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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

CURSO DE ARTES VISUAIS

Gabriele Bonifácio Brasil


A ARTE DE MÃE DETINHA DE XANGÔ

Porto Alegre

2022
A partir do vídeo recomendado pela professora Bianca Knaak sobre a exposição “Raio que o parta”,
acerca dos desdobramentos do modernismo no Brasil e, que percorreu vários temas sobre
historiografia da arte dos povos originários, a presença/ausência das religiões e do místico na arte
moderna, figuras emblemáticas na cultura brasileira como Luz del Fuego e Madame Satã, o Jogo do
Bicho, a Ciência e a própria ideia de destruição (encarnada na renovação urbana) como intrínseco da
passagem ao Moderno. Tive curiosidade sobre diversas obras que estavam na exposição, mas uma em
específico me chamou mais atenção por diversas questões, as bonecas de pano feitas pela Mãe de
Santo, Detinha de Xangô.

Foto da Mãe Detinha de Oxum retirada do site < https://sabrinagledhill.com/ >

Mãe Detinha de Xangô, nascida em Salvador e batizada pelo nome de Valdete Ribeiro da Silva, foi
uma Mãe de Santo muito respeitada no candomblé e também artesã. Seu pai e seu avô falavam iorubá
e ela veio de uma linhagem de fortes mulheres do candomblé da Bahia, tendo sido iniciada na religião
apenas com seus 60 anos de idade. Sua ordem de iniciação remete à mãe Aninha (1869-1938), que
iniciou a mãe Ondina (1916-1975) que, por sua vez, iniciou em 1971, a Mãe Detinha de Xangô no Ilê
Axé Apô Afonjá, um dos mais tradicionais e antigos entre os Terreiros de Candomblé da Bahia, ao lado
de Terreiros tradicionais como o do Gantois e o da Casa Branca do Engenho. Desde os anos 80,
confeccionava bonecos de pano com a representação dos orixás, passou anos criando os bonecos e
até uma rede de discípulos, entre eles, Maria Izabela dos Santos Silva: Bezita de Oxum, sua nora.
Foto da casa Ilê Axé Opô Afonjá retirada do site

< https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Ax%C3%A9_Op%C3%B4_Afonj%C3%A1 >

Ao pesquisar sobre a artista e líder religiosa, Valdete Ribeiro da Silva, ou como é chamada: Detinha
de Xangô, não encontramos muitas informações sobre sua história, apenas o legado deixado pelos
seus bonecos de pano dos Orixás. Por décadas, a artista fez os bonecos com diversos materiais
artesanais como tecido, couro, fibra sintética, plástico, metal, lantejoulas, búzios, conchas, pelúcia,
cabaça, penas, entre outros.

Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Obaluayê, 2011. Fibra vegetal, tecido, búzios e plástico, 42 x 21 x 19 cm.

A imagem acima contém um de seus bonecos de pano, representando a figura de Obaluayê, orixá
das religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda. Obaluayê representa o ponto de
contato entre os humanos e a terra, é o orixá da cura em todos os seus aspectos, sendo sempre
chamado quando há necessidade do afastamento de alguma enfermidade. O boneco é feito de tecido,
fibra vegetal para representar as palhas que cobrem seu corpo, plástico e alguns búzios, que são
conchas de vários tamanhos com uma pequena abertura em um dos lados, muito utilizado em
religiões de matriz africana. Percebe-se que é um trabalho artesanal de grande delicadeza,
expressando grande riqueza de detalhes do orixá em questão, assim como todos os outros da coleção.

Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Iemanjá, 2011. Tecido, metal, plástico e lantejoulas, 49 x 34 x 27 cm.

