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PIERRE BOURDIEU

ESBOÇO DE UMA TEORIA


DA PRÁTICA
PRECEDIDO DE TRÊS ESTUDOS DE ETNOLOGIA CABILA

Tradução de Miguel Serras Pereira

CELTA EDITORA
OEIRAS / 2002
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SHOMí nt íiwéàüin
© Éditions du Seuil, 2000

Pierre Bourdieu (1930-2002) Cabila


Esboço de Uma Teoria da Prática, Precedido de Três Estudos de Etnologia

Primeira edição portuguesa: Abril de 2002


Tiragem: 1000 exemplares

Tradução do francês: Miguel Serras Pereira


Revisão de texto: G. Ayala Monteiro

ISBN: 972-774-142-8
ISBN da edição original: 2-02-039266-6, Seuil, Paris
Depósito legal: 178921/02

Composição (em caracteres Palatine, corpo 10): Celta Editora

Capa: Mário Vaz / Arranjo: Paula Neves


Impressão e acabamentos: Tipografia Lousanense, Lda., Portugal

Reservados todos os direitos para Portugal e os PALOP,


de acordo com a legislação em vigor, por Celta Editora, Ldaí

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ÍNDICE

Nota introdutória vii

Parte I | TRÊS ESTUDOS DE ETNOLOGIA CABILA

Prólogo.............................................. 3
1 O sentido da honra ...................... ..... 5
A dialéctica do desafio e da resposta (9)
0
Ponto de honra e honra: níf e hurma (23)
O ethos da honra (33) O
0 .0*
2 A casa ou o mundo ao contrário ..... ..K... 37
3 O parentesco como representação e como vontade ................... .. 57
Representação de parentesco e parentesco de representação (60)
Utilidade, conformidade e utilidade da conformidade (70) ç>,

Crenças colectivas e mentiras piedosas (88) v\CV - " -Q


O comum e o fora do comum (103) ç G1 ‘ç- ’ À

Estratégias matrimoniais e reprodução social (113) ~

~-A0'. c ''
Parte II | ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Prólogo........................................................................................................ 135
1 O observador observado ............................................................................... 137
2 Os três modos de conhecimento teórico........................................................ 145
3 Estruturas, habitus e práticas ....................................................................... 163
4 A incorporação das estruturas...................................................................... 185
5 A ilusão da regra ........................................................................................... 197
6 O corpo geómetra ......................................................................................... 213
7 A acção do tempo e o tempo da acção .................................................. 227
8 O capital simbólico......................................................................................... 237
Anexo: práticas econômicas e disposições temporais ................................... 257

V
NOTA INTRODUTÓRIA

O Pierre Bourdieu que publica, em 1972, o Esboço de Uma Teoria da Prática não
se estreia com esse livro. Já antes tinham sido editados trabalhos seus que se
tornaram clássicos, nomeadamente Os Herdeiros (Les Héritiers, escrito de cola­
boração com Jean-Claude Passeron), em 1964. Mas continua a ser verdade
que a Argélia dos anos de 1960 — a da Sociologie de 1'Algérie, de Travail et Tra-
vailleurs ou ainda de Déracinement — foi, para Pierre Bourdieu, muito mais
que um solo de aprendizagem; foi o solo de experimentação e de maturação
do seu pensamento. Basta, para tomarmos consciência disso, a releitura hoje
do Esboço..., cuja primeira parte, os "Três estudos de etnologia cabila", foi re­
digida em meados dos anos 60 e que, com toda a liberdade e audácia que a
ruptura com a instituição etnológica permite, submete a uma crítica metódica
e empiricamente armada um estruturalismo ao tempo instalado no coração
da cena intelectual parisiense.
Um jovem que marcou as suas distâncias frente à "disciplina de cú­
pula", a filosofia, vê-se lançado em pleno conflito argelino. É aí que se en­
raiza uma "vocação de etnólogo" e, depois, de sociólogo. É preciso, ao
mesmo tempo que se apoia a causa da independência, compreender a todo
o preço e, tanto quanto possível, fazer compreender, o drama de uma socie­
dade dilacerada, que merece mais do que a adesão exaltada de um apoio
político incondicional. Se, em política, se ouvem ainda os gritos da contes­
tação, o debate intelectual, pelo seu lado, encerra-se entre marxismo, feno-
menologia e estruturalismo, em exclusivismos infrutíferos. É portanto
numa terra perturbada e num clima intelectual polêmico que Pierre Bour­
dieu vai forjar os principais conceitos do mundo social por ocasião de um
trabalho sobre o parentesco, a economia e os rituais cabilos. Progressiva­
mente irá assim tomando forma esse primeiro balanço metodológico e pro­
blemático, ainda marcado pelo esforço de arrancamento aos pensamentos
estabelecidos, que é o Esboço, sistematizado oito anos mais tarde em O Sen­
tido Prático (Le Sens Pratique).

vii
viii ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

A publicação, em 1980, de O Sentido Prático não torna obsoleto o texto de


1972. A sua presente reedição não vem apenas lembrar a importância da
Argélia no percurso de um pensamento, é tornada necessária pela extensão
que a obra do seu autor tomou. Não se trata de mostrar a sua profunda unida­
de (o que se torna desnecessário após as publicações mais recentes, sobretudo
Respostas..., Razões Práticas e Meditações Pascalianas), mas, mais profunda­
mente, de pôr ao alcance de todos um texto que nos parece fundador de uma
atitude crítica, de uma revolução do olhar lançado sobre as sociedades huma­
nas; um texto, ainda, que pode desempenhar plenamente hoje, no que se refe­
re aos mais jovens, o seu papel de introdução a um modo de proceder; um tex­
to, enfim, que "se explica" consigo próprio e desenha o seu caminho entre,
contra e com os outros. Em suma, trata-se de uma maneira de evitar a queda
na "amnésia da gênese", tema caro ao sociólogo.
No momento em que a disciplina histórica se orienta para uma teoria da
acção, em que os antropólogos redescobrem os rituais e os mitos enquanto ex­
periência pragmática do mundo, em que os economistas experimentam a ne­
cessidade imperiosa de retomarem contacto com a antropologia, reler o Esbo­
ço... é tomar consciência do trabalho subterrâneo de uma obra que ocupa do-
Para Abdelmalek Sayad
Addu dusa'dhi, ataghedh disa'dh-is
I.
I
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Parte I | TRÊS ESTUDOS DE ETNOLOGIA CABILA

t
l
SENS (sanss';san jusqu'au XIXe s.). n. m. (XIe s. ROL.; empr. lat. sensus, "action
manière de sentir; sentiment; pensée; signification").
3.° Par anal. "Faculté de connaitre dune manière immédiate et intuitive (comme
celle que paraissent manifester les sensations proprement dites)” Lalande. Le
sens de I 'orientation, de l 'equilibre (cf. Raccrocher, cit. 7). Legoüt (bon goút), le plus
subtil des sens (cf. Malpropre, cit. 3). Lesens de Dieu (cf. Concept, cit. 2), du sacré,
du merveilleux (cf. Garder, cit. 47). Le sens des réalités, de la réalité (cf. Enfoncer, cit.
41), de 1’efficacité (cf. Discipliner, cit. 3), le sens pratique, le sens politique (cit. 16),
national (cf. Aliénation, cit. 1). Sens des responsabilités (cf. aussi Fuite, cit. 7), des
hiérarchies (cf. Heurter, cit. 18), des affaires. V. Instinct, notion. Sens artistique (cf.
Amenuisement, cit.), esthétique (cit. 10); sens du beau (cf. Prosaique, cit. 3), Avoir
le sens du comique (cit. 7), du ridicule (cf. Humour, cit. 5), de I 'humor. Perdre le sens
de la mesure (cf. Hyperbole, cit. 2). — Sens interne ou intime. V. Conscience (I).
Sens moral* (cit. 1). V. Conscience (II). O O*'
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PRÓLOGO

Ao publicar textos tão antigos como os estudos sobre o sentido da honra e so­
bre a casa cabila, não esperamos sacrificá-los apenas a essa forma de compla­
cência que consiste em medir o valor de uma obra pelos esforços e pelos riscos
(não só intelectuais) que ela custou. A solicitude do autor mistura-se com a ir­
ritação do leitor perante certa análise que alguns diriam "funcionalista" ou
perante certo jeito de estilo ou certo cambiante de tom a que outros chama­
riam hoje "humanista" e que têm em comum o facto de traírem a intenção
mais ou menos consciente de reabilitarem contra uma ideologia e uma políti­
ca inumanas um povo capaz de produzir um modelo das relações do homem
com o homem tão conseguido como o da competição de honra. A análise, aqui
isolada, das estratégias por meio das quais os camponeses cabilas se esforçam
por manter ou aumentar o seu capital de honra fora primitivamente concebi­
da como indissociável de uma restituição do sistema das regras objectivas e
das paradas materiais e simbólicas do jogo político e econômico: recolocadas
nesse contexto, e, mais precisamente, no sistema das estratégias que visam a
reprodução do capital simbólico que os comportamentos de honra represen­
tam, essas estratégias revelam a função que lhes é atribuída na reprodução de
uma ordem econômica e política da qual o próprio ethos da honra, princípio
gerador das mesmas estratégias, é produto.
O texto sobre a casa cabila, que, por um efeito de aproximação, talvez
contribua para reforçar a aparência de uma autonomização indevida da or­
dem simbólica, não é mais do que um fragmento (ainda que a homologia en­
tre a casa e o cosmo lhe confira uma posição central) de uma análise da estru­
tura do sistema mítico-ritual: a relação de duplo sentido que liga esse sistema
às estruturas econômicas nunca se revela melhor que no calendário agrícola;
este reproduz, sob a forma transfigurada de um sistema simbólico coerente,
os ritmos do ano agrícola e em particular a oposição entre o período de traba­
lho, quer dizer, principalmente as lavras e a colheita, acompanhadas de uma
intensa actividade ritual com funções sobretudo profilácticas, e o período da

3
4 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

simples produção, muito mais longo, durante o qual o grão semeado se en_
contra submetido a processos naturais de transformação (como, numa op^a
ordem, a olaria posta a secar), sendo então o sistema de trabalho quase totaj_
mente parado ou reduzido a actividades técnico-rituais e a ritos propiciatórj_
os, menos solenes porque menos dramaticamente exigidos pela represent
ção mítica da actividade agrária enquanto afrontamento perigoso de pripcp
pios antagônicos.
Em suma, a imagem da sociedade cabila proposta por estes fragmentos
de uma obra interrompida (pelo menos provisoriamente) é ainda mais abs-
tracta, neste caso mais do que em qualquer outro lado, pelo facto de ser ape­
nas ao nível das relações objectivas que se revelam a significação e a função c|e
cada uma das instâncias. Se o princípio último de qualquer sistema reside evj_
dentemente num modo de produção que, em razão da distribuição aproxi-
mativamente igual da terra (sob a forma de pequenas propriedades parcela­
das e dispersas) e dos instrumentos de produção, de resto fracos e estáveis,
exclui pela sua própria lógica o desenvolvimento das forças produtivas e a
concentração do capital — entrando a quase-totalidade do produto agrícola
directamente no consumo do seu produtor —, não é menos verdade que a
transfiguração ideológica das estruturas econômicas nas taxinomias do dis­
curso mítico ou da prática ritual contribui para a reprodução das estruturas
assim consagradas e santificadas. E do mesmo modo, se a forma de transmis­
são do patrimônio (material e simbólico) está no princípio da concorrência e
por vezes do conflito entre os irmãos e, mais largamente, entre os agnatos,
não há dúvida de que as pressões econômicas e simbólicas que se exercem no
sentido da indivisão do patrimônio familiar contribuem para a perpetuação
da ordem econômica e, por isso, da ordem política que funda e que descobre a
sua forma própria de equilíbrio na tensão, observável a todos os níveis da es­
trutura social, da linhagem à tribo, entre a tendência para a sociação e a ten­
dência para a dissociação: quando, para darmos conta do facto de uma forma­
ção social se encerrar no ciclo perfeito da simples reprodução, nos contenta­
mos com invocar as explicações negativas de um materialismo empobrecido,
como a precariedade e a estabilidade das técnicas de produção, e nos proibi­
mos de compreender a contribuição determinante que as representações éti­
cas e míticas podem trazer à reprodução da ordem econômica das quais são
produto, favorecendo o desconhecimento do fundamento real da existência
social, quer dizer, muito concretamente, proibindo que os interesses que
guiam sempre objectivamente as trocas econômicas ou mesmo simbólicas,
ainda que entre irmãos, possam alguma vez de modo aberto confessarem-se
como tais e tomarem-se o princípio explícito das transacções econômicas e,
de uma etapa a outra, de todas as trocas entre os homens.

Paris, Dezembro de 1971


Capítulo 1
O SENTIDO DA HONRA

When we discuss the levels of descriptive and explanatory adequacy, questions


immediately arise concerning the firmness of the data in terms of which success
is to be judged For example, [...] one might ask how we can establish that
the two are sentences of different types, or that "John's eagerness to please..is
well-formed, while "John's easiness to please..." is not, and so on. There is no
very satisfying answer to this question; data of this sort are simply what consti­
tute the subject matter for linguistic theory. We neglect such data at the cost of
destroying the subject.
Noam Chomsky, Current Issues in Linguistic Theory. ~.
A2u
N. nunca deixara de poder coiner aquilo que queria comer, fizera trabalhar os
outros para ele, beneficiara, como que por um direito de senhor, de tudo o que
os outros tinham de melhor nos seus campos e nas suas casas e, embora a sua
situação tivesse decaído muito, julgava-se autorizado a tudo, sentia-se no di­
reito de exigir tudo, de atribuir a palavra apenas a si próprio, de insultar ou
mesmo de agredir todos os que lhe resistissem.1 Era, sem dúvida, por isso que
o consideravam um amahbul. Amahbul é o indivíduo desavergonhado e desca­
rado que ultrapassa os limites das conveniências que garantem as boas rela­
ções, é aquele que abusa de um poder arbitrário e comete actos contrários
àquilo que a arte de viver ensina. Estes imahbal (plural de amahbul) são evita­
dos porque não se gosta de ter uma disputa com eles, porque eles estão a salvo
da vergonha, porque quem lhes fizesse frente não poderia deixar de ser sua
vítima, ainda que tivesse a razão pelo seu lado.
O nosso homem tinha no seu quintal um jardim que devia ser reconstruí­
do. O vizinho dele tinha um muro de suporte. Ele deitou este muro abaixo e

1 Este texto foi publicado com o título "The sentiment of honour in Kabyle Society", em Ho­
nour and Shame, J. Peristiany (org.), Chicago, The University of Chicago Press, Londres,
Weidenfeld and Nicholson, 1966.

5
6 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

levou para sua casa as pedras. Este acto arbitrário não foi exercido, desta vezz
contra uma pessoa mais fraca: a "vítima" tinha meios suficientes para se de­
fender. Era um homem jovem, forte, que contava com muitos irmãos e paren­
tes, pois pertencia a uma família numerosa e influente. Era então evidente
que, se ele não respondera ao desafio, não havia sido por medo. Por conse­
guinte, a opinião pública não pôde ver nesse acto abusivo um verdadeiro de­
safio, ferindo a honra. Muito pelo contrário, a opinião e a vítima aparentaram
ignorá-lo: com efeito, é absurdo entrar em querela com um amahbul; ou não é
verdade que se diz: "Um amahbul, foge dele?"
Apesar de tudo, a vítima foi ter com o irmão do culpado. Este último
dava razão ao queixoso, mas interrogava-se sobre os meios a usar para recon­
duzir o amahbul à razão. Deu a entender ao seu interlocutor que fizera mal em
não reagir com a mesma violência, no momento do incidente, mas acrescen­
tando: "Por quem se toma, esse patife?" Então, o visitante, mudando brusca­
mente de atitude, indignou-se: "Oh, Si M., por quem me estás a tomar? Pen­
sas que eu aceitaria ter uma discussão com Si N. por causa de meia dúzia de
pedras? Vim ver-te porque sei que és avisado e que contigo posso falar, por­
que me vais compreender, e não vim pedir que as pedras me sejam pagas
(neste passo, multiplicou os juramentos por todos os santos, asseverando que
nunca aceitaria qualquer indemnização). Porque aquilo que Si N. tinha feito,
era preciso ser-se amahbul para o fazer, e eu, eu não me vou mergulhar a mim
próprio na vergonha (adhbahadlagh ruiwh)2 com um amahbul. Limito-me a fazer
notar que não é procedendo assim que se constrói uma casa lícita, justa (akham
nasah)". E acrescentou, precisamente no remate da conversa: "Aquele que
conta com um amahbul do seu làclo deve chamá-lo à razão ele próprio antes
que sejam outros a fazê-lo"; ou, por outras palavras: "Fazes mal em não te so­
lidarizares com o teu irmão diante de mim, embora o devesses depois acusar
ou corrigir na minha ausência, como de resto te estou a pedir que faças"
(Aghbala)? Para compreendermos toda a subtileza deste debate, precisamos
de saber que opunha um homem perfeitamente senhor da dialéctica do desa­
fio e da réplica a um outro que, por ter vivido muito tempo afastado da Cabí-
lia, esquecera o espírito da tradição, não vendo no incidente mais do que um

-----------------

2 Para o vocabulário cabila da honra, ver adiante [p. 62 #da edição francesa], Bahdel é preci­
pitar na vergonha, desonrar, dominar por completo alguém, espancá-lo à vontade, ridi­
cularizá-lo, em suma: levar a vitória para além dos seus limites razoáveis. Bahdel é mais
ou menos censurável segundo o adversário que atinge e sobretudo segundo o que lhe é
censurado. A propósito de amahbul, não se diz:" Tenho medo de que ele me ponha a ridí­
culo (bahdel) (verbo)’’, mas "não vou pôr-me a ridículo (ao meu espírito, a mim próprio)
com ele." Chemmeth tem aproximadamente o mesmo sentido e os mesmos empregos
(ichemmeth iman-is: ele desonra-se).
3 ’’Aquele que desnuda o seu irmão, desnuda-se a si próprio", diz o provérbio, "Injuria-se a
si próprio (quer dizer: ao irmão e à família); o burro vale mais que ele" (Its' ayar ímanis,
daghuyl akhiris).
O SENTIDO DA HONRA 7

pequeno roubo cometido por um irmão, a quem podia desautorizar em nome


da justiça e do bom senso, sem que as regras da solidariedade familiar fossem
por esse facto violadas e que raciocinava em termos de interesse: a parede
vale tanto, a pessoa lesada deve ser ressarcida. E o seu interlocutor ficava es­
pantado por um homem tão instruído poder equivocar-se a tal ponto acerca
das suas verdadeiras intenções.
Certo ano, numa outra aldeia, um camponês fora roubado pelo seu ren­
deiro. Este último era useiro em tais actos, mas, no ano em questão, ultrapas­
sara todos os limites. Esgotadas as acusações e as ameaças, os dois compare­
ceram perante a assembléia. Os factos eram do conhecimento de todos, era
inútil proceder-se à sua prova e, vendo-se numa situação desesperada, o ren­
deiro acabou por em breve pedir perdão em conformidade com as tradições,
mas não sem ter desenvolvido toda a espécie de argumentos: que cultivava
aquela terra havia muito tempo, que a considerava sua propriedade pessoal,
que o proprietário ausente não tinha necessidade da colheita, que, para lhe
ser agradável, ele lhe oferecia os seus próprios figos, da melhor qualidade,
embora fosse capaz de se compensar em seguida no que se referia à quantida­
de, que era pobre, que o proprietário era rico e rico "para dar aos pobres", etc.,
outras tantas razões expostas no intuito de lisonjear o proprietário. E acabou
por proferir a fórmula "Deus me perdoe", que, segundo os usos, deve pôr de­
finitivamente fim ao debate. Mas acrescentou:

Se agi bem, Deus seja louvado (tanto melhor), , .■


Se errei, Deus me perdoe. Q

O proprietário enfureceu-se perante esta fórmula, que era perfeitamente legíti­


ma e apropriada, pois lembra que um homem, precisamente quando procedeu à
reparação exigida pela honra, não pode atribuir-se todos os erros, e tem por isso
sempre um pouco de razão, da mesma maneira que o outro é sempre autor de al­
gum erro: o proprietário queria, no entanto, um simples "Deus me perdoe", uma
submissão sem condições. O outropediu então à assistência que fosse sua teste­
munha: "Ó criaturas, amigos dos santos! Como? Eu louvo a Deus e eis senão
quando este homem acusa-me de o fazer!" E repetiu duas ou três vezes a mesma
fórmula, fazendo-se cada vez mais pequeno e humilde. Perante uma tal atitude,
o proprietário exaltou-se cada vez mais, de tal modo que, por fim, era toda a al­
deia que, apesar do respeito que atribuía a um homem letrado, "estranho" ao
país”, se sentia desolada por ter de o censurar. Uma vez acalmados os espíritos, o
proprietário arrependeu-se da sua intransigência; a conselho da mulher, mais in­
formada do que ele dos usos, foi ter com o íman da aldeia e alguns parentes mais
idosos a fim de se desculpar pelo seu comportamento; fez valer que fora vítima
de elbahadla (o facto de bahdel), o que todos haviam já compreendido.
Num outro lugar, a tensão entre os dois "partidos" (suf) fora exasperada
por um incidente. Um deles, cansado, delegou a sua defesa num grupo de
8 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

notáveis do "partido" contrário, composto de marabus do aduar e de aduares


vizinhos, do íman da aldeia e de todos os tulba (plural de taleb) de uma
thim'amarth (escola religiosa) vizinha, ou seja mais de quarenta pessoas, às
quais assegurara transporte, hospedagem e alimentação. Para todos os habi­
tantes da região, exceptuado aquele que era o alvo desta diligência, um cabila
desenraizado e pouco informado dos usos, a iniciativa era um ritual. O costu­
me queria que, depois de ter beijado os negociadores na fronte, fossem aceites
todas as suas ofertas e se invocasse a paz, o que não excluía que as hostilida­
des fossem depois retomadas, sob um qualquer pretexto, e sem que ninguém
tivesse nada a objectar a isso. Os notáveis começam por anunciar o fim da sua
diligência: "Os Ath... vêm pedir perdão." O uso quer que, no primeiro mo­
mento, se dessolidarizem da parte pela qual vêm interceder. Falam depois,
dignamente, os que pedem perdão "no interesse de todos e sobretudo no inte­
resse dos mais pobres da aldeia": "São aquele que sofrem com todas as nossas
discórdias; não sabem para onde ir, é vê-los, fazem dó... [outras tantas razões
que permitem salvar a face], Façamos a paz, esqueçamos o passado." Compe­
te àquele que é assim solicitado manifestar algumas reticências, algumas re­
servas, ou que, segundo uma cumplicidade tácita, uma parte do seu campo se
mostre mais dura, enquanto a outra, a fim de nada comprometer definitiva­
mente, se mostra mais conciliadora. A meio do debate, os mediadores inter­
vém; acusam a parte solicitada, apontam-lhe erros, o que é feito a fim de resta­
belecer o equilíbrio e de evitar uma humilhação total (elbahadla) ao que solici­
ta. Porque o simples facto de se ter recorrido aos marabus, de os ter alimenta­
do e de os acompanhar constitui em si próprio uma concessão suficiente; não
se pode ir mais longe na submissão. Além disso, os intercessores, estando,
pela sua função, acima das rivalidades, e gozando de um prestígio capaz de
forçar o consentimento, podem permitir-se admoestar um pouco aquele que
se faz rogar demasiado: "Sem dúvida, talvez eles tenham cometido muitos er­
ros, mas, tu Si X., foste culpado no seguinte..., não deverías ter feito... e hoje
deves perdoar-lhe; de resto, perdoais-vos naturalmente, comprometemo-nos
a sancionar a paz que concluirdes, etc." A sabedoria dos notáveis autoriza-os
a operarem este doseamento dos erros e das razões. Mas, na ocorrência, aque­
le que estava a ser solicitado não podia, à falta de conhecer a regra do jogo,
adaptar-se a estas subtilezas diplomáticas. Insistia em esclarecer tudo, racio­
cinava em termos de "ou.'.S’ou...": "Como? Se me vindes pedir perdão a mim,
é porque foram os outros que erraram; é a eles que deveis condenar, em vez de
me acusardes. Amenos que, pelo facto de eles vos terem alimentado e pago,
tenhais vindo aqui para os defender." Era a mais grave injúria que podia ser
feita ao areópago; para a memória de um cabila, tratava-se da primeira vez
que uma delegação de personagens tão veneráveis não conseguia obter o
acordo das duas partes, e o refractário ficava destinado à pior das maldições.
O SENTIDO DA HONRA 9

A dialéctica do desafio e da resposta

Poderíam descrever-se múltiplos factos análogos, mas a análise destas três nar­
rativas permite destacar as regras do jogo da resposta e do desafio. Para que
haja desafio, é necessário que aquele que o lança considere que aquele que o re­
cebe deve ser desafiado, quer dizer, capaz de aceitar o repto, em suma, que o te­
nha por seu igual em matéria de honra. Lançar a alguém um desafio é reconhe-
cer-lhe a qualidade de homem, reconhecimento que é a condição de qualquer
troca e do desafio de honra enquanto primeiro momento de uma troca, é reco-
nhecer-lhe também a dignidade de homem de honra, uma vez que o desafio,
enquanto tal, requer a resposta e, por conseguinte, endereça-se a um homem
considerado capaz de jogar o jogo da honra e de o jogar bem, o que supõe, antes
do mais, que conheça as suas regras e, em seguida, que seja detentor das virtu­
des indispensáveis para as respeitar. O sentimento da igualdade em honra, que
pode coexistir com desigualdades de facto, inspira um grande número de com­
portamentos e de costumes e manifesta-se em particular na resistência oposta a
toda a pretensão de superioridade: "Eu também tenho bigode", costuma di­
zer-se.4 O fanfarrão é imediatamente chamado à ordem: "E só, como se diz, o
monte de lixo que incha"; "a cabeça dele chega-lhe à chéchia"; “o negro é negro,
acrescentaram-lhe tatuagens!"; "ele quer andar com o passo da perdiz quando
esqueceu o da galinha!" Na aldeia de Tizi Hibel, na Grande Cabília, uma famí­
lia rica fizera construir para os seus um túmulo de estilo europeu, com gradea­
mento, pedra tumular e inscrição, transgredindo a regra que impõe o anonima­
to e a uniformidade das sepulturas. No dia seguinte, os gradeamentos e a pe­
dra tinham desaparecido.
Do princípio do reconhecimento mútuo da igualdade em honra decorre
um primeiro corolário: o desafio faz honra. "O homem que não tem inimigos,
dizem os Cabilas, é um burrico", sendo a tônica posta aqui não na estupidez do
burro, mas na sua passividade. O que há de pior é passar-se despercebido, as­
sim, não saudar alguém é tratá-lo como uma coisa, um animal ou uma mulher.
O desafio é, pelo contrário, "um cimo da vida para quem o recebe (El Kalaa). E,
com efeito, a ocasião para alguém existir plenamente enquanto homem, de
provar aos outros e a si próprio a sua qualidade de homem (thirugza). O ho
mem completo" (argaz alkamel) deve estar sem interrupção em estado de alerta,
pronto a aceitar o mais pequeno desafio. É o guardião da honra (amhajar), a -
guém que vela pela sua própria honra e pela honra do seu grupo.
Segundo corolário: quem desafia um homem incapaz de ripostar ao
desafio, quer dizer, incapaz de continuar a troca iniciada, desonra-se a si

4 O bigode, usado aqui como termo descritivo para situar a idade ("a barba dele despon­
ta", "o bigode dele desponta"), é um símbolo de virilidade, componente essencial do nif;
e o mesmo se passa com a barba, ou passava sobretudo outrora. Para se falar de um ultraje
profundo, dizia-se: "Fulano cortou-me a barba (ou o bigode)."
10 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

próprio. É assim que a elbahadla, humilhação extrema infligida publicamente,


diante dos outros, acarreta sempre o risco de recair sobre quem a provoca, so­
bre o alahbul que não sabe respeitar as regras do jogo da honra: até mesmo
aquele que merece elbahadla tem uma honra (nife hurma) e é por isso que, para
além de um certo limiar, a elbahadla recai sobre quem a inflige. Por isso, as
mais das vezes, evita-se lançá-la sobre alguém a fim de o deixar cobrir-se de
vergonha por meio do seu próprio comportamento. Em tal caso, a desonra é
irremediável. Diz-se: ibahdal imanis ou itsbahdil simanis (aghbala). Em conse­
quência, aquele que está numa posição favorável deve evitar levar demasia­
do longe a sua vantagem e moderar um pouco a sua acusação: "Mais vale que
ele se dispa sozinho", diz o provérbio, "que ser eu a despi-lo" (djemaa-saha-
ridf). Pelo seu lado, o adversário pode sempre tentar inverter a situação levan­
do o que se encontra na posição mais favorável a ultrapassar os limites permi­
tidos, ao mesmo tempo que oferece uma reparação segundo a honra. Isto,
como vimos na segunda narrativa, a fim de obter o apoio da opinião da
assembléia, que não poderá deixar de desaprovar a desmesura do acusador.
Terceiro corolário (proposição recíproca do corolário anterior): só um
desafio (ou uma ofensa) lançado por um homem igual em honra merece res­
posta; por outras palavras, para que haja desafio, é necessário que aquele que
o recebe considere aquele que o lança digno de o fazer. A afronta vinda de um
indivíduo inferior em honra recai sobre o presunçoso. "O homem prudente e
avisado, amahdhuq, não se comete com amahbul". A sabedoria cabila ensina:
"Tira a amahdhuq e dá a amahbul" (azerou n-chmini). Aelbahadla recairia sobre o
homem avisado que se aventurasse a ripostar ao desafio insensato de amah­
bul, ao passo que, abstendo-se de ripostar, o deixa com a'carga de todos os
seus actos arbitrários. Do mesmo modo, a desonra recairia sobre aquele que
sujasse as mãos numa desforra indigna: assim acontecia que os Cabilas recor­
ressem por vezes a assassinos contratados (amekri, plural imekryen, literal­
mente: aquele cujos serviços se alugam). E, portanto, a natureza da resposta
que confere ao desafio (ou à ofensa) o seu sentido e até mesmo a sua qualida­
de de desafio ou de ofensa, por contraste com a simples agressão.
Os Cabilas tinham perante os negros uma atitude que ilustra perfeita-
mente estas análises. Aquele que respondesse às injúrias de um negro, ho­
mem de condição inferior e desprovido de honra, ou se batesse com ele, de-
sonrar-se-ia a si próprio.5 Segundo uma tradição popular do Djurdjura,

5 De um homem pouco preocupado com a sua honra, diz-se: "É um negro." Os negros não
têm nem devem ter honra. Eram mantidos distantes dos assuntos públicos e, se podiam
participar em certos trabalhos colectivos, não tinham o direito de tornar a palavra nas re­
uniões da assembléia; em certos locais, era-lhes até proibido assistir às suas sessões. Seria
vergonhoso perante as outras tribos dar ouvidos às opiniões de um "negro". Os negros,
mantidos à margem da comunidade ou clientes das grandes famílias, exerciam profis­
sões consideradas vis, como talhante, vendedor de peles ou músico ambulante (ait In­
chem).
O SENTIDO DA HONRA 11

aconteceu um dia que, durante uma guerra entre duas tribos, uma delas opôs
combatentes negros aos seus adversários, que baixaram as armas. Mas os
vencidos conservaram a salvo a sua honra ao passo que os vencedores fica­
ram desonrados com a sua vitória. Por vezes diz-se também que, para evitar a
vingança do sangue (thamgart, plural thimagart), bastava outrora a união com
uma família de negros. Mas tratava-se de um comportamento tão infamante
que ninguém aceitaria pagar tal preço para salvar a vida. Tal seria, no entanto,
o caso, segundo uma tradição local, dos talhantes de Ighil ou Mechedal, os
Ath Chabane, negros que tinham por antepassado um cabila que, a fim de es­
capar à vingança, se teria feito talhante e a cujos descendentes, em seguida, só
seriam permitidas alianças com negros (ait hichem).
As regras da honra regiam também os combates. A solidariedade impu­
nha a qualquer indivíduo que protegesse um parente contra um não parente,
um aliado contra um homem de outro "partido" (suf), um habitante de aldeia,
ainda que de um partido contrário, contra um estranho à aldeia, um membro
da tribo contra um membro de outra tribo. Mas a honra proíbe, sob pena de in­
fâmia, que vários combatam contra um só; por isso, os interessados esforça­
vam-se, através de mil artifícios e pretextos, por renovar a querela a fim de a po­
derem retomar por sua conta. Assim, as mais pequenas querelas ameaçavam
sempre alargar-se. As guerras entre os "partidos", essas ligas políticas e guerrei­
ras que se mobilizavam a partir do momento em que um incidente surgia e em
que a honra de todos era atingida na honra de um só, tomavam a forma de uma
competição ordenada, que, longe de pôr em perigo a ordem social, tendia pelo
contrário a salvaguardá-la, permitindo ao espírito de competição, ao ponto de
honra, ao nif,6 exprimir-se, mas no interior das formas prescritas e instituciona­
lizadas. O mesmo se passava com as guerras entre tribos. O combate tomava
por vezes a forma de um verdadeiro ritual: trocavam-se injúrias, depois golpes
e o combate cessava com a chegada dos mediadores. Durante o combate, as
mulheres encorajavam os homens com os seus gritos e os seus cantos que exal­
tavam a honra e a força da família. Não se procurava matar ou esmagar o ad­
versário. Tratava-se de manifestar a superioridade, as mais das vezes por meio
de um acto simbólico: na Grande Cabília o combate cessava, diz-se, quando um
dos dois campos se apoderara da trave mestra (thigejdith) e de uma laje tomada
da thajma 'th do adversário. Por vezes as coisas corriam mal, ou porque um gol­
pe infeliz causava a morte de um combatente ou porque o "partido" mais forte
ameaçava penetrar nas habitações, último refúgio da honra. Só então os sitia­
dos pegavam nas suas armas de fogo, o que a maior parte das vezes bastava
para pôr termo ao combate. Os mediadores, marabus e sábios da tribo, pediam
aos agressores que se retirassem e estes iam-se sob a protecção da palavra dada,

6 O nifé, em sentido próprio, o nariz e, depois, o ponto de honra, o amor-próprio; diz-se


também, no mesmo sentido, thinzarin (ou anzaren, segundo as regiões), plural de thin-
zerth, a narina, o nariz (cf. igualmente a nota 10).
12 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

la'naya? Ninguém pensaria em causar-lhes dano; isso seria quebrar la'naya, fal­
ta supremamente desonrosa (djemaa-saharidj). Segundo um velho dos Ath
Mangellat (Grande Cabília), nas guerras de tribos as grandes batalhas eram ra­
ras e só ocorriam após um conselho realizado pelos anciãos, que fixavam o dia
da acção e o objectivo atribuído a cada aldeia. Cada um lutava por si, mas eram
gritados conselhos e encorajamentos. De todas as aldeias em redor, as pessoas
olhavam e davam a sua opinião sobre a audácia e a habilidade dos combaten­
tes. Quando o partido mais forte ocupava posições a partir das quais podia es­
magar o adversário ou quando se apoderava de um símbolo manifesto de vitó­
ria, o combate parava e cada tribo voltava para a sua terra. Podia acontecer que
se fizessem prisioneiros: colocados sob a protecção (la'naya) daquele que os cap­
turara, eram em geral bem tratados. Permitia-se-lhes que partissem no final do
conflito, com uma gandura nova, o que significava que o liberto era um morto
que voltava à sua aldeia com a sua mortalha. O estado de guerra (elfetna) podia
durar anos. De certa maneira, a hostilidade era permanente; a tribo vencida fica­
va à espera da desforra e, na primeira ocasião, apoderava-se dos rebanhos e dos
pastores dos seus inimigos; a pretexto do mais pequeno incidente, por altura do
mercado semanal, por exemplo, o combate recomeçava.7 8 Em suma, nada mais
difícil do que distinguir, em semelhante universo, o estado de paz e o estado de
guerra. Seladas e garantidas pela honra, as tréguas entre aldeias e tribos, como os
pactos de protecção entre as famílias, vinham apenas pôr um termo provisório à
guerra, o mais sério dos jogos inventado pela honra. Se o interesse econômico
podia fornecer o ensejo da guerra e satisfazer-se com ela, o combate aparenta­
va-se mais a uma competição institucionalizada e regulamentada que a uma
guerra pondo em jogo todos os meios disponíveis em vista de uma vitória total,
conforme o documenta o seguinte diálogo, narrado por um velho cabila:
O £
.
"Um dia alguém disse a Mohand Ouqasi:
— Vens à guerra? O
— O que é que lá se faz? '
— Pois bem, assim que se vê um Rumi, dispara-se sobre ele.
— Como é que isso é?
— E como querias que fosse?
— Julgava que devia haver uma disputa, depois injúrias e, por fim, o
combate!

7 Vemos aqui a função social dos marabus. Proporcionam a saída, a "porta" (thnbbwth)
como dizem os Cabilas, e autorizam a pôr fim ao combate sem que a desonra e a vergonha
recaiam sobre um ou outro dos dois partidos. A sociedade, por uma espécie de má-fé in­
dispensável para assegurar a sua própria existência, fornece ao mesmo tempo os impera­
tivos da honra e das vias oblíquas que permitem contorná-los sem os violar, pelo menos
aparentemente.
8 Um velho da aldeia de Ain Aghbel, na região de Collo, fornecia-nos no Verão de 1959 uma
descrição ponto por ponto semelhante.
O SENTIDO DA HONRA 13

— Nada disso; ele atira sobre nós e nós atiramos sobre ele. É assim...
— Então, vens?
— Não, eu quando não estou furioso, não sou capaz de disparar sobre as
pessoas//. 9

Mas o ponto de honra descobria outras ocasiões para se manifestar: animava


por exemplo as rivalidades entre aldeias que entendiam ter a mesquita mais
alta e mais bela, as fontes mais bem arranjadas e mais bem protegidas dos olha­
res, as festas mais sumptuosas, as ruas mais limpas e assim por diante. Todas as
espécies de competições rituais e institucionalizadas forneciam também pre­
texto a justas de honra, como o tiro ao alvo, que era praticado por altura de to­
dos os acontecimentos felizes — nascimento de um rapaz, circuncisão ou casa­
mento. Por ocasião dos casamentos, a escolta composta de homens e de mulhe­
res encarregada de ir buscar a noiva a uma aldeia ou a uma tribo vizinha devia
vencer sucessivamente duas provas, a primeira reservada às mulheres, de
duas a seis "embaixadoras" reputadas pelo seu talento, a segunda destinada
aos homens, de oito a vinte bons atiradores. As embaixadoras disputavam com
as mulheres da família ou da aldeia da noiva um torneio poético, no qual de­
viam ter a última palavra: incumbia à família da noiva escolher a natureza e a
forma da prova, ou enigmas, ou concurso de poesia. Os homens enfrenta­
vam-se numa prova de tiro ao alvo: na manhã do regresso da escolta, enquanto
as mulheres preparavam a noiva e o pai desta recebia cumprimentos, os ho­
mens do cortejo deviam partir com as suas balas ovos frescos (ou, por vezes,
pedras achatadas) engastados, a grande distância, num declive ou num tronco
de árvore; em caso de falhanço, a guarda de honra do noivo voltava para a sua
terra coberta de vergonha, depois de ter passado por baixo da albarda de um
burro e desembolsado uma multa. Estes jogos tinham também uma função ri­
tual, conforme testemunham, por um lado, o formalismo rigoroso da sua pro­
gressão e, por outro, as práticas mágicas às quais davam lugar.9 10
Se toda a ofensa é desafio, nem todo o desafio, como veremos, é ultraje e
ofensa. A competição de honra pode situar-se, com efeito, numa lógica muito
próxima da do jogo ou da aposta, lógica ritualizada e institucionalizada. O
que está então em causa é o ponto de honra, o nif, vontade de ultrapassar o

9 "Souvenirs d'un vieux Kabyle" — "Lorsqu'on se battait en Kabylie", Bulletin de


I'enseignement des indigènes de ÍAcadémie d'Alger, Janeiro-Dezembro, 1934, pp. 12-13.
10 Por meio de diferentes procedimentos, as velhas feiticeiras encantavam os ovos para que
estes continuassem "virgens". Para quebrar o encanto, eram furados com uma agulha (cf.
Slimane Rahmani, "Le tir à la cible et le nifen Kabylie", Revue africaine, T. XCIII, primeiro e
segundo trimestres de 1949, pp. 126-132). Na lógica do sistema ritual, a espingarda e o
tiro (como a agulha) associam-se à sexualidade viril. Tudo parece indicar que, como em
numerosas outras sociedades (cf. por exemplo, G. Bateson, Naven, Stanford University
Press, 1936, p. 163), o nariz (nif), símbolo da virilidade masculina, é também um símbolo
fálico.
14 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

outro num combate de homem a homem. Segundo a teoria dos jogos, o bom
jogador é aquele que supõe sempre que o seu adversário saberá descobrir a
melhor estratégia e que regula por essa ideia o seu jogo; do mesmo modo, no
jogo da honra, tanto o desafio como a resposta implicam que cada antagonista
escolha participar no jogo e respeitar as suas regras, ao mesmo tempo que
postula que o seu adversário é capaz da mesma escolha.
O desafio propriamente dito, e também a ofensa, supõe, como o dom, a
escolha de disputar um jogo determinado conforme certas regras. O dom é um
desafio que honra aquele a quem se endereça, ao mesmo tempo que põe à pro­
va o seu ponto de honra (nif); consequentemente, do mesmo modo que aquele
que ofende um homem incapaz de ripostar se desonra a si próprio, também
ofende aquele que faz um dom excessivo, excluindo a possibilidade de um
contradom. O respeito da regra exige, nos dois casos, que seja deixada uma
possibilidade de resposta, em suma, que o desafio seja razoável. Mas, no mes­
mo acto, dom ou desafio constituem uma provocação e uma provocação a ri­
postar: "Ele fez-lhe vergonha", diziam, segundo Marcy, os Berberes de Marro­
cos a propósito do dom em forma de desafio (tawsa) que marcava as grandes
ocasiões. Aquele que recebeu o dom ou sofreu a ofensa é apanhado na engrena­
gem da troca e deve adoptar um comportamento que, faça o que fizer, será uma
resposta (ainda que por defeito) à provocação constituída pelo acto inicial.11
Pode escolher prolongar a troca ou rompê-la (cf. o esquema da página
seguinte). Se, obedecendo ao ponto de honra, optar pela troca, a sua escolha é
idêntica à escolha inicial do adversário;'aceita entrar no jogo, que pode conti­
nuar até ao infinito: ripostar é, pelo seu efeito, um novo desafio. Conta-se que
outrora, assim que a vingança se consumava, toda a família saudava por meio
de manifestações de regozijo o fim da desonra, thuqdha an-tsasa, quer dizer, ao
mesmo tempo o alívio do mal-estar que se tinha no "fígado" devido à ofensa e
também a satisfação de se estar vingado: os homens disparavam tiros, as mu­
lheres soltavam "iu-iu", proclamando assim que a vingança fora cumprida, a
fim de todos verem como uma família de honra sabe restaurar com prontidão o
seu prestígio e a fim de a família inimiga não poder alimentar quaisquer

11 G. Marcy, "Les vestiges de la parenté maternelle en droit coutumier berbère et le régime


des successions touarègues", Revue africaine, n.° 85,1941, pp. 187-211. Um dos paradoxos
da comunicação é que continua a ser preciso comunicar para significar a recusa de comu­
nicar, e todas as civilizações dispõem de uma simbólica da não comunicação. Tal é essen­
cialmente, entre os Cabilas, o facto de virar costas — por oposição ao fazer frente frabel),
atitude própria do homem de honra —, de recusar falar ("Não se falam: é como entre o
gato e o rato"). Para exprimir a agressão simbólica ou a provocação, diz-se: "Mijo-te em
cima" (a k bachegh); "mijo no teu caminho". Do que não leva em conta a honra da sua famí­
lia, diz-se: "Urina no pano (da sua roupa)". Diz-se também, num sentido mais forte, edfi,
sujar (em sentido próprio, aplicar bosta de vaca nos rebentos para os proteger dos ani­
mais). Entre mulheres, o desafio ou a injúria exprime-se pelo facto de "arregaçar a saia"
(chemmer).
dúvidas sobre a origem da sua desgraça. De que serve a vingança se permane
cer anônima?
Conserva-se em Djemaa-Saharidj a memória de uma thamgart (vingan­
ça de sangue) que se prolongou de 1931 a 1945, na tribo dos Ath Khellili (At
Zellal). "As coisas tinham começado assim: dois irmãos tinham matado dois
irmãos de outra família. Para fazerem crer que haviam sido atacados, um dos
dois irmãos ferira o outro. Foram condenados um a oito anos de prisão, outro
a um pouco menos. Quando o segundo foi posto em liberdade (tratava-se o
mais influente da família), desviava-se a cada passo, olhava para um lado e
para outro sem parar, estava sempre alerta. Foi abatido por um assassino a
soldo. Um terceiro irmão, que era militar, esmagou a cabeça de um mem ro
da outra família com uma pedra. As duas famílias ameaçavam-se de extermi
nio mútuo. Houvera já oito vítimas (entre as quais, as quatro aqui menciona­
das). Os marabus receberam um mandato com vista à pacificação^ do con ito.
Tinham esgotado as palavras de apaziguamento e o terceiro irmão, o mi itar,
continuava decidido a manter-se em luta e a prolongá-la. Foi solicita a a me
diação do notável de uma trio vizinha que fora chefe e era unanimemente res
peitado. Este foi ter com o recalcitrante e pregou-lhe um sermão. Tens a ca e
ça enfiada no delu (funil que leva o grão à mó); para a próxima, ficas com a ca
beça debaixo da mó." O jovem teve como que uma crise; estava pronto a o ere
cer a sua cabeça. Foi-lhe pedido que declarasse solenemente concordar em
pôr fim ao extermínio. Pronunciou-se a fatiha. Em presença de toda a aldeia
reunida, imolou-se um boi. O jovem militar ofereceu dinheiro aos marabus. E
comeu-se o cuscuz em comum" (narrativa de um dos protagonistas). Ve
mos que a intervenção do grupo se impõe quando os subgrupos se encon­
tram sob ameaça de destruição. Dado que a lógica do desafio e da resposta
acarretaria o prolongamento até ao infinito do conflito, importa, em todo o
caso, descobrir uma saída honrosa que não lance na desonra nenhuma das
duas partes e que, sem pôr em questão os imperativos da honra, autorize
16 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

que, circunstancialmente, o seu exercício seja suspenso. A tarefa de concili­


ação incumbia sempre ao grupo englobante ou a grupos "neutros", a es­
trangeiros ou a famílias marabúticas. Assim, enquanto o diferendo se sití^a
no quadro da grande família, os sábios ditam o comportamento a seguir e
apaziguam o conflito. Por vezes infligem uma multa ao indivíduo recalçi-
trante. Quando o conflito sobrevêm entre duas grandes famílias, as outras
do mesmo adhrum esforçam-se por apaziguá-lo. Em suma, a lógica da con­
ciliação é a mesma que a lógica do conflito entre secções da linhagem cujo
princípio primeiro se encontra contido no provérbio: "Odeio o meu irmão,
mas odeio aquele que o odeie". Quando um dos dois campos era de origem
marabútica, eram marabus estrangeiros que vinham convidar à paz. As
guerras entre os dois "partidos" obedeciam à mesma lógica que a vingan­
ça, o que se compreende pelo facto de esta nunca ser, para falarmos com
propriedade, individual, sendo sempre o autor da vingança mandatado
pelo subgrupo do qual faz parte. O conflito podia por vezes prolongar-se
durante várias dezenas de anos. "A minha avó contava-me" refere um in­
formador de Djemaa-Saharidj, com cerca de sessenta anos, que o sufufella
(do alto) passou vinte e dois anos fora da sua terra, no vale de Hamrawa.
Acontecia, com efeito, que o su/("partido") batido se visse forçado a partir
com as suas mulheres e os seus filhos. Em geral, a oposição entre os parti­
dos era tão rígida e tão estrita que os casamentos se tornavam impossíveis.
No entanto, por vezes, para se selar a paz entre duas famílias ou dois parti­
dos, o fim da luta era sancionado por um casamento envolvendo duas fa­
mílias influentes. Não havia desonra em tal caso. Para selar a paz, depois
de um conflito, os dois "partidos" reuniam-se. Os chefes^dos dois campos
traziam um pouco de pólvora; esta era metida dentro de canas que se troca­
vam. Era o aman, a paz'£.
A escolha do outro ramo da alternativa pode revestir-se de significações di­
ferentes e até opostas. O ofensor pode, pela sua força física, pelo seu prestígio ou
pela importância e autoridade do grupo a que pertence, ser superior, igual ou in­
ferior ao ofendido. Se a lógica da honra supõe o reconhecimento de uma igualda­
de ideal em honra, a consciência popular nem por isso ignora as desigualdades
de facto. Ao que exclama: "Eu também tenho um bigode", o provérbio responde:
"Obigode da lebre não é o do leão..." Do mesmo modo, vemos desenvolver-se
toda uma casuística espontânea, infinitamente subtil, que devemos agora anali­
sar. Seja o caso em que o ofendido tem, idealmente pelo menos, os meios que lhe
permitem ripostar: se se mostra incapaz de aceitar o desafio lançado (trate-se de
um dom ou de uma ofensa), se, por pusilanimidade ou fraqueza, se esquiva e re­
nuncia à possibilidade de responder, escolhe de certo modo fazer de si próprio a
sua desonra, que se toma então irremediável (ibahdal imanis ou simanis). Confes­
sa-se vencido no jogo que deveria, apesar de tudo, ter jogado. Mas a não resposta
pode exprimir também a recusa de ripostar: aquele que sofreu a ofensa recusa-se
a considerá-la como tal e, pelo seu desdém, que pode manifestar recorrendo a
O SENTIDO DA HONRA 17

um matador a soldo, fá-la recair sobre o seu autor, que se vê assim desonrado.12
Da mesma maneira, no caso do dom, aquele que recebe pode significar que
escolhe recusar a troca, ou repudiando o dom ou entregando de imediato ou a
prazo um contradom exactamente idêntico ao dom. Também neste caso a tro­
ca é interrompida. Em suma, nesta lógica, só o subir da parada, com o desafio
a responder ao desafio, pode significar a escolha de jogar o jogo, segundo a re­
gra do desafio e da resposta sempre renovados.
Seja agora o caso em que o ofensor prevalece indiscutivelmente sobre o
ofendido. O código de honra e a opinião encarregada de o fazer respeitar exi­
gem apenas do ofendido que este aceite entrar no jogo: subtrair-se ao desafio é
a única atitude condenável. De resto, não é necessário que o ofendido triunfe
sobre o ofensor para ser reabilitado aos olhos da opinião: não se censura o ven­
cido que fez o seu dever; com efeito, se foi vencido segundo a lei do combate, é
vencedor segundo a lei da honra. Mais ainda, a elbahadla recai sobre o ofensor
que, além disso, saiu vencedor do confronto, assim abusando duplamente da
sua superioridade. O ofendido pode também rejeitar a elbahadla sobre o seu
ofensor sem recorrer à resposta. Basta-lhe para isso adoptar uma atitude de hu­
mildade que, pondo a tônica na sua fraqueza, faça ressaltar o carácter arbitrá­
rio, abusivo e desmesurado da ofensa. Evoca assim, mais inconsciente que
conscientemente, o segundo corolário do princípio da igualdade em honra que
quer que aquele que ofende um indivíduo incapaz de ripostar ao desafio se de­
sonra a si próprio.13 Esta estratégia não é admissível, evidentemente, a não ser
na condição de que não haja qualquer equívoco aos olhos do grupo sobre a dis­
paridade entre os antagonistas; é normal entre indivíduos que são reconheci­
dos pela sociedade como fracos, os clientes (yadh itsumuthen, os que se apoiam
sobre) ou os membros de uma pequena família (ita 'fanen, os magros, os fracos).
Seja enfim o caso em que o ofensor é inferior ao ofendido. Este último
pode ripostar, transgredindo o terceiro corolário do princípio da igualdade
em honra; mas, se abusa da sua vantagem, arrisca-se a recolher para si pró­
prio a desonra que recairia normalmente sobre o ofensor inconsiderado e in­
consciente, sobre o indivíduo desprezado (amah qur) e presunçoso. A sabedo­
ria aconselha-lhe antes o "golpe do desprezo".14 Deve, como se diz, "deixá-lo
ladrar até estar cansado" e "recusar-se a entrar em rivalidade com ele". Não

12 Cf., atrás a primeira narrativa. "Uma família que não conta pelo menos com um malan­
dro está perdida." Não podendo o homem de honra condescender em reconhecer as injú­
rias de um indivíduo indigno mas nem por isso passando a estar ao abrigo das suas ofen­
sas, sobretudo na cidade, precisa de poder lançar um malandro contra outro malandro.
13 Cf., atrás, a segunda narrativa.
14 Se o conjunto das análises propostas neste estudo remetem a todo o instante o leitor oci­
dental para a sua tradição cultural, não devemos, no entanto, minimizar as diferenças. E
por isso que, excepto nos casos em que se impunham, como aqui, nos demos por regra
evitar sugerir aproximações, receando incitar a identificações etnocêntricas, baseadas
em analogias superficiais.
18 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

podendo a ausência de resposta ser imputada à cobardia ou à fraqueza, a de­


sonra recai sobre o ofensor presunçoso.
Embora seja possível ilustrar cada um dos casos aqui submetidos a exa­
me por meio de uma profusão de observações ou de narrativas, não é menos
verdade que, de um modo geral, as diferenças não são nitidamente marcadas,
de tal maneira que cada um pode jogar, perante a opinião avaliadora e cúm­
plice, com as ambiguidades e os equívocos do comportamento: assim, sendo
muitas vezes ínfima a distância entre a não resposta inspirada pelo medo e a
recusa de ripostar como sinal de desprezo, o desdém pode sempre servir de
máscara à pusilanimidade. Mas cada cabilo, é um mestre em casuística, e o tri­
bunal da opinião pode sempre decidir.
O motor da dialéctica da honra é, portanto, o nif que inclina à escolha da
resposta. Mas de facto, além de a tradição cultural não oferecer qualquer possi­
bilidade de escapar ao código de honra, é no momento da escolha que a pressão
do grupo se exerce com a sua força máxima: pressão dos membros da família
em primeiro lugar, prontos a substituírem-se ao que falha, porque, como a ter­
ra, a honra é indivisa e a infâmia de um atinge todos os outros; pressão da co­
munidade clânica ou aldeã, pronta a reprovar e a condenar a cobardia ou a
complacência. Quando um homem se encontra na obrigação de vingar uma
ofensa, todos, à sua volta, evitam cuidadosamente recordar-lho, mas todos o
observam, tentando adivinhar-lhe as intenções. Um mal-estar pesa sobre todos
os seus até ao dia em que, perante o conselho de família reunido a seu pedido
ou a pedido do mais velho, o ofendido expõe os seus desígnios. As mais das ve­
zes, é-lhe oferecida ajuda, ou através da oferta de dinheiro para comprar os ser­
viços de um "assassino a soldo", ou fornecendo-lhe companhia se ele se quiser
vingar por suas próprias mãos. O uso quer que o ofendido recuse estas ofertas e
peça apenas que, em caso de malogro, um outro continue a sua tarefa interrom­
pida. A honra exige, com efeito, que, semelhantes aos dedos da mão, todos os
membros da família, se necessário, se comprometam sucessivamente, segundo
o grau de parentesco, na consumação da vingança. Quando o ofendido mani­
festa menos determinação e, sem renunciar publicamente à vingança, adia
uma e outra vez a sua execução, os membros da família acabam por se inquie­
tar: os mais sábios dentre eles conversam entre si e um dos sábios é encarregado
de lembrar ao ofendido o seu dever, intimando a vingar-se e instando com ele
nesse sentido. No caso de esta chamada à ordem permanecer sem efeitos, en­
tram em cena as ameaças. Um outro consumará a vingança em lugar do ofendi­
do, que ficará desonrado aos olhos de toda a gente sem que por isso deixe de ser
considerado responsável pela família inimiga e, por conseguinte, exposto à
thamgart (vingança de sangue). Compreendendo que está sob a ameaça das
consequências conjuntas da cobardia e da vingança, o indivíduo não pode ou,
como se diz, agir "às arrecuas" ou escolher o exílio (A'it Htchem)}5
O sentimento da honra é vivido diante dos outros. O nifé antes do mais
tudo o que leva a defender, seja qual for o preço, uma certa imagem de si
O SENTIDO DA HONRA 19

destinada aos outros. O "homem de bem" (argaz el 'ali) deve estar permanen­
temente alerta deve vigiar as suas palavras que, "semelhantes à bala que sai
da espingarda, não regressam" e isso tanto mais que cada um dos seus actos e
cada uma das suas palavras comprometem todo o seu grupo. "Se os animais
se agarram à pata, os homens ligam-se pela língua." O homem de mal é pelo
contrário aquele que é dito ithatsu, "tem o costume de esquecer". Esquece a
sua palavra (awal), quer dizer, os seus compromissos, as suas dívidas de hon­
ra, os seus deveres. "Um homem dos Ilmayen dizia uma vez que gostaria de
ter um pescoço tão comprido como o do camelo; assim, as suas palavras, par­
tindo do coração, teriam um longo caminho a percorrer antes de chegar à lín­
gua, o que lhe deixaria o tempo necessário à reflexão" e isto revela toda a im­
portância concedida à palavra dada e à fé jurada. "O homem de esquecimen­
to", diz o provérbio," não é um homem." Esquece e esquece-se a si próprio (it­
hatsu imams'); diz-se ainda: "Ele come o seu bigode"; esquece os seus antepas­
sados e o respeito que lhes deve e o que se deve a fim de ser digno deles (Les
Issers). O homem desprovido de respeito de si (mabla eíardh, mabla lahay, ma-
bla erya, mabla elhachma) é aquele que deixa transparecer o seu eu íntimo, com
as suas afeições e as suas fraquezas. O homem sábio, pelo contrário, é aquele
que sabe guardar o segredo, que dá a cada instante provas de prudência e de
discrição (amesrur, amaharuz nessar que guarda ciosamente o segredo. A vigi­
lância perpétua de si é indispensável para se obedecer a esse preceito funda­
mental da moral social que proíbe alguém singularizar-se, que peça que seja
abolida, tanto quanto possível, a personalidade profunda, na sua unicidade e
na sua particularidade, sob um véu de pudor e de discrição. "Só o diabo (Chi­
ton) é que diz eu"; "só o diabo começa por si próprio"; "a assembléia (thajma
'th) é a assembléia; só o judeu está sozinho". Em todos estes ditados se expri­
me o mesmo imperativo, aquele que impõe a negação do eu íntimo e que se
realiza tanto na abnegação da solidariedade e da entreajuda como na discri­
ção e no pudor dos modos devidos. Por oposição ao que, incapaz de se mos­
trar à altura de si próprio, manifesta impaciência ou cólera, fala a torto e a di­
reito ou ri de maneira inconsiderada, cai na precipitação ou na agitação desor­
denada, se apressa sem reflectir, se excede, grita, vocifera (elhamaq), em suma,

15 O primo de um marido complacente (chamado radhi, o que consente, ou multa ‘lem, aque­
le que sabe) dizia um dia a um terceiro: "Que queres? Quando tens um irmão que não tem
nif, não podes pôr-lhe um nif de terra!". E continuava: "Se o meu primo fosse inválido, se­
ria normal que eu o vingasse; se não tivesse dinheiro, que eu pagasse para o vingar. Mas
ele vai-o juntando e não se importa. Não sou eu quem irá para a Caiena ou se arruinará
por ele!" (El Kalaa). O medo da justiça francesa, o enfraquecimento do sentimento de soli­
dariedade familiar e o contágio de um outro sistema de valores levaram os Cabilas a re­
nunciar muitas vezes ao antigo código de honra. Na antiga sociedade, a honra era indivi-
sa, como a terra familiar. Paralelamente à tendência para romper a indivisão da proprie­
dade familiar que se manifestou cada vez com mais força, desenvolveu-se o sentimento
de que a defesa da honra é um assunto propriamente individual.
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
20

se abandona ao primeiro impulso, tem falta de fidelidade a si próprio, falha


uma imagem de dignidade, de distinção e de pudor, virtudes que cabem, to­
das elas, numa só palavra, elhachma, o homem de honra é essencialmente defi­
nido pela fidelidade a si próprio, pela preocupação de ser digno de uma certa
imagem ideal. Ponderado, prudente, contido na sua linguagem, pesa sempre
o pró e o contra (amiyaz por oposição a aferfer, aquele que volteia, o homem li­
geiro, ou a achettah, aquele que dança), compromete francamente a sua pala­
vra e não esquiva as responsabilidades por meio de um wissen, "talvez",
"quem sabe?", resposta que convém às mulheres e só às mulheres. O homem
de honra é aquele que mantém a sua palavra e contém as suas palavras, aque­
le do qual se diz: "E um homem e uma palavra" (argaz, d’ wawal) (El Kalaa). O
ponto de honra é o fundamento da moral própria de um individuo que se
apreende a si próprio sempre sob o olhar dos outros, que precisa dos outros
para existir, porque a imagem que forma de si próprio não pode ser distinta
da que lhe é reenviada pelos outros. "O homem [é homem] pelos homens; [só]
Deus, diz o provérbio, [é Deus] por si próprio" (Argaz sirgazen, Rabbi imanis).
O homem de honra (a 'ardhi) é ao mesmo tempo o homem virtuoso e o homem
de renome favorável. A respeitabilidade, contrário da vergonha, é definida
essencialmente pela sua dimensão social, devendo por isso ser conquistada e
defendida diante de todos; audácia e generosidade (elhanna) são os valores
supremos, enquanto o mal reside na fraqueza e na pusilanimidade, no facto
de se sofrer a ofensa sem se exigir reparação.
Assim, é essencialmente a pressão da opinião que funda a dinâmica das
trocas de honra. Aquele que renuncia à vingança deixa de existir para os ou­
tros. É por isso que o homem mais desprovido de "coração" («/) tem sempre o
bastante, por pouco que seja, de hachma (vergonha, pudor) para se vingar. As
fórmulas empregadas para dizer a desonra são significativas: "como poderei
eu apresentar-me diante (qabel) das pessoas?"; "nunca poderei voltar a abrir a
boca diante das pessoas"; "a terra não mè devorará pois!"; "a minha roupa es­
corregou-me do corpo". O medo da reprovação colectiva e da vergonha (el’ar,
lahya, el'ib ula yer medderi), contrário negativo do ponto de honra, é de nature­
za a determinar o homem mais desprovido de ponto de honra a conformar-se,
coagido e forçado, aos imperativos da honra.16 Em grupos de interconheci-
mento como a aldeia cabila, o controlo da opinião exerce-se a todos os instan­
tes: "Dizer que os campos estão vazios (desertos) é alguém estar por si pró­
prio vazio de bom senso." Encerrado neste microcosmo fechado em que toda
a gente conhece toda a gente, condenado sem saída nem recurso a viver com
os outros, sob o olhar dos outros, cada indivíduo experimenta uma ansiedade
profunda a respeito da "palavra da gente" (awal medderi), "pesada, cruel e

16 De um homem que tarda em cumprir um dever, diz-se no Béarn: ele terá de o fazer "por
vergonha ou por honra"; por outras palavras, o medo da vergonha impor-lhe-á o que o
sentido da honra não pode inspirar-lhe.
O SENTIDO DA HONRA 21

inexorável" (Les Issers). É a opinião todo-poderosa quem decide da realidade


e da gravidade da ofensa; é ela quem, soberanamente, exige a reparação. Por
exemplo, o ladrão que penetra numa casa habitada, ao contrário daquele que
se apodera de cereais ou de animais deixadas no exterior, expõe-se à vingança
do sangue, e isso porque as pessoas estarão prontas para insinuar que a honra
das mulheres não foi respeitada. Assim, a atenção acurada aos comportamen­
tos de outrem ao mesmo tempo que a obsessão a respeito do seu juízo tornam
inconcebível ou desprezível qualquer tentativa de evitar os imperativos da
honra.
Comportando qualquer troca um desafio mais ou menos dissimulado, a
lógica do desafio e da resposta não é senão o limite para o qual tende todo o
acto de comunicação, e, em particular, a troca de dons.17 Mas à tentação de de­
safiar e de ter a última palavra contrapõe-se a necessidade de comunicar. Sub­
meter o outro a uma prova demasiado difícil é correr o risco de ver a troca in­
terrompida. Por isso, a comunicação exerce-se no interior de um compromis­
so entre o contrato e o conflito. A troca generosa tende para o assalto de gene­
rosidade; o dom mais amplo é, ao mesmo tempo, o mais adequado para preci­
pitar na desonra aquele que recebe proibindo-lhe qualquer contradom.
Assim, a tawsa, dom feito pelos convidados por ocasião das grandes festas fa­
miliares e publicamente proclamado, dá muitas vezes lugar a competições de
honra e a escaladas ruinosas. Para o evitar, acontece que se firme um acordo
sobre o montante máximo dos dons. Do mesmo modo, por altura dos casa­
mentos ou das circuncisões, as famílias fazem um ponto de honra de dar fes­
tas o mais sumptuosas possível, correndo o risco de se arruinarem, o que é so­
bretudo o caso quando uma jovem casa fora da sua aldeia. A emulação actua
até entre os membros de uma mesma família, por exemplo, entre as mulheres
(cunhadas, mãe), por ocasião do casamento de uma rapariga. Contaram-me
que, em 1938, um homem da tribo dos Ath Waghlis despendeu em dons efec-
tuados por altura do primeiro parto da sua filha mais de 3.000 francos, ou seja
1.400 ovos, 15 galinhas, 300 francos de carne de carneiro, 20 quilos de carne
salgada, 20 quilos de gordura, azeite, café, sêmola, 25 trajos, etc. Um outro ho­
mem da mesma tribo vendeu, para honrar a sua filha em circunstância idênti­
ca, o único campo que lhe restava. Mas em geral todos concordam em denun­
ciar "o ponto de honra do diabo", nifnechitan, ou o ponto de honra estúpido
(thihuzzith), que faz com que se fique em cólera ou ofendido por pequenas coi­
sas, se faça questões de honra de futilidades ou se caia em escaladas de

