,
no Rio de Janeiro, em 2011, Getúlio estava na plateia e foi escolhido para
subir ao palco para participar de um número com a cantora em que ela dan-
çaria sobre ele. Em determinado momento, Britney estava com as pernas
ao redor dos ombros de Getúlio, que aproveitou a situação para beijar suas
panturrilhas. A cantora se assustou e continuou a performance mais afas-
tada. A situação viraria notícia em portais de notícia como o UOL. Entretanto,
ninguém se lembrava disso seis anos depois, quando Getúlio começou sua
própria carreira musical. Mas, não demoraria para ele viralizar novamente.
Em 2019, o artista estava em um shopping center de Fortaleza quando se
deparou com um concurso de karaokê, que premiava com 50 reais. Com um
figurino simples, sandália de dedo, short tactel e camisa de botão florida, o
artista fez uma apresentação bastante “performática” da música Hoje à noite,
da banda Calcinha Preta. Ele começa o número deitado no chão do palco,
emulando o primeiro verso da canção: “A noite passa devagar, estou aqui
deitado só”. Mais adiante surpreende o público quando impõe uma voz aguda,
imitando a vocalista Silvânia Aquino e começa a cantar os versos femininos
da letra: “Amor / Eu sempre estive sozinha / Eu nunca me importei até lhe
conhecer / E agora você me escolhe...”. Getúlio explora a diferença entre
essa entonação aguda e sua voz mais grave, alternando entre os dois regis-
tros para cantar tanto os versos masculinos, quanto os femininos da letra.
O público do shopping center respondeu admirado, aplaudindo, enquanto
o público da internet respondeu replicando, compartilhando o vídeo em
suas redes sociais. O artista ganhou o concurso e o vídeo original já acu-
mula mais de 10 milhões de visualizações22, ajudando a apresentar o forró
“enviadescido” de Getúlio Abelha para um público mais amplo. Além disso,
devido à repercussão o artista voltou ao mesmo shopping center algumas
semanas depois, dessa vez contratado para fazer um show completo com
o tema Forrozão das Antigas.

22
Disponível em: https://www.facebook.com/100044500236677/videos/2306846412707176 - Acesso em:
02 mai. 2022.

42 Leandro Colling
Entretanto, Getúlio Abelha também conheceu o outro lado dessa moeda.
Em outra situação que viralizou o artista atraiu a atenção de um público
indesejado, a direita conservadora. Um vídeo da apresentação de A bicha que
eu encontrei me fez feliz, versão “enviadescida” da música Ânsia, da banda
Companhia do Calypso, no festival Maloca Dragão, circulou em grupos con-
servadores do Ceará, recebendo críticas e sendo apontado como um “mal
uso do dinheiro público”, pois o evento tinha apoio do governo estadual.
Entretanto, o caso não foi repercutido pelo artista em suas próprias redes na
época, visto que ele não queria contribuir para essa viralização. Observamos
então como o processo de viralização é interessante para os/as artistas, por
ampliar sua exposição pública, mas também pode ser perigoso, já que eles/
as não têm controle sobre ele.

Outras plataformas/mediadores

O YouTube não é o único mediador utilizado por esses/as artistas para


alcançar seu público. Não é surpresa que eles/as fazem uso de outras
plataformas, às vezes com mais intensidade do que o YouTube. Podemos
observar o exemplo do AfroBapho, que sempre teve um uso mais intenso
do Facebook. Muitos vídeos postados pelo coletivo nessa plataforma e no
Instagram não estão no YouTube, principalmente dos primeiros anos. Além
disso, seus vídeos receberam muito mais visualizações no Facebook do que
no YouTube23.
Leona Vingativa, por outro lado, concentra seus lançamentos no
YouTube e só recentemente passou a disponibilizar algumas de suas can-
ções em plataformas de música como Spotify. Parte da sua discografia,
entretanto, segue ausente dessas plataformas, provavelmente por serem
paródias de outras músicas e as regras de direitos autorais serem mais
rígidas. Kika Boom, por sua vez, iniciou a carreira musical de forma amadora
através da plataforma SoundCloud e hoje utiliza o Spotify para além da
música, publicando podcasts nessa plataforma. O primeiro podcast, intitu-
lado Ki som é esse?, relaciona-se ao seu álbum de estreia Kikadão Vol. 1 e
foi gravado junto ao produtor do disco Pedrowl. Cada episódio dedica-se a
uma faixa do álbum. O outro podcast, chamado Podcast das irmãs, se define

23
Uma versão mais recente da coreografia da música Bixa preta, publicada em 2020, obteve 7 mil visua-
lizações no Youtube, comparado à 315 mil no Facebook. A versão mais antiga da mesma coreografia, de
2017, tem 871 mil visualizações no Facebook e 6 mil no YouTube. Popa da bunda” tem 36 mil visualizações
no YouTube, frente às 307 mil no Facebook. Dito isso, as redes parecem mais firmes e amplas no Facebook,
no caso do AfroBapho, o que também pode ser um desafio, já que vivemos um momento de abandono do
Facebook pelos/as usuários/as jovens.

Arte da Resistência 43
como “três homossexuais falando sobre suas vivências, música e cultura
pop” e segue ativo até hoje.
Além disso, como mostram alguns vídeos guardados no próprio YouTube,
ainda é comum que os/as artistas se utilizem dos meios de comunicação
tradicionais e façam participações em programas de TV (principalmente
regionais, mas alguns nacionais também). Segundo Pereira de Sá,

se o Youtube e as redes sociais constituem o ambiente


preferencial de circulação dessa música, não quer dizer
que outros mediadores não entejam presentes. Trata-se,
pois, de um movimento que se inicia nas redes, e amplia-se
para outros ambientes tais como, por exemplo, a televisão,
o rádio, os palcos de shows ao vivo e o sistema midiático
mainstream (PEREIRA DE SÁ, 2021, p. 96).

É interessante observar o tipo, ou melhor, o gênero de programas de TV


em que essas e esses artistas circulam. O AfroBapho, por exemplo, possui
participações no programa Universo Axé, da TV Aratu, afiliada da SBT na
Bahia, dedicado às cenas pop-periféricas de Salvador e região, como axé
music, pagodão e sofrência. Mas também participou de programas como o
MULTI e o TVE Debate, da TV Educativa da Bahia, na qual integrou debates
sobre juventude negra e estética. Dito isso, é possível perceber que os/as
artistas transitam por diferentes espaços, sob diferentes óticas.
O mesmo pode ser observado com Getúlio Abelha, por exemplo. Ele
faz questão de exibir em seu canal do YouTube a sua participação no pro-
grama vespertino de entretenimento regional Cidade Viva, que faz parte de
um gênero de programas de TV comum na parte norte do Nordeste brasi-
leiro, que dá destaque a artistas de distintas vertentes do forró. No episódio
em que Getúlio participa há mais duas atrações, uma banda formada por
“machos nordestinos” (segundo Getúlio) que cantam forró eletrônico, e uma
dupla de baião chamada Tamborete do Forró, composto por um cantor cego
e uma cantora. Getúlio Abelha se apresenta num vestido prateado, sob os
olhares de estranhamento dos homens da outra banda e em determinado
momento reage, indo em direção a eles e provocando-os, dizendo: “É fome é?
Vamos reagir. Deixem de fragilidade”. Em entrevista posterior (SERÁ..., 2021),
o cantor afirmou que, apesar dos estranhamentos no palco, ele valorizou
bastante aquela oportunidade, por entender que através daquele programa
poderia chegar a um público que não alcançaria normalmente.
Outra participação do artista foi no programa da Eliana, em que ele
foi apresentado sob a ótica da “remediação” do meme, reapresentando
sua performance no shopping center que viralizou. O artista comentou que
queria cantar Laricado, uma música autoral, mas a equipe do programa não

44 Leandro Colling
permitiu. Uma terceira participação do artista foi no programa de entrevista
Cena Aberta, da TV Assembleia do Piauí, que contou com uma entrevista
extensa com o artista, além de apresentar trechos de videoclipes e apresen-
tações ao vivo. Observamos que em cada uma dessas participações Getúlio
Abelha recebeu uma moldura diferente. Na primeira ele se destacou como
um forrozeiro, na segunda como um meme, enquanto a terceira permitiu ao
artista apresentar uma versão mais ampla e profunda de si mesmo.
O mesmo ocorreu com Leona Vingativa. Além de ter aparecido em um
programa policial, fez participações em programas humorísticos, como o
Paranoia, da RBA TV, afiliada da Bandeirantes no Pará, e o Legendários, da
Rede Record. Ambas as participações apresentaram a artista pela ótica da
comédia. Entretanto, em 2021, ela pôde exibir sua música sob uma moldura
mais “séria”, ao ser convidada para participar do episódio Divas, do especial
Sons do Pará, da TV Globo do Pará, junto a outras cantoras conterrâneas.
Leona, todavia, vai além da TV. Sua obra já foi remediada em diversos meios.
O vídeo Leona, assassina vingativa, por exemplo, recebeu uma versão em
animação stop motion amadora24, assim como inspirou uma peça de teatro25.
Além disso, sua trajetória já foi tema de documentário e inspiração para
exposição de arte contemporânea26.

Considerações finais

Em um caráter mais exploratório, propomos a ideia de “música pop-pe-


riférica transviada brasileira” para descrever o momento contemporâneo
de artistas musicais transviados do país, em que temos visto eles/as se
associarem mais fortemente aos gêneros musicais periféricos, indicando
uma mudança de perspectiva em relação às gerações anteriores de artistas
LGBTQIA+. Ao falarmos de música pop-periférica transviada não estamos
nos referindo a um gênero musical específico, mas a uma nova estratégia
que se apresenta na coletividade de artistas LGBTQIA+ contemporânea
que busca se associar a gêneros musicais ligados aos territórios periféricos
do país. Seja através de memes, viralizações ou da relação com diferentes
gêneros musicais locais, esses/as artistas se diferenciam das gerações
anteriores, buscando uma relação mais próxima com o público jovem e peri-
férico. Pudemos observar ainda que a internet, em especial as plataformas

24
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=D_LhNXtTlYQ&t=42s>. Acesso em 02 de maio de 2022.
25
“Leona Vingativa – O Espetáculo”, estrelada pela própria artista.
26
Seus vídeos de humor fizeram parte do projeto “Metafluxus”, do curador Rodrigo Maltez Novaes. No
catálogo da exposição a curadoria conecta os vídeos de Leona Vingativa à obra do filósofo Vilém Flusser.
(Fonte: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/leona-vingativa-vira-tema-de-projeto-de-arte-em-sp-e-lanca-
-novo-clipe-com-parodia-da-musica-pitiu.ghtml. Acesso em: 03 mai. 2022.)

Arte da Resistência 45
de compartilhamento de conteúdo como o YouTube, têm uma importância
primordial para o lançamento das carreiras de artistas da música pop-pe-
riférica transviada brasileira.
Se antes boa parte dos/as artistas e do público LGBT sentia que preci-
sava buscar referências e divas estrangeiras ou gêneros musicais reconheci-
dos pela crítica para poder se afirmar artística e subjetivamente, hoje essas
pessoas começam a se apropriar mais nitidamente de referências populares
do Brasil. Dito de outra maneira, observamos que essa população tem bus-
cado construir outras estratégias subjetivas de pertencimento nessa ficção
chamada Brasil, investindo diretamente em signos populares nacionais.

46 Leandro Colling
Referências

ALOI, André. “Marmota”: descubra tudo sobre o álbum de estreia de getúlio abelha. Harper’s
Bazaar Brasil. Disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/cultura/marmota-descubra-
tudo-sobre-o-album-de-estreia-de-getulio-abelha/. Publicado em: 23 mar. 2021. Acesso em:
05 mar. 2022.
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de corpos transviados no Rio de Janeiro. 2016. Dissertação (Mestrado em Design), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2016.
ALTMAYER, Carlos Guilherme. Tropicuir: estético-políticas transviadas - memória, arquivo,
design. 2020. Tese (Doutorado em Design), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro. 2020.
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio
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BERTE, Odailso. Vogue: dança a partir de relações corpo-imagem. Dança: revista do Programa
de Pós-Graduação em Dança, v. 3, n. 2, 2014.
BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.
BENTO, Emmanuel. Enfrentamentos, referências e novidades de Getúlio Abelha. Diário do
Pernambuco, 29 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.
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html - Acesso em: 03 mai. 2022.
COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidên-
cias sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das
dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019, p. 11-40.
PEIXOTO, Daniel. Daniel Peixoto - Se Liga - Globoplay 10/4/2021. Youtube, 02 de maio de 2021.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0AWLoKwEs9k - Acesso em: 03 mai. 2022.
PEREIRA DE SÁ, Simone. Música pop-periférica brasileira: videoclipes, performances e tretas
na cultura digital. Curitiba: Appris, 2021.
PRIBERAM. Verbete: “Transviado”. (online) Disponível em: https://dicionario.priberam.org/
transviado - Acesso em: 06 mai. 2022.
SERÁ q Presta? #13. Entrevistado: Getúlio Abelha. Entrevistadores: Denis Lacerda e Moisés
Loureiro. Fortaleza; agosto de 2021. Podcast. Disponível em https://www.youtube.com/wat-
ch?v=xapC_H9RBKo - Acesso em: 03 mai. 2022.
STOFFELS, Leandro. Transviadagens pop-periféricas: videoclipes, artivismos bastardos e
territórios populares. 2022. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2022.

Arte da Resistência 47
Eu pesquisadora, elas cantoras, nós
encruzilhada: o que aprendi com Katú
Mirim, Bia Ferreira e Ekena na cena
musical artivista brasileira

Deyse Carla Souza Santos Andrade

Este trabalho27 resulta do projeto de pesquisa de mestrado em que


analiso a cena artivista produzida por Katú Mirim, Bia Ferreira e Ekena.
Apresentamos parte da vida e obra das cantoras, bem como algumas análi-
ses amparadas nos feminismos negro, decolonial e queer e com a utilização
da interseccionalidade como ferramenta metodológica.

Eu pesquisadora

Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios não


tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas
cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito
de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de
outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequa-
das para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a
nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado de todas
essas mulheres que me deu forças e me permitiu analisar a
essência de minha vida (LORDE, 2015, online).

Parte deste texto integra a dissertação de mestrado da autora e foi parcialmente publicado nos anais do V
27

Seminário Internacional Desfazendo Gênero, com o título: Quem cê tá pensando que é? Ekena em cenas artivistas.

Arte da Resistência 49
Meu interesse pelos estudos de gênero existe desde as minhas primei-
ras experiências de silenciamento e violências. Não sabendo dar nome, na
infância e adolescência, aos movimentos de (r)existências que ia produzindo,
junto ao desejo por um mundo diferente para mulheres, foi na graduação,
adulta, que o meu ativismo se consolidou e se ampliou para pensar outros
sistemas de opressão, mesmo marcada por sequelas.
Desde a infância fui estimulada (por minha mãe) a realizar atividades
que envolvem a criação e o trabalho manual. A arte me acompanhou por toda
a vida, nunca de maneira central, mas, no mínimo, na admiração e inspiração.
Foi em 2018, com as eleições para a presidência da República, que a arte
passou a ocupar também a função de autocuidado. O trabalho manual da vez
envolvia um resgate (crochê) e uma aprendizagem (macramê). Na medida em
que as peças iam sendo produzidas, eu me sentia sendo construída junto.
Fazia reflexões, adaptações, aproveitamentos, desfazimentos e pequenas
curas eram produzidas.
Esse movimento subjetivo culminou em algumas perguntas ao descobrir
o artivismo, por meio dos estudos no Curso de Especialização em Gênero e
Sexualidade na Educação, oferecido pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), através de uma parceria
entre Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Aberta do Brasil
e a Capes. Após esse curso, ingressei no Mestrado em Cultura e Sociedade,
também da UFBA, com as perguntas que surgiram naquele momento: assim
como pequenas curas me acontecem na medida em que faço nós e pon-
tos, elas também acontecem na vida de outras mulheres que escolhem e
produzem arte posicionada à esquerda? O que mais acontece com elas?
Eu, que já não estava só, fiquei menos ainda com a orientação de Leandro
Colling. Minhas perguntas se tornaram nossas e mudaram um pouco: o que
as experiências em cenas artivistas produzem em mulheres (artistas des-
sas cenas) em diferentes contextos de gênero, sexualidade e raça? Como
a interseccionalidade aparece em suas obras? Quais rupturas e continui-
dades são produzidas na cena artivista em que essas mulheres atuam?
Eu, pesquisadora, não neutra, sou conduzida por minha ancestralidade,
desde as pistas deixadas nos nós de crochê e macramê às escolhas teó-
ricas e metodológicas. Somos (as artistas, a orientação, as mulheres que
compõem o referencial teórico deste trabalho, minha ancestralidade e eu)
vários nós de subjetividades fraturadas e (r)existentes. Escrevo (lendo e
ouvindo elas) porque entendi com a Audre Lorde que, falando, faço pontes
com sujeitos que me interessam. Espero que este texto nos ajude na produ-
ção de novos lugares, mais atraentes do que os que estão disponíveis hoje,
porque construídos por nós. Que sigamos juntas.

50 Leandro Colling
Elas cantoras

A escolha das artistas, três cantoras da cena artivista da atualidade


do Brasil, se justificou pela possibilidade de contemplar mulheres em dife-
rentes contextos de raça, gênero e sexualidade. Adiante, farei uma breve
apresentação de Bia Ferreira, Katú Mirim e Ekena, alguns detalhes de suas
vidas e um pouco sobre suas obras.

Bia Ferreira

Eu sou uma pessoa que usa a arte enquanto ferramenta


de transformação para chegar até as pessoas que se pare-
cem comigo e que não tiveram a oportunidade de ter as
mesmas informações que eu tive acesso. Então, tenho uma
igreja lesbiteriana. Eu sou pastora de uma igreja, que é a
Igreja lesbiteriana, que é um espaço que pauta informação
e afeto como tecnologia de sobrevivência para pessoas
LGBTQIA+ no Brasil, que é o país que mais mata essa galera
(FERREIRA, 2021, online).

Bia Ferreira, mulher negra, lésbica, não feminina sempre. É multi-ins-


trumentista, compositora, cantora de jazz, blues, soul e rap, produtora musi-
cal e arranjadora. Nasceu em 19 de abril de 1993, é oriunda de Carangola,
Zona da Mata, no interior de Minas Gerais, e cresceu em Aracajú. De família
tradicional evangélica, pais missionários, mãe regente de coral, iniciou os
estudos na música aos três anos (piano) e, aos 15, percebeu que poderia
viver de música. Começou a tocar profissionalmente aos 16 anos.
Ficou conhecida pelo vídeo, divulgado pelo projeto Sofar Latin America,
Cota não é esmola (12.484.320 de visualizações no YouTube em março de
2022), lançado em 2018 no Youtube. A música, escrita em 2011, fala

[...] sobre a importância do sistema de cotas para o acesso


da população negra à universidade. Além das 12 milhões
de visualizações no YouTube e quase 2 milhões de plays no
Spotify, a música virou leitura obrigatória para o vestibular
da UnB (Universidade de Brasília) e chegou a ser citada em
outras provas como a da UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais) e a da UFPR (Universidade Federal do Paraná)
(RODRIGUES, 2021, online).

O primeiro álbum de Bia Ferreira, Igreja Lesbiteriana, um chamado, foi


lançado em 2019, 10 anos após o início de sua carreira e tem 9 faixas, 8

Arte da Resistência 51
composições autorais: 1. Brilha minha guia/ 2. Não precisa ser Amélia / 3. De
dentro do ap/ 4. Cota não é esmola/ 5. Levante a bandeira / 6. Só você me faz
sentir/ 7. Boto fé/ 8. Um chamado/ 9. Sharamanayas. As canções De dentro
do ap e Boto fé têm clipes. Igreja Lesbiteriana, um chamado, é um álbum
que mistura influências do reggae, jazz, blues, soul, funk, R&B, maracatu,
manguebeat e gospel. Ela define sua música como MMP (Música de Mulher
Preta), se identifica como artivista e tem como um dos principais objetivos,
com sua música, informar o que está acontecendo nos contextos de raça,
classe, sexualidade e gênero. Em muitos momentos, faz referência a con-
teúdos religiosos. Em entrevista para o Showlivre, Bia disse que

[...] este trabalho é um marco do meu compromisso público


de que não vão nos parar. Vou informar ao máximo de pes-
soas o que está acontecendo em nossa volta. A insapiência
não existirá. Ninguém vai poder dizer que não sabia. Daí
ou a pessoa se assumirá racista ou mudará sua postura
(LARANJEIRA, 2019, online).

Katú Mirim

Katú Mirim é o nome que recebi no Nhemongarai, batismo


das águas, é o nome que recebi dentro da Opy. Quando
recebi esse nome, minha mãe, Geni, falou: ‘Leve esse nome
com honra e nunca se esqueça de quem você é’. Katú signi-
fica pessoa boa e eu sempre repito que muitas coisas ruins
aconteceram comigo ao longo da vida e eu sempre repito
meu nome para mim mesma; eu sou Katú, não vou me trans-
formar naquilo que me feriu (KATÚ, 2020, online).

Katú Mirim, mulher indígena que vive no contexto urbano, de ances-


tralidade e ascendência do povo Boe Bororo, mãe solo, lésbica, ativista dos
direitos LGBTQIA+, rapper, periférica. Em termos de identidade de gênero,
não performa padrões binários e se identifica como desfem (mulher que
não performa feminilidade). Além de cantora, é também atriz, criadora de
conteúdo digital e palestrante. Criadora das páginas @visibilidadeindigena
e @indigenaslgbtq no Instagram, nasceu e cresceu na periferia do interior
de São Paulo, onde continua morando. Nasceu em 9 de outubro de 1986,
é filha biológica de um homem indígena e uma mulher negra. Foi adotada
aos 11 meses de vida e criada por uma família branca, evangélica, que não
podia ter filhos. Quando Katú tinha mais ou menos 3 anos, sua mãe ado-
tiva engravidou. Nasceu uma criança branca, loira e de olhos azuis e as
pessoas sempre as comparavam na infância. “Eu lembro que a minha mãe

52 Leandro Colling
cochichava no ouvido das pessoas pra falar que eu era a filha do coração”
(MIRIM, 2020, online).
Katú teve infância e adolescência marcadas pelo racismo, violências,
conflitos com sua família adotiva e realizou diversas tentativas de contato
com seu povo. Seu falecido pai adotivo foi pastor e Katú era obrigada a
frequentar a igreja, ler a bíblia, mas nunca se identificou com a religião, o
que aumentava as situações de confronto protagonizadas pelo pai adotivo.
Ainda na adolescência, Katú fez contato com alguns povos até chegar no seu
e assim iniciou um caminho de luta junto aos povos indígenas. Foi reconhe-
cida como pertencente a um povo e assumiu seu nome de batismo na aldeia.
Foi em 2017 que Katú Mirim ficou conhecida pela #indionãoéfantasia e,
no mesmo ano, lançou a música Aguyjevete, que conta com 24.217 visua-
lizações no YouTube (janeiro de 2022). Tudo o que produz tem conteúdo
indígena. Em seus perfis no Instagram, Facebook e TikTok, Katú Mirim realiza
um trabalho de educação e luta contra o racismo e a LGBTfobia direcionados
para pessoas indígenas.
Em 2020, lançou cinco músicas, no estilo rap, que compõem o EP Nós:
1. Aguyjevete/ 2. Nativa/ 3. Avisa lá/ 4. Diga não/ 5. Na mira. Fora desse EP,
também lançou outras canções pré e pós EP: Proteja o lar - 2018/ Vestido de
hipocrisia - 2018/ Resistência - 2018/ Filhos da terra - 2018/ Retomada - 2019
part. Marina Peralta & Afrojess/ Xondaria - 2019/ Força - 2019/ Me tira o ar -
2020/ Não cansei - 2020/ A busca - 2021/ Indígena futurista - 2021. No final
de janeiro de 2022, lançou seu primeiro álbum, uma mistura de rap e rock
metal. São 11 faixas: Sem silêncio/ 2. Revolta/ 3. Luto/ 4. Jogo sujo/ 5. Sangue
azul/ 6. Sigo mudando/ 7. Originais/ 8. Click boom/ 9. Falso profeta/ 10. No
alvo/ 11. Não é o fim. Suas letras descrevem as violências sofridas pelos/as
indígenas do Brasil, bem como o movimento de resistência que manteve
viva a cultura de vários povos. Katú também canta sobre o amor dissidente
sexual e de gênero.

Ekena

Ekena é uma mulher, branca, gorda a maior parte da vida, cantora,


compositora, atleta, brasileira, mãe, vegana, casada com o pai de seu filho
(setembro de 2021). Nasceu em 24 de novembro de 1987, filha de Valéria e
Eusébio e irmã de Aruan. Cresceu na Vila Furlan, Araraquara, em São Paulo.
Foi uma criança gorda e lembra de ter sofrido bullying na escola e de cantar.
Curioso que suas duas lembranças da infância sejam essas. E não é assim
que canta Caetano Veloso: “A tristeza é senhora, desde que o samba é samba
é assim... Cantando eu mando a tristeza embora”.

Arte da Resistência 53
Começou a cantar no coral da escola, aos 6 anos, e uma de suas primei-
ras apresentações foi aos 13 anos, no extinto Tropical Shopping (Araraquara/
SP). Em entrevista para o podcast Revolusom Cultural, em 16 de junho de
2021, contou que seus avós eram muito presentes. Aprendeu a tocar violão
com o avô Zé, que a acompanhava em shows, bares e boates LGBTQIA+. Na
infância, sua avó Cida a levava em um trio elétrico, perto de onde morava,
para fazer cover da Xuxa. Ela relata que tinha uns 3 anos de idade: “Eu me
lembro de uma saia vermelha de bolinha. Todas as memórias que tenho são
de cantar” (ARARAQUARA, 2017).
Ekena canta, compõe e adora o estilo folk moderno. Teve uma banda,
a Opus Acústico, que se desfez. Depois seguiu carreira solo, tocando com
vários músicos em bares, festas e convenções. Participou do projeto indie
folk Johnny Sue. Foi uma das 80 finalistas do programa Ídolos, em 2012.
Também foi backing vocal de Liniker. Atualmente, segue carreira solo can-
tando suas canções autorais.
O primeiro álbum de Ekena, Nó, foi lançado no YouTube, em 2017, e
apresenta 13 canções: 1 - Nó/ 2 - Por enquanto/ 3 - Pois é/ 4 - Bem te vi/ 5
-Abismo/ 6 - Greatest Liar/ 7 - Juro juradinho/ 8 - (...)/ 9 - Todxs putxs/ 10 - Ana/
11 - Agda/ 12 - Passarinho/ 13 - Mais tarde. Trata-se de uma mistura de folk e
MPB e conta com dois clipes nos singles Bem te vi e Todxs putxs. Suas letras
descrevem encontros, desencontros, partidas, despedidas, juramentos. Fala
de abismos, feridas, dores, culpas, faltas e solidão.

Nós encruzilhada

Esta investigação aciona o feminismo negro, que revela o nó, os nós, a


encruzilhada. Como diz Carla Akotirene: “Exu, divindade africana da comu-
nicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da interseccionalidade, que
responde como a voz sabedora” (AKOTIRENE, 2019, p. 15). É através de
análises interseccionais que é possível perceber os mesmos fenômenos
atravessando pessoas de modos tão diferentes que até parecem ser fenô-
menos diferentes. O que teóricas da interseccionalidade, como Patrícia Hill
Collins e Sirma Bilge (2020), afirmam é que não há possibilidade de não
existir inter-relação. Há e sempre houve o apagamento das inter-relações,
o que faz parecer que elas não existem e que é possível analisar apenas
uma categoria por vez. A interseccionalidade, segundo Akotirene (2019),
é uma sensibilidade analítica e a partir dela é possível perceber o que as
experiências em cenas artivistas produzem em mulheres (artistas dessas
cenas) em diferentes contextos de gênero, sexualidade e raça, quais ruptu-
ras e continuidades são produzidas na cena artivista em que essas mulheres
atuam e como as próprias intersecções aparecem em suas obras.

54 Leandro Colling
Nesta investigação não aplicamos uma metodologia aos “objetos” da
pesquisa. O caminho metodológico foi se fazendo e se criando com elas, as
mulheres artistas, no processo de pesquisa, a partir do mapeamento das
obras e do que elas nos provocaram a pensar e a ler. A metodologia, que é
baseada na interseccionalidade, dialoga com saberes dos feminismos negro,
decolonial e queer para analisar algumas das obras das artistas, bem como
algumas entrevistas e performances artísticas encontradas na internet.
Esse diálogo só é possível porque o campo nos levou ao encontro desses
saberes e não o contrário, as cantoras produzem cenas que se sintonizam
com essas perspectivas.

Nós de Bia Ferreira

Quantas vezes você você saiu do seu apartamento


E chegou no térreo com um prato de alimento
Pra tia que tava trampando no sinal
Pra sustentar os quatro filhos que já tá passando mal de
fome?
Quantas vezes cê parou pra perguntar o nome
E pra falar sobre seu ativismo?
Quando foi que cê pisou na minha quebrada, pra falar sobre
o seu
Fe-mi-nis-mo?
Sempre deixando pra amanhã
Deixando pra amanhã
A miliano que cês tão queimando sutian
(Fragmento da canção De dentro do ap.)

Bia Ferreira aciona o feminismo negro e queer com a canção De dentro


do ap. (e não apenas nessa canção), por exemplo, quando aponta para um
sujeito – mulher – que não é universal, mas interseccional. Ela denuncia que
não é porque é mulher que partilha as mesmas opressões e, mais, mulheres
também podem oprimir mulheres. Judith Butler (2003) também aponta para
a universalização da mulher como problemática. Ela é uma das pessoas que
questiona a noção de identidade coerente, estável e apresenta os limites da
categoria mulher, sujeito do feminismo, essencial e marcadamente delimi-
tado no binarismo feminino/masculino. (MARIANO, 2005; NOGUEIRA, 2017)
Em Butler (2003), a categoria “mulheres” não é destruída, mas é situada,
localizada, heterogênea, instável e contingente. Há uma atenção especial-
mente direcionada à contextualização do conhecimento. Para Butler, o
sujeito é constituído discursivamente, historicamente, contingencialmente,
em contextos políticos específicos, definidos pela tecnologia do gênero.

Arte da Resistência 55
“Desconstruir o sujeito do feminismo não é declarar a sua morte, mas liber-
tá-lo de seu caráter normativo e fixo, que mantém e reproduz subordinação”
(MARIANO, 2005, p. 492). Não se trata de negar os sujeitos, mas de redefinir
sua constituição e negar, é verdade, a essência das identidades (MARIANO,
2005, p. 497).
Esse problema teórico da universalização do sujeito mulher não é
identificado apenas por Bia Ferreira e Judith Butler, mas também, e antes
mesmo dessas, por feministas negras e latino-americanas, por feministas
dos países de chamado “Terceiro Mundo” e das ex-colônias e por feministas
lésbicas (NOGUEIRA, 2017). Em 1851, Sojourner Truth, que foi uma mulher
negra escravizada, já trazia o questionamento desse sujeito universal em
seu discurso – Eu não sou uma mulher? – “proferido como uma intervenção
na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em uma
reunião de clérigos que discutiam os direitos da mulher” (ASSIS, 2019, p. 15).
No feminismo negro, as mulheres negras não produzem uma teoria da
diversidade, uma interseccionalidade ornamental (BILGE, 2018). Mulheres
negras são sensíveis ao “ponto de vista feminista” (BAIRROS, 1995, p. 461),
conseguem evidenciar a multidimensionalidade, a interseccionalidade como
uma pluralidade de pontos de vistas que não fragmenta, mas fortalece um
feminismo em que não exista hierarquia de opressão (LORDE, 1984, p. 7 apud
ASSIS, 2019, p. 19), universalismos, sofrimentos fixos e opressão comum
(hooks, 2015). “Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar
na construção da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única”
(hooks, 2015, p. 208).
Quando mulheres negras falam, elas rompem o silêncio que protege e
mantém o poder entre os opressores, diversos opressores, aqueles que têm
um “outro” para chamar de seu, incluindo as mulheres brancas heterosse-
xuais, como mostra Bia Ferreira. Elas contam, inclusive, sobre a repercus-
sões dos estereótipos construídos para as mulheres “preta para trabalhar,
branca para casar, e mulata para fornicar” (CARNEIRO, 2002, p. 172): tra-
balho explorado (Ibid. p. 173/174), solidão estrutural da mulher negra (Ibid.
p. 174), turismo sexual (Ibid. p. 176), assédio sexual (Ibid. p. 178).
Mulheres negras estão empenhadas em um projeto político que não se
alinha com a colonização de nenhum corpo, mas em “realizar a igualdade
de direitos e tornar-se um ser humano pleno e prenhe de possibilidades e
oportunidades para além da condição de raça e de gênero é o sentido final
dessa luta” (CARNEIRO, 2002 p. 192).
Bia Ferreira, quando fala, diz:

O feminismo não chegou na favela em que eu morava. Era


uma parada da academia. (...) Quando eu vejo movimento
de mulheres indo pra rua mostrar os peitos, eu não me sinto

56 Leandro Colling
contemplada, porque o meu corpo sempre foi exposto, sem-
pre foi mostrado como um pedaço de carne, e nu. Era assim
que a gente era vendida. É assim que a gente é vendida. Esse
ano foi o primeiro em que a Rede Globo colocou a Globeleza
de roupa. Quando eu entendi que existe muita mulher preta
que já está pensando a revolução e tecnologias de sobrevi-
vência para a vida e manutenção de mulheres pretas nessa
sociedade, eu entendi que existe sim uma luta pela vida des-
sas mulheres. É um feminismo sim, mas ele é interseccional.
Não é um feminismo que fala só das mulheres brancas. Fala
das mulheres brancas, pretas, indígenas, trans, travestis.
É sobre a vida das mulheres. Por isso eu me sinto contem-
plada. [...] Para eu segurar a mão de uma pessoa branca
na luta comigo, eu preciso que ela sangre comigo. Porque
eu sei que se eu estiver segurando a mão dela, o tiro vem
em mim, não vai nela. Você nunca vai saber o que é ser eu,
mas se coloca no meu lugar. É sobre isso que eu falo em
“De Dentro do Ap” (CAETANO; HERMANSON, 2019, online).

Nós de Katú Mirim

Katú Mirim aciona o feminismo decolonial muitas vezes quando narra o


seu “ser-sendo-em-relação, a qual estende e entretece sua base povoada”
(LUGONES, 2014, p. 949), indo atrás do seu povo para aprender, para criar,
construir e elaborar respostas. Ela realiza o que Maria Lugones nos diz: “a
ênfase está em manter a multiplicidade no ponto de redução – não em manter
um ‘produto’ híbrido, que esconde a diferença colonial.” (LUGONES, 2014, p.
949/950). E narra seus encontros e desejos em suas músicas, além de reali-
zar inúmeras denúncias: O Brasil tem genocídio, dor, massacre e escravidão/
Mas isso não aparece na sua televisão [...] Bolsonaro gritou “Fora quilombola
e aldeia”/ Ei, se racismo é crime, por que ele não tá na cadeia? (1. Aguyjevete).
Na obra de Lugones, o conceito de lócus fraturado, que aparece na dife-
rença colonial, em resposta à colonialidade de gênero, produz resistências.
“A leitura que eu quero efetuar vê a colonialidade de gênero e rejeição, resis-
tência e resposta.” (LUGONES, 2014, p.947) A música é uma das respostas
da cantora. Katú Mirim resiste utilizando a arte e denuncia a colonialidade
que dicotomiza as relações e cria lógicas de opressão. E o faz fraturada,
nesse lugar. Enquanto Lugones busca “compreender aquele/a que resiste
como oprimido/a pela construção colonizadora do lócus fraturado” (Ibid.,
p. 941), esse lugar que a/o colonizada/o habita é constituído da dicotomia
hierárquica humano/não humano da modernidade colonial. Um lugar de
tensão em que a resistência do sujeito fragmenta o lócus. É “a subjetividade
ativa dos/as colonizados/as contra a invasão colonial de si próprios/as na

Arte da Resistência 57
comunidade desde o habitar-se a si mesmos/as”. (Ibid., p. 943). Katú Mirim
faz a resistência, expõe a fratura e evidencia o entendimento decolonial de
que o processo oprimir ← → resistir de que Lugones fala, enfatiza subje-
tividades ativas, criativas, “antitéticas à lógica do capital” (Ibid., p. 498) e
cria um pensamento de fronteira. “A única possibilidade de tal ser jaz em
seu habitar plenamente esta fratura, esta ferida, onde o sentido é contra-
ditório e, a partir desta contradição, um novo sentido se renova.” (Ibid., p.
496). Se renova criando além de pensamentos de fronteiras, coalizações e
aprendizagens coletivas:

Ao pensar o ponto de partida desde a coalizão, porque o


lócus fraturado é comum a todos/as, é nas histórias de resis-
tência na diferença colonial onde devemos residir, apren-
dendo umas sobre as outras. [...] Conforme a colonialidade
infiltra cada aspecto da vida pela circulação do poder nos
níveis do corpo, do trabalho, da lei, da imposição de tributos,
da introdução da propriedade e da expropriação da terra,
sua lógica e eficácia são enfrentadas por diferentes pes-
soas palpáveis cujos corpos, entes relacionais e relações
com o mundo espiritual não seguem a lógica do capital. A
lógica que seguem não é consentida pela lógica do poder.
O movimento desses corpos e relações não se repete a si
próprio. Não se torna estático e fossilizado. Tudo e todos/
as continuam respondendo ao poder e na maior parte do
tempo respondem sem ceder (Ibid., p. 948).

Katú canta “a tensão entre a desumanização e a paralisia da colonia-


lidade do ser, e a atividade criativa de ser-sendo” (Ibid., p. 949) enquanto a
“modernidade nega essa existência ao roubar-lhes a validez e a coexistência
no tempo. Esta negação é a colonialidade” (LUGONES, 2014, p. 943). E a
resposta de Katú? Retomada. Nessa canção, em que faz participação com
Marina Peralta & Afrojess, Katú Mirim, deixa a resposta:

Ancestralidade nos devolve a coragem de lutar pela justiça,


pela paz e a verdade. Chegou a hora de retomar a identi-
dade e com sororidade lutamos por igualdade! Eu sei de
onde eu vim, eu sei para onde eu vou. E eu vou ali pegar
de volta tudo que ele nos tirou. Mas eu não vou sozinha
não. Convoco todas as bruxas para fazer revolução! Peço
que caiam! Todas as fronteiras. Sem boas maneiras. Hoje
nós viemos RETOMAR. Chegamos pra retomada. Só peço
proteção. Empretece as palavras. Tamo em outras direção.
Esconderam minha origem. Plantaram a rejeição. “Nêga,
se negue”. Não foi em vão! Todo reconhecimento entre nós
potencializa a força. Enquanto vocês tentam nos virar o

58 Leandro Colling
tempo todo uma contra a outra. Cê acha mesmo que eu tô
neutra? Cidade, campo, ponte, aldeia, quilombo, como eu
poderia dormir bem? AGRONEGÓCIO GENOCIDA e nós?
Retomando territórios ancestrais, costumes tradicionais,
língua, dança, trança, voz, calma que ainda vai ter mais.
Katú! Fala pa nois! Pensaram que ficamos pra trás, que não
íamos correr atrás, a gente não só fala mas faz, Genocídio,
escravidão e machismo nunca mais! Genocídio, escravidão
e machismo nunca mais! Uma preta querendo ser branca,
tudo bem, né? Na hora do carinho cês faz em quem? Sou
cria de Tia Eva, bruxa curandeira. Cuidava da comunidade
e sem escolha foi guerreira. Guiada pelas matas, parteira!
Medicina matriarcal, raiz divina. Mulher que ensina, cês abo-
mina. Aprende a responder desde menina! Peço que caiam!
Todas as fronteiras. Sem boas maneiras. Hoje nós viemos
RETOMAR. Recuperação! Dos espaços que nos pertencem.
Calar a voz que sempre nos faz duvidar. Reparação! Deixe
crescer as nossas sementes. A revolta vai fazer eu tomar o
meu lugar. Demarcação! Devolvam as nossas terras, o agro
não é pop - Parem de nos matar. Libertação! Libertação! Se
não for nóis, vai ser quem?

Nós de Ekena

Do feminismo queer, Ekena pode ser pensada junto com a teoria da


performatividade de gênero, de Judith Butler (2003), que desenvolve suas
reflexões inspirada na tese dos atos performativos, do linguista John Austin.
Os atos performativos não apenas descrevem a realidade, mas criam aquilo
que enunciam. Aplicando essa perspectiva ao gênero, Butler defende que
a atribuição de um sexo a uma pessoa funciona não apenas como uma des-
crição anatômica, mas como um ato performativo que funda e atribui uma
identidade de gênero a um sujeito. Nesse processo e em sua continuidade
operam as normas de gênero binárias e cisheteronormativas que serão
repetidas cotidianamente (COLLING, 2018). Assim, segue-se produzindo
a performatividade de gênero. Os atos performativos de gênero não são
voluntários e nem sempre são coerentes exatamente como a norma deter-
mina, mas produzem uma espécie de destino dos gêneros.
Sobre suas composições, Ekena diz que “normalmente as pessoas estão
acostumadas com mulheres à frente dos vocais, porém sendo apenas intér-
pretes. Ninguém gosta muito de ver mulher falando o que ela está a fim de
falar, as pessoas têm medo de nós ainda.” (RIGAMONTI, 2018, online).
Suas letras dão muitas pistas do processo socializador que atravessa e
forma sujeitos que são identificados no nascimento como do sexo/gênero

Arte da Resistência 59
feminino, de distintas identidades sexuais, raciais e de classe, em que o
cuidado, a disponibilidade para o homem, incluindo tolerar violências, é
condição para receberem afeto, valor e amparo.
Na canção Todxs putxs não apenas a letra afronta e produz narrativas
transgressoras das normas de gênero e sexualidade, a aparência e perfor-
mance de Ekena em alguns shows também. No Festival Sonora, do Estúdio
Showlivre, divulgado no YouTube em 13 de abril de 2018, por exemplo, a
cantora aparece de vestido transparente e evidencia suas várias tatuagens,
calcinha, seios/mamilos aparentes, vários piercings, pouca maquiagem,
cabelo curto. Ao ser questionada sobre “os peitos de fora”, na entrevista
ao canal Panelaço, em 5 de setembro de 2019, Ekena disse: “é só uma teta,
você tem, eu tenho. É um mamilo, é um peito.” (EKENA, 2019, online). Do
Festival As mina tudo, em Araraquara, realizado em dezembro de 2017, há
vídeos publicados no YouTube com a canção Todxs putxs, em que Ekena
se apresenta de maiô, desce do palco, entrega microfones para mulheres
do público, carrega e dança com uma criança e em coro todas cantam. A
artista realiza o que Mayana Soares e Ramon Fontes (2019), inspirados em
bell hooks, Audre Lorde, Grada Kilomba, Carla Freitas dos Reis e Leda Maria
Martins escrevem sobre corpos que transgridem porque existem: “os corpos,
os sujeitos em dissidência, são a maior transgressão às normas de controle
e opressão” (SOARES e FONTES, 2019, p. 36). E completam:

Penso que o corpo é uma ferramenta fundamental de trans-


formação e transgressão no processo de ensino e aprendi-
zagem. Em outras cosmovisões de mundo, como iorubana e
ameríndia, o corpo compõe a força vital de equilíbrio entre
a terra e o mundo espiritual. É pelo corpo que aprendemos,
nos energizamos. Nada escapa ao corpo, tudo o atravessa.
E é assim que crescemos, nos descobrimos como povo e
reinventamos diferentes formas de ser e estar no mundo
(SOARES e FONTES, 2019, p. 36).

Ekena transgride com seu corpo gordo, seminu, com sua boca/voz
que denuncia, rompe o silêncio, mas que também celebra a rua, brilho e
flor. Transgride com sua dança em meio ao caos e à dor que a apropria-
ção (GUILLAUMIN, 2014) dos corpos das mulheres produz. E tudo vai
acontecendo na cena dessa canção, nos shows, na dimensão do corpo, no
borramento de muitas normas, e é assim que o corpo vai se fazendo uma
“pedagogia transgressora, só precisamos bagunçar os sentidos”. (SOARES
e FONTES, 2019, p. 41).
A investigação não se findou até a escrita deste artigo e algumas aná-
lises estão em nosso radar. Aprendi até aqui com Katú Mirim que música
é resposta; com Bia Ferreira, que é informação; com Ekena, que é cura,

60 Leandro Colling
questões que são analisadas na dissertação de modo aprofundado. Aprendi
com Ekena que racializar a música não faz parte do seu processo de cura,
mas em Bia Ferreira e Katú Mirim, mulheres racializadas pelo sistema, isso
assume lugar central. O que é irrevogável aqui é a ideia de que “Povoada/
Quem falou que eu ando só?/ Tenho em mim mais de muitos/ Sou uma mas não
sou só”. Ninguém é só mulher, é também raça, sexo, nação etc. São essas
inter-relações que as cenas produzidas por essas cantoras revelam, e isso
é possível de ser visto através da sensibilidade analítica da interseccio-
nalidade. São as inter-relações que produzem sujeitos singulares e cenas
artivistas únicas, apesar de disputarem narrativas, por vezes, semelhantes,
como o antirracismo. É o nó (amarração, encruzilhada) construído pelo nós
(coletivo) reivindicando outras possibilidades de viver esse nós (de nó).

Arte da Resistência 61
Referências

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JornalOImparcialAraraquara/photos/ekena-monteiro-sua-voz-%C3%A9-a-sua-identidade-e-
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62 Leandro Colling
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Arte da Resistência 63
Arte, educação e ativismos interseccionais

Sandro Costa Correia

Nasci em 1972, durante o período da ditadura civil-militar no Brasil.


Desde a infância, fui identificada como uma criança diferente. Inúmeros
adjetivos constituíram as paisagens da minha memória. Sensível, delicado e
educado eram alguns daqueles atributos que elevavam a minha autoestima
em formação. Embora não soubesse ao certo os seus significados, remetiam
a possíveis virtudes e comportamentos estimados. Lembro-me também
de outros nem tanto virtuosos. Nessa época, com cerca de 8 anos, senti
as primeiras interdições cisheteronormativas e violências lgbtfóbicas em
meu corpomente28, meu modo de ser e me expressar. Certa vez, brincando,
como era de costume, no início da noite, no larguinho em frente de casa,
subi na ponta da carroceria de um caminhão estacionado, abri os braços e
cantei: “Oh, abelha rainha/ faz de mim/ um instrumento de teu prazer/ e de
tua glória”29. Essa performance espontânea foi a minha primeira expressão
artística censurada, a primeira cruz erguida com o meu corpo encravado,
primeira churria sentida, vaia em plena praça pública, por aqueles que eu
acreditava serem meus pares, crianças como eu, com as quais brincava
habitualmente. Nesse dia, me senti humilhado, mas não entendi o porquê,
nem muito menos o podia explicar.
Ainda na infância, outros arsenais de nomes se encarregavam de
esquartejar meu corpo nos círculos de convivência familiar e comunitária.
Mulherzinha, pé-de-moça, pé-de-pato, ombros sem ossos, bunda mole e
viado identificavam e forjavam o sujeito abjeto, o pequeno estranho monstro

28
Termo criado por Lenira Rengel (2016, p.21) a partir do qual defende a inseparabilidade entre matéria,
sentimento, razão e espírito. Para Rengel, tudo acontece junto: dança, movimento, ação e pensamento.
29
Música interpretada por Maria Bethânia. Diva popular brasileira, musa de conservadores e libertários,
heterossexuais e LGBTQIA+.

Arte da Resistência 65
social, o suposto inimigo do povo, da moral e dos bons costumes. O sujeito
em formação, Sandro, já era deformado pelos olhos de seus contemporâ-
neos. O pai me chamava de mulherzinha ao me repreender pela alça da
camiseta folgada que caía pelo ombro, que poderia insinuar uma sensua-
lidade estereotipada como feminina. A vizinhança se escandalizava ao me
ver sambar numa roda de samba, com a irmã mulata30, que considerava
como uma segunda mãe. Amigo só tinha mesmo um, até experimentamos
brincar de espada e rolar pelo chão bem juntinhos. E gostamos. Depois da
separação de meus pais, nos separamos, nunca mais o vi. O tio com nome
de santo, Pedro, destitui-me do lugar de “homem” por não ter o ossinho do
ombro tão aparente como o dos outros meninos da família. Pelo pé sem cava,
fui apelidado de pé-de-pato, inumano, feio. Caí muitas vezes, usei botas
ortopédicas, gesso nos pés e pernas para corrigir uma anatomia considerada
anormal. Tinha os joelhos para dentro também, como se uma espécie de
ancestralidade feminina estereotipada me levasse a manter as pernas bem
fechadas, supostamente castas. Felizmente, tenho uma foto, aos 9 anos,
num desfile da primavera no bairro de Pernambués, em Salvador, vestido
com uma segunda pele preta, tecido de brim encorpado, gorro vermelho e
cachimbo na boca, representando o Saci Pererê, figura lendária do folclore
brasileiro. Nesse registro, tenho uma das pernas mais lindas que já vi. Pele
parda bronzeada do sol. Embora com privilégios de branco, nunca me senti
como um. Meu lugar de classe operária sempre me fez menos branco do que
sou. Como diria Caetano, eu sou bem neguinha. Sempre me vi atravessado
por diversos marcadores sociais de gênero e sexualidade sempre lidos como
nada privilegiados. Filho de pai feirante e mãe costureira, minha família foi
tradicional pelo menos na função de pai machista e mãe heroína. Ela sem-
pre esteve ao meu lado e é minha referência de humanidade. Além disso,
foi ela quem me deu de presente de aniversário meu primeiro LP de Miss
Lene31. Lembro de que cantava e dançava as músicas desse disco, fazendo
as mesmas coreografias da artista na sala de minha casa. Para escândalo
geral da família, da comunidade e da nação.
Nessa mesma época, fui retirado das aulas de Dança pelo meu pai, pois
ele dizia que isso não era para homens, que eu estava ficando afeminado
com a Dança, mais afeminado. Então, minha mãe decidiu que, se eu seria
privado das aulas de Dança, minha irmã Sandra também seria, pois se um
não tinha o direito, a outra também não teria. Tenho o maior orgulho da
atitude de minha mãe diante dessa questão, considero altamente ousada,
feminista e justa naquele tempo. Ela se antecipou ao afirmar o “papel social
da educação” como um “bem comum” independente das diferenças, através

30
Filha de meu pai com outra mulher, antes do casamento com minha mãe.
31
Cantora de disco nordestina, nascida no Ceará, que fez sucesso no final dos anos 1970, influenciada pela
diva do disco brasileiro Lady Zu, nascida em São Paulo.

66 Leandro Colling
da reinvindicação do direito à igualdade de acesso à aula de Dança para
ambos os sexos, que viria a ser proclamada pela Constituição Federal de
1988, no processo de redemocratização do país.
Desse modo, a partir do corpo, desde a tenra infância, descobri o pra-
zer por Dança moderna. Por outro lado, a partir dos estigmas, sexismo e
machismo que atingiam homens e mulheres da Dança nos anos 1970, viven-
ciei imediatamente também castração, interdição e ruptura. Não entendia
quase nada que atingia aquele corpo biopsicossocial em desenvolvimento,
mas sentia no corpo-natureza-complexo os dispositivos de interdição que
impunham disciplina e sofrimentos a quem é inconforme aos padrões hege-
mônicos de masculinidade, cis e heteronormatividades.
Como sabemos, a hierarquização de identidades por classe, raça, sexo,
gênero e sexualidade visa à manutenção do status quo de uns, considerados
“normais”, em detrimento de outros, tidos como “estranhos” ou “patológicos”
(FOUCAULT, 2013a). Desse modo, ao propor um mergulho pelo que sou/
fui/estou nessas encruzilhadas intersecionais de opressão e afirmação,
pretendo problematizar o imaginário colonial das opressões de gênero e
sexualidade para, a partir daí, desestabilizá-las, sobretudo por meio de estra-
tégias artísticas, políticas e culturais que promovam a valorização desses
seres lidos como exóticos e abjetos.
Contudo, como o aprendizado leva a vida toda, cá estou eu de volta ao
começo, em 2022, nessas performances de tempos espiralares32, como estu-
dante na Licenciatura de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
buscando esse reencontro com a minha primeira paixão pela Arte, que desde
a tenra idade me proporcionou meus primeiros voos, mas também foi alvo de
primeiras interdições. Dois anos se passaram entre os altos e baixos de um
período marcado por outra interdição sanitária sobre os corpos. Dessa vez,
a pandemia do COVID-19, que atingiu todes indiscriminadamente, ainda que
com repercussões diferenciadas sobre vidas, atravessadas pelos marcado-
res sociais de geração, raça e classe. De volta à Escola de Dança de forma
presencial, sinto essa experiência como oportunidade única de letramento
de mim na Dança/Arte/Educação, a impulsionar minhas futuras escolhas
estéticas, poéticas e políticas.
Durante os últimos anos33, tenho vivenciado um profundo processo de
descobertas epistemológicas que dialogam com os meus desejos, ideias

32
Conceito cosmológico e filosófico de Leda Maria Martins (2021) que explora as relações recorrentes entre
corpo, memória, tempo, ancestralidade, vida e morte, através das quais defende a construção de saberes em
cronologias não lineares, principalmente, por meio das corporeidades (corpo-tela/corpo em performance)
e desconstrução das dicotomias ocidentais entre oralidade e escritura (oralitura), corpo e mente, passado,
presente e futuro. Assim, ela reafirma a África como continente pensante desde sempre.
33
Mais precisamente 8 anos, decorridos desde 2014, após uma década e meia de atuação como publicitário
social, produtor cultural e ativista LGBTP+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, profissio-
nais do sexo e mais), quando retorno à Universidade Federal da Bahia como estudante do Bacharelado

Arte da Resistência 67
e escolhas referentes à prática e ensino de Arte, que coadunam com o meu
ativismo político, educativo e artístico no quase meio século de minha exis-
tência. Falo em geração porque esse marcador social, dentre outros, afeta
e atravessará irreversivelmente o meu fazer em Dança/Arte/Educação.
Desse modo, neste texto, ao mesmo tempo em que revisito minhas
memórias e marcadores de gênero e sexualidade em articulação com as
experiências artísticas que marcaram a minha constituição enquanto sujeito
ativista, dissidente e utópico, especialmente através da Música, do Teatro,
da Dança e movimentos sociais, pretendo acionar essas experiências para
pensar/desenvolver saberes, estratégias e tecnologias para existirmos. Por
meio do treinamento do corpo não apenas para dançar e atuar, mas sim para
encarnar, movimentar e expressar inquietações e desejos mais profundos,
para sobreviver e resistir, subjetiva e coletivamente, em espaços marcados
historicamente por colonialidades de classe, raça, gênero e sexualidades,
nos quais a promoção e garantia de dignidade, bem-estar, autonomia e liber-
dade são conquistadas através de lutas travadas diariamente na família, na
comunidade e na sociedade.

Epistemologias somáticas, interdisciplinares e interseccionais

Penso em marcadores sociais como constituintes dessa espécie de


filtro biopsicossocial chamado Umwelt34, desse mundo entorno, mundo em
volta e mundo particular que exercem influência nas nossas sensopercep-
ções e propriocepções: sentidos, emoções, cognição, inteligibilidades, esco-
lhas, movimentos, engajamentos e trajetórias de vida. Como uma interface
multissensorial e multirreferencializada entre o sistema vivo e a realidade
material e simbólica, que constitui na história evolutiva de cada espécie a
sua função peculiar biosemiótica – um sistema de canais de percepção que
atua nos processos de apreensão e seleção de informações que constituem
a realidade complexa de cada ser vivo.

[...] para sobreviver, um sistema vivo precisa lidar eficien-


temente com a realidade. Para isso necessita ser sensível
a características dessa realidade que lhe são importantes.
Mas a realidade não pode ser “mapeada” diretamente como
tal, no interior do sistema vivo. É necessário que este, a

Interdisciplinar em Artes. Na sequência, realizo o Mestrado em Cultura e Sociedade, de 2018 a 2020, ingresso
no Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS/UFBA) e, atualmente,
curso a Licenciatura de Dança.
34
Termo proposto pelo biólogo Jakob von Uexkull, na primeira metade do século 20, para explicar a forma
como seres vivos interagem com o meio ambiente, servindo de base biológica para a semiótica (VIEIRA, 2009).

68 Leandro Colling
partir de sua sensibilidade, codifique adequadamente as
variações das propriedades dos itens ambientais, sendo
que do ponto de vista do objetivismo realista crítico, tais
variações, constituem o que chamamos informações. A
internalização do fluxo de informações e sua consequente
elaboração à Umwelt, é que embasa os mecanismos de
cognição. É claro que o conhecimento é função vital para
sistemas vivos, a garantia que estes têm de sobrevivência
a partir da adequada e eficiente elaboração da realidade
na forma de representações coerentes (VIEIRA, 2009, s/p).

Para Jorge de Albuquerque Vieira e Jakob von Uexkull, cada pessoa


possui a sua própria Umwelt – que é resultado dessas combinações, arranjos
e manejos dessas apreensões a partir das combinações de significantes,
significados e signos. Essa membrana ou ultra pele impregnada de meta-
forizações dos universos mais particulares, mais subjetivos e objetivos, que
geram teias, conexões e contaminações por informações e desencadeiam
um jogo/fluxo contínuo de comunicações, interpretações, inventividades
e criações. Geram saberes não mais transcendentais, separados da vida
cotidiana, mas imbricados no presente, consciências imanentes, comprome-
tidas com o aqui e agora, com o local do sujeito e comunidade, com diversas
possibilidades estéticas, poéticas e materiais de existência.
Nesse contexto, o corpo biosemiótico está no centro dos fluxos de
apreensões e significações naturais, artificiais e performativas. Cada corpo
humano, com sua natureza diversa e complexa – sexualidade, gênero, raça/
etnia, classe, geração, regionalidade – relaciona-se e sustenta a sua exis-
tência atravessado por marcadores sociais que lhes garantem privilégios
ou impõem desvantagens simbólicas, culturais e/ou materiais.

A pele do mundo e a pele do corpo quando se tocam, se


entrelaçam e se desdobram, levando nossos sentidos para
múltiplos processos de ajustes espaço-tempo, o que afeta
nossa cognição e nossa capacidade de sentir a vida em seu
ciclo mutante de vida-morte-vida, compreender a dinâmica
não linear dos fractais da natureza é entender que somos
como a natureza, padrões (fractais) em processo de muta-
ção (BEZERRA, 2021, p. 43-44).

Em sua tese, Marta Bezerra defende a “ideia de que a pele e o sentido


do tato contribuem de forma singular no processo de desconstrução das
personas construídas com base em uma noção dicotômica entre corpo e

Arte da Resistência 69
mente” (Idem, p. 41). A partir da Teoria da Relatividade35 e a desconstru-
ção da ação da gravidade como fenômeno constante sobre corpos, propõe
outras possibilidades de tensões e movimentos gerados pelas interações
do corpo-natureza com diversas possibilidades de contato, invenção e cria-
ção através das dinâmicas miofasciais. Para Marta Bezerra, o tecido fascial
representa e constitui um elo entre nossas estruturas internas e externas,
musculares, sensoriais e gravitacionais. Reveste todo o nosso corpo como
uma espécie de “macacão” de membrana fluida. Através dele e das dinâmi-
cas de movimentos com diferentes superfícies, somos capazes de produzir
infinitas tensegridades36 inventivas, criativas e relativamente autônomas,
transformadoras e libertadoras, porque irreversivelmente correlacionais,
com diferentes tecidos naturais: terra, água, pedra, ar: “Com base neste
entendimento, a gravidade provém da interação dos corpos e está, portanto,
diretamente relacionada à deformação do espaço. O peso dos nossos corpos
e de todos os corpúsculos do universo, inclusive a própria Terra, estão sob
a ação da gravidade” (BEZERRA, 2021, p. 46).
Entretanto, essa gravidade não é constante e sim variável conforme
as conexões espaço-temporais, as relações dos nossos corpos com nós
mesmos, com o outro, com a natureza e com o mundo. Eu, você, ele, ela,
estrelas, astros, ar, mar, fogo, terra... Todes temos protagonismos compar-
tilhados nesses processos de movimentos, criações e transformações. Não
há espaço vazio. Até o invisível aos olhos tem presença. Tem intenção, peso,
qualidade e movimento em relação.

Precisamos entender que não se trata apenas de um espaço


vazio que ocupamos com nossas ideias criativas, ao contrá-
rio, estamos diante de um espaço vivo, repleto de substân-
cias vivas, em todos os reinos. Por essa razão, temos que
conhecer o nosso corpo, estudar minuciosamente a distri-
buição do nosso peso no espaço, a qualidade do movimento,
e, sobretudo a nossa intenção, para não negligenciarmos a
equilibrada e mutante configuração do campo gravitacional
de todo e qualquer ambiente vivo (BEZERRA, 2021, p. 46).

Marta Bezerra nos explica que, em todos esses campos de forças sen-
soriais e gravitacionais, estamos susceptíveis aos efeitos da biopolítica do
poder, os quais realizam operações sistêmicas espaço-temporais a partir

35
Teoria desenvolvida por Albert Einstein.
36
Segundo Marta Bezerra (2021), a fáscia constitui uma rede tensional distribuída por todo corpo formando
um componente do movimento denominado tensegridade, a partir do qual são produzidos vetores de energia
capazes de promover equilíbrios dinâmicos na estrutura musculoesquelética, por meio de deslocamentos
de pesos, oposição de forças e apoios entre diferentes superfícies materiais, em articulação com a respi-
ração e a gravidade.

70 Leandro Colling
dos atratores gravitacionais que podem diminuir ou aumentar o “potencial
de acoplamentos bem-sucedidos com o ambiente através da pele” (Idem,
p. 47). Através dessas operações sistêmicas espaço-temporais, os atrato-
res gravitacionais podem afetar a tensegridade dos músculos e relativizar
os processos de emancipações mentais, corporais e emocionais. Exemplo
disso foram os dispositivos de disciplinamento e controle social utilizados
para contenção de corpos e desejos ao longo da história, como hospitais,
quarteis, internatos, escolas, referenciados por Michel Foucault (2013b).
Muitas vezes utilizados como dispositivos para atrofias sociais, culturais,
cognitivas e emocionais. Arquitetadas, inclusive, nas organizações espaciais
de comunidades economicamente desfavorecidas, nas favelas, nos barracos,
nas casas minúsculas, nos únicos banheiros, nos quartos coletivos, que fun-
cionam como estruturas de concentração e/ou dissipação de energias vitais,
de atrofias e/ou desenvolvimentos, de opressão/castração e/ou autonomias/
liberdades. Representam atratores gravitacionais opressivos, inibidores e
castradores de vida, inventividade, criação e realização.
Em contrapartida, penso como é possível a emergência de atratores
gravitacionais dissidentes, já que, a partir do conhecimento de limitações
e potencialidades, podemos acionar outras estratégias individuais e coleti-
vas de resistência de atração de seres vivos/matérias vivas que nos poten-
cializem e nos fortaleçam criativa, emocional, cognitiva e artisticamente.
Exemplos são os guetos, as tribos, os grupos, espaços de sociabilidade,
como as universidades públicas, as ruas, as praças, por onde se articulam
processos materiais e subjetivos de empoderamento, vivências e expressões
nas quais o corpo ecossomático sensorial háptico está no centro desses
campos de forças: existência, fortalecimento, inventividade, transformação
e desenvolvimentos mesmo com todas as limitações hegemonicamente
impostas pelos atratores gravitacionais racistas, xenófobos, sexistas, misó-
ginos, heteronormativos e lgbtqifóbicos.

Essa nova perspectiva nos oferece o entendimento de que


a gravidade envolve o movimento, incluindo em seu labor
aspectos subjetivos que norteiam o campo de percep-
ção corporal, sejam eles reconhecidos como afetividade,
expressividade, pensamentos, emoção, interação. Ou seja,
ao tratarmos da gravidade sob o ponto de vista físico, esta-
mos indiretamente tratando também de aspectos culturais,
sociais e comportamentais, já que nada está separado do
corpo (BEZERRA, 2021, p. 48).

A partir desse entendimento somático, como diz a pesquisadora, esses


corpos “não caem”, não desabam, não sucumbem à biopolítica do poder, mas
“vão ao chão” pelos seus próprios agenciamentos, em saltos coreográficos

Arte da Resistência 71
e outros voos agenciados pelo sujeito corpo-natureza-gravitacional-sen-
sorial-háptico. É nesse sentido que, em sua tese, defende a emergência
de um corpo território gravitacional geopolítico, situado no espaço-tempo
contra-hegemônico, com a possibilidade de “insurgência de atratores gra-
vitacionais historicamente invisibilizados pelos processos de dominação
colonial” (BEZERRA, 2021, p. 49).
Coadunando com a proposta da dança sensorial háptica, penso nos
estudos artivistas, queer e feministas como epistemologias fundamentais
para a emergência de uma abordagem de Dança/Arte/Educação ecosso-
mática interseccional. Na perspectiva de reposicionamentos sociocultu-
rais, através de movimentos, experiências e vivências decoloniais, sujeitos
e coletivos se posicionam artisticamente engajados contra os binarismos,
opressão e exclusão e tomam seus corpos como territórios legítimos de
reinvindicação e desconstrução social para emergência de outros saberes
legítimos, outras formas de vidas e relações consigo, com o outro, com a
natureza e com o mundo de forma mais ética e solidária. Abordagens de
Dança/Arte ecossomática interseccional, por meio das quais a inventividade,
os movimentos e seus próprios corpos e vidas estejam engajados em atitu-
des humanitárias, ecológicas e éticas. Do ponto de vista de sensibilidades,
percepções e criações decoloniais e multirreferenciais:

O Corpo Território Gravitacional se situa nos entremeios


deste processo histórico e aproxima o conceito de campo
gravitacional do espaço social, cuja dinâmica pode favo-
recer a oportunidade de insurgência e invenção, da des-
colonização do corpo e do comportamento historicamente
marcado por relações de poder, controle e ‘continuísmos’.
Busca-se uma nova perspectiva de educação percepto-sen-
sório-motora capaz de transformar os valores que organi-
zam o tecido social das relações humanas em um campo de
trocas dinâmicas de centralidade do poder de atração entre
as forças, de modo que as relações entre os corpos possam
ser destituídas de atratores fixos e dominantes (BEZERRA,
2021, p. 58).

Derivam daí e emergem de mim a Arte e a Educação percepto-sen-


sório-motora a partir de corpos territórios gravitacionais insurgentes que
mobilizam campos de forças interseccionais, de classe, raça, gênero, sexua-
lidade, regionalidade para a autoatualização de si, das relações e do mundo.
Corpos heroicos, não mártires, capazes de salvar a si mesmos no mundo
marcado por opressões interseccionais ao não sucumbirem aos atratores
gravitacionais hegemônicos que os limitam e encontrarem possibilidades
de inventividades, existências e realizações mesmo diante de limitações

72 Leandro Colling
físicas, materiais, econômicas, culturais, espaciais, temporais. Corpos que
“se resolvem” dinamicamente no mundo, através de seus movimentos, vivên-
cias e criações, capazes de “dançar com a natureza que somos” (Idem, p. 40).

A multirreferencialidade proposta por Jacques Ardoino,


enquanto metodologia de convívio com a complexidade
deste espaço-tempo relativista de trocas de energia, nos
apresenta alternativas de convívio com a diferença, e o con-
ceito de interculturalidade (WALSH, 2005, p. 25) passa a
ter papel fundante nesta perspectiva de Corpo Território
Gravitacional, uma vez que é transversal (a insurgência de
um pensamento que desconstrua as memórias/imagens
do corpo subordinado à modernidade/colonialidade que
marcou os últimos três séculos e que serviu para o desenvol-
vimento geopolítico dos legados eurocêntricos) (BEZERRA,
2021, p. 60).

Neste caso, corpo-natureza-território-gravitacional que sou, territórios


água, árvore, areia, pedra, lama, homem, gay, viado, bixa, bicho, mestiço,
periférico, da américa do sul. Corpo-natureza imanente, sinergético, inven-
tivo e multissensorial que se move, interage e cria a partir dos pressupostos
da propriocepção, da presença e da inseparabilidade consigo, com o outro
e com o mundo. Ser vivo amplo, múltiplo e diverso, que se constitui e se
reinventa em relações físicas, emocionais, cognitivas, espirituais, culturais
e políticas.

Inventar é, portanto, a poética do encontro miraculoso entre


os corpos que, entre territórios “entrelaçados de múltiplas
sensações”, estão dispostos a ceder e a servir de ponto
de apoio para outros corpos, outros mundos e outras for-
mas de viver e emergir, da desordem à ordem e vice-versa
(BEZERRA, 2021, p. 59).

Nessa direção, “a experiência intersecional é maior do que a soma do


racismo e sexismo e qualquer análise que não toma a interseccionalidade
em conta não consegue de forma correta ter em consideração as formas
particulares de subordinação” (NOGUEIRA, 2017, p. 146). Desse modo, sem
perder de vista a importância do pragmatismo estratégico das políticas
identitárias, as abordagens teóricas e políticas intersecionais decorrem,
de certo modo, da complexificação e amadurecimento dos pensamentos
feministas, antirracistas e decoloniais, na perspectiva de dessencialização
de identidades e consideração da sua multidimensionalidade ecológica,
existencial, teórica e política, alvo de opressões, repressões e violências
de diferentes naturezas sobrepostas simultaneamente, sobretudo pelo

Arte da Resistência 73
acúmulo de múltiplas identidades marginalizadas. Em contrapartida, através
de possíveis parcerias com diversos grupos sociais, com os quais compar-
tilham os efeitos nocivos das mesmas matrizes de subordinação, opressão
e exploração, podem também estabelecer alianças para amplificar suas
forças, formas de denúncia, reivindicação, luta e resistência. Como explica
Leandro Colling:

[...] os estudos e movimentos sociais que trabalham em


perspectivas interseccionais passaram a dar nome às
identidades mais privilegiadas ao invés de apenas afirmar
as identidades subalternas. Ao evidenciar que somos pes-
soas compostas por várias identidades (sexuais, de gênero,
raciais, de classe, entre outras), as perspectivas interseccio-
nais retiraram determinadas identidades de suas zonas de
conforto. O feminismo negro, ao apontar que as mulheres
negras são diferentes das mulheres brancas, colaborou
para interseccionar gênero e raça e, ao fazer isso, também
colaborou para dar um nome para identidade étnico-racial
branca: a branquitude (Conceição, 2020). O feminismo
queer, ao apontar que as pessoas homossexuais são dife-
rentes das heterossexuais, colaborou para interseccionar
sexo-sexualidade com gênero e, ao fazer isso, tirou a hete-
rossexualidade de sua zona de conforto ao pensá-la como
heterossexualidade compulsória e/ou heteronormatividade
(Colling; Nogueira, 2022). O transfeminismo amplificou essa
perspectiva ao propor a ideia de cisheteronormatividade
(Vergueiro, 2015) (COLLING, 2022, p. 54-55).

Desse modo, os artivismos interseccionais tencionam para políticas de


coalizões (LUGONES, 2014) e para o enfrentamento de inimigos comuns,
que certamente não são os indivíduos e populações submetidos às mesmas
opressões, explorações e extermínios de grupos historicamente dominantes:
machistas, racistas, classistas, sexistas, lgbtfóbicos e autoritários. As episte-
mologias e movimentos feministas, antirracistas e decoloniais têm suscitado
questões que impactam na vida de outros sujeitos interseccionalmente ao
questionarem as bases fundantes de diversas naturezas de dominação e
exploração. Ao desconstruir a noção de hierarquias de opressão (LORDE,
1983), reverberam em questionamentos de outras ordens além do cistema37
sexo/gênero/sexualidade, desestabilizando outras essencializações de natu-
reza, classe, raça, comportamentos e dissidências.

O conceito de cistema se refere ao conceito de cisgeneridade e, portanto, às tecnologias de organização,


37

estruturação, ordenamento, disciplinamento, punição e recompensa de sujeitos e populações que se enqua-


dram dentro da heteronormatividade e cisgeneridade (VERGUEIRO, 2018).

74 Leandro Colling
Acredita-se que os modelos clássicos de compreensão dos
fenômenos de opressão dentro da sociedade, como os mais
comuns baseados no sexo/gênero, na “raça”/etnicidade, na
classe, na religião, na nacionalidade, na orientação sexual
ou na deficiência (as designadas categorias master) não
agem de forma independente uns dos outros; pelo contrário,
essas formas de opressão inter-relacionam-se criando um
sistema de opressão que reflete a interseção de múltiplas
formas de discriminação (NOGUEIRA, 2017, p. 142).

Para Boaventura de Sousa Santos, o corpo, seja individual ou coletivo,


é compreendido como um território de experiência, percepção e memória,
elementos que constituem uma narrativa somática de resistência e resi-
liência, que desconstrói a moderna dicotomia entre corpo/mente, emoção/
razão, desestabiliza a histórica exclusão das emoções pelos campos cien-
tíficos modernos e consolida uma episteme do corpo na contemporanei-
dade (SANTOS, 2018). Desse modo, defende que o corpo não é abstração,
mas representa a materialidade histórica dos saberes dinâmicos, rítmicos
e escritos de sujeitos e coletividades, aspectos tão bem problematizados
pelas epistemologias pós-estruturalistas, feministas e decoloniais, nas
quais o corpo assume a centralidade ao sustentar, intercambiar e mobilizar
conhecimentos e estratégias de existências subjetivas, culturais, estéticas
e políticas.
Nessa direção, o corpo assume a centralidade no protagonismo de cor-
pos perseguidos, oprimidos, silenciados, torturados, abjetos, especialmente
pelas experiências transculturais que se constituem em estratégias existen-
ciais e epistemológicas indispensáveis para enfrentamento e desestabili-
zação da ordem sexista, racista, classista, cisheteronormativa. “E os corpos
estão tanto no centro das lutas como as lutas estão no centro dos corpos.
Os corpos são performativos e, assim, através do que fazem, renegociam e
ampliam ou subvertem a realidade existente” (SANTOS, 2018, p.161).
Ao acionar o conceito de performance, o pensamento de Boaventura
coaduna com a teoria da performatividade de Judith Butler (2003), ao reco-
nhecer as insurgências estéticas e comportamentais pelas quais os corpos
mobilizam a si mesmos e a sociedade, renovando o entendimento de si, do
outro e das relações, em processos dinâmicos de criticidade e alteridades
que reconstroem sujeitos e comunidades. Insurgências tão necessárias na
atualidade quando os direitos de minorias dissidentes voltam a ser alvo de
negação, usurpação e violência pelas elites conservadoras e autoritárias.
“Os corpos são acontecimentos, às vezes latentes, às vezes patentes, agora
fogos quase apagados, depois irrupções incandescentes, agora ausências
inescrutáveis, depois brilhantes fulgurações” (SANTOS, 2018, p. 161), capa-
zes de mobilizar diferentes potenciais de lutas, sobretudo por possíveis

Arte da Resistência 75
coalizões de pensamentos, experiências e ações, especialmente pelos jogos,
gingas, atitudes, comportamentos e expressões que problematizam sec-
tarismos e impulsionam outros encontros, cumplicidades e engajamentos
estéticos, políticos, educacionais e existenciais.
De acordo com Jorge Larrosa Bondía (2002), o saber advindo da expe-
riência é adquirido a partir da articulação entre conhecimento e a experiência
singular e concreta dos sujeitos envolvidos, o qual impulsiona a emergência
de saberes particulares e potentes para expansão dos processos de educa-
ção, fortalecimento e desenvolvimento de seres humanos e comunidades.
Para o autor, o saber da experiência se distingue das sensações e percep-
ções efêmeras provocadas pelos acontecimentos, já que esses não passam,
muitas vezes, de estímulos que sucumbem à instantaneidade dos momentos,
por serem estimulados ininterruptamente pelos interesses da sociedade de
consumo capitalista através da realização de desejos infinitos, do acúmulo
de informações inúteis, do excesso de atividades e de trabalho.

Por isso, o saber da experiência é um saber particular, sub-


jetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não
é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a
mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a expe-
riência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira
impossível de ser repetida. O saber da experiência é um
saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em
quem encarna. Não está, como o conhecimento científico,
fora de nós, mas somente tem sentido no modo como con-
figura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade
ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no
mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de condu-
zir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber
da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria,
quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro,
a menos que essa experiência seja de algum modo revivida
e tornada própria (BONDÍA, 2002, p. 27).

Segundo Bondía, a exposição, a vulnerabilidade e o risco estão no centro


de toda experiência. Porque se a experiência é algo que nos acontece, que
nos atinge e nos apodera, o sujeito da experiência não seria aquele inabalá-
vel, reto, ativo, firme, forte, ereto, inatingível, impenetrável, resolvido, deci-
dido, dono de seu saber, mas aquele sujeito interpelado, alcançado, aberto,
receptivo aos efeitos dos encontros, do mundo, das trocas e das experiências.
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem
a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição”
(nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa

76 Leandro Colling
maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira
de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de
“ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade
e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que
se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se
“ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe
passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede,
a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre (BONDÍA, 2002, p. 25).

Somado a esse pensamento, Boaventura de Sousa Santos defende


que “toda experiência social produz e reproduz conhecimento” (2010, p.15),
ainda que essa experiência seja marcada por relações desiguais de saber e
poder. Para o autor, epistemologia é toda noção ou ideia de conhecimento
válido, construído no seio das relações sociais, com suas tensões e contra-
dições culturais e políticas, através da qual uma experiência social se torna
intencional e inteligível. Nesse sentido, propõe novas epistemologias que
possibilitem a interpretação do mundo a partir e com o Sul, que se posicio-
nem “[...] do lado do Sul metafórico, do lado dos oprimidos pelas diferentes
formas de dominação” (Idem, p.19):

As epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções


epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam
os saberes que resistiram com êxito e investigam as condi-
ções de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse
diálogo entre saberes chamamos de ecologias de saberes
(SANTOS, 2010, p. 19).

No paradigma emergente, proposto por Santos, conhecimento é total


e também local. Seu horizonte é a universalidade, interdisciplinaridade,
interculturalidade, multirreferencialidade e multisensorialidade, mesmo
que engajados em projetos de vida concretos locais. Para o autor, “a frag-
mentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática” (SANTOS, 2005, p.
76), consolidando, na contemporaneidade, conhecimentos que se ampliam
por galerias, conectam e avançam como rizomas na medida em que sujeitos
e objetos se relacionam em busca de novas interfaces de saberes. Desse
modo, o conhecimento pós-moderno é local e total porque reconstitui pro-
jetos locais interconectados com a complexidade do pensamento e práxis.
São ilustrados a partir das realidades locais que possuem demandas glo-
bais: fome, desejos, sonhos, movimentos, encontros, trocas, vida, existência,
saúde, riqueza, alegria, trabalho, esperança, amor, felicidade, paz.
A partir das epistemologias do Sul, entendo-me como corpo-nature-
za-complexo situado. Minha arte/poética/dança localizada, meu lugar de

Arte da Resistência 77
fala interseccional, marcado pelo gênero inconforme, pela sexualidade
abjeta, pela existência social pária, de classe periférica, economicamente
desfavorecida. Etnia mestiça que, em certos momentos, garante privilégios
brancos, passabilidades mestiças e opressões obscuras.
Para Santos, a ciência do paradigma emergente é analógica e tradutora
porque parte da existência material, concreta, real e dialoga com outros
contextos ampliados. Emigram e intercambiam saberes ecológicos susten-
táveis a serem utilizados fora dos lugares de origem. Assim, é constituída
a partir da pluralidade metodológica, da “transgressão metodológica”: “Só
uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada
língua que pergunta” (SANTOS, 2005, p. 77-78).
As epistemologias do Sul indagam, reivindicam, levantam questões e
utopias, articulando saberes científicos e sociais que admitem o racional e
irracional, superando a pseudoneutralidade moderna de um suposto dis-
tanciamento entre sujeito/objeto/campo/comunidade. Santos defende que,
no paradigma emergente, “todo conhecimento é autoconhecimento” (Idem,
p. 80) porque não é neutro, mas engajando no processo de revelação de si
mesmo, do outro, das relações e do mundo, já que o sujeito está “conta-
minado” por outros meios, naturais e artificiais, analógicos, tecnológicos
e digitais. E, consequentemente, toda explicação é autobiográfica porque
busca conhecimentos compreensivos, íntimos, autorreferenciais, localizados
e plenamente assumidos, com os quais possamos unir o que estudamos com
a busca do saber-poder-viver subjetiva e coletivamente (SANTOS, 2005).
Para Boaventura de Sousa Santos, “todo o conhecimento científico visa
constituir-se em ‘senso comum’, ‘conhecimento vulgar e prático’” (2005, p.
88-89) com o qual orientamos as nossas ações no mundo e damos sentido
à vida no cotidiano, com o qual difundimos a dimensão utópica e libertadora
fundamental para ampliação do diálogo entre o conhecimento científico e a
realidade material, com intenção, criatividade e responsabilidades.
É a partir desse processo que reconheço minha trajetória epistemoló-
gica como somática, interdisciplinar e interseccional. Já que forjada pelos
fluxos de sensibilidades, interesses e contaminações pela Dança, Arte,
Teatro, Comunicação, Produção Cultural, políticas sociais e Educação.
Comprometidas com o meu lugar e meu local, minhas aspirações mais ínti-
mas e comunitárias.
Percebo como o meu fazer no mundo se constitui, historicamente, por
investimentos para apropriação de tecnologias que me possibilitem a visi-
bilidade, sobrevivência e existência no mundo, que me afastem da fome
biopsicossocial, da exclusão social e possibilitem alternativas de desen-
volvimentos sociais, cognitivos, materiais, culturais, artísticos, espirituais
e existenciais. Passei pela formação em Química, atuei como operário de

78 Leandro Colling
laboratório industrial e migrei para a Comunicação Social, Produção Cultural,
gestão de projetos sociais, Educação, Teatro e Dança.
Nessa trajetória, o fazer artístico tem contribuído para a minha loca-
lização ativa nos campos de forças dos sistemas de signos, opressões e
virtudes e, consequentemente, possibilitado autoconhecimento para o posi-
cionamento de forma sensível e sustentável nesses contextos de jogos de
saberes e poderes. A Dança moderna e o samba de roda, ao lado de minha
irmã mulata no bairro periférico de Salvador; as performances ao som do
meu primeiro LP de Miss Lene no meio da sala de casa; o aconchego/con-
solo da MPB, dentre outras vivências culturais, foram fundamentais para
a percepção desses lugares simbólicos/materiais/subjetivos/coletivos e a
assunção e dissidência de tantos papeis sociais imprescindíveis para me
manter vivo/visível/ativo/insurgente.
Simultaneamente, o Teatro, com suas possibilidades de realizações
coletivas, criativas, comunitárias, me possibilitou experimentar tantos outros
papeis e descobrir que muito existe no mundo que se assemelha a mim para
além do que vivo neste instante. Perspectivas de outras alteridades, outrida-
des, invenções e existências. O fazer teatral e artístico têm me possibilitado
sempre reconfigurações de rotas, tomadas de desvios, aproveitamentos de
encruzilhadas e sido função vital para apreensão, manejo e representação
de realidades adequadas às minhas expectativas, desejos, sonhos e utopias.
A gestão de projetos sociais, realização de eventos culturais, formação,
qualificação profissional, atravessadas pelas questões de gênero, sexuali-
dade, raça, classe, religiosidades, artes, coadunam e me impulsionam para
uma perspectiva de ativismos interdisciplinares e interseccionais. Por meio
de uma prática de Dança/Teatro/Arte/Educação engajada em questões polí-
ticas e estéticas que suscitem ideias, reflexões, valores e utopias que con-
tribuam para descolonização de corpos, mentes, espíritos e relações. Uma
Arte/Educação ativista que promova a superação de binarismos, explora-
ções, desigualdades, exclusões, ignorâncias e violências e disseminem sabe-
res estéticos, poéticos, ecológicos, feministas, antirracistas e sustentáveis.

Artivismos intersecionais

Todo trabalho de arte é uma proposta de um mundo compar-


tilhado e o trabalho de todo artista é um pacote de relações
com o mundo, gerando outras relações, e assim por diante, ad
infinintum (BOURRIAUD, 2002, p.22, apud MISI, 2015, p. 15).

