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A VOLTA DO MANTO TUPINAMBÁ: COMO INDÍGENAS DA BAHIA

RETOMARAM PEÇA SAGRADA QUE SÓ ERA VISTA NA EUROPA

Cristiane Capuchinho, RFI Brasil, 14 de outubro de 2021

Quando viram pela primeira vez um manto tupinambá, por trás de uma
vitrine da exposição que comemorava os 500 anos do Brasil, Dona Nivalda e
Seu Aloísio choraram. “Toda história do nosso povo está aqui”, disse a líder
indígena na ocasião. O manto de penas vermelhas do século 17 exposto era
um dos raros exemplares desse objeto histórico e ritual tão importante para
comunidades da costa brasileira, todos conservados em museus da Europa.
Naquele ano de 2000, os Tupinambás de Olivença, apesar de viverem
no sul da Bahia desde tempos imemoriais, não eram reconhecidos como
indígenas pelo Estado brasileiro. A comunidade, de cerca de 5 mil pessoas, só
foi reconhecida oficialmente pela Funai em 2001.
O episódio da visita à peça marca a intensificação de um ciclo de luta
pelo território e de valorização da cultura tradicional, que culmina agora na
confecção de um manto de 1,2 metro e mais de 3 mil penas pela artista e
liderança indígena Glicéria Tupinambá.
Nivalda e Aloísio já não estão nesta terra, mas o manto voltou para a
aldeia da Serra do Padeiro.
O novo manto não tem o vermelho exuberante das penas de guará, ave
que não se encontra no território Tupinambá de Olivença. Sua cor
predominante é o marrom, das plumas de aves da comunidade e da terra que
defendem – o grupo luta pela conclusão da demarcação de sua terra indígena,
alvo de ataques armados e invasões.

‘Tudo a seu tempo’


O percurso foi longo para reunir os saberes necessários para a
confecção da peça sem nunca ter visto um manto presencialmente, conta
Glicéria. A primeira tentativa de fazer um manto foi em 2006. A ideia era recriar
a peça a partir de uma foto para a principal festa da comunidade, comemorada
em janeiro.
“Painho [o pajé da comunidade] me explicou como era a paleta, como era o
algodão, como era isso e aquilo. Mas eu ainda não sabia quais eram as
medidas, como era a malha. Sabia que dava para fazer uma capa, com o ponto
que tínhamos na aldeia”, explica a artista.
A peça realizada foi usada em rituais da comunidade. “Na festa, eu pedi
para o Encantado [entidade tupinambá] me guiar para conseguir resgatar cada
vez mais a nossa cultura, e ele me disse: ‘Calma, tudo a seu tempo’. Na hora
eu não entendi”, conta a líder indígena. “Agora eu sei que o manto não é só
fazer o manto, aplicar as penas, é fazer todo um percurso”, explica Glicéria.
Esse primeiro exemplar foi cedido para a exposição "Os Primeiros
Brasileiros" e passou a integrar o acervo de etnologia do Museu Nacional. A
indumentária poderia ter uma vez mais desaparecido, queimada no incêndio
que destruiu o prédio do museu em 2018. O manto se salvou, estava naquele
momento exposto em Brasília. "Para você ver como o manto é poderoso."
Joias das coleções europeias
Nessa trajetória de 15 anos, o encontro da artista com um manto
tupinambá do século 16 foi fundamental. Em 2018, Glicéria foi convidada para
dar uma palestra em Paris. Durante a viagem, ela pôde visitar um manto
guardado a sete chaves na reserva técnica do museu do Quai Branly.
“O manto estava me esperando, e eu vou lá para ver as penas, fazer a
análise da malha, entender o manto. Vi as posições e o caimento das penas, o
ponto da malha, que era como o de jereré [instrumento de pesca tradicional]
que fazemos aqui. A gente ficou quase uma hora com o manto e eu tentei
memorizar tudo o que ele tinha ali”, relembra.
A majestosa peça plumária é considerada uma joia nas coleções
europeias etnográficas. O objeto visto por Glicéria não está em exposição. A
peça de 1555, a mais velha da coleção etnográfica do museu francês, é
considerada frágil demais.
Como este, há cerca de uma dezena de mantos tupinambás dos séculos
16 e 17 conservados em museus na Europa – na Bélgica, Itália, Suíça e
Dinamarca. São remanescentes de uma intensa interação cultural e comercial
entre europeus e indígenas durante o período da colonização, explica a
pesquisadora de antropologia histórica Mariana Françozo, professora da
Universidade de Leiden, na Holanda.
“Já a partir do século 16, a gente vê nas fontes escritas, mas também
nas pinturas feitas por europeus, um interesse muito grande em tudo aquilo
que as Américas tinham e os europeus não conheciam. Essa curiosidade vem
obviamente ligada a interesses comerciais e com base em uma relação não
igualitária”, sublinha.
Françozo estudou a coleção formada por Maurício de Nassau, que
governou a colônia holandesa em Pernambuco, e diz que os mantos eram
muito valorizados como símbolos do Novo Mundo e entraram em uso na
Europa.
“No caso da Holanda, temos registros de pelo menos duas vezes em
que mantos de penas vindos do Brasil – se eram tupinambás, não sabemos –,
que foram usados em festas da nobreza”, detalha a antropóloga.
Assim como os mantos, há milhares de artefatos indígenas brasileiros
dentro dos acervos de museus pelo mundo, especialmente na Europa, sem
que haja uma catalogação devida. Muitas dessas peças são artefatos únicos,
que mesmo as comunidades que as produziram não têm mais.
“Temos atualmente uma aliança entre povos indígenas e pesquisadores
para tentar descobrir quantos são, o que é que está e onde está. E, a grande
questão, é o que fazer com essas peças, a quem elas pertencem”, assinala
Françozo.
O resgate deste conhecimento sobre essas peças tem sido objeto de
estudos recentes, mas ainda há muito o que fazer na área.
A antropóloga Nathalie Le Bouler Pavelic, que pesquisa os Tupinambás
de Olivença, destaca que nos museus esses artefatos muitas vezes ainda são
vistos como vestígios do passado, sem relação com um povo que ainda existe.
“Não é porque é um artefato nos museus que não é uma peça do
cotidiano dos povos e que tenha uma importância muito grande para eles em
alguma área, ou religiosa ou do dia a dia. Daí a importância dos museus de
trabalharem junto com os povos indígenas e saber como é que aquilo vive
atualmente dentro das aldeias”, defende.