17 Reduzir à sua função de comunicação — que mais não seja pela transposição de esque­
mas e de conceitos tomados de empréstimo à linguística ou à teoria da comunicação—fe­
nômenos como a dialéctica do desafio e da resposta e, mais geralmente, a troca de dons,
de palavras ou de mulheres, seria ignorar ambivalência estrutural que os predispõe a
preencherem uma função política de dominação na e pela realização da função de comu­
nicação.
22 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

competição ruinosas. "Ninguém se livra da vergonha", costuma dizer-se, "se


nisso se perder", se se arruinar por vangloria (urits-sathhi had galmadharas).
Mas, se, porque põe em jogo o ponto de honra, a troca é sempre em si própria
portadora da virtualidade do conflito, a dependência de honra continua tam­
bém a ser uma troca, como o documenta a distinção muito nítida operada en­
tre o estrangeiro e o inimigo. Pelo facto de tender a sacrificar a vontade de co­
municar com outrem de o dominar, o ponto de honra traz sempre consigo o
risco da ruptura, mas, ao mesmo tempo, é ele que leva a prosseguir a troca no
desígnio de conseguir a última palavra.
Se a ofensa não traz necessariamente consigo a desonra, é porque deixa
a possibilidade de ripostar, possibilidade afirmada e reconhecida pelo pró­
prio acto de ofender. Mas a desonra que permanece virtual enquanto há a
possibilidade de ripostar toma-se cada vez mais real à medida que a vingança
tarda. Por isso, a honra quer que o tempo que separa a ofensa da reparação
seja tão breve quanto possível: uma grande família tem, com efeito, o bastante
em braços e em coragem para não se resignar a uma longa espera; conhecida
pelo seu nif, pela sua susceptibilidade e a sua resolução, está até ao abrigo da
ofensa, uma vez que, pela ameaça que sem parar faz pesar sobre os seus
agressores eventuais, surge como capaz de associar, no mesmo instante, a res­
posta à ofensa. Para exprimir o respeito que uma boa família inspira, diz-se
que ela pode "dormir e deixar a porta aberta", ou ainda que " as suas mulheres
podem passear sozinhas, com uma coroa de ouro na cabeça sem que ninguém
pense em atacá-las". O homem de honra, aquele do qual se diz que preenche
"o seu papel de homem" (thirugza), está sempre alerta: consequentemente,
fica ao abrigo do ataque mais imponderável e "até mesmo quando está ausen­
te, há sempre alguém em sua casa" (El Kalaa). Mas as coisas não são tão sim­
ples. Assim, conta-se que Djeha, personagem lendário, respondeu a alguém
que lhe perguntava quando vingara o seu pai: "Ao fim de cem anos." E refe­
re-se também à história do leão que avança sempre num passo medido: "Sei
onde está a minha presa", diz ele. "Se estiver à minha frente, um dia acabarei
por alcançá-la; se estiver atrás de mim, será ela a aproximar-se." Embora
qualquer questão de honra, considerada do exterior como facto consumado,
quer dizer, do ponto de vista do observador estrangeiro, se apresenta como
uma sequência regulada e rigorosamente necessária de actos obrigatórios,
podendo portanto ser descrita como um ritual, continua a ser verdade que
cada um dos seus momentos, cuja necessidade se revela postfestum, é objecti-
vamente o resultado de uma escolha e a expressão de uma estratégia. Aquilo
a que se chama o sentimento de honra não é mais que a disposição cultivada,
o habitus, que permite a cada agente engendrar, a partir de um pequeno nú­
mero de princípios implícitos, todos os comportamentos em conformidade
com as regras da lógica do desafio e da resposta, e só esses comportamentos,
graças a outras tantas invenções que o desenrolar-se estereotipado de um ri­
tual de modo nenhum exigiria. Noutros termos, se não há qualquer escolha
O SENTIDO DA HONRA 23

da qual não possa dar-se conta pelo menos retrospectivamente, isso não sig­
nifica que cada comportamento seja perfeitamente previsível, à maneira dos
actos inseridos nas sequências rigorosamente estereotipadas de um rito. O
que vale não só para o observador mas também para os agentes que desco­
brem na imprevisibilidade relativa das respostas possíveis a ocasião de por
em prática as suas estratégias. Mas as próprias trocas mais ritualizadas, nas
quais todos os momentos da acção e do seu desenvolvimento estão rigorosa­
mente previstos, continuam a poder autorizar um afrontamento entre estra­
tégias, na medida em que os agentes permanecem senhores do intervalo entre
os momentos obrigatórios e podem, portanto, agir sobre o adversário jogan­
do com o tempo da troca. Sabemos que o facto de retribuir um dom no mesmo
instante, quer dizei, abolir o intervalo, equivale a romper a troca. Do mesmo
modo deve levar-se a sério a lição contida nas palavras do leão e de Djeha: o
controlo perfeito dos modelos da maneira de obedecer a esses modelos que define a
excelência exprime-se no jogo com o tempo, que transforma a troca ritualiza-
da em afrontamento de estratégias. Assim, sabemos que, por ocasião do casa­
mento, o chefe da família à qual é pedida uma jovem deverá responder imedi­
atamente no caso de recusa, mas que diferirá quase sempre a resposta quando
tiver a intenção de aceitar: fazendo-o, atribui-se os meios de perpetuar tanto
quanto possível no tempo a vantagem conjuntural (ligada à sua posição de
solicitado) que pode coexistir com uma inferioridade estrutural (sendo a fa­
mília solicitada muitas vezes de uma condição inferior à da que pede) e que se
traduz concretamente pelo desequilíbrio inicial, progressivamente invertido,
entre os dons trocados pelas duas famílias. Da mesma maneira, o estrategista
hábil pode fazer de um capital de provocações recebidas ou de conflitos sus­
pensos, e da virtualidade de vingança, de respostas ou de conflitos, que esse
capital contém um instrumento de poder, reservando-se a iniciativa do reto­
mar e até mesmo da interrupção das hostilidades, p
A ç. •

Ponto de honra e honra: nif e hurma

Se certas famílias e certos indivíduos estão ao abrigo da ofensa enquanto


agressão intencional contra a honra, não há ninguém que não possa sofrer um
ultraje enquanto atentado involuntário contra a honra. Mas o simples desafio
lançado ao ponto de honra (thirzi nennif, o facto de desafiar; sennif, pelo nif,
atreve-te! Desafio-te!) não é a ofensa que atenta contra a honra (thuksa nesser,
thuksa laqdhar ou thirzi laqdhar, o facto de retirar ou faltar ao respeito, thirzi el
hurma, o facto de precipitar alguém na desonra). É ridicularizada, por exem­
plo, a atitude do novo-rico, ignorante das regras da honra e que, para tentar
reparar um atentado contra a hurma, riposta desafiando o seu ofensor a ven-
cê-lo numa corrida ou a espalhar no chão mais notas de mil francos que ele. O
que significa de facto confundir duas ordens absolutamente estranhas uma à
outra: a lógica do desafio e a ordem da ofensa em que se encontram envolvi­
dos os valores mais sagrados e que se organiza segundo as categorias mais
fundamentais da cultura, as que ordenam o sistema mítico-ritual.
A honra, aquilo através de que o grupo se expõe, opõe-se ao ponto de
honra, aquilo através de que o grupo pode responder ao ultraje. Estabelece-se
uma diferença vincada entre o nif, o ponto de honra, e a hurma, a honra, o con­
junto daquilo que é haram, quer dizer, interdito, em suma, o sagrado. Portan­
to, o que faz a vulnerabilidade do grupo é aquilo que ele possui de mais sagra­
do. Enquanto o desafio atinge apenas o ponto de honra, o ultraje é violação
dos interditos, sacrilégio. Por isso, o atentado contra a hurma exclui os arran­
jos e as esquivas. De um modo geral, recusava-se ferozmente a diya, compen­
sação paga pela família do assassino à família da vítima. De quem a aceita,
diz-se. E um homem que aceitou comer o sangue do seu irmão; para ele, só a
arriga é que conta" (Ain Aghbel). Adiya só é recebida nos casos que são exte­
riores à hurma. Em consequência, é pelo rigor com que se impõe que a engre­
nagem do ultraje e da vingança difere da dialéctica do desafio e da resposta. A
opinião pública decide soberanamente, na qualidade de testemunha e de
juiz, quer da gravidade da ofensa e da vingança apropriada. No caso de um
atentado à hurma, ainda que cometido indirectamente ou por descuido,18 a
pressão da opinião é tal que qualquer outra saída a não ser a vingança se en­
contra excluída; como alternativa, só resta ao cobarde desprovido de nif a de­
sonra ou o exílio. Se a hurma se define como podendo ser perdida ou quebrada
(thuksa elhurma, thirzi elhurma, o facto de retirar ou quebrar a hurma), em suma

Sendo, sob certo aspecto, a hurma identificável com o haram, com o sagrado objecti­
ve, pode ser violada por descuido. Vimos, por exemplo, que o roubo numa casa habi­
tada era particularmente grave e exigia vingança por constituir um atentado contra
a hurma; o roubo ou a fraude no mercado constituem apenas um desafio e um atenta­
do contra o amor-próprio daquele que é sua vítima. A aldeia tem também a sua hur­
ma, que pode ser violada quando, por exemplo, um estrangeiro nela vem causar es­
cândalo.
O SENTIDO DA HONRA 25

como desonra virtual, o nif, sem pôr por completo a hurma ao abrigo de aten­
tados, permite restaurá-la na sua integridade. Assim, a integridade da hurma
é função da integridade do nif; só a vingança escrupulosa e activa do ponto de
honra (nif) é capaz de garantir a integridade da honra (hurma) — exposta por
natureza, enquanto sagrada, ao ultraje sacrílego — e de proporcionar a consi­
deração e a respeitabilidade conferidas pela sociedade àquele que tem suficiente
ponto de honra para manter a sua honra ao abrigo da ofensa.
A honra no sentido de consideração diz-se sar; essar é o segredo, o prestí­
gio, o brilho, a "glória", a "presença". Diz-se de alguém que "essar segue-o e
brilha à sua volta" ou ainda que o protege "a barreira de essar" (zarb nessar): es­
sar põe aquele que o detém ao abrigo do desafio e paralisa o ofensor eventual
através da sua influência misteriosa, através do medo (alhiba) que inspira. Ca­
usar vergonha a alguém é "retirar-lhe essar" (diz-se também "retirar-lhe lah-
ya, o respeito): essar, esse não-sei-quê que faz o homem de honra, é tão frágil e
vulnerável como imponderável. "O albornoz de essar, dizem os Cabilas, "não
está atado, só pousado"(ÁzeroM n-chmini)™
Ahurma no sentido de sagrado (haram), o nife a hurma no sentido de res­
peitabilidade são inseparáveis. É assim que quanto mais vulnerável é uma fa­
mília, mais nif deverá ter para defender os seus valores sagrados, e maiores
serão assim o mérito e a consideração que a opinião lhe atribui. Compreen­
de-se deste modo que, longe de contradizer ou de proibir a respeitabilidade, a
pobreza só possa redobrar o mérito daquele, que apesar de se encontrar parti­
cularmente exposto ao ultraje, consegue impor o respeito^ Reciprocamente,
o ponto de honra só tem significação e função para um homem para o qual
existem coisas sagradas, coisas que merecem ser defendidas. Um ser
X O ' -<=>■
O
19 Ou ainda: "Essar é uma semente de nabo." Asemente de nabo, minúscula e redonda, é ex­
tremamente lábil. Essar designa também a graça de uma mulher ou de uma rapariga.
20 Eis, segundo um velho cabila dos Alt 'idel que o recolhera do seu pai, o retrato do homem
de honra, retrato em todos os pontos idêntico ao que me forneceu um membro da tribo
dos Issers, o que faz pensar que estejamos diante de um personagem mítico e exemplar
cuja aventura é, em cada caso, situada num meio circundante familiar: "Era uma vez um
homem que se chamava Belkacem ou Aíssa e que, apesar da sua pobreza, era respeitado
pela sua sabedoria e a sua virtude. O seu prestígio exercia-se sobre várias tribos. De todas
as vezes que sobrevinha um diferendo ou um combate, ele servia de mediador e apazi­
guava o conflito. Os Ben Ali Chérif, grande família da região, tinham inveja da sua in­
fluência e do seu prestígio, tanto mais que ele se recusava a prestar-lhes homenagem. Um
dia, os membros da tribo decidem tentar reconciliá-los. Convidam o mais velho dos Ben
Ali Chérif ao mesmo tempo que Belkacem ou Aíssa. Quando este último entrou, o velho,
já sentado, disse-lhe com ironia: 'Que belos arkasen (plural de arkas, calçado rústico de
cultivador) tens!' Belkacem respondeu: 'O costume quer que os homens olhem os ho­
mens na cara, de frente, e não nos pés. É o rosto, a honra do homem, que conta.' A estran­
geiros que lhe perguntavam como adquirira ele a sua influência na região, Belkacem res­
pondeu: 'Primeiro conquistei o respeito da minha mulher, depois dos meus filhos, depois
dos meus irmãos e dos meus parentes, depois do meu bairro, depois da minha aldeia; o
resto veio por si."'

MfUtlí.CA &I.
26 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

desprovido de sagrado poderia dispensar-se de ponto de honra porque seria


de algum modo invulnerável.21 Em suma, se o sagrado (hurma-haram) só
existe pelo sentido da honra (nif) que o defende, o sentimento da honra en­
contra a sua razão de ser no sentido do sagrado.
Como se define o sagrado (hurma-haram) que a honra deve defender e
proteger? A esta questão, a sabedoria cabila responde: "A casa, a mulher, as
espingardas." Apolaridade dos sexos, tão fortemente marcada nesta socieda­
de de filiação patrilinear, exprime-se na bipartição do sistema de representa­
ções e de valores em dois princípios complementares e antagônicos. Aquilo
que é haram (quer dizer, exactamente, tabu) é no essencial o sagrado esquer­
do, quer dizer, o interior e mais precisamente o universo feminino, o mundo
do segredo, o espaço fechado da casa, por oposição ao exterior, ao mundo
aberto da praça pública (thajma 'th), reservado aos homens. O sagrado direito
são essencialmente "as espingardas", isto é, o grupo dos agnatos, dos "filhos
do tio paterno", todos aqueles cuja morte deve ser vingada pelo sangue e to­
dos os que têm por dever a consumação da vingança de sangue. A espingarda
é a encarnação simbólica do nif do grupo agnático, do nif entendido como
aquilo que pode ser desafiado e como aquilo que permite responder ao desa­
fio. Assim, à passividade da hurma, de natureza feminina, opõe-se a sus­
ceptibilidade activa do nif, de natureza viril. Se a hurma se identifica com o sa­
grado esquerdo, quer dizer, essencialmente com o feminino, o nif é a virtude
viril por excelência. P
A oposição entre o sagrado direito e o sagrado esquerdo — como a opo­
sição entre o haram e o nif— não exclui, por outro lado, a sua complementari­
dade. E de facto o respeito do sagrado direito, do nome e do renome da famí­
lia agnática, que inspira a resposta a toda a ofensa feita ao sagrado esquerdo.
A hurma não é apenas aquilo que tem preço, que é precioso, o que é querido
(el azz), é também o que é mais precioso que o mais querido, não se confun­
dindo o valor sagrado com o valor afectivo. O dever de defender o sagrado
impõe-se como um imperativo categórico, quer se trate do sagrado direito,
como um membro masculino do grupo, quer do sagrado esquerdo, como a
mulher, ser fraco, impuro e maléfico. O homem de honra leva a cabo a

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21 É nesta lógica que se compreende a reprovação que rodeia o celibatário. Assim, à igualda­
de em honra corresponde uma espécie de igualdade em vulnerabilidade que se exprime
por exemplo, na expressão muitas vezes usada para chamar à ordem o pretensioso: "A
tua mãe não vale mais que a minha mãe" (não devendo esta fórmula irônica ser confundi­
da com a injúria "a minha mãe vale mais que a tua mãe": ultrapasso-te em todas as coisas
uma vez que até nisto te ultrapasso, quando a verdade é que todas as mulheres se equiva­
lem).
22 Outrora, em certas regiões da Grande Cabilia, a thajma 'th (assembléia) obrigava os ho­
mens da tribo, sob pena de multa, a comprarem uma espingarda a fim de poderem defen­
der a sua honra e a do grupo. O que não o fazia, apesar da multa, era posto no index, des­
prezado por todos e considerado "uma mulher".
O SENTIDO DA HONRA 27

vingança e lava a afronta sofrida desprezando os sentimentos e recebendo


por isso a inteira aprovação do grupo. Louva-se e cita-se como exemplar a ati­
tude de um certo Sidi Cherif, chefe da grande família marabútica dos 'Amra-
wa, que matara a sua filha culpada, e comenta-se acerca de alguém: "Tem nif
como Sidi Cherif." É o respeito do sagrado direito, quer dizer, da honra gentí-
lica, que leva a vingar a ofensa feita ao sagrado esquerdo, à parte fraca pela
qual o grupo se encontra exposto.
O nifé, portanto, a fidelidade à honra gentílica, à hurma no sentido da
respeitabilidade e de consideração, ao nome dos antepassados e ao renome
que se lhe associa, à linhagem que deve permanecer pura de qualquer conta­
minação, que deve ser mantida tanto ao abrigo da ofensa como da aliança de­
gradante. Virtude cardeal, fundamento de todo o sistema patrilinear, o nif é
de facto essencialmente o respeito da linhagem da qual cada um entende de­
ver ser digno. Quanto mais os antepassados foram valorosos ou virtuosos,
mais razão o seu descendente tem para ser orgulhoso e mais, por conseguinte,
deverá ser escrupuloso em matéria de honra a fim de se manter à altura do va­
lor e da virtude dos antepassados. Decorre daqui que o nascimento, por im­
portante que seja, não confere necessariamente a nobreza; esta pode também
ser adquirida pela virtude e pelo mérito. A honorabilidade e a pureza da li­
nhagem impõem deveres, mais que atribuem privilégios. Aqueles que têm
um nome, os descendentes de boa cepa (ath la 'radh), não têm desculpas.
A oposição entre o haram e o nif, entre o sagrado esquerdo e o sagrado
direito, exprime-se em diferentes oposições proporcionais: oposição entre a
mulher, carregada de potências maléficas e impuras, destrutivas e temíveis, e
o homem, investido de virtudes benéficas, fecundantes e protectoras; oposi­
ção entre a magia, assunto exclusivo das mulheres, dissimulada aos homens,
e a religião essencialmente masculina; oposição entre a sexualidade feminina,
culpada e vergonhosa, e a virilidade, símbolo de força e de prestígio.23 A opo­
sição entre o dentro e o fora, modo de oposição entre o sagrado direito e o sa­
grado esquerdo, exprime-se concretamente na distinção marcada entre o es­
paço feminino, a casa e o seu quintal, lugar por excelência do haram,24 espaço

23 O laço que une o nife a virilidade é particularmente evidente nos jogos rituais como o tiro
ao alvo, que é praticado por ocasião do nascimento de um rapaz, da circuncisão e do casa­
mento (cf. nota 10).
24 O limiar, ponto de encontro entre dois mundos antagônicos, é lugar de uma multiplicida­
de de ritos, um lugar rodeado de interditos por todos os lados. Em certas regiões da Cabí-
lia, só os parentes o podem transpor. Em todo o caso, não se pode transpô-lo sem se ser ro­
gado a fazê-lo. O visitante anuncia-se por meio de um grito (como no Sul de França) ou
então tossindo e batendo com os pés no chão. O costume em certas regiões (El Kseur, Sidi
Aích), estabelece que o parente afastado ou o parente pelo lado das mulheres (por exem­
plo, o irmão da esposa) que é introduzido pela primeira vez na casa entregue uma oferen­
da simbólica chamada "a visão" (thizri). A aldeia também é um espaço sagrado; nela não
se entra senão a pé.
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
28

fechado, secreto, protegido, ao abrigo das intrusões e dos olhares, e o espaço


masculino, a thajma'th, lugar da assembléia, a mesquita, o café, os campos ou
o mercado.25 Por um lado, o segredo da intimidade, inteiramente velada de
pudor, por outro, o espaço aberto das relações sociais, da vida política e reli­
giosa; por um lado, a vida dos sentidos e dos sentimentos, por outro, das rela­
ções de homem a homem, do diálogo e das trocas. Enquanto no mundo urba­
no, onde o espaço masculino e o espaço feminino interferem, a clausura e o
véu garantem a protecção da intimidade, na aldeia cabila, onde o porte do
véu é tradicionalmente desconhecido,26 os dois espaços estão nitidamente se­
parados; o caminho que leva à fonte evita o domínio dos homens: as mais das
vezes, cada clã (thakharrubth ou adhrum) tem a sua fonte própria, situada no
seu bairro ou no domínio do seu bairro, de tal maneira que as mulheres po­
dem lá ir sem se arriscarem a ser vistas por um homem estranho ao grupo (Aít
Hichem); quando não é assim, a função que incumbe noutros lugares a uma
oposição espacial é aqui atribuída a um ritmo temporal e as mulheres têm cer­
tas horas para ir à fonte, ao cair da noite, por exemplo, sendo mal visto que um
homem as vá espiar. A fonte é para as mulheres o que thajma'th é para os ho­
mens: é aí que trocam novidades e têm as suas conversas, que incidem essen­
cialmente sobre todos os assuntos íntimos dos quais os homens não poderiam
falar entre si sem desonra e dos quais são informados apenas por intermédio
delas. O lugar do homem é fora, nos campos ou na assembléia, entre os ho­
mens: trata-se de qualquer coisa que é ensinada desde muito cedo aos rapa­
zes. Desconfia-se daquele que fica demasiado tempo em casa durante o dia. O
homem respeitável deve fazer-se ver, mostrar-se, pôr-se sem interrupção
diante do olhar dos outros, fazer frente (qabel). Daí, a seguinte fórmula que as
mulheres repetem e por meio da qual dão a entender que o homem ignora
muito do que se passa em casa: "Ó homem, pobre infeliz, todo o dia nos cam­
pos como o burro no pasto!" (Aít Hichem). O imperativo maior é a ocultação
de todo o domínio da intimidade: as dissensões internas, os fracassos e as in­
suficiências não devem em caso algum ser exibidos diante de um estranho ao
grupo. Às diferentes colectividades encaixadas umas nas outras

---------- ,
25 Conta-se que outrora as mulheres iam sozinhas ao mercado: mas eram tão tagarelas que o
mercado se prolongava até ao da semana seguinte. Então os homens apareceram um dia
com os seus paus e puseram fim às conversas das mulheres... Vemos aqui que o "mito"
"explica" a divisão actual do espaço invocando a "má natureza das mulheres". Quando
se quer dizer que o mundo está de pernas para o ar, diz-se que "as mulheres vão ao merca­
do".
26 Tradicionalmente, o porte do véu e a clausura (lahdjubia) não se impunham a não ser no
caso do xeque da mesquita da aldeia (ao qual esta garantia, entre outras coisas, o abasteci­
mento de lenha e a manutenção de thayamants, encarregadas do fornecimento de água),
de algumas famílias marabúticas que não moram num azib (isto é, numa espécie de lugar
isolado) e de certos chefes de famílias importantes, que distinguem uma das mulheres da
casa (geralmente a mais jovem das esposas) fazendo dela thanahdjabth.
O SENTIDO DA HONRA 29

correspondem outras tantas zonas de segredo concêntricas: a casa é a primei­


ra ilhota de segredo no interior do subclã ou do clã; este, por sua vez, fecha-se
no interior da aldeia e ela própria guarda o seu segredo frente às outras aldei­
as. Segundo esta lógica, é natural que a moral da mulher, situada dentro do
mundo fechado, seja essencialmente constituída de imperativos negativos.
"A mulher deve fidelidade ao marido; a sua casa deve estar bem arranjada;
compete-lhe velar pela boa educação dos filhos. Mas, acima de tudo, deve
preservar o segredo da intimidade familiar; não deve nunca rebaixar o mari­
do ou fazer-lhe vergonha (ainda que disponha de todas as razões e de todas as
provas), nem na intimidade nem diante de estranhos; isso seria obrigá-lo a re­
pudiá-la. A mulher deve mostrar-se satisfeita, ainda que, por exemplo, o ma­
rido, demasiado pobre, nada traga do mercado; também não deve imiscuir-se
nas discussões entre os homens. Deve confiar no marido, evitar duvidar dele
ou procurar provas que o comprometam" (El Kalaa). Em suma, sendo a mu­
lher sempre "a filha de fulano" ou "a esposa de fulano", a sua honra reduz-se
à do grupo dos agnatos a que se encontra ligada. Por isso deve cuidar de em
nada alterar pelo seu comportamento o prestígio e a reputação do grupo.27 E a
guardiã de essar.
O homem, pelo seu lado, deve, antes do mais, proteger e guardar o se­
gredo da sua casa e da sua intimidade. A intimidade é em primeiro lugar a es­
posa, que nunca é assim nomeada, e menos ainda pelo seu nome próprio, mas
sempre por perífrases como "a filha de fulano", "a mãe dos meus filhos" ou
ainda "a minha casa". Em casa, o marido nunca se lhe dirige na presença dos
outros; chama-a por meio de um sinal, de um resmungo ou pelo nome da sua
filha mais velha e em nada lhe manifesta a sua afeição, sobretudo na presença
do seu próprio pai ou do seu irmão mais velho. Pronunciar em público o
nome da esposa seria uma desonra: conta-se com frequência que os homens
que iam inscrever um recém-nascido no registo civil se recusavam obstinada­
mente a dizer o nome da mulher; do mesmo modo, os alunos da escola que di­
ziam com facilidade o nome do pai tinham relutância em dizer o da mãe, rece­
ando sem dúvida a exposição a um risco de injúria (chamar alguém pelo
nome da mãe é acusá-lo de ser bastardo) ou até de malefício (sabe-se que, nas
práticas mágicas, é sempre o nome da mãe que se usa). As boas maneiras exi­
gem que nunca se fale a um homem da sua mulher ou da sua irmã: é que a mu­
lher é uma dessas coisas vergonhosas (os Árabes dizem lamraara, "a mulher é
a vergonha") que só se nomeiam pedindo desculpa e acrescentando hachak,
"com o devido respeito". E é também que a mulher é para o homem a coisa en­
tre todas mais sagrada, como documentam as expressões habituais dos

27 Tudo se passa como se a mulher não pudesse realmente aumentar a honra dos agnatos,
mas apenas conservá-la intacta por meio do seu comportamento e da respeitabilidade ou
perdê-la (ekkes el’ardh: tirar a reputação). O que pode aumentar a honra do grupo é apenas
a aliança, por meio do casamento, com os parentes do sexo masculino da mulher.
30 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

HURMA-HARAM NIF

SAGRADO ESQUERDO SAGRADO DIREITO

Feminino, feminilidade Masculino, virilidade


Mulher detentora de potências Homem detentor da potência
maléficas e impuras benéfica e protectora
Esquerda, retorcido Direita, direito
Vulnerabilidade Protecção
Nudez Fechamento, vestuário
DENTRO FORA
Domínio das mulheres Domínio dos homens
Casa, quintal Assembléia, mesquita, campos, mercado
Mundo fechado e secreto Mundo aberto da vida pública, das actividades
da vida íntima sociais e políticas
Alimentação, sexualidade Trocas
HÚMIDO, ÁGUA SECO, FOGO
etc. etc.

juramentos: "Que a minha mulher me seja ilícita" (thahram ethmattuthiw) [se


eu não fizer isto ou aquilo]!
A intimidade é tudo o que releva da natureza, é o corpo e todas as fun­
ções orgânicas, é o eu e os seus sentimentos ou as suas afeições: outras tantas
coisas que a honra manda velar. Qualquer alusão a estes assuntos, e em parti­
cular à vida sexual própria, é não só interdita como praticamente inconcebí­
vel. Durante vários dias antes e depois do casamento, o homem novo refu­
gia-se numa espécie de refúgio a fim de evitar encontrar-se na presença do
seu pai, o que causaria a ambos um embaraço insuportável. Do mesmo modo,
a jovem chegada à idade da puberdade fecha estreitamente o peito numa es­
pécie de corpete abotoado e forrado; além disso, na presença do pai e dos ir­
mãos mais velhos, mostra-se com os braços cruzados sobre o peito.28 Um ho­
mem não pode falar de uma rapariga ou de uma mulher estranha à família
com o seu pai ou o seu irmão mais velho; daqui resulta que, quando o pai quer
consultar o filho a propósito do casamento deste, recorre a um parente ou a
um amigo que serve de intermediário. Um homem evita entrar num café
onde o seu pai ou o seu irmão mais velho já se encontre (e vice-versa), bem
como, por maioria de razão, ouvir com eles um desses cantores ambulantes
que recitam poemas brejeiros.
Da mesma maneira, não se deve falar de comida. Nunca se deseja a nin­
guém bom apetite, mas apenas saciedade. A cortesia quer que o anfitrião peça
constantemente ao convidado que se volte a servir, ao passo que o convidado
deve comer o mais discretamente possível. Comer na rua é indecente e

28 O tabu da nudez é absoluto, mesmo nas relações sexuais. Sabe-se, por outro lado, que a
desonra é descrita como um pôr em estado de nudez ("ele despiu-me, tirou-me a roupa,
despojou-me").
O SENTIDO DA HONRA 31

impudico. Quando um homem quer almoçar no mercado, retira-se para um


canto à parte. Quando se transporta alguma carne, esta é escondida num saco
ou num albornoz. Durante a própria refeição, a tônica não é posta no facto de
as pessoas se alimentarem, mas na circunstância de comerem em comum, de
partilharem o pão e o sal, símbolos de aliança. Um extremo pudor preside
também à expressão dos sentimentos, sempre muito contida e reservada até
mesmo no interior da família, entre o marido e a mulher, entre os pais e os fi­
lhos. Ahachma (ou ainda lahya), pudor que domina todas as relações até mes­
mo no interior da família, é essencialmente protecção do haram, do sagrado e
do segredo (essar). Aquele que fala de si próprio é incongruente ou fanfarrão;
não sabe submeter-se ao anonimato do grupo, preceito essencial das boas ma­
neiras que quer que se use o "nós" de cortesia ou que se fale no impessoal,
sendo o contexto a dar a entender que é a si próprio que se refere aquele que
fala.
Outros princípios correlatives das oposições fundamentais são os que
regem a divisão do trabalho entre os sexos e, mais precisamente, a repartição
entre os homens e as mulheres dos comportamentos tidos por honrosos e de­
sonrosos. De uma maneira geral, são consideradas desonrosas para um ho­
mem a maior parte das tarefas que incumbem a uma mulher, em virtude da
divisão mítico-ritual dos seres, das coisas e das acções. Os Berberes do Che-
noua não podem tocar em ovos ou galinhas na presença de pessoas estranhas
à família. É-lhes interdito transportarem-nos para o mercado a fim de os ven­
der, o que é uma tarefa de crianças ou de mulheres. Perguntar a um achenwi se
tem ovos para vender é ofendê-lo. Os homens podem degolar galinhas e co­
mer ovos, mas apenas em família.29 Voltam a deparar-se-nos os mesmos cos­
tumes, mais ou menos alterados, na Cabília. Assim, a mulher pode montar
um macho, se o marido o conduzir à arreata; montar um burro, pelo contrá­
rio, é vergonhoso. As raparigas que desonravam a família eram passeadas
publicamente em cima de um burro. Outro exemplo: é desonroso para um ho­
mem transportar estrume, tarefa que incumbe às mulheres. Todos estes impe­
rativos da moral da honra, que, tomados isoladamente, parecem arbitrários
revelam-se em contrapartida necessários quando os reinserimos no conjunto
do sistema mítico-ritual, baseado na oposição entre o masculino e o feminino,
do qual as oposições entre o sagrado direito e o sagrado esquerdo, entre o
dentro e o fora, entre a água e o fogo, entre o húmido e o seco, constituem mo­
dalidades particulares.
O mesmo sistema de valores domina toda a primeira educação. O rapaz,
a partir do momento em que tem um nome, é considerado e deve conside-
rar-se um representante responsável do grupo. Contaram-me que, numa

29 Cf. É. Laoust, Étude sur le dialecte berbère du Chenoua comparé avec celuí des Beni Menacer et
des Beni Salah, Paris, Leroux, 1912, p. 15.
32 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

aldeia da Grande Cabília, um rapaz com cerca de dez anos, último membro
do sexo masculino da sua família, ia aos enterros até mesmo nas aldeias mais
afastadas e assistia às cerimônias no meio dos adultos (Tizi Hibel). Todo o
comportamento destes, todas as cerimônias e todos os ritos de iniciação ou de
passagem tendem a indicar ao rapaz a sua qualidade de homem ao mesmo
tempo que as responsabilidades e os deveres correlatives. As acções pueris
são desde muito cedo avaliadas em função dos ideais de honra. A educação
conferida pelo pai ou pelo tio paterno tende a desenvolver na criança o nif e
todas as virtudes viris que dele são solidárias: espírito batalhador, audácia,
vigor, resistência. Nesta educação dada pelos homens e destinada a fazer ho­
mens, a tônica é posta na linhagem paterna, nos valores que foram legados
pelos antepassados varões e dos quais cada membro varão do grupo deve ser
garante e defensor.
Descobrir-se-iam sem dúvida as mesmas categorias mítico-rituais na
base, senão da lógica das trocas matrimoniais, pelo menos da representação
ideal que os agentes fazem delas. Aprecocidade do casamento compreende-se
se pensarmos que a mulher, da natureza má, deve ser colocada o mais cedo
possível sob a protecção benéfica do homem. "A vergonha, diz-se, é a rapariga"
(fll'ar thaqchichth), o genro é designado settar la'yub, "o véu das vergonhas". Os
Árabes da Argélia chamam por vezes às mulheres "as vacas de Satã" ou "as re­
des do demônio", o que significa que a elas pertence a iniciativa do mal: "A
mais recta [das mulheres]", diz um provérbio, "é retorcida como uma foice".
Semelhante a um rebento que tende para a esquerda, a mulher não pode ser di­
reita, mas, quanto muito, corrigida pela protecção benéfica do homem.30 Sem
pretendermos apreender aqui a lógica objectiva das trocas matrimoniais, po­
demos, todavia, observar que as normas que as regem e as racionalizações que
a maior parte das vezes são usadas para justificar a sua forma "ideal", o casa­
mento com a prima paralela, são formuladas numa linguagem estruturada se­
gundo as categorias mítico-rituais^A preocupação de salvaguardar a pureza
do sangue e de conservar inalterada a honra familiar é a razão mais frequente­
mente invocada para justificar o casamento com a prima paralela. De um jo­
vem que desposou a sua prima paralela diz-se que "a protegeu", que agiu de
maneira a salvar o segredo da intimidade familiar (cf. capítulo III). Aquele que
se casa no interior da sua própria família fica certo, ouvimos dizer muitas ve­
zes, de que a sua esposa se esforçará por salvaguardar a honra do marido, man­
terá o segredo dos conflitos familiares e não se irá queixar aos seus pais. O casa­
mento com uma estrangeira é temido como se teme uma intrusão; cria uma
brecha na barreira de protecções que rodeia a intimidade familiar: "Mais vale",
diz-se, "proteger o seu nif do que entregá-lo nas mãos dos outros."

30 "A dignidade da rapariga", diz um provérbio árabe, "só existe quando ela está com o seu
pai."
O SENTIDO DA HONRA 33

O ethos da honra

O sistema dos valores de honra é mais agido que pensado e a gramática da


honra pode informar os actos sem ter de ser formulada. Assim, quando apre­
endem espontaneamente como desonrosa ou ridícula este ou aquele modo de
comportamento, os Cabilas estão na situação daquele que detecta um erro de
linguagem sem por esse facto conhecer o sistema sintáctico que foi violado.
Uma vez que as normas deitam raízes no sistema das categorias da percepção
mítica do mundo, nada é mais difícil nem, talvez, mais vão que tentar distin­
guir entre o domínio directa e claramente apreendido pela consciência e o do­
mínio soterrado no inconsciente. Para o demonstrar, um exemplo basta. O ho­
mem de honra é aquele que faz frente (qabel), que enfrenta os outros olhan-
do-os na cara; qabel é também receber como anfitrião outrem e recebê-lo bem,
honrá-lo. Associa-se por vezes à mesma raiz, por meio de uma etimologia po­
pular que é pelo menos significativa, a palavra laqbayel (masculino plural)
que designa os Cabilas.31 Thaqbaylith, feminino do substantivo aqbayli, um ca-
bilo, designa a mulher cabila, a língua cabila e também, se assim se pode di­
zer, a quididade do cabila, o que faz com que um cabila seja cabila, aquilo que
não poderia deixar de ser sem deixar de ser cabila, quer dizer, a honra e o or­
gulho deste povo. Mas qabel é também fazer frente ao Leste (elqibla) e ao futuro
(qabel). No sistema mítico-ritual cabila, o Leste mantém uma relação de homo-
logia com o Alto, o Futuro, o Dia, o Masculino, o Bem, à Direita, o Seco, etc., e
opõe-se ao Oeste e, no mesmo movimento, ao Baixo, ao Passado, à Noite, ao
Feminino, ao Mal, à Esquerda, ao Húmido, etc. Dando todos os informantes
espontaneamente por carácter essencial do homem de honra o facto de ele fa­
zer frente, qabel, vemos que as normas explícitas do comportamento encon­
tram e recobrem os princípios soterrados do sistema mítico-ritual.
O ethos da honra opõe-se, no seu próprio princípio, a uma moral univer­
sal e formal afirmando a igualdade em dignidade de todos os homens e, con­
sequentemente, a identidade dos direitos e deveres. Não só as regras impos­
tas aos homens diferem das impostas às mulheres e os deveres para com os
homens dos relativos às mulheres, como, além disso, os mandamentos da
honra, directamente aplicados ao caso particular e variáveis em função das si­
tuações, não são de maneira alguma universalizáveis. É o mesmo código que
dita comportamentos opostos segundo o campo social.- por um lado, as regras
que regem as relações entre parentes e, mais amplamente, todas as relações
sociais vividas segundo o modelo das relações de parentesco ("ajuda os teus,
tenham eles razão ou não"), e, por outro, as regras que valem nas relações com
estranhos. Esta dualidade das atitudes decorre logicamente do princípio

Cf. A. Picard, Textes berbères dans leparlerdes Irjen (Cabília, Argélia, Typo-litho, 1961), que
faz sua esta etimologia.
34 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

fundamental, antes estabelecido, segundo o qual os comportamentos de hon­


ra apenas se impõem perante aqueles que deles são dignos. O respeito das in-
junções do grupo tem o seu fundamento no respeito de si próprio, quer dizer,
no sentimento de honra. Mais que um tribunal, no sentido de organismo es­
pecializado, encarregado de pronunciar decisões em conformidade com um
sistema de regras jurídicas racionais e explícitas, a assembléia do clã ou da al­
deia é de facto um conselho de arbitragem ou até mesmo um conselho de fa­
mília. A opinião colectiva é a lei, o tribunal é o agente da execução da sanção.
A thajma'th, onde todas as famílias estão representadas, encarna a opinião pú­
blica, cujos sentimentos e valores experimenta ou exprime e de cuja força mo­
ral se autoriza. O castigo mais temido é o de se ser posto no index ou banido:
os atingidos por essas medidas são excluídos do compartilhar colectivo da
carne, da assembléia e de todas as actividades colectivas, condenados, em
suma, a uma espécie de morte simbólica. O qanun, súmula de costumes pró­
prios de cada aldeia, consiste essencialmente na enumeração de faltas parti­
culares, seguidas da multa correspondente. É assim, por exemplo, que o qa­
nun de Agouni-n-Tesellent, aldeia da tribo dos Ath Akbil, conta, num conjun­
to de 249 artigos, 219 leis "repressivas" (no sentido de Durkheim), ou seja 88
por cento, contra 25 leis "restitutivas", ou séjá, 10 por cento, e apenas cinco ar­
tigos relativos aos fundamentos do sistema político. Aregra consuetudinária,
fruto de uma jurisprudência directamente aplicada ao particular e não da
aplicação ao particular de uma regra universal, preexiste à sua formulação;
com efeito, o fundamento da justiça não é um código formal, racional e explí­
cito, mas o "sentido" da honra e da equidade. O essencial permanece implíci­
to porque indiscutido e indiscutível; o essencial, quer dizer, o conjunto dos
valores e dos princípios que a comunidade afirma através da sua própria
existência e que fundam os actos da jurisprudência. "O que a honra proíbe",
dizia Montesquieu, "é mais proibido quando as leis não o proíbem, o que é
prescrito, mais exigido ainda quando as leis não o exigem."
As relações econômicas também não são apreendidas e constituídas en­
quanto tais, ou seja como regidas pela lei do interesse, e permanecem sempre
como que dissimuladas sob o véu das relações de prestígio e de honra. Tudo
se passa como se esta sociedade se recusasse a olhar de frente a realidade eco­
nômica, a apreendê-la como regida por leis diferentes das que regulam as re­
lações familiares. Daí a ambiguidade estrutural de toda a troca: joga-se sem­
pre ao mesmo tempo no registo do interesse que não se confessa e da honra
que se proclama. Alógica do dom não será uma maneira de superar ou de dis­
simular os cálculos do interesse? Se o dom, como o crédito, implica o dever de
devolver mais, essa obrigação da honra, por imperativa que seja, permanece
tácita e secreta. Sendo o contradom diferido, a troca generosa, por contraste do
"dou para que dês", não tenderá a velar a transacção interessada que não
ousa mostrar-se no seu momento próprio, desdobrando-a na sucessão tem­
poral e substituindo à série contínua de dons seguidos de contradons uma
O SENTIDO DA HONRA 35

série descontínua de dons aparentemente sem contrapartida? Querer-se-á


um outro exemplo? É uso que o vendedor, no termo de uma transacção im­
portante, como a venda de um boi, devolva ostensivamente ao comprador
uma parte da soma que acaba de receber "para que ele compre carne para os
filhos". E o pai da esposa fazia a mesma coisa, quando recebia o dote, no final,
as mais das vezes, de um "regatear" renhido (Alt Hichem). Quanto mais im­
portante era a parte devolvida, maior a honra que dela se extraía, como se, ao
coroar-se a transacção por meio de um gesto generoso, se entendesse conver­
ter em troca de honra uma negociação que só podia ser tão abertamente renhi­
da pelo facto de a busca da maximização do lucro material nela se dissimular
sob o duelo de honra e sob a busca da maximização do lucro simbólico.32

Paris, Janeiro de 1960

32 Poderá encontrar-se uma verificação destas análises no facto de a generalização das tro­
cas monetárias e da atitude calculista que dela é correlativa fazer aparecer a "negocia-
ção-duelo de honra" em torno do dote da viúva como vergonhosa e ridícula, constituin­
do uma troca interessada enquanto tal e destruindo a ambiguidade estrutural da troca se­
gundo a tradição.
Capítulo 2
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO

O homem é a lâmpada de fora,


a mulher a lâmpada de dentro.

O interior da casa cabila apresenta a forma de um rectângulo que uma peque­


na parede com uma clarabóia a meia altura divide, a um terço do comprimen­
to, em duas partes: a maior, subida cerca de 50 centímetros e coberta de um re­
boco de argila negra e de bosta de vaca que as mulheres polem com uma pe­
dra, é reservada aos seres humanos, sendo a mais estreita, lajeada, ocupada
pelos animais.1 Uma porta de dois batentes dá acesso às duas divisões. No
murete de separação estão dispostos de um lado os pequenos recipientes de
terra cozida ou os cestos de esparto nos quais se conservam as provisões de
consumo imediato — figos, farinha, gêneros leguminosos —, do outro, junto
à porta, os cântaros de água. Por cima da estrebaria, há um desvão onde se
guardam, com ferramentas de toda a espécie, a palha e o feno destinados à ali­
mentação dos animais, e onde dormem, a maior parte do tempo, sobretudo
no Inverno, as mulheres e as crianças.2 Diante da construção com nichos e res­
piradouros, apoiada na parede de empena, chamada muro (ou, mais exacta-
mente, lado") de cima ou do kanun, que serve para arrumar os instrumentos
da cozinha (concha, panela, tabuleiro de cozer a bolacha e outros objectos de
barro enegrecidos pelo lume) e de um lado e de outro da qual estão postos os
grandes potes onde se guardam as sementes, fica o lar, cavidade circular com

1 Este texto foi publicado em Échanges et Communications, estudo dedicado a Claude


Lévi-Strauss, Mouton, 1969.
2 O lugar do sono e das relações sexuais parece variar, mas apenas no interior da "parte
obscura" da casa: toda a família pode dormir no desvão, sobretudo no Inverno, ou ape­
nas as mulheres sem marido (viúvas, divorciadas, etc.) e as crianças, ou ainda contra a pa­
rede do escuro, ou na parte alta da parede de separação do homem, deitando-se a mulher
na parte mais baixa, do lado da porta, e indo ter com o marido à zona escura.

37
38 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Quadro 2,1 O vocabulário da honra

Honra Desonra Sagrado

Ponto de Honra Respeitabilidade Acção de Estado de Crime contra


Honra desonra desonra a honra

nif el’ardh essar bahdel hachma el'ar elhurma


if lahya nur ‘ayer thibhadlith al'ib elharam
anzaren riya thaqbaylith achuwah thim'avrith elkhazzwa
thírzi nennif elhachma thizugza hachchem chuha tikhzi
amesrur (adj.) thirujla afdhah elfadhha lahram
amahruz (adj.) chi'a Nomes de ítswa'ayer(adj.)
el'ali acção: inahcham
abahdel
elbahadla
ahachchem
thuksa nessar
thuksa laqdhar
thírzi ladqdhar
thírzi el hurma

Nota: Confrontar com o capítulo 1, “O sentido da honra”.

alguns centímetros de profundidade no centro, em torno da qual três gran­


des pedras destinadas a receber os instrumentos de cozinha se dispõem
em triângulo.3
Diante da parede que faz frente à porta e que tem, as mais das vezes, o
mesmo nome que a da fachada exterior que dá para o pátio tasga,4 ou é ainda

ir» -(->*=»■

3 Todas as descrições da casa berbere, até mesmo as mais precisas e mais metódicas (como
a de R. Maunier, "Le Culte domestique en Kabylie" e "Les Rites de la construction en
Kabylie", em Mélanges de sociologie nord-africaine, Paris, Alcan, 1930, pp. 120-177) ou as
mais ricas em notações (como as de É. Laoust: Mots et Choses berbères, Paris, 1920,
pp. 50-53, e Étude sur le dialecte berbère di Chenoua, op. cit.,pp. 12-15, ou as de H. Genevoix,
L'Habitation kabyle, Fort-National, Fichier de communication berbère, n.° 46,1955), apre­
sentam, na sua extrema minúcia, lacunas sistemáticas, sobretudo no que se refere à locali­
zação e à orientação das coisas e das actividades, pois nunca chegam a apreender os ob-
jectos e as acções como partes de um sistema simbólico. S6 o postulado de que cada um
dos fenômenos observados extrai a sua necessidade e o seu sentido da sua relação com to­
dos os outros podería conduzir a uma observação e a uma interrogação capazes de susci­
tarem, pela sua intenção sistemática, os factos que escapam à observação desarmada e
que os observadores não podem referir espontaneamente pois lhes parecem óbvios. Este
postulado encontra a sua validação nos próprios resultados da investigação que alicerça:
a posição particular da casa no interior das representações mágicas e das práticas rituais
justifica a abstracção inicial por meio da qual foi arrancada ao sistema mais vasto para ser
tratado como sistema.
4 Com esta excepção, as paredes são designadas por dois nomes diferentes, conforme se­
jam consideradas do exterior ou do interior. O exterior é estucado pelos homens, enquan­
to o interior é pintado de branco e enfeitado pelas mulheres. Esta oposição entre os dois
pontos de vista é, como veremos, fundamental.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 39

chamada parede do tear ou parede da frente (estamos virados para ela


quando entramos) ergue-se o tear. A parede oposta, a da porta, é chamada
parede da obscuridade, do sono, da menina ou do túmulo; encostado, um
banco bastante largo para se estender uma manta usada para proteger a vi­
tela ou a ovelha da festa, e por vezes a lenha ou os recipientes de água. As
vestimentas, as mantas e os cobertores estão pendurados, durante o dia,
numa cavilha ou travessa de madeira na parede da obscuridade ou poisa­
dos no banco da separação. A parede de Kanun opõe-se, pois, ao estábulo
como o alto ao baixo (adaynin, estábulo, proveniente da raiz ada, de baixo),
e a parede do tear à parede da porta, como a luz à escuridão. Poderiamos
ser tentados a atribuir a estas oposições uma explicação estritamente técni­
ca, uma vez que a parede do tear, em frente à porta, ela mesma virada para
este, é a mais iluminada, enquanto o estábulo é, efectivamente, situado em
baixo (sendo a casa frequentemente construída perpendicularmente às
curvas de nivel para facilitar o escoamento dos dejectos e das águas), se nu­
merosos indícios não sugerissem que tais oposições são o centro de feixes
de oposições paralelas que nunca devem toda a sua necessidade, nem aos
imperativos técnicos, nem às necessidades funcionais.5
A parte baixa, escura e nocturna da casa, lugar dos objectos húmidos,
verdes ou crus — recipientes de água pousados em bancos de um lado e de
outro da entrada do estábulo ou contra a parede do escuro, lenha, forragem
verde —, lugar também dos seres naturais — bois e vacas, burros e mulas —,
das actividades naturais — sono, acto sexual, parto — e também da morte,
opõe-se, como a natureza à cultura, à parte alta, luminosa, nobre, lugar dos
humanos e em particular do convidado, do fogo e dos objectos fabricados por
40 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

meio do fogo, lâmpada, instrumentos de cozinha, espingarda — símbolo do


ponto de honra viril (ennifi que protege a honra feminina (hurma) -—, tear, sím­
bolo de toda a protecção, lugar também das actividades propriamente cultu­
rais que se realizam no espaço da casa, a cozinha e a tecelagem. Estas relações
de oposição exprimem-se através de todo um conjunto de índices convergen­
tes que as fundam ao mesmo tempo que recebem delas o seu sentido. E diante
do tear que se senta o convidado que se quer honrar, qabel, verbo que significa
também fazer frente e fazer frente ao Leste.6 Aquele que foi mal recebido cos­
tuma dizer: "Fez-me sentar diante da parede do escuro como numa sepultu­
ra." A parede do escuro chama-se também parede do doente e a expressão
"segurar a parede" significa estar doente e, por extensão, ocioso: é aí que se
prepara a cama do doente, sobretudo no Inverno. O laço entre a parte escura
da casa e a morte revela-se ainda no facto de ser à entrada do estábulo que se
procede à lavagem do morto.7 Costuma dizer-se que o sótão, todo de madei­
ra, é sustentado pelo estábulo como o cadáver pelos que o transportam, de­
signando tha'richth ao mesmo tempo o sótão e a padiola que serve para

A implantação da casa no espaço geográfico e no espaço social, e também a sua organiza


ção interior, são um dos "lugares" onde se articulam a necessidade simbólica e a necessi
dade técnica. Talvez seja em casos nos quais, como aqui, os princípios da organizaçao
simbólica do mundo não podem aplicar-se com liberdade completa e devem e agum
modo concertar-se com instâncias externas — as da técnica, por exemplo, que impõem a
construção da casa perpendicularmente às curvas de nível e frente ao sol levante (ou,
noutros casos, as da estrutura social, que querem que qualquer casa nova seja e i ica a
num bairro particular definido pela genealogia) — que o sistema simbólico re ve a to a a
sua aptidão para reinterpretar segundo a sua lógica própria os dados que outros sistemas
lhe propõem.
A oposição entre a parte reservada à recepção e a parte íntima (que se encontra tamb m,
na tenda nômada, separada por uma cortina em duas partes, uma aberta aos hóspe es, a
outra reservada às mulheres) exprime-se em certo rito de auspício: quando um gato, ani­
mal benéfico, entra em casa trazendo no pêlo uma pena ou um pedaço de lã branca e se i
rige para a lareira, isso pressagia a chegada de convidados aos quais será oferecida uma
refeição com carne; se o gato se dirige para o estábulo, isso significa que se comprará uma
vaca, se se estiver na Primavera, ou um boi, se for a época das lavras.
A homologia do sono e da morte exprime-se explicitamente no preceito que quer que
uma pessoa se deite por um momento sobre o lado direito e depois sobre o lado es­
querdo porque a primeira posição é a do morto na tumba. Os cantos fúnebres repre­
sentam a sepultura, "a casa debaixo da terra", como uma casa invertida (branco/ escu­
ro, alto/baixo, enfeitada com pinturas/grosseiramente cavada), explorando de pas­
sagem uma homonímia associada a uma analogia de forma: "Encontrei pessoas a ca­
var uma sepultura/com as enxadas esculpiam as paredes/faziam nelas bancos (thid-
dukanin)/com uma argamassa inferior à lama", diz um canto de velório (cf. H. Gene-
voix, op. cit., p. 27). Thaddukant (plural thiddukanin) designa o banco encostado à pare­
de de separação e oposto ao que se apoia contra a parede da empena (addukan), e tam­
bém o banco de terra sobre o qual repousa a cabeça do homem no interior da tumba (a
leve concavidade onde se pousa a cabeça da mulher chama-se thakwath, como os pe­
quenos nichos escavados nas paredes da casa e que servem para guardar objectos
miúdos).
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 41

transportar os mortos. Por isso se compreende que não se possa, sem o ofen­
der, convidar um hóspede a dormir no sótão, que mantém com a parede do
tear a mesma oposição que a parede da sepultura.
É também diante da parede do tear, frente à porta, em plena luz, que se
põe sentada, ou melhor, se expõe, à maneira das travessas com motivos deco­
rativos que nele estão penduradas, a recém-casada, no dia do casamento.
Quando temos presente que o cordão umbilical da rapariguinha é enterrado
atrás do tear e que, para proteger a virgindade de uma jovem, a fazem passar
por entre os fios, da porta até à parede do tear, vemos a função de protecção
mágica que é atribuída ao tear.8 E de facto, do ponto de vista dos seus parentes
masculinos, toda a vida da rapariga se resume de certo modo nas posições su­
cessivas que ela ocupa simbolicamente em relação ao tear, símbolo da protec­
ção viril:9 antes do casamento, está atrás do tear, na sua sombra, sob a sua pro­
tecção, do mesmo modo que se encontra sob a vigilância do pai e dos irmãos;
no dia do casamento, está sentada diante do tear, virando-lhe costas, em ple­
na luz, e, mais tarde, sentar-se-á para tecer, com as costas para a parede da luz
atrás do tear: o genro é chamado "o véu das vergonhas", sendo o ponto de
honra do homem a única protecção da honra feminina, ou melhor, a única
"barreira" contra a vergonha cuja ameaça toda a mulher contém ("a vergonha
é a rapariga").10 P
Aparte baixa e escura opõe-se também à parte alta como o feminino e o
masculino: além de a divisão do trabalho entre os sexos (baseada no mesmo
princípio de separação que a organização do espaço) confiar à mulher o en­
cargo da maior parte dos objectos pertencentes à parte escura da casa, o trans­
porte da água, da lenha e do estrume, por exemplo, a oposição entre a parte
alta e a parte baixa reproduz no interior do espaço da casa a que se estabelece
entre o dentro e o fora, entre o espaço feminino, a casa e o seu jardim, lugar por
excelência do haram, quer dizer do sagrado e do interdito, e o espaço masculi­
no.11 A parte baixa da casa é o lugar do segredo mais íntimo no interior do
mundo da intimidade, quer dizer, de tudo o que se refere à sexualidade e à
procriação. Quase vazia durante o dia, quando toda a actividade — exclusi­
vamente feminina — se concentra à volta do lar, a parte escura enche-se com a

8 Entre os Árabes, para operar o rito mágico da ferragem destinado a tornar as mulheres
inaptas para as relações sexuais, faz-se passar a noiva pelo tear, de fora para dentro, quer
dizer do centro da divisão até à parede contra a qual as tecelãs trabalham; a mesma mano­
bra executada no sentido inverso destrói a ferragem (cf. W. Marçais e A. Guiga, Textes ara-
bes de Takrouna, Paris, Leroux, 1925, p. 395).
9 É. Laoust associa à raiz zett (tecer) a palavra tazettat, que, entre os Berberes de Marrocos,
designa a protecção concedida a qualquer indivíduo que viaje em território estrangeiro
ou a retribuição recebida pelo protector em troca da sua protecção (op. cit., p. 126).
10 Cf. adiante.
11 Quando entra pela primeira vez no estábulo, a nova junta de bois é recebida e conduzida
pela dona da casa.
42 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

noite, enche-se de seres humanos e de animais também, pois os bois e as vacas


nunca passam a noite no exterior, ao contrário do que acontece com os burros e as
mulas, e podemos dizer que nunca fica tão cheia como na estação húmida, quando
os homens dormem em casa e os bois e as vacas são alimentados no estábulo. E
aqui possível estabelecer mais directamente a relação que une a fecundidade dos
homens e do campo à parte escura da casa, caso privilegiado da relação de equiva­
lência entre a fecundidade e o obscuro, o cheio (ou a dilatação) e o húmido, atesta­
da pelo conjunto do sistema mítico-ritual. Com efeito, enquanto o cereal destinado
ao consumo é conservado, como vimos, em grandes potes de barro encostados à
parede de cima, de um lado e de outro da lareira, é na parte escura que se guarda o
cereal reservado para semente, ou em peles de carneiro ou arcas colocadas junto à
parede do escuro, por vezes sob a enxerga conjugal, ou em arcas de madeira postas
debaixo do banco encostado à parede de separação, aonde a mulher, normalmente
deitada um pouco abaixo, do lado da entrada do estábulo, vai ter com o marido.
Quando consideramos que o nascimento é sempre renascimento do antepassado,
fechando-se sobre si próprio o círculo vital (a que se deveria chamar ciclo de gera­
ção) de três em três gerações (proposição que será demonstrada mais tarde), com­
preendemos que a parte escura possa ser ao mesmo tempo e sem contradição o lu­
gar da morte e da procriação ou do nascimento enquanto ressurreição.12
Mas há mais: é no centro da parede de separação, entre "a casa dos hu­
manos” e "a casa dos animais" que se ergue o pilar principal, sustentando a
trave mestra e toda a armação da casa. Ora esta trave, que liga as empenas e
estende a sua protecção da parte masculina à parte feminina da casa (asalas
alemmas, termo masculino), é identificada de modo explícito com o dono da
casa, ao passo que o pilar principal, tronco de árvore em forquilha (thigejdith,
termo feminino) em que assenta é relacionado com a esposa (chamando-lhe
os Beni Khellili Nlas'uda, nome próprio feminino que significa "a feliz"), e a
sua articulação figura o acasalamento (representado nas pinturas murais,
como a união da trave e do pilar, por duas forquilhas sobrepostas).13 A trave
principal, que suporta o tecto, é identificada com o protector da honra

----------------- .0
12 A construção da casa, que ocorre sempre por ocasião do casamento d e um filho e que sim­
boliza o nascimento de uma nova família, é interdita em Maio, como o próprio casamen­
to. O transporte das traves, identificadas, como veremos, com o dono da casa, chama-se
tha'richth, como o sótão e como a padiola onde se transporta o morto ou um animal ferido que
será abatido longe de casa, e dá lugar a uma cerimônia social cuja significação é por inteiro
semelhante à do enterro. Pelo seu carácter imperioso, pela forma cerimonial de que se reves­
te e pela extensão do grupo que mobiliza, este trabalho colectivo (thiwizi) só tem equivalente
no enterro: os homens dirigem-se ao lugar onde a madeira foi cortada, depois de terem sido
convocados do alto da mesquita como para um enterro. Espera-se da participação no trans­
porte das traves, acto piedoso sempre efectuado sem contrapartida, tanto hassana (mérito)
como da participação nas actividades colectivas ligadas ao funeral (cavar a sepultura, extrair
as lajes de pedra ou transportá-las, ajudar a carregar o caixão ou assistir ao enterro).
13 M. Dewulder, "Peintures murales et pratiques magiques dans la tribu des Ouadhias", Re­
vue africaine, 1954, pp. 14-15.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 43

familiar: constitui muitas vezes objecto de oferendas e é à volta dela, à altura


da lareira, que se enrola a serpente, "guardião" da casa; símbolo da potência
fecundante do homem e também da morte seguida de ressurreição, a serpen­
te é por vezes representada (na região de Collo por exemplo) em recipientes
de barro, moldados pelas mulheres, que guardam os grãos de semente.
Diz-se também que a serpente por vezes entra em casa, descendo ao ventre da
mulher estéril e chamando-lhe mãe, ou que se enrola à volta do pilar central,
aumentando um anel depois de cada mamada.14 Em Darna, segundo Rená
Maunier, a mulher estéril prende o seu cinto na trave central e é nesta que se
penduram o prepúcio e a cana que serviu para a circuncisão; quando se ouve
um estalido da trave, diz-se imediatamente "que seja por bem", porque se tra­
ta de um presságio da morte do chefe da família. Quando nasce um rapaz,
faz-se o voto de que "ele seja a trave mestra da casa", e quando o rapaz cum­
pre o jejum ritual pela primeira vez toma a sua primeira refeição a seguir ao je­
jum no terraço da casa, quer dizer, sobre a trave central (a fim, segundo se diz,
de ser capaz de transportar as traves).
Há numerosos ditados e adivinhas que identificam explicitamente a
mulher com o pilar central: "A mulher é o pilar central." À recém-casada cos­
tuma dizer-se: "Que Deus faça de ti o pilar solidamente implantado no meio
da casa." Uma adivinha diz: "Ela mantém-se de pé e não tem pés." Forquilha
aberta para cima e não assente nos pés, é a natureza feminina, fecunda ou, me­
lhor, fecundável.15 No Aurès, é contra o pilar central (hiji) que se põem os
odres cheios de cereal e que é consumado o casamento.^
Assim, resumo simbólico da casa, a união de asalas e de thigejdith, que
estende a sua protecção fecundante sobre todo o casamento humano, é de cer­
to modo o casamento primordial, dos antepassados que é também, como o la­
vrar do campo, a união do céu e da terra. "Amulher é o alicerce, o homem, a trave

O’ .o
14 No dia de tharurith wazal (8 de Abril do calendário juliano), momento decisivo de vira­
gem do ano agrícola, entre a estação húmida e a estação seca, o pastor vai muito cedo, de
manhã, buscar água ao poço e aspergir com ela a trave central; por ocasião das colheitas, o
último molho de espigas, cortado segundo um ritual especial (ou uma espiga dupla), é
pendurado na trave central, onde ficará durante o ano todo.
15 Da recém-casada que se adapta bem à nova casa, diz-se tha'mmar, quer dizer, entre outros
sentidos (cf. nota 29), "ela está cheia" e "ela enche".
16 Entre os Berberes do Aurès, a consumação do casamento decorre na segunda-feira, na
quinta-feira ou no sábado, dias fastos. Na véspera, as jovens da família do noivo empi­
lham contra o pilar central, hiji, seis odres pintados de vermelho, verde, amarelo e violeta
(representando a noiva) e um sétimo branco (o noivo), cheios de grãos de cereal. Na base
do hiji, uma velha deita sal no chão para aumentar a virilidade do marido e abre uma este­
ira orientada para leste, que será o leito dos recém-casados durante uma semana. As mu­
lheres da parentela do noivo perfumam o hiji, enquanto a sua mãe lança, como no mo­
mento de lavrar os campos, punhados de tâmaras que as crianças disputam. No dia se­
guinte, a esposa é levada por um parente próximo do marido até ao hiji, onde a mãe volta
a deitar no chão farinha, tâmaras, trigo germinado, açúcar e mel.
44 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

mestra", diz outro provérbio. Asalas, que uma adivinha define como "nascido na
terra e enterrado no céu", fecunda thigejdith, implantada na terra, lugar dos ante­
passados, senhores de toda a fecundidade, e aberta para o céu.17 *
A casa organiza-se segundo um conjunto de oposições homólogas:
fogo / água, cozido / cru, alto /baixo, luz / sombra, dia / noite, masculino / fe­
minino, nif/hurma, fecundante/fecundável, cultura/natureza. Mas de fac­
to as mesmas oposições existem entre a casa no seu conjunto e o resto do uni­
verso. Considerada na sua relação com o mundo exterior, propriamente
masculino da vida pública e do trabalho agrícola, a casa, universo das mu­
lheres, inundo da intimidade e do segredo, é haram, quer dizer, ao mesmo
tempo sagrada e ilícita para todo o homem que dela não faça parte (daí a ex­
pressão usual nas prestações de juramento: "Que a minha mulher — ou a
minha casa—se torne para mim ilícita — haram — se..."'), cf. cap. I, p. 52, da
edição francesa. Lugar do sagrado esquerdo, da hurma, a que se ligam todas
as propriedades associadas à parte escura da casa, é posta sob a protecção
do ponto de honra masculino (nif), como a parte escura da casa fica a cargo
da trave mestra. Toda a violação do espaço sagrado toma a partir desse mo­
mento a significação social de um sacrilégio: assim, o roubo numa casa habi­
tada é tratado consuetudinariamente como uma falta gravíssima, a título de
ofensa ao nif do chefe de família e de ultraje à hurma da casa e, por isso, de
toda a comunidade.16 O
Não podemos justificadamente dizer, portanto, que a mulher está en­
cerrada na casa a não ser que observemos ao mesmo tempo que o homem é
excluído dela, pelo menos durante o dia. Mal o Sol nasce, o homem deve, no
Verão, estar no campo ou na assembléia; no Inverno, se não for ao campo,
deve ir para o local da assembléia ou sentar-se nos bancos abrigados pelo al­
pendre que encima a porta de entrada do pátio. Até durante a noite, pelo me­
nos na estação seca, os homens e os rapazes, depois de circuncidados, dor­
mem fora de casa, ou junto das medas, na eira, ao lado do burro e da mula pe-
ados, ou no passai dos figos, ou ainda em pleno campo, e até, o que acontece
mais raramente, na thajma'th.19
O homem que está demasiado em casa durante o dia torna-se suspeito