Arte da Resistência 79
Evidenciamos, nestes últimos anos, a emergência de um engajamento
entre diversos artistas comprometidos com realizações estéticas em arti-
culação com atitudes políticas. Nesse cenário, propõem visibilizar e pro-
blematizar contradições socioculturais que atingem diversas populações,
sobretudo aquelas marcadas pelas desigualdades de raça, gênero, sexua-
lidade e religiosidade no sentido de questionar a ordem hegemônica que
impõe limitações, opressões, repressões e violências a diversos sujeitos e
populações que não correspondem às normas dominantes vigentes.
Isso não quer dizer que essas manifestações sejam inéditas, mas que
aparentemente se intensificam na atualidade como uma espécie de fenô-
meno cíclico que retoma a ordem do dia, fissurando as bases estruturais das
hierarquias socialmente construídas. De acordo com Leandro Colling (2018),
não se pretende dizer que existe uma origem pura, essencialmente datada do
fenômeno do artivismo, haja vista a emergência de outros movimentos enga-
jados em décadas anteriores, como em 1960/70, responsáveis pelo questio-
namento às normatividades de sexo, gênero e raça, especialmente através
da Música, Dança, transformismos, estéticas feministas, andróginas, gays,
lésbicas, trans e Black Power, mas que, recentemente, têm assumido expres-
sões, cada vez mais, provocativas desde a primeira década do século XXI.

Obviamente, as relações entre arte, política e diversidade


sexual e de gênero, em especial quando pensamos na histó-
ria do feminismo, não são novas. As feministas, assim como
outros movimentos sociais, tal qual o movimento negro e
seu teatro, sempre perceberam que as artes e os produtos
culturais em geral são potentes estratégias para produ-
zir outras subjetividades capazes de atacar a misoginia, o
sexismo e o racismo (COLLING, 2018, p. 157).

Artistas como Ney Matogrosso, Cazuza, Caetano Veloso, Gilberto Gil,


Ângela Ro Ro, Marina Lima, assim como grupos musicais performáticos e
autogestionados como Dzi Croquettes, Secos e Molhados e Novos Baianos, já
questionavam, nos anos 1960/70, as normatividades de orientação sexual e
de gênero, a submissão feminina, os laços afetivos exclusivamente monogâ-
micos e, sem dúvida, se tornaram referência e inspiração para a emergência
de artistas como Liniker, Johnny Hooker, Linn da Quebrada, Jalloo, Pabllo
Vittar, dentre outres, que passam a assumir, na atualidade, uma identidade
trans não apenas de forma performática, enquanto expressão artística de
palco, mas como expressão cotidiana das suas identidades fluidas de gênero
e sexualidade: dando visibilidade a grupos de transexuais e travestis até
pouco tempo invisibilizados pela condição dissidente de gênero, libertando
essas pessoas dos armários obscuros do confinamento na vida privada,
das pistas compulsórias de prostituição ou de trágicas existências. Assim,

80 Leandro Colling
reafirmam a inventividade, a criatividade e a sofisticação estética e política
presentes em suas existências transgressoras e reivindicam outros lugares
para travestis e transexuais, sobretudo através da arte, política e cultura.
Promovem deslocamentos quanto à suposta linearidade sexo-gênero-de-
sejos-práticas sexuais para além do âmbito das identidades trans e geram
um legado para a redefinição de concepções identitárias menos binárias
que afetam héteros, homos, bissexuais, cisgêneros ou transexuais. Enfim,
favorecem a consolidação de lugares de autonomia e cidadania para diver-
sos sujeitos, inclusive em relação à liberdade de expressão sexual, social,
artística, política e cultural.

Uma das mais recorrentes ideias nos estudos de mídia sobre


movimentos sociais está articulada com o chamado boom
dos usos das tecnologias de informação e comunicação
que estariam a modificar as interlocuções e as relações
entre as pessoas a uma escala global. De fato, houve uma
revolução nos formatos mediáticos e nas tecnologias que
os dinamizam e isso tem mudado as nossas vidas e neces-
sariamente as modalidades de protesto. Nos últimos anos,
movimentos globais têm ampliado as fronteiras da esfera
pública, reformulando ou mesmo eclipsando a distinção
entre o “real” e o “virtual” (RAPOSO, 2015, p. 8).

Nesse sentido, a emergência do artivismo tem estreita relação com os


avanços nos processos comunicativos e reivindicativos dos movimentos
sociais que estão, cada vez mais, conectados com as novas tecnologias,
o que gera uma espécie de ciber-ativismo rizomático, interdependente e
fluido, que disputa audiências com os veículos de comunicação de massa e
produz contradiscursos que borram as fronteiras identitárias, geográficas,
culturais, econômicas, sociais e políticas que segmentam hierarquicamente
indivíduos e populações. Desse modo, em 2008, o termo ativismo digital
chicano entra no contexto acadêmico com um artigo de Chela Sandoval e
Gisela Latorre: “Para as autoras significava a prática e a obra criada por indi-
víduos que buscavam uma relação orgânica entre arte e ativismo, exigindo
por isso não apenas uma volição estética, mas um modo de consciência e
um posicionamento político no mundo” (RAPOSO, 2015, p. 8).

Artivismo é um neologismo conceptual ainda de instável


consensualidade quer no campo das ciências sociais, quer
no campo das artes. Apela a ligações, tão clássicas como
prolixas e polêmicas entre arte e política, e estimula os
destinos potenciais da arte enquanto ato de resistência e
subversão. Pode ser encontrado em intervenções sociais e
políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de

Arte da Resistência 81
estratégias poéticas e performativas [...]. A sua natureza
estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga
temas e situações num dado contexto histórico e social,
visando a mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se
assim como causa e reivindicação social e simultaneamente
como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição
de cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição,
de participação e de criação artística (RAPOSO, 2015, p. 5).

Então, não se pretende caracterizar a emergência do Artivismo como um


fenômeno acabado de uma época única, pura, original, mas como expressão
e resultado da articulação dinâmica desse corpo artístico com as forças
políticas e culturais com as quais se relaciona e que possibilita emergir
acontecimentos estéticos não exclusivamente autorais de um único sujeito
em si, mas do resultado de forças que movimentam no jogo sensível, sim-
bólico e espacial entre atores que se afetam mutuamente e compartilham
protagonismos e experiências.

A emergência é, portanto, a entrada em cena das forças; é


sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos basti-
dores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria
juventude. […] Ninguém é portanto responsável por uma
emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela
sempre se produz no interstício (FOUCAULT apud COLLING,
2018, p. 156).

Pensando dessa maneira é que apostamos que o corpo está no centro


da obra, da Arte, da educação e do ativismo. Compreendendo esse corpo
subjetivo, coletivo e plural como parte constituinte do único mundo viável
para cada um de nós: “o corpo é mundo” e vice-versa (RENGEL, 2022)38. Com
sua superfície ampliada e conectada, analógica e tecnologicamente, com
recursos e redes de significações que nos constituem enquanto pessoa,
artista, educador, ativista, profissional. Corpomente, corponectivo e corpo
mídia, atravessados por ampla e diversa realidade marcada interseccio-
nalmente pela trajetória histórica e sociocultural. Entendo esse corpo em
movimento que dança como “sede de nossa significação” (MISI, 2022)39.
Sendo assim, tenho sido tecido por músicas, ruídos, poesia, pele, mús-
culos, ossos, palavras, dramaturgias, voz e tantas outras inteligibilidades.
Na Dança contemporânea intersecional em que me engajo, neste momento,
cabe também o Teatro, uma Dança-Teatro. Ela poderá vir a se manifestar

38
Profa. Lenira Rengel durante aula do componente ECA I/UFBA/2022-1.
39
Profa. Mirella Misi durante aula do componente ECA I/UFBA/2022-1.

82 Leandro Colling
por meio de um acontecimento cênico, um happening, uma improvisação,
uma vivência somática/performática/poética de encontro, troca, trans-
gressão, revolução e/ou cura. Nessa direção, venho denominando minha
Dança/Arte/Educação como experiências performáticas multissensoriais,
multirreferenciais, políticas e interseccionais. Trago nelas rastros, signos e
representações de gênero, sexualidade, religiões, divindades, orixás, etnias,
geração e classe.
Exemplo disso é que, durante esses dois primeiros anos, na Escola
de Dança da UFBA, realizei três performances. Duas primeiras em vídeo,
Cosmolog(eu)ia40 e Caboclo afrobrancobixameríndio41, realizadas em um
quarto e quintal de casa da família, durante o confinamento, em decorrên-
cia da pandemia do COVID-19; já a terceira performance foi apresentada
presencialmente durante o 38º Painel Performático da Escola de Dança,
que intitulei GaYXistência42. Todas resultam de processos criativos abertos/
inacabados mediados por professoras/es dos componentes cursados, as
quais identifico como emergências de coreografias/encenações autobio-
gráficas de um corpo dissidente no mundo em busca de ressignificações,
que desvia de desencantos e violências, e ginga, samba e goza, de algum
modo, nas encruzilhadas da vida.

Corponectivo quer dizer já em atividade. Quer dizer que


mente e corpo não precisam se integrar, pois já são inte-
grados. O que é preciso é se apropriar, se entender, se efe-
tivar que são integrados. Então, pense, imagine, a dança,
qualquer dança. [...] Ela é uma sensibilidade pensada ou
um pensamento sensível. Tudo junto. Desrespeitamos a
arte, a dança, ao dizer que ela é apenas emoção (RENGEL;
SCHAFFNER; OLIVEIRA, 2016, p. 21-22).

Nessa direção, sigo na perspectiva de uma Dança/Arte/Educação con-


temporânea, somática, interdisciplinar e interseccional que indague sobre
outras formas de existências estéticas, poéticas, artísticas, intelectuais e
políticas, compartilhadas com novas éticas, valorizando corpos diversos,
inconformes, gordos, pretos, pobres, lgbtqiapn+. Corpos não mais subalter-
nizados à técnica, mas dialógicos e multirrefencializados, que não decorrem
unicamente do domínio da técnica de determinada dança, mas mobilizam

40
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1KimdCNFKidE9LKTcwx6-xqKQEEzOp-hM/view?usp=sha-
ring. Acesso em: 09 ago. 2022.
41
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/16-Nzkl0zp9U0o3BnnKqUp5mU5ovsLz_g/view?usp=sha-
ring. Acesso em: 09 ago. 2022.
42
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/11didP6bCotlbkraQa90USyJAiMWX5aFl/view?usp=sharing.
Acesso em: 09 ago. 2022.

Arte da Resistência 83
códigos, registros, memórias, linguagens, signos, significados na intenção
de mais instigar que distrair.
Então, a Dança/Arte/Educação somática, interdisciplinar e interseccio-
nal que proponho ultrapassa o sentido clássico de entretenimento e busca
promover questões que afetam os corpos no cotidiano. Inquietações, angús-
tias, reivindicações. Configurando-nos como corponectivo, corpo mídia,
corpo plataforma que materializa um hipertexto na carne, traz suas ideias
encarnadas no fluxo de processos e contaminações históricas, reveladas
em suas expressões, comunicações, sensibilizações e artivismos.
Nesse sentido, intenta proporcionar afetos recíprocos entre artista e
público e estimular ressignificações mútuas: “Na medida em que a noção do
sujeito mudou, tudo mudou. A arte não seria mais uma atividade do espírito,
mas uma atividade do corpo-no-mundo” (MISI, 2015, p. 13). Arte deixa de
ser transcendente para ser imanente, engajada no presente, constituída e
compartilhada na coexistência entre artistas e público. Prioriza a estética
relacional, a interatividade, a materialidade e a interpretabilidade nas quais a
forma, a mensagem e a poesia finais só existem a partir da relação dinâmica
entre artista e público.
E somos todes copartícipes em qualquer espaço-tempo forjado pela
“negociação de sentidos que se estabelece no processo de experiência”
(MISI, 2015, p. 14). Espectador/leitor não é um mero receptor de informa-
ções, mas coautor da investigação, vivência e obra, dialógica e ativamente
durante os processos de sensibilização, criação e comunicação: “A dança
contemporânea acontece num pacto entre palco e plateia. Não há emissor
e receptor, mas um fluxo que atravessa todos os envolvidos com graus dife-
renciados de responsabilidades compartilhadas” (KATZ, 2004, s/p). Eu, você,
nós, artistas e público, somos todes implicades, engajades nos processos de
significação, cocriação, coautoria, com responsabilidades e protagonismos
compartilhados. E, ao mesmo tempo, disseminadores e transformadores dos
conteúdos apreendidos, construtores daquilo que percebemos, mobilizado-
res de outras realidades e utopias, que nos marcam e interessam estética,
política e eticamente.

84 Leandro Colling
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Arte da Resistência 85
Tensões entre o Complexo
Cisheteropatriarcal e os artivismos das
dissidências: a arte como ferramenta de
transformação coletiva

Julia Péret

Introdução

Nos últimos 15 anos, alunos/as e professores/as integrantes do Núcleo


de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS),
da Universidade Federal da Bahia, vêm realizando um verdadeiro esforço
coletivo de pesquisar gênero e sexualidade, criando pontes entre esses
campos e as múltiplas áreas do saber que habitam a universidade, inclusive
o das Artes. O NuCuS, que sempre deu igual destaque para as produções
artísticas, vem há pelo menos 6 anos mapeando e analisando a cena arti-
vista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil. Ao que parece, houve
uma verdadeira proliferação de artistas e coletivos artísticos que utilizam
múltiplas linguagens para problematizar as normas de gênero e sexualidade
culturalmente construídas, impostas e reforçadas pelo Estado, a mídia e a
cultura hegemônica do país. Os anos de pesquisa e eventos acadêmicos
organizados pelo grupo resultaram em algumas coletâneas de livros como:
Stonewall 40+ o que no Brasil? (COLLING, 2011); Estudos e políticas do CUS43
(COLLING e THÜRLER, 2013); Dissidências sexuais e de gênero (COLLING,
2016) e Artivismos das dissidências sexuais e de gênero (COLLING, 2019).
Como integrante do grupo, intento aqui contribuir com a criação de diálogos

43
Antes de se tornar um núcleo, o NuCuS se intitulava grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS).

Arte da Resistência 87
entre a Psicologia Analítica pós-junguiana e os estudos das dissidências,
utilizando como ponto de intersecção o artivismo.
Para essa interlocução entre teorias será utilizado o conceito de
Inconsciente Cultural, formulado por Joseph Henderson (1903-2007), e
de Complexos Culturais, formulado por Singer e Kimbles (2004), e como
esses aparecem nas artes. Os autores, a partir dos conceitos formulados
por C. G. Jung, se debruçaram a estudar questões socioculturais tentando
compreender como elas impactam na psique individual do sujeito. Bebendo
dessas fontes, Gustavo Pessoa (2021) trabalha o conceito de Complexo
Heteropatriarcal e o aproxima à teoria junguiana dos Estudos de Gênero.
Esse será o gancho utilizado para trabalharmos com a hipótese de que os
artivismos das dissidências funcionam também como uma espécie de ferra-
menta de defesa arquetípica – criativa e positiva – do grupo, grupo este com-
posto por todes aquelus que não se encaixam na normatividade de gênero
e sexualidades que lhes é imposta por esse complexo heteropatriarcal.
Introdução sobre conceitos-chave formulados por C. G. Jung
Para começo de conversa, C. G. Jung entendia a psique, nome que deu
ao seu aparelho psíquico44, da seguinte forma:

A psique abrange todos os pensamentos, sentimentos e


comportamentos, tanto os conscientes como os incons-
cientes [...], e compõe-se de numerosos sistemas e níveis
diversificados, porém interatuantes. Podem-se distinguir
três níveis na psique. São eles: a consciência, o inconsciente
pessoal e o inconsciente coletivo (HALL; NORDBY, 2005,
p. 25-26).

Ele acreditava que, como seres de uma mesma espécie, compartilhamos


uma série de experiências comuns à humanidade. Em um dos seus escritos,
ele define assim o Inconsciente Coletivo:

[...] convém lembrar que assim como a anatomia do corpo


humano é a mesma, apesar das diferenças raciais, assim
também a psique possui um substrato comum, que ultra-
passa todas as diferenças de cultura e de consciência. A
este substrato dei o nome de inconsciente coletivo. A psique
inconsciente, que é comum a toda a humanidade, não con-
siste apenas de conteúdos aptos a se tornarem conscien-
tes, mas de predisposições latentes a reações idênticas. O
inconsciente coletivo é a mera expressão psíquica da iden-
tidade da estrutura cerebral (JUNG, 2016, p. 31).

44
Referência à Primeira Tópica formulada por Sigmund Freud.

88 Leandro Colling
Para Jung (2015a), o Inconsciente Coletivo encontra-se nos níveis mais
profundos da psique, com conteúdos de ordem impessoal e coletivos, sob a
forma de categorias herdadas ou, como ele chamou mais tarde, arquétipos.
É importante ressaltar que “a psique não é uma coisa dada, imutável, mas
um produto de sua história em marcha” (JUNG, 2020, p. 17), ou seja, as cate-
gorias herdadas não foram “coisas” criadas espontaneamente pela psique,
ao contrário, foram categorias que acumularam “o resultado formado por
inúmeras experiências típicas de toda uma genealogia. Elas são, por assim
dizer, os resíduos psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo” (JUNG,
2013, p. 82 § 127) que estão sendo constantemente atualizadas pelo tempo
e a história. Essas características coletivas diferem do Inconsciente Pessoal
que, para Jung, possui características e conteúdos pessoais adquiridos ao
longo da vida, que compreendem não só os materiais pessoais reprimidos,
como também os componentes psíquicos subliminais e as sementes de
futuros conteúdos conscientes (predisposições latentes), ou seja, as capa-
cidades que não desenvolvemos ao longo da vida. É no Inconsciente Pessoal
que os Complexos de tonalidade afetiva se manifestam.
Apesar de essas imagens serem comuns à humanidade, sua ativação e
manifestação em cada sujeito não é igual, mas sim pessoal. Se um arqué-
tipo será ativado ou não na psique pessoal, e como será a sua expressão
nessa psique, dependerá da trajetória de vida, das dores e das delícias que
constituem o processo de individuação45 de cada pessoa; e, claro, a cultura,
a racialização, o gênero, a sexualidade e outros marcadores sociais influen-
ciarão nesse processo. Os arquétipos funcionam como “moldes” psíquicos,
de natureza abstrata, carregados de afeto nos quais são despejadas as
experiências individuais e coletivas do sujeito. Esses podem assumir na
psique um caráter positivo ou negativo (HOPCKE, 2012).
Jung elencou alguns arquétipos-chave46 para o funcionamento saudável
da psique e elegeu o Self como o principal deles. O Self, ou Si-mesmo, na
teoria junguiana, aparece como um centro regulador, o arquétipo da tota-
lidade, aquele que direciona e organiza a energia psíquica na psique. Jung
atribuía fenômenos como intuições, insights e a sincronicidade à existência
desse centro (HOPCKE, 2012). O Self é uma instância que tanto engloba o

45
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendemos nossa
singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio
Si-mesmo. Podemos traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si-mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do
Si-mesmo (Selbstverwirklichung) [...] A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e
mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das
peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social (JUNG, 2015a, p. 63 §266-267).
46
Dentre eles estão os arquétipos de Anima e Animus, fundamentais para entendermos a visão, no mínimo
polêmica, que Jung tinha sobre o gênero. Não seria possível abordá-los neste único artigo e, por isso, reco-
mendo as leituras dos livros: Anima, de James Hillman (2020); Jung: a feminist revision, de Susan Rowland
(2002) e Psicologia pós-junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade, organizado por Clarissa
de Franco (2022). Todas essas obras abordam as problemáticas desses conceitos.

Arte da Resistência 89
consciente – eu – quanto o inconsciente, funcionando como uma ponte, um
eixo entre o ego e o inconsciente (JUNG, 2015a). A ideia de Self assemelha-
-se a ideia de “alma”, um “verdadeiro eu”, cada um nasce com seu próprio
Self que sempre saberá para onde nos guiar nos caminhos da individuação.
Quando preenchido pelas vivências, experiências e afetos do sujeito, o
arquétipo perde seu caráter de “molde” e torna-se um complexo de tonali-
dade afetiva, habitando o Inconsciente Pessoal. Jung considera como com-
plexos os agrupamentos de sentimentos, imagens, símbolos, carregados
de afetividade; seu núcleo caracteriza-se como uma intensa carga afetiva e
energética (um arquétipo), que estabelece associações com outros elemen-
tos afins, cuja coesão é mantida pelo afeto comum entre eles. Essa estrutura
permite que o complexo se torne uma unidade viva, que se comporta como
um imã para todo fenômeno psíquico que esteja no seu campo de atração
(SILVEIRA, 1992). Jung (2011, p. 79 § 140) afirma que:

Todo acontecimento afetivo se torna um complexo. Se o


acontecimento não estiver relacionado a um complexo já
existente, possuindo assim um significado momentâneo, ele
submerge gradualmente, com a diminuição da tonalidade
afetiva, na massa latente da memória, aí permanecendo até
o momento em que uma impressão semelhante a reproduza
novamente.

Os complexos podem agir na consciência como “lentes” com as quais o


indivíduo tem a sua percepção distorcida pelo teor do complexo, podendo
este ser positivo ou negativo para o sujeito. Essa distorção embaça a
consciência e pode provocar dificuldades (ou facilidades) no processo de
adaptação do sujeito. Os complexos interferem nas tomadas de decisões
e nas relações interpessoais e agem quase como outras personalidades.
Por esses motivos diz-se que uma pessoa é tomada pelo complexo e não o
contrário (JACOBI, 2016). Vale ressaltar que o próprio ego é um complexo.
Jung comenta que, quando um complexo não é trabalhado na consciência
do sujeito, permanecendo inconsciente, ele “nada perde de sua carga afe-
tiva original, embora suas manifestações externas possam modificar-se de
forma quase ilimitada” (JUNG, 2020, p. 106 § 122). Isso significa que, além de
os complexos serem bem insistentes e criativos, eles não só podem como
devem ser trazidos à luz da consciência para que o sujeito se dê conta de
como ocorre a atuação deles em sua vida para, a partir daí, confrontá-los
com o propósito de elaboração e integração.
No inconsciente pessoal habitam infinitos complexos que estão em
constante tensão/conflito, disputando por protagonismo e energia psíquica.
Todo complexo deseja realizar sua própria narrativa através do ego, funcio-
nando como verdadeiras personalidades em conflito dentro do sujeito, e é

90 Leandro Colling
isso que nos torna animais tão criativos, imprevisíveis e complexos. Por isso,
na Psicologia Analítica se diz que não possuímos uma identidade fixa, mas
fluída, em que o ego se movimenta entre complexos de polaridades posi-
tivas e negativas afetando-se e transformando-se infinitamente ao longo
do processo de individuação. Jung (2015b, p. 104 § 151) não fala em seus
escritos sobre o conceito de identidade, mas fala sobre uma “unidade de
consciência” ilusória:

Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da


consciência ser mera ilusão. É realmente um sonho de
desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas
isso não acontece nem nunca aconteceu. Realmente não
somos senhores dentro de nossa própria casa. É agradável
pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no
que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que pode-
mos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por
esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos
autônomos de associações, com tendência de movimento
próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa
intenção. Continuo afirmando que o nosso inconsciente pes-
soal e o inconsciente coletivo constituem um indefinido,
porque desconhecido, número de complexos ou de perso-
nalidades fragmentárias.

Baseada nessa ideia de “personalidades fragmentadas”, Claudette


Kulkarni (2017), em seu texto Queer theory meets Jung, faz o movimento
de aproximar a teoria analítica da teoria queer, comparando, em um dado
momento do texto, o entendimento pós-junguiano a respeito da identidade
e as ideias de Judith Butler:

Minha compreensão pós-junguiana de identidade é como a


ideia de Butler sobre o “queer”: “nunca totalmente possuída,
mas sempre e apenas reimplantada, distorcida, queered”
(Kuzniar, apud Butler) ou a de Eve Kosofsky Sedgwick:
“momento contínuo, movimento, motivo – recorrente, tur-
bulento, perturbador” (Kuzniar, apud Sedgwick) (KULKARNI,
2017, p. 249, tradução nossa).

Como se trata de uma breve explanação, não será possível abordar,


com um limite de páginas, todos os conceitos teóricos que ajudam a compor
a anatomia e o funcionamento da psique. Para entender esse processo com
mais profundidade seria necessário discorrer sobre os conceitos de energia
psíquica (progressão e regressão da libido), Sombra, Persona, dentre outros
conceitos que fugiriam da temática deste artigo.

Arte da Resistência 91
Os Complexos Culturais

Ao longo dos seus escritos, principalmente nos volumes 10/2 e 10/3 das
Obras Completas47, Jung vai oferecendo pistas sobre a relação do incons-
ciente com a cultura sem nunca ter formulado um conceito que se dirija dire-
tamente a ela. A ideia de Inconsciente Cultural foi formulada pela primeira
vez após a morte de Jung, pelo analista junguiano Joseph Henderson que,
ao longo da sua trajetória, produziu escritos que relacionavam o indivíduo, a
psique e a cultura, passando pelas ideias de inconsciente cultural, arquétipos
culturais e atitudes culturais (SILVA; SERBENA, 2021). Henderson (1990, p.
103 apud THOMPSON, 2016, p. 17, tradução nossa) definiu formalmente o
inconsciente cultural (the cultural unconscious) como:

[...] uma área da memória histórica entre o Inconsciente


Coletivo e o padrão manifesto da cultura. Pode ser incluso
ambas as modalidades, consciente e inconsciente, além
disso, tem algum tipo de identidade decorrentes dos arqué-
tipos do Inconsciente Coletivo, que auxilia à formação de
mitos e rituais, promovendo o desenvolvimento individual.

Sua maior contribuição foi localizar o inconsciente cultural entre o


inconsciente coletivo e o pessoal, de maneira que os complexos neces-
sariamente tenham que passar por uma malha cultural antes de habitar
o inconsciente pessoal. Thomas Singer e Samuel Kimbles desenvolveram
melhor a ideia de Inconsciente Cultural, a partir da teoria dos Complexos
de Jung, não com o intento de descobrir a causa dos conflitos entre gru-
pos, mas de ampliar a própria teoria analítica que permanece com lacunas.
Baseados nos princípios de seus antecessores, Singer e Kimbles (2004, p.
06-07, tradução nossa) argumentam que os Complexos Culturais (Cultural
Complexes):

[...] estruturam a experiência emocional e operam na psique


pessoal e coletiva da mesma maneira que os complexos
individuais, embora seu conteúdo possa ser bem diferente.
Assim como os complexos individuais, os complexos cul-
turais tendem a serem repetitivos, autônomos, resistem à
consciência e acumulam experiências que confirmam seu
ponto de vista histórico. E, como já mencionado, os comple-
xos culturais tendem a ser bipolares [...] Indivíduos e grupos
nas garras de um determinado complexo cultural assumem

47
As Obras Completas de C.G. Jung são divididas em 18 volumes, totalizando 35 livros. Os volumes 10/2 e
10/3 são respectivamente os livros intitulados: Aspectos do drama contemporâneo (2020) e Civilização em
transição (2013).

92 Leandro Colling
automaticamente uma linguagem corporal e posturas com-
partilhadas ou expressam sua angústia em queixas somá-
ticas semelhantes [...] complexos culturais são baseados
em experiências repetitivas e históricas de grupo que se
enraizaram no inconsciente cultural do grupo. [...] A socio-
logia interna dos complexos culturais pode apoderar-se da
imaginação, do comportamento e das emoções da psique
coletiva e desencadear forças tremendamente irracionais
em nome da sua “lógica”.

Singer e Kimbles (2004) consideram que os complexos culturais come-


çam a integrar a nossa psique quando entramos em contado com a vida
coletiva e as estruturas públicas que nos cercam, como, por exemplo, a
comunidade em que estamos inseridos, as escolas, as mídias que nos envol-
vem etc. O autor chama a atenção para o fato de que os complexos culturais
não se configuram em identidades coletivas nem nacionais. Apesar de essas
ideias estarem entrelaçadas, analisar a identidade de grupos ou indivíduos
apenas pelas lentes de um complexo cultural seria perigoso e simplista,
pois tenderíamos a uma universalização malfeita dos sujeitos, o que, na
prática, não acontece. O que se pode argumentar é que os complexos cul-
turais “podem servir para fornecer um forte senso de identidade cultural
e pertença a um grupo que é essencial para uma sensação de bem-estar”
(SINGER, 2022, p. 114).
Alguns pensadores junguianos estão explorando o campo da teoria dos
complexos culturais e dedicaram-se a escrever sobre alguns dos complexos
culturais que assolam não apenas uma cultura, mas grande parte do globo
– com poucas exceções. Alguns desses complexos foram nomeados como:
complexo racial (racial complex) (BREWSTER, 2020), complexo cultural do
racismo (CARIBÉ, 2018), complexo de gênero (gender complex) (MCKENZIE,
2006). Essa é uma tentativa de trazer a teoria para a arena do debate con-
temporâneo e dar uma contribuição a partir do ponto de vista psicológico.

O Complexo Heteropatriarcal

A ideia do Complexo Heteropatriarcal é trabalhada por Gustavo Pessoa


(2021). Para formular esse conceito, o autor se baseou em teóricas/os femi-
nistas ocidentais brancas/os como Judith Butler, Paul B. Preciado, Gayle
Rubin e Monique Wittig. Não sei dizer se as escolhas foram feitas pensando
no recorte cultural do complexo heteropatriarcal que tem como berço a
Europa – que mais tarde o exportou para as Américas – ou se o autor acabou
sendo preso nas teias teórico-metodológicas produzidas pelos estudos de

Arte da Resistência 93
gênero e sexualidade instalados nas academias latino-americanas48. Para
dar continuidade à sua linha de raciocínio e utilizar corretamente a ideia
de “Complexo Heteropatriarcal”, como foi originalmente formulada, optei
por não me afastar das suas escolhas teóricas e permanecer com essas/es
mesmas/os autoras/es. A única alteração que farei será acrescentar, ente
colchetes, o prefixo “cis” na palavra heteropatriarcal, a fim de evidenciar
que todo sistema heteropatriarcal é necessariamente cissexista49.
A princípio, esse complexo cultural se refere à memória coletiva
dos povos que foram submetidos a uma série de tecnologias de gênero50
(LAURETIS, 1987) e dispositivos51 (FOUCAULT, 1996) ocidentais que inven-
taram o conceito de sexo, gênero e sexualidade em nome de uma lógica
autoritária e capitalista, produzindo uma série de normas que ditam como
o gênero e a sexualidade devem ser expressados. Por isso, Pessoa (2021,
p. 91) diz:
[...] filho do capitalismo, o complexo heteropatriarcal abarca
os conflitos que emergem entre os impulsos sexuais e o sis-
tema socioeconômico que erigimos, indisposto por natureza
a abarcar múltiplas possibilidades que não sejam padroni-
záveis e comercializáveis em larga escala.

Paul B. Preciado (2014, p. 25), por exemplo, argumenta que o sexo e a


sexualidade são tecnologias sociopolíticas complexas, sendo o sexo:

[...] uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o


corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assi-
métrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino),
fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos,
certas sensações com determinadas reações anatômicas.

Essa tecnologia heterossocial produz uma narrativa fictícia que condi-


ciona o prazer e o sexo heteronormativo a uma ideia de sexualidade correta,

48
A feminista decolonial e pesquisadora Yuderkys Espinosa (2021), atualmente, está conduzindo uma
pesquisa brilhante em que analisa como a produção de conhecimento do chamado “campo do gênero e da
sexualidade”, em universidades da América Latina, é dependente das epistemologias americoeurocentra-
das. Os resultados encontrados até agora estão disponíveis no capítulo de livro intitulado Colonialidade e
dependência nos estudos de gênero e sexualidade na América Latina: o caso da Argentina, do Brasil, do Uruguai
e do Chile, disponível no livro Por que o feminismo descolonial é necessário?
49
Como evidencia Viviane Vergueiro (2015).
50
Baseada nas ideias foucaultianas, Lauretis (1987) postula que as tecnologias de gênero são compostas
por dispositivos, mecanismos, instituições ou discursos que produzem sujeitos a partir da identificação
entre homem ou mulher, estando os homens hierarquicamente mais bem posicionados do que as mulheres.
A cultura e a arte são dispositivos importantíssimos para essas tecnologias.
51
Utilizo aqui o conceito de dispositivo pensado por Foucault (1996, p.138) no livro A microfísica do poder, onde
ele diz: “Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”.

94 Leandro Colling
natural, saudável e sagrada. Qualquer manifestação fora desta é tida como
doentia e patológica, passível de correção. Gayle Rubin (2012) desenvolve
muito bem essa ideia quando diz que a noção de sexo e sexualidade é
construída na sociedade e na história. A noção moderna da sexualidade
produziu uma hierarquia de valor sexual, em que o “bom sexo” é feito por
heterossexuais (obviamente cis), casados, monogâmicos, com finalidade
reprodutiva e em casa. E o “mau sexo”, tido como anormal, não-natural,
doentio e pecaminoso é praticado por travestis, transexuais, fetichistas,
sadomasoquistas ou por dinheiro. Pessoas que praticam o “mau sexo” estão
na base da pirâmide e têm menor valor sexual e social. Sendo assim, “a
noção de uma sexualidade ideal singular caracteriza a maioria dos sistemas
de pensamento sobre o sexo” (RUBIN, 2012, p. 20). A heterossexualidade
necessariamente contém uma hierarquização entre os gêneros, na qual
o masculino se sobrepõe ao feminino e, acrescento aqui, o cisgênero se
sobrepõe ao transgênero/travesti.
A ficção de uma sexualidade normativa está entrelaçada a uma noção
de gênero na qual o sexo biológico será determinante para os papeis de
gênero que cada indivíduo desempenhará na sociedade. Butler (2018, p.
06, grifo meu) se refere ao gênero como:

[...] uma performance que envolve consequências clara-


mente punitivas. A distinção de gênero faz parte da “huma-
nização” dos indivíduos dentro da cultura contemporânea;
assim, quem não efetua a sua distinção de gênero de modo
adequado é regularmente punido. Como não existe uma
“essência” que o gênero expresse ou externalize nem um
objetivo ideal ao qual aspire; como o gênero não é um fato,
os vários atos de gênero criam a ideia de gênero; sem esses
atos, não haveria gênero. O gênero, portanto, é uma constru-
ção que oculta regularmente a sua própria gênese.

E continua:

Se o gênero, assim, é o significado cultural assumido pelo


corpo sexuado, e se esse significado é co-determinado por
diferentes atos culturalmente percebidos, não nos parece
ser possível, dentro dos termos da cultura, apreender o sexo
de forma separada do gênero (BUTLER, 2018, p. 8).

A partir dos estudos feministas, Pessoa (2021, p. 95) constrói o pensa-


mento de que o Complexo [Cis]Heteropatriarcal produzido por esses dis-
positivos e tecnologias – que envolvem as produções culturais, políticas
e científicas – citados anteriormente alteram a nossa forma de pensar e
enxergar o mundo, assumindo um papel na psique:

Arte da Resistência 95
[...] moral e ético, determinando o que é certo e errado em
relação a nossos desejos e cumprindo um papel político de
organização e ordenação social. Dessa forma, o complexo
atua em sua formação mais sombria, transformando em
estrutura lógica aquilo que inicialmente era uma pulsão
erótica. Tudo é dois. Todo dois é homem e mulher, masculino
e feminino.

Monique Wittig (1980/1992, p. 03, grifo meu), ao escrever sobre a cons-


trução cultural de um pensamento hétero, articula muito bem o que seria
a ação de um “complexo heterossexual” sobre a percepção dos sujeitos:

[...] o pensamento hétero desenvolve uma interpretação


totalizante da história, da realidade social, da cultura, da
linguagem e simultaneamente de todos os fenômenos
subjetivos. Posso apenas sublinhar o caráter opressivo de
que se reveste o pensamento hétero na sua tendência para
imediatamente universalizar a sua produção de conceitos
em leis gerais que se reclamam de ser aplicáveis a todas
as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos.

Esse complexo autoritário que se propõe a fixar indivíduos em papéis


sociais, performatividades e identidades fixas, vai contra o conceito de Self
e individuação formulados por Jung. A tentativa individual e solitária de se
encaixar (e forçosamente se identificar) com um complexo cultural rígido
como esse é sentido na psique pessoal como um trauma. Ao multiplicar essa
vivência em nível populacional, imagine que teremos um contingente enorme
de pessoas vivendo em extremo sofrimento psíquico. Kalsched (2013) vai
chamar de trauma qualquer experiência que cause uma dor ou ansiedade
insuportáveis ou intoleráveis, que ameacem a personalidade humana ou o
espírito pessoal, como, por exemplo, a ação da LGBTTQIAP+fobia na psique
individual. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou uma nota técnica
sobre a Resolução nº01/199952 se referindo à ação desastrosa dessas vio-
lências na saúde mental da população LGBTTQIAP+:

A LGBTTQIAP+fobia é um processo de estigmatização que


incorre em violação de direitos sexuais enquanto direitos
humanos, com efeito de representações de inferiorização,
patologização e mesmo de desumanização que recaem

52
A Resolução nº 01/1999 veta que as profissionais da Psicologia exerçam qualquer atividade que favoreça
a patologização de comportamentos ou práticas homossexuais. Proíbe, ainda, a adoção de ações coercitivas
que busquem orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. A norma impede, portanto, a prática
de terapias que remetam a chamada “cura gay”.

96 Leandro Colling
sobre sujeitos que estão em não conformidade com os
estereótipos da cisheteronormatividade. Entende-se que
o preconceito, a discriminação e a exclusão social são dis-
positivos que promovem a manutenção do sofrimento e
adoecimento dos sujeitos. Dessa forma, não é a condição
existencial de ser LGBTTQIAP+ que gera o sofrimento, mas
sim, as vivências de exclusão e marginalização causadas
pela discriminação e preconceito (CFP, 2021, p. 02).

A prova disso são os números alarmantes de suicídios e assassinatos de


pessoas LGBTTQIAP+, mapeados e analisados em dossiês, como mostram as
pesquisas feitas pelo Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil
(2021; 2022). Esse trauma imprimido na psique impede o sujeito de ter um
desenvolvimento psíquico satisfatório e criativo, ativando o que Kalsched
(2013) chamou de “sistema de autocuidado arquetípico da psique”. O autor
observou, em décadas de trabalho clínico, como a psique está disposta a
fazer qualquer coisa para proteger esse ego fragilizado que não consegue
realizar-se socialmente, inclusive matá-lo (suicídio), para que, assim, ele não
seja exposto novamente a situações repetitivas de violência. Durante a sua
investigação, Kalsched (2013) sugere brevemente que os mecanismos pro-
duzidos pela psique individual para lidar com o trauma podem ser negativos/
autodestrutivos ou positivos/transformadores. Ao longo da obra, o autor dá
ênfase às narrativas que evocam os aspectos negativos acionados por seus
clientes. Neste artigo, seguirei na contramão e tentarei dar ênfase, ao longo
do texto, aos aspectos positivos.
Ao falar de complexos culturais, Singer (2022) observa um sistema de
autocuidado semelhante ao proposto por Kalsched. Esse sistema atua nos
grupos/coletivos que passaram por uma mesma experiência histórico-cul-
tural considerada traumática. O autor chamou esse sistema de “defesas
arquetípicas do espírito de grupo”.

Quando um grupo é atacado no seu núcleo e nos seus valo-


res [...] ou quando um grupo é corroído no seu núcleo e nos
seus valores [...] acredito que as defesas arquetípicas do
espírito de grupo são mobilizadas para proteger o espírito
de grupo (que se encontra vulnerável e ferido) [...] Encaro
essa resposta como uma reação automática, reflexa e, de
certa forma, a maneira mais natural da psique do grupo rea-
gir quando se encontra nas garras de um complexo cultural
(SINGER, 2022, p. 124-125).

Na história podemos encontrar alguns rituais de suicídios coletivos,


geralmente associados à perda em batalhas, contudo, o mais comum é que
essa defesa tente proteger e prolongar a vida de seus membros. Diante

Arte da Resistência 97
disso, podemos imaginar que as pessoas LGBTTQIAP+ que permaneceram
vivas, apesar de toda a estrutura [cis]heteropatriarcal que tenta encaixá-
-las no discurso patologizante e na imagem de fracasso, estão de algum
modo ativando seu próprio “sistema de autocuidado” para, minimamente,
preservarem sua integridade física e mental. Ao me referir a esse grupo não
pressuponho que suas demandas sejam universais nem que seus objetivos
políticos estejam alinhados. A própria história do movimento LGBTTQIAP+,
conhecido antigamente como GLS, no Brasil expõe a heterogeneidade desse
grupo. Atualmente, me atrevo a dizer que a principal substância aglutinadora
desse emaranhado de pessoas, atravessadas por raça, classe, identidade
de gênero e sexualidade diversas, é a dor da violência, da exclusão e do
desafeto misturada com a esperança e alegria de vislumbrar dias melhores.
Existem muitas formas de defender o “espírito de grupo” – mesmo se
tratando de um tão heterogêneo –, como, por exemplo, através de movi-
mentos sociais, manifestações/passeatas/paradas políticas, organizações
em coletivos, partidos políticos e através das artes. Pensando nesses cole-
tivos das dissidências inconformes que, através da arte, criam imagens que
confrontam esse complexo cultural, formulo a hipótese de que a produção
artivista pode ser, em termos psicológicos, como uma “defesa arquetípica
do espírito de grupo”. A arte aqui seria usada como uma ferramenta de
defesa (criativa) que, além de ser uma via de expressão dos sentimentos pes-
soais de cada artista, age também como um transformador social, tecendo
imagens e narrativas de outras existências possíveis na malha da cultura.
Transformando o que antes era segredo ou fantasia em um objeto palpável
com cheiro, textura, cor, forma, espaço e volume.
O Complexo Heteropatriarcal e os artivismos
Como dito anteriormente, os complexos possuem em sua anatomia
imagens e símbolos carregados de afetos. Jung (2020), em seu texto As duas
formas de pensamento, de 1911, discorria sobre o “pensar dirigido” e o “sonhar
ou fantasiar”. O primeiro consiste no pensamento linguístico, estruturado e
lógico, “é um pensamento da realidade” (JUNG, 2020, p. 31 § 11). O segundo
é um pensamento que se dá através das imagens criadas espontaneamente
pela psique, como, por exemplo, os sonhos, as fantasias e os devaneios. Por
fim, Jung (2020, p. 39 § 20) caracteriza-os como:

O primeiro [pensar dirigido] trabalha para a comunicação,


com elementos linguísticos, é trabalhoso e cansativo; o
segundo [sonhar ou fantasiar] trabalha sem esforço, por
assim dizer espontaneamente, com conteúdos encontrados
prontos, e é dirigido por motivos inconscientes. O primeiro
produz aquisições novas, adaptação, imita a realidade e
procura agir sobre ela. O último afasta-se da realidade,

98 Leandro Colling
liberta tendências subjetivas e é improdutivo com relação
à adaptação.

Por isso, é comum que se afirme, em diferentes fóruns junguianos e


até mesmo em diferentes meios científicos, que “psique é imagem”. Essas
imagens psíquicas não estão imunes aos complexos culturais e pessoais que
carregamos, elas falam através deles, contam e carregam nossas histórias
através das lentes desses complexos. Essas imagens do inconsciente (pes-
soal, cultural e coletivo) são projetadas no “mundo real” através das artes
visuais sob a forma de símbolos. Os símbolos são definidos como uma ima-
gem ou cena, que possui um sentido visível, mas que por trás do visível car-
rega um sentido oculto e profundo (JACOBI, 2016). Para que uma imagem se
torne um símbolo é preciso que a consciência observadora crie com esta uma
espécie de vínculo, uma troca que a envolva de sentido (RODRIGUES, 2019).
A linguagem simbólica consegue capturar, como um imã, aquele que
a observa, sendo capaz de instigar a movimentação de aspectos psíqui-
cos e evitar assim uma estagnação da psique (JACOBI, 2016). O artista, ao
se apropriar de materiais naturais e/ou artificiais e os mesclar com a sua
criatividade, pode criar novas subjetivações, percepções e sentidos, bem
como criar outras possibilidades e outros mundos capazes de dialogar com
o expectador (ROLNIK, 2002). Em seu livro Imagens do inconsciente, a psi-
quiatra Nise da Silveira diz:

O processo psíquico desenvolve seu dinamismo por inter-


médio da criação de imagens simbólicas. “O símbolo é o
mecanismo psicológico que transforma energia” [JUNG O.C.
8]. Assim, a objetivação de imagens simbólicas no desenho
ou na pintura poderá promover transferências de energia
[psíquica/libido] de um nível para outro nível psíquico. A
imagem não é algo estático. Ela é viva, atuante e possui
mesmo eficácia curativa (SILVEIRA, 2015, p. 135).

Por objetivação a autora se refere ao processo de dar forma à imagem,


transformá-la em uma criação, em uma obra palpável e observável. Dessa
forma, a imagem se torna passível de trato e o que antes era impensável
ou assustador para o ego torna-se inofensivo e real. Como ocorreria então
a ação dos artivismos que operam, tanto como um expurgo de sentimentos
(positivos e negativos), como um movimento que confronta os complexos
culturais traumatizantes? Para pensar essa questão, o primeiro passo seria
definir o que é artivismo. Raposo (2015, p. 05) o define como:

[...] um neologismo conceptual ainda de instável consensua-


lidade quer no campo das ciências sociais, quer no campo

Arte da Resistência 99
das artes. Apela a ligações, tão clássicas como prolixas
e polémicas entre arte e política, e estimula os destinos
potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão.
Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas,
produzidas por pessoas ou coletivos, através de estraté-
gias poéticas e performativas [...]. A sua natureza estética
e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas
e situações num dado contexto histórico e social, visando
à mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se assim
como causa e reivindicação social e simultaneamente como
ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de cená-
rios, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de par-
ticipação e de criação artística.

No seu âmago, os artivismos já tencionam qualquer complexo cultural


hegemônico que provoque sofrimento psíquico, clamando por uma resis-
tência e uma subversão desses valores. Leandro Colling (2019, p. 29), ao
analisar parte da cena artivista brasileira, observa o que parece ser “uma
felicidade de transgredir”, mas transgredir o que exatamente? Ao longo do
texto, Colling observa que a cena artivista valoriza as identidades híbridas
de gênero e sexualidade, opondo-se à ideia de identidade fixada em homem/
pênis/heterossexual e mulher/vagina/heterossexual.
Observa, ainda, a predominância de múltiplas linguagens artísticas
e coletivos – não centralizada na produção em uma pessoa – que, muitas
vezes, convocam o/a expectador/a a participar e intervir na obra. Colling
(2019) identifica algumas artistas dos campos da música, teatro, literatura e
performances. Nas artes plásticas, cita a polêmica exposição QueerMuseu:
cartografias da diferença na arte brasileira. A fim de colaborar com o mapea-
mento de artistas, deixo aqui alguns nomes de artistas que confrontam o
Complexo [cis]Heteropatriarcal ao tecerem imagens que dialogam com
outras possibilidades de existência, tecendo muitas vezes imagens corriquei-
ras que humanizam esses corpos: Fernando Lins (@fefa.lins), Hanz Ronald
(@hanzronald), Mariana Pacor (@marianapacor), Jade Marra (@jademarra),
Mickalene Thomas, Ani Ganzala (@ganzalarts), Yacunã Tuxá (@yacunatuxa),
Daniel Jaen (@danieljaenart) etc. Em uma das suas mensagens no Instagram,
estampando a tela “& se trans for mar”, Fernando Lins (2022, online) escreve:

Fui entendendo ao longo dos anos que muito da necessi-


dade que tenho da autorrepresentação parte do desejo de
criar e/ou revelar em tela universos, narrativas e corpos
possíveis para mim e para tudo o que me cerca. é impossível
realizarmos algo que não conseguimos imaginar. [...] preciso
pintar, criar uma realidade pictórica para daí então conse-
guir visualizar isso como possibilidade para o meu corpo.

100 Leandro Colling


Ao que parece, esse movimento artístico colide e tenciona diretamente
com os pressupostos que sustentam o complexo [cis]heteropatriarcal, pro-
movendo a “descarga” e circulação da energia psíquica para imagens e
complexos outros que subvertem a imagem e a narrativa produzida pelo
complexo [cis]heteropatriarcal. Colling (2019, p. 42) sinaliza que as pessoas
que integram a cena artivista

[...] apostam nos produtos culturais para produzir novos


processos de subjetivação, capazes de sensibilizar e modi-
ficar as percepções que as pessoas possuem em relação às
dissidências sexuais e de gênero. Além disso, explicam as
sexualidades e os gêneros para além dos binarismos, com
duras críticas às perspectivas biologizantes, genéticas e
naturalizantes. Em boa medida, as pessoas que integram
essa cena parecem entender que as identidades são fluidas
e que novas identidades são e podem ser criadas, recriadas
e subvertidas permanentemente.

Em outro artigo, Colling (2021, p. 15) observa que “muitas pessoas e


coletivos que integram essa cena artivista das dissidências sexuais e de
gênero no Brasil da atualidade dizem não à pulsão de morte, ao fracasso e
à infelicidade. Nessa cena, desobedecer (OLIVEIRA, 2017), às vezes inclu-
sive com alegria, é um verbo muito mais apropriado do que fracassar”. Seria
essa movimentação algo similar a uma defesa arquetípica do espírito de
grupo? Uma defesa (ou autodefesa?) criativa e positiva que se recusa a
operar nos moldes cisheteropatriarcais que produzem imagens e símbolos
de violências?
As imagens produzidas por esses coletivos são bem diferentes das ima-
gens que habitam a mídia hegemônica criticada por Wittig (1980/1992, p. 3)
quando ela diz que “as imagens pornográficas, os filmes, as fotos de revistas,
os pôsteres publicitários que vemos nas paredes das cidades, constituem um
discurso, e este discurso cobre o nosso mundo com os seus signos e tem um
significado: as mulheres são dominadas”. Penso que podemos ir além, não
só as mulheres são dominadas pelos homens, como são necessariamente
cis, brancas, magras, femininas e heterossexuais. Qualquer mulher que se
afasta desse padrão ou homem que performe uma dita “feminilidade” seria
automaticamente estigmatizado/a e rechaçado/a como um estranho que
desafia as leis da “natureza”.
A historiadora Tania Swain (2001, p. 90), ao criticar os discursos e ima-
gens que constroem uma ideia de identidade fixa e binária, escreve sobre a
influência que a mídia provoca no processo de construção de uma identidade:

Arte da Resistência 101


O indivíduo, assim interpelado, aceita e incorpora a imagem
que lhe é oferecida e as opções que lhe são reservadas
como sua própria representação; torna-se assim a encar-
nação da representação social, auto-representação de uma
identidade que lhe é conferida.

Essa fala ressoa nas palavras proferidas anos depois por Fernando Lins,
que não só se recusou a incorporar as imagens que lhe foram oferecidas
como também criou novas imagens e universos para, a partir daí, conseguir
visualizar sua própria possibilidade de existência. Ao incorporar na sua obra
o discurso político de desobediência à norma – vivenciada no próprio corpo
ou através de relações afetivas – amplia e cria novas formas de subjetivação
que, através das imagens/símbolos, vão dialogar com a psique do espectador,
emancipando-o, pouco a pouco, desses complexos culturais que limitam a
atuação do Self e constroem obstáculos no processo de individuação dos
sujeitos.
A simples ação de observar uma obra de arte estática pode parecer
pouco revolucionária ou emancipatória para alguns, conferindo apenas ao
artista esse lugar de notoriedade. Contudo, dispor-se a entrar em contato
com imagens que não possuem narrativas típicas da sua bolha de “verdades”
e aconchegos; ou que reforcem um desejo íntimo que é tratado com descon-
fiança e culpa pelo ego, é o primeiro passo para “desinflar” um complexo
unilateral ativado na psique individual. Jacques Rancière (2019, p. 17), ao
escrever sobre o papel de espectador, supostamente “passivo”, diz muito
assertivamente que:

O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual.


Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que
vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em
outros tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com
os elementos do poema que tem diante de si. Participa da
performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por
exemplo, a energia vital que esta supostamente deve trans-
mitir para transformá-la em pura imagem e associar essa
pura imagem a uma história que leu ou sonhou, viveu ou
inventou. Assim, são ao mesmo tempo espectadores distan-
tes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto.

Considerações finais

Este artigo não se propõe a responder nenhuma pergunta feita ao longo


do texto, ao contrário, intenta instigar mais dúvidas e questionamentos.

102 Leandro Colling


Foram apenas pinceladas em temas vastos e complexos. O meu propósito
ao escrever este texto se desdobra em dois: o primeiro é trazer a Psicologia
Analítica para o debate contemporâneo, aproximando-a das questões que
envolvem a sexualidade e o gênero; o segundo é o de alavancar o papel que
a arte ocupa dentro da Psicologia (e de outras ciências biológicas), ainda
muito vista como uma terapia ocupacional ou como uma ferramenta de
expressão individual – que pouco ou nada dialoga com o social. Ao resgatar
o trabalho de C. G. Jung, Nise da Silveira e colaboradores/as, proponho que
a arte é um potente motor de transformação psíquica que, por meio de
símbolos, movimenta as engrenagens do inconsciente pessoal e cultural
dos/as espectadores/as e dos/as artistas; estimula a criatividade e amplia
a percepção humana.
Essas obras/imagens que evocam a subversão em cada traço e pince-
lada, acionando muito mais a alegria que a dor, servirão como combustíveis
para os corpos sensíveis o suficiente para se permitirem ser magnetizados
por essas obras. As palavras e os discursos, assim como as imagens, captu-
ram a psique individual e a direcionam a viver uma vida de acordo com a sua
narrativa. Por isso devemos nos perguntar constantemente: quais imagens
estão direcionando a minha percepção? As narrativas evocadas por elas
geram potência de vida ou potência de morte?

Arte da Resistência 103


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104 Leandro Colling


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Arte da Resistência 105


“Não vem me censurar”: (re)partihar
o comum da vida pelo sensível
da arte com Mc Amana53

Walisson Angélico de Araújo

Derivas introdutórias54

Nasci em Iguatu, cidade localizada no Centro-Sul do Ceará, que conta


com cerca de 103 mil habitantes (IBGE, 2021). Em 2016, ao ingressar no curso
de Jornalismo, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), me mudei para
Juazeiro do Norte, cidade que integra a Região Metropolitana do Cariri (RMC),
no Sul do Ceará, delimitada como um polo de “desenvolvimento socioeco-
nômico”55. Ao chegar na região, percebi que o meu modo de perceber o
território estava cristalizado pelas memórias e pelos arquivos institucionais
repassados na experiência da vida cotidiana.
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2011; 2013) argumenta que a repre-
sentação do Nordeste e do nordestino, que vem sendo desenhada e redese-
nhada pelas produções culturais, não se refere apenas sobre uma identidade
regional, mas também sobre uma identidade de gênero. Foi no encontro
com a arte de artistas das dissidências sexuais e de gênero do Cariri que
comecei a (des)aprender e a ampliar os roteiros cristalizados do meu próprio

53
Trabalho produzido com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES).
54
Este artigo com Marciano Souza/Mc Amana emergiu mediante reflexões para a composição do artigo para
a disciplina Imagem, história e direitos humanos, ministrada pelo professor Marcelo Ribeiro, no Programa
de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, da Universidade Federal da Bahia, no
semestre de 2021.2.
55
O território é composto por nove municípios, a saber: Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Jardim, Missão
Velha, Caririaçu, Farias Brito, Nova Olinda e Santana do Cariri Informações disponíveis no link: https://www.
cidades.ce.gov.br/regiao-metropolitana-do-cariri/. Acesso em: 25 out. 2021.

Arte da Resistência 107


repertório sobre a imagem da região e da identidade das pessoas desse
espaço geográfico. A roupa dos artistas, o modo de dançar, a música, a
forma de falar e de estar no cotidiano não eram comuns para mim. Em vista
disso, se o arquivo oficial hegemônico sustenta o poder e o imaginário ins-
tituinte (MBEMBE, 2002; TAYLOR, 2013), considero pensar com os arquivos
nessa possibilidade de entrever as brechas que não estão no nosso arquivo
comum institucional. Ou seja, assim como Albuquerque (2011) apresenta no
seu livro, venho percebendo com os artistas e as suas produções artísticas
e culturais brechas que inventam um cotidiano diferente daquele que os
discursos enunciam e dão visibilidade por meio de arquivos sobre o Cariri.
Nesta escrita, portanto, engajado com a drag56 cantora Mc Amana57,
interpretada por Marciano Souza, artista de Juazeiro do Norte, utilizamos,
como materialidade inicial que catalisa a discussão, a imagem divulgada
para anunciar o lançamento da música e do videoclipe Não vem me censu-
rar (2019)58, publicada no Instagram do estúdio Produtos do Morro Rec59,
gravadora que almeja potencializar o mercado musical do rap cearense60,
e no perfil do Instagram da artista61. Portanto, afetado pela imagem, me
questionei: a música e a performance em vídeo de Não vem me censurar, de
Mc Amana, e a sua história de vida, produzem tecnologias comunicacionais,
culturais e políticas de contestação por direitos básicos disputados pelo seu
corpo e suas subjetividades com a arte?
O arquivo do audiovisual de Mc Amana parece proporcionar uma rasura
do padrão a partir da performance da artista, ampliando os modos de
entrever a comunicação, a cultura e a própria limitação às identidades, em
que parece reivindicar por direitos por meio da estética da música cantada
e performada. Se pensarmos no arquivo de acordo com Marcelo Ribeiro
(2019), trata-se de em uma maneira anarquívica para pensar e fazer pensar
para tornar novamente possível a partilha da experiência, pois a política e os
direitos não estão dados. Sendo assim, articulamos os arquivos e o repertório
da artista para entrever as imagens [não oficiais] e que nos possibilitam,

56
A origem do termo drag é incerta, mas há indícios de que surgiu no século XIX, no teatro. Na tradução
do inglês, a palavra significa “arrastar”, representado geralmente no contexto do “se montar”, encenar um
desempenho da masculinidade, feminilidade ou outras formas de expressão de gênero.
57
Instagram da artista: https://www.instagram.com/amana.mc/. Acesso: 02 nov. 2021. Canal do Youtube:
https://www.youtube.com/channel/UCrwPg3l8sm5NTiepiEmrgVw. Acesso: 02 nov. 2021.
58
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y0Vqdc7Cu54. Acesso: 04 out. 2021.
59
Imagem de lançamento disponível em: https://www.instagram.com/p/BvT7hKXnger/. Acesso em: 04 out. 2021.
60
Em uma busca no Instagram do estúdio, a primeira publicação, de 18 de fevereiro de 2018, nos apresenta
um breve resumo sobre a gravadora: “Com o acúmulo de mais de uma década potencializando o mercado
musical do rap cearense, sob o comando de Erivan Produtos do Morro, o estúdio Produtos do Morro parte
para um novo desafio: em parceria com a OneRPM, a gravadora sai do anonimato para mostrar ao Brasil e o
mundo o que há de melhor na música autoral cearense. […]”. Link: https://www.instagram.com/p/BfHfrDXl-3s/.
Acesso em: 05 out. 2021.
61
Imagem de lançamento disponível também no perfil de Mc Amana: https://www.instagram.com/p/
BvVI5BGjzHk/. Acesso em: 31 out. 2021.

108 Leandro Colling


como objetivo principal, a partir da postagem no Instagram já citada, ver-
sentir-ouvir e saber realidades e discursos não contidos na superfície deste
arquivo, sugerindo assim disputas políticas com a arte por direitos básicos a
partir da resistência por meio das corporeidades e do repertório de Marciano
Souza|Mc Amana.
Costuro este texto como um gesto teórico-metodológico com o auxílio
das chaves analíticas da performance, com Diana Taylor (2013), e dos artivis-
mos das dissidências sexuais e de gênero, com Leandro Colling (2018). Como
proposta metodológica, articulamos às chaves analíticas a noção de afeto
(ROLNIK, 2016; GROSSBERG, 2010; COLLING, 2021) como engajamento
subjetivo, político e identitário nas práticas discursivas e culturais com o/a
artista. Lanço mão também de dois comentários do videoclipe publicado
na página do YouTube para auxiliar nos argumentos do texto. Realizei tam-
bém uma conversa com Marciano Souza, gravada no dia 26 de novembro
de 2021, em Juazeiro do Norte, para compor o material deste artigo. O meu
corpo em interação com Marciano Souza|Mc Amana e seus arquivos será
fio condutor desta escrita.
É importante ressaltar que, para esta escrita específica, os aprendiza-
dos incorporados pelas trocas nos encontros quinzenais com o Núcleo de
Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCus), desde
o início de 2021, pela linha de estudos em Artes, Gêneros e Sexualidades,
foram importantes para os argumentos deste artigo. Destaco, por exemplo,
quando Colling (2021) nos ensina sobre a escrita como uma experiência e um
exercício processual inacabado e, com a arte, é importante estarmos abertos
para o inesperado, pois ela não apenas nos serve para conhecermos novos
repertórios, como também auxilia e evoca problemáticas e questionamen-
tos que muitas vezes os conceitos e teorias já conhecidos não dão conta de
compreender. Ou seja, faz-se necessário deixar o campo falar.
O foco aqui não é a análise da letra da música ou do videoclipe, mas toda
a imagem tecida neste texto como uma performance em torno da fotografia
de lançamento da música, da música e do videoclipe Não vem me censurar,
em contexto com o repertório cultural de Marciano Souza e da sua drag
cantora, a Mc Amana. Por fim, neste trabalho, busco compreender os modos
como a arte pode operar como possibilidade de empoderamento, descoberta
de si e de (re)partilhar o sensível pela experiência estética e comunicacional
das dissidências sexuais e de gênero com Marciano Souza|Mc Amana. Ao
mesmo tempo em que é fundamental reconhecer a censura sutil que não
para de acontecer na tessitura considerada humana e social em transfor-
mação. Ao final do texto, no apêndice A, segue a letra completa da música
para leitura.

Arte da Resistência 109


A experiência do corpo que também sente

Conheci Marciano Souza em 2019, por meio de Ribamar Oliveira, um


amigo e pesquisador da área de Comunicação, Cultura Popular e Gênero
que falou comigo para editar o videoclipe da música Abraço, Beijo62, de Mc
Amana. Encontrei-me com o artista duas vezes naquele ano. Ao conhe-
cer o trabalho de Mc Amana, percebi que a drag cantora vinha com sabe-
res e discursos de uma disputa étnico-racial e em prol da comunidade
LGBTQIA+63. Como explica Stuart Hall (2003), não podemos ignorar que a
nossa “modernidade” está impregnada pela “[…] conquista, expropriação,
genocídio, escravidão […]” (p. 30), assim como por uma dependência colonial
que ainda está contaminando as culturas e martirizando vidas consideradas
como diferentes.
Para Marciano Souza, estar presente no campo da arte era um desejo
presente desde a sua infância, mas, devido à sua timidez, ele se reprimiu
e apenas com seus 20 anos de idade conseguiu romper limites para expe-
rienciar o campo artístico. Foi com as aulas de teatro no Núcleo de Estudos
e Experimentos Teatrais (NEET)64, no Sesc de Juazeiro do Norte – CE, que
Marciano começou a tecer um repertório na arte. Ele saía da sua jornada de
trabalho na Tecnolity, uma fábrica de sandálias da cidade, e de lá pegava
o ônibus para ir para as aulas de teatro. Depois de alguns anos passou a
integrar o Grupo Cícera de Experimento Cênico, criado em 2010, no qual
interpreta a personagem Chiquita, no espetáculo Ser famosa a qualquer
custo65. Há cerca de cinco anos o artista idealizou uma nova interpretação,
a sua drag cantora, a Mc Amana.
No dia 26 de novembro de 2021, marcamos, Marciano Souza e eu, para
conversar na Praça do Giradouro, em Juazeiro do Norte. Relembramos de
2019, quando nos conhecemos, e nos atualizamos sobre a vida de cada um
sentados em um banco lado a lado. Depois de alguns minutos, começamos
a conversar sobre a sua trajetória na arte. Aprendi com Marciano Souza
que o nome da drag, Mc Amana, vem de um mix de inspirações, o “Mc” vem
da inspiração no funk falado, do termo Mestre de Cerimônia, figura emble-
mática para o hip hop, o rap e o funk, o “A” é referência da primeira letra do
nome do Dj Alok e o “mana” é do vocabulário das gays que se chamam por
manas, algo próximo de parceira, irmã.

62
Videoclipe Abraço, beijo, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_qyXvrVNUSM&t=2s. Acesso
em: 25 dez. 2021.
63
LGBTQIA+ é a sigla utilizada para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros, queer,
intersexuais, assexuais. O sinal “+” procura alcançar a reverberação das dissidências sexuais e de gênero
nos contextos específicos.
64
Página do grupo NEET no Facebook: https://www.facebook.com/neetsesc/. Acesso em: 23 dez. 2021.
65
Link do canal no YouTube: https://www.youtube.com/c/PANDORABURTON/videos. Acesso em: 22 dez. 2021.

110 Leandro Colling


A minha percepção sobre o Cariri estava cristalizada pelas memórias
e pelos arquivos apreendidos entre os fluxos, da escola à “mídia”, na vida,
pelo corpo que incorporou imagens e discursos estáticos sobre o território
e a própria identidade do nordestino sem viver a experiência. As lentes
institucionais me apresentaram uma imagem estática sobre os costumes
culturais da região: um lugar de fé, cultura popular e de tradição, ainda
com suas matrizes culturais com forte distinção entre o rural e o urbano;
um roteiro turístico estabilizado sobre o local66.
No percurso, aprendi com Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2011), no
livro A invenção do Nordeste e outras artes, que a imagem estigmatizada
formulada sobre o Nordeste e o nordestino são invenções das relações de
poder e do saber. Um arquivo de imagens e enunciados instaurou “verda-
des”, formas de ver e dizer sobre a região, conformando os comportamentos
e as atitudes sobre o seu povo, inclusive articulando os modos de olhar e
falar da mídia sobre a identidade, o gênero, a cultura e a arte do território.
Para Albuquerque Jr. (2011, p. 35), “[…] o espaço regional é produto de uma
rede de relações entre agentes que se reproduzem e agem com dimensões
espaciais diferentes” que emergem das práticas. Essas, inclusive, auxiliam
a ver os fragmentos que não dialogam desde sempre com o todo, pois essa
totalidade é uma invenção, “[…] no qual o heterogêneo e o descontínuo apa-
recem como homogêneo e contínuo […].” (ALBUQUERQUE JR., 2011, p. 35).
Embora isso pareça delimitar e homogeneizar os territórios, os corpos
e a cultura pelos arquivos e imagens hegemônicos, Albuquerque Jr. (2013,
p. 23), ao pensar os discursos que definiram um ser nordestino, articulado
com Michel Foucault e Michel de Certeau, nos ensina que “[…] existe uma
brecha entre o dizer e o fazer, que inventa um cotidiano diferenciado daquele
que os discursos enunciam”. Portanto, é preciso multiplicar os arquivos e as
imagens sobre o nordestino e sobre o Nordeste.
Pela arte de Marciano Souza|Mc Amana eu estava (des)aprendendo os
modos de ver-sentir-ouvir com a arte, mas precisei de tempo para enten-
der que, na minha trajetória pelo Cariri, sua produção tinha me afetado,
transformado o meu modo de saber sobre a cultura do local, como tam-
bém de conhecer a possibilidade das disputas pelas corporeidades com a
arte. Apenas em 2021 observei que algo tinha me acontecido no encontro
com o/a artista: uma experiência. Como nos ensina Jorge Larrosa Bondía
(2002), somos como uma superfície sensível e a experiência seria o que

66
A “Rota Cariri”, lançada em 2020, iniciativa da Secretaria do Turismo do Ceará (Setur), em parceria com
a Secretaria da Cultura do Estado (Secult) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae), nos apresenta discursos e imagens que são institucionalmente articulados e repassados sobre o
turismo do território. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2020/03/03/rota-cariri-e-lancada-e-sera-di-
vulgada-no-mercado-nacional/. Acesso em: 10 dez. 2021.

Arte da Resistência 111


nos acontece, o que nos passa, o que de alguma forma nos toca, deixando
rastros e efeitos.
Aqui é uma boa brecha para explicar os afetos, algo que nos marca
de algum modo. Como escreve Suely Rolnik (2016, p. 49) ao falar sobre as
três linhas abstratas em que o desejo foi traçando67, a autora nos explica
que a primeira, a linha dos afetos, “[…] faz um traçado contínuo e ilimitado,
que emerge da atração e da repulsa dos corpos, em seu poder de afetar
e serem afetados”. Leandro Colling (2021, p. 23) nos explica, baseado nos
estudos do filósofo holandês Baruch Spinoza, que os afetos são subdivi-
didos em dois, os de ação e os primários. Esses últimos estariam divididos
entre afetos alegres e tristes, já os primeiros seriam aqueles “[…] capazes
de aumentar a potência de agir dos sujeitos”. Já para o autor dos estudos
culturais Lawrence Grossberg (2010), a cultura nos permite ter acesso à
textura da vida, sendo que o afeto está colocado para ele enquanto enga-
jamento subjetivo, político e identitário:

É a multiplicidade de maneiras pelas quais as pessoas estão


ancoradas em suas vidas, as maneiras como elas pertencem
a certos lugares e ao longo de certas trajetórias. É a produ-
ção do fato de identificação. Opera por meio de múltiplos
regimes e formações, produzindo muitas modalidades e
organizações diferentes. (GROSSBERG, 2010, p. 194 -195,
tradução nossa)

Portanto, “as afecções nos projetam a um estado posterior através do


qual a potência de ação dos nossos corpos é aumentada ou diminuída, aju-
dada ou reduzida.” (COLLING, 2021, p. 24). Sendo assim, precisei sustentar
o tempo e refletir. À vista disso, retifiquei os modos de ver-sentir-ouvir e
ampliei as minhas lentes, pois enquanto sujeito contaminado pelos vieses
modernos, aprendi a querer conformar o mundo segundo o saber, o poder
e a vontade. Entretanto, como nos explica Bondía (2002), a experiência cria
a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque e requer um gesto
de interrupção.
Pensando nessa questão da interrupção e do tempo, aproximo do
diálogo o que Jorge Cardoso Filho e Juliana Freire Gutmann (2019, p. 105)

67
Para explicar além da linha dos afetos, pontuo aqui as duas outras linhas do desejo explicadas por Suely
Rolnik (2016). A segunda linha seria a da simulação e ela faz um duplo traçado inconsciente e ilimitado:
“um primeiro, que vai da invisível e inconsciente produção de afetos, para a visível e consciente composição
de territórios. É o percurso do movimento de territorialização.” e um “[…] outro traçado, inverso: ele vem
do visível, consciente, dos territórios, para o invisível, inconsciente, dos afetos escapando. É o percurso do
movimento de desterritorialização.” (p. 50). Já a terceira linha seria a linha finita, visível e consciente, funcio-
nando como organização dos territórios. “[A linha três] […] cria roteiros de circulação no mundo: diretrizes
de operacionalização para a consciência pilotar os afetos.” (ROLNIK, 2016, p. 51).

112 Leandro Colling


apresentam sobre a expressão conceitual experiência estética, visto que a
força do termo “[…] reside na dimensão relacional e articulada aos aspectos
simbólicos, políticos e culturais, em suas respectivas materialidades”. O
estético não apenas como acontecimento das linguagens, já que no campo
da comunicação podemos discutir “[…] a partir de perspectivas ligadas às
suas singularidades e borramentos, às suas capacidades de enfrentamento e
desestabilização das convencionalidades […]” (CARDOSO FILHO; GUTMANN,
2019, p. 106). A performance opera como uma forma-força útil para o campo
da comunicação e da cultura, “[…] isto é, a desestabilização das performan-
ces sociais convencionais podem indicar o acontecimento de experiência
estética” (CARDOSO FILHO; GUTMANN, 2019, p. 106).
Embora a performance aqui opere como uma forma-força, estamos
dialogando também com o que nos ensina Diana Taylor (2013, p. 44), através
da qual olhamos para a performance não como um simples objeto de análise,
mas como uma lente metodológica para a operação analítica, um modo de
conhecer, “como termo que conota, simultaneamente, um processo, uma prá-
xis, uma episteme, um modo de transmissão, uma realização e um modo de
intervir no mundo […]”. Assim sendo, pretendo costurar um campo de força
pela experiência [estética], pelo sensível e pelos afetos na área da comu-
nicação com Marciano Souza|Mc Amana, operando e construindo o texto
enquanto uma performance para conhecer e ampliar imagens, discursos e
saberes culturais em diálogo com o repertório do/a artista em articulação
com o audiovisual de Não vem me censurar.
Para Marciano Souza, Não vem me censurar é a música de Mc Amana
com mais qualidade, tanto pela produção, a própria letra e a própria rima,
atualmente com 998 visualizações, 92 likes, zero dislikes e 25 comentários68.
O videoclipe foi gravado em um estúdio em Fortaleza, no Centro Dragão do
Mar de Arte e de Cultura69. Mc Amana começa a performance passando
batom na metade dos seus lábios e com óculos de sol no rosto, um lado
de sua face está com barba, enquanto o outro está sem. Logo ao iniciar a
música, retira os óculos e começa a rimar o seu funk falado e rebolar ao som
dos beats da música. Com tranças de corda vermelhas e pretas em seus
cabelos, está vestida em um body preto colado ao corpo, calça cinza, pulseira
brilhante e brinco de pena na orelha esquerda. A câmera se movimenta de
acordo com a artista, variando entre planos mais fechados e movimentos
que parecem dançar junto com a drag cantora. Nos últimos segundos do
videoclipe, Mc Amana coloca os óculos de sol no rosto novamente e finaliza
manuseando as suas tranças e fazendo uma pose.

68
Informações checadas em 05 de setembro de 2022.
Link para saber mais sobre o complexo cultural localizado em Fortaleza, capital do Ceará: http://www.
69

dragaodomar.org.br. Acesso em: 12 jan. 2022.

Arte da Resistência 113


“A arte me salvou”

Emerjo por um campo sensível que retroalimenta o mundo das imagens,


o que me faz interagir com a experiência que me guia a pensar na impor-
tância dos afetos. Para o filósofo Emanuele Coccia (2010. p. 10), vivemos
porque podemos ver, ouvir, sentir e degustar o mundo que nos envolve. A
vida sensível “[…] pode ser definida como uma faculdade particular de se
relacionar com as imagens: ela é a vida que as próprias imagens esculpiram
e tornaram possível.” O sensível é o ser das imagens que define as formas,
os limites, as realidades, as materializações do que nos envolve pela expe-
riência e intensidade, não se resume meramente à questão psíquica e nem
mesmo à própria existência do mundo e das coisas (COCCIA, 2010). “A pala-
vra, a audição, a visão, todas as nossas experiências são uma operação de
multiplicação do real, uma vez que utilizam imagens” (COCCIA, 2010, p. 34).
Imagem, como nos explica Rancière (2012, p. 92), se constitui como
“[...] um jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, o visível e
a palavra, o dito e o não dito”. Apesar disso, é preciso um devir-sensível,
pois, “[…] se o sensível não coincide com o real, é também porque o real e o
mundo, enquanto tal, não são por si mesmos sensíveis, eles precisam tor-
nar-se sensíveis” (COCCIA, 2010, p. 17). Para isso, me importa trazer o que
apresenta Jacques Rancière (2009, p. 15) como a partilha do sensível, que
dá a forma à comunidade, “[…] que revela, ao mesmo tempo, a existência de
um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”.
Isso posto, dialogo novamente com Albuquerque Jr. (2011, p. 34) sobre o
Nordeste e a identidade do nordestino, pois o autor expõe que as múltiplas
formas de linguagem, como a música, a literatura, a produção acadêmica, o
cinema, a pintura, o teatro “[…] são como ações, práticas inseparáveis de uma
instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas instituem
reais”. Portanto, este texto, enquanto um campo de força em performance, é
também uma possibilidade de abertura para costurar outras imagens reais
sobre o território, direitos e política com a arte e o repertório de Marciano
Souza e a sua drag articulado com o audiovisual de Não vem me censurar.
Lembro de quando observei a imagem de lançamento da música. A
primeira coisa na qual pensei foi sobre a importância em ver que Mc Amana
tinha lançado uma música em plataformas como Spotify, Apple Music,
Deezer, Google Play e One Rpm, tendo o selo musical dos produtos do Morro
Rec, que também auxiliou na gravação e edição do seu videoclipe. Então
considerei que seria profícuo perceber o arquivo enlaçado ao repertório de
Marciano Souza|Mc Amana para entrever o que o arquivo não nos permite
ver-sentir-ouvir e saber.
Arquivo vem do grego arkhé, termo que se refere a um espaço arqui-
tetônico, um edifício ou um lugar onde se guardam documentos/registros,

114 Leandro Colling


significa também o primeiro lugar, o governo; sustenta também o poder e
o imaginário instituinte (MBEMBE, 2002; TAYLOR, 2013). Como nos ensina
o filósofo Achille Mbembe (2002, p. 19, tradução nossa), “[…] nem todos
os documentos se destinam a ser arquivos. Em qualquer sistema cultural,
apenas alguns documentos atendem aos critérios de ʽarquivabilidadeʼ”.
Para Taylor (2013), os arquivos são os materiais duradouros (fotografias,
acessórios, roupas, vídeos etc.), enquanto o repertório se faz pelas práticas
incorporadas (fala, dança, movimento etc.). A autora destaca a interação
entre ambos para acessarmos os processos de transculturação. Desse modo,
aqui, o enlace entre arquivo e repertório funciona como forma de entrever
o que Marcelo Ribeiro (2019) propõe como uma abertura anarquívica, para
pensar e fazer pensar a política e os direitos a partir das sensibilidades e
que não estão dados/as.
Contudo, aqui não me detenho à Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), elaborada entre 1947 e 1948, visto que, segundo Ribeiro
(2019, p. 26-27), “[a] projeção planetária da “consciência da humanidade”,
que conduz à imaginação de uma comunidade mundial e da humanidade,
constitui um processo fundamentalmente inventivo e, portanto, anarquívico”,
isto é, “[…] perturbador de todo arquivo do mal e do comum”. Sendo assim,
proponho que os direitos que são disputados por Marciano, ao interpretar
Mc Amana, são direitos não apenas das instituições, mas da sociedade,
pelo sensível e pelo afeto, no cotidiano, para despertar na humanidade a
possibilidade de sermos éticos sobre o que os outros passam e que não
vemos nos acontecer. O repertório pode auxiliar o arquivo, ampliando as
produções de saberes e discursos sobre os direitos, a cultura e as poten-
cialidades do corpo.
Assim, acredito na produção de Marciano Souza|Mc Amana como potên-
cia do artivismo, que, como elabora Raposo (2015, p. 4), seria a conexão entre
arte e política que “[…] estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato
de resistência e subversão”. Uma forma de reivindicação política pela arte.
Como aborda no decorrer da nossa conversa, Marciano Souza lembra que
Ney Matogrosso foi uma das referências iniciais para o seu figurino e “mon-
tação” enquanto drag, assim como com o tempo outros artistas foram emer-
gindo na cena mainstream e se tornando parte das suas inspirações para a
música, como Pablo Vittar, Liniker, Johny Hooker, Linn da Quebrada e Gloria
Groove. Ao mesmo tempo, sua maior inspiração é a parceira do Grupo Cícera,
Wiarlley Barros, mais conhecida pelo nome artístico de Wiarlley Spears70.
Essa produção artística feita por Marciano Souza enquanto Mc Amana,
assim como pelos artistas que são suas referências, fazem parte do que nos

Canal do YouTube para conhecer o/a artista: https://www.youtube.com/user/britneyzac/videos. Acesso


70

em: 12 jan. 2022.

Arte da Resistência 115


ensina Leandro Colling (2018, p. 158) sobre os artivismos das dissidências
sexuais e de gênero, pois “[…] criam e entendem as suas manifestações
artísticas como formas distintas de fazer política […]”. Os artivismos das
dissidências sexuais e de gênero não são uma operação para a categori-
zação, mas um gesto analítico. Como Marciano Souza enfatizou na nossa
conversa, a infância foi um momento de repressão e timidez:

[Escutava] muito “viadinho”, risadinha... aí eu me privei


muito disso, eu perdi muito tempo da minha vida, porque
eu ficava só em casa, da escola para casa. […] o máximo que
eu pudesse disfarçar que eu era afeminado, eu disfarçava,
porque você não era tão visto quando de alguma forma ten-
tava se disfarçar (entrevista realizada com Marciano Souza
em 26 de novembro de 2021).

Então, eu relembro como essa experiência de alguma forma me afe-


tara, pois eu relembro da infância, quando também me foi postulado, pelas
instituições de poder, assim como pela própria família, a necessidade de
não emanar corporeidades afeminadas. Dessa forma, posso me aproximar
do que Colling, Arruda e Nonato (2019, p. 7), em interface com os estudos
de Judith Butler, apontam ao escrever sobre a performatividade de gênero,
pois “[…] os corpos são efeitos de uma dinâmica de poder, […] a construção
do sexo também opera como uma norma cultural que governa a materiali-
dade dos corpos […]” e “[…] a heteronormatividade possibilita a existência
de determinados corpos como humanizados e outros corpos como abjetos
[…]”. Os três autores defendem que existe uma contribuição das afeminadas
para os estudos da performatividade de gênero, o que eles articulam por
meio do neologismo da perfechatividade de gênero.
Por isso, digo que Mc Amana não apenas aprende, como também ensina
com a arte, sobre a potência política para a disputa por direitos e a libertação
de certas repressões e censuras, assim como também o deslocamento dos
gêneros masculino e/ou feminino para fora de seus lugares dominantes.
Atualmente, com 30 anos, o artista recordou que a sua trajetória com a arte
foi importante para curar as feridas do passado, força motriz para a sua
capacidade de “[…] encarar o público, de encarar as pessoas e de se encarar
também e de se assumir”. Sendo assim, nesse caso, pondero que, apesar da
experiência da arte de Marciano Souza com Mc Amana ser sobre proteção
diante das opressões sofridas desde a infância, é também sobre coragem e
enfrentamento para resistir e disputar por questões políticas e éticas para
as dissidências sexuais e de gênero e das questões étnico-raciais.
Nesse ponto, lembro sobre a imagem instituída no arquivo hegemô-
nico sobre o Nordeste e a identidade de gênero do nordestino, sendo que o

116 Leandro Colling


masculino e o feminino são distribuídos de formas específicas nessas produ-
ções. Segundo Albuquerque Jr. (2013, p. 150), o nordestino “[...] é inventado
como um tipo regional, como uma figura que seria capaz de se contrapor às
transformações históricas em curso, desde o começo do século, que eram
vistas como feminizadoras da sociedade e que levavam a região ao declínio”.
Retornando com Colling (2018), as emergências dos artivismos das
dissidências sexuais e de gênero são produções que se disseminam pelas
redes sociais digitais, não ocupam apenas os espaços fechados e museus,
mas ocupam as ruas, espaços públicos etc. “Assim, esses artivismos emer-
gentes no país nos últimos anos trabalham no sentido de liberar o fluxo
desejante […]” (COLLING, 2018, p. 165). Portanto, é preciso tecer artimanhas
para entrever as brechas não enunciadas pelos arquivos e arrisco que a
sobreposição com o repertório seja uma chave possível para essa expan-
são da própria ética e para reconhecer direitos básicos reprimidos desde a
infância e poder (re)partilhar o sensível pelos afetos.
Como afirma Bondía (2002), não podemos ignorar que a experiência
funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. Ao acompa-
nhar Marciano Souza e a produção de sua drag, percebo que a sua história de
vida e o audiovisual de Não vem me censurar, entre a performance e a música,
me permitem desaprender sobre roteiros homogêneos da comunicação e
da cultura e também sobre os modos de ser e estar no mundo, me afetando
com partilhas sensíveis que me possibilitam aprender sobre disputas por
políticas de vida que reivindicam, pelo corpo e a arte, por direitos contra a
censura da liberdade das subjetividades dissidentes da norma.
Como disse Marciano Souza, sentado em um banco olhando diretamente
para os meus olhos: “A arte me salvou”. Logo em seguida, continuou falando
que persistir “[…] na arte é um ato de resistência, principalmente a gente aqui
nessa região, que não é valorizado […]”. Com essa fala, destaco algo presente
nas falas do artista sobre a dificuldade de sua produção na música como Mc
Amana, pois há a dificuldade de lucrar com a arte, a sua drag cantora nunca
ganhou pelas suas produções e/ou apresentações. Atualmente, é quase
impossível produzir suas músicas, pois iniciou a vender roupas por meio de
sua loja digital disponível no Instagram para obter uma renda econômica71,
o que demanda parte do seu dia não apenas para as vendas, como também
para as entregas.

Link da loja de roupas de Marciano Souza no Instagram: https://www.instagram.com/roupas_espo/. Acesso


71

em: 14 ago. 2022.