O detalhamento desse boneco em questão é de grande riqueza, há uma sobreposição de tecidos e


rendas, laços e fuxicos, deixando o vestido muito brilhante e deslumbrante, assim como a
representação real de Iemanjá na religião. É importante destacar que Mãe Detinha constrói todos os
bonecos de pele escura, lutando contra o embranquecimento dessas figuras tão importantes e
representativas da cultura africana e negra. Os orixás, trazendo como exemplo Iemanjá, que é uma
das mais conhecidas pelo sincretismo católico com a Nossa Senhora dos Navegantes, foi
embranquecida. E isso ocorreu até mesmo por uma questão de proteção, em dias de festa, os escravos
cultuavam seus orixás "por trás" dos santos católicos para que os brancos não desconfiassem, e então
podiam fazer seus festejos e danças para homenageá-los.
Especialistas e ativistas questionam processo de embranquecimento de Iemanjá. Imagem retirada do site

< https://jornaldaparaiba.com.br/comunidade/dia-de-iemanja-quem-embranqueceu-a-rainha-do-mar >

Dentro do terreiro em que a Mãe Detinha de Xangô participava, houve uma época em que era
necessário retirar as imagens de lá por não poder exercer o culto do candomblé com as imagens dos
orixás como negros. Apesar de isso ser uma discussão muito mais profunda, como orixá tem cor se ele
nem mesmo é humano? Orixás são apenas energia. Sim, eles são apenas energia, mas é uma questão
de cunho social, o embranquecimento dessas imagens significa um apagamento da cultura afro,
carregada de intolerância religiosa e racismo. Sendo assim, é importante representar a negritude de
Iemanjá, e representá-la como branca faz parte do chamado "epistemicídio" - termo conceito usado
pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos - ou seja, a interiorização e destruição de
conhecimentos, saberes e culturas pelo colonialismo, tendo apenas a visão de mundo europeia e
branca como o dito correto. Todas as entidades e símbolos que são cultuados, apesar de não existirem
em forma humana propriamente dita, possuem uma força e uma história que deve ser respeitada, e
é isso que Detinha de Xangô prega, mantendo a cor preta na pele desses bonecos de pano. Pode
parecer simples toda essa discussão por trás dos bonecos de pano, dos orixás e da religião, mas é algo
que abre um leque enorme de possibilidades de argumentação e problematização, e por isso escolhi
essa obra. Infelizmente não se tem quase nada de informações sobre a vida de Valdete Ribeiro, o que
é algo também preocupante, perto do que se tem de material sobre artistas brancos, quase nada se
deixa vivo e aceso como o legado de milhares de artistas negros que talvez nem sabemos que
existiram. É importante a pesquisa sobre artistas negros e suas obras, é fundamental que não ocorra
esse apagamento da memória, e que não caiam no esquecimento essas pessoas tão talentosas e de
grande valor artístico para a história.
Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Xangô, 2011. Tecido, metal e plástico, 42 x 29 x 09 cm.

Esse é o boneco de pano que representa Xangô, o orixá que inclusive está no apelido de Mãe
Detinha. Ele é o orixá da justiça, dos raios e trovões, das pedreiras, também possui o domínio do fogo,
é representado com um machado de duas pontas, apontando sua inclinação guerreira. Também é um
boneco com um detalhamento gracioso nas vestes, com as colorações de vermelho que o
representam, seus machados brilhantes que deram um toque superespecial. É realmente uma coleção
única e preciosa, seus bonecos são de grande valor para a arte no geral, principalmente como objeto
de estudo da arte negra e religiosa.

O racismo na arte também existe e deve ser combatido. Em reportagem feita para o site da Vogue,
é dito que a Pinacoteca do Estado de São Paulo fundada em 1905 teve a sua primeira obra de um
artista negro incorporada à coleção apenas em 1956, mais de meio século depois de sua fundação,
através de uma doação volumosa que continha um autorretrato de Arthur Timótheo da Costa (Rio de
Janeiro, 1882). Em 2021 a mesma instituição incorpora 103 obras de artistas pretos, no contexto de
uma exposição temática, através de doação dos próprios artistas, mesmo tendo um fundo de
aquisição para compra de obras de arte, enquanto artistas brasileiros não-negros são adquiridos
mediante compra. As relações ainda continuam desbalanceadas.