Coloca-se em certas regiões o relho do arado na forquilha do pilar central, com a ponta vi­
rada para a porta.
Sabe-se que o hóspede entrega à dona da casa uma soma de dinheiro a que se chama "a
vista", o que acontece não só quando se é convidado pela primeira vez para uma casa,
mas também quando, no terceiro dia do casamento, se visita a família da esposa.
Manifestando-se a dualidade de ritmo ligada à divisão entre estação seca e estação húmi­
da, entre outras coisas, na ordem doméstica, a oposição entre a parte baixa e a parte alta
da casa assume, no Verão, a forma da oposição entre a casa propriamente dita, para onde
as mulheres e as crianças se retiram para dormir e onde se armazenam as reservas, e o pá­
tio onde é instalada a lareira e o moinho de braços, onde se tomam as refeições e onde as
pessoas se reúnem por altura das festas e das cerimônias.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 45

ou ridículo: é "o homem da casa", como se diz do estorvo que fica no meio das
mulheres e "no choco em casa como uma galinha no seu ninho". O homem
que se respeita deve fazer-se ver, pôr-se a todo instante frente ao olhar dos ou­
tros, enfrentá-los, fazer frente (gabei). É o homem entre os homens (argaz yer ir-
gazerí);20 Daí a importância que assumem os jogos de honra, espécie de acção
teatral realizada diante dos outros, espectadores avisados que conhecem o
texto e todos os jogos de cena e são capazes de apreciar as suas mais pequenas
variantes. Compreende-se que todas as actividades biológicas — comer, dor­
mir, procriar — sejam banidas do universo propriamente cultural e relegadas
para esse asilo da intimidade e dos segredos da natureza que é a casa,21 mun­
do da mulher, votado à gestão da natureza e excluído da vida pública. Por
oposição ao trabalho do homem, realizado no exterior, o da mulher está vota­
do a permanecer obscuro e escondido ("Deus esconde-o", diz-se): "Lá dentro,
ela não tem descanso, debate-se como uma mosca no coalho; lá fora (acima),
nada se vê do seu trabalho." Dois ditados muito semelhantes definem a con­
dição da mulher que não pode conhecer outro lugar próprio a não ser a sepul­
tura supraterrestre que é a casa e a casa subterrânea que é a sepultura: "A tua
casa é a tua sepultura" e "A mulher tem só duas moradas, a casa e a
sepultura."
Assim, a oposição entre a casa e a assembléia dos homens, entre a vida
privada e a vida pública, ou, se se quiser, entre a plena luz do dia e o segredo
da noite, recobre muito exactamente a oposição entre a parte baixa, escura e
nocturna da casa e a sua parte alta, nobre e luminosa.22 A oposição que se esta­
belece entre o mundo exterior e a casa só assume o seu sentido completo
quando nos damos conta de que um dos termos desta relação, quer dizer, a
casa, se divide ele próprio segundo os mesmos princípios que o opõem ao ou­
tro termo. É, portanto, ao mesmo tempo verdadeiro e falso dizer que o mundo
exterior se opõe à casa como o masculino ao feminino, o dia à noite, o fogo à
água, etc., uma vez que o segundo termo destas oposições se divide a cada
vez em si próprio e no seu oposto.23
Em suma, a oposição mais aparente masculino (ou dia, fogo, etc.)/femi­
nino (ou noite, água, etc.) tem o risco de dissimular a oposição masculino /
[feminino-masculino/feminino-feminino], e no mesmo acto a homologia
masculino/feminino: feminino-masculino/feminino-feminino. Vemos aqui

20 As relações entre os homens devem entabular-se no exterior: "Os amigos são os amigos
do exterior e não os do kanun."
21 "A galinha", costuma dizer-se, "não põe no mercado."
22 A oposição entre a casa e a thajma'th lê-se claramente na diferença entre os planos das
duas construções: enquanto a casa se abre pela porta da fachada, a da assembléia apre­
senta-se como uma longa passagem coberta, inteiramente aberta nas duas empenas, po­
dendo ser atravessada de um lado a outro.
23 Esta estrutura reaparece noutros domínios do sistema mítico-ritual, por exemplo na es­
trutura do dia e do ano.
46 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

que a primeira oposição não é mais que uma transformação da segunda, que
supõe a mudança de sistema de referência no termo do qual se deixa de opor o
feminino-feminino ao feminino-masculino para opor o conjunto que consti­
tuem a um terceiro termo: feminino-masculino/feminino-feminino / (=femi-
nino-masculino + feminino-feminino)/masculino.
Microcosmo organizado segundo as mesmas oposições e as mesmas ho-
mologias que ordenam todo o universo, a casa mantém uma relação de homo-
logia com o resto do universo, mas, de um outro ponto de vista, o mundo da
casa tomado no seu conjunto está com o resto do mundo numa relação de
oposição cujos princípios não são outros senão os que organizam tanto o es­
paço interior da casa como o resto do mundo e, mais geralmente, todos os do­
mínios da existência. Assim, a oposição entre o mundo da vida feminina e o
mundo da cidade dos homens assenta nos mesmos princípios que os dois sis­
tema de oposições que opõe. Decorre daqui que a aplicação a domínios opos­
tos do principium divisions que constitui a sua própria oposição garante uma
economia e um acréscimo de coerência, sem acarretar em contrapartida a con­
fusão entre estes domínios. A estrutura do tipo a: bl: b2 é sem dúvida uma das
mais simples e mais poderosas que pode utilizar um sistema mítico-ritual,
uma vez que não pode opor sem unir simultaneamente, sendo, por outro
lado, capaz de integrar numa ordem única um número infinito de dados,
através da simples aplicação indefinidamente reiterada do mesmo princípio
de divisão. Segue-se ainda que cada uma das duas partes da casa (e, no mes­
mo acto, cada um dos objectos que nela são depostos e cada uma das activida-
des que nela se realizam) é de certo modo qualificada em dois graus, ou seja,
em primeiro lugar como feminina (nocturna, escura, etc.) na medida em que
participa do universo da casa, e secundariamente como masculina ou femini­
na na medida em que pertence a uma ou outra das divisões desse universo.
Assim, por exemplo, quando o provérbio diz "o homem é a lâmpada de fora,
a mulher é a lâmpada de dentro", devemos entender que o homem é a verda­
deira luz, a do dia, e a mulher a luz da obscuridade, a obscura claridade; e sa­
bemos que, por outro lado, a mulher está para a Lua como o homem para o
Sol. Do mesmo modo, pelo trabalho da lã, a mulher produz a protecção bené­
fica da tecelagem, simbolizando a brancura da peça tecida a felicidade;24 o
tear, instrumento por excelência da actividade feminina, erguendo-se frente
ao leste como o arado, seu homólogo, é ao mesmo tempo o leste do espaço in­
terior de tal maneira que tem, no interior do sistema da casa, um valor mascu­
lino enquanto símbolo de protecção. Do mesmo modo ainda, o lar, umbigo da
casa (ela própria identificada com o ventre de uma mãe), onde se conservam
as brasas, fogo secreto, dissimulado, feminino, é o domínio da mulher,

24 "Os dias brancos" designam os dias felizes. Uma das funções dos ritos de casamento é tor­
nar a mulher "branca" (aspersão de leite, etc.).
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 47

investida de uma autoridade inteira em tudo o que se refere à cozinha e à ges­


tão das reservas;25 26 é junto à lareira que a mulher toma as suas refeições, ao pas­
so que o homem, virado para o exterior, come no meio da divisão ou no pátio.
Todavia, em todos os ritos em que intervém, o lar e as pedras que o rodeiam
retiram a sua eficácia mágica, quer se trate de proteger do mau-olhado e da
doença ou de suscitar o bom tempo, seco, e calor solar.20 Aprópria casa é dota­
da de uma dupla significação: se é verdade que se opõe ao mundo público
como a natureza à cultura, é também cultura sob um outro aspecto, e por isso
se diz do chacal, encarnação da natureza selvagem, que ele não constrói casa.
A casa e, por extensão, a aldeia,27 a região cheia (lammara ou thamurth
i'amaran), a vedação povoada de homens, opõe-se sob certo aspecto aos cam­
pos vazios de homens, chamados lakhla, o espaço vazio e estéril; assim, segun­
do Maunier, os habitantes de Taddertel-Djeddid acreditavam que aqueles
que construíam fora da cerca da aldeia se expunham ao risco de extinção da
sua família; a mesma crença aparece noutros lugares e apenas se abre uma ex-
cepção para a horta, ainda que afastada da casa (thubhirtfi), para o pomar (tha-
mazirth) ou o passai dos figos (tarhá), lugares que de algum modo participam
da aldeia e da sua fecundidade. Mas a oposição não exclui a homologia entre
a fecundidade dos homens e a do campo, que são uma e outra produto da
união do princípio masculino e do princípio feminino, do fogo solar e da hu­
midade terrestre. É com efeito esta homologia que subjaz à maior parte dos ri­
tos destinados a assegurar a fecundidade dos humanos e da terra, quer se tra­
te da cozinha, estritamente submetida às oposições que organizam o ano
agrário e por isso aos ritmos do calendário agrícola, quer dos ritos de renova­
ção do lar e das pedras (ínzyen), que assinalam a passagem da estação seca à
estação húmida ou o começo do ano, e, mais geralmente, de todos os ritos
consumados no interior da casa, imagem reduzida do topocosmo: quando as
mulheres intervém nos ritos propriamente agrários, é ainda a homologia en­
tre a fecundidade agrária e a humana, forma por excelência de toda a fecundi­
dade, que funda as suas acções rituais e lhes confere a sua eficácia mágica.
Não acabaríamos de enumerar os ritos consumados no interior da casa que só

25 O ferreiro é o homem que, como a mulher, passa o dia inteiro no interior, perto do fogo.
26 O lar é lugar de um certo número de ritos e objecto de interditos que o tornam o oposto
da parte obscura. Por exemplo, é interdito tocar nas cinzas durante a noite; cuspir na la­
reira, deixar lá cair água ou nela derramar lágrimas (Maunier). Do mesmo modo os ritos
destinados a obter uma mudança de tempo e baseados numa inversão utilizam a oposi­
ção entre a parte seca e a parte húmida da casa: por exemplo, para passar do húmido ao
seco, coloca-se um pente de cardar (objecto fabricado ao fogo e associado à tecelagem) e
uma brasa ardente no limiar da casa durante a noite; inversamente, para passar do seco
ao húmido, aspergem-se de água os pentes de cardar, deixados no limiar também, du­
rante a noite.
27 Aaldeia tem também a sua hurma, que deve ser respeitada por todos os que a visitam. Do
mesmo modo que nos devemos descalçar para entrar numa casa, uma mesquita ou uma
eira, também assim devemos apear-nos quando entramos numa aldeia.
48 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

têm a aparência de ritos domésticos porque tendem indissociavelmente a as­


segurar a fecundidade do campo e a fecundidade da casa. É preciso, com efei­
to, que a casa esteja cheia para que o campo fique cheio e que a mulher contri­
bua para a prosperidade do campo dedicando-se, entre outras coisas, a acu­
mular, a economizar e a conservar os bens que o homem produziu e a fixar de
certo modo na casa qualquer bem que nela possa entrar. "O i ornem", diz-se,
"é como o rego de água, a mulher como o tanque", um leva, a outra retém e
conserva. O homem é "o gancho do qual estão pendurados os cestos", o que
fornece como o escaravelho, a aranha ou a abelha. Aquilo que o homem trou­
xe, a mulher guarda-o, protege-o e poupa-o. É a mulher quem diz: "Maneja o
teu bem como um tição. Há hoje, há amanhã e há a sepultura; Deus perdoa
àquele que deixou e não àquele que comeu". Mais vale, diz-se também, uma
mulher poupada que uma junta de bois no campo". Como a "região cheia" se
opõe ao "espaço vazio" (lakhla), o "cheio da casa" (la'mmara ukham), quer di­
zer, na maior parte dos casos, "a velha" que poupa e acumula, opõe-se ao "va-
zio da casa" (lakhla ukham), as mais das vezes a nora.28 No Verão, a porta da
casa deve permanecer aberta o dia todo para que a luz fecundante do Sol pos­
sa entrar e, com ela, a prosperidade. Aporta fechada é a escassez e a esterilida­
de: sentar-se no limiar é, obstruindo-o, fechar a passagem à felicidade e à ple­
nitude. Para se desejar a prosperidade a alguém, diz-se: "que a tua porta fique
aberta" ou "que a tua casa esteja aberta como uma mesquita". O homem rico e
generoso é aquele de quem se diz: "A casa dele é uma mesquita, está aberta a
todos, pobres e ricos, é feita de biscoito e de cuscuz, está cheia" (tha'mmar); a
generosidade é uma manifestação da prosperidade que garante a prosperida­
de. A maior parte das acções técnicas e rituais que incumbem à mulher são
orientadas pela intenção objectiva de fazer da casa, à maneira de thigejdith
que abre a sua forquilha a asalas alemmas, o receptáculo da prosperidade que
lhe vem do exterior, o ventre, que, como a terra, recebe a semente que o macho
nela fez penetrar e, inversamente, pela intenção de contrariar a acção de todas
as forças centrífugas capazes de desapossarem a casa do depósito que lhe foi
confiado. Por exemplo, é interdito fazer fogo no dia do nascimento de um fi­
lho ou de um vitelo ou ainda por altura das primeiras lavras;29 no fim da de­
bulha, nada deve sair de casa e a mulher faz voltar para casa todos os objectos
emprestados; o leite dos três dias que se seguem ao parto não deve sair de
_________ O

28 'Ammar é, tratando-se de uma mulher, ser poupada e boa dona de casa e também fundar
um lar e estar repleto. À 'ammar opõe-se aquele do qual se diz ikhla, homem gastador, mas
também estéril e isolado, ou ainda enger, celibatário e estéril, quer dizer, em certo sentido,
selvagem, incapaz, como o chacal, de fundar uma casa.
29 Pelo contrário, a entrada em casa das novas pedras do lar, em datas inaugurais, é preen­
chimento, introdução do bom e do bem; por isso, as previsões feitas nestas circunstâncias
incidem sobre a prosperidade e a fecundidade: se se encontrar um verme branco de baixo
de uma das pedras, haverá um nascimento no ano; uma erva verde, uma boa colheita; for­
migas, um rebanho aumentado; um bicho-de-conta, novas cabeças de gado.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 49

casa; a noiva não pode transpor o limiar antes do sétimo dia que se segue ao
seu casamento; a mãe que deu à luz não deve sair de casa antes do quadragé­
simo dia; o lactante não deve sair antes do Aid Seghir; o moinho de braços não
deve ser emprestado e deixá-lo vazio é atrair a fome sobre a casa; não se deve
sair de casa antes de a tecelagem ter sido terminada; tal como os empréstimos
de lume, o varrer, acto de expulsão, é interdito durante os primeiros quatro
dias da lavra; a saída do morto é "facilitada" para que ele não leve consigo a
prosperidade;30 as "primeiras saídas", por exemplo, a da vaca, no quarto dia
após o parto, ou a do coalho são assinaladas por sacrifícios.310 "vazio" pode
resultar de um acto de expulsão e pode também introduzir-se com certos
objectos, como o arado, que não pode entrar em casa entre dois dias de traba­
lho, ou o calçado do agricultor (arkasserí), o qual se associa à lakhla, ao espaço
vazio, ou com certas pessoas, como as velhas, porque trazem consigo a esteri­
lidade (lakhla) e porque são numerosas as casas que fizeram vender ou aque­
las onde introduziram ladrões. Pelo contrário, uma grande quantidade de ac-
tos rituais visam garantir o "preenchimento" da casa, como os que consistem
em lançar nos alicerces, sobre a primeira pedra, depois de derramado o san­
gue de um animal, os fragmentos de uma lâmpada de casamento (cuja forma
representa um acasalamento e que desempenha um certo papel na maior par­
te dos ritos de fecundidade), ou em fazer sentar a recém-casada, por ocasião
da sua entrada na casa, num odre cheio de grãos. Qualquer primeira entrada
na casa é uma ameaça para a plenitude do mundo interior que os ritos do li­
miar, ao mesmo tempo propiciatórios e profilácticos, devem esconjurar: a
nova junta de bois é recebida pela dona de casa — tamgharth ukham —, quer
dizer, como vimos, "a plenitude da casa", la'mmara ukham —, que coloca no li­
miar a pele de carneiro onde se depõe o moinho de braços e que recebe a fari­
nha (alamsir, chamado também a "porta dos gêneros", bab errazq). A maior
parte dos ritos destinados a trazer a fecundidade ao estábulo e, por isso, à casa
("uma casa sem vaca é", segundo se diz, "uma casa vazia") tendem a reforçar
magicamente a relação estrutural que une o leite, o verde-azul (azegzaw, que é
também o cru, thizegzawth), a erva na Primavera, a infância do mundo natural
e do homem: no equinócio da Primavera, por altura do regresso de azai, o jo­
vem pastor que participa duplamente no crescimento do campo e do gado,
através da sua idade e da sua função, colhe, para o pendurar no lintel da por­
ta, um ramo de "tudo o que o vento agita no campo" (à excepção do

30 Para consolar alguém, diz-se "ele vai deixar-te a baraka", se se tratar de uma pessoa gran­
de, ou "a baraka não saiu de casa", se se tratar de um bebé. O morto é colocado junto à por­
ta, com a cabeça virada para a porta; a água é aquecida do lado do estábulo e a lavagem é
feita à entrada do estábulo; as brasas e as cinzas do fogo são espalhadas fora de casa; a tá­
bua que serviu para lavar o morto fica três dias diante da porta; depois do enterro, pre-
gam-se três pregos na porta da sexta-feira até ao sábado seguinte.
31 A vaca deverá passar por cima de uma faca e das favas depostas no limiar; gotas de leite
são derramadas na lareira e no limiar.
50 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

loureiro-rosa, utilizado as mais das vezes com fins profilácticos e nos ritos de
expulsão, e de uma liliácea, que marca a separação entre os campos); enter-
ra-se também um saquinho contendo cominho, benjoim e anil no limiar do es­
tábulo, enquanto se diz: "Ó verde-azul (azegzaw) faz com que a manteiga não
caia!" Penduram-se no recipiente de bater a manteiga plantas colhidas de
fresco e esfregam-se com elas os utensílios destinados a receber o leite ,32 A en­
trada da recém-casada é, entre todas, cheia de consequências para a fecundi­
dade e a plenitude da casa: quando está ainda sentada em cima da mula que a
transportou da casa do seu pai, apresentam-lhe água, grãos de trigo, figos,
nozes, ovos cozidos ou pastéis, outras tantas coisas (sejam quais forem as va­
riantes locais) associadas à fecundidade da mulher e da terra, e ela lança-as
em direcção à casa, fazendo-se assim, de algum modo, preceder pela fecundi­
dade e pela plenitude que deve introduzir na casa.33 Transpõe o limiar às cos­
tas de um parente do esposo ou por vezes, segundo Maunier, às costas de um
negro (mas nunca, seja como for, às costas do esposo), que, interpondo-se, in­
tercepta as forças más capazes de afectarem a sua fecundidade, cuja sede é o
limiar, ponto de encontro entre mundos opostos: uma mulher nunca deve
sentar-se junto ao limiar com o filho ao colo; a criança pequena e a esposa re­
cente não devem pisá-lo com demasiada frequência.
Assim, a mulher, através da qual a fecundidade chega à casa, contri­
bui, pelo seu lado, para fecundidade do mundo agrário: votada ao mundo
do interior, age sobre o exterior garantindo a plenitude do interior e contro­
lando, na sua qualidade de guardiã do limiar, essas trocas sem contraparti­
da que só a lógica da magia pode conceber e através das quais cada uma das
partes do universo entende só receber da outra o cheio, não lhe oferecendo
senão o vazio.34 ÍÀ A
Mas um ou outro dos dois sistemas de oposições que definem a casa
quer na sua organização interna, quer na sua relação com o mundo exterior
acaba por ser trazido para primeiro plano conforme consideremos a casa do
ponto de vista masculino ou do ponto de vista feminino: enquanto, para o ho­
mem, ela é menos um lugar onde se entra que um lugar donde se sai, a mulher
não pode senão conferir a estes dois deslocamentos, e às definições diferentes
da casa que deles são solidárias, uma importância e uma significação inver­
sas, uma vez que o movimento para fora consiste antes do mais, para elas, em

Põe-se também algumas vezes no vaso que receberá o leite uma pedra que o jovem pastor
apanhou ao ouvir o cuco pela primeira vez e que colocou então em cima da sua cabeça.
Do mesmo modo acontece que se ordenhe o leite fazendo-o passar pelo anel da enxada ou
que se atire uma pitada de terra para dentro do recipiente.
A recém-casada pode também ser aspergida com água ou levada a beber água e leite.
Na porta são pendurados diferentes objectos que têm em comum manifestar a dupla fun­
ção do limiar, barreira selectiva, encarregada de deter o vazio e o mal, e de, ao mesmo
tempo, deixar entre o cheio e o bem, predispondo para fecundidade e para a prosperida­
de tudo o que transpõe o limiar na direcção do exterior.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 51

actos de expulsão e uma vez que o movimento para dentro, quer dizer, do li­
miar para o lar, lhe compete como o seu próprio movimento. A significação
do movimento para fora nunca se mostra tão bem como no rito realizado pela
mãe, no sétimo dia do nascimento da criança, "para que o filho seja corajoso":
transpondo o limiar, pousa o pé direito no pente de cardar e simula um com­
bate com o primeiro rapaz que encontra. A saída é o movimento propriamen­
te masculino, que conduz para os outros homens e também para os perigos e
provações a que importa fazer frente, como um homem tão áspero, em ques­
tões de honra, como as pontas do pente de cardar.35 Sair ou, mais exactamen-
te, abrir (fatah) é o equivalente de "estar na manhã" (sebah). O homem que se
respeita deve sair de casa ao nascer do dia, sendo essa saída um nascimento:
dai, a importância das coisas que então se encontram e que pressagiam o dia
inteiro, de tal maneira que mais vale, em caso de mau encontro (ferreiro, mu­
lher portadora de um odre vazio, gritos ou disputas, seres disformes), "refa­
zer a manhã" ou a "saída". Por exemplo, um homem digno, consciente das
suas responsabilidades, deve levantar-se cedo: "Quem não conclui os seus as­
suntos de manhã cedo nunca os concluirá", ou "o suq é a manhã", ou ainda
"quem dorme até ao meio de azai (momento mais quente, a meio do dia) dá
com o mercado deserto." Em todas as coisas, a manhã é o momento da deci­
são, a seguir à noite consagrada ao repouso. Amanhã tem uma relação de ho-
mologia com a sorte, o bem, a luz. "A manhã", costuma dizer-se, "é a facilida­
de." Levantar-se cedo é ter presságios favoráveis (laftah, a abertura de bom
agoiro). Aquele que se levanta cedo está ao abrigo dos encontros portadores
de desgraça; o último a pôr-se a caminho, pelo contrário, só pode ter por com­
panheiro o zarolho que espera pela plena luz do dia para partir ou o coxo que
se arrasta. Quem se levanta ao cantar do galo coloca o seu dia sob a protecção
dos anjos da manhã e dá-lhes graças; põe-se, por assim dizer, em estado de
graça, fazer com que os "anjos decidam em seu lugar e sua vez".
Compreende-se a partir daqui a importância que é concedida à orienta­
ção da fachada da casa principal, a que alberga o chefe de família e que com­
porta um estábulo, a qual está quase sempre orientada para leste, sendo a por­
ta principal — por oposição à porta estreita e baixa, reservada às mulheres,
que abre para o jardim, nas traseiras da casa—correntemente chamada a por­
ta de leste (thabburth thacherqitti) ou ainda da porta da rua, de cima, ou a porta
grande.36 Dada a exposição das aldeias e a posição inferior do estábulo, a par­
te alta da casa, com o lar, encontra-se a norte, o estábulo ao sul e a parede do
tear a oeste. Segue-se que o deslocamento em direcção à casa para entrar nela
se orienta de leste para oeste, ao contrário do movimento pelo qual dela se sai,
de acordo com a orientação por excelência, para leste, ou seja, para cima, para

35 Enquanto ao nascer a rapariga é embrulhada num lenço de seda, macio e flexível, o rapaz
é enfaixado com os laços secos e rugosos que servem também para atar os molhos de espi­
gas da colheita.
52 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

a luz, para o bem e o bom: o lavrador orienta os seus bois para Leste no mo­
mento de os atrelar e de os desatrelar e começa a lavrar de oeste para leste; do
mesmo modo, os ceifeiros dispõem-se frente à qibla, e é virado também para
leste que é degolado o boi do sacrifício. Não acabaríamos de enumerar as ac­
ções que são realizadas em conformidade com a orientação fundamental,
quer dizer, todas as acções de importância que se ligam à fecundidade e à
prosperidade do grupo.37 Se voltarmos a considerar agora a organização inte­
rior da casa, observamos que a sua orientação é exactamente a inversa da do
espaço exterior, como se tivesse sido obtida por meio de uma meia rotação em
torno da parede de fachada ou do limiar tomados como eixo. A parede do
tear, que fica pela frente assim que é transposto o limiar, e que é directamente
iluminada pelo sol da manhã, é a luz do interior (como a mulher é a lâmpada
do interior), quer dizer o leste do interior, simétrico do leste exterior, ao qual
toma de empréstimo a sua luz.38 A face interna e escura da parede de fachada
representa o oeste da casa, lugar do sono, que fica para trás quando se avança
da porta para o kamin, a porta correspondente simbolicamente à "porta do
ano", princípio da estação húmida e do ano agrário. E do mesmo modo, as
duas paredes de empena, a parede do estábulo e a parede do lar, recebem dois
sentidos opostos conforme consideremos uma ou outra das suas faces: ao
norte exterior corresponde o sul (e o Verão) do interior, isto é, o lado da casa
que se tem pela frente e à direita quando se entra na direcção do tear; ao sul ex­
terior corresponde o norte (e o Inverno) interior, quer dizer, o estábulo, situa­
do atrás e à esquerda quando se avança da porta para a lareira.39 A divisão da

É óbvio que uma orientação inversa (a que vemos olhando à transparência o plano da
casa) é possível, ainda que rara. Diz-se explicitamente que tudo o que vem do oeste é por­
tador de desgraça e que uma porta virada nessa direcção não pode receber senão obscuri­
dade e esterilidade. De facto, se o plano oposto ao plano "ideal" é raro, é em primeiro lu­
gar porque as casas secundárias, quando se dispõe do canto direito do pátio, são muitas
vezes simples salas de estar, desprovidas de cozinha e de estábulo, e porque o pátio é mu­
itas vezes fechado, do lado oposto à fachada casa principal, pelas traseiras da casa vizi­
nha, ela própria virada para leste.
Sabe-se que os dois suf, ligas políticas e guerreiras que se mobilizavam quando se decla­
rava um incidente (e que mantinham relações variáveis, indo da sobreposição à dissocia­
ção completa, com as unidades sociais baseadas no parentesco), se chamavam suf do alto
(ufella) e suf do baixo (buadda), ou suf de direita (ayafus) e suf de esquerda (azelmndh), ou
ainda suf de leste (acherqi) e suf de oeste (aghurbi), tendo sido conservada esta última de­
signação, menos usual, mas que ainda hoje sobrevive, no vocabulário dos jogos infantis,
para designar os campos dos jogos rituais (donde os combates tradicionais entre os suf
extraíam a sua lógica).
Recorde-se que é do lado do tear, parte nobre da casa, que o dono da casa recebe (qribel') o
seu hóspede.
É, portanto, necessário acrescentar os quatro pontos cardeais e as quatro estações à série
das oposições e das homologias acima apresentadas (sendo, sob outros aspectos, de-
monstráveis também a pertença e a adequação destas significações ao sistema mítico-ri-
tual no seu conjunto); ...cultura, natureza, Verão, Inverno.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 53

casa numa parte escura (lados oeste e norte) e uma parte luminosa (lados
leste e sul) corresponde à divisão do ano numa estação húmida e numa es­
tação seca. Em suma, a cada face externa da parede (essur) corresponde
uma região do espaço interior (aquilo que os Cabilas designam por thar-
kunt, quer dizer, aproximadamente, o lado) que detém um sentido simétri­
co e inverso no sistema das oposições internas; cada um dos dois espaços
pode, pois, ser definido como a classe dos movimentos efectuando um
mesmo deslocamento, quer dizer, uma meia rotação, por referência ao ou­
tro, constituindo o limiar o eixo da rotação. Não se compreenderiam bem o
peso e o valor simbólico que são atribuídos ao limiar no interior do sistema
se não nos déssemos conta de que o limiar deve a sua função mágica ao fac­
to de ser lugar de uma inversão lógica e de, como lugar de passagem e de
encontro obrigatórios entre os dois espaços, definidos por referência a mo­
vimentos do corpo e a trajectos socialmente qualificados,40 ser logicamente
o local onde o mundo se inverte.41
Deste modo, cada um dos universos tem o seu oriente e os dois desloca­
mentos mais carregados de significações e de consequências mágicas, o do li­
miar para o lar, que deve trazer a plenitude e cuja efectuação ou o controlo ri­
tual incumbe à mulher, e o do limiar para o mundo exterior, que, pelo seu va­
lor inaugural, contém tudo o que será o porvir e em particular o porvir do tra­
balho agrícola, podem realizar-se em conformidade com a orientação benéfi­
ca, quer dizer, de oeste para leste.42 A dupla orientação do espaço da casa faz
com que se possa ao mesmo tempo entrar e sair com o pé direito, tanto no sen­
tido próprio como no figurado, com todos os benefícios mágicos ligados à ob­
servância desse gesto e sem que seja rompida, em caso algum, a relação que
une a direita ao alto, à luz e ao bem. Ameia rotação do espaço em torno do li­
miar assegura, portanto, se é lícita a expressão, a maximização do benefício
mágico, uma vez que o movimento centrípeto e o centrifugo se efectuam num
espaço organizado de tal maneira que nele se entre de frente para luz como
dele se sai também de frente para ela.43 Z-

40 Em certas regiões da Cabilia, a esposa recente e um rapaz circuncidado (por ocasião da


mesma festa) devem cruzar-se no limiar.
41 Compreende-se assim que o limiar se associe, directa ou indirectamente, aos ritos desti­
nados a determinarem uma inversão do curso das coisas operando uma inversão das
oposições fundamentais, os ritos destinados a obterem a chuva ou o bom tempo por
exemplo ou os que são praticados nos limiares entre períodos (por exemplo a noite ante­
rior a En-nayer, primeiro dia do ano solar, altura em que se enterram amuletos no limiar
da porta).
42 A correspondência entre os quatro cantos da casa e os quatro pontos cardeais exprime-se
claramente em certos ritos propiciatórios observados no Aurès: por altura da renovação
do lar, no dia de Ano Novo, a mulher chaouia cozinha pastéis, divide o primeiro a ser cozi­
nhado em quatro pedaços, que atira na direcção dos quatro cantos da casa. Faz a mesma
coisa com o prato ritual do primeiro dia de Primavera (cf. M. Gaudry, La Femme chaouia de
F Aurès, Paris, Librairie Orientaliste L. Geuthner, 1928, pp. 58-59).
Estes dois espaços simétricos e inversos não são intercambiáveis, mas
hierarquizados, não sendo o espaço interior precisamente mais que a imagem
invertida, ou o reflexo num espelho, do espaço masculino.4'1 Não é por acaso
que só a orientação da porta é explicitamente prescrita, nunca sendo a organi­
zação interior do espaço conscientemente apreendida e menos ainda querida
como tal pelos sujeitos.15 A orientação da casa é primordialmente definida do
exterior, do ponto de vista dos homens e, se assim se pode dizer, pelos ho­
mens e para os homens, comí?o lugar donde estas saem. "Uma casa prospera
pela mulher; o seu exterior é belo pelo homem." A casa é um império den tro
doutro, mas um império para sempre subordinado porque, até mesmo quan­
do apresenta todas as propriedades e todas as relações que definem o mundo
arquetípico, continua a ser um mundo ao contrário, um reflexo invertido40 "O
homem é a lâmpada do exterior, a mulher a do interior." A aparência de sime­
tria não deve enganar-nos: a lâmpada do dia só aparentemente é definida por 43 44 45
.O
43 Tentaremos mostrar noutro lugar que a mesma estrutura aparece na ordem do tempo.
Mas para fazer ver que estamos aqui diante, sem dúvida, de uma forma muito geral do
pensamento mágico, bastará um outro exemplo muito análogo: os Árabes do Magrebe
consideravam um bom sinal, segundo refere Ben Cheneb, que um cavalo tivesse a pata
anterior direita e a pata posterior esquerda de cor branca; o dono de um cavalo assim não
pode deixar de ser feliz, uma vez que monta em direcção ao branco e apeia-se também em
direcção ao branco (sabe-se que os cavaleiros árabes montam do lado direito e se apeiam
do esquerdo) (cf. Ben Cheneb, Proverbes arabes d'Alger et du Maghreb, T. III, Paris, Leroux,
1905-1907, p. 312).
44 O espelho desempenha um importante papel nos ritos de inversão e em particular nos ri­
tos destinados a obterem bom tempo.
45 O que explica que tenha sempre escapado aos observadores e até mesmo aos mais aten­
tos.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 55

referência à lâmpada da noite; de facto, a luz nocturna, masculino-feminino,


continua a ser ordenada pela e a estar subordinada à luz diurna, à lâmpada do
dia, quer dizer, ao dia do dia. "O homem espera em Deus, a mulher espera
tudo do homem", "a mulher", diz-se ainda, "é curva como uma foice"; por
isso até a mais direita destas naturezas esquerdas nunca é mais que apenas
endireitada. A mulher casada encontra deste modo o seu oriente no interior
da casa do homem, mas esse oriente nunca é mais que a inversão de um oci­
dente: não costuma dizer-se que "a rapariga é o ocidente"? O privilégio con­
cedido ao movimento para o exterior, por meio do qual o homem se afirma
como tal virando costas à casa para enfrentar os homens escolhendo a via do
oriente do mundo, é apenas uma forma da rejeição categórica da natureza,
origem inevitável do movimento que dela se afaste.

Paris, 1963-1964

46 No espaço interior também as duas partes opostas são hierarquizadas. Veja-se, a par de
outros índices já referidos, o ditado: "Mais vale uma casa cheia de homens que uma casa
cheia de bens (el mal)", quer dizer, de gado.
Capítulo 3
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE

Os rapazes jogam à qochra nos primeiros dias da Primavera. Em círculo à volta


de uma bola de cortiça (qochra) e munidos de um pau com a ponta encurvada,
começam por designar à sorte aquele dentre eles que ficará com a bola e será o
seu "pai": este coloca-se junto à bola, sua "filha", que deve defender esforçan-
do-se por evitar que saia do círculo, a "casa". Os outros jogadores tentam, pelo
contrário, empurrar com o pau a bola para fora do círculo. Se a "filha" tocar di-
rectamente um jogador ou se o "pai" conseguir ele próprio tocá-lo com o pau,
dizendo "é a tua filhai', o jogador tocado transforma-se no "pai" da bola e o pri­
meiro jogadorj.ivra-se dessa função. O mais hábil pode apoderar-se da ''filha"
extraviada e tomá-la por "mulher". Se o "pai" não consegue reconduzir a sua
"filha" a "casa", diz-se que está a ficar velho e troça-se da sua fraqueza cantan­
do: "Ficou velho, ficou velho, subiu a Beni Kelleb, comeu um biscoito inteiro
com uma cabaça de coalho." Pode também suceder que se prenda a bola por
baixo da camisa do vencido, que é assim identificado com uma rapariga à qual
se fez um filho. Não é raro que o "pai", humilhado, se ponha a chorar.
[Jogo ritual recolhido em Ain Aghbel]

O casamento com a prima paralela patrilinear (bent'amm, a filha do irmão do


pai)1 só pode parecer "uma espécie de escândalo",2 segundo os termos de
Claude Lévi-Strauss, para os espíritos estruturados em conformidade com as
categorias de pensamento que esse casamento desconcerta. Uma tal espécie
de quase incesto legítimo opõe um temível desafio tanto às teorias dos grupos
de unifiliação como à da aliança de casamento: com efeito, através da noção
de exogamia, que é a condição da reprodução de linhagens separadas e da per­
manência e da identificação sem dificuldade das unidades consecutivas, põe
em questão a noção de unifiliação (unilineal descent), quer dizer, a possibilida­
de de definir o estatuto de um indivíduo em função do dos seus ascendentes,
paterno ou materno, e de um deles apenas, ao mesmo tempo que a teoria do
casamento como troca de uma mulher por outra mulher, supondo o tabu do

57
58 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

incesto, isto é, o imperativo da troca. Enquanto a regra da exogamia distingue


nitidamente grupos de aliança e grupos de filiação que, por definição, não po­
dem coincidir, ficando ao mesmo tempo a linhagem genealógica definida de
modo claro, uma vez que os poderes, os privilégios e os deveres se transmi­
tem ou na linha materna ou na linha paterna, a endogamia tem por efeito apa­
gar a distinção entre as linhagens. É assim que, no caso limite de um sistema
que assentasse realmente no casamento com a prima paralela, um indivíduo
determinado se ligaria ao seu avô paterno tanto pelo pai como pela mãe. Mas,
por outro lado, escolhendo conservar no interior da linhagem a prima parale­
la, essa quase irmã, o grupo privar-se-ia no mesmo acto de receber mulheres
do exterior e de assim contrair alianças. Bastará ver neste tipo de casamento a

1 Este estudo é o resultado de uma investigação que, entrecortada por outros trabalhos, se
prolongou de 1960 a 1970. No quadro de uma análise das estruturas econômicas e sociais
conduzida de início em diferentes aldeias da Cabília, depois na região de Collo e, por fim,
no vale do Chélif e no Ouarsenis, tinham sido recolhidas genealogias que tentavam situar
grosseiramente aposição econômica relativa dos grupos unidos pelo casamento. A análi­
se estatística destas genealogias, levada a cabo entre 1962 e 1964, permitiu estabelecer al­
gumas relações extremamente grosseiras, como a endogamia mais elevada das famílias
marabúticas ou a dissimetria das trocas matrimoniais entre os grupos separados por de­
sigualdades econômicas. Mas era impossível deixar de sentirmos como eram artificiais e
abstractos os recortes ou os agrupamentos que se tornava forçoso operar a partir do mo­
mento em que se queriam calcular as taxas de casamento com a prima paralela. Tendo en­
tão abandonado os estudos das genealogias que fornecia apenas ensinamentos negativos
no que se referia à análise do ritual, depressa nos demos conta de que as variações observa­
das no desenrolar dos ritos que tendêramos de início a tratar como simples "variantes"
correspondiam, no caso do casamento, a uniões estrutural e funcionalmente diferentes,
vendo-se reduzido o ritual, que se desenvolve completamente no caso dos casamentos
entre grandes famílias de tribos diferentes, à sua expressão mais simples no caso do casa­
mento entre primos paralelos: assim cada casamento (portanto, cada uma das formas que
o rito pode tomar) surgia como um momento de uma estratégia cujo princípio reside num
tipo determinado de condições objectives e não numa norma explicitamente expressa e
obedecida, ou num "modelo" inconsciente. Não era possível por isso dar razão das trocas
matrimoniais a não ser na condição de se estabelecer, além da relação puramente genea­
lógica entre os cônjuges, a relação objectiva entre as posições na estrutura social dos gru­
pos unidos pelo casamento, a história das trocas econômicas e simbólicas sobrevindas
entre eles e o estado dessas transacções no momento em que se estabelece a negociação
matrimonial, a história dessa negociação, o seu momento na vida dos cônjuges (infância
ou adolescência), a sua duração, os agentes responsáveis por ela, as trocas a que dá lugar,
e, em particular, o montante do dote, etc. O mesmo é dizer que o estudo das trocas matri­
moniais se confunde com a história econômica e social das famílias das quais o esquema
genealógico apenas reproduz, o esqueleto. Foi por isso que se decidiu recolher a história
social de uma família sem que fosse possível levar realmente até ao fim essa tarefa, que,
ainda que nos atenhamos à informação pertinente do ponto de vista dos casamentos, é de
facto interminável: este trabalho, que permitiu medir concretamente tudo aquilo que o
genealogista comum deixava de parte, forneceu além disso a maior parte das ilustrações
das análises teóricas aqui propostas.
2 Cf. C. Lévi-Strauss, "Le Problème des relations de parenté", em Systèmes de parenté (inter­
venção nos colóquios interdisciplinares acerca das sociedades muçulmanas), Paris, École
Pratique des Hautes Études, J. Mergue ed., 1959, pp. 13-14.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 59

excepção (ou a "aberração") que confirma a regra ou adaptar as categorias de


percepção que o fizeram surgir para lhe conceder um lugar, quer dizer, um
nome? Ou será antes necessários pôr radicalmente em dúvida as categorias
de pensamento que produzem um tal impensável?
O desmentido que as tradições árabes e berberes opõem às teorias
actualmente disponíveis tem pelo menos o mérito de lembrar que, como mos­
tra Louis Dumont, a teoria dos grupos de unifiliação e a teoria da aliança de
casamento continuam a ser "teorias regionais" no sentido geográfico, mas
também epistemológico, no preciso momento em que se apresentam como te­
orias universais.3 Se é mais que evidente que a crítica de alguns dos funda­
mentos destas teorias, encorajada ou até mesmo imposta pelas propriedades
particulares de uma tradição cultural, também não pode aspirar à universali­
dade, continua a ser verdade que pode contribuir para o progresso no sentido
de uma teoria emancipada de qualquer regionalismo geográfico ou episte­
mológico, ao enunciar as questões universais que as particularidades de cer­
tos objectos põem com uma insistência particular: assim basta observar que,
legítimo no caso de uma sociedade provida de grupos exógamos e distin­
guindo cuidadosamente entre parentes paralelos e cruzados, o uso da noção
"preferência de casamento" deixa de se justificar no caso de uma sociedade
que não conhece grupos exógamos. Ou deveremos antes descobrir em tal ex­
cepção uma razão de pormos em causa não só a própria noção de prescrição
ou de preferência, mas, por um lado, a noção de grupo genealogicamente de­
finido, entidade cuja identidade social seria tão invariante e unívoca como os
critérios da sua delimitação e que conferiría a cada um dos seus membros
uma identidade social igualmente distinta e fixada de uma vez por todas, e,
por outro a noção de regra e de comportamento governado por regras no duplo
sentido de conformidade (objectivamente) e de obediência a essas regras?
A inadequação da linguagem da prescrição e da regra é tão evidente no
caso do casamento patrilinear que não podemos deixar de reencontrar a este
propósito as interrogações de Rodney Needham sobre as condições de

3 "A antropologia apercebe-se cada vez mais claramente da dificuldade de passar de teo­
rias semiabstractas, correspondendo muitas vezes a culturas regionais particulares, a
uma teoria global que as englobe. Demo-nos conta da relação bastante estrita que existe
entre a teoria dos grupos de unificação e as sociedades africanas ou, no mínimo, algumas
dentre elas. Da mesma maneira, a teoria da aliança de casamento é sem dúvida indispen­
sável para as sociedades do Sudeste asiático. Em contrapartida, é inaplicável às socieda­
des árabes que praticam o casamento da prima paralela patrilinear. As duas teorias ficam
desarmadas frente aos sistemas ditos cognáticos ou indiferenciados, caso em que se pode
dizer, parafraseando o próprio Lévi-Strauss, que o parentesco não se deixa separar da re­
lação com a terra e nos quais se entrevê que é preciso reunir os diferentes aspectos para
isolarmos um verdadeiro "sistema". Em suma, estamos ainda, como costuma dizer-se,
num nível de abstracção muito baixo e as teorias mais interessantes de que dispomos
aplicam-se apenas, cada uma delas, a um tipo de sociedade ou de sistema particular"
(L. Dumont, Introduction it deux théoriesd'anthropologie sociale, Paris, Mouton, 1971, p. 119).
60 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

validade, talvez nunca preenchidas, de uma tal linguagem, que não é outra
senão a do direito.4 Mas esta interrogação sobre o estatuto epistemológico de
conceitos de uso tão corrente e universal como os de regra, de prescrição ou
de preferência, não pode deixar de afectar a teoria da prática que implicitamen­
te eles pressupõem: poderá dar-se, ainda que de modo implícito, a "álgebra
do parentesco", como dizia Malinowski, para uma teoria das práticas de pa­
rentesco e do parentesco "prático" sem se postular tacitamente a existência de
uma relação dedutiva entre os nomes de parentesco e as "atitudes de paren­
tesco"? E poderá dar-se uma significação antropológica a essa relação sem se
postular que as relações reguladas e regulares entre os parentes são produto
da obediência a regras que, embora um último escrúpulo durkheimiano leve
a designar como "jurais" (jurai) em vez de legais ou jurídicas, são considera­
das como governando a prática à maneira das regras do direito?5 Poderá por
fim fazer da definição genealógica dos grupos o único princípio de recorte
das unidades sociais e da atribuição dos agentes a esses grupos sem se postu­
lar de modo implícito que os agentes são definidos sob todos os aspectos e de
uma vez por todas pela sua pertença ao grupo e que, para encurtar caminho, o
grupo define os agentes e os seus interesses mais que os agentes definem gru­
pos em função dos seus interesses?
O

Representação de parentesco e parentesco de representação

Todas as teorias do casamento com a prima paralela, e em particular as mais


recentes, a de Fredrik Barth6 e a de Robert Murphy e Léonard Kasdan,7 têm
em comum o facto de fazerem intervir funções que a teoria estruturalista
ignora ou põe entre parênteses quer se trate de funções econômicas como a
conservação do patrimônio no interior da linhagem, quer de funções políticas
como o reforço da integração da linhagem. E não se vê como poderíam fazer
de outra maneira sob pena de abandonarem ao absurdo um casamento que
não preenche manifestamente a função^de troca ou de aliança comummente

----------------- yV
4 R. Needham, "The Formal Analysis of Prescriptive Patrilateral Cross-Cousin Marriage",
Southwestern Journal of Anthropology, 14,1958, pp. 199-219.
5 Sobre a relação dedutiva que une os nomes de parentesco ou sistema das apelações às ati­
tudes de parentesco, ver Â. R. Radcliffe-Brown, Structure anã Function in Primitive Society,
Londres, 1952, p. 62; African Systems of Kinship and Marriage, 1960, introdução, p. 25; C.
Lévi-Strauss, Anthropologic structurale, Paris, Pion, 1958, p. 46. Sobre o termo jural e o uso
que lhe dá Radcliffe-Brown, cf. L. Dumont (op. cit., p. 41): as relações "jurais" são as "que
são objecto de prescrições precisas, formais, quer se trate de pessoas, quer de coisas".
6 F. Barth, "Principles of Social Organization in Southern Kurdistana", Universitetets
Ethnografiske Museum Bulletin, n.° 7, Oslo, 1953.
7 R. F. Murphy e L. Kasdan, "The Structure of Parallel Cousin Marriage", American Anthro­
pologist, Vol. 61, Fevereiro de 1959, pp. 17-29.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 61

reconhecida ao casamento com a prima cruzada. Assim, a maior parte dos


analistas de outrora retomava a explicação indígena segundo a qual o casa­
mento endógamo tinha por função conservar a propriedade no interior da fa­
mília,8 pondo em evidência, justificadamente, a relação que liga o casamento
ao costume sucessório. A esta explicação, Murphy e Kasdan objectam muito
justamente que a lei corânica que concede à mulher metade da parte de um ra­
paz só raramente é observada e que a família poderá contar em todo o caso
com a herança que as raparigas importadas trazem. Barth, pelo seu lado, in­
siste no facto de que o casamento endogâmico "contribui de maneira deter­
minante" para reforçar a linhagem minimal e fazer dela um grupo integrado
na luta entre facções. Quanto a Murphy, que acusa Barth de explicar a institui­
ção pelos "fins conscientemente visados pelos actores individuais", quer di­
zer, mais precisamente, pelos interesses de o chefe de linhagem ligar a si os
seus sobrinhos, situados em pontos de segmentação virtuais, relaciona tal
tipo de casamento com a sua "função estrutural", a saber, a função de contri­
buir para a "cisão extrema das linhagens agnáticas e, através da endogamia,
para o isolamento e o encerramento das linhagens sobre si próprias". Claude
Lévi-Strauss tem perfeitamente razão ao dizer que as duas posições opostas
equivalem exactamente à mesma coisa: de facto, a teoria de Barth, que faz
deste tipo de casamento um meio de reforçar a unidade da linhagem e de li­
mitar a sua tendência para o fraccionamento, e a de Murphy, que nele vê um
princípio de uma busca de integração em unidades mais amplas, englobando
no limite todos os árabes e baseando-se na invocação de uma origem comum,
coincidem quando se trata de afirmar que o casamento com a prima paralela
não se pode explicar na lógica pura do sistema das trocas matrimoniais e re­
mete necessariamente para funções externas, econômicas ou políticas.
Jean Cuisenier não faz mais que extrair as consequências desta compro­
vação numa construção que, tentando dar conta de discordâncias reveladas já
por todos os observadores entre o "modelo" e as práticas,9 ao mesmo tempo
que das funções externas, pelo menos econômicas, das trocas matrimoniais,
se aproxima da realidade das práticas tanto quanto isso é possível nos limites
do objectivismo estruturalista e da teoria da prática que implica. "É o próprio
pensamento indígena que encaminha para um modelo explicativo. Esse pen­
samento representa com efeito as alianças estabelecidas dentro de um grupo
a partir de uma oposição fundamental entre dois irmãos, dos quais um deve

8 H. Granqvist, "Marriage Conditions in a Palestinian Village", Commentatitones Humana­


rum, Societas Scientiarium Fennica, Vol. 3,1931; H. Rosenfield, "An Analysis of Marriage
Statistics for a Moslem and Christian Arab Village", International Archives of Ethnography,
48,1957, pp. 32-62.
9 Assim, Murphy observava que, apesar da raridade do material estatístico, sabia-se há
muito que o casamento com a prima paralela não é uma "prática constante e vale apenas
para os primeiros casamentos", embora seja "a forma de união preferida e normativa".
62 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

casar-se no sentido da endogamia, para manter a consistência do grupo, e ou­


tro no sentido da exogamia, para fornecer alianças ao grupo. Esta oposição
dos dois irmãos reencontra-se a todos os níveis do grupo agnático, ex­
primindo na linguagem genealógica habitual do pensamento árabe uma al­
ternativa representável segundo o esquema de uma "ordem parcial", em que
os valores numéricos de a e b são respectivamente um terço e dois terços. Se a é
a escolha da endogamia e b a escolha da exogamia, e se seguirmos as ramifica­
ções da árvore dicotômica a partir da raiz, a escolha de a ao nível mais superfi­
cial dos círculos genealógicos é a escolha da prima paralela (um terço dos ca­
sos) [...]. Este modelo extremamente simples [...] fornece uma hipótese para
explicar as frequências com as quais se observam, entre os povos de cultura
árabe-muçulmana, tanto a endogamia da linhagem agnática como as outras
formas típicas da prática matrimonial efectiva".10 Poderiamos sentir-nos ten­
tados a creditar este modelo do facto de se apresentar como a transposição na
ordem objectiva e colectiva de uma das representações que os agentes fazem
das suas estratégias matrimoniais e de se esforçar por dar conta dos dados es­
tatísticos, ao contrário das teorias tradicionais do "casamento preferencial",
que se contentam com a constatação da divergência, imputada a factores se­
cundários, demográficos, por exemplo, entre a "norma" (ou a "regra") e a
prática,11 mas isso seria deixarmo-nos apanhar pelas aparências de rigor que
a combinação do empirismo e do formalismo produz em última análise sem
grandes custos: o desperdício ostentatório dos signos exteriores da "cientifi-
cidade", como os diagramas obscuros e os cálculos abstrusos, poderia com
efeito não ter outra função senão dissimular as economias realizadas na cons­
trução do objecto e no estabelecimento dos factos. Quando se observa que te-
ria bastado levar mais ou menos longe o jogo de escrita genealógica que per­
mitisse identificar com o casamento com a prima paralela todo o casamento
no interior da linhagem para nos afastarmos,12 para mais ou para menos, da

10
J. Cuisenier, "Endogamie et exogamie dans le manage arabe", L'Homme, II, 2, Maio-Agos­
to de 1962, pp. 80-105.
11 "Sabe-se de há muito, e as simulações em computador empreendidas por K. Kundstadter
e a sua equipa acabaram de o demonstrar, que as sociedades que preconizam o casamen­
to entre certos tipos de parentes só num pequeno número de casos conseguem agir em
conformidade com a norma. As taxas de fecundidade e de reprodução, o equilíbrio de­
mográfico dos sexos, a pirâmide das idades, nunca oferecem a bela harmonia e a regulari­
dade requeridas para que, no grau prescrito, cada indivíduo tenha a garantia de encon­
trar no momento do casamento um cônjuge apropriado, ainda que a nomenclatura de pa­
rentesco seja suficientemente extensiva para confundir graus do mesmo tipo, mas desi­
gualmente afastados e que o são muitas vezes a tal ponto que a noção de uma descendên­
cia comum passa a ser inteiramente teórica", C. Lévi-Strauss, Les Structures élémen taires de
la parenté, prefácio da 2.“ edição, Paris, Mouton, 1968, p. XVII.
12 Jean Cuisenier — que aqui segue Claude Lévi-Strauss fazendo notar que "do ponto de
vista estrutural, podemos tratar como equivalentes o casamento com a filha do irmão do
pai e o casamento com a filha do filho do irmão do pai” (C. Lévi-Strauss, "Le Problème
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 63

percentagem providencial (36 por cento igual a um terço?), o que, combinado


com uma declaração indígena, engendra um "modelo teórico", não precisa­
mos já de recorrer à crítica epistemológica para mostrarmos que o modelo só
se ajusta tão perfeitamente aos factos por ter sido construído por ajustamento,
quer dizer, por ter sido inventado ad hoc para dar razão de um artefacto esta­
tístico, em vez de elaborado a partir de uma teoria dos princípios de produção
das práticas.13 Há, dizia Leibniz, uma equação para a curva de cada rosto e,
pelos tempos que correm, descobrir-se-á sempre algum matemático para de­
monstrar que duas primas paralelas a uma mesma terceira são paralelas entre
si...
Mas os produtos inconsequentes da intenção formalmente consequente
de submeter as genealogias à análise estatística têm pelo menos a virtude de
revelar as propriedades mais fundamentais da genealogia, esse instrumento
de análise que nunca é, ele próprio, tomado como objecto de análise. Vemos
de imediato o que pode ter de estranho o projecto de calcular taxas de endo-
gamia num caso em que, como aqui acontece, é a própria noção de grupo endó-
gamo que está em questão, ou seja a base de cálculo.14 Deveremos conten­
tar-nos com os recortes operados abstractamente no papel, quer dizer, com ge­
nealogias que têm a mesma extensão que a memória do grupo, ela própria

des relations de parenté", loc. cit., p. 55)—escreve:"[...] acontece, pelo contrário, que Ego
se case com a neta do seu tio paterno ou com a filha do tio-avô paterno. Do ponto de vista
estrutural, estas uniões são assimiláveis, uma, ao casamento com a filha do tio paterno, a
outra, ao matrimônio com a neta do tio-avô paterno" (cf. J. Cuisenier, loc. cit., p. 84).
Quando combina o nominalismo do genealogismo que toma a coerência do sistema das
apelações pela lógica prática das disposições e das práticas com o formalismo de uma es­
tatística baseada em traços abstractos, o etnólogo é levado a operar manipulações genea­
lógicas que têm o seu equivalente prático nos procedimentos que os agentes empregam
para mascarar as discordâncias entre as suas práticas matrimoniais e a representação ide­
al que delas fazem ou a imagem oficial que entendem delas apresentar: podem assim, se­
gundo as necessidades do momento, subsumir sob o nome de prima paralela não só a fi­
lha do tio paterno, mas também as primas patrilineares no segundo ou mesmo no terceiro
grau, casos, por exemplo, da filha do filho do irmão do pai ou da filha do irmão do pai do
pai ou ainda da filha do filho do irmão do pai do pai, e assim por diante (cf. também as
manipulações que se fazem sofrer ao vocabulário do parentesco quando se utiliza, por
exemplo, o conceito de 'antm como termo de cortesia susceptível de ser dirigido a qual­
quer parente patrilinear mais velho).
13 Sobre a distinção entre modelos miméticos e modelos analógicos, ver P. Bourdieu, J. C.
Chamboredon e J. C. Passeron, Le Métier de sociologue, Paris, Mouton, 1968, pp. 82-83.
14 O cálculo das "taxas de endogamia" por nível genealógico, intersecção irreal de "catego­
rias" abstractas, leva a tratar como idênticos por meio de uma abstracção de segunda or­
dem indivíduos que, embora se situem no mesmo nível da árvore genealógica, podem
ser de idades muito diferentes e cujos casamentos, por essa mesma razão, puderam ser
concluídos em conjunturas diferentes que correspondem a estados diferentes do merca­
do matrimonial; ou, pelo contrário, a tratar como diferentes casamentos genealogica-
mente separados, mas cronologicamente simultâneos — podendo, por exemplo, um ho­
mem casar ao mesmo tempo que um dos seus tios.
64 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

função na sua estrutura e na sua extensão das funções conferidas pelo grupo
aos que memoriza e esquece? Vendo no esquema da linhagem uma represen­
tação ideológica a que os Beduínos recorrem para conseguir uma "compreen­
são primeira" das suas relações presentes, E. L. Peters observa que esse esque­
ma ignora as relações de força reais entre os segmentos genealogicamente
equivalentes,15 que esquece as mulheres e trata como simples "acidentes con­
tingentes" os factores ecológicos, demográficos e políticos mais fundamenta­
is. E, de facto, as genealogias mais rigorosamente controladas apresentam as
lacunas sistemáticas que caracterizam a memória colectiva.
Sendo a força da recordação proporcional ao valor que o grupo concede
a cada indivíduo no momento da recolecção, as genealogias registam melhor
os homens (e, por conseguinte, os seus casamentos), sobretudo quando pro­
duziram uma numerosa descendência masculina, que as mulheres (excepto,
evidentemente, quando estas se casaram no interior da linhagem); registam
os casamentos próximos melhor que os longínquos, os casamentos únicos
melhor que a série completa de todos aqueles contraídos pelo mesmo indiví­
duo (poligamia, matrimônios múltiplos na sequência de divórcio ou viuvez).
E tudo incita a supor que podem ser passadas em silêncio linhas inteiras, por
parte dos informantes, quando o último representante morreu sem descen­
dência ou, o que vem a ser o mesmo, sem descendência masculina. A todos os
níveis genealógicos, mas sobretudo aos mais elevados, os casamentos femini­
nos são sempre nitidamente menos numerosos que os masculinos, diferença
que não se pode explicar nem pela liberdade que é teoricamente concedida ao
homem de ter várias esposas, de repudiar a mulher sem incorrer em desonra
— enquanto a mulher encontra o seu interesse material e simbólico, a sua
"realização" (thachbahth, a beleza) num casamento estável, de molde a satisfa­
zer tanto os seus parentes como a sua família de adopção —, nem pela obriga­
ção imposta ao viúvo de voltar a casar — ao passo que a viúva, ainda quando
muito jovem, é excluída do mercado matrimonial pelo seu estatuto de mãe in­
cumbida de criar o filho do seu marido, sobretudo tratando-se de um rapaz:
"Uma mulher não pode ficar — viúva — por uma outra mulher", diz-se da
viúva que tendo apenas filhas é encorajada a voltar a casar, enquanto a que é
mãe de rapazes é louvada pelo seu sacrifício, o que acontece ainda mais quan­
do é jovem e se expõe assim a suportar a condição penosa de estrangeira entre
as irmãs do seu marido e as esposas dos irmãos do seu marido. Sem produzir
aqui a totalidade do material genealógico recolhido (mais de 30 genealogias

15 E. L. Peters, "Some Structural Aspects of the Feud among the Camel-herding Bedouin of
Cyrenaica", Africa, Vol. XXXVII, n.° 3, Julho de 1967, pp. 261-282. Murphy não dizia outra
coisa, mas sem extrair dela as respectivas consequências, quando observava que as ge­
nealogias e a sua manipulação têm por função principal favorecer a integração vertical de
unidades sociais que o casamento com a prima paralela tende a dividir e a fechar sobre si
próprias.
Quadro 3.1 Genealogias
o„
66 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

de famílias de montanheses do Maciço de Collo, da Grande e da Pequena Ca­


bília, do Ouarsenis e de operários agrícolas instalados nas quintas do vale do
Chélif, etc.) nem a totalidade do tratamento operado sobre esse material (con­
tagem segundo os níveis genealógicos dos casamentos dos homens e das mu­
lheres e repartição destes matrimônios em casamentos com a prima paralela
estrita e com qualquer outra prima patrilinear, em casamentos endogâmicos
no interior da parentela alargada, em matrimônios com uma prima cruzada
matrilinear, seja esta ou não uma prima patrilinear no segundo grau, etc.; taxa
de endogamia, da endogamia mais estrita — casamento com a filha do irmão
do pai — à mais alargada—matrimônio no interior do grupo cujos membros
se consideram todos como parentes ainda que não haja entre eles qualquer
laço genealógico nem qualquer comunidade de nome; taxa de poligamia para
os homens; taxa de novos casamentos após divórcio ou viuvez para os ho­
mens e para as mulheres, etc.), contentar-nos-emos com apresentar, a título de
exemplo, para duas genealogias, recolhidas uma da região de Collo e outra da
Pequena Cabília, uma listagem dos casamentos que faz ver como a diferença
numérica entre os dos homens e os das mulheres vai aumentando à medida
que remontamos nos níveis genealógicos. É só a partir da sexta geração que as
genealogias mencionam as mulheres aproximadamente na mesma propor­
ção que os homens: ainda na quinta geração, o número das mulheres que apa­
recem na genealogia é um terço do dos homens. Ao longo de toda a árvore ge­
nealógica, o número das mulheres continua inferior ao dos homens, ainda
que a diferença se vá atenuando à medida que descemos nos níveis genealó­
gicos (a genealogia de Collo menciona 57 mulheres para 102 homens, e a da
Pequena Cabília 97 mulheres para 121 homens). A proporção dos casamentos
esquecidos (até à quinta geração) atinge, respectivamente, um quarto (ou
seja, em cada uma das genealogias, 12 sobre 47 e sete sobre 28) para os homens
e um terço para as mulheres (cinco sobre 13 numa das genealogias e três sobre
oito na outra).
Ou deveremos adoptar as repartições que os próprios agentes operam
em função de critérios que não são necessariamente genealógicos? Mas des­
cobriremos então que as probabilidades de que um indivíduo faça um casa­
mento socialmente tido por assimilável ao matrimônio com a filha do seu
'mm são tanto maiores quanto a linhagem usual (praticamente mobilizável)
for maior (e por isso também o número dos parceiros potenciais) e quanto
mais fortes forem as pressões e mais prováveis as urgências capazes de o incli­
narem ou o coagirem a casar no interior da linhagem. Quando a indivisão é
rompida e nada vem recordar e alimentar a relação genealógica, a filha do ir­
mão do pai pode não estar mais próxima, no espaço social praticamente apre­
endido, que qualquer outra prima patrilateral (ou até mesmo matrilateral);
pelo contrário, uma prima mais afastada no espaço genealógico pode ser o
equivalente prático de uma bent'amm quando os dois primos fazem parte de
uma mesma "casa" fortemente unida, vivendo em indivisão total sob a égide
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 67

de um ancião. E quando os informadores repetem com grande insistência que


há hoje menos casamentos que outrora no interior da linhagem, talvez sejam
simplesmente vítimas de uma ilusão suscitada pelo definhamento das gran­
des famílias indivisas.
Vemos que não basta, como fazem os observadores mais avisados, desli­
zar prudentemente da noção de casamento preferencial com a prima paralela
para a de "endogamia de linhagem" e procurar nesta linguagem vaga e cheia
de distinção uma maneira de tornear os problemas postos pela noção de en­
dogamia, esses mesmos problemas contidos no conceito demasiado familiar
de grupo. Podemos começar por perguntar o que implica o facto de se definir
um grupo pela relação genealógica que une os seus membros e por ela ape­
nas, ou seja, tratar (implicitamente) o parentesco como condição necessária e
suficiente da unidade de um grupo. Seria fácil e tentador desembaraçar-
mo-nos do problema opondo os que postulam, pelo menos implicitamente,
que o sistema dos nomes de parentesco, linguagem usada para nomear e clas­
sificar os agentes e as suas relações, governa realmente as práticas ou, noutros
termos, exprime as estruturas e os mecanismos estruturais capazes de as go­
vernarem efectivamente, e os que, em reacção contra tal forma de idealismo,
não vêem no sistema das apelações e, mais geralmente, nas representações
genealógicas mais que um sistema de racionalização das estruturas sociais
baseadas em princípios completamente diferentes. De facto, talvez devamos
recusar a alternativa para nos perguntarmos se não será enquanto instrumen­
to de conhecimento e de construção do mundo social que as estruturas de pa­
rentesco preenchem uma função política (e isso à maneira da religião e de
qualquer outra ideologia). A linguagem do parentesco fornece sem a mínima
dúvida os princípios da estruturação da representação do mundo social e,
por isso, um dos princípios fundamentais de todas as práticas sociais. De fac­
to, que são os termos de tratamento e de referência senão categorias de parentes­
co no sentido etimológico de imputações colectivas e públicas (significando
katégoreisthai primitivamente acusar em público, imputar qualquer coisa a al­
guém diante de todos), aprovadas e atestadas por todas como evidentes e ne­
cessárias? As "palavras da tribo"16 são palavras de ordem, ordens no sentido
imperativo, mas que podem ser ditas no indicativo, uma vez que não fazem
mais que enunciar a ordem do mundo. Dizer de um homem que "é um ho­
mem" é dizer bem mais e diferente coisa que a sua pertença ao gênero huma­
no, e todas as proposições da forma "isto é isto" são outras tantas petições de
princípio quando, sob a aparência de enunciarem o ser, contribuem para fa­
zer ser o que enunciam. Para medirmos o poder de constituição de tais desig­
nações cognitivo-práticas, prenhes de um universo de percepções e de