Arte da Resistência 117


Não vem me censurar

É comum pensar que a Mc Amana é rapper, mas, no encontro com


Marciano Souza, o artista me explicou que, embora goste de escutar rap,
quando vai procurar as suas referências gosta de buscar uns beats72 na
internet com uma “[…] pegada de funk, brega funk, o funk mais falado […]”.
E ainda complementou que as pessoas “se confundem muito com o rap, pelo
rap ser aquela coisa mais falada”.
Como escreve Christine Greiner (2005, p. 60), “[…] o corpo vivo se cons-
trói como uma espécie de modelo semântico e este modelo emerge sempre
da ação. Ele não a precede”. As formulações são tornadas conscientes pelo
corpo no fluxo da vida cotidiana, através de ações. Ou seja, “[…] é da expe-
riência que emerge a conceituação e não o contrário.” (GREINER, 2005, p.
123). E como ensina Cardoso Filho (2020, p. 306), sobre as sensibilidades
contemporâneas, é importante não ignorarmos a interação contínua entre
materialidades corpóreas e o ambiente, pois “[…] suas materialidades são,
portanto, determinantes, apropriam-se e estão emaranhadas umas nas
outras”. O nosso corpo importa para o processo da experiência. Com Mc
Amana pude perceber a potência das suas corporeidades para compreen-
der uma discussão sobre direitos básicos, como o direito à voz e o direito
de resistir. Como me disse Marciano Souza, é uma forma de disputar para
“[…] ter direito à voz, falar e ser escutado também, buscar a ocupação de
espaços”. É uma disputa pela arte que ensina a romper com a própria repres-
são que nos censura nos modos de ser, existir e também de saber sobre si.
Para o artista, “[…] a Mc Amana é mais empoderada que o Marciano.
Quando eu estou de Mc Amana […] eu enfrento mais. Eu acho que a Mc
Amana serve como um escudo para mim, entendeu? Para eu poder falar
mais, para eu poder me impor mais […]”, disse. É realmente uma afirmação
e disputa por direitos. Como canta a artista em Não vem me censurar: “[…]
agora eu vou dizer / preste muita atenção / vá cuidar da sua vida / eu tô
passando a visão […]”. E complementa afirmando que “você não tem direito,
nem moral para me julgar […]” (MC AMANA, 2019).
Poderíamos aproximar então Segato (2006) e Albuquerque Jr. (2013)
para informar que existe o que não está posto como realizado no horizonte
da cultura e isso, de alguma forma, se infiltra através de brechas, podendo
apresentar outras realidades, outros discursos e saberes. “A ética, em todas
essas acepções, é que nos permite estranhar nosso próprio mundo, qualquer
que seja, e revisar a moral que nos orienta e a lei que nos limita” (SEGATO,
2006, p. 227). Segato (2006, p. 211) argumenta que a cultura é constituída

72
De forma resumida e breve são as batidas, o ritmo da música.

118 Leandro Colling


por costumes e enfatiza que devemos perceber “[…] a diferença e distância
entre lei e moral, entre sociedade nacional e comunidades morais”. A autora
explica que a “[…] ideia de uma sociedade nacional como uma unidade de
base étnica e com as características de uma comunidade moral prescreve
continuidades entre a lei e o costume do grupo dominante para todos os
habitantes de seu território […]” (SEGATO, 2006, p. 211-212).
Segato (2006, p. 223) apresenta que, dentro de uma mesma comuni-
dade moral, pode existir “[…] mais de uma sensibilidade com relação à ética
[…]” pois, enquanto a moral e a lei são estáveis, “[…] a ética é inquieta” e se
encontra em constante movimento. Portanto, é pela transformação das sen-
sibilidades que os direitos humanos percorrem os territórios e se apropriam
de uma época. Então, é pelo trabalho reflexivo de identificação de padrões
e normas pelo qual a ética atua na direção de retificação e expansão dos
direitos, podendo articular um redirecionamento da vida (SEGATO, 2006).
Pelos seus movimentos corporais, ao cantar, dançar e existir, Mc Amana
parece apresentar a força de empoderamento que conseguiu com o tempo
na arte, constante disputa para não ser censurada e reprimida novamente,
embora, como pondera, sentiu a sutil censura no YouTube: “[V]i isso no
meu vídeo. E eu senti [pois não teve tanta visualização]. Mas pelo menos os
comentários que têm são comentários positivos”, expressou Marciano Souza.
Destaco dois comentários disponíveis no YouTube e que representam o que
foi dito anteriormente. Em um deles, Manno G. Oficial diz: “que trabalho lindo,
feito com muito amor e consciência, parabéns Amana. As lutas não param”.
Em outro, José Wilson Soares reforça: “trabalho incrível, quebrando tabus”.
Para o artista, cantar a música é uma mensagem sobre nunca apontar o
dedo para o outro, pois, como argumenta Marciano Souza, “quando eu canto
[…] a parte, ‘quem tem teto de vidro, pedra não pode jogarʼ, é […] aquele
ditado: ‘quando você aponta um dedo para mim, tem três apontando para
vocêʼ”. E logo complementou: “[…] antes de você julgar as pessoas você tem
que se olhar”. Em seguida, continuou falando sobre a mensagem que quis
passar com a produção:

[…] [Quando eu estava escrevendo Não vem me censurar e


eu fui pensar na coisa do clipe, […] que é um lado barbado
e outro com batom, foi isso que eu pensei, essa coisa de
beijar homem, beijar mulher, que a gente não deve julgar
as pessoas, não deve se julgar e acho que a gente não deve
se limitar a viver só uma coisa. A gente tem que viver as
experiências. Eu sou aberto a experiências, e são as minhas
experiências e as experiências das pessoas que eu escuto
que coloco nas minhas letras de música como pessoa peri-
férica, como negro e como gay (Entrevista realizada com
Marciano Souza em 26 de novembro de 2021).

Arte da Resistência 119


Portanto, evocar a voz de Marciano Souza|Mc Amana como parte de
seu repertório para entrevermos além do arquivo do videoclipe e da própria
letra da música, é também uma forma de enfatizar o ato político do contexto
da vida do/a artista, que também vem se desconstruindo pela experiência
com a arte como política, como afirmou: “eu não vou mais me censurar e
também não vou permitir que as pessoas me censurem”, finalizou. Como diz
Ribeiro (2019, p. 27), “o mundo comum emerge, necessariamente, por meio
de um trabalho de montagem”. “A história que o arquivo da humanidade
torna possível deve permanecer aberta, e é nessa abertura anarquívica que
se encontra o impulso do movimento de expansão dos direitos humanos.”
(RIBEIRO, 2019, p. 31).

Considerações finais

Percebemos pelo arquivo, em enlace com o repertório, a ação do/a


artista como produção de um campo de força imagético que pode nos pos-
sibilitar (des)aprender as lentes cristalizadas para operar no comum como
forma de disputar e conquistar direitos básicos que permitam a liberta-
ção das subjetividades dissidentes reprimidas. Mc Amana ensinou sobre
coragem para enfrentar as opressões. Contra os próprios medos, produziu
resistência e empoderamento para não se calar e não permitir a censura,
o que auxiliou Marciano Souza a encarar a sua própria timidez encarnada
pelos traumas das suas experiências vivenciadas desde a infância.
Com o repertório de Mc Amana, percebe-se também a dimensão da
produção de tecnologias comunicacionais, culturais e políticas disputadas
pelo seu corpo e suas subjetividades com a arte, pela relação do sensível e
dos afetos como incentivo à resistência e à contestação por direitos básicos
para si e para os coletivos étnico-raciais e LGBTQIA+. Não apenas pela ins-
titucionalização e reconhecimento desses direitos, mas por uma operação
prévia de alcance até o comum através do contato com as partilhas sensíveis
da arte, na possibilidade ética de reconhecer a “diferença” do “outro” como
possibilidade de entender que os nossos costumes morais falam muito mais
sobre censura e repressão das subjetividades postas à parte deste comum
determinado, do que sobre uma (re)partilha do comum da vida baseado no
bem-estar das pessoas.

120 Leandro Colling


Referências

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Arte da Resistência 121


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122 Leandro Colling


Apêndice A - Letra da música “Não vem me censurar” (AMANA, 2019)

Fico com quem quero


Eu saio com quem quiser
Eu beijo homem e beijo mulher
Tenho direito de beijar quem me quiser Eu tenho piercings da cabeça aos pés
Curto os meus raps
Tenho tatuagens da cabeça aos pés Batalhas de rimas
Falo minhas gírias tá ligado, já é Não frequento a igreja e creio no cara de
Visto o quero, não devo satisfação cima
Dane-se, foda-se esse tal padrão
Creio no quero não devo satisfação
Agora vou dizer, preste muita atenção Exijo que respeitem a minha religião
Vá cuidar da sua vida eu tou passando a Agora vou dizer, preste muita atenção
visão Vá cuidar da sua vida eu tou passando a
visão
Me visto de homem
Me visto de mulher Não vem me censurar
Tenho direito de vestir o que eu quiser Não vem me censurar
Você não tem direito
Não vem me censurar Nem moral pra me julgar
Não vem me censurar
Você não tem direito Não vem me censurar
Nem moral pra me julgar Não vem me censurar
Quem tem teto de vidro
Não vem me censurar Pedra não pode jogar
Não vem me censurar
Quem tem teto de vidro Não vem me censurar
Pedra não pode jogar Não vem me censurar
Você não tem direito
Não vem me censurar Nem moral pra me julgar
Não vem me censurar
Você não tem direito Não vem me censurar
Nem moral pra me julgar
Não vem me censurar
Não vem me censurar Quem tem teto de vidro
Não vem me censurar Dedo não pode apontar
Quem tem teto de vidro
Dedo não pode apontar
Fico com quem quero
Eu saio com quem quiser
Eu beijo homem e beijo mulher
Tenho direito de beijar quem eu quiser

Arte da Resistência 123


Cinema do Cariri cearense:
beatas, multidões e travestis
nas encruzilhadas do tempo

Samuel Macêdo do Nascimento

A minha dissertação, intitulada Entre beatas, multidões e travestis: uma


cartografia da abjeção do cinema do Cariri Cearense, defendida em 2016, na
Universidade Federal da Bahia, foi atravessada pelas experiências e aconte-
cimentos que engendram o encontro entre o sul do estado do Ceará (Cariri)
e a cidade de Salvador na Bahia. Os quatro filmes analisados percorrem as
décadas de 1970, 1980 e anos 2000. O território e o tempo tornaram-se os
fios condutores para compreendermos um imenso e rizomático arquivo de
imagens (DIDI-HUBERMAN, 2012).
É nesse período que o Brasil e o mundo passaram por transformações
profundas: ditadura civil-militar, redemocratização, Cinema da Retomada,
avanço das tecnologias digitais e outros processos que impactam o futuro das
imagens. Através dessas obras do Cariri, encontramos imaginários disruptivos
que nos mostram outros testemunhos (GUEDES, 2021). Os corpos que sur-
gem nos filmes, considerados não importantes para a norma, interpelam os
fantasmas da violência e do controle coloniais. “O corpo só ganha significado
no discurso e no contexto das relações de poder” (BUTLER, 2003, p. 137).
Este texto é uma montagem a partir de filmes que se conectam com as
minhas experiências e travessias entre diferentes estados do Nordeste. Se
não há imagem sem imaginação, compreendo que esses filmes inventam
e reinventam a região (DIDI-HUBERMAN, 2012). A partir desse cinema, às
vezes periférico, é possível repensar o fazer fílmico e as transformações do
cinema como uma tecnologia de controle e subversão. Aproximamos ima-
gens da “mulher” subalterna do sertão com imagens de multidões moventes

Arte da Resistência 125


do Nordeste e as imagens das travestis nos espaços sagrados das romarias
do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte.
Parte desses filmes foram realizados durante o período da ditadura civil-
-militar. Os demais, mais contemporâneos, seguem interpelando os arranjos
políticos e oligárquicos, herdeiros do sistema colonial. As feridas profundas
causadas pelas tecnologias de controle e violência, sejam nas capitais ou
nos interiores do Brasil, ainda ardem e atravessam as desigualdades e as
potências do interior do Ceará. O barro, usado para criar o primeiro homem,
é a carne da criação apropriada por uma mulher nordestina que refaz um
mundo outro. Os personagens do nosso recorte fílmico parecem ter nascido
das mãos de “mulher” e ousam inventar desejos de futuro.

Dona Ciça e o cinema do Cariri

O documentário Dona Ciça do Barro Cru (1979, de Jefferson de


Albuquerque Jr.) conta a história de Dona Ciça, uma artesã e artista impor-
tante da região do Cariri. Desde a primeira sequência ouvimos os relatos
sobre o seu trabalho com o barro. As cenas do cotidiano vão sendo con-
duzidas pelas falas e pelas esculturas de barro criadas por Dona Ciça. A
dinâmica da cidade vai contextualizando a cultura local e o tempo, estamos
no fim da década de setenta e as imagens carregam a atmosfera precária
do cinema independente.
Jefferson de Albuquerque Júnior acabou se tornando um amigo, ele
inclusive estudou na Faculdade de Arquitetura da UFBA nos anos de 1960.
Jefferson e eu nos encontramos em Juazeiro do Norte (Ceará) e também
em Salvador (Bahia), e essas reuniões acabaram me fazendo compreender,
ainda mais, a importância do seu filme. O documentário Dona Ciça do Barro
Cru acabou se tornando uma promessa para o futuro, uma vez que o filme é
um desdobramento das experiências do próprio Jefferson de Albuquerque,
que viveu em Salvador antes mesmo do filme ser realizado.
A montagem do filme segue contrapondo o cotidiano, os grupos cul-
turais da cidade e o trabalho de artesanato criado por Dona Ciça. A artesã
recria seu mundo de barro constantemente. A banda de pífano, que toca
música no horizonte, vira barro após um corte brusco na tela. Os artifícios
cinematográficos e estéticos trazem a influência dos cinemas de vanguarda,
associados aos movimentos artísticos mais subversivos. Alguns detalhes
do artesanato de Dona Ciça inclusive nos lembram a arte da xilogravura da
Literatura de Cordel da região.
As paisagens trazem a dinâmica das feiras locais, a arquitetura das
casas, os velórios de crianças, as bandas cabaçais e de pífano nas ruas.

126 Leandro Colling


Sentada na calçada de casa, com as mãos bem cuidadas carregando anéis e
pulseiras, Dona Ciça vai dando forma ao barro cru no movimento de criação.
Ela explica como aprendeu a fazer artesanato enquanto as cenas da vida
banal se mesclam com as suas criações. As mãos firmes e o seu vestido nos
dão pistas da sua personalidade: uma mulher do seu tempo. Dona Ciça com-
preende a sua condição social e deseja ter mais dinheiro para materializar os
seus sonhos. A lógica capitalista, ocidental e colonial são temas recorrentes
nos filmes daquele período, “muitos dos filmes do Terceiro Mundo conduzem
a uma luta em duas frentes: estética e política, combinando a historiografia
revisionista com a inovação formal” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 359).
A produção cinematográfica audiovisual da cidade de Juazeiro do Norte
pode ser dividida em quatro fases principais (FERNANDES, 2016). A primeira
inicia-se a partir da década de 1920 e vai até meados dos anos de 1950.
Nessa fase, a produção audiovisual traz a figura do Padre Cícero como tema
principal dos filmes. O filme O Joaseiro do Padre Cícero (1925, de Adhemar
Bezerra de Albuquerque) é um exemplo. Nele conhecemos a história da
cidade mítica. A temática da religiosidade e as imagens do Padre Cícero
estão em primeiro plano, afinal, o santo popular mudou o destino de Juazeiro
do Norte e do próprio Cariri há mais de um século.
A segunda fase inicia com a Caravana Farkas. Liderados por Thomaz
Farkas, o grupo composto por jovens cineastas e fotógrafos do Sudeste
filmam o interior do Brasil. A Caravana retratou cinematograficamente a
cidade de Juazeiro e região do Cariri, a exemplo dos filmes Visão de Juazeiro
(1969) e Viva Cariri! (1970), porém, os documentários da Caravana Farkas
tinham a proposta de debater e compreender a realidade social da época,
mas vemos certos estereótipos serem repetidos: fanatismo religioso como
sinônimo de atraso.
A terceira fase da produção audiovisual se caracteriza pela retomada do
cinema do Cariri cearense e nela os realizadores da região passam a retratar
a cultura, os hábitos e o cotidiano das cidades do Cariri, tendo como prin-
cipais nomes Rosemberg Cariry e Jefferson de Albuquerque Júnior. Nesse
período as histórias que foram silenciadas, como o episódio do massacre
do Caldeirão da Santa Cruz, ganham materialidade nas telas dos cinemas.
A quarta fase dessa produção audiovisual é a mais contemporânea.
Novos realizadores e artistas do Cariri produzem obras que nos mostram
os desdobramentos do tempo e do próprio desenvolvimento da produção
cinematográfica da região. Filmes como Lampião (2006, Ythallo Rodrigues),
Catadores de pequi (2007, Nívia Uchôa) e Também sou teu povo (2006, Orlando
Pereira e Franklin Lacerda) são alguns exemplos dessa fase.
Dona Ciça do Barro Cru é um dos primeiros filmes da terceira onda que
retrata personagens comuns, inseridos no cotidiano das cidades. Os tes-
temunhos desviados e as imagens precárias interpelam a historiografia

Arte da Resistência 127


oficial. A própria Dona Ciça dá nome ao filme e é uma artista popular que
busca dar visibilidade às manifestações culturais e afetivas do seu lugar
através do barro. Após o filme, Dona Ciça tornou-se ainda mais conhecida
no imaginário da região. Uma mulher nordestina, brasileira, pobre e que não
teve acesso a educação formal, assim como a maior parte das mulheres do
seu contexto cultural, Dona Ciça foi educada de acordo com as normas e
padrões de gênero, de sexualidade e da raça da sua época. Uma das cenas
do filme nos mostra Dona Ciça encenando um casamento com dois dos seus
bonecos de barro: o marido e a esposa. Enquanto brinca, ela relata que o
importante na vida é ter um bom casamento, para ela isso é “viver bem”.
Apesar da contribuição econômica advinda de seu artesanato ou de
outras formas de trabalho, ela vive subjugada por um sistema herdeiro das
oligarquias patriarcais e coloniais. A própria linguagem utilizada por Dona
Ciça, e por tantas outras pessoas do seu lugar, é considerada como não
correta pelos acordos e padrões do português-europeu (e sua gramática).
Dona Ciça vive entre as fronteiras subalternas da língua, do território, da
classe, da raça, do gênero e da sexualidade. Falar de saberes subalternos…

Não é, portanto, apenas dar voz àquelas e aqueles indivíduos


que foram privados de voz. Mais do que isso, é participar do
esforço para prover outra gramática, outra epistemologia,
outras referências que não aquelas que aprendemos a ver
como as “verdadeiras” e, até mesmo, as únicas dignas de
serem aprendidas e respeitadas (PELÚCIO, 2012, p. 399).

Assim como o gênero e a sexualidade, o cinema é um processo contí-


nuo de criação, a partir de um conjunto de atos repetidos no interior de um
quadro regulatório altamente rígido, mas que encontra rasuras e brechas
(BUTLER, 2003). Ao abordar histórias que habitam as fronteiras da abjeção,
o cinema desloca, suspende e também pode reproduzir a norma dominante.
Dona Ciça reencena as diferenças ou os papéis atribuídos a “mulheres” e
“homens”. Nas sequências em que vemos cenas de velórios de crianças,
notamos que o cortejo fúnebre é totalmente composto por mulheres adultas
ou meninas (crianças), muitas delas segurando rosas nas mãos. Enquanto
isso, a banda de pífano é quase que totalmente composta por homens. O
mesmo ocorre com o reisado, que encena antigas lutas da Europa Medieval,
no qual vemos poucas mulheres.
As estéticas presentes em Dona Ciça do Barro Cru trazem pistas sobre
a invenção do Nordeste ao longo da colonização do Brasil. Através delas
encontramos simultaneamente os fantasmas da dominação e da subver-
são que criam os imaginários e as imagens da região. “Uma das grandes
forças da imagem é criar ao mesmo tempo sintoma (interrupção no saber)

128 Leandro Colling


e conhecimento (interrupção no caos)” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 214).
Alguns filmes do Cariri cearense interrompem a trajetória do cinema hege-
mônico enquanto propõem outros modos de criação de imagens.
A região do Cariri é, sobretudo, imaginária. Geograficamente, ela
conecta parte dos estados do Pernambuco, do Piauí, da Paraíba e do Ceará.
Esse território é profundamente assombrado pelos fantasmas coloniais e
oligárquicos. Aqui os grupos familiares disputaram o poder, as terras, as
pessoas consideradas subalternas e a natureza. Velhas práticas coloniais do
Brasil vão ganhando novos contornos com o tempo. As influências do catoli-
cismo, trazidas pelos ibéricos, se misturaram com as variadas contribuições
indígenas que aqui já existiam (povos Kariri) com aquelas que vieram com
os diferentes povos de África.

Cinema das multidões moventes

Rostos de mulheres nordestinas dispersas na cidade de Juazeiro do


Norte compõem algumas das primeiras sequências do filme O Caldeirão
da Santa Cruz do Deserto, documentário de Rosemberg Cariry, de 1986.
Elas usam panos amarrados na cabeça, hábito mouro trazido pelos ibéricos
e ainda presente nos sertões. Algumas fumam cachimbo, outras têm um
olhar fixo, distante, ou encaram a câmera. Um boi enfeitado de fitas colori-
das dança em dunas em imagens paralelas e nelas podemos avistar o mar.
A voz do narrador conta a história da cidade de Juazeiro do Norte e
sua religiosidade advinda dos milagres gerados no corpo da beata Maria
de Araújo73, nas últimas décadas do século XIX. Cenas e relatos sobre as
romarias, nos mostram como o catolicismo popular se expressa nas estéti-
cas, nas coisas, paisagens e nos gestos. Embora O Caldeirão da Santa Cruz
do Deserto seja um documentário sobre uma multidão heterogênea, em
devir, dois personagens se destacam: o primeiro é o próprio padre Cícero,
ligado diretamente aos milagres e tido como santo; o segundo é o beato
José Lourenço, que recebe do Padre Cícero uma quantidade de terra e nela
constrói uma comunidade igualitária, conhecida também como Caldeirão
dos Jesuítas no sítio Baixa Dantas, na cidade do Crato.
Nos primeiros anos após os milagres, fim do século XIX e início do XX,
multidões saem de vários locais da região Nordeste em busca de lar na
cidade santa do Padre Cícero. Esse fenômeno diaspórico ainda resiste no
século XXI. Juazeiro do Norte se desenvolveu ao longo de todo o século XX

73
A beata Maria de Araújo foi a principal protagonista dos milagres do Padre Cícero no fim do século XIX.
A hóstia dada pelo padre tornou-se sangue na boca da beata Maria de Araújo, em mais de 40 cerimônias
religiosas (NETO, 2006)

Arte da Resistência 129


e, atualmente, é a terceira cidade mais populosa do estado do Ceará, graças
ao fluxo contínuo de pessoas que chegam com as romarias e suas promes-
sas de futuro. Um número considerável de famílias que vive na cidade saiu
de outros estados e até mesmo de outras regiões do Brasil (NETO, 2006).
Rosemberg Cariry utiliza-se da montagem para conectar momentos dis-
tintos do século XX, geralmente ligados a episódios de violência e massacre
extraterritoriais. A montagem fílmica conecta tempos e contextos culturais
diversos. O filme nos relembra do governo de Getúlio Vargas, da ameaça
comunista que assombrava o Brasil e a América Latina; além de relembrar,
por meio de imagens de arquivo, os regimes totalitaristas do fascismo e do
nazismo que exterminaram multidões na Europa nas primeiras décadas do
século XX.
Segundo o documentário, as forças políticas do Ceará e os grupos hege-
mônicos do país destroem a experiência de vida coletiva da comunidade do
Caldeirão, esquecida pela História Oficial durante quase cinquenta anos até
o surgimento do filme O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. O documentário
interpela essa História utilizando-se do próprio panorama político local e
internacional da época do massacre. A comunidade do Caldeirão foi exter-
minada em 1937, quase três anos após a morte do Padre Cícero, em 1934. É
como se os grupos de poder estivessem esperando a morte do santo para
concretizar o extermínio.
Vários conflitos locais ocasionaram o massacre e o filme expõe os dis-
cursos e as forças que operaram por trás desse crime. A filha adotiva do
beato José Lourenço, uma antiga professora do Caldeirão e um sobrevivente
do massacre visitaram as ruínas do lugar cinquenta anos depois e se tor-
nam o corpo-político que evoca cada detalhe, gesto e geografia a partir dos
escombros do Caldeirão. Cinquenta anos depois do extermínio, sabemos que
das quatrocentas pessoas assassinadas, número oficial porque falam-se em
no mínimo duas vezes mais, poucas restaram para denunciar o massacre.
A câmera em movimento segue os três sobreviventes enquanto os seus
testemunhos tocam os/as espectadores/as.
Os três sobreviventes apontam para onde ficavam os espaços de tra-
balho, os locais de distribuição dos alimentos, onde as pessoas moravam
e onde eram sepultadas na comunidade. Uma Nova Canudos no interior do
Ceará. Os testemunhos, ecoados na terra onde o massacre aconteceu, possi-
bilitam que re-imaginemos o Caldeirão da Santa Cruz, que passa a re-existir
novamente. As imagens em transe se tornam a plataforma de retorno para
os fantasmas silenciados.
O filme foi exibido em 1986 e coincide com o momento de redemo-
cratização do Brasil, após os vinte e poucos anos de ditadura cívico-militar.
Os movimentos sociais, principalmente os movimentos de reivindicação da
terra, ganhavam voz e corpo nas pautas da política. O livro Micropolíticas:

130 Leandro Colling


cartografias do desejo, de Félix Guattari e Suely Rolnik (2010), demonstra
bem o clima daquele momento. Havia variadas organizações: sindicatos
dos trabalhadores; os grupos da mídia alternativa; novos partidos políticos
de esquerda; os grupos feministas e LGBT; os coletivos negros e, espe-
cialmente, os grupos e ações voltadas para a divisão igualitária da terra
(GUATTARI e ROLNIK, 2010).
Os militares, envolvidos com o desaparecimento das muitas vidas
durante o período da ditadura, estão indiretamente e intimamente envolvi-
dos com o massacre do Caldeirão da Santa Cruz. As primeiras aeronaves de
guerra do Brasil foram testadas no extermínio da comunidade do Caldeirão.
As mesmas aeronaves que serviram de reforço na Segunda Guerra Mundial,
quando o Brasil se filiou aos países Aliados (França, Inglaterra, URSS e
Itália), foram utilizadas três anos antes em um massacre que aconteceu
no sul do estado do Ceará, região do Cariri. O Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto se conecta com essas memórias locais e globais sem deixar de se
ancorar com as questões urgentes da década de 1980.
O conceito de desterritorialização se liga a três elementos principais:
território, terra e reterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 2011). O neolo-
gismo desterritorialização se aproxima da palavra desterro ou verbo dester-
rar, ação de ser retirado da terra ou perda da terra. Reterritorializar significa
mudar de território e necessita do processo de desterritorialização para
fazer sentido. “A desterritorialização absoluta equivale a viver sobre uma
linha abstrata de fuga” (ZOURABICHVILI, 2014, p. 23). Devir não é mudar,
portanto, para Deleuze e Guattari, a palavra desterritorialização é sinônimo
de decodificação (ZOURABICHVILI, 2014). Em O Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto as dunas das praias ou as dos sertões estão em constante transfor-
mação, os ventos levam os grãos de areia que modelam e decodificam as
paisagens e o terreno em constante devir. Os sertões (desertos) nos lembram
os fenômenos das secas enfrentadas pelas multidões que foram sendo
forçadas a se adaptarem às mudanças climáticas da região. Tribos, grupos
e comunidades nômades estão em constante processo de re-des-territo-
rialização. Porém, os orientais – dos desertos de África e Ásia – parecem ter
aprendido a lidar com as dinâmicas do clima e a dificuldade de encontrar
água. Enquanto isso, os povos nômades do Nordeste foram massacrados
pela negação da água e pela fome, ou pela não resolução de ambos os
problemas. As riquezas naturais pertenceram, durante séculos, aos grupos
oligárquicos da região que exploravam o povo.
Em O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto os romeiros e os retirantes
do Padre Cícero são elementos da mise-en-scène. Como já mencionado,
anualmente, parte da multidão que chega pelos fenômenos das romarias
fica e reside na cidade. Essa multidão é movente e o movimento é o ele-
mento ou artifício intrínseco do cinema. A imagem que não se cristaliza é

Arte da Resistência 131


a metáfora do movimento da diáspora e da busca pelo território, pela casa.
Dona Ciça do Barro Cru e O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto são filmes que
retratam as desigualdades a partir da perspectiva do território. Os impérios
coloniais não existiriam sem a exploração e o complexo mundo da escra-
vidão nas terras colonizadas, muito menos a Modernidade e o seu projeto
que dominou o mundo (MBEMBE, 2014). As multidões e as vidas abjetas
jamais exerceram o privilégio da detenção da terra, uma vez que essa terra
sempre foi patrimônio das intuições colonizadoras: a família, a Igreja e o rei
(posteriormente o Estado).
A história do cinema tem nos ensinado que os diretores, geralmente
homens brancos e heterossexuais, foram os responsáveis por criar filmes
que propuseram representar todo o mundo. Hollywood é o território que cria
e recria realidades distintas através de filmes que contam a história das pers-
pectivas hegemônicas. O eurocentrismo e o cinema hollywoodiano foram
responsáveis pelo fortalecimento dos nacionalismos e da cultura ocidental,
consequentemente recolonizam a América Latina (Brasil) há pelo menos um
século. Por outro lado, realizadores/as brasileiros/as se apropriam desse
cinema hegemônico e, cada vez mais, criam filmes outros e imaginários disrup-
tivos. O Nordeste pode ser o Velho Oeste (filmes de Western). Em O Caldeirão
da Santa Cruz do Deserto somos transportados para um lugar violento
comandado por homens armados, donos de terra, do gado, perseguidores de
indígenas, opressores de pessoas negras e, porventura, lutam contra aqueles
que são considerados os bandidos, a exemplo do fenômeno do cangaço.
O cinema dos territórios periféricos está em sintonia com as episte-
mologias desviadas, os filmes cearenses que retratam o Cariri, ou que são
produzidos nesse lugar, são mapas de imagens disruptivas, influenciadas
pelas diferentes fases do cinema, sejam elas hegemônicas ou mais de van-
guarda. O Cinema Novo, Cinema Marginal e o Cinema da Retomada são
movimentos cinematográficos que trazem questões da cultura brasileira a
partir do desvio e os filmes deste texto também são influenciados por eles.

Cinema queer/cuir no Cariri

Também sou teu povo (2006, Orlando Pereira e Franklin Lacerda) é o


primeiro filme da cidade de Juazeiro do Norte e do Cariri que tem as travestis
como personagens centrais. O documentário traz relatos e as experiências
das travestis com a cidade católica e as noites de romarias. O título é reti-
rado de uma canção religiosa popular cantada nas igrejas, nas procissões
e nos locais sagrados da peregrinação. Camila Montenegro, a personagem
principal, transgride as normas apenas com a sua presença nos espaços
públicos e religiosos do lugar.

132 Leandro Colling


Segundo o documentário, Camila Montenegro passa metade do ano na
Europa e não viaja sem levar as estátuas do Padre Cícero e de Nossa Senhora
das Dores – padroeira de Juazeiro – em suas malas. Camila exibe e fala sobre
as intervenções do seu corpo: seios grandes “700 ml em cada seio”, cabelos
longos, roupas com brilho, maquiagem, unhas grandes e coloridas. Também
sou teu povo inaugura uma nova forma de fazer filme na produção cinemato-
gráfica contemporânea porque é através dos relatos das travestis que enten-
demos o quanto elas são indispensáveis às romarias católicas da cidade.
As travestis dão e mantêm o glamour na noite profana, dentro dos espaços
que compõem os roteiros turísticos religiosos durante o dia.
No filme notamos como o corpo abjeto disputa os espaços, a linguagem
e as próprias imagens. Suas vozes denunciam os preconceitos enfrentados
na cultura cristã. A partir do momento em que a travesti assume uma iden-
tidade de gênero, diferente da que lhe foi designada em seu nascimento, a
rasura na norma acontece porque compreendemos que o gênero e a sexua-
lidade não são coisas naturais, mas sim construções citacionais (BUTLER,
2003). Em Também sou teu povo, a câmera passeia pelos detalhes do rosto
e do corpo de Camila Montenegro. Paralelamente, cenas de uma TV dentro
de um quarto nos mostram imagens antigas da cidade de Juazeiro do Norte.
Parece ser um telejornal que vai apresentando o tamanho de cada parte
que constitui a gigante estátua do Padre Cícero de vinte e sete metros. O
corpo artificial da estátua vai sendo montado como metáfora da criação
do gênero e da sexualidade da travesti ou de qualquer indivíduo cisgênero
e transgênero. Camila às vezes parece ser a estátua e a cidade, afinal, as
pessoas e coisas foram montadas para se tornarem alguém ou algo.
Como já dito, o gênero é um eterno processo ou um conjunto de atos
repetidos no interior de um quadro regulatório altamente rígido (BUTLER,
2003). A performatividade feminina da travesti não é lida como natural pelas
normas, uma vez que ela sabota aquilo que foi convencionalmente estabele-
cido como “feminino” ou “masculino”. Ao mesmo tempo, as mesmas travestis
do filme desejam viver a comunidade e exercer a fé no Padre Cícero e na
igreja, assim como as demais mulheres e beatas da cidade. Ao pensar sobre
a performatividade da drag queen, Judith Butler explica que:

A performance do drag brinca com a distinção entre a


anatomia do performista e o gênero que está sendo per-
formado. Mas estamos, na verdade, na presença de três
dimensões contigentes da corporeidade significante: sexo
anatômico, identidade de gênero e performance (BUTLER,
2003, p. 196).

Arte da Resistência 133


Porém, existe uma diferença entre performance e performatividade de
gênero. A noção de performance supõe um sujeito preexistente, enquanto
a performatividade contesta a própria noção de sujeito (BUTLER, 2003). A
performatividade estaria ligada às ações repetidas durante a vida que vão
moldando ou sedimentando os nossos gêneros e sexos. Assim, os discur-
sos de poder seriam os reguladores das performatividades. A paródia por
si mesma não é subversiva (BUTLER, 2003). Os sujeitos e indivíduos que
causam as desestabilizações, dos gêneros e das sexualidades, também
acabam reproduzindo os conformismos culturais da norma. As travestis
performatizam gestos do gênero “feminino”, desequilibrando a zona de con-
forto da heteronorma, mas não reivindicam para si mesmas a subversão da
tradição católica. Também sou teu povo é um filme sobre travestis beatas.
Os seus corpos também se conectam com o corpo da beata Maria de Araújo
(a santa ilegítima do milagre) e com o Padre Cícero, cujo corpo é cultuado
pelas multidões de romeiros até hoje.
As travestis e a beata Maria de Araújo vivenciaram as mesmas violên-
cias geradas pelos processos normativos e pela invisibilidade, orquestrados
pelos saberes e poderes hegemônicos. Elas foram excluídas da história
oficial da cidade e ocupam diversas zonas de abjeção: não são brancas,
nem pertencem à elite local e não possuem educação formal. O abjeto é
constituído pelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis’’ da vida social, que são
densamente povoadas por aqueles/as que ainda não gozam do status de
sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável’ é necessário para que
o domínio do sujeito seja circunscrito (BUTLER, 2003).
Nesse sentido, não só os indivíduos que transgridem as normas de
gênero se enquadram no termo da abjeção, todos/as aqueles/as que estão
nas bordas e que não são vistos/as como “importantes” são colocados/as
nas zonas de abjeção: deficientes físicos, pessoas negras, pessoas acima do
peso e tantas outras. Na primeira sequência de Também sou teu povo existe
uma tela negra, sem som, que nos apresenta a seguinte frase do pensador
Roland Barthes: o real é irrepresentável.
Travesthriller (2014) é um filme de ficção também realizado por Orlando
Pereira em parceria com Nívia Uchôa. O roteiro é criado a partir de uma
história de cordel homônimo escrito pela cordelista, feminista e profes-
sora Salete Maria. No filme, Shirley Dayanna é uma travesti que faz uma
promessa ao Padre Cícero para engravidar e acaba realizando o sonho
de ser mãe. Se Camila Montenegro é uma beata, Shirley, protagonista de
Travesthriller, é a própria figura rasurada da mãe do Messias. As histórias
de mulheres que engravidaram misteriosamente e concebem crianças que
vão salvar o mundo são mais comuns do que imaginamos. Existem histórias
semelhantes no hinduísmo, no antigo Egito, e no cristianismo. A mãe de
Anakin Skywalker, personagem dos filmes Star Wars (Guerra das Estrelas),

134 Leandro Colling


engravida misteriosamente da força do universo. Não nos interessa entender
o que é real ou ficção em Travesthriller. O que importa é ver as normas e as
leis da natureza serem reimaginadas ou recriadas, a partir do corpo de uma
travesti do sertão cearense, que engravida após um milagre divino.
A estética luxuosa e quase dândi em Travesthriller nos sugere refletir
sobre a relação econômica que existe entre os líderes religiosos e seus fiéis.
Vemos poucos cenários de pobreza, diferentemente dos primeiros filmes
deste texto. Shirley está disposta a pagar o preço necessário para concreti-
zar o sonho de se tornar mãe. Através do dinheiro, alcança as bênçãos divinas
da igreja e da fé. Shirley mora em uma cidade religiosa que possivelmente
não a reconhecerá como mãe legítima. A própria mãe de Shirley está fora
dos padrões do corpo, uma mulher com nanismo. Os demais personagens
que aparecem no filme assemelham-se ao futuro, o porvir. As cores psi-
codélicas das imagens, paisagens e indumentárias reforçam a atmosfera
distópica do filme. O mundo de Shirley é feito de pessoas que embaralham
os binarismos da “masculinidade” e “feminilidade”.
O cinema é uma tecnologia de gênero, de disputa do território, dos
sentidos e dos significados subjetivos (LAURETIS, 1994). A travesti, histo-
ricamente excluída do processo de criação artística e cinematográfica, não
consegue encontrar muitas referências da maternidade desviada no cinema.
Um dos poucos exemplos é o filme Pink Flamingos (1972, John Waters), em
que vemos Babs Johnson (Divine) ser mãe. Divine não reproduz o estereótipo
romântico ocidental da maternidade, ela inclusive pratica o incesto com o
próprio filho.
Travesthriller tem o roteiro retirado de uma história da Literatura do
Cordel, mas também contém elementos do cinema futurista, trash e queer.
A onda mais contemporânea, de filmes com temáticas transgressoras,
avulta os vestígios espectrais que estão cada vez mais se apropriando do
mundo das imagens. No caso de Travesthriller, imagens desviadas. A própria
onipresença das câmeras nos remete a essa ideia de que as imagens são
os pedaços do mundo e que tudo um dia será imagem. (SONTAG, 2004)
O cinema como arte inventiva cria e recria os desejos. Travesthriller mexe
com os sentidos do nosso corpo para além da visão: o toque, os cheiros, o
paladar etc. (OYEWÙMÍ, 2021). A hegemonia do olhar na cultura ocidental
parece corroer-se a partir dos filmes que tocam, literalmente, nas outras
partes do corpo. Como uma dança ou um ato sexual de prazer, em que um
corpo, no caso o corpo fílmico, atiça o corpo daquele/daquela que assiste e se
reconhece. Como voyeur e também como parceiro intenso do ato. Ao refletir
sobre o filme Madame Satã (2002, Karim Aïnouz), Denilson Lopes disse que
“somos jogados na sua presença, numa espécie de sedução sem escapatória,
não podemos desviar o olhar, não podemos fingir que não vemos” (LOPES,
2015, p. 127).

Arte da Resistência 135


Talvez o cinema queer/cuir seja o cinema dos desejos de olhar desviado
que atende os quereres das partes do corpo igualmente importantes na
criação de outras cosmopercepções sobre as imagens do cinema. Também
sou teu povo e Travesthriller são filmes que contém atmosferas dissidentes
e que disputam, simultaneamente, o real e o imaginário.

Breve relato

As experiências dos encontros e das ações realizadas pelo NuCuS/


UFBA, como o II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, em Salvador
(com a presença de Judith Butler), os Cinemas de Rua e outros aconteci-
mentos que conectam as cidades Salvador e Juazeiro do Norte (Cariri) pos-
sibilitaram a criação deste texto. Os desvios nascem das experiências que
se condensam com as imagens dos filmes. Essas imagens e imaginários
disruptivos me levaram para o doutorado, em que analiso os desvios e as
reinvenções do Nordeste no Cinema Contemporâneo. A partir dessa encru-
zilhada de caminhos, vou compreendendo quais pistas habitam as imagens
técnicas (cinema, audiovisual e fotografia) e o invisível.

136 Leandro Colling


Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: FJN,
Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.1. São Paulo:
Editora: 34, 2011.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós. Belo Horizonte, v.2, n.4, p.
206-219, nov. 2012.
FERNANDES, Glauco Vieira. Juazeiro do Norte no cinema documental: entre a representação
e a experiência de uma cidade. Geosaberes, Fortaleza, v. 7, n. 12, p. 17-30, Jan./Jun. 2016.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2010.
GUEDES, Cíntia. Notas com imagens fugidias: as armadilhas da temporalidade diaspórica. Em
Construção. Rio de Janeiro, n.9, p.84-91, jun. 2021.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 206-242.
LOPES, Denilson; NAGIME, Mateus. New queer cinema e um novo cinema queer no Brasil. In:
MURARI, Lucas; NAGIME, Mateus. (Org.). New queer cinema – cinema, sexualidade e política.
Minas Gerais: Inhamis Studio, 2015, p.08-12.
LOPES, Denilson. Madame Satã. In: MURARI, Lucas; NAGIME, Mateus (Orgs.). New queer cinema
– cinema, sexualidade e política. Minas Gerais: Inhamis Studio, 2015, p.126-129.
MBEMBE, Achile. Crítica da razão negra. Portugal: Antígona, 2014.
NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
OYEWÙMÍ, Oyèronké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os
discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós-co-
lonialismo, feminismos e estudos queer. Contemporânea, v. 2, n. 2 p. 395-418, Jul.-Dez. 2012
PRECIADO, P. B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas,
Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril, 2011.
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Ifch-unicamp, 2014.

Arte da Resistência 137


Les Étoiles: meu coração é um
pandeiro ou... não brinca que a chica chia74

Djalma Thürler e Jorge Caê Rodrigues

Este trabalho apresenta os procedimentos iniciais de uma pesquisa


maior, ainda em construção, sobre a dupla musical Les Étoiles, formada
em Paris nos anos 70 pelos brasileiros Luiz Antônio (1941-2002) e Rolando
Faria (1951-2021). Seus intercâmbios musicais, transferências culturais e
circulações contribuíram para a memória da longa história da Música Popular
Brasileira (MPB) no século XX. Ao mobilizar uma grande diversidade fontes
escritas (livros, histórias de viagens etc.), memórias de músicos, arquivos de
imprensa, registros audiovisuais (gravações, emissões de rádio e televisão,
filmes) e vasto material iconográfico (capas de revistas e partituras, capas
de discos, algumas das quais ilustram a análise) e fontes orais, revelamos
nosso interesse na “memória subterrânea” queer da cultura brasileira.

1.

Superando a oposição binária de gênero e sexualidade e deslocando


fronteiras, alguns/mas artistas da MPB evidenciaram a plasticidade identi-
tária em gênero e sexo e ofereceram novas possibilidades de imaginar (criar
imagens visuais, sonoras e performáticas) críticas às normas, evidenciando
o horizonte contemporâneo de possibilidades de vida e de criação poética.
As dissidências sexuais e de gênero nos palcos da MPB são um fato e já

74
Nome do primeiro LP dos Les Étoiles.

Arte da Resistência 139


têm uma história no cenário musical brasileiro. De acordo com Jorge Caê
Rodrigues,

[...] política, religião, sexo e outros aspectos sociais estão


presentes nas nossas canções, assim como personagens
desviantes em gênero e na sua sexualidade também se
revelam em muitas das canções que embalaram a história
da MPB. Do sujeito que se fantasia de Antonieta para brin-
car no Bola Preta e encabula sua amada, ao Zezé, que, por
conta da sua cabeleira, era alvo de chacota acerca da sua
masculinidade, ou a menina que gosta de namorar as outras
meninas (RODRIGUES, 2019, p. 254).

Como podemos ver, essas questões sempre estiveram presentes nas


letras das canções. No campo da sexualidade, a discussão sobre comporta-
mentos não normativos foi uma das provocações que o grupo baiano75, nota-
damente atiçadas por Caetano Veloso, veicularia na Tropicália, e que tomaria
vulto maior com o regresso do cantor do seu exílio londrino (RODRIGUES, 2019).
As performances, principalmente de Caetano, nas suas apresentações
no início da década de 1970, coincidem com o surgimento do que ficou
conhecido como glam rock ou glitter rock na Inglaterra, que teve como uma
das suas características a ambiguidade sexual e de gênero que os cantores
assumiram, como exemplo maior David Bowie.
O núcleo central que criou e organizou a Tropicália, a saber Caetano
Veloso e Gilberto Gil, possibilitou uma gama de possibilidades poéticas e
comportamentais que emergiam no Ocidente. Relembrando as questões
que a Tropicália apresentou e esteticamente discutiu, Caetano disse que

[...] o aspecto travesti da sua imagem [Carmen Miranda]


sem dúvida também importava muito para o tropicalismo,
uma vez que tanto o submundo urbano quanto as trocas
clandestinas de sexo, por um lado, e, por outro lado, tanto a
homossexualidade enquanto dimensão existencial quanto a
bissexualidade na forma de mito do andrógino eram temas
tropicalistas (VELOSO, 1997, p. 269).

Ou, de acordo, com James Green,

[...] os shows e as imagens de Caetano Veloso, especialmente


depois de sua volta do exílio em 1972, quando ele enfatizava
o seu lado feminino, as perfomances dos Dzi Croquettes
em 1973, com rupturas e misturas de representações de

75
Referência artistas da Bahia que protagonizaram o movimento Tropicalista, entre eles, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, etc. (Ver FAVARETTO, 1996; CALADO, 1997; DUNN, 2001)

140 Leandro Colling


gênero, e a popularidade de Ney Matogrosso, que cantava
com uma voz fina e efeminada, ofereceram novos ícones e
novos padrões que romperam com os papéis tradicionais
de homens e mulheres (GREEN, 2014, p. 185).

A problematização do gênero, evidentemente, não se encerraria na


Tropicália. Caetano, Gil e outros artistas criaram e interpretaram muitas
canções ao longo das suas carreiras, cujos temas evidenciaram a amplitude
das performances de gênero e sexualidade.
Na segunda metade dos anos 1970, uma dupla de cantores brasilei-
ros radicados em Paris subverteu e transgrediu a tradicional performance
de cantores da MPB no palco. Se as performances do grupo tropicalista76
tinham sido provocadoras em termos estéticos e políticos, o Les Étoiles
acrescentaria a discussão de gênero e sexualidade nas suas apresenta-
ções. Este texto é fruto de uma pesquisa que está sendo realizada para a
publicação de um livro sobre a dupla. Pretendemos apresentar, analisar e
discutir o trabalho artístico sustentado pela estética camp que o Les Étoiles
desenvolveu na Europa, sua emergência, consolidação e contradições, no
período de 1974 a 2002, com indiscutível sucesso em Paris, mas, ainda hoje,
muito pouco conhecido no Brasil.
Esse recorte se dá porque, entre erros e acertos, encontros e desen-
contros, Luiz Antônio se une a Rolando Faria em 1974 e juntos começam
a se apresentar enquanto dupla em Barcelona, ainda distante da estética
camp que os marcaria profundamente. Em 1975, mudam-se para Paris, onde
atuariam e se popularizariam nos anos 80 e 90, especialmente cantando
músicas de diferentes compositores brasileiros, fato que reforça uma tese
ainda a ser explorada pelos autores, a de serem o Les Étoiles a principal
fonte de divulgação da música brasileira na França nos anos da ditadura.
Enquanto se dedicavam às suas respectivas carreiras solos, por razões diver-
sas, continuariam em digressão juntos, a pedido do seu público, de forma
mais episódica até 2002, ano do falecimento de Luiz Antônio.
Delineamos como objetivos específicos da nossa pesquisa: a) apre-
sentar o intercâmbio histórico-cultural que vivem o Brasil e Paris nos anos
70, afinal, cantar música brasileira na Europa nessa época era um mercado
muito profícuo, especialmente pelas portas que a Bossa Nova abriria para
o mundo no final da década de 1950, sobretudo com grande aceitação pela
classe média; b) refletir sobre a memória coletiva dos/das participantes nas
experiências de emergência do Les Étoiles; c) analisar as complexidades
contemporâneas que envolvem a estÉtica do Les Étoiles com o movimento

76
Ver imagens do programa Divino Maravilhoso. O programa estreou na TV Record em outubro de 1968 e
teve 15 edições - https://www.tropicaliaviva.com/post/tropicalistas-na-tv-15-hist%C3%B3rias-sobre-o-pro-
grama-divino-maravilhoso - Acesso em: 2 set. 2022.

Arte da Resistência 141


LGBT; d) apontar como questões de gênero e sexualidade foram (des)cons-
truídas e ressignificadas pelos artistas em suas apresentações ao vivo e no
design das capas de disco.
A pesquisa foi iniciada em 2020. Nela, a memória coletiva e a memória
subterrânea assumem o eixo das nossas reflexões em razão de a entender-
mos como um fenômeno histórico, na ótica de Halbwachs (1990) e Pollak
(1989), ou seja, respectivamente, as memórias se produzem e se fixam ope-
radas nas experiências, inquietações e interesses de um grupo, através
do reconhecimento inteligível das suas experiências, vivenciadas em um
quadro/marco da memória, como o espaço, o tempo, as normas, os valores
sociais etc., assumindo, ao mesmo tempo, o papel de campo e instrumento
de investigação subterrâneo, das culturas minoritárias e silenciadas, que se
opõem à “memória oficial”.

Fig. 1 - Les Étoiles – Rolando Faria (esq.) e Luiz Antônio. Arquivo dos autores.

2.
Apesar do sucesso e do impacto que a dupla causou na Europa, especial-
mente na França, no Brasil não há nenhum estudo mais aprofundado sobre
a carreira de Luiz Antônio e Rolando Faria, além de verbetes no Dicionário
Cravo Albin da Música Popular Brasileira e uma ou outra notícia na internet,
razões que destacam o ineditismo desse projeto de pesquisa77, assim como

77
No Brasil há as seguintes matérias: 1. “Frequência Modulada, devidamente intitulada: “Les Étoiles: as

142 Leandro Colling


uma fraca distribuição dos seus discos. Diante da escassez de informações
sobre a dupla Les Étoiles, sobre cada um de seus integrantes e suas carreiras
pregressas, a abordagem da nossa pesquisa possui essencialmente caráter
qualitativo, o que, para Merriam (1998), significa que as pesquisas intentam
a compreensão do contexto com base na visão de mundo dos sujeitos, haja
vista que a realidade é concebida mediante a interação e a experiência das
pessoas com o meio.
Em seguida, identificamos os “sujeitos-chave” capazes de contribuir
com a rede de contatos e fornecer indicações e aproximações para a con-
cessão de entrevistas para o estudo. Para a primeira amostra dos sujeitos,
utilizamos a técnica snowball, conhecida como “bola de neve”. Nessa téc-
nica, a definição da amostra ocorre por referência e o número dos sujeitos
foi definido pelos critérios de acessibilidade e aceitação (dos mesmos) na
participação da pesquisa. Optamos pelo snowball como estratégia neces-
sária para “entrada” no campo, já que não estávamos inseridos no contexto
que almejávamos desenvolver na investigação. Segundo Juliana Vinuto,
esse tipo de amostragem

[...] é uma forma de amostra não probabilística, que utiliza


cadeias de referência. Ou seja, a partir desse tipo específico
de amostragem não é possível determinar a probabilidade
de seleção de cada participante na pesquisa, mas torna-se
útil para estudar determinados grupos difíceis de serem
acessados. A execução da amostragem em Bola de Neve se
constrói da seguinte maneira: para o pontapé inicial, lança-
-se mão de documentos e/ou informantes-chaves, nomea-
dos como sementes, a fim de localizar algumas pessoas com
o perfil necessário para a pesquisa, dentro da população
geral (VINUTO, 2014, p. 203).

Assim, em novembro de 2020, começamos as entrevistas com Christian


Pouillaud, pesquisador da MPB e amigo particular da dupla que, durante as
décadas de 1970 e 1980, morou e teve um programa de rádio em Paris, além
de ter escrito releases para shows do Les Étoiles. Pouillaud, que hoje vive no
Brasil, foi nossa primeira semente a partir da qual começamos a construir
nossa bola de neve. Pouillaud nos indicou várias outras fontes, brasileiras
e francesas, artistas e amigos que poderiam nos ajudar com informações
para que pudéssemos reconstruir a obscura história do Les Étoiles.
Entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2022, usando a ferra-
menta Google meet, entrevistamos Betty Behar, Ciro Barcelos, Claudio Tovar,

estrelas ofuscadas da música brasileira”, de 2018 (https://m5.gs/bmhIRG); e “Conheça a esquecida história


da dupla de samba Les Étoiles (https://m5.gs/bURpdn).

Arte da Resistência 143


Dominique Dreyfus, Fernanda Fernandes, Flavio Farias, Gilson Peranzeta,
Irineia Maria, José Boto, Julio Rodrigues, Leila Afonso, Leila Rocha, Lucinha
Lins, Luna Messina, Marcos Jatobá, Marizinha, Martine Brillard, Ricardo
Villa, Rolando Faria, Zé Luis Mazziotti, Zezinha Duboc e Marcos Jatobá. Betty
Behar e Fanny Cain foram entrevistados em Paris, em fevereiro de 2022, em
viagem de campo feita pelos autores, e Rolando Faria, por telefone, quinze
dias antes do seu falecimento, em abril de 2021.

3.

Luiz Antônio e Rolando Faria começaram suas carreiras de forma


individual. Eles faziam parte do enorme contingente de artistas que surgi-
ram durante a “Era dos Festivais”78. Rolando fez parte do movimento MAU
(Movimento Artístico Universitário) e iniciou sua carreira solo como intérprete
no VI Festival Internacional da Canção Popular de 1971. O MAU surgiu em
uma casa de dois andares alugada em 1961 ao psiquiatra Aluizio Augusto
Porto Carreiro de Miranda, “um ponto importante de resistência política e
cultural” (AFFONSO; SANTOS, 2017, p. 25), que daria origem e se tornaria o
berço do MAU, que projetaria nomes importantes da música brasileira, como
Aldir Blanc, Gonzaguinha, Ivan Lins, Célia Vaz, Cesar Costa Filho, Eduardo
Lages, Lucinha Lins, Ruy Maurity, Sílvio da Silva Júnior, Marcio Proença e mui-
tos outros. Segundo o jornalista Sérgio Cabral, a música popular brasileira
deve muito à casa da Jaceguai, “só comparável à de Tia Ciata, para o samba,
e à de Nara Leão, para a bossa nova” (AFFONSO; SANTOS, 2017, p. 25).
A liberdade (com restrições) que o Dr. Aluizio dava aos jovens aspirantes
é difícil de ser descrita. A confiança que ele depositava em cada um dos que
iam à sua casa (não precisava bater) não tinha precedentes. O boca a boca
era enorme e, a cada dia, mais jovens artistas iam conhecer os saraus da
casa da Jaceguai. E um deles foi Rolando Faria. Leila Afonso disse que, na
sua primeira ida à casa do psiquiatra, em setembro de 1967,

[...] o local estava entupido de gente. No meio da sala, um


grupo de músicos, sentados num sofá, duas poltronas e em
pequenos banquinhos forrados de veludo de várias cores,
tocava samba da melhor qualidade (...). Uma voz desta-
cava-se bastante na roda. Era Rolando Faria, de apenas
dezesseis anos. Acompanhado ao violão, ele cantava não só

78
Os festivais da canção começaram em 1965, atravessaram as décadas de 1970 e chegaram a 1980 (MELLO,
2003).

144 Leandro Colling


sambas, mas música popular em geral, com uma linda voz e
ritmo perfeito (AFFONSO; SANTOS, 2017, p. 27).

Em uma postagem em sua rede social, em 05 de novembro de 2020,


Ivan Lins publicou uma foto do MAU, que data de 1971, com a seguinte
legenda:

Amigos, esta relíquia de fotografia foi tirada na Av. Nossa


Senhora de Copacabana, em 1971. Estes aí somos nós, “do
M.A.U.”, não todos. Vou começar por cima, da esquerda
p/direita: Ana (Quarteto Forma), Márcio Proença (idem),
Sidney Mattos (compositor e guitarrista), Flavinho (Quarteto
Forma, o 4º componente do quarteto era o Eduardo Lages,
hoje, arranjador do Rei Roberto Carlos), Paulo Emílio, poeta,
letrista e um dos mentores do grupo (os outros eram o Aldir
e o Gonzaguinha), Lucinha Lins (cantora) e Gonzaguinha.
Embaixo, na mesma ordem: Omar (guia espiritual), Zé Carlos
(baterista), eu, Rolando Faria (intérprete e violonista que
mais adiante formou uma dupla com Luiz Antônio chamada
“Les Etoiles”) e o nosso querido e saudoso, Aldir Blanc
(poeta, letrista, cronista, contista, boêmio, e inspirado filó-
sofo de beira de esquina). Aí tem muita história pra se contar
(LINS, 2020, sp).

Fig. 2 – Rolando está sentado tocando violão.

Arte da Resistência 145


Affonso e Santos (2017) citam uma entrevista de Sidney Mattos, publi-
cada na edição nº 46 do Jornal Musical, em que ele afirmava que “o MAU
era um movimento cultural, contrário ao sistema capitalista que vigora até
hoje. Lutávamos também contra a ditadura das gravadoras” (idem, p. 97). O
sucesso dos artistas do MAU chamou atenção da TV Globo. A criação do pro-
grama Som Livre Exportação, em dezembro de 1970, foi, ao mesmo tempo,
a consagração e o fim da Turma da Jaceguai, porque apenas alguns nomes
da Jaceguai foram contratados, o que desequilibrou a harmonia do grupo.
Segundo Sidney Mattos, “quando eles [Ivan Lins e Gonzaguinha] aceitaram
a proposta da Globo, acabou o MAU. Criou-se um clima de constrangimento,
foi uma vitória do sistema contra os ideais que pregávamos” (idem, p. 111).
O programa Som Livre Exportação terminou em setembro de 1971.
Nesse mesmo ano, a turma estaria presente no VI Festival Internacional
da Canção e, dessa vez, Rolando Faria participaria defendendo a música
Sistema solar, de Dilvo da Silva e Aldir Blanc. Essa foi uma das suas últimas
apresentações em carreira solo no Brasil (MELLO, 2003, p. 460).
Luiz Antônio, paulista, crooner de orquestra, cantor do grupo Biriba’s
boy, apareceu no cenário artístico brasileiro como um dos grandes vence-
dores de programa de calouros79. Mais tarde, ganhou destaque no V festival
Internacional da Canção Popular de 1970, no qual ganhou o quinto lugar
interpretando a hoje cult Abolição 1860-1980, de Dom Salvador e Arnoldo
Medeiros.

4.

Em 1971, o baterista Ronald Mesquita, o pianista e arranjador Gilson


Peranzzetta, o saxofonista Ricardo Pontes, o contrabaixista Ricardo do
Canto e os cantores Rolando Faria e Marly Tavares criaram o grupo Central
do Brasil e seguiram para a Europa cumprir agenda de shows, primeiro
em França, Saint Tropez e, depois, em Espanha, em Bilbao e Barcelona. O
objetivo dessa viagem, segundo Gilson Peranzetta (2020), em entrevista
aos autores deste artigo, era o de cumprir contrato de trabalho com Eddy
Barclay e divulgar a MPB, que, com o sucesso da Bossa Nova no exterior80,
abriu espaço para que vários países contratassem artistas brasileiros para
fazerem turnês por diferentes cidades.

79
Na história da MPB, os programas de calouros foram importantes espaços de surgimento de nomes como
Elza Soares, Emilio Santiago, Alcione. Luiz Antônio ganhou como melhor cantor no programa Flavio Cavalcanti.
80
Em 1964, a música Garota de Ipanema esteve durante 12 semanas na lista das mais tocadas nos EUA e
Frank Sinatra gravou um disco totalmente dedicado ao gênero em 1967.

146 Leandro Colling


Reprodução da capa do LP, editado pela reeditado pela Vadim Music. Da esquerda para a
direita: Gilson Peranzetta, Ricardo Pontes, Ronie Mesquita, Ricardo do Canto, Rolando Faria
e Marly Tavares.

Vale destacar que muito da desenvoltura de palco do Les Étoiles, espe-


cialmente de Rolando Faria, teve início na dupla criada para o grupo Central
do Brasil. Peranzetta (2020) afirma que Marly Tavares e Rolando Faria tinham
grande sintonia, total domínio sobre seus corpos e sobre a teatralidade que
provocavam e, juntos, incendiavam a plateia. Esse domínio do corpo sobre a
cena, a qualidade corporal, os desenhos de cena e a plasticidade de movi-
mentos podem ser atribuídos à trajetória de Marly Tavares81, coreógrafa e
bailarina formada pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, “considerada
personagem do cenário da bossa nova por suas atuações, dançando e can-
tando em musicais importantes, na década de 1950, ao lado de Lennie Dale”
(DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, sd, sp).

81
Marly gravou um disco em 1963, Eu também canto, RCA. (CASTRO, 1990, p. 443).

Arte da Resistência 147


Fig. 3 - Print. Facebook: Marly Tavares Modern Jazz

Quando Marly Tavares diz que “Elis Regina cantava e se movimentava


com os braços de Lennie Dale”82 (TAVARES, 2017, 9:04min), revela os cui-
dados e refinamentos que ela exportaria para o Central do Brasil83, fruto do
intenso aprendizado que tivera com o convívio com Dale, afinal, “segundo
Ruy Castro, foi Lennie Dale quem introduziu a noção de ensaio nos shows
de música popular brasileira. Até então, o artista chegava ao teatro na hora
da apresentação e cantava, sem nenhuma produção ou preocupação com a
expressão corporal” (MORAES, 1994, s/p). Disciplina, técnica, rigidez teórica
fundamentais à dança e ensaios exaustivos foram ingredientes fundamen-
tais do Dzi Croquettes que, aliados à filosofia transgressora e inovadora de
Wagner Ribeiro, formaram a base do grupo que mudaria a história da cena
artística e comportamental no Brasil. Coincidentemente, Luiz Antônio, no
mesmo período, vai também para a Europa com o grupo Brasil Aquarius.
Rolando Faria não achava que o Les Étoiles era, exatamente, uma dupla
ou um duo. Em um curta metragem para a TV francesa, em 1981, ele deu
mais detalhes sobre o trabalho que desenvolvia com Luiz Antônio:

Eu acho que a relação de trabalho, emocional e tudo mais


d’eu com Luiz Antônio é uma relação legal, porque a gente
se conhece desde muito tempo, se conhece desde o Brasil
como cantor separado. Quer dizer, eu acho que tanto um

82
Elis Regina, discípula de Lennie, dizia que a ideia do famoso gesto de "puxar a rede com os braços" quando
cantou Arrastão, de Edu Lobo, e venceu a 1º Festival de MPB da TV Excelsior em 65, tinha sido de Lennie Dale.
83
Em 1964, a dupla Miele-Boscoli criou um show para Elis Regina, que era acompanhada do Copa Trio de
Dom Um Romão, Marly Tavares e o pandeirista Gaguinho (CASTRO, 1990).

148 Leandro Colling


quanto o outro gostou do trabalho individual, eu gostava
do trabalho que o Luiz Antônio fazia e vice-versa. Então eu
acho que o que a gente realiza junto, no caso o Les Étoiles,
é um trabalho legal, porque dentro desse trabalho, que a
gente pode chamar de duo, mas não é duo, na realidade
são dois cantores cantando juntos, mas, ao mesmo tempo,
separadamente. Existe uma espécie de respeito e liberdade
de ambas as partes, de criatividade, quer dizer, cada um cria
no seu universo e, depois, juntos, dá no que dá que é o Les
Étoiles (LES ÉTOILES, 1981, 4:00m).

Martine Brillad (2021), artista plástica francesa radicada no Rio de


Janeiro, que, antes de se tornar amiga próxima em Paris, fora espectadora
assídua dos shows, pensa diferente. Para ela, o que acontecia em cena era
uma incrível simbiose. Zé Luiz Mazzioti, nesse mesmo diapasão, afirma ter
sido a dupla mais impressionante que vira em cena em todos os tempos
(MAZZIOTI, 2021)84, o que, também, concorda com a impressão de Lucinha
Lins, que viu apenas uma apresentação ao vivo de Luiz Antônio e Rolando
Faria no Brasil. Em entrevista aos autores, Lucia Maria85 disse que, por causa
do casamento com Ivan Lins, em 1971, e dos filhos que vieram na sequência,
se afastou um pouco de Rolando, de quem sempre foi grande e próxima
amiga e que, de repente, soube que eles eram um “escândalo na França, um
absurdo” (LINS, 2021). Depois de ver o show, concluiu: “os dois juntos eram
imbatíveis, absolutamente únicos, um assombro, os dois sozinhos eram uma
grande orquestra e um grande elenco” (LINS, 2021).
A sensação de “orquestra” a que se refere Lucinha Lins, confirmada por
outros entrevistados, é resultado de alguns fatores estéticos: os arranjos
vocais muito sofisticados elaborados por Rolando Faria – o cérebro, o cabeça
da dupla – que aproveitava o melhor de cada voz, de cada timbre, incluindo
os complexos falsetes de Luiz Antônio; o violão de Rolando, que era muito
bem tocado, e os anéis de Luiz Antônio que, além de funcionarem como
adereços camp, também eram elementos altamente sonoro-percussivos.
Anaïs Fléchet (2013), em sua tese de doutorado86, afirma que desde a
adoção do maxixe nos salões de dança parisienses à véspera da Primeira
Guerra Mundial e, posteriormente, com o samba, o baião, a bossa nova, as
canções engajadas e a Tropicália, esses gêneros populares ganharam o
público francês e contribuíram para enriquecer a paisagem sonora francesa,

84
Martine Brillad (2021) e Zé Luiz Mazzioti (2021), em entrevistas aos autores deste artigo.
85
Nesta entrevista, concedida em 17 de fevereiro de 2021 aos autores deste artigo, Lucinha Lins diz que era
cantando o seu nome de batismo, Lúcia Maria [Werner Viana Lins], que Rolando a chamava nos tempos do
MAU, época em que foram muito próximos e se tornaram grandes amigos. Lucinha imita a melodia, tentando
mostrar-nos como era e se emociona profundamente.
86
A tese de Fléchet é de 2013 e foi traduzida para o português com o título “Madureira chorou... em Paris:
a música popular brasileira na França do século XX”, editada pela EDUSP, em 2017.

Arte da Resistência 149


dando origem a múltiplas transferências culturais entre os dois lados do
Atlântico. Para Fléchet, 1959 marcou um novíssimo momento da relação
musical entre os dois países, “A morte de Villa-Lobos marcou o fim de um
período no campo da música erudita, enquanto o filme Orfeu negro permitiu
que os franceses se familiarizassem com um novo género do Brasil: a bossa
nova”87 (FLÉCHET, 2008, p. 177).
Destarte, é muito importante destacar o papel pioneiro do cinema neste
momento, afinal, a bossa nova estava presente em um filme ítalo-franco-
português (Orfeo Negro, Orphée Noir, Orfeu Negro/1959), ganhador do
prêmio de Melhor Filme Francês no Palma de Ouro em Cannes daquele
ano, além do Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, em 1960,
projetando na cena internacional aqueles que deveriam se tornar mestres
do novo estilo musical: Tom Jobim, Luís Bonfá e Vinícius de Moraes e todas
aquelas canções extraordinárias que fazem parte do patrimônio nacional.
Orfeu negro, “o filme foi muito bem recebido no exterior. É até conhecido
por ser o filme que sensibilizou a mãe de Barack Obama para as questões
negras na América” (CAPANEMA, 2022, sp), apesar das críticas nacionais,
continua a ser importante porque marca o aparecimento da bossa nova na
França e, segundo Fléchet (2013), o faria modificando sensivelmente a visão
dos franceses sobre a música brasileira, que, apesar do grande sucesso que
sempre fez, ainda não conseguia se distanciar do exotismo e primitivismo dos
estereótipos integrados, até então, ao imaginário brasileiro: a femme fatale,
a amante latina e o carnaval, com os quais sempre foi visto por grande parte
do público francês. Com os anos sessenta e a expansão da bossa nova, a
música brasileira encontrou em França um público mais conhecedor e mais
sofisticado. Georges Moustaki (1934-2013), compositor e cantor francês,
afirma sobre a Bossa Nova:

Esta complexidade rítmica extraordinária, com músicas de


oito e até mesmo 11 tempos, essas harmonias muito elabo-
radas que são para eles as de principiantes, quando eles
nem sabem tocar um lá menor! E, para um pianista medíocre
como eu, essa música é impossível de tocar! Aquilo é Chopin
com uma pulsação! Era uma turma de eruditos que faziam
música popular, jazz misturado com fado e com os ritmos
negros (LESPRIT, 2005, sp).

Mais tarde, completando a genealogia da apropriação da música popu-


lar brasileira por artistas e públicos franceses, os anos 1960 e 1970 foram
caracterizados por uma diversificação do repertório brasileiro apresentado

87
A morte de Villa-Lobos marcou o fim de um período no campo da música erudita, enquanto o filme Orfeu
negro permitiu que os franceses se familiarizassem com um novo género do Brasil: a bossa nova.

150 Leandro Colling


aos franceses. À música festiva do carnaval, responde agora ao canto
abafado da bossa nova, adotado pelos jazzistas americanos e franceses. O
estabelecimento da ditadura civil-militar no Brasil, em 1964, e o influxo de
exilados em França, acrescentou um componente político à mensagem, o
que fez com que o público francês começasse a perceber a profundidade
da poesia veiculada pela música brasileira. Essa nova fase de divulgação da
música brasileira incluiu sua dimensão política, uma vez que foi considerada
um baluarte contra a massificação e acompanhada por um desejo de com-
preender as realidades políticas e sociais do Brasil. Para Silvia Capanema,

Foi um período de esperança para o Brasil. Juscelino


Kubitschek chega ao poder com grandes projetos de moder-
nização, desenvolvimento industrial, obras de construção
com Brasília... Os anos cinquenta e sessenta também foram
marcados por grandes reformas sociais e projetos de inclu-
são, como a alfabetização em massa, com o pedagogo Paulo
Freire. Foi também um interlúdio democrático entre duas
ditaduras. Abrem-se as portas aos artistas e intelectuais
estrangeiros, que redescobrem o Brasil. Nem tudo isso
foi obra de Kubitschek, mas começou com ele e terminou
com a ditadura em 1964. Um breve, mas excitante período
(CAPANEMA, 2022, sp).

Além disso, os anos 60 e 70 assistiram ao surgimento de colaborações


entre artistas franceses e brasileiros, como testemunham os itinerários de
Pierre Barouh, Georges Moustaki e Claude Nougaro, entre outros, a partir
transmissões em master classes dadas por músicos brasileiros em salas
exclusivamente dedicadas à música brasileira ou quando em digressão com
músicos franceses e brasileiros, tais como por Claude Nougaro e Baden
Powell em 1974-1975.
Esse foi o roteiro de muitos cantores brasileiros que visitaram a França
neste período, e o Discophage, em Paris, era um desses celeiros da novís-
sima MPB. A diáspora brasileira em Paris consolava-se em um cabaret na
rua des Ecoles.

Arte da Resistência 151


Fig. 4 - Foto: Jacques Bertin.

Costumava-se dizer que era no Discophage, um pequeno clube franco-


brasileiro na Rue des Ecoles, em Paris, uma espécie de cabaret rive-gauche
(BERTIN, 2005), um corredor com uma falsa escada de incêndio trompe-l’oeil,
onde o proprietário costumava servir bebidas e comidas brasileiras, “une
caïpirinha qui rendait à moitié aveugle - uma caipirinha que dava cegueira”
(EMBARECK, 2011). Era onde poderíamos encontrar com Baden Powell,
Chico Buarque, músicos como o angolano Bonga, Françoise Hardy, Françoise
Sagan, Bernard Lavilliers e tantos outros que aprendiam a amar a música
brasileira. Era no Discophage que se ouvia o mundo antes da world music.
Se concordarmos com Fléchet (2013), que “a música passa por pes-
soas e lugares”, a música popular brasileira fez morada no Discophage,
que começaria e encerrar suas atividades a partir de 1991 e, oficialmente,
cerraria suas portas em 1995.

152 Leandro Colling


Podemos notar pelas palavras de Ricardo Vilas (2018) que, além de uma
vitrine para a MPB em si, essa “formidável ebulição cultural” (GOMEZ, 2012),
ponto de encontro, festivo e animado era, também, espaço para network dos
artistas que lá se apresentavam, afinal a carreira do duo Teca & Ricardo, que
começaram a fazer música juntos em 1972, tocando em todos os bares de
Paris, só se abriu depois que o empresário Claude Nougaro os “descobriu”
em 1974 no Discophage:

Ele ia frequentemente ao Discophage e uma noite estáva-


mos tocando. Ele adorou e nós lhe demos nosso primeiro
disco, “Musiques et Chants du Brésil”, que tinha acabado
de sair. Alguns dias depois ele nos chamou e disse: “Eu
quero que você faça o Olympia comigo”. Ele também cha-
mou Baden Powell para fazer este show de duas horas e
meia, muito bonito, que, creio, marcou muito. No final, Yves
Montand veio até nós e disse: “Madame, gostei muito de
sua voz, senhor, gostei muito de sua música”. Isso foi algo!
E depois fizemos muitas turnês com Nougaro em grandes
locais e festivais até o final de 1975. Ele então decidiu mudar
seu show e levou Tânia Maria e depois Les Etoiles (em 1977,
nota do editor). Mas isso nos abriu as portas do show busi-
ness francês e convivemos com todos os grandes artistas
franceses da época (VILAS, 2018, s/p).

Fig. 5 - Fotos de Eric Marcel.

Arte da Resistência 153


Apesar do seu espaço restrito e desconfortável, como revela Bernard
Lavilliers: “um pequeno palco, oitenta pessoas, fumo impenetrável, 60
graus na sala” (DOYEZ, 2010), o Dicophage “Mais do que uma discoteca,
era um verdadeiro lugar para se viver, uma pequena catedral de encontros,
onde esfregava ombros com todos os artistas africanos e brasileiros da
época” (BERTHOLD, 2016). Era, com certeza, a segunda casa do público que,
ansioso e fascinado, disputava um lugar na plateia para ver e ouvir variados
e importantes nomes como Zé Luiz Mazzioti, Maurício Carrilho, Paulinho
do Acordeon, Nazaré Pereira, Trio Esperança, Tuca, Rosinha de Valença e,
claro, Rolando Faria e Luiz Antônio que, segundo Cláudio Tovar88 (2020),
reinaram absolutamente e se tornaram as verdadeiras estrelas do “Cabaret
do Brasil”, que, para alguns frequentadores, era a Catedral do Brasil: “Havia
um espetáculo de cabaré com violão, percussão e voz, recorda-se o cantor
‘brasilianista’ Bernard Lavilliers. ‘Eu fazia a parte francesa. Houve um evento
sensacional quando surgiu o conjunto Les Étoiles (As Estrelas), as primeiras
drag-queens” (LESPRIT, 2005, sp).

5.

Em 1972, um grupo de atores-bailarinos criou um espetáculo que provo-


cou grandes discussões sobre a representação do masculino e do feminino.
Os Dzi Croquettes misturavam dança e teatro, nos quais a fronteira entre a
masculinidade e a feminilidade era talentosamente diluída e artisticamente
problematizada.
Segundo Green,

Ao contrário das performances drag da Praça Tiradentes,


que buscavam a beleza feminina clássica, a graça e o estilo
na representação das mulheres, os catorze membros do
elenco de Dzi Croquettes se vestiam com uma mistura de
trajes masculinos e femininos. Homens com voz de barítono
decorados com glitter e maquiagem projetavam sua virili-
dade apesar, ou talvez por causa, dos acessórios femininos
(GREEN, 1999, p. 257).

Os Dzi alcançaram uma grande popularidade em shows no Rio e em São


Paulo durante os anos de 1973 e início de 1974. Com a censura imposta pela
ditadura civil-militar, o show foi censurado em 1974. Proibidos de representar

88
Cláudio Tovar cedeu entrevista aos autores em 16/12/2020.

154 Leandro Colling


no Brasil, decidiram se exilar em Paris onde reestrearam a peça alcançando
grande sucesso.
A chegada dos Dzi Croquettes na Europa coincide com a estreia de
Luiz Antônio e Rolando no Discophage, já extremamente influenciados pela
estética dzi, que foi a identidade camp que a dupla passou a utilizar nos
palcos, como podemos observar no anúncio de um show: “Contra o rigoroso
inverno parisiense, nada supera a carícia de um quente sol tropical. Luiz
Antônio e Rolando, dois travestis (sic) brasileiros, levam você delirante para
um Brasil multicolorido, animado, arejado e cheio de glitter. As duas estrelas
se pavoneiam, alternadamente ternas e provocativas.” (Corine Scemama,
1981). Essa influência pode ser vista no artigo sobre o show que a dupla fez
no Palais des Glaces em 1981. A chamada do texto é “To be or not to be”:

Show embriagador, música que te toma como um feitiço,


figurino cintilante, cílios postiços, maracas, guitarras, cola-
res, feminilidade ultrajantemente musculosa, os ex mem-
bros do grupo Dzi Croquetes, outros travestis excessivos
(ou drags excessivas), essas estrelas deliciosas que nos
chegam de longe nos oferecem um piscar de olhos matreiro
carregado de rímel (LEVYS, 1981).

A dupla Les Étoiles nunca foi parceira criativa dos Dzi, sequer traba-
lharam juntos, mas tinham em comum, além da profunda amizade, o tesão
pelo palco, a estética camp e a ousadia na suas perfomances.
A classificação de Luiz Antônio e Rolando Faria enquanto drag queens,
ou que faziam “shows de travesti”, será discutida na construção do livro. Por
ora, para situar o/a leitor/a, basta dizer que as discussões sobre identidade
de gênero sequer tinham chegado aos espaços de sociabilidade LGBT+, aos
guetos, elas inexistiam nessa época, inclusive nos meios acadêmicos. Para
se ter uma ideia da indefinição do que, de fato, era o Les Étoiles, o canal da
TV francesa que veiculou o documentário sobre a dupla e já citado aqui, no
resumo afirma se tratar de um “Retrato de dois cantores travestis brasileiros”.
O Étoiles utilizava roupas, maquiagem e gestual feminino, “vestia um
gênero” que não era considerado o deles, na verdade de nenhuma identidade
fixa, na medida em que exacerbavam e ultrapassavam o que seria a visua-
lidade feminina, ou seja, algo caro ao universo queer e à visualidade camp.
Suas performances subverteram a cena tradicional e, sob certo ângulo,
sublinhavam sua grande musicalidade, aspecto que todos os entrevistados
foram unânimes em destacar: a beleza das vozes e da harmonia musical que a
dupla apresentava. Como podemos ver no convite/anúncio que o compositor,
pianista, arranjador e ganhador do Oscar Michel Legrand faz sobre a dupla.

Arte da Resistência 155


Quem nunca sonhou em poder nomear todas as estrelas da
nossa galáxia? Bem, aqui estão duas do Brasil, um país onde
tantas estrelas brilham durante o dia. Seu nome: Rolando
e Luiz Antonio. Eles agora brilham em Paris, dia ou noite,
com sua invenção, seu prodigioso senso de ritmo, uma rara
musicalidade que me dá um prazer tão profundo cada vez
que não posso resistir ao desejo de convidá-lo a segui-los
em sua jornada. levá-lo embora, vai encantá-lo (LEGRAND,
1982, s/p).

Para Divina Valéria, os Les Étoiles,

Eram muito famosos, talentosíssimos. Duas grandes perso-


nalidades de quem eu fiquei muito amiga, moramos juntos
várias vezes, sempre mais com o Luiz Antônio, eu, do que
com o Rolando, porque o Luiz Antônio era mais a minha
cabeça, mais louca também, como eu, e Rolando era mais
centrado. Luiz Antônio sempre viveu no limite, então fazia
de tudo, tomava todas, cheirava todas, dormia pela manhã,
tinha problemas de diabetes, não podia comer doces, comia,
fazia tudo o que não podia. Muitas vezes só ia fazer o show
na cadeirinha de rodas, mas não existia ninguém mais
estrela do que ele, mais estrela não existe, que maravilha,
que talento, que maravilha Luiz Antônio (VALÉRIA, 2021,
20min, entrevista aos autores).

O Les Étoiles gravou o seu primeiro álbum em França em 1976: Meu cora-
ção é um pandeiro, o que os tornou famosos na Europa. A atitude transgres-
sora de suas performances no palco se repetiu nas capas de seus álbuns.
As capas de disco, de um modo geral, tentam ser mais do que apenas uma
embalagem de proteção do vinil, elas registram graficamente questões
comportamentais ou estéticas do conteúdo musical. Segundo Rodrigues,
“as capas de disco a partir de 1966/1967 assumem seu papel de objeto
expressivo. Além de divulgar artistas e proteger o vinil, vão servir de suporte
para experiencias artísticas, projetos audaciosos do design gráfico e, por
meio desses, apontar, espelhar, retratar todo o imaginário de uma época
(RODRIGUES, 2007, p. 15).

156 Leandro Colling


Fig. 6 – Notícia do jornal La Dépêche, de Toulouse, 01/09/1980 (Arquivo dos autores)

A dupla gravou seis LPs durante sua carreira. São eles: 1976: Meu cora-
ção é um pandeiro ou... (distribuído pela RCA/Paris e RCA/Madrid); 1977:
Piratas do sentimento (distribuído pela RCA/Paris); 1977: Les Étoiles: Rolando
e Luiz Antônio (distribuído pela RCA/Alemanha89); 1979: Ao vivo no Discophage
(distribuído pela WEA/Paris); 1981: Les Étoiles (distribuído pela RCA/Paris);
1985: Sina de ciganos, para o décimo aniversário do duo (distribuído pela
Mélodie/Paris; 1986: Les Étoiles au Forum, álbum gravado ao vivo no Forum
des Halles, em 26 de novembro de 1985.
Em fevereiro de 2022, os autores deste texto foram a Paris para a última
etapa da pesquisa, que consistia em algumas entrevistas presenciais e
consultas, tanto em centros de documentação como no acervo pessoal

89
Este LP tem o mesmo repertório do álbum lançado em 1976.

Arte da Resistência 157


de Rolando Faria, que ficou sob a guarda de Marcos Jatobá, amigo pes-
soal de Rolando que o acompanhou até a sua morte. Aliás, foi Jatobá quem
nos recebeu em Paris e cedeu todo o acervo para esta pesquisa. O acervo,
agora, está com os pesquisadores que trabalham na seleção e catalogação
do vasto material, que servirá de suporte fundamental para cobrir lacunas
importantes da transgressora história de Luiz Antônio e Rolando Faria, as
estrelas negras da MPB.

158 Leandro Colling


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160 Leandro Colling


Zoologização da vida e
taxidermia dos homens negros

Daniel dos Santos

Conforme minha carreira progredia e as


pessoas começavam a me elogiar por ser
selvagem, eu ia percebendo que ser cha-
mado de animal era o maior elogio que
poderia receber de alguém.
Mike Tyson, A verdade nua e crua

Eu quero que você reconheça que eu sou


um macaco orgulhoso.
Kendrick Lamar, The Blacker The Berry

Este ensaio compreende um breve estudo sobre o processo de animali-


zação simbólica dos homens negros a partir do regime iconográfico de repre-
sentação racial e sua genealogia imagética. Desenvolvendo um exercício
de leitura e análise de um conjunto específico de fontes audiovisuais, pre-
tende-se problematizar as poéticas da estereotipagem das masculinidades
negras, centralizando o macaco enquanto signo de codificação existencial do
negro. Estabelecendo diálogos críticos inter e multidisciplinares, o objetivo
deste estudo é compreender como o dispositivo da imagem é acionado e
manipulado para o asselvajamento, taxidermização e zoologização da vida
dos homens negros, fascinantes monstros, bestas e criaturas protagonis-
tas do grande espetáculo da anti-humanidade. Este ensaio também é uma
amostra do processo de investigação do #TheGangstaProjectII, projeto que
resultou em uma tese de doutorado sobre as masculinidades negras na
obra audiovisual do rapper Kendrick Lamar, iniciado e desenvolvido em sua

Arte da Resistência 161


fase anterior no Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e
Sexualidades (NuCuS), da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Aproximem-se e contemplem A COISA.

(...)

