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HUGO VON HOFMANNSTHAL

CARTAS PARA
ESTE TEMPO

UMA CARTA
(«A CARTA DE LORD CHANDOS»)
E
CARTAS DO REGRESSO

tradução e ensaio de
joão barrento

BCF EDITORES

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U M A C A R TA
«A CARTA DE LORD CHANDOS»

Obra traduzida com o apoio do Ministério Federal da Arte,


Cultura, Serviço Público e Desporto da Áustria

Título: Cartas para Este Tempo


Título original: Ein Brief / Die Briefe des Zurückgekehrten
Autor: Hugo von Hofmannsthal
Tradução: João Barrento

«A aura do silêncio e o mal-estar na civilização» © João Barrento, 2020

Capa e separador: Ana Jotta


Fotografia do separador: © Laura Castro Caldas
Fotografia da contracapa: © Freies Deutsches Hochstift /
Frankfurter Goethe-Museum
Composição: Catarina Lee

© desta edição: BCF Editores, 2020


Rua de São Bento, n.º 644, 2.º esq. 1250-223 Lisboa
Reservados todos os direitos.

1.ª Edição, Lisboa, Maio de 2020


ISBN: 978-989-54243-4-4

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Esta é a carta que Philipp, Lord Chandos, filho mais novo
do Conde de Bath, escreveu a Francis Bacon, futuro Lord
Verulam e Visconde de St. Albans, para se desculpar junto
deste seu amigo pela sua total renúncia à actividade literária.

É muito amável da sua parte, meu muito estimado


amigo, escrever-me como me escreve, fechando os olhos
ao meu silêncio de dois anos. E é mais do que amabili-
dade o dar à manifestação dessa sua preocupação comigo,
à sua estranheza pelo entorpecimento mental em que
lhe pareço ter caído, um tom de ligeireza e ironia que é
apanágio dos grandes homens marcados pelas atribula-
ções da vida, mas que nem por isso se deixam desanimar.
Termina com o aforismo de Hipócrates Qui gravi
morbo correpti dolores non sentiunt, iis mens aegrotat*, e
conclui que eu preciso da medicina, não apenas para
dominar o meu mal, mas ainda mais para apurar os
meus sentidos para o estado em que se encontra o meu
espírito. Gostaria de lhe responder como merece, gostaria

* «Aquele que, acometido de uma doença grave, não sente dores, está
doente do espírito.» NdT

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de me abrir, e não sei como fazê-lo. Nem sequer sei bem esta doença do meu espírito, chamemos-lhe assim, para
se sou o mesmo a quem se destina a sua preciosa carta. lhe poder dar uma ideia do abismo intransponível que
Serei eu, hoje com vinte e seis anos, aquele mesmo que me separa dos trabalhos literários que aparentemente
com dezanove escreveu O Novo Páris, O Sonho de Dafne, tenho à minha frente, bem como dos que estão para trás
o Epitalâmio, esses dramas bucólicos cheios do delírio e e que, tal é a estranheza que neles sinto, hesito em ver
da pompa das palavras, e de que amavelmente ainda se como coisa minha.
lembram uma rainha divinal e alguns lordes e senhores Não sei se devo admirar mais a sua tocante benevo-
demasiado indulgentes? E serei eu ainda aquele que, aos lência ou a incrível vivacidade da sua memória, quando
vinte e três anos, sob as arcadas de pedra da grande praça me vem lembrar os muitos pequenos projectos que me
de Veneza, em si mesmo descobriu um encadeamento de animavam o espírito nos dias de grande entusiasmo que
períodos latinos cujo plano espiritual e cuja construção vivemos em comum. Na verdade, o que eu ambicionava
lhe deleitaram mais a alma do que os edifícios de Palladio fazer era descrever os primeiros anos do reinado do nosso
e Sansovino emergindo do mar? E se de algum modo sou último e glorioso soberano, Henrique VIII! Os aponta-
o mesmo, como poderia eu ter perdido tão completa- mentos deixados pelo meu avô, o duque de Exeter, sobre
mente, no íntimo da minha incompreensível alma, todos as suas negociações com a França e Portugal forneciam-
os traços e todas as cicatrizes dessa criação do meu pen- -me uma espécie de fundamento para isso. E de Salústio
samento mais coeso, a ponto de na sua carta, que tenho chegava-me de um modo contínuo, naqueles dias felizes
à minha frente, o título daquele pequeno tratado me e animados, o conhecimento da forma, daquela forma
fixar friamente como coisa estranha, sem que eu consiga profunda, verdadeira e íntima que só se pode intuir para
apreendê-lo como imagem comum de uma combinação lá do terreno limitado dos artifícios retóricos, e da qual
de palavras, mas tão-somente palavra a palavra, como já não é possível dizer-se que ela dá ordem à matéria,
se esses vocábulos latinos, assim articulados, se apresen- porque o que ela faz é penetrá-la, superá-la, para criar a
tassem pela primeira vez aos meus olhos? Acontece que um tempo poesia e verdade, um jogo de forças eternas,
eu sou o mesmo, e há muita retórica nestas perguntas, qualquer coisa tão magnífica como a música e a álgebra.
uma retórica que poderá servir para as mulheres ou para Era este o meu plano predilecto.
a Câmara dos Comuns, cujos instrumentos de poder, Mas, o que é o homem, para se pôr a fazer planos?
tão sobrevalorizados nos nossos dias, não bastam para Outros projectos me ocupavam também, e a sua bon-
chegar ao âmago das coisas. Ora, é o meu âmago que dosa carta não deixa de os evocar. Cada um deles absorvia
eu quero pôr a nu perante si, esta aberração, este vício, uma gota do meu sangue, e agora vejo-os como uma