16 O autor alude aqui a uma proposição de Mallarmé, sustentando que o papel do poeta é
dar um sentido mais puro às palavras da tribo. (N. do T.)
68 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

interditos que os termos de parentesco são, basta pensarmos em tudo o que


contém uma expressão como "é a tua irmã", indicação imperativa que é o único
enunciado prático do tabu do incesto. Mas, se não há relação social que não se
organize em função de uma representação do universo social estruturado se­
gundo as categorias do parentesco, seria ingênuo julgarmos que as práticas
sociais, ainda quando das relações com os parentes se trata, são implicadas
pela sua definição genealógica. O esquema genealógico das relações de pa­
rentesco construído pelo etnólogo não faz mais que reproduzir a representa­
ção oficial das estruturas sociais, representação essa produzida pela aplicação
do princípio de estruturação dominante, sob um certo aspecto, quer dizer, em
certas situações e em vista de certas funções, e publicamente proclamada por
oposição às representações privadas, próprias de fracções particulares.
A partir do momento em que pomos explicitamente a questão das fun­
ções das relações de parentesco ou, mais brutalmente, da utilidade dos paren­
tes, que as teorias do parentesco preferem considerar resolvida, talvez porque
essa questão introduziría a linguagem do interesse onde se prefere falar a lin­
guagem mais decente da regra, não podemos deixar de nos dar conta de que
os usos do parentesco a que podemos chamar genealógicos são reservados às
situações oficiais, nas quais preenchem uma função de posição em ordem do
mundo social e de legitimação dessa ordem, aspecto pelo qual se opõem a ou­
tras espécies de usos práticos das relações de parentesco, que são eles pró­
prios um caso particular da utilização das relações (dessas das quais se diz que
se têm e que se cultivam). O casamento fornece uma boa ocasião de observar­
mos tudo o que separa, na prática, o parentesco oficial, único e imutável, defi­
nido de uma vez por todas pelas normas protocolares da genealogia, e o pa­
rentesco usual, cujas fronteiras e definições são tão numerosas e variadas
como os utilizadores e as ocasiões da sua utilização. É o parentesco usual que
faz os casamentos e é o parentesco oficial que os celebra. Nos casamentos co­
muns, os contactos que precedem o pedido oficial (akhtab) e as negociações
menos confessáveis, incidindo sobre aquilo que a ideologia oficial entende ig­
norar, como as condições econômicas do casamento, o estatuto oferecido à
mulher na casa do marido, as relações com a mãe do marido, são deixados aos
personagens menos qualificados para representarem o grupo e para o com­
prometerem, e por isso sempre susceptíveis de serem desautorizados, ou
uma mulher velha, as mais das vezes uma espécie de profissional desses con­
tactos secretos, ou uma parteira, ou qualquer outra mulher habituada a deslo-
car-se de aldeia em aldeia. Nas negociações difíceis entre grupos afastados, a
declaração de intenções incumbe a um homem conhecido e prestigiado per­
tencente a uma unidade suficientemente distante e distinta do grupo dos
aquisidores a fim de poder surgir como neutro e de estar em condições de agir
em cumplicidade com um personagem ocupando mais ou menos a mesma
posição relativamente ao grupo dos fornecedores (amigo ou aliado de prefe­
rência a parente). A pessoa assim mandatada evita proceder a uma diligência
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 69

expressa e arranja-se de maneira a descobrir uma ocasião de se encontrar com


uma pessoa situada "do lado da jovem" e de se abrir com ela sobre as inten­
ções da família interessada. Quanto ao pedido oficial, é apresentado pelo me­
nos responsável dos responsáveis pelo casamento, quer dizer, o irmão mais
velho e não o pai, o tio paterno e não o avô, etc., acompanhado, sobretudo no
caso de ser jovem, por um parente de uma outra linha. Para ahallal, são ho­
mens cada vez mais próximos genealogicamente do homem a casar e cada
vez mais prestigiados (quer dizer, por exemplo, num primeiro tempo o irmão
mais velho e o tio materno, depois, num segundo tempo, o tio paterno e um
dos notáveis do grupo, a seguir os mesmos acompanhados de vários notáve­
is, os do grupo e os da aldeia, bem como o taleb, aos quais se acrescentarão
mais tarde os marabus da aldeia e ainda o pai acompanhado pelos notáveis
das aldeias próximas e até mesmo da tribo vizinha, etc.), que apresentam as
suas solicitações a homens da família da mulher a desposar cada vez mais
afastados em termos tanto genealógicos como espaciais. No final, são mais
distantes dentre os parentes da jovem que vêm interceder junto do pai e da
mãe daquela da parte dos parentes mais próximos e mais prestigiados do jo­
vem que, eles próprios, os solicitaram. Por fim, a aceitação é proclamada di­
ante do maior número de homens e levado ao conhecimento do mais eminen­
te dos parentes do jovem a casar pelo mais eminente dos parentes da jovem a
desposar que foi solicitado para apoiar o pedido. Se, à medida que as negocia­
ções avançam e se encaminham para o êxito, o parentesco usual pode ceder
lugar ao parentesco oficial, sendo a hierarquia na perspectiva da utilidade
mais ou menos exactamente a inversa da hierarquia na perspectiva da legiti­
midade genealógica, é porque, em primeiro lugar, não há interesse em "com­
prometer" à partida na negociação parentes que, pela sua posição genealógi­
ca e social, comprometeríam demasiado fortemente os seus mandantes —
isto muito em particular numa situação de inferioridade conjuntural, que se
associa muitas vezes a uma superioridade estrutural (pelo facto de o homem
se casar mais frequentemente de cima para baixo), é, em seguida, por não se
poder pedir a qualquer pessoa indiferentemente que se coloque na posição de
solicitador exposto a uma recusa ou, por maioria de razão, a entrar em nego­
ciações pouco gloriosas, muitas vezes penosas, por vezes desonrosas para as
duas partes (como a prática chamada thaj'alts e consistindo em comprar por
meio de dinheiro a intervenção de parentes da jovem pedida em casamento
junto dos parentes responsáveis pela decisão); e é porque, finalmente, na fase
útil das negociações, a busca da eficácia máxima orienta as escolhas no senti­
do de pessoas conhecidas pela sua habilidade ou pela sua autoridade particu­
lar junto da família considerada ou pelas suas boas relações com uma pessoa
capaz de influenciar a decisão. E é natural que aqueles que realmente "fize­
ram" o casamento tenham de se contentar, na fase oficial, com o lugar que lhes
é atribuído não pela sua utilidade mas pela sua posição na genealogia, ven­
do-se assim votados, como se diz no teatro, a "desempenhar as utilidades"
70 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

em benefício dos "grandes papéis". Assim, para esquematizar, o parentesco


de representação opõe-se ao usual como o oficial e o não oficial (que engloba o
oficioso e o escandaloso); o colectivo e o particular (entendido como o menos
colectivo); o público, explicitamente codificado num formalismo mágico ou
quase jurídico, e o privado, mantido no estado implícito, quando não oculto;
o ritual, prática sem sujeito, susceptível de ser realizada por agentes inter-
cambiáveis porque colectivamente mandatados, e a estratégia, orientada
para a satisfação dos interesses práticos de um agente ou de um grupo de
agentes particulares. As unidades abstractas que, produzidas por simples re­
partição teórica, como aqui a linha de unifiliação (ou noutros casos a classe de
idade), estão disponíveis para todas as funções, quer dizer, para nenhuma em
particular, não têm por equivalente prático senão os usos mais oficiais do pa­
rentesco: o parentesco de representação é apenas a representação que o grupo
faz de si próprio agindo em conformidade com a que tem de si próprio. Por
oposição, os grupos usuais só existem por e para as funções particulares em
vista das quais são efectivamente mobilizados e só subsistem por terem sido sus­
tentados em andamento precisamente pela sua utilização e por todo um tra­
balho de manutenção (do qual fazem parte as trocas matrimoniais que eles
tornam possíveis) e porque assentam numa comunidade de disposições (ha­
bitus) e de interesses como a que funda a indivisão do patrimônio material e
simbólico. O

Utilidade, conformidade e utilidade da conformidade


e
Tratar as relações de parentesco como alguma coisa que se faz e da qual se faz
alguma coisa não é apenas, como as taxinomias em vigor poderiam fazê-lo
crer, substituir uma interpretação "funcionalista" por uma outra "estrutura-
lista", mas sim pôr radicalmente em questão, em nome de uma teoria da prá­
tica enquanto prática, a teoria implícita da prática que leva a tradição etnoló­
gica a apreender as relações de parentesco "sob a forma de objecto ou de intui­
ção", como diz Marx, mais que sob a forma das práticas que as produzem, as
reproduzem ou as utilizam por referência a funções necessariamente práti­
cas.17 O que vale para as relações de filiação vale, a fortiori, para as de afinidade:
com efeito, é apenas quando se registam essas relações como facto consumado,

É evidente que o conhecimento teórico da prática enquanto prática nada tem a ver com o co­
nhecimento prático sobretudo tal como o concebem todas as ideologias espontaneístas e
populistas quando a creditam das virtudes mágicas de uma experiência iniciática ou ain­
da as ideologias da observação participante e até mesmo certas formas da exaltação mís­
tica do "terreno". A teoria da prática enquanto prática é o único meio de escapar à alterna­
tiva entre o materialismo e o idealismo recordando, contra o materialismos positivista,
que os objectos do conhecimento são construídos, e, contra o idealismo intelectualista,
que o princípio de tal construção é a actividade prática orientada para funções práticas.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 71

postfestum, à maneira do etnólogo que regista uma genealogia, que se pode es­
quecer que são o produto de estratégias (conscientes ou inconscientes) orienta­
das em vista da satisfação de interesses materiais e simbólicos e organizados
por referência a um tipo determinado de condições econômicas e sociais. Qu­
ando se consideram apenas os lances já jogados (mas só aqueles que a ideologia
indígena designa como mais dignos de nota, por exemplo, o casamento com a
prima paralela patrilinear) e quando se possuem a seu propósito apenas in­
formações genealógicas (quer dizer, a relação de parentesco entre os cônju­
ges), fica-se condenado a retomar inconscientemente a teoria da prática que
se impõe todas as vezes que há um esforço no sentido de extrair do produto os
princípios da sua produção, do opus operatum o modus operandi. Por um para-
lo gismo que está no princípio de todos os discursos do método, faz-se como
se o caminho percorrido tivesse produzido segundo as regras (limitando-se o
academismo e a metodologia a tirar as consequências desta inconsequência
quando querem submeter a produção às regras que retrospectivamente ex­
traíram do produto).
A concorrência e os conflitos aos quais dá lugar a transmissão dos no­
mes próprios são uma ocasião que permite observar as funções práticas e po­
líticas destes marcadores genealógicos: quem se apropria desses índices da
posição genealógica (fulano, filho de fulano, filho de fulano, etc.) que são ao
mesmo tempo emblemas, representando todo o capital simbólico acumulado
por uma linhagem, apodera-se de certo modo de um título que confere direi­
tos privilegiados sobre o patrimônio do grupo. Thaymats, quer dizer, o estado
das relações de força e de autoridade entre os parentes contemporâneos, co­
manda o que será thadjadith, quer dizer, a história colectiva, mas esta projec-
ção simbólica das relações de força entre indivíduos e grupos em concorrên­
cia contribui ainda para reforçar essas relações, concedendo aos dominantes
o direito de professarem a memória interessada do passado mais de molde a
legitimar os seus interesses presentes. Dar a um recém-nascido o nome de um
grande antepassado não é apenas cumprir um acto de piedade filial, mas pre­
destinar de algum modo o filho assim designado a "ressuscitar" o antepassa­
do epónimo (isakrad djedi-s, "ressuscitou" o seu avô), ou seja, suceder-lhe nos
seus cargos e nos seus poderes. Compreende-se que se prefira evitar dar a um
recém-nascido o nome de um parente ainda vivo: seria "ressuscitá-lo" antes
da sua morte, lançar-lhe um desafio injurioso e, coisa mais grave, uma maldi­
ção (a presença das considerações mágicas na atribuição dos nomes vê-se
também por muitos outros traços, como o facto de, para se exorcizar a ameaça
de esterilidade associada a certos nomes próprios, se lhes impor uma ligeira
deformação), o que se verifica até mesmo quando a ruptura da indivisão é
consagrada pela partilha solene do patrimônio ou na sequência da fragmen­
tação da família decorrente da emigração para a cidade ou para França. Com-
preende-se que, segundo a mesma lógica, um pai não possa dar o seu nome
próprio a um filho e que, quando um filho é portador do nome do seu pai, isso
72 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

significa que nasceu pouco tempo depois da morte do pai que "o deixou no
ventre da mãe". Mas, neste domínio como noutros, as escapatórias e os sub­
terfúgios não faltam. Acontece que se mude o nome próprio inicialmente atri­
buído à criança, a fim de se lhe dar um nome tornado disponível pela morte
do pai ou do avô (vendo-se então o primeiro nome, que a mãe e as mulheres
da família continuam a utilizar, reservado aos usos privados). Pode acontecer
também que o mesmo nome próprio seja dado sob formas ligeiramente dife­
rentes a vários filhos mediante uma adição ou uma supressão (e. g. Mohand
Ourabah em vez de Rabah ou o contrário; Akli em vez de Mohand Akli ou o
contrário) ou de uma alteração ligeira (Beza em vez de Mohand Ameziane,
Hamini ou Dahmane em vez de Ahmed, Ouali ou Alilou em vez de Ali, ou
ainda Seghir ou Mohand Seghir, formas arabizadas, em vez de Meziane ou
Mohand Ameziane). Do mesmo modo, se se evita designar um filho pelo
mesmo nome que o do seu irmão mais velho, certas associações de nomes
muito próximos uns dos outros ou derivados do mesmo são muito prezadas
(Ahcène e Elhochine, Ahmed ou Mohamed, Seghir ou então Meziane e
Moqrane, etc.), sobretudo se um desses nomes é o de um antepassado.
Mohand Said (Illa) (cf. árvore genealógica da página seguinte) retomou o
nome do seu avô Ia e deu como primeiro nome ao primeiro filho o nome novo
Arezqi e ao segundo filho o do seu pai Amar (IVb). Querendo Arezqi pôr ao
seu filho mais velho o nome do seu avô (Amar) quando ainda continua a ser
usado pelo seu irmão, não pode retomá-lo tal e qual sem risco de confusão e
sobretudo sem que isso parecesse descortês e, bem mais grave, um sinal de
hostilidade para com o irmão, por pouco que ao facto se associassem reinter-
pretações mágico-rituais. Resta-lhe apenas recorrer a uma das variantes de
Amar (IVb): Amara (Vb). Do mesmo modo, no caso do seu segundo filho, ten­
do o nome de Mohand Said, disponível por um momento após a morte do pai
(Ilia), sido retomado por Amar (IVb), que o deu ao seu filho (Va), teve de re­
correr a uma variante Saâd (Va).
A descendência de Mouloud (IIIc) (cf. 'árvore genealógica da página
seguinte) conservou o nome de Arab usado pelo antepassado Ilb para o atri­
buir a IVb e a VIb e recorreu a uma variante, Mohand Amoqrane (Va), do
nome do primeiro antepassado Ia; a descendência de Moqrane (Illa) fez a es­
colha simétrica e complementar, retomando o nome próprio Moqrane tal e
qual (Ia — Ilia — Va e Via) e recorrendo ao nome próprio Larbi, variante de
Arab (IVb e VIb). Dado que o campo dos nomes próprios excluídos é tanto
maior quanto mais integrada é a família, podemos descobrir na distribuição
dos primeiros nomes um índice do "sentimento" da linhagem. O mesmo
nome ou séries inteiras constituídas pelos mesmos nomes podem coexistir
numa mesma genealogia seguindo linhas paralelas: quanto mais afastada é a
origem comum (ou mais enfraquecida está a unidade entre os subgrupos),
mais legítimo parece utilizarem-se esses nomes, perpetuando a memória das
mesmas pessoas em linhagens cada vez mais autônomas.
A descendência de Abdallah (Ilb) (cf. árvore genealógica da página
seguinte), filho de Ahmed (Ia), subdividiu-se em três ramos, um a partir de
Salah (IIIc), um outro de Said (IIIc) e o terceiro de Ahmd (Ilia). Cada um des­
tes três ramos retoma evidentemente o nome do seu fundador, de modo que
temos para Salah: IIIc—Vc—Vic, etc.; para Said: IIIc — Vc — VIc, etc.; e para
Ahmed: Illa — Va — Vila, etc.
Além destes nomes, que poderíam constituir o "capital" próprio de
cada uma das três linhagens, todas elas retomam um certo número de nomes
que parecem pertencer ao patrimônio comum ao conjunto da descendência,
quer dizer, ou os nomes dos dois antepassados Ahmed e Abdallah ou os dos
homens que não tiveram uma descendência masculina capaz de perpetuar a
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 75

sua memória. Paralelamente à série inaugurada já na terceira geração para


Ahmed (Illa), a descendência de Salah (IIIc) comporta uma segunda série de
nomes próprios Ahmed (Va — Vila e IXa): Abdallah, na origem retomado
pela descendência de Ahmed (Illa) e de Tahar (Illd), descendências que se ex-
tinguiram ambas em IVb e em Vllb, e duas vezes em VHIb. Uma vez que ne­
nhum dos dois homens do nível genealógico IV portador do nome de Abdal­
lah teve um filho, esse nome não pode ser retomado em linha directa, como o
não pode também o nome Tahar (Illd), que corre de resto um risco maior ain­
da de ser abandonado, porque, ao contrário de Abdallah, usado pelo antepas­
sado comum (Ilb), não pode ser retomado por descendentes directos mais in­
clinados que os colaterais a retomarem e a manterem o capital simbólico re­
presentado pelo nome. É necessário, portanto, que haja numa ou noutra famí­
lia uma profusão de homens para que Tahar seja reutilizado (quer dizer, na
descendência de IIIc, em VId, e na descendência de IIIc, em Vd e VId). Quanto
a Messaoud (Illf), à falta de descendência, dispersa-se entre os diferentes ra­
mos, ou seja, na descendência de Said (IIIc), IVf e Vllf, e na de Ahmed (Illa),
IVfe VIf.
A distribuição dos nomes segundo as linhas e os níveis genealógicos é
um bom índice da aptidão do grupo para manter a sua integração, superando
as virtualidades de crise que todos os problemas de sucessão, de controlo par­
ticularmente difícil, comportam: só, com efeito, uma série miraculosa de aca­
sos poderia harmonizar automaticamente a ordem dos óbitos, abrindo vagas
de nomes, e a ordem dos nascimentos, abrindo direitos a reivindicá-los, de
maneira a que a hierarquia das precedências genealógicas seja respeitada. O
máximo de economia onomástica é assim alcançado por uma família mara-
bútica do Ouarsenis fortemente endógama, que utiliza apenas 14 nomes pró­
prios masculinos e 10 femininos para designar 124 homens e 84 mulheres,
manifestando assim a indivisão do seu patrimônio simbólico. Para escapar à
confusão resultante de tal facto, até mesmo para os próximos que dispõem de
diferentes técnicas de identificação (filiação, referência a uma subdivisão da
parentela, a uma casa, cognome, etc.), recorre-se a toda uma série de artifícios,
uns para uso dos íntimos (como os diminutivos e outras deformações dos no­
mes próprios, Hand por M'hand, ou Aqa por Abdelkader, a adição ao nome
do pai do nome da mãe, as mais das vezes membro da linhagem, em razão da
endogamia elevada), outros para uso dos estranhos, a saber, o enunciado
completo das relações genealógicas (e. g. Djelloul M'hand Mohamed Abdel­
kader Ahmed Amar Ouali).
O resultado é que os nomes próprios prestigiados, como as terras mais
nobres, são objecto de uma concorrência regulada e que o "direito" à apro­
priação do nome próprio mais cobiçado, porque proclama continuamente a
relação genealógica com o antepassado cuja memória é conservada pelo gru­
po e fora do grupo, se distribui segundo uma hierarquia análoga à que rege as
obrigações de honra em caso de vingança ou os direitos sobre uma terra do
i; h g
76 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

patrimônio em caso de venda. Assim, transmitindo-se o nome próprio em li­


nha patrilinear directa, o pai não pode dar a um filho o nome do seu próprio
‘mm ou do seu próprio irmão ('amm do filho) no caso em que estes últimos
deixaram filhos já casados e, portanto, em condições de retomarem o nome
do seu pai para um dos seus filhos ou seus netos. Aqui como noutros casos, a
linguagem da norma e da obrigação (deve, não pode, etc.), mais cômoda por­
que mais rápida, não deve enganar-nos. Deste modo, houve um caso em que
um irmão mais novo pôde aproveitar relações de força favoráveis para dar
aos seus filhos o primeiro nome de um irmão prestigiado, que morrera dei­
xando apenas filhos muito jovens, mas estes fizeram mais tarde ponto de hon­
ra de se reapropriarem, sob o risco de instaurarem a confusão, do nome pró­
prio de que se consideravam detentores legítimos. A concorrência é particu­
larmente evidente quando vários irmãos desejam retomar para os filhos o pri­
meiro nome do avô: enquanto a preocupação de não deixar um nome ao
abandono e de não perpetuar o vazio assim criado manda que se dê o nome ao
primeiro rapaz que nasce após a morte do seu portador, o filho mais velho
pode diferir a sua atribuição a fim de o pôr a um dos netos, em vez de o deixar
para o filho de um dos seus irmãos mais novos, saltando assim um nível ge­
nealógico. Mas também pode acontecer, pelo contrário, que, na ausência de
qualquer descendência masculina, um nome corra o risco de não ser herdado
e que o encargo de o "ressuscitar" incumba em primeiro lugar aos colaterais e,
em seguida, mais amplamente, a todo o grupo que manifesta, retomando-o, a
sua integração e a sua riqueza em homens, que o põem em condições de reto­
mar os nomes de todos os ascendentes directos e de reparar por acréscimo as
insuficiências sobrevindas noutros lugares (sendo uma das funções do casa­
mento com a filha de ‘mm, quando este morre sem outra descendência, per­
mitir à filha velar por que o nome do seu pai não desapareça).
O etnólogo encontra-se especialmente colocado para desconfiar da dis­
tinção entre o parentesco oficial e o usual: não tendo ele próprio a fazer com o
parentesco (pelo menos com o dos outros, que toma, como costuma dizer-se,
por objecto) a não ser usos cognitivos, dispõe-se a tomar por garantidos os
discursos oficiais que os informadores tendem a propor-lhe durante todo o
tempo em que se consideram como porta-vozes, mandatados para veicular a
linguagem oficial do grupo sobre o grupo. O juridicismo do etnólogo nada
tem a objectar ao do informador e, quando o observador se torna genealogis­
ta, não tem qualquer razão para entrever que está a deixar impor-se-lhe a defi­
nição oficial da realidade social, a qual, sendo o que é, domina ou recalca ou­
tras definições: os esforços desesperados que várias gerações de etnólogos
desenvolveram para confirmar ou infirmar a existência do "casamento prefe­
rencial" com a prima paralela, aí estão para o testemunhar. A partir do mo­
mento em que se põe o problema do casamento em termos estritamente gene­
alógicos, como os informadores não param de fazer, evocando o matrimônio
com a bent'amm, o jogo está jogado ou, mais precisamente, os limites do jogo
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 77

estão definidos: todas as soluções para o problema que se põe serão admiti­
das, contanto que se exprimam na língua da genealogia... O etnólogo não po­
dería romper a relação de conivência que o une à ideologia oficial dos seus in­
formadores (eles próprios as mais das vezes porta-vozes "autorizados", de­
signados pelo grupo pela sua "competência", quer dizer, no caso particular,
homens e idosos e influentes) e afastar-se dos pressupostos implicados pelo sim­
ples facto de construir o diagrama das relações de filiação, de aliança e de ger-
manidade a que se chama genealogia, a não ser na condição de situar essa es­
pécie muito particular de utilização do parentesco por referência às diferen­
tes espécies de usos que os agentes dele podem fazer: quando trata a termino­
logia indígena do parentesco como um sistema fechado e coerente de relações
puramente lógicas, de uma vez por todas definidas como por construção na e
pela axiomática implícita de uma tradição cultural, proíbe-se de apreender as
diferentes funções práticas dos termos e das relações de parentesco, que põe
entre parênteses sem saber, e proíbe-se, no mesmo acto, de captar o estatuto
epistemológico de uma prática que, como a sua, supõe e consagra a neutrali­
zação das funções práticas desses termos e dessas relações.
À falta de sabermos o que faz o etnólogo quando constrói uma árvore
genealógica, esquema espacial susceptível de ser apreendido uno intuitu e de
ser percorrido indiferentemente em qualquer sentido a partir de qualquer
ponto e capaz de fazer existir segundo esse modo de existência particular que
é o dos objectos teóricos, quer dizer, tota simul, em totalidade na simultanei-
dade, a rede completa das relações de parentesco em várias gerações, não po­
demos dar-nos o conhecimento da prática enquanto prática, ou seja, no caso
particular, o conhecimento dos usos sociais que praticamente os agentes fa­
zem das suas relações de parentesco.
Assim, o cálculo genealógico a que os agentes (assistidos ou não por es­
pecialistas) podem ter recurso nas ocasiões oficiais para medirem o "grau" de
parentesco entre dois indivíduos até ao seu antepassado comum, ou para es­
tabelecerem as precedências, preenche funções directamente práticas, para
não falarmos da função ideológica implicada pelo simples facto de se apre­
sentarem como relações exclusivamente genealógicas de filiação ou de alian­
ça, relações essas que podem também ser lidas diferentemente (por exemplo
relações de germanidade) e que se baseiam sempre também sobre outros prin­
cípios, por exemplo, econômicos ou políticos, segundo um procedimento que
é aplicado todas as vezes que se procura nas relações passadas, retrospectiva­
mente reconstruídas em função das necessidades da causa, a razão de ser de
relações presentes que obedecem na realidade a princípios completamente
diferentes. Por outro lado, as relações lógicas que o etnólogo constrói estão
para as relações usuais, quer dizer, "práticas" (no duplo sentido do termo)
porque continuamente praticadas e, como costuma dizer-se, mantidas e culti­
vadas, como o espaço geométrico de um mapa enquanto representação ima­
ginária de todos os caminhos e de todos os itinerários teoricamente possíveis
78 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Q' *
está para a rede dos caminhos realmente mantidos, frequentados, abertos e,
portanto, fáceis de seguir. As relações oficiais, que não são objecto de manu­
tenção contínua, ainda quando são utilizadas apenas de maneira descontí­
nua, tendem a tornar-se aquilo que são para o genealogista, quer dizer, rela­
ções teóricas, semelhantes a estradas abandonadas num mapa antigo: nesta
lógica, as trocas mais importantes não são as que retiveram a atenção dos
etnólogos pelo seu aspecto fora do comum e ostentatório e que, relevando da
lógica do desafio, comportam a ameaça da ruptura, mas as que passam
despercebidas, os pequenos presentes que marcam as mais pequenas oca­
siões da existência comum e asseguram a continuidade das relações usuais. Em
suma, as relações lógicas de parentesco a que a tradição estruturalista conce­
de uma autonomia mais ou menos completa relativamente às determinações
econômicas, e correlativamente uma coerência interna quase perfeita, só exis­
tem segundo o modo prático por e para os usos oficiais e oficiosos que delas
fazem os agentes ainda mais interessados em mantê-las em estado de funcio­
namento e em fazê-las funcionar com intensidade — portanto, em razão do
efeito de abertura de caminho, cada vez mais facilmente—por elas preenche­
rem actual ou virtualmente funções mais indispensáveis para eles ou, numa
linguagem menos equívoca, satisfazerem ou poderem satisfazer interesses
(materiais ou simbólicos) mais vitais.
Por oposição às relações sem história que os genealogistas instruídos ou
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 79

semi-instruídos conhecem, as relações usuais são definidas pela história da


qual são produto, a das trocas econômicas e simbólicas que autorizam e que
as reproduzem ao mesmo tempo que a das situações nas quais funcionam e
das quais as mais notáveis são os casos de crime, de venda de terras ou de ca­
samento. Sob pena de procedermos a recortes arbitrários, abstractamente
operados, em função apenas de critérios genealógicos, devemos, portanto,
darmo-nos, ao mesmo tempo que a genealogia, o conhecimento completo do
estado das transacções entre todos os indivíduos que ela recenseia, quer di­
zer, toda a história das trocas materiais e simbólicas, fundamento das solida-
riedades inevitáveis, na desonra como no prestígio, na riqueza como na cala­
midade. Tomemos um exemplo (cf. árvore genealógica, da página anterior), o
do grupo designado como akham La'la, conjunto dos descendentes de La'la
(V) ben Mohand Said (IV) ben Messaoud (III) ben Abbas (II) ben Djoudi (I)
Nath Eldjoudi, dos Aít Messaoud. Tudo se conjuga para impor a representa­
ção da linhagem proposta pela leitura da genealogia: o próprio discurso dos
agentes que gostam de invocar a "comunidade de sangue" que une todos os
membros de akham La'la, os termos de referência que marcam as relações de
filiação directa (fulano, filho de fulano) ou longínqua (fulano que vem de fu­
lano — aqui X...n LaTa), a simbólica cientemente genealógica da atribuição
dos nomes próprios que permite afirmar a continuidade da linhagem "repro­
duzindo" o pai, o avô ou o tio—e também o seu poder—num sucessor desig­
nado (aqui, Amara n LaTa —IX— retoma o nome do seu bisavô Amara n LaTa
—VI3—; Mohand Ameziane n LaTa — 1X2 — retoma o do seu tio-bisavô —
VII — morto sem descendência; Larbi LaTa—VIII1 — o do seu tio—VII3 —;
Salah LaTa — VIII1 — o do seu avô—VI2 —). Mas nada é assim tão simples e
as confirmações aparentes que o etnólogo pode encontrar nos usos ideológi­
cos do parentesco não logram dissimular todos os índices através dos quais o
grupo recorda que não trata como membros de uma mesma família o conjun­
to dos descendentes de LaTa: é deste modo que não só por preocupação de
precisão na identificação dos sujeitos, mas também por um efeito de desmisti-
ficação exactamente simétrico do efeito de mistificação ideológica em busca
da anexação genealógica, os parentes e os não parentes abandonam a referên­
cia ao antepassado mais longínquo e mais prestigiado para invocar a relação
genealógica que caracteriza cada indivíduo como sua propriedade e o distin­
gue de todos os outros, designando, por exemplo, LaTa LaTa — VIII3 —,
actualmente chefe da maior das duas famílias com origem em LaTa, como
LaTa n Amara (por referência ao seu avô, uma vez que o seu pai, Larbi, mor­
reu jovem) ou Akli—VII4 —, como Akli n Amara. O que continua a ser verda­
de ainda no caso em que a terra permaneceu indivisa, podendo assim dizer-se
que a terra é "a da casa de X", ao passo que os homens serão designados como
os "filhos de Y e de Z" (eles próprios filhos de X). Os agentes organizam a sua
prática por referência ao conhecimento prático das divisões úteis e utilizam
como um instrumento de legitimação da ordem social a representação
80 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

genealógica que o analista trata como um modelo teórico da realidade social,


à falta de possuir o conhecimento dos princípios de unificação e de divisão
não genealógicas que só a história econômica e social do grupo pode propor­
cionar. Assim, no caso particular, a unidade genealógica que os agentes po­
dem invocar, sobretudo nessa situação oficial que a relação que o etnólogo é,
encontrou-se realmente dividida em duas "casas", a casa de Akli n Amara
(VII4) e a de La'la (VIII3) segundo o nome dos seus chefes respectivos, na se­
quência de uma crise a que podemos chamar estrutural, uma vez que sobre­
veio durante a vida do último dos filhos de La'la (VI3) já detentor — e não por
acaso — do primeiro nome do antepassado, excluindo Akli n Amara (VII4),
cuja idade (é o decano de todos os homens da descendência de La'la) e relação
de parentesco com o detentor do poder (é filho de Amara) designavam como
herdeiro legítimo. La'la n Amara, a quem se chama "filho do seu avô" (por
oposição a Akli, que não é senão o "filho do seu pai"), recebeu deste não ape­
nas o privilégio constituído pelo facto de ser o sucessor designado do qual o
nome próprio é apenas a marca mais visível, mas também uma iniciação es­
pecial nas responsabilidades de "cabeça da casa" (aqaruy ukham): desde a in­
fância foi afastado do trabalho da terra e associado àquilo a que se podería
chamar a política externa da família, quer dizer, às trocas econômicas exterio­
res, adquirindo assim o controlo das técnicas do mercado e das decisões con­
cernentes às relações com outros grupos e apropriando-se deste modo da
competência, em particular linguística e retórica, que define o "homem das
assembléias" (argaz ladjma'), e a autoridade ligada a esse papel. Na medida
em que o capital simbólico, e em particular o conhecimento do jogo político e
econômico, é um dos factores determinantes do acesso ao poder político, pelo
menos no interior da linhagem, a transmissão diferencial de semelhante capi­
tal, aqui como noutros lugares mais difícil de controlar que a transmissão do
capital econômico, é uma das maneiras de lidar com as precedências genealó­
gicas. Este caso, apesar de muito simples, permite que nos apercebamos do
carácter fundamentalmente problemático da ligação entre relações oficiais e re­
lações usuais, entre as unidades oficiais, públicas, e as unidades usuais, que
podem, por excepção, coincidir.
Falar de endogamia e até querer, numa louvável intenção de rigor, me­
dir as taxas de endogamia, é fazer como se existisse uma definição puramente
genealógica da linhagem quando cada adulto do sexo masculino, seja qual
for o nível em que se encontre da árvore genealógica, é um ponto de segmenta­
ção possível, que pode ser efectivamente actualizado em função de um uso so­
cial particular. Quanto mais longe no tempo, e no espaço genealógico — e nada
proíbe, neste espaço abstracto, a regressão até ao infinito —, se situa o ponto de
origem, mais se fazem recuar as fronteiras da linhagem e mais a força assimila-
dora da ideologia genealógica aumenta, mas em detrimento da sua virtude dis­
tintiva, que, pelo contrário, aumenta quando nos aproximamos da origem co­
mum. É assim que o uso que se pode fazer da expressão ath (os descendentes
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 81

de, os de...) obedece a uma lógica relativista, ou melhor, posicionai por intei­
ro semelhante à que caracteriza os usos da palavra cieng segundo Evans-Prit-
chard, podendo o mesmo indivíduo, segundo a circunstância, a situação, o
interlocutor e, portanto, a função assimiladora e distintiva da apelação, di­
zer-se membro dos Ath Abba (a casa, akham) ou dos Ath Yahia ('arch). O relati-
vismo absoluto que conferiría aos agentes o poder de manipularem sem qua­
isquer limites a sua própria identidade social ou a dos adversários, ou dos
parceiros que pretendem assimilar ou excluir manipulando os limites da clas­
se da qual uns e outros fazem parte, teria pelo menos o mérito de romper com
o realismo ingênuo daqueles que não sabem caracterizar um grupo a não ser
como uma população definida por fronteiras directamente visíveis. Todavia,
quem fica prisioneiro da lógica genealógica expõe-se a ignorar que a estrutu­
ra de um grupo (e por isso a identidade social dos indivíduos que o com­
põem) depende da função que está no princípio da sua constituição e da sua
organização. É o que esquecem também os que se esforçam por escapar à abs-
tracção genealógica opondo a linha de unifiliação (descent line), a que é me­
lhor chamar "linha diagramática" como Louis Dumont, para acentuar que só
existe nos diagramas, à linha local (local Une) ou à linha diagramática local (lo­
cal descent group), porção de um conjunto de unifiliação que a unidade de resi­
dência autoriza a agir colectivamente enquanto grupo.18
É ainda sucumbir ao realismo ignorar que os efeitos da distância espa­
cial dependem da função em vista da qual se instaura a relação social: se po­
demos admitir, por exemplo, que a utilidade potencial de um parceiro tende a
decrescer com a distância, deixa de ser assim todas as vezes que, como no caso
do casamento de prestígio, o lucro simbólico é tanto maior quanto mais a rela­
ção se estabelece entre pessoas afastadas; do mesmo modo, se a unidade de
residência contribui para a integração do grupo' a unidade que confere ao
grupo a sua mobilização em vista de uma função comum contribui para mini­
mizar o efeito da distância. Em suma, embora se possa teoricamente conside­
rar que existem tantos grupos possíveis como funções, continua a ser verdade
que, como vimos no caso do casamento, não se pode recorrer a uma pessoa
qualquer a qualquer momento, do mesmo modo que um indivíduo não pode
oferecer os seus serviços a outra pessoa qualquer para qualquer fim que seja. Por
isso, para escapar ao relativismo sem se cair no realismo, podemos estabelecer que
as constantes do campo dos parceiros potencialmente úteis também, quer dizer
utilizáveis de facto, porque espacialmente próximos, e úteis, porque socialmente
influentes, fazem com que cada grupo de agentes tenda a manter em existência
por meio de um trabalho contínuo de manutenção uma rede privilegiada de rela­
ções usuais que compreende não só o conjunto das relações genealógicas manti­
das em estado de andamento (chamadas aqui parentesco usual), mas igualmente

18 L. Dumont, op. cit., pp. 122-123.


82 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

o conjunto das relações não genealógicas que podem ser mobilizadas em vista das
necessidades comuns da existência (aqui chamadas relações usuais).19
Se pode acontecer que o conjunto oficial dos indivíduos susceptíveis de
serem definidos pela mesma relação com o mesmo ascendente situado ao
mesmo nível (qualquer que seja) da árvore genealógica constitua um grupo
usual, é porque nesse caso as repartições de base genealógica recobrem no
duplo sentido do termo unidades fundadas noutros princípios, ecológicos
(vizinhança), econômicos (indivisão) e políticos. O facto de o valor descritivo
do critério genealógico ser tanto maior quanto mais próxima é a origem co­
mum e mais restrita a unidade social não significa que a sua eficácia unificadora
aumente correlativamente. Com efeito, como veremos, a relação mais estreita
em termos genealógicos, a que une os irmãos, é também o lugar da tensão
mais forte, e só um trabalho de todos os instantes pode manter a comunidade
de interesses. Em suma, a simples relação genealógica nunca basta para ga­
rantir por si só a determinação completa da relação entre os indivíduos que
une e não assume esse valor preditivo a não ser associada à comunidade de
interesses produzida pela possessão em comum de um patrimônio material e
simbólico, tanto enquanto vulnerabilidade como enquanto propriedade par­
tilhada. A extensão do parentesco usual, intersecção do conjunto das relações
de parentesco oficiais e das relações usuais, depende da aptidão dos mem­
bros da unidade oficial para superarem as tensões engendradas pela concor­
rência dos interesses no interior da actividade indivisa de produção e de con­
sumo e para manterem relações práticas em conformidade com a representa­
ção oficial que delas dá todo o grupo que se pense enquanto grupo integrado
(í. e. para "fazer do irmão um amigo", para retomarmos os termos de uma
oposição muito presente na consciência comum), e, portanto, para somarem
os benefícios proporcionados por toda a relação prática e os lucros simbólicos
garantidos pela aprovação socialmente concedida às práticas em conformi­
dade com a representação oficial destas.
Vemos aqui uma das manifestações da dialéctica do usual e do oficial
que é, sem dúvida, o princípio último de todas as interacções sociais. A
O
------------ y-
19 Embora se exprima ainda numa linguagem genealógica, é no fundo a oposição entre as
relações de parentesco oficiais e as de parentesco usuais a recoberta pela oposição entre
thaymats (de ayma irmão), o conjunto dos germanos, e thadjadith (de djedd, avô), o conjun­
to dos ascendentes comuns aos que se reclamam de um mesmo antepassado, real ou míti­
co: "Thaymats, costuma dizer-se, é de hoje, thadjadith é de ontem". Invoca-se thaymats, so­
lidariedade actual e activa baseada em laços de parentesco realmente experimentados e
actualmente reconhecidos porque continuamente reactivados, quando está em causa a
oposição a outro grupo, no caso, por exemplo, de o clã ser atacado: decorre daqui que o
grupo unido por thaymats representa apenas uma secção (cuja extensão depende de todo
um conjunto de factores que se ligam, por um lado, à estrutura do grupo e por outro à oca­
sião mobilizadora) da unidade baseada em thadjadith, quer dizer, na origem comum, in­
vocada para justificar ideologicamente uma unidade oficial.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 83

coincidência do usual e do oficial não representa com efeito senão um estado


particular das relações entre estes dois aspectos de qualquer interacção social,
mas um estado privilegiado, uma vez que, como vimos, permite somar os ga­
nhos da utilidade e os benefícios da conformidade, compreendendo por isso
que, entre as estratégias de segunda ordem que dobram (e dissimulam) as es­
tratégias, uma das mais frequentes consista na simulação desta coincidência.
Os etnólogos teriam falado menos ingenuamente a linguagem da regra,
aquela que os agentes empregam para falarem das suas práticas, se tivessem
suspeitado da existência das manipulações simbólicas do sentido objective
da prática por meio das quais os agentes se põem em regra, como tão bem cos­
tuma dizer-se, e que traem o facto de a prática não ter a regra por princípio...20
A etnologia ganharia, sem dúvida, em ter por verdade que só se obedece à re­
gra (quando esta existe enquanto tal) na medida em que o interesse em obede­
cer-lhe leva a melhor de maneira significativa ao interesse em desobede­
cer-lhe. Mas até mesmo quando professam o materialismo mais radical, os
etnólogos parecem querer apenas deixarem-se apanhar no equívoco ciente­
mente alimentado por meio do qual todo o grupo afirma o seu "ponto de hon­
ra espiritualista" e alicerça ideologicamente a sua unidade esforçando-se por

À falta de podermos proceder a uma verdadeira análise lógica das operações da lingua­
gem etnológica, que constituiría na circunstância a forma mais radical da crítica episte-
mológica, contentar-nos-emos com citar um texto descoberto durante a preparação deste
trabalho e que, embora não mais saturado que outros, sem dúvida, de traços típicos do ju-
ridicismo, apresenta tão francamente a norma oficial como princípio das práticas que
tem de fazer do interesse — reintroduzido no final — o princípio das excepções à regra:
"Aos olhos dos Tiyãha, a união com a prima paralela é ao mesmo tempo um direito e um de­
ver, e é direito precisamente por ser dever. Incumbe com efeito ao 'ibn'amm defender a sua
prima, acorrer em seu auxílio, como se se tratasse de uma irmã, velar pelo seu sustento
em caso de viuvez ou de divórcio e ocupar-se dos filhos dela. É o meu ‘ar, dizia-me um in­
formador, termo que significa textualmente 'vergonha', 'opróbrio', mas que é na realida­
de uma espada de dois gumes, porque o mesmo ‘ar, aos olhos dos nômadas, poderá ser ao
mesmo tempo um objecto de desonra ou de honra, segundo o comportamento da prima.
Quando as suas acções não estão em conformidade com o costume, cabe ao filho do irmão
do pai aconselhá-la e até mesmo usar de coacção para melhor a persuadir. Se, apesar de
tudo, ela persistir na sua atitude e a irregularidades do seu comportamento atentarem
contra a honra da família, incumbir-lhe-d muitas vezes vingar essa honra por meio do san­
gue. Se a prima for casada com um estrangeiro, deverá socorrê-la caso ela seja oprimida.
De tal maneira que aquilo que pode fazer de melhor para a tranquilidade do seu espírito é
tomá-la por esposa. Pelo seu lado, a bint'amm mostra-se menos exigente para com o seu
primo do que para com um estranho, e contenta-se, se necessário for, apenas com o neces­
sário. Resumindo tudo o que foi dito até aqui, um nômada de sessenta anos exclama: 'Se­
ria possível que um homem se case com uma estrangeira quando tem uma prima da sua
carne e do seu sangue, que guarda o seu segredo e protege a sua honra?' Mas significarão
estas palavras que o comportamento do homem seja sempre movido por sentimentos tão
nobres? O procedimento do ibn'amm parece provar que o homem considera um pouco
mais o aspecto mais favorável aos seus interesses" (J. Chelhod, "Le Mariage avec la cousi-
ne parallèle dans le système arabe", L'Homme, Julho-Dezembro de 1965, n.os 3 e 4,
pp. 113-173).
84 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

se mascarar e por mascarar as determinantes reais da sua prática ou, melhor,


o facto de a sua prática obedecer a determinismos e, em particular, a interesses
materiais ou simbólicos. Falar a linguagem da regra é crer e deixar crer que
não se conhece outra lei senão aquela que os próprios a si próprios prescre­
vem, é dar e dar-se das motivações próprias a representação mais honrosa,
porque mais em conformidade com a definição que o grupo forma das moti­
vações honrosas, quer dizer, susceptíveis de serem oficialmente apresentadas
e publicamente representadas.
Contudo, as estratégias que visam produzir práticas em regra são elas
próprias apenas um caso particular de uma classe de estratégias de oficializa­
ção que têm por objectivo transmutar motivações e interesses "egoístas", pri­
vados, particulares (noções sempre relativas que só se definem na relação en­
tre uma unidade e a unidade englobante, de nível superior), em motivações e
em interesses desinteressados, colectivos, publicamente confessáveis, em
suma, legítimos. Numa sociedade desprovida de instâncias políticas consti­
tuídas e dotadas do monopólio de facto da violência legítima, uma acção pro­
priamente política que só pode exercer-se pelo efeito de oficialização supõe a
competência (no sentido de aptidão colectivamente reconhecida a uma autoridade
pública) que é indispensável para manipular a definição da situação de manei­
ra a aproximá-la da definição oficial de molde a mobilizar o grupo mais am­
plo possível, podendo a estratégia inversa tender a reduzir a mesma situação
a um simples assunto privado. 0
Podemos ver na ritualização da violência operada pelos jogos e pelos
combates rituais (opondo grupos alicerçados em bases puramente onomásti­
cas e míticas, como as ligas—sfuf, plural de stiff) uma das manifestações mais
típicas da dialéctica da estratégia e do ritual, pois, embora os combates fos­
sem quase sempre motivados por um atentado aos interesses econômicos ou
simbólicos — o roubo de um animal ou uma injúria a membros do grupo, os
pastores por exemplo —, encontravam os seus limites no modelo ritualizado
que se aplicava de maneira ainda mais estrita nos jogos sazonais, dotados
também de uma função ritual, como os jogos de bola chamados kura ou qochra
(Ain Aghbel), em que os jogadores, divididos em dois campos — leste e oeste
—, deviam, com a ajuda de bastões de madeira, fazer penetrar uma bola, a
kura, no campo contrário. Podemos compreender na mesma lógica, quer di­
zer, como manipulação simbólica da violência com vista a resolver as tensões
suscitadas pelo contacto entre grupos estrangeiros, por vezes tradicional­
mente hostis, todos os ritos, particularmente estritos, aos quais dá lugar o ca­
samento entre grupos distantes, pois a regra e o ritual são cada vez mais ne­
cessários na medida em que já não se pode contar com a orquestração auto­
mática das práticas assegurada pela homogeneidade dos habitus e dos inte­
resses (por aqui se explica, de um modo geral, que a ritualização das interac-
ções cresça com a distância entre os indivíduos ou os grupos e, portanto, com
a dimensão destes).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 85

Dispor do capital de autoridade que é necessário para impor a definição


da situação, em particular nos momentos de crise em que o juízo colectivo va­
cila, é estar em condições de mobilizar o grupo, colectivizando um incidente
privado pela solenização e a oficialização (apresentando, por exemplo, a injú­
ria endereçada a uma mulher particular como atentado à hurma de todo o gru­
po), bem como de o desmobilizar desautorizando o indivíduo ou o grupo que
se encontra directamente implicado e que, à falta de saber pôr-se em regra, se
vê reduzido ao estatuto de simples particular, votado a aparecer como priva­
do de razão por que quer impor a sua razão privada, idiôtès em grego e amah-
bul em cabila. De facto, os grupos pedem infinitamente menos que aquilo que
deixa crer o jurisdicismo,mas muito mais que os "destruidores do jogo" que­
rem reconhecer. Entre o responsável, que está predestinado a ocupar as posi­
ções de porta-voz colectivamente mandatado pela excelência de uma prática
imediatamente em conformidade com a regra oficial porque produzida por
um habitus regulado, e o irresponsável, que, não contente com transgredir as
regras do jogo contesta publicamente a sua legitimidade e pretende impor as
suas próprias regras, abre-se um lugar para o transgressor de boa vontade, que,
pondo-se em regra e concedendo a aparência ou a intenção da conformidade,
quer dizer, o reconhecimento à regra que não pode respeitar nem recusar, con­
tribui para a existência, inteiramente oficial, da regra. Compreende-se que a
política ofereça à dialéctica do oficial e do útil o seu terreno de eleição e, no seu
esforço para chamarem a si a delegação do grupo e para a retirarem aos seus
concorrentes, os agentes em concorrência pelo poder político só podem usar
estratégias rituais e rituais estratégicos, produtos da colectivização simbólica
dos interesses privados e da apropriação simbólica dos interesses oficiais.
Contudo, a luta pelo monopólio do exercício legítimo da violência (quer
dizer, numa sociedade caracterizada pela ausência de acumulação econômi­
ca e pela acumulação do capital simbólico como crédito colectivamente reco­
nhecido) que se organiza em torno da oposição entre a razão colectiva e a ra­
zão privada, entre o responsável colectivamente mandatado, rodeado pela
consideração colectiva, e o irresponsável desconsiderado, não deve fazer-nos
esquecer a oposição, necessariamente subterrânea, entre o oficial e o oficioso.
A estrutura do sistema das categorias de pensamento colectivas estabelece, a
título de axioma, que a concorrência pelo poder oficial só pode instaurar-se
entre os homens, ao passo que as mulheres podem entrar na concorrência por
um poder por definição votado a permanecer oficioso ou até mesmo clandesti­
no e oculto. Reencontramos, com efeito, no terreno da política, a mesma divi­
são do trabalho que confia aos homens a religião, pública, oficial, solene, co­
lectiva, e às mulheres a magia, secreta, clandestina e privada. Nesta concor­
rência, os homens têm por eles todos os instrumentos oficiais, a começar pelas
representações mítico-rituais e as de parentesco, que, pela mediação e a redu­
ção da oposição entre o oficial e o privado à oposição entre o fora e o dentro,
portanto entre o masculino e o feminino, estabelecem uma hierarquização
86 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Caso1 pA

\ °'°
sistemática votando as práticas femininas e tudo o que delas decorre a uma
existência envergonhada, clandestina ou, no melhor dos casos, oficiosa: ain­
da quando detêm o poder real, e é esse muitas vezes o caso em matéria de ca­
samento, pelo menos, as mulheres não podem exercê-lo por completo a não
ser na condição de deixarem aos homens todas as suas aparências, quer dizer,
a manifestação oficial, e de se contentarem com o poder oficioso da eminência
parda, poder dominado que se opõe ao poder oficial, na medida em que só pode
exercer-se por procuração, a coberto de uma autoridade oficial bem como ao
poder subversivo do destruidor do jogo na medida em que continua ainda a
servir a autoridade da qual se serve.
O verdadeiro estatuto das relações de parentesco, princípios de estrutu­
ração do mundo social que, enquanto tais, preenchem sempre uma função
política, nunca se vê tão bem como nos usos diferentes que os homens e as
mulheres podem fazer do mesmo campo de relações genealógicas, e em parti­
cular nas suas "leituras" diferentes das relações de parentesco genealogica-
mente equívocas (relativamente frequentes dada a estreiteza da área matri­
monial). Daqui decorre que em todos os casos de relação genealogicamente
equívoca é sempre possível aproximar o parente mais afastado ou aproxi­
mar-se dele pondo a tônica naquilo que une, ou seja, na relação através dos
homens (é o papel da forma de tratamento 'amm) enquanto se pode manter à
distância o parente mais próximo trazendo para primeiro plano aquilo que
separa, quer dizer a relação secundária através das mulheres. A parada em
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 87

jogo nestas manipulações, que seria ingênuo considerar fictícias sob o pretex­
to de que não enganam ninguém, não é outra coisa, em todos os casos, senão a
definição dos limites práticos do grupo que podem ser assim levados, segun­
do as necessidades, a passar além ou aquém daquele que se entende anexar
ou excluir. Podemos ter uma ideia destas manipulações hábeis considerando
os usos do termo khal (em sentido estrito, irmão da mãe): pronunciado por um
marabu em intenção de um camponês plebeu e leigo exprime a vontade do
marabu de se distinguir, acentuando, dentro dos limites da cortesia, a ausên­
cia de qualquer relação de parentesco legítima; entre camponeses, esta forma
de tratamento manifesta a intenção de instaurar uma relação minimal de fa­
miliaridade por meio da invocação de uma remota e hipotética relação de
aliança. É a leitura oficial que se impõe ao etnólogo quando, encorajado pelos
seus informadores, assimila a um casamento entre primos paralelos a relação
que une, por exemplo, os primos paralelos patrilineares no segundo grau
quando um deles provém, por seu lado, de um casamento com o primo para­
lelo e a fortiori quando os dois são o produto de uniões desse tipo (como acon­
tece em caso de trocas de mulheres — labdil ou, em árabe, ras-b-ras, cabeça por
cabeça — entre os filhos de dois irmãos, cada um dos quais desposa a irmã do
outro). A leitura masculina, quer dizer, dominante, que se impõe com uma ur­
gência particular em todas as situações públicas, oficiais, de homem a ho­
mem, em suma, em todas as relações de honra em que um homem de honra
fala a outro também de honra, privilegia o aspecto mais nobre, mais digno de
ser publicamente proclamado, de uma relação de várias faces, ligando cada
um dos indivíduos que se trata de situar aos seus ascendentes patrilineares e,
por intermédio destes, aos ascendentes patrilineares que lhes são comuns.
Deixa no impensado, recalca no impensável, quer dizer, no inominável, o ou­
tro caminho possível, por vezes mais directo, muitas vezes praticamente mais
fácil, e que consistiría em passar pelas mulheres: assim, a conveniência genea­
lógica exige que se considere que Zoubir desposou em Aldja a filha do filho
do irmão do pai do seu pai ou a filha da filha do irmão do seu pai, e não a filha
do irmão da sua mãe, ainda que, como é o caso, tenha sido esta última relação
a encontrar-se na origem do casamento (ver o esquema "caso 1", na página
anterior); ou ainda, para citarmos outro caso extraído da mesma genealogia,
quer que se veja em Khedoudja a filha do filho do irmão do pai do pai do seu
marido Ahmed, em vez de a tratar como uma prima cruzada (filha da irmã do
pai), o que ela também é (ver o esquema "caso 2", na página seguinte). Aleitu-
ra herética, que privilegia as relações através das mulheres, excluídas do dis­
curso oficial, é reservada às situações privadas, quando não à magia que,
como a injúria, designa o homem votado aos seus malefícios como "filho da
sua mãe" e não como "filho do seu pai". O parentesco pelas mulheres pode
ser percebido e professado, até mesmo por homens ou diante dos homens,
mas fora das ocasiões públicas, na intimidade doméstica; exceptuados os ca­
sos em que mulheres falam de relações de parentesco de uma mulher com
88 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

outras mulheres e em que a linguagem do parentesco pelas mulheres se im­


põe como óbvia, a mesma pode circular também na esfera mais íntima da
vida familiar, quer dizer, nas conversas de uma mulher com o seu pai e os seus
irmãos ou com o seu marido, os seus filhos, ou, em rigor, o irmão do seu mari­
do, assumindo em tais casos o valor de uma afirmação da intimidade do gru­
po dos interlocutores ao mesmo tempo que da pertença, pelo menos simbóli­
ca, da pessoa assim designada a essa intimidade. De facto, o etnólogo é bem o
único a entregar-se à busca pura e desinteressada de todos os itinerários pos­
síveis entre dois pontos do espaço genealógico: na prática, a escolha de um ca­
minho ou outro, masculino ou feminino, orientando o casamento segundo
uma ou outra linhagem, depende das relações de força no interior da unidade
doméstica e tende a redobrar, legitimada pela relação de força que a torna
possível. \
-5 O .0
D
Crenças colectivas e mentiras piedosas

Nada é mais difícil de definir que o estatuto do casamento com a prima para­
lela e os etnólogos teriam todas as justificações para jogar com os diferentes
sentidos da palavra "regra", se soubessem que, aparentando produzir a teo­
ria da prática indígena, se limitam a reproduzir um dos produtos mais acaba­
dos da dialéctica do usual e do oficial: o casamento com a prima paralela re­
presentará o ideal, quase nunca realizado na prática, do casamento consegui­
do ou uma norma ética (neste caso, dever de honra) que se impõe a todo o in­
divíduo em condições de casar, mas cuja transgressão é concebível (em caso
de força maior, por exemplo), ou ainda uma norma que se aplica de maneira
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 89

absoluta mas apenas em certas condições, ou, por fim, um simples "golpe" re­
comendado em certas situações? De facto, é tudo isto ao mesmo tempo, o que
o torna um objecto privilegiado de manipulação. No caso do casamento, as
estratégias de segunda ordem, que visem dissimular as estratégias e interes­
ses que procuram sob as aparências da obediência à regra, encontram o seu
princípio na ambiguidade de uma prática que é objectivamente passível de
uma dupla leitura, a leitura genealógica, que tudo encoraja, e a econômica e
política, que não se torna necessário sequer desencorajar, pelo menos no etnó­
logo, uma vez que suporia estabelecido o conhecimento completo das trocas
entre os grupos considerados. Mas a armadilha ideológica tem um fundo du­
plo e, aqui como noutros lugares, o ardor desmistificador mistifica-se a si pró­
prio quando se deixa arrastar pelo seu ímpeto: se tomarmos demasiado a sé­
rio os discursos indígenas, arriscamo-nos a apresentar um simples ecrã ideo­
lógico como norma ou regra da prática; se desconfiarmos excessivamente de­
les, arriscamo-nos a ignorar a função social da mentira socialmente ordenada
e encorajada, um dos meios de que os agentes dispõem para corrigir, por meio
apenas da sua habilidade, a qual lhes dá um domínio perfeito das estratégias
simbólicas, os efeitos das estratégias impostas.
É assim que os actos mais ritualizados na aparência da negociação ma­
trimonial e as manifestações cerimoniais que acompanham a celebração do
casamento e que, pela sua maior ou menor solenidade, têm por função secun­
dária declarar a significação social do casamento (sendo a cerimônia, a traços
largos, tanto mais solene quanto mais o casamento une famílias mais eleva­
das na hierarquia social e mais afastadas no espaço genealógico) representam
outras tantas ocasiões de desenvolver estratégias com vista a manipular o
sentido objectivo de uma relação nunca completamente unívoca, ou esco­
lhendo o inevitável e, fazendo da necessidade virtude, conformando-se es-
crupulosamente segundo as conveniências, ou mascarando a significação ob-
jectiva do casamento sob o ritual destinado a celebrá-lo.
Não há dúvida de que o casamento com a prima paralela deve a posição
eminente que ocupa no discurso indígena, e por consequência no discurso
etnológico, ao facto de ser o mais perfeitamente em conformidade com a re­
presentação mítico-ritual da divisão do trabalho entre os sexos, e, em particu­
lar, da função atribuída ao homem e à mulher nas relações entre os grupos.
Em primeiro lugar, porque constitui a afirmação mais radical da recusa de re­
conhecer a relação de afinidade enquanto tal, quer dizer, quando esta não se
apresenta como um simples redobrar da relação de filiação: gosta-se de elogiar
o efeito próprio do casamento entre primos paralelos, a saber, o facto de as
crianças dele provindas ("aqueles cuja extracção é sem mistura, cujo sangue é
puro" — mahd) poderem ser ligados à mesma linhagem passando pelo pai ou
pela mãe ("foi onde tinha a sua raiz que tomou os seus tios maternos" — ichat-
hel, ikhawel — ou ainda, em árabe, "o seu tio materno é o seu tio paterno" —
khalu 'ammií). Conhecemos, por outro lado, a liberdade que é (teoricamente)
90 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

deixada ao marido de repudiar a esposa, a situação de quase estrangeira que é


a da esposa exógena enquanto não produz um descendente varão e por vezes
mesmo depois de o ter feito, ou por fim a ambivalência da relação entre o so­
brinho e o tio materno (khal}:" A quem não tem inimigos basta esperar pelo fi­
lho da sua irmã" (quer dizer aquele que poderá sempre, desprezando a hon­
ra, reclamar a parte de herança da sua mãe). Mas a recusa de reconhecer a re­
lação de afinidade ("a mulher nem une nem se separa", thamattuth ur thazeddi
ur theferreq) encontra um reforço, senão um fundamento, na representação
mítica da mulher, através da qual a impureza e a desonra ameaçam introdu­
zir-se na linhagem. Nada de perfeitamente bom pode vir através da mulher;
ela só pode trazer consigo o mal ou o mal menor, sendo a sua maldade corrigida
apenas pela sua fraqueza ("Deus sabe o que criou com o burro; por isso não
lhe deu cornos"). Este mal menor, este bem no mal, é sempre pelo homem que
chega à mulher devido à sua acção correctiva e protectora. O mesmo é dizer
que a mulher nunca vale senão aquilo que valem os homens da sua linhagem.
E é dizer também que a melhor, ou a menos má das mulheres, é a que provém
dos homens da linhagem, a prima paralela patrilinear, a mais masculina das
mulheres — cujo limite, impossível produto de uma imaginação patriarcal, é
Atena, saída da cabeça de Zeus. "Desposa a filha do teu 'amm: se ela te morder,
pelo menos não te devorará." A prima paralela patrilinear, mulher cultivada
e corrigida, opõe-se à prima paralela matrilinear, mulher natural, torcida, ma­
léfica e impura, como ofeminino-masculino se opõe ao feminino-feminino, quer
dizer, segundo a estrutura (do tipo a: B: bl: b2), que organiza também o espa­
ço mítico ou do calendário agrário. Compreende-se que quando não se pode
anexar uma mulher à linhagem por intermédio de um antepassado masculi­
no e assimilá-la a uma prima paralela, prefere-se considerá-la como uma es­
trangeira, quer dizer, a filha de fulano (para exprimir a ausência total de rela­
ção genealógica, diz-se: "Que és tu para mim? Nem sequer o filho da filha da
irmã da minha mãe" — mis illis khalti).21 Compreende-se também que o casa­
mento com a filha do irmão do pai seja, entre todos, o mais abençoado e o mais
de molde a atrair as bênçãos sobre o grupo. Faziam-lhe desempenhar o papel
de um rito de abertura da época dos casamentos, encarregado, como o rito ho­
mólogo em matéria das lavras da terra, que incumbia em cada aldeia a uma
família reputada pela sua virtude e pela sua baraka, de exorcizar a ameaça en­
cerrada na posição em contacto do masculino e do feminino, do fogo e da
água, do céu e da terra, da relha e do sulco, sacrilégio inevitável.
Podemos ver uma confirmação indirecta da significação atribuída ao

21 J. Chelhod, que refere que, "na linguagem corrente de Alep, se chama às prostitutas 'fi­
lhas da tia materna"', cita também um provérbio sírio em que se manifesta a mesma desa­
provação perante o casamento com a filha da irmã da mãe: "Devido ao seu carácter impu­
ro, ele desposou a filha da sua tia materna" ("Le Mariage avec la cousine parallèle dans le
système arabe", loc. cit., pp. 113-173).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 91

casamento entre primos paralelos no facto de o personagem que realiza a


acção homóloga do casamento inaugural, esse que traz boa sorte na guerra
e no trabalho da terra, não desempenhar nenhum papel político e de o seu
cargo ser puramente honorífico ou, se se quiser, simbólico, quer dizer, ao
mesmo tempo ínfimo e respeitado. Este personagem dotado de baraka é de­
signado pelos nomes de amezwar (o primeiro), aneflus (o homem de confi­
ança) ou ainda aqãhim (o ancião), amghar (o velho), amas'ud (o afortunado),
ou mais precisamente, amezwar, aneflus, amghar nat-yuga (o primeiro, o ho­
mem de confiança, o velho da junta de bois ou do arado), mas o termo mais
significativo, pois diz explicitamente a homologia, manifestada em mil
outros indícios, entre a lavra e o casamento é incontestavelmente boula'ras
(o homem da boda), sendo é a mesma conotação que se lê na seguinte outra
designação, mefthah n ss'ad (a chave da sorte, aquele que abre). Émile
Laoust recorda que mais geralmente "os Berberes não empreendem qual­
quer acto colectivo, qualquer expedição, a não ser agrupados em torno de
um aneflus, quer dizer, um indivíduo com baraka... Assim, quando se orga­
niza uma caravana, os comerciantes e os viajantes agrupam-se em torno de
um aneflus n-umuddu, que é ao mesmo tempo o seu guia e aquele que lhes
trará sorte. Dá o sinal da partida e das paragens e é o primeiro a carregar e a
descarregar os animais. Com ele tem-se a certeza de se poderem percorrer
sem perigo as regiões até se chegar, são e salvo, ao fim da viagem. Em pe­
ríodo de perturbações, a tribo avança para o combate precedida pelo seu
aneflus elbarud, que crêem-no detentor de uma baraka graças à qual fica in­
vulnerável aos golpes do inimigo e protege os combatentes. É ele o porta­
dor de la'lam, o estandarte, e é ele quem dispara os primeiros tiros de espin­
garda, ao mesmo tempo que a sua presença na escaramuça é um penhor de
vitória. Aneflus elhadert, pelo seu lado, dá com o seu tamborim o sinal dos
cânticos nessas grandes reuniões, tinubga (os convites), entre tribos ami­
gas, no decurso das quais os bardos cantam gestas".22 A lavra inaugural é
efectuada na terra mais fértil, destinada às sementeiras mais nobres (trigo
e favas), na terra melhor, dedicada à cultura intensiva pelo afolhamento
trienal, sem pousio, fertilizada em cada início de ciclo, próxima da aldeia e
por vezes confinando com a casa pertencente ao patrimônio familiar mais
antigo, etc. No caso de o "portador de boa sorte" ter algum impedimento,
deve, apesar de tudo, estar presente; em todo o caso, nunca se confia o cui­
dado de rasgar o primeiro sulco a um jovem, a um criado ou a qualquer ou­
tro que não seja o senhor da terra na qual a lavra se inicia.
A projecção das categorias do pensamento mítico sobre as relações de
parentesco produz oposições que seriam relativamente irreais se as divisões