A semana de arte moderna de 1922, realizada em São Paulo, foi um marco com grande influência
em questão de identidade cultural e nacional, porém ela reforçou apagamentos históricos e
principalmente desvalorização da arte que não seguia a história da arte europeia na da qual se
baseava, apesar de retratar temas nacionais. “Aquilo que não seguia tal cânone era lido como arte
menor, como por exemplo a arte africana que era considerada primitivista, como se essas pessoas
vivessem atrasadas no tempo, porém se triunfassem como sociedade, poderiam chegar à arte dos
povos “civilizados”, como a arte moderna. Até hoje é muito comum vermos termos racistas serem
utilizados para desqualificar a arte de indígenas, negros, mulheres e etc, tais como: arte primitiva, arte
bruta, arte ingênua, folclórica, e até mesmo arte popular. Racistas sim, pois se basearam em teorias
do racismo científico, hegemônico até os anos 30.”, diz Ademar Britto Júnior - cardiologista e
colecionador de arte - em entrevista realizada para o site da Vogue.
Para finalizar, a arte de Valdete Ribeiro da Silva, é essencial para que sirva de incentivo a buscarmos
cada vez mais conhecimento sobre artistas negros, cultura afro-brasileira, sobre a importância das
religiões de matriz africana ocupando espaço no universo artístico para desmistificar diversas
questões de preconceitos que vêm junto delas. Mãe Detinha de Xangô possui poucas informações
sobre ela na internet e em sites de streaming e vídeo, assim como milhares de artistas negros
espalhados pelo mundo todo, ela é um exemplo de pessoa que, mesmo com a intolerância religiosa e
o racismo, continuou fazendo seus bonecos de pano até o ano em que faleceu (2014), ela é, além de
um referencial artístico, um exemplo de resistência.

Algumas imagens de suas obras:

Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Ibeji, 2011. Tecido, metal, búzios e plástico, 34 x 14 x 09 cm.
Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Nanã, 2011. Tecido, fibra vegetal, plástico e búzios, 47 x 27 x 24 cm.

Mãe Detinha de Xangô e Bezita de Oxum, Egun, 2011. Tecido, metal e lantejoulas, 43 x 24 x 22 cm.
Referências
Arte e religiosidade afro-brasileira. Museu Afro Brasil. Disponível em <
http://www.museuafrobrasil.org.br/docs/default-source/Roteiro-de-visita-/roteiro-de-visita---arte-
e-religiosidade-afro-brasileira.pdf?sfvrsn=0 > Acesso em 14/12/2022.

GLEDHILL, Sabrina. Quarta-Feira de Cinzas. Editora Funmilayo, 05/03/2014. Disponível em <


https://sabrinagledhill.com/2014/03/05/ash-wednesday/ > Acesso em 14/12/2022.

Irmãs da Boa Morte, Egun e bonecos de Orishás: religiosidade afro-brasileira. Museu Afro Brasil.
Disponível em < https://artsandculture.google.com/story/5AVhxpw-DVNMKQ?hl=pt-BR > Acesso em
14/12/2022.

Ilê Axé Opô Afonjá. Wikpédia, 19/03/2022. Disponível em


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Ax%C3%A9_Op%C3%B4_Afonj%C3%A1 > Acesso em
14/12/2022.

Mãe Detinha de Xangô. Wikpédia, 09/05/2022. Disponível em <


https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A3e_Detinha_de_Xang%C3%B4 > Acesso em 14/12/2022.

ROCHA, Ana Beatriz. “Dia de Iemanjá: quem embranqueceu a rainha do mar?”. Jornal da Paraíba,
02/02/2022. Disponível em < https://jornaldaparaiba.com.br/comunidade/dia-de-iemanja-quem-
embranqueceu-a-rainha-do-mar > Acesso em 14/12/2022.

SCHREIBER, Mariana. Iemanjá tem cor? Porque a divindade de origem africana se transformou em
‘mulher branca’ no Brasil. BBC News Brasil, 01/02/2020. Disponível em <
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51341828 > Acesso em 15/12/2022.

FIDALGO, Sabrina. Sobre apagamentos no movimento modernista e o protagonismo negro na arte


contemporânea brasileira. VOGUE, 27/06/2021. Disponível em <https://vogue.globo.com/Vogue-
Gente/noticia/2021/06/sobre-apagamentos-no-movimento-modernista-e-o-protagonismo-negro-
na-arte-contemporanea-brasileira.html> Acesso em 15/12/2022.

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