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FAZER-MUNDOS1

(1981)

Fui convidada a participar de um simpósio chamado


“Mundos Perdidos e Mundos Futuros” [Lost Worlds
and Future Worlds], na Universidade de Stanford em
1981. O texto que se segue abaixo foi minha breve
contribuição; uma versão menos polida foi impressa em
“Escritoras Mulheres da Costa Oeste” [Women Writers
of West Coast], de Marilyn Yalom (Capra Press, 1983).

Deveríamos estar falando sobre o ato de fazer mundos. A idéia do fazer me faz pensar
no fazer novo. Fazer um novo mundo: um mundo diferente: a Terra Média, diga-se, ou os
planetas da ficção científica. Esse é o trabalho da imaginação fantástica. Ou então há o fazer o
mundo novo: fazer o mundo diferente: uma utopia ou distopia, o trabalho da imaginação
política.
Mas e sobre fazer o mundo, este mundo, este velho mundo? Isso parece ser
competência da imaginação religiosa, ou da vontade de viver (que podem ser a mesma coisa).
O velho mundo é feito novo no nascimento de cada bebê, e a cada Dia de Ano Novo, e a cada
manhã, e, Budistas dizem, a cada instante.
Que, em todos os sentidos práticos, fazemos o mundo que habitamos é bem além da
questão, mas eu a deixo a quem filosofa decidir se fazemos tudo do zero – mmmm! tem gosto
de mundo novinho em folha! mas é apenas a batida do Bispo Berkeley2! – ou se remendamos
os pedaços por uma seleção mais ou menos judiciosa do que nos chega como útil ou divertido
no inesgotável caos do real.
Em ambos os casos, o que artistas fazem é montar uma particularmente habilidade
seleção de fragmentos do cosmos, incomumente úteis e divertidos pedaços escolhidos e
arranjados de modo a transmitir uma ilusão de coerência e duração em meio da incontrolável
transmissão de eventos. Artistas fazem o mundo seu mundo. Artistas fazem seu mundo o
mundo. Por um tempo. Pelo tempo que for preciso para olhar ou escutar ou ver ou ler a obra
de arte. Como cristal, a obra de arte parece conter o todo, e implicar eternidade. E, entretanto,
não passa de um mapa esboçado de quem explora. Um mapeamento de margens em uma
costa nebulosa.

1
WORLD-MAKING (1981), presente em Dancing at the edge of the world: thoughts on words, women, places
(Grove Press, 1989) de Ursula K. Le Guin.
2
Do original Bishop Berkeley’s Cosmo-Mix, a autora faz uma chacota com a teoria filosófica de George Berkeley
como uma bebida saborosa.
Fazer algo é inventar algo, descobrir, revelar, como Michelangelo lapindo o mármore
que escondia a estátua. Talvez, pensemos com menos freqüência na proposição reversa, isto é:
Descobrir algo é fazer algo. Como disse Júlio César, “A existência da Grã-Bretanha era
incerta, até que lá fui”. Podemos seguramente assumir que as antigas pessoas britânicas eram
perfeitamente certas da existência da Grã-Bretanha, ao ponto de detalhes como aonde ir para
conseguir o melhor pastel-dos-tintureiros3. Mas, como disse Einstein, tudo depende de como
vemos, e no que concerne a Roma, não à Grã-Bretanha, César inventou (invenire, “vir a, vir
de encontro a”4) a Grã-Bretanha. Ele a fez ser, para o resto do mundo.
Alexandre, o Grande, sentou-se e chorou, em algum lugar da Índia, acredito, porque
não havia mais novos mundos a se conquistar. Que homem besta ele era. Ali ele se senta
choramingando, no meio do caminho à China! Um conquistador. Conquistadores, sempre
correndo atrás de novos mundos, e tão rapidamente ficando sem eles. Conquista não é
encontrar, assim como não é fazer. Nossa cultura, a qual conquistou o que se chama de Novo
Mundo, e a qual vê o mundo da natureza como uma adversária a ser conquistada: nos veja só.
Ficando sem nada.
O nome da nossa sessão é Mundos Perdidos e Mundos Futuros5. Tenham nossos
ancestrais vindo atrás de ouro, ou liberdade, ou então como pessoas escravizadas, nós somos
os conquistadores, nós que vivemos aqui agora, em posse, no Novo Mundo. Nós somos
aquelas pessoas habitantes do Mundo Perdido. Ele está absolutamente perdido. Até os nomes
estão perdidos. As pessoas que viviam aqui, nesse lugar, nesses morros, por dezenas de
milhares de anos, são lembradas (quando, de fato, são lembradas) na linguagem dos
conquistadores: “Costanos”, “Santa Claras”, “San Franciscos”, nomes tirados de semideuses
estrangeiros. Sessenta e três anos atrás, no Manual dos Índios da Califórnia6, meu pai
escreveu:
O grupo Coastanoano7 está extinto no que concerne todos propósitos práticos.
Alguns indivíduos espalhados sobrevivem... A maior parte de um século passou
desde que as missões foram abolidas, e quase um século e meio desde que
começaram a ser fundados. Esses períodos foram suficientes para apagar inclusive
recordações tradicionais dos hábitos ancestrais, exceto por ocasionais fragmentos.

3
Do original woad, refere-se à espécie Isatis tinctoria, amplamente utilizada para a produção de corante azul na
Europa da Idade Média, deixada de lado com a introdução comercial do anil e das anilinas.
4
Como coloca a autora no original, to come into, to come upon.
5
Lost Worlds and Future Worlds, no original.
6
Handbook of the Indian of California, no original, onde permaneço na escrita masculina e limitada de “índios”
– e não “indígena” – como forma de evidenciar, mesmo em tradução, a linguagem colonial.
7
Povo de etnia indígena, também conhecido como Ohlone, habitante da região norte do que hoje se denomina
Califórnia até a empreitada genocida espanhola em fins do século XVIII.
Aqui segue um desses fragmentos, uma canção; cantavam-a aqui, debaixo desses
carvalhos sempre-vivos8, mas não haviam mais aveias selvagens aqui, apenas tufos de gramas
californianas. As pessoas cantavam:
Sonho contigo,
Sonho contigo pulando,
Coelho, lebre, e codorna9.

E uma linha é deixada de uma música para dançar:


Dançando na beira do mundo10.

Com tais fragmentos devo ter favorecido minha ruína, mas não sei como. Sabendo
apenas que devemos ter um passado para fazer com um futuro, tirei o que pude da cultura
Euro-baseada de meus e minhas ancestrais. Aprendi, como a maioria de nós, a usar o que quer
que pudesse, para furtar uma idéia da China e roubar um deus da Índia, e então remendar um
mundo da melhor forma que eu poderia. Mas ainda há mistério. Este lugar onde nasci e cresci
e o qual amo além de todos os outros, meu mundo, minha Califórnia, ainda precisa ser feito.
Para fazer um novo mundo você deve começar com um antigo, certamente. Para encontrar um
mundo, talvez você tenha que ter perdido um. Talvez você precise se perder. A dança da
renovação, a dança que fez o mundo, foi sempre dançada aqui na margem das coisas, na beira,
na costa nebulosa.

8
Do original live oaks, também sinônimo de evergreen oaks, isto é, uma linhagem de carvalhos que possuem
folhagem que perduram verdes e funcionais por mais de uma estação de crescimento.
9
I dream of you, / I dream of you jumping, / Rabbit, jackrabbit, and quail.
10
Dancing on the brink of the world.

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