O filósofo congolês V. Y. Mudimbe (2019) caracteriza o europocentrismo


como um sistema binário e dicotômico da ordem colonial, principal estrutura
responsável pelo processo de desculturação das civilizações e socieda-
des africanas dominadas e subjugadas pela Europa. O europocentrismo
condicionou e viabilizou o acesso e domínio do colonizador europeu das
dimensões psíquicas e subjetivas dos sujeitos colonizados, dimensões essas
negligenciadas e ocultadas pelas análises materialistas e econômicas dos
projetos coloniais. Partindo dessa perspectiva, o jogo colorimétrico preto e
branco impresso no encarte do álbum To Pimp a Butterfly (2015), do rapper
Kendrick Lamar, consiste uma operação simbólica que não somente revela os
contrastes raciais na América do século XXI, mas, de maneira mais profunda,
a perpetuação histórica dos paradoxos impostos pelo europocentrismo,
inscritos na arte renascentista que codifica no silêncio do contraste das
tintas de suas produções artísticas seu regime ideológico e epistemológico
de produção de conhecimento sobre o Mesmo e o Outro, como argumenta
Mudimbe (2019). A óptica colonial visualiza e reflete o mundo de forma
bicolor, manifestando-se em nossos tempos de maneira dissimulada pelo
daltonismo e cegueira racial, que diluem e invisibilizam o complexo espectro
de cores hierarquizadas pela ordem pigmentocrática vigente.
De acordo com Mudimbe (2019), a ordem colonial demarcou um novo
espaço intermediário, um entrelugar no qual o sujeito colonizado é posi-
cionado entre suas próprias tradições e cultura e as tradições e cultura
impostas pelo colonizador e passa a habitar uma zona de marginalidade.
É na espacialidade da zona de marginalidade que elementos culturais do
colonizado e do colonizador entram em estado de colisão e imbricamento, na
qual a existência do colonizado é interditada e a sua vida precarizada, o que
causa no sujeito colonizado/marginalizado sintomas de medo, desespero e
vulnerabilidade diante da grande ameaça de aniquilação de seu passado e
suas tradições ancestrais herdadas. Como a narrativa do escritor Ta-Nehisi
Coates (2020) problematiza no romance A dança da água, a despossessão do
sujeito escravizado ocorre a partir da destruição ritualística de sua memória,
sendo a escravidão uma grande cerimônia funerária de seus desejos: “[...]
A escravidão é desejo cotidiano, é nascer em um mundo de alimentos proi-
bidos e tentações intocáveis: a terra à sua volta, a roupa que você costura,
os biscoitos que você assa. Você enterra o desejo, porque sabe onde ele vai
levar” (COATES, 2020, p. 116).

162 Leandro Colling


Coates pontua em sua narrativa ficcional, a partir da figura histórica da
abolicionista Harriet Tubman, que o esquecimento, além de ser uma estra-
tégia de desempoderamento, é uma tecnologia de morte social: a perda da
memória configura-se enquanto um rito mortuário do sujeito escravizado.
“[...] Esquecer é realmente ser escravo. Esquecer é morrer. (...) Porque a
memória é o carro, a memória é o caminho, a memória é a ponte que liga a
maldição da escravidão à benção da liberdade” (COATES, 2020, p. 270-271).
Apesar de sua grande periculosidade, a zona de marginalidade é uma
territorialidade que não somente possibilita que a agência do sujeito colo-
nizado subverta e transgrida os códigos de masculinidade e de ser/estar
homem do colonizador – sendo esse considerado o “verdadeiro homem” na
perspectiva europocêntrica moderna –, mas invencione novos códigos como
estratégia de resistência e autonomia. Portanto, as influências dos mode-
los e padrões de masculinidades impostos pelo heterocispatriarcado de
supremacia branca agem de maneira coercitiva sobre o homem outrificado
e racializado, hiper exposto a uma densa atmosfera de contaminação de
elementos culturais de ordens distintas que se embaralham e confundem,
o que induz o sujeito marginalizado a desenvolver dinâmicas de rejeição,
adaptação e/ou assimilação dos valores de masculinidades impostos em
seus próprios códigos de conduta e performatividade masculina, dinâmicas
variáveis determinadas e agenciadas pelas individualidades e subjetividades
implicadas. Assim, a busca por masculinidades ancestrais provenientes do
passado histórico pré-colonial pode compreender uma busca inconsciente
por um purismo de formas de ser/estar homem africano, providas de um
ilusório estado plenamente neutro e isento de ocidentalidades coloniais,
visto o nosso estágio demasiadamente avançado de contaminação com a
Modernidade europeia e seus valores universalizados.
Considerando a perspectiva crítica do pensamento da filósofa nige-
riana Amina Mama (2010) sobre questões éticas relacionadas aos estudos,
pesquisas e epistemologias africanas e sobre a África, compreende-se que
é necessário que as pesquisas e estudos sobre as masculinidades negras
ultrapassem a tradição científica da neutralidade e da imparcialidade ilusó-
rias e se transformem em um potente instrumento das políticas das mascu-
linidades dos homens africanos e da Diáspora Negra. Urge politicamente a
criação de uma produção de epistemologias que questionem, interpelem e
desestabilizem as hegemonias das masculinidades estruturadas e estabe-
lecidas pelo colonialismo europeu, que estabeleceu historicamente hierar-
quias de poder fundamentadas nos signos da raça e do gênero. Golpear as
colunas de raça e do gênero pode contribuir para a demolição do edifício do
poder colonial. Apesar de detectar um despreparo ético das epistemologias
nacionalistas e pan-africanas em problematizar questões de gênero e sexua-
lidade, é necessária uma maior investigação sobre como tais epistemologias

Arte da Resistência 163


pensam, refletem e discutem esses marcadores de identificação social, obje-
tivo que não está contemplado no plano de trabalho concebido para desen-
volvimento deste texto. Porém, especula-se que a premissa da identidade
política africana unitária criticada por Amina Mama (2010) pode interferir
e influenciar nas construções e configurações das masculinidades negras
africanas existentes nos movimentos de ativismo e militância afrocêntricos
e pan-africanistas, expressados por grandes ícones e referenciais de repre-
sentatividade política, como o líder político nacionalista negro Honorável
Marcus Garvey. Como argumenta Mama:

As éticas do nacionalismo e do pan-africanismo expres-


saram-se em termos de um amplo comprometimento com
a libertação africana e foram usadas como defesa contra
os ataques internos e externos à integridade intelectual.
Mas sustento igualmente que esta ética se encontra, hoje,
ultrapassada, na medida que continuou a ter por premissa
uma identidade unitária que não contempla as realidades
da diversidade nem as implicações epistemológicas das
divisões sociais. Ao fechar-se às perspectivas trazidas
pelas intervenções epistemológicas do pós-colonialismo
e do feminismo, a pesquisa acadêmica africana continuou
a revelar-se impreparada para enfrentar os desafios colo-
cados pelos fatores da diferença sexual, classe, etnia, e
outras divisões que tanto dizem respeito à realidade social
de África ou à de qualquer outro lugar. Neste aspecto, a
pesquisa acadêmica africana acaba por comprometer a sua
própria agenda ética limitando o contributo que poderia dar
para o surgimento de uma ordem social mais livre e mais
justa (MAMA, 2010, p. 610-611).

As masculinidades africanas não podem ser concebidas por modelos


unívocos e unanimistas que negligenciam a pluralidade de formas de ser/
estar/existir homem no continente africano e seus fluxos transnacionais e
diaspóricos. Os discursos políticos dos ativismos e militâncias na Diáspora
Negra possuem visões e perspectivas sobre gênero e sexualidade singular-
mente codificados e é preciso traduzi-los e interpretá-los para uma maior
compreensão sobre como os homens africanos e suas masculinidades são
observados e representados pelo olhar ocidental. Segundo Amina Mama
(2010), há uma tradição ética radical da intelectualidade africana que possui
vinculações com as epistemologias nacionalistas, anti-imperialistas, pan-afri-
canistas e afrocêntricas, que, hipoteticamente, podem influenciar nas práticas
de representação das masculinidades compartilhadas imageticamente entre
os homens negros. Os processos de descolonização do continente africano
despertaram o sentimento de solidariedade e apoio político de ativistas e

164 Leandro Colling


militantes na Diáspora Negra, fato que torna o pensamento africano e o pensa-
mento negro diaspórico indissociáveis, compreendidos como epistemologias
compartilhadas. A produção científica é idealizada enquanto instrumento
político indisciplinar, transgressor, subversivo e orgânico, que descarta as
noções hegemônicas de imparcialidade e neutralidade científica e estabe-
lece fortes relações entre pesquisa acadêmica e política. O unanimismo dos
discursos sobre as masculinidades africanas presente no imaginário coletivo
ocidental reduz de maneira violenta a complexidade, riqueza e fluidez das
masculinidades presentes nas sociedades e civilizações da África, a partir
dos mitos e estereótipos raciais. O regime de representação sobre as mascu-
linidades africanas pode estar intrínseco às políticas de produção intelectual
e dos construtos de identidades africanas. Em diálogo com o pensamento de
Kwame Appiah, Amina Mama (2010) compreende as identidades africanas
em sua multiplicidade, fluidez e mutabilidade histórica e institucional, cons-
truídas a partir das dimensões das diferenças, passíveis de contestações e
redefinições provocadas pelos agenciamentos dos sujeitos e pelos processos
de lutas políticas e sociais.
Para o filósofo anglo-ganês Kwame Anthony Appiah (1997), até o século
XIX as culturas da África negra permaneceram praticamente intocadas pelas
influências do Ocidente, pois a maioria dos modos de vida dos povos africa-
nos permaneceram pouco impactados pelos contatos com os colonizadores
europeus. O autor argumenta que as relações entre o continente africano e o
continente europeu foram historicamente estabelecidas através dos intensos
fluxos de comércio que antecederam os projetos coloniais da Modernidade
europeia, o qual incitou o tráfico de africanos em larguíssima escala para o
Novo Mundo. A influência cultural europeia na África antes do século XX foi
limitada, presente nas atividades missionárias, criação de escolas ocidentais,
contatos com os exploradores mediante as relações comerciais no litoral
continental, que produziram uma elite letrada de africanos europeizados,
mas tais fatos não colocaram em crise as culturas presentes no continente
africano. Para Appiah (1997), as culturas africanas só começaram a sofrer
impactos mais profundos a partir das repercussões da Primeira Guerra
Europeia e com o fenômeno do neocolonialismo imperialista europeu.
Em concordância com Appiah (1997), para entender a variedade de
culturas contemporâneas presentes na África, é preciso reportar às varie-
dades de sociedades e culturas já existentes antes do fenômeno do colo-
nialismo. As próprias diferenças entre os projetos coloniais implementados
pelos Estados-Nações europeus na Modernidade também tiveram seu papel
na configuração das diversidades do continente, pois o impacto da colo-
nização sobre as diversas sociedades e culturas africanas também ocor-
reu de maneira heterogênea. Falar então sobre masculinidades africanas
enquanto uma simples coletânea identitária de estilos de conduta, hábitos de

Arte da Resistência 165


pensamento e valores performatizados por homens no continente africano,
é algo incorreto. Mas, não há dúvidas de que, um século depois, existam
possíveis identidades africanas e formas de ser/estar homem africano nos
povos e etnias que compõem as populações em África, que existem para
além do signo da raça. Toda identidade cultural é um construto histórico,
espécie de papel social que é roteirizado, estruturado pelas narrativas e
experiências individuais e coletivas de sujeitos que compartilham elementos
em comum. Appiah (1997) critica o signo da raça que estrutura a ideia de
uma única identidade africana, apesar de raça ser uma construção social
relevante e estratégica por ter se tornado um dispositivo político importante
nos processos de descolonização africanos pós-Segunda Guerra Europeia.
Para reafirmar esse posicionamento, o autor argumenta que no pensamento
pan-africanista a solidariedade negra é uma força importante com bene-
fícios políticos reais, porém não funciona sem as mistificações, ficções e
biologizações concomitantes a ela atribuídas. Ser africano ou possuir uma
identidade africana é um dentre muitos outros modos de existência e vida
social resultantes das relações de força entre colonizadores e colonizados.
É preciso atribuir sempre fatores políticos nas construções das identidades
e, óbvio, das masculinidades negras. Três aspectos importantes acerca da
construção das identidades africanas são apontados pelo autor como cru-
ciais: primeiro, o fato de as identidades serem complexas, múltiplas, emer-
girem de uma conjuntura histórica e serem mutáveis às forças econômicas,
políticas e culturais, quase sempre em oposição às outras identidades postas
pela hegemonia colonial; segundo, o fato das identidades surgirem daquilo
que o Appiah chama de “desconhecimento”, ou seja, a despeito de terem suas
raízes baseadas em mitos e mentiras históricas; e terceiro, a ideia de que não
deve haver espaço para a razão para construir as identidades: é necessário
apoiar e celebrar as identidades existentes no continente africano enquanto
formas de esperança social e silenciamento das mentiras e dos mitos em
relação ao mesmo. Entretanto, além do grande perigo da univocidade iden-
titária, a busca desenfreada por masculinidades africanas é um movimento
direcionado à ancestralidade estimulado pelo anseio de reconhecimento
e representatividade que se manifesta nas dimensões intersubjetivas da
Diáspora Negra, podendo engendrar novos estereótipos e verdades infun-
dadas sobre os homens africanos. Uma possível cartografia das masculi-
nidades dos homens negros do continente africano é um projeto ostensivo
que só é possível se considerarmos, como alerta o pensamento mbembiano
(MBEMBE, 2018 e 2017), o caráter itinerante, circulatório e transitório das
identidades africanas, além do caráter cada vez mais cosmopolita que as
mesmas foram adquirindo com o fenômeno da diáspora transatlântica.
A colonização é o palco no qual é encenada a grande saga do roubo da
autenticidade do eu do sujeito outrificado e racializado. Como argumenta
Mbembe (2018, 2017), o colonizado é um receptáculo preenchido por um eu

166 Leandro Colling


alheio e alienado, posto no lugar do seu verdadeiro eu autêntico usurpado
pelo colonizador. Sobre a pele de seu corpo despossuído são inscritos cifras
e códigos que tornam sua existência ininteligível, repleta de mistérios e
segredos a serem revelados, o que mergulha o homem negro na escuridão
de sua noite existencial e demoníaca em seu obscurantismo. Assim, como
a noção de selvagem foi útil para a expansão do mercantilismo europeu
e o projeto colonial da Modernidade europeia, a noção de criminoso, que
parte da estereotipação racial do ethos gangsta, é útil para a preservação do
capitalismo ocidental, o filho mais prodigioso do colonialismo e da escravidão
moderna. A história da cultura do entretenimento ocidental é a história
dos dispositivos de propagação, difusão e consolidação dos discursos
raciológicos de dominação do heterocispatriarcado de supremacia branca,
instrumentos e ferramentas utilizados para preservação e exaltação dos
valores universalizados eurocêntricos de humanidade. Dos espetáculos de
ministrels e suas obscuras técnicas caricaturais blackface do século XIX às
produções audiovisuais das plataformas midiáticas pós-modernas do século
XXI90, o macabro espetáculo dos mitos e estereótipos acerca das populações
negras é inter-geracionalmente remontado, como clássicos de Shakespeare
que nunca são esquecidos como arcaísmos sepultados no cemitério da
memória histórica. Como nos lembra Mudimbe (2019), dentre as inúmeras
construções discursivas etnocêntricas do pensamento moderno europeu
em relação às sociedades e civilizações do continente africano, a noção
de selvagem foi fundamental para que a branquitude viesse a se tornar
o significado mais absoluto e supremo de humanidade e exercesse uma
onipotência taxonômica na ordem global. No cinema hollywoodiano, como
argumenta Robin R. Means Coleman (2019), a imagem do africano selvagem
se manifesta seja a partir de uma perspectiva fantasmagórica e monstruosa
com a finalidade de incitar o medo e o terror no público espectador, seja
a partir de um ocultismo simbólico em narrativas implícitas, nas quais
macacos, tribos, tambores, objetos fetichizados, rituais misteriosos e outros
elementos simbólicos evocam o espírito demoníaco da selvageria e barbárie
provenientes da África. As narrativas cinematográficas hollywoodianas
geram efeitos psíquicos de forte aversão e repulsa aos signos atribuídos às
sociedades e civilizações africanas, castrando o desejo de (re)conhecimento
da ancestralidade africana e suas tradições que configuram o legado das
populações negras, corroborando para a permanência do mal-estar causado
pelo desenraizamento histórico e isolacionismo genealógico destas.
Partindo de uma perspectiva arqueológica das simbologias raciológicas,
o selvagem africano é considerado aqui enquanto um dos signos matriciais
dos mitos e estereótipos sobre as populações negras, sobretudo os homens

90
Ver o filme A hora do show (2000), de Spike Lee, e a série Them (2021), de Little Marvin.

Arte da Resistência 167


negros. O grande perigo do homem negro para os herdeiros da supremacia
branca está na degenerescência codificada em seu fabuloso material gené-
tico: a selvageria que, ao contrário das narrativas históricas de dominação,
não foi trazida em embarcações pela hidrografia densa e caudalosa desde o
Níger, do Atlântico e do Mississipi para os rios que desaguam dentro de nós,
mas sim das águas sangrentas que banham a Europa. As masculinidades
europeias coloniais possuem a selvageria enquanto princípio fundante de
seus construtos: os homens negros aprenderam com os homens brancos
a incorporar arquétipos de barbárie que os encarceram em um paradoxo
estabelecido entre a natureza e a civilização, transfigurados em corpos
des-historicizados, essência de sua condição humana interdita como observa
Mbembe:

[...] A humanidade do negro não possuía história enquanto


tal. Essa humanidade sem história não conhecia nem o tra-
balho, nem a proibição e menos ainda a lei. Não estando de
modo nenhum liberta da necessidade animal, dar ou rece-
ber a morte não significava qualquer violência aos olhos do
negro. Um animal que podia sempre comer um outro. O signo
africano possuía assim algo de distinto, de singular e de
indelével que o separava de todos os outros signos humanos.
Nada dava melhor testemunho dessa especificidade que o
corpo, suas formas e suas cores. Ele não abrigava consciên-
cia nenhuma, nem apresentava traços quaisquer de razão e
de beleza. Consequentemente, não se lhe podia dar o sen-
tido de um corpo de carne semelhante ao meu, uma vez que
ele consistia tão somente em matéria estendida e em objeto
fadado ao perigo e à destruição (MBEMBE, 2018, p. 154-155).

O selvagem africano, na verdade, é uma grande alegoria aterrorizante


sobre a face oculta do homem europeu e sua masculinidade, roteiro de uma
tragédia existencial interpretado pelo Outro racializado no palco sombrio
da colônia, espaço de afirmação e consagração da virilidade do colonizador,
a partir da performatividade de subjugação do colonizado. Em diálogo com
o pensamento de Aimé Césaire (2020), a colonização submeteu o europeu
a um processo profundo de descivilização, embrutecimento e asselvaja-
mento, uma sistemática degradação social que incitou a prática da cobiça,
violência, ódio racial e relativismo moral, o que legitimou e normalizou o
genocídio do colonizado. Nenhuma nação desenvolve projetos coloniais
de maneira inocente ou impune: nações colonialistas são nações doentes,
feridas moralmente, bárbaras e degeneradas. Toda nação colonialista é uma
anti-civilização e todo colono é um modelo de anti-humanidade. A coloniza-
ção não só desumaniza o colono como também o sujeito colonizado e provoca
modificações intensas nas subjetividades através da experiência colonial.

168 Leandro Colling


A desumanização do sujeito outrificado e racializado é uma bala disparada
pelo colonizador que atinge fatalmente a subjetividade do colonizado, mas
sofre aquilo que Césaire (2020) caracterizou como “ação de ricochete”, que
volta-se contra o próprio colonizador, funciona como um espelho que gira em
torno de seu próprio eixo, reflete vertiginosamente a sua desumanidade e
incivilidade para si mesmo e para os outros e manifesta inconscientemente
sua barbárie e ódio de si, de acordo com o pensamento de Achille Mbembe
(2018). Na simultaneidade da ação colonizadora, o homem (o branco) se torna
selvagem a partir do asselvajamento daquele considerado não-homem (o
negro). Todavia, o sujeito outrificado é um receptáculo transbordante dos
restos simbólicos rejeitados e descartados pelo sujeito outrificador, em uma
dinâmica subjetiva de projeção de sua selvageria em seu vazio. O homem
negro torna-se então um amontoado ambulante de escombros e destroços
da construção da humanidade do homem branco, matéria-prima da mais
péssima qualidade muitas vezes reutilizada na controversa arquitetura de
suas masculinidades e formas de ser/estar homem no mundo, tornando-se
o “Resto”, “reflexos depauperados do homem ideal”, “resquícios de humani-
dade”, “campos de ruínas da virilidade”, como argumenta Achille Mbembe:

O Resto – figura, se tanto, do dessemelhante, da diferença


e do poder puro do negativo constituía a manifestação por
excelência da existência objetificada. A África, de um modo
geral, e o negro, em particular, eram apresentados como os
símbolos acabados dessa vida vegetal e limitada. Figura
excedente em qualquer relação a qualquer figura e, por-
tanto, fundamentalmente infigurável, o negro em particular
era o exemplo consumado desse ser-outro, vigorosamente
forjado pelo vazio, e cujo negativo havia penetrado todos os
momentos da existência – a morte do dia, a destruição e o
perigo, a inominável noite do mundo. Hegel dizia a propósito
de tais figuras que eram estátuas sem linguagem nem cons-
ciência de si; entes humanos incapazes de se despir de uma
vez por todas da figura animal com a qual se confundiam.
No fundo, era da sua natureza abrigar o que já estava morto
(MBEMBE, 2018, p. 30).

É perceptível uma interconexão inconsciente entre as imagens produzi-


das pela performance de Kendrick Lamar na cerimônia do Grammy Awards,
em 2016 – na qual apresenta-se diante do público algemado e acorrentado
entre outros homens negros, como se fossem animais de uma atração cir-
cense – com outras quatro imagens relativamente populares no imaginário
coletivo racial. A primeira delas, senão uma das mais conhecidas e simbo-
licamente controversas, é o espetáculo de exibição do macaco King Kong à
sociedade estadunidense na primeira metade do século XX, capturado das

Arte da Resistência 169


profundezas da natureza selvagem e submetido à um ritual coletivo de con-
templação do exótico enquanto prática do entretenimento branco, presente
na narrativa clássica do filme de 1933, com remakes produzidos e lançados
em 1973 e 2005, além das sequências da franquia em 2017 e recentemente
em 2021, dado que informa a longevidade das práticas de estereotipação
do cinema hollywoodiano, visto dessa maneira enquanto uma instituição de
poder responsável pela preservação, manutenção e perpetuação do regime
iconográfico de representação racial e suas representações raciais cano-
nizadas. De acordo Robin R. Means Coleman (2019), King Kong é proposto
enquanto uma grande metáfora acerca das origens primitivas do homem
negro, na qual a negritude é codificada implicitamente ao signo do macaco:

[...] Kong é ‘enegrecido’, ou racialmente codificado, quando


justaposto em relação à presença de brancos no filme [de
1933]. Kong é a cor negra emergindo de uma cultura pri-
mitiva mais ‘baixa’, onde é cercado por nativos negros – ou
mini-Kongs, quando se vestem como macacos para adorar o
grande Kong. A trilha sonora que acompanha as cenas com
Kong e os outros negros no filme consiste de tambores, uma
pista auditiva que é típico dos filmes de selva e da apari-
ção de negros nativos. O filme também continua a confinar
os entendimentos acerca da negritude na primitividade, e
sua sexualidade na selvageria, acrescentando o medo de
grandes falos negros. Assim, King Kong adicionou mais um
motivo para extermínio do Outro negro – seu corpo é muito
bem-dotado quando comparado ao homem branco padrão.
Kong é acorrentado e enviado para os Estados Unidos (sua
trajetória marítima diaspórica), onde experimenta um pouco
da escravidão antes de ser executado por sair enlouquecido
atrás de uma mulher branca (COLEMAN, 2019, p. 94).

A narrativa de King Kong (1933), além de ser comumente interpretada


como uma fábula aterrorizante sobre a sexualidade bestializada do homem
negro, que manifesta na ambiguidade de sua construção simbólica o pânico
da integração e miscigenação inter-racial nos Estados Unidos da Era Jim
Crow, estabelece um elo imagético entre o homem negro e sua ancestra-
lidade africana incógnita – mesmo que na narrativa o macaco Kong seja
proveniente de uma ilha do oceano Índico, não necessariamente ambientada
no continente africano –, concebendo-o enquanto um descendente direto
de uma genealogia de bestas e monstros, na qual sua estranha e bizarra
masculinidade – se realmente podemos pensar na existência de masculi-
nidade nesses termos e condições de representação –, é forjada em sua
selvageria. Kong é escravizado nas dimensões do espetáculo para a promo-
ção do entretenimento degenerado da branquitude, tal qual como homens

170 Leandro Colling


negros, a exemplo do congolês Ota Benga e o estadunidense William Henry
Johnson – o Zip, desde o século XIX. O paradigma eurocêntrico, que inspira e
influencia os valores éticos, morais e civilizatórios do heterocispatriarcado
de supremacia branca, orientou e conduziu o africano selvagem na direção
contrária ao vetor ascendente e progressista da evolução do ser humano e
da cultura. Hiper expostos em feiras, exposições museológicas, shows cir-
censes, zoológicos humanos, parques e vilas étnicas temáticas, homens afri-
canos e mulheres africanas eram as principais atrações do entretenimento
racista estadunidense, eventos de divulgação das teorias eugenistas do
racismo científico e da espetacularização das aberrações e monstruosidades
da raça, realizados sob apoio e patrocínio do neocolonialismo imperialista.
Homens negros e africanos eram exibidos como espécimes peculiares que
compunham uma grotesca fauna racial, além de encenarem performances
públicas de demonstração da natureza instintiva de sua suposta bestialidade
e selvageria animalesca, proporcionando uma autêntica experiência com o
primitivismo, estabelecendo uma conexão direta entre o macaco e o humano
na escala evolucionista do homem. Em fotografias datadas no século XIX
e início do século XX, é perceptível tal relação simbólica por associação
direta e lógica, nas quais Oto Benga posa para a câmera fotográfica com
um macaco em seus braços e William Henry “Zip” Johnson está vestido com
uma fantasia que o caracterizava como um homem-gorila. O processo de
coisificação e zoomorfização do homem negro pelo imaginário racial euro-
cêntrico é a condição primordial da interdição de sua humanidade, atestado
de óbito de sua morte social, decretada até nossos tempos com a ridícula
associação de homens negros a macacos, notável no mundo dos esportes
e nos micro racismos cotidianos, principalmente nas redes sociais.
A figura do escravizado da casa grande, que mais uma vez remete à
figura do Uncle Tom e outros estereótipos de sujeição disciplinar racial, é
engendrada a partir do processo de desessencialização e negação da singu-
laridade do sujeito pela violência colonial. No ambiente privado e íntimo do
senhor, o escravo é transfigurado em seu animal doméstico de estimação,
materializado pela imagem do macaco, rei da selva de delírios do colonia-
lismo. Sua natureza selvagem e exótica fascina, diverte e entretém a todos
os convidados e visitas do senhor. Nas celebrações da plantation, são as
macaquices do escravizado que compõem a programação que irá entreter
a todos que habitam a casa de sangue tingida e adornada de branco. Sendo
seu adestrador, o senhor lhe ensina um repertório variado de números, tru-
ques, traquejos e habilidades que só os humanos conseguem reproduzir
com maior competência, como recitar poemas, decorar passagens bíblicas,
cantar, dançar, tocar instrumentos, contar piadas, aprender outras técnicas
de trabalho que se diferem do eito, e, óbvio, ser um anfitrião apto para o
cerimonial da abnegação e servidão. A animalidade intrínseca ao negro
é humanizada pelo branco como um sadismo recreativo, aumentando os

Arte da Resistência 171


níveis e graus de distorções daquilo que é compreendido entre o homem e o
animal, aquilo que torna o sujeito racializado um pet adorável, que acredita
na ilusão do falso reconhecimento da sua humanidade pelo seu dono. Como
afirma Mbembe (2018), dentro da ficção que é o negro cabe toda uma fauna,
menos a humanidade.
A performance de Kendrick Lamar na cerimônia do Grammy Awards,
em 2016, se relaciona com tais imagens a partir de sua crítica ao asselva-
jamento histórico do homem negro e à espetacularização de sua tragédia
existencial enquanto uma grande anomalia humana, fetiche manipulado
recreativamente para a satisfação dos prazeres do ego da branquitude em
sua humanidade sacralizada, proporcionando entretenimento através de
rituais públicos coletivos de sadismo racial, nos quais fascínio e abjeção
pulsam juntos. Como King Kong, Oto Benga e William Henry “Zip” Johnson,
Kendrick apresenta seu show cercado por celas e aprisionado por correntes
para a grande celebração da indústria do entretenimento musical mundial,
que explora e lucra não somente com a comercialização do seu corpo-mer-
cadoria, mas também dos legados de sua ancestralidade negra transfigu-
rados em produtos por seu precioso valor especulado, neoescravizados
pelo sistema capitalista. O gangsta enquanto o selvagem das florestas de
asfalto e concreto do século XXI é uma figura dotada de riqueza simbólica e
poética de estereotipagem altamente passível de extrativismo e exploração,
tal qual o selvagem africano no sistema escravocrata colonial, figura-chave
que impulsionou o funcionamento das estruturas e dinâmicas do capita-
lismo, propiciando seu desenvolvimento e consolidação. A performance de
Kendrick Lamar expõe as novas configurações daquilo que Achille Mbembe
(2018) identifica como “corpo-objeto”, “corpo-extração” e “corpo-moeda” do
sujeito outrificado e racializado pela Modernidade europeia, o único sujeito
submetido ao status pleno de mercadoria na história da humanidade. O
gangsta enquanto o novo selvagem reinventa o pânico racial em nossos
tempos e justifica a necessidade da existência do complexo industrial-
-prisional, da implementação dos aparatos e instrumentos de vigilância
e controle, bem como dos aparelhos e instituições de disciplinarização,
brutalização, encarceramento e extermínio das populações negras pelo
Estado necropolítico e invenção de novas tecnologias pós-modernas de
exploração, violência e opressão para conter seus instintos atemorizantes
de destruição que ameaçam cotidianamente a integridade da civilização
estadunidense do século XXI.
Em King Kong, a fúria do macaco explode e provoca o caos no mundo
ordenado e sistematizado pela branquitude, levando consequentemente ao
seu extermínio, um aviso alegorizado enviado para todo homem negro que
ousasse desafiar o status quo racial em plena Era Jim Crow. Na performance
de Kendrick Lamar no Grammy Awards, a ameaça selvagem do gangsta, novo

172 Leandro Colling


produto da neurose racial contemporânea, se anuncia como uma insurreição
a partir dos símbolos da ancestralidade negra, redirecionando e canalizando
a fúria racial para a luta política através da arte, seu insumo bélico. O gangsta
manifesta-se para a branquitude enquanto o novo selvagem, produto da
reelaboração simbólica do estereótipo do selvagem africano, dinâmica de
ressignificação de um protótipo imagético estigmatizador criado pelo delírio
sistematizado da paranoia colonial, um “corpo habitado veladamente pelo
animal”, nos termos de Mbembe (2018).
A estética da performance negra lamariana tenta romper com o caráter
zoologizante que os corpos negros assumiram a partir da espetaculariza-
ção de sua outridade pela indústria racista do entretenimento de massas
e dos esportes, a exemplo do boxe. A construção da imagem pública do
pugilista campeão de pesos pesados Mike Tyson articulava em seu discurso
iconográfico signos que remetiam o atleta à selvageria, brutalidade e bes-
tialidade, manipulados seja pelo marketing de divulgação das suas lutas,
seja na construção de sua persona que foi submetida a níveis patológicos
perturbadores a partir da repercussão de seu julgamento e condenação de
estupro, além da lendária luta com Evander Holyfield, em 1996, na qual, em
um estado de extrema agressividade, arrancou com seus próprios dentes
a orelha do seu oponente. Dentre as inúmeras imagens que compõem sua
vasta iconografia, destaco uma foto do ensaio fotográfico de 1989, na qual
Mike posa com sua tigresa de estimação Kenya para a The Ring Magazine,
mostrando para o público a sua vida exótica e extravagante em uma de suas
mansões. Sorridente para a câmera com seu belo corpo musculoso hiper
exposto, somente vestido de cueca branca e segurando sua tigresa por uma
coleira como se fosse um animal doméstico comum, a imagem do pugilista
se assemelha ao arquivo pernicioso de imagens etnológicas do imperialismo
neocolonialista africano, nas quais o homem negro é posicionado pela óptica
colonial de maneira intrínseca à ideia de natureza, representado como uma
antinomia da civilização. A autobiografia de Mike Tyson (2014) evidencia em
sua narrativa o quanto sua vida foi definida pela condição internalizada de
besta e maníaco racial, um selvagem incontrolável, detentor de sexualidade
insaciável, ira irracional, brutalidade ilimitada e instintos que explodem
pirotecnicamente nos ringues para êxtase da branquitude, regime de ultra
desumanização para exploração e extração de lucros de seu corpo-merca-
doria: “Conforme minha carreira progredia e as pessoas começavam a me
elogiar por ser selvagem, eu ia percebendo que ser chamado de animal era
o maior elogio que poderia receber de alguém” (TYSON, 2014, p. 55).
Partindo da perspectiva da zoologização da vida presente no pensa-
mento de Achille Mbembe (2017), o corpo do homem negro é transfigurado
pelo racismo em um projétil disparador do fascínio e abjeção na vida psíquica
da branquitude. Interpelado ininterruptamente pelos olhares outrificadores

Arte da Resistência 173


do voyeurismo racial e seus dispositivos de captura, o seu corpo é sacrifi-
cado com as lâminas afiadas da óptica colonial, em cerimônias de abate
e dilaceramento simbólicos, com o olhar colonial, em concordância com
Mbembe (2017), distribuído em desejos de objetificação, supressão, posse,
incesto e estupro. Sua performatividade é composta por uma série de com-
portamentos dissecados por teorias e métodos etológicos e sua sobrevida
é o principal objeto dos tratados de zoologia racial. Sempre relacionado a
signos animalescos, sua existência na vida social é deslocada e perdida:
estar no mundo civilizado é estar fora de seu habitat natural, em um estra-
nhamento contínuo do mundo dos “verdadeiros homens”. Negros são espé-
cies de criaturas híbridas entre o animal e o homem, socialmente tolerados
e temidos pela ameaça de aniquilação iminente a qualquer estímulo pro-
vocado, como revelam as percepções do personagem Paper Boi em um
dos episódios da série Atlanta (2016-), interpretado pelo ator Bryan Tyree
Henry, diante dos olhares que sua presença instiga: homem negro detentor
de uma corporalidade robusta com altos níveis de melanina, Paper Boi evita
se expor publicamente não por ser um rapper com fama ainda em processo
de ascensão e reconhecimento popular, mas por ser submetido a situações
de constrangimento e coação pelos olhares outrificadores estimulados por
sua presença e aparência, circunstâncias que o fazem permanecer a maior
parte de seu tempo em um auto isolamento doméstico, revelando traços de
antissociabilidade e depressão em sua personalidade. No episódio, após seu
amigo Darius insistir e convencer Paper Boi para sair para comer fora, sua
ansiedade e mal-estar são acionados pela paranoia de estar exposto aos
olhos que se movimentam freneticamente ao seu redor, enquanto espera
seu pedido ser atendido. Após o pedido finalmente ter ficado pronto, Paper
Boi pede para embalar as refeições. Isso irrita Darius, que pergunta o porquê
de sua decisão repentina. Paper Boi se sente como um animal observado
enquanto come em um zoológico. Em outro episódio do seriado, mesmo
após entrar em um estado de surto depois de ter sido assaltado em uma
estrada, vulnerabilizado, ferido, exausto e sangrando, seu sofrimento não é
visibilizado pelo olhar negligente e displicente do adolescente branco que o
encontra em uma loja de conveniência e solicita tirar uma foto, após reco-
nhecê-lo no zoológico sem grades e jaulas que é sua vida enquanto homem
negro. Como afirma Mbembe (2018), a sociedade escravocrata colonial,
especificamente a partir do laboratório de experimentação de técnicas e
ferramentas de aniquilação humana compreendido pela estrutura da plan-
tation, estabeleceu um estado permanente de paranoia racial no qual a vida
social é um profundo delírio, como os vivenciados pelos personagens da
narrativa realista fantástica de Donald Glover em Atlanta.
A performance de Kendrick Lamar no Grammy Awards 2016 subverte
o regime óptico da branquitude, que determina tudo aquilo que pode ou
não ser passível de visibilidade, rasgando as cortinas que mantém oculta a

174 Leandro Colling


América racista que encarcera pessoas negras em escala massiva e indus-
trial, revelando-a para o mundo. Kendrick compreende que a visibilidade que
grandes artistas negros possuem nas plataformas midiáticas e na indústria
cultural do entretenimento atualmente é controlada e manipulada para a
sustentação do discurso falacioso de uma sociedade pós-racial que perma-
nece indiferente e alheia à tragédia vivenciada cotidianamente pelas popu-
lações negras, sustentando-se no discurso esvaziado, artificial e supérfluo
da representatividade racial em seus produtos culturais. Kendrick Lamar
incendeia toda uma fauna racial repleta de macacos, cavalos, elefantes,
cachorros, dentre outros signos zoomórficos atribuídos aos homens negros,
empalhados pela taxonomia racista e domados pelos dispositivos de controle
no grande circo do heterocispatriarcado de supremacia branca.
Sendo herdeiro legítimo do bizarro status social de seu ancestral his-
toricamente mais longínquo, o estereótipo do superpredador negro é des-
cendente direto do estereótipo do selvagem africano, signos imagéticos que
se interconectam genealogicamente no tempo pelo regime iconográfico de
representação racial. De acordo com Ibram X. Kenti (2020), a “Teoria dos
Superpredadores”, criada em 1995 pelo cientista político John J. DiIulio Jr.,
foi difundida pelas plataformas midiáticas como um discurso de estigma-
tização, perseguição e punitivismo aos homens negros, manipulada para
o desenvolvimento de políticas estatais racistas pelo governo de George
Clinton. A promoção do combate permanente e aniquilação do corpo do
homem negro enquanto objeto fóbico se perpetuava então como uma
estratégia política de conquista de votos nas campanhas eleitorais, além
de funcionar como argumentos e justificativas para a implementação de
políticas contra a criminalidade, em plena década do auge do Gangsta Rap,
maior lócus de manifestação e proliferação de tal estereótipo. A explosão
de imagens saturadas de criminalidade, drogas, sexo explícito e violência,
apesar de serem comumente lidas e interpretadas enquanto evidências
óbvias e explícitas dos supostos instintos animalescos da selvageria negra
intrínseca aos homens negros, se tornaram formas controversas de ata-
que dos gangsta rappers tanto pelo extremo moralismo da classe média
e elite negra estadunidense – que repudiava veementemente as posturas
dissidentes e insurgentes manifestadas no ethos gangsta, produtor de espé-
cies indisciplinadoras e degenerativas da raça –, quanto pelos processos de
brutalização, encarceramento e extermínio do Estado necropolítico. Ibram
reflete sobre tal teoria da seguinte maneira:

“A maioria das crianças dos centros das cidades cresce cer-


cada por adolescentes e adultos degenerados, delinquen-
tes ou criminosos”, escreveu Dilulio. “Uma nova geração de
criminosos de rua está chegando – a geração mais jovem,
maior e mais nefasta que a sociedade já conheceu”, advertiu.

Arte da Resistência 175


Meu grupo de “superpredadores juvenis” era composto de
“jovens radicalmente impulsivos, brutalmente impiedosos,
incluindo cada vez mais garotos pré-adolescentes, que
matam, atacam, estupram, invadem, traficam drogas mor-
tais, se juntam a gangues portadoras de armas e criam gra-
ves desordens na comunidade. Nós, jovens negros super-
predadores, aparentemente estávamos sendo criados com
uma inclinação para a violência sem precedentes – em uma
nação que presumivelmente não criava brancos donos de
escravos, encarceradores em massa, policiais, executivos,
investidores, financistas, motoristas embriagados e defen-
sores de guerra violentos (KENTI, 2020, p. 82).

Entretanto, há então uma relação de cooperação entre a ciência, a


indústria cultural capitalista e o Estado necropolítico na implementação
do projeto histórico de aniquilação dos homens negros: 1) a ciência formula
teorias racistas que biologiciza e naturaliza a selvageria do homem negro,
caracterizada por seu instinto superpredatório avassalado, teorizando a
partir de uma intelectualidade conspiratória e alucinatória da raça os homens
negros e suas culturas de masculinidades enquanto uma grande ameaça
social; 2) o Estado necropolítico se apropria da “Teoria do Superpredador
Negro” e outras sórdidas invenções como argumentos, justificativas e fun-
damentos epistemológicos para desenvolver e implementar suas políticas,
aparelhos e dispositivos de perseguição, combate, encarceramento e ani-
quilação dos homens negros, visto o caráter fulminante de sua natureza
selvagem, manifestada principalmente a partir de sua arte degenerada, no
nosso caso, o Gangsta Rap; 3) a cultura das masculinidades dos homens
negros manifestadas pelo Gangsta Rap, em sua maioria críticas sociais
viscerais aos processos físicos, psíquicos e simbólicos de aniquilação dos
homens negros nos Estados Unidos na transição dos séculos XX-XXI, são
transformadas em mercadorias pela indústria cultural fonográfica e para
as diversas plataformas midiáticas, que deturpam, distorcem e expropriam
o Gangsta Rap e seu imaginário como matéria prima de produção do lucro
capitalista. Assim, o ethos gangsta se transforma em um estado degenerativo
generalizado do padrão de vida estadunidense, no qual as vidas dos homens
negros são patologizadas. Diferentemente das políticas do pós-abolição e
pós-direitos civis, não há mais preocupações, interesses e investimentos
na disciplinarização e civilização do homem negro, visto que seu instinto
selvagem é incontrolável: combater, aprisionar e exterminar a grande fera
que aterroriza a sociedade e seu estado de bem-estar social é o que resta.
Para gangsta rappers ou ícones negros do esporte como Mike Tyson, vestir
a pele tenebrosa da besta irascível não significa simplesmente curvar-se à
fantasia do homem branco, mas utilizá-la contra este tornando a ameaça
ilusória criada acerca de sua existência real, redimensionando-a enquanto

176 Leandro Colling


uma forma de contra poder a partir da lógica da espetacularização da vida,
dissimulando sua existência na subversão do script do espetáculo inventado
pela branquitude. Na narrativa do videoclipe Guerillas in tha mist (1992), do
grupo Da Lench Mob feat. Ice Cube, o selvagem africano e o gangsta afro-
-americano, ancestral e descendentes, se encontram e se unem na selva
racial contra as forças aniquiladoras do poder do homem branco, estabele-
cendo contatos e paralelos correlacionais e transtemporais entre construtos
asselvajados de masculinidades negras.
Paul Gilroy (2007) em suas reflexões sobre Doggstyle (1993), álbum
de estreia do gangsta rapper Snoop Dogg, realiza outros exercícios inter-
pretativos e analíticos acerca das práticas simbólicas representacionais
que compreendem os processos de taxidermização e zoologização da vida
dos homens negros e demarca uma linha de fuga bastante interessante,
estabelecida entre os modelos de masculinidade fixados pela hegemo-
nia heterocispatriarcal de supremacia branca e os modelos de civilidade,
moralidade e honra propostos pelo conservadorismo negro masculinista:
exemplo de inadequação e fracasso para ambas perspectivas políticas em
permanente tensão, diante da dupla rejeição do “verdadeiro homem” e do
“quase homem”, Snoop assume em sua persona gangsta o signo do animal
[cachorro], considerado por Gilroy como algo estabelecido entre o humano
e a coisa/objeto, para escapar de sua interdição e abjeção existencial, con-
dição que proporciona uma possibilidade de ser algo para além do para-
digma da raça, manifestando um forte desejo de transcendência a partir
da recusa ao reconhecimento diante da dialética racial e das padronagens
de humanidade construídas e fundamentadas pelo paradigma raciológico.
Como argumenta Gilroy:

Um cachorro não é uma raposa, nem um leão, nem um coe-


lho, ou um macaco gesticulador. Snoop não é um cachorro. A
sua postura de imprimir a máscara do Outro indiferenciado
e racializado com feições caninas enigmáticas revela algo
sobre o funcionamento da supremacia branca e das culturas
de compensação que reagem a ela. Isto pode ser lido como
um gesto político, como acredito, moral. A escolha em ser
um cachorro reles e sujo significa a valorização do infra-hu-
mano ao invés da hiper-humanidade promovida através da
biopolítica centrada no corpo e suas inscrições visuais na
saúde, no esporte, na boa forma e nas indústrias de lazer.
Deixaríamos escapar o ponto principal, caso enfatizásse-
mos em demasia que o cachorro é um sinal do status de
vítima de Snoop, assim como de seus hábitos sexuais, ou
que ele às vezes requer recursos tecnocientíficos de uma
arma de fogo antes de poder interagir em termos iguais com
humanos reais, ou seja, brancos. Ao optar em ser visto como

Arte da Resistência 177


um cachorro, ele recusa a identificação com o corpo mas-
culino aperfeiçoado e invulnerável que se tornou o padrão
corrente da cultura popular negra cimentando a relação
perigosa entre saúde corporal e pureza racial (...) (GILROY,
2007, p. 242).

Contudo, afirmar-se enquanto qualquer outra coisa que não seja aquilo
que é definido e imposto pelas relações de poder como humano, sendo
as noções de humanidade conflitantes baseadas em princípios racialistas
ilusórios e fabulatórios, se torna uma forma controversa de inteligibilidade
de si. Ser animal, monstro ou divindade rompe com as políticas identitárias
que enclausuram o sujeito outrificado em cárceres puramente raciais. O
prazer do pugilista Mike Tyson em ser reconhecido como um animal tam-
bém se situa na sua não correspondência às expectativas das políticas de
masculinidades baseadas na raça, sejam elas provenientes da branquitude
ou da negritude, limitadas e restritas às dinâmicas antagônicas de poder
entre branco versus negro, opressor versus oprimido, colonizador versus
colonizado. Para Gilroy, os significados da liberdade para as populações
negras são definidos pelas políticas de representação: se representar fic-
cionalmente como um personagem animalesco é uma forma intencional de
não-ser e uma tentativa de neutralização das relações de dependência direta
com a metafísica racial predominante para tornar a existência inteligível,
dinâmica performativa que subverte o campo de forças e se assemelha
às dinâmicas performativas agenciadas pelos sujeitos das dissidências e
inconformidades sexuais e de gênero, como informa e demonstra a Teoria
Queer. Assim, afirmar-se orgulhosamente de ser um macaco, como Kendrick
Lamar na poética da música The blacker The Berry, ou se transfigurar em
borboleta na sua própria mitologia é uma forma de fabulação da liberdade
existencial para além dos paradigmas raciológicos universalizados acerca
do humano, visto que as predeterminações dos marcadores socioculturais
das diferenças perdem suas funcionalidades e deixam de fazer sentido para
os animais, apesar de esses serem também interpelados pelas ordenações
e classificações científicas biologicizantes e pela arbitrariedade e compul-
sividade normativista da cultura.

178 Leandro Colling


Referências

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Contraponto, 1997.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
CLEAVER, Eldridge. Alma no exílio: autobiografia espiritual e intelectual de um líder negro nor-
te-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 (coleção Biblioteca do Leitor Moderno).
COATES, Ta-Nehisi. A dança da água. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
COLEMAN, Robin R. Means. Horror noire: a representação negra no cinema de terror. Rio de
Janeiro: Darkside Books, 2019.
GILROY, Paul. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007.
KENDI, Ibram X. Como ser antirracista. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020.
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Zoológicos humanos: gente em exibição na era do
imperialismo. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.
MAMA, Amina. “Será ético estudar a África? Considerações preliminares sobre pesquisa
acadêmica e liberdade. In: SANTOS, Boaventura de Souza e MENESES, Maria Paula (Orgs.).
Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 603-637.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
_____. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Petrópolis:
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SANTOS, Daniel dos. Como fabricar um gangsta: masculinidades negras nos videoclipes de
Jay-Z e 50 Cent. 2ª ed. Salvador: Devires, 2020.
TYSON, Mike. Mike Tyson: a verdade nua e crua. São Paulo: Saraiva, 2014.

Arte da Resistência 179


Virtualidades performativas:
voguing como política do corpo

Roney Gusmão

Introdução

Neste texto proponho tratar da pesquisa que tenho desenvolvido sobre


o voguing desde o período do pós-doutoramento no ano de 2018. Naquela
ocasião interessou-me perceber essa expressão cultural da cena under-
ground LGBTQIA+ como produto da confluência de marcadores de gênero,
espaço e tempo. Com isso, o voguing me insurgiu como oportunidade para
problematizar o gênero numa perspectiva pós-estruturalista, tendo em
conta seus atravessamentos por referenciais estéticos situados em certas
condições temporais e espaciais.
Nesse sentido, deparei-me com a necessidade de observar as articula-
ções contextuais entre o voguing e a dinâmica social, econômica e política
no cenário posterior à Segunda Guerra Mundial, quando do seu surgimento
em áreas periféricas de Nova York. Vale acautelar que não pretendo tratar as
expressões culturais guetificadas como meros produtos de forças hegemô-
nicas, isto é, como substrato fetichizado da ideologia; de outro modo, como
sugere Michel Foucault (2021), busquei investigar microrrelações do poder
e seus efeitos mais infinitesimais para, em seguida, articulá-lo a sistemas
regulatórios mais amplos situados historicamente. Por essa razão, entender
o contexto histórico desenrolado no transcurso do século XX foi primordial
para levar em conta os atravessamentos das relações de poder que não só
segregaram, não só marginalizaram, mas também criaram condições para
que fossem construídos referenciais estéticos performatizados, caricatura-
dos e reinventados no voguing. Partir da base onde operam micropoderes se
tornou aqui oportuno para analisar os referenciais estéticos, os critérios de
inteligibilidade e os discursos trafegados na memória de sujeitos comuns,

Arte da Resistência 181


não como efeito, mas como negociação (replicação e desobediência) entre
as práticas cotidianas e os signos de valor circulados e convencionados na
sociedade.
Ainda entre 2018 e 2019 realizei entrevistas e frequentei o ball scene no
Harlem e no Bronx. Minha intenção era analisar as especificidades do lócus
onde o voguing nasceu, visualizar as idiossincrasias daquele espaço consi-
derado o berço da cena para, em seguida, iniciar as atividades de pesquisa
nas houses brasileiras. Meu propósito seria dar início às atividades de campo
no Brasil em 2020, quando os planos foram frustrados pela pandemia de
COVID-19. Com a pesquisa empírica interrompida, resolvi me envolver mais
profundamente com as variáveis teóricas que o voguing havia me conduzido
e, entre escritas, leituras e lives, passou a chamar minha atenção algo que
eu sempre desprezei nas minhas pesquisas: os espaços virtuais.
Como já mencionado, entendo que o voguing reside na confluência de
três marcadores epistemológicos fundamentais: gênero, inspirado na abor-
dagem queer; tempo, ao qual defino como pós-moderno, e espaço urbano,
como força performativa (GUSMÃO, 2022). Intenciono, portanto, abordar
neste texto esses três conceitos que orientaram minha pesquisa, tendo
inclinação a dar maior enfoque ao espaço, já que nele residiu uma ampliação
conceitual. Isso ocorreu porque, quando em 2020 a pandemia interrompeu
a segunda etapa empírica da pesquisa, a virtualidade foi insurgindo como
espaço performativo cada vez mais relevante para visibilidade do voguing.
Performers passaram a recorrer a redes sociais como possibilidade de
divulgação das afiliações às houses e também como ocasião para expor as
subjetividades materializadas nos movimentos.
Rancière (2005) entende que na partilha de espaços, tempos e tipos de
atividade erige uma estética na base da política. Essa estética, de que fala
o autor, não consiste na mera captura ou ofuscamento da política, mas, de
outro modo, trata-se de “um recorte dos tempos e dos espaços, do visível
e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o
que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005,
p. 16). O autor ainda salienta que a política se ocupa do que pode ser visto e
dito, de quem pode ver e dizer, além das propriedades do espaço e do tempo.
Disso conclui que as práticas artísticas são maneiras de fazer que intervêm
nas maneiras de ser e nas formas de visibilidade, tornando-se, portanto, for-
mas de visibilizar o lugar que ocupam e as práticas comuns. A partir dessa
ideia, ficam mais nítidas as imbricações entre estética/política/espaço, tanto
porque lidam com os regimes de visibilidade instituídos em esquemas de
poder, como por que pautam as maneiras, as práticas ou as subjetividades
como variáveis políticas passíveis de visibilização pela estética.
Nessa intersecção entre estética/política/espaço, o voguing se configura
como performance queer munida de potência política, tanto porque infringe

182 Leandro Colling


os limites do inteligível pelo corpo, como também porque transgrede regi-
mes de visibilidade reiterados em políticas de banimento do corpo periférico.
Ao trazer essa discussão para o século XXI, torna-se possível identificar
a virtualidade como possibilidade de amplificar o alcance dos discursos
produzidos pelo corpo em visibilidade e rabiscar critérios de elegibilidade
política pela propulsão de cenas de dissenso. A virtualidade aqui é interpre-
tada como extensão protética do corpo, como artefato que auxilia sua ação
e vetoriza seus dizeres. O corpo-discurso não se limita a uma materialidade
epidérmica estanque, mas se estende a adereços, dispositivos e outras
exterioridades que auxiliam na criação do seu léxico. Como a bengala que
estende o tato do cego, como a maquiagem que integra os dizeres do ator
ou como adornos que auxiliam a performance da drag queen; a virtualidade
é aqui entendida como força amplificadora do corpo, que expande seus
dizeres nos meandros da vida social.
É nessa direção que o presente texto é conduzido: primeiramente me
debruço sobre o contexto histórico que contornou o voguing no século XX
para depois inserir a virtualidade como espaço propício a amplidão dis-
cursiva dessa performance. Meu objetivo aqui não se limita a defender ou
condenar as novas formas de difusão do corpo, das subjetividades ou das
performances pelas virtualidades. De outro modo, busco problematizar as
possibilidades performativas que se apresentam a grupos minoritários,
destacando o papel das experiências estéticas como potência política no
contexto pós-moderno.

Da sociedade disciplinar à sociedade de controle

A consolidação do capitalismo industrial foi possível mediante um


meticuloso processo de disciplinarização do corpo. A massa desordenada
na sociedade industrial precisava ter forças canalizadas, de modo que os
corpos se tornassem produtivos e disciplináveis ao dispor do sistema. Assim,
a ação do poder no capitalismo dos séculos XVIII e XIX tinha o corpo como
alvo supremo, na meta de ordená-lo, distribuí-lo e docilizá-lo para fins de
seu aprimoramento e extração máxima de suas potencialidades. Michel
Foucault (2014) ressalva que esse poder, ao qual define como disciplinar, não
massifica (o que pressuporia a existência de um sujeito anterior ao discurso,
cujas singularidades seriam asfixiadas), mas, pelo contrário, o poder atua
sobre uma massa confusa e desordeira, fazendo nascer uma multiplicidade
ordenada da qual emerge o indivíduo. Essa análise será útil neste texto para
entender o poder no capitalismo, não como aquele que anula o indivíduo,
mas, ao contrário, como indutor da multiplicação de singularidades.

Arte da Resistência 183


Foucault (2014) também nos lembra que a eficácia do poder na socie-
dade disciplinar requeria a criação de uma nova anatomia política com a
formação de instituições que integrassem os circuitos de poder e garantis-
sem sua atuação mais precisa e mais refinada sobre o corpo. Como lembra
Foucault (2014, p. 137), “a disciplina é uma anatomia política do detalhe”
e, como tal, não poderia operar eficazmente pela centralização soberana.
Daí a necessidade de distribuir os indivíduos no espaço pela instituição de
localizações funcionais, isto é, espaços úteis para ação disciplinadora sobre
os corpos. Escolas, hospícios, presídios, quartéis ou hospitais, por exemplo,
são emblemáticos para se observar a ação de espaços disciplinares que
objetivavam vigiar, disciplinar, docilizar91 o corpo para fins de sua equalização
à métrica racionalizante do sistema.
Todavia, mesmo reconhecendo a ação do poder disciplinar em espaços
fechados, os escritos de Foucault a partir de 1975 já identificavam que os
mecanismos de poder tinham uma tendência a se desinstitucionalizar e
agir em livre circulação. Antes de Gilles Deleuze, Foucault já previa que as
disciplinas se integrariam a processos flexíveis e adaptáveis de controle,
considerando que os indivíduos também já teriam se tornado diversos,
diferentes e independentes, ao ponto de comprometer a eficácia da ação
disciplinar (FOUCAULT, 2003).
Desse modo, se nas sociedades disciplinares dos séculos XVIII e XIX
a ação do poder dependia da presença física da autoridade, o incremento
das técnicas de controle no decorrer do século XX liberta a ação virtual do
poder para além de suas instituições. Ao perceber a complexidade adqui-
rida pela ação do poder a partir do final do século XIX e, principalmente,
no século XX, Deleuze (1992) observou a sobreposição de uma nova ação
poder sobre o que Foucault havia definido como sociedade disciplinar. No
pensamento deleuziano, na sociedade disciplinar “o fora” era aprisionado, ou
seja, buscava-se o enclausuramento do virtual, da força transformativa e do
devir. Tratava-se da docilização do corpo com o fim de impedir bifurcações e
variações indesejadas, em que a ação do poder se lançava sobre as virtua-
lidades do comportamento e intervinha no momento em que a virtualidade
estava se tornando realidade (LAZZARATO, 2006).
A mudança ocorre quando a subordinação do espaço ao tempo92 cria
um bloco espaço-temporal que encarna as tecnologias da transmissão e
da propagação a distância. Isso torna a ação do poder muito mais fluida,
sobrepujando a institucionalização espacial e movendo-se em espaço aberto.

91
Afirmar que a disciplina fabrica corpos dóceis não significa dizer que ela fabrica corpos obedientes. A
docilização diz respeito à maleabilidade do corpo ao ser manejado para fins produtivos. Também não se
trata de uma moldagem imposta, mas consentida no nível do corpo e dos saberes (VEIGA-NETO, 2007).
92
A compressão do espaço pelo tempo, de que falou David Harvey (1992), é um processo acelerado pelas
tecnologias que possibilitaram o sobrepujamento de barreiras espaciais em função da otimização temporal.

184 Leandro Colling


Inspirado nessa transformação, Deleuze (1992), então, dá prosseguimento à
tese foucaultiana para defender a transformação da sociedade disciplinar
em sociedade de controle, cuja ação do poder não tem mais o corpo como
alvo suficiente, mas as subjetividades e as memórias. Na sociedade de con-
trole, a ação do poder antevê desvios e bifurcações, operando antes que as
virtualidades se tornem atualidade. No argumento deleuziano, a sociedade
de controle não substitui a disciplinar, mas a complementa, afinal, como
lembra Débora Machado (2021), na disciplina tem-se o indivíduo como alvo
para correção do comportamento, já na sociedade de controle busca-se
antecipar comportamentos desviantes ou incentivar condutas apropriadas.
A ideia, portanto, é modular o comportamento humano sem necessidade
de restringir suas ações, mas virtualizando os ideais na memória e, no ima-
ginário dos sujeitos, gerar uma plena sensação da liberdade de escolha.
Assim, enquanto as técnicas disciplinares se estruturam fundamental-
mente no espaço, as técnicas de controle trazem o tempo e suas virtualida-
des ao primeiro plano (LAZZARATO, 2006) e, desse modo, as novas forças
passam a produzir processos de subjetivação de modo fluido, sem mais a
antiga subordinação ao espaço. Conforme Deleuze (1992), o confinamento
na sociedade disciplinar tinha o fim de tornar os corpos úteis e produtivos, já
o controle opera em modulações contínuas e autodeformantes, funcionando
não só para aprisionamento, mas também como oportunidade de libertação.
É nesse sentido que a sociedade de controle transcende o confinamento
disciplinar, alarga sua ação em espaço aberto e integra espaços de uma
modulação constante, cujo foco não mais se resume ao corpo, mas também
às subjetividades (COSTA, 2004). Dados são cruzados, informações são
mineradas, seduções são rigorosamente direcionadas a públicos específi-
cos, tendo em vista refinar a eficácia do poder e alargar seus circuitos na
ação entre sujeitos.
Para que o poder na sociedade de controle deixe de ser hierárquico
e se torne disperso e ilocalizável, existe a necessidade de codificação os
fluxos do desejo. Para tanto, Deleuze e Guattari (2012) entendem que o
capitalismo liberta os fluxos de desejo para produzir infinitas possibilida-
des de subjetivação num processo definido como “axiomática do capital”.
A axiomatização do capital consiste na infiltração da lógica capitalista no
imaginário comum, que, sem a necessidade de imposição, torna o indivíduo
seu próprio vigilante. Noutros termos, o capitalismo lida perpetuamente
com sua própria morte, ele produz as condições de sua própria extinção
e, por isso, precisa criar mecanismos que imponham vigilância e controle
sem emprego de violência, capturando para seu próprio ciclo os mesmos
sistemas que lhe oferecem resistência. Daí Deleuze e Guattari (2012) enten-
derem que o aparelho anti-produção acaba não mais se opondo à produ-
ção, já que a axiomática se multiplica e se transmuta num esforço contínuo

Arte da Resistência 185


para sincronizar capital-fluxos-desejo: “você será sempre reencontrado nos
limites ampliados do sistema, ainda que seja preciso fazer um axioma para
você” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 333).
O debate teórico realizado até esta etapa do texto nos é importante para
entender que o voguing é expressão performática de um movimento contes-
tatório que ocorre contra os regimes de opressão, mas também dentro dos
mesmos referenciais estéticos que se impõem como força segregatória das
subjetividades que essa performance anuncia. Como típico dos movimentos
sociais pós-modernos, o voguing é expressão cultural de resistência contra
e no sistema. Sobre isso, Judith Butler (2019b) já havia nos acautelado sobre
o fato de que os sujeitos resistem nos mesmos referenciais em que estão
imbricados, logo, não se deixa de ser sujeito social para ocasionalmente
assumir uma postura de subversão.
Por essa razão, são muitos os estudiosos que defendem o fato de que
as análises sobre expressões artísticas devem levar em consideração os
contextos históricos que integram suas articulações sociais e seus referen-
ciais estéticos. Do contrário, incorre-se o risco de imputar uma consciência
descontextualizada, incapaz de perceber nuances que integram representa-
ções e subjetividades. Como lembra Maurizio Lazzaratto (2006), a sociedade
de controle ativa a co-criação, potencializa máquinas de expressão, que
descentralizam e estimulam multiplicidades. O que ocorreu no contexto
posterior à Segunda Guerra foi justamente essa multiplicação de identi-
dades e filiações que romperam com as velhas metanarrativas do século
XIX. Agora os movimentos políticos não se amoldam a visões universalistas
e unificadoras de mobilização, as velhas estruturas do conhecimento se
tornaram obsoletas ao ponto de velhas dicotomias não mais aglutinarem
os movimentos de resistência. Sobre isso Deleuze (1992) entende que não
mais dispomos de um proletário a quem basta tomar consciência; de outro
modo, a ação contra-hegemônica das minorias hoje prescinde modelos, já
que mais se estabelece como um devir, um processo.
Disso resulta que teorias fundamentadas nas metanarrativas da
modernidade dificilmente admitiriam o voguing como potência subversiva;
ao contrário, certamente o interpretariam como parte fetichizada de uma
massificação em curso. Assim, como será tratado no próximo item do texto,
o voguing precisa ser entendido dentro do seu contexto de nascimento93,
daí a necessidade de acionar variáveis temporais (contexto pós-indus-
trial) e variáveis espaciais (Nova York no século XX). O cruzamento entre
tempo e espaço aqui ajuda a perceber como referenciais estéticos estão

93
Entendo não ser produtivo precisar datações ou condições tão acuradas sobre o nascimento do voguing.
Embora existam muitas especulações e tensionamentos sobre quem o inventou ou sobre o ano em que
nasceu, prefiro entender voguing como expressão performática da comunidade gay underground nascida
no Harlem na Nova York de meados do século XX.

186 Leandro Colling


engendrados em micropoderes, vetorizando a propagação de discursos
de poder conduzidos em circuito. Ao seguir a proposta de Foucault, faço
uma análise ascendente do poder, partindo de baixo para depois tratar do
seu funcionamento em cadeia. Nessa direção, o poder deixa de ser tratado
como fenômeno de dominação homogênea para ser entendido como ação
sobre ações, e isso torna possível decodificar os mundos que ele virtualiza
(a exemplo da estética retratada na revista Vogue) como instâncias abertas
a ressignificações e agenciamentos. Noutros termos, é possível afirmar
que os discursos de poder codificados na publicidade, por exemplo, não
necessariamente produzem uma massificação generalizada, já que os efei-
tos das produções discursivas não podem ser controlados por aquele que
a pronuncia ou a escreve.
Para interpretar o voguing, este percurso teórico possibilita tratar os
referenciais estéticos difundidos na sociedade pós-industrial como abertos à
ressignificação, cuja semântica inscrita no corpo é suscetível de reinvenção.
O voguing, então, se apresenta como resistência dissidente porque não se
amolda aos binarismos94 que inspiram movimentos tradicionais, já que se
nutre da ação rebelde nascida na prática cotidiana como estética corpo-
rizada em afecção coletiva (GUSMÃO, 2021). O voguing, nesta análise, se
apresenta como re-ação política sobre as forças segregatórias codificadas
na estética. Por não rejeitar essas codificações, o voguing acaba não sendo
decifrado como resistência contra-hegemônica pela ótica de movimentos
políticos convencionais.

Voguing e a sociedade de controle

As performances de voguers são inspiradas nas poses de divas publi-


cadas pela revista Vogue, que, ao longo do século XX, integrou um amplo
sistema midiático empenhado na propagação de valores articulados à ideia
de consumo como experiência sensória. Não afirmo aqui que a revista tenha
ditado as normas do jogo estético, de outro modo, argumento que, como
artefato de mídia, a Vogue percorreu pelos mesmos caminhos da moda no
século XX, cujas transmutações recentes são análogas aos incrementos
produtivos do capitalismo pós-industrial. Diana Crane (2006) observa como
a revista Vogue, desde sua criação, no século XIX, conseguiu acompanhar
mudanças na imagem da mulher por meio da moda. A autora também chama
atenção para o fato de que a moda historicamente reifica mudanças sociais

94
Refiro-me às metanarrativas legitimadoras de movimentos sociais tradicionais, cujo escopo de contes-
tação se estruturou em função de bifurcações como oprimido/opressor, capitalismo/socialismo, incluído/
excluído etc.

Arte da Resistência 187


nos papeis do gênero na sociedade, traduzindo-se como marcador visual de
identidades cambiantes. Assim, a incorporação de peças novas ao vestuário
de homens ou de mulheres ajuda a compreender que o gênero se apresenta
visualmente como abertura a ressignificações ao longo do tempo.
Ainda nesse debate, Kathia Castilho e Claudia Garcia Vicentini (2008)
mencionam a forte articulação entre corpo, roupa e gesto como produtores
de sentido e, por efeito, como criadores de processos identitários. Essa ideia
nos ajuda a evitar as cisões conceituais legadas pelo positivismo que, neste
caso, distanciam o interior do corpo de suas exterioridades, o que dá vazão
para abordagens essencialistas do sujeito. Ao tratarmos do intercâmbio de
sentidos que transbordam o sujeito e o aproximam do ambiente e da socie-
dade que o contorna, oportunamente passamos a entender a estética como
estilização do corpo e, no caso da moda, como prolongamento de sua morfo-
logia (CIDREIRA, 2005). Se historicamente a sociedade ocidental moderna
(de forte influência judaico-cristã) excomungou as aparências e submeteu
a materialidade do corpo ao domínio da razão, na pós-modernidade temos
observado um ressurgimento das visualidades como oportunidade de pro-
blematizar múltiplos elementos da vida humana. Isso, inclusive, ajuda a
explicar o interesse pela moda ou pelo corpo nas ciências humanas e sociais
desde segunda metade do século XX, uma vez que decifrar os discursos
re-produzidos pelo corpo e suas visualidades deixou de ser tratado como
frivolidade para se tornar ingrediente significativo das articulações sociais
contemporâneas.
Tratar da moda e do corpo é importante nesta pesquisa porque o voguing
lida exatamente no intervalo entre a força massificadora da moda e a força
recriadora do corpo. Ana Claudia de Oliveira (2008) nos lembra que entre
corpo e roupa existe uma experiência pessoal e um contato sensorial que
dão sentido às transformações da aparência. Com efeito, não só a aparência
é cultivada entre os sujeitos, mas também a dinâmica das subjetividades
que nela estão imbricadas, o que permite deduzir que a construção da apa-
rência revela ao sujeito o seu próprio ser (OLIVEIRA, 2008). Assim sendo,
existe uma criação ativa no espaço entre o corpo e a vestimenta, entre as
subjetividades e as visualidades do corpo, o que coloca em questão a moda
não como substrato de uma massificação pré-programada, mas como con-
densação de subjetividades intercambiáveis. Ideia semelhante podemos
notar na corrente pós-estruturalista, cujos esforços seguem na direção de
desessencializar o sujeito cartesiano e compreendê-lo como um devir em
constante reformulação. Problematizando as questões de gênero em per-
curso semelhante, Butler entende que o gênero “não é nem uma verdade
puramente psíquica, concebida como ‘interna’ e ‘oculta’, nem é redutível a
uma aparência de superfície; pelo contrário, seu caráter flutuante deve ser

188 Leandro Colling


qualificado como um jogo entre psique e a aparência” (BUTLER, 2019b, p.
387, grifo da autora).
Por essa ideia, o gênero, para Butler, não pode ser entendido a partir
do critério da “verdade”, mas como conjunto de atos reiterados que criam
uma falsa sensação de continuidade e permanência. Interessa aqui chamar
atenção para este “lugar entre” psique e aparência, na qual também residem
as identidades, as referências ou as experiências estéticas que dão sentido
de continuidade e, por conseguinte, dotam o indivíduo de inteligibilidade
no grupo social. Portanto, a feminilidade e a masculinidade codificadas no
corpo adquirem um grau de permanência precária na memória, donde o
senso de continuidade é coextensivo da criatividade.
Como será tratado mais à frente, essa linguagem inscrita no corpo pelas
vestimentas ou por maneirismos cria um sentido que é gravado na memória
pessoal e social, ofertando um repertório mnemônico que dá legibilidade
aos sujeitos numa dada sociedade. No entanto, como a memória é faculdade
aberta à recriação (HALBWACHS, 2003), há permanente atualização dos
signos armazenados, o que torna improvável a replicação fidedigna de um
ideal regulador armazenado nos arquivos mnemônicos. Com isso, é possível
entender que os ideais performativos de gênero consistem em re-cons-
truções de referenciais revisitados ao longo do tempo pela memória que
roteiriza o corpo e, ao mesmo tempo, o abre a novos referenciais negociados
no presente. Como extensão das subjetividades humanas, as visualidades
do corpo também versam sobre o devir como propriedade ativa da memória,
o que torna em vão o esforço de reproduzir o ideal regulador com exati-
dão. Se, como lembra Butler (2020), esses ideais sempre são postergados
no discurso e jamais se consumam plenamente é porque a mnemônica do
corpo adentra sorrateiramente o “lugar entre” e atualiza o que se pretendia
estabelecer como transcrição.
Quando trato o voguing neste texto como expressão performática e
performativa de gênero situada num tempo histórico que designo de pós-
moderno, passo, então, a admitir que a feminilidade performatizada por
voguers é composta de referenciais estéticos situados espacial e temporal-
mente. Noutros termos, esses referenciais estão longe de ser universalmente
convencionados como essência fora dos marcadores contextuais de que
tratamos neste texto. De outra maneira, o léxico comum do corpo feminino
que voguers teatralizam superlativamente representa um modo de perfor-
mar gênero em negociação com os critérios de inteligibilidade circulados
na sociedade pós-industrial. Nesse cenário, a espetacularização da hiper-
masculinidade e da hiperfeminilidade no século XX integraram um processo
midiatizado de codificação do corpo para fins de propagação dos discursos
de normalidade (PRECIADO, 2018). No entanto, a macheza rebelde de James
Dean ou a fragilidade sexualizada de Marilyn Monroe, a virilidade idiotizada

Arte da Resistência 189


de Rambo ou a feminilidade conservadora de Nancy Reagan não impediram
a eclosão de corpos dissidentes, corpos esses que se serviram da própria
hipertrofia dos binários como matéria-prima de recriação caricata. Nesse
sentido, na esteira do pensamento pós-estruturalista, o gênero insurge como
conceito dissidente, uma vez que reside no “lugar entre” psique e aparência
e, como tal, está sujeito a desvios e inconstâncias.
Para dar seguimento a essa questão é útil lembrar que, no início do
século XX, as celebridades do cinema hollywoodiano eclodiam como arquéti-
pos de um modelo de vida (MORIN, 1989). O corpo célebre se tornou parte de
um amplo sistema de midiatização que o ligava a estilos de comportamento
reificados em mercadorias e espaços. O star system, então, agenciou uma
rede midiática especializada em perseguir celebridades e ofertar ao público
detalhes sobre seus discursos, escândalos, frustrações e sucessos. Assim, a
celebridade que nasceu no cinema é deusa, mas também humana: ela chora,
ela sofre de amor, ela se irrita com paparazzis, ela morre tragicamente... ela
é humanidade deificada na imagem. Vida e arte aqui se mostram enlaçadas
de tal modo que muitas vezes é impossível (ou desnecessário) distinguir a
diva personagem da diva pessoa.
Os efeitos desse panteão de imagens e de discursos que as celebridades
criaram não lhes pertence, ou seja, não é do controle das divas, por exem-
plo, os muitos dizeres que seus corpos hipergenerificados podem produzir.
Tanto é verdade que o glamour, como marcador estético de exclusão para
gays periféricos do Harlem no século XX, passou a ser reclamado como
oportunidade de subversão e reapropriação discursiva. Ocorre, portanto,
algo muito semelhante àquela reviravolta discursiva de que Foucault (2021)
já havia detectado nas técnicas disciplinares. O autor lembra que o desígnio
da homossexualidade insurgiu nos saberes médicos do século XIX, carac-
terizando-a como patologia. Os discursos médicos motivaram, então, uma
série de intervenções e controles para fins de cura, o que inclui o interna-
mento em asilos. Assim, como é característico das sociedades disciplina-
res, o confinamento para fins de intervenção e disciplinarização se tornou
prerrequisito para a eficácia da vigilância e do controle. Não obstante, esse
mesmo isolamento acabou produzindo uma percepção interior de parentesco
global sobre a orientação sexual, o que gerou uma reviravolta discursiva que
fez do estigma um marcador de resistência: “está certo, somos o que vocês
dizem, por natureza, perversão ou doença, como quiserem. E se somos assim,
sejamos assim e, se vocês quiserem saber o que nós somos, nós mesmo
diremos, melhor que vocês” (FOUCAULT, 2021, p. 350-351).
A fala acima transcrita nos chama atenção para a imprevisibilidade
sobre o fato de que os espaços de confinamento se tornariam ambientes
indutores da reviravolta discursiva na sociedade disciplinar. Essa situa-
ção é também observada como resultado dos discursos de poder, uma vez

190 Leandro Colling


que, segundo Foucault (1988), a implantação das perversões nos saberes
médicos funcionou como “efeito-instrumento”, em que prazer e poder se
ramificam, multiplicam e penetram condutas. Assim a ação do poder não
necessariamente resulta na nulidade dos atos que tenta coibir; muitas vezes,
inclusive, os efeitos são inversos: nomeação ou a proibição de práticas per-
versas chamam-nas à existência e induzem à fantasia de sua consumação.
Portanto, é possível concluir que discursos de poder nomearam extratos
desviantes na sociedade, cujo enclausuramento ou categorização criaram
condições para congregar sujeitos designados como anormais. Logo, a rotu-
lação, como efeito do discurso, pode acabar se revertendo em bandeira,
mostrando-se como discurso reverso aberto à recriação. Vale observar que o
voguing insurgiu exatamente num período de segregação espacial e discur-
siva de gays latinos e afro-americanos na Nova York do século XX. Embora a
segregação territorial dos guetos novaiorquinos, orquestrada por políticas
urbanistas do século XX, não deva ser confundida com enclausuramento
institucional disciplinar citado por Foucault (cuja função era a normalização
dos corpos); aqui é possível entender que a convivência corriqueira entre
os sujeitos periféricos abriu possibilidades de compartilhamentos de lin-
guagens e referenciais comuns. Dentro de certas especificidades, essas
referências eclodiram numa reapropriação dos signos de poder para fins
de empoderamento em afecção coletiva95.
Se os padrões morfológicos veiculados pela revista Vogue a princípio se
impunham como estética excludente, de outro modo, voguers se apropriam
desses mesmos critérios aristocráticos como oportunidade de deslocar dis-
cursos e recriar padrões. Quando trata da performance drag queen, Butler
(2019b) nos lembra que a performance está implicada naquilo que se opõe
e, de modo semelhante, voguers se apropriam de um mundo inapropriável,
reclamam ironicamente os mesmos marcadores de sua exclusão.
Outro elemento contextual importante para entender o modo como o
voguing lida com os discursos de poder trafegados na sociedade é o pro-
cesso de desinstitucionalização que Foucault já previa. É útil lembrar que,
ao longo do século XX, as instituições disciplinares foram perdendo sua
força por conta de uma ação mais fluida e desterritorializada do poder. O
voguing nasceu justamente nesse período de arrefecimento do poder dis-
ciplinar em favor da sociedade de controle. Isso é perceptível no fato de os
signos de poder que a estética Vogue carrega operarem em espaço livre,
servindo-se da própria veiculação midiática incrementada pelas tecnologias
informacionais. Assim, o voguing não poderia ser bem interpretado como
resistência dentro de uma análise institucionalizada do poder, já que sua

95
Essa reviravolta discursiva ocorreu no voguing de modo análogo e contemporâneo ao que sucedeu com
a reapropriação do vocábulo “queer”.

Arte da Resistência 191


estética é fruto de uma ação fluida e ambivalente dos processos de modu-
lação. Joyce Souza, Rodolfo Avelino e Sérgio Amadeu da Silveira (2021)
observam que, uma vez os dominadores não sejam mais identificáveis, já que
o poder é líquido, dissolvido e adocicado, as reações também se tornaram
fluidas e, periodicamente, não isoláveis dos mesmos esquemas de poder
em que estão imbricados.
A necessidade de remontar o contexto histórico em que nasceu o
voguing permite constatar que sua formação é produto de um período de
transição da sociedade disciplinar para a de controle ou, ainda, da moder-
nidade para a pós-modernidade. Basta observar, por exemplo, que as polí-
ticas urbanas implantadas na Manhattan da primeira metade do século
XX foram inspiradas num higienismo muito associado ao positivismo e ao
eugenismo modernista que fermentavam no imaginário burguês desde o
século XIX. Essas políticas urbanistas operaram pelo banimento de extratos
da população e, desse modo, criaram condições para articulações sociais
reativas no Harlem, Bronx ou Brooklyn. A arte se configurou como uma
das linguagens passíveis de enunciação, valendo-se da bricolagem entre
o desejo de singularização de grupos marginalizados e os signos de poder
que já trafegavam abertamente na sociedade. Portanto, distintamente do
poder disciplinar, a modulação aqui observada penetrou nesses territórios
marginalizados, pondo-se como textualidade incompleta.
Outra questão que faz toda diferença é observar que o voguing recorre
à sátira para lidar com os referenciais estéticos que circulam livremente na
sociedade. A performance hiperbólica dos signos de poder escritos no corpo
de voguers reconstrói uma caricatura e, nesse sentido, embaralha quaisquer
dicotomias. Trata-se de uma feminilidade suplementada na performance e,
ainda, trata-se de um glamour metafórico que ironiza os códigos de poder. O
exagero performático de voguers desconhece as dicotomias porque recorre
a padrões de linguagem polissêmicos como modo exacerbado de expressão.
É por isso que intelectuais viciados nas velhas formas de revolução jamais
identificariam subversão no voguing, afinal tentam simplificar em dicotomias
as múltiplas subjetividades que o próprio poder produz.

Virtualidades performativas

Conforme lembra Pierre Lévy (2011), o virtual não se opõe ao real, mas
ao atual. Ainda segundo ele, onde existe ação, há produção de virtualidade,
há condução de energias de devir que antecipam virtualmente o movimento
e seus efeitos. As coisas que nos cercam, por exemplo, possuem ações vir-
tuais, pois estão impregnadas de inúmeros usos possíveis e apontam para
infinitos agenciamentos. Um leque, uma farda, uma ferramenta, um adorno

192 Leandro Colling


podem conter ações virtuais convencionais, mas criam possibilidades de
deslocamentos de seus significados para além do utilitarismo reiterado.
Noutras palavras, posso interpretar esses artefatos pelo uso convencional,
mas posso requerê-los como ocasião performativa de gênero.
A reiteração sobre o uso de artefatos cria uma legibilidade do objeto
virtualizado em nossa memória, mas, ao mesmo tempo, não encerra suas
possibilidades criativas. Como lembra Henri Bergson (2010), o trabalho da
memória atualiza o virtual, orientando-se mais pela individuação do que pela
mera repetição do fato ou coisa memorada. Por essa ideia, Bergson (2010)
defende que a ação virtual inerente aos objetos está sujeita a atualizações
na memória, o que torna a reiteração sempre inexata, sempre propícia a
desvios. O corpo integra esse processo de atualização da memória por ser
nossa mediação com o mundo e, sobretudo, por também ser munido de
força criativa que inventa novos equilíbrios e se abre a novas experiências.
Ao mesmo tempo que o corpo produz virtualidades, ele também é alvo
de virtualização, não para sua desmaterialização, mas para sua reinvenção
e vetorização (LÉVY, 2011). Na sociedade de controle, a virtualidade tem se
colocado como condição fundamental para garantir a circulação de mun-
dos possíveis, cujos discursos se condensam no corpo como materialidade
dotada de representações. Para tanto, os dispositivos de tecnologia estão
cada vez mais aderidos ergonomicamente ao corpo, de modo a potencializem
a cognição humana e interligarem a materialidade corpórea a um ciberes-
paço aberto à dialogicidade.
Interessado na cibercultura, Lévy (1999) defende que as tecnologias
devem ser analisadas dentro dos contextos históricos e, por isso, o autor
observa que ideias maniqueístas (simplificadas na lente aprovação/repro-
vação) ignoram o fato de que as técnicas estão abertas a muitos usos e
que seu papel interage com a situação sociocultural do seu tempo. Nesse
sentido, é possível entender que as virtualidades potencializadas pelas
tecnologias na sociedade de controle não são meramente causa/efeito de
sistemas de dominação; de outro modo, pode-se partir do pressuposto de
que as tecnologias, que vetorizam o corpo e seus discursos, são parte de
articulações sociais do contexto pós-moderno.
Como é possível observar, a todo instante os conceitos tratados neste
artigo são associados ao contexto histórico: o voguing, a virtualidade,
o corpo e a performance são aqui entendidos dentro de um cenário de
mudanças no pós-guerra, período designado por Deleuze de sociedade
de controle. As mudanças características desse período também têm sido
objeto de interesse de alguns pesquisadores que preferem denominá-lo de
pós-moderno. Sem querer aprofundar nas ambivalências decorrentes do
emprego desse conceito, trago aqui algumas características da pós-moder-
nidade que mais interessam ao tema: i. Desprestígio das metanarrativas de

Arte da Resistência 193


legitimação do conhecimento (LYOTARD, 1988); ii. Estetização da vida coti-
diana (FEATHERSTONE, 1995); iii. Embaralhamento de fronteiras entre arte
e vida cotidiana, entre alta e baixa cultura (JAMESON, 2000); iv. Efemeridade
de vínculos e de experiências estéticas (BAUMAN, 2001); v. Colapso das
identidades culturais e concomitante morte do sujeito cartesiano (HALL,
2020). A combinação desses elementos, aliados ao incremento das tecno-
logias informacionais no pós-guerra, criaram condições para que o controle
operasse fora de limites institucionais, acelerando a circulação e a multi-
plicação de códigos estéticos, de micropoderes, de apelos sensórios, de
signos de valor...
Michel Maffesoli (2014) entende que a pós-modernidade é caracteri-
zada pelo regresso do dionisíaco, uma vez que o comedimento e a disci-
plinarização do corpo, típicos da modernidade, são sobrepostos por uma
saturação de prazeres, de modos múltiplos de usos do corpo e, sobretudo,
pelo desejo de estar em sociabilidade. O autor contesta ideias pessimistas
que partam do pressuposto de que as tecnologias isolam ou sabotam as
relações sociais; pelo contrário, para ele, as tecnologias criam novos modos
de sociabilidade, marcados pela efemeridade de vínculos e pela mediação
da estética (MAFFESOLI, 1998). Logo, a “ética da estética” e a “ética do
instante” tornam-se, para Maffesoli (2003), mediações preponderantes das
articulações sociais na pós-modernidade.
A partir dessa breve abordagem sobre o tempo pós-moderno, é possível
voltar à ideia de Lévy (1999; 2011), quando defende a tríade sociedade-cul-
tura-técnica como inseparável. Quando pensamos na relevância da internet
no transcurso dos séculos XX para XXI, precisamos ter em conta que o pró-
prio processo de desinstitucionalização do poder, como já previa Foucault,
se embrenhou em espaços mais fluidos e mais dinâmicos. Por efeito, vale
acrescentar que um ambiente altamente favorável a essa ação flexível e
mutante da modulação na sociedade de controle foi exatamente o ciberes-
paço96. André Lemos (1997) nos alerta sobre o fato de que a sociabilidade na
cibercultura não é limitada pela institucionalização nem pela racionalização.
Por isso, o autor deduz que as tecnologias na pós-modernidade são vetores
do dionisíaco, que mais conduzem à ética da estética e à ética do instante
fora de qualquer moral pretensamente universal. Eis o que radicalmente
distingue as tecnologias modernas das tecnologias pós-modernas: enquanto
aquelas eram unidirecionais, tinham o corpo como alvo disciplinar e eram
orientadas por uma moral universal; essas são multidirecionais, têm a sub-
jetividade como alvo e induzem a multiplicação de singularidades (inclusive
as desviantes), tornando-se abertas ao devir.