22 Cf. É. Laoust, Mots et choses berbères. Notes de linguistique et d'ethnographie, Paris, Challa-
mel, 1920.
92 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

que engendram não correspondessem a uma divisão fundamental da política


doméstica, a que opõe os interesses da mãe, levada a reforçar a sua posição na
sua casa de adopção e introduzindo na família uma mulher feminina-femini-
na, extraída da sua própria linhagem, e os interesses do pai, que, decidindo
como um homem, com os seus parentes masculinos, o seu próprio irmão ou
outro parente patrilinear, do casamento do seu filho reforça a unidade agnáti-
ca e no mesmo acto a sua posição na unidade doméstica. Com efeito, a mulher
importada (thislith), segundo esteja ligada ao pai do seu marido — e isso atra­
vés do seu pai e, de um modo mais geral, através de um homem ou da sua
mãe — ou à mãe do seu marido e, ainda nesse caso, por via do seu pai ou da
sua mãe, detém uma força muito diferente na relação com a mãe do seu mari­
do (thamgharth), a qual varia também, evidentemente, segundo a relação ge­
nealógica da thamgharth com os homens da linhagem (isto é, com o pai do seu
marido); assim, a prima paralela patrilinear encontra-se à partida numa posi­
ção de força quando tem de se confrontar com uma "velha" estranha à linha­
gem, ao passo que, pelo contrário, a posição da "velha" se poderá ver reforça­
da, nas suas relações com thislith, mas também, indirectamente, nas que
mantém com o seu próprio marido, uma vez que thislith é a filha da sua irmã
e, mais ainda, a filha do seu próprio irmão. O pai e a mãe têm interesses estru­
turalmente opostos (num certo sentido), o casamento dos seus filhos é a oca­
sião de um confronto necessariamente desequilibrado, uma vez que a mulher
não pode ter uma estratégia oficial, entre a mãe e o pai: este último tendendo a
privilegiar o casamento dentro da linhagem, ou seja, aquele que a representa­
ção mítica, legitimação ideológica da dominação masculina, apresenta como
a melhor escolha; e aquela levando a cabo, dentro da sua própria linhagem, as
suas diligências secretas, sendo o marido convidado, chegado o momento, a
confirmar oficialmente os resultados. As mulheres não desenvolverão mais a
sua engenhosidade e esforços na exploração matrimonial que a divisão de
trabalho entre os sexos lhes abandona a maior parte das vezes, pelo menos até
ao momento em que se pode instaurar o diálogo oficial entre os homens, se o
casamento dos filhos não contiver a virtualidade da subversão do seu poder,
e provocar assim uma crise da economia doméstica, com o resultado de domi­
nar as despesas e lides domésticas (lakha ukham, a vida da casa), o que signifi­
ca, em último caso, a ruptura da indivisão. Convém dizer a propósito que os
interesses do velho (amghar) e da velha (thamgharth) não são necessariamente
antagônicos: consciente da importância que apresenta para si a escolha de
uma jovem esposa (thislith) plenamente devotada a uma thamgharth ela mes­
ma fiel à linhagem, amghar poderá autorizar thamgharth a procurar na sua li­
nhagem uma rapariga dócil; mais, considerando toda a estrutura das relações
práticas entre os pais em cada relação particular, ele poderá deliberadamente
escolher para o filho a filha da própria irmã (prima cruzada patrilinear), ou
mesmo encorajar subtilmente, a sua mulher a casá-lo com a filha do seu irmão
(prima cruzada matrilinear) ao invés de reforçar os esforços de um irmão já
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 93

dominante (pela sua idade ou pelo seu prestígio) para aceitar a sua filha (pri­
ma paralela patrilinear).
O casamento com a prima paralela pode, em certos casos, impor-se
como uma necessidade que não seja a da regra genealógica. Com efeito, na
prática esse casamento ideal é muitas vezes uma escolha forçada que tenta­
mos apresentar como a escolha ideal, fazendo assim da necessidade virtude.
A "teoria" indígena, retomada com prontidão pelo direito, de que todo o indi­
víduo dispõe de uma espécie de "direito de preferência" sobre a sua prima pa­
ralela, não é senão uma outra expressão da ideologia da masculinidade que
concede ao homem a superioridade e, portanto a iniciativa, em todas as rela­
ções entre os sexos e em particular no casamento. Basta, com efeito, aproxi-
marmo-nos das situações reais da prática para nos darmos conta de que o ca­
samento com a prima paralela é apreendido como uma obrigação mais que
como um direito: "Não é de uso recusar a filha de ‘mm àquele que a pede em
casamento, mas é inconveniente para a honra de uma família que uma jovem
tarde a arranjar marido. Se esperar tempo de mais, o seu primo deve encarre-
gar-se dela, de acordo com o que dizem os provérbios" (Aít Hichem). "Deve
desposar-se a filha do tio paterno, ainda que ela tenha caído no abandono"
(Am Aghbel). E são numerosos os provérbios que apontam na mesma direc­
ção: "Vira com o caminho, se o caminho virar. Desposa a filha do teu 'mm, se
ela se vir abandonada (em pousio)." Variantes: "Toma o caminho, ainda que
com desvios; toma a filha do teu “amm ainda que abandonada", e "A filha de
‘amm, ainda que abandonada, o caminho da paz (seguro), ainda que desvia­
do." Como mostra a metáfora (o caminho torto que se opõe à estrada recta), o
casamento com a prima paralela é compreendido as mais das vezes como um
sacrifício imposto (à maneira do casamento com a viúva do irmão) que há in­
teresse em transformar em submissão electiva a um dever de honra: "Se não
desposares a filha do teu ‘amm, quem a tomará? Serás tu a tomá-la, queira-lo
ou não". "Ainda que seja feia e sem nada, o seu tio paterno deverá tomá-la
para o filho, forçosamente; se for procurar uma estranha para o seu filho e dei­
xar a filha do irmão, as pessoas rir-se-ão dele dizendo: 'Foi à procura de uma
estranha e abandonou a filha do irmão'. E, de facto, na prática, o casamento
com a prima paralela só assume a significação e a função ideais que lhe confe­
re o discurso oficial nas famílias integradas de modo suficientemente forte
para desejarem um tal reforço da integração, e só se impõe, em todo o caso, de
maneira absoluta em situações de força maior, como os da filha do amengur,
aquele que "falhou", que não teve herdeiro do sexo masculino. Em tal
eventualidade, o interesse e o dever conjugam-se para imporem o casamento
entre os primos paralelos, uma vez que o irmão do amengur e os seus filhos
herdarão em todo o caso não só a terra e a casa daquele que "falhou", mas
também as obrigações relativas às suas filhas (em particular em caso de viu­
vez ou de repúdio) e uma vez que, por outro lado, esse casamento é a única
maneira de afastar a ameaça à honra do grupo e talvez ao patrimônio que
94 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

seria o casamento com um estranho (awrith). O casamento entre os primos im­


põe-se com a mesma urgência quando se trata de "proteger" uma filha casada
tarde. "Quem tem uma filha e não a casa deve suportar essa vergonha" e
"Para aquele cuja filha cresce sem casar, mais vale morrer que viver" (Aín
Aghbel). Estas declarações obsessivamente repetidas em todas as conversas a
propósito do casamento entre primos mostram que, sendo a honra, e, portan­
to, também a desonra, indivisa, o dever do irmão do pai e do seu filho coinci­
dem, aqui ainda, com o interesse. O mesmo é dizer que, até em tais situa-
ções-limite em que a escolha da prima paralela se impõe com um rigor extre­
mo, não é necessário invocar a regra ética ou jurídica para dar conta de práti­
cas que são o produto de estratégias consciente ou inconscientemente orien­
tadas para a satisfação de um tipo determinado de interesses materiais ou
simbólicos. A moral da honra é a moral do interesse das formações sociais,
dos grupos ou das classes cujo patrimônio concede um lugar importante ao
capital simbólico: é preciso não se fazer a mínima ideia da perda terrível e du­
radoura que pode representar para um grupo um atentado contra a honra das
mulheres da linhagem para se fazer da obediência a uma regra ética ou jurídi­
ca o princípio das acções destinadas a prevenir, a dissimular ou a reparar a
ofensa.
Até mesmo nas situações extremas em que os princípios mais fundamen­
tais da prática estão sob a ameaça da transgressão, a designação estratégica da
situação e da réplica correspondente nunca se impõe com a necessidade abso­
luta de um imperativo ético. Basta que uma interrogação orientada por uma te­
oria adequada da prática consiga quebrar a estrutura da relação de inquérito
que leva os informadores a conferirem aos imperativos hipotéticos da estraté­
gia a forma dos imperativos categóricos da moral e a enunciar regras ou golpes,
como faz aquele que quer transmitir a um profano os rudimentos de um jogo,
para que possam exprimir-se os subterfúgios e as escapatórias que não são me­
nos institucionalizados que as "regras" correspondentes: "Alguns, para esca­
parem a um casamento imposto, põem-se em fuga, por vezes com a cumplici­
dade mais ou menos clara dos pais, que podem assim recusar o casamento (ou
quebrar a sua promessa) sem violação dos princípios: 'Olha, o nosso filho fu­
giu. Não podemos perder o nosso filho para conservarmos o nosso irmão'" (va­
riante: "Antes ele — o compromisso perante o irmão — que o meu filho").
Casamentos idênticos apenas sob o aspecto da genealogia podem ter
significações e funções diferentes, ou até mesmo opostas, segundo as estraté­
gias nas quais se inserem e que só podem ser reaprendidas ao preço de uma
reconstituição do sistema completo das relações entre os dois grupos associa­
dos e do estado num momento dado do tempo dessas relações. Quando dei­
xamos de nos ater aos casamentos já efectuados que o genealogista classifica e
conta para nos interessarmos pelas estratégias conscientes e inconscientes e
pelas condições objectivas que as tornaram possíveis e necessárias, quer di­
zer, pelas funções individuais e colectivas que preencheram, não podemos
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 95

deixar de nos dar conta de que dois casamentos entre primos paralelos po­
dem nada ter de comum segundo tenham sido concluídos em vida do avô pa­
terno, comum, e, eventualmente, através dele (com o acordo dos dois pais ou
"passando por cima deles"), ou, pelo contrário, através de um acordo directo
entre os dois irmãos e, neste último caso, segundo tenham sido concluídos
quando os futuros esposos eram ainda crianças ou, pelo contrário, estavam já
em idade de casar (para não falarmos da situação em que a filha ultrapassou
já essa idade); segundo os dois irmãos trabalhem e vivam separadamente ou
tenham mantido a indivisão total da exploração (terra, rebanhos e outros
bens) e da economia doméstica ("panela comum"), sem falarmos já do caso
em que mantêm apenas a aparência da indivisão; segundo seja o mais velho
(daddd) a dar a sua filha ao irmão mais novo ou, pelo contrário, a tomar a filha
deste, podendo a diferença de idade e sobretudo a condição resultante do
nascimento associar-se a desigualdades de condição social e de prestígio; se­
gundo o irmão que dá a sua filha tenha um herdeiro masculino, ou seja, amen-
gur; segundo os dois irmãos estejam vivos no momento da conclusão do casa­
mento ou apenas um deles e, mais precisamente, segundo o sobrevivente seja
o pai do jovem, protector designado da jovem que toma para o filho (sobretu­
do se a rapariga não tiver um irmão adulto), ou, pelo contrário, o pai da jovem
que pode usar a sua posição dominante para proceder desse modo à captação
de um genro. E como que para aumentar a ambiguidade deste casamento,
que só a cegueira satisfeita com os imponderáveis da arte de viver estrangeira
apreende como unívoco, não é raro, como vimos, que a obrigação de se sacri­
ficar na qualidade de "véu das vergonhas" e para proteger uma mulher sus­
peita ou caída em desgraça incumba a um homem do ramo mais pobre da li­
nhagem, cuja solicitude em cumprir um dever de honra relativo à filha do seu
'amm, ou até em exercer o seu direito de membro varão da linhagem, é fácil,
útil e honroso elogiar.23
Os informadores não param de recordar, pelas suas próprias incoerênci­
as e contradições, que um casamento nunca se deixa definir completamente
em termos genealógicos e que pode assumir significações e funções diferen­
tes e até mesmo opostas, segundo as condições que o determinam; que o casa­
mento com a prima paralela pode ser o pior ou o melhor dos matrimônios se­
gundo seja percebido como elective ou forçado, quer dizer, em primeiro lugar

23 As falhas físicas e mentais põem um problema extremamente difícil a um grupo que, no


seu rigorismo, não concede qualquer estatuto social a uma mulher sem marido ou mes­
mo a um homem sem mulher (devendo o próprio viúvo apressar-se a contrair um novo
casamento). E ainda mais porque são percebidas e interpretadas através das categorias
mítico-rituais: concebe-se o sacrifício que representa, segundo esta lógica, o casamento
com uma mulher canhota, zarolha, coxa ou corcunda (representando esta deformação a
inversão exacta da gravidez) ou tão-só enfermiça e frágil, sendo estes traços presságios
de esterilidade ou de maldade. Por vezes acontece que uma mulher seja repudiada por­
que a consideram portadora de desgraças.
96 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

segundo a posição respectiva das famílias na estrutura social. Pode ser o me­
lhor ("desposar a filha de 'amm é ter a boca cheia de mel"), e não só do ponto de
vista mítico mas também no plano das satisfações práticas, uma vez que é eco­
nômica e socialmente o menos oneroso — achando-se as negociações, as tran-
sacções e os custos materiais e simbólicos reduzidos ao mínimo —, ao mesmo
tempo que o mais seguro; usa-se, para opor o casamento próximo ao casamen­
to distante, a mesma linguagem por meio da qual se opõe a troca entre campo­
neses às transacções do mercado;24 pode ser também a pior das uniões ("O ca­
samento dos 'tios paternos'—azwaj el la'mum — azeda o meu coração; peço-te,
ó meu Deus, que me protejas dessa desgraça")25 e também a menos prestigiosa
quando se mostra como um mal menor ("Chegaram amigos que te ultrapas­
sam, e tu ficas, tu que és negro"), quer dizer, todas as vezes que se impõe como
o único meio de evitar a extinção de uma linhagem ou de salvaguardar os laços
familiares ameaçados, ou ainda quando é praticado por famílias pobres em ho­
mens e em terras. Em suma, a incoerência aparente do discurso dos informado­
res, na qual um objectivismo desdenhoso veria apenas uma propriedade cons­
titutiva da representação que qualquer agente forma da sua própria prática,
chama de facto a atenção para a ambiguidade fundamental de um casamento
unívoco genealogícamente (quer dizer, ideologicamente) e, no mesmo acto, para
as manipulações do sentido objectivo da prática è do seu produto que uma tal
combinação da ambiguidade e da univocidade autoriza.
A genealogia que aqui se apresenta sob uma forma simplificada (uma
vez que se suprimiram os casamentos, excepto entre VII5 e a filha de VII5) re­
presenta a estrutura do parentesco no momento do casamento considerado e
não inclui por isso os varões nascidos mais tarde.
A única vítima destas manipulações é, sem dúvida, o etnólogo, que, ar­
rumando na mesma classe todos os casamentos com a prima paralela patrili­
near (e assimilados), seja qual for a função que possa ter para os indivíduos e
grupos que os contraem, adopta práticas que podem diferir em muitos aspec­
tos dos quais o modelo genealógico abstrai (cf. árvore genealógica, supra).

24 "Dá-se trigo e traz-se aveia". "Dá-se o trigo a quem tem maus dentes". "Molda na tua argila a
tua progenitura, se não te vier ter às mãos uma panela, virá um tacho de cozer cuscuz". Entre
os elogios do casamento com a prima paralela que podemos recolher, chamaremos a atenção
para estes, particularmente típicos: "Não te pedirá muita coisa para ela e não terás de fazer
grandes gastos com o casamento". "Ele fará o que quiser com a filha do irmão e dela não lhe
virá mal algum. Depois, a unidade ficará mais forte com o irmão, de acordo com a recomen­
dação que o pai de ambos lhes fazia quanto à fraternidade (thaymats): 'Não deis ouvidos às
vossas mulheres!'". "A estranha desprezar-te-á, será um insulto para os teus antepassados,
considerando que os dela são mais nobres que os teus. Enquanto a filha de teu 'amm, o teu
avô e o dela são o mesmo e ela nunca dirá 'maldito seja o pai do teu pai'. A filha do teu 'amm
não te abandonará. Se não tiveres chá, não virá reclamar-to e ainda que morresse de fome em
tua casa, suportá-lo-ia e nunca se queixaria de ti."
25 A, Hanoteau, Poésies populaires de la Kabilie du Djurdjura, Paris, Imprimerie Impériale,
1867, p. 475.
98 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Bastará um exemplo para dar uma ideia das desigualdades econômicas e


simbólicas que podem dissimular-se sob a relação genealógica entre primos
paralelos classificatórios (filha de filho de irmão do pai do pai) e para ao mes­
mo tempo pôr em evidência as estratégias propriamente políticas que se de­
senvolvem a coberto da legitimidade dessa relação. Os dois cônjuges perten­
cem à "casa de Belaid", quer dizer, à descendência de Belaid n Ahmed u Be­
laid (Vi), grande família indivisa, uma das maiores da aldeia, tanto pelo seu
volume (ou seja, uma dezena de homens em idade de trabalhar no total de
uma quarentena de pessoas), como pelo seu capital econômico. Esta "casa"
deve a sua prosperidade a uma herança particularmente favorável, cuja his­
tória recorda que a distribuição do patrimônio material entre os herdeiros re­
sulta mais das relações de força entre os legatários ou entre os pretendentes
do que da estrita aplicação de uma norma jurídica. Por ocasião das duas rup­
turas de indivisão que provocou, a primeira cerca de 1875 ao recusar-se a acei­
tar a autoridade do seu tio, Hadji Belqacem (IV2), e obrigando o seu pai,
Ahmed (IVi), a separar-se do seu irmão mais novo, a segunda alguns anos
mais tarde, com os seus próprios irmãos (Mouloud, Tahar e Achour), Belaid
(V1) conseguiu arrogar-se de um certo número de privilégios usurpados: em
vez de deixar o seu pai sair da indivisão com uma quarta parte do patrimônio
de origem que lhe cabia de direito, exigiu para o seu pai uma terça parte do
patrimônio (quando uma divisão equitativa lhe teria atribuído uma quarta
parte, tal como ao seu irmão Hadj Belqacem); com os seus irmãos, invocou
como pretexto que a parte recebida por ocasião das partilhas anteriores era
apenas o "preço" pago para o excluir e comprar a paz e, apesar de múltiplas
pressões que mal lograram extorquir-lhe algumas pequenas parcelas medío­
cres, apropriou-se de uma parte muito superior à que lhe era devida em ter­
mos de estrita equidade. Assim, dotada desde a origem de um patrimônio su­
perior ao das famílias aparentadas, esta linha não parou de se engrandecer ao
longo das gerações por meio de aquisições tomadas possíveis pelo labor de
numerosos homens trabalhando todos os anos, na época das sementeiras, du­
rante mais de quarenta dias, as mais das vezes com dois arados e duas juntas
de bois. É também uma das últimas famílias da aldeia a poder exibir ainda to­
dos os antigos símbolos da riqueza e da grandeza camponesas: é assim que
continua a manter uma junta de bois, a possuir uma mula, um rebanho de
ovelhas que, por pequeno que seja, é o último da região, e sobretudo uma
vaca destinada apenas à produção de leite e foi assim que soube igualmente
manter em actividade as duas últimas azenhas de toda a região (uma de
Inverno, accionada pela corrente de um ribeiro e uma de Verão, movida pela
água de uma fonte permanente). A família deve o seu prestígio excepcional
ao facto de, a esta riqueza tradicional que foi a última a ter conservado pelos
lucros simbólicos que acarreta e também pelas relações econômicas não des-
piciendas que proporciona, ter sido a primeira a acrescentar toda uma série
de meios de produção, não menos prestigiados, oferecidos pela técnica
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 99

moderna (um tractor, em comum com outros associados), e por fim um esta­
belecimento comercial e uma grande casa de habitação de construção recente.
Dado que a indivisão nunca é mais que a divisão negada, recusada, as desi­
gualdades que separam as "partes" virtuais e os contributos respectivos das
diferentes linhas são intensamente sentidas: é assim que a linha de descen­
dentes de Ahmed, donde proveio o filho varão, é infinitamente mais rica em
homens que a linha de Youcef, donde proveio a descendente do sexo femini­
no e que, correlativamente, é mais rica em terras, uma vez que, por exemplo,
os três filhos de Amar (VII2) receberiam, em caso de partilhas, 1/12 do patri­
mônio comum (ou seja teoricamente 1 /36 para cada um dentre eles), ao passo
que, no mesmo nível genealógico, o único descendente de Youcef (VIUó) rece­
bería 1 /3. Da riqueza em homens, considerados como força de reprodução e,
portanto, como promessa de uma riqueza em homens maior ainda, é correla­
tive, na condição de se saber valorizar esse capital, todo um conjunto de van­
tagens das quais a mais importante é a autoridade na condução dos assuntos
internos e externos da casa: "A casa dos homens", costuma dizer-se, "ultra­
passa a casa dos bois" (adham irgazen ifakham izgaren). Aposição eminente
desta linha é designada pelo facto de ela ter sabido e podido retomar os pri­
meiros nomes dos antepassados da família, quer dizer, além dos Ahmed e do
Belaid, que alternam de geração em geração, o nome do mais remoto antepas­
sado, Amar, apesar de um pouco esquecido (VII2). O poder político pode as­
sentar, como se vê, sobre princípios diferentes da riqueza econômica, quer se
trate da riqueza em homens ou dessa forma particular de capital constituída
pelo perfeito domínio das estratégias políticas. Assim, na mesma linhagem, é
o terceiro irmão (VI3) quem representa o grupo em todos os grandes encon­
tros exteriores, conflitos ou solenidades, ao passo que o mais velho (Vii) é o
"sábio", aquele que, pelas suas mediações e os seus conselhos, garante a uni­
dade interna do grupo. O chefe da terceira linha (VII5) encontra-se totalmente
excluído do poder não tanto por causa da diferença de idade que o separa dos
seus tios (uma vez que os filhos de Ahmed—Vh —, apesar de muito mais no­
vos do que ele, são associados às decisões), mas sobretudo porque se excluiu a
si próprio da competição entre os homens, de todas as contribuições excepci­
onais e até mesmo, em certa medida, do trabalho da terra; tudo se passa como
se a sua condição de filho varão único e, além disso, privado de pai (tendo este
falecido pouco antes do seu nascimento) ou, como se diz, de "filho da viúva",
rodeado e acarinhado como única esperança da linhagem por toda uma comi­
tiva de mulheres (mãe, tias, etc.)e afastado devido à escola aos jogos e aos tra­
balhos das outras crianças, o predispusera e o dispusera a manter-se ao longo
de toda a sua vida numa posição marginal: de início alistado no exército, mais
tarde operário agrícola no estrangeiro, vale-se da posição favorável que lhe
garante a posse de uma parte importante do patrimônio contra um fraco nú­
mero de bocas a alimentar para se entrincheirar, desde o seu regresso à aldeia,
nos trabalhos de vigilância, de jardinagem e de manutenção (dos moinhos,
100 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

dos jardins e dos secadores de figos), trabalhos que exigem menos iniciativa e
envolvem menos responsabilidade, em suma, os menos masculinos dos tra­
balhos masculinos. Eis alguns dos elementos que devemos ter em conta para
compreendermos a função política, interna e externa, do casamento dos dois
primos, Belaid (VIII5), último filho de Amar (VII2), e Yamina, filha de Youcef
(VII5): através deste matrimônio, que os detentores do poder, Ahmed e
Ahcène, concluíram, como de costume, sem consultarem Youcef, deixando a
sua mulher protestar em vão contra uma união pouco lucrativa, a linha domi­
nante reforça a sua posição, estreitando os seus laços com a linha rica em ter­
ras e isso sem comprometer em nada o seu prestígio frente ao exterior, uma
vez que a estrutura do poder doméstico nunca é declarada lá fora e uma vez
que até mesmo o mais desprovido de bens dos membros da linhagem partici­
pa ainda da sua irradiação. Assim, a verdade completa de uma tal união resi­
de na sua dupla verdade, que supõe essa espécie de consciência ambivalente
por meio da qual um grupo pode satisfazer-se com a verdade oficial que pro­
põe a si próprio: a imagem oficial, a de um casamento entre primos paralelos
de uma grande família preocupada em manifestar a sua unidade através de
uma união bem de molde a reforçá-la, ao mesmo tempo que é capaz de teste­
munhar o seu apego à mais sagrada das tradições ancestrais e coexiste sem
contradição — e isso até mesmo entre os estranhos ao grupo, sempre dema­
siado informados, no seu universo de interconhecimento, para se deixarem
iludir pelas representações que se lhes oferecem — com o conhecimento da
verdade objectiva de uma união que sanciona a aliança forçada entre duas
unidades sociais ligadas quanto baste uma à outra negativamente, para o me­
lhor como para o pior, quer dizer, em termos genealógicos, para serem obriga­
das a juntar as suas riquezas complementares.
Poderiamos multiplicar até ao infinito os exemplos deste jogo duplo da
má-fé colectiva. Assim, num outro caso (cf. página anterior), é apresentado
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 101

como casamento entre primos paralelos, unanimemente elogiado, a união,


organizada pelo responsável da fracção dominante da linhagem (M'hamed)
entre um varão (Abderrezaq) de uma linha relativamente pobre e uma paren­
te relativamente afastada (a filha do filho do filho do pai do pai do seu pai),
oriunda de uma outra linha pobre, que, tendo o seu pai morrido sem descen­
dência masculina antes do seu casamento, se encontra sob a protecção da li­
nha dominante, moralmente encarregada de a casar: convidando o parente
pobre a cumprir as obrigações de longa data contraídas perante ela, a linha
dominante salva a honra por um custo mínimo, uma vez que evita ter de sa­
crificar assim um dos seus próprios homens ou pagar o preço de um casamen­
to exterior, ao mesmo tempo que liga à linhagem um homem que, tendo sido
criado pela sua mãe, viúva colocada sob a protecção do irmão do seu marido,
continua a sofrer a influência centrífuga da sua família materna e isso mais for­
temente ainda pelo facto de o seu irmão mais velho ter desposado uma mulher
dessa mesma família. Compreende-se que perante produtos tão acabados da
arte de mascarar as coacções e os interesses sob expressões apropriadas para
desviarem a hermenêutica espontânea em direcção aos móbeis menos reais,
mas mais confessáveis, da moral e do dever, o juízo colectivo vacile.
Não há caso em que o sentido objective de um casamento seja tão forte­
mente marcado que não deixe lugar para o disfarce simbólico. Assim, o casa­
mento daquele a quem chamam mechrut ("que é sob condição"), e por meio
do qual um homem desprovido de descendência masculina dá a sua filha em
casamento a um "herdeiro" (awritti) em troca de ele vir residir para sua casa,
só se encontra nos contos ou nos livros de etnografia sob a forma desta espécie
de compra de um genro, recrutado pela sua força de produção e de reprodu­
ção, que os princípios, mecanicamente aplicados, da visão cabila do mundo
levariam a ver nele.26 E os que a ele se referem, seja a propósito de que região
for, têm razão ao dizer que essa forma de casamento, desconhecida na sua ter­
ra, existe apenas noutras paragens: com efeito, o mais atento exame das gene­
alogias e das histórias de família não permite descobrir um único caso perfei-
tamente em conformidade com a definição indígena ("dou-te a minha filha,

____________

26 A paixão dos juristas pelas sobrevivências do parentesco matrilinear levou-os a interes­


sarem-se pelo caso do awrith, que perceberam, para falarmos a sua linguagem, como um
"contrato de adopção de indivíduo do sexo masculino, maior" (cf. para a Argélia, G. H.
Bousquet, "Note sur le mariage mechrouth dans la région de Gouraya", Revue Algérienne,
Janeiro-Fevereiro de 1934, pp. 9-11, e L. Lefèbvre, Recherches sur la Condition de la Femme
Kabyle, Argel, Carbonel, 1939; para Marrocos, G. Marcy, "Le Mariage en droit coutumier
zemmoür", Revue Algérienne, Tunisienne et Marocaine de legislation et Jurisprudence, Julho
de 1930; "Les vestiges de la parenté maternelle en droit coutumier berbère", Revue Africa-
ine, n.° 85, 1941, pp. 187-211; Capitaine Bendaoud, "L'adoption des adults par contrat
mixte de mariage et de travail chez les Beni Mguild", Revue Marocaine de Législation, Doc­
trine, Jurisprudence Chérifiennes, n.° 2,1935, pp. 34-40; Capitaine Turbet, "L'adoption des
adultes chez les Ighezrane", ibid., p. 40 e n.° 3,1935, p. 41).
102 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

mas tu virás para minha casa"), mas pode com igual legitimidade sustentar
que não há família alguma que não conte pelo menos com um awrith, mas um
awrith mascarado pela imagem oficial do "associado" ou do "filho adoptivo":
o termo awrith, o "herdeiro", não será um eufemismo oficial que permite no­
mear decentemente o inominável, quer dizer, aquele que não poderia ser de­
finido, no interior da casa, a não ser como o marido da sua mulher? E óbvio
que ao homem de honra, informado dos usos, se deparará a cumplicidade vi­
gilante do seu próprio grupo, se se esforçar por apresentar como adopção
uma união que, sob a forma cínica do contrato, representa a inversão de todas
as formas honrosas de casamento e que, a esse título, não é menos desonrosa
para o awrith ("é ele quem faz a desposada", como se costuma dizer) do que
para a família interessada a ponto de dar uma filha a uma espécie de criado
sem salário. E como não se apressaria o grupo a entrar no jogo das mentiras
interessadas que tendem a dissimular que não soube descobrir um meio hon­
roso de evitar ao amengur recorrer a tais extremos para evitar a "falência"
(lakhld) da sua família?
Mas as genealogias comportam também casos a propósito dos quais é
difícil compreender que beneficiem de uma cumplicidade semelhante. É as­
sim que se encontra na história social de uma linhagem prestigiada uma série
de captações de genros que não são percebidos nem declarados como mech-
rut, embora a sua anexação não seja imposta pela necessidade, mas, facto que
deveria redobrar o sentimento de escândalo, por um esforço quase metódico
visando aumentar o capital de homens. Sem dúvida, no caso do primeiro gen­
ro, a sua qualidade de marabu terá contribuído para fazer admitir o estatuto
de "filho adoptivo" que se entendia conceder-lhe, embora ele se tivesse posto
em situação de awrith ao vir morar com a família da mulher (sinal do ascen­
dente tomado por esta) depois de uma estada de alguns meses junto da sua
própria família (que lhe fora imposta a fim de se salvarem as aparências). Mas
nem por isso houve menos recurso a diferentes subterfúgios destinados a re­
solverem o problema da sua presença em casa: confiou-se-lhe a tarefa de mo­
leiro, o que permitia mantê-lo afastado e, como o que se faz em casos seme­
lhantes, a comida era-lhe levada ao moinho (de Verão ou de Inverno) de ma­
neira a que ele só se dirigisse a casa como um estranho. Depois foi discreta­
mente convidado pelos responsáveis da linhagem a trabalhar fora, solução
engenhosa que permitia guardar os ganhos ligados ao seu trabalho, fazendo
desaparecer a situação embaraçosa criada pela sua presença junto da família
da mulher. E se o filho que a mesma mulher, depois de enviuvar e de voltar a
casar, tinha tido do seu segundo marido e fizera voltar à sua própria linhagem
depois da morte daquele não se apresenta também como um awrith quando,
para o ligarem a si, os seus tios maternos o casam com uma órfã colocada sob a
sua protecção, é porque, criando "como filho deles" este quase filho (que con­
tinua a chamar-lhes khal e não dadda e que continua ainda a chamar-se Ahmed
u Agouni, do nome da aldeia do seu pai) e casando-o com uma das suas quase
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 103

filhas, os seus tios manifestam o suficiente a sua adesão à imagem oficial do


awrith como "herdeiro" e "filho adoptivo" de modo a imporem a sua presença
ao reconhecimento colectivo. Assim as estratégias de segunda ordem que, to­
das elas, tendem a transmutar relações úteis em relações oficiais e, portanto, a
fazer com que práticas que obedecem na realidade a outros princípios pare­
çam deduzir-se da definição genealógica, alcançam por acréscimo um fim im­
previsto, oferecendo uma representação da prática como que de molde a con­
firmar a representação que o etnólogo estruturalista forma da prática.

O comum e o fora do comum

Assim, longe de obedecer a uma norma que designaria, no conjunto da paren-


tela oficial, este ou aquele cônjuge obrigatório, a conclusão dos casamentos
depende directamente do estado das relações de parentesco usuais, relações
pelos homens utilizáveis pelos homens, relações pelas mulheres utilizáveis
pelas mulheres, e do estado do equilíbrio de forças no interior da "casa", quer
dizer, entre as linhagens unidas pelo casamento concluído na geração ante­
rior, que inclinam e autorizam a cultivar um ou outro campo de relações.
Se se admitir que uma das funções principais do casamento é reprodu­
zir as relações sociais das quais ele é produto, compreende-se imediatamen­
te que as diferentes espécies de matrimônio que se podem distinguir toman­
do por critério tanto as características objectivas dos grupos reunidos (a sua
posição na hierarquia social, o seu afastamento no espaço, etc.), como as da
própria cerimônia, e em particular a sua solenidade, correspondem de
modo muito estreito às próprias características dos diferentes tipos de rela­
ções sociais que as tornaram possíveis e que tendem a reproduzir. O paren­
tesco oficial, publicamente nomeado e socialmente reconhecido, é o que tor­
na possíveis e necessários os casamentos oficiais que lhe oferecem a única
ocasião de se mobilizarem praticamente como grupo e de reafirmarem as­
sim a sua unidade, tão solene e artificial ao mesmo tempo como as ocasiões
da sua celebração. O parentesco usual, quotidianamente mantido e utiliza­
do, é o terreno no qual se desenvolvem os casamentos comuns votados pela
sua própria frequência à insignificância do não marcado e à banalidade do
quotidiano. Assim, incapazes de se perpetuarem por si próprias a não ser
segundo o modo de existência um pouco irreal e artificial que é o das rela­
ções oficiais, estas relações usuais devem ser sem cessar utilizadas e assim re-
activadas para novas utilizações. E é lógico que um grupo consagre uma
parte tanto mais importante do seu trabalho de reprodução nas relações so­
ciais da reprodução às relações oficiais quanto mais alto se situa na hierar­
quia social, e portanto quanto mais rico é em relações dessa mesma espécie,
enquanto, pelo contrário, os grupos mais desfavorecidos, os parentes po­
bres, pouco podem despender em solenidades e se contentam por isso com
104 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

os casamentos comuns que o parentesco usual proporciona aos que são po­
bres em parentes oficiais.
Por entre as distorções inerentes à etnologia espontânea dos informadores,
a mais insidiosa reside, sem dúvida, no facto de essa etnologia conceder um lu­
gar desproporcionado aos casamentos fora do comum, que se distinguem dos
comuns por uma marca positiva ou negativa. Além dessas formas "curiosas"
que o etnólogo vê serem-lhe oferecidas com frequência pelo informador de boa
vontade, como o casamento por troca (abdal, dois homens "trocam" entre si as
suas irmãs), por "acrescento" (thirni, dois irmãos desposam duas irmãs, "acres­
centando-se" a segunda à primeira, ou o filho desposa a irmã ou até mesmo a fi­
lha da segunda mulher do seu pai), ou ainda por levirato, caso particular dos ca­
samentos por "reparação" (thiririth, de err, entregar ou retomar), o discurso indí­
gena designa os casos extremos: o casamento entre primos paralelos, que é o
mais conseguido em termos míticos, e aquele que une os grandes de duas tribos
ou de dois clãs diferentes, o qual é o mais conseguido em termos políticos.
É assim que o conto, discurso semi-ritualizado de função didáctica, sim­
ples paráfrase em forma de parábola do provérbio ou do ditado que lhe serve
de moral, retém exclusivamente os casamentos marcados e marcantes, ou
seja, em primeiro lugar os diferentes tipos de casamento com a prima parale­
la, quer tenham por fim preservar uma herança política ou evitar a extinção
de uma linhagem (no caso da filha única), e em seguida as más alianças mais
flagrantes, como o casamento do mocho e da filha da águia, modelo puro do
casamento de baixo para cima (no sentido social, mas também no sentido mí­
tico, opondo-se o alto ao baixo como o dia, a luz, a felicidade, a pureza, a hon­
ra se opõem à noite, à escuridão, à desgraça, à impureza e à desonra) entre um
homem situado na base da escala social, um awrith, e uma mulher oriunda de
uma família superior, e no qual a relação de assistência tradicional se acha in­
vertida devido à discordância entre as posições dos cônjuges nas hierarquias
social e sexual. É aquele que dá, neste caso o superior, que deve acudir em so­
corro daquele que tomou, neste caso o mais baixo — é a águia que deve assu­
mir o dever de cuidar do seu genro, o mocho, para lhe evitar uma derrota hu­
milhante na competição com as crias da águia, situação escandalosa denun­
ciada pelo provérbio: "Dar-lhe a filha e acrescentar-se trigo."
Contra estas representações oficiais, para as quais a própria tradição
etnográfica contribui ao consagrar as suas descrições apenas aos casos notá­
veis, esses que dão lugar ao desenrolar do cerimonial mais fora do comum,
como diz Weber, a observação e a estatística estabelecem que a grande maio­
ria dos casamentos, em todos os grupos observados, pertence à classe dos co­
muns, feitos as mais das vezes por iniciativa das mulheres, na área do paren­
tesco usual ou das relações usuais que os tomam possíveis e que eles contri­
buem para reforçar.27 Os casamentos concluídos dentro desta área, entre fa­
mílias unidas por trocas frequentes e antigas, segundo vias abertas há muito e
continuamente mantidas ao longo de gerações, são aqueles dos quais nada há
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 105

a dizer, como acontece com todas as coisas que foram sempre assim, aqueles
que não parecem ter outra função, exceptuada a reprodução biológica, além
da reprodução das relações sociais que os tomam possíveis.27 28 Tais casamen­
tos, que são geralmente celebrados sem cerimônia, estão para os casamentos
fora do comum—concluídos pelos homens entre tribos ou aldeias diferentes,
ou, mais simplesmente, fora do quadro do parentesco usual, e sempre selados
por isso mesmo com cerimônias solenes — como as permutas da vida co­
mum, os pequenos presentes (thuntichin) trocados pelas mulheres e que "te­
cem a amizade", estão para as trocas fora do comum das ocasiões também
fora do comum, dons solenes e solenemente proclamados (Ikhir), que incum­
bem ao parentesco de representação. Os casamentos fora do comum têm em
comum com o matrimônio entre primos paralelos (que se distingue sob esse
aspecto, e só sob esse aspecto dos casamentos comuns)29 o facto de excluírem
as mulheres, ao contrário do que se passa com os comuns que, incluem prati­
camente sempre a sua intervenção. Por oposição ao casamento concluído en­
tre os irmãos ou, em todo o caso, entre os homens da linhagem, com a bênção

27 A estatística dos casamentos contados numa grande família da aldeia de Aghbala (2.000
habitantes), na Pequena Cabília, revela que em 218 casamentos masculinos (o primeiro
para cada indivíduo) 34% foram contraídos com famílias situadas fora dos limites da tri­
bo e que apenas 8% destes casamentos, estabelecidos com os grupos mais afastados ao
mesmo tempo espacial e socialmente, apresentam todos os traços dos casamentos de
prestígio: são obra de uma só família que entende distinguir-se das outras linhas por
meio de práticas matrimoniais originais. Os outros casamentos longínquos limitam-se a
renovar relações já estabelecidas (relações "pelas mulheres" ou pelos "tios matemos ,
continuamente alimentadas por ocasião dos casamentos, das partidas e dos regressos de
viagem, dos lutos e por vezes até dos grandes trabalhos empreendidos). Dois terços dos
casamentos são concluídos na área da tribo (composta de nove aldeias) e, se exceptuar-
mos as alianças com o clã oposto, muito raras (4%), que têm sempre uma significação po­
lítica (sobretudo para as gerações antigas), em razão do antagonismo tradicional que
opõe os dois grupos, as outras uniões entram na classe dos casamentos comuns.
28 Eis um testemunho particularmente significativo: "Assim que teve o primeiro filho, Fati­
ma começou, portanto, a esforçar-se por lhe encontrar uma futura esposa, tentando di­
versas escolhas, sempre de olhos abertos, junto das vizinhas, junto da sua própria cepa,
na aldeia, junto dos amigos, nas bodas, nas peregrinações, na fonte, no estrangeiro e mes­
mo nas ocasiões de apresentação de pêsames em que era seu dever estar presente: foi as­
sim que casou todos os seus filhos sem problemas e como que sem dar por isso" (Yamina
Ait Amar Ou Said, Le Mariage en Kabylie, Ficha de documentação berbere, 1960, p. 10).
29 Se deixarmos de lado a idealização mítica (o sangue, a pureza, o interior, etc.) e a exalta­
ção ética (honra, virtude, etc.) que rodeiam o casamento puramente agnático, não se diz
destes casamentos comuns coisa diferente do que se afirma do matrimônio com a prima
paralela. Assim, a união com a filha da irmã do pai é considerada capaz de garantir, ao
mesmo título que o casamento com a prima paralela, a concórdia entre as mulheres e o
respeito da esposa pelos parentes do marido (o seu khal e a sua khalt), e isso pelo preço
mais baixo, uma vez que a tensão criada pela rivalidade implicitamente desencadeada
por qualquer casamento entre grupos estranhos a propósito do estatuto e das condições
de existência oferecidas à jovem esposa não surge onde se instaure nesse grau de familia­
ridade.
106 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

do patriarca, o casamento longínquo considera-se oficialmente como políti­


co: concluído fora do campo das relações usuais, celebrado por cerimônias
que mobilizam vastos grupos, não tem justificação a não ser de ordem políti­
ca, como podemos ver no caso-limite dos que se destinam a selar uma paz ou
uma aliança entre as "cabeças" de duas tribos.30 Mais correntemente, trata-se
do casamento do mercado, lugar neutro, donde as mulheres são excluídas e
onde as linhagens, os clãs e as tribos se encontram, sempre atentos e alerta. E
não é por acaso que é "publicitado" no mercado pelo pregão (berrah) ao con­
trário dos outros casamentos, que, reunindo apenas os parentes, excluem os
convites solenes, além de que trata a mulher como um instrumento político,
como uma espécie de penhor, ou como uma moeda de troca, apropriada no
que se refere à obtenção de lucros simbólicos. Ocasião de proceder à exibição
pública e oficial, portanto perfeitamente legítima, do capital simbólico da fa­
mília, de dar, se assim se pode dizer, uma representação do seu parentesco e de
aumentar por isso mesmo esse capital, à custa de despesas muito importan­
tes, obedece em todos os seus momentos à busca da acumulação de capital
simbólico. Assim, o casamento com um estrangeiro cortado do seu grupo e
refugiado na aldeia é totalmente desconsiderado, ao passo que o realizado
com um estrangeiro que reside longe é prestigioso porque dá testemunho do
longo alcance da irradiação da linhagem; do mesmo modo, ao contrário dos
casamentos comuns que seguem "traçados" de há muito abertos, os matri­
mônios políticos não são e não podem ser repetidos, porque a aliança se des­
valorizaria ao tomar-se comum e por isso banal. Sob este aspecto também, é
fundamentalmente masculino e opõe muitas vezes o pai e a mãe da desposa-
da, sendo a mãe menos sensível ao lucro simbólico visado e estando mais
atenta aos inconvenientes que o casamento poderá comportar para a sua fi­
lha, votada à condição de exilada (thaghribth, a exilada, a perdida para oeste).
"O casamento feito longe é o exílio" (azwaj lab' adh d'anfi); "Casamento no ex­
terior, casamento de exílio" (azwaj ibdrra, azway elghurba), dizem com frequên­
cia as mães cuja filha foi dada a um grupo estrangeiro no qual não conhece
ninguém (thamusni) e menos ainda tem parentes ainda que distantes (arriha,
um cheiro—de terra natal)—e é também o que canta a desposada que faz um
tal casamento de exílio; "Ò montanha, abre a porta à exilada. Que ela veja a
Lo

30 Estes casamentos fora do comum escapam às imposições e às conveniências que pesam


sobre os comuns (entre outras coisas, pelo facto de não terem "continuação"): fora dos ca­
sos em que o grupo vencido (clã ou tribo) dava ao grupo vencedor uma mulher e em que
os dois, para significarem que não havia vencedor nem vencido, procediam a uma troca
de mulheres, podia também acontecer que o grupo vencedor desse uma mulher ao outro
sem nada tomar em contrapartida, mas o casamento fazia-se então não entre as famílias
mais poderosas, mas entre as que ocupavam posições desproporcionadas, dando uma
pequena família do grupo vencedor uma mulher a uma grande família do outro grupo. O
grupo vencedor entendia marcar, através da própria disparidade da união, que o mais
pequeno dos seus era maior que o maior de entre os seus adversários.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 107

terra natal. A terra estrangeira é irmã de morte, para o homem como para a
mulher." Na medida em que põe em relação, por intermédio das famílias e
das linhagens directamente implicadas, vastos grupos, clãs ou tribos, é por
inteiro oficial e nada há na sua celebração que não seja estritamente ritualiza-
do e magicamente estereotipado: isto sem dúvida porque a parada é tão gra­
ve, os riscos de ruptura tão numerosos e tão grandes, que os implicados não
se podem fiar no improviso regulado dos habitus orquestrados e devem tor­
nar cada acção um acto de obediência a uma partitura.
Os casamentos concluídos nessa espécie de submercado privilegiado (o
do akkam), que a autoridade do antigo e a solidariedade dos agnatos constitu­
em em zona franca na qual toda a subida de lances e toda a concorrência se en­
contram excluídas à partida, distinguem-se, sem qualquer dúvida, por um
custo material e simbólico incomparavelmente mais fraco do que o dos casa­
mentos fora do comum. Durante a maior parte do tempo, a união impõe-se
como evidente e, quando assim não é, a intercessão discreta das mulheres da
família basta para a realizar. A celebração do casamento é reduzida ao estrita­
mente necessário: as despesas (thaqufats) acarretadas pela recepção do corte­
jo nupcial na família da jovem são muito pequenas (ou seja, a traço grosso,
dois decalitros de sêmola de trigo, meio litro de manteiga, café e açúcar, dez
quilos de carne comprada no mercado ou fornecida pelo animal sacrificado);
a cerimônia de imensi, durante a qual será prestado o dote de viuvez, agrupa
apenas (pelo menos para os casamentos concluídos no interior do parentesco
prático) os representantes mais importantes das suas famílias que se aliam
(ou seja, uma vintena de homens); o enxoval da noiva (ladjaz) reduz-se a três
vestidos, dois lenços e alguns outros objectos de empréstimo (um par de pe­
ças de calçado, um haik); o montante do dote de viuvez garantido pelo marido
— negociado antecipadamente em função daquilo que os parentes da noiva
deverão comprar no mercado a fim de dotarem a sua filha (um colchão, um
travesseiro, uma mala, a que se acrescentam as mantas, os produtos do artesa­
nato familiar, que se transmitem de mãe para filha)—é entregue sem grandes
cerimônias e sem bluff nem camuflagem (entre 15.000 e 20.000 francos anti­
gos); e, quanto às despesas da boda, são reduzidas ao mínimo, fazendo coin­
cidir a festa com o Aid: o carneiro tradicionalmente sacrificado nessa ocasião
cobre as necessidades da festa e muitos convidados, por essa altura retidos
nas suas próprias casas, comparecem. A estes casamentos comuns, que a ve­
lha moral camponesa rodeia de elogios (por contraste com aqueles que, como
"o das filhas de viúvas — thudjal —, ultrapassam os limites socialmente reco­
nhecidos a cada família), opõem-se os fora do comum, sob todos os aspectos.
Para se conceber a ambição de procurar longe uma esposa, é preciso estar-se
predisposto a fazê-lo pelo hábito de alimentar relações fora do comum e, por­
tanto, pela posse das aptidões, em particular linguísticas, que em tais oca­
siões são indispensáveis: é preciso dispor-se de um forte capital de relações
distantes, particularmente dispendiosas, que só elas podem fornecer as
108 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

informações seguras e proporcionar os mediadores necessários à conclusão


do projecto. Em suma, para se poder mobilizar esse capital no momento útil é
preciso ter-se investido muito e durante muito tempo. Assim, por exemplo,
para considerarmos apenas este caso, os chefes de família marabúticos a
quem se pede que sirvam de intercessores são pagos pelos seus serviços de
mil maneiras: o taleb da aldeia e, por maioria de razão, o personagem religioso
de condição mais elevada que participa no cortejo dos iqafafen é vestido e cal­
çado de novo pelo "senhor da boda", e os dons que lhe são tradicionalmente
oferecidos, em dinheiro por altura das festas religiosas, em víveres por altura
das colheitas, mostram-se de certo modo proporcionais à importância do ser­
viço prestado; o carneiro do Aid que lhe oferecem nesse ano não é senão uma
compensação pela "vergonha" (ihachem udhmis, cobriu o seu rosto de vergo­
nha) em que ele incorreu ao solicitar um leigo (que, por poderoso que seja,
não possui "no seu coração" a ciência corânica) e ao consagrar o casamento
por meio da sua fé e da sua ciência. Concluído o acordo (supondo que este não
tenha implicado uma thaj'alts paga a qualquer um dos parentes próximos da
rapariga), a cerimônia do "compromisso" (asarus, o depósito do penhor, thim-
risth), que tem a função de um rito de apropriação (a ay am, a designação, ou
ainda a'allam, a marcação, semelhante à da primeira parcela lavrada, ou me­
lhor, amlak, a apropriação ao mesmo título que a terra), é já por si só uma boda.
As pessoas chegam carregadas de presentes não só para a desposada (que re­
cebe o "penhor" que lhe é destinado, uma jóia de valor, e dinheiro de todos os
homens que a vêem nesse dia — tizrl), mas também para todas as outras mu­
lheres da casa; acrescentam-se-lhes víveres (sêmola, mel, manteiga, etc.), ca­
beças de gado, animais que serão degolados e consumidos pelos convidados
ou constituídos em capital da noiva. E são numerosos os que chegam, os ho­
mens da família anunciando a sua força por meio dos tiros de espingarda que
disparam, como no dia do casamento. Todas as festas celebradas no intervalo
que separa esta festa da boda são outras tantas ocasiões de cada um trazer à
thislith a sua "parte" (el haq): grandes famílias separadas por uma grande dis­
tância não podem contentar-se com trocar algumas travessas de cuscuz, ou­
tros presentes são adicionados segundo a medida daqueles que unem. Con­
cedida, quer dizer "dada" (athnafka: "foi dada"), "apropriada" (malkants:
"apropriam-se dela") e "recordada à memória" (thasivafkart "é lembrada")
através das múltiplas "partes" que lhe foram reservadas, a jovem nem por
isso se encontra adquirida: faz-se um ponto de honra de conceder à sua famí­
lia o tempo que lhe agrade esperar e fazer esperar. A celebração do casamento
constitui evidentemente o ponto culminante do afrontamento simbólico dos
grupos e também o momento das despesas mais fortes. Enviam-se à família
da rapariga thaqufats, ou seja, dois quintais de sêmola e meio de farinha, pelo
menos, carne (de animais por abater) em abundância — mas da qual se
sabe que não será completamente consumida —, mel (20 litros), manteiga
(10 litros). Cita-se um casamento em que foi levado para casa da noiva um
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 109

vitelo, cinco carneiros por abater e uma carcaça de carneiro (ameslukh). A


delegação dos iqafafen era, é certo, de quarenta homens portadores de es­
pingardas, aos quais se devem somar todos os parentes e todos os notáveis
que a idade dispensa de dar tiros, ou seja, uma cinquentena de homens. O
enxoval da desposada, que em casos assim pode contar mais ou menos
trinta peças, é redobrado por outras tantas oferecidas às outras mulheres
da família e, se se ouve com frequência dizer que entre grandes não há
chrut (condições exigidas pelo pai para a sua filha antes de conceder a sua
mão), é porque o estatuto das famílias constitui em si próprio uma garantia
de que as "condições" explicitamente, de outro ponto de vista, estipuladas
serão aqui em todo o caso excedidas. Embora o montante do "dote da viú­
va" seja sempre submetido a um controlo social rigoroso, os casamentos
excepcionais podem ignorar os limites tacitamente impostos pelo grupo. É
o que provam as fórmulas que são hoje lançadas como desafios: "Por quem
te tomas? Pela de catorze (am arba'tach)?", alusão aos catorze reais que paga­
vam o dote da viúva da mulher mais cara, aquela que soube tornar-se a
dona da casa da família mais rica, mais numerosa em homens. Para as mu­
lheres casadas entre 1900-1910, a mesma expressão atribui-lhes um dote de
viúva de 40 douros, que, segundo as equivalências populares (tivemo-la
pelo "equivalente de duas juntas de bois", elhaq nasnath natsazwijin), devia
representar o preço de duas juntas de bois; nas vésperas da Segunda Guer­
ra Mundial, o montante normal do dote da viúva situava-se à volta de
2.000 francos. Um casamento prestigioso celebrado em 1936 com muito
fasto, na presença da quase totalidade dos homens da tribo (com um grupo
de tbal que actuou durante três dias e duas noites), custou ao seu responsá­
vel, para além dos gastos líquidos, o valor de uma das suas melhores terras
(com quatro jornadas de lavra), além de sacrificar, para alimentar os convi­
dados, dois bois, um vitelo e seis carneiros. De facto, o custo econômico é,
sem dúvida, pouca coisa por comparação com o custo simbólico de imensi.
O ritual da cerimônia da entrega do dote da viúva é ocasião de um afronta-
mento total dos dois grupos, no qual a parada econômica em jogo é apenas
um índice e um pretexto. Exigir um dote da viúva elevado pela filha ou pa­
gar um grande dote da viúva para casar o filho é, num e noutro caso, uma
afirmação de prestígio e, por isso mesmo, uma aquisição também de pres­
tígio: todos entendem provar o que "valem", ou fazendo ver por que preço
os homens de honra, que sabem apreciar, calculam a aliança, ou manifes­
tando com brilho por que se avaliam através do preço que estão dispostos a
pagar para terem parceiros dignos de si próprios. Por uma espécie de rega­
teio invertido, que se dissimula sob as aparências exteriores de um rega­
teio comum, os dois grupos põem-se tacitamente de acordo para fazerem
subir o montante do dote da viúva, porque têm o mesmo interesse em ele­
var esse índice indiscutível do valor simbólico dos seus produtos no merca­
do das trocas matrimoniais.
Notas: este quadro sinóptico das características pertinentes do cerimonial correspondente a cada
um dos tipos de estratégia matrimonial não deve fazer esquecer que um dos princípios das estratégias
de segunda ordem consiste em dar à celebração de um casamento de um tipo determinado pelo menos
certos traços de uma união reveladora de um grau superior de solenidade; (1) Aqalab: a busca
(da rapariga), é um assunto que compete exclusivamente às mulheres (excepto quando acontece que
a busca seja simulada por fins estratégicos); (2) Anqadh: o exame (da rapariga), o “exame" da rapariga
(confiado a uma velha, próxima da família) ocorre quando não se sabe nada da família e não é possível
obter informações indirectas. Pode-se ver no facto de se oferecer de beber à “examinadora”, e no facto
de ela aceitar beber, um índice das disposições favoráveis das mulheres ao casamento projectado;
(3) Assiwat wawal: a “declaração das intenções”, a operação que consiste em “fazer chegar à fala”
marca o início do processo de negociação, nos casamentos distantes. Se a resposta não for dada
imediatamente, deixará de poder ser negativa, sob pena de injúria. Exceptuados esses casos, este
primeiro acto é já um pedido que nem sequer chega a dissimular-se; (4) Akhtatr. o pedido oficial, quase
só alusivo, por vezes num registo de gracejo, formulado explícita e directamente pelo próprio
responsável do casamento na área das relações práticas; precedido por longas diligências secretas
no caso dos casamentos fora do comum; (5) Ahallal: a intercessão dos mediadores (inattafen), fora das
relações de parentesco, há um preço a “pagar” em homenagens, em solicitações (apresentadas por
mediadores cada vez mais altamente colocados nas relações genealógicas e na hierarquia do prestígio);
(6) Aqbal: o acordo, é tanto mais solene quanto mais tempo se fez esperar; (7) Asarus af thislith:
o “compromisso da noiva”, esta cerimônia, que só ocorre na ausência de relação de parentesco
e quando o casamento tem de ser diferido, torna-se uma espécie de “pequena boda" nos casamentos
fora do comum; (8) Elhaq n'thislith: a parte da desposada, dom obrigatório, solene (por si próprio
e em razão das ocasiões que impõem pensar na jovem, as grandes festas anuais), dispendioso nas
relações entre grupos afastados; modesto, mas mais frequente, mal se distinguindo das múltiplas
espécies de presentes que as mulheres comummente trocam umas com as outras (gêneros alimentares)
na área das relações práticas (anel, cinto, etc.); (9) Amlak thislith: a noiva comprometida, trata-se
do intervalo de tempo que corre entre o “compromisso" e a celebração do casamento. Nos matrimônios
afastados, a família da rapariga prolonga o máximo tempo possível este período a fim de conservar
a vantagem que tem sobre os seus parceiros; (10) Ahay. os preparativos, menos importantes no caso
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 111

dos casamentos comuns, cerimônias femininas e ritos propiciatórios (como para a primeira lavra: prato
de favas e trigo cozidos; festa da chegada da noiva e do animal a imolar); primeiras manifestações
solenes anunciando oficialmente o casamento no interior da “casa” ou da parentela próxima (11)
Aghrum: o “biscoito", refeição que o grupo dos parentes oferece à família do jovem (e por vezes também
da jovem) com todos os indivíduos designados para fazerem parte do cortejo (iqafafen)-, (12) Aquffi:
o cortejo, a escolta que vai buscar a noiva é tanto mais importante e é integrada por homens tanto mais
prestigiados quanto mais fora do comum é o casamento, (13) Awran: os presentes (“a farinha”), nos
grandes casamentos, a delegação dos velhos da farinha (imgharen wureri), cujos membros são
escolhidos (em particular as mulheres) com escrúpulo, parte com grande pompa, com uma mula que
carrega, bem à vista de todos, os presentes; (14) Imensr. a ceia, refeição durante a qual os dois grupos
se encontram na sua totalidade e procedem à entrega do dote da viúva. Simples encontro entre parentes
e “íntimos" nos casamentos comuns, que dão lugar ao pagamento de um dote da viúva relativamente
fraco, ou apenas simbólico (em caso de casamento no interior da família indivisa), o imensi é um
afrontamento de honra, marcado por torneios oratórios nos casamentos de prestígio, em que o dote
da viúva pode atingir somas muito elevadas; (15) Atbah os músicos profissionais, trata-se da maior
celebração que se pode fazer de um casamento: incompatível com um casamento que una duas famílias
aparentadas, torna-se nesse caso objecto de reprovação; (16) El barudh: a “pólvora", os tiros de
espingarda, prática generalizada até mesmo quando não há cortejo nupcial; (17) El ghart o tiro ao alvo,
nos encontros com grupos estrangeiros, é uma questão de honra “fazer tocar” o alvo, pousado, como um
desafio, no caminho dos homens do cortejo. Nos casamentos comuns, tudo se torna um simples jogo
entre parentes e íntimos; (18) A'arut. os convites; (19) Achachchr. a distribuição dos “pratos”, limita-se
ao conjunto dos parentes nos casamentos comuns.
20 El khir. os dons em dinheiro (oferecidos à noiva e ao noivo); (21) Lahdhiyath: os presentes
(oferecidos às mulheres da família da desposada), a participação das mulheres nas cerimônias (urar,
cantos e danças com as quais festejam a noiva, aplicação da alfena e preparativos da noiva em sua
casa, aplicação da alfena em casa do noivo, etc.) é quase invariável seja qual for o grau de solenidade
do casamento.
O

Todavia, a oposição entre o muito próximo e o muito distante dissimula


uma outra que contribui para conferir ao casamento com a prima paralela a sua
ambiguidade. Os matrimônios mais longínquos são totalmente desprovidos
de equívoco, uma vez que, até uma época recente, pelo menos, estava fora de
questão a possibilidade de casar longe por razões negativas, quer dizerm, à fal­
ta da possibilidade de o fazer perto; como todos os casamentos próximos, o en­
lace com a prima paralela, o único que é positiva e oficialmente marcado entre os
casamentos comuns, pode assumir significações opostas, conforme seja electi­
ve ou forçado. Se se encontra por vezes entre os que se distinguem por uma
marca de distinção positiva e electiva, aparece também nas linhagens mais po­
bres ou nas linhas mais pobres das linhagens dominantes (os clientes), que, re­
correndo a este tipo de união, o qual é o mais econômico, livram o grupo pelo
custo mínimo (quanto mais não seja evitando as alianças desonrosas) da obri­
gação de casarem dois dos seus membros particularmente desfavorecidos no
mercado matrimonial. Tendo sempre por efeito objective o reforço da integra­
ção da unidade mínima e correlativamente a sua distinção por referência às ou­
tras unidades, é sobretudo preferido por grupos caracterizados por uma forte
vontade de afirmarem a sua integração negativa, quer dizer, a sua distinção. Tal­
vez se encontre predisposto, pela sua ambiguidade funcional, a desempenhar
o papel de bom casamento do pobre: compreender-se-ia então que fosse utili­
zado sobretudo por aqueles que, à maneira do nobre arruinado incapaz de
marcar a não ser no terreno simbólico a sua preocupação de não se ver
112 ESBOÇO DE DMA TEORIA DA PRÁTICA

desqualificado, descobrem na afectação do rigorismo um meio de afirmarem a


sua distinção pelo preço de uma espécie de negação dupla, como esta ou aquela
linha cortada do seu grupo de origem e preocupada com a manutenção da sua
originalidade, esta ou aquela família que pretende afirmar os traços distintivos
da sua linhagem por uma exacerbação das exigências de rigor (é quase sempre
o caso de uma família particular nas comunidades marabúticaí), este ou aquele
clã que entende marcar a sua distinção frente ao clã oposto por meio de um res­
peito mais rigoroso das tradições (é o caso dos Ait Madhi em Ait Hichem), etc.
Na medida em que pode mostrar-se como o mais sagrado dos casamentos e,
em certas condições, também o mais "distinto", é a forma de matrimônio fora
do comum que se torna acessível por menor custo, sem obrigar a despesas com
a cerimônia, nem a entrar em negociações aventurosas, ou a pagar um dote da
viúva demasiado avultado: assim não há maneira mais conseguida de fazer da
necessidade virtude, de os membros de um grupo se porem em regra, quer di­
zer, de acordo com a norma, de nada fazerem que contrarie a crença segundo a
qual é a regra o princípio da acção.
Contudo, um casamento, seja ele qual for, só ganha o seu sentido por re­
ferência ao conjunto dos matrimônios possíveis (quer dizer, mais concreta­
mente, por referência ao campo dos parceiros possíveis); noutros termos, si­
tua-se num continuum que vai do casamento entre primos paralelos ao que se
realiza entre membros de tribos diferentes, que é o mais arriscado mas tam­
bém mais prestigioso, e acha-se, portanto, necessariamente caracterizado sob
os dois aspectos por um certo grau de reforço da integração e um certo grau
de alargamento das alianças. Estes dois casamentos marcam os pontos de in­
tensidade máxima dos dois valores que todo o matrimônio se esforça por ma­
ximizar, ou seja, por um lado, a integração da unidade mínima e a segurança
e, por outro, a aliança e o prestígio, quer dizer, a abertura para o exterior, ori­
entada para os estrangeiros. A escolha entre a cisão e a fusão, entre o dentro e
o fora, entre a mutualidade como partilha dos recursos comuns e a reciprocidade
como troca de recursos distintos mas equivalentes, entre a segurança e a
aventura, impõe-se a propósito de cada casamento: se assegura o máximo de
integração ao grupo mínimo, o enlace com a prima paralela não faz mais do
que redobrar a relação de filiação por meio da relação de aliança, desperdi­
çando assim, com essa espécie de redundância, esse poder de criar alianças
novas que o casamento representa; o matrimônio longínquo, pelo contrário,
só pode proporcionar alianças prestigiosas sacrificando a integração da li­
nhagem e a relação entre os irmãos, fundamento da unidade agnática, é isto o
que o discurso indígena repete obsessivamente. O movimento centrípeto,
quer dizer, a exaltação do interior, da segurança, da autarcia, da excelência do
sangue, da solidariedade agnática, suscita sempre, ainda que para se lhe
opor, o movimento centrífugo, a exaltação da aliança de prestígio. Sob as apa­
rências do imperativo categórico dissimula-se sempre o cálculo do máximo e
do mínimo, a busca do máximo de aliança compatível com a manutenção ou o
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 113

reforço da integração entre os irmãos. Mostra-o bem a sintaxe do discurso,


que é sempre a da preferência: "Mais vale esconder o ponto de honra que reve­
lá-lo aos outros"; "Não sacrifico adhrum (a linhagem) a aghrum (o biscoito)";
"O dentro é melhor que o fora"; "Primeira loucura (audácia, golpe arriscado):
dar a filha de 'mm aos outros homens; segunda loucura: ir ao mercado sem
bens; terceira loucura: rivalizar com os leões no alto das montanhas". Este úl­
timo ditado é o mais significativo, uma vez que, sob as aparências de uma
condenação absoluta do casamento longínquo, reconhece expressamente a
lógica em que ele se situa, a da proeza, da façanha, do prestígio. São necessári­
os um prestígio enorme e uma audácia louca para que alguém se dirija ao
mercado sem dinheiro na intenção de aí comprar bens, do mesmo modo que é
necessária uma grande coragem para desafiar os leões, os estrangeiros corajo­
sos aos quais os fundadores da cidade devem arrancar a sua mulher, segundo
contam numerosas lendas.