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dança de mosquitos tristes em frente de um muro som- Para ser breve: nessa altura, num estado de perma-
brio, sobre o qual já não cai o sol claro dos dias felizes. nente embriaguez, toda a existência me aparecia como
Queria interpretar as fábulas e as narrativas míticas uma grande unidade. Não me parecia haver oposição
dos Antigos, que dão a pintores e escultores um prazer entre o mundo do espírito e o da matéria, nem entre
infinito e livre, como hieróglifos de uma sabedoria secreta seres delicados e brutos, entre arte e não-arte, solidão e
e inesgotável cujo sopro julguei por vezes sentir, como convívio. Em tudo sentia a natureza — nas aberrações
que por detrás de um véu. da loucura como no requinte exterior de um cerimonial
Lembro-me bem deste projecto, que tinha por funda- espanhol, nas grosserias de jovens camponeses como nas
mento um indefinível prazer dos sentidos e do espírito: mais delicadas alegorias —, e em toda a natureza me
tal como o veado acossado, que corre para a água, eu sentia a mim próprio. Quando, na minha cabana de
sentia-me atraído por aqueles esplêndidos corpos nus, caça, sorvia lentamente o leite morno e espumoso que
sereias e dríades, Narciso e Proteu, Perseu e Actéon — uma criatura desgrenhada ordenhava da teta de uma bela
queria perder-me neles e a partir deles falar como um vaca de olhos mansos para um balde de madeira, isso era
profeta. Queria… E queria ainda muitas outras coisas. para mim o mesmo que sentar-me no banco da janela do
Pensei em organizar uma recolha de «Apotegmas» como meu gabinete e deleitar-me com o doce e borbulhante
os que Júlio César compilou — lembrar-se-á certamente alimento que colhia num manuscrito antigo. Uma coisa
da menção que deles faz Cícero numa carta. A minha era como a outra, nenhuma era inferior à outra, nem na
ideia era reunir as mais notáveis sentenças que pudesse sua natureza onírica e transcendente, nem na sua força
conseguir no convívio com homens sábios e mulheres material, e assim era sempre, em toda a escala da vida
espirituosas do nosso tempo, ou com gente especial do e em todos os sentidos: em tudo isso eu estava envol-
povo, ou com pessoas cultas e distintas, nas minhas via- vido, e nada me parecia ilusório. Ou então sentia que
gens; e juntaria a isso belas máximas e reflexões tiradas tudo era símbolo e cada criatura uma chave da outra, e
das obras dos Antigos e dos Italianos, e toda a espécie julgava-me capaz de as agarrar uma a uma pela cabeça,
de ornatos que encontrasse em livros, manuscritos ou e com uma chave abrir tantas outras quantas me fosse
conversas; para além disso, organizar uma colectânea das possível. E assim se explica o título que pensei dar àquele
festas e representações, narrações de crimes estranhos e livro enciclopédico.
casos de loucura, a descrição das maiores e mais originais Para quem seja receptivo a tais ideias, poderá parecer
construções dos Países Baixos, da França e da Itália, e mui- um bem elaborado plano da providência divina o facto
tas coisas mais. E a obra teria o título: «Nosce te ipsum». de o meu espírito ter caído de uma tamanha segurança