96
Se, por um lado, a dialogicidade é prerrequisito das plataformas virtuais mais acessadas na internet, por
outro há que considerar o fato de que a mineração, a seleção e a distribuição algorítmica de informações é
indicativo da permanência de forças institucionais nos ciberespaços.

194 Leandro Colling


Jean-François Lyotard (1988) entende que o desenvolvimento das téc-
nicas e das tecnologias a partir da Segunda Guerra Mundial contribuiu para
a eliminação de alternativas universalizantes, substituindo-as pela fruição
individual dos bens e serviços. Ora, o desprestígio das metanarrativas do
conhecimento racionalista, que outrora legitimaram propostas revolucioná-
rias universalistas97, tanto se traduz como uma perda generalizada de refe-
rências sólidas como também pela possibilidade de se construir coletivos
mais abertos ao diálogo e à fruição. Por conseguinte, o enfraquecimento da
força unificadora das metanarrativas expandiu as possibilidades de ações do
poder na sociedade de controle, fato que agravou a sensação de orfandade
de referências e intensificou o fracionamento das diferenças. A terceira onda
do feminismo, no final do século XX, é bastante sintomática para se pensar
a dissidência como atributo de identidades mais fluidas e menos adaptáveis
a afiliações universalistas. Esse movimento demonstrou que o colapso do
sujeito cartesiano coexistiu com o protagonismo do corpo nos movimentos
identitários decoloniais e evidenciou que as diferenças corporificadas são
elementos primordiais na luta pela direto à diferença.
No cenário de mudanças entre os séculos XX e XXI, a internet foi adqui-
rindo cada vez mais preponderância na vida cotidiana, revelando-se também
como lócus propício à recriação multidirecional. Embora, assim como o com-
putador, a internet tivesse nascido na maquinaria geoestratégica de guerra,
progressivamente ambos os artefatos tecnológicos foram reapropriados
para outras formas alternativas de uso. Na mesma direção de Maffesoli,
Lemos (1997) entende que o computador nasceu como máquina apolínea,
mas outras possibilidades recentes de uso tornaram-no uma propulsão do
dionisíaco bastante sintomática da sociedade pós-moderna98. Como prova
disso, basta lembrar que, distintamente das tecnologias industriais na socie-
dade disciplinar, a cibercultura na sociedade de controle não opera ape-
nas de modo unidirecional. Os ciberespaços formatam-se de modo aberto
e dialógico, pondo-se como fendas para notabilizar discursos fluidos de
identidade.
Neste início do século XXI, o voguing se nutriu da dilatação discursiva
que as virtualidades oferecem ao corpo. Progressivamente, redes sociais
foram se tornando espaços fundamentais de visibilização dessas performan-
ces que, invariavelmente, ajudaram a desestabilizar discursos de gênero no
prisma binário. É nesse teor que Butler (2019b) defende o fato de que toda
performance queer desempenha um papel político, uma vez que produz

97
Cita-se como exemplo: o marxismo, o idealismo, o racionalismo, o mito do progresso iluminista, o evolu-
cionismo etc.
98
A metáfora nietzschiana para o dionisíaco como pulsão coletiva dos prazeres também carrega o lado cruel
e perverso das massas. Para pensar a cibercultura, é preciso acautelar sobre a propagação algorítmica de
negacionismos, fake news e afins como oportunismo num contexto de colapso das instituições (metáfora
do apolíneo).

Arte da Resistência 195


deslocamentos nas fronteiras de gênero, dando visibilidade pública a outros
modos de experienciar o corpo. Assim, uma vez que a performance hiper-
bólica não se submete aos binários, a virtualidade ajuda na saturação de
discursos que embaralham fronteiras entre a performance teatral e a vida
cotidiana. Leandro Colling (2021) já havia observado uma indissociabilidade
entre a arte queer e as vidas dos artistas, já que as identidades de gênero
e sexual funcionam como motor das performers.
Nessa direção, vale acrescentar que os apagamentos das fronteiras
entre vida e arte, na ótica de Mike Featherstone (1995), são análogos à
sobrecarga de apelos estéticos carregados de afeto na vida pós-moderna,
fato que retroalimenta as imagens propagadas na publicidade como mundos
possíveis ou, aliás, como mundos performativamente possíveis. Voguers
estão nessa fronteira difusa entre vida e arte, tanto porque caricaturizam
uma feminilidade teatralizada na publicidade como também se servem do
glamour para embaralhar limites entre gênero como performance teatral e
gênero como subjetividade. Os mundos possíveis aos quais as fotografias
da revista Vogue apontam residem na zona fronteiriça entre uma estética
caricaturada para fins de marketing e a vida pós-moderna cada vez mais
estetizada. Assim sendo, o voguing é o “lugar entre”: é performance entre
arte e vida, é identidade de gênero entre a psiquê e a aparência, é estética
entre ficção e realidade... enfim, é ação política despolarizada pelo corpo.
Para entender o voguing como estética dissidente é preciso ter em
vista o fato de que este “lugar entre” de onde eclode a performatividade de
gênero não se afigura como uma filiação monolítica. De outro modo, como
nos adverte Butler (2019a), queer não designa uma identidade, mas uma
aliança. Em sua percepção, o corpo cria um espaço quando congrega em
coletivo, dispondo no entre-os-corpos um espaço capaz de ressignificar
os usos de um determinado lugar. Portanto, nesta ótica, “público” não é
essencialmente o espaço, mas o que está sendo contestado na ocasião de
sua apropriação, afinal os corpos ali dispostos contagiam a materialidade
espacial com os próprios discursos que suas visualidades produzem. A partir
desse raciocínio, os espaços virtuais insurgem como lugares abertos a infi-
nitos usos, até mesmo porque, se o “público” reside no espaço criado entre
corpos-afecção, então, as visualidades produzidas por diferentes corpos
legitimam um espaço de dissenso favorável ao exercício democrático do
direito de aparecer.

Considerações

Invertendo o marxismo, Lazzarato (2006, p. 100) entende que “o capi-


talismo não é um modo de produção, mas uma produção de mundos”. No

196 Leandro Colling


argumento do autor, o capitalismo precisa ser entendido como uma afetação,
em que a criação e a produção do desejo antecedem a produção econômica.
Como sabido, os bens de consumo veiculados na mídia são continuamente
aderidos a corpos-discurso, visando imprimir personalidade a um modo de
vida experienciável pelo consumo. Na sociedade de controle, essas incita-
ções são multiplicadas infinitamente pela axiomática do capital, criando
mundos possíveis com efeitos heterogêneos. Esta força axiomatizante do
capital é sempre aberta e imprevisível, apropriando-se de mundos virtual-
mente possíveis pela variação e contínua modulação (LAZZARATO, 2006).
Esses mundos criados na publicidade são deslocáveis ou, noutros
termos, são abertos a novas ressignificações. Diante disso, inspiro-me em
Butler (2020) para aplicar o conceito de performatividade aos discursos
criados pelo próprio capitalismo, uma vez que sua ação não é monolítica,
mas movimenta-se como monstruosidade mutante para acomodar quaisquer
discursos e identidades. Na sociedade de controle, os enunciados proferi-
dos pela publicidade têm força performativa porque apontam para mundos
virtuais, para modos de vida abertos a novos usos e para outras reiterações
performáticas. Com efeito, vale observar que ação midiática da revista Vogue
não cumpriu desígnios uniformizadores; ao contrário, produziu, sim, mundos
virtuais imprevisíveis, sendo um deles reescrito por performers da cena
voguing.
Hoje, voguers têm se servido das plataformas virtuais como oportuni-
dade de vetorizar os discursos e as afecções do corpo. Aqui, como lembra
Rogério Haesbaert (2021), o corpo insurge como materialidade imprescindí-
vel para mobilizações de resistência porque é fronteira aberta a novas rela-
ções de identidade. Assim, quando publicizam suas performances em casa
ou nas ruas, individualmente ou coletivamente, voguers criam um “’espaço
entre” que possibilita falar de novas formas de resistência inscritas em novas
formas de circulação do poder. Se o voguing originalmente já se montava
como arte dissidente, com a intensificação do desconfinamento dos cor-
pos-discurso, neste início de século XXI, vogar tem se mostrado mais ainda
como estética de resistência no e contra o sistema. Nisso, vale concordar com
Foucault (2021, p. 360): “Para resistir é preciso que a resistência seja como
o poder. Tão inventiva, tão móvel e tão produtiva quanto ele. Que, como ele,
venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente como ele”.

Arte da Resistência 197


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Arte da Resistência 199


Baltasar do Couto Cardoso/Maria Úrsula de
Abreu e Lencastro: donzela-guerreira?

Helder Thiago Maia

A donzela-guerreira é um paradigma literário que tem servido como


base, padrão e modelo tanto para a criação quanto para a crítica literária.
De forma geral, podemos resumi-lo a duas características fundamentais:
o trânsito de gênero e a ida à guerra. Assim sendo, temos um personagem
que é designado em seu nascimento como uma mulher, que passa a viver
e ser reconhecido socialmente como homem, e que vai à guerra, onde luta
e é estimado pela sua bravura como soldado. Essas duas características
produzem um enredo bastante específico, o que tem permitido não só que
o personagem faça constantes reaparições na literatura, mas que também
seja facilmente reconhecível pela crítica literária. Nesse sentido, estamos
falando, por exemplo, da balada chinesa Mulan, do século VII, do romance
ibérico Da donzela que vai à guerra, do século XII, e de novelas, poemas e
textos dramáticos que vêm sendo publicadas na Europa e nas Américas
desde o século XV.
Apesar de essas características serem bastante específicas, há, no
entanto, um uso bastante exagerado desse paradigma por parte da crítica
literária brasileira, que muitas vezes tem entendido o “trânsito de gênero”
e o “ir à guerra” como elementos metafóricos. Ao contrário dessa pers-
pectiva, e seguindo a Valdeci Oliveira (2005, p. 143), acreditamos que as
donzelas-guerreiras devem ser distinguidas de outros personagens, que
também rompem normatividades de gênero e/ou sexualidade, sob o risco
de perdermos a potência que as donzelas-guerreiras possuem de borrar e
ultrapassar as normatividades de gênero. Nesse sentido, o uso alargado do
conceito tem homogeneizado a leitura desses personagens, que passam a
ser compreendidas exclusivamente como mulheres cisgêneras, ao mesmo

Arte da Resistência 201


tempo que tem considerado o trânsito de gênero como algo menor, incom-
pleto e/ou patológico.
Quando analisamos a ampla e exagerada constelação literária do
que a crítica brasileira tem entendido e definido como donzela-guerreira,
podemos perceber que há na verdade pelo menos quatro expressões de
gênero vividas pelos personagens que são significativamente distintas.
Assim, podemos dizer que há as “mulheres masculinas”, personagens que
não foram à guerra e nem viveram como homens, como Luzia-Homem (1903),
de Domingos Olímpio; há as “mulheres guerreiras”, personagens que não
viveram como homens, mas foram à guerra, como as narrativas em torno
de Anita Garibaldi; há as “donzelas-guerreiras”, personagens que foram à
guerra e que viveram como homens unicamente durante a guerra, como no
romanceiro ibérico; e há as “transgeneridades guerreiras”, personagens que
foram à guerra e que viveram para além do tempo da guerra como homens,
como Diadorim (ROSA, 1956).
Nesse sentido, o trânsito de gênero não é uma característica nem das
“mulheres masculinas” nem das “mulheres guerreiras”, enquanto para as
“donzelas-guerreiras” é uma prática circunstancial e relativa à guerra, e para
as “transgeneridades guerreiras” parece revelar mais uma compreensão de
si do que algo circunstancial, uma vez que é vivido e experimentado sempre
que possível, desejado e para além da guerra. Essa proposta de leitura das
donzelas-guerreiras em quatro personagens paradigmáticas considera,
portanto, que o trânsito de gênero é não só um elemento significativo desses
personagens, como é também um dispositivo de leitura que visa pensar as
diferenças dentro do que se tem entendido tradicionalmente como don-
zelas-guerreiras, mas também analisar as diferenças dentro de cada uma
dessas expressões de gênero.
Isto posto, é parte dos interesses deste artigo examinar, a partir da
perspectiva crítica das donzelas-guerreiras, assim como das quatro
expressões de gênero elencadas anteriormente, narrativas históricas e
literárias em torno de Baltasar do Couto Cardoso/Maria Úrsula de Abreu e
Lencastro. Nesse sentido, pretendemos não só repensar o paradigma das
donzelas-guerreiras a partir desse personagem, como também pretendemos
preencher um vazio da crítica literária, uma vez que Baltasar/Maria Úrsula
tem sido apontado pela crítica como uma “donzela-guerreira perfeita”
(GALVÃO, 1998, p. 84), mas os seus textos literários e históricos têm sido
efetivamente pouco lidos e comentados.
Estamos interessados também em analisar o imaginário histórico e lite-
rário brasileiro sobre o personagem, assim como as repetições e as rupturas
entre esses discursos. Para isso, foram observados setenta e nove relatos
históricos e jornalísticos, publicados entre 1822 e 1955, o que corresponde
ao primeiro texto brasileiro encontrado (PIZARRO e ARAUJO, 1822) e ao

202 Leandro Colling


último relato histórico antes da publicação do mais recente texto literário
sobre o personagem (MEIRELES, 1955). No entanto, devido às restrições ao
tamanho deste artigo, abordaremos diretamente apenas dezenove desses
textos, uma vez que os outros sessenta pouco acrescentam à leitura pro-
posta aqui. Além disso, analisamos também as únicas duas obras literárias
brasileiras que abordam o personagem, o romance A Senhora de Pangim
(1932), de Gustavo Barroso, e a revista em quadrinhos A Senhora de Pangim
(1956), de Gutenberg Monteiro e Gustavo Barroso.
Por fim, é preciso dizer que Baltasar do Couto Cardoso/Maria Úrsula
de Abreu e Lencastro foi uma pessoa de existência factual que, no seu
nascimento, em 1682, no Rio de Janeiro, recebeu o nome de Maria Úrsula de
Abreu e Lencastro e, aos dezoito anos, em 1º de setembro de 1700, assentou
praça em Lisboa como o soldado Baltasar do Couto Cardoso, tendo ser-
vido no exército colonial português, em Portugal e na Índia Portuguesa, por
quase quatorze anos. Pelo seu excelente desempenho militar, primeiro como
soldado e depois como cabo, recebeu, após abandonar o exército colonial
e como Maria Úrsula, o reconhecimento do Império português através de
uma pensão e da mercê do Paço de Pangim por seis anos. Algumas fontes
históricas afirmam ainda que morreu provavelmente em 1730, casada com
Afonso Teixeira Arrais de Melo, sem nunca ter abandonado os trajes mas-
culinos e a espada.

1. Imaginário histórico sobre Baltasar/Maria Úrsula

As fontes históricas sobre Baltasar/Maria Úrsula, especialmente aque-


las utilizadas pelo romance A Senhora de Pangim (1932), já foram alvo de
grande controvérsia pública entre o escritor português Alfredo Pimenta
(1942) e o escritor brasileiro Gustavo Barroso (1932, 1949). No entanto, de
forma geral, podemos dizer que os relatos históricos portugueses sobre
o personagem, cuja primeira referência encontrada é a notícia do jornal
português Gazeta de Lisboa de 24 de março de 1718, não se preocupam
em explicar as motivações nem para o trânsito de gênero nem para a ida à
guerra. Além disso, com exceção do texto de Damião de Froes Perim (1740),
não falam sobre um possível casamento, assim como também não narram
sobre como viveu depois de dar baixa como soldado.
Ao contrário dos relatos portugueses, as fontes históricas brasileiras,
cuja primeira referência é o texto do monsenhor Jozé de Souza Azevedo
Pizarro e Araujo, de 1822, de forma geral, procuram explicar as motivações
do personagem para o trânsito de gênero e para a ida à guerra, assim como
também afirmam o casamento com Arrais de Melo e descrevem como viveu
após dar baixa como soldado. Nessa perspectiva, na narração da vida após

Arte da Resistência 203


deixar o serviço militar, há uma preocupação recorrente em afirmar que
Baltasar/Maria Úrsula teria morrido cercado de glória e gozando de grande
fama entre seus contemporâneos, o que serve principalmente à reafirmação
da heroicidade não só do personagem, mas também, como veremos, das
“brasileiras” em geral. Ademais, podemos dizer também que a afirmação do
casamento é sempre uma forma de reafirmar a mulheridade do personagem,
ao mesmo tempo em que se nega o trânsito de gênero, entendido sempre
como um “disfarce”.
Por fim, antes de entrarmos em uma análise detalhada dos relatos his-
tóricos brasileiros, podemos dizer que há na historiografia três formas de
explicar as motivações do personagem para o trânsito de gênero e para a
ida à guerra. A primeira, de caráter mais subjetivo, inaugurada em 1841, por
Joaquim Norberto Souza Silva, explica as motivações a partir da “índole
extremamente belicosa”, do “ardente desejo de assignalar-se nos campos
da guerra” e do “coração varonil” do personagem (SOUZA SILVA, 1841, p.
226); a segunda, de caráter mais melodramático, inaugurada em 1876, por
Joaquim Manoel de Macedo, explica as motivações a partir de um “ardente
amor contrariado” (MACEDO, 1876, p. 1); a última, de perspectiva mais pato-
logizante, inaugurada em 1899, por Ignez Sabino, narra as motivações a
partir de uma “vocação” infantil, entendida como abjeta e doentia, e de um
“desejo ardente de servir à pátria” (SABINO, 1899, p. 89).
Como dissemos, a primeira referência histórica brasileira aparece em
Pizarro e Araujo (1822) quase cem anos após a data provável da morte de
Baltasar/Maria Úrsula. Nesse relato, é narrado como uma “mulher guerreira”
e o trânsito de gênero é entendido como imitação de “procedimentos famo-
sos” utilizados por mulheres portuguesas. O texto reafirma, portanto, o valor
militar dos brasileiros, incluindo como exceção algumas “mulheres”, como
Baltasar/Maria Úrsula e D. Maria de Souza. No entanto, como uma forma
de não sugerir essa “transgressão” às suas leitoras, faz questão de afirmar
que as mulheres brasileiras também se distinguem por suas virtudes cristãs.
O relato não dá informações sobre um possível casamento ou sobre como
viveu após dar baixa do serviço militar colonial.
Dezenove anos depois, aparece o primeiro relato a tentar explicar as
motivações de Baltasar/Maria Úrsula, o texto de Souza Silva, publicado em
1841, na revista do Instituto Geográfico Brasileiro. Como no texto anterior,
Baltasar/Maria Úrsula está acompanhado de outra importante “mulher guer-
reira”, D. Rosa Maria de Siqueira. Assim, ao mesmo tempo em que questiona
o silêncio da historiografia brasileira sobre essas importantes “guerreiras
brasílicas”, o autor reafirma Baltasar/Maria Úrsula como parte do “bello sexo
brasileiro”, atribuindo, portanto, pouco valor ao trânsito de gênero. Nesse
mesmo sentido, Souza Silva (1841) não só diz que morreu coberta de bênçãos
e rodeada de homenagens, como também afirma que seguiu usando trajes

204 Leandro Colling


varonis e espada ainda após dar baixa como soldado e se casar. No entanto,
mesmo que essa informação nos permita uma leitura contra o próprio autor,
é preciso dizer que a manutenção dos trajes de soldado é reduzida no texto
a uma espécie de vaidade, um testemunho dos grandes feitos do persona-
gem. Por fim, como vimos, o autor explica as motivações para a vida como
uma “mulher guerreira” a partir da índole belicosa, do desejo de glória e do
coração varonil.
Em 1845, o jornal fluminense Ostensor Brasileiro publica dois textos
sobre Baltasar/Maria Úrsula. O primeiro, na edição 4, na coluna Fastos
Brasileiros, sem identificação de autoria, apesar das atualizações ortográ-
ficas, é idêntico ao texto de Gazeta de Lisboa (1718). Ademais, o mesmo texto
é republicado em 1872, na edição 01, do jornal fluminense A Luz. O segundo
relato, publicado na edição 49, assinado por Souza Silva, é idêntico ao texto
publicado na revista do IHGB em 1841. Além disso, o mesmo texto também
é republicado, em 1854, na edição 22, do jornal capixaba Correio da Victoria.
Dezoito anos depois de seu primeiro relato, Souza Silva publica, em
Revista Popular (1859), “novo” texto sobre o personagem. No entanto, ao
contrário do primeiro, no qual a história de Baltasar/Maria Úrsula estava
acompanhada da história de D. Rosa Maria de Siqueira, nessa nova publica-
ção Baltasar/Maria Úrsula é narrado juntamente com Dona Clara Camarão.
O relato, no entanto, é praticamente o mesmo, uma vez que as principais
mudanças são o apagamento do primeiro parágrafo, em que o autor falava
das heroínas esquecidas pela história, e do último, onde estavam indicadas
as fontes bibliográficas. Esse mesmo texto é republicado no livro Brasileiras
Célebres em 1862, onde aparecem narrativas individuais de outras “mulheres
guerreiras”, como as mulheres de Tejucupapo, Dona Clara Camarão, Dona
Maria de Sousa e Dona Rosa de Siqueira. Por fim, em 1883, na edição 77, do
jornal O Apostolo, sem indicação de autoria, é republicado, com pequenas
alterações, sob o título Heroinas Brazileiras.
Trinta e cinco anos depois da primeira publicação de Souza Silva,
inaugurando um novo gênero no imaginário histórico sobre Baltasar/Maria
Úrsula, Macedo (1876) o inclui em um livro de efemérides de personalidades
brasileiras e propõe uma nova explicação para o trânsito de gênero e para
a vida como soldado. É importante dizer que a data escolhida para contar
a história de Baltasar/Maria Úrsula não é o dia de seu nascimento, nem de
sua provável morte, nem da vitória sobre a fortaleza de Amboná, nem da
entrega da mercê do Paço de Pangim, ao contrário, 1º de setembro é a data
em que o personagem assenta praça em Lisboa e passa a ser oficialmente
reconhecido como homem e soldado pelo Império português. No entanto,
contra a própria simbologia da data, Macedo insiste na afirmação da mulhe-
ridade, apesar de outras dissonâncias no texto, como “A heroína Balthazar
do Couto Cardoso foi militar na Índia” (MACEDO, 1876, p. 2), o que facilita

Arte da Resistência 205


uma leitura sobre o gênero e o trânsito de gênero do personagem contra o
próprio autor.
Macedo, no entanto, como nenhum outro texto antes, investe na nor-
matização e normalização do sexo-gênero. Diz que foi um erro a vida de
Baltasar/Maria Úrsula na condição de soldado e que sua atitude como filha
foi repreensível e, além disso, também sugere o “retorno” à feminilidade,
após dar baixa como soldado, em cumprimento da “missão doce e grandiosa
de seu sexo”. Nesse mesmo sentido, o autor não só entende o trânsito de
gênero como uma impossibilidade, um “disfarce”, como também afirma que
Baltasar/Maria Úrsula nunca conseguiu “dissimular o seu sexo” (feminino)
para o futuro esposo, o “vallente oficial” Arrais de Melo. Ademais, Macedo
não só explica as motivações do personagem para a vida como homem e
soldado a partir da ideia de um amor contrariado, como também explica o
“retorno” à vida como mulher a partir da ideia de um amor bem resolvido.
Nesse sentido, de forma melodramática, romântica e cisheteronormativa,
é sempre explicado e reduzido não só às emoções, como também ao amor
romântico e à dependência amorosa masculina. Da mesma forma, a manu-
tenção de trajes varonis após o casamento não passaria de uma “vaidade”
feminina, o que seria perdoável devido à glória conseguida pela “guerreira”.
Esse mesmo texto foi republicado, sem alterações e sem autoria, em
1º de setembro de 1877, na edição 131, do jornal soteropolitano Correio da
Bahia, e em 3 de fevereiro de 1935, sob o título Uma Heroina Brasileira, na
edição 4697, do fluminense O Jornal. Ademais, uma versão reduzida e sem
autoria foi publicada em 9 de maio de 1879, na edição 104, do jornal flumi-
nense Monitor Campista, e em 07 de agosto de 1879, na edição 54, do jor-
nal soteropolitano O Monitor, o que faz de Macedo, portanto, outro grande
intérprete e divulgador, ao lado de Souza Silva, da história de Baltasar/Maria
Úrsula. Nesse sentido, podemos dizer que a leitura de Souza Silva (1841)
predomina na primeira metade do século XIX, enquanto a de Macedo (1876)
predomina na segunda metade.
Em 1899, a poetisa e romancista baiana Ignez Sabino publica, junto a
quarenta mulheres brasileiras ilustres esquecidas pela história, produz uma
nova interpretação sobre Baltasar/Maria Úrsula. De acordo com Sabino,
o livro é um estudo da psicologia feminina, que deve ser entendido como
“uma Biblia de instrucção moral e cívica” (SABINO, 1899, p. IX). Essas afir-
mações do prefácio não passam desapercebidas no capítulo “Maria Úrsula
de Alencastro”, uma vez que há tanto uma reafirmação violenta da mulheri-
dade de Baltasar/Maria Úrsula, como também há uma leitura patologizante
sobre o trânsito de gênero, que é explicado como “verdadeira aberração
da natureza” (SABINO, 1899, p. 89), e sobre o personagem, que é enten-
dido como uma pessoa “doente”, que precisaria ser estudada e curada pela
ciência (SABINO, 1899, p. 92). Ainda de acordo com Sabino (1899, p. 89),

206 Leandro Colling


Deus teria dado maior beleza às mulheres para que elas pudessem melhor
governar os homens, por isso seriam também mais mimosas e mais fracas.
Nosso personagem, no entanto, apesar de “excessivamente formosa” teria
desprezado esses dotes divinos, e “inflammada pelo desejo ardente de servir
a pátria”, mas também por uma “vocação”, teria negado tanto a Deus como
a sua “natureza” feminina e passado a viver como homem e soldado.
Sabino (1899), portanto, inova não só ao afirmar o desejo de servir à
pátria como motivação para a vida como homem e soldado, mas princi-
palmente por também procurar na infância de Baltasar/Maria Úrsula as
motivações para o trânsito de gênero e para a ida à guerra. Nesse sentido,
para explicar o que entende por “vocação”, a autora baiana fantasia e narra
uma infância para Baltasar/Maria Úrsula, na qual este não só se afasta e
transgride as normatividades do sexo feminino, como também afirma não
ser uma mulher, mas um soldado. A autora aponta, então, que o trânsito de
gênero não só era desejado, mas também era vivido desde a infância. No
entanto, para tranquilizar os leitores de que a transgressão de gênero não
implicava uma devassidão sexual, descreve a vida adulta sob “severíssima”
moralidade (SABINO, 1899, p. 90). Por fim, destaca ainda que a “vocação”
foi derrotada pela “natureza”. Assim, teria havido uma “grande methamor-
phose”, que o levou a abandonar a vida militar, a compreender a “verdadeira
missão da mulher na sociedade” e a casar com o “tenente” Arrais de Melo.
Além disso, teria morrido cercada de reconhecimento, sem nunca mais ter
trajado roupas masculinas ou empunhado uma espada.
Essa interpretação patologizante de Sabino (1899) sobre Baltasar/Maria
Úrsula não reverbera em outras leituras históricas, ao menos não nos textos
históricos publicados até 1955. No entanto, pelo menos duas outras publi-
cações recorreram à infância do personagem como forma de explicar as
motivações para a vida como homem e soldado, ao mesmo tempo em que
também reafirmam a mulheridade e entendem o trânsito de gênero como
“disfarce”. Nesse sentido, podemos falar da efeméride Uma mulher-soldado,
publicada sem autoria, em 8 de março de 1917, no jornal fluminense O Paiz,
e republicada em 8 de março de 1928, no jornal pernambucano Jornal do
Recife.
Por fim, em 1º de maio de 1955, Cecília Meireles publica, no fluminense
Diário de Notícias, a crônica Caminho de Goa, republicada em 23 de julho
de 1955, no gaúcho Correio do Povo. Nessas, sem propor qualquer expli-
cação para o trânsito de gênero e para a ida à guerra, Meireles reafirma a
mulheridade do personagem e reduz toda a complexa experiência da vida de
Baltasar/Maria Úrsula como homem e soldado à ideia de que viveu “vestida
de homem”. A grande novidade do texto é o paralelo que a poeta estabelece
entre a vida de Baltasar/Maria Úrsula e o romance ibérico A donzela que
foi à guerra. Nesse sentido, Meireles é, provavelmente, a primeira a ler o

Arte da Resistência 207


personagem a partir da tradição da crítica literária portuguesa e brasileira
sobre as donzelas-guerreiras. No entanto, assim como os outros textos crí-
ticos, não só reafirma a mulheridade dessas personagens, como também
mais sugere a leitura de Baltasar/Maria Úrsula do que efetivamente realiza
um exercício analítico a partir dessa perspectiva.

2. O romance A Senhora De Pangim

O romance A Senhora de Pangim, de Gustavo Barroso, possui pelo


menos duas edições. A primeira, de 1932, publicada pela editora carioca
Guanabara, está direcionada ao público brasileiro, enquanto a segunda, de
1940, publicada pela editora portuguesa da Agência Geral das Colônias,
está direcionada ao público português. Na edição brasileira, não há prefá-
cio, mas há no final do romance o capítulo Nota, em que o autor aponta as
suas fontes históricas, além de afirmar que se trata de romance e não de
biografia. Assim, podemos dizer que desde a primeira edição o autor tentou
se defender das críticas sobre possíveis inexatidões históricas. Na edição
portuguesa, aquilo que é Nota na 1ª edição é transformado em Prefácio na
2ª edição. No entanto, esse texto ganha o acréscimo de três parágrafos, os
dois primeiros e o último. No parágrafo final, Barroso afirma ter tido acesso
a documentos portugueses sobre Baltasar/Maria Úrsula, mas que reservaria
esses documentos para um estudo “não mais literário e sim absolutamente
histórico” (BARROSO, 1940, p. 9)99. Nos dois primeiros, Barroso parece jus-
tificar a edição portuguesa do livro. Nesse sentido, não só afirma que o
romance abrange o “Mundo Português”, como também diz que as persona-
gens viveram nesses espaços onde “Portugal encheu com sua glória”. Assim,
Baltasar/Maria Úrsula seria não só um “simbolo dêsse Mundo Português”,
como também seria uma “figura única e tão fora do comum que parece
lendária” (BARROSO, 1940, p. 7).
Apesar de ser um romance histórico, a narrativa, obviamente, não
tem um compromisso absoluto, como acredita e exige o crítico português
Pimenta (1942), em seu pacto ficcional, com a verdade histórica, o que per-
mite ao autor preencher, ao longo de seus quatorze capítulos, com maior
liberdade, as lacunas históricas sobre a vida de Baltasar/Maria Úrsula. De
forma geral, podemos dizer que a obra de Barroso (1932) está mais próxima
dos relatos de Macedo (1876) e do Barão de Rio Branco (1891), no que se
refere às motivações para o trânsito de gênero e para a vida como soldado,

99
Apesar de publicar pelo menos três outros relatos não literários (1942, 1948 e 1958), podemos dizer que o
estudo “absolutamente histórico” se refere à publicação de 1949. Uma análise de todos os textos de Barroso
pode ser encontrada em Maia (2020b).

208 Leandro Colling


do que dos textos de Teixeira de Mello (1881) e de Souza Silva (1862), indi-
cados pelo autor100. Nesse sentido, podemos dizer que prevalece a versão de
um amor contrariado como motivação para a vida como homem e soldado.
No entanto, não há um julgamento moral sobre as escolhas do personagem,
como faz Macedo (1876), ao contrário, Barroso prefere destacar o modo
irrepreensível de Baltasar/Maria Úrsula como homem e soldado, como faz
Teixeira de Mello (1881, p. 112), ao afirmar a vida do soldado Baltasar como
erro ou a atitude da filha Maria Úrsula como repreensível, como faz Macedo
(1876, p. 1).
No que se refere ao trânsito de gênero, a primeira coisa a se dizer é
que o leitor não sabe que Baltasar viveu anteriormente como Maria Úrsula,
uma vez que o romance começa com o personagem deixando o Brasil, em
1700, como pajem. No entanto, ainda que o trânsito de gênero só seja for-
çosamente “confessado” nos quatro capítulos finais do romance, o texto
recorrentemente sugere, principalmente através do canto do personagem,
desde o primeiro capítulo, que há algo de feminino em Baltasar. Nesse sen-
tido, por exemplo, quando canta, o “rapazelho desconhecido”, não só mostra
uma feminilidade que tensiona as masculinidades dos outros soldados,
como também denuncia que ali há algo de mágoa amorosa, como podemos
ver abaixo:

Um silêncio profundo pesou sobre a baía imensa enrolada


no lençol negro da noite [...] E uma voz vibrou, acompa-
nhada de trinos de guitarra, na quitude nocturna do galeão,
dolentemente, de saudade e de amor. Era o novo pagem
que cantava. Havia qualquer cousa de feminino na sua voz
clara e triste. Qualquer cousa de feminino e de magoado
(BARROSO, 1940, p. 16).

Ademais, é preciso dizer que a publicização do trânsito de gênero não


é vivida uma única vez, ao contrário, por três vezes Baltasar foi levado a
“confessar” ou se tentou “confessar” por ele. Na primeira dessas cenas,
ainda no terceiro capítulo, o capitão Nuno de Mascarenhas, à beira da morte,
na travessia entre o Brasil e Portugal, não só reforça o pedido para que o
guardião Vasco de Brito cuide do seu pajem, mas também tenta contar ao
guardião “o grave segredo” de Baltasar. No entanto, para alegria do pajem,
o capitão morre enquanto tenta contar a história (BARROSO, 1940, p. 34). A
morte do capitão, portanto, assegura o silêncio e permite que Baltasar viva
em Portugal e na Índia como homem e soldado.

Em Nota ao final do romance, Barroso (1932, p. 205-206) indica, como fontes bibliográficas para o seu
100

romance, as efemérides de Teixeira de Mello (1881) e de Rio Branco (1891), além do relato de Souza Silva (1862).

Arte da Resistência 209


Esse segredo também tece as relações entre Baltasar e Manuela, amiga
e antiga paixão de Vasco, que acompanha o soldado à Índia e vive com ele
até o final de sua vida. Ao longo do texto, há sugestões de que Manuela
sabe do trânsito de gênero, no entanto, essa situação só é tratada aberta-
mente nos capítulos dez e treze. No décimo, o suspense ainda é mantido,
uma vez que Baltasar, diante do “carinho maternal” de Manuela, confessa a
sua história à amiga, mas o leitor não tem acesso ao teor dessa confissão,
o que só vai acontecer no capítulo treze, quando o narrador descreve aos
leitores o teor da conversa entre Manuela e Baltasar. Nesse momento, no
entanto, a história do trânsito de gênero já é conhecida pelo leitor, uma vez
que Baltasar é ferido em combate e Arrais de Melo cuida de sua convales-
cência. Assim, ao retomar a confissão de Baltasar a Manuela, o narrador,
em diálogo com parte da tradição histórica brasileira (MACEDO, 1876; RIO
BRANCO, 1891), não só passa a tratar o soldado no feminino, como também
sugere novamente que a motivação inicial para o trânsito e para ir à guerra
foi um “grande sofrimento” amoroso.
Diante da confissão de Baltasar, visto agora exclusivamente como Maria
Úrsula, tanto pelo narrador quanto pela amiga, Manuela diz que sempre foi
uma cúmplice silenciosa, não só porque sempre admirou o seu “animo varo-
nil”, mas principalmente porque sentia muito orgulho em ver uma “mulher”
dar lições de coragem aos homens, “que tanto se orgulham de sua bravura e
tanto se riem da nossa fraqueza” (BARROSO, 1940, p. 114). Assim, ao mesmo
tempo em que se instaura uma normalização de Baltasar a partir da cis-
generidade, e que se revela uma rede de proteção silenciosamente tecida
por Manuela, cria-se também uma cumplicidade entre os personagens que
desafia as normatividades de gênero. Afinal, mesmo Baltasar sendo enten-
dido exclusivamente como mulher, não há soldado, como afirma Manuela,
mais valente do que Maria Úrsula.
Assim como acontece com a maior parte das donzelas-guerreiras, o
trânsito de gênero é narrado ao leitor através do ferimento e a consequente
convalescência de Baltasar. Por sugestão de Manuela, que vê na expedição
de caça ao tigre do Mandovi a possibilidade de aproximar Baltasar e Afonso,
o soldado se alista na expedição comandada por Arrais de Melo, que busca
localizar e matar um tigre que vem amedrontando a população local. Nessa
viagem pelo campo, há um clima de companheirismo, de cumplicidade, mas
também de grande sedução entre os dois militares. Aliás, desde o primeiro
encontro, quando Baltasar resgata Afonso de ser executado, há forte ten-
são erótica entre eles. Afinal, nesse primeiro encontro, não só ambos se
impressionam com a beleza um do outro, mas também sentem calafrios ao
se tocarem (BARROSO, 1940, pp. 74-78).
Baltasar, da mesma forma como na tomada de Amboino (BARROSO,
1940, p. 86), na defesa do galeão S. Rafael (BARROSO, 1940, p. 29) e no

210 Leandro Colling


resgate de Arrais de Melo (BARROSO, 1940, p. 74), é o primeiro a atacar. No
entanto, recebe uma patada do tigre que o deixa gravemente ferido no ombro
direito (BARROSO, 1940, p. 101). Na convalescência, por várias vezes, impede
que lhe rasguem o casaco para que seja avaliado e tratado o ferimento.
Por isso, somente quando o companheiro desmaia é que Afonso consegue,
após dispensar os outros soldados, cuidar sozinho de Baltasar. É curioso
esse momento da narrativa porque Arrais de Melo começa a falar sozinho,
como se estivesse justificando ao leitor que o desnudamento daquele corpo
visava apenas o cuidado. Assim, ao mesmo tempo em que se justifica a falta
de consentimento de Baltasar, tenta-se afastar também o desejo erótico
entre os dois homens. Por fim, depois de todo o cuidado, Afonso usa suas
roupas para vestir Baltasar e decide “guardar segredo” sobre o soldado
(BARROSO, 1940, p. 111).
Na noite seguinte, percebendo pela camisa que usava que o seu segredo
já era conhecido por Afonso, Baltasar narra a sua vida e fala de seu trânsito
de gênero para o capitão. Arrais de Melo, então, pergunta porque se alistou
para a expedição, ao que Baltasar responde que tinha se alistado porque o
amava. O capitão rapidamente passa a enxergar no soldado convalescente
apenas a mulher amada, e aquilo que era entendido como desejo homoeró-
tico passa a ser narrado como desejo erótico heterossexual. Assim sendo,
a ordem de gênero é não só de algum modo restabelecida, uma vez que a
personagem se anuncia agora como uma mulher, mas é também reforçada,
apesar das dissonâncias, uma vez que Maria Úrsula promete a Afonso sub-
missão, não apenas como soldado, mas como mulher, como podemos ver
no trecho abaixo.

- Amar, Afonso, é uma cousa. Amar como eu sei amar, outra


bem diversa. A par da coragem dum homem, Deus me favo-
receu com um terno coração de mulher capaz de todos os
sacrificios pelo ente querido. Sinto que êste amor me ligará
a ti de tal maneira que nada nos poderá separar e que um
sem o outro não poderemos viver. Serei para o senhor da
minha afeição como um cão fiel. Não me enganes nunca,
porque já sofri muito e o segundo golpe me faria morrer ou
tornar-me um verdadeiro monstro. Ninguem mais livre do
que eu. Entretanto, ninguem sabe se escravizar mais espon-
tanea e completamente. Creio que te conheço hoje melhor
do que ninguem e o coração me diz que melhor do que tu
mesmo. Confio em ti, certa de que me compreenderás e me
amarás com toda a tua alma, como eu mereço. Eu, o guer-
reiro de Amboino e das ilhas do Bounsuló, serei de barro
nas tuas mãos. De barro, acredita! para que me moldes ao
teu feitio... (BARROSO, 1940, p. 118-119).

Arte da Resistência 211


Ainda sobre o gênero, precisamos dizer que, exceto por Manuela,
nenhuma outra personagem desconfia ou duvida de sua masculinidade.
Ao contrário, Baltasar é uma figura desejada pelas mulheres não só por seu
aspecto de adolescente, mas também pela sua força, bravura e masculini-
dade. No que se refere à sua sexualidade, ainda que seja questionado sobre
a falta de envolvimento com mulheres, Baltasar é compreendido como um
novo D. Sebastião (BARROSO, 1940, p. 47 e 75), o que parece sugerir que
se trata de alguém belo, desejado, mas celibatário101. Nesse mesmo sentido,
como se o narrador estivesse justificando que a “transgressão” de gênero
não implicaria uma transgressão sexual, Baltasar também sente grande
pudor diante da nudez masculina, ao contrário de seus companheiros que
comentam com galhofa, e racismo, a nudez de pessoas negras africanas
(BARROSO, 1940, p. 64). Vejamos um trecho que narra a vida exemplar de
Baltasar:

Suas folgas passavam-se em repouso ou diversões conve-


nientes. Ninguem de melhor procedimento. Não jogava. Não
bebia. Não fumava tabaco ou bangue entorpecente. Não
frequentava as bailadeiras impudicas que se prostituem à
porta dos templos. Si não ficava em casa a chalrear com a
caseira e o ancição, ia pescar ao longo do rio, nos tanques
dos arrecifes que bordavam a Aguada, caçar argalas e patos
bravos nos juncais, ouvir sermões e novenas à paróquia de
S. Tomaz ou à freguesia de S. Pedro, e assistir o brinco dos
palhaços bengalis no terreiro do pelourinho (BARROSO,
1940, p. 77).

Podemos dizer, então, que o trânsito de gênero é tolerado tanto pela


excepcional capacidade guerreira da personagem, quanto por sua luta pela
pátria. No entanto, a descrição de sua vida de modo tão exemplar cumpre no
romance uma outra função, que é a comparação com outra “donzela-guer-
reira”, o espanhol Alonso Díaz de Guzmán/Catalina de Erauso. Nesse sentido,
não só Maria Úrsula era uma “heroina autêntica” como a “famigerada D.
Catarina de Erauso, a monja alferes de que se orgulhava a Espanha”, como
também seria mais bonita, virgem, honesta e de “muito bom procedimento”,
como podemos ver em:

Portugal tinha agora, graças à brasileirinha, rosnava o duque


de Lagões para o marquês de Valença, na sala do Conselho
do Estado, [...] Portugal tinha agora sua heroina autêntica

101
Sobre D. Sebastião como uma figura bela, desejada, mas celibatário ler Hermann (2012).

212 Leandro Colling


para contrapor à famigerada D. Catarina de Erauso, a monja
alferes de que se orgulhava a Espanha.
- Com uma grande diferença para melhor, adiantou o valido
de Sua Majestade. Ouço dizer por todos que a brasileira
teve sempre muito bom procedimento e que só descobriu
seu sexo para casar-se honestamente, que nunca bebeu,
nem jogou, nem se deu a outras irregularidades, enquanto
que a espanhola, pelo que me contam, tinha todos os vícios
e defeitos, admirando-se mesmo alguns eclesiasticos que
Sua Santidade o Papa lhe tenha permitido continuar no uso
dos trajes de homem e da espada. Mais merece a nossa,
que não chegou a alferes e somente a cabo, pois além de
tudo é bela. A espanhola, segundo informaram El-Rei era
um estupor (BARROSO, 1940, p. 123).

Sobrepor Baltasar a Alonso, Maria Úrsula a Catalina, é, portanto, uma


forma de sobrepor Portugal à Espanha. Enquanto é uma verdade histórica
que Alonso Díaz de Guzmán/Catalina de Erauso não só foi recebido pelo rei
Felipe IV, que lhe garantiu uma pensão vitalícia, como também pelo papa
Urbano VIII, que lhe permitiu continuar vivendo como homem (MAIA, 2013, p.
4), no que se refere a Baltasar/Maria Úrsula, como aponta o trecho anterior,
não há relatos históricos de qualquer encontro entre o Papa e o soldado
brasileiro, no entanto, sabemos que o rei D. João V lhe concedeu uma pen-
são, além da mercê do Paço de Pangim por seis anos. Apesar disso, não há
informações históricas que confirmem a permissão do rei de Portugal para
seguir usando trajes varonis e espada, como aparece no romance (BARROSO,
1940, p. 122).
Seguindo alguns relatos históricos, especialmente os brasileiros, o
romance de Barroso, portanto, não só sugere a manutenção dos trajes varo-
nis, apesar do casamento com Arrais de Melo (BARROSO, 1940, p. 122), como
também sugere que morreu cercada de grande popularidade não só na Índia
Portuguesa, mas também em todo o império colonial português (BARROSO,
1940, p. 122). Além disso, assim como Macedo (1876) e Rio Branco (1891), ao
longo da narrativa, há vários momentos que sugerem que a causa primeira
para deixar a casa paterna e viver como soldado teria sido uma grande
desilusão amorosa e um casamento forçado. Isso é confirmado, ao final do
romance, através da “confissão” de Baltasar/Maria Ursula a Manuela, como
podemos ver neste trecho:

- Nesse tempo, eu amava loucamente o meu primo José


Estevam e por isso mais me doeu têrem disposto de mim
como de qualquer mercadoria. Senti mais o mal que pensava
lhe iriam causar do que o que me pretendiam fazer. Amava-o
com todas as ilusões da adolescencia e com todo o ardor do

Arte da Resistência 213


meu temperamento bravio. Era um belo rapaz de vinte e dois
anos, trigueiro, forte, criado como eu na vida livre do sertão
brasileiro, um pouco frio talvez em relação a mim. Contei-lhe
o que desejavam praticar e pedi-lhe para fugirmos juntos.
Iriamos para bem longe, para as lavras do Tijuco, para os
garimpos de Goiaz, para os confins da Vacaria, fôsse para
onde fôsse, um com o outro, contanto que não nos pudes-
sem encontrar. Pediu-me dois dias para arrumar as suas
cousas e nunca mais me apareceu. Soube depois que dera
parte de meus projectos ao comendador em troca de boa
paga, com a qual fôra estabelecer-se e casar-se em Taubaté.
Meu pai teve o gôsto de me dar todos os pormenores da
traição. Ouvi-o calada, mordendo os labios, o odio a refer-
ver no intimo contra o miseravel que amara!... (BARROSO,
1940, p. 116).

Isto posto, podemos dizer que o romance de Barroso (1932), de forma


geral, valoriza os feitos militares de Baltasar, não só por destacar que é sem-
pre um dos primeiros soldados nas ações de combate (BARROSO, 1940, p.
86); afirma o reconhecimento público do personagem, para além do espaço
da Índia portuguesa (BARROSO, 1940, p. 122); afirma a mulheridade e o casa-
mento, ainda que aponte para a manutenção dos trajes varonis com apro-
vação real (BARROSO, 1940, p. 122); justifica e valoriza a vida de Baltasar/
Maria Úrsula, a partir da vida de Alonso/Catalina (BARROSO, 1940, p. 123);
afirma a desilusão amorosa como causa primeira para as decisões do perso-
nagem, apesar de sugerir que Baltasar/Maria Úrsula tem um ânimo varonil
(BARROSO, 1940, p. 114); e, apesar de não trazer informações biográficas
sobre Arrais de Melo, descreve o primeiro encontro com Baltasar com alta
tensão homoerótica (BARROSO, 1940, p. 76-78).

3. A revista em quadrinhos A Senhora de Pangim

A Senhora de Pangim: romance histórico de Gustavo Barroso foi publi-


cado em janeiro de 1956, em edição extra da revista em quadrinhos mensal
Edição Maravilhosa, n.116, com desenhos de Gutenberg Monteiro e textos de
Gustavo Barroso. De acordo com as informações da contracapa, as revistas
publicadas pela editora Brasil-América visavam não só extasiar os leitores
com a história do Brasil, mas também moralizar as histórias em quadrinhos.
Nesse sentido, a informação “Para Adultos”, que consta na capa, procura
manter as “transgressões” de gênero do personagem distante de crianças
e adolescentes, ao mesmo tempo em que destaca para os adultos o caráter
“controverso” desse romance histórico em quadrinhos.

214 Leandro Colling


Imagem 1 – Capa da Edição Maravilhosa.

A capa, como podemos ver acima, recria uma cena, presente em quase
todas as narrativas históricas, a tomada de um forte, provavelmente o de
Amboino. Nesta, não só podemos ver Baltasar entrando sozinho e à frente
de todos na fortaleza, empunhando uma espada e uma bandeira portu-
guesa, como também podemos ver ao fundo da imagem um oficial, cujas
roupas indicam pertencer à alta patente do exército português, que parece
comandar a ação e também celebrar a entrada de Baltasar no forte. Entre o
capitão que comanda e celebra a ação e Baltasar que avança sozinho sobre
o forte, a massa anônima e sem rosto de soldados luta pela posse da for-
taleza. Desde a capa, portanto, podemos ver que o guerreiro centralizado e
destacado pela imagem não só se diferencia da massa anônima dos outros
soldados, como também ofusca os seus comandantes.
A imagem da capa também nos apresenta um guerreiro elegantemente
vestido e de aparência excessivamente jovem. O leitor que desconhece a
história que será narrada provavelmente entenderá, pela capa, que o herói
é um adolescente. No entanto, a primeira imagem de Baltasar, após a capa,
aproxima-o de uma imagem mais andrógina, o que certamente provoca e
perturba a perspectiva cisgênera de alguns leitores. Nessa página, como
podemos ver abaixo, aparecem os rostos das quatro personagens principais,
além de breve fragmento escrito de Barroso. No entanto, o texto, contra-
dizendo o indicado pelo prefácio do romance, no qual o autor afirma se
tratar de romance e não de biografia, e por isso teria se utilizado da “fan-
tasia” (BARROSO, 1940, p. 9), como se também respondesse e provocasse

Arte da Resistência 215


Pimenta (1942), destaca, ao contrário, que nos quadrinhos há pouco espaço
para a “fantasia” dos autores, reafirmando, portanto, o caráter de verdade
histórica da obra.

Imagem 2 – Edição Maravilhosa, p. 3.

Sobre a relação entre texto escrito e texto visual, podemos dizer que há
um uso excessivo de palavras, uma vez que não só quase todos os quadros
possuem longos textos, como há também quadros que dispensam comple-
tamente o uso de imagens. Ademais, os desenhos em sua grande maioria
servem unicamente para materializar o que está descrito no texto, normal-
mente sem trazer qualquer informação nova à narrativa. Nesse sentido,
podemos dizer que o texto escrito por Barroso, copiado quase integralmente
de seu livro homônimo, não só se sobrepõe às imagens de Monteiro, como
também as tornam muitas vezes dispensáveis.
Há no romance um jogo dúbio sobre o trânsito de gênero que também
se repete nos quadrinhos. Nesse sentido, enquanto no romance há uma
constante sugestão, através do canto do jovem soldado, de que há algo de
feminino em Baltasar, nos quadrinhos essa sugestão é simplesmente supri-
mida do texto. No entanto, enquanto no romance há pequenos trechos que
apenas sugerem ser o trânsito conhecida por Manuela, nos quadrinhos esse
possível conhecimento é explicitado pelo texto. Dessa forma, ainda que o
trânsito de gênero do personagem seja desconhecido, as duas narrativas

216 Leandro Colling


fornecem, ao longo da obra, elementos para que o leitor não seja surpreen-
dido, ao final do texto, pela “confissão” de Baltasar.
Assim como a maior parte das narrativas sobre “donzelas-guerreiras”,
apesar dos temores e das reações violentas de Baltasar em relação ao não
reconhecimento de sua masculinidade (BARROSO; MONTEIRO, 1956, p.
34-35), o trânsito de gênero não só é desconhecido, como a masculini-
dade de Baltasar é reafirmada pela maior parte das personagens. Nesse
sentido, o desejo que o soldado provoca, por sua força e beleza, em mulhe-
res, é também parte do reconhecimento público de sua masculinidade, e,
nem mesmo a negativa diante do assédio feminino é entendida como falta
de masculinidade, uma vez que, como dissemos, é equiparado ao mítico
D. Sebastião, o que significaria ser belo e forte, mas também celibatário
(BARROSO; MONTEIRO, 1956, p. 20).
A “confissão” de Baltasar e a publicização do trânsito de gênero, assim
como no romance, são pontos importantes da narrativa em quadrinhos.
Talvez por isso essa experiência não seja narrada uma única vez, mas, ao
contrário, por três vezes Baltasar foi levado a “confessar” ou se tentou “con-
fessar” por ele. Na primeira dessas cenas, o capitão Nuno de Mascarenhas, à
beira da morte, na travessia entre Brasil e Portugal, tenta contar ao guardião
Vasco de Brito “o grave segredo” de Baltasar. No entanto, como também
acontece no romance, para alegria do pajem, o capitão morre enquanto tenta
confessar a história, o que assegura a manutenção do segredo e permite a
Baltasar viver em Portugal e na Índia como soldado (BARROSO; MONTEIRO,
1956, p. 15-16).
Esse “segredo” também organiza as relações entre Baltasar e Manuela,
mas a situação só é verbalizada no desfecho da narrativa, quando um qua-
dro sem desenhos explica o teor da “confissão” de Baltasar. Neste, o sol-
dado não só afirma que é uma mulher, como também afirma que um amor
mal resolvido, e a imposição de um casamento sem amor, algo que já vinha
sendo sugerido ao longo dos quadrinhos, são as causas para a fuga da casa
paterna e para a vida como homem e soldado (BARROSO; MONTEIRO, 1956,
p. 44). O trânsito de gênero, no entanto, já era conhecido pelo leitor, uma
vez que Baltasar é mortalmente ferido no combate ao tigre do Mandovi, e
Arrais de Melo, durante a sua convalescência, o desnuda para cuidar de
seus ferimentos.
Assim como no romance, Baltasar, ao ser ferido, impede que lhe rasguem
o casaco para que seja avaliado e tratado o ferimento. Por isso, somente
quando desmaia é que Afonso consegue, após dispensar os outros soldados,
cuidar sozinho de Baltasar. Depois de todo o tratamento, Afonso usa suas
roupas para vestir o amigo e decide “guardar segredo”. No dia seguinte,
Baltasar, ao imaginar que seu “segredo” já era conhecido, narra a sua vida
e “confessa” o trânsito de gênero para o capitão. Arrais de Melo, então,

Arte da Resistência 217


pergunta porque se alistou para a expedição, ao que Baltasar/Maria Úrsula
responde que havia se alistado porque o amava. O capitão, a partir de então,
passa a enxergar o soldado convalescente apenas e somente como a mulher
amada e logo os dois se beijam (BARROSO; MONTEIRO, 1956, p. 44-45).
Com o casamento de Baltasar/Maria Úrsula e Arrais de Melo, a ordem
de gênero é reestabelecida e, assim como um amor mal resolvido foi a causa
para o trânsito e para ir à guerra, um novo amor, agora bem resolvido, torna-
-se também a causa para o novo trânsito de gênero e para o fim de sua vida
como soldado, uma vez que o personagem não só passa a se afirmar como
mulher, como também passa a ser reconhecida como tal. A partir desse
momento, Baltasar/Maria Úrsula passa a se submeter não só a Arrais de
Melo, mas à ordem de gênero. Nesse sentido, por exemplo, quando recebe
a pensão e a mercê do Paço de Pangim do rei D. João V, não é Baltasar/Maria
Úrsula que agradece e fala publicamente, mas é Arrais de Melo que fala
em seu nome, ainda que esteja ao seu lado (BARROSO; MONTEIRO, 1956,
p. 47). Além disso, mesmo sendo autorizada a seguir usando traje varonil
e espada, Baltasar/Maria Úrsula é, talvez no único momento em que a ima-
gem se recusa a ser mera transcrição gráfica do texto, desenhada trajando
vestido (BARROSO; MONTEIRO, 1956, p. 48).
Nesse sentido, podemos dizer que o trânsito de gênero da personagem é
tolerado tanto pela excepcional capacidade guerreira e pela luta pela pátria,
quanto pelo “retorno” a uma feminilidade submissa à ordem de gênero. De
forma geral, portanto, os quadrinhos de Barroso e Monteiro (1956), assim
como o romance de Barroso (1932), valorizam os feitos militares de Baltasar,
destacando sempre que é um dos primeiros soldados nas ações de combate;
afirma o reconhecimento público do personagem, sugerindo que viveu após
dar baixa como soldado cercado de glória e reconhecimento de seus con-
temporâneos; afirma a mulheridade e o casamento, ainda que reconheça
a vida como homem; aponta para a permissão da manutenção dos trajes
varonis e da espada com aprovação real, ainda que seja desenhada trajando
vestido; justifica e valoriza a vida de Baltasar/Maria Úrsula através da vida
de Alonso/Catalina; e afirma a desilusão amorosa como a causa primeira
para as decisões da personagem.

4. Considerações finais

Como vimos, ao contrário da historiografia portuguesa sobre Baltasar/


Maria Úrsula, a historiografia e a literatura brasileira propõem explicações
para o trânsito de gênero e para a vida como soldado. Nesse sentido, ao
longo do tempo, pudemos perceber que, na historiografia, há cada vez mais
uma afirmação da mulheridade e uma negação do trânsito de gênero, o

218 Leandro Colling


que leva mais recentemente a uma leitura patologizante do personagem.
Nesse mesmo sentido, nem mesmo a leitura a partir da chave da “donze-
la-guerreira” modifica a percepção sobre uma impossibilidade do trânsito
de gênero. Assim, podemos dizer que os textos históricos não negam que
o personagem tenha vivido como soldado, mas negam que essa vida como
homem e soldado, apesar de longa, possa ser entendida para além da ideia
de “disfarce”, o que sugere que os relatos históricos brasileiros entendem
hegemonicamente Baltasar/Maria Úrsula como uma “mulher guerreira”,
ainda que alguns deles sugiram a permanência dos “trajes varonis” e da
espada após dar baixa como soldado, o que poderia ser compreendido como
uma masculinidade possível.
No que se refere ao romance e à revista em quadrinhos, e ao trânsito de
gênero e à vida como soldado, podemos dizer que as principais referências
históricas são os textos de Macedo (1876) e Rio Branco (1891) que, apesar
de não emitirem juízo de valor sobre as decisões da personagem como faz
Teixeira de Mello (1881), reafirmam o amor como causa tanto para o primeiro
trânsito de gênero e para a vida como soldado, como causa para o segundo
trânsito de gênero e a vida como esposa. Nesse sentido, prevalece uma
perspectiva romântica e melodramática, de origem histórica sobre o perso-
nagem. No entanto, ainda que prevaleça uma visão normativa sobre gênero
e trânsito de gênero, podemos dizer que há um jogo dúbio nas narrativas
literárias, feita de suspenses, ocultamentos, segredos e confissões, o que
pode facilitar uma leitura contra às normatividades do próprio texto.
Por fim, podemos dizer também que o imaginário literário brasileiro é
criado exclusivamente a partir das obras de Barroso (1932) e de Barroso e
Gutenberg (1956), uma vez que não há outros textos literários em português
que narrem a vida de Baltasar/Maria Úrsula. Nesse sentido, diferentemente
dos textos históricos, ambos reafirmam o lugar da personagem como uma
“donzela-guerreira”, uma vez que entendem o trânsito como uma prática
circunstancial relativa à guerra. No entanto, apesar de reconhecer a vida
como homem e soldado, os textos entendem o trânsito não como uma pos-
sibilidade de reconhecimento de si, mas como uma circunstância que não
nega a mulheridade da personagem.

Arte da Resistência 219


Referências

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220 Leandro Colling


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Arte da Resistência 221


Os usos dos afetos: a raiva como
agenciamento político negro
sapatão de revide102

Mayana Rocha Soares

Cena 1:
Escrevo agora para os brancos – para os homens brancos assim como para
todas as gentes brancas – cuja brancura é menos uma cor, e mais um modo de
perceber a si e organizar a vida, uma inscrição particularmente privilegiada na
história do poder e uma forma de presença no mundo: nós vamos nos infiltrar
em seus sonhos e perturbar seu equilíbrio.

(rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da vio-


lência, Jota Mombaça, 2016).

Cena 2:
Minha raiva de mulher negra é um lago de larva que está em meu cerne, o
segredo que guardei de modo mais intenso. Eu sei o quanto de minha vida como
mulher de sentimentos poderosos está emaranhado por essa fúria. Ela é um
fio elétrico entrelaçado em cada tapeçaria emocional em que coloco o que há
de essencial na minha vida – uma fonte quente e borbulhante que pode entrar
em erupção a qualquer momento, irrompendo da minha consciência como fogo
numa paisagem. Como adestrar essa raiva com precisão, em vez de negá-la,
tem sido uma das tarefas mais importantes da minha vida.

(Olho no olho: mulheres negras, ódio e raiva, 1983, Audre Lorde)

Este ensaio compõe a tese de doutorado, defendida em 2021, Nós: afetos e literatura, no Programa de
102

pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA). Na tese, o ensaio aparece como o nome “Devolução”.

Arte da Resistência 223


Cena 3:
[...] tingir tudo de preto.

(Verso do poema atire.a, de Kika Sena, no livro Periférica).

Cena 4:
A vereadora Marielle Franco foi morta a tiros dentro de um carro na Rua
Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, na Região Central do Rio, por volta das
21h30 desta quarta-feira (14/03). Além da vereadora, o motorista do veículo,
Anderson Pedro Gomes, também foi baleado e morreu. Uma outra passageira,
assessora de Marielle, foi atingida por estilhaços. A principal linha de inves-
tigação da Delegacia de Homicídios é execução”

(Jornal G1, Rio de Janeiro, 2018).

“Aquilo que não nos mata, nos fortalece”. Esse era um dos ditados popu-
lares que eu mais ouvia da minha família quando era criança. Experimentar
afetos que nos atingem e magoam em pontos vitais de produção de energia,
de bem-viver e de força: amargura a vida e nos enlouquece. A raiva é mais
um afeto colonial com essa capacidade de minar nossa potência de vida,
visando quebrar nossas forças em continuar vivas. É um afeto poderoso de
adoecimento e morte. E muitas de nós adoecemos e morremos (ou somos
mortas). Mas nem sempre. Daí a pergunta que precisamos nos fazer é: quais
os usos podemos fazer da raiva para que ela não nos mate mas, ao contrário,
nos fortaleça? Quando não morremos, em que/quem nos transformamos?
Eu nem sempre escuto a minha raiva. Ela sempre me adoeceu.
Frequentemente transformava esse afeto legítimo em culpa: “Por que estou
com raiva?” “Será que esse motivo é justificável para sentir tamanha raiva?”.
O sintoma no corpo é geralmente de sufocamento. Não conseguir respirar
de raiva. Não tenho como precisar a primeira vez em que senti o gosto da
raiva inundar meu corpo. Mas tenho a lembrança de marcas roxas pelo corpo,
sem ter havido qualquer machucado. Lembro-me de minha mãe falando
que essas marcas são sinais de que eu guardei a raiva e não botei pra fora.
Então, é preciso compreender o porquê de esse afeto colonial nos atingir
tanto, quais seus propósitos nas corpas pretas e quais os usos fazemos dele.
Trazido pelas águas marítimas e literárias, o ódio ao suposto “Outro”
também veio na bagagem do colonialismo e sua subjetividade violenta. Ódio
ao que não é branco cristão e ao que não é espelho sempre compôs o cenário
afetivo das terras brasilis desde seu marco inaugural, seja pelos europeus

224 Leandro Colling


sedentos por guerras e conquistas; seja pelos povos originarios que foram
violentamente atacados, roubados e expropriados de suas terras; ou mesmo
pelos povos raptados e trazidos à força, para o trabalho escravo. Intelectuais
como Franz Fanon (1968), Aimé Césaire (1987), Sueli Carneiro (2005), Grada
Kilomba (2019), dentre muites outres, construíram uma importante trajetória
narrativa de pensamento sobre como a subjetividade colonial foi/é produzida
na violência, mergulhada no ódio e na raiva.

enquanto penso sinto isso, não consigo esquecer, no corpo, que mataram
Marielle Franco, em 2018. Não esqueço porque a raiva que me atravessou
quando vi a notícia pela televisão me transformou em desespero e medo. O
corpo carrega a memória dos afetos e esses afetos me atravessam mais fortes
e ativos que qualquer outra coisa. Esquenta meu corpo, meu ori. Eu sinto as
labaredas enfurecidas. Marielle foi assassinada pelo ódio. Um ódio dirigido a
todas as corpas pretas e das dissidências sexuais e de gênero. E que está em
todos os lugares. Não estamos a salvo.

O racismo, assim como os demais efeitos dos afetos coloniais, como a


cisheteronorma masculina capitalista e capacitista, é fruto de um profundo
ódio e horror branco de si mesmo. Para dar conta de construir um imagi-
nário positivo sobre si e criar uma narrativa dualista em que seja possível
o “Bem” ser personificado por um “eu” e o “Mal” em um “Outro”, o “Eu”
cishomem+hetero+branco+cristão+colonizador criou a personificação de
aspectos negativos do “eu” do sujeito branco, que Grada Kilomba (2019, p.
34-37) chama de “Outridade”.

O sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco


não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se trans-
forma em inimigo intrusivo, o branco se torna vítima com-
passiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido,
tirano. Esse fato é baseado em processos nos quais partes
cindidas da psique são projetadas para fora, criando o cha-
mado “Outro”, sempre antagonista do “eu” (self). Essa cisão
evoca o fato de que o sujeito branco de alguma forma está
dividido dentro de si próprio, pois desenvolve duas atitudes
em relação à realidade externa: somente uma parte do ego –
a parte “boa”, acolhedora e benevolente –é vista e vivenciada
como “eu” e o resto – a parte “má”, rejeitada e malévola – é
projetada sobre a/o “Outra/o” como algo externo. O sujeito
negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito
branco teme reconhecer sobre si mesmo.

Fico de cá refletindo que tal “Outrificação”, como descrita por Grada,


traduzida por Jess Oliveira, é a forma não apenas de o sujeito branco projetar

Arte da Resistência 225


seus próprios afetos odiosos, mas também de justificar o racismo e seus
tentáculos violentos e mantê-lo como efeito imediato, prático e material
da subjetividade colonial a qual ainda habitamos. Tem uns versos de uma
música aqui na Bahia que faz parte dos clássicos do axé dos anos 1990,
de autoria de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal, chamada Alegria da cidade,
que diz assim:

[...]
Será que você não viu Não entendeu o meu toque
No coração da América eu sou o jazz, Sou o rock
Eu sou parte de você Mesmo que você me negue Na beleza do afoxé
Ou no balanço no reggae Eu sou o sol da Jamaica Sou a cor da Bahia
Eu sou você (sou você) E você não sabia [...]

Como dizem esses trechos da canção, “eu sou parte de você / mesmo
que você me negue”. Funciona como um cistema103 de projeção reversa em
que devolvemos à subjetividade colonial branca a raiva produzida. Esses
trechos poderiam, inclusive, ser uma citação da Grada Kilomba ou Stuart
Hall (2016), em seu trabalho Cultura e representação, visto que, nesses
versos, há uma devolutiva espelhada ao sujeito branco, escancarando em
sua face o racismo cissexista que ele tanto quer negar. É exatamente essa
a operação de espetacularização feita por Stuart Hall, para compreender
os mecanismos de outrificação estética e midiática do sujeito negro no oci-
dente. A subjetividade colonial europeia criou, portanto, todo o imaginário
social sobre os corpos não-brancos, não-masculinos, não-heterossexuais,
não-cristãos. E, às vezes, acreditamos em tal imaginário e nos odiamos
também por isso. Esse mecanismo de projeção é mobilizado pelo afeto da
raiva. Raiva projetada e negada para que o sujeito branco possa nos odiar
livremente.
Audre Lorde (2019), traduzida por Stephanie Borges, poeta e intelectual
lésbica afro-estadunidense, construiu um importante saber sobre como os
afetos mobilizam os corpos e os agenciamentos políticos que ecoam nos
corpos das mulheres negras, em especial o afeto da raiva:

Racismo. A crença na superioridade inerente de uma raça


sobre todas as outras e, portanto, em seu direito à domi-
nância, manifesta e subentendida.

Grafia mais apropriada para a palavra “cistema”, tendo em vista a sua estruturação cisgênera e colonial.
103

Aprendi com o Transfeminismo. Para mais informações: https://catarinas.info/subverter-o-cistema-o-trans-


feminismo-na-voz-de-leticia-carolina-nascimento/ - Acesso em 1 set. 2022.

226 Leandro Colling


As mulheres reagem ao racismo. Minha reação ao racismo é
a raiva. Tenho vivido com essa raiva, ignorando-a, alimen-
tando-me dela, aprendendo a usá-la antes que ela relegue
ao lixo as minhas visões, durante boa parte da minha vida.
Houve um tempo em que eu fazia isso em silêncio, com
medo do fardo que teria de carregar. Meu medo da raiva
não me ensinou nada, O seu medo dessa raiva também não
vai ensinar nada a você (LORDE, 2019, p. 155).

Certa vez, estava com uma amiga querida e também parceira de estu-
dos e comentamos sobre o que sentimos quando experenciamos a raiva. Eu
disse que não sentia raiva com muita facilidade. Tinha de ser um aconteci-
mento que mexesse demais comigo para ficar com raiva. Ela me disse que,
se parasse pra pensar bem, sentia raiva todos os dias. É uma dor profunda
na boca do estômago que parece que vai rasgá-la ao meio e que, por isso,
evita sentir, mas nem sempre dá. Pensei que posso, ao contrário de minha
amiga que já identificou os efeitos da raiva em seu corpo, estar tentando
camuflar os efeitos desse afeto em mim. Por medo de não aguentar a raiva,
tentamos frequentemente negá-la. Sem contar a estereotipia que nos apri-
siona no lugar de raivosas. É horrível, porque, assim como minha amiga bem
descreveu, tenho essa mesma sensação de dor profunda quando sinto raiva
e, muitas vezes, meu primeiro impulso é reprimi-la.
Tenho aprendido com Audre e uma constelação de muitas outras
pretes que, em inúmeras circunstâncias, o melhor que podemos fazer por
nós mesmas é libertar a raiva de nós. Botar a zanga pra fora é um caminho
fecundo de liberdade. A raiva é energia afetiva de cura. Sobonfu Somé diz,
acerca das experiências Dagara, que vivenciar a raiva é importante para que
ela não nos domine e mate. Por isso, o empreendimento colonial afetivo é
tão poderoso sobre nós: porque separou corpo e mente, nos fez acreditar
que a mente sempre tem razão, que não devemos confiar no que sentimos
(ou seja, no que os afetos nos dizem) e que devemos silenciar e nos afastar
de nossas emoções.

As pessoas tendem a se distanciar de suas emoções. Assim,


desconectam-se do que está acontecendo e tornam-se
superficiais. No ritual, se a pessoa sentir vontade de chorar,
não há problema. Se a pessoa sentir raiva, é importante que
possa extravasá-la. Com efeito, a raiva carrega uma energia
de cura. Ela só se torna destrutiva quando deixamos que
domine nosso ser e o mantenha prisioneiro (SOMÉ, 2007,
p. 62).

Audre faz um exercício interessante em tomar a raiva não apenas como


um afeto triste, nos termos espinosianos, mas como uma forma de combate
e revide ao racismo e suas opressões correlatas. Se esquivar da raiva, tentar

Arte da Resistência 227


removê-la do corpo sem compreender o porquê de sua presença, como
ela se manifesta ou o que ela mobiliza pode ser um caminho perigoso de
auto-sabotagem, medo e silenciamento. É preciso aprender com esse afeto.
Seguir seu ritmo, seu balanço. Não negá-lo. Porque é pouco rentável e desin-
teressante apostar num esquema de moralização dos afetos, restringindo
seu agenciamento a posições de “bom” ou “ruim”.
Se fosse seguir um caminho espinosiano para pensar o afeto da raiva,
teria de abandonar a proposição trazida por Audre Lorde, cuja premissa
fundamental é abraçar a raiva para compreendê-la e, assim, reorganizá-la
em nosso corpo. Isso porque, para o filósofo holandês, os afetos produzem,
politicamente, diferentes frequências no corpo e na mente dos sujeitos,
tornando-os mais alegres ou mais tristes. Em Espinosa (2009), lá no Tratado
Político, a raiva é concebida como um afeto triste, tendo em vista que ela
mina as potencialidades de agência dos sujeitos. No entanto, atento para o
perigo de essencializar os afetos, como fez Espinosa, sem levar em conside-
ração os contextos socioculturais produzidos pela subjetividade colonial e os
agenciamentos da criação de seus marcadores de diferença. Aqui, também
evoco novamente essa reflexão, posto que, assim como o afeto do amor
romântico pode produzir relações tóxicas para pessoas negras e lgbtqiap+,
não sendo necessariamente um afeto alegre por natureza, o afeto da raiva
pode vir a ser de mobilização e potência de vida.
Em se tratando do efeito do afeto da raiva sobre nós, o campo literá-
rio104, no Brasil, se formou a partir de um espaço profícuo de manutenção
e dispersão desses afetos coloniais. Uma rápida passada de olho nos tex-
tos literários quinhentistas do período das invasões, da produção literária
romântica e realista/ naturalista do século XIX, já conseguimos detectar a
repugnância, bem como a complexa relação entre ojeriza e desejo, os quais
rapidamente se transformariam em ódio, uma fúria, uma raiva incontrolável
dos corpos não-brancos e não-europeus cisheteronormativizados.
Um clássico exemplo da construção de imaginário de ódio é a persona-
gem negra Bertoleza, do romance oitocentista O cortiço (1890), de Aluísio
Azevedo. Durante a narrativa sabemos que a personagem viveu toda uma
vida atravessada pela experiência da escravidão e foi descrita como a servi-
çal retinta e gorda. E ao juntar-se ao português João Romão, mesmo estando
“liberta”, permanece escravizada, visto que seu novo “senhor” continua a
exercer “o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante” (AZEVEDO,
1997, p. 03). Enquanto Bertoleza disponibilizava seu trabalho e seu afeto de
amor e cuidado para com João Romão, ela frequentemente era descrita por

104
Para melhor compreender a literatura, em seu caráter institucional, e seus projetos, indico a leitura dos
seguintes livros: Devir darkroom e a literatura hispano-americana (2014), de Helder Thiago Maia, e Feitiçarias, terrorismos
e vagabundagens: a escritura queer de João Gilberto Noll (2019), de minha autoria.

228 Leandro Colling


ele como crioula fétida, suja, serviçal, bruta, extremamente forte, “que fazia
trabalhos de homens” e era descartável. Bertoleza encarna o corpo para
ser odiado. E, durante a leitura da trama, o asco e o nojo que produzimos a
partir do encontro com essa personagem acompanha o ódio sentido pelo
português João Romão pela existência de Bertoleza.

Uma vez deitado, sem ânimo de afastar-se da beira da


cama, para não se encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida
ao espírito a compreensão do estorvo que o diabo daquela
negra seria para o seu casamento. E ele que até aí não
pensara nisso!... Ora o demo! Não pôde dormir; pôs-se a
malucar: Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas
drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em
que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se
veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso
há mais tempo!... parecia incrível! João Romão, com efeito,
tão ligado vivera com a crioula e tanto se habituara a vê-la
ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou
em tudo, menos nela.
E agora? E malucou no caso até às duas da madrugada, sem
achar furo. Só no dia seguinte, a contemplá-la de cócoras
à porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por
associação de idéias, lhe acudiu esta hipótese: – E se ela
morresse? (AZEVEDO, 1997, p. 84).

acredito que esse afeto do ódio foi mobilizador do ataque contra à vida
de marielle franco. arrisco dizer que essa mesma pergunta, feita por joão
romão a si mesmo, no final desse trecho acima, em relação à bertoleza, deve
ter sido feita pelas pessoas que orquestraram e executaram marielle. “e se
ela morresse?”. desejo colonial branco cismasculino secular se reanima a
cada ataque a qualquer uma de nós. é preciso não fugir à pergunta: a quem
interessa a morte de mulheres negras?

Acho importante destacar, para quem não conhece o romance em ques-


tão, que Bertoleza serviu como uma importante mão de obra econômica e
sexual para o crescimento de João Romão. Seu corpo servia como braço de
trabalho e para sexo. De resto, só o descarte do “trambolho”. Tal imaginário
exposto repetidas vezes produz uma espécie de eco no tempo e no espaço,
de modo a perpetrar relações odiosas entre nós acerca de nossos corpos
e de nós mesmas.
Com o desenvolvimento do cortiço e os outros mais à sua volta, a partir
do imaginário criado acerca das periferias como um grande amontoado de
pessoas pretas, pobres, sem quaisquer assistências, talhadas pela selvage-
ria, o ódio de João Romão, esse português pobre e aproveitador, só cresce
por tudo aquilo que ele rejeita como o “Outro”.

Arte da Resistência 229


E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova
república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-
lhe à sua, perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo,
disposto à luta, e começou a perseguir o rival por todos
os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para
que o não deixassem respirar um instante com multas e
exigências vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no
espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido,
que os incompatibilizava com a gente do “Cabeça-de-Gato”
(AZEVEDO, 1997, p. 80).

Essa raiva, em sua missão de envenenamento, que por vezes é velada


por certo “bom mocismo”, por discursos de preservação da “família e dos
bons costumes” ou, ainda, em favor de um tal “cidadão de bem”, tem por
objetivo o extermínio das imensas populações das “Outridades”. Extermínio
da terra e dos animais. Sua fome pelo capital come/destrói absolutamente
tudo o que está em seu caminho. João Romão traduz o que viria a ser o
“cidadão brasileiro” médio, que odeia ser da periferia sul global, que odeia
pobre, favela, pretes, viades, travestis, sapatão e tudo o que toca o feminino
(basta conferir o aumento nos números de feminicídio contra mulheres trans
e cis pretas nos últimos anos). Audre diz:

Pois não é a raiva das mulheres negras que goteja sobre


quem lança foguetes, que gasta cerca de sessenta milhões
de dólares por segundo em mísseis e outros agentes da
guerra e da morte, assassina crianças nas cidades, arma-
zena grandes quantidades de gases tóxicos e armas quí-
micas, sodomiza nossas filhas e nossa terra. Não é a raiva
das mulheres negras que se corrompe até se transformar
em um poder cego e desumanizador, determinado a nos
aniquilar a todos, a menos que o enfrentemos com aquilo
que temos: nosso poder de analisar e redefinir as condições
sob as quais viveremos e trabalharemos; nosso poder de
vislumbrar e reconstruir, raiva após raiva dolorosa, pedra
sobre pedra, um futuro de diferenças fecundas e de uma
terra que sustente as nossas escolhas (LORDE, 2019, p. 167).

A literatura, em seu caráter institucional, foi um importante instrumento


de promulgação e difusão do projeto colonial e contribuiu com uma enorme
parcela dessa produção da subjetividade colonial violenta, que deposita
sobre os corpos negros e das dissidências sexuais e de gênero o escárnio,
a sujeira, o nojo, o ódio, a rejeição, o pecado, a violência. Daí é bacana poder
encontrar as rupturas que podemos construir na produção literária que
reconta as narrativas e remonta outros imaginários, diferentes desses.
A raiva que Audre nos convida a compreender é a de que esse afeto
produz diferentes afetações e resultados, cujo poder de nos matar pode ser

230 Leandro Colling


redirecionado a produzir a potência necessária para não só continuarmos
vivas, como também e, principalmente, construir e redefinir estruturas de
poder, “um futuro de diferenças fecundas e de uma terra que sustente as
nossas escolhas” (LORDE, 2019, p. 167). É a raiva do revide. É redirecionar
seu uso, ao esvaziar seu poder de morte. Ao pensar na raiva como afeto
colonial e como ele é direcionado à extinção de tudo o que é vivo, esse afeto
torna-se uma máquina, um trator, a passar por cima e matar tudo o que é
pulsante, como um “líquido doentio”. É veneno. Nossa raiva é outra coisa: é
combustível que pode nos resgatar à vida. A raiva é uma ferida ancestral
aberta, ainda pulsante, em corpos negros e lgbtquia+. Ela não nos define,
não nos resume, mas compõe parte significativa do que nos tornamos. Então,
sim, mulheres negras, em todo o mundo, estão com raiva. Mas, não como um
adjetivo essencialista da condição de ser, e sim como resultado dessa ferida.
Audre Lorde ensina:

Toda mulher negra na américa sobreviveu a vidas inteiras


de ódio, nas quais até mesmo, na vitrine das docerias da
nossa infância, aqueles bebês neguinhos de alcaçuz tes-
temunhavam contra nós. Sobrevivemos a cusparadas nos
nossos sapatos infantis e aos band-aids cor de pele rosada,
às tentativas de estupro no telhado, às cutucadas do filho
do zelador, à visão de nossas amigas explodidas na escola
dominical, e absorvemos toda essa aversão como algo
natural. Tínhamos que metabolizar tanto ódio que nossas
células aprenderam a viver dele – do contrário, morreríamos
dele (LORDE, 2019, p. 196).

Veja: metabolizar a raiva é mais aprender com ela, reconfigurá-la no


corpo, dar novos sentidos e expandir todos os demais afetos do que fazer
dela nossa eterna morada. Raiva sendo menos dor e mais combate. Como
leitora, a literatura foi um dos lugares de maior recomposição afetiva, porque
sempre me movimenta em direções que nem sempre compreendo, mas que
me mobiliza afetos que me atravessam, produzindo bem viver. E esse Bem
Viver não está distante da raiva. Não está distante do medo ou do amor ou da
tristeza ou da felicidade, mas dos usos para que consigamos produzir saúde
emocional e autodefinição. Sou grata em dizer que as produções literárias,
artísticas e culturais de mulheres negras sempre estiveram a me resgatar.
Assim como Audre Lorde (2019) sentiu que sua escrita era uma forma de
libertação para transformar silêncios, raiva, fúria, em ação, produzir esses
escritos hoje também me faz recorrer à esse instrumento da escrita como
uma ferramenta de libertação, porque a raiva quer me/nos matar todos os
dias. Mas, a gente não deixa.
Na produção literária, principalmente de temática e autoria negra e
sapatão, são recorrentes os temas da raiva porque é preciso encontrar uma

Arte da Resistência 231


forma de usá-la, seja como mecanismo de defesa ou de ataque. Por mais
que a palavra não esteja ali, sendo declamada ou grafada no papel, o tom
do poema, do conto, do rap, do enredo, da crônica, do olhar, do filme ou da
série denuncia os afetos que nos tomam.
Uma das minhas maiores alegrias durante essa pesquisa foi ter desco-
berto tanta gente incrível que escreve, publica e permite compartilharmos os
nossos afetos. Voltando à questão que trouxe lá no começo: o que estamos
fazendo com a nossa raiva para continu- armos vivas? Uma das respostas
é que estamos criando condições narrativas de respiro, através de produ-
ções literárias diversas. O poema abaixo de Kika Sena (2016), em seu livro
Periférica, ilustra bastante o que estamos discutindo aqui:

atire a.

me atacaram pelas costas tacaram pedra nim mim tacaram pedra


na minha cabeça
tacaram pedra na minha cara tacaram pedra na minha boca tacaram
pedra no meu sorriso
depois
me seguraram me amarraram
tacaram fogo nim mim
tacaram fogo no meu cabelo tacaram fogo na minha pele tacaram fogo
nos meus olhos tacaram fogo na
minha respiração
tacaram fogo na minha voz logo
não puderam me conter poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas
caras brancas com meu choro queimei suas
esperanças brancas
tingi tudo de preto
sou brasa forte
tição pós-apocalíptico
pior que deuses ditadores
não mexe
não mexe não mexe
não mexe comigo não...
que à dor à dor
à dor
à dor
eu sei reagir

(KIKA SENA, 2017, p. 64. grifo meu).