Estratégias matrimoniais e reprodução social

As características de um casamento e, em particular, a posição que este ocupa


num ponto determinado do continuum que vai do matrimônio político ao que
envolve a prima paralela dependem dos objectives que a estratégia colectiva
se propõe como integração dos fins conferidos ao casamento considerado pe­
los diferentes agentes interessados e dos meios que esses agentes podem pôr
ao serviço dessa estratégia; mais precisamente, dado que os próprios objecti­
ves dependem de modo muito estreito dos meios disponíveis, a análise das
operações que conduziram aos diferentes casamentos remete para a análise
das condições que deviam ser preenchidas para que esses enlaces fossem pos­
síveis, quer dizer, concebíveis e realizáveis: à maneira de uma partida de car­
tas, cujo desfecho depende, por um lado, da distribuição do jogo, das cartas
que cada um tem (sendo o próprio valor dessas cartas definido pelas regras
do jogo, características da formação social considerada), e, por outro, da habi­
lidade dos jogadores, a lógica e a eficácia das estratégias matrimoniais depen­
dem, por um lado, do capital material e simbólico de que dispõem as famílias
em presença, quer dizer, mais precisamente, da sua riqueza em instrumentos
de produção e em homens, sendo estes últimos considerados ao mesmo tem­
po como força de produção e de reprodução, como força política, e por isso
como força simbólica, e, por outro, da competência que permite aos responsá­
veis por estas estratégias maximizarem o lucro proporcionado por uma colo­
cação hábil do capital, ou seja, do domínio prático da axiomática econômica
(no sentido mais amplo do termo) implicitamente inscrita num modo de pro­
dução determinado, que é a condição da produção das práticas consideradas
como "razoáveis" no interior do grupo e positivamente sancionadas pelas
leis objectivas do mercado (tanto dos bens materiais, como dos simbólicos). A
114 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

estratégia colectiva que levou a este ou àquele "golpe" (no caso do casamento
ou em qualquer outro domínio da prática) não é mais que o produto de uma
combinação das estratégias dos agentes interessados, que tendem a conceder
aos respectivos interesses o peso correspondente à sua posição no momento
considerado na estrutura das relações de poder doméstico. E notável, com
efeito, que as negociações matrimoniais sejam realmente um assunto que en­
volve a totalidade do grupo, jogando cada um o seu jogo no momento próprio
e podendo por isso contribuir para o êxito ou o fracasso do projecto: são de
início as mulheres, encarregadas de contactos oficiosos e revogáveis, que per­
mitem encetar as negociações semioficiais, conduzidas pelos homens, sem
que haja o risco de uma rejeição humilhante; são os notáveis mais representa­
tivos do parentesco de representação que, agindo enquanto garantes expres­
samente mandatados da vontade do seu grupo e enquanto porta-vozes explici­
tamente autorizados, contribuem com a sua mediação e a sua intercessão ao
mesmo tempo que com um testemunho evidente do capital simbólico de uma
família capaz de mobilizar homens de tanto prestígio; são em última análise
os dois grupos na sua totalidade que intervém na decisão submetendo a uma
discussão apaixonada os projectos matrimoniais, os relatos do acolhimento
concedido às propostas dos delegados e a orientação a dar às negociações ul-
teriores. O mesmo é dizer de passagem e em intenção dos etnólogos — sen­
tem satisfeitos depois de terem caracterizado um casamento apenas pela sua
determinação genealógica — que, através da representação quase teatral que
o parentesco de representação oferece por ocasião do casamento, os dois gru­
pos procedem a um inquérito sistemático visando estabelecer o universo
completo das variáveis características não só dos dois cônjuges (idade e so­
bretudo diferença de idade, história matrimonial anterior, condição de nasci­
mento, relações de parentesco teórico e prático com o detentor da autoridade
na família, etc.), mas também do seu grupo, a saber, a história econômica e so­
cial das famílias que se aliam e dos grupos mais amplos a que elas pertencem,
o patrimônio simbólico e nomeadamente o capital de honra e de homens de
honra de que dispõem, a qualidade da rede de alianças com a qual podem
contar e dos grupos aos quais tradicionalmente se opõem, a posição da famí­
lia no seu grupo—particularmente importante porque a exibição de parentes
de prestígio pode dissimular uma posição dominada por um grupo eminente
—, o estado das relações que mantém com os outros membros do seu grupo,
quer dizer, o grau de integração da família (indivisão, etc.) e a estrutura das
relações de força e de autoridade na unidade doméstica (e em particular,
quando se trata de casar uma filha, no universo feminino), etc.
As práticas observadas numa formação social orientada para a reprodu­
ção simples dos seus próprios fundamentos — quer dizer, para a reprodução
biológica do grupo, a produção da quantidade de bens necessários à sua sub­
sistência e, indissociavehnente, a preservação da estrutura das relações sociais
e ideológicas nas quais e pelas quais se efectua e se legitima a actividade de
parentesco como representação e como vontade 115

produção podem ser analisadas como o produto das estratégias (conscientes


mconscientes) por meio das quais os indivíduos ou os grupos visam satisfa-
2er
m ,°S.1I)l^eresses rnateriais e simbólicos associados à posse de um patrimônio
nio ena 6 S'rn^’°^co' tendendo assim a assegurar a reprodução desse patrimó-
difer n? mesrno act°z da estrutura social. Mais precisamente, as estratégias das
e categorias de agentes cujos interesses podem opor-se no interior da
u- s
• orriéstica (entre outras ocasiões, por altura do casamento) têm por
Cipi° °S sistenrtas
na^ de interesses que lhes são directamente associados pela
cíd’ reZa 6 PeI° val°r
do patrimônio que detêm, ou seja, pelo sistema dos prin-
didad C°n^p U^vos de um modo de reprodução determinado que regem a fecun-
ez a liação, a residência, a herança e o casamento e que, concorrendo

ra preencherem a mesma função, a saber, a reprodução biológica e social do


grupo, se concertam objectivamente.31

rla , Numa economia caracterizada pela distribuição relativamente igualitá-


■ pS ^ei°S Produção (as mais das vezes detidos em regime de indivisão
clue 1 ® Pe^a fraqueza e estabilidade das forças produtivas, que ex-
d ern a Pr°dução e a acumulação de excedentes importantes e, portanto, o
(emb^0 Vlmento de uma diferenciação econômica nitidamente marcada
uma f posJarnos ver nas prestações de trabalho das "corveias-entreajudas"
. Or^na de venda da força de trabalho), a exploração familiar
lore P lm 3 manuten?ao e a reprodução da família, e não a produção de va-
exem S quiser a tod° o preço ver em thiwizi (ajuda) uma corveia (a fim, por
j
]. . P °'. e rne^or fazer entrar a realidade nos quadros de uma definição re-
fact rei 1Ca<^a d°s rnodos de produção), deve-se pelo menos ter em conta o
r-°. e e®sa corveia se disfarçar de entreajuda. No plano dos factos, a thiwizibe-
icia so retudo os mais ricos e também o taleb (cuja terra é lavrada e semea-
a em
comum); os pobres não precisam de ajuda nas suas colheitas, mas a thi-
i po e também beneficiar um pobre no caso da construção de uma casa
tc^dnS^orte e.Pe<^ras e v*8as)- "Uma pessoa respeitada pede thiwizi para cer­
ia. s participantes são alimentados em casa de manhã, antes de partirem
para o tra alho. É-lhes dada também mais comida, que levam consigo. Pode
acon ecer que seja chamada toda a aldeia por ocasião de uma grande apanha
azei ona, o que representa uma despesa bastante avultada [...]. O homem
que e a esagradado é excluído da thiwizi: é proibido ajudá-lo, ainda que
apenas a carregar a sua mula. A entreajuda (thiwizi) é indispensável e o ho­
mem posto de lado nada pode fazer" (Beni Aídel). Pôr alguém de quarentena
e uma sanção terrível e que não se limita a ser simbólica: dada a deficiência
ecmcas, numerosas actividades seriam impossíveis sem a ajuda do
grupo (assim a construção de uma casa, com o transporte das pedras, ou o

As falhas dos mecanismos de reprodução, quer dizer, a má aliança matrimonial, a esterili-


acaPeta a extinção da linhagem e a ruptura da indivisão constituem, sem dúvida,

c ores principais das transformações da hierarquia econômica e social.


116 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

das mós do moinho que mobilizava cerca de quarenta homens que se reve­
zavam sem parar durante vários dias); além disso, nesta economia da inse­
gurança, um capital de serviços prestados e de dons outorgados constitui a
melhor e a única garantia contra as "mil contingências" das quais depen­
de, como Marx faz notar, a conservação ou a perda das condições de traba­
lho, desde o acidente sofrido por um animal às tempestades brutais que
destroem a colheita. Em tais condições, a abundância de homens constitui­
ría, sem dúvida, uma sobrecarga se, adoptando um ponto de vista estrita­
mente econômico, neles víssemos apenas "braços" e, ao mesmo tempo,
"ventres" (e isto tanto mais que a Cabília conheceu desde sempre uma
mão-de-obra flutuante de pobres que, na época de mais trabalho, se consti­
tuía em equipas que iam de aldeia em aldeia). De facto, a insegurança polí­
tica que se alimenta a si própria engendrando as disposições exigidas pelo
ripostar na guerra, na rixa, no roubo ou na vingança (reqba) encontra-se in­
dubitavelmente no princípio da valorização dos homens como "espingar­
das", quer dizer, não só como força de trabalho mas também como poderio
bélico e a terra vale apenas devido aos homens que a cultivam, mas tam­
bém a defendem. Se o patrimônio da linhagem, que o nome simboliza, se
define não só pela fruição da terra e da casa, bens preciosos e, portanto,
vulneráveis, mas pela posse de meios que garantam a sua protecção, quer
dizer, os homens, é porque a terra e as mulheres nunca são reduzidas ao es­
tatuto de simples instrumento de produção ou de reprodução e, menos
ainda, de mercadorias ou mesmo de "propriedades": as agressões contra a
terra, contra a casa ou contra as mulheres são actos contra o seu senhor,
contra o seu nif, isto é, o seu ser, tal como o grupo o define, e não apenas
contra o seu ter. Aterra alienada, como a violação ou o assassínio não vin­
gados, representa formas diferentes da mesma ofensa, reclamando em to­
dos os casos a mesma resposta do ponto de honra, do mesmo modo que se
"resgata" o homicídio. Contudo, na lógica da subida simbólica de lances ,
atingindo se possível a pessoa mais próxima do assassino ou o notável
mais destacado do seu grupo, também assim se "resgata" a todo o preço uma
terra ancestral, ainda que pouco fértil, para apagar esse desafio permanen­
te lançado ao ponto de honra do grupo.32 Do mesmo modo que, na lógica
do desafio lançado ou recebido, a melhor terra, simultaneamente do ponto
de vista técnico e simbólico, é a mais integrada no patrimônio, assim tam­
bém o homem no qual se pode ferir mais solene e, portanto, mais cruel­
mente o grupo é o mais representativo desse mesmo grupo.
Porque os homens constituem uma força política e simbólica que é a

32 As inumeráveis chikayat, algumas das quais chegam ao tribunal, inspiram-se não num es­
pírito de "chicana", mas na intenção de lançar ou ripostar a um desafio: existem assim ac­
ções (muito raras) intentadas com vista a obter a anulação de uma venda de terras em
nome do direito de preferência.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 117

condição da protecção e da expansão do patrimônio, da defesa do grupo con­


tra as intrusões da violência, ao mesmo tempo que da imposição da sua domi­
nação e da satisfação dos seus interesses, e porque a única ameaça contra o
poder do grupo, exceptuada a esterilidade das mulheres, é a fragmentação do
patrimônio material e simbólico resultante da discórdia entre os homens, as
estratégias de fecundidade que visam produzir o maior número de homens
possível e o mais depressa possível (através da precocidade do casamento) e
as estratégias educativas que tendem a inculcar uma adesão exaltada à linha­
gem e aos valores da honra, expressão transfigurada da relação objectiva en­
tre os agentes e um patrimônio material e simbólico extremamente vulnerá­
vel e sempre ameaçado, concorrem para o reforço da integração da linhagem
e para desviar para o exterior as disposições agressivas: "Aterra é cobre (ne-
has), os braços são prata." Aprópria ambiguidade deste ditado — nehas signi­
fica também ciúme—introduz ao princípio da contradição que o costume su­
cessório engendra ligando os homens à terra. Embora se orientem objectiva-
mente para as mesmas funções, as estratégias sucessórias, que visam unir o
maior número de homens possível ao patrimônio, assegurando-lhes a igual­
dade perante a herança e garantindo a unidade desse patrimônio ao deserdar
as mulheres, introduzem uma contradição inevitável, não só ameaçando a
terra ancestral de parcelamento em caso de divisão igual entre herdeiros de­
masiado numerosos, mas sobretudo colocando no núcleo do sistema o princí­
pio de uma competição pelo poder sobre a economia e a política domésticas:
competição e conflito entre o pai e os filhos, que este modo de transmissão
condena a um estado de irresponsabilidade enquanto o patriarca continua
em vida (sendo numerosos casamentos entre primos paralelos concluídos
pelo "velho" sem que o pai seja consultado) e competição e conflito entre os
irmãos ou entre os primos, que, pelo menos quando por sua vez se tornam
pais, se vêem inevitavelmente "obrigados" a descobrir a existência entre si de
interesses antagônicos.33 As estratégias dos agnatos são dominadas pela opo­
sição entre os lucros simbólicos da unidade política e da indivisão econômica
que a garante e os lucros materiais da ruptura, lembrados incessantemente
pelo espírito de cálculo que, recalcado nos homens, pode exprimir-se mais
abertamente entre as mulheres, estruturalmente predispostas a serem menos
sensíveis aos lucros simbólicos proporcionados pela unidade política e a con­
tarem mais livremente com práticas propriamente econômicas. O

33 E, de facto, as compilações consuetudinárias que prevêem, todas elas e sem excepção,


sanções contra quem se torne assassino daquele de quem deveria herdar são um testemu­
nho da frequência dos conflitos abertos: "Se um indivíduo matar um parente (de quem
seja herdeiro) injustamente e para dele herdar, a djemaa tomará todos os bens do assassi­
no" (Qanun' da tribo dos louadhien, em A. Hanoteau e A. Letourneux, La Kabylie et les
coutumes kabyles, Paris, Imprimerie Nationale, 1873, T. III, p. 432; cf. também pp. 356,358,
368, etc.).
118 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

empréstimo entre mulheres é considerado o símbolo do comércio sem honra


e, de facto, encontra-se mais perto da verdade econômica da troca do que o co­
mércio masculino. Do homem que se deixa levar com demasiada facilidade a
contrair empréstimos, sobretudo de dinheiro (por oposição ao homem de
honra, preocupado com não desperdiçar o seu capital de "crédito"), diz-se
que "para ele o empréstimo (arrtal) é como o das mulheres"—é o homem que
dessacralizou e desencantou a relação de honra entre o que pede emprestado
e o que empresta, esse que, à força de empalidecer de vergonha todas as vezes
que solicita um empréstimo, tem a "cara amarela". A oposição entre as duas
"economias" é tão marcada que, na linguagem dos homens, a expressão err
arrtal, usada também para exprimir o facto de se consumar a vingança, signi­
fica "pagar o empréstimo" na linguagem das mulheres. Os comportamentos
ligados àquele são efectivamente mais frequentes e mais naturais nas mulhe­
res que emprestam e pedem emprestada toda a espécie de coisas para toda a
espécie de usos, seguindo-se daqui que a verdade econômica, contida na tro­
ca, aflora mais claramente nas transacções femininas que estabelecem prazos
precisos ("até ao parto da minha filha") e um cálculo preciso das quantidades
emprestadas. Em suma, os interesses simbólicos e políticos ligados à unidade
de propriedade fundiária, à extensão das alianças, à força material e simbóli­
ca do grupo dos agnatos e aos valores de honra e de prestígio que fazem akham
amoqrane, a grande casa, militam em favor do reforço dos laços comunitários;
pelo contrário, como mostra o facto de a frequência das rupturas de indivisão
não ter parado de crescer correlativamente à generalização das trocas mone­
tárias e à difusão (correlativa) do espírito de cálculo, os interesses econômicos
(no sentido estrito) e em particular os que se referem ao consumo impelem à
ruptura da indivisão. ^0
O enfraquecimento das forças de coesão, que é correlativo da queda dos
cursos dos valores simbólicos, e o reforço das forças de disrupção, o qual se
liga ao aparecimento de fontes de rendimentos monetários e à crise consecuti­
va da economia camponesa, conduzem à recusa da autoridade dos antigos,
da vida camponesa no que tem de austero e de frugal e à pretensão, por parte
de cada um, de dispor do ganho do seu trabalho para o consagrar mais a bens
de consumo que a bens simbólicos, capazes de assegurarem mais prestígio ou
brilho à família. Podemos vê-lo pelos seguintes testemunhos: "Sei que isso (a
ruptura) mais dia menos dia se dará. É inevitável. Hoje já nem dois irmãos há
que vivam juntos (zqddi) e, no nosso caso, não saímos sequer do mesmo ven­
tre. Juro que já não sei sequer que laço de parentesco me liga a dadda Braham.
Mais dia menos dia, há-de acontecer, tanto mais que cada um de nós é isso que
no fundo deseja, porque cada um pensa que se esforça demasiado pelos ou­
tros. 'Se não tivesse a minha mulher e os meus filhos, não me esforçaria tanto',
ou ainda, teria subido ao 'trono divino' (o sétimo céu). Quando se começa a
raciocinar assim, acabou-se. É a lagarta na peça de fruta. Que Deus conce­
da a sua misericórdia a uma casa assim, porque nestes pensamentos os
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 119

homens juntam-se às mulheres, apoiam-nas e acabou-se tudo. Todas as


mulheres é isso que desejam, são inimigas de zaddi, porque habitadas pelo
diabo, e esforçam-se por contaminar os homens. E tendo essas disposições
no seu espírito, não deixam de vencer. O que nos salva, a nós, e perpetua a
indivisão é termo-nos sabido adaptar; cada um de nós arranjou uma espe­
cialidade, por isso não há intromissões, nem autoridade rígida de mais,
cada um é senhor no seu domínio e responsável por ele. Não há luta de au­
toridade, nem masculina, nem feminina. Todos os homens da nossa casa
vão ao mercado quando lhes agrada e nenhuma das mulheres da nossa
casa traz 'a chave da dispensa à cintura'. E depois, somos a última casa in-
divisa (izdiri) dos Ait Amara. Como aceitaríamos o risco do parcelamento
quando os Ait Ali continuam unidos, Ait Ahmed também ou ainda Ait
Youcef. Basta ver o que se passa com os Ait Hamana e os Ait Chikh: os seus
campos estendem-se até às portas das casas (thamurth ar-thimira, terra até
às barbas) e, apesar disso, para eles acabou-se; já não são uma grande casa
(akham amoqrane), já não são 'casas'". E a descrição da derrocada dos valo­
res antigos põe em evidência, melhor que todas as análises, os fundamen­
tos em que eles assentavam: "Se se quiser cozinhar com um fogão a gas, é
preciso serem-se quatro na família. Quando se cozinha para vinte pessoas,
é uma comodidade que não se pode utilizar ou então gasta-se uma garrafa
por ceia. Se se quiser viver a vinte, tem de se aceitar ir à lenha, cortá-la, de­
senterrá-la, e aceitar o kanoun, o fumo e a sujidade dela. Se se quiserem
mais comodidades, tem de se renunciar a zaddi, e passa-se a mesma coisa
com o resto: a"roupa, o sabão, o trabalho, etc. Se me apetecer comer uma
costeleta grelhada, tenho de estar sozinho, de a comprar como na cidade
embrulhada num pacotinho e de a preparar discretamente. Até a casa onde
morar tem de ser também pequena, só para mim, assim ninguém poderá
ver aquilo que faço ou como. Quando estamos todos juntos, é preciso de
aceitar o regime comum, e nos anos fastos vem a panela grande todos os
quatro ou cinco meses, a panela onde se podem cgzinhar dez quilos de car­
ne. É preciso escolher. Veja-se o Abderrahman, é uma criança, o pai morreu
há uns quinze anos. Como a mãe dele quer poder ir para a cidade para casa
da irmã (lá a vida é melhor) e como ele quer também ir para as obras e guar­
dar para si o dinheiro que ganhar, recusou-se a viver com o irmão mais ve­
lho, que podia ser seu pai. E apesar disso exigiu ficar com a sua parte da he­
rança, e teve-a. Não apareceu ninguém capaz de lhe dizer que não, ninguém
que achasse isso anormal. Dantes, ninguém se atrevia a reclamar a ruptura, ha­
via a autoridade dos velhos. Quem a reclamasse levava pancada, era expulso,
era amaldiçoado: 'é uma causa de derrota' (lakhla ukham, o vazio da casa, a casa
maninha). 'Quer levar às partilhas (itsabib ibbatu), recusamo-nos a 'dar-lhe a
sua parte'. Agora, é o que toda a gente sabe, as casas das viúvas são mais prós­
peras que as dos homens (de honra). Quem ontem era ainda uma criança dis­
puta o comando!"
120 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Até mesmo no caso em que o detentor do poder doméstico preparou de


longa data a sua sucessão pela manipulação das aspirações, pela orientação
de cada um dos irmãos para a "especialidade" que lhe convinha na divisão do
trabalho doméstico, a concorrência em tomo desse poder é mais ou menos
inevitável e, sobretudo nos casos em que o mais velho não é expressamente
designado para o papel de chefe da casa, só se pode sublimar em competição
de honra ao preço de um controlo incessante dos homens sobre si próprios e
do grupo sobre cada um deles. Contudo, as forças de coesão constituídas pela
indivisão da terra e a integração da família — outras tantas instituições que se
reforçam mutuamente — deparam-se sem parar as forças de cisão como o
"ciúme" suscitado pela distribuição desigual do poderes ou das responsabili­
dades ou ainda a discordância entre as contribuições respectivas para a pro­
dução e para o consumo ("o trabalho do laborioso foi comido por aquele que
se encostou a descansar contra a parede").34 Em geral, a autoridade em maté­
ria econômica, repartição dos trabalhos ou controlo das despesas e gestão do
patrimônio, e em matéria política, incumbe de facto ou de direito a um só,
conferindo-lhe o monopólio dos lucros simbólicos que as idas ao mercado
proporcionam, a presença nas assembléias de clã ou nas reuniões mais excep­
cionais de notáveis da tribo, os convites normalmente endereçados ao ho­
mem da casa tido por mais responsável e mais representativo, etc. E isto para
nada dizermos do facto de tais cargos terem por efeito dispensar quem os as­
sume dos trabalhos permanentes, que não podem ser adiados nem interrom­
pidos, quer dizer, os menos nobres.
Objectivamente unidos, para o pior senão para o melhor, os irmãos es­
tão subjectivamente divididos, até mesmo na solidariedade: "O meu irmão",
dizia-me um informador, "é aquele que defendería o meu ponto de honra se
este tivesse sido apanhado em falso e, portanto, aquele que me salvaria da de­
sonra mas causando-me vergonha; o meu irmão", dizia um outro, referin-
do-se a declarações de uma pessoa sua conhecida, "é aquele que, se eu mor­
resse, poderia desposar a minha mulher e seria louvado por isso." Ahomoge-
neidade do modo de produção dos habitus (quer dizer, das condições mate­
riais de existência e da acção pedagógica) produz uma homogeneização das
disposições e dos interesses que, longe de excluir a concorrência, pode em
certos casos engendrá-la, inclinando aqueles que são os produtos das mes­
mas condições de produção a reconhecer e a buscar os mesmos bens, cuja

34 Sem tomarmos partido sobre o sentido da relação entre estes factos, podemos notar que
as "doenças de ciúme agudo" (atan an-tsismin thissamamin, o mal do ciúme azedo) são ob-
jecto de uma atenção extrema por parte dos pais e em particular das mães, que dispõem
de um arsenal completo de ritos curativos e profilácticos. E, para se exprimir um ódio ir­
redutível, evoca-se o sentimento do rapazinho que, brutalmente privado do afecto da
mãe pela chegada ao mundo de um recém-nascido, se torna magro e pálido como o mori­
bundo (am'ut) ou "o que tem prisão de ventre" (bubran).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 121

raridade pode por completo dizer respeito a essa concorrência. Agrupamen­


to monopolista definido, como diz Max Weber, pela apropriação exclusiva de
um tipo determinado de bens (terras, nomes, etc.), a unidade doméstica é lu­
gar de uma concorrência por esse capital ou, melhor, em torno do poder sobre
esse capital. É significativo que as compilações de costumes que só excepcio­
nalmente intervém na vida doméstica favoreçam explicitamente a indivisão
(thidukli bukham ou zeddi): "As pessoas que vivem em associação de família, se
se batem, não pagam coima. Se se separam, pagam como os outros."35
Chave da abóbada da estrutura familiar, a relação entre os irmãos é tam­
bém o seu ponto mais fraco, que todo um conjunto de mecanismos visa sus­
tentar e reforçar, a começar pelo casamento entre primos paralelos, resolução
ideológica que pode em certos casos realizar-se nas práticas, na contradição
específica deste modo de reprodução. Tudo se passa, com efeito, como se esta
formação social se concedesse oficialmente essa possibilidade, recusada pela
maior parte das sociedades como incestuosa, para resolver ideologicamente a
tensão de que é, no seu próprio centro, portadora. Ter-se-ia, sem dúvida, com­
preendido melhor a exaltação do casamento com a ben'amm se se tivesse nota­
do que ben 'amm acabou por designar o inimigo ou, pelo menos, o inimigo ínti­
mo, e que a inimizade se diz thaben'ammts, "a dos filhos do tio paterno". De
facto, as forças de coesão ideológica encontram o seu ponto de aplicação na
pessoa do ancião, djedd, cuja autoridade, baseada no poder de deserdar, na
ameaça de maldição e sobretudo na adesão aos valores simbolizados por
thadjadith, só pode assegurar o equilíbrio entre os irmãos mantendo entre eles
(e as suas esposas) a mais estrita igualdade tanto no trabalho (assegurando as
mulheres, por exemplo, alternadamente o trabalho doméstico, a preparação
das refeições, o transporte da água, etc.) como no consumo. Enquanto se man­
tém este factor de coesão positivo, que desaparece brutalmente quando o pai
morre numa ocasião em que todos os seus filhos estão na idade varonil sem
que nenhum deles disponha de uma autoridade afirmada (devido à diferença
de idade ou a qualquer outro princípio), a tensão inscrita na relação entre os
irmãos transfere-se para a relação entre o pai e os filhos. Esta oposição entre
um princípio de integração autoritário e positivo (assente em djedd ou thadja-
dith) e uma relação igualitária de concorrência e de competição entre os con­
temporâneos reaparece a todos os níveis da estrutura social: a força relativa,
extremamente variável, das tendências para a fusão e para a cisão depende
primordialmente tanto ao nível da unidade doméstica, como ao nível de uni­
dades mais amplas, como o clã ou a tribo, da relação que se instaura entre o
grupo e as unidades exteriores, fornecendo a insegurança um princípio de co­
esão negativo capaz de suprir a deficiência dos princípios positivos.36 "Odeio
o meu irmão, mas odeio aquele que ele odeia." A solidariedade negativa e

35 A. Hanoteau e A. Letourneux, op. cit., T. III, p. 423.


122 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

forçada criada pela vulnerabilidade partilhada e que se reforça todas as vezes


que surge uma ameaça dirigida contra o patrimônio material ou simbólico
possuído em indivisão repousa sobre o mesmo princípio que a tendência
para a divisão que ela contraria provisoriamente, o da concorrência entre os
agnatos, de tal maneira que, da família indivisa às unidades políticas mais
amplas, a coesão incessantemente exaltada pela ideologia mítica e genealógi­
ca não dura muito mais que as relações de força capazes de conterem os inte­
resses particulares. "Separai-os para que o ódio não os separe" ou "a separa­
ção separa as causas do ódio".
Tendo assim lembrado os princípios que definem os sistemas de interes­
ses das diferentes categorias de agentes comprometidos nas relações de força
domésticas que culminam na definição de uma estratégia colectiva em maté­
ria de casamento, basta estabelecer que os agentes se mostram tanto mais in­
clinados a servir o funcionamento do sistema quanto mais completamente
esse funcionamento contempla os seus interesses para se compreenderem os
princípios fundamentais das estratégias que se enfrentam por ocasião do ca­
samento.37 Se é verdade que este representa uma das ocasiões principais de
conservar, de aumentar ou de diminuir (através de uma má aliança) o capital
de autoridade conferido por uma forte integração e o capital de prestígio liga­
do a uma rede de aliados extensa (nesbà), resta que todos os membros da uni­
dade doméstica que intervém na conclusão do casamento não reconhecem no
mesmo grau os seus interesses particulares no interesse colectivo da
linhagem. çy Q
Pelo facto de serem o produto de estratégias elaboradas, das quais se es­
pera outra coisa e mais do que a simples reprodução biológica, quer dizer, ali­
anças externas ou internas destinadas a reproduzirem as relações de força do­
mésticas e políticas, dado que, em particular, se concede uma atenção

____________ vá*

36 J. Chelhod recorda justificadamente que todas as observações concordam no facto de a


tendência para o casamento endogâmico, que é mais marcada nas tribos nômadas, em
perpétuo estado de guerra do que nas sedentarizadas, tender a reaparecer ou a acentu­
ar-se em caso de ameaça de guerra ou de conflito (loc. cit.).
37 Este axioma tem por função escapar aos debates ociosos que opõem funcionalistas e anti-
funcionalistas (os dominantes são funcionalistas porque a função — no sentido da escola
funcionalista — não é senão o interesse dos dominantes, quer dizer, o interesse que estes
têm na perpetuação de um sistema em conformidade com os seus interesses), e os que ex­
plicam as estratégias matrimoniais pelos seus efeitos—por exemplo, a cisão e a fusão de
Murphy e Kasdan são efeitos que nada ganhamos em designar pelo nome de função —
não se afastam menos das práticas do que aqueles que invocam a eficácia da regra. Dizer
que o casamento entre primos paralelos tem uma função de cisão e/ ou de fusão sem per­
guntar para quem, para quê, em que medida (que seria necessário medir) e sob que condi­
ções, é recorrer, envergonhadamente sem dúvida, a uma explicação pelas causasfinais em
vez de perguntar como as condições econômicas e sociais características de uma forma­
ção social impõem a busca da satisfação de um tipo determinado de interesses que ela
própria conduz à produção de um tipo determinado de efeitos colectivos.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 123

particular às escolhas dos "tios maternos", espécie de colocação a curto e a


longo prazo, os casamentos não podem ser ligeiramente dissolvidos (sendo
as relações mais antigas e mais prestigiosas evidentemente as mais protegi­
das contra a ruptura inconsiderada) e, em caso de repúdio inevitável, recor­
re-se a toda a espécie de subterfúgios para evitar a delapidação do capital de
alianças. Pode acontecer que se vá "suplicar" aos parentes da mulher que a
entreguem, pondo o divórcio à conta da juventude, do estouvamento, da bru­
talidade verbal, da irresponsabilidade de um marido demasiado jovem para
saber apreciar o preço das alianças; invoca-se o facto de a fórmula não ter sido
pronunciada três vezes, mas uma só vez por precipitação, sem testemunhas.
O divórcio torna-se thutcha (a mulher que se zangou e voltou para casa dos
seus) e pode chegar-se ao ponto de oferecer a celebração de uma nova boda
(com imensi e enxoval). Se o repúdio se revelar definitivo, há vários modos de
"separação": quanto mais o casamento foi importante, solene, quanto mais
nele se "investiu", maior é o interesse em salvaguardar as relações com aque­
les com quem se faz a "separação" (ou por solidariedade parental, ou por soli­
dariedade de vizinhança, ou por cálculo interessado), e mais discreta é a rup­
tura: não se exige imediatamente o dote da viúva do mesmo modo que ele não
é recusado (sendo o repúdio — battal — "gratuito" uma ofensa grave), espe­
ra-se até pelo momento em que a mulher volte a casar, evitando fazer contas
demasiado estritas e associar à solução do divórcio testemunhas, sobretudo
se estas forem estrangeiras.
A tradição sucessória que exclui a mulher da herança, a visão mítica do
mundo que apenas lhe confere uma existência diminuída e nunca lhe outorga
a plena participação no capital simbólico da sua linhagem de adopção, a divi­
são do trabalho entre os sexos que a vota às tarefas domésticas, deixando ao
homem as funções de representação, tudo concorre para identificar os inte­
resses dos homens com os valores materiais e sobretudo simbólicos da linha­
gem, e isto tanto mais completamente quanto maior é a autoridade que detêm
no interior do grupo dos agnatos. E, de facto, os casamentos de homens que
são o matrimônio com a prima paralela e o enlace político testemunham sem
qualquer equívoco que os interesses dos homens são mais directamente iden­
tificados com os interesses oficiais da linhagem e que as suas estratégias obe­
decem mais directamente à preocupação de reforçar a integração da unidade
doméstica ou a rede de alianças da família, contribuindo, num e noutro caso,
para aumentar o capital simbólico da linhagem.
O casamento com a prima paralela é um assunto de homens, em confor­
midade com os seus interesses, quer dizer, com os interesses superiores da li­
nhagem, tratado muitas vezes às escondidas das mulheres, com frequência
contra a sua vontade, quando as esposas dos dois irmãos se entendem mal, não
desejando uma introduzir em sua casa a filha da outra, não querendo a outra
colocar a sua filha sob a autoridade da cunhada (o que não as impede de faze­
rem da necessidade virtude e de se comportarem como mulheres de honra
TEORIA DA PRÁTICA
124 ESBOÇO DE UMA

empenhadas em nada contrariarem os projectos dos homen )■ vossa


evidente que a recomendação ritual do pai aos filhos. . nr]ida como:
mulher e permanecei unidos entre vós!" naturalmen e e renjjdo a
"Casai os vossos filhos entre eles!" Certo rapaz não ti a ai cotn
andar quando o pai o casou. Uma noite, depois de ter cea irrn.ão ti-
o irmão mais velho (daddd) e puseram-se a conversar. m , braços
nha a filha sentada nos joelhos e a rapariguinha começou a
para o tio, que pegou nela dizendo: "Que desta Deus aça a ,/q. ie queres tu,
dade, dadda, que tu não recusarás?" O irmão respon eu • „ . e ^vre
cego? — Aluz! Se me aliviares do cuidado que ela me causa, q /Yamina Ait
dos teus. Dou-ta com o seu grão e a sua palha, e dou-ta por na • mentos
Amar Ou Said, ibid.). Quanto às mulheres, não é por acaso q • exacta-
pelos quais são responsáveis pertencem à classe dos corau Lmbnios sem
mente, que lhes é deixada apenas a responsabilidade dos ™^ao,
história e sem cerimônia:38 39 sendo excluídas do paren esc carentesco,
vêem-se remetidas para o parentesco útil e para os u . rpausino eco-
investindo na busca de um partido para o filho ou a i a . t ata
nómico (no sentido estrito) que os homens?9 E, sem duvl^2^proba-
de casar uma filha que os interesses masculinos e emmmo "razão de
bilidade de divergir: além de a mãe ser menos sensive q integração do
família"quelevaatratar afilha como msfiMMieHÍU|dore ^^^^g^^^^^

grupo dos agnatos ou como moeda de troca sim E , casando


alianças prestigiosas com os grupos estrangeiros, am entre os gru-
a filha na sua própria linhagem e intensificando assim as trocas entre os g °
pos, ela tender a reforçar a sua posição no interior a a questão
casamento do filho põe antes do mais para a ve a se Q geu inte_
da sua dominação sobre a economia doméstica, e a , e tomando

resse só negativamente se ajusta ao da linhagem na me traçado pela li-


umarapJgadondeW
nhagem e na medida sobretudo em que o con an]DO dos agnatos.
te de uma má escolha ameaçaria a prazo a um a g ee pelo menos
O interesse dos homens, sempre oficialmente dominante e, pelo m

38 Pode suceder que a thamgharth, conseguindo imiscuir-se, a favor de negociações secretas,


num casamento inteiramente acordado pelos homens faça prometer a thislith, sob pena
de impedir o casamento, deixar-lhe toda a autoridade da casa. Os filhos suspeitam mui­
tas vezes, e não sem razão, de que a mãe lhes quer dar por esposas raparigas que ela pró­

pria poderá facilmente dominar.


39 Os casamentos dos pobres (sobretudo em capital simbólico) estão para os dos ricos, mu la­
tis mutandis, como os de mulheres para os de homens. Os pobres, como se sabe, não de­
vem mostrar-se demasiado exigentes em matéria de honra. "Ao pobre só resta não se
mostrar invejoso." O mesmo é dizer que, à maneira das mulheres, eles levam menos em
conta as funções simbólicas e políticas do casamento que as suas funções práticas, pres­
tando, por exemplo, muito mais atenção às qualidades pessoais da noiva e do noivo.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 125

tendencialmente, também dominante de facto, impõe-se tanto mais quanto


mais forte é a integração do grupos dos agnatos (é o que se expressa indirecta-
mente quando, entre os argumentos a favor da indivisão, se invoca o facto de
ela permitir uma maior vigilância exercida sobre as mulheres) e quanto mais
a linhagem do pai é pelo menos igual na hierarquia social à da mãe. Com efei­
to, mal chega a ser exagerado sustentar que toda a história matrimonial do
grupo está presente nas transacções internas a propósito de cada projecto de
casamento: o interesse da linhagem, ou seja, o masculino, que quer que se evi­
te colocar um homem numa posição dominada no interior da famflia casan-
do-o com uma rapariga claramente acima da sua condição (o homem, diz-se,
pode fazer subir a mulher, mas não o contrário; dá-se—uma rapariga—a um
superior ou a um igual, toma-se — uma rapariga — junto de um inferior),
tem, por conseguinte, tanto mais probabilidades de se impor quanto mais
aquele que tem a responsabilidade (pelo menos oficial) do casamento não te­
nha ele próprio casado acima da sua condição. Todo um conjunto de mecanis­
mos, entre os quais o montante do dote da viúva e as despesas da boda, tanto
mais pesados quanto mais prestigioso é o casamento, tendem a excluir as
alianças entre grupos demasiado desiguais sob o ponto de vista do capital
econômico e simbólico (os casos frequentes em que a família de um dos dois
cônjuges é rica numa espécie de capital — e. g. em homens — ao passo que o
outro possui sobretudo a outra espécie de riqueza—e. g. a terra—não consti­
tuem excepções, muito pelo contrário): "As alianças fazem-se, costuma di­
zer-se, entre iguais" ("tsnassaben (naseb) medden widh m'adhalen"). Em suma, a
estrutura das relações objectivas entre os pais responsáveis pela decisão ma­
trimonial, enquanto homem ou mulher e enquanto membro desta ou daquela
linhagem, contribui para definir a estrutura da relação entre as linhagens uni­
das pelo casamento projectado.40 De facto, seria mais justo dizer que a relação
determinante entre a linhagem do indivíduo a casar e a do possível parceiro, é
sempre mediatizada pela estrutura das relações de poder doméstico. Com
efeito, para caracterizar completamente a relação multidimensional e multi­
funcional, irredutível à relação de parentesco, entre os dois grupos não basta
ter-se em conta a distância espacial e a econômica e social que entre eles se es­
tabelece no momento do casamento, do ponto de vista do capital simbólico
(medido pelo número de homens e de homens de honra, pelo grau de integra­
ção da família, etc.) deve fazer-se também intervir o estado, no momento con­
siderado, da contabilidade das suas trocas materiais e simbólicas, quer dizer,
toda a história das trocas oficiais e fora do comum, realizadas ou pelo menos

40 O valor da rapariga no mercado matrimonial é de certo modo uma projecção directa do


que é socialmente atribuído às duas linhagens das quais ela é produto. Vemo-lo clara­
mente quando o pai teve filhos de vários casamentos: enquanto o valor dos rapazes é in­
dependente do valor da mãe, o das raparigas é tanto maior quanto mais aquela pertence a
uma linhagem superior e ocupa uma posição mais forte dentro da família.
126 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

consagradas pelos homens, como os casamentos, mas também das trocas ofi­
ciosas e comuns continuamente asseguradas pelas mulheres com a cumplici­
dade dos homens e por vezes às escondidas deles, mediação através da qual
se preparam e se realizam as relações objectivas que predispõem os dois gru­
pos a ligarem-se. Se o capital econômico é relativamente estável, o simbólico é
mais lábil: o desaparecimento de um chefe de família prestigioso, sem falar da
ruptura de indivisão, basta, em certos casos, para o afectar fortemente. Corre-
lativamente, é toda a representação que a família entende dar de si própria e
os objectives que atribui aos seus casamentos — aliança ou integração — que
seguem as flutuações da fortuna simbólica do grupo. Assim, no espaço de
duas gerações, uma grande família (cf. árvore genealógica, p. ), cuja situação
econômica estava, contudo, a melhorar, passou de casamentos de homens,
uniões no interior do parentesco próximo ou uniões fora do comum (casa­
mentos ajustados pelos homens, fora da área familiar com fins de aliança) a
matrimônios comuns, as mais das vezes urdidos pelas mulheres dentro das
suas redes próprias de relações. Esta mudança de política matrimonial coinci­
diu com a morte dos dois irmãos mais velhos (Hocine II2e Laid II3), a ausência
prolongada dos homens mais velhos (partidos para França) e o enfraqueci­
mento da autoridade da thamgarth, que cegara, caindo o poder de facto nas
mãos de Boudjemâa (III3) e, por intermitência, de Athman (IV5). Com efeito,
não tendo a sucessão da thamgarth, aquela que faz reinar a ordem e o silêncio
(ta'a n thamgarth, da-susmi—a obediência à velha é silêncio), sido assegurada,
a estrutura das relações entre as esposas reflecte a das relações entre os espo­
sos, deixando vagante a posição de senhora da casa: os casamentos, em tais
condições, tendem a orientar-se para as linhagens respectivas das diferentes
mulheres.
As características estruturais que definem genericamente o valor dos
produtos de uma linhagem no mercado das trocas matrimoniais são eviden­
temente especificadas por características secundárias, como o estatuto matri­
monial do indivíduo a casar, a sua idade, etc. Assim, as estratégias matrimo­
niais do grupo e o casamento que delas pode resultar variam por completo
conforme o homem a casar seja um celibatário "em idade de casar" ou, pelo
contrário, tenha já "ultrapassado essa idade", ou um homem já casado que
procura uma co-esposa, ou ainda um viúvo ou um divorciado que pretende
voltar a casar (variando a situação conforme tenha ou não filhos do seu pri­
meiro casamento). Para o sexo feminino, os princípios de variação são os mes­
mos, com a diferença de a desvalorização acarretada pelos casamentos anterio­
res ser infinitamente maior (em razão do preço atribuído à virgindade e em­
bora uma reputação de "homem que repudia" seja pelo menos tão prejudicial
como uma fama de "mulher a repudiar"). Tal é apenas um dos aspectos da
dissimetria entre a situação da mulher e a do homem perante o casamento: "O
homem", diz-se, "continua sempre a ser um homem seja qual for o seu estado
(ao contrário da mulher, que pode desqualificar-se e precipitar-se na
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 127

vergonha, 'ar); cabe-lhe a ele escolher." Tendo a iniciativa da estratégia, o ho­


mem pode esperar: está certo de encontrar uma esposa, ainda que deva pagar
o preço do atraso desposando uma mulher que já foi casada, ou de estatuto
social inferior, ou afectada de uma ou outra enfermidade. Sendo uma filha
tradicionalmente "pedida" e "dada" em casamento, seria o cúmulo do ridícu­
lo para um pai procurar um partido para a filha. Outra diferença, "o homem
pode esperar a mulher (até que esta tenha a devida idade), a mulher não pode
esperar o homem": aquele que tem de colocar mulheres pode jogar com o
tempo para perpetuar a vantagem conjuntural que lhe dá a sua posição de so­
licitado, mas dentro de limites restritos, sob pena de ver o seu produto desva­
lorizado como suspeito de ser "invendável" ou por simples efeito de envelhe­
cimento. Uma das coacções mais importantes entre as que se impõem às es­
tratégias matrimoniais é a urgência do casamento, que tende evidentemente
a enfraquecer o jogo. Entre as razões de apressar o enlace, há a avançada ida­
de dos pais, que desejam assistir à boda do filho e ter uma nora (thislith) que se
ocupe deles, ou o medo de ver dada a outro uma rapariga que reservaram
para si (para evitar essa circunstância, os pais "dão um sapato", "marcando"
assim a rapariga desde a mais tenra idade e, por vezes, chegam ao ponto de
fazer dizer a fatiha). O filho único é também casado cedo, a fim de perpetuar a
linhagem o mais rapidamente possível. O lucro simbólico proporcionado
pelo facto de alguém voltar a casar, depois de um divórcio, antes do ex-cônju-
ge leva muitas vezes cada um deles a concluírem um casamento precipitado
(tendo os matrimônios assim contraídos poucas probabilidades de serem es­
táveis, o que explica que certos homens ou mulheres se vejam "votados" a
enlaces repetidos). A situação da viúva é muito diferente conforme não tenha
tido filhos, os tenha "deixado" em casa do ex-marido ou tenha ficado com eles
a seu cuidado (caso em que é menos livre e, portanto, menos fácil de casar).
Caso interessante de estratégia, ela pode, segundo os casos, arranjar marido
entre a família do falecido cônjuge (o que representa o comportamento oficial,
particularmente recomendado se tiver filhos varões), deixar o caso a cargo da
família do pai (prática mais frequente quando não tem filhos) ou ainda casar
de novo fora da família do marido. É difícil determinar o universo das variá­
veis (entre as quais, sem dúvida, as tradições locais) que determinam a "esco­
lha" de uma ou outra de tais estratégias, mas devemos ter também presente,
contra a tradição que trata cada casamento como uma unidade isolada, que o
enlace (no sentido activo de operação consistindo em casar, em colocar no
mercado matrimonial) de cada um dos filhos de uma mesma unidade famili­
ar (isto é, segundo os casos, filhos do mesmo pai ou netos do mesmo avô) de­
pende do casamento de todos os outros e varia, portanto, em função da posi­
ção ocupada por cada um dos filhos e filhas no interior da configuração particu­
lar do conjunto de todos os jovens a casar, caracterizada ela própria pela sua
dimensão e estrutura segundo o sexo. Assim, tratando-se de um homem, a
sua situação é tanto mais favorável quanto mais estreita é a relação de
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 129

parentesco que o une ao detentor estatutário da autoridade em matéria de ca­


samento (podendo essa relação ir da do filho com o pai à do irmão mais novo
com o irmão mais velho, ou até mesmo àquela que existe entre primos afasta­
dos). Além disso, embora oficialmente não seja reconhecido qualquer privilé­
gio ao mais velho (dentre os rapazes, evidentemente), tudo concorre para o
favorecer em detrimento dos mais novos, para o fazer casar em primeiro lu­
gar e o melhor possível, quer dizer, de preferência no exterior, ficando os mais
novos votados mais à produção do que às trocas do mercado ou da assembléia,
ao trabalho da terra do que à política externa da casa. A situação do mais ve­
lho é todavia muito diferente conforme o seja dentre vários rapazes ou
represente todas as esperanças da família, por ser filho único ou preceder vá­
rias irmãs.41 Enquanto a família que conta com numerosas raparigas, sobretu­
do mal "protegidas" (por rapazes) e, portanto pouco cotadas porque propor­
cionam poucos aliados, e vulneráveis, está numa posição desfavorável e se vê
obrigada a contrair dívidas para com as famílias que recebem as suas mulhe­
res, a família rica em homens dispõe de uma liberdade de jogo muito grande:
pode escolher colocar de maneira diferente cada um dos rapazes segundo a
conjuntura, aumentar as suas alianças graças a um deles, reforçar a integra­
ção por meio de outro e até mesmo pôr em dívida para consigo algum primo
que só tenha filhas, tomando uma delas para um terceiro filho.42 Neste caso, a
habilidade do responsável pode desenvolver-se livremente e conciliar, como
num jogo, o inconciliável, o reforço da integração e a extensão das alianças.
Pelo contrário, aquele que só tem filhas ou tem muitas, está condenado às es­
tratégias negativas e toda a sua habilidade deve limitar-se a jogar com o

41 A "psicologia espontânea" descreve perfeitamente "o rapaz entre as raparigas" (aqchich


bu thqchichin), que, mantido a chocar e mimado pelas mulheres da família, inclinadas a
conservá-lo junto delas mais tempo que os outros rapazes, acaba por se identificar com o
destino social que lhe fornecem, tomando-se uma criança frágil e enfermiça, um rapaz
"devorado pelas suas muitas irmãs com demasiado cabelo": e as mesmas razões que con­
duzem a poupar e a proteger de mil maneiras este produto demasiado precioso e dema­
siado raro para que se permita deixá-lo correr o mais pequeno risco, evitando-lhe os tra­
balhos agrícolas, proporcionando-lhe uma educação mais prolongada, e separando-o as­
sim dos seus companheiros por meio de uma linguagem mais refinada, roupas mais lim­
pas, uma alimentação mais cuidada, levarão também a que lhe seja assegurado um casa­
mento precoce.
42 A rapariga tem tanto mais valor quanto mais irmãos tem, guardiães da sua honra (e em
particular da sua virgindade) e aliados potenciais do futuro marido. É assim que os con­
tos dizem o ciúme inspirado pela irmã aos sete irmãos, uma irmã sete vezes protegida
como um "figo no meio das folhas": "Uma rapariga que tinha a felicidade de ter sete ir­
mãos podia ser altiva e os pretendentes não lhe faltavam. Estava certa de ser procurada e aprecia­
da. Casada, o marido, os pais do seu marido, toda a família e até os vizinhos e as vizinhas a
respeitavam-, não contava ela com sete homens do seu lado, não era a irmã de sete irmãos,
sete protectores? À mais pequena discussão, eles apareciam para restabelecer a ordem e, se a
sua irmã estivesse em falta ou viesse a ser repudiada, retomá-la-iam em sua casa, rodeada de aten­
ções. Desonra alguma podia atingi-los. Ninguém ousaria penetrar no antro dos leões."
130 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

mercado, manipulando a relação entre o campo dos parceiros possíveis e o


dos concorrentes possíveis, opondo o próximo e o longínquo, o pedido do
próximo ao do estrangeiro (para o recusar sem ofensa ou para fazer esperar),
de maneira a reservar-se a escolha do mais nobre.
Ter-se-á, sem dúvida, entendido até que ponto é artificial a distinção en­
tre os fins e os meios das estratégias colectivas em matéria de casamento: tudo
se passa, com efeito, como se, objectivamente orientadas para a busca do re­
forço ou do aumento da integração dentro dos limites da manutenção do alar­
gamento das alianças (ou o contrário, conforme a insistência principal incida
numa ou noutra orientação), essas estratégias dependessem ao mesmo tem­
po, na sua lógica e na sua eficácia, do capital material e simbólico da unidade
social considerada, quer dizer, não só do valor do seu patrimônio material,
mas também do valor do seu patrimônio simbólico, ele próprio dependendo
por um lado, do volume e da integração do grupo dos agnatos (marcada, en­
tre outras coisas, pela indivisão da produção e do consumo dos bens mate­
riais) e, por outro, do capital de alianças do qual ela dispõe, sujeitas, evidente­
mente, uma e outra forma ao capital simbólico de toda a história matrimonial.
Segue-se que qualquer casamento tende a reproduzir as condições que o tor­
naram possível.43 Objectivamente orientadas para a conservação ou o aumen­
to do capital material e simbólico possuído em regime de indivisão por um
grupo mais ou menos extenso, as estratégias matrimoniais fazem parte do sis­
tema dos esquemas de reprodução, entendido como o conjunto das estratégi­
as por meio das quais os indivíduos ou os grupos tendem objectivamente a re­
produzir as relações de produção associadas a um modo determinado cujo
fim é reproduzir ou aumentar a sua posição na estrutura social.44
Estamos muito longe do universo puro, porque infinitamente empobre­
cido, das "regras de casamentoXe das "estruturas elementares do
------------------ ô

43 Subentendendo-se que estratégias particularmente hábeis podem tirar o melhor partido


de um capital determinado, quanto mais não seja por meio do bluff (tanto mais difícil
quanto menos se sai da área da familiariedade) ou, mais simplesmente, por via de uma
utilização hábil das ambiguidades do patrimônio simbólico ou das discordâncias entre
as diferentes componentes desse patrimônio. Embora se possa considerar que faz parte
do capital simbólico, ele próprio relativamente autônomo em relação ao capital propria­
mente econômico, a competência que permite tirar o melhor partido do patrimônio e
fazê-lo valer por meio de colocações hábeis, como os casamentos conseguidos, é relativa­
mente independente dele: é assim que certos pobres, que só têm a sua virtude para ven­
der, podem tirar partido do casamento das filhas para obterem aliados de prestígio ou,
pelo menos, protectores úteis, vendendo honra a compradores altamente colocados.
44 Na medida em que pertencem à classe das estratégias de reprodução, as estratégias ma­
trimoniais em nada se distinguem na sua lógica das que, visando conservar ou aumentar
o capital simbólico, obedecem à dialéctica da honra quer tenham por alvo o resgate da
terra, o resgate da ofensa, a violação ou a violência (homicídio): em todos os casos obser­
vamos a mesma relação dialéctica entre a vulnerabilidade (pela terra, a mulher, a casa, em
suma, a hurma) e a protecção (pelos homens, as espingardas, o ponto de honra, em suma o
nif), que conserva ou aumenta o capital simbólico (prestígio, honra, em suma, a hurma).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 131

parentesco". Tendo definido o sistema dos princípios a partir dos quais os


agentes produzem práticas matrimoniais reguladas e regulares e compreen­
dem praticamente as práticas matrimoniais dos outros agentes, poderiamos
pedir a uma análise estatística informações pertinentes com vista a estabele­
cermos os pesos das variáveis estruturais ou individuais que lhes correspon­
dem objectivamente. De facto, o importante é que a prática dos agentes se tor­
na inteligível a partir do momento em que podemos construir o sistema dos
princípios e das leis de combinação desses princípios (ou, numa outra lingua­
gem, o sistema das variáveis e dos operadores) que põem em prática quando
situam de modo imediato os indivíduos sóociologicamente conjugáveis num
dado estado do mercado matrimonial, ou, mais precisamente, quando, a pro­
pósito de um homem determinado, designam, por exemplo, as mulheres que,
dentro do quadro do parentesco prático, lhe estão de certa maneira prometi­
das, bem como as que em rigor lhe são permitidas, e isto de modo tão claro e in­
discutível que qualquer desvio relativamente à trajectória mais provável, um
casamento numa outra tribo, por exemplo, é experimentado como um desa­
fio lançado não só à família implicada, mas também a todo o grupo.
Parte II | ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
O principal defeito, até aqui, do materialismo de todos os filósofos — incluindo
o de Feuerbach — é que o objecto, a realidade, o mundo sensível, não são nele
apreendidos senão sob a forma de objecto ou de intuição, mas não enquanto acti-
vidade humana concreta e não enquanto prática de maneira subjectiva. É o que ex­
plica que o aspecto activo tenha sido desenvolvido pelo idealismo, em oposição
ao materialismo — mas tão-só de modo abstracto, porque o idealismo não co­
nhece naturalmente a actividade real, concreta, enquanto tal.
Karl Marx, Teses sobre Feuerbach O
PRÓLOGO

Esta reflexão sobre uma prática científica é de molde a desconcertar tanto os


que reflectem sobre as ciências do homem sem as praticar como os que as pra­
ticam sem reflectir. A prática científica não escapa à teoria aqui proposta: os
melhores dos práticos podem ter o domínio das operações científicas sem dis-
porem nem do tempo livre nem dos instrumentos necessários para se sair
desta douta ignorância; os especialistas da reflexão epistemológica ou meto­
dológica estão necessariamente condenados a considerar mais o opus opera-
tum que o modus operandi, o que implica, além de um certo atraso, um enviesa-
mento sistemático. Não nos referiremos aqui nem a uns nem a outros a não
ser por excepção, e menos ainda a todos os que hoje travam um combate que
julgam de vanguarda nas fronteiras da ciência e da ideologia, quer dizer, num
lugar em que as duas são praticamente indiscerníveis. Foi por isso que quise­
mos marcar, pelo menos não lhes concedendo mais que as alusões impostas
pelas condições actuais de recepção do discurso, tudo o que deveria separar
de tais sobrevivências retóricas uma reflexão imposta pela prática científica
que habita e orienta. Ç
Na convicção de que o rigor não se identifica nem com as receitas de la­
boratório nem tão-pouco com a invenção em proezas de escola, quisemos
conferir a este discurso de trabalho ou, se se quiser, em trabalho, o duplo ca-
rácter que deve às próprias condições do seu fabrico: estas notas escritas à
margem e em andamento,1 como diria Jacques Derrida, teriam assumido
todo o seu sentido e toda a sua força se tivesse sido possível publicar na ínte­
gra os trabalhos de investigação que acompanharam (análise das estruturas
econômicas, das práticas rituais, etc.) e que aqui só foi possível evocar de ma­
neira por vezes muito elíptica e muito alusiva. Assim este duplo discurso

1 Os termos "à margem e em marcha" não restituem o jogo de som e de sentido presente no
original francês: en marge et en marche. (N. do T.)

135
136 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

corre o risco de decepcionar duplamente, porque, à falta de estar completa­


mente desligada do objecto a propósito do qual se constituiu, a construção
teórica (que será retomada noutros lugares) não assume a sua forma mais ge­
ral e mais poderosa e porque, por outro lado, os trabalhos empíricos nos quais
se apoia só muito alusivamente são aqui expostos.
Se é indubitável que a experiência científica que se encontra no princí­
pio destas reflexões deve muito às particularidades de um itinerário biográfi­
co, nem por isso é certo que deva tudo à lógica dos seus acasos: porque a ima­
gem primeira de um mundo camponês muito próximo, sob múltiplos aspec­
tos, do mundo observado não parara de assombrar e de orientar as investiga­
ções etnográficas conduzidas, entre 1957 e 1963, em diversas regiões rurais da
Argélia, alertando contra a inclinação para o objectivismo inerente à situação
de observador estrangeiro, tínhamos concebido o exame de um problema que
se punha num universo familiar a familiares (o do celibato dos filhos mais ve­
lhos do Béarn) como uma espécie de experimentação epistemológica. Este
procedimento, estritamente inverso daquele que o etnólogo realiza, devia
com efeito levar a observar e a analisar aquilo a que se pode chamar o efeito de
objectivação, quer dizer, a transformação de uma relação de familiaridade em
conhecimento científico: quando se vêem rostos por trás das estatísticas,
aventuras, entretecidas de recordações comuns, por trás das biografias, pai­
sagens através dos símbolos cartográficos e quando somos confrontados in­
cessantemente com "sociólogos espontâneos" que apenas se distinguem do
profissional por uma espécie de desdém pragmático pelo espírito de sistema,
opondo às suas razões abstractas os casos particulares, as excepções, os cam-
biantes, em suma, todo um conjunto de diferenças não menos significativas
que as da estatística, não nos sentimos muito levados a conceder às constru­
ções de uma ciência objectivista (o que não quer dizer objectiva) a aprovação
que ela a si própria se outorga demasiado depressa e a demasiado baixo
custo. çx

-
Capítulo 1
O OBSERVADOR OBSERVADO

Não ignorando que um campo epistemológico organizado em tomo de um con­


junto de pares de oposições paralelas faz qualquer pôr em questão do objectivis-
mo, parecer, antes do mais uma reabilitação do subjectivismo, hesita-se em esbo­
çar sequer a análise, indispensável, contudo, ao desenraizamento das idéias fei­
tas, dos fundamentos antropológicos e sociológicos do erro objectivista, quer se
trate, por exemplo, da situação de estrangeiro no caso do etnólogo ou da situação
de espectador no caso do historiador da arte e, mais geralmente, da condição de
intelectual desembaraçado das imposições e das urgências da prática, que é a
condição de possibilidade da relação erudita com o objecto: expomo-nos, com
efeito, a dar assim lugar a leituras que oporão ao rigor objectivista as virtudes
mágicas da "observação participante", segundo o velho par platônico do corte
(chorismos) e da participação (methexis), ou que entenderão que a prática é a única
maneira de compreender a prática, reduzindo ao par da teoria e da prática, indi­
ferentemente aristocrática ou populista conforme a ponta pela qual se lhe pegue,
a oposição entre duas teorias da prática.
Tendo recordado que a teoria da prática que aparece como a condição
de uma ciência rigorosa das práticas não é menos teórica, portanto teórica e
praticamente cortada da prática, que a teoria da prática implicitamente en­
volvida nos modelos objectivistas, resta que temos o direito de perguntar se
as condições sociais que devem ser preenchidas de facto para que uma cate­
goria particular de agentes possa ser posta de reserva com vista a exercer
uma actividade de tipo teórico não são de molde a favorecer a adopção in­
consciente de um tipo determinado de teoria da prática. Prolongando as
análises célebres de Auguste Comte, que observava que, diferentemente
dos proletários, "operadores directos", "enfrentando a sós directamente a
natureza" e por isso com uma predisposição para o espírito positivo, os bur­
gueses "lidam sobretudo com a sociedade",1 poderiamos sugerir que a ex­
periência de um mundo social sobre o qual se pode agir, de maneira quase
mágica, por meio de signos — palavras ou moeda —, quer dizer, através da

137
138 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

mediação do trabalho de outrem, em nada predispõe para a percepção do


mundo social como o lugar da necessidade, e mantém uma afinidade certa
com uma teoria da acção como execução mecânica de um modelo mecânico
ou como surgimento puro da decisão livre, isto conforme se pense mais em
si próprio ou nos "outros". Uma análise mais precisa da posição social dos
intelectuais faria, além disso, ver que esses membros de uma fracção domi­
nada da classe dominante têm predisposição para entrar no papel de middle­
brows, como diz Virginia Woolf, quer dizer, de intermediários entre os gru­
pos ou as classes: deputados ou delegados que falam pelos outros, ou seja, a
seu favor mas também em seu lugar, são levados a enganar, as mais das vezes
de boa-fé, tanto aqueles acerca dos quais falam como aqueles com quem fa­
lam; quanto aos dentre eles que vieram das classes dominadas, trânsfugas
ou arrivistas, só podem falar porque abandonaram o lugar sem a palavra
daqueles de cuja palavra são portadores, tomando a palavra em seu lugar, e
tendem a entregar, em troca do reconhecimento (no duplo sentido do ter­
mo), o capital de informação que trouxeram consigo.2 Em suma, era preciso
pelo menos lembrar que o privilégio que se encontra no princípio de toda a
actividade teórica, na medida em que supõe um corte epistemológico, mas
também social, nunca governa tão subtilmente essa actividade como quan­
do, à falta de se mostrar como tal, conduz a uma teoria implícita da prática
que é correlativa do esquecimento das condições sociais de possibilidade da
teoria.
A relação particular que o etnólogo mantém com o seu objecto contém
também a virtualidade de uma distorção teórica na medida em que a situação
de decifrador e de intérprete inclina a uma representação hermenêutica das

O
1 A. Comte, Discours sur I 'Esprit Positif, Paris, Cariliãn-Goeury e Victor Dalmont, Fevereiro
de 1984, reeditado em Oeuvres Choisses d’August Comte, com uma introdução de henri
Gouhier, Paris, Aubier, 1943. V-
2 Se não receássemos prestar-nos a leituras ingenuamente populistas, proporíamos uma
análise mais sistemática da situação de estrangeiro que é a do etnólogo, excluído do jogo
real das actividades sociais pelo facto de não ter lugar seu (a não ser por opção ou como
por jogo) no sistema observado e por não lhe competir ocupar dentro desse sistema um
seu lugar. Limitaremos a recordar certa análise de Sartre, que esclarece um dos aspectos
melhor escondidos da verdade objectiva da situação do "explorador", quer dizer, num
sentido arcaizante, de espião, embora essa análise seja extremada um pouco depressa de­
mais e, através da metáfora, evoque certos discursos do radicalismo pueril: "O sociólogo
não está situado [...]; é possível que tente integrar-se no grupo mas trata-se de uma inte­
gração provisória, sabe que se desligará de tudo isso, que registará as suas notas de obser­
vação num registo de objectividade; em suma, assemelha-se a um desses polícias que o
cinema nos propõe muitas vezes como modelos e que conquistam a confiança de um gang
para melhor o poderem denunciar" (J. -P. Sartre, Critique de la raison dialectique, antecedi­
da de Questions de méthode, Paris, Gallimard, 1960, p. 51). Vemos, à luz deste texto, que não
é indiferente por exemplo tomarem-se por objecto as classes dominadas (na medida pelo
menos em que uma investigação se possa definir por meio de tais objectos pré-construí-
dos).
O OBSERVADOR OBSERVADO 139

práticas sociais, levando a reduzir todas as relações sociais a relações de co­


municação e todas as interacções a trocas simbólicas. Charles Bally observava
que as investigações linguísticas se orientam em direcções diferentes confor­
me incidam na língua materna ou numa língua estrangeira, insistindo em
particular na tendência para o intelectualismo que implica o facto de se apreen­
der a língua do ponto de vista do sujeito ouvinte mais que do sujeito falante,
quer dizer, como instrumento de decifração mais do que como "meio de ac­
ção e de expressão": "O auditor está do lado da língua, é com a língua que in­
terpreta a fala".3 E a exaltação das virtudes da distância proporcionadas pela
exterioridade tem, sem dúvida, por função transmutar em escolha epistemo-
lógica a situação objectiva do etnólogo — a do "espectador imparcial", como
diz Husserl —, que o leva a perceber toda a realidade e toda a prática, incluin­
do a sua, como um espectáculo.
Durante todo o tempo em que ignora os limites inerentes ao ponto de vis­
ta que assume sobre o objecto, o etnólogo condena-se a retomar inconsciente­
mente por sua conta a representação da acção que se impõe a um agente ou a
um grupo quando, desprovido do domínio prático de uma competência forte­
mente valorizada, tem de se dar o seu substituto explícito e pelo menos semi-
formalizado sob a forma de um repertório de regras ou daquilo a que os sociólo­
gos, no melhor dos casos, incluem na noção de "papel", quer dizer, o programa
predeterminado dos discursos e das acções que convêm a um certo "uso".4 E
significativo que se descreva por vezes a "cultura" como um mapa, comparação
de estrangeiro que, tendo de se orientar numa região desconhecida, supre a fal­
ta do domínio prático que só ao indígena pertence por meio de um modelo de
todos os itinerários possíveis: a distância entre este espaço virtual e abstracto,
porque desprovido de toda a orientação e de todo o centro privilegiados — à
maneira das genealogias, com o seu ego tão irreal como a origem num espaço
cartesiano —, e o espaço prático dos percursos realmente efectuados ou, me­
lhor, do percurso em vias de se efectuar mede-se pela dificuldade que há em re­
conhecer itinerários familiares num plano ou num mapa enquanto se não con­
seguiu fazer coincidir os eixos do campo virtual e esse "sistema de eixos,
____________

3 C. Bally, Le Langage et la Vie, Genebra, Droz, 1965, pp. 58,72 e 102. Também não é por acaso
que à história da arte (e, em menor grau, a da literatura) nascida da tradição do amador,
com a qual só muito raramente rompeu e que lhe legou uma tradição de exaltação con­
templativa da obra, se coloca primordialmente o problema da decifração, aproximando-se
muito nisso da linguística saussuriana e só de modo secundário se interessando pelas
condições sociais da produção, da reprodução e da circulação das obras; é por excepção e
como que por acidente que o próprio Panofsky se atem (a propósito do abade Suger e da
evolução da arquitectura gótica) ao ponto de vista do intérprete que, atendendo ao opus
operatum mais que ao modus operandi, faz da teoria da produção artística, reduzida ao con­
ceito de intenção objectiva da obra, um simples aspecto de uma teoria da decifração e da
compreensão imediata como decifração que se ignora.
4 Pense-se, em domínios muito diferentes, na pequena burguesia, grande consumidora de
livros de boas maneiras, e em todos os academismos, com os seus tratados de estilo.
140 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

invariavelmente ligados ao nosso corpo, que transportamos por todo o lado


connosco", como diz Poincaré, e que estrutura o espaço prático em direita e es­
querda, alto e baixo, à frente e atrás. O mesmo é dizer que o antropólogo não
deve apenas romper com a experiência e a representação indígenas desta expe­
riência; por meio de uma segunda ruptura, tem de pôr em questão os pressu­
postos inerentes à posição de observador estrangeiro que, preocupado com in­
terpretar práticas, tende a importar para o objecto os princípios da sua relação
com ele, como testemunha o privilégio que concede às funções de comunicação
e de conhecimento (quer se trate da linguagem, do mito ou do casamento). O
conhecimento não depende apenas, conforme ensina um relativismo elemen­
tar, do ponto de vista particular que um observador "situado e datado" toma
sobre o objecto, mas do próprio facto de, enquanto espectador que toma um
ponto de vista sobre a acção, que se retira desta para a observar, para a olhar de
longe e de cima, constituir a actividade prática em objecto de observação e de análi­
se. Os arquitectos demoraram muito tempo a darem-se conta de que a perspec­
tiva panorâmica dos seus projectos e das suas maquetas os levava a edificar ci­
dades para uma espécie de espectador divino e não para os homens destinados
a deslocarem-se nelas: o ponto de vista absoluto da ciência sem ponto de vista
aparenta-se com o ponto de vista de um deus leibniziano, que, à maneira de um
general controlando de antemão as acções, militarmente submetidas à regra,
dos seus subordinados possui em acto a essência daquilo que Adão e César têm
de aprender dentro do tempo. O objectivismo comporta sempre a virtualidade
de um essencialismo.
Há maneiras de evitar o etnocentrismo na análise dos grupos ou das
classes estrangeiros, que talvez não sejam mais que outras tantas maneiras de
manter as distâncias e de, em todo o caso, fazer da necessidade virtude, trans-
mutando em opção de método uma exclusão de facto. Assim, ex-
por-nos-ía-mos menos, sem dúvida, a encerrar a troca de honra ou a troca de
dons na aparência mais ritualizada em modelos reificados e reificantes se
soubéssemos dar-nos o domínio teórico de práticas sociais da mesma classe
da qual é possível ter-se o domínio prático. Nada é, sem dúvida, mais de mol­
de, por exemplo, para inspirar a quem a considera de fora a ilusão da necessi­
dade mecânica que a conversação obrigatória que, para se perpetuar, tem de cri­
ar e recriar sem descanso, e muitas vezes de um extremo a outro, a relação en­
tre os interlocutores, afastando-os e aproximando-os, coagindo-os a buscar,
com a mesma convicção sincera e fingida ao mesmo tempo, os pontos de acor­
do e desacordo, fazendo-os alternadamente sucumbir e triunfar, suscitando
querelas encenadas mas sempre prestes a tornarem-se sérias, rapidamente
solucionadas por compromissos ou pelo regresso ao terreno seguro das con­
vicções partilhadas. Mas, mudando radicalmente de ponto de vista, pode­
mos também apreender esta engrenagem de gestos e de palavras "de um
ponto de vista subjectivo", como diz com bastante imprudência o Marx das
Teses sobre Feuerbach, ou melhor, a partir de uma teoria adequada da prática
O OBSERVADOR OBSERVADO 141

que constitui a prática enquanto prática (por oposição quer às teorias implíci­
tas ou explícitas que a tratam como objecto, quer às que a reduzem a uma ex­
periência vivida susceptível de ser apreendida por um retorno reflexivo): a vi­
gilância incessante que é indispensável para alguém se deixar "levar" pelo
jogo sem se deixar "arrebatar" poe ele, para além dele, como acontece quan­
do o combate simulado domina os combatentes, testemunha de que compor­
tamentos tão visivelmente impostos e forçados assentam no mesmo princípio
que comportamentos mais de molde a darem a aparência igualmente engana­
dora do improviso livre, como o bluff ou a sedução, que jogam com todos os
equívocos, todos os duplos sentidos e todos os subentendidos da simbólica
corporal e verbal, para produzirem comportamentos ambíguos e, portanto,
revogáveis ao mais pequeno indício de recuo ou de recusa, e para manterem a
incerteza sobre intenções sem parar oscilantes entre o jogo e o a-sério, o aban­
dono e a distância, a solicitude e a indiferença. Basta operarmos uma tal in­
versão de perspectiva para nos apercebermos de que é possível dar conta de
todos os comportamentos de honra realmente observados (ou potencialmen­
te observáveis) que impressionam ao mesmo tempo pela sua diversidade
inesgotável e pela sua necessidade quase mecânica, e isto sem necessidade de
construir dispendiosamente modelos "mecânicos" que, no melhor dos casos,
estariam para o improviso regulado do homem de honra como um manual de
saber-viver está para a arte de viver ou um tratado de harmonia para a inven­
ção musical. Para a produção de todos os comportamentos de honra que po­
dem ser reclamados pelos desafios da existência, não é necessário possuir-se
essa espécie de "ficheiro de representações prefabricadas", como diz Jakob-
son,5 que permitiría "escolher" o comportamento conveniente em cada situa­
ção, basta ser-se detentor do domínio prático do princípio de isotimia, que quer
que todo o homem, na medida em que se situe na classe dos homens de honra
e se comporte como tal, por exemplo lançando um desafio, exige implicita­
mente ser tratado como tal e, portanto, receber uma resposta: decorre, com
efeito, deste princípio que a ausência de resposta atenta ou contra a honra da­
quele que desafia, no caso em que se afirme sem equívoco como recusa desde­
nhosa de ripostar, ou contra a honra daquele que é desafiado, uma vez que
pela sua impotência para ripostar se exclui da classe dos homens de honra na
qual fora implicitamente situado através do desafio recebido.
A linguagem da regra e do modelo, que pode parecer tolerável quando
se aplica a práticas estrangeiras, não resiste à simples evocação concreta do
domínio prático da simbólica das interacções sociais, tacto, sentido das opor­
tunidades, saber-fazer ou sentido da honra, pressupostos pelos jogos de so­
ciabilidade mais quotidianos, e que pode ser redobrado pela aplicação de
uma semiologia espontânea, quer dizer, de um corpo de preceitos, de

5 R. Jakobson, Essais de linguistique générale, Paris, Éditions de Minuit, 1963, p. 46.


142 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

receitas, de índices codificados. O melhor exemplo deste trabalho de decifra-


ção, que, permitindo situar os outros nas hierarquias da idade, da riqueza, do
poder ou da cultura, orienta os agentes, sem que eles disso tenham consciên­
cia, para o tipo de troca mais ajustado, tanto na sua forma como no seu conte­
údo, à relação objectiva entre indivíduos em interacção, é fornecido pelas si­
tuações de bilinguismo em que os locutores adoptam — de maneira perfeita-
mente inconsciente — uma ou outra das duas línguas disponíveis segundo a
situação, o objecto da conversação, o estatuto social do interlocutor (e por isso
o seu grau de cultura e de bilinguismo), etc. No caso observado, o de uma al­
deia onde coexistem o francês e o bearnês, verificam-se relações estatísticas
muito fortes entre a língua utilizada e características como o sexo, a idade, a
residência (na vila ou no lugar) e a profissão (ou o nível de instrução) dos lo­
cutores. No interior de um grupo de interconhecimento, os agentes não têm
sequer de recorrer à decifração dos índices sociais para ajustarem a forma da
sua expressão a interlocutores cujas características sociais conhecem na tota­
lidade. Temos o direito de supor que é todo o conteúdo da comunicação (e não
só a língua usada) que se encontra inconscientemente modificado pela estru­
tura da relação entre os locutores. A solicitação da situação objectiva, social­
mente qualificada, na qual se efectua a comunicação é tal que, como cada um
faz a sua experiência, é toda uma linguagem, um tipo de gracejos, um tom,
por vezes até um sotaque, que se vêem como que objectivamente reclamados
por certas situações e que são pelo contrário excluídos, a despeito de todos os
esforços de evocação, noutras situações. Sabe-se, por exemplo, como é difícil
fazer reviver numa outra situação social as peripécias de uma aventura vivi­
da num contexto social diferente. Charles Bally mostra bem que o próprio
conteúdo da comunicação, a natureza da linguagem''’? de todas as formas de
expressão usadas (postura, procedimento, mímica, etc.), e sobretudo, talvez,
o seu estilo, são afectados pela referência permanente à estrutura da relação
social entre os agentes que a efectuam e,. mais precisamente, à estrutura das
suas posições relativas nas hierarquias dà idade, do poder, do prestígio e da
cultura: "Falando com uma pessoa, ou falando dela, não posso impedir-me
de me recordar das relações particulares (familiares, correctas, obrigatórias,
oficiais) que existem entre essa pessoa e a minha, involuntariamente, e penso
não só na acção que ela pode exercer sobre mim como também na sua idade,
sexo, condição e meio social a que pertence; todas estas considerações podem
modificar a escolha das minhas expressões e fazer-me evitar tudo o que seria
susceptível de afastar, ofender, desgostar. Se necessário, a linguagem torna-se
reservada, prudente, pratica a atenuação e o eufemismo, desliza em vez de
pesar".6 Este conhecimento prático, que assenta na descodificação contínua
dos índices "percebidos" e não "apercebidos" do acolhimento dado às acções

6 C. Bally, op. cit., p. 21.


O OBSERVADOR OBSERVADO 143

já efectuadas, opera continuamente os controlos e as correcções destinados a


assegurarem o ajustamento das práticas e das expressões às expectativas e às
reacções dos outros agentes e funciona à maneira de um mecanismo de
auto-regulação encarregado de redefinir continuamente as orientações da ac­
ção em função da informação recebida sobre a recepção da informação emiti­
da e sobre os efeitos produzidos por essa informação. Vê-se que o paradigma
tipicamente hermenêutico da troca de palavras é, sem dúvida, menos ade­
quado do que o da troca de golpes usado por George H. Mead,7 nas lutas entre
cães, tal como entre crianças ou pugilistas, pois cada gesto desencadeia uma
réplica, cada posição do corpo do adversário é tratada como um signo cheio
de uma significação que é preciso captar no estado nascente, adivinhando no
esboço do golpe ou da esquiva o futuro que contém, quer dizer, o golpe ou a
finta. E a própria finta, no boxe como na conversação, nas trocas de honra
como nas transacções matrimoniais, supõe um adversário capaz de prevenir
e ripostar a partir de um movimento apenas esboçado e, portanto, susceptível
de ser apanhado em contrapé nas suas antecipações. O observador que
menospreza tudo o que implica a sua posição é levado a esquecer, entre ou­
tras coisas, que aquele que está empenhado na partida não pode esperar que
o gesto termine para o decifrar sob pena de sofrer a sanção prática desse atra­
so e que, como diz Austin, se podem "fazer coisas com palavras", quer dizer,
informar a acção dos outros e não só o seu pensamento, além de que o sentido
de uma informação, o qual nunca é o seu próprio fim—excepto para o erudi­
to ou para o esteta —, não é em última análise outra coisa senão o conjunto das
acções que desencadeia.