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de si para este extremo de desalento e fraqueza que é pois conhece bem a minha franqueza, que por vezes
agora a minha permanente disposição interior. Mas atinge as raias da leviandade, mas sim porque as palavras
essas ideias religiosas não têm qualquer influência sobre abstractas, de que a língua tem de servir-se naturalmente
mim; contam-se entre as teias de aranha que os meus para emitir qualquer juízo, se me desfaziam na boca como
pensamentos atravessam em direcção ao vazio, enquanto cogumelos podres. Aconteceu-me, por exemplo, querer
muitos daqueles que as seguem se ficam por aí e con- repreender a minha filha Katharina Pompilia, que tem
seguem encontrar a paz. Para mim, os mistérios da fé quatro anos, por ter inventado uma daquelas mentiras de
condensaram-se numa sublime alegoria que paira sobre criança, fazendo-lhe compreender a necessidade de dizer
os campos da minha vida como um luminoso arco-íris, sempre a verdade; mas as ideias que me afloravam à boca
sempre à mesma distância, sempre pronto a recuar se adquiriram subitamente uma coloração tão reverberante,
me viesse a ideia de correr para ele para me envolver na atropelando-se umas às outras, que acabei a frase à pressa
orla do seu manto. o melhor que pude, como se me sentisse mal. E de facto
Mas, meu caro amigo, também os conceitos deste sentia-me mal, lívido e com uma pressão forte na testa.
mundo me fogem da mesma maneira. Como hei-de Deixei a criança sozinha, fechei a porta atrás de mim, e
explicar-lhe este estranho sofrimento interior, este subir só consegui refazer-me um pouco saltando para o cavalo
dos ramos carregados de frutos diante das minhas mãos e atravessando a galope as pastagens solitárias.
estendidas, este recuar da água rumorejante diante dos Pouco a pouco, porém, estes estados de espírito foram
meus lábios sequiosos? alastrando como uma ferrugem que corrói tudo à sua
O meu caso é, em poucas palavras, o seguinte: perdi volta. Até mesmo nas conversas familiares e corriqueiras,
completamente a capacidade de pensar ou falar coeren- todos aqueles juízos que formamos sem pensar e com
temente sobre o que quer que seja. uma segurança de sonâmbulo se me tornaram tão proble-
A princípio foi-se-me tornando impossível tratar um máticos que deixei de participar em tais conversas. Sentia
tema superior ou mais geral, servindo-me para isso das uma irritação inexplicável, que dificilmente escondia, ao
palavras que toda a gente usa fluentemente sem reflectir. ouvir frases como: «a coisa correu bem, ou mal, a fulano
Sentia um inexplicável mal-estar ao pronunciar as palavras ou beltrano; o xerife N. é um mau homem, o pregador
«espírito», «alma» ou «corpo». Sentia-me interiormente T. é uma boa pessoa; coitado do caseiro M., com filhos
incapaz de emitir um juízo sobre os assuntos da corte, os tão esbanjadores; e outro é merecedor de inveja, por-
acontecimentos no Parlamento ou qualquer outra coisa. que as filhas são poupadas; a família A está em ascensão
E isto não para evitar ferir quaisquer susceptibilidades, social, enquanto a B se encontra em plena decadência».