232 Leandro Colling


Conheci o trabalho de Kika através de um texto de tatiana nascimento
sobre cuierlombismo literário e não consegui mais deixar de ler suas
produções. Quando Kika nos convoca a atirar, sinto como um importante
movimento afetivo de dispersão e revide ao ódio e à raiva em seus usos
coloniais. Usamos nossa raiva como energia para alimentar nossa potência
de vida. Ela diz:

“me atacaram pelas costas


tacaram pedra nim mim
tacaram pedra na minha cabeça
tacaram pedra na minha cara
tacaram pedra na minha boca
tacaram pedra no meu sorriso”

Ser atacada, infelizmente, faz parte do cotidiano de muitas mulheres


negras cis ou trans em todo o mundo. Sendo difamada, silenciada, violen-
tada, agredida, “cancelada”, morta. A narrativa racista e cissexista que
“somos fortes” e que, por isso, “aguentamos tudo” é um imaginário presente
e encrustado na subjetividade colonial, retroalimentado pelo discurso da
“preta raivosa”, que ajuda a manter os ataques presentes em nossas vidas.
Por isso, a denúncia é uma das armas de revide mais comuns utilizadas por
muitas autorias de literatura negra. É um dos usos da raiva. Mas não só! A
denúncia é utilizada por Kika nesse poema como grito e enunciação dessa
raiva, mas há uma importante modificação no agenciamento dessa raiva,
que não apenas denuncia a violência, mas revida. Devolve a raiva.

“não puderam me conter


poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas caras brancas
com meu choro
queimei suas esperanças brancas”

É o que tatiana nascimento, lá na discussão sobre cuírlombismo literá-


rio, chama atenção para vermos, sentirmos, produzirmos, compartilhamos
demais afetos de bem-viver, que reanimem nossa capacidade de sonhar e
encorajem nossos devaneios, ou seja, fazermos diferentes usos da raiva, com
a combinação de muitos outros afetos que nos atravessam. Observe: não se
trata de esconder ou esquecer das dores e do sofrimento, usamos a raiva
também para combater tais sentimentos. Trata-se de acrescermos a essa
rede literária nossas complexidades por outros movimentos afetivos e não
reduzi-lo às violências sentidas. Tenho pensado sentido que as produções

Arte da Resistência 233


literárias negras sapatão compartilham dessa perspectiva cuirlombista de
tatiana.

[...] projeto quilombista de abdias do nascimento pra nos


desdobrar em cuierlombismo: lavrar resistência negra
lgbtqi como exercício de liberdade, expansão do sentido
tradicional de “resistência”. refundar a noção de literatura
a noção de literatura negra, vista apenas como combativa,
de denúncia do racismo, idealizada em modelos de “homem
negro” e “mulher negra” binário-htciscêntricos. questionar
esse jeito de fazer, ler, compreender literatura negra no qual
a dor, sofrimento, heroísmo, revolta, heterociscentralidade
seriam temas dominantes. (nascimento, 2019b, p. 15).

É flagrante no poema de Kika esse movimento de denúncia-revide-re-


tomada do tom narrativo a fim de disputar a política/poética da tentativa de
ataque. O tom vai aumentando à medida que lemos/ouvimos esse poema.
Devolvemos a raiva e os ataques. Destruímos (ou prometemos destruir) suas
caras e esperanças brancas, tingindo tudo de preto. Eu gosto muito desse
verso. Tingir tudo de preto. Retirar a máscara branca. Pegar de volta toda
a pilhagem colonial que nos foi roubada. Toda a dignidade e alegria. Tingir
tudo de preto significa um afrofuturo do aqui e agora que orienta uma jor-
nada coletiva em busca de uma vida possível. E reconhecer um si em nós:

“sou brasa forte


tição pós-apocalíptico pior que deuses ditadores não mexe
não mexe não mexe
não mexe comigo não... que à dor
à dor à dor
à dor
eu sei reagir”

Eu sempre grito, falo mais alto, quando estou lendo/recitando esses


últimos versos, um grito de retorno, de devolução. Há aí um estremecimento
na voz de raiva saindo pelos poros, contaminando tudo ao redor. Reagir
à dor é algo que aprendemos desde muito cedo. Saber de si no mundo,
criar mecanismos de autodefinição, como afirma Audre Lorde (2019), é um
excelente instrumento de usar a raiva. Reagimos à dor. É assim que não
morremos. Audre diz: “ter raiva é o que eu faço de melhor” (LORDE, 2019,
p. 193). Mas não a raiva que paralisa, adoece e mata. Ela tá falando da raiva
que quer tingir tudo de preto.
Periférica (2017) é um livro de poemas, publicado pela Padê Editorial,
escrito por Kika Sena que me ensinou muito sobre a raiva e a importância

234 Leandro Colling


da autodefinição. Kika105 é uma mulher negra trans/travesti, da periferia de
Alagoas para o mundo. Arte-educadora, atriz, escritora, poeta e performer.
Traz em seus poemas a dor, o grito, o choro, o soluço, o genocídio, e também
a pólvora, o amor, o mar, o corpo de sereia. Foi com ela que aprendi que não
há uso melhor para nossa raiva do que tingir tudo de preto.

marielle franco tingia tudo de preto. e depois que a tinta preta preenche
todos os espaços e incorpora é dificíl de tirar, que nem mancha de azeite, que
não sai.

Essa é também uma forma de redistribuição da violência, anunciada


por Jota Mombaça (2016). Jota propõe um caminho de libertação cujo cerne
é o revide, a devolução. Perceba: se trata de devolver ao cistema branco o
seu funcionamento, mostrar suas engrenagens e renunciar a nossa parti-
cipação nesse espetáculo de horror que o ocidente chama de “civilização”,
“progresso” ou qualquer outra expressão semelhante.
Tem algo sobre a raiva que tenho aprendido a repensar. Frequentemente
compreendida como dor, sofrimento ou resposta violenta, nem sempre
miramos a sua escapada de ser revide ou agência por outras trilhas. Quando
construímos imaginários cujas possibilidades de existir no mundo são
infinitas; quando refundamos narrativas e poéticas que nos recolocam em
cenas de prazer, dengo, cuidado e bem viver; quando há gozo e qualquer
momento de felicidade; a gargalhada diante de um sentimento de justiça
ou quando simplesmente dizemos: “vá se fuder, racista/transfóbic/lesbo-
fóbic do caralho!”: são todos encontros de libertação. O que quero dizer é:
encontrar felicidade, redefinir caminhos (tingir tudo de preto), também é
fazer uso da raiva.
Nem sempre é fácil compreender os afetos que circundam nosso corpo
e nossas relações com o mundo. Em momentos de caos improdutivo, crises
de ansiedade, de raiva e depressão, largava a escrita e corria para os braços
das séries. Não resolviam, mas eram um ótimo paliativo. Uma das séries
que me chamou atenção para melhor lidar com o afeto da raiva foi a série
dramática estadunidense How to get away with murder (2014) e não pude
deixá-la de fora dessas reflexões. Dirigida e produzida pela cineasta afro-
-estadunidense Shonda Rhimes, narra a história da professora e renomada
advogada de direito Annalise Keating (personagem vivida pela atriz Viola
Davis) e um grupo de estudantes que, juntes, precisam acobertar uma série
de crimes. Além de ser uma série dramática de suspense, sobre crimes,
a sua forma narrativa em modo espiralar é mais um atributo que torna a

105
Informações sobre a autora retiradas do próprio livro Periférica.

Arte da Resistência 235


narrativa muito mais interessante, tendo em vista que não apenas o que se
é narrado, mas o como se é narrado é igualmente importante na contação
de histórias. À medida em que o enredo e as tramas vão sendo desvenda-
dos episódio a episódio, vamos conhecendo também a vida das principais
personagens, inclusive, da personagem principal, a qual é a minha fonte
de interesse crítico.
A personagem Annalise Keating é uma mulher cis preta retinta bisse-
xual, que conseguiu sair da situação de vulnerabilidade socioeconômica em
que vivia na infância, mas que carrega muitas dores do abuso sexual sofrido
quando criança, da dificuldade em criar vínculos familiares, da perda do seu
filho, da morte de pessoas com quem se importava, da traição de seu marido
e de tantas outras pessoas que ela buscava proteger. Annalise encena e tra-
duz a complexidade de ser uma mulher negra retinta neste mundo colonial,
no mundo antinegro. Ela carrega as dores do mundo nas costas. Mesmo
sendo bem sucedida em sua carreira, inclusive é reconhecida por ela106,
a personagem em inúmeros momentos diz: “estou vazia”, “me sinto vazia”.
Foi presa injustamente por crimes que não cometeu; foi acusada, traída e
agredida verbalmente por todas as pessoas em quem confiava à sua volta,
ao longo da série, e quase vê sua carreira ir por água abaixo porque há todo
um cistema legal contra a presença desse corpo feminino negro que não
abaixa a cabeça e que ocupa um espaço de poder e decisão.
Na terceira temporada, quando está na cadeia, entre lágrimas de luto
e de ódio, em uma conversa ela diz: “I’m just angry”. Eu sou apenas raiva.
Assim como essa personagem da série, a raiva que a inunda é o afeto que
também afoga muitas mulheres negras mundo afora. O racismo, o sexismo,
a misoginia, a cisheteronorma capitalista branca não sossega enquanto
não nos aniquilar, como fez com a personagem Bertoleza. Como fez com a
vereadora eleita Marielle Franco. Tais opressões operam de modo combi-
nado, simbiótico, indissociável. Nos enlouquecem, matam nossos filhos, nos
retiram a paz, nossos corpos adoecem e nos afogam na raiva.
Essa subjetividade colonial capitalista de supremacia branca adoeceu
Annalise e tornou dependente de álcool. Feriu violentamente a sua psique,
suas emoções, sua vontade de vida. Quase a matou. Raiva era a única coisa
que poderia salvá-la, porque ela estava quebrada. Depois de tantas violên-
cias, era o único afeto mobilizador em seu corpo. “Somos mulheres negras
nascidas em uma sociedade de arraigada repugnância e desprezo por tudo
o que é negro e que vem das mulheres” (LORDE, 2019, p. 191). Essa persona-
gem incorpora tudo de mais odioso para a estrutura colonial: mulher preta
bissexual, ocupando espaços de decisão e com um pouco de poder de mãos.

Há uma profícua discussão sobre o tom meritocrático que a série dá, no sentido de que ela “se esforçou”,
106

portanto, “ela conquistou”, mas não vou adentrar nesse tema aqui.

236 Leandro Colling


Quando trago como cena a notícia da morte de Marielle Franco neste
ensaio, é justamente para pensar como os corpos femininos negros são
vulneráveis a todo tipo de ataque de morte. Na série, Annalise sofreu um
atentado à sua vida, em um suposto acidente de carro que mais tarde
descobrimos ter sido orquestrado pelo seu ex-cliente. Nesse acidente, a
personagem perde seu filho. Ela estava grávida de oito meses. Essa mesma
narrativa colonial que quase enlouqueceu e matou a personagem da série
é a mesma sociedade que assassinou Marielle Franco, que ameaçou a vida
da vereadora Érika Hilton (PSOL/SP)107 e que quer matar todas as mulheres
pretas que não permitem serem interrompidas.
Annalise foi casada com o psicólogo branco Sam Keating, cujo relacio-
namento se inicia a partir da relação entre terapeuta e paciente. Buscou a
terapia para lidar com seu medo em ser lésbica ou bissexual. Antes de casar
com Sam, estava em crise consigo mesma por ser uma mulher preta que
transita na beira dos limites da heteronorma e com a até então namorada
Eve, uma mulher branca. Após dez anos de casamento com Sam, ela desco-
bre que seu marido teve um romance com uma das alunas dele, a engravidou
e a mandou matar para encobrir o feito. Em uma das cenas mais difíceis
de assistir, numa discussão entre o casal, Sam diz para Annalise: “Quando
vi você pela primeira vez, sabia que seria só sexo. Sexo sujo, assim como
você é uma vadia suja” (esse enunciado poderia ter sido proferido por João
Romão, de O Cortiço, em relação à Bertoleza!). Essa frase é carregada da
estereotipia de todo o ódio branco que é transferido à mulher negra, como
suja e feita apenas para o sexo, retornando ao discurso da hiperssexuali-
zação dos corpos negros. Ele, um homem cis branco, se sente enojado por
desejar aquela mulher. Para não sentir ódio de si mesmo, por desejar aquela
que deveria lhe causar repulsa, busca transferir todo esse afeto para sua
algoz, sua esposa.
A hiperssexualização dos corpos não brancos é uma estratégia discur-
siva ainda bastante presente em nosso imaginário. Uma hiperssexualização
que é também hipercissexualização heterossexual. Está presente desde
a famosa carta de Caminha e sua descrição sobre os corpos e as práticas
afetivo-sexuais das populações indígenas, passando pelas produções lite-
rárias oitocentistas, como O Cortiço, Bom Crioulo, O Mulato, Moreninha, em
relação às pretitudes, até alcançar públicos ainda maiores com as produções
televisivas, como as novelas. A hiperssexualização como produto cultural e
repetição do desejo colonial.
Foi uma cena difícil de assistir porque esse imaginário acerca das
mulheres negras sujas e raivosas faz parte do projeto colonial que reduz

107
Para mais informações, ler https://www.observatoriodaimprensa.com.br/genero-e-inclusao/as-ameacas-a-
-erika-hilton/ - Acesso em: 1 set. 2022.

Arte da Resistência 237


nossos corpos à economia do capital de supremacia branca, desumanizan-
do-os, limitado ao trabalho braçal e ao sexo. Assim como Bertoleza, Annalise
era vista para o trabalho e para o sexo, sendo lida como repugnante, suja,
imunda. Essa frase proferida por seu marido Sam, bem como por enuncia-
dos raivosos correlatos, é também ouvida por inúmeras mulheres pretas,
em diferentes contextos, de diferentes maneiras, por diferentes pessoas. A
personagem Annalise encarna o corpo para ser odiado porque ela faz que
nem Kika Sena ao tingir tudo de preto. Ela é a Bertoleza que “não comeu
reggae”, como se diz aqui na Bahia, e enfrentou o “golias” do cistema judi-
ciário estadunidense, esfregando na cara o quão racista e elitista ele o é.

No cistema-mundo generosexualizado, pretes não passam de mercadoria


sexual. Suas vidas possuem valoração – 1, como disse denise f. Silva. E, como
tal, podem ter seus corpos violados, esfaqueados, linchados, assassinados.
O corpo preto femino dissidente de marielle franco foi violado. E do motorista
anderson, que a acompanhava, também. Vidas de valor – 1. Uma das lembranças
mais frequentes de Marielle é dela, com o dedo em riste, anunciando “eu não
serei interrompida”.

Algo muito importante que aprendi sobre os afetos é que eles, como
energia e movimento, não nos definem, porque não agem sozinhos em nos-
sos corpos. Annalise não é só raiva. É também a filha amorosa e cuidadosa
com a mãe, a professora e advogada dedicada, a protetora das suas/seus,
a mulher que exala vitalidade, que adora sorvete e vodka. E tudo isso ao
mesmo tempo. O que acho mais bacana é que Annalise Keating não incor-
pora a típica narrativa da mocinha ou da vítima (não podemos esquecer que,
sendo uma mulher preta retinta, numa posição de poder e autoridade, tal
imaginário jamais a abarcaria). É uma personagem com uma grande carga de
complexidade. Uma complexidade que a política das identidades manipulada
pela branquitude busca frequentemente retirar de nós. O looping represen-
tacional do delírio branco que dualiza a existência em “O bem vence o mal”
– sendo o “bem” o sujeito branco e o “mal” o sujeito negro, como trouxe com
Grada – perde seu efeito nessas produções literárias e culturais que vimos.
Na série, Annalise bebe o veneno do ódio, mas não morre. Ela usa sua
raiva para se reerguer. E quando adoece, cai e se vê sem condições de levan-
tar, conta com uma outra mulher preta, que aparece sempre para levantá-la e
ajudar a curar suas feridas: sua mãe, com a sabedoria e os afetos poderosos
das mais velhas. E há uma certa lembrança ancestral dessa nossa relação
de apoio mútuo, mesmo quando tudo o que esperam é que nos matemos a
nós mesmas, nos odiemos.

238 Leandro Colling


Na infância, absorvemos esse ódio, somos atravessadas por
ele, e, quase sempre, ainda vivemos nossas vidas sem reco-
nhecer o que ele é de fato e como ele funciona. Ele retumba
como ecos de crueldade e raiva nas relações que mantemos
umas com as outras. Pois cada uma de nós carrega o rosto
que ele procura, e aprendemos a nos sentir à vontade com
a crueldade, por termos sobrevivido tantas vezes a ela em
nossa existência (LORDE, 2019, p. 184).

O auto-ódio é uma forma de morte para nós. Quando odiamos umas


às outras em função do racismo ou da lesbofobia ou transfobia, por exem-
plo, odiamos a nós mesmas. É nisso em que consiste a presente produção
subjetiva dos afetos coloniais: nos encaminhar à nossa aniquilação através
dos afetos que reduzem nossa potência da vida. “A raiva é útil para ajudar
a entender nossas diferenças, mas, a longo prazo, a energia gerada apenas
pela raiva é uma força cega, que não pode criar futuro” (LORDE, 2019, p.
192). Pegar essa visão é poder escapar com nossa zanga e redirecioná-la
para onde dói mais.
Não é de se estranhar que haja ódio e disputa entre mulheres negras,
seja em função da manutenção da subjetividade patriarcal; seja pelo vivo
e eficaz racismo estrutural. A violência colonial moldou as relações nas
colônias não apenas entre colonizadores e colonos, mas entre os próprios
colonos, produzindo uma subjetividade coletiva raivosa e bastante violenta.
Como pessoas racializadas, em especial pessoas negras, crescemos apren-
dendo a odiar cada parte de nosso corpo, cor de pele, textura de cabelo,
cor dos olhos, tamanho da boca e nariz, o jeito que falamos, o modo como
existimos. Como é possível construir apenas afetos de bem viver consigo
e com as demais pessoas negras diante do cenário bélico e atroz que nos
acompanha? bell hooks (2010), em Vivendo de amor, mostra como as relações
entre pessoas negras podem ser mediadas pela violência por conta desse
passado colonial em nossas vidas. Por esse motivo, é bastante difícil pro-
mover encontros afetivos de leveza e beleza e relações mais harmoniosas,
mas não impossível.
Por falar em beleza e leveza, tem um poema de tatiana nascimento,
chamado post-it, do livro 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do
mundo (2019a), que funciona exatamente como um lembrete de que nossas
armas de bem viver existem e também são poderosas:

post-its

vale lembrar do medo: é menor que o amor desaprender o ódio:


o sonho é maior pra recordar: a bala é menor que a luta pra festejar:
desejo é maior que a norma

Arte da Resistência 239


nunca esquecer: a bíblia é menor do que a fé
(y deus é maior, muito maior que a igreja, qualquer
que seja)
pra mensurar a cerca: é menor que a terra pra acalmar da seca: sempre
volta a chuva y pra enfrentar a força bruta
resistir é maior, y para aguentar
o prant o espanto y o tanto que eles (que só parecem tantos) querem
acabar
a gente:
a gente povo a gente água
a gente bicho
a gente mata
a gente pedra
a gente rio vento mundo nossa seiva é maior porque a gente é maior y a
vida é maior
que o medo da morte.

(tatiana nascimento, 2019a, p. 27-28)

Vale lembrar, jamais esquecer, que, diante da assombração colonial,


nós, pessoas racializadas e das dissidências sexuais e de gênero, construí-
mos também nosso arsenal de guerra, que vem do sonho, da luta, do amor
(≠ amor romântico), do desejo, da chuva, das gentes todas, do rio, do vento,
do mundo. E é com essa tecnologia de combate que também lidamos com
a raiva e refundamos caminhos de passagem para existir em liberdade. É
com essas lembranças, em post-it, para jamais esquecer que “nossa seiva
é maior”, que encontramos linhas de fuga. E isso tem sido feito por essas
terras brasilis desde sempre por nossas ancestres, com as memórias de
escape que cultivamos no corpo. Lembrar que há narrativas, cujos encon-
tros alegres acontecem. Lembrar que o auto-ódio é tecnologia colonial, não
inerente à nós.
Lembrar que “nossa seiva é maior” é reposicionar a raiva, “porque a
gente é maior”. Esse mecanismo nos mantém viva. Faço essa fanfic na minha
cabeça: em alguns momentos de maior tensão na série, a personagem
Annalise recita pra si mesma bem baixinho esse poema de tatiana. Sempre
que entro em contato com esse poema, leio baixinho, quase sussurro, quase
silêncio, voz só na cabeça, porque ele tem um tom de mantra. É um uso da
raiva diferente da explosão com que faço uso do poema de Kika, por exem-
plo. Ele é aquele chá de camomila que a gente toma quando está muito
aflita com alguma situação. E à medida que vou colhendo suas palavras, a
respiração vai desacelerando e o ritmo do corpo vai reencontrando seu eixo.

240 Leandro Colling


E, em se tratando de diferença, resgatando mais um pouquinho da série,
compreendemos que Annalise e Eve foram mais que colegas ou amantes
quando estudaram juntas na universidade, foram namoradas e considera-
das o amor da vida de cada uma. No entanto, Annalise termina essa relação
para iniciar um romance com Sam Keating. Três cenas108 me chamam muito
a atenção sobre esse assunto e ajudam a compreender esse medo que
Annalise sente ao topar uma relação com outra mulher.

CENA1: num diálogo com um dos seus estudantes, Gabriel Maddox


pergunta a Annalise o porquê de ela ter escolhido Sam e não Eve, já que
a amava. Ela responde: “Porque ele parecia ser a versão de vida que sonhei
toda a minha infância. Uma casa grande, uma boa família, sorriso fácil. Ele
pertencia a um lugar... enquanto eu nunca tive isso”.

CENA 2: em uma cena de diálogo entre Annalise e Eve, esta sugere à


Annalise que se mude para Nova York e encontre, quem sabe, um novo amor,
um homem ou uma mulher. Annalise retruca no mesmo momento: “você
nunca entendeu porque não ficamos juntas. Seu privilégio em ser uma mulher
branca nunca te permitiu compreender o que é ser uma mulher de pele negra
e gay. Como pessoa branca, você pode ser o que você quiser”.

CENA 3: em uma conversa com a personagem Bonnie, Annalise reflete


como seria sua vida se não tivesse se casado com Sam: “tinha medo de ser
gay. Devia ter ficado com Eve, ter a amado. Mas eu queria ser normal, queria
ser aceita. Eu estava desesperada para ser amada”.

Essas três cenas já renderiam bons estudos sobre as relações raciais,


sexuais e de gênero que envolvem os desejos coloniais depositados sobre
mulheres negras, em especial, aquelas que conseguem ascender social e
economicamente. Construir uma relação com um homem cis branco como
biombo e bilhete de passagem parece que se torna o único caminho possível
para o pertencimento e se sentir aceita e “normal”. Essa fantasia cishetero
masculina capitalista de supremacia branca é um delírio de morte porque
aciona em nós o desejo branco de amor pela branquitude e tudo o que ela
representa enquanto projeto racial de superioridade.
Há um enorme medo por parte da personagem em cruzar a linha da
heterossexualidade. O medo como afeto de paralisia e interrupção dos
impulsos de prazer109 impede que possamos nos autodefinir, traduzir nossos

108
Tradução livre de todas as cenas.
109
Na tese, tratei também do afeto do medo, no ensaio chamado “Quebrada”.

Arte da Resistência 241


desejos e produzir encontros de bem viver. Durante toda a narrativa da série,
esse medo corrói Annalise por dentro, amalgamando ainda mais a raiva que
também a consumia.
Quando na primeira cena a personagem informa do seu projeto de vida
desde a infância, isso diz muito do poder da produção discursiva da cishe-
teronorma sobre as dimensões da sexualidade. Pertencendo a uma família
negra, tal situação se agrava ainda mais, posto que, como a personagem
narra na cena seguinte, o privilégio da branquitude é ser o que ela quiser.
Obviamente, há um limite nisso quando pensamos nas identidades trans/
travesti, por exemplo. Mas, o que a personagem nos chama a atenção é o
quão aprisionador é a experiência de uma pessoa negra nessa configuração
ocidental de mundo sexualmente binário. Construir processos de pertenci-
mento e identificação com as sexualidades e gêneros dissidentes não ocorre
de maneira equitativa entre pessoas brancas e negras.
Para encontrar um local de pertencimento, ela constrói e busca toda
uma narrativa de vida em que possa compartilhar a experiência da huma-
nidade “grande casa, boa família, sorriso fácil”. Esse sentimento de não
pertencimento parece uma maldição que nos acom- panha vida afora na
afrodiáspora. Em algum outro momento, ela sugere que, caso tivesse inves-
tido na relação com Eve, sua família a teria internado como louca ou doente.
Na terceira cena, a personagem revê sua vida e se arrepende de ter
tentado algo que, obviamente, não deu certo. Mas revela o medo que causa
não ser compreendida como “normal” e não ser “amada”. Ser aceita significa
partilhar do signo da branquitude cisheteronormativa. Sokari Ekine (2016),
intelectual e ativista nigeriana lésbica, traça uma crítica acerca da com-
preensão das dissidências sexuais e de gênero em África, em especial na
Nigéria, combatendo discursos apoiadores da morte ou punição de pessoas
queer110 porque acredita-se que o comportamento sexual não heterossexual
(= para procriação, via casamento) são fruto de uma importação desviante
do ocidente. O que não se percebe é que tais discursos são igualmente vio-
lentos e colonizadores, visto que sua base é o discurso cristão acerca das
identidades queers. Tal denúncia feita por Sokari é fundamental para, a)
fazermos uma crítica ao cistema-mundo ocidental que produziu uma limitada
forma de ser e habitar essa Terra, através da promessa cristã; e b) refletir
sobre o peso dos afetos coloniais sobre as corpas negras em todo o mundo.

110
Uma ressalva importante: Sokari Ekine traz o termo queer em seu contexto semântico do inglês nigeriano,
que significa estranho, esquisito, diferente, sem relação direta com os usos e abusos da “teoria queer” estadunidense. Por
isso, mantive o termo aqui, a partir da leitura localizada dessa intelectual nigeriana.

242 Leandro Colling


Outras autorias trazem à baila, de maneira interessante e profícua, a
discussão acerca das experiências da construção das masculinidades e
feminilidades negras111 em relação ao campo da sexualidade.
Seja na Nigéria, nos Estados Unidos ou no Brasil, relações homoafeti-
vas e identidades de gênero que rompem com a barreira da cisgeneridade
em corpos negros, corpas que por si o só carregam o estigma racial, são
compreendidas como ameaça, fracasso, doença, perigo. A personagem
Annalise traduz o resultado dessa equação perversa de (im)possibilidade
sexual e de gênero, resultante desse imaginário colonial.

ouvi e li bastante coisa sobre a execução de marielle franco. poucas traçam


uma linha investigativa que leve em consideração o fato de marielle ter sido
uma mulher preta sapatão. há um certo consenso social que isso é irrelevante
para o caso. eu fico me perguntando como isso é possível, separar as iden-
tificações políticas que nos atravessam! “ah, mas poderia ser com qualquer
pessoa que enfrentasse as milícias, como ela fazia”, dizem. “é verdade”, penso
eu. mas quem morreu foi ela!

Ter exaustivamente uma vida de privações e negações, inclusive no


campo dos afetos de bem viver sexual, é motivo mais que suficiente para
acumularmos ainda mais raiva. De nós mesmas, dos outros, do mundo. Mas,
é preciso escutarmos Audre quando diz: “No entanto, a raiva expressa e
traduzida em uma ação a favor de nossos ideais e nosso futuro é um ato de
esclarecimento que liberta e dá força, pois é nesse processo doloroso de
tradução que identificamos quem são nossos aliados com quem temos sérias
diferenças e quem são nossos verdadeiros aliados” (AUDRE LORDE, 2019, p.
160). É assim que construiremos futuros possíveis. E temos construído esses
reencontros e reconexões através de nossas produções literárias, através
da tradução dessa raiva em um ato de liberdade e reconexão.

Uma mulher me escreveu: “Por você ser negra e lésbica,


você parece falar com a autoridade moral que vem do
sofrimento”. Sim, eu sou negra e lésbica, e o que você ouve
na minha voz é fúria, não sofrimento. Raiva, não autoridade
moral. Há uma diferença. [...] Minha raiva causou dor, mas
também garantiu a minha sobrevivência, e antes de abrir
mão dela vou me certificar que exista algo pelo menos tão
poderoso quanto ela e que possa substituí-la no caminho
para a clareza (LORDE, 2019, p. 165).

111
Aqui, sugiro o livro Como fabricar um gangsta: masculinidades negras nos videoclipes de Jay-Z e 50 cent, lançado pela
editora Devires, em 2019, do professor e intelectual negro Daniel dos Santos. Nesse trabalho, Daniel traz para
a cena acadêmica, de certo modo, literária, uma importante reflexão acerca da construção das masculinidades negras
estadunidenses a partir do Hip Hop.

Arte da Resistência 243


Algo que aprendi de mais importante com toda essa produção literária
que li e estudei foi a importância de reorganizar o afeto da raiva para o cami-
nho da autodefinição, como mecanismo de sobrevivência e, sobretudo, de
vida em liberdade. Adriele do Carmo, uma escritora baiana, soteropolitana,
preta sapatão, muito afrontosa, escreveu e publicou um livro, também pela
padê editorial, chamado Guarda-versos: palavras que não pude calar (2018).
Eu estava no dia do lançamento e não pude deixar de sentir todos os afetos
que circundavam nossos corpos naquele momento em que encontramos
um modo de não silenciamento. Guarda-versos é um livro de poemas que
fala sobre como a escrita literária é um precioso caminho de desaguar dos
afetos. De reencontro consigo e com o mundo. De conexões ancestrais
nessa afrodiáspora. De expurgação da violência que afeta nossos corpos.
E, sobretudo, de celebração por nossas vidas, amores, dengos e alegrias
que, apesar de tudo, conseguimos construir.
Em um poema chamado Afrontosa, bem ao estilo do Slam das Mina,
Adriele refunda uma narrativa sobre si e sobre o mundo, construindo um
caminho fértil de autodefinição:

AFRONTOSA

Se não veste minha pele Não compartilha


da minha dor Não tente falar por mim, “meu senhor”. Eu sei o quanto calei
Por não poder falar Sei o quanto chorei
Por tudo isso passar Então se faça um favor
Escute o que temos para falar – Ponha-se no seu lugar!
Na escola me chamavam de sapatão
Antes mesmo de eu entender esse lugar Hoje me identifico e você quer
me calar?
São tantos gritos silenciados que eu não consigo mais parar de gritar.
Mimimi é o caralho!
Abaixa a bola que agora é a minha vez de falar.
Eu conheço minhas cartas neste baralho E vou jogar!
Mulher, Negra, Gorda, Periférica, Sapatão
Quantos rótulos para me marcar...
Vocês sempre usam eles para subalternizar
Estou mais forte do que nunca E não vão me parar!
É pé na porta mesmo Estou aqui para sapato-afrontar!

(ADRIELE DO CARMO, 2018, p. 31)

A afronta, quando expressada por mulheres negras e das dissidências


sexuais e de gênero, em geral, é também reconhecida como um afeto raivoso.
E quando quebramos com o pacto colonial de silêncio, traduzindo-o em ação,

244 Leandro Colling


encontramos um caminho possível de liberdade para estar no mundo, seja
como “mulher, negra, gorda, periférica, sapatão”. Construir rotas possíveis
para dizer de si.
AFROntar diz de um lugar de enunciação que anseia pela retomada de
si, ao mesmo tempo que traz uma dimensão fundamental da experiência
de devolução da violência. Quando o poema diz: “ – Ponha-se no seu lugar!”,
o revide acontece no sentido de redirecionar e situar o opressor para um
lugar em que possa ser posto em observação, em evidência, também.
Mesmo cientes de que esse controle é volátil e, por vezes, inalcançável, essa
mobilização afetiva, transformada em enunciação, desloca o lugar do afeto
da raiva de um possível lugar de internalização e adoecimento para uma
afronta necessária com o dedo em riste, de enfrentamento, de disputa e de
autodeterminação, ao recusar o silenciamento e as enunciações de injúria.
No último episódio da série How to get away with murder, Annalise é
julgada injustamente por todos os crimes ocorridos durante a trama. Uma
das estratégias usada pela advogada para poder usar sua raiva e redefinir
o caminho daquelas acusações foi autodefinir-se ao júri. Ela disse: “Eu sou
uma mulher de 53 anos de Memphis, Tennesse, chamada Anna Mae Harkness.
Sou ambiciosa, negra, bissexual, raivosa, triste, forte, sensível, apavorada, des-
temida, talentosa e exausta” (tradução livre). Produzir uma narrativa sobre si
cujo resultado é a refundação de narrativas sobre um nós, que é coletivo e
singular ao mesmo tempo, pode ser um importante caminho de produção de
histórias outras que confrontam as narrativas coloniais de assujeitamento.
A autodefinição é um dos caminhos para a cura do auto-ódio que, no fundo,
é só projeção colonial de supremacia cisbranca hetero capitalista.
Perceba: são diferentes, mas eficazes estratégias de uso da raiva nes-
ses poemas que vimos acima. Seja através da faca amolada de Kika, que
quer tingir tudo de preto; seja através da lembrança como uma tecnologia
de reequílibro de forças e energias curativas, trazido por tatiana; seja no
afronte como método de devolução da raiva e redistribuição da violência,
como traduziu Adriele.
Tingir tudo de preto é o caminho traçado por essas experiências lite-
rárias e ficcionais para redefinir a sua relação com a raiva. Se esquivar da
morte e produzir vida possível, vivível em plenitude. Lembrar de respirar,
de sentir a pulsação da vida, de reorganizar os afetos coloniais para que
eles não nos derrubem. Lembrar que, às vezes, o único caminho possível é
afrontar, botar o dedo na cara e dizer que “mimimi é o caralho!”, como fez
Adriele ou “NÃO SEREI INTERROMPIDA112”, como disse Marielle.

Frase pronunciada por Marielle Franco em discurso na Tribuna da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
112

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5PwJHGBoxTM

Arte da Resistência 245


É sobre isso que Audre Lorde propõe como forma radical de mudança
estrutural:

Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que


pode ser muito útil contra as opressões, pessoais e institu-
cionais, que são a origem dessa raiva. Usada com precisão,
ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a serviço
do progresso e da mudança. E quando falo de mudança não
me refiro a uma simples troca de papéis ou a uma redução
temporária das tensões, nem a habilidade de sorrir ou se
sentir bem. Estou falando de uma alteração radical na base
dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construí-
das (LORDE, 2019, p. 159).

Através da escrita literária e do campo das artes destilamos a raiva e


a devolvemos. Devolução dos afetos raivosos é também caminho de cura.
Redistribuição da raiva, como diria Jota Mombaça (2016).
Quero finalizar este ensaio com um poema de tatiana nascimento
(2019a), lembrando que água é calmaria e também tempestade, e, assim,
deixar reverberar no corpo os afetos que nos mobilizam para o revide. São
ondas de maresia e de turbulência. Lembrar que mar é silêncio e forte ruído.
Que chuva é complacência e trovão. Aprender com a raiva que exala e que
libera energia. E que para a refazenda de nossas vidas afetivas é preciso
talhar e “lunar o sol”.

talhos
aprender a tempestade, soltar seu peso,
secar o sol: rugir trovões
derramar a tempestade despir de peso,
pairar no sol: cantar trovões
suceder a tempestade,
fluir seu peso,
2beijar o sol: gozar trovões
antecipar a tempestade, ruir seu peso,
lunar o sol:
cuír trovões
y para que nada te desfaça se refaça, se refaça
se re- faca.

(nascimento, 2019a, p. 31-32)

246 Leandro Colling


Referências

AZEVEDO, Aluisio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1997.


CARMO, Adriele do. Guarda-versos: palavras que não pude calar. Brasília: padê editorial, 2018.
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese
(Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.
EKINE, Sokari. Narrativas contestadoras da África Queer. Cadernos de Gênero e Diversidade,
v. 01, n. 02, jul.-dez., Salvador, 2016.
ESPINOSA, Baruck. Tratado Político. Tradução: Diogo Pires Aurélio. São Pauo: Martins Fontes, 2009.
FANON, Franz. Os condenados da terra. Tradução José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-RJ, 2016.
hooks, bell. Vivendo de amor. Tradução Mulheres Negras. 2010. Disponível em: https://www.
geledes.org.br/ vivendo-de-amor/ - Acesso em: 15 fev. 2021.
HOW TO GET AWAY WITH MURDER. Direção: Shonda Rimes. Produção: Shonda Rimes. LA:
USA: Disney-ABC Domestic Television, 2014-2015. Série. Netflix.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess
Oliveira. Rio de Janeiro: Livros Cobogó, 2019.
LORDE, Audre. Irmã outsider. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Autêntica, 2019.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da
violência, 2016. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redis-
tribuic a o_da_vi. Acesso em: 14 jun. 2021.
nascimento, tatiana. 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo. Rio de
Janeiro: Garupa e kzal, 2019a.
nascimento, tatiana. do dever de denunciar a dor até o direito ao devaneio, nosso cuíer-
lombismo literário. In: SOARES, Mayana Rocha; BRANDÃO, Simone; FARIA, Thais (Org.).
Lesbianidades plurais: outras produções de saberes e afetos. Salvador: Devires, 2019b.
SENA, Kika. Periférica. Brasília: padê editorial, 2017.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre manei-
ras de se relacionar. Odysseus, 2007.

Arte da Resistência 247


Sou lôka: uma puta travesti113

Olinson Coutinho Miranda e Djalma Thürler

Introdução

Há múltiplas maneiras de entender a categoria literatura trans. Talvez


a dominante, certamente a mais popular, é como um convite para ver como
a identidade, biografia, experiências de vida, ou corpo de uma transidenti-
dade – particularmente relacionado à sua orientação sexual, práticas sexuais,
a anatomia reprodutiva ou sexual, e/ou expressão de gênero – mapeia ou
impacta uma produção literária. Nesse sentido, produções como Erro de
pessoa: Joana ou João e Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos
depois, de João W. Nery; Ser mulher não é para qualquer um – minhas verda-
des, de Flavio Queiroz, sobre Nany People; Rogéria: uma mulher e mais um
pouco, de Marcio Paschoal; Eu, travesti: memórias de Luisa Marilac, da própria
Marilac com Nana Queiroz; Transradioativa: você me conhece porque tem
medo ou tem medo porque me conhece, de Valéria Barcellos; Enverga mas não
quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte, de Luiz Morando, confirmam a tese
de Amara Moira e Tatiana Nascimento (2020, p. 01), a de que “cada vez seja
menos possível falar em literatura brasileira, especialmente a da segunda
metade do século XX para cá, sem percebermos as produções de temática
e autoria LGBTQIA+ como centrais para sua compreensão”.
No entanto, ao concordar com as autoras, nos debruçamos sobre a ideia
de que, mesmo com a “crescente produção brasileira de narrativas literárias
sobre dissidências sexuais e de gênero” (idem, ibiden), seria importante
refundar a ideia de narrativas LGBT pela “língua das loucas”, a língua de toda
a multidão queer, de toda subjetividade minoritária: “a afeminada, a feminina,

113
Uma primeira versão deste artigo foi publicada na revista Pontos de Interrogação, em 2021.

Arte da Resistência 249


a rebelde, a que ri muito, a que ama sem controle. A que celebramos, a que
odiamos, a que reconhecemos ou ignoramos” (FOUNTAIN-STOKES, 2013,
p.134), aquelas marcadas pela “perfechatividade de gênero de gays fecha-
tivos e/ou afeminados” (COLLING; ARRUDA; NONATO, 2019, p. 03), “uma
combinação entre fechação e performance” (COLLING; ARRUDA; NONATO,
2019, p. 30) que

[...] pretende superar os limites conceituais de uma ter-


minologia que não auxilia a compreender a experiência
das bichas afeminadas e fechativas que, como vimos, em
situações limites, apropriam-se voluntariamente de seus
movimentos corporais, acentuando ou diluindo expressi-
vidades anexadas pelo transcurso temporal e espacial de
repetições performativas de gênero (COLLING; ARRUDA;
NONATO, 2019, p. 30).

Nosso entendimento pela “língua das loucas” está em parte modulada


por nossa leitura de Lawrence La Foutain-Stokes, quando propõe o termo
transloca como uma intervenção crítica vernacular, um neologismo útil para
explicar a interseção do espaço, geografia e sexualidade no trabalho e na
experiência vivida de muitas pessoas, afinal, “translocas são muitas coisas,
algumas contraditórias, claro está: performeros, raros (queers), inovadores,
marginais, exiliados, excêntricos, beldades, revoltosos, amantes, solitários,
amigos” (FOUNTAIN-STOKES, 2011, sp). É importante perceber que o prefixo
trans “não necessariamente abaixo da ótica da inestabilidade, ou de estar
no meio, ou entre o meio das coisas, mas como ideia de transformação – de
mudar, poder moldar, reorganizar, reconstruir, construir –”. Quanto ao termo
louca, Fountain-Stokes (2011) afirma que,

[...] a sua vez, também sugere uma forma de identidade


histérica (patologizada em nível clínico, escandalosa em
nível popular) constitutiva do indivíduo sem sanidade, com-
postura ou atribuição à norma dominante: o homossexual
afeminado, a mulher demente, o rebelde por qualquer
causa; categorias marginalizadas que em um gesto irônico
e brincalhão quiséramos ressignificar ao estilo do termo
anglo-americano “queer”: loca como lhe diz um amigo viado
ao outro, como senha de cumplicidade e entendimento, de
serem entendidos, e não como insulto hostil ou piada de
menosprezo, ainda que talvez isso também, se vamos a
reconhecer a crueldade como arte e/ou como estratégia
de sobrevivência, ou simplesmente como ódio a si mesmo
(Idem, ibidem).

250 Leandro Colling


Dessa forma, entendemos o termo translouca como qualquer sujeitx
ou ação que se permita ser aquilo que de fato se deseja, é o transcender,
sair da estabilidade, performar, mostrar suas loucuras, se transformar, criar
e recriar, lutar, permanecer trilhando, é a postura crítica que desafia as
ortodoxias, categoria fundamental para entender como as literaturas LGBT
se beneficiam da revalorização do termo queer, que passou a representar
uma posição política, cultural e acadêmica que trabalha ativamente, por
um lado, para a recognição, desestigmatização e descriminalização dos
gêneros e sexualidades marginalizados, mas, por outro, também procura
oferecer uma análise mais ampla do funcionamento do poder e da sexua-
lidade na sociedade, oferecendo leituras e teorizações que vão além das
preocupações identitárias. Importante lembrar que, na década de 1970, a
palavra queer era praticamente inédita em América Latina e, as palavras
“homossexual” e “lésbica” existiam como a soma total do que o “heteros-
sexual” não era. “Bissexuais” eram, na melhor das hipóteses, sujeitos sob
suspeita e as pessoas trans eram chamadas de travestis ou transformistas,
sem muita distinção teórica.
Diante dessas contribuições, pensamos na compreensão de uma “esté-
tika lôka”, não apenas como uma alternativa ao mainstream, mas, enquanto
“perversão da língua” (Idem, ibidem), uma contribuição vernácula para desig-
nar a tática política da língua, a língua soco, a língua gilete, a língua pontapé
futurista-queer, a voz que denota a estranheza divertida e debochada diante
dos fugitivos da Norma e da própria natureza, ou da invenção da natureza, a
língua paródica, pintosa, desbocada, ferina e desarvorada, da luta da prota-
gonista para superar a hostilidade do cistema e se impor no ambiente cultu-
ral e social do seu bairro, da sua cidade, do seu país. É a língua rococó que
rejeita formas e estilos maneirados e polidos, que se manifesta de maneira
descontraída, marica, lôka, com apelo erótico altamente valorizado, afinal,
lôka não é o adjetivo que desqualifica, não é o ato enunciativo que detona
uma injúria e que torna o sujeito abjeto, ao contrário, é ato nominativo em
primeira pessoa, a palavra que uso sobre mim mesma quando falo na ter-
ceira pessoa para descrever o que faço: “a lôka sou eu”, “a loca que sou, que
somos nós. A loca que ninguém quer ser. Tu, a loca” (FOUNTAIN-STOKES,
2013, p. 134), que sempre romperá com o mundo da racionalidade, com o
mundo da ordem burguesa latino-americana, com o cistema.
Parafraseando Mattilda Bernstein Sycamore (2012), as lôkas desafiam
não apenas a violência da lgbtfobia heterossexual, mas a hipocrisia das nor-
mas homossexuais convencionais que dizem que a única maneira de se man-
ter seguro é agir conforme a cartilha “binária-htciscêntrica” (NASCIMENTO,
2019). Frustrada com a cena sexual homonormativa (DUGGAN, 2002; NAST,
2002; PUAR, 2006), a “estétika lôka” reinvoca a extravagância e a subver-
são que uma vez prosperaram nas subculturas gays a fim de criar uma

Arte da Resistência 251


linguagem, paradoxalmente, perigosa e adorável, uma intervenção ousada
e provocadora.
Nessa linha de pensamento, a “estétika lôka”, seguindo as contribuições
de John Austin (1990), reforça a performatividade dos atos de fala, a capaci-
dade das lôkas de produzir uma ou mais realidades através de seu desem-
penho, mas, também, reforça o seu discurso enquanto efeito performativo
de uma linguagem encenada, pronunciada em seu gozo e celebração diante
do público que, assimila, memoriza e aprende. Para Fountain-stokes (2013),
são as práticas artísticas travestis e drag queens que desestigmatizam o
termo lôka, fenômeno que representa um curto-circuito, um giro sobre o
desconforto historicamente associado à comunidade e, claro, à cultura LGBT,
porque o epíteto lôka chega sem dor, fascina, intriga e celebra a palavra lôka

[...] como o mais normal do mundo, o símbolo da celebração


de uma alteridade transfeminina espetacular, muito particu-
lar, que não corresponde a uma reprodução tradicional do
feminino, mas a drag ou travestismo como monstruosidade
estética, algo levemente espantoso, mas não por isso menos
belo (FOUNTAIN-STOKES, 2013, p. 137).

É, portanto, a partir do viés da “estétika lôka” que faremos a leitura


da obra E se eu fosse puta, na qual Amara Moira – lôka puta travesti –, em
seu devir puta, convida o/a leitor/a a repensar os limites entre o decoro da
academia e a sujeira das ruas; entre o fervor intelectual e o reconhecimento
afetivo; entre as palavras e as emoções que enaltecem a alegria, o sexo, o
desejo, o prazer, a diferença e o corpo abjeto.

Por dentro da obra e autora

Amara Moira é travesti, bissexual, puta, professora de Literatura, escri-


tora, doutora em Teoria e Crítica Literária pela Universidade de Campinas e
colunista da Mídia Ninja em assuntos que envolvam gênero, LGBT e direitos
de profissionais do sexo. Lançou a obra E se eu fosse puta, em 2016, pela
Hoo Editora.

Tem de tudo um pouco, mas sobretudo verdade, dessas que


a gente gosta só debaixo do tapete, bem escondida, o dia
a dia da rua, a barganha, o homem antes e depois de gozar.
Amara se vê travesti e junto descobre a vida a partir de
então, puta aonde quer que fosse (...) Corpo que não tem
lugar, corpo que se fazia à revelia das regras, das normas,

252 Leandro Colling


corpo que se prestava pras sombras, essa era eu e não fazia
sentido, sequer sabia onde eu queria chegar. Esse livro é
sobre a escolha que não faz sentido, é sobre buscar por-
quês. E se eu fosse puta? E se você? (MOIRA, 2018, capa).

O livro é um relato autobiográfico “numa linguagem desenvolta e sin-


cera” (SILVA; FREITAS, 2020, p. 2) em que a autora/personagem Amara
Moira, em “44 textos, entre crônicas e poemas, publicados originalmente
em blog e escritos a partir das experiências da autora com a prostituição e
seu processo de transição” (FRANCO; SOARES, 2018, p. 431), expõe suas
rotinas, dores, angústias, prazeres, desprazeres, gozos, trepadas, programas,
lutas, mas, sobretudo, elabora uma “proposta de (des)construção linguís-
tica, literária, moral, social, e até religiosa da nossa maneira de entender o
mundo” (Idem, ibidem).
O relançamento do livro, em 2018, teve a capa alterada por questões
editoriais, dessa vez grafada com o título “E se eu fosse pura/puta”.

Fonte: https://twitter.com/amoiramara/status/1067402373662982144

Segundo Amara Moira (2018), a palavra puta sofreu alguns questio-


namentos comerciais, por exemplo: como o livro seria citado na imprensa
especializada? O que fazer com as pessoas que queriam adquirir o livro e que
não tinham coragem de comprá-lo, carregá-lo em público, ou até deixar na
prateleira de casa? Dessa forma, a autora modificou o título para que a obra

Arte da Resistência 253


pudesse frequentar a casa da família tradicional brasileira, os consultórios
médicos, as livrarias do país inteiro (MOIRA, 2018).

Ser lôkamente puta travesti

A seguir serão apresentadas as análises da translouca puta travesti


Amara Moira em seu livro Se eu fosse puta como forma de (re)existência e
de lutas diárias em mostrar quem de fato é, e como conseguiu se encon-
trar diante da sociedade que vê a travesti somente como representação de
prostituição, dor, sofrimento e morte. É a lôka Amara Moira que dará voz às
demais putas travestis, potencializando-as e mostrando as loucuras, alegrias
e prazeres de ser quem de fato é e o que deseja ser.
Primeiramente, é importante conhecer como sempre é tratada, enquanto
puta travesti que se expõe diariamente em busca de seu sustento e, de certa
forma, a concretização do prazer. São homens que a tratam como objeto
sexual, como abjeto, como repulsa e desejo, porém, muitas vezes, agindo
de forma violenta e individualista a seus próprios prazeres. “No caso das
travestis, ser diferente é o mesmo que estarem vinculadas ao perigo, ao
dejeto social, à anomalia, ou, na melhor das hipóteses, ao caricato” (SILVA;
BARBOSA, 2005). Amara Moira descreve:

Eu que me achava poderosona, em condições de peitar


quem quer que fosse por conta da criação que tive, não dei
conta de evitar que o cliente me forçasse a seguir com o pro-
grama mesmo depois de ele ter me machucado, eu sentindo
as dores não só físicas, mas também as de não conseguir
dizer não. (...) Triste sina de travesti: atiçar o desejo alheio
e, ao mesmo tempo, o ódio por ter despertado esse desejo.
Não à toa nos matam, agridem (MOIRA, 2018, p. 73 e 170).

Moira expõe o sofrimento, a dor, a angústia, a violência de não poder


ser o que de fato é e a impossibilidade de se fazer o que se quer fazer. São
barreiras criadas por sujeitos que esbarram nos princípios da heteronorma-
tividade e tentam silenciar as vozes, os desejos, as alegrias da loucura em
serem travestis e putas.
Um fato importante é o ato das descobertas, das identificações, o do
começar a se entender enquanto travesti e puta. Segundo Judith Butler
(2015), aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado
construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero
expressaria uma essência do sujeito. O gênero seria um fenômeno incons-
tante e contextual, que não denotaria um ser substantivo, mas um ponto

254 Leandro Colling


relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural
e historicamente convergentes:

Mais de meses remoendo a ideia do “se eu fosse, amigos


chocados só comigo me dizer tentada, querendo me conven-
cer que não fazia sentido (...) “te aceite travesti, puta não...
você vai pegar AIDS, ser violentada, não tem como, tchau”
(...) Decisão tomada, eu só estava pensando os meios, as
desculpas esfarrapadas que eu alegaria. Uma vida vivendo
o sexo de maneira precária, me sentindo um lixo por desejar
homens e refém desse meu desejo (...) Aí, de repente, des-
cubro que talvez essa é a profissão que, enquanto travesti,
terei fácil pela frente. Sou tratada igual puta bem antes de
me assumir puta (MOIRA, 2018, p. 35).

O tabu em uma pessoa ser puta é totalmente enraizado na sociedade


que enxerga o ato de se prostituir apenas como algo pecaminoso, doentio
e inferior. No entanto, a procura pela profissão mais antiga do sexo se faz
diariamente, pois, em sua maioria, homens e mulheres da família tradicio-
nal buscam o gozo e o prazer que se não são alcançados em suas relações
“estáveis” e vistas como “adequadas” à sociedade da hipocrisia:

Ser travesti já nos torna tabu, daí a maioria ainda encon-


tra na prostituição a única forma de subsistência (...) não é
fácil querer encarar esse combo ao nosso lado e, mesmo
quando se queira, não é fácil ter estrutura emocional para
tanta pressão. O olhar público, a família, o círculo social, às
vezes até o trabalho pode estar em jogo, e só por estarem
com a gente! A transfobia nos exclui, a prostituição nos
abraça e a putofobia amplia a exclusão a que já estamos
sujeitas só por meramente existir. E aí o que acontece? (...)
Ele doido comigo, fazendo questão de ainda pegar telefone,
vê uma bitoquinha aqui, “mas tudo sigilo...esposa...não dá
pra vacilar (...)”. O pai de família respeitável que atendo na
zona acha um barato papar a mim por dindim poquim, o fim
da picada eu contar a historinha pra meio mundo (MOIRA,
2018, p.73,108 e 176).

O identificar-se, o afirmar-se, o resistir-se enquanto lôka puta e travesti


é fundamental para perceber a (des)construção das identidades, possibili-
tando que os corpos transmitam a alegria, a loucura, a vontade eufórica de
gritar para se afirmar quem de fato é e se deseja. Segundo Judith Butler,
o corpo

Arte da Resistência 255


[...] é onde encontramos uma variedade de perspectivas que
podem ou não ser as nossas. O modo como sou apreendido,
e como sou mantido, depende fundamentalmente das redes
sociais e políticas em que esse corpo vive, de como sou
considerado e tratado, de como essa consideração e esse
tratamento possibilitam essa vida ou não tornam essa vida
vivível (BUTLER, 2015, p. 85).

Além do identificar-se, é fundamental ter nome, nome para represen-


tar o novo eu, a nova identidade que sempre esteve presente mesmo que
inconscientemente. Momento de ser chamada por um nome que representa
tanta superação, luta, pois um nome, uma história, que de forma ambivalente
se fará entre a condição de vulnerabilidade e resistência (BUTLER, 2016).
Ratificando isso, Amara Moira declara:

“Destino Amargo”, Amara Moira: eis o que és, eis o que sig-
nifica. Um nome, o meu nome, mas ninguém o diz. Sonoro,
alegre talvez, como a cara que faço ao receber proposta de
um oral por dez, completo vinte. Atender na rua é o que dá,
coisa que aprendi de cara. Travesti rodando os insta, mas
se dizendo vinte, militante LGBT, feminista, escritora, dou-
toranda em teoria literária pela UNICAMP nas horas vagas:
e puta. “E puta”, mas como?! Mas por quê?! Sem, “mas. Puta
porque puta (MOIRA, 2018, p. 32).

Outro desejo fundamental em ser travesti é ser vista, desejada, cla-


mada como mulher. Ser mulher enquanto plenitude do eu que busca a todo
momento sua afirmação e identificação. Pensando no fato de que “ninguém
nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p. 102); “[...] mulheres
transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos, querem e
precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres” (JESUS, 2012, p.15).
Berenice Bento (2010) ratifica que “a genitália é apenas uma das partes do
corpo. Muitas mudam o corpo, colocam silicone, fazem aplicação a laser
para tirar as marcas da barba, deixam o cabelo crescer, se constituem e
produzem as expressões do gênero feminino, lutam socialmente para serem
reconhecidas como mulheres”.
Ser travesti, ser mulher, ser identificada e ainda mais possibilitar o dese-
jar e ser desejada enquanto mulher. E ser puta ratifica a ideia de afirmação
da mulher que existe nos desejos e anseios das travestis, repercutindo a
alegria e loucura de ser beijada, abraçada, desejada e dar prazer enquanto
corpo feminino:

256 Leandro Colling


[...] uma vez travesti estar com homens era tão simples,
tudo fazendo eu me sentir mais eu, mais mulher (...) tirou
minha roupa assim que girou a chave e já veio pra cima de
mim, bafão de cerveja, gritando, mas não liguei, porque era
ali naqueles braços viris de pedreiro que eu ia aprendendo
a me sentir mulher, abraçar, beijar como mulher (MOIRA,
2018, p. 23 e 26).

E o fator mais fundamental é o poder ser quem de fato você é, trazer à


tona a felicidade, a alegria, a festa do seu autorreconhecimento enquanto
translouca que grita para o mundo a sua existência e a liberdade de ser
travesti e puta. “Dizemos loca em voz alta, em tom estridente, e sem ânimo
de ofender ninguém exceto aqueles que não estejam dispostos a escutar
e aceitar” (FOUNTAIN-STOKES, 2011, s.p.). Moira se afirma enquanto puta
travesti que tem alegria de suas lôkuras em fazer e ser quem de fato se
deseja sem deixar que amarras e imposições a impeçam:

Definitivamente, agora eu era outra e estava disposta a


pagar o preço, quer dizer, cobrá-lo, ganhar pelo que eu
soube aprender, pelo desejo que me coube atiçar. Dois níveis
então de foda-se. Não só me fazer como também dizê-lo
em minúcias, gritar minha condição, escrever sobre a rua
ao mesmo tempo que a vivo, essa agora tão minha, essas
que só os olhos e cu e boca, essa onde eu era livre. (...) Mas,
sim, puta porque sempre fiz muito com muitos, sempre com
gosto. Se transar adoidado, louca da periquita, é ser puta,
então eu sempre fui puta. Agora preciso é começar a ganhar
por isso, porque com dezenove aninhos eu já acreditava que
levava jeito (...) Vinte minutos depois, nem tanto, eu já tava
de volta à rua, euforia, gritando, ainda em choque com o que
descobri em mim, essa talvez vocação para ganhar dindim
dando tesão: meus primeiros reais na rua, enfim puta, o
dever cumprido, emoção bastante pra uma noite só, quase
pensando em voltar para casa (MOIRA, 2018, p.24, 34 e 41).

A alegria de ser puta traz à tona o ato de dar e sentir prazer.

Homens. Ali era permitido desejar meu corpo, ali, somente


ali, onde esses me desejavam eram não mais que sombras.
As mais vividas, na batalha todas, começam a me atiçar pra
fazer a rua, ganhar o aqué, grana para chamar de minha
(...) comecei por safadeza mesmo, assumo, carência brutal,
vontade quem me desejassem, pegassem, pagassem por
mim (MOIRA, 2018, p. 33 e 107).

Arte da Resistência 257


Corpos nus que se desejam, corpos nus que gemem, que explodem de
prazer. São corpos que rompem as amarras impostas pela sociedade que não
sabe a concretude real do ápice do prazer, do gozar, do se tocar, podendo
descobrir suas várias formas e espaços de desejos. De acordo com Paul B.
Preciado (2015), os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens
ou mulheres, e sim como corpos falantes, reconhecendo a possibilidade de
acender todas as práticas significantes. E Michel Foucault (1984, p. 11) tra-
tava das práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção
a eles próprios, a se decifrarem, a se reconhecerem e se confessarem como
sujeitos de desejo, estabelecendo para consigo uma certa relação que lhes
permita descobrir, no desejo, a verdade de seu ser.

Deitados na cama, braços e pernas se atabalhoavam tudo ao


natural, livre de hierarquias, quem manda, quem obedece,
sem premeditação ou vontade de acabar mais rápido. Não
quis saber de meu pau em momento algum, mesmo com ele
duro, mas só do que em mim era fêmea: os peitos, que ele
acarinhava com boca e mão sôfregas, daí a bunda também,
com fervor, e o cuzinho apertado, onde ele passava os dedos.
Fui junto, apalpando o volume no jeans dele, tremor pelo
corpo inteiro só de imaginar aquela neca dentro de mim, já
que não dei nem conta da menorzinha antes (MOIRA, 2018,
p. 26-27).

E o encontro dos corpos permite o encontrar numa realidade sem


amarras, sem identidades, sem regras e pudores. É importante pensar e se
permitir em concretizar ações e desejos fora dos padrões e amarras que
a sociedade impõe. Não se pode ser aprisionado à sua própria identidade,
seu passado, seus “armários”. É fundamental que os corpos se permitam
aos seus desejos e, diante da pluralidade das lôkuras, do gozo e do prazer:

Nus na cama, esfregação, camisinha, oral, eu mais diver-


tida vendo o prazer dele do que com a transa em si, me
sentindo atriz, até que ele me puxa e começa a me beijar,
carinho, barba arranhando a pele... “ei, nossa, uau, que isso
menina?!”, disse ele assustando ao me ver toda toda, cresci-
dinha, armada, se vocês me entendem. Raro de acontecer,
ele se assustou: “certeza que você gosta de pau?” Parei o
bloqueador de testosterona, deu nisso, tesão. Segui o ins-
tinto e fui bulinando o corpo dele, bolas, períneo, bunda,
ele se tocando alucinado, “ou, ei, não, sim, ui”, boca e olhos
se dizendo e contradizendo, até que, aí, por fim, “faz o que
quiser de mim”. Travesti vivida sabe o que isso quer dizer,
sabe o que ele quer que eu queira, eufemismo para “vem

258 Leandro Colling


me come”, e lá fui eu massagear o edi, ver se entendi direito
(MOIRA, 2018, p.141-142).
Ser puta lôka como potência é se permitir aos desejos da forma múl-
tipla e diversa, é transar nos diversos locais e posições e se possibilitar o
tudo no sexo: sem amarras, sem bloqueios, sem frescuras, sem moralismos,
sem pudores, sem pecados, sem opressão, sem regras, negações, sem jul-
gamentos. Os corpos são livres para viver as mais diversas e excêntricas
possibilidades de se viver e sentir o desejo, o sexo, o gozo, o prazer. As pos-
sibilidades da sexualidade — das formas de expressar os desejos e prazeres
— também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. (LOURO,
2010, p. 09). Segundo Pereira (2008), as práticas sexuais diferenciadas, em
situações tidas como não habituais, em público, com muitas pessoas, em
lugares distintos do quarto do casal hetero, se defrontam com o habitual
confinamento da sexualidade na esfera privada e doméstica. Amara Moira
em suas narrativas se propõe a uma prática sexual fora das amarras impos-
tas, são desejos e ações que são possibilitados para que possa ter o prazer,
o gozo em sua plenitude:

Proponho a ele pegar o consolo que eu tinha guardado na


bolsa, ele aceita a proposta e lá vou eu atrás do brinquedo.
Volto, ele deitadinho na cama, pelado, peludo, travesseiro
embaixo do bumbum pra deixá-lo mais alto. Boto a camisi-
nha no brinquedo e parto pra cima dele. Dessa vez entrou até
sem gelzinho e foi aí que percebi que, se tivesse colocado
a mão ao invés dos dois dedos só, ele teria gostado é bem
mais... (...) Eu disse assim mesmo na lata, grilos nenhuns.
“Adoro uma linguinha lá, adoro mesmo”. Já no estaciona-
mento, dindim antecipado, beijos, beijos, mão na minha neca
por cima da calcinha, aquela coisa bem selvageria e aqui e
ali um carinho, eu até que gostando, confesso. Aí ele afasta
o banco do motorista para trás, baixa o zíper, eu mando
ver, ele elogiando super minha desenvoltura. (....) Saímos
do carro, agora era o motel, ele querendo por trás, festa
nenhuma aos olhos dessa apertada que vos redige o relato
(MOIRA, 2018, p. 64 e 72).

Ser lôkamente puta travesti possibilita, sem amarras, as diversas for-


mas, loucuras e sabores. E dentre essas diversas formas do prazer, vem à
tona o famoso “boquete” (sexo oral), a “garganta profunda”, os quais trazem
o delírio e o êxtase do prazer da melhor forma possível. São loucuras que só
a boca permite alcançar e sentir. “Não, o sexo não se reprime ou ao menos
não de maneira uniforme. Não existe unidade do dispositivo repressivo”
(SAÉZ, 2016, p. 23). São possibilidades do sexo oral e anal, do ser passivo,

Arte da Resistência 259


do dar o cu. O cheiro, o toque e o gosto provocam explosões de desejos,
possibilitando excitação e orgasmos:

E lá fui eu abrindo o zíper do rapaz com essa habilidade que


esqueci de esquecer, a boca buscando o fundo através do
pau sem nem ralar os dentes durante o entra-e-sai, gar-
ganta profunda, engasgando, atravessando a glote. “Calma
que assim eu gozo”, me disse após poucos segundos, em
seguida emendando um “que boca!” Boca de quem faz com
gosto, boca de quem faz feliz, mesmo escorrendo lágrimas
dos olhos - e qual o espanto quando me vi excitada, qual
o espanto quando descubro ereção num membro que já
parecia morto? O cheiro forte mexeu com a minha libido,
confesso, nós dois no escuro, eu lambiscando, engolindo a
cabecinha dele por não conseguir conter a vontade (MOIRA,
2018, p.22).

Os corpos se apresentam em suas diversas formas, tamanhos, cores,


sexualidades, gêneros e desejos. São corpos que muitas vezes são consi-
derados abjetos, são rejeitados, abnegados, promovendo desprezo e des-
prazeres. São corpos que escapam da norma, mas, precisamente por isso,
são socialmente indispensáveis, fornecem o “exterior” para os corpos que
“materializam a norma”, aqueles que efetivamente “importam” (BUTLER,
2016). Escapam ou atravessam os limites da “normalidade” e “ficam mar-
cados como corpos – e sujeitos – ilegítimos, imorais ou patológicos” (LOURO,
2004, p. 82). Portanto, corpos abjetos ganham potência com os estudos
queer, uma vez que ser queer é ser excêntrico, estranho, esquisito e que
provoca desconforto. São corpos estranhos que incomodam, perturbam,
provocam e fascinam (LOURO, 2018). É trazer à tona a importância do papel
da prostituta em relação à possibilidade e inserção dos corpos abjetos.
Corpos que são potencializados e permitidos para a concretude do desejo,
do sexo e do prazer:

Quem dentre vocês que leem se permitiria viver essa gama


de transas, beijos, se permitiria sentir, tentar sentir, fingir
ao menos, tesão por esses corpos todos que abundam nos
meus braços, corpos (assim como o meu, mas de forma
toda outra) rejeitados pela norma, dissidentes, resistentes,
preteridos, corpos brutos, gordos, negros, peludos, com
deficiência, fora do padrão de beleza, de macheza, autoes-
tima lá embaixo, tímidos, oprimidos, travados, corpos que
só se sentem à vontade conosco, que se entregam ape-
nas em nossas camas, que precisam de nós para não pirar
nessa vida de exclusões... decorrência direta dos padrões
normativos de beleza é algumas pessoas só terem acesso

260 Leandro Colling


à experiência do sexo por conta das prostitutas. (...) Mas
aguardem, o ataque às normas vai se intensificar por aqui:
essa língua travesti puta escritora vai ser libertária ou não
será (MOIRA, 2018, p. 125).

De acordo com Preciado (2008, p. 60), o cu, como foco de produção de


prazer, não tem gênero, não é masculino e nem feminino, produz um cur-
to-circuito na divisão sexual, é um centro de passividade primordial, lugar
abjeto por excelência próximo dos detritos e da merda. A puta e travesti
permite a exploração do desejo, do sexo e do prazer em suas formas varia-
das e excêntricas, destituídas de pudores, normas, padrões ou abjeções.
Sendo assim, Javier Saez e Sejo Carrascosa (2016) afirma que o sexo anal
é visto em sua forma mais prazerosa e potencializada. O cu passa de abjeto
de repulsa para aquilo que se deseja, provocando prazer e sedução. O cu é
colocado em jogo, uma vez que o sexo anal provoca tanto desprezo, tanto
medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio:

Desenrolo a camisinha com a boca na neca dele, sentindo


endurecer aos poucos, as mãos livres massageando bolas,
períneo, o cuzinho quase, ver se descubro o que tava a fim.
Ele vai deixando, se soltando à medida que me aproximo
com os dedos no ponto G, eu massageando a área com deli-
cadeza. (...) Uma hora foi, funcionou: massageando o edi
dele com os dedos, imaginando-me capaz de comê-lo, ele
me masturbando, quando vi minha neca estava dura e ele
prontamente montou em cima de mim, querendo encaixar
assim mesmo, no pelo. (...) Mãos à obra, de cara ele solta
o famigerado “faz o que quiser de mim, me toca onde qui-
ser”. Quem me lê, já sabe o que significa, onde ele me quer
tocando. Sim, edi, cu, justo onde eu vou me achegando ali
por baixo, períneo, “vai, faz o que você quiser”, meia bomba
virando pedra, “sou todo seu, todo seu”, eu ainda massa-
geando, “não me aguento”, ele aí e ui gemendo os ditongos
todos, até que enfim goza (MOIRA, 2018, p. 148-149 e 181).

Amara Moira sempre expõe desejos e prazeres, os quais muitas vezes


são renegados pela sociedade da hipocrisia, são ações abjetas que provo-
cam curiosidade, vontade e desejo, mas que são reprimidos e silenciados
por conta de regras e normas impostas dentro de um padrão heterossexista,
heterocisnormativo e machista. São sujeitxs que muitas vezes possibilitam
a realização de seus desejos reprimidos de forma “sigilosa”, tornando uma
ação contínua em seu cotidiano. Nesse sentido, ser lôka é possibilitar ser e
fazer tudo aquilo o que deseja e que provoca prazer, gozo, alegria, rompendo

Arte da Resistência 261


toda e qualquer forma de padronização e regras impostas e possibilitando
a potencialização dos corpos abjetos.

Considerações finais

Dessa forma, percebemos o quão é importante se aceitar e se identi-


ficar de fato como uma lôka puta e travesti. Uma vez que ser lôka é supe-
rar, lutar, re-existir, desconstruir, construir, romper, ser livre, ser aberta às
possibilidades. É importante se impor enquanto sujeitos que têm desejos e
anseios, são corpos que se expõem como forma de resistência. Trazer à tona
a discussão do ser lôka, ser puta, ser travesti, ser lôkamente puta travesti,
é uma forma de possibilitar que o sujeito renegado e abjeto da sociedade
possa expor o prazer, a alegria e o poder em ser quem de fato é, em fazer
tudo aquilo que deseja. A exposição dos corpos que estão fora dos padrões e
normas pré-estabelecidas produz outras formas de pensar, agir e de ser para
que possamos viver nossos desejos, vontades, prazeres, alegrias e gozos.
Portanto, as regras e normas nunca vão nos calar, uma vez que estamos
aqui para ser resistência e nos deliciar com o prazer de ser lôka. É o resistir
como re-existência, como transgressão, como luta diária, possibilitando o
grito que sempre está sendo obrigado a estar preso na garganta. É gritar
para si e para o outro que é lôka, que está ali para incomodar e que todxs
têm que conviver com alegria do fluir das diferenças e lôkuras.
Diante do que foi exposto, entendemos o quanto as narrativas de si, as
escritas de si têm papel fundamental na produção literária, em especifico, na
literatura contemporânea brasileira. São narrativas autobiográficas da puta
travesti Amara Moira que copilam uma realidade nua e crua de suas vivências
pessoais em práticas sociais e sexuais na labuta diária de uma mulher trans
que vende o corpo como forma de sustento e prazer. São escritas pessoais e
íntimas que ratificam a real importância de escritas de si como uma língua
soco, resistente, incômoda, agressiva, cortante, devoradora, esclarecedora,
expositora, cruel, sagaz, quebrante, rasgada, rasgante, destruidora, aba-
lante, desustrurante, desnormatizante. São produções de si que ratificam
a importância de se ter produções autobiográficas que trazem as vivências
de sujeitxs marginais que são potência e podem expor seus desejos, ações
e alegrias.

262 Leandro Colling


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SILVA, Leandro Souza Borges; FREITAS, Ricardo Oliveira de. A reinvindicação do espaço urbano
em E se eu fosse puta, de Amara Moira. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea,
Brasília, n. 61, p. 01-10, 2020.
SYCAMORE, Mattilda Bernstein. Why are faggots so afraid of faggots?: flaming challenges to
masculinity, objectification, and the desire to conform. Chico: AK Press, 2012.

264 Leandro Colling


Alair Gomes e a fabulação
erótica na praia carioca

Eduardo Rocha Lima

Com este texto, iremos mergulhar no imaginário da cidade do Rio de


Janeiro criado pelo fotógrafo fluminense Alair Gomes, principalmente
durante a década de 1970. Temos por objetivo expor e discutir como ele
cria séries fotográficas, as quais trazem os corpos dos rapazes no cotidiano
da praia de Ipanema, e as narrativas eróticas que delas decorrem, fabu-
lando ficções imagéticas a partir da realidade fotografada e construindo
assim um imaginário urbano que traz a relação entre corpo / sexualidade /
espaço urbano enquanto substrato político de sua produção artística. Em
que aspectos interessa à história urbana da cidade do Rio de Janeiro as nar-
rativas fotográficas praieiras criadas por Alair Gomes? Como, no jogo entre
erotismo, sociabilidades em público e produção de imagens, Alair fabula
um discurso político sobre a cidade que tem como base a sua própria expe-
riência urbana? Eis as perguntas que nos motivam à reflexão nas páginas
seguintes; respostas objetivas não temos ainda e nem sei se encontraremos,
convidamos a pensarmos juntos.
Tendo como base partes do arquivo de imagens e textos produzido por
Alair Gomes na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1980114,
buscamos discutir a conexão existente entre a sua produção de narrativas
fotográficas e a sua experiência dessa cidade. Partiremos da experiência
íntima revelada nos primeiros trabalhos do fotógrafo, até a sua experiência

114
O arquivo, com cerca de 150.000 negativos e 17.000 ampliações e também diversas cadernetas e anota-
ções, sistematicamente criado e organizado por Alair Gomes, foi doado em 1994 por sua irmã, Aíla Gomes,
à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e encontra-se atualmente totalmente catalogado e disponível aos
interessados.

Arte da Resistência 265


urbana na criação das imagens dos corpos dos rapazes da praia carioca,
criação essa que o torna reconhecido enquanto precursor da fotografia
homoerótica no Brasil 115. Nos interessa pensar como as séries fotográficas
deixadas pelo fotógrafo retratam momentos distintos de sua relação social
e espacial com a cidade em que habitava. Esses distintos momentos que
se imbricam na produção imagética e na experiência urbana de Alair dis-
cutiremos a partir de três “elementos” que o fotógrafo faz aparecer na sua
arte: o corpo masculino, o seu desejo sexual (“a emoção do Operator”116), e
o espaço urbano praieiro da cidade do Rio de Janeiro.
Corpo / sexualidade / espaço urbano - Pensar a criação artística de Alair
Gomes tendo como base esses três “elementos” é assumir que partiremos
do que há de mais concreto em sua arte, o corpo masculino, em busca do
que há de mais abstrato – fora do seu foco – nela: o espaço urbano. Neste
caminho em rumo à “abstração”, ultrapassamos o que está visualmente ofe-
recido pelas imagens e buscamos registros que nos falam da experiência do
espaço da praia do Rio de Janeiro pelo fotógrafo em sua ação de fotografar
os rapazes. Nos interessa mais o espaço urbano que aparece pela leitura de
sua ação na criação das imagens e o contexto social urbano em que essas
estão inseridas. A ação do criador aqui lida enquanto sua experiência privada
e pública: o exercício político do movimento do seu ato criativo no espaço
íntimo do seu lar em direção ao espaço público que o circundava, a cidade
do Rio de Janeiro, por volta de 1970.
Partiremos assim da concretude da matéria dos corpos masculinos – “o
alvo, o referente” (BARTHES, 2015) da fotografia de Alair117 –, ao “conceito”,
ao exercício do pensamento, ou se dito de outra maneira, do foco principal
do fotógrafo, os corpos dos rapazes, ao interesse principal nosso com esta
escrita: pensarmos a produção social do espaço urbano da cidade do Rio
de Janeiro a partir da narrativa imagética deixada por Alair.

115
A fotografia urbana é o gênero que torna Alair Gomes reconhecido e atualmente valorizado enquanto
artista importante da fotografia homoerótica no Brasil. Reconhecimento esse surgido apenas pós a sua
morte, em 1992. Alair trabalhou intensamente sobre a prática fotográfica nas últimas décadas de vida, mas
só conseguiu ver partes mínimas do seu trabalho expostas em exposições coletivas e publicadas em revistas
especializadas fora do Brasil. Hoje, venerado mundialmente, os corpos urbanos retratados pelo fotógrafo
já compuseram diversas exposições individuais, ilustram páginas de publicações especializadas em todo
o mundo, sua fotografia é tema de teses e dissertações em diferentes áreas do conhecimento científico,
além de sua produção fotográfica fazer parte do acervo de importantes instituições do circuito comercial
das artes, como: Itaú Cultural, Museu de Arte de São Paulo, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
Museu de Arte Moderna de Nova York, Fondation Cartier pour L’art Contemporaine de Paris, dentre outras.
116
“Eu podia supor que a emoção do Operator (e, portanto, a essência da fotografia-segundo-o-fotógrafo)
tinha uma relação com o ‘pequeno orifício’ (estênopo) pelo qual ele olha, limita, enquadra, e coloca em
perspectiva o que ele quer ‘captar’ (surpreender).” (BARTHES, 2015, p. 17)
117
“E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eidolon
emitido pelo pequeno objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da fotografia, porque essa palavra
mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível
que há em toda fotografia: o retorno do morto.” (BARTHES, 2015, p. 17)

266 Leandro Colling


Alair Gomes e a representação do corpo masculino

[...] a experiência visual é a que de longe mais me fascina,


me prende a atenção na minha prática, como característica
básica de personalidade (...) Mas a personalidade do fotó-
grafo como um crítico foi uma coisa cujo reconhecimento
veio muito tardiamente em mim (GOMES, 1983, p. 04).

Em entrevista ao fotógrafo e diplomata Joaquim Paiva, Alair Gomes


expõe os caminhos que o levaram à prática fotográfica enquanto exercício
de si e do seu pensamento crítico sobre as artes visuais. Nessa conversa,
Alair esclarece que foi pela prática da fotografia que ele vislumbrou a pos-
sibilidade de manipular e criar sobre a imagem pela qual ele se dizia obce-
cado desde sua juventude, “a imagem do corpo masculino, jovem e belo”,
como ele afirma: “eu sentia uma espécie de necessidade obsessiva de uma
homenagem que eu chamaria também de expressão, uma homenagem a
esse assunto do qual tenho um fascínio absoluto, que é a imagem do corpo
masculino, jovem e belo” (GOMES, 1983, p. 02).
Engenheiro civil, fluminense da cidade de Valença – nasceu em 1921
e foi assassinado na cidade do Rio de Janeiro em 1992 – graduou-se pela
Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1944, desenvolvendo, a partir de
então, sua carreira profissional em constante transdisciplinaridade entre
as ciências exatas e as artes118. Alair Gomes utilizava a pesquisa nas artes
visuais e suas primeiras incursões na prática da criação artística pela pin-
tura em busca de uma linguagem expressiva com a qual lhe fosse possível
representar os corpos masculinos que lhe interessavam. De maneira total-
mente amadora (aqui cabendo a dupla significação dessa palavra: amador
no sentido de inexperiente com as técnicas da pintura e amador no sentido
de apaixonado pelo objeto representado), do desenho com grafite às técni-
cas da aquarela e do pastel, Alair reproduzia imagens e pinturas de corpos
masculinos nus com as quais ele se deparava em suas peregrinações e
pesquisas pelo mundo das artes, mas também, e talvez com mais afinidade,
desenhava os garotos com quem ele se encontrava em casos amorosos e
que para ele posavam.
A necessidade de criar uma linguagem para a expressão do corpo mas-
culino surge em Alair desde o seu primeiro relacionamento com um homem,

118
“Nas décadas de 1950 e 1960, estudou filosofia, estética, história da arte, física, biologia, mitologia,
neurociência, matemática, entre outras disciplinas. Em 1958, tornou-se professor assistente do Instituto de
Biofísica da UFRJ; em 1961, ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim para estudar filosofia da ciência;
ficou até 1963 nos Estados Unidos como pesquisador visitante da Universidade de Yale. Entre o final da
década de 1970 e meados da década de 1980, intensificou sua ação como crítico de arte e ministrou palestras
e cursos sobre fotografia e história da arte contemporânea na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na
Oficina de Escultura e Gravura do Ingá e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro” (COELHO, 2014, p. 12).

Arte da Resistência 267


em torno dos 20 anos de idade. A fascinação do sentimento amoroso des-
perta-lhe o interesse de “fixar” aquele momento, de registrar, de estender
a existência de tais instantes, ou, como dito por ele próprio, de “não deixar a
coisa passar imediatamente”. No entanto, era preciso encontrar uma forma
de expressão que lhe fosse menos frustrante, pois o aprofundamento do seu
conhecimento sobre as artes visuais, principalmente sobre a representação
do nu masculino na pintura e na escultura grega antiga, o tornava cada vez
mais insatisfeito e consciente de sua mediocridade expressiva com a pintura.
Dessa insatisfação com a arte de pintar, surgiram os seus primeiros
escritos eróticos:
Foi posterior, sim. A ideia dos desenhos e dos pastéis foi
quando eu tinha 20 anos. Entre os 25 e os trinta anos eu
tentei fazer esses desenhos. A partir dos trinta e poucos eu
optei pelo Diário Erótico e com uma grande ambição lite-
rária, que até hoje eu não sei se foi bem-sucedida ou não
(GOMES, 1983, p. 02).

E assim, dos pinceis e tintas à palavra escrita em forma de diário íntimo,


Alair transpõe para o papel os seus encontros amorosos, narrando-os com
riqueza de detalhes e já revelando, no imaginário criado pela palavra, o seu
foco preciso nos corpos masculinos:

AG - ... praticamente todos os meus encontros estão regis-


trados, com detalhes, no Diário Erótico, principalmente no
que se refere a parte erótica mesmo. Era óbvio – e aí a minha
inclinação irresistível a imagem – porque, mais do que des-
pertar um sentimento, já devia existir a descrição do corpo.
Uma coisa que passou muito pela minha fotografia. Eu me
lembro que tenho muitas descrições de pelos sobre coxa,
de pelos em torno do umbigo, de pelos entre peitorais, de
peitos, de como o olhar se dirigia, inclusive mesmo aspectos
de membro genital…
JP - A descrição era muito minuciosa…
AG - Era muito minuciosa. Era pré-fotográfica (GOMES, 1983,
p. 03).

“Arquivista de si mesmo” (COELHO, 2014, p. 12), metódico e excessiva-


mente cuidadoso com os registros de suas experiências, Alair esclareceu, na
entrevista a Joaquim Paiva, usar como inspiração na criação de sua própria
obra literária119, o Diário Erótico, a literatura erótica grega antiga, com a qual

“De modo que, na hora em que larguei o Diário Erótico para fazer fotografia, houve uma mudança bastante
119

acentuada na minha abordagem do problema. A despeito de todas as dúvidas tão grandes que até hoje eu

268 Leandro Colling


ele teria entrado em contato a partir de O Banquete, de Platão. Além desse
gênero literário, inspirava Alair a maneira como o escritor moderno inglês D.
H. Lawrence revelava em seus escritos, principalmente na obra O amante de
Lady Chatterley (de 1928), a sua atração tanto pelo corpo masculino quanto
pelo feminino:

Uma das coisas que me fascinavam muito de Lawrence é


que a atração pelo corpo do homem e da mulher estava
muito equilibrada, embora ele confessasse, por parte dele
mesmo, a atração somente pelo corpo feminino, a descrição
que ele fazia do corpo masculino estava sempre pelo menos
num par de igualdade com o corpo feminino. Ele me parecia
muito honesto em relação a isso. Essa era a experiência que
eu tinha. Mas no gênero de literatura homossexual aberta-
mente erótica como eu tencionava fazer eu não conhecia
precedente (GOMES, 1983, p. 03).