A retomada da tecnologia
A visita ao manto do século 16 serviu de base para que Glicéria
confeccionasse uma nova peça. Um manto vivo, nas palavras da líder
indígena, tecido com algodão encerado pela cera das abelhas tiúba e penas de
aves da comunidade, entre elas o gavião, o canário-da-mata e o tururim.
“A gente lutou pela revitalização do meio ambiente, da mata, pela volta
dos animais. A gente tem uma recuperação muito forte do nosso território. E o
manto só passa a existir porque existe um equilíbrio na natureza do território da
Serra do Padeiro”, afirma.
“Faltava o manto, e ele chega neste momento, quando o Brasil está em
uma crise daquelas terríveis, onde tudo é contra os povos indígenas, tudo é
contra a demarcação das terras indígenas. Ele vem quando é preciso ele
existir.”
O manto ritual está na aldeia e foi vestido pelo cacique Babau durante a
cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade
do Estado da Bahia em junho deste ano.
Pergunto à líder indígena se ela gostaria de reaver as peças que estão
nos museus europeus. Ela rejeita a proposta e diz que receber o manto de
volta seria perdoar os crimes cometidos contra seu povo.
“Para nós de Serra do Padeiro, o manto lá é como uma condenação
para os europeus, a pena deles é cuidar dos vestígios do povo tupinambá. Mas
queremos que eles abram espaço para receber os povos indígenas, para que
possamos também ter contato com as pegadas do nosso povo”, conclui.
Com a retomada da técnica de produção, Glicéria teceu um segundo
manto, atualmente em exposição. O manto ritual pode ser visitado na Funarte
Brasília, na mostra “Essa é a grande volta do manto tupinambá”, ao lado de
obras de Edimilson de Almeida Pereira, Fernanda Liberti e Gustavo Caboco.

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