7 G. H. Mead, L'Esprit, le Soí et la Société, Paris, PUF, 1963, pp. 37-38.


Capítulo 2
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO

O mundo social pode formar o objecto de três modos de conhecimento teóri­


co, que implicam em cada caso um conjunto de teses antropológicas, as mais
das vezes tácitas, e que, embora não sejam de maneira alguma exclusivos,
pelo menos de direito, apenas têm em comum o facto de se oporem ao modo
de conhecimento prático. O conhecimento a que se chamará fenomenológico
(ou, se se quiser falar em termos de escolas actualmente existentes, "interac-
cionista" ou "etnometodológico") explicita a verdade da experiência primei­
ra do mundo social, quer dizer, a relação de familiaridade com o ambiente fa­
miliar, apreensão do mundo social como mundo natural e óbvio, que, por de­
finição, não se reflecte e que exclui a questão das suas próprias condições de
possibilidade. O conhecimento a que podemos chamar objectivista (e do qual
a hermenêutica estruturalista é um caso particular) constrói as relações objec-
tivas (e. g. econômicas ou linguísticas) que estruturam as práticas e as repre­
sentações das práticas, quer dizer, em particular, o conhecimento primeiro,
prático e tácito, do mundo familiar, ao preço de uma ruptura com esse conhe­
cimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos
que conferem ao mundo social o seu carácter de evidência e de naturalidade:
é, com efeito, na condição de pôr a questão que a experiência dóxica do mundo
social por definição exclui, a das condições (particulares) que tornam possí­
vel essa experiência, que o conhecimento objectivista pode estabelecer quer
as estruturas objectivas do mundo social, quer a verdade objectiva da expe­
riência primeira como privada do conhecimento explícito de tais estruturas.
Por fim, o conhecimento a que podemos chamar praxeológico tem por objecto
não só o sistema das relações objectivas que o modo de conhecimento objecti­
vista constrói, mas também as relações dialécticas entre essas estruturas objec­
tivas e as disposições estruturadas nas quais elas se actualizam e que tendem a
reproduzi-las, ou seja o duplo processo de interiorização da exterioridade e
de exteriorização da inferioridade: este conhecimento supõe uma ruptura
com o modo de conhecimento objectivista, quer dizer, uma interrogação

145
146 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

sobre as condições de possibilidade e, por isso, sobre os limites do ponto de


vista objective e objectivante que apreende as práticas a partir do exterior
como facto consumado, em vez de construir o seu princípio gerador, situan-
do-se no próprio movimento da sua efectuação.
Se o modo de conhecimento praxeológico pode parecer um regresso
puro e simples ao modo de conhecimento fenomenológico e se a crítica do ob-
jectivismo que implica se expõe a ser confundida com a crítica que o humanis­
mo ingênuo endereça à objectivação científica em nome da experiência vivida
e dos direitos da subjectividade, é porque é produto de uma dupla translação
teórica: opera, com efeito, uma nova inversão da problemática que a ciência
objectiva do mundo social como sistema de relações objectivas e independen­
tes das consciências e das vontades individuais constituiu, pondo ela própria
as questões que a experiência primeira e a análise fenomenológica dessa aná­
lise tendiam a excluir. Do mesmo modo que o conhecimento objective
introduz a questão das condições de possibilidade da experiência primeira,
revelando assim que essa experiência se define fundamentalmente como não
pondo essa questão, também assim, o conhecimento praxeológico volta a pôr
de pé o conhecimento objectivista e as condições de possibilidade de tal ques­
tão (condições teóricas e também sociais), dando ver no mesmo acto que o co­
nhecimento objectivista se define, fundamentalmente, como excluindo essa
questão: na medida em que se constitui contra a experiência primeira, apre­
ensão prática do mundo social, o conhecimento objectivista vê-se desviado
da construção da teoria do conhecimento prático do mundo social, cuja falta
produz, pelo menos negativamente, o conhecimento teórico do mundo social
contra os pressupostos implícitos do conhecimento prático do mundo social;
o conhecimento praxeológico não anula as aquisições do conhecimento ob­
jectivista, mas conserva-as e supera-as, integrando aquilo que esse conheci­
mento tivera de excluir para as obter.1
Esta espécie de experiência cruzada do mundo social, a saber a familiari­
zação com um mundo estrangeiro e o desenraizamento de um mundo familiar
que são constitutivos de qualquer operação científica nas ciências do homem,
ensina coisa diferente de um regresso aos mistérios e às miragens da subjecti­
vidade: a exploração objectiva do mundo mais familiar e da experiência indí­
gena desse mundo é, ao mesmo tempo, uma exploração dos limites de toda a
exploração objectiva. Ensina que não escaparemos à alternativa ritual do ob-
jectivismo e do subjectivismo em que as ciências do homem se deixaram en­
cerrar até aqui, a não ser na condição de nos interrogarmos sobre o modo de
produção e de funcionamento de domínio prático que torna possível uma

1 Poderão ler-se mais adiante as análises da troca de dons apresentadas como uma ilustra­
ção paradigmática da teoria das relações entre os três modos de conhecimento teórico (ou
seja o modo de conhecimento fenomenológico, com a análise de Mauss, o modo de co­
nhecimento objectivista, com a análise de Lévi-Strauss, e a análise praxeológica).
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 147

acção objectivamente inteligível e de subordinarmos todas as operações da


prática científica a uma teoria da prática e da experiência primeira da prática
que nada tem a ver com uma restituição fenomenológica da experiência vivi­
da e, inseparavelmente, com uma teoria das condições de possibilidade teóri­
cas e sociais da apreensão objectiva ou, no mesmo acto, com os limites deste
modo de conhecimento. O conhecimento praxeológico distingue-se do feno-
menológico, cujas aquisições, sobre um ponto essencial, integra, assumindo,
com o objectivismo, que o objecto de ciência é conquistado contra a evidência
do senso comum por uma operação de construção que é, indissociavelmente,
uma ruptura com todas as representações "preconstruídas", tais como classi­
ficações preestabelecidas e definições oficiais. Isto equivale a recusar absolu­
tamente a teoria da teoria que leva a reduzir as construções da ciência social a
"constructs of the second degree, that is constructs of the constructs made by
the actors on the social scene",2 como faz Schutz, ou, como Garfinkel, a ac­
counts dos accounts que os agentes produzem e através dos quais estabelecem
o sentido do seu mundo.3 Podemos dar-nos por objective fazer um account
dos accounts na condição de não apresentarmos o que é uma contribuição à
ciência da representação pré-científica do mundo social como a ciência do
mundo social. De facto, é ainda conceder demasiado, porque uma ciência das
representações do sentido comum que entende não se reduzir a uma simples
descrição tem por condição prévia a ciência das estruturas que comandam
quer as práticas quer as representações concomitantes, principal obstáculo à
construção dessa ciência.4 Em suma, temos o direito de nos recusarmos a re­
duzir a ciência social ao trazer à luz estruturas objectivas, mas na condição de
nunca perdermos de vista que a verdade das experiências reside, contudo,
nas estruturas que as determinam. De facto, a construção das estruturas ob­
jectivas (curvas de preços, probabilidades de acesso ao ensino superior ou leis
do mercado matrimonial) é o que permite pôr a questão dos mecanismos
através dos quais se estabelece a relação entre as estruturas e as práticas ou as
representações que as acompanham em vez de fazermos desses thought ob­
jects, tratados como "razão" ou "motivos", a causa determinante das práticas.

2 Cf. A. Schutz, Collected Papers. I. The Problems of Social Reality, editado por e com uma in­
trodução de Maurice Nathanson, Haia, Martinus Nijhff, 1962, p. 59. Schutz entende mos­
trar que a contradição que ele próprio comprova entre aquilo a que chama o postulado da
interpretação subjectiva e o método das ciências mais avançadas, como a economia, é
apenas aparente (cf. pp. 34-35).
3 H. Garfinkel, Studies in Ethnomethodology, Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall, 1967;
P. Attewell, "Ethnomethodology since Garfinkel", Theory and Society, Vol. 1, n.° 2, Verão
de 1974, pp. 179-210.
4 Assim, como tentaremos mostrar mais adiante, é a construção objectivista da estrutura
das probabilidades estatísticas objectivamente ligadas a uma condição econômica e so­
cial (a de uma economia de reprodução simples ou de um subproletariado, por exemplo)
que permite dar totalmente conta da forma da experiência temporal que a análise feno­
menológica traz à luz do dia.
148

Com efeito , ESBOÇO DE UMA teoria da prática

^Presentaçõ^dT010 apenas em conta na m


representação on VCm a ^gica das intern a^a ISe apuPo 9ue as práticas e as
dència, da acXe °S podem fn SÍmbóHcas\ em particular, à

confrontados o ini°S °Utros agentes com P°r antecipação ou por expe-

ras objectivasarei e ~accr°nismo reduz nc°S3U~is se encontram directamente


slÇoes; excluindo a Ç°eS lntersubiectiva<i ações entre P°sições nas estrutu-

í®*"1*»»queosa„ a essas estruturas as


Presentações o priT”9 eSp°ntânea da aecT^5 deIas Podem ter e assumindo
ransformarem o m,” j10 úítímo de estrJi° PUG íaz do a8ente ou das suas re-
° social a visão nen nd° SocÍ£d (o que en. e^las caPazes de produzirem e de
que fazemos e qUe ^Ueno'burguesa dasl i^-6 ã tornar numa teoria do mun-
da Estabelecer faAZemos). ela?oes sociais como qualquer coisa

Pe^alinguagemcom^m' eiaP^P^conJ^ *^aiS que uma conceptualização


dencia da sociedad m/C°1Tloíazaetnom1pela enunciação, quer dizer,
dem estabelecida í 6 Um regishd^°doloSia'é a^m disso identificar

1° PrOdu^ um direboXÍ vt tal COm° este se dá' ™ se>'da °r'


derl^^oafunX °S accounts na ^aÍS'de nos darmos Por °bjecd'
er constitutivo qUe /a° pUe é atribuída™** ^a° de terrnos claramente pre~
de ^rUP0queaautorÍ7C01íCed’doàlingnánapradca'a<5ua^querflCCOWKboE°”
e autoridade, l L e Jhe dá autoriS®^ C°mum não reside nesta' ®aS
ic
e0 Peusável e o im^^06 0 <?Ue enunr• ir,^uagem oficial, autorizada e
Or/
um ,SÍíribóEca e da P®nsável, e contríh^' debn^ndo tacitamente os limites
ciai3 ÍÍn§Uagem se°rdern SOcial que ]h Ulnd° assim Para a manutenção da
constr3 ~Ua eficáda /J resHí«ir as^uní6/0^6 a Sua autoridade. Registar
Pess V?a° da reaEdad exisdr cienfipS ^Ue PreencEe e as condições so~
d<; uma^^^^presenn OdaJ quenuSí?e, assim, legitimar uma
mem .®ruP° determin ^Çaodorealmak 6Umas^rnP^esexPeriêriciaintimae
Ponto afastado ri °’ ^aisprofunJmc°nformidadecom os interesses

do soe' ^ÍStanatural"
n
6 tOda a análi
SP ,
meníe' aquilo que se acha funda-
te em 4 a ea<ÍUesta odas^ UeéCOrisíi tutivari e,?°menológica da "tese geral do
denm?mara^ exPeriência originária" do muu'
ePokhe aPàTí‘&ir como um como &i SOciais dessa crença que consis-
que o mUer dizer' como a tese>? °u, mais 6 ãsedá"' sequea "redução" f^a
questão rind° da atitude Uma SUsPensão d e^actamente, como uma epokhe da
W con faS C0^ões Inatural 4 de dÚVÍda sob« a possibilidade de
^undodUZ à exPEcitacãnPOrtant°/dos n “ 5° modo- À falta de estabelecer a
SOcia! que 2 a fenomenolL es de alidade - da experiência
<?e
Ue está

-—____ ass°ciad
a a UJ^ ^^^a uma experiênciaido
5 F j, 1P° determinado de condiÇôeS
^•^usseri
w.r.8o.
'yce GibSon N
forque, Collin-Macrnillan, 1962, p-
149
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO

econômicas e sociais cuja P^^^^g^S^Nas soctedades divi-


ções sociais encerradas no ciclo da repro Ç da em iOgo de uma luta
didas em classes, em que a definição Xnhe o^ampo da opinião,
aberta ou lavrada entre as classes, a de Ç auestão (supondo a opi-
quer dizer, daquilo que é exPlicitam^ rtantO/Ipossibilidadeealegiti-
nião, ortodoxa ou heterodoxa, a questa , P ' diverso); e o campo
midade de uma outra resposta, defend ~ p Q agente concede tacita-
da doxa, daquilo que está fora de questão e q de acordo com as
mente ao estado de coisas actual pelo simp e . fundamental dessa
conveniências sociais, é ela própria uma pam anela imposição dos siste-
forma da luta política entre as classes que e a ip fnadas têm interesse em fa­
mas de classificação dominantes: as classes arf,dr^rio no taken for
zer recuar os limites da doxa, em manifestar ° q & ^e„rjdade da doxa ou, à
granted; dominantes interessa-lhes de en sarjainente imperfeito, que
falta disso, em restaurarem o seu substitu o, preendida da experiência
é a ortodoxia. Vemos aquilo que a análise assi do conhecimento que
ingênua do mundo social pode trazer a uma® manifestando os mecanis-
é, inseparavelmente, uma sociologia da p ' manutenção da ordem
mos gnoseológicos que contribuem par
estabelecida. . . no ferreno por excelência do
Contudo, devemos deter-nos um ms semiologia. Quando Saussure
objectivismo, o da linguística saussuriana e ,utív(q às suas actualizações
constitui a língua como objecto a"t0n°m° „ossíveis, ou quando Pa-
a
concretas, quer dizer, aos actos de fa a q de AloísRiegl, Kunstwol-
nofsky estabelece que aquilo a que chama, n . da odra —7 e irredutível
len — isto é, aproximativamente, o sen i o época" e às experiências vi-
tanto à "vontade" do artista como à' vontaa ósito desse com-
vidas que a obra suscita no espectador, e es dutos particulares da acção,
portamento particular, que é a fala, e esse p qUalquer ciência objecti-
que são as obras de arte, a operação atrav a objectivas irredutível tan-
vista se forma, constituindo um sistema de rei ç ^^g dos sujeitos
to às práticas nos quais se realiza e se mam coacções e da sua lógica. Do
e à consciência que estes podem tomar as deiro meio da comunicação
mesmo modo que Saussure faz ver que ° imediato considerado na sua
entre dois sujeitos não é o discurso como dado imedi

objectivas disposições como o natu-

6 A ciência social não pode separar das suas cond Ç ) descreve como operações
ral standpoint ou operações como a epokhe, que a eno egtruturas objectivas e su-
puras da consciência: a crítica da doxa é insepar v & experiência correlativa.
Põe a existência da linguagem crítica que permi e nto sentido último e defini-
7 Aquilo que se 'dá' não para nós, mas objecti ' KunstWollens", Zeitschriftfilr
tivo do fenômeno artístico" (E.Panofsky, g pp. 321-339.
Aesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft, X , /r
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
150

Emissor (A)--------------- > Forma sensível: ---------- ► Receptor (B)


canal descodificação Sentido:
codificação factos simbólicos,
Percepção da retomar
(intenção comportamentos
forma sensível da intenção
significante) (entre os quais a fala)
apreendida objectiva
e objectos culturais
enquanto do facto
(entre os quais
facto simbólico simbólico
a obra de arte)
dotados de uma
intenção objectiva

materialidade observável, mas a língua como estrutura de relações objectivas


que torna possível quer a produção do discurso, quer a sua descodificação,
assim também Panofsky mostra que a interpretação semiológica trata as pro­
priedades sensíveis da obra de arte, com as experiências afectivas que ela sus­
cita, como simples "sintomas culturais" que só entregam por completo o seu
sentido a uma leitura armada do código cultural que o criador envolveu na
sua obra.
A "compreensão" imediata supõe uma operação inconsciente de desco­
dificação que só é perfeitamente adequada no caso em que a competência en­
volvida na sua prática ou nas suas obras por um dos agentes forma uma só co­
isa com a competência envolvida1 objectivamente pelo outro agente na sua
percepção desse comportamento ou dessa obra, quer dizer, no caso particular
em que a codificação como transformação de um sentido numa prática ou
uma obra coincide com a operação de descodificação simétrica. Acto de des­
codificação que se ignora como tal, a "compreensão" só é possível e só se efec-
tua realmente no caso particular em que aquele historicamente produzido e
reproduzido que toma possível o acto de decifração (inconsciente) é de ime­
diato e por completo dominado (a título de disposição cultivada) pelo agente
percepciente e se confunde com o código que tornou possível (a título de dis­
posição cultivada) a produção do comportamento ou da obra percebida. Em
todos os outros casos, o mal-entendido parcial ou total é a regra, conduzindo
a ilusão da compreensão imediata a uma compreensão ilusória, a do etnocen-
trismo enquanto erro sobre o código: em suma, quando se inspira numa fé in­
gênua na identidade em humanidade e quando, assim, não dispõe de qual­
quer outro instrumento de conhecimento além da "transferência intencional
para outrem", como diz Husserl, a interpretação mais "compreensiva"
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 151

arrísca-se a não ser mais que uma forma particularmente impecável de


etnocentrismo.
Colocados numa situação de dependência teórica em relação à linguísti­
ca, os etnólogos estruturalistas envolveram com frequência, na sua prática, o
inconsciente epistemológico engendrado pelo esquecimento dos actos por meio
dos quais a linguística construiu o seu objecto próprio: herdeiros de um patri­
mônio intelectual que eles próprios não constituíram e cujas condições de
produção continuam a não saber reproduzir, satisfizeram-se demasiadas ve­
zes com essas traduções literais de uma terminologia dissociada da ordem de
razões da qual extrai o seu sentido, poupando-se a uma reflexão epistemoló-
gica sobre as condições e os limites de validade da transposição da construção
saussuriana. É significativo, por exemplo, que, à excepção de Sapir, predis­
posto pela sua dupla formação de linguista e de etnólogo a pôr o problema
das relações entre cultura e língua, nenhum antropólogo tenha tentado apre­
ender todas as implicações da homologia (que Leslie White é praticamente o
único a formular em termos explícitos) entre as duas seguintes oposições, a
da língua e da fala, e a da cultura e do comportamento ou das obras. Estabele­
cendo que a comunicação imediata é possível se, e apenas se, os agentes esti­
verem objectivamente de acordo para associar o mesmo sentido ao mesmo
signo (fala, prática ou obra) e o mesmo signo ao mesmo sentido—ou, noutros
termos, de maneira a que se refiram, nas suas operações de codificação e des­
codificação, quer dizer, nas suas práticas e interpretações, a um só e mesmo
sistema de relações constantes, independentes das consciências e das vonta­
des individuais”e irredutíveis à sua execução em práticas ou obras (código ou
cifra) —, a análise objectivista não opõe um desmentido propriamente dito à
análise fenomenológica da experiência primeira do mundo social e da com­
preensão imediata das palavras e dos actos de outrem: define apenas os seus
limites de validade estabelecendo as condições particulares em que ela é pos­
sível e que a análise fenomenológica ignora. Se, para citarmos Husserl, as
ciências do homem são necessariamente "ciências com uma temática de du­
pla orientação consequente, uma temática que liga de maneira lógica a teoria
do domínio científico com uma teoria do conhecimento dessa teoria" e se,8
noutros termos, a reflexão epistemológica sobre as condições de possibilida­
de da ciência antropológica faz parte integrante desta, é em primeiro lugar
porque uma ciência que tem por objecto aquilo que a torna possível, como a
língua ou a cultura, não pode formar-se sem constituir as suas próprias condi­
ções de possibilidade, mas é também porque o conhecimento completo das
condições da ciência, quer dizer, das operações graças às quais a ciência se dá
o domínio simbólico de uma língua, de um mito ou de um rito, implica o co­
nhecimento da compreensão primeira como efectuação das mesmas

8 E. Husserl, Logique t'ormelle et Logique Transcendentale, Paris, PUF, 1965, p. 52.

urns
iií
152 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

operações, só que de um modo completamente diferente, na inconsciência


absoluta das condições gerais e particulares que lhe conferem a sua
particularidade.
No entanto, basta interrogarmos uma vez mais as operações teóricas
por meio das quais Saussure constitui a linguística como ciência construtora
da linguagem como objecto autônomo, distinto das suas actualizações na
fala, para trazermos à luz do dia os pressupostos implícitos de qualquer
modo de conhecimento que trate as práticas ou as obras enquanto factos sim­
bólicos que está em questão descodificar e, de um modo mais geral, mais en­
quanto obras feitas que enquanto práticas. Embora seja possível invocar-se
existência das línguas mortas ou do mutismo tardio como possibilidade de se
perder a fala ao mesmo tempo que a língua se conserva, embora o erro de lin­
guagem faça aparecer a língua como norma objectiva da fala (se fosse de ou­
tra maneira, qualquer erro de linguagem modificaria a língua e deixaria de
haver erros de linguagem), a fala mostra-se como a condição da língua, tanto
do ponto de vista individual como colectivo, dado que aquela não pode ser
apreendida fora da fala, que a aprendizagem da língua se faz por meio da fala
e que esta está na origem das inovações e transformações da língua. Mas os
dois processos invocados não têm outra prioridade que não seja cronológica,
e quando deixamos o terreno da história individual ou colectiva, como faz a
hermenêutica objectivista, para nos interrogarmos sobre as condições lógicas
da descodificação, a relação inverte-se: a língua é a condição de inteligibilidade
da fala enquanto mediação que, assegurando a identidade das associações de
sons e de conceitos operadas pelos locutores, garante a compreensão mútua.
O mesmo é dizer que, na ordem lógica da inteligibilidade, a fala é produto da
língua,9 donde decorre que, porque se constrói do ponto de vista estritamente
intelectualista que é o da descodificação, a linguística saussuriana privilegia
a estrutura dos signos, quer dizer, as relações que os signos mantêm entre si,
em detrimento das suas funções práticas, que nunca se reduzem, como tacita-
mente supõe o estruturalismo, a funções de comunicação ou de conhecimen­
to, orientando-se as práticas mais estritamente voltadas para as funções de
comunicação pela comunicação (função fáctica) ou de comunicação em vista
do conhecimento, como as festas e as cerimônias, as trocas rituais ou, num do­
mínio completamente diferente, a circulação de informação de maneira mais
ou menos aberta para funções políticas e econômicas.
A construção saussuriana não permite constituir as propriedades estru­
turais da mensagem enquanto tais, ou seja, como sistema, a não ser dando-se
um emissor e um receptor impessoais e intercambiáveis, quer dizer, quais­
quer, e abstraindo das propriedades funcionais que cada mensagem deve à
sua utilização numa certa interacção socialmente estruturada. De facto, sabemos

9 F. de Saussure, Cours de Linguistique Générale, Paris, Payot, 1960, p. 37-38.


OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 153

de muitas maneiras que as interacções simbólicas no interior de um grupo


qualquer dependem não apenas,10 como vê bem a psicologia social, da estru­
tura do grupo de interacção no qual se efectuam, mas também das estruturas
sociais nas quais se acham inseridos os agentes em interacção (e. g. a estrutura
das relações de classe), sendo assim provável que uma medida das trocas sim­
bólicas que permitisse distinguir, com Chapple e Coon,11 as que não fazem se­
não emitir (originate), as que se limitam a responder e as que respondem em in­
tenção das primeiras e emitem em intenção das segundas, fizesse aparecer tan­
to à escala de uma formação social no seu conjunto como no interior de um gru­
po circunstancial a dependência da estrutura das relações de força simbólica
relativamente à das relações de força política. O modelo da concorrência pura e
perfeita é tão irreal aqui como noutros lugares e o mercado dos bens simbólicos
tem também os seus monopólios e as suas estruturas de dominação.
Em suma, a partir do momento em que passamos da estrutura da língua
às funções que ela preenche, isto é, aos usos que os agentes dela realmente fa­
zem, damo-nos conta de que o simples conhecimento do código só muito im­
perfeitamente permite dominar as interacções linguísticas realmente efectua-
das. Com efeito, como observa Luís Prieto, ç> sentido de um elemento linguís­
tico depende pelo menos tanto de factores extralinguísticos como de factores
linguísticos, quer dizer do contexto e da situação em que é usado: tudo se passa
como se, na classe dos significados que correspondem abstractamente a uma
fonia, o receptor "seleccionasse" aquele que lhe parece mais compatível com
as circunstâncias conforme ele as percebe.12 Isto significa que a recepção (e
sem qualquer dúvida também a emissão) depende em grande parte da estru­
tura objectiva das relações entre as posições objectivas na estrutura social dos
agentes em interacção (e. g. relações de concorrência ou de antagonismo ob­
jective ou relações de poder e de autoridade, etc.), estrutura essa que coman­
da a forma das interacções observadas numa conjuntura particular (e. g. a cor­
relação que se estabelece, segundo Moscovici, entre a quantidade de emis­
sões verbais e a categoria sociométrica). Os que, linguistas ou antropólogos,
recorrem ao "contexto" ou à "situação" para "corrigirem" de certo modo
aquilo que o modelo estruturalista lhes parece ter de irreal e abstracto dei-
xam-se encerrar na própria lógica do modelo teórico que tentam justificada-
mente superar. Assim, o método chamado "análise situacional" (situational
analysis),13 que consiste em "observar os agentes em situações sociais

10 S. Moscovici e M. Pion, "Les situations-colloques: observations théoriques et expérimen-


tales", Bulletin de psychologic, Janeiro de 1966, pp. 701-722.
11 E. D. Chapple e C. S. Coon, Principles of Anthropology, Londres, J. Cape, 1947, p. 283.
12 L. J. Prieto, Príncipes de noologie, Paris, Mouton, 1964, e J. C. Pariente, "Vers un nouvel es­
prit linguistique?", Critique, Abril de 1966, pp. 334-358.
13 J. van Velsen, The Politics of Kinship. A Study in Social Manipulation among the Lakeside Ton­
ga, Manchester, Manchester University Press, 1964, reed. 1971.
154 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

diferentes" a fim de determinar "como os indivíduos são capazes de operar


escolhas nos limites de uma estrutura social específica",14 permanece encer­
rado, ao que parece, na alternativa da regra e da excepção, que Leach (do qual
os defensores da "análise situacional" se reclamam com gosto) exprime com
toda a clareza: "Postulo que sistemas estruturais nos quais todas as vias da ac­
ção social estão estreitamente institucionalizados são impossíveis. Em qual­
quer sistema viável, deve existir um espaço onde o indivíduo é livre de es­
colher de maneira a fazer funcionar o sistema em seu benefício".15
Se nos deixamos impor a alternativa do modelo e da situação, da estrutu­
ra e das variações individuais, outras tantas formas da oposição entre o modelo
e a execução, condenamo-nos a tomar apenas a posição simétrica da abstracção
estruturalista que absorve as variações, tratadas como simples variantes, no in­
terior da estrutura: a preocupação de "integrar (integrate) variações, excepções
e acidentes nas descrições das realidades" e de mostrar "como os indivíduos
dentro de uma estrutura particular enfrentam as escolhas com as quais são con­
frontados, do mesmo modo que os indivíduos em todas as sociedades",16 con­
duz a uma regressão ao estádio pré-estruturalista do indivíduo e das suas esco­
lhas e a mascarar o próprio princípio do erro estruturalista.17
Com efeito, se nada manifesta melhor a insuficiência da teoria da práti­
ca que assombra o estruturalismo linguístico (e também etnológico) do que a
sua impotência para integrar na teoria tudo o que releva da execução, como
diz Saussure, continua a ser verdade que o princípio dessa impotência reside
na incapacidade de pensar a fala e mais geralmente a prática a não ser como
execução:18 o objectivismo constrói uma teoria da prática (enquanto execu­
ção) mas apenas como um subproduto negativo ou, se se pode dizer, como
____________

14 Cf. M. Gluckman, "Ethnographic Data in British Social Anthropology", Sociological Revi­


ew, IX (1), Março 1961, pp. 5-17.
15 E. Leach, "On Certain Unconsidered Aspects of Double Descent Systems", Man, LXII,
1962, p. 133.
16 J. van Velsen, op. cit., p. XXVI. 0>
17 Apesar deste ponto de desacordo, as análises de J. Van Velsen concordam, no essencial,
com a minha análise dos usos estratégicos das relações de parentesco (que foi escrita an­
tes de eu ter conhecimento de The Politics of Kinship). Cf. por exemplo, nas pp. 73-74, a se-
lecção dos parentes "práticos" no interior dos nominal kinsmen; na p. 182, o matrilineal des­
cent como racionalização privilegiada de acções determinadas por outros factores, ou a
função da idealização do cross-cousin marriage as a mean of counteracting the fissiparotis ten­
dencies in the marriage and thus the village.
18 "A parte psíquica também não está inteiramente em jogo: o lado executivo permanece
fora de causa, porque a execução nunca é feita pela massa, é sempre individual e é sempre
o indivíduo a dominá-la — chamar-lhe-emos a fala" (F. de Saussure, op. cit., p. 30). A for­
mulação mais explícita da teoria da fala como execução encontra-se, sem dúvida, em
Hjelmslev, que põe bem em evidência as diferentes dimensões da oposição saussuriana
entre a língua e a fala, ou seja, instituição, social, "rígida" e execução, individual, não rígi­
da (L. Hjelmslev, Essais linguistiques, Copenhague, Nordisk Sprog-og Kulturforlag, 1959,
sobretudo p. 79).
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 155

um desperdício, imediatamente posto na sucata, da construção dos sistemas


de relações objectivas. É assim que, querendo delimitar no interior dos factos
de linguagem o "terreno da língua" e destacar um "objecto bem definido",
um "objecto que se possa estudar separadamente", "de natureza homogê­
nea", Saussure põe de lado "a parte física da comunicação", quer dizer, a fala
como objecto preconstruído, de molde a fazer obstáculo à construção da lín­
gua, e a seguir isola no interior do "circuito de fala" aquilo a que chama "o
lado executivo", ou seja, a fala enquanto objecto construído e definido pela
actualização de um certo sentido numa combinação particular de sons, que
acaba por eliminar invocando o facto de que "a execução nunca é feita pela
massa", mas "sempre individual". Assim, o mesmo conceito, o de fala, vê-se
desdobrado pela construção teórica num dado preconstruído e imediatamente
observável, esse mesmo contra o qual se efectuou a operação de construção
teórica, e num objecto construído, produto negativo da operação que constitui
a língua enquanto tal, ou melhor, que produz os dois objectos, originando a
relação de oposição na qual e pela qual eles se encontram definidos. Não seria
difícil mostrarmos que a formação do conceito de cultura (no sentido da an­
tropologia cultural) ou de estrutura social (no sentido de Radcliffe-Brown e
da antropologia social) implica também a construção de uma noção de com­
portamento como execução que vem dobrar a noção primeira de comporta­
mento tomado pelo seu valor facial. A confusão extrema dos debates sobre as
relações entre a "cultura" (ou as "estruturas sociais") e o comportamento tem
as mais das vezes por princípio o facto de o sentido construído do comporta­
mento e a teoria da prática que implica levarem uma espécie de existência
clandestina no discurso tanto dos defensores como dos adversários da antro­
pologia cultural. Com efeito, os adversários mais encarniçados da noção de
"cultura", como Radcliffe-Brown, nada melhor que um realismo ingênuo têm
para opor ao realismo do inteligível que faz da "cultura" uma realidade trans­
cendente, dotada de uma existência autônoma e obedecendo, na sua própria
história, às suas leis internas.19 O objectivismo encontra-se protegido contra a

19 "Dizer dos modelos que agem sobre um indivíduo não é menos absurdo que considerar
uma equação do segundo grau capaz de cometer um homicídio" (A. R. Radcliffe-Brown,
Structure and Function in Primitive Society, Londres, Oxford University Press, 1952, p. 190).
"Examinemos em que consistem os factos concretos, observáveis, dos quais o antropólo­
go social se ocupa. Se começamos a estudar, por exemplo, os indígenas de uma região da
Austrália, depara-se-nos com um certo número de indivíduos humanos num meio ambi­
ente determinado. Podemos observar os seus comportamentos, incluindo naturalmente
a sua fala, e os produtos materiais das suas acções passadas. Não observamos uma "cul­
tura", uma vez que esse termo designa não uma realidade concreta, mas uma abstracção
e, no seu uso mais corrente, muito vaga. Contudo, é a observação directa que nos revela
que os seres humanos em causa estão ligados por uma rede complexa de relações sociais
a que chamo "estrutura social" as quais são dotadas de uma existência efectiva (this net­
work of actually existing relations') (A. R. Radcliffe-Brown, "On Social Structure", Journal of
the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, Vol. 70,1940, pp. 1-12). Não é,
156 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

única posição em questão decisiva, a que se dirigisse à sua teoria da práticq


princípio de todas as aberrações metafísicas sobre "o lugar da cultura", sobre
o modo de existência da "estrutura" ou sobre a finalidade inconsciente da bis.
tória dos sistemas, para já não falarmos da demasiado famosa "consciência
colectiva", pelo estado implícito em que a teoria em causa se encontra.20
Em resumo, à falta de construir a prática a não ser de maneira negativa,
quer dizer, enquanto execução, o objectivismo está condenado ou a deixar in­
teiramente por resolver a questão do princípio de produção das regularida-
des que se contenta então com registar, ou a reificar abstracções por meio de
um paralogismo que consiste em tratar os objectos construídos pela ciência,
quer se trate da "cultura", das "estruturas", das "classes sociais" ou dos "mo­
dos de produção", etc., como realidades autônomas, dotadas de uma eficácia
social e capazes de agirem enquanto sujeitos responsáveis de acções históri­
cas ou enquanto poder capaz de coagir as práticas. Se tem pelo menos o méri­
to de afastar as formas mais grosseiras do realismo das idéias, a hipótese do

sem dúvida, excessivo vermos o princípio da confusão extrema dos debates sobre a no­
ção de cultura no facto de a maior parte dos autores porem no mesmo plano, pelo menos
para os oporem, conceitos de estatutos epistemológicos muito diferentes, como a cultura
e a sociedade ou o indivíduo ou o comportamento, etc. O diálogo imaginário sobre a no­
ção de cultura apresentado por Clyde Kluckhohn e William H. Kelly (cf. C. Kluckhohn
and W. H. Kelly, "The Concept of Culture", em The Science of Man in the World Crisis, R.
Linton (org.), Nova Iorque, Columbia University Press, 1945, pp. 78-105) dá deste debate
uma imagem talvez mais sumária, mas mais vivas que a obra de A. L. Kroeber e C. Kluck­
hohn, Culture. A Critical Review of Concepts and Definitions (Papers of the Peabody Museum of
American Archaelogyand Ethnology, Vol. XLVII, n.° 1, Harvard University Press, 1952). Não
escapou a Leach que, a despeito da sua oposição aparente, Malinowski e Radcliffe-Brown
estão pelo menos de acordo ao considerarem cada "sociedade" ou cada "cultura" (segun­
do o vocabulário de cada um deles) como uma "totalidade feita de um certo número de
'coisas' empíricas e discretas, de espécies muito diversas, grupos de indivíduos, 'institui­
ções', costumes", ou ainda "como um todo empírico feito de um número limitado de par­
tes imediatamente identificáveis", consistindo a comparação entre sociedades diferentes
em examinar se se encontram em todos os casos "partes do mesmo tipo" (E. R. Leach, Ret­
hinking Anthropology, Londres, The Athlone Press, 1961, p. 6).
20 Com efeito, se exceptuarmos os raros autores que conferem à noção de comportamento
uma acepção rigorosamente definida pela operação que a constitui por oposição à "cul­
tura" (por exemplo, H. D. Lasswell, que estabelece que, "se um acto está em conformida­
de com a cultura, é um comportamento, caso contrário é uma conduta", em "Collective
Autism as a Consequence of Culture Contact", Zeitschriftfilr Socialforschung, 1935, Vol. 4,
pp. 232-247) sem disso tirarem qualquer consequência, a maior parte dos utilizadores da
oposição propõe definições da cultura ou do comportamento epistemologicamente dis­
cordantes, as quais opõem um objecto construído a um dado preconstruído, deixando
vazio o lugar do segundo objecto construído, a saber, a prática como execução: assim, e
este está longe de ser o exemplo pior, Harris opõe os "modelos culturais" (cultural pat­
terns) aos "comportamentos culturalmente modelados" (culturally patterned behaviors),
como "aquilo que o antropólogo constrói" e "aquilo que os membros da sociedade obser­
vam ou impõem aos outros" (M. Harris, "Review of Selected Writings of Edward Sapir",
Language, Culture and Personality, Language, 1951, Vol. 27, n.° 3, pp. 288-333).
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 157

inconsciente tende de facto a mascarar as contradições engendradas pelas in­


certezas da teoria da prática que a "antropologia estrutural" aceita, pelo me­
nos por omissão, quando não permite restaurar, sob a forma aparentemente
secularizada de uma estrutura estruturada sem princípio estruturante, as ve­
lhas enteléquias da metafísica social. Quando não queremos ir ao ponto de es­
tabelecer, com Durkheim, que nenhuma das regras que coagem os agentes
"se encontram por completo nas aplicações que delas são feitas pelos particu­
lares, pois podem até existir sem serem actualmente aplicadas",21 nem ao
ponto de conceder a tais regras a existência transcendente e permanente que
ele concede a todas as "realidades" colectivas, não podemos escapar às inge-
nuidades mais grosseiras do juridicismo, que considera as práticas produto
da obediência às normas, a não ser jogando com a polissemia do termo "re­
gra". Na verdade, usado as mais das vezes no sentido de norma social expres­
samente afirmada e explicitamente reconhecida como a lei moral ou jurídica,
por vezes no sentido de modelo teórico, construção elaborada pela ciência para
dar razão das práticas, o termo usa-se também, por excepção, no sentido de
esquema (ou de princípio) imanente à prática, que devemos dizer mais implí­
cito que inconsciente, para significarmos muito simplesmente que se encon­
tra, no estado prático, na acção dos agentes e não na sua consciência.
Basta, para nos convencermos de que assim é, que releiamos certo pará­
grafo do prefácio à segunda edição das Estruturas Elementares do Parentesco
consagrado à distinção entre "sistemas preferenciais" e "sistemas prescriti-
vos" em que podemos supor que os termos de norma, modelo ou regra são
objecto de um uso particularmente controlado: "Reciprocamente, um sistema
que preconiza o casamento com a filha do irmão da mãe pode ser dito prescriti-
vo ainda que a regra raramente seja observada: diz o que se deve fazer. A ques­
tão de sabermos a que ponto e em que proporção os membros de uma dada
sociedade respeitam a norma é muito interessante, mas diferente da do lugar
que convém atribuirmos, numa tipologia, à sociedade em causa. De facto,
basta admitir, de acordo com a verosimilhança, que a consciência da regra in-
flecte em medida maior ou menor as escolhas no sentido prescrito e que a per­
centagem dos casamentos ortodoxos é superior à que encontraríamos se as
uniões se fizessem ao acaso, para reconhecermos, em acção na sociedade con­
siderada, aquilo a que poderiamos chamar um operador matrilateral, que de­
sempenha o papel do piloto: certas alianças, pelo menos estabelecem-se com
o caminho que ele lhes traça, e tanto basta para imprimir uma inclinação espe­
cífica ao espaço genealógico. Haverá, sem dúvida, um grande número de in­
flexões locais e não uma só, as quais se reduzirão, sem dúvida, as mais das ve­
zes, a rudimentos apenas, e só em casos raros e excepcionais formarão ciclos

21 É. Durkheim, Les Règles de la méthode sociologique, Paris, PUF, 13.° edição, 1956 (l.“ edição,
Alcan, 1895), p. 11.
158 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

fechados. Mas os esboços de estruturas que se destacarão aqui e ali bastarão


para fazer do sistema uma versão probabilística de outros mais rígidos, cuja
noção é inteiramente teórica e em que os casamentos seriam rigorosamente
concordantes com a regra que ao grupo social apraz enunciar".22 Atonalidade
dominante nesta passagem, como em todo o prefácio, é a da norma, ao passo
que A Antropologia Estrutural está escrita na língua do modelo ou, se se prefe­
rir, da estrutura, embora tal léxico não se ache aqui por completo ausente, uma
vez que a metafórica matemático-metafísica que organiza a passagem central
("operador", "certas alianças estabelecidas com o caminho que lhes é traça­
do", "inflexão" do "espaço genealógico", "estruturas") vem evocar a lógica
do modelo teórico e a equivalência, ao mesmo tempo professada e repudiada,
do modelo e da norma: "Um sistema preferencial é prescritivo quando encara­
do ao nível do modelo, um sistema prescritivo não poderá ser mais que prefe­
rencial quando encarado ao nível da realidade".23 Contudo, para quem tem
na memória os textos da Antropologia Estrutural sobre as relações entre lingua­
gem e parentesco (e. g. "os 'sistemas de parentesco', como os 'sistemas fonoló-
gicos', são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconscien­
te")24 e a nitidez imperiosa com a qual as "normas culturais" e todas as "racio­
nalizações" ou "elaborações secundárias" produzidas pelos indígenas eram
afastadas em benefício das "estruturas inconscientes"—para já não falarmos
dos textos em que se afirmava a universalidade da regra originária da exoga­
mia —, as concessões aqui feitas à "consciência da regra" e a distância assumi­
da frente aos sistemas rígidos "cuja noção é inteiramente teórica" podem sur­
preender, como a seguinte outra passagem do mesmo prefácio: "Nem por
isso continua a ser menos verdade que a realidade empírica dos sistemas di­
tos prescritivos só assume o seu sentido quando a referimos a um modelo teóri­
co elaborado pelos próprios indígenas antes de o ter sido pelos etnólogos";25 ou
ainda: "Os que os praticam sabem bem que o espírito de tais sistemas não se
reduz à proposição tautológica de que cada grupo obtém as suas mulheres de
'doadores' e dá as suas filhas a 'aquisidores'. Estão também conscientes de
que o casamento com a prima cruzada unilateral proporciona a ilustração
mais simples da regra, a fórmula mais de molde a garantir a sua perpetuação,
ao passo que o casamento com a prima cruzada patrilateral a violaria sem re­
missão".26 Não podemos deixar de evocar um texto em que Wittgenstein reú­
ne, como num jogo, todas as questões torneadas pela antropologia estrutural
e, sem dúvida, mais geralmente por todo o intelectualismo, que transfere a

22 C. Lévi-Strauss, Les Structures Élémentaires de la Parenté, Paris, Mouton, 1967, pp. XX-XXI
(sublinhados meus).
23 Ibid., p. XX, cf. também a p. XXII.
24 C. Lévi-Strauss, L'Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 41.
25 C. Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la parenté, op. cit., p. XIX.
26 Ibid.
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 159

verdade objectiva estabelecida pela ciência para uma prática que exclui a pos­
tura de molde a tornar possível o estabelecimento dessa verdade:27 "A que é
que eu chamo 'a regra segundo a qual ele procede'? A hipótese que descreve
de modo satisfatório o seu uso das palavras observado por nós, ou a regra à
qual ele se refere no momento de se servir dos signos ou a que nos dá em res­
posta à nossa pergunta quando lhe perguntamos que regra é a sua? Mas e se a
nossa observação não permite reconhecer claramente qualquer regra e a
questão nada determinar a esse respeito? De facto à minha questão que
visava saber o que ele entende por 'N', respondeu dando-me, com efeito, uma
explicação, mas estando disposto a retomá-la e a modificá-la. Como deverei
eu então determinar a regra segundo a qual ele joga? Ele próprio a ignora. —
Ou, mais exactamente, que poderia aqui significar ao certo a expressão: 'A re­
gra segundo a qual ele procede'?28" Fazer da regularidade, quer dizer, do que
se produz com uma certa frequência, estatisticamente mensurável, o produto
do regulamento conscientemente editado e conscientemente respeitado (o que
suporia que se explicasse a sua gênese e a sua eficácia) ou da regulação incons­
ciente de uma misteriosa mecânica cerebral e/ou social é passar do modelo
da realidade à realidade do modelo. "Consideremos a diferença entre 'o com­
boio tem regularmente dois minutos de atraso' e "a regra quer que o comboio te­
nha dois minutos de atraso': [...] neste último caso sugere-se que o facto de o
comboio estar atrasado dois minutos se verifica em conformidade com uma
política ou um plano [...]. As regras remetem para planos e para políticas, o
que as regularidades não fazem [...]. Pretender que deve haver regras na lín­
gua natural equivale a pretender que as estradas devem ser vermelhas por­
que correspondem às linhas vermelhas de um mapa".29 E Quine fornece-nos
o meio de explicitarmos a distinção contida neste texto:
o
Imagine two systems of English grammar: one an old-fashioned system that
draws heavily on the Latin grammarians, and the other a streamlined formula­
tion due to Jespersen. Imagine that the two systems are extensionally equivalent,
in this sense: they determine, recursively, the same infinite set of well-formed
English sentences. In Denmark the boys in one school learn English by the one
system, and those in another school learn it by the other. In the end the boys all
sound alike. Both systems of rules fit the behaviour of only half the boys. Both
systems fit the behaviour also of all us native speakers of English, this is what
makes both systems correct. But neither system guides us native speaker of
English, no rules do, except for some intrusions of inessential schoolwork.

27 É uma transferência do mesmo tipo que, segundo Merleau-Ponty, se encontra no princí­


pio do erro intelectualista e do erro empirista em psicologia (cf. M. Merleau-Ponty, La
Structure du comportement, Paris, PUF, 1949, em particular, pp. 124 e 135).
28 L. Wittgenstein, Investigations philosophiques, Paris, Gallimard, 1961, p. 155.
29 P. Ziff, Semantic Analysis, Nova Iorque, Cornell University Press, 1960, p. 38.
160 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

My distinction between fitting and guiding is, you see, the obvious and
flat-footed ones. Fitting is a matter of true description, guiding is a matter of cam
se and effect. Behaviour fits a rule whenever it conforms to it, whenever the rule
truly describes the behaviour. But the behaviour is not guided by the rule unless
the behaver knows the rule and can state it. The behaver observes the rule.30

A partir desta distinção, Quine discute a tendência de Chomsky para admitir


"uma posição intermédia entre o simples ajustamento (fitting) e a plena direc­
ção (guidance), quer dizer, uma "direcção implícita" (implicitguidance) quando
vê "o discurso inglês como em certo sentido dirigido por regras (rule-guided),
não apenas no caso dos alunos dinamarqueses, mas também no nosso pró­
prio caso, ao mesmo tempo que somos incapazes de enunciar essas regras". E
Quine conclui que se pode admitir "a noção de conformidade implícita ou in­
consciente como uma regra quando se trata apenas de ajustamento (fitting)".
De facto, todas as proposições do discurso sociológico deveríam ser precedi­
das por um signo que se leria "tudo se passa como se..." e que, funcionando à
maneira dos quantificadores da lógica, recordaria continuamente o estatuto
epistemológico dos conceitos construídos da ciência objectiva. Tudo concor­
re, com efeito, para encorajar a reificação dos conceitos, a começar pela lógica
da linguagem comum, que inclina a que se infira a substância do substantivo
ou a conceder aos conceitos o poder de agirem na história como o fazem nas
frases do discurso histórico as palavras que os designam, quer dizer enquan­
to sujeitos históricos. Como observava Wittgenstein, basta passarmos do ad­
vérbio "inconscientemente" ("tenho inconscientemente dor de dentes") ao
substantivo "inconsciente" (ou a um certo uso do adjectivo "inconsciente",
como em "tenho uma dor de dentes inconsciente") para produzirmos prodí­
gios de profundidade metafísica.31 Vemos, do mesmo modo, os efeitos teóri­
cos (e políticos) que pode engendrar a personificação dos colectivos (em frases
como "a burguesia pensa que..." ou "a classe operária não aceita que..."), que
conduz, tão seguramente como as profissões de fé durkheimianas, a que se
postule a existência de uma "consciência colectiva" de grupo ou de classe.
Assim pondo à conta dos grupos ou das instituições disposições que só po­
dem constituir-se nas consciências individuais, ainda que sejam o produto de
disposições colectivas, como a tomada de consciência dos interesses de classe,
dispensamo-nos de analisar essas condições e, em particular, as que determi­
nam o grau de homogeneidade objectiva e subjectiva do grupo considerado e
o grau de consciência dos seus membros.

30 W. V. Quine, "Mdethodological Reflexions on current linguistic theory", em Harman and


Davidson (orgs.), Semantics of Natural Language, Bordrecht, D. Reidel Publisihing Com­
pany, 1972, pp. 442-454.
31 L. Wittgenstein, Le Cahier bleu et le cahier brun. Études préliniinaires aux investigations philo-
sophiques, Paris, Gallimard, 1965, pp. 57-58.
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 161

Variante particularmente interessante dos precedentes, o paralogismo


que se encontra na raiz do juridicismo, essa espécie de artificialismo social,
consiste em colocar implicitamente na consciência dos agentes singulares o
conhecimento teórico que só pode ser construído contra essa experiência ou,
noutros termos, a conferir o valor de uma descrição antropológica ao modelo
teórico construído para dar razão das práticas. A teoria da acção como sim­
ples execução do modelo (no duplo sentido de norma e de construção científi­
ca) é apenas um exemplo entre outros da antropologia imaginária engendra­
da pelo objectivismo quando, dando, como diz Marx, "as coisas da lógica pela
lógica das coisas", faz do sentido objective das práticas ou das obras o fim
subjectivo da acção dos produtores dessas práticas ou dessas obras, com o seu
impossível homo economicus submetendo as suas decisões ao cálculo racional,
os seus actores executando papéis ou agindo segundo modelos, ou os seus lo­
cutores escolhendo entre fonemas.
Capítulo 3
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS

Assim, o objectivismo metódico, que constitui um momento necessário de


toda a investigação, enquanto instrumento da ruptura com a experiência
primeira e da construção das relações objectivas, exige a sua própria supe­
ração. Para escapar ao realismo da estrutura que hipostasia os sistemas de
relações objectivas, convertendo-os em totalidades já constituídas fora da
história do indivíduo e da história do grupo, é preciso, e basta, ir do opus
operatum ao modus operandi, da regularidade estatística ou da estrutura al­
gébrica ao princípio de produção dessa ordem observada e elaborar a teo­
ria da prática ou, mais exactamente, do modo de geração das práticas, que
é a condição da construção de uma ciência experimental da dialéctica da in-
terioridade e da exterioridade, quer dizer, da interiorização da exterioridade e da
exteriorização da interioridade: as estruturas que são constitutivas de um
tipo particular de meio ambiente (e. g. as condições materiais de existência
características de uma condição de classe) e que podem ser apreendidas
empiricamente sob a forma das regularidades associadas a um meio ambi­
ente socialménte estruturado produzem habitus, sistemas de disposições
duradouras,1 estruturas estruturadas“predispostas a funcionarem como
tal, ou seja, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e
de representações que podem ser objectivamente "reguladas" e "regula­
res" sem em nada serem o produto da obediência a regras, objectivamente
adaptadas ao seu fim sem suporem a mira consciente dos fins e o domínio
expresso das operações necessárias para os atingir, e sendo tudo isto,

1 O termo "disposição" parece particularmente ajustado para exprimir aquilo que o con­
ceito de habitus recobre (definido como sistemas de disposições): com efeito, exprime,
em primeiro lugar, o resultado de uma acção organizadora apresentando então um sentido
muito próximo de termos como o de estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de
ser, um estado habitual (em especial do corpo) e, em particular, uma predisposição, uma
tendência, uma propensão ou uma inclinação.