Depois de mais de dez anos de registros escritos contínuos e obsessivos


em torno dos seus encontros amorosos no Diário, Alair teve a oportunidade,
em 1965, de passar seis meses viajando pela Europa120. Com uma máquina
fotográfica Leica emprestada de um amigo, ele passou a fotografar princi-
palmente pinturas e esculturas com as quais cruzou em seu roteiro de via-
gem. Durante a estadia no continente europeu, o contato visual, em museus
e galerias, com a estatuária grega vinda da antiguidade clássica se tornou
o foco principal de sua escrita íntima, do seu pensamento filosófico sobre
representação e arte, assim como da lente da câmara Leica que carregava
consigo. Alair perambulou pela Europa escrevendo e fotografando arte com
intuito de ampliar o seu arquivo de imagens com a temática do corpo nu
masculino, o qual ele já montava de longa data, com fotografias retiradas
de revistas, jornais e livros de arte.
No retorno ao Rio de Janeiro, a fotografia não saiu mais do repertó-
rio criativo de Alair e ele, então, adquiriu a sua própria câmera e passou a
fotografar, e não mais a registrar pela escrita, os corpos dos rapazes com
quem manteve encontros amorosos. Os estudos imagéticos, trazidos da
viagem, sobre a representação do corpo masculino – o movimento dos mem-
bros, a silhueta corpórea, o jogo de luz e sombra dado pelo delineamento da

tenho relativas ao possível valor literário de meus Diários Eróticos - e talvez a imensa maioria do material
registrado seja aceitável ou não do ponto de vista literário, o que preciso verificar quando tiver tempo -,
minha pretensão com o diário nunca deixou de ser literária. Eu me preparei sistematicamente do ponto de
vista literário para escrever os diários, eu fiz um estudo sistemático de Literatura por causa dos diários.
Não houve absolutamente correspondente nenhum disso quando peguei fotografia.” (GOMES, 1983, p. 07)
120
Poucos anos antes, entre 1961 e 1963, Alair teve a sua primeira experiência de estadia fora do Brasil por
ter sido contemplado com uma bolsa de estudos do Museu Guggenheim, com a qual viaja para os Estados
Unidos e vai estudar filosofia na Universidade de Yale como pesquisador visitante.

Arte da Resistência 269


musculatura e o ângulo da imagem – são fontes de pesquisa e de inspiração
de Alair para a criação do que ele vai considerar a sua primeira incursão
na criação artística pela fotografia, a série fotográfica Sinfonia de ícones
eróticos.
E foi a possibilidade técnica da produção de uma enorme quantidade
de imagens sequenciadas de uma mesma cena, o que despertou em Alair o
interesse na fotografia como prática artística independente. Esse seria para
o fotógrafo o grande diferencial dessa prática dentro do universo das artes
visuais. Ele considera que cabe à pintura a possibilidade de “colocar uma
história inteira dentro de uma imagem” (GOMES, 2014, s.p.) pelo controle
que o pintor tem sobre cada milímetro da imagem que ele está criando,
controle esse totalmente inconcebível para o fotógrafo na sua criação. O
seu interesse por fotografia se centrou justamente nos sistemas de rela-
ções que é possível criar entre imagens, quando se dispõe de um volume
numeroso delas.

É possível também que eu talvez tenha reconhecido muito


cedo uma certa incapacidade minha de reproduzir imagens
isoladas que me satisfizessem plenamente tanto quanto, por
exemplo, um Cartier-Bresson, que foi meu primeiro ídolo
fotográfico. Mais tarde eu passei a fazer uma crítica muito
severa ao Bresson, a qual depois eu posso definir para você.
De qualquer maneira, durante muito tempo ele foi para mim
o fotógrafo que conseguia, mais do que qualquer outro, esse
milagre de, numa imagem isolada, dar tanta riqueza, fazer
uma imagem isolada tão rica sob diversos pontos que mui-
tas vezes ela podia ser comparada, de um modo não desfa-
vorável, a uma boa pintura. A minha obsessão em tomo da
imagem do corpo masculino era uma obsessão que deve ser
entendida também em termos muito diretos, muito literais.
Eu tinha uma vontade de produzir uma quantidade cada vez
maior de imagens desse gênero. A imagem do corpo mas-
culino, jovem e belo quase que me sufocava. (...) talvez esse
acúmulo do número fantástico da imagem do jovem corpo
masculino em situações diferentes pudesse, em última
análise, funcionar como uma espécie de equivalência de
uma visão do mundo, de uma Weltanschaung, de uma world
view, de um ponto de vista quase filosófico. Seria quase que
tentar fazer, através simplesmente do acúmulo da imagem
do corpo masculino jovem, o equivalente a uma visão do
mundo no sentido filosófico. Isso é uma espécie de crença
que eu entretive durante longo tempo conscientemente,
sabendo que eu era louco e fantasista, mas era uma espécie
de crença que a gente admite, a despeito da consciência do
absurdo dela (GOMES, 1983, p. 08).

270 Leandro Colling


Com cerca de 1.800 imagens produzidas na intimidade de suas relações
sexuais, a série Sinfonia de ícones eróticos expõe, sempre em preto e branco,
fotografias de partes distintas de corpos masculinos, compondo uma rígida
sequência que não traz, enquanto premissa do seu encadeamento, a ocor-
rência cronológica das cenas. Na construção da sequência que dá forma à
Sinfonia, Alair trabalha sobre as imagens dos corpos fotografados, fazendo
explodir o registro íntimo dos seus encontros em outras conexões narrativas,
novos nexos surgem pela narrativa criada no encontro das imagens reve-
ladas e ampliadas. Alair percebe a possibilidade de outras leituras sobre a
sua experiência individual e subjetiva derivada de seus encontros sexuais;
leituras essas possíveis de aparecerem pelo trabalho da montagem de ima-
gens em uma sequência fotográfica minuciosamente fabulada.

Fragmentos da série Sinfonia de Ícones Eróticos


Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional

Pelos pubianos, pênis eretos, músculos delineados, movimento nos


membros, rotação do quadril, posicionamento da sombra corpórea, dentre
muitas outras, configuram “categorias” diversas extraídas da performance
do movimento e da estrutura corporal masculina reveladas nas imagens
com as quais Alair trabalhava. Tais “categorias” compositivas das séries
fotográficas constroem eixos conectivos entre imagens de corpos distintos

Arte da Resistência 271


e fotografados em momentos diferentes, articulados pelo novo sentido nar-
rativo dado pelo olho do artista após a revelação da imagem. O fotógrafo
como um profissional capaz de criar, a partir de uma sequência de imagens
fixas, uma expressão artística híbrida entre a literatura e o cinema.
Sobre a relação entre fotografia e criação de narrativas na obra de Alair
Gomes, relata Frederico Coelho:

Talvez ele indicasse a quebra entre o que vemos e o que


podemos falar sobre o que vemos, com a clara intensão de
mostrar que existe uma edição dessas imagens e uma estru-
tura rígida em sua composição – algo sempre presente na
obra de Alair. Nesse sentido, qualquer história será uma não
história daquilo que sua lente captou (COELHO, 2014, p. 14).

A capacidade de capturar em imagens, pela ação de fotografar, ins-


tantes de cenas vivenciadas e de, num momento posterior, reconfigurar
estruturalmente esses instantes revelados em novas formas e conteúdos
narrativos, os quais não se pretendam representativos do real vivido, cons-
tituiria, para Alair, o diferencial e o potencial fabulador da arte da fotografia
perante as outras artes visuais. Criar a partir da cena vivida possibilidades de
leituras outras que explodem a “essência” da fotografia, o registro “daquilo
que foi”121; assim se configura o erotismo impresso nas sequências imagéti-
cas concebidas pelo fotógrafo fluminense. Por esse viés, a sua experiência
íntima fotografada escapa da exibição autocentrada e individual e assume
forte expressão social e política.
É, portanto, por meio dessa consciência crítica e criativa com a foto-
grafia que Alair Gomes vai, a partir do final da década de 1960, extrapolar
o território íntimo e privado do seu lar e passar a registrar cenas urbanas,
imprimindo sobre elas o mesmo afã narrativo e político em torno do ero-
tismo. Da cena privada à cena pública, do corpo amante e despido, trancado
no interior de um quarto, ao encontro de corpos anônimos que compõem
o cotidiano urbano da praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, a fotografia de
Alair nesse trânsito ganha novos contornos, os quais nos interessam aqui
percorrer para pensarmos sobre o imaginário da capital fluminense criado
por ele.

“A fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi.
121

Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não toma necessariamente a via nostálgica da
lembrança (quantas fotografias estão fora do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente
no mundo, a via da certeza: a essência da fotografia consiste em ratificar o que ela representa” (BARTHES,
2015, p. 73).

272 Leandro Colling


Sonatina a 4 pés e Trípticos de praia – sexualidade e espaço público
Sonatina a 4 pés
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional

A extrapolação dos limites do espaço privado na criação fotográfica de


Alair Gomes ocorre devido a questões ligadas diretamente à intensão que
ele tem de expor a sua produção artística com a fotografia, assim como do
seu desejo de se inserir no circuito comercial das artes visuais. O grande
número de imagens que compõem a primeira série fotográfica criada por
Alair, Sinfonia de ícones eróticos (cerca de 1800), configura uma dificuldade
concreta que o fotógrafo encontra de fazer circular o seu trabalho. O custo
com a ampliação de tão grande número de fotografias e os espaços reser-
vados à exibição da obra de um artista em exposições coletivas de galerias,
museus e bienais, nunca se encaixavam no que o fotógrafo necessitava
para expor a sua Sinfonia. Então, em vez de fragmentar a Sinfonia, ele pre-
feriu criar novas séries fotográficas trabalhando com um número menor
de ampliações.
Coincide com essa insatisfação o fato de, no final da década de 1960,
Alair ter ido morar no sexto andar de um apartamento de fundos da Rua
Prudente de Morais, em Ipanema, no Rio de Janeiro, de onde, por meio de
uma fresta entre os prédios, ele conseguia avistar de sua janela o mar e
trecho dessa praia. Sua criação fotográfica passa então a registrar cenas
do cotidiano urbano e o spectrum (BARTHES, 2015) de sua fotografia agora
é materializado em corpos masculinos desconhecidos que perambulam pela
praia, pedalam, praticam atividades físicas, se bronzeiam ou simplesmente
se encontram em rodas de conversas. Ele categoriza como Finestra as séries
fotográficas criadas a partir de sua janela (COELHO, 2014). Compõem essa
sessão de imagens a série A não história de um chofer (composta por 49
registros do trabalho cotidiano de um chofer do edifício ao lado do seu) e

Arte da Resistência 273


as séries que trazem as fotografias da praia, A window in Rio, The course of
the sun e Sonatine, four feet 122.
Dessas sequências de imagens que retratam a praia carioca a partir de
sua janela, nos interessa mais especificamente neste texto as séries foto-
gráficas que configuram a Sonatine, four feet. Composta por mais de trinta
sequências diferentes que trazem sempre uma dupla de rapazes praticando
exercícios físicos nas areias de Ipanema – fotografados à distância e sem
perceber que estão sendo fotografados –, Alair constrói ficções capturando
a sociabilidade dos rapazes na praia para em seguida criar uma nova ordem
temporal para o acontecimento, embaralhando o encadeamento cronológico
e inserindo nesse processo criativo toda a carga erótica que lhe interessa
revelar. Por esse caminho, o fotógrafo subverte a normativa heterossexual
que caracteriza o espaço público citadino (PRECIADO, 2011) e apresenta um
ambiente praieiro totalmente atravessado pelas questões da sociabilidade
homoafetiva.

Sonatina a 4 pés
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional

A partir de encadeamentos guiados pelo movimento e pela ação dos dois


corpos em práticas de exercícios físicos, nas Sonatinas a relação erótica é
desenhada no entre imagens, ela chega aos olhos do espectador pelo que
está fora dos enquadramentos. Por estar fora do instante fotografado e ser

122
Os títulos das séries fotográficas criadas por Alair, assim como a grande maioria de seus manuscritos
íntimos e teóricos sobre arte, encontram-se registrados em língua inglesa.

274 Leandro Colling


uma construção a partir da quebra da sequência cronológica e do choque
de imagens, ela revela muito mais o desejo e a fabulação política do criador
da série do que o registro de um encontro amoroso em público entre dois
rapazes. Por esse processo criativo, espaço público e sexualidade fora da
norma se entrelaçam na narrativa praieira formulada e o fotógrafo nos faz
refletir acerca do controle existente sobre os corpos nos espaços públicos e
que os espaços da rua não são assexuados, mas sim socialmente conduzidos
e restritivos das formas afetivas que não se encaixam na heterossexualidade.
O contexto social em que Alair estava inserido na cidade do Rio de
Janeiro no momento em que produziu as suas séries fotográficas da praia
de Ipanema é bastante ambíguo e conflituoso. O Brasil se encontrava sob
a repressão da ditadura civil-militar e o Rio de Janeiro, em forma de resis-
tência a todo o embate repressivo, se configurava nesse momento como
importante palco dos movimentos de contracultura realizados por parte da
sociedade civil, nos quais podemos incluir o afamado “desbunde”. A poucos
metros do apartamento onde morava o fotógrafo, entre o Posto 8 e o Posto
9, foi criado, em 1971, o Pier de Ipanema, local que rapidamente se trans-
formou em ponto de encontro de artistas e intelectuais – chamado também
de Dunas da Gal em homenagem à cantora baiana que era frequentadora
assídua –, os quais aproveitavam as tardes na beira-mar e expressavam
comportamentos geralmente não aceitos em outros territórios da cidade.
Nesse mesmo contexto, a praia de Ipanema era amplamente noticiada em
imagens pela presença da atriz Leila Diniz grávida de oito meses trajando
biquíni de duas peças, assim como pela micro-sunga de crochê lilás vestida
por Fernando Gabeira em seu retorno do exílio político. Nos palcos da cidade,
os Dzi Croquettes, coreografados pelo bailarino norte americano Lennie
Dale, apresentavam shows subvertendo totalmente as regras de gênero e
de sexualidades impostas pela sociedade conservadora da época.
Certamente, a ambiência do “desbunde” da década de 70 no Rio de
Janeiro foi inspiradora e encorajadora do trabalho de Alair Gomes com a
fotografia nessa mesma época. Desse ambiente praieiro efervescente, o
fotógrafo desenvolveu tanto as séries criadas a partir do seu olhar voyeur
à distância, do alto da janela do seu apartamento, quanto outras séries bem
mais curtas, três imagens apenas, as quais ele passa a conceber a partir de
suas caminhadas pela praia, equipado de uma câmera fotográfica e alguns
tipos de lentes123.

123
Para compor as Sonatinas, fotografando da janela de seu apartamento, ele utilizava lente de 35mm,
teleobjetiva e grande angular; para as fotografias realizadas na praia, ele utilizava lentes de 50mm, 135mm
e 300mm (GOMES, 1983).

Arte da Resistência 275


Trípticos de Praia
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional

Em relação à minha ‘fotografação’ em praia, há uma coisa


interessantíssima: eu já tive protestos. Felizmente são
raríssimos. Muito raros, mas tão raros mesmo que não cria
nenhuma inibição de voltar a praia tantas vezes quanto eu
tenha tempo para fotografar. Muitas vezes há risos em torno
de mim, as pessoas apontam, riem como se eu fosse um
palhaço, um doido. Mas esses não são os garotos [fotogra-
fados] (GOMES, 1983, p. 14, grifo nosso).

A ação fotográfica de Alair Gomes parte da sua experiência íntima,


vinculada aos seus encontros sexuais e ganha a dimensão do urbano no
registro de cenas banais da cidade que revelam corpos masculinos com
quem o fotógrafo não tinha, necessariamente, nenhum tipo de relação. A
sua ação de fotografar na praia o expõe ao choque com as regras sociais
que conformam as sociabilidades urbanas, fazendo de sua prática e do ato
criador a partir dela o exercício político do seu próprio corpo na cena urbana.
É no embate com o outro, intermediado pela câmera fotográfica, que Alair
constrói grande parte do seu arquivo de imagens do corpo masculino124.
No instante em que o fotógrafo desce do alto da sua torre e se mistura
ao frenesi da vida urbana, uma nova continuidade plástica e significativa,
entre uma imagem e outra, passou a ser necessária (GOMES, 1983). A “foto-
grafação” na praia exigiu do fotógrafo mais agilidade e descrição. Estando
posicionado próximo do spectrum de sua fotografia, e não sendo esse um
parceiro íntimo, não era possível a experiência de ficar minutos e às vezes
horas inteiras fotografando incessantemente uma mesma cena, como ele
fazia de sua janela. O arquivo fotográfico criado a partir da sua ação de rua
é extremamente mais variado em termos de cenas e de corpos registrados.

Em 1983, na entrevista a Joaquim Paiva, Alair revelou: “Tudo que eu campus até agora com fotos tiradas
124

da janela foram as Sonatinas. Todas as minhas outras fotos de praia, a imensa maioria dos meus negativos
de praia, foram tiradas diretamente na praia” (GOMES, 1983, p. 13).

276 Leandro Colling


Criar composições em sequências a partir desse material colocou o fotógrafo
diante de novas dificuldades, daí a ideia dos trípticos.
Na ficção urbana erótica criada pelo encontro de três fotografias dis-
tintas – às vezes, a revelação em três tempos do movimento corpóreo de
um mesmo rapaz; noutras vezes, três rapazes conectados por uma mesma
postura –, Alair desenha relações expressivas entre corpos e nos expõe,
por esse artifício do trabalho narrativo com a fotografia, um espaço urbano
profundamente sexuado, ou, se dito de outra forma, fabulado criticamente,
tendo como questão primaz de sua construção crítica a relação erótica entre
corpos do mesmo sexo na formatação estética de sua obra. A cidade do
Rio de Janeiro que deriva da “fotografação” de Alair perambulando pelo
seu espaço público praieiro é uma cidade revelada pelas tensões sociais
articuladas em um fazer criativo que reivindica o “prazer como princípio
criador e forma de invenção estética” (COELHO, 2014, p. 13). A partir da
manipulação da imagem de sua obsessão e objeto de desejo, “o corpo mas-
culino jovem e belo”, o fotógrafo registra a cidade que o circunda e revela
um espaço intensamente permeado pelo conflito sexual vivenciado em sua
própria sociabilidade urbana, agora transmutado em imagens carregadas
de força e beleza.

Trípticos de Praia
Coleção Alair Gomes – Fundação Biblioteca Nacional

A fotografia e o modo de compor narrativas a partir de sequências


fotográficas de Alair Gomes expõem um artista que vislumbra na arte a
possibilidade de expressar a sua subjetividade sexual e que percebe, pelo
o conflito imanente a sua forma de ser em um contexto urbano, o potencial
subversivo, conturbador de regras morais e, por que não, transformador
que a sua criação pode assumir no plano social. Permitindo a si a liber-
dade de fabular narrativas eróticas a partir de cenas banais cotidianas, no

Arte da Resistência 277


trabalho compositivo de Alair, corpo e cidade, assim como arte e política se
entrelaçam na fabulação de um imaginário no qual a sociabilidade urbana é
regida – em um devaneio utópico ou, pelo menos, prospectivo – pelo prazer.
Eis a cidade que Alair nos apresenta, vivê-la / criá-la é um ato de coragem.

278 Leandro Colling


Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.


BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
COELHO, Frederico. Ver com olhos livres. Zum revista de fotografia. São Paulo: Instituto Moreira
Sales. Vol. 06, abril de 2014.
GOMES, Alair. A new sentimental journey. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
GOMES, Alair. Reflexões críticas e sinceras sobre a fotografia. Zum revista de fotografia. São
Paulo: Instituto Moreira Sales. N. 06, abril de 2014 [encarte, s. p.].
GOMES, Alair. Joaquim Paiva entrevista Alair Gomes, 1983 [entrevista concedida a] Joaquim
Paiva. Zum revista de fotografia. São Paulo: Instituto Moreira Sales. N. 06, s. p., 22 de agosto
de 2014. Disponível em: https://revistazum.com.br/revista-zum_6/alair-gomes-joaquim-paiva/.
Acesso em: 03 de setembro 2022.
GOMES, Alair. Reviravoltas na arte do século XX. Niterói: EDUFF, 1995.
HERKENHOFF, Paulo. La mélodie du désir. L’art de Alair Gomes. In: PAIVA, Joaquim et al. Alair
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PEREIRA, Bruno. Heterotopias do (in)desejável: conjugando espaços e sexualidades a partir
da fotografia de Alair Gomes. Periódicus, Salvador, n. 08, vol. 1, p. 62-78, novembro de 2017.
PRECIADO, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos
Feministas, Florianópolis, 19(1), p. 11-20, janeiro-abril/2011
PRECIADO, Paul B. Pornotopía: arquitectura y sexualidade em Playboy durante la guerra fria.
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urbano. 2012. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2012.
ROCHA LIMA, Eduardo. A cidade caminhada... o espaço narrado. Revista Redobra. Salvador.
Vol. 11, ano 4, p. 202 a 211, 2013.
SANTOS, Alexandre Ricardo dos. A fotografia como escrita pessoal: Alair Gomes e a Melancolia
do corpo-outro. 2006. Tese (Doutorado em Artes Visuais). Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2006.
VASQUEZ, Pedro. A janela indiscreta de Alair Gomes. Zum revista de fotografia. São Paulo:
Instituto Moreira Sales. N. 06, s. p., 29 de julho de 2014. Disponível em: https://revistazum.com.
br/revista-zum_6/janela-indiscreta-alair/. Acesso em: 03 de setembro de 2022.

Arte da Resistência 279


Artes pornosexualigráficas: o romper
anti-higiênico com o cis-tema de arte.
Texto gozado de uma dissertação-manifesto

Christian Gustavo de Sousa Aka - Chris, The Red

O que tornou o pensamento europeu legítimo, foi a lem-


brança que se tem dele, através da política de citação.
Carla Akotirene (2017)

É impossível falar sobre a história única sem falar


sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual sem-
pre penso quando considero as estruturas de poder
no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução
livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como
o mundo econômico e político, as histórias também são
definidas pelo princípio de nkali: como elas são conta-
das, quem as conta, quando são contadas e quantas são
contadas depende muito de poder. O poder é a habi-
lidade não apenas de contar a história de outra pes-
soa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva.
Chimamanda Ngozi Adichie (2019)

O CIS-tema de arte é branco...


... quando estamos pensando em mecanismos de dominação, daquelas
regras e limites, estamos falando sobre construções da branquitude e da
racialização dos não-brancos.
violento...
... quando se tem corpas que são censuradas, assassinadas, silenciadas,
apagadas seja por uma violência física ou psicológica, pela palavra.

Arte da Resistência 281


fanático religioso ...
... quando construções religiosas interferem em processos artísticos, em
existências e se colocam objetos em pedestais pelos quais se destilam
palavras de ódio.
elitista...
... quando os espaços ditos legítimos, as galerias, os espaços institucionali-
zados atuam a partir de uma hierarquia muito forte que acabam por apagar
outres artistes, inclusive, as corpas dissidentes.
machista...
... quando o sistema patriarcal determina os padrões e mulheres125 ainda
são minorizadas nos espaços de arte.
conservador...
... quando em nome de uma moral e dos bons costumes se determinam o que
deve ser visto e o que deve ser escondido no CIS-tema de arte, apagando,
entre outras coisas, as artes explícitas e colocando tudo na mesma caixinha
do erótico para normatizar e legitimar o que é exibido.
cis...
... quando corpas transvestigeneres, transmaculines, trans, travestis são
excluídas e/ou precisam se adaptar às normatividades do CIS-tema para
estarem presentes ou quando são ausentadas e substituídas pelo o olhar
do outro.
capacitista...
... quando artistes e corpas com deficiências são excluídas dos espaços ou
preteridas por corpas com não-deficiências.
Perceber o CIS-tema de arte por meios desses marcadores sociais é per-
ceber quais corpas transitam por ele.

CIS-tema de arte e as putarias artísticas

Eu parto, na minha pesquisa, do meu incômodo com as construções


sociais em torno de uma coisa chamada CIS-tema e uso essa ortografia
por conta de duas teóricas brasileiras. Primeiramente, a Viviane Vergueiro:
“a corruptela ‘cistema’, entre outras corruptelas do tipo, têm o objetivo de
enfatizar o caráter estrutural e institucional – ‘cistêmico’ – de perspectivas

Importante enfatizar que o termo mulher aqui se refere a todas às pessoas que se identificam com
125

mulheres e não em relação ao significado socialmente construído e normatizado como pessoas que nas-
ceram com buceta.

282 Leandro Colling


cis+sexistas, para além do paradigma individualizante do conceito de ‘trans-
fobia’.” (VERGUEIRO, 2015, p.15). E da Bruna Kury: “com c de cisgênero,
palavra criada para localizar pessoas não trans. Fazendo referência com
a nomenclatura, cis-tema fala do sistema social centrado na heterocis-
sexualidade compulsória” (KURY, 2021, p. 12). Trago este CIS-tema para
pensarmos sobre os sistemas que nos rodeiam – saúde, político, jurídico,
acadêmico, entre outros – mas aqui me concentrarei no CIS-tema de arte,
no qual estou imerso na minha pesquisa do mestrado em poéticas visuais
e vou pedir ajuda para a tese de doutorado da Maria Amélia Bulhões, na
qual ela traz algumas definições referentes ao CIS-tema de arte para que
possamos nos localizar melhor:

Conjunto de indivíduos e instituições responsáveis pela pro-


dução, difusão e consumo de objetos e eventos por eles
mesmos rotulados como artísticos e responsáveis também
pela definição dos padrões e limites da arte para toda uma
sociedade, ao longo de um período histórico (BULHÕES,
2014, p. 15-16).

Pensando nessa definição apontada por Maria Amélia é que tenho


caminhado pelo que denominei de Jornada-Mestrado126, na qual estrutu-
rei minha dissertação-manifesto em atos, como numa peça de teatro, na
qual eu e outras pessoas atuamos buscando contar uma história, uma outra
história, uma história anti-hegemônica. Pois, como já dizia alguém: “a vida
é um teatro”. Então, apresentar minha dissertação como manifesto é tam-
bém pensar na escrita como provocação desse CIS-tema na forma como
é escrito, normatizado. Assim, minha escolha por esse gênero textual, o
manifesto, se faz justamente pela própria ideia do que significa: “predo-
minantemente argumentativo e que busca defender um ponto de vista,
uma ideia e é escrito dentro de uma perspectiva social, cultural, religiosa
e, principalmente, política para chamar atenção da sociedade para algo”
(VALENTE, 2020, s/p). E conversando com Levi Banida: “reinventando na
escrita, caminhos de transgredir o presente, recriar o futuro e subverter o
passado” (BANIDA, 2021, p. 5).
Na música God control127, da Madonna, em determinado trecho ela canta:
“a new democracy. God and pornography”. Em 2019, Angela Davis esteve
no Brasil, no lançamento da sua biografia e, em uma palestra no Parque
Ibirapuera, em São Paulo, na qual estive presente, ela pontuou sobre a

126
De acordo com o dicionário Michaelis, a palavra jornada, entre outros significados, como caminhada e
percurso, é como se designava, no teatro espanhol e português, cada ato de uma peça (disponível em https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/jornada/).
127
God control é faixa do álbum Madame X, lançado em 2019.

Arte da Resistência 283


necessidade que temos de uma nova democracia, pois a que está aí falhou,
a forma como ela tem sido praticada falhou e precisamos pensar uma nova
democracia. Pensando nessa falha do CIS-tema democrático, penso que o
CIS-tema de arte também tem falhado. Então, como pensar o CIS-tema de
arte a partir dessas falhas que têm acontecido com artistes, obras, cura-
dorias, espaços e os diversos agentes envolvidos e os marcadores sociais
intrínsecos a ele?

Imagem 01: Registro de vídeo do La Lito com DJ Johnnybigu. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São
Paulo/SP. 2021. Frame: Chris, The Red

Na tentativa de pensar outras possibilidades para o CIS-tema de arte é


que me atrevo a pensar outras formas de realizar minha pesquisa de mes-
trado, tratando-a mais como uma performance do que uma estrutura rígida
acadêmica. Cito novamente Levi Banida, que apresenta, em sua dissertação,
a ideia de “pesquisa performativa”:

A pesquisa performativa sugere diálogos com outros domí-


nios/áreas do saber que estão encobertos, sufocados e/ou
invisibilizados pelas perspectivas e narrativas normativas
de pesquisa. Áreas interdisciplinares ou práticas indisci-
plinares, tornam-se um espectro rico e de amplo enfoque
dessas pesquisas (BANIDA, 2021, p. 44).

Isso, para mim, é muito próximo do que tenho buscado fazer na minha
própria pesquisa, para pensar as construções da normatividade dentro da
academia. Banida traz isso de uma forma muito interessante e rica na sua

284 Leandro Colling


dissertação, de modo que pensar meu mestrado enquanto jornada é refletir
sobre não apenas aspectos do CIS-tema de arte, mas a própria forma como
apresento minhas criações, as quais prefiro chamá-las de Putarias Artísticas
(Soa mais coerente com a minha busca).
Já me disseram que não faço arte, que o que faço é putaria – “você não
faz arte, é só putaria, é só gente pelada” – e isso me causava muitos incô-
modos, mas também já fui chamado tantas vezes de boiola, baitola, viado,
bichinha e tantos outros termos para se referirem à minha bixice que ou
a gente pega toda esta energia e a recanaliza ou, então, adoecemos ou
morremos. Então, se o que faço é putaria, que sejam Putarias Artísticas. E
o que é melhor do que arte e sexualidade juntas?

Imagem 02: Registro de vídeo do La Lito com Su & Cláudio. Chris, The Red. FotoLivePerformance. Porto
Alegre/RS. 2021. Frame: Chris, The Red

Desde cedo, criei uma conexão direta com as artes em suas várias lin-
guagens, desenho, pintura, poesia, dança, teatro, música, livros etc. Aprendi
cedo o poder da arte em minha vivência, como espaços de imaginação e
fantasias. Como espaço de vivenciar outras histórias ou criar outras perso-
nas, não como escape, mas como potencialização.
Da mesma forma, com a descoberta da minha sexualidade, desde
quando entendi a anatomia do meu corpo e os meus desejos, busquei explo-
rá-los sem reprimi-los, sem tabus ou preconceitos e, desde então, me per-
mito às mais loucas taras. Já fui amarrado, dedado, fistei, mijei, sondei, fui
sondado, vendei, fui vendado, dildos, plugs, prendedor de mamilos e cock
rings são meus brinquedos. Fiz a 3, 4, 10, surubas e festas mil, filmei, fui

Arte da Resistência 285


filmado, fiz filme pós-pornô, banheirão, cinemão, no parque, na praia. Peguei
padre, professor, híbridos. Em outras palavras, sou puta. Sou bixa e puta e
artista.
Então, hoje, entendo e defendo minhas criações como Putarias Artísticas
e as faço pelo deboche a essas afirmações que qualquer artiste que trabalhe
com temáticas como as minhas – do sexo, do explícito, da pornografia, da
tara, da fantasia – já ouviu alguma vez em suas jornadas. Resolvi assumir isso
e todos os trabalhos que trago na minha pesquisa não são obras de arte, são
Putarias Artísticas. Se o que faço não é arte, é putaria, vou assumir a putaria
como parte da minha construção e do meu processo crítico do CIS-tema de
arte e elas nascem na cama, na festa, na suruba, em qualquer lugar onde
minha corpa desnuda e em tesão se encontra com corpas plurais desnudas,
livres, orgásticas, consentidas. Dessas conexões e entregas, fotografias,
performances, videoartes e toda uma fusão de linguagens artísticas são
exploradas como uma grande suruba de linguagens, ou seja, não espere
uma única linguagem nas putarias artísticas que trago em minha pesquisa.
Assim como existe uma pluralidade de corpas presentes, também são vários
os caminhos pelos quais sigo em meus processos criativos e tudo isso vai ao
encontro do romper anti-higiênico com este CIS-tema da arte em conjunto
com ideias e conceitos que podem se agregar e/ou surgir desse rompimento.
Em minhas putarias artísticas, seja a linguagem que for, estou traba-
lhando com a representação imagética de alguém ou algo, seja eu mesmo
ou outra pessoa e, para isso, preciso pensar que tipo de estratégias quero
seguir nos meus processos criativos para questionar constantemente essas
representações, a partir de perguntas como: “o que?”, “quem?”, “para quem?”,
“como?”, “quando?”, “onde?”. Pensando sobre isso a partir do CIS-tema de
arte, que presenças e ausências estão representadas hoje nele? Que pre-
senças estão representando as ausências? Que agentes estão presentes e
como estão atuando? Estão em prol de suas próprias auto-representações
ou para um coletivo que não está presente? Partindo de questões como
artivismo, poderia alguém, do ponto de vista político e simbólico, representar
uma outra?
Segundo Louis Marin (2001), o ser que representa, o presente, acaba-se
tornando sujeito da ação e o ser representado, o ausente, o objeto da ação.
Mais uma vez, pensando a partir do CIS-tema de arte com essa ideia dual:
quem está sendo sujeito e quem está sendo objeto? Como são feitas as
representações de quem está ausente por quem está presente tanto nas
narrativas discursivas quanto imagéticas?

286 Leandro Colling


Imagem 03: Registro de vídeo do La Lito com Alex. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São Paulo/SP.
2022. Frame: Chris, The Red

Pensando a partir daquelas perguntas sobre estratégias nos meus


processos criativos mencionadas alguns parágrafos atrás, até que ponto
alguém pode representar uma outra pessoa e, especificamente, no CIS-tema
de arte? O que significa uma pessoa representar uma outra? Poderia eu,
um homem branco, representar dentro deste CIS-tema uma pessoa per-
tencente a outra raça, por exemplo? Como posso pensar a partir da minha
própria experiência e marcadores sociais minha inserção neste CIS-tema
de arte, uma vez que, a partir do momento em que marquei meu lugar nele,
automaticamente, minha entrada já cria espaços de presença e ausência?
Para deixar minhas indagações mais organizadas em minha mente, me
questiono para pensar “o que” estou fazendo com o meu papel de ser pre-
sente? “Quem” estou representando e “para quem”? “Como” tenho represen-
tado as pluralidades das ausências? “Quando” e “onde” estou pensando meu
papel enquanto sujeito presente? “O que” estou objetificando? “Quem” está
ausente? “Para quem” minhas produções estão sendo realizadas? “Como”
as ausências estão presentes nas minhas criações? “Quando” as ausên-
cias se fazem presentes e “onde” as faço presentes? Essas reflexões são
essenciais nas minhas discussões e nas minhas produções, pois influenciam
diretamente nas escolhas que faço tanto na hora de criar minhas putarias
artísticas como nos meus referenciais epistemológicos, numa constante
busca por este romper anti-higiênico do CIS-tema de arte e que conversam
diretamente, por exemplo, com discussões sobre o erótico e o pornográfico,
pois a escolha por uma imagética mais óbvia e mais explícita nas minhas
putarias artísticas, ao invés de imagens metafóricas/limpas, é justamente

Arte da Resistência 287


por acreditar que uma representação mais direta (ou como o CIS-tema de
arte chama: obscena) tem potencial crítico maior do/no CIS-tema de arte
que, nesse processo de erotizar as artes, acaba por violentar, silenciar e
apagar outras corpas.

Corpas marginalizadas e silenciadas dentro não só da aca-


demia, mas também de quaisquer outros espaços [inclusive,
o CIS-tema de arte] em que o discurso e as teorias relacio-
nadas às nossas subjetividades são constituídos à revelia
de nossas vivências concretas, sendo privados de nossa
presença (AMORIM, 2019, p. 14).

Assim, nos caminhos dessa Jornada-Mestrado, acho importante salien-


tar que não busco representar as ausências do/no CIS-tema de arte, mas
questionar o motivo de algumas corpas serem ausentadas e, seguindo numa
outra direção, pensar representação a partir da ideia de conexão – e não a
representação da outra pessoa – mas a construção de uma grande rede de
afetos e putarias, em que nossos corpos, nossas corpas e nosses corpes
representem a si contando nossas/suas próprias histórias. Quando penso no
CIS-tema de arte, por onde devo começar e, principalmente e mais impor-
tante, para onde quero ir? O que desejo a partir da minha pesquisa, das
construções imagéticas e da escrita da minha dissertação?
Antes de responder a essa pergunta, quero fazer algumas cos-
turas. Numa busca por desenvolver uma análise crítica do CIS-
tema de arte pautado por marcadores da normatividade, busco a
construção de uma representação poética visual e o desenvolvi-
mento de uma teia epistemológica dissidente que venha de encon-
tro às violências e apagamentos de corpas que desviam das normas
cis-hetero-branco-macho-saudável-patriarcal-religiosa-conservadora.
Partindo de conceitos como contrassexualidade e pós-pornografia,
busco elementos para a criação das minhas Putarias Artísticas que refletem
não apenas o olhar sobre mim, mas a conexão da minha corpa com outras
corpas e suas pluralidades, num processo em que a relação sujeito-objeto
se desfaz para uma relação de entrega ao desejo e às práticas da sexuali-
dade. O processo e o resultado se fundem e o explícito é veia fundamental
de representação dessas corpas que optaram por desobedecer às normas
e os papéis que a sociedade queria que elas cumprissem a partir do que
tinham entre as pernas: um pau ou uma buceta.
Pensar, inclusive, na própria significação da palavra corpo, que vem de
uma construção social na qual nossas corpas estão inseridas, principal-
mente, por ser a afirmação do masculino patriarcal. Assim, pensando com

288 Leandro Colling


Foucault, questionar a palavra e todos os discursos imersos nesta ideia de
corpos, para pensar sobre
CORPA-RAÇA,
CORPE-GÊNERO,
CORPO-SEXUALIDADE,
CORPA-FORMA,
CORPE-PERCEPÇÃO
e como tudo isso é uma grande trama (BANIDA, 2021) interseccionalizada
(AKOTIRENE, 2019). Não há como traçar uma crítica do CIS-tema de arte,
seus discursos e suas representações imagéticas, sem partir de uma matriz
interseccional, como bem aponta Carla Akotirene:

Do meu ponto de vista, é imperativo aos ativismos, incluindo


o teórico, conceber a existência duma matriz colonial
moderna cujas relações de poder são imbricadas em múl-
tiplas estruturas dinâmicas, sendo todas merecedoras de
atenção política. Combinadas, requererão dos grupos viti-
mados128: 1. instrumentalidade conceitual de raça, classe,
nação e gênero; 2. sensibilidade interpretativa dos efei-
tos identitários; 3. atenção global para a matriz colonial
moderna, evitando desvio analítico para apenas um eixo
de opressão (AKOTIRENE, 2019, s/p).

Penso que essa ideia de interseccionalidade precisa ser trazida também


para pensar o discurso entre erotismo e pornografia.

Erotismo (versus?) pornografia

Uma dualidade importante de questionar na minha pesquisa é a que


o CIS-tema de arte faz entre erotismo e pornografia. No entanto, antes de
entrar nessa relação, farei uma pequena cronologia do termo “pornografia”
a partir do livro El museo secreto, de Walter Kendrick (1995).

128
“As feministas negras, como bell hooks, reconhecem os impactos supremacistas brancos na trajetória
individual e coletiva, mas rejeitam o lugar político de vítimas passíveis da compaixão branca. Neste sentido,
a noção de “vitimado” resguarda o caráter político de afetação e alcance das injustiças sociais aos grupos
identitários – já as noções de agência política e autodefinição negras correspondem ao lugar histórico dos que
foram escravizados e não escravos, portanto, são vítimas no sentido de vitimados” (AKOTIRENE, 2019, s/p).

Arte da Resistência 289


Imagem 04: Registro de vídeo do La Lito com Paulo. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São Paulo/SP.
2022. Frame: Chris, The Red

A palavra viria do grego Pornographos, que significa “escrito sobre pros-


tituição” e, apesar da existência da etimologia grega, em 1755, o termo
não aparece no dicionário de Samuel Johnson, vindo a ressurgir em 1857
no dicionário médico como descrição da prostituição ou das prostitutas
enquanto assunto de utilidade pública. Antes disso, em 1842, a Academia
Francesa definiu o pornógrafo como quem “trata de temas obscenos” e
pornografia, “a produção de objetos obscenos”. Esse ressurgir do termo, de
acordo com Kendrick, se deve principalmente aos achados considerados
lascivos na região de Pompeia, como inclusive aponta a definição trazida,
em 1864, pelo Webster’s Dictionary, que define pornografia como “pintura
licenciosa empregada na decoração de paredes de lugares de bacanais e
orgias, como os de Pompeia”.
Em 1866, foi publicado o primeiro catálogo intitulado Coleção
Pornográfica, com imagens dos artefatos proibidos do Museu Borbónico.
Adiante, em 1875-1877, foi lançada a Coleção Pornográfica Museu Secreto
de M. L. Barré, que, por conta das “obscenidades”, era proibida para mulhe-
res, crianças e pobres. Em 1909, o Oxford English Dictionary definiu porno-
grafia como “descrição de vidas, costumes das prostitutas e clientes, daí a
expressão de licenciosidade ou assuntos impuros tanto na literatura como
na arte” e, por fim, em 1975, o American Heritage Dictionary definiu porno-
grafia como “forma escrita ou gráfica de comunicação que tenta despertar
a luxúria”.

290 Leandro Colling


Esse resgaste cronológico é importante até para entendermos como a
pornografia é tratada nos tempos atuais e como desde aquela época sempre
houve um processo de silenciamento e invisibilização do que o CIS-tema de
arte hoje categoriza como arte pornográfica e tal qual continua a colocar o
explícito guardada em espaços secretos. As problemáticas com a definição
da palavra pornografia nos ajudam a entender os pré-conceitos e a visão
machista patriarcal que reflete até hoje na própria forma como o CIS-tema
de arte constrói suas narrativas em torno do erotismo e da pornografia. Sobre
o assunto, o professor doutor Afonso Medeiros (UFPA) escreve:

A despeito da onipresença da representação do corpo na


arte, a discussão sobre a manifestação – implícita ou expli-
cita – do desejo e da sedução não acompanha essa proe-
minência. Se o erotismo tem sido um tema/discussão mais
ou menos recorrente na arte, o mesmo não acontece com a
pornografia – tanto em abordagens históricas quanto filosó-
ficas, sociológicas, psicológicas ou educacionais aplicadas
à arte. A simples menção da palavra “pornografia” acarreta
estranhamento e, no campo das artes visuais, resume-se
tudo ao termo “erotismo” (MEDEIROS, 2010, p. 464).

Analisar essa dualidade se faz extremamente importante uma vez que a


temática do meu trabalho é sobre sexualidade em seu aspecto expandido, ou
seja, não apenas da sua subjetividade, mas também da sua prática no campo
das artes, principalmente, na representação de uma imagética explícita, não
metafórica, num processo de romper com a dinâmica da higienização das
artes da sexualidade. Como o professor Afonso Medeiros aponta, a história
da arte das sexualidades ainda precisa ser escrita sem preconceitos, pois
“é necessário não ter medo da excitação e do prazer que ela, certamente,
provocará”. E é nesse intuito que busco fazer a análise-crítica do CIS-tema
de arte nas temáticas e propor um outro caminho para as artes da sexuali-
dade para romper com essa dualidade erótica x pornográfica. Além disso,
apresento uma resposta à proposta do professor Afonso Medeiros, que
destacou que existe uma “diluição de fronteiras entre erotismo e pornogra-
fismo na contemporaneidade” (MEDEIROS, 2010, p. 473). Aproveito essa
discussão sobre erotismo e pornografia para apresentar outro conceito
muito importante na minha pesquisa: o de pós-pornografia129. Nas palavras
de Eduardo Kac,

129
O termo “pós-pornografia” surgiu oficialmente em 1988, com a artista, diretora, sexóloga, performer, que
também foi prostituta e atriz pornô estadunidense, Annie Sprinkle. Em 1989, Annie e uma série de outras
artistas assinaram o The Post Porn Modernist Manifesto. Sprinkle passou a chamar o pornô que produzia
e dirigia de Pós-Pornô, “com a intenção de descrever uma pornografia que não era a dominante; era mais

Arte da Resistência 291


designa geralmente obras sexualmente explícitas que ofe-
recem uma crítica do sexo normativo e das representações
de gênero e produzem um campo cultural politizado com-
posto de textos e imagens alternativos, lúdicos e subversi-
vos (KAC, 2013, p. 47).

Bem antes da Annie, o Brasil já discutia a tríade sexo-arte-política e


trazia nas artes o explícito como crítica à normatividade. Entre 1980 e 1982,
surgia o Movimento de Arte Pornô, idealizado pelo coletivo Gang, composto
pelo próprio Eduardo Kac e Cairo de Assis Trindade, Teresa Jardim, Denise
Henriques de Assis Trindade, Sandra Terra, Ana Miranda, Cynthia Dorneles,
entre outres. Sobre o Movimento, Kac escreve:

O Movimento de Arte Pornô considerava exaurido o para-


digma modernista e buscava desmoronar as hierarquias de
valor, abrindo ao mesmo tempo as comportas para um plu-
ralismo democrático na arte e na política. Como resultado,
adotamos uma posição coletiva e pública. Denunciamos a
supressão geral da corporeidade na arte e na poesia, igno-
ramos os abismos entre a baixa e a alta culturas e rejei-
tamos a supremacia da mídia impressa em favor de uma
hibridização entre a oralidade e a mixed media. Criticamos
publicamente a noção de uma posição universal do sujeito
e cultivamos multiplicidades ontológicas que estendiam-se
além dos papéis teatrais para extinguir os limites entre as
posições estéticas transgressivas e a vida real. Definimos
o pornô como forma (KAC, 2013, p. 37).

E o faziam por meio de uma variedade de linguagens artísticas que


transitavam entre intervenções em espaços públicos, textos, poemas-ob-
jetos, fanzines, livros de bolso, fotografias, cartazes e uma diversidade de
suportes, principalmente, a performance.

A ação da Gang tratava de provocar uma “desabituação” do


corpo e da palavra. Os modos de agir propostos pelo grupo
iam além do espaço do livro e os suportes tradicionais da
literatura. Não havia palavra que não merecesse ser usada,
como não havia zona do corpo que devesse ser censurada.
O grupo buscava assim desestabilizar aquela normaliza-
ção autoritária que tinha contaminado o corpo, e que tinha
transferido de forma eficaz a censura governamental sobre

política, experimental, feminista, bem-humorada, conceitual... e não necessariamente preocupada em ser


erótica” (SPRINKLE, 2010, p. 102, apud KAC, 2013, p. 49).

292 Leandro Colling


a informação e os debates políticos à “auto-censura”, cada
vez mais generalizada (NOGUEIRA & COSTA, 2014, s/p).

Muito antes de Sprinkle, o Movimento de Arte Pornô já trazia outros


desnudares: “o nu não artístico, mas anartístico; o pornográfico, que não
corresponde aos parâmetros da pornografia tradicional, mas a uma con-
tra-pornografia (ou pós-pornografia) fora dos padrões tradicionais binários
hétero e homonormativos, e seus corpos perfeitos etc.” (NOGUEIRA, 2016,
p.126). Mas a quem interessa esse apagamento do Movimento de Arte Pornô?
A quem interessa essas práticas de descobrimento, autorias e oficializações
de saberes? “Por que nossas ficções subversivas e realidades liberadoras
são invisíveis? O que essa invisibilidade nos diz hoje? A quem interessa tudo
isso?” (NOGUEIRA & COSTA, 2014, s/p).

Imagem 05: Registro de vídeo do La Lito com BixaPuta. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São Paulo/
SP. 2022. Frame: Chris, The Red

Não estou querendo diminuir ou excluir a importância da Annie Sprinkle


e o Movimento Pós-Pornô por ela trazido, mas questionando as epistemolo-
gias que legitimam determinados saberes e apagam e inferiorizam outros.
Sprinkle tem papel pioneiro na construção de uma indústria pós-pornográ-
fica estadunidense feminista e, como diretora, o prazer e o gozo femininos,
assim como a buceta são elementos centrais em suas produções visuais.
Fato extremamente político e revolucionário dentro de uma indústria por-
nográfica mainstream dos EUA, na qual a mulher (e poderia colocar aqui

Arte da Resistência 293


também o gay passivo)130 é um mero elemento para o gozo do homem (e do
ativo). Assim, o que busco aqui é provocar outras possibilidades de cons-
trução das nossas narrativas, como escreve Fernanda Nogueira, no artigo
Memória em disputa: artes obscenas em foco:

A história é uma instituição e uma ficção, como nos lembra


o Crimp ativista, e como tal é necessário criar fissuras. Pelo
menos há cinco séculos vivemos uma disputa pela visibi-
lidade, pela memória, pela validade estética das práticas
artísticas que contradizem valores coloniais. Interferir neste
processo é lutar pela própria existência frente a um sistema
colonial que persiste, marcado por uma voz patriarcal, hete-
ronormativa, branca e supostamente “neutra”. Espaços de
representação, visibilidade, historicização são cruciais para
manter [literalmente] vivos corpos e estéticas dissidentes
(NOGUEIRA, 2016, p. 130).

É por isso que, quando penso nas minhas putarias artísticas e pes-
quisas pós-pornográficas, estou muito mais alinhado ao pensamento das
“Pornografias do Sul” (NOGUEIRA, 2015, p. 18), como, por exemplo, nos escri-
tos sobre a construção de uma pós-pornografia sudaka da Bruna Kury, bra-
sileira, anarcatransfeminista, performer, artista visual e sonora, que escreve
“a pósporno como resistência política” (KURY, 2021, p. 15), de possibilida-
des a partir de outras narrativas e histórias. “A pós-pornografia fala que a
gente pode sentir prazer de diversas formas. Por isso, traz questões como
a ‘desgenitalização’ do sexo, que é exatamente a expansão do prazer para
o corpo inteiro, e a noção de que todos os corpos podem ser ‘desejantes’ e
desejáveis” (KURY, 2018, s/p)131.
As palavras kuryanas soam como o gemido no pé do ouvido, pois não
é apenas entender o que é pós-pornografia. É também pensar nas produ-
ções pós-pornográficas sudakas que temos feito e que subvertem as do
norte, principalmente, as que reproduzem espaços da colonialidade e da
branquitude “anulando corporalidades e/ou não deixando um ambiente
confortável para determinadas corpas, um projeto político que exclui cor-
pos dissidentes do Sul Global e incorpora supremacia branca, binaridade
de gênero, gozo pro olhar do macho, higienização, jovialidade, classe social
etc.” (KURY, 2021, p.13).

130
Também poderíamos refletir sobre uma série de outros papéis, como o negro ativo para satisfazer o desejo
da branquitude ou, ainda, as duas mulheres para satisfazer o fetiche do homem. Mesmo quando temos dois
homens e uma mulher no vídeo pornográfico mainstream, a mulher ainda está lá como um mero elemento do
gozo do outro. No caso de duas mulheres, geralmente, as duas se tocam, se beijam, se lambem. Enquanto,
no caso inverso, os dois homens mal se tocam.
131
Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/05/09/pos-pornografia-conheca-
o-movimento-que-mistura-sexo-politica-e-arte.htm. Acesso em: 31 jul. 2022.

294 Leandro Colling


Todos esses pensamentos me provocam a pensar em outras possibi-
lidades de escrita e de fala para o CIS-tema de arte. Trata-se de pensar
junto com Djamila Ribeiro (2019) sobre o nosso lugar de fala, principalmente
o meu, enquanto artiste pertencente a esse mesmo CIS-tema, que tenho
criticado para buscar outras possibilidades de existência. Djamila Ribeiro
escreve que pensar sobre esse lugar é romper com a opressão, com o silên-
cio, com a subalternização.
Assim, a minha busca pelo meu lugar de falar nesse CIS-tema de arte
significa um romper anti-higiênico para quebrar com as categorizações das
artes da sexualidade entre eróticas e pornográficas, esquecer conceitos
como privado e o íntimo e escancarar de vez que o CIS-tema há anos tem
colocado um paninho preto por cima para esconder nossas produções. É
dizer FODA-SE às mesmas referências e gramáticas e àquilo que é dito como
“verdadeiro”, esquecendo que, nessa legitimação, outros conhecimentos
são apagados, violentados em busca de um controle do que pode ou não
ser dito / visto / ouvido / escrito / feito.

Corpas falantes. Contrassexualidade. Corpas dissidentes

A ideia para esta pesquisa surgiu a partir da ideia de corpas falantes,


de Paul B. Preciado (2017): “No âmbito do contrato contrassexual, os corpos
se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como
corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes” (PRECIADO,
2017, p. 21). No processo de rompimento com a binariedade homem/mulher,
macho/fêmea, masculino/feminino, nos quais somos mais do que a anatomia
dos nossos corpos, o que seria um dos princípios básicos da contrassexua-
lidade apresentada por Preciado, a proposta “não é a criação de uma nova
natureza, pelo contrário, é mais o fim da Natureza como ordem que legitima
a sujeição de certos corpos a outros” (PRECIADO, 2017, p. 21).
Dessas ideias, penso na forma como é feita a construção do CIS-tema
de arte a partir desses processos de sexo e gênero e Preciado nos provoca a
romper com as dualidades, o que me leva também a pensar nos rompimen-
tos com a dualidade do CIS-tema de arte em relação as categorizações em
artes eróticas e pornográficas. Para além disso, pensar o desenvolvimento
desta pesquisa só é possível a partir da conexão com pessoas que também
questionam as normatividades sociais, corpas desobedientes e desviantes de
gênero, sexualidade, pensamentos e ideias, assim como artistes desviantes
que provocam o CIS-tema de arte com suas criações imagéticas e textuais e
que, na minha pesquisa, as chamo de Sujeitas de [r]e[s][x]istências. Nossas
corpas não são objetos de arte, pois rompem com aquela relação do olhar do
pesquisador sobre o pesquisado ou do sujeito sobre o objeto. Nossas corpas

Arte da Resistência 295


se tornam, além de espaço de arte, sujeitas de ação no romper anti-higiêncio
do CIS-tema de arte. Então, quando penso em mudanças no CIS-tema de
arte, me alinho com o conceito trazido por Bruno Novadvorski (2021).

Penso que a arte, enquanto dispositivo, acontece de for-


mas distintas dentro da sociedade, atravessando campos
sociais, políticos e econômicos. Motivo que me faz enten-
der o dispositivo de arte como importante dentro da cons-
trução de uma sociedade, pois quando penso na arte de
maneira ampla, aspiro-a como propulsora de subjetividade,
auxiliando os sujeitos na formulação de si. Acontecimento
que reverbera na construção da subjetividade coletiva, ou
seja, o dispositivo de arte pode ser um importante aspecto
para a construção de uma sociedade mais humana e crítica
(NOVADVORSKI, 2021, p. 26-27) .

Assim, penso na ideia de dispositivo de arte como uma potencialização


e transformação do nosso atual CIS-tema de arte, reverberando mudanças
a partir de outros espaços, os não hegemônicos e/ou os não aceitos, ou
seja, a arte como propulsora na construção de nossas identidades enquanto
espaços únicos e que também somam forças na construção de representa-
tividades coletivas e que pode ser um caminho para responder aquela outra
pergunta: “para onde quero ir?”.

Imagem 06: Registro de vídeo do La Lito com Mauro, Beto & Junior. Chris, The Red. FotoLivePerformance.
São Paulo/SP. 2022. Frame: Chris, The Red

296 Leandro Colling


Artes pornosexualigráficas

As imagens que acompanham este texto são prints dos registros de


vídeos da putaria artística La Lito132, iniciada em 2021 e criada para a minha
pesquisa de mestrado. Nela, pessoas são convidadas para, junto com Dr. Red
(persona que assumo em alguma das minhas putarias), exercerem a livre
prática da sexualidade. Durante esses encontros, Dr. Red registra tudo com
a sua dildo-câmera ao mesmo tempo em que o material é transmitido ao vivo
para um grupo de pessoas convidadas via Zoom. Em La Lito133, as linguagens
se misturam, fluem entre a performance, a fotografia, o vídeo, em que cada
linguagem traz suas próprias potências como numa boa suruba.
Trazer o explícito para as minhas construções imagéticas é um dos
caminhos que encontrei para responder aquela pergunta – para onde quero
ir? – uma vez que o CIS-tema de arte ainda coloca as artes da sexualidade
com representações mais explícitas no espaço do proibido ou do não
aceito. Assim, como uma forma de quebrar essa divisão das artes entre
eróticas e pornográficas, proponho um outro pensamento em que essa
categorização seja interrompida e apresento, na minha pesquisa, a ideia
de Pornosexualigrafia, que consiste em um convite à ruptura, à constru-
ção de devires epistemológicos – imagéticos e conceituais, a pensar além
da dualidade erotismo/pornografia. Nesse novo mundo que não está mais
porvir, pelo contrário, já está por aí, ocupamos as brechas e criamos outros
espaços nos quais as separações entre artes eróticas e pornográficas já não
fazem mais sentido, as artes da sexualidade são o que são.
A Pornosexualigrafia propõe analisar criticamente as estruturas do
CIS-tema de arte e das categorizações em que algumas obras são inseri-
das. Categorizações essas que acabam por causar repressões e censuras à
sensualidade, à sexualidade, a artistes e obras. Assim, as artes pornosexua-
ligráficas transitam pela sexualidade, nudez, pornografia, pós-pornografia,
dissidência, pelo implícito, pelo explícito, pelo erotismo, simplesmente são o
que são, nem menos ou mais legítimas, mas resultados de processos criati-
vos e artísticos, de pensamentos e reflexões de artistes sobre tais temáticas.
São grafias de um desejo artístico. É um convite a pensar além dessa ideia
do erótico como o limpo, o aceitável e o pornográfico o contrário disto.

132
La Lito significa cama em Esperanto.
133
Disponível em https://bit.ly/LaLitoCTR

Arte da Resistência 297


Imagem 07: Registro de vídeo do La Lito com Bruno. Chris, The Red. FotoLivePerformance. São Paulo/SP.
2022. Frame: Chris, The Red

A proposta é pensar nas artes da sexualidade como uma representação


discursiva e imagética artística para além das narrativas conservadoras do
CIS-tema de arte e entender as artes pornosexualigráficas simplesmente,
como escreve abigail Campos Leal, “cria-ção, isto é, concepção, gestação
e parto de forças criadoras” (LEAL, 2021, p. 29). Forças essas que se fazem
cada vez mais presentes pelos dispositivos de arte ocupados pelas corpas
desobedientes de gênero, da sexualidade e das normas. Então, diante da
falha do CIS-tema, nos agarremos às nossas putarias e façamos arte, artes
pornosexualigráficas. Isto não é uma conclusão nem uma verdade em si
mesmo, são pensamentos e possibilidades, é um caminho...

298 Leandro Colling


Referências

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Letras, 2019
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AMORIM, Frederico Levi. Gestos performativos como atos de resistência [manuscrito]: corpas
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BANIDA, Levi. Tudo que precisei criar para me manter viva – transinvenção, pesquisa drag e
performance não-binária no fim do mundo (deles): Caderno Ambiências. 2021. Dissertação
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SANTOS, Carla Akotirene. Postagem Facebook 09 de abril de 2017. Disponível em https://
www.facebook.com/1427792432/posts/10212908460372761/ . Acesso em: 17 out. 2021.

Arte da Resistência 299


SPRINKLE, Annie. Post Porn Brunch / Tim Stüttgen, Elizabeth Stephens, Annie Sprinkle e Cosey
Fanni Tutti. In: Stüttgen Tim (ed.). Post Porn Politics. Berlim: b_books, 2010
VALENTE, Guga. Manifesto | Gêneros textuais. Brasil Escola. YouTube. Publicado em 17 de
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VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconfor-
mes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação
(Mestrado em Cultura e Sociedade), Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2015.

300 Leandro Colling


Revisitando as cenas queer de
enfrentamento no bolsonaristão

Djalma Thürler, Marcelo de Troi e Paulo César Garcia

A pergunta que Chloé Leprince (2021) faz no título de sua matéria no


site Savoirs é o ponto de partida para ampliarmos ideias sobre arte, cultura
e política brasileira iniciadas há cinco anos, quando escrevemos um texto a
seis mãos que tentou elencar traços que unificavam as estéticas do Teatro
Oficina, do Dzi Croquettes e da ATeliê voadOR Teatro. A proposta era refletir
sobre que aspectos uniam esses grupos e estéticas que, naquele tempo, se
configurou em criações de conceitos e categorias definidas como “artivismos
das dissidências sexuais e de gênero” ou “artivismos queer” (COLLING, 2018;
2019; TROI, 2018; TROI e COLLING, 2017).
Agora, tendo como marco histórico o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016, nitidamente um golpe polí-
tico machista e misógino134 que, segundo a própria Rousseff, “se deu no
Congresso, na mídia, em segmentos do Judiciário e no mercado financeiro”
(ROUSSEFF, 2019, sp), e que ficou conhecido como “um dos momentos mais
infames da história brasileira” (idem), e toda a perseguição e abandono das
políticas para as artes do governo Bolsonaro, retomamos a ideia do artigo
Outras cenas do enfrentamento ontem e hoje (THÜRLER; TRÓI; GARCIA, 2017)
e passamos a nos perguntar, voltando a Leprince, afinal, “dizer ‘fascismo’
em 2021: abuso de linguagem ou clarividência?” (LEPRINCE, 2021, sp)135.
Desde os anos 70, os historiadores têm tentado retrabalhar a definição
do que significa fascismo a partir de uma nova geração de intelectuais que

134
Sobre esse assunto sugerimos a dissertação de Gilvan Santana de Jesus (2017).
135
Todas as traduções existentes neste texto são nossas.

Arte da Resistência 301


está a olhar para o fascismo contemporâneo, tão amplamente espalhado
entre nós no debate público com significados tão díspares, expandindo
seus limites no tempo e no espaço, evitando a comparação estéril com a
década de 1930.
No Brasil, por exemplo, não estamos sob um regime fascista. Ainda
não. Nem as instituições da Constituição de 1988, nem os organismos de
contra poder estão a ser abolidos, mas estão a ser contornados e esvazia-
dos do seu significado, uma vez que a democracia burguesa, enfraquecida
em obter a hegemonia necessária para a classe dominante, volta-se então
para o Estado, o único autorizado a exercer a sua violência legítima (necro-
política) contra o povo indisciplinado. A esse processo, Ludivine Bantigny
e Ugo Palheta (2021) chamam de fascisation, que em português tem sido
traduzido pela expressão “fascização”, essa fase, período caótico e incerto
que precede o fascismo, ou seja, Bantigny e Palheta estão a avisar-nos que
a fascização não significa uma marcha progressiva para o fascismo, mas
alertam para que ele está longe de ser impossível. E se os fascistas chegam
ao poder por meios legais, é porque essa conquista é preparada por esse
período histórico de “fascização”:

Quando uma revista derrama o seu abjeto racismo incessan-


temente, número após número, página após página, supera-
tivo ativo na fascização das mentes; mas quando, apesar de
ser condenada por incitamento ao ódio, pode orgulhar-se de
entrevistar ministros e o Presidente da República. Quando
um conhecido colunista, também ele condenado por incita-
mento ao ódio, mas que tem sempre um microfone aberto,
compara discretamente os jovens migrantes a “ladrões,
violadores e assassinos”, numa complacência mediática
tão odiosa quanto irresponsável. Quando um sindicato da
polícia reivindica o direito de atirar na multidão e apela a um
apartheid militarizado. Quando os soldados castigando “hor-
das suburbanas”, consideram a possibilidade de um golpe
de Estado e alguns dos seus líderes se fazem passar por
homens providenciais. Esta efusão tornou-se familiar, mini-
mizada, banalizada (BANTIGNY; PALHETA, 2021, p. 9-10).

Ugo Palheta (2020) confirma que a vitória do fascismo é o produto con-


junto de uma radicalização de setores inteiros da classe dominante, por
medo de que a situação política lhes escape, e de um entrincheiramento
social do movimento, das ideias e dos afetos fascistas.
No Brasil, por exemplo, essa phase de fascisation tem sido planejada
faz muito tempo e sua ascensão teve lugar num contexto muito específico,
de instabilidade econômica, frustração popular, aprofundamento de anta-
gonismos sociais e pânico de identidade, esse último como pensado por

302 Leandro Colling


Isabelle Barberis (2022) e que foi particularmente exacerbado pela vitória
do neoliberalismo autoritário de Jair Bolsonaro, em 2018. Insuflada por ideias
de extrema-direita e pela (falta de) gestão da pandemia, que é aproveitada
como oportunidade para “deixar a boiada passar”136, nossa política passou
a ter graves consequências, como a direitização de uma grande parte da
classe política, que será alinhada com a agenda da extrema-direita, que se
tornou em parte a do governo, e exacerbou as tensões entre o Estado e a
população. Os números e as violências dos ataques, particularmente racis-
tas, misóginos, xenofóbicos e lgbtfóbicos estão a aumentar, bem como os
ataques contra pessoas solidárias, aliadas e/ou empáticas. Queremos dizer
que as medidas antidemocráticas que nos têm sido impostas não nos tomam
de surpresa porque “os movimentos fascistas não conquistam o poder polí-
tico como uma força armada toma conta de uma cidadela, por uma ação
puramente externa, a tomada (um assalto militar)” (PALHETA, 2020, sp).
No campo cultural137 do teatro, a partir do impeachment da presidenta
Dilma Rousseff, e das sucessivas tentativas de sucateamento da cultura138,
passamos a perceber diversos discursos e ações contra a arte de modo
geral. Notadamente cortes de recursos públicos de obras com temáticas
de gênero e sexualidade e cancelamentos autoritários de espetáculos em
todo o Brasil já refletiam parte da agenda da extrema direita, que se tornou
parcialmente a do governo, e denunciavam as tensões e disputas em torno
dos significados da arte e da relação dessa com as novas identidades esté-
ticas e a liberdade de expressão.
A suspensão da exposição Queermuseu: cartografias da diferença na
arte brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, em Porto Alegre, em 10
de setembro de 2017, marcou um novíssimo dissenso no panorama políti-
co-cultural brasileiro e, talvez, tenha se tornado o mais emblemático caso
de ultraconservadorismo. As paixões identitárias que, confinadas ao bina-
rismo e ao reducionismo mortificante, levantaram uma enxurrada de críticas,
mobilização em redes sociais, queixas de apologia à pedofilia e à zoofilia em
trabalhos de artistas consagrados como Adriana Varejão, Cândido Portinari
e Lygia Clark.

136
No Brasil, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o então ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, alertou os ministros sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da
Covid-19, utilizando a expressão “passar a boiada”. O que ficou conhecido como o “método Salles” significava
aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus para
mudar regras então vigentes. Ludivine Bantigny e Ugo Palheta concluem que a luta anti-fascista não deve
ser separada das lutas anticapitalistas, feministas, anti-racistas etc., mas deve constituir a parte defensiva
da luta pela emancipação.
137
Para nós, o campo cultural engloba as artes, claro, mas também o entretenimento, a moda, os meios de
comunicação e a publicidade, basicamente tudo o que se destina a apelar às nossas sensibilidades.
138
Após o golpe do impeachment, o presidente Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura, mas voltou
atrás por grande pressão da classe artística, mas não conseguiu, politicamente, manter um ministro à frente
da pasta. Passam por ela Marcelo Calero, Roberto Freire e, interinamente, João Batista de Andrade. Com a
eleição de Bolsonaro, o MinC foi, definitivamente, extinto.

Arte da Resistência 303


Na carona, espantou-nos a polêmica em torno da performance Le Bête,
do artista Wagner Schwartz, na abertura da Mostra Panorama da Arte
Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo; a prisão do artista
Maikon K pela performance DNA de DAN, no Museu Nacional da República,
em Brasília; o cancelamento de um edital público da Agência Nacional do
Cinema, que havia pré-selecionado séries com temática LGBT a serem exi-
bidas nas TVs públicas; o ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella,
que mandou recolher a história em quadrinhos dos Vingadores por causa de
um beijo gay na Bienal do Livro; a suspensão da temporada da peça Abrazo,
inspirada no “livro dos abraços”, do Eduardo Galeano, do grupo Clowns de
Shakespeare, na Caixa Cultural de Recife, cancelada pela instituição ban-
cária logo após a sessão de estreia; as inúmeras tentativas de impedimento
de apresentação da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, com a
atriz travesti Renata Carvalho; a retirada da peça Caranguejo overdrive da
programação do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro,
sem nenhuma explicação; o cancelamento do espetáculo Res Publica 2023,
da Companhia A Motosserra Perfumada, que estrearia em outubro de 2019,
na Funarte em São Paulo, com o argumento de que não reunia qualidade
artística para ocupar o espaço público federal, entre outras.
Como se dá a notar, em cinco anos muita coisa mudou, inclusive para
nós, pois o que era apenas um grupo de pesquisa se transformou num núcleo
com cerca de 70 pessoas pesquisadoras e com seis linhas de investigação
de temáticas que perpassam as questões de gênero, raça, sexualidade e os
imbricamentos dessas com a cultura. Naquela época, quando escrevemos
o primeiro texto para um dossiê da Revista Cult, nosso mote foi pensar as
linhas de filiação que uniam aqueles três grupos e estéticas, o que nesse
tempo se configurou em criações de conceitos e categorias propostos na
linha de pesquisa Artes, gêneros e sexualidades do Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS). Cada qual em seu
tempo, se debruçando – consciente e não – em mostrar como a cena teatral
contemporânea queer poderia se contrapor a uma sociedade que continua
desumana e intolerante com aqueles/as que lhes escapam, com aqueles/
as que resistem às suas normas, os que borram fronteiras, os que são dife-
rentes. Como o queer alimenta a cena contemporânea de enfrentamento?
A discussão sobre o que estamos chamando de artivismo, além de polê-
mica, não chega a ser unanimidade entre artistas que utilizam a arte como
protesto, tão pouco nos meios acadêmicos. André Mesquita (2008), ao falar
sobre a arte de coletivos no Brasil e no exterior, demonstrou como o termo
a(r)tivismo, surgido pela primeira vez em reportagem da Folha de S. Paulo,
em 2003, desagradou alguns coletivos que achavam o termo redutor. De toda
forma, usamos o termo para tratar de artistas que usam a arte de maneira
combativa, com ‘n’ fins políticos. Especificamente, falando do queer, esse

304 Leandro Colling


termo que significa “estranho” em inglês, mas sem tradução literal para o
português, notamos que, no Brasil e na América Latina, ele vai além das
questões de gênero e sexualidade, marcando lutas sociais contra a norma-
tização em geral, em oposição ao fascismo do Estado neoliberal com sua
biopolítica e na ênfase de diversas propostas que têm, em sua base, uma
posição combativa ante a colonialidade, ou seja, aos efeitos permanentes
da colonização, expressos não apenas nas relações de poder estruturais ao
longo desses séculos, mas também no inconsciente capitalístico colonial,
como nos ensina Suely Rolnik (2016).

1. O Teatro Oficina e sua missão deseducadora

Atualizando o texto que escrevemos em 2017, a ideia aqui é sinalizar


como artistas, performances e coletivos têm enfrentado a consolidação da
fascização no Brasil de 2022. No bojo das influências e referências do que
estamos chamando de artivismos das dissidências sexuais e de gênero ou
artivismos queer, identificamos o Teatro Oficina como uma das influên-
cias desse movimento, desde os anos 60 (TROI, 2018). Nessa cartografia
(DELEUZE, GUATTARI, 1997) atualizamos o mapa, os acontecimentos, temá-
ticas e discursos da companhia fundada por Zé Celso e que se transformou
em uma usina de conhecimento e produção coletiva.
Conhecimento e produção totalmente alinhado/a ao sentido anticolonial
ou, como afirma Aníbal Quijano (2005), ao fazer sua crítica da modernidade,
uma luta contra o “cistema-mundo”139, uma matriz de funcionamento do
modus operandi da colonialidade: a família burguesa, a empresa capitalista,
o Estado-nação e o eurocentrismo. Os espetáculos da companhia, a partir de
O rei da vela, de Oswald de Andrade, em 1967, passam a expressar o conflito
com esse cistema que é atualizado e replicado a cada nova montagem.
Na luta anticolonial, o corpo entra como elemento estruturante. Desde
os anos 90, o corpo como instrumento de rebeldia passa a ser central com
dois espetáculos do repertório do Oficina, remontados em 2016 e 2017: As
bacantes, de Eurípedes, rito de celebração Dionísio com atores e público;
e em Para dar o fim no juízo de Deus, de Antonin Artaud, de onde Deleuze e
Guattari (2010) retiraram o conceito de Corpo Sem Órgãos, essa superfície
de registro das máquinas desejantes, ideia central para a compreensão
da proposta da esquizoanálise. Em cena, a materialidade humana: fezes,

Aqui, também subvertemos essa escrita falando em “cistema-mundo” com “c”, em conexão com o pen-
139

samento da transfeminista Viviane Vergueiro (2015), para caracterizar esse cistema normatizador a partir
da cisgeneridade.

Arte da Resistência 305


esperma, sangue, um grande ritual de conexão com a essência maquínica
e seus fluxos.
Em 2018, com a remontagem de O rei da vela, o Oficina denunciou nova-
mente as formações fascistas do país e rememorou a importância da com-
panhia na história do teatro moderno brasileiro. Também estavam presentes
ali, como na primeira montagem, a disrupções e rebeldias do gênero e da
sexualidade através de personagens como Heloísa de Lesbos, Totó Fruta-
do-Conde e Joana, conhecida como João dos Divãs (TROI, 2018, p. 40). Em
2019 e 2020, até antes da pandemia, o Oficina mergulhou na atualização
de Roda viva, de Chico Buarque, outro clássico do repertório da companhia,
que narra a ascensão e queda do mito pela indústria da comunicação. Mais
uma vez, na história brasileira, a companhia se posicionou como oposição a
um governo marcado pela presença de militares.
Com a Covid-19, a falta de financiamento da cultura atingiu novamente
o Oficina. Para sobreviver, o grupo criou campanhas de financiamento cole-
tivo e realizou uma série de atividades online. Em plena pandemia, filmou
Esperando Godot, de Samuel Beckett. Com a chegada das vacinas e a reto-
mada gradual das atividades presenciais, Godot baixou presencialmente no
Teatro Oficina em 2022 em uma temporada que foi de maio a julho. Como
sempre, Zé Celso incorporou na sua encenação todos os problemas do Brasil
contemporâneo. E escreveu o seguinte no programa da peça:

ESPERANDO GODOT NO FIM DO MUNDO:


MINHA TERCEIRA DIREÇÃO DESTA PEÇA DE BECKETT
ONDE DOIS PALHAÇOS MENDIGOS ESPERAM
UMA ENTIDADE SALVADORA, NAS ATUAÇÕES DE
MARCELO DRUMMOND COMO ESTRAGÃO E
ALEXANDRE BORGES COMO WLADMIR (...)
HOJE, ALÉM DAS PESTES QUE ATACAM A
RESPIRAÇÃO HUMANA,
A INESPERADA AMEÇA D’UMA 3a GUERRA
MUNDIAL.
NO BRASIL O DES-PRESIDENTE COLOCA EM
SUA CABEÇA UM COCAR TORTO PRA
REMASTERIZAR SUA IMAGEM, QUE FICOU MAIS
RIDÍCULA AINDA, NA CONTÍNUA INVASÃO DAS
TERRAS DOS POVOS INDÍGENAS, COM O
PRETEXTO DE CIVILIZAR OS ÍNDIOS (TEATRO OFICINA,
2022, p. 9 - maiúsculas do autor)

Em 2000, o Oficina encenou Os sertões, de Euclides da Cunha, projeto


gerado ao longo de duas décadas e finalizado em 2007, com cinco espe-
táculos e cerca de 25 horas de duração. Nesse processo, a ideia de uma
Universidade que pudesse condensar os conhecimentos do grupo ganhou

306 Leandro Colling


força e, em 2011, a companhia abriu inscrições para a primeira turma que
resultou na Macumba antropófaga, espetáculo que tocou nos 11 tabus do
manifesto oswaldiano. A Universidade Antropófaga, processo permanente,
passou a ser o centro de transmissão de saberes, reunião dos conhecimentos
de seis décadas de produção ininterruptas, já que essa missão deseduca-
dora sempre foi um horizonte para o Oficina, problematizando o corpo, pilar
central do processo de colonialidade/modernidade, agenciando uma visão
libertadora do mundo, subvertendo o teatro brasileiro, nos levando a crer que
há outra dimensão da vida pedindo passagem, ante a violência castradora
e colonizadora dos defensores da norma.
Em 2022, a Universidade chegou à sua quinta dentição e criação de
cinco núcleos nos quais são destrinchados todo o conhecimento acu-
mulado da companhia. O projeto foi contemplado pela 37ª Edição do
Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo -
Secretaria Municipal de Cultura. No Instagram, a Companhia anunciou: “[...]
a Universidade Antropófaga atua sobretudo na ligação e contracenação da
multidão com todos os personagens, na cosmopolítica, na vida, nos carna-
vais, nos atos, nos teatros, nas ruas, nos parques…”140. A companhia reforçou
o seu diálogo com as dissidências e a luta urbana na criação do Parque do
Bixiga, terreno ao lado do Oficina, de propriedade do Grupo Sílvio Santos,
onde há um interesse enorme na especulação imobiliária. Desde o final dos
anos 80, uma luta se prolonga para garantir o terreno ao teatro, respeitando
o seu tombamento e fazendo desse terreno um oásis na selva urbana de
São Paulo.

2. Dzi Croquettes, desbunde, purpurina e irreverência

Paralelo a todo esse movimento do Teatro Oficina, só que no Rio de


Janeiro, em 1973, um grupo de homens se organizava e, inspirado no conjunto
norte-americano The cockets e no movimento gay atuante na off-Broadway,
criava o que seria os Dzi Croquettes141, que juntava, num mesmo caldeirão,
o desbunde do Teatro Oficina e muita purpurina e irreverência. Talvez a
história do Dzi Croquettes só começou a ser contada e impulsionada pelo

140
Instagram da Companhia, post disponível em: https://www.instagram.com/p/CbD2WnLvlj9/. Acesso em:
02 ago. 2022.
141
Dzi Croquettes também foi o espetáculo de maior projeção de um grupo teatral brasileiro homônimo que
teve o seu debut em 1972 na cena cultural carioca. Seu sucesso (e a censura) os levou a ocupar palcos também
em São Paulo, Salvador, Lisboa, Paris, Turim e Milão. Seus componentes foram treze e homens – Wagner
Ribeiro, Roberto de Rodrigues, Cláudio Gaya, Reginaldo e Rogério di Poly, Bayard Tonelli, Paulo Bacellar,
Ciro Barcelos, Lennie Dale, Cláudio Tovar, Benedicto Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões – entre 18
e 40 anos quando de sua entrada no grupo.

Arte da Resistência 307


filme-documentário Dzi Croquettes (2009), dos diretores Tatiana Issa e
Raphael Alvarez, seguido do livro de Rosemary Lobert, fruto de sua disser-
tação de mestrado em Antropologia. Mas muito ainda precisa ser dito sobre
o grupo, sobretudo sobre sua potência política de desfamiliarização, “sua
proposta contestadora das categorias sociais vigentes” (LOBERT, 2010, p.
18) e de discussão do próprio teatro desenvolvido no eixo Cristo-Copan pelos
dzis que, além de ser um grupo de estética cênica arrojada, de rompimentos
e mudanças radicais – apesar de silenciado pela historiografia teatral brasi-
leira –, foi responsável por implodir a constituição da masculinidade quando
foram mulheres e bichas em corpos marcados por pelos que questionam um
padrão hegemônico de masculinidade e uma prática sexual “que faz parte
da administração dos corpos e da gestão calculada da vida no âmbito da
biopolítica” (PRECIADO, 2019, p. 12).
Treze homens que ajudaram a dilatar as normas, a flexibilizar os “corpos
dóceis” que, em plena ditadura civil-militar, eram mais do que vigiados e
punidos. Parafraseando as palavras de Zygmunt Bauman (2021), o mundo
contemporâneo está infestado de emoções fluídas que transformam a vida
numa experiência rápida e sem profundidade, portanto, nesse mundo de
corpos permeáveis (THÜRLER, 2011) vivem melhor aqueles/as que “se con-
sideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum deles em particular”.
Os dzis foram assim os primeiros atores de uma transformação considerável
das formas de vida em conjunto que contaminaram uma geração inteira com
seu desbunde e anarquia. O grupo virou estado de espírito, modo de viver,
influenciou a linguagem e o comportamento, quebrou paradigmas e foi queer
quando ainda não sabíamos a dimensão política desse termo.
A existência para os dzi se transformava numa experiência nômade,
em que o importante não era saber quem você era, mas quem você deixou
de ser – e rapidamente deixar de ser novamente –. Com a “força do macho
e a graça da fêmea” enfrentavam as privações e tentavam explicar que “a
vida é um cabaré”, como disse o “pai” da família Dzi Croquettes, o bailarino
Leonardo Laponzina, conhecido por Lennie Dale, em trecho do filme citado.
Em suma, uma política queer “que evitava os enquadramentos clas-
sificatórios usuais ou conhecidos” (LOBERT, 2010, p. 27), identidades em
constante movimento. Quando queremos os classificar numa categoria,
já se transformaram, já estão noutra parte. Essa concepção desconstrói
a visão essencialista observada na sociedade moderna, na qual as identi-
dades são consideradas homogêneas, e adota uma visão mais adequada
à contemporaneidade, em que se fala em flexibilidade, pluralidade, fluxo,
heterogeneidade, atravessamentos, fragmentos, contradições, inacaba-
mentos. E o que está inacabado está sujeito, portanto, a renegociações, das
quais poderiam emergir novas identidades sociais, que fugiriam aos padrões
perpetuados na cultura, como o modelo da masculinidade hegemônica, por

308 Leandro Colling


exemplo. Afinal, se a masculinidade se ensina e se constrói, não há dúvida
de que ela pode mudar.
Mais que a estética teatral, a trajetória dos treze homens ensandecidos
é muito significante à cultura brasileira, pois foram eles quem apontaram
outros itinerários para nossos corpos e desejos, cultivaram outras
subjetivações e deram mais delicadeza aos anos de chumbo com seus
projetos de teatro e de vida, misturados. Ativistas de si mesmos, seus valores
consistiam em “transar suas próprias transas”, “se assumir” e “curtir em
cima” do que viesse. Dito de outro modo, o seu objetivo era transgredir, não
necessariamente no sentido de “desobedecer a”, ainda que essa fosse uma
consequência inevitável, mas no sentido de “passar além de”, esquivando-se
das definições, dos conceitos; transcendendo aos enquadramentos, as
classificações; transitando entre os rótulos somente para ir além deles e
os implodir, desconstruir, desestruturar.
Seu efeito sobre o público era “pirante”, de “fundir a cuca”, um “desbun-
de” . A julgar pelos valores do grupo e pelo impacto sobre os/as especta-
142

dores/as, é seguro assumir que a referida obra teatral não possuía objetivo
definido, pois definir um objetivo e traçar estratégias para atingi-lo per-
tence ao domínio da razão e esse não era um espetáculo racional, antes,
era uma experiência para os sentidos, daí o seu potencial transformador,
transgressor. “Talvez não valha a pena, se é que um dia valeu, comentar os
Dzi Croquettes em nível puramente racional” (TRIGUEIRINHO, 1974, sp, apud
LOBERT, 2010, p. 46). O espetáculo Dzi Croquettes possuía por finalidade o
desenvolvimento do grupo – que passa pelo desenvolvimento de cada com-
ponente; suas falas e atuações tinham referências internas e deixavam os/
as espectadores/as em suspenso, no vazio, num terreno ambíguo no qual
teriam de decidir por si o sentido das piadas e, assim, poderiam experimentar
um sem número de emoções de um espetáculo mutante, ambíguo e caótico
realizada por seus próprios sentidos. Era a oportunidade e o convite de
olhar para si, para suas referências internas, com valores e julgamentos
temporariamente e, na medida do possível, em suspensão. A obra oportu-
nizava a cada sujeito uma visada de si e de suas relações para muito além
de qualquer moral, lição ou sentido sobre o qual a racionalidade pudesse
se debruçar, esmiuçar, reter.
Com o foco nas vivências do grupo, os dzis apresentavam um espetá-
culo que evoluía, como um organismo, sem se fixar, sem se institucionali-
zar, e essa evolução era compartilhada com o público à medida em que se
desdobrava – não se aguardava os seus resultados para sobre eles incidir

Gírias da época do espetáculo e abundantemente utilizada pelos dzis e seus seguidores, os tietes, em
142

entrevistas e depoimentos.

Arte da Resistência 309


o julgamento se bom ou mau, digno ou indigno de ser mostrado, se seria
lucrativo ou não. A experiência seria feita no palco, inaugurando, no cenário
brasileiro, um novo patamar de possibilidade de experiência estética que
embaralhava os papéis e locais definidos; suas verdades, ditas de modo
irônico, duvidoso, jocoso, realçavam e reforçavam a instabilidade do terreno
que sustenta os nossos valores, objetivos, sentidos, conceitos. Sua marca é
o movimento; fazer contato com os dzis era ser movido, mexido. Em outras
palavras, uma das tantas marcas passíveis de ser encontradas nos dzis é
o trânsito e, numa época de rigidez e intolerância, eles criaram um espaço
(público) no qual poderiam ser livres e combateram o contexto da ditadura,
no qual estiveram inseridos, criando novos códigos, renunciando às iden-
tidades já estabelecidas. Nesse espaço – de abertura para alteridade por
excelência –, o ser é livre para metamorfosear-se no não-ser, ou seja, para
tornar-se aquilo que está para além do inteligível, para pensar com Judith
Butler (2000), que só pode emergir de uma situação quando se está presente
e não pode ser antecipado, priorizado nem limitado.
A retomada dos dzis nos dias de hoje resgata, divulga e atualiza o poten-
cial revolucionário desse grupo teatral. Sem qualquer pretensão de repre-
sentar movimentos sociais da época, os Dzi Croquettes falavam de si, de seus
problemas, de suas experiências teatrais e de grupo, de suas relações. Ao
criar um modo possível de falar de si com liberdade, os dzis transgrediram
e desestabilizaram discursos e posições e, mesmo passados mais de 40
anos, continuam sendo porta-vozes da mudança, da inovação, do progresso,
e ecoando seus efeitos em muitos outros grupos espalhados pelo país, como
é o caso, entre outros coletivos, da ATeliê voadOR Teatro, de Salvador, cujo
aspecto primordial das suas montagens tem sido a incorporação de críticas
culturais em sintonia com as dissidências sexuais e de gênero e às móveis
posições para sujeitos que questionam a heteronormatividade.