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Não pode calcular como tudo me parecia improvável, me como alguém que tivesse sido encerrado num jardim,
soava a falso, parecia estar a esboroar-se. O meu espírito convivendo apenas com estátuas sem olhos; e refugiei-me
compelia-me a ver numa proximidade transfiguradora de novo no mundo exterior.
todas as coisas que se referiam numa conversa; fazia agora Desde então levo uma existência que, receio, não
com os homens e as suas acções o mesmo que fizera uma poderá imaginar, de tal modo ela vai fluindo insípida
vez ao observar com uma lupa o meu dedo mínimo, que e vazia de ideias. Uma existência que, a falar verdade,
parecia um campo cheio de sulcos e covas. Não conseguia pouco se distingue da dos meus vizinhos, dos meus
já ver as pessoas com o olhar simples do hábito. Tudo se parentes e da maior parte da nobreza deste reino, e que
me desagregava, se fragmentava e voltava a fragmen- não deixa de ter os seus momentos de alegria e animação.
tar, e não havia nada que um conceito pudesse abarcar. É-me particularmente difícil sugerir-lhe em que consis-
As palavras isoladas boiavam à minha volta, coagu- tem esses bons momentos: as palavras abandonam-me de
lavam em olhos que me olhavam fixamente e que eu novo. Pois é qualquer coisa de inominado e praticamente
era obrigado a fitar também: são redemoinhos que me inominável aquilo que se me anuncia em tais momentos,
causam vertigens ao olhar lá para dentro, que giram e que enche, como se ele fosse oco, qualquer fenómeno
incessantemente, e lá no fundo está o vazio. do meu mundo quotidiano de uma maré transbordante
Fiz uma tentativa para fugir deste estado, refugian- de vida mais sublime. Não posso esperar que me com-
do-me no mundo das ideias dos Antigos. Evitei Platão, preenda se não lhe der um exemplo, e desde já peço a
porque receava o perigo do voo do seu mundo imagético. sua indulgência para a ingenuidade dos meus exemplos.
Pensei agarrar-me principalmente a Séneca e Cícero, na Um regador, um ancinho abandonado no campo, um cão
esperança de que a harmonia dos seus conceitos precisos ao sol, um cemitério pobre, um aleijado, uma pequena
e ordenados me curasse. Mas vi que não podia lá chegar. casa de camponês, tudo isso pode ser o veículo da minha
Os conceitos, esses compreendia-os bem: via o seu mag- revelação. Cada um destes objectos, e milhares de outros
nífico jogo de relações elevar-se diante de mim como os a eles semelhantes, que os olhos do comum vêem à luz da
esplendorosos jogos de água com balões dourados dos indiferença do que para eles é óbvio, pode ganhar para
jardins. Era capaz de os abarcar, e de constatar como inte- mim subitamente, num qualquer momento que não
ragiam; mas eles só se relacionavam uns com os outros, está ao meu alcance convocar, uma marca tão sublime
e o mais profundo e pessoal do meu pensamento estava e comovente que todas as palavras me parecem pobres
excluído dessas suas danças de roda. No meio deles, era de mais para o exprimir. E pode também ser a imagem
assaltado pela sensação de uma terrível solidão; sentia-me precisa de um objecto ausente que, por uma qualquer

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razão que me escapa, foi escolhido para ser inundado com os filhos agonizantes agarrados às suas saias, e que
até ao bordo por aquela maré do sentimento do divino não olhava para os que morriam, nem para as implacáveis
que o preenche num crescendo súbito e suave. Ainda há muralhas de pedra, mas para o ar vazio, ou lançava atra-
pouco tempo, por exemplo, dei ordens para que espa- vés do ar olhares para o infinito, acompanhados de um
lhassem veneno contra os ratos em quantidade numa ranger de dentes! Se um escravo estarrecido e impotente
das minhas vacarias. Ao cair do dia saí a cavalo e, como se quedou junto de Níobe quando ela se converteu em
pode imaginar, nunca mais pensei no assunto. E então, pedra, deve ter passado pelo que eu passei quando dentro
ao atravessar a passo um campo fundamente lavrado, sem de mim a alma daqueles animais mostrava os dentes ao
outra presença que não fosse a de um bando de codor- destino monstruoso.
nizes que espantei e, ao longe, sobre a ondulação dos Perdoe esta descrição, mas não pense que foi com-
campos, o grande Sol poente, revela-se-me subitamente, paixão o que senti. Não pode pensar isso, ou então terei
numa visão interior, aquela cave onde se ouvia o povo escolhido muito mal o meu exemplo. Foi muito mais e
dos ratos em luta com a morte. Tudo estava dentro de muito menos do que compaixão: uma enorme empatia,
mim: o ar fresco e abafado da cave, agora cheio do odor um modo de me perder naquelas criaturas, ou o senti-
adocicado e penetrante do veneno, e a estridência dos mento de que um fluxo de vida e de morte, de sonho
gritos de morte contra as paredes apodrecidas; a impo- e lucidez, por momentos passou por elas — mas vindo
tência no enovelamento dos espasmos, o desespero per- de onde? De facto, que terá a ver com compaixão, com
seguindo-se em grande confusão; a busca enlouquecida um qualquer encadeamento inteligível de pensamentos
das saídas; o olhar frio da raiva quando dois se encontram humanos, o que se passou numa outra tarde, ao encon-
diante de um buraco tapado. Mas, para que procuro eu trar sob uma nogueira um regador meio cheio que um
novamente as palavras que reneguei? Deve lembrar-se, ajudante do jardineiro ali deixou esquecido? Esse regador
meu amigo, da maravilhosa descrição por Tito Lívio e a água que continha, escurecida pela sombra da árvore,
das horas que antecedem a destruição de Alba Longa. e um escaravelho que nadava lá dentro, remando no
De como aquela gente errava pelas ruas que não voltaria espelho dessa água de uma margem escura para a outra,
a ver…, e de como se despediam das pedras do caminho. este encontro de insignificâncias, fez-me estremecer com
Pois digo-lhe, meu amigo, que tudo isso estava dentro de a presença do infinito, da raiz dos cabelos à ponta dos
mim, assim como a Cartago em chamas; mas era mais, pés, a ponto de eu desejar explodir em palavras que, se
mais divino e mais animalesco; e era puro presente, era o as encontrasse, suplantariam as dos Querubins, em que
presente na sua forma mais sublime. Eu via aí uma mãe não acredito. Afasto-me do lugar em silêncio e, semanas