3. Os entre-lugares da ATeliê VoadOR Teatro: insurgências de


sujeitos e corpos abjetos. Para quê?

Uma profunda configuração de leituras dramáticas da ATeliê voadOR


Teatro143 tem promovido falas confessáveis na dinâmica de encenar jogos
de verdade. A forma de tradução de suas histórias, ao longo de 20 anos, vem
amparada por diálogos com a literatura, acompanhando a experiência em

143
ATeliê VoadOR Companhia de Teatro foi criada em 2002 e é inspirada na peça homônima de Valère
Novarina cujo formato das palavras, inclusive, obteve referência ao espetáculo de estreia, O lustre, de
Antonio Hildebrando. Mais sobre o repertório da ATeliê pode ser consultado em https://www.atelievoador-
teatro.com.br/.

310 Leandro Colling


recortar vidas outsider dentro de uma perspectiva politizada e visualizá-las, a
partir de pontos de vistas autorais que tratam de ambiências estigmatizadas,
em concentrados meios de um submundo real e por significativas essên-
cias para o masculino, o feminino e as subjetividades por outras fecundas
relações que se constroem nos entre-lugares.
Assim tem acontecido as criações da companhia nesses últimos anos,
mas chama atenção a Trilogia sobre o cárcere, na qual a produção de três
espetáculos causa impactos no modo como vozes ecoam “regimes de ver-
dade” rodeados de ações políticas referentes aos paradigmas culturais sobre
afirmação de identidade, igualdade, subalternização, homofobia, transfo-
bia, corpos abjetos. A referência à coleção de eus na trilogia O melhor do
homem (2010), Salmo 91 (2012) e O diário de Genet (2013) tem ao alcance
as imagens que reconduzem reflexos de fantasmas, como entende Roland
Barthes (2008), com os quais marcam o corpo como uma epopeia de des-
tinos cuja compreensão se dá no domínio da palavra, sendo esta a que visa
desestruturar a acepção colonial de gênero fundada na polaridade de sen-
tidos. Podemos dizer que a produção artística da ATeliê voadOR é movida
a testemunhos abertos a olhares críticos para pensar sujeitos, corpos, per-
formances de si.
As personagens da trilogia, como em demais produções – Coral: uma
etno(cena)grafia (2014), O outro lado de todas as coisas (2016), Uma mulher
impossível (2017), Que os outros sejam o normal (2018), Cabaré vibrátil (2019)
– se posicionam em deslocados lugares, tomando o discurso normativo como
cena vital e disponível para empreender críticas às convenções sociais, à
hegemonia das masculinidades, à opressão e aos desejos estabelecidos
que, como presos a uma colagem totalitária e permeada por descrições da
memória coletiva e individual, se manifestam na descontinuidade da lógica
central, por espectros dos saberes recalcados e dos silêncios existentes.
As cenas expressam alertas para discursos que classificam categorias para
sujeitos sexuais e desmascaram tais aparências lineares e de limiar estabili-
dade, colocando em foco a visão do pós-colonial numa inquietação constante
de códigos nutridos pela movência da diferença. Entre as faces sociais e
as formações culturais, as montagens encontram eco na história com seus
argumentos no processo de construção identitária reivindicando lugares de
fala. O domínio da linguagem com o qual atores detém tem propriedades
para anunciar as subjetividades flexíveis e, nas ambivalências, são preten-
didas com a estratégia de corresponder a condição de narrativas pessoais
em seus modos de composição de poder. O traço básico da biografia do
corpo nas peças da ATeliê se mostra em poder revelar a si na divergência,
em poder alertar com a palavra o espaço de vidas incomuns.
Em O diário de Genet, a encenação é atrelada ao espaço intertextual em
que vários recortes da obra de Jean Genet são refletidos, inclusive Diário de

Arte da Resistência 311


um ladrão. É por onde os atores são afetados a partir da desestabilização
de uma tradição autobiográfica do outro, o próprio Genet deslocado em
suas narrativas, emancipando o eu cerzido na instabilidade da confissão do
erotismo e da escatologia, do apreço poético e da afetividade do homem
que rompe com as imposições ao que se diz ser autêntico, ao que é dito
normal, estável, unitário.
Tomado o texto literário como testemunho do movimento contracul-
tural, O diário de Genet é reescrito para a nossa realidade cultural, melhor,
encenado nos improvisos de subjetividades malditas. Assistimos ao diálogo
dos relatos de Genet com a permissão para interpelar as identidades, os
corpos, as sexualidades, a liberdade num universo micropolítico. A realidade
dramática criada por Djalma Thürler, dramaturgo e diretor da ATeliê voadOR
Teatro, revisita assim as significâncias e modos de existir da obra literária
do outro não para mimetizar pura e simplesmente o caráter social e cultu-
ral do hegemônico e do subalterno, mas como forma de ativar a existência
artística pelo pacto e impactos políticos para falar de princípios identitários
fora-de-lugar.
Trata a poética para a dramaturgia na defesa de agenciamentos que
pensam o ser dissidente, sendo esse não visado a buscar um “verdadeiro
eu”, mas dos retratos diferenciáveis, estranhados a uma realidade contida,
inexorável para a categoria de gênero e de identidade fixa. Os gestos e
palavras oriundas do submundo imaginário de Genet e enunciados na impre-
visibilidade de significados da leitura dramática de Thürler acessam lados
avessos do arquivo organizador e central do pensamento. Quer dizer, as
falas postas na assimilação crítica do texto do outro atingem o patamar
de desvelamento e desconstroem a coerência de gênero e de sexualidade.
Ponto de reflexão para o crítico de teatro cubano Norge Espinosa Mendoza
que, ao assistir ao espetáculo O diário de Genet, enalteceu o corpo em cena
como “[...] centro indiscutível, e a relação física entre performers mostra as
outras partes desta biografia”144 (MENDOZA, 2015).
Certamente, as leituras da ATeliê voadOR levam a crer que o corpo
operado no relato de histórias propõe não confundir o trato das posições
heteronormativas, das naturalizadas categorias de gênero, todavia, con-
duzem por transas de reflexos que instigam a pensar o mesmo na conse-
quente abjeção. Para que corpos abjetos? Se a literatura de Genet encara
os trânsitos entre virilidade e delicadeza, sensibilidade e corpos abjetos

Norge Espinosa Mendoza, crítico de teatro em Cuba, assistiu ao espetáculo, que teve grande repercussão
144

em Havana, durante o Festival de Teatro de Cuba, em 2015, onde a peça foi encenada com a presença do
embaixador do Brasil. O diário de Genet foi aplaudido com grande expectativa pela classe artística local.
Encenada pelos atores Duda Woyda e Rafael Medrado, em espetáculos encenados no Brasil, a peça tem
gerado repercussões e críticas louváveis.

312 Leandro Colling


se arriscando como um projeto de resistência, a abjeção está sempre em
choque com o superego e, sobre isso, Julia Kristeva (1980) aponta um certo
“ego” que se uniu ao seu mestre, um superego que pôs o abjeto à margem.
A abjeção não é apenas o que é rejeitado, também, é um potencial de
paradoxo que exercita forças tanto repulsivas quanto atrativas num indi-
víduo, segundo Kristeva (1980). Se o sexo abjeto nos faz sentir repulsa,
também nos atrai, porque o corpo apresenta tudo aquilo que é rejeitado,
sufocado e descartado pelo bem das “regras”. Parece assim que a pessoa
que lê o texto Diário de um ladrão e assiste ao espetáculo O diário de Genet
se envolve e é afetado nas ondas do desequilíbrio do sistema cultural, do
normatizado, do indivíduo corrompido. Sejam elas amparadas por leis, reli-
giões ou moralidades, as cenas incorporam vozes que conduzem ao exercício
de identidades, entre estável e instável. O que difere do que é aceito, o que
questiona e subverte, é assim que Kristeva classifica a abjeção.
Capaz de articular transversalmente a história e a estética por uma
leitura de base qualitativa, fiada na referência teórica e crítica do discurso,
as referências às falas do cotidiano são aliadas à noção de abjeto, são trans-
versalizadas e interseccionadas com o que e como comunica na dissidência
de gênero e sexualidade. A história de pessoas representadas no espetá-
culo autoriza compreender a afirmação da sexualidade com o desafio em
subvertê-la, quando tratam de expressões que significam o não sujeito que
há em todo o sujeito.
É por essa noção que abjeto ganha sentido, no modo como subverte
ordens e normas, afronta o poder-dizer, o poder-ser sujeitos de sexualidades
livres das amarras e das sociabilidades tacanhas. Baseada na contestação
ao “essencialismo” do pensamento ocidental ou na estilização de vidas na
figuração heterossexualidade versus homossexualidade, o que pode dizer
da dissidência da dramaturgia comunga em estado-devir. Desejos, poder e
sujeitos são retomados das histórias em Diário de um ladrão, Nossa Senhora
das Flores, As criadas, para criação de leituras descontínuas na mira de
subjetividades não legitimadas pelo modelo e semelhança da heteronorma-
tividade e também da homonormatividade. Entre o traço básico da biografia
do eu que se mostra ao se revelar, em poder divergir, em poder alertar com
a palavra o espaço de vidas incomuns, as performances da sexualidade
visíveis são pensáveis com as posturas de saberes descolonizados.
A ATeliê voador compreende no rol da crítica cultural a descoloniza-
ção de saberes, melhor poderíamos dizer, o modo de acusar os paradigmas
culturais com a teatralidade dos “dispositivos coletivos de subjetivação”,
para citar Guattari (2000). Assim, percebemos que a companhia produz
consoantes os acúmulos e dispersões de falas, dizíveis e fragmentadas,
na representatividade de arquivo vivo, de sopro de histórias empenhado
em não recuperar o asséptico, mas na percepção de traços, resíduos das

Arte da Resistência 313


tonalidades de subjetivações, cujas cartografias das montagens são perce-
bidas no deslizamento de identidades. Tudo acontece como uma promoção
que aspira a outros pertencimentos para ser sujeito na relação arte e política,
na provocação de “repovoar o mundo com uma série de manifestações que
desapareceram da visibilidade”, como diz Rancière (2005, p. 45). As falas
representadas em O diário de Genet emergem no contra-giro do sistema e
é nada pontual para as pessoas que, consideradas abjetas, se destacam no
fluxo da dissidência, na constituição de ser diverso. Não resguardando a
compulsão retórica da realidade, o sentido apreendido da montagem é de
encontrar a direção para ancorar os referenciais e os meios híbridos para
pensar a autorrepresentação de sujeitos nos desvios do arquivamento e
abertura para vidas outras.
Como em Uma mulher impossível (2017), há uma via, uma saída, quando
procura o tempo da mulher se expressar nos instantes das vertigens do
corpo. No monólogo de cumplicidades, a personagem feminina escreve
cartas para si mesma. Ato revelado no desfecho da trama pois pensava-se
ser um homem que remetia as missivas explicitamente pornográficas. Dos
momentos epifânicos que atingem a personagem, as cenas remetem a ecos
de uma mulher que deseja alçar voos. Como lhe soa estranho e causa sen-
sações, entre perdas da vida real e os ganhos escritos, a sensação de ser
outra a contamina ao sentir gestos escrotos, pornô-eróticus-oral-gráficus,
na procura do tempo para se libertar das amarras de padrões rígidos, de
elos familiares distantes, marido e filhos que não a convence. Por que não
ser puta, por que não gozar como mulher, como não querer e gostar de
realizar a si pelo corpo; por que não atuar fora-de-lugar contaminado por
regras, tabus, conceitos?
Cheiros, imagens, cores, sensações, palavras, a eroticiz(ação) se acen-
tuam entre o exterior e o interior e deixam rastros. Essa mulher bem ao estilo
clariciano abala a receptividade imposta do real e sua entrega se exaspera
avessamente a este. O que podem os escritos e ditos de uma carta enove-
lada por um homem que a ronda e tumultua o seu cotidiano, a família, os
filhos, o marido, os outros, a casa, o sexo, o tesão, o desejo e direito a ser
mulher? A potência do grito vem ironicamente frente aos papeis construídos
e aos desdobramentos polifônicos, entre a sua voz e a do homem que berra
altivamente para possuí-la, “comê-la” para desvendar os seus mistérios e
alicerces da alma.
O texto de Djalma Thürler, indicado ao Prêmio Braskem de melhor dra-
maturgia, brinda as mulheres que devem a si o rigor crítico. Próximo à letra
da canção de Chico Buarque, os escritos se misturam aos versos das que
miram àquelas de Atenas. Por que não serem elas insubmissas, na mirada
de beleza para os homens, na espera longeva dos seus? Em Uma mulher
impossível o paradoxo do real acentua com a possibilidade de fazer presente

314 Leandro Colling


o imaginário feminino se tornando cada vez mais fértil. Um sentido que põe
o real não simulado, jogando na cara do espectador e espectadora o que se
mostra da (im)possibilidade do poder ser a mulher cis, a mulher trans, pois
germina os transbordamentos femininos, os feminismos ditos em discursos
saturados na repressão.
Talvez, o sentido de fora propõe a permissão para a exterioridade pura,
acusada pela linguagem que parte dos paradoxos do limite e da transgres-
são para falar de si, para falarmos de si mesmos por meio do que se põe para
fora, sujeito, poder, corpo e linguagens deixando posicionar por si próprias.
No texto Prefácio à transgressão, Michel Foucault retira da transgressão (na
linguagem) a carga de pura proibição que surgiria por oposição à carga de
pura obediência à norma. Talvez, o ato de ser, tão próximo e tão perto do
público, do sujeito que escreve e do seu estar-sujeito do discurso esteja pró-
ximo ao que se refere ao “limite e à transgressão” (FOUCAULT, 2001, p. 32).
Pensar a dramaturgia da ATeliê voadOR Teatro sob a tônica do discurso
operado no avesso de modos de controle e das formas de resistências passí-
veis aos dias de hoje é remeter a queer art, quer dizer, com a exteriorização
de uma linguagem que mexe com um corpo reposto, reconstruído, reposicio-
nado em tempos e espaços fora da subalternidade. A experiência que conduz
o autor da montagem de O outro lado de todas as coisas (2016) difunde os
biografemas, tal como refletido em Roland Barthes (2008), se integrando à
cartografia do desejo. O biografema, para Barthes, constitui uma abordagem
reflexiva para pensar a escritura de vida possível à criação de poder se dizer,
de querer se viver uma vida. Dentro dessa perspectiva crítica, um biogra-
fema queer pode ser autorizado para as vidas deslocadas, para manifestos
insurgentes sintonizados de geografias precárias e possíveis para con-vi-
ver. Parodiar esse campo de atuação aflorado nos consequentes estilos de
existir por disciplinas é um modo que a Ateliê cartografa os signos da vida,
na eficácia de promover não o conhecimento historiográfico, mas a prática
de voltar-se para as minúcias, para o ínfimo na vida, suas ambiguidades e
intolerâncias.
As montagens da dramaturgia da ATeliê voadOR respondem ao exercício
de personas sobre a crise do sujeito em ato, a forma em que a encenação
produz vozes que recaem sobre a atitude que dramatiza a crise – quer dizer,
bem ao estilo foucaultiano – numa atitude de colocar o sujeito não como
vítima dos atos de si, e sim como ato produtor de efeito crítico e de saber
(SOUZA, p. 2015, p. 46). Significa assim marcar distância e diferença entre
os lugares e fazer perceber os pontos em que a subjetividade é o ato de
encarceramento, colocando os sujeitos a falarem, a produzi-los em cena.
Por outro lado, pode-se dizer que a subjetividade ostentada na dramaturgia
é constantemente interpelada porque, se há sujeito em crise nas montagens
da Ateliê, ele se ex-põe pelas forças discursivas em ação, como estratégia

Arte da Resistência 315


de reconstruir a si, reinventar a si, porque não se trata de sair da crise, mas
de alcançá-la de modo crítico e paródico, poético em que o eu se refunda.

4. Considerações finais

Ao longo do texto apontamos diversas experiências artísticas – do palco


às letras, das letras ao palco – que, de alguma forma, criaram, cada qual em
seu contexto, produtos que tinham como base a crítica ao sistema normativo
e a vocação para estimular as liberdades públicas e o respeito pelos direitos
de todos/as, na contramão do modus operandi fascista que oprimiu o país
durante duas décadas, de 1964 a 1985, e que volta a nos fantasmagorizar
atualmente, quando o governo federal proclama sua admiração pelo período
da ditadura surgida há meio século. A arte não pode se desestabilizar frente
aos ditames conservadores e isso tem sido veementemente possível em
todo decorrer dos tempos, resistir para reexistir.
No bolsonaristão todas as lutas se unem: mulheres trans e cis, pessoas
negras, pessoas com deficiência e toda a comunidade LGBTQIA+ perce-
bem que não há espaço para as diferenças em um governo que tem como
lema “deus, pátria e família”, insígnia histórica dos fascistas que povoaram o
mundo. Diga-se de passagem, elementos imaginativos e formações sociais
que são relativas e totalmente atravessadas pela ideologia e pelas visões de
mundo. Há uma evidente tentativa dos grupos que atingiram a hegemonia
em acabar com as dissidências. Nessa guerra desigual, até a comunidade
LGBTQIA+ passou a ser responsabilizada pela ascensão do fascismo no
Brasil (COLLING, 2022), mas sabemos que ela foi apenas usada para unir o
campo da extrema direita conservadora, sob a alegação mentirosa de que
se planejava uma “ditadura gay” no Brasil ou de que queríamos acabar com
a família. Imaginem, nós, que sempre lutamos para construir famílias e redes
de apoio que nos salvassem da expulsão do lar dos “cidadãos de bem”.
As cenas reais da atualidade não comungam diretamente de todas as
produções artísticas que reatualizamos aqui, elas criticamente são efeitos
dos ecos, discursos, reapresentações, sinalizam o que e como fazemos de
nossas pesquisas, quem somos e por que, onde e para quê.
O NuCuS sinaliza com fluência de atuação epistêmica. Aqui estamos
como em cena, atuando. Atu[ação] que não para e não poderemos parar
quando governos extremados no conservadorismo viram alvo de luta. Por
isso, não desejamos que o impronunciável vá tomar no Cu, porque o Cu é
bem melhor do que a persona que tem um. O cu é para superiores, potentes
e extremamente sensíveis aos outros e novos modos de vida.

316 Leandro Colling


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318 Leandro Colling


As vielas do corpo: cidade,
sexualidade e doenças

Fábio de Sousa Fernandes

Da escrita-performance aos meandros de uma pesquisa


sobre doença e linguagem

Em meados do final da primeira década do século XXI, passei a viven-


ciar intensamente a noite soteropolitana. Me tornei morador da cidade de
Salvador e a experiência como homem guei na quente, sensual e intensa
vida noturna LGBT da cidade me provocava. Naquele cenário pululavam de
intensa criatividade a arte drag, os bares, as boates, os points de pegação
e o entorno de desejo e misticismo atravessados pelos perigos iminentes
que rondam as metrópoles brasileiras. Ano de 2012. Escrever sobre esse
caldo dissonante era um desafio que a poesia da própria vida se impôs como
inspiração e método.
De um lado, o pesquisador que vivencia a Noite (com “N” para dar a ela
um tom de personagem), do outro a arte drag tão fascinante e de explosiva
inventividade. No meio disso, um espetáculo de rua protagonizado por uma
drag queen que se destacava no meio artístico por conta de sua proposta de
personagem. Para dar voz a essa escrita, um narrador inspirado na figura
baudelairiana do flâneur.
Era um texto que se assumia como uma performance, propositadamente
artificial e encenado, e cujo título, “A ALMA ENCANTADORA DO BECO ou
as crônicas de um errante vagabundo145” era uma referência à obra de João
do Rio (2008). Denominei o processo de pesquisa-narrativa, resultado da

145
Dissertação de mestrado defendida em 2014 no Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura
e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia.

Arte da Resistência 319


elaboração de uma escrita-performance representando meu olhar sobre
um espetáculo cultural de rua, protagonizado por uma artista da cidade
de Salvador; nesse texto refleti sobre a noite soteropolitana e os seres que
circulavam naquele espaço urbano, que pintei como uma urbe repleta de
contradições, encantos e riscos. Sua outra faceta era a arte drag/transfor-
mista146. A protagonista desse espetáculo era Valerie O’harah, personagem
que provoca fascínio, mas também estranheza, pois impacta com seu corpo
e performance, subverte noções de estética e destoa de outras drag queens
que buscam incessantemente um modelo de mulher segundo padrões cishe-
teronormativos. Ora uma tigresa, uma iabá, uma pomba-gira, uma diva, uma
rainha africana e muito provavelmente tantas outras amanhã, ela é cama-
leônica. Seu espetáculo impactou espacial, política e subjetivamente: ele
ocorria na rua, mais especificamente no espaço do Beco da OFF, no bairro da
Barra, e o público se tornava integrante fundamental de uma performance
que misturava o humor stand-up e shows de dublagem.
A persona que encarnei como narrador dessa escrita foi o flâneur, uma
amálgama entre o errante, o vadio, o observador e o caminhante urbano,
que se destaca na poética de Charles Baudelaire, na obra de João do Rio,
nos escritos de Walter Benjamin, mas aqui é tingido de outros tons, rit-
mos e cores, tentando se afastar da arrogância e aburguesamento de uma
face dândi. Trata-se de uma bicha latino-americana circulando pela Bahia,
enfim, subversão, deboche e ressignificação da mítica persona dos grandes
centros europeus. Sem perder o olhar poético de um marginal, experencio
intensamente as quentes, perigosas e sedutoras artérias de Salvador e os
seus corpos, perdendo-me pela metrópole, entre ruas, esquinas, becos e os
fluxos e devires dos encontros e possibilidades de uma noite qualquer. Por
um instante, me encanto, contemplo e reflito sobre o espetáculo de Valerie
O’harah, apaixono-me pelo Beco da OFF, embriagado pelo impacto da per-
formance, daquela artéria da cidade e do choque de corpos ali realizados.
Naquele tecido textual eu me montei, fui uma drag: de um narrador, a
experimentar a escrita literária em consonância com uma análise e de um
flâneur que propôs a experimentação da cidade em vez de etnografá-la,
participando do espetáculo e da cidade que narrava. A ideia de escrita-per-
formance se inspirou em meus diálogos com outros muitos pensadores
que romperam os grilhões de uma escritura padrão e possibilitaram outros
caminhos epistemológicos e metodológicos, a destacar: Gilles Deleuze e

146
A dicotomia entre transformista e drag queen, no contexto brasileiro, historicamente se estabeleceu na
distinção entre a primeira ser realizada pelo ator que se metamorfosearia no ideal de mulher estabelecido
pelos códigos do gênero social. A ilusão seria o efeito buscado. A drag queen, no entanto, subverteria essa
intenção de “parecer mulher” apresentando o exagero e a explícita artificialidade. Com o uso cada vez mais
recorrente do termo drag queen, ambas as propostas têm sido situadas nesse termo. Para mais informações,
consultar Benedetti (2005).

320 Leandro Colling


Félix Guattari e sua escrita rizomática e Peggy Phelan com suas perspecti-
vas de escrita performativa e irreprodutibilidade da performance artística.
A tinta metodológica daquela escrita-performance teceu interlocuções
com a noção de escrita rizomática de Deleuze e Guattari (1996), que não
intentava produzir significação, mas cartografar, produzir pela/na linguagem
mapas de regiões que ainda não existem. Diferente de uma raiz, o rizoma
se espalha conectando diferentes modos de codificação, sejam eles nas
esferas biológicas, políticas e econômicas, pois

[...] o rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas,


organizações de poder, ocorrências que remetem às artes,
às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como
um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísti-
cos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitati-
vos: não existe língua em si, nem universalidade da lingua-
gem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de
línguas especiais. Não existe locutor-auditor ideal, como
também não existe comunidade linguística homogênea
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 14).

Uma escrita rizomática pressupõe o deslocamento do signo linguís-


tico, a abertura para múltiplas conexões com fluxos semióticos, materiais
e sociais e a possibilidade de desmontar, reverter e modificar os caminhos
metodológicos traçados: seu movimento é marcado pelo desejo.
Assumir as rasuras, inconstâncias e multiplicidades das rotas traçadas
é compreender que o narrado naquela escrita-performance foi filtrado, mas-
tigado e cuspido por lentes que não almejavam a fidelidade da reprodução.
Deparei-me com um espetáculo e a escrita sobre essa performance não
pretendia reproduzi-la, pois o registro, a documentação e o arquivamento
são tentativas reducionistas de emular por mimetismo a experiência artís-
tica. Dito isso, a

[...] performance honra a ideia de que um número limitado


de pessoas, num determinado e específico contexto espa-
ço-temporal, podem ter uma experiência de valor que não
deixa posteriormente nenhum traço visível da sua ocorrên-
cia. Escrever sobre tal experiência anularia essa ausência do
traço, inaugurada pela promessa performativa. A indepen-
dência da performance em relação à reprodução em massa,
em termos quer tecnológicos, quer econômicos, quer lin-
guísticos, é a sua maior força (PHELAN, 1997, p. 175 e 176).

Arte da Resistência 321


A performance provoca a escrita a encontrar um modo de transformar
palavras e imagens supostamente fidedignas em falas performativas, ao
dizer e construir algo diferente dela, em vez de falas constatativas, que
tencionam reproduzir e descrever o mundo147. Essa/aquela escrita-perfor-
mance é performativa, pois assume que dizer é fazer, e se arroga um exer-
cício de experimentação artística contaminando a pesquisa. Pesquisa que
se afirmou performance: uma escrita que ousou exercitar outros diálogos
interdiscursivos e a sua própria criação, fazimento e composição.
Propus um mergulho metodológico nos verbos fantasiar e imaginar:
no ambiente da ciência moderna, na universidade-fábrica, eles são vistos
com ressalvas. Nessa universidade do conhecimento técnico, a imaginação,
talvez, seja enaltecida como própria da ciência moderna, mas a fantasia será
comparada ao devaneio, à loucura ou ao delírio improdutivo. Afinal, sem
constrangimentos, quem dirá que não é imaginativo ou criativo? Entretanto,
quem poderá assumir que fantasia? Quem assumirá essa loucura? (HISSA,
2013).
Vislumbrei uma análise que compôs uma narrativa em processo, o tecido
de tramas e personagens filtradas, mas, também, vividas e praticadas sob
o olhar, os ouvidos e a pele de um cronista, um pesquisador-narrador, mas
também um performer. Assumir um estilo limítrofe com a narrativa literária
fez do meu texto um projeto político de contestação. É o testemunho do
olhar e da experiência que sobreviveu e ganhou corpo através da palavra
escrita nessa sociedade pós-industrial.
Meu mergulho na cidade, meu encontro com a Valerie O’harah e com o
Beco da OFF foi dividido em atos e cenas, parodiando o roteiro de uma peça
de teatro ou cinema. Durante a narrativa, emergiam flashes (marcados pelo
uso de colchetes) que performavam o espetáculo da Dama do Beco. Naquela
escritura a noção rígida e unidimensional de tempo foi descartada, as nar-
rativas de origem questionadas e toda a trajetória se tornou uma epifania,
não somente nos denominados flashes.
Anos depois, neste momento que aqui vos narro, um fio de memória
acionou um diálogo tecido no texto de 2014 com o escritor Didier Eribon
(2008). Nele, o autor tocava no risco que representava para homens gueis a
ida para a cidade grande, apesar de ali ser o espaço propício para a liberdade
identitária que as pequenas urbes em tese vetavam. Para ele,

[...] a cidade é um mundo de estranhos. O que permite pre-


servar o anonimato e, portanto, a liberdade, no lugar das
pressões sufocantes das redes de entreconhecimento que
caracterizam a vida nas cidades pequenas ou nas aldeias,

147
Peggy Phelan (1997) refere-se aqui à Teoria dos atos de fala, de J.L. Austin (1990).

322 Leandro Colling


onde cada um é conhecido e, portanto, reconhecido por
todos e deve esconder o que é ainda mais porque se afasta
da norma. Mas a cidade é também um mundo social, um
mundo de socialização possível, e ela permite superar a soli-
dão tanto quanto protege o anonimato (ERIBON, 2008, p. 34).

A fuga para a cidade não é somente um percurso geográfico ou um


meio de obter acesso a parceiros em potencial. É também a possibilidade
de redefinir a própria subjetividade e de reinventar identidades, apesar da
urbe também representar o perigo da violência, a solidão, a claustrofobia, o
temor com o risco da transmissão de doenças. A cidade é ao mesmo tempo
o lugar das solidariedades e o da abjeção; fugir para ela é ter que aprender
a viver sob o medo das agressões e dos muitos sistemas marcados pela
hostilidade.
A ideia da cidade como um corpo, com ruas, vielas e becos como artérias
e veias, disformes, dissonantes, mas pulsantes de vida em alguma medida
tangencia a pesquisa sobre identidades, corpo e aids que ora desenvolvo.
Neste texto em que intento o diálogo entre o que escrevi e agora produzo, a
drag queen e a arte drag saem de cena. Outrora, a personagem e a sua per-
formance promoviam disrupções nas possibilidades de vivência do gênero
social e da criação artística. Mas as cortinas se fecham, as luzes se apagam.
O narrador que experenciava a cidade e às vezes confundia seu corpo
com o dela retorna violentamente para si, afetado pela precariedade da
carne, mas principalmente pela força centrípeta de condenação e destrui-
ção de sua existência, seja pela identidade sexual e de gênero ou por seu
status sorológico. Desaparecem os flashes e os devaneios. Nesse escrito, a
tinta do flâneur, o desbravador, dândi e vagabundo das grandes metrópoles,
torna-se a reescrita rebelde de resistência aos estigmas impostos por uma
crise que emerge no âmbito da saúde pública pela disseminação de um vírus
pouco conhecido e confronta revoluções em curso. Essas últimas foram os
levantes por liberdades e direitos sexuais alavancados por minorias sociais
a partir dos anos 60 do século XX, atingidas violentamente pela crise da
aids na década de 80. Ambos os fenômenos ocorreram com maior impacto
nas grandes metrópoles ocidentais. Do fulgor de novas possibilidades de
vivência, usos dos corpos e liberdade de desejos ao inverno das epidemias
de mortes, os estigmas e discriminações calaram vozes e outras não tiveram
outra opção senão o grito148.

Refiro-me aqui à pesquisa de doutoramento em andamento sobre aids, discursos e identidades, realizada
148

no Programa de Pós-Graduação em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa


Discurso e recursos sociossemióticos em uma perspectiva crítica.

Arte da Resistência 323


A experiência do corpo-cidade, a precariedade da carne e a
rebelião pela vida

Minha experiência com a cidade de Salvador foi a de percebê-la ao


tocar seu corpo repleto de membros espalhados e fragmentos diversos
em busca de forma. A partir dessa perspectiva eivada de lirismo, concebi a
cidade como um corpo alterado pelo constante, intenso e às vezes doloroso
contato com uma miríade de outros corpos realizando trajetórias infinitas.
Sua configuração seria marcada pela descontinuidade e ruptura de ritmos
inerentes ao percurso dos que se aventuram nela, afinal

[...] a cidade não se abre para o infinito, ela não desemboca


numa linha de horizonte, numa paisagem desdobrando-se
ao infinito, ela é um espaço finito que torna possível uma
experiência infinita, a começar por aquela da caminhada
que gera a imaginação e a invenção (MONGIN, 2009, p. 77).

Os territórios que ocupamos são (re)elaborados por existências hete-


rogêneas e marcadas pela diversidade de estilos de vida e representação.
As identidades consideradas marginais, os vagabundos, as putas, as bichas,
as sapatonas, as travestis, os sem teto, rompem explicitamente muitas nor-
mas, dilacerando algumas coreografias repetitivas das normatividades e
desviando certos mecanismos dos dispositivos de poder, pois seus corpos e
existências questionam, rasuram os modelos pré-determinados de humani-
dade. Mesmo fragmentados e dispersos, esses sujeitos participam de redes
de sociabilidade em movimentos de desterritorialização em relação aos
códigos performativos, criando outras normas –que podem ser tão perversas
e redutoras quanto as hegemônicas. Porém, para o olhar que reedito agora
essa experiência de choque na cidade precisa ser historicizada.
Deixem-me explicar a bifurcação histórica, contextual e conceitual a
que estou submetendo o/a meu/minha leitor/a: o recorte da pesquisa que
realizei em 2012 tinha como ponto de partida um espetáculo cultural prota-
gonizado pela drag queen Valerie O’harah e acontecia no até então intitulado
Beco da OFF, no bairro da Barra, em Salvador. O narrador, como mencionado
anteriormente, foi a figura literária mítica do flâneur e a pesquisa partia da
proposta de uma escrita-performance. O pano de fundo era a cidade de
Salvador daquele período e a reflexão sobre espaços de sociabilidade entre
pessoas de identidade sexual e de gênero diversas, mas também outras
identidades e vivências marginais. Aqui eu me desloco temporalmente para
as décadas de 80 e 90, período de eclosão e ápice das epidemias de aids
e reflito sobre as subjetividades, a cidade e esses guetos específicos que
foram contundentemente afetados pela aids. Seguindo na linha do tempo,

324 Leandro Colling


aponto que os ecos e cicatrizes das epidemias de aids também constituíram
a cidade de Salvador, os corpos dissidentes e as noções de desejo e arte
que desenhei na pesquisa de dez anos atrás (e ecoam até hoje), mesmo que
não apareçam explicitamente naquele trabalho. O que eu faço aqui é abrir
esse compartimento de compreensão, vestígios e conexões, rascunhos de
bastidores dos perigos que a cidade e a Noite nos apresentam.
A segunda parte do século XX foi marcada pelo aparente arrefecimento
de grandes conflitos, uma proposta de reconstrução do mundo no pós-
-guerra, a partir da égide discursiva da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) e pelo crescimento em moldes industriais das ferramentas
de comunicação de massa e sua capacidade de produção, distribuição e
consumo. No mesmo átimo do pós-guerra, rupturas ocorriam nessas cha-
madas sociedades ocidentais e em seus modos de articulações dos grupos
sociais e das identidades. A partir dos anos 1960, eclodiam movimentos de
contestação às ordens sociais, questionando e expandindo a noção de luta
e identidade via classe para uma defesa da fórmula “o pessoal é político”.
As lutas feministas, antirracistas, pela liberdade sexual e de gênero, além
das críticas e reformulações intelectuais/epistemológicas e pedagógicas
nas academias e os ativismos antimanicomiais, antibelicistas, ambientais e
contra toda e qualquer forma de autoritarismo e totalitarismo (considerando
a pujança das ditaduras militares na América Latina e do colonialismo em
diversos países da África e da Ásia, por exemplo) comporão, mesmo que
precariamente, a caixinha conceitual da contracultura. Para Krüger (2010,
p. 144), é

[...] na dimensão da crítica comportamental, na denúncia


dos mecanismos de poder presentes no cotidiano e na
intimidade, que a contracultura se coloca como expressão
fundamental de crítica à autoridade em seu sentido amplo:
ao paradigma masculino, branco, ocidental, heterossexual.

Os feminismos e os movimentos de diversidade sexual e de gênero


propuseram renúncias às normatividades sexuais, familiares, aos modelos
impostos de gênero e sexualidade e de feminilidade patriarcal. Apesar das
restrições geopolíticas de tais movimentos e embates, muitas vezes cir-
cunscritos aos grandes centros europeus e norte-americanos, em alguma
medida outros países também encetaram suas micro revoluções, o que
caracterizou a esses levantes rompantes de internacionalização. Faz-se
necessário reconhecer as limitações e contradições nas possíveis heran-
ças da contracultura na contemporaneidade, haja vista a reprodução da
crença sobre a efetividade integral de suas pautas, além de sua universali-
dade, ignorando como boa parte do planeta sempre esteve aquém tanto dos
debates quanto de suas conquistas. Desse modo, evita-se cair na cilada da

Arte da Resistência 325


mitificação do referido período histórico ou a defesa da noção de História
como um processo linear.
Revoluções no âmbito das vivências afetivo-sexuais, da liberdade sobre
os usos dos corpos e prazeres, do reconhecimento e humanização de sujei-
tos não heterossexuais e cisgêneros foram na década de 80 do século XX
impactadas pelo efeito e risco que representavam diante de um vírus letal
transmitido principalmente por vias sexuais. A vida e a dignidade, elementos
cruciais para um projeto de sociedade alicerçada nos Direitos Humanos, defi-
nitivamente são precarizadas e restritas em momentos históricos de crise
como as epidemias e pandemias, que extrapolam o âmbito médico-sanitário,
em intersecção com o político, cultural, econômico, o que acentua as desi-
gualdades. Uma rede sociodiscursiva ruidosa e complexa definitivamente
mudou a história humana recente: a aids. No auge dessa crise, vida e digni-
dade se confundem pois, como afirma o escritor, sociólogo e ativista Herbert
Daniel (2018 [1989]), ao escrever sobre sua experiência com a enfermidade,
as pessoas que vivem com HIV/Aids sofrem a destituição de sua cidadania,
como se fosse impetrado um óbito provisório marcado por inúmeras violên-
cias simbólicas e materiais, o que ele denomina de “morte civil”.
Não, a aids não se reduz a um aparato simbólico e ideológico, ela conti-
nua vitimando pessoas ao redor do mundo, principalmente as que não pos-
suem acesso a uma estrutura básica de saúde. Porém, desde o seu estopim,
ela ultrapassou a esfera das repercussões biomédicas e epidemiológicas e
nos atravessou cultural, social e afetivamente. Naturalizamos uma relação
de muita proximidade da aids com os nossos corpos, desejos e prazeres.
Mesmo em sua ausência ela se faz notar nas entranhas de cada subjetividade
afetivo-sexual há quatro décadas, seja na rotina dos exames regulares, no
risco do jovem experimentando o sexo ou através do sujeito que se previne
dela utilizando a PREP. Eduardo Jardim (2019, p. 66) afirma que a aids é uma
história de todos nós, posto que

[...] o drama da aids não se confina em nenhum gueto. Ele


não é condicionado por nenhuma geografia. As perguntas
que a aids suscita dizem respeito a todos os homens e se
refere precisamente a nossa mortalidade. Ao perseguir
uma resposta para elas vislumbra-se a possibilidade de se
reconsiderar o valor da vida.

As manifestações físicas e a noção de proximidade da morte fizeram


com que muitos armários fossem implodidos na fase mais aguda da crise.
Frequentemente, essas confissões produziam uma relação de interdepen-
dência entre a soropositividade e as identidades e práticas sexuais. A soro-
positividade provocaria, em efeito dominó, a confissão da sexualidade, em

326 Leandro Colling


um movimento de exposição obrigatória da verdade sobre si, cuja expressão
máxima estaria na confissão sexual, como refletiu Michel Foucault (1988).
Os relatórios e estudos médicos, biológicos, sociológicos etc. foram produ-
zidos efusivamente e tanto a doença quantos os seus sujeitos eram objetos.
Entretanto, ainda no começo da epidemia de aids proliferaram-se relatos,
depoimentos e uma efusiva produção literária autobiográfica sobre a expe-
riência de viver com aids. As autobiografias e relatos pessoais sobre a expe-
riência com a aids carregariam uma

[...] “verdade” mais profunda, neste processo de desvela-


mento. O sujeito, num movimento de subjetivação, reage às
forças externas “dobrando-se” sobre si mesmo e extrava-
sando seu discurso íntimo como autorresistência ao poder,
que ele identifica externamente. O sentido do discurso não
é a salvação do sujeito, mas, antes, a sua resistência. Na
fissura traçada pela visibilidade e pelo enunciado do dispo-
sitivo da SIDA [aids], o sujeito encontra uma forma de resis-
tência na “dobra” da subjetivação, emitindo um discurso de
contrapoder (CARVALHO, 2010, p. 157).

O modelo de cidade grande e metrópole pode ser o lócus ideal para


aqueles que são empurrados para as margens da existência, isto é, o “vale
da abjeção”. Os corpos dissonantes da cisheteronormatividade sofrem desde
muito cedo a injúria, o insulto contra a inadequação às normas de identidade
sexual e de gênero, um repúdio fortalecido por relações de poder balizadas
através da linguagem. Na prática, ela possui o poder de ferir, causar vergo-
nha profunda e produzir uma consciência que será elemento constitutivo
de corpos e subjetividades, pois é também um enunciado performativo. As
grandes metrópoles e capitais sempre foram consideradas refúgios para
quem é rotulado como um ser abjeto; nelas, estão a possibilidade de acolhi-
mento, a fuga da injúria e da violência vividas em cidades menores ou mesmo
em ambientes familiares. Esses lugares são o símbolo maravilhoso de uma
liberdade que fortalece o mito de uma “Terra Prometida Guei”.
Os laços estabelecidos entre as pessoas não heterossexuais e/ou de
gênero inconforme em guetos, bares, boates, saunas, clubes de sexo etc.
se relacionam com a possibilidade de viver para além de um mundo sufo-
cante e que enseja te enquadrar em modelos de existências, em padrões de
normalidade. O desbunde hedônico desse mundo de música, sensualidade,
sexo, arte e extravagância era a promessa de uma utópica liberdade emba-
lada pelo espaço urbano, pelo contorno de corpos, lisérgicos e experiências
concentradas em ciclos de tempo fugazes. Pílulas de felicidade. Mais do
que isso: ao aproximarem-se, essas pessoas se humanizam, se identificam
e, principalmente, resistem. Novas parentalidades. Com a crise da aids, a

Arte da Resistência 327


parca sensação de segurança proporcionada pelos afetos ali criados se
esvai. Resistir nunca foi fácil: esses lugares sempre foram e ainda são alvos
do asco social, do rótulo da lama, da sujeira, da repressão e das batidas
policiais. No entanto, uma fissura se fez quando irrompeu a aids.
Os corpos marcados pelo exame positivo automaticamente tornaram-
-se monstros, portadores do signo da morte, em uma potente (re)produção
identitária que primava pela abjeção. O elemento sexual de transmissão
do vírus instou o recrudescimento de discursos reacionários e moralistas,
através de campanhas demonizando corpos e práticas significadas como
não heterossexuais. Naquele contexto, no Ocidente, um corpo com HIV era
também o corpo da travesti, da prostituta, da pessoa drogada, pobre, imi-
grante, negra. As autoridades políticas e médicas detinham o monopólio
do conhecimento a respeito da epidemia e os projetos sanitaristas de dife-
rentes governos expuseram seus preconceitos, interesses, bem como sua
inércia diante da situação. Risos, abraços, bebidas, cigarros, beijos. Peles se
tocando, olhares se encontrando. Risco de morte. A cidade passou a vetar
essa micropolítica da afetividade. No entanto, João Silvério Trevisan (2018)
ressalta que, apesar do dano causado às comunidades sexo e gênero diver-
sas, tanto a tese da aids como hecatombe quanto a ideia de que vivíamos um
paraíso de liberdade precisam ser ponderadas, pois os elementos punitivos
de ordem moral, jurídica, religiosa ainda impunham a essas pessoas exclu-
são, culpabilidade, angústia e instabilidade emocional. As ilhas de proteção
proporcionadas pelos guetos tampouco protegiam o indivíduo da sorte de
violências, das físicas às de âmbito afetivo. Para o escritor,

Em tom lamentoso, muita gente pensava que a aids destro-


çou em alguns anos tudo aquilo que os homossexuais leva-
ram décadas para conquistar, seja em espaços geográficos
repressivos, como os guetos, seja em espaços interiores
rarefeitos pela autorrejeição de sua sexualidade. Tal afir-
mação trazia implícita a crença de que a aids funcionara
como um apocalipse e, por outro lado, que antes dela tínha-
mos atingido uma fase de real liberação da sexualidade
por anos de permissividade. Não acredito em nenhuma
das duas coisas. [...] Em tudo, a aids veio criar situações de
fato: se com ela a repressão às práticas homossexuais se
intensificou, na verdade não tem havido mais do que uma
atualização de determinados estados de violência latente,
que passaram a purgar, feito uma ferida madura e exposta.
[...] a aids deflagrou o momento da verdade, doesse a quem
doer (TREVISAN, 2018, p. 424; 426).

Na história das doenças e da própria medicina, a aids é considerada


um “ruído especial, pois vai, num primeiro momento, desorganizar a rede

328 Leandro Colling


de conhecimentos e cuidados médicos, vai desestabilizar o biopoder insti-
tuído para, num segundo momento, provocar um movimento re-organizador
com consequências médicas, sociais e políticas” (CARVALHO, 2010, p. 106).
Inicialmente, por desconhecimento da etiologia da doença se instaura uma
divisão entre “nós” e “outros” a partir de uma lógica de cirurgia social, com
projetos de afastamento e isolamento dos indivíduos pertencentes a gru-
pos de risco. Com a superação desse conceito, o perigo não estaria ligado
diretamente a pessoas, mas a comportamentos de risco, então migramos da
proposta de isolamento para o modelo de vigilância e controle incessante das
práticas, hábitos e usos do corpo. Diante da expressão clínica apresentada, a
atenção médica se concentrou em dois núcleos de ação: a deficiência imuni-
tária e o comportamento sexual. Para o primeiro, as disciplinas laboratoriais,
para o segundo a pesquisa epidemiológica (CARVALHO, 2010).
Engendra-se então uma cartografia social da aids: a partir daí, o mapea-
mento do comportamento sexual dos doentes revela que não apenas homos-
sexuais, mas também heterossexuais e ainda usuários de drogas injetáveis,
doentes que passam por transfusão de sangue, receptores de derivados de
sangue e recém-nascidos seriam vulneráveis. Determinar o estatuto soroló-
gico das pessoas passou a ser uma alternativa, já que os tratamentos eram
pouco eficazes. O que se produziu a partir disso? Nos estudos epidemioló-
gicos de então universalizou-se a promiscuidade como uma característica
dos homossexuais masculinos, ou seja, o chamado paradigma da promis-
cuidade. Também as pessoas que usam drogas encararam uma severa onda
de perseguição e de políticas duras. Obviamente, para ambos os recortes a
classe social é um fator decisivo para uma exposição e maior vulnerabilidade.
A ciência epidemiológica passou a dissecar minuciosamente as vivências
afetivo-sexuais e os estilos de vida das pessoas.
Em uma frente, havia uma corrida nas pesquisas biomédicas e em outra
uma guerra no campo simbólico. Por outro ângulo, o mapeamento dos com-
portamentos sexuais classificou pessoas como vetores do vírus e seus espa-
ços de sociabilidade como campos minados, regiões perigosas e evitáveis.
As grandes cidades e metrópoles estariam repletas de campos minados e
pessoas poluentes. A aids tornou-se a doença metáfora da homossexuali-
dade enquanto metonimicamente o HIV, a aids e as pessoas infectadas pelo
vírus eram indistintas por contiguidade.
Há uma década, apoiei-me na ideia de que flanar é ser livre o suficiente
para seguir caminhos e rotas não determinadas por regras rígidas, mas
sim pelo prazer da liberdade e da descoberta: não somente de espaços
novos, mas principalmente de sensações, prazeres e vivências. O flâneur
personificaria forças transformadoras, questionaria paradigmas e criaria
novas ordens (BERND, 2007). Pensar em uma positiv(ação) da experiência
da vagabundagem beira a impossibilidade, principalmente em um mundo

Arte da Resistência 329


cujos mecanismos de produção e consumo são naturalizados, constituem
e limitam os sujeitos. As pessoas que ousaram flanar nos anos de inverno
da aids foram ainda mais corajosas. Insistir nesse projeto, mesmo diante de
processos de marginalização, pode desestabilizar as pretensas verdades
sobre a existência. Flanar seria se distinguir vagando, errando criativa e
artisticamente. No auge da crise, com o direito básico à vida em suspenso,
muito dessa criatividade e potência das errâncias precisaram ser direcio-
nadas para o embate político.
Os movimentos sociais de diversidade sexual e de gênero haviam insur-
gido no ínterim da segunda metade do século XX com uma organização e
um fulgor inéditos. As pessoas sexo e gênero diversas, independentemente
da adesão a coalizões políticas, viviam a ebulição do período relativo às
revoluções culturais de âmbito identitário, mais especificamente as afeti-
vo-sexuais. As disputas nesse campo sempre envolveram inúmeras, difusas
e complexas pautas que até hoje promovem rupturas nas esferas cultural,
ética, jurídica e afetivo-sexual. A aids, no entanto, exigiu a concentração de
esforços na contenção da quantidade de cadáveres que se acumulavam, ao
mesmo tempo em que recrudesciam discursos reacionários que incidiram
na interdição de direitos, reprodução de violências e retroalimentação de
conflitos sociais em larga escala.
Os movimentos sociais de aids eclodem na emergência de uma crise,
mas em consonância com o zeitgeist alinhado às pautas políticas que ques-
tionam o enquadramento monolítico do proletariado e a égide universal da
luta de classes como paradigmas. A experiência como ponto de partida,
os embates no campo cultural, as motivações de foro pessoal e íntimo,
a pluralização de identidades e a noção da vida como arena de batalha
complexificam as formas de se fazer política. A nova condição sorológica
impunha a essas pessoas através do rótulo do “aidético” o lócus da abjeção.
Diante da iminência do adoecimento, esconder-se não era para muitos uma
opção. Essa confissão, no contexto das soropositividades, rompia o forçoso
armário a que são impelidas as pessoas que vivem com HIV, o que mobilizou
um exercício de contrapoder e até mesmo exigência de participação no
debate público sobre HIV/Aids, inclusive nos âmbitos médico e científico.
Para Larissa Pelúcio (2007, p. 121),

Reconstruir uma imagem de si, repensar a própria traje-


tória, lidar com os medos provocados pela ideia de morte
certa que cercava a AIDS e pelo estigma que marcava a
doença, associando seus portadores a promiscuidade, levou
algumas dessas pessoas a buscarem construir uma nova
“identidade”. Essas encontraram nas ONGs/AIDS o lócus
para essa reconstrução, ou melhor, para a construção da
pessoa soropositiva. A partir da assimilação de um novo

330 Leandro Colling


conjunto de preceitos éticos e morais apreendidos no coti-
diano das ONGs/AIDS, essas pessoas passam a orientar a
visão que tem de si e da própria doença, formando assim
novas subjetividades.

Movidas a partir das demandas por tratamento, prevenção, desestigma-


tização, formalização de direitos, informação e acolhimento, a politização e
a própria experiência subjetiva da aids formam a liga que viabilizou aos ati-
vismos a construção e a rearticulação das identidades políticas soropositivas
em contraponto ao estigma de “aidético”, isto é, sinônimo de “cadáver adiado”
e vetor de morte (PELÚCIO, 2007). Para essas pessoas, não fazia sentido a
utopia como projeto político, pois a urgência foi a base e a impulsão para
os seus ativismos. A aids era naquele momento uma doença do tempo, suas
fases ditavam uma relação com a morte através do operador argumentativo
“ainda”. As estratégias de enfrentamento às epidemias de aids dialogavam
com os mecanismos do “mercado cultural” da globalização e da cultura de
massa em pleno desenvolvimento.
A imagem tornou-se central nessa disputa, seja através de cartazes e
vídeos ou manifestações organizadas como performance. Se a doença e suas
epidemias são marcadas por guerras no campo das simbologias, os movi-
mentos sociais em torno do problema também serão construídos utilizando
essas táticas e as metáforas bélicas serão essenciais nessa disputa pela
vida, mas também por imaginários coletivos. As ações desses grupos em
diversas partes do mundo foram marcadas pela beligerância, uma urgência
por conta da letalidade da aids, além do impacto decisivo que sua pressão
gerou em termos de formulação de políticas públicas e (des)construção em
torno da identidade de quem vive com HIV (PEREIRA; NICHIATA, 2011). Para
Gregg Bordowitz149, escritor, artista visual e ativista que atuou no movimento
social de aids ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power):

Quando as circunstâncias exigem que medidas drásticas


sejam adotadas, os ativistas de mídia independente assu-
mem um papel central. Essa função é dupla: ajudar outros
ativistas a esclarecer suas posições e objetivos e repre-
sentá-las para o mundo. Adotando a agenda dos ativistas
de AIDS, os ativistas de mídia fazem propaganda armada.
Vídeo-ativistas estão em todos os lugares enfrentando os

149
Gregg Bordowitz participou da importante coletânea oitentista sobre aids, arte e ativismo cultural, inti-
tulada AIDS: cultural analysis/cultural activism (1987). Ele é escritor, artista visual e ativista e atualmente
trabalha como professor no departamento de Vídeo, Novas Mídias e Animação na Escola do Instituto de
Arte de Chicago, se autointitulando como vídeo-ativista. Ele construiu, no interior da ACT UP (Aids Coalition
to Unleash Power), uma série de produtos audiovisuais que compuseram a estratégia basilar no ativismo
da organização.

Arte da Resistência 331


mesmos desafios. Devemos questionar as estruturas esta-
belecidas pela mídia. Devemos criar novas maneiras de fazer
e distribuir mídia. Devemos trabalhar em direção a formas
participativas de representação que incorporem as pessoas
ao processo de comunicação. [...] O movimento de AIDS,
como outros movimentos radicais, cria a si mesmo enquanto
tenta se representar. [...] O desafio mais significativo para o
movimento é a construção de coalizões, porque a epidemia
de AIDS gerou uma comunidade de pessoas que não podem
deixar de se reconhecer como uma comunidade e agir como
uma (BORDOWITZ, 1987, p. 184 e 195). (tradução nossa).

Os movimentos sociais de aids utilizaram a performance, as artes visuais


e outros recursos midiáticos como estratégias de visibilização e enfren-
tamento para a crise sem precedentes que aquelas comunidades, princi-
palmente a de homens gueis e pessoas trans atravessavam. A aids como
tragédia não apenas empurrou esses grupos sociais para a cinzenta zona da
abjeção e da morte, mas estabeleceu suas existências como parte do corpo
social e não em uma dimensão paralela. A epidemia de discursos e infor-
mações não disseminou apenas estigma, mas fez com que forçosamente
alianças surgissem, diálogos se estabelecessem e rostos fossem vistos.

Rascunhos de uma nova cidade e o corpo como morada

O exame positivo para HIV tornou-se o passaporte para o mundo da


doença, esse lugar genérico no qual não importa onde começa o vírus e
termina o ser. Entre um e outro, a aids se faz presente discursiva e emocio-
nalmente, mesmo ausente naquele corpo. Não faz mais diferença. Os diag-
nósticos tardios para a soropositividade, por conta de alguma complicação
decorrente da aids, são ainda hoje um desafio essencial a ser superado na
Saúde Pública. Descoberto precocemente, o vírus é eficientemente contido
e perenemente controlado a partir das múltiplas terapias disponíveis, e as
chances de transmissão são nulas. Cria-se, no entanto, para essas pessoas
que vivem com HIV, um estatuto ambíguo: não são nem doentes nem sãos.
Esse entrelugar é alicerçado por uma epidemia de estigmas e significados
solidificados por décadas.
O estado de desorientação subjetiva a que pessoas sexo e gênero
diversas e/ou vivendo com HIV foram submetidas difere-se do “perder-se”
resultante do mergulho no desconhecido e no aguçamento de sentidos que
a experiência do “corpo na cidade” proporcionaria ao errante. No entanto, a
aids enquanto uma experiência de doença coletiva pôde ensejar desterrito-
rializações a partir de uma nova relação com a morte e reterritorializações

332 Leandro Colling


de nossa relação com o tempo e com o espaço. Errâncias definitivamente
coletivas.
Até a metade da década de 1990 os tratamentos ainda eram pouco
eficientes e viver com HIV significava experenciar a morte-própria a partir
de uma relação com o tempo estabelecida a partir de outros parâmetros. A
iminência da morte forçava a uma experimentação intensa com o presente,
haja vista a insegurança quanto ao futuro. A perda desse futuro e a cons-
ciência do uso do presente promovia uma descronologização do tempo, uma
ausência de diferença entre o “ontem”, “hoje” e “amanhã”. Nas narrativas
autobiográficas da época, evidencia-se uma nova relação com a vida, não
em uma espera passiva da morte, mas em um processo de fruição singular
da vida.
O status de cronicidade gerou a expressão “pessoa vivendo com HIV”,
que nos remete à complexa relação dos soropositivos com seu “hóspede”. A
medicação permanente produz cada vez menos efeitos secundários, mas a
medicalização diária enseja uma produção farmacológica de si. Um exemplo
disso é a obsessão das pessoas que vivem com HIV com a quantificação
das células TCD4, que evidencia o estado de imunidade e torna-se um car-
tão de identidade para elas (sua oscilação gera apreensão, desespero ou
tranquilidade). Vida e morte são quantificadas, sintetizadas por números
em um protocolo médico.
Como ressignificar a ideia da convivência com o “hóspede” HIV? A
metáfora de corpo como morada é também significativa para pensarmos
o cuidado com o eu. As doenças produzem efeitos significativos sobre a
consciência no corpo e o HIV, por mais que do ponto de vista médico tenha
alcançado o estatuto de problema crônico, ainda produz subjetivações
danosas que reverberam em adoecimento mental e fisiológico, seguindo
em ciclos de destruição. Corrijo-me, o HIV definitivamente não é o respon-
sável pelo tecido socio-discursivo construído em torno de si. Desse modo,
no espaço-tempo contemporâneo da autoexploração e da autoexposição, “o
corpo-próprio (no sentido fenomenológico) deu lugar ao “corpo-acessório”,
um fardo que temos que carregar, mas que não nos pertence [seria onto-
logicamente distinto e separado do sujeito]. Já não somos um corpo, que é
frágil, que adoece, que envelhece e daí a vontade de o transformarmos e,
mesmo, de o dispensarmos” (CARVALHO, 2010, p. 169).
A cisão entre a pessoa que vive com HIV e seu corpo ocorre na medida
em que esse é manipulado e reduzido a objeto pelas técnicas médicas de
dissecação por exames de sangue, imagem, códigos de doença e quantifi-
cações. Perde-se dignidade na compreensão do corpo como receptáculo.
Ao refletir sobre as errâncias urbanas, destaquei a noção de corporeidade
como uma espécie de entrega do corpo errante ao da cidade, em uma expe-
riência que transgrediria a disciplina sedentária, fixa e métrica do urbanismo:

Arte da Resistência 333


nômades e vagabundos produziriam uma relação afetuosa, sensual, erótica,
intensa e plurisensorial entre o seu corpo e o corpo da urbe, no traçar dos
mapas erráticos. A experiência do trânsito entre a cidade e os corpos que
nela circulam requer prioritariamente a sensibilidade e o reconhecimento
do dano que é considerar o próprio corpo sob uma relação dual e distante
com o eu.

334 Leandro Colling


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atualidade. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

Arte da Resistência 335


O que nos ocorre em
permeio de uma defesa?

Ramon Victor Belmonte Fontes

caixa de entrada

No dia cinco de abril deste ano (2022), já próximo do meio-dia, meu


celular vibrou informando uma notificação de e-mail de Leandro Colling e
no assunto, como um convite daqueles que você titubeia em responder rapi-
damente, lia-se objetivamente: “chamada de textos para o livro do NUCUS”.
A proposta era relativamente simples: revisitar os textos que, em outro
momento, possibilitaram, às mais de trinta pessoas copiadas na mensagem
eletrônica, alcançar títulos de bacharel, mestre ou doutor, ao longo da pro-
fícua trajetória de quinze anos do Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade
(CuS) que, atualmente e de maneira revigorada, atende pelo nome de Núcleo
de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS),
igualmente filiado à Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ao Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC).
Há algum tempo eu vinha pensando em como publicar meu texto dis-
sertativo150, ou melhor, como dar outros encaminhamentos, outras paragens
àquelas linhas que movimentaram muita coisa em mim, desde o dia em
que me pus a tecê-las (e talvez até antes disso...). Ensaiei transformá-la
num texto teatral, desisti. Elucubrei formas de, em fragmentos, construir
performances, colagens, desenhos e pinturas, desisti também. Até levei a
cabo um projeto de livro, desses que vemos muitos colegas acadêmicos faze-
rem pós-defesa de trabalhos, em que a linguagem rebuscada, intelectual,

A dissertação, intitulada Infâncias, violências e sexualidades: uma aventura autobiográfica com Pedro
150

Almodóvar (2016), pode ser acessada no Repositório Institucional da Universidade Federal da Bahia, através
do link: < https://repositorio.ufba.br/handle/ri/27207>. Acesso em: 03 ago. 2022.

Arte da Resistência 337


acadêmica, é suavizada e um tom mais “publicável” é assumido como forma
de fazer a pesquisa virar um livro capaz de circular fora do território acadê-
mico. Desisti, definitivamente, dessa ideia. Todas as outras poderão aconte-
cer, mas essa última não acontecerá... O que foi dito na escrita, quando “em
pesquisa”, é o que pode ser dito, voltar e suavizar é algo que não se pode
fazer, principalmente quando se leva em conta o assunto de que trato: abuso
sexual infantil. Pois bem, o convite para voltar ao texto dissertativo chegou
num momento salutar e após trinta minutos de recebido o e-mail respondi,
animado, mas ao mesmo tempo ansioso: “Eu topo!”.
O ensaio que escrevo, agora, começa a ser escrito numa espécie de
voltejo temporal cinco dias após o convite, num domingo ensolarado na
cidade de Salvador, na Bahia, mas também há quarenta e quatro anos, numa
cidade alemã e, também, há vinte anos, em alguma rua madrilenha ou há
sete anos, em algum lugar da “toponímia da cidade do Salvador”151. Enquanto
estava na plateia do espetáculo Cura, da Cia. de Dança Deborah Colker,
comecei a me dar conta de que o convite para retornar ao texto se materia-
lizava ali mesmo... Quando do primeiro ato da montagem, em que grandes
cortinas de palha performam uma belíssima coreografia para o meu Orixá
de cabeça, Obaluayê, sob uma trilha sonora ó dára composta por Carlinhos
Brown, pus-me a chorar... Naquele momento lembrei da cena inicial do filme
Fale com ela (2002), de Pedro Almodóvar, lembrei do Café Müller (1978), de
Pina Bausch, lembrei da minha dissertação e de que nela eu revisitava ambas
as cenas e uma porção de muitas coisas íntimas e coletivas. Sob lágrimas
e um sorriso dengoso (NUNES, 2016), eu assentia a resposta em àláfíà...

caixa de saída

A gente se autoriza a narrar uma violência sofrida porque, invariavel-


mente, retornamos a ela, ou só após decidirmos retornar a ela a gente produz
um movimento de autorização no intuito de narrá-la? Aparentemente, mas
só aparentemente, essa parece ser uma pergunta retórica, um joguete de
palavras, uma dança aliterada de propriedades discursivas, mas quero come-
çar a desenhar estas linhas tentando desencobrir o que, só na aparência,
mantém as coisas no lugar de sempre: o silêncio irresoluto que espreita as
experiências de abuso sexual infantil.
Na construção de meu ensaio não tenho a intenção de encerrar as pos-
sibilidades reflexivas, mas pretendo burilar, ao menos, dois caminhos que

Uma referência intertextual ao celebrado programa de rádio da década de 1970, narrado pelo historiador
151

Cid Teixeira, em que ele explicava a origem dos nomes dos bairros da cidade de Salvador.

338 Leandro Colling


me ocorrem com bastante evidência na tentativa de responder a questão
inicialmente posta: uma certa obrigação moral da pessoa abusada em pro-
duzir um discurso sobre a violência sofrida, sob o risco dela [a experiência]
manter-se silenciada, pelas engrenagens opressivas que constituem o tecido
social (machismo, racismo, lgbtfobia, etarismo etc.) e um outro caminho que
diz mais respeito às formas como ressignificamos o abuso sexual a partir
da necessidade de falar sobre ele. É bem possível que outros caminhos
porventura existam, mas eu não os esteja percebendo, pois imerso demais
na experiência traumática ou, como diz Carola Saavedra (2021, p. 126): “é
impossível escrever sobre o trauma no meio do trauma”. Nesse sentido, a
escrita parece um meio em parte precário, pois não pode dar conta de tudo,
e em parte potente, pois funciona como suporte capaz de fazer girar ou
desemperrar algo que pairava como silêncio, como dor, como uma bobina
de filme que chega ao final e, travada em sua finita extensão, não pode
transmitir algo de novo.
Diante do ato de escrita, que aqui exatamente pretende revisitar o texto
que me tornou mestre em Cultura e Sociedade, algo retorna sempre como
e a partir de uma experiência topológica, pois parece pedir de mim a elabo-
ração de um espaço, um lugar, um topos, funcionando mais ou menos como
a criação de um ambiente “seguro” onde se possa relatar uma experiência
de violência e, ao mesmo tempo, fazê-la comunicar algo para quem não
a vivenciou ou se a vivenciou que a vivencie, novamente, de uma maneira
mais crítica, mais elaborada, digo, refletida não apenas a partir de uma
intensa e dolorosa carga emocional, traumática... Mas é exatamente no
ato de criação desse espaço, via escrita, que um determinado sentido de
vaziez não cessa de preencher-se. Bem, essa vaziez retroalimentada, pre-
tendo discorrer melhor em seguida, parece encontrar sustentação naquilo
que chamei acima de silêncio irresoluto que paira sobre as experiências de
abuso sexual infantil, seja no seio familiar, seja no tecido social, no ambiente
escolar, nas rodas de sociabilidade infantil ou adulta etc. Não nego que há,
contemporaneamente, uma crescente valorização para a escuta e percepção
de tais violências, inclusive com um certo empenho das instituições sociais
no intuito de coibir tais práticas, mas de forma geral ainda impera um silêncio
sobre elas, como se falar sobre ou admitir que já sofreu, automaticamente
marcasse a vítima e sua rede de convivência a partir de rótulos indesejados,
“impuros”, de caráter culpabilizante, de vergonha.
Quando tento desenhar este espaço, via escrita, intuo, sempre, a ima-
gem de uma Garrafa de Klein (figura 1). [...] O “interior” de uma experiência
de abuso sexual (os atravessamentos identitários e as hierarquias de opres-
são derivadas de tais atravessamentos) não cessa de preencher o vazio
que constitui o “exterior” da compreensão sobre ela (o silêncio pactuado
socialmente). Daí que, na tentativa de desenhar um espaço de escrita, de

Arte da Resistência 339


escuta, de fala, algo sempre vaza, algo sempre vazio porque mobiliza um
conjunto de atravessamentos onde o que está contido é o silêncio, ou melhor,
a experiência do não dizer, do não relatar, do não testemunhar, nesse sentido,
o que está contido é um nada, um “não fale, não pergunte”.

Figura 1. Garrafa de Klein

Num primeiro movimento, mantendo a pergunta inicial como horizonte,


é necessário deixar escrito que estou interessado, aqui e na dissertação,
pela subjetividade da criança que não se encaixa nos padrões normativos
da binariedade de gênero, mais especificamente na experiência do corpo
racializado e afeminado que é abusado sexualmente na infância por homens
cisgêneros. Obviamente que as experiências de abuso sexual são múltiplas
em seus atravessamentos e não é meu objetivo pensar uma tese sobre todas
elas, mas, como dito inicialmente, minha intenção é revisitar os escritos
autobiográficos que teci em minha dissertação e sobre eles refletir detida-
mente acerca dessa particular experiência de “garotos abusados sexual-
mente por homens adultos”. No [movimento de] vislumbre, tal experiência
atravessa nossas vivências violentadas a partir de uma encruzilhada que,
em princípio, parece encerrar-se, no corpo abusado, como mácula, ferida,
escara, culpa, pesar, pecado. Ao corpo violado recai dois dolorosos pesos:
o abuso em si e a impossibilidade de falar sobre ele, pois ao menor sinal de
insubmissão o abusador ou pacto de mudez, compartilhado socialmente
sobre a experiência, não hesitarão em re-violentar o corpo infantil: “Você
vai acreditar numa criança?”; “Crianças adoram criar fantasias!”; “Mas ele
jamais faria uma coisa dessas, ainda mais com seu menino! Ele gosta tanto
de seu menino!”; “Não fale um negócio desses, menino! Ele é gente boa!”;
“Peça desculpa a ele, menino! Que maluquice é essa que você está falando,
menino?”; “Se ficar criando histórias assim você vai apanhar!” [...].

340 Leandro Colling


Nesse caso há uma balança que inflaciona a pedregosa violência sofrida
por tais vidas, enquanto socialmente paira um silêncio que só beneficia o
anonimato ou a zona de conforto do abusador. Bem, aqui, a pergunta inicial
parece voltar com toda sua carga semântica, pois inquire sempre-já o corpo
abusado como único capaz de tentar mover a desigualdade da balança:
decido falar e assumir o ônus de violado ou ecoo o silêncio confortável do
violador hiperbolizando em meu corpo e subjetividade o peso do silêncio
(adoecendo psiquicamente, assumindo comportamentos de auto-ódio etc.)?
Não há solução diplomática diante da violência.
Num segundo movimento, ainda perscrutando a pergunta, é impossível
seguir adiante sem o ato de elaborar, minimamente, aquilo que nos ocorre.
Contardo Calligaris (2015), numa de suas saudosas colunas semanais no
jornal Folha de S. Paulo, nos contava que “para valer a pena uma vida precisa
ser examinada (entenda-se: não examinada pelos outros, que a julgariam,
mas pelo próprio indivíduo, que se interrogaria sobre ela, que tentaria con-
tá-la para ele mesmo)”. Nesse sentido, se não há solução diplomática diante
da violência, como examinar-se sem necessariamente reproduzir o regime
violento que a autoriza? (HARTMAN, 2021a; 2021b) Como não paralisar ante
um arquivo traumático? Como não sucumbir ante a memória assolada por
violações? Bartolomeu Campos de Queirós (2017, p. 60), que epigrafa a
dissertação com um trecho de sua prosa poética Vermelho Amargo, nos
sussurra a seguinte possibilidade: “A memória suporta o passado por rein-
ventá-lo incansavelmente. Tento espantar o presente balbuciando uma nova
palavra”.
Dia desses, enquanto encerrávamos um semestre letivo, num compo-
nente curricular que ministrava sobre processos artísticos e arte contempo-
rânea, um dos estudantes, despretensiosamente enquanto apresentava sua
produção final, inquiriu a turma com a seguinte pergunta: “se o capitalismo
financeirizado toma tudo de nós, como é que ele nunca pode tomar a voz?”.
Enquanto retorno ao texto dissertativo e escrevo este ensaio fico pensando
que há sempre essa vontade de dizer, essa vontade de falar sobre uma vio-
lência que lhe atravessa, que lhe constitui, ainda que de forma dolorosa. À
atividade de reinventar incansavelmente o passado e balbuciar novas pala-
vras para banzar o presente, pensando especificamente a experiência de
ser violado na infância, resta o encontro indelével com esse movimento que
vem das entranhas e explode como matéria fônica, matéria sonora, potência
cinética dos torus vocais: um grito. No encontro com o vazio traumático,
com as engrenagens opressivas do pacto de silêncio e com a violência: o
movimento.
Jota Mombaça (2016, p. 14) nos lembra que uma atitude de cinesia (kine-
sis) é necessária para que

Arte da Resistência 341


acreditemos na nossa capacidade de autodefesa e, a partir
disso, mudemos nossa postura perante o mundo. É funda-
mental que abandonemos a posição de vítimas - mesmo
quando o Estado, a polícia, o branco e o homem cis têm
historicamente demonstrado a sua incapacidade de aban-
donar a posição de agressor. Não há saída senão aceitar de
uma vez por todas que fomos inscritas numa guerra aberta
contra nossa existência e que a única forma de sobreviver
a ela é lutar ativamente pela vida.

A matéria fônica, que não se resume à vocalização, grita a partir do


movimento, vazando, fugindo da captura, recusando-se à colonização. É
a resistência do objeto, em Fred Moten (2020), a prática ética das escre-
vivências em Conceição Evaristo (2017), a cosmopoética das oralituras e
afrografias em Leda Maria Martins (2021): algo é movido, nada fica parado.
Diante das impossibilidades orquestradas pelo tecido social e o pacto de
mudez sobre o abuso sexual na infância, o corpo violado, em movimento,
ritualiza o grito... Daí que se põe a balbuciar novas palavras recusando a
captura, recusando a inércia. Na proteção de sua recusa (MOMBAÇA, 2016) o
corpo violado se põe a explorar as “fronteiras não colonizadas, as ‘terras de
ninguém’ que se fazem ouvir como dissonância, discordância, ruído, desvio:
diáspora nos interstícios” (LAMBERT, 2012, p. 190).
A escrita, como heteroropia (FOUCAULT, 2013), como um dos “espaços
em que se pode dar a vivência da arte, do som e da música, com toda sua
potência de criação de novos possíveis” (LAMBERT, op. cit., loc. cit.) forjou, lá
nos idos de dois mil e quinze (quando teci as primeiras linhas da dissertação)
um movimento tal que não se articulava como uma fala organizada, mas sim
como um repertório corporal ancestre, uma coreografia cosmopoética que
reelaborava o inapreensível da experiência traumática, rearticulando-a, de
maneira impossível (porque imensurável), em palavras novas... Só consegui
nomear essa coreografia ancestre ano passado, em dois mil e vinte e um,
quando aprendi que no candomblé, do qual sou um iniciado devotíssimo, há
um toque sagrado para Obaluayê chamado Opanijé e nele o orixá baila lenta
e silenciosamente, rascunhando em duplicidade, as múltiplas direções e
sentidos de se habitar o tempo: direita, esquerda, cima, baixo, dentro, fora,
vida, morte, saúde, doença, movimento, inércia, gritaria, silêncio...
Leda Maria Martins conta que numa das línguas Banto do Congo, o
kicongo, o verbo tanga pode designar tanto o ato de escrever quanto o ato
de dançar, ao mesmo tempo em que dessa raiz deriva o substantivo ntangu,
uma das designações do tempo, “uma correlação plurissignificativa”, em
suas palavras. Ora, ritualizar o grito, escrever para vazar o silêncio, fugir à
captura, constitui-se, então, numa “gramática rítmica, onde os movimentos
são de avanços e recuos, progressão e retroação, expansão e condensação,

342 Leandro Colling


numa contração e dilatação temporais simultâneas que escandem as espa-
cialidades também como giras desenhadas, coreografas, cartografadas”
(MARTINS, 2021, p. 81). Isso responde a pergunta que propus no início do
ensaio? Talvez não e acredito mesmo que ela nem tenha como ser objeti-
vamente respondida, como muitos dos conflitos que a gente vai criando
ao longo de nossa existência a fim forma de dar sentido à nossa peque-
nez diante do cosmo... Mas gostaria de deixar escrito, nesse movimento
de retornar a um texto escrito há sete anos, que escrever me ajudou a não
paralisar. Talvez isso funcione pra ti com a dança ou com o cinema, vai saber
(risos). “Dance, dance, senão estamos perdidas/es/os!”, dizia Pina Bausch
(LORITI, 2016).

plantas, desenhos, possíveis

• nota 19 de Carola – Ailton Krenak responde à pergunta sobre a exis-


tência de uma literatura indígena da seguinte forma: “Eu acredito que há
uma literatura que emerge de cada cosmovisão”. E ao falar do caráter oral da
literatura dos povos indígenas, ele lança mão da sua retórica sempre poética
e transformadora: “Ela não tem caligrafia, ela tem coreografia, ela dança”.

• pq eu trabalhei com imagens/cinema? pq pedro almodóvar? pq a


europa? – há aqui uma ressonância com os argumentos da plantação cog-
nitiva [jota mombaça] desde o território europeu... recorrer às imagens de
lá, parece-me, hoje, uma tentativa de já elaborar essa fratura da fala, que
retorna como recalque/foraclusão [cabe aqui?].

• as imagens retor[n]am (retoram) – há potência nessa palavra (torar,


toré, toró [chuvarada, gozo], tourada, toro [topologia/matemática]) –expandir
num texto mais poético!

• hoje, talvez, não escreveria a dissertação daquela forma, pois há ali,


apesar de um movimento de retorar, um aprisionamento/cativamento do
corpo da pessoa autora com esse corpo abusador que reencena-se via pala-
vra... penso hoje: deveria ter narrado o abuso sem referenciá-lo [como fazer
isso?], pois assim ele estaria perdido no arquivo como um corpo “jamais”
escrito e por isso mesmo valorado como __________ (uma palavra que em
prestasse um sentido de nulidade, de desimportância ou que ecoa justa-
mente esse silêncio que critico, como se materializasse-o, mesmo na nuli-
dade) → ao nomeá-lo, mesmo que atravessado pelas linhas da violência, eu
dou valor à figura dele, dou importância à sua presença. [é um argumento

Arte da Resistência 343


bom, mas não tenho energia para investir nele agora, penso que ele pode
dialogar muito bem com os argumentos de Saidiya Hartman – o abusador
pode ser lido como uma vida desimportante? #polêmica {voltar a isso em
alguns anos}].

• recordar, repetir e elaborar (1914) [ver esse texto de Freud e tentar


dialogar com algo dali pq na dissertação eu dei bastante importância ao
discurso psicanalítico].

• vídeos de fábio belo falando sobre o conceito de perlaboração – “a


gente produz sintoma pq a gente não se lembra” (falando sobre o texto de
Freud); “tomar o sintoma como inimigo é não deixar que...” 8’50” parte 4/8
fabio belo; “elaborar/perlaborar” - trabalho através (tradução do alemão) -
diálogo com o toro, atravessamento, topologia - tem algo com uma relação
direta com o tempo, com a paciência, com a prudência (parte 8/8 [rever]); “é
preciso fazer com que o afeto estrangulado volte a circular” 7’30”.

344 Leandro Colling


lista de contatos

CALLIGARIS, Contardo. Sócrates e eu. Folha de S. Paulo [online], São Paulo, 30 jul. 2015.
Colunas. Disponível em: http://goo.gl/ECf2a8 - Acesso em: 02 ago. 2022.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. Ed. Rio de Janeiro:
Malê, 2017
FALE COM ELA (Hable com ella). Escrita e direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustín
Almodóvar. Espanha: El Deseo, 2002. 1 DVD
FONTES, Ramon. Infâncias, violências e sexualidades: uma aventura autobiográfica com Pedro
Almodóvar. 2016. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade), Universidade Federal da
Bahia, 2016.
FOUCAULT, Michel. As heterotopias. In: FOUCAULT, Michel. O Corpo utópico / As heterotopias.
São Paulo: n-1 Edições, 2013.
HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2021a
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z; ARIAS,
André (Orgs.). Pensamento radical negro. São Paulo: Crocodilo; São Paulo: N-1 Edições, 2021b
LAMBERT, Leandra. O terceiro som e a diáspora nos interstícios. Caderno de comunicações:
Seminário vômito e não: práticas antropoêmicas na arte e na cultura. Rio de Janeiro: Azougue,
2012, p. 184-190.
LORITI, Maria. Pina Bausch Cafe Müller. YouTube. 27 fevereiro de 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WZd2SkydIXA - Acesso em: 03 ago. 2022.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de
Janeiro: Editora Cobogó, 2021.
MOMBAÇA, Jota. Protect your refusal: exhaustion and unproductivity. In: Urbânia 6: Public as
Mutual; organizado por Graziela Kunsch. Oslo: Pressa and osloBIENNALE, 2021.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violên-
cia! Oficina de imaginação política, 13 de dezembro de 2016. Disponível em:https://issuu.com/
amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_v - Acesso em: 03 de Ago. de 2022.
MOTEN, Fred. A resistência do objeto: o grito de Tia Hester. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 1, p.
14-43, 2020. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27542 -
Acesso em: 3 ago. 2022.
NUNES, Davi. A palavra não é amor, é dengo. Duque dos Banzos. Salvador, 09 de nov. 2016.
Disponível em: < https://ungareia.wordpress.com/2016/11/09/a-palavra-nao-e-amor-e-
dengo/>. Acesso em: 01 ago. 2022.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho amargo. São Paulo: Global, 2017.
SAAVEDRA, Carola. O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte:
Relicário, 2021.

Arte da Resistência 345


Sobre os/as autores/as

Christian Gustavo de Sousa Aka - Chris, The Red - mestrando em Poéticas Visuais,
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integrante NuCuS (linha de pesquisa
em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: thered@thered.com.br

Daniel dos Santos - doutor em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero


e Feminismo, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pes-
quisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da
Universidade do Estado da Bahia (AfroUneb). E-mail: imperadormacu@gmail.com

Deyse Carla Souza Santos Andrade - mestranda no Programa Multidisciplinar


de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, e
integrante do NuCuS (linha de pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail:
deysecss@gmail.com

Djalma Thürler - doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense, pro-


fessor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura
e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, pesquisador do NuCuS (linha de
pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades) e diretor da ATeliê voadOR Teatro.
E-mail: djalmathurler@uol.com.br

Eduardo Rocha Lima - doutor em urbanismo pela Universidade Federal da Bahia,


professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA e coordenador da
linha de pesquisa Corpos, cidades e territorialidades dissidentes, do NuCuS. E-mail:
dudarl@hotmail.com

Fábio de Sousa Fernandes - doutorando em Linguística pela Universidade de Brasília


(UNB) e professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: fabio.fernan-
des@ufob.edu.br

Helder Thiago Maia - doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal


Fluminense, professor colaborador da Universidade de São Paulo e integrante do
NuCuS. E-mail: helderthiagomaia@gmail.com

Jorge Caê Rodrigues - doutor em Letras/Literatura comparada pela Universidade


Federal Fluminense, professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Rio de Janeiro e integrante do NuCuS (linha de pesquisa em Artes,
gêneros e sexualidades). E-mail: caeorama@gmail.com

Julia Péret - mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura


e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, e integrante do NuCuS (linha de
pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: julia.peret@ufba.br

Leandro Colling - doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela


Universidade Federal da Bahia, professor permanente do Programa Multidisciplinar
de Pós-graduação em Cultura e Sociedade e integrante do NuCuS (linha de pesquisa
em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: leandro.colling@gmail.com

Arte da Resistência 347


Leandro Stoffels - mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense,
doutorando em Estudos Íbero-Latino-Americanos pela Universidade do Texas em
Austin (UT-Austin) e integrante do NuCuS (linha de pesquisa em Artes, gêneros e
sexualidades). E-mail: leostoffels@gmail.com

Marcelo de Troi - doutor pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em


Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, integrante do NuCuS (linha
de pesquisa Corpos, cidades e territorialidades dissidentes) e analista de informação
no Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana. E-mail: troimarcelo@
gmail.com

Mayana Rocha Soares - doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal


da Bahia, professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia e integrante do
NuCuS (linha de pesquisa Lesbianidades, interseccionalidades e feminismos). E-mail:
mayana.soares@ufob.edu.br

Olinson Coutinho Miranda - doutorando no Programa Multidisciplinar de Pós-


Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, professor
do Instituto Federal Baiano, campus Governador Mangabeira, e integrante do NuCuS
(linha de pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: olinsoncoutinho@
gmail.com

Paulo César Garcia - doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa


Catarina, professor da Universidade do Estado da Bahia e integrante do NuCuS
(linha de pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: pgarcia@uneb.br

Ramon Victor Belmonte Fontes - doutorando em Literatura e Cultura, da


Universidade Federal da Bahia, professor substituto no Bacharelado Interdisciplinar
em Artes (IHAC/UFBA). Coordenador da linha de pesquisa Artes, gêneros e sexua-
lidades, do NuCuS. E-mail: ramon_fontes@hotmail.com.br

Roney Gusmão - doutor em Memória pela Universidade Estadual do Sudoeste da


Bahia, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e integrante do
NuCuS (linha de pesquisa Corpos, cidades e territorialidades dissidentes). E-mail:
guzmao@hotmail.com

Sandro Costa Correia - mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em


Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, e integrante do NuCuS (linha
de pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail: sandroccba@hotmail.com

Samuel Macêdo do Nascimento - doutorando no Programa de Pós-Graduação


em Comunicação, da Universidade Federal do Ceará, integrante do Laboratório
de Estudos e Experimentações em Artes e Audiovisual (LEEA), da UFC. E-mail:
samuelkariri@gmail.com

Walisson Angélico de Araújo - mestrando no Programa de Pós-Graduação em


Comunicação e Cultura Contemporâneas, da Universidade Federal da Bahia, e
integrante NuCuS (linha de pesquisa em Artes, gêneros e sexualidades). E-mail:
walissonangelico@gmail.com

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