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mais tarde, ao avistar aquela nogueira, ao passar por meu ser e todo o mundo, nem como me apercebi dela,
ela com olhares tímidos e furtivos, não quero afugentar do mesmo modo que não posso descrever com rigor
o renascer do sentimento de magia que lhe envolve o os movimentos internos das minhas vísceras nem os
tronco, nem o frémito mais do que terreno que ainda congestionamentos do meu sangue.
sinto nos arbustos vizinhos. Em momentos como estes, Para além destes estranhos acasos, que não sei se deva
uma criatura insignificante, um cão, um rato, um escara- atribuir ao espírito ou ao corpo, a minha vida é marcada
velho, uma macieira raquítica, um caminho de carros de por um vazio incrível, e tenho dificuldade em esconder
bois serpenteando sobre uma colina, uma pedra coberta da minha mulher a letargia interior, e do pessoal da
de musgo, significa mais para mim do que a mais bela e casa a indiferença que sinto em relação aos assuntos da
ardente amante da mais feliz das noites. Essas criaturas propriedade. A boa e severa educação que devo ao meu
mudas e por vezes inanimadas surgem diante de mim saudoso pai, e o hábito, adquirido cedo, de não deixar
numa tal plenitude e tão cheias de amor, que o meu nenhuma hora do dia por preencher, são, ao que me
olhar encantado não encontra à sua volta nem um só parece, as únicas coisas que me permitem dar à minha
lugar sem vida. Parece-me que tudo, tudo o que existe, vida exterior um sustentáculo suficiente e manter a apa-
tudo aquilo de que me lembro, tudo o que passa pelos rência que convém à minha condição e à minha pessoa.
meus pensamentos confusos, tem a sua realidade própria. Estou a reconstruir uma das alas da casa, e de vez
Até a própria pesadez do meu espírito, a habitual apatia em quando lá vou conversando com o arquitecto sobre
da minha mente, me parecem ser alguma coisa; sinto os progressos do seu trabalho; vou administrando as
em mim e à minha volta um delicioso e infindável jogo minhas propriedades, e os meus caseiros e funcionários
de reacções, e não há, em toda a matéria com todas as achar-me-ão talvez um pouco mais lacónico, mas nunca
suas tensões, nada em que eu não possa derramar-me e menos compreensivo do que antes. Nenhum dos homens
perder-me. Nessas alturas parece-me que o meu corpo que, de boné na mão, vejo à porta de casa quando passo
é todo ele constituído por sinais de um código que me a cavalo ao fim da tarde, imagina que o meu olhar, que
permite descodificar tudo. Ou é como se pudéssemos estão acostumados a retribuir de forma respeitosa, se
entrar numa relação nova, intuitiva, com toda a existên- passeia com uma nostalgia silenciosa pelas tábuas podres
cia, se começássemos a pensar com o coração. Mas, mal debaixo das quais eles costumam procurar, depois da
acaba este estranho encantamento, nada sei dizer sobre chuva, as minhocas para a pesca; que esse olhar mergulha
ele: não seria capaz de descrever com palavras inteligíveis através das grades da janela estreita no interior abafado
em que consistiu essa harmonia de que se impregnou o da casa onde, a um canto, a cama baixa com lençóis de

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cor parece sempre esperar por alguém que vai morrer, mim toca-me o facto em si mesmo, que teria permane-
ou que há-de nascer; que os meus olhos se demoram nos cido idêntico ainda que Domítio tivesse chorado todas
cães jovens e feios ou no gato que se esgueira, coleante, as suas mulheres com lágrimas de sangue e dor sincera.
por entre vasos de flores partidos; e que esse olhar busca, Ainda assim, do outro lado estaria sempre Crasso, com
sob todos esses objectos pobres e grosseiros, espelho de as suas lágrimas vertidas pela moreia morta. E há qual-
uma vida rústica, aquele cuja forma discreta, ali abando- quer coisa de inominável que salta à vista e me leva a
nado, aquele cuja essência muda possa tornar-se a fonte pensar nessa figura, no ridículo e no desprezo a que é
de um êxtase enigmático, sem palavras e sem limites. sujeita no meio de um Senado que discute as mais altas
Pois o meu sentimento de felicidade inominável virá questões e governa o mundo; e me leva a pensar nela de
mais facilmente de uma fogueira de pastores distante uma maneira que me parece completamente absurda no
e solitária do que da contemplação do céu estrelado; momento em que tento traduzi-la em palavras.
mais do cantar de um último grilo que já sente a morte Esta imagem de Crasso instala-se muitas vezes à
no vento outonal que empurra as nuvens de Inverno noite no meu cérebro como um estilhaço em volta do
sobre campos desertos do que do eco majestoso de um qual tudo se inflama, pulsa, ferve. Então, é como se
órgão. Muitas vezes, em pensamento, me comparo àquele eu próprio começasse a fermentar, a borbulhar, a ficar
Crasso, o orador, de quem se conta que amava acima de efervescente e cintilante. E tudo isso é uma espécie de
tudo uma moreia domesticada que tinha num lago do pensamento febril, mas um pensar com um material
jardim, um peixe sem brilho, de olhos vermelhos e mudo, que é mais directo, mais fluente e tem mais fogo do
e que toda a cidade falava disso; e quando um dia, no que as palavras. São também como que turbilhões, mas
Senado, Domítio o acusou de ter chorado a morte do não como os redemoinhos da linguagem que parecem
peixe, procurando assim fazê-lo passar por meio louco, arrastar-nos para o abismo: estes levaram-me para dentro
Crasso respondeu-lhe: «Eu fiz, na morte do meu peixe, de mim próprio e para o seio da mais profunda paz.
o que tu não fizeste na morte da tua primeira e da tua Importunei-o, meu caro amigo, mais do que devia,
segunda mulher.» com esta longa descrição de um estado inexplicável, que
Não sei quantas vezes este Crasso e a sua moreia me normalmente guardo só para mim.
vieram à mente, trazidos do outro lado do abismo dos Foi muito gentil em manifestar o seu desconten-
séculos. Mas se isso aconteceu, não foi devido à resposta tamento por não lhe chegar às mãos nenhum livro da
que deu a Domítio. A resposta colocou do seu lado os minha autoria «que o compensasse da privação do meu
que se riram, e a história acabou numa anedota. Mas a convívio». Nesse momento senti, com uma certeza não

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isenta de um sentimento de dor, que não vou escrever
mais nenhum livro, nem em inglês, nem em latim, no
próximo ano ou no seguinte, nem em todos os anos
que me restam de vida. E isto por um motivo para cuja
singularidade, que me é sobremaneira embaraçosa, a sua
clarividência e superioridade intelectual encontrarão o C A R TA S D O R E G R E S S O
devido lugar no reino dos fenómenos espirituais e físicos,
que ao meu amigo se apresentam em perfeita harmonia:
pelo facto de que a língua em que talvez me fosse dado,
não apenas escrever mas também pensar, não é nem a
latina, nem a inglesa, nem a italiana ou espanhola, mas
sim uma língua de que não conheço uma única palavra,
uma língua na qual as coisas mudas me falam, e que
talvez um dia, no túmulo, tenha de usar para responder
perante um juiz desconhecido.
Bem gostaria eu de condensar, nas últimas palavras
desta talvez última carta que escrevo a Francis Bacon,
todo o amor e toda a gratidão, toda a imensa admiração
que tenho pelo maior benfeitor do meu espírito, pelo
maior inglês do meu tempo, e que guardarei no meu
coração até que a morte o destrua.

A.D. 1603, no dia 22 de Agosto.


Phi. Chandos

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