163
164 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

colectivamente orquestradas sem serem o produto da acção organizador^


de um maestro de orquestra.
Até no momento em que aparecem como determinadas pelo futuro,
quer dizer, pelos fins explícitos e explicitamente postos de um projecto ou de
um plano, as práticas que o habitus produz enquanto princípio gerador de es­
tratégias que permitem enfrentar situações imprevistas e incessantemente re­
novadas são determinadas pela antecipação implícita das suas consequênci­
as, isto é, pelas condições passadas da produção do seu princípio produtivo,
de tal maneira que tendem sempre a reproduzir as estruturas objectivas cujo
produto em última análise são. Assim, por exemplo, na interacção entre dois
agentes ou grupos de agentes dotados dos mesmos habitus (por exemplo, A e
B), tudo se passa como se as acções de cada um deles (seja a 1 para A) se orga­
nizassem por referência às reacções que suscitam da parte de qualquer agente
dotado do mesmo habitus (seja bl, reacção de B a al), pelo que implicam ob-
jectivamente a antecipação da reacção que tais atitudes suscitam por seu tur­
no (seja a2, reacção a bl). Mas nada seria mais ingênuo do que subscrevermos
a descrição teleológica segundo a qual cada acção (por exemplo, al) teria por
fim tornar possível a reacção à reacção que suscita (por exemplo, a2 reacção a
bl). O habitus está no princípio do encadeamento de "golpes" que são objecti-
vamente organizados como estratégias sem serem de maneira alguma produ­
to de uma verdadeira intenção estratégica (o que suporia, por exemplo, que
fossem apreendidos como uma estratégia entre outras possíveis).
Se não está de modo algum excluído que as respostas do habitus sejam
acompanhadas por um cálculo estratégico tendente a realizar segundo um
modo quase consciente a operação efectuada pelo habitus segundo um outro
modo, a saber, uma estimativa das probabilidades que supõem a transforma­
ção do efeito passado em porvir antecipado, continua a ser verdade que se de­
finem em primeiro lugar por referência a um campo de potencialidades ob­
jectivas, imediatamente inscritas no presente, coisas a fazer ou a não fazer, a
dizer ou a não dizer, por referência a um por vir que, por oposição ao futuro
como "possibilidade absoluta" (absolute Mõglichkeit), no sentido de Hegel,
projectada pelo projecto puro de uma "liberdade negativa", se propõe com
uma urgência e uma pretensão de existir que excluem a deliberação. As esti­
mulações simbólicas, quer dizer, convencionais e condicionais, que apenas
agem na condição de se lhes depararem agentes condicionados para as perce­
berem, tendem a impor-se de maneira incondicional e necessária quando a
inculcação do arbitrário abole o arbitrário da inculcação e das significações
inculcadas. Assim o mundo de urgências, de fins já realizados, de objectos do­
tados de um "carácter teleológico permanente", segundo a expressão de Hus­
serl, como as ferramentas, de etapas a seguir, de rumos inteiramente traça­
dos, de valores tornados coisas, que é o da prática não pode conceder mais do
que uma liberdade condicional — liberet si liceret —, bastante parecida com a
da agulha magnetizada, que, como Leibniz imagina, tem prazer em se virar
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 165

para Norte. Se observamos regularmente uma correlação muito estreita entre


as probabilidades objectivas cientificamente construídas (e. g. as probabilidades
de acesso ao ensino superior ou ao museu, etc., e as aspirações subjectivas (as
"motivações"), não é porque os agentes ajustem conscientemente as suas as­
pirações a uma avaliação exacta das suas probabilidades de sucesso, à manei­
ra de um jogador que regulasse o seu jogo em função de uma informação per­
feita sobre as suas probabilidades de ganhar, como implicitamente se supõe
quando, esquecendo o "tudo se passa como se", se faz como se a teoria dos jo­
gos ou o cálculo das probabilidades, construídos uma e outro contra as dispo­
sições espontâneas, constituíssem descrições antropológicas da prática.
Invertendo por completo a tendência do objectivismo, podemos, pelo contrá­
rio, buscar nas regras da construção científica das probabilidades ou das es­
tratégias não um modelo antropológico da prática, mas a descrição negativa
das regras implícitas da estatística espontânea, que necessariamente contêm
porque se constroem explicitamente contra essas regras implícitas (e. g. a pro­
pensão para privilegiar as primeiras experiências). Ao contrário da estimati­
va das probabilidades que a ciência constrói metodicamente, na base de expe­
riências controladas, a partir de dados estabelecidos segundo regras precisas,
a avaliação subjectiva das probabilidades de sucesso de uma acção determi­
nada numa situação determinada faz intervir todo um corpo de sabedoria se-
miformalizada, ditados, lugares-comuns, preceitos éticos ("isso não é para
nós") e, mais profundamente, os princípios inconscientes do ethos, disposição
geral e transponível que, sendo o produto de toda uma aprendizagem domi­
nada por um tipo determinado de regularidades objectivas, determina os
comportamentos "razoáveis" ou "não razoáveis" (as "loucuras") para qual­
quer agente submetido a tais regularidades.2 "Assim que conhecemos a im­
possibilidade de satisfazer o desejo, dizia Hume no Tratado da Natureza Huma­
na, é o próprio desejo a desvanecer-se".3 E Marx, nos Manuscritos de 1844: "Seja
eu como for, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho uma necessidade —
no sentido de necessidade real de viajar—susceptível de ser satisfeita. Seja eu
como for, se tenho os estudos por vocação, mas não dinheiro para me entregar
a eles, não tenho a vocação dos estudos, quer dizer, uma vocação efectiva,

------------------ O
2 "Esta probabilidade subjectiva, variável, que por vezes exclui a dúvida e engendra uma
certeza sui generis e que outras vezes aparece apenas como uma luz vacilante, é aquilo a
que chamamos a probabilidade filosófica porque se liga ao exercício dessa faculdade superi­
or por meio da qual damos conta da ordem e da razão das coisas. O sentimento confuso
de semelhantes probabilidades que existe em todos os homens razoáveis determina en­
tão, ou pelo menos justifica, as crenças inabaláveis do chamado senso comum" (Cournot,
Essai sur lesfondements de la connaissance et sur les caractères de la critique philosophique, Pa­
ris, Hachette, 1922 (l.a ed„ 1851), p. 70).
3 " We are no sooner acquainted with the impossibility of satisfying any desire, than the de­
sire itself vanishes", D. Hume, A Treatise of Human Nature, L. A. Selby-Bigge M. A. (org.),
Oxford, Clarendon Press, p. XXII.
166 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

verdadeira." As práticas podem encontrar-se objectivamente ajustadas às


probabilidades objectivas — passando-se tudo como se a probabilidade a poste­
riori ou ex post de um acontecimento, que é conhecida a partir da experiência
passada, governasse a probabilidade a priori ou ex ante, que lhe é objectiva­
mente concedida —, sem que os agentes procedam ao mais pequeno cálculo
ou sequer a uma estimativa, mais ou menos consciente, das probabilidades
de sucesso. Pelo facto de as disposições duradouramente inculcadas pelas
condições objectivas (que a ciência apreende, através das regularidades esta­
tísticas, como as probabilidades objectivamente ligadas a um grupo ou a uma
classe) engendrarem aspirações e práticas concretamente compatíveis com
essas condições objectivas e de certo modo pré-adaptadas às suas exigências
também objectivas, os acontecimentos mais improváveis vêem-se excluídos,
antes de qualquer exame, ao título de impensáveis, ou seja, ao preço da dupla
negação que incita a fazer da necessidade virtude, quer dizer, a recusar o recu­
sado e a amar o inevitável. As próprias condições de produção do ethos, neces­
sidade feita virtude, fazem com que as antecipações que esse ethos engendra
tendam a ignorar a restrição à qual está subordinada a validade de qualquer
cálculo das probabilidades, a saber, que as condições da experiência não te­
nham sido modificadas. De facto, ao contrário das estimativas científicas que
se corrigem depois de cada experiência segundo regras rigorosas de cálculo,
as práticas conferem um peso desmesurado às primeiras experiências na me­
dida em que são as estruturas características de um tipo determinado de con­
dições de existência, que, através da necessidade econômica e social que fa­
zem pesar sobre o universo relativamente autônomo das relações familiares,
ou melhor, através das manifestações propriamente familiares dessa necessi­
dade externa (e. g. interditos, preocupações, lições de moral, conflitos, gostos,
etc.), produzem as estruturas do habitus, as quais estão por sua vez no princí­
pio da percepção e da apreciação de toda a experiência ulterior. Assim, em ra­
zão do efeito de hysteresis que se encontra necessariamente implicado na lógi­
ca da constituição dos habitus, as práticas expõem-se sempre a receber san­
ções negativas e, portanto, um "reforço secundário negativo", quando o meio
ambiente com que realmente se confrontam é demasiado afastado daquele ao
qual se encontram objectivamente ajustadas. Compreende-se, na mesma ló­
gica, que os conflitos de geração oponham não classes de idade separadas por
propriedades de natureza, mas habitus produzidos segundo modos de geração
diferentes, quer dizer, por condições de existência que, impondo definições
diferentes do impossível, do possível, do provável e do certo, dão a experi­
mentar a uns como naturais oiu razoáveis práticas ou aspirações que os ou­
tros sentem ser impensáveis ou escandalosas, e inversamente.
O mesmo é dizer que devemos abandonar todas as teorias que conside­
ram explícita ou implicitamente a prática uma reacção mecânica, directamen-
te determinada pelas condições antecedentes e inteiramente redutível ao fun­
cionamento mecânico de montagens preestabelecidas, "modelos", "normas"
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 167

ou "papéis", que aliás deveríam supor-se de número infinito, como as confi­


gurações fortuitas de estímulos capazes de os desencadear do exterior, assu­
mindo assim o empreendimento grandioso e desesperado desse etnólogo
que, armado de uma bela coragem positivista, regista 480 unidades elementa­
res de comportamento, em vinte minutos de observação da actividade da sua
mulher na cozinha.4 Contudo, a recusa das teorias mecanicistas não implica
de maneira alguma que, segundo a alternativa forçada entre o objectivismo e
o subjectivismo, concedamos a um livre arbítrio criador o poder livre e arbi­
trário de constituir no momento o sentido da situação, projectando os fins que
visam transformá-lo, nem que reduzamos as intenções objectivas e as signifi­
cações constituídas das acções e das obras humanas às intenções conscientes
e deliberadas dos seus autores. A prática é ao mesmo tempo necessária e rela­
tivamente autônoma por referência à situação considerada na sua imediatez
pontual porque é o produto da relação dialéctica entre uma situação e um ha­
bitus, entendido como um sistema de disposições duradouras e transponí-
veis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momen­
to como uma matriz de percepções, de apreciações e de acções, e toma possível efec-
tuar de tarefas infinitamente diferenciadas graças às transferências analógi­
cas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma e gra­
ças às mesmas correcções incessantes dos resultados obtidos, dialecticamente
produzidas por esses mesmos resultados.0
Aquilo a que chamamos correntemente metáfora não é senão um produ­
to entre outros dessas transferências de esquemas que engendram significações
novas pela aplicação a novos terrenos de esquemas práticos de percepção e de
acção. Na verdade, a magia, que não pára de aplicar às relações com o mundo
natural esquemas que convêm às relações entre os homens, opera incessante­
mente transferências desse tipo, transportando os mesmos esquemas classifi-
catórios de uma classe de coisas (por exemplo, o corpo humano) para uma ou­
tra (a casa ou o mundo natural). Um espírito perfeitamente estruturado vê-se
assim encerrado num círculo de metáforas que se reflectem mutuamente até ao
infinito, ou seja, a ilusão da objectividade que resulta da congruência perfeita
das construções produzidas pela aplicação das mesmas categorias é reforça­
da, da mesma maneira que a crença correlativa, pelo facto de o universo ob­
jective que se acha assim constituído comportar objectos (instrumentos,

4 "Here we confront the distressing fact that the sample episode chain under analysis is a
fragment of a larger segment of behavior which in the complete record contains some 480
separate episodes. Moreover, it took onky twenty minutes for these 480 behavior stream
evens to occur. If my wife's rate of behavior is roughly representative of that of others ac-
tores, we must be prepared to deal with an inventory of episodes produced at the rate of
some 20.000 per sixteen-hour day, per actor [...]. In a population consisting of several
hundred actor-types, the number of different episodes in the total repertory must au-
round to many millions during the course of an annual cycle", M. Harris, The Nature of
Cultural Things, Nova Iorque, Randon House, 1964, pp. 74-75.
168 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

edifícios, monumentos, etc.) que são produto de operações reais de objectiva-


ção operadas através de categorias idênticas àquelas segundo os quais eles
são apreendidos. A incorporação da objectividade é assim inseparavelmente
interiorização dos esquemas colectivos e integração no grupo, uma vez que
aquilo que é interiorizado é o produto da exteriorização de uma subjectivida-
de estruturada de modo semelhante. A continuidade entre as gerações esta­
belece-se praticamente através da dialéctica da exteriorização da inferiorida­
de e da interiorização da exterioridade, que é, em parte o produto da objecti-
vação da inferioridade das gerações passadas.5
Princípio gerador duradouramente constituído por improvisos regula­
dos (principium importans ordinem ad actum, como diz o escolástico), o habitus
produz práticas que, na medida em que tendem a reproduzir as regularida­
des imanentes às condições objectivas da produção do seu princípio gerador,
mas ajustando-se às exigências inscritas a título de potencialidades objectivas
na situação directamente enfrentada, não se deixam directamente deduzir
nem das condições objectivas, pontualmente definidas como soma de estí­
mulos, que podem parecer tê-las directamente desencadeado, nem das con­
dições que produziram o princípio duradouro da sua produção, não pode­
mos, pelo que portanto, dar razão de tais práticas a não ser na condição de re­
lacionarmos a estrutura objectiva definidora das condições sociais de produ­
ção do habitus que as engendrou com as condições do pôr em acção desse ha­
bitus, quer dizer, com a conjuntura que, salvo transformação radical, repre­
senta um estado particular dessa estrutura. Se o habitus pode funcionar como
um operador que efectua praticamente o pôr em relação destes dois sistemas
de relações na e pela produção da prática, é porque é história feita natureza,
quer dizer, negada enquanto tal porque realizada numa segunda natureza; o
"inconsciente" nunca é, com efeito, senão o esquecimento da história que a
própria história provoca incorporando as estruturas objectivas que produz
nessas quase naturezas que os habitus são:"[...] Em cada um de nós, segundo
proporções variáveis, há o homem de ontem que, pela força das coisas, é pre­
dominante em nós, uma vez que o presente é coisa bem pouca comparado
com esse longo passado no decorrer do qual nos formámos e do qual resulta-
mos. Simplesmente, esse homem do passado não o sentimos porque está in­
veterado em nós, forma a parte inconsciente de nós próprios, e, por conse­
guinte, somos levados a não o ter em conta, o mesmo se passando com as suas

O que quer dizer que "a hipótese, associada ao nome de Arrow, do learning by doing" (cf.
K. J. Arrow, "The Economic Implications of Learning by Doing", The Review of Economic
Studies, Vol. XXIX (3), n.° 80, Junho, 1962, pp. 173-175) é um caso particular (cuja particu­
laridade é necessário precisar) de uma lei muito geral: qualquer produto fabricado — in­
cluindo os produtos simbólicos, como as obras de arte, os jogos, os mitos, etc. — exerce
pelo seu próprio funcionamento, e em particular pela utilização que dele é feita, um efei­
to educativo que contribui para tornar mais fácil a aquisição das disposições necessárias
à sua utilização adequada.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 169

exigências legítimas. Pelo contrário, no caso das aquisições mais recentes da


civilização, temos delas um vivo sentimento porque, sendo recentes, ainda
não tiveram tempo de se organizarem no inconsciente".6 A amnésia da gêne­
se, que é um dos efeitos paradoxais da história, é também encorajada (senão
implicada) pela apreensão objectivista, que, captando o produto da história
como opus operatum e colocando-se de certo modo perante o facto consumado,
não pode senão invocar os mistérios da harmonia preestabelecida ou os pro­
dígios da concertação consciente para dar conta daquilo que, apreendido na
pura sincronia, aparece como sentido objectivo, quer se trate da coerência inter­
na de obras ou de instituições como os mitos, ritos ou corpus jurídicos, ou da
concertação objectiva que manifestam e pressupõem ao mesmo tempo (na
medida em que implicam a continuidade dos repertórios) as práticas, concor-
dantes ou até mesmo conflituais, dos membros do mesmo grupo ou da mes­
ma classe. De facto, os paralogismos do objectivismo são a consequência da
falta de qualquer análise do duplo processo de interiorização e de exterioriza­
ção ou, mais precisamente, da produção de habitus objectivamente concerta­
dos e, portanto, aptos e inclinados a produzir práticas e obras elas próprias
objectivamente concertadas.
Do facto de a identidade das condições de existência tender a produzir
sistemas de disposições semelhantes (pelo menos parcialmente), a homoge­
neidade (relativa) dos habitus daí resultante está no princípio de uma harmo­
nização objectiva das práticas e das obras de molde a conferir-lhes a regulari­
dade ao mesmo tempo que a objectividade que definem a sua "racionalidade"
específica e que fazem com que sejam vividas como evidentes ou óbvias, quer
dizer, como imediatamente inteligíveis e previsíveis, por todos os agentes do­
tados do domínio prático do sistema dos esquemas de acção e de interpreta­
ção objectivamente implicados na sua efectuação e por eles apenas (isto é, por
todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe, produtos de condi­
ções objectivas idênticas que estão votados a exercer simultaneamente um
efeito de universalização e de particularização na medida em que não homogenei­
zam os membros de um grupo a não ser distinguindo-os de todos os outros).
Enquanto ignoramos o verdadeiro princípio desta orquestração sem chefe de
orquestra que confere regularidade, unidade e sistematicidade às práticas de
um grupo ou de uma classe, e isto até na ausência de qualquer organização es­
pontânea ou imposta dos projectos individuais, condenamo-nos ao artificia-
lismo ingênuo que não reconhece outro princípio unificador da acção comum
ou fora do comum de um grupo ou de uma classe que não seja a concertação
consciente e meditada da conspiração. Assim alguns podem negar, sem ou­
tras provas para além das suas convicções mundanas, a unidade da classe di­
rigente, crendo tocar o fundo do problema quando desafiam os defensores da

6 É. Durkheim, L'Évolution pédagogique en France, Paris, Alcan, 1938, p. 16.


170 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

tese oposta a apresentarem a prova empírica de que os membros da classe


dirigente têm uma política explícita, expressamente imposta pela concer-
tação também explícita; outros, que apresentam pelo menos uma formula­
ção explícita e sistemática desta representação ingênua da acção colectiva,
transpõem para a ordem do grupo a questão arquetípica da filosofia da
consciência e fazem da tomada de consciência uma espécie de cogito revo­
lucionário, só ele capaz de fazer aceder a classe à existência e constituin­
do-a como "classe para si".
Frente à questão ritual que se encontra no princípio do debate intermi­
nável entre o objectivismo e o subjectivismo (e que, na sua forma paradigmá­
tica, pergunta: "Ela será bela porque eu a amo ou sou eu que a amo por ela ser
bela?"), Sartre propõe uma resposta ultra-subjectivista, que fazendo da toma­
da de consciência revolucionária o produto de uma espécie de variação ima­
ginária, lhe confere o poder de criar o sentido do presente criando o futuro re­
volucionário que o nega: "É preciso inverter a opinião geral e convir em que
não é a dureza de uma situação ou os sofrimentos que ela impõe que são moti­
vos para se conceber um outro estado de coisas em que tudo seria melhor
para toda a gente; pelo contrário, é a partir do dia em que se pode conceber
um outro estado de coisas que uma luz nova cai sobre as nossas dores e os
nossos sofrimentos e que nós decidimos que eles são insuportáveis."7 Basta
ignorarmos ou recusarmos a questão das condições econômicas e sociais da toma­
da de consciência das condições econômicas e sociais para pormos no princípio da
acção revolucionária um acto absoluto de doação de sentido, uma "invenção"
ou uma conversão.8 Se o mundo da acção não é outra coisa senão esse univer­
so imaginário de possíveis intercambiáveis, dependendo inteiramente dos
decretos da consciência que o cria e, portanto, totalmente desprovido de ob-
jectividade, se é comovente porque o sujeito se escolhe comovido, revoltante
porque ele se escolhe revoltado, as emoções, as paixões e as acções não pas­
sam de jogos e duplos jogos da má-fé e do espírito de seriedade, farsas tristes
em que o sujeito é ao mesmo tempo mau actor e bom público: "Não é por aca­
so que o materialismo é sério também não é por acaso que o encontramos
sempre e em toda a parte como a doutrina do revolucionário—é que os revo­
lucionários são sérios, começam por conhecer-se a partir do mundo que os es­
maga [...]. O homem sério é 'do mundo' e já não tem qualquer recurso em si;
não encara sequer a possibilidade de sair do mundo [...], está de má-fé."9 A
mesma impotência de encontrar a "seriedade" a não ser sob a forma reprova­
da do "espírito de seriedade" pode observar-se numa análise da emoção que,
coisa significativa, é separada pelo imaginário das descrições menos radical­
mente subjectivistas do Esboço de Uma Teoria das Emoções: "Quem me decidirá

7 J. P. Sartre, L'Être et le Néant, Paris, Gallimard, 1943, p. 510.


8 J. P. Sartre, "Réponse à Lefort", Les Temps Modernes, Abril de 1953, n.° 89, pp. 1571-1629.
9 J. P. Sartre, L'Être et le Néant, op. cit., p. 669.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 171

a escolher o aspecto mágico ou o aspecto técnico do mundo? Não poderá ser o


próprio mundo que, para se manifestar, espera ser descoberto, sendo, portan­
to, preciso que o para-si, no seu projecto, escolha ser aquele para quem o mun­
do se desvela como mágico ou racional, quer dizer, que deve, como livre pro­
jecto de si, dar-se a existência mágica ou a existência racional. De uma como
da outra, é ele o responsável, porque não pode ser a não ser que se tenha esco­
lhido, aparecendo, portanto, como o livre fundamento tanto das suas emo­
ções como das suas volições. O meu medo é livre e manifesta a minha liberda­
de."10 Semelhante teoria da acção devia inevitavelmente conduzir ao projecto
desesperado de uma gênese transcendental da sociedade e da história
(ter-se-á reconhecido aqui a Crítica da Razão Dialéctica) que Durkheim parece
designar quando escreve em As Regras do Método Sociológico: "É porque o
meio imaginário não oferece ao espírito qualquer resistência que este, não se
sentindo contido por nada, se abandona a ambições sem limites e crê possível
construir, ou melhor, reconstruir o mundo através apenas das suas forças e ao
sabor dos seus desejos."11 Ainda que se possam opor a esta análise da antro­
pologia sartriana os textos (muito numerosos, sobretudo nas primeiras e nas
últimas obras) em que Sartre reconhece por exemplo as "sínteses passivas" de
um universo de significações já constituídas ou recusa expressamente os pró­
prios princípios da sua filosofia, como essa passagem de O Ser e o Nada12 em
que entende distinguir-se da filosofia instantaneísta de Descartes ou certa fra­
se da Crítica da Razão Dialéctica13 em que anuncia o estudo "das acções sem
agentes, das produções sem totalizador, das contrafinalidades, das circulari­
dades infernais", resta que ele repele com uma repugnância visceral "essas
realidades gelatinosas e mais ou menos vagamente assombradas por uma
consciência supra-individual que um organicismo envergonhado procura
descobrir ainda, contra toda a verosimilhança, nesse campo rude, complexo
mas separado da actividade passiva onde há organismos individuais e reali­
dades materiais inorgânicas".14 A sociologia "objectiva" vê ser-lhe outorgada
a tarefa, muito suspeita porque essencialista, de estudar a "socialidade de
inércia", quer dizer, por exemplo, a classe reduzida à inércia e, portanto à im­
potência, a classe coisa, a classe "viscosa" e "atolada" no seu ser, ou seja, no
seu "ter sido": "A serialidade de classe faz do indivíduo (seja ele o que for e
qualquer que seja a classe) um ser que se define como uma coisa humanizada
[...]. A outra forma da classe, isto é, o grupo totalizante numa praxis, nasce no
núcleo da forma passiva e como a sua negação." 15 O mundo social, lugar

10 lWd.,p.521.
11 É. Durkheim, Les Règles de la Méthode Sociologique, op. cit., p. 18.
12 L'Être et le Néant, op. cit., p. 543.
13 op. cit., p. 161.
14 J. P. Sartre, Critique de la Raison Dialectique, op. cit., p. 305.
15 Ibid., p. 357.
172 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

desses compromissos "bastardos" entre a coisa e o sentido que definem 0


"sentido objective" como sentido feito coisa, constitui um verdadeiro desafj0
para quem apenas respira no universo puro e transparente da consciência ou
da praxis individual. Este artificialismo não reconhece qualquer outro limite à
liberdade do ego a não ser o que aquela se impõe a si própria pela abdicação
livre do juramento ou pela demissão da má-fé, nome sartriano da alienação,
ou o que a liberdade alienadora do alter ego lhe impõe nos combates hegeli,},
nos do senhor e do escravo; por conseguinte, não podendo ver "nos arranjos
sociais mais que combinações artificiais e mais ou menos arbitrárias", como
diz Durkheim,16 subordina sem deliberar a transcendência do social, reduzi­
da à "reciprocidade das imposições e das autonomias", à "transcendência do
ego", como dizia o primeiro Sartre: "No decorrer desta acção, o indivíduo
descobre a dialéctica como transparência racional na medida em que a faz e
como necessidade absoluta na medida em que lhe escapa, quer dizer imito
simplesmente na medida em que os outros a fazem; em suma, na precisa medi­
da em que se reconhece na superação das suas necessidades, reconhece a lei
que os outros lhe impõem superando as dele (reconhece: não quer dizer que
se submeta), reconhece a sua própria autonomia (na medida em que pode ser
utilizada pelo outro e o é todos os dias — esquivas, manobras, etc.) como po­
tência estranha e a autonomia dos outros como a lei inexorável que permite
coagi-los".17 A transcendência do social não pode ser senão o efeito da "recor­
rência", quer dizer, em última análise, do número (daí a importância concedi­
da à "série") ou da "materialidade da recorrência" nos objectos culturais,18 con­
sistindo a alienação na abdicação livre da liberdade em proveito das exigências
da "matéria trabalhada": "O operário do século XIXfaz-se aquilo que é, quer dizer
que determina prática e racionalmente a ordem do que despende — portanto,
decide na sua livre praxis —, e por meio dessa liberdade faz-se aquilo que era,
aquilo que é, aquilo que deve ser: uma máquina cujo salário representa apenas as
despesas de manutenção [...]. O ser-de-classe como ser prático-inerte chega aos
homens pelos homens através das sínteses passivas da matéria trabalhada."19
Noutro lugar, a afirmação do primado "lógico" da "praxis individual", razão
constituinte, sobre a história, razão constituída, leva a pôr o problema da gênese
da sociedade nos mesmos termos em que o punham os teóricos do contrato soci­
al: "A História determina o conteúdo das relações humanas na sua totalidade e
estas relações [...] remetem para tudo. Mas não é ela que faz com que haja rela­
ções humanas em geral, não são os problemas de organização e de divisão do
trabalho que fizeram com que se tenham estabelecido relações entre esses objec­
tos inicialmente separados, os homens".20 Do mesmo modo que para Descartes "a

16 É. Durkheim, Les Règles de la Méthode Sociologique, op. cit., p. 19.


17 J. P. Sartre, Critique de la Raison Dialectique, op. cit., p. 133.
18 /Wrf.,pp.234 e281.
19 Ibid., p. 294.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 173

criação é contínua, como diz Jean Wahl, porque a duração não o é" e porque a
substância extensa não contém em si própria o poder de subsistir, estando Deus
investido da tarefa a cada instante recomeçada de criar o mundo ex nihilo, por
um livre decreto da sua vontade, assim também a recusa tipicamente carte-
siana da opacidade viscosa das "potencialidades objectivas" e do sentido ob­
jective conduz Sartre a confiar à iniciativa absoluta dos "agentes históricos",
indivíduos ou colectivos, como "o partido", hipóstase do sujeito sartriano, a
tarefa indefinida de arrancar o todo social, ou a classe, à inércia do "práti-
co-inerte". No final do imenso romance imaginário da morte e da ressurrei­
ção da liberdade, com o seu duplo movimento — a "exteriorização da inferio­
ridade" que conduz da liberdade à alienação, da consciência à materialização
da consciência, ou, como o título diz, "da praxis ao prático-inerte", e a "inte-
riorização da exterioridade" que, pelos atalhos abruptos da tomada de cons­
ciência e da "fusão de consciências", leva "do grupo à História", do estado
reificado do grupo alienado à existência autêntica do agente histórico a cons­
ciência e a coisa ficam tão irremediavelmente separadas como no começo,
sem que nada que se pareça com uma instituição ou um sistema simbólico
como universo autônomo (a própria escolha dos exemplos 0 testemunha) al­
guma vez possa ser constatado ou construído. As aparências de um discurso
dialéctico (que não são mais que as aparências dialécticas do discurso) não
podem mascarar a oscilação indefinida entre o em-si e o para-si, ou, na nova
linguagem, entre a materialidade e a praxis, entre a inércia do grupo reduzido
à sua "essência", quer dizer ao seu passado superado e à sua necessidade
(abandonados aos sociólogos), e a criação continuada do livre projecto colec-
tivo como série de actos decisórios indispensáveis para salvar o grupo do ani­
quilamento na pura materialidade. E perguntamo-nos como se poder ia não
atribuir à permanência de um habitus a constância com a qual a intenção ob-
jectiva da filosofia sartriana se afirma, apesar das diferenças de linguagem in­
troduzidas, contra as intenções subjectivas do seu autor, quer dizer, contra
um projecto permanente de "conversão" nunca tão manifesto e tão manifes­
tamente sincero como em certos anátemas que não assumiríam sem dúvida
tanta violência se não tivessem um sabor de autocrítica consciente ou incons­
ciente. Por exemplo, é preciso ter-se na memória a célebre análise do empre­
gado de café para se apreciar plenamente uma frase como a seguinte: "A to­
dos os que se tomam por anjos, as actividades do próximo parecem absurdas
porque pretendem transcender o empreendimento humano recusando-se a
participar nele."20 21 A teoria sartriana das relações entre Flaubert e a burguesia
é, sem dúvida, a expressão mais manifesta e mais directa da relação burguesa
com a existência e com as condições materiais de existência, a qual, pondo a

20 Ibid., p. 179.
21 Ibid., pp. 182-193.
174 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

tomada de consciência no princípio de uma existência e de uma obra, teste­


munha que não basta tomarmos consciência da condição de classe para nos li­
bertarmos das disposições duradouras que ela produz.22 E na mesma lógica
que se situa — mutatis mutandis — o projecto de fazer uma "sociologia da ac­
ção", definida como "sociologia da liberdade", expressão já usada por Le
Play, por oposição, sem dúvida, às sociologias da necessidade.23 A recusa da
definição "redutora" da sociologia redescobre aqui os temas e a linguagem
eternos, cujo arquétipo foi fornecido por Bergson, do fechado e do aberto, da
continuidade e da ruptura, da rotina e da criação, da instituição e da pessoa.
A harmonização objectiva dos habitus de grupo ou de classe é aquilo
que faz com que as práticas possam concordar objectivamente na ausência de
qualquer interacção directa e, a fortiori, de qualquer concertação explícita. "Ima­
ginai", diz Leibniz, "a duas pêndulas ou relógios que concordam perfeita-
mente. Ora isso é uma coisa que se pode fazer de três maneiras: a primeira
consiste numa influência mútua; a segunda é chamar um operário hábil que
as corrija e as ponha de acordo em todos os momentos; a terceira é fabricar os
dois aparelhos com tanta arte e justeza que possamos estar certos da sua con­
cordância posterior."24 Se retivermos sistematicamente apenas a primeira hi­
pótese, ou em rigor a segunda — fazendo desempenhar ao partido ou ao guia
carismático o papel de Deus ex machina —, proibimo-nos de apreender o fun­
damento mais seguro e mais escondido da integração dos grupos ou das clas­
ses e se as práticas dos membros do mesmo grupo ou da mesma classe são
sempre mais concordantes entre si que os agentes sabem ou querem, é que,
como uma vez mais diz Leibniz, "seguindo apenas as suas próprias leis" cada
um "acaba, no entanto, por concordar com o outro";25 o habitus não é outra
coisa a não ser essa lei imanente, lex insita, deposta em cada agente pela pri­
meira educação, que é a condição não só da concertação das práticas, mas
também das práticas de concertação, uma vez que as emendas e os ajusta­
mentos conscientemente operados pelos próprios agentes supõem o domínio
de um código comum e que os empreendimentos de mobilização colectiva
não podem ter êxito sem um mínimo de concordância entre o habitus dos
agentes mobilizadores (e. g. profeta, chefe de partido, etc.) e as disposições
daqueles cujas aspirações eles se esforçam por exprimir. A concertação das
práticas está longe de ser sempre produto da concertação, e tudo indica que
uma das funções primeiras da orquestração dos habitus pode ser autorizar a

22 Cf. P. Bourdieu, "Champ du pouvoir, champ intelectuel et habitus de classe", Scolies, 1,


1971, pp. 7-26, especialmente pp. 12-14.
23 Cf. A. Touraine, Sociologie de 1'action, Paris, Éditions du Seuil, 1965, e "La raison d'être
d'une sociologie de 1'action", Revue française de sociologie, VII, Outubro-Dezembro de
1966, pp. 518-527.
24 Leibniz, "Second éclaircissement du système de la communication des substances"
(1696), em CEuvres philosophises, T. II, P. Janet (org.), Paris, de Ladrange, 1866, p. 548.
25 Ibid.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 175

economia da "intenção" e da "transferência intencional para outrem", autori­


zando uma espécie de behaviorismo prático que dispensa, no essencial das si­
tuações da vida, a análise fina dos cambiantes do comportamento de outrem
ou a interrogação directa sobre as suas intenções ("que queres tu dizer?"). Do
mesmo modo que quem põe uma carta no correio supõe apenas, como mos­
trava Schütz, que empregados anônimos terão os comportamentos anônimos
em conformidade com a sua intenção anônima, assim também quem aceita a
moeda como instrumento de troca leva em conta implicitamente, como We­
ber indica, as probabilidades de que haja outros agentes que aceitem reconhe­
cer-lhe essa função. Automáticos e impessoais, significativos sem a intenção
de significarem, os comportamentos comuns da vida prestam-se a uma des-
codificação não menos automática e impessoal, não exigindo de modo algum
a retomada da intenção objectiva que exprimem a "reactivação" da intenção
"vivida" de quem os efectua.26
Cada agente, saiba-o ou não, queira-o ou não, é produtor e reprodutor
de sentido objective e, porque as suas acções e as suas obras são o produto de
um modus operandi do qual não é produtor e que não domina conscientemente
encerram uma "intenção objectiva", como diz a escolástica, que supera sem­
pre as suas intenções conscientes. Assim, do mesmo modo que, como mos­
tram Gelb e Goldstein, certos afásicos que perderam o poder de evocar, a pro­
pósito de uma palavra ou de uma pergunta, o vocábulo ou a noção reclama­
das pelo sentido podem pronunciar como que por descuido fórmulas em que
só retrospectivamente reconhecem a resposta pretendida, também os esque­
mas adquiridos de pensamento e de expressão autorizam a invenção sem in­
tenção do improviso regulado que descobre os seus pontos de partida e os
seus pontos de apoio em "fórmulas" já de antemão preparadas, como os pa­
res de palavras ou contrastes de imagens.27 Ultrapassado sem parar pelas
suas próprias palavras, com as quais mantém a relação do "transportar e ser

26 Um dos méritos do subjectivismo e do moralismo é demonstrarem pelo absurdo, nas


análises em que condenam como inautênticas as acções submetidas às solicitações objec­
tivas do mundo (quer se trate das heideggerianas da existência quotidiana e do "impes­
soal" ou das sartrianas do espírito de seriedade), a impossibilidade da existência "autên­
tica" que retomasse num projecto de liberdade todas as significações predadas e as deter­
minações objectivas: a busca puramente ética da "autenticidade" é privilégio de quem,
tendo o tempo livre necessário para pensar, está em condições de fazer a economia da
economia de pensamento autorizada pelo comportamento "inautêntico".
27 É provável que, se não constituísse uma forma rudimentar e, portanto, econômica e práti­
ca, o pensamento por pares não fosse tão tão frequente na comum e até mesmo na científi­
ca, a começar pela dos antropólogos, ainda dominada por numerosas falsas dicotomias,
como indivíduo e sociedade, personalidade e cultura, comunidade e sociedade,folk e ur­
ban, etc., que nada têm a invejar às dicotomias mais tradicionais da filosofia, como maté­
ria e espírito, alma e corpo, teoria e prática, etc. (cf. R. Bendix e B. Berger, "Images of so­
ciety and problems of concept formation in sociology", em L. Gross (org.), Symposium on
Sociological Theory, Nova Iorque, Harper and Row, 1959, pp. 92-118).
176 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

transportado", como diz Nicolai’ Hartmann, o virtuoso descobre no opus ope.


ratum novos desencadeadores e novos suportes para o modus operandi dos
quais são o produto, de maneira que o seu discurso se alimenta a si próprio
continuamente como um comboio que leve atrás de si os carris.28 Se os ditos
de espírito não surpreendem menos o autor que o auditor e se se impõem tan­
to pela sua necessidade retrospectiva como pela sua novidade, é que o achado
aparece como o simples trazer à luz do dia, ao mesmo tempo fortuito e inelu­
tável, uma possibilidade enterrada nas estruturas da língua. É porque os su­
jeitos não sabem, para falarmos com propriedade, aquilo que fazem, que
aquilo que fazem tem mais sentido do que eles sabem. O habitus é a mediação
universalizante que faz com que as práticas sem razão explícita e sem inten­
ção significante de um agente singular sejam todavia "sensatas", "razoáveis"
e objectivamente orquestradas e com que a parte das práticas que permanece
obscura aos olhos dos seus próprios produtores seja o aspecto através do qual
são objectivamente ajustadas às outras práticas e às estruturas cujo princípio
da sua produção é ele próprio produto. Para darmos a merecida resposta, de
passagem, à conversa sobre a compreensão dos actos de outrem ou dos factos
históricos, que constitui o último recurso dos defensores dos direitos da sub-
jectividade contra o "imperialismo redutor" das ciências do homem, bastará
recordar que a "comunicação das consciências" supõe a comunidade dos "in­
conscientes" (isto é, das competências linguísticas e culturais) e que a desco-
dificação da intenção objectiva das práticas e das obras nada tem a ver com a
"reprodução" (Nachbildung, como diz o primeiro Dilthey) das experiências
vividas e a reconstituição, inútil e incerta, das singularidades pessoais de
uma "intenção" que não se encontra realmente no seu princípio.
É porque são o produto de disposições que, sendo a interiorização das
mesmas estruturas objectivas, estão objectivamente concertadas, que as prá­
ticas dos membros de um mesmo grupo ou, numa sociedade diferenciada, de
uma mesma classe, são dotadas de um sentido objective ao mesmo tempo
unitário e sistemático, transcendente às intenções subjectivas e aos projectos
conscientes, individuais ou colectivos, e29 o mesmo é dizer que o processo de
objectivação não pode descrever-se na linguagem da interacção e do ajusta­
mento mútuo, porque a própria interacção deve a sua forma às estruturas ob­
jectivas que produziram as disposições dos agentes em interacção e que lhes

28 R. Ruyer, Paradoxes de la conscience et limites de 1'automatisme, Paris, Albin Michel, 1966,


p. 136.
29 Se esta linguagem não fosse perigosa de outro ponto de vista, poderiamos dizer, contra
todas as formas de voluntarismo subjectivista, que a unidade de uma classe assenta fun­
damentalmente no "inconsciente de classe". A "tomada de consciência" não é um acto
originário que constituiría a classe numa fulguração da liberdade e só tem alguma eficá­
cia, como todas as operações de carácter simbólico, na medida em que traz ao nível da
consciência tudo o que é implicitamente assumido segundo o modo inconsciente do ha­
bitus de classe.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 177

atribuem as suas posições relativas na interacção e alhures. Se, através de uma


esquematização que mal chega a ser abusiva, reduzirmos o universo aparen­
temente infinito das teorias da aculturação e dos contactos culturais à oposi­
ção entre o realismo do inteligível, que representa os contactos culturais e lin­
guísticos como contactos entre culturas ou línguas, submetidos a leis genéri­
cas (e. g. lei da reestruturação dos empréstimos) e específicas (as que a análise
das estruturas próprias das línguas ou das culturas em contacto estabelece), e
o realismo do sensível, que põe a tônica nos contactos entre as sociedades
(como populações) em presença ou, no melhor dos casos, na estrutura das re­
lações entre as sociedades confrontadas (dominação, etc.), vemos que a sua
oposição complementar designa o princípio da sua própria superação.
Assim, não há confronto singular entre dois agentes particulares que não en­
frente de facto, numa interacção definida pela estrutura objectiva da relação en­
tre os grupos correspondentes (e. g. colonizador/colonizado), e qualquer que
possa ser a estrutura conjuntural da relação de interacção (e. g. patrão dando
ordens a um subordinado, colegas falando dos seus alunos, intelectuais parti­
cipando num colóquio, etc.), habitus genéricos (cujos portadores são "pes­
soas físicas"), quer dizer, sistemas de disposições tais como uma competência
linguística e uma competência cultural, e, através destes habitus, todas as es­
truturas objectivas das quais eles são produto e em particular as dos sistemas
de relações simbólicos tais como a língua. Deste modo, as estruturas dos siste­
mas fonológicos em presença só são actuantes (como testemunha, por exem­
plo, o sotaque dos utilizadores não indígenas da língua dominante) quando
incorporados numa competência adquirida no decorrer de uma história parti­
cular (remetendo os diferentes tipos de bilinguismo para modos de aquisição
diferentes), que implica uma surdez selectiva e reestruturações sistemáticas.
Falar de habitus de classe (ou de "cultura", no sentido de competência cul­
tural adquirida no interior de um grupo homogêneo) é, portanto, lembrar, con­
tra todas as formas da ilusão ocasionalista que consiste em referir directamente
as práticas a propriedades inscritas na situação, que as relações "interpessoais"
nunca são, a não ser na aparência, relações de indivíduo a indivíduo e que a verda­
de da interacção nunca reside por completo na interacção—coisa que a psicolo ­
gia social e o interaccionismo ou a etnometodologia esquecem quando, reduzin­
do a estrutura objectiva da relação entre os indivíduos reunidos na estrutura
conjuntural da sua interacção numa situação e num grupo particulares, enten­
dem explicar tudo o que se passa numa interacção experimental ou observada
pelas características experimentalmente controladas da situação, como a posição
relativa no espaço dos participantes ou a natureza dos canais utilizados. E a sua
posição presente e passada na estrutura social que os indivíduos entendidos
como pessoas físicas transportam consigo, em todo o tempo e em todo o lugar,
sob a forma dos habitus que trazem como roupa e que, como o hábito, fazem o
monge, quer dizer, a pessoa social, com todas as suas disposições, que são outras
tantas marcas da posição social e, portanto, da distância social entre as posições
178 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

objectivas, ou seja, entre as pessoas sociais conjunturalmente aproximadas (no


espaço físico, que não é o espaço social) e, no mesmo acto, outras tantas chama­
das de atenção para essa distância e para os comportamentos a observar a fim de
"manter as distâncias" ou para as manipular estratégica, simbólica ou realmen­
te, para as reduzir (coisa mais fácil para o dominante que para o dominado) ou as
aumentar ou muito simplesmente as conservar (evitando "deixar-se ir", "fami­
liarizar-se", em suma, "lembrando-se da sua posição", ou, pelo contrário, evitan­
do "permitir-se.."tomar a liberdade", isto é, "ficando no seu lugar").
Até mesmo as formas de interacção na aparência mais passíveis de uma
descrição que adopte a linguagem da "transferência intencional para outrem",
como a simpatia, a amizade ou o amor, que, confirma-o a homogamia de classe,
são ainda dominadas, através da harmonia dos habitus, quer dizer, mais preci­
samente, dos ethos e dos gostos — sem dúvida pressentida a partir de índices
imperceptíveis da hexis corporal —, pela estrutura objectiva das relações entre
as condições e as posições: a ilusão da eleição mútua ou da predestinação nasce
da ignorância das condições sociais da harmonia dos gostos estéticos ou das in­
clinações éticas, assim percebida como a comprovação das afinidades inefáveis
que funda. Em suma, produto da história, o habitus produz práticas, indivi­
duais e colectivas, e portanto história, em conformidade com os esquemas en­
gendrados por essa mesma história. O sistema das disposições — passado que
sobrevive no actual e que tende a perpetuar-se no futuro actualizando-se em
práticas estruturadas segundo os seus princípios, lei interior através da qual se
exerce continuamente a lei de necessidades externas irredutíveis às coacções
imediatas da conjuntura — é o princípio da continuidade e da regularidade
que o objectivismo concede ao mundo social sem poder fundamentá-las em ra­
zão, ao mesmo tempo das transformações e das revoluções reguladas, das qua­
is não podem dar conta nem os determinismos extrínsecos e instantâneos de
uma sociologia mecanicista nem a determinação puramente interior, mas
igualmente pontual, do subjectivismo voluntarista ou espontaneísta.
Também é verdadeiro e falso dizer que as acções colectivas produzem o
acontecimento ou que são o seu produto, pois, de facto, resultam de uma con­
juntura, quer dizer, da conjunção necessária de disposições, e de um aconteci­
mento objectivo. A conjuntura política (e. g. revolucionária) só pode exercer a
sua acção de estimulação condicional reclamando ou exigindo uma resposta
determinada por parte de todos os que a apreendem como tal, daqueles que
estão dispostos a constituí-la como tal porque são dotados de um tipo deter­
minado de disposições que podem ser redobradas e reforçadas pela "tomada
de consciência", ou seja, pela posse directa ou mediata de um discurso capaz
de assegurar o domínio simbólico dos princípios praticamente dominantes
do habitus de classe.30
É na relação dialéctica entre as disposições e o acontecimento que se
constitui a conjuntura capaz de transformar em acção colectiva as práticas ob­
jectivamente coordenadas porque ordenadas segundo necessidades
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 179

objectivas parcial ou totalmente idênticas. Sem nunca serem totalmente coor­


denadas, uma vez que são o produto de "séries causais" caracterizadas por
durações estruturais diferentes, as disposições e a situação que se conjugam
na sincronia para constituírem uma conjuntura determinada nunca são total­
mente independentes, uma vez que engendradas pelas estruturas objectivas,
quer dizer, em última análise, pelas bases econômicas da formação social con­
siderada. Deste modo, a hysteresis dos habitus, inerente às condições sociais
da reprodução das estruturas nesses habitus é, sem dúvida, um dos funda­
mentos do desfasamento estrutural entre as ocasiões e as disposições para as
captar que faz com que surjam as ocasiões falhadas e, em particular, a impo­
tência, muitas vezes observada, no que se refere a pensar as crises históricas
segundo categorias de percepção diferentes das do passado, ainda que
revolucionário.
Ignorar a relação dialéctica entre as estruturas objectivas e as estruturas
cognitivas motivacionais que elas reproduzem, e que tendem a reproduzi-las
e a esquecer que essas estruturas objectivas são elas próprias produtos de prá­
ticas históricas cujo princípio produtor é ele próprio o produto de estruturas
que tende por isso a reproduzir, é votarmo-nos a reduzir a relação entre as di­
ferentes instâncias, tratadas como "diferentes traduções da mesma frase" —
segundo uma metáfora espinosiana que contém a verdade objectivista da
"articulação" —, à fórmula lógica que permite descobrir qualquer dentre elas
a partir de qualquer uma delas. Assim, não é de surpreender que se descubra
então o princípio do devir das estruturas numa espécie de partenogénese teó­
rica, oferecendo uma desforra ao Hegel da Filosofia da História e ao seu espírito
do mundo que "desenvolve a sua natureza única" permanecendo sempre
idêntico a si próprio.30 31 Enquanto aceitamos a alternativa canônica que, renas­
cendo sem cessar sob novas formas na história do pensamento social, opõe
hoje, por exemplo, leituras "humanistas" e "estruturalistas" de Marx, opor-
mo-nos ao subjectivismo não é rompermos realmente com ele, mas cairmos no

30 A ilusão da criação livre encontra certamente algumas das suas justificações no círculo
característico de toda a estimulação condicional que crê que o habitus não pode engen­
drar o tipo de resposta objectivamente inscrito na sua lógica a não ser na medida em que
confira à conjuntura a sua eficácia de detonador, constituindo-a segundo os seus princí­
pios, quer dizer, fazendo-a existir como questão por referência a uma certa maneira de in­
terrogar a realidade.
31 O habitus é o princípio unificador de práticas que relevam de domínios diferentes e que a
análise objectivista situaria em "subsistemas" separados, como as estratégias matrimo­
niais, as estratégias de fecundidade ou as escolhas econômicas; é, se se quiser, o ponto
onde se realiza praticamente "a articulação" dos campos que o objectivismo (de Parsons
aos leitores estruturalistas de Marx) dispõe lado a lado sem procurar os meios de desco­
brir o princípio real das homologias estruturais ou das relações de transformação que se
estabelecem objectivamente entre eles (o que não significa negar que as estruturas sejam
objectividades irredutíveis à sua manifestação nos habitus que produzem e que tendem a
reproduzi-las).
180 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

fetichismo das leis sociais a que se vota o objectivismo quando, estabelecendo


entre a estrutura e a prática a relação do virtual com o actual, da partitura com
a execução, da essência com a existência, substitui simplesmente ao homem
criador do subjectívísmo um outro subjugado pelas leis mortas de uma histó­
ria da natureza. E como poderiamos subestimar a força do par ideológico for­
mado pelo subjectivismo e pelo objectivismo quando vemos que a crítica do
indivíduo considerado como ens realissimum conduz apenas a fazer dele um
epifenómeno da estrutura hipostasiada e que a afirmação fundada do prima­
do das relações objectivas leva a atribuir a esses produtos da acção humana
que são as estruturas o poder de se desenvolverem segundo as suas próprias
leis e de determinarem ou sobredeterminarem todos os outros aspectos? O
problema não é de hoje e o esforço que visa transcender as oposições da exte-
rioridade e da inferioridade, da multiplicidade e da unidade, esbarrou sem­
pre nesse obstáculo epistemológico que é o indivíduo, capaz mesmo de as­
sombrar a teoria da história ainda quando o reduzimos, como faz muitas ve­
zes Engels, ao estado de molécula que, embatendo noutras moléculas, numa
espécie de movimento browniano, produz um sentido objective redutível à
composição mecânica de acasos singulares.32
Do mesmo modo que a oposição da língua e da fala como simples execu­
ção ou até mesmo como projecto preconstruído oculta a oposição entre as re­
lações objectivas da língua e as disposições constitutivas da competência lin­
guística, assim também a oposição entre a estrutura e o indivíduo contra o
qual a estrutura deve ser conquistada e reconquistada sem parar forma um
obstáculo à construção da relação dialéctica entre a estrutura e as disposições
constitutivas do habitus. Se o debate sobre as relações entre a "cultura" e a
"personalidade", que dominou uma época inteira da antropologia america­
na, parece hoje tão fictício e estéril é porque se organizou, numa profusão de
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32 "A história faz-se de tal maneira que o resultado final se destaca sempre dos conflitos de
um grande número de vontades individuais, das quais cada uma se fez, por sua vez,
aquilo que é na sequência de uma grande quantidade de condições particulares de exis­
tência; há, portanto, aqui inumeráveis forças que se opõem mutuamente, um grupo infi­
nito de paralelogramas de forças, donde resulta uma consequência — o acontecimento
histórico — que pode ser olhada ela própria, por sua vez, como o produto de uma força
agindo, como um todo, de maneira inconsciente e cega, porque aquilo que cada indiví­
duo quer é impedido por cada um dos outros e o resultado final é qualquer coisa que nin­
guém quis. E assim que a história se tem desenrolado até agora à maneira de um processo
natural e submetida também, no seu conjunto, às mesmas leis de movimento" (F. Engels,
carta a Joseph Bloch de 21 de Setembro de 1890, em K. Marx F. Engels, Lettres philosophi-
ques, Paris, Éditions Sociales, 1947, p. 124). "Os homens fazem eles próprios a sua histó­
ria, mas até ao presente não com a vontade colectiva de um plano de conjunto, ainda que numa
sociedade dada, bem delimitada. Os seus esforços contrariam-se uns aos outros, e é por
isso mesmo que reina, em todas as sociedades deste gênero, a necessidade, completada e
expressa pelo acaso" (F. Engels, carta a Hans Starkenburg, 25 de Janeiro de 1894, ibid.,
p. 132).
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 181

paralogismos lógicos e epistemológicos, em torno da relação entre dois pro­


dutos complementares de uma mesma representação realista e substancialis-
ta do objecto científico, a noção de cultura, entendida como "realidade suige­
neris", e a "personalidade de base", conceito abstracto-concreto nascido do
esforço para escapar à antinomia insolúvel do indivíduo e da sociedade. Nas
suas expressões mais caricaturais, a teoria da personalidade de base tende a
definir a personalidade como um reflexo ou uma réplica em miniatura (obti­
da por "moldagem") da "cultura" que se encontraria em todos os indivíduos
de uma mesma sociedade, à excepção dos "desviantes". As análises célebres
de Cora Du Bois sobre os indígenas das ilhas de Alor fornecem o exemplo
mais típico das confusões e das contradições que resultam da teoria da dedu-
tibilidade recíproca da "cultura" e da personalidade: preocupado em manter
a todo o custo a conjugação entre as construções do etnólogo assentes no pos­
tulado de que as mesmas influências produzem a mesma personalidade de
base e as suas próprias observações clínicas sobre quatro sujeitos que lhe apa­
recem como "fortemente individuados" a título de produtos de "factores es­
pecíficos ligados a destinos particulares", o psicanalista que se esforça por
descobrir encarnações individuais da personalidade de base fica condenado
às palinódias e às incoerências.33 Assim, pode ver em Mangma "o mais típico"
dos quatro sujeitos estudados, "correspondendo a sua personalidade à estru­
tura da personalidade de base", quando de início escrevera: "É difícil deter­
minar em que medida Mangma é típico. Ouso afirmar que, se o fosse, a socie­
dade não poderia continuar a existir",. Passivo e dotado de um supereu forte,
Ripalda é "atípico", ao mesmo título que Fantan, que "tem a formação carac-
terial mais poderosa, sendo desprovido de inibições perante as mulheres"
(sendo a regra uma extrema inibição heterossexual) e que "difere tanto dos
outros como um citadino de um camponês". Malekala enfim, com uma bio­
grafia típica ponto por ponto, é um profeta notório que tentou animar um mo­
vimento de renovação religiosa, e a sua personalidade aproximar-se-ia da de
Ripalda, outro feiticeiro que vimos ser descrito como atípico. E, para coroar o
conjunto, o analista observa que "personagens como Mangma, Ripalda e
Fantan podem encontrar-se em qualquer sociedade". Anthony F. Wallace, a
quem é tomada de empréstimo esta crítica,34 tem sem dúvida razão ao notar
que a noção de personalidade modal tem o mérito de escapar às inconsequên-
cias correlativas da indiferença pelas diferenças (e, por isso, pela estatística),
as mais das vezes implicada pelo recurso à noção de personalidade de base,
mas aquilo que poderia passar por um simples aperfeiçoamento das técnicas
de medida e de verificação destinadas a experimentar a validade de uma
construção teórica equivale de facto a operar uma substituição de objecto:

33 Cf. C. Du Bois, The People of Alor, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1944.
34 A. F. Wallace, Culture and Personality, Nova Iorque, Random House, 1965, p. 86.
182 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

substitui-se um sistema de hipóteses sobre a estrutura da personalidade con­


cebida como sistema homeostático, que se transforma reinterpretando as
pressões externas segundo a sua lógica própria, por uma simples descrição
da tendência central da distribuição dos valores de uma variável ou, no me­
lhor dos casos, de uma combinação de variáveis. A. F. Wallace pode assim es­
tabelecer a constatação tautológica de que, numa população de índios Tusca­
rora, o tipo modal de personalidade definido segundo 21 dimensões se obser­
va apenas em 37 por cento dos sujeitos estudados. Abusca de correlações ou a
análise factorial não pode conduzir ao sistema de regras a partir das quais se
engendram as regularidades, nem no caso de uma sociedade pouco diferen­
ciada econômica e socialmente, nem no de uma mesma classe social no interi­
or de uma sociedade estratifiçada. Na verade, a construção do ethos de classe
pode por exemplo, armar-se da leitura das regularidades estatísticas tratadas
como índices sem que o princípio unificador e explicativo dessas regularida­
des se reduza às regularidades nas quais se manifesta. Em suma, à falta de ver
na "personalidade de base" outra coisa que não apenas uma maneira de de­
signar um "dado" directamente observável, quer dizer, o "tipo de personali­
dade" partilhado pela maioria dos membros de uma dada sociedade, os de­
fensores da noção nada podem opor, em boa lógica, aos que, em nome da
mesma representação realista do objecto da ciência, submeterem a teoria à
prova da crítica estatística. O
Ser que se reduz a um ter, a um ter sido, ter feito ser, o habitus é o produ­
to de um trabalho de inculcação e de apropriação necessário para que esses
produtos da história colectiva que são as estruturas objectivas (e. g. da língua,
da economia, etc.) consigam reproduzir-se, sob a forma de disposições dura­
douras, em todos os organismos (a que podemos, se se quiser, chamar indiví­
duos) duradouramente submetidos aos mesmos condicionamentos, e por­
tanto colocados nas mesmas condições materiais de existência, o que equiva­
le a dizer que a sociologia trata como idênticos todos os indivíduos biológicos
que, como produto de idênticas condições objectivas, são os suportes dos
mesmos habitus. Assim, a classe social como sistema de relações objectivas
deve ser posta em relação não com o indivíduo ou a "classe" como população
(isto é, como soma de indivíduos biológicos enumeráveis e mensuráveis),
mas com o habitus de classe enquanto sistema de disposições (parcialmente)
comum a todos os membros das mesmas estruturas. Se está excluído que to­
dos os membros da mesma classe (ou mesmo dois dentre eles) tenham feito as
mesmas experiências e segundo a mesma ordem, é certo que qualquer mem­
bro da mesma classe tem probabilidades maiores que outro de uma classe di­
ferente de se ver confrontado enquanto actor ou testemunha com as situações
mais frequentes para os membros dessa classe. Assim, as estruturas objecti­
vas que a ciência apreende sob a forma de regularidades estatísticas (ou seja,
citando exemplos avulsos, taxas de emprego, curvas de rendimentos, proba­
bilidades de acesso ao ensino secundário, frequência das partidas para férias,
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 183

etc.) e que conferem a suafisionomia a um meio ambiente social, espécie de pa­


isagem colectiva com as suas carreiras "fechadas", os seus "lugares" inacessí­
veis, os seus "horizontes tapados", inculcam, através das experiências direc­
tas ou mediatas sempre convergentes, essa espécie de "arte de avaliar as vero-
similitudes", como dizia Leibniz, quer dizer, de antecipar o porvir objectiva-
mente, em suma, esse sentido da realidade ou das realidades que é, sem dúvi­
da, o princípio mais bem escondido da sua eficácia.
Para definir as relações entre a classe, o habitus e a individualidade or­
gânica que nunca podemos eliminar por completo do discurso sociológico na
medida em que, imediatamente dada à percepção imediata (intuitus perso­
nae), é também sociaimente designada e reconhecida (nome próprio, perso­
nalidade jurídica, etc.) e em que se define por uma trajectória social em pleno
rigor irredutível a qualquer outra, podemos situar-nos, pelo menos metafori­
camente, como por vezes de modo implícito fazem os utilizadores da noção
de inconsciente, na lógica do idealismo transcendental. Deste modo, conside­
rando o habitus como um sistema subjectivo mas não individual de estrutu­
ras interiorizadas, esquemas de percepção, de concepção e de acção, que são
comuns a todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe e constitu­
em a condição de toda a objectivação e de toda a percepção, fundamos então a
concertação objectiva das práticas e a unicidade da visão do mundo na impes­
soalidade e na substituibilidade perfeitas das práticas e das visões singulares.
Contudo, isso equivale a considerar todas as práticas ou representações pro­
duzidas segundo esquemas idênticos como impessoais e intercambiáveis, à
maneira das intuições singulares do espaço que, a crermos em Kant, não re-
flectem nenhuma das particularidades do eu empírico. Para darmos razão da
diversidade dentro da homogeneidade que caracteriza os habitus singulares
dos diferentes membros de uma mesma classe é que reflecte a diversidade
dentro da homogeneidade característica das condições sociais de produção
desses habitus, basta apercebermo-nos da relação fundamental de homologia
que se estabelece entre os habitus dos membros de um mesmo grupo ou de
uma mesma classe na medida em que são o produto da interiorização das
mesmas estruturas fundamentais, e o mesmo é dizer que, para falarmos a lin­
guagem de Leibniz, a visão do mundo de um grupo ou de uma classe supõe,
tanto como a homologia das visões do mundo que é correlativa da identidade
dos esquemas de percepção, as diferenças sistemáticas que separam as visões
do mundo singulares, tomadas a partir de pontos de vista também singulares
e, todavia, concertados.
A própria lógica da sua gênese faz do habitus uma série cronologica­
mente ordenada de estruturas, especificando uma estrutura de uma determi­
nada categoria as de categoria inferior (e, portanto, geneticamente anteriores)
e estruturando as de categoria superior por intermédio da acção que exerce
sobre as experiências (estruturadas) geradoras dessas estruturas. Assim, por
exemplo, o habitus adquirido na família reside no princípio da estruturação
184 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

das experiências escolares (e em particular da recepção e da assimilação


mensagem propriamente pedagógica), estando o habitus transformado pe]a
acção escolar, ela própria diversificada, por sua vez, no princípio da estnqu.
ração de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da a^sl.
milação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou
das experiências profissionais), e assim por diante, de reestruturação em re_
estruturação. As experiências (que uma análise multivariada pode distingüjr
e especificar por meio do cruzamento de critérios logicamente permutáv^s)
integram-se na unidade de uma biografia sistemática que se organiza a pa^r
da situação originária de classe, experimentada num tipo determinado de e5_
trutura familiar. Nunca sendo a história do indivíduo mais do que uma cerfa
especificação da história colectiva do seu grupo ou da sua classe, podendo
ver nos sistemas de disposições individuais variantes estruturais do habitus
grupo ou de classe, sistematicamente organizadas nas próprias divergências
que as separam e em que se exprimem as diferenças entre as trajectórias c as
posições no interior ou no exterior da classe. De facto, o estilo "pessoal", qijer
dizer, essa marca particular de que são portadores todos os produtos de
mesmo habitus, práticas ou obras, nunca é mais do que um desvio, ele próprja
regulado e por vezes codificado por referência ao estilo próprio de uma ép^a
ou de uma classe, de tal maneira que remete para o estilo comum não só pela
conformidade, à maneira de Fídias, que, a crermos em Hegel, não tinha "n.w-
neira", mas também pela diferença que faz toda a "maneira".
Capítulo 4
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS

Enquanto o trabalho pedagógico não é claramente instituído como prática es­


pecífica e autônoma e enquanto é todo um grupo e todo um ambiente simboli­
camente estruturado que exerce, sem agentes especializados nem momentos
especificados, uma acção pedagógica anônima e difusa, o essencial do modus
operandi que define o domínio prático transmite-se na prática, no estado práti­
co, sem aceder ao nível do discurso. Não se imitam "modelos", mas as acções
dos outros. A hexis corporal fala imediatamente à motricidade, enquanto es­
quema postural que é ao mesmo tempo singular e sistemático, porque solidá­
rio de todo um sistema de técnicas do corpo e de utensílios e carregado de uma
multiplicidade de significações e de valores sociais e as crianças são particular­
mente atentas, em todas as sociedades, a esses gestos ou a essas posturas em
que se exprime aos seus olhos tudo o que faz o adulto completo, uma atitude,
uma posição da cabeça, expressões do rosto, maneiras de se estar sentado, de
manejar os instrumentos, tudo isto associado sempre a um tom de voz, a uma
forma de discurso e — como poderia ser de outro modo? — a todo um conteú­
do de consciência. Contudo, o facto de os esquemas poderem ir da prática à
prática sem passarem pela explicitação e pela consciência não significa que a
aquisição do habitus se reduza a uma aprendizagem mecânica por tentativas e
erros. Ao contrário de uma sucessão incoerente de números, que só poder ser
aprendida gradualmente, por tentativas repetidas e segundo progressões pre­
visíveis, uma série adquire-se mais facilmente porque contém uma estrutura
que dispensa a retenção mecânica da totalidade dos números tomados um a
um: quer se trate de discursos como ditados, provérbios, poemas gnómicos,
cantos, enigmas ou jogos, ou de objectos como as ferramentas, a casa ou a al­
deia, ou ainda de práticas, justas de honra, troca de dons, ritos, etc., o material
que se propõe à aprendizagem da criança cabila é o produto da aplicação siste­
mática de um pequeno número de princípios praticamente coerentes;1 o mes­
mo é dizer que, neste material infinitamente redundante, não há dificuldade
em apreender, sem que seja necessária a sua representação temática, a razão de

185
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
184

das experiências escolares (e em particular da recepção e da assimilação da


mensagem propriamente pedagógica), estando o habitus transformado pela
acção escolar, ela própria diversificada, por sua vez, no princípio da estrutu­
ração de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da assi­
milação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou
das experiências profissionais), e assim por diante, de reestruturação em re­
estruturação. As experiências (que uma análise multivariada pode distinguir
e especificar por meio do cruzamento de critérios logicamente permutáveis)
integram-se na unidade de uma biografia sistemática que se organiza a partir
da situação originária de classe, experimentada num tipo determinado de es­
trutura familiar. Nunca sendo a história do indivíduo mais do que uma certa
especificação da história colectiva do seu grupo ou da sua classe, podemos
ver nos sistemas de disposições individuais variantes estruturais do habitus de
grupo ou de classe, sistematicamente organizadas nas próprias divergências
que as separam e em que se exprimem as diferenças entre as trajectórias e as
posições no interior ou no exterior da classe. De facto, o estilo "pessoal", quer
dizer, essa marca particular de que são portadores todos os produtos de um
mesmo habitus, práticas ou obras, nunca é mais do que um desvio, ele próprio
regulado e por vezes codificado por referência ao estilo próprio de uma época
ou de uma classe, de tal maneira que remete para o estilo comum não só pela
conformidade, à maneira de Fídias, que, a crermos em Hegel, não tinha "ma­
neira", mas também pela diferença que faz toda a "maneira".
Capítulo 4
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS

Enquanto o trabalho pedagógico não é claramente instituído como prática es­


pecífica e autônoma e enquanto é todo um grupo e todo um ambiente simboli­
camente estruturado que exerce, sem agentes especializados nem momentos
especificados, uma acção pedagógica anônima e difusa, o essencial do modus
operandi que define o domínio prático transmite-se na prática, no estado práti­
co, sem aceder ao nível do discurso. Não se imitam "modelos", mas as acções
dos outros. A hexis corporal fala imediatamente à motricidade, enquanto es­
quema postural que é ao mesmo tempo singular e sistemático, porque solidá­
rio de todo um sistema de técnicas do corpo e de’ utensílios e carregado de uma
multiplicidade de significações e de valores sociais e as crianças são particular­
mente atentas, em todas as sociedades, a esses gestos ou a essas posturas em
que se exprime aos seus olhos tudo o que faz o adulto completo, uma atitude,
uma posição da cabeça, expressões do rosto, maneiras de se estar sentado, de
manejar os instrumentos, tudo isto associado sempre a um tom de voz, a uma
forma de discurso e — como poderia ser de outro modo? -— a todo um conteú­
do de consciência. Contudo, o facto de os esquemas poderem ir da prática à
prática sem passarem pela explicitação e pela consciência não significa que a
aquisição do habitus se reduza a uma aprendizagem mecânica por tentativas e
erros. Ao contrário de uma sucessão incoerente de números, que só poder ser
aprendida gradualmente, por tentativas repetidas e segundo progressões pre­
visíveis, uma série adquire-se mais facilmente porque contém uma estrutura
que dispensa a retenção mecânica da totalidade dos números tomados um a
um: quer se trate de discursos como ditados, provérbios, poemas gnómicos,
cantos, enigmas ou jogos, ou de objectos como as ferramentas, a casa ou a al­
deia, ou ainda de práticas, justas de honra, troca de dons, ritos, etc., o material
que se propõe à aprendizagem da criança cabila é o produto da aplicação siste­
mática de um pequeno número de princípios praticamente coerentes;1 o mes­
mo é dizer que, neste material infinitamente redundante, não há dificuldade
em apreender, sem que seja necessária a sua representação temática, a razão de

185
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
186

todas as séries sensíveis que pode ser apropriada sob a forma de um princípio
gerador de práticas organizadas segundo a mesma razão.2
As análises experimentais da aprendizagem que estabelecem que "a
formação ou a aplicação de um conceito não requer a apreensão consciente
dos elementos ou das relações comuns implicados nos exemplos particula­
res"3 permitem compreender os processos pelos quais os produtos sistemáti­
cos de disposições sistemáticas, a saber, as práticas e as obras, tendem a en­
gendrar por sua vez disposições sistemáticas. Assim, na presença de séries de
símbolos — caracteres chineses (Hull) ou desenhos fazendo variar simulta­
neamente a cor, a natureza e o número dos objectos representados (Heidbre-
der) —, distribuídos em classes afectadas de nomes arbitrários mas objectiva­
mente fundados, os sujeitos que não conseguem exprimir o princípio de clas­
sificação atingem, no entanto, marcas superiores às que obteriam se adivinhas­
sem ao acaso: "Certos sujeitos [...] adquirem a aptidão para nomear novos ca­
sos sem que por isso sejam capazes de dizer como procedem, ainda quando as
formulações necessárias se situam dentro dos limites das suas possibilidades
de expressão [...]. Estes estudos indicam [...] que há princípios complexos de
orientação (guiding) que podem ser constituídos, fixados e utilizados sem que
os agentes cheguem a ter consciência do processo. O sujeito tem noção, decer­
to, dos materiais concretos e dos seus esforços em vista de associar nomes a
configurações concretas, mas elabora modos mais gerais de designação das
figuras sem disso ter consciência".4 A análise da aquisição em meio natural de
um material estruturado proposta por Albert B. Lord a partir do estudo da
formação do guslar, bardo jugoslavo, concorda perfeitamente com os resulta­
dos da experimentação: a "arte" do bardo, domínio prático daquilo a que se
chamou o "método formulário", quer dizer, da aptidão para improvisar com­
binando "fórmulas", sequências de palavras "regularmente usadas nas mes­
mas condições métricas a fim de exprimir uma ideia determinada" (por
exemplo, o adjective homérico),5 e temas, lugares-comuns da narração épica,
adquire-se por familiarização simples, "à força de ouvir poemas"6 e sem que
os aprendizes tenham alguma vez consciência de adquirir e posteriormente

xçCX .0 °

2 Se as sociedades sem escrita parecem ter uma inclinação particular para os jogos estrutu­
rais que fascinam o etnólogo, é por vezes, muito simplesmente, como me fez ver Marcei
Maget, com fins mnemotécnicos: a homologia notável entre a estrutura da distribuição
das famílias na aldeia e a estrutura da distribuição das sepulturas no cemitério que se ob­
serva na Cabília (Alt Hichem, Tizi Hibel) contribui evidentemente para facilitar a identi­
ficação das sepulturas tradicionalmente anônimas (acrescentando-se aos princípios es­
truturais as orientações expressamente transmitidas).
3 B. Berelson and G. A. Steiner, Human Behavior, Nova lorque, Harcourt, Barce and World,
1964, p. 193.
4 Leeper, citado por B. Berelson and G. A. Steiner, ibid.
5 A. B. Lord, The Singer of the Tales, Cambridge, Harvard University Press, 1960, p. 30.
6 Ibid., p. 32.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 187

manipular esta ou aquela fórmula ou conjunto de fórmulas —6 as coacções rít­


micas ou métricas são interiorizadas ao mesmo tempo que a melodia e o senti­
do sem serem nunca apercebidas em si próprias.
Entre a aprendizagem por simples familiarização na qual o aprendiz
adquire insensível e inconscientemente os princípios da "arte" e da arte de vi­
ver, incluindo os que não são conhecidos do produtor das práticas ou das
obras imitadas, e, no outro extremo, a transmissão explícita e expressa por
prescrição e preceitos, toda a sociedade prevê formas de inculcação que, sob
as aparências da espontaneidade, constituem outros tantos exercícios estrutu­
rais tendentes a transmitir esta ou aquela forma de domínio prático.7 Na ver­
dade, são os enigmas ou as justas rituais que põem à prova o "sentido da lín­
gua ritual" e todos os jogos que, com frequência estruturados segundo a lógi­
ca da aposta, do desafio ou do combate (luta a dois ou por grupos, tiro ao alvo,
etc.) exigem dos rapazes que apliquem no registo do "fazer de conta" os es­
quemas geradores das estratégias de honra; é a participação quotidiana nas
trocas de dons e nas suas subtilezas que assegura às crianças a sua qualidade
de mensageiros;8 é a observação silenciosa das discussões da assembléia dos
homens, com os seus efeitos de eloquência, os seus rituais, as suas estratégias,
as suas estratégias rituais e as suas utilizações estratégicas do ritual; são as in-
teracções com os parentes que levam a percorrer em todos os sentidos o espa­
ço estruturado das relações objectivistas de parentesco ao preço de inversões
que impõem ao mesmo que se apercebia e se conduzia como sobrinho por re­
ferência ao irmão do seu pai que se dê conta e conduza como tio paterno por
referência ao filho do seu irmão e adquira assim o domínio dos esquemas de
transformação que permite passar do sistema de disposições ligado a uma
posição ao que convém à posição simétrica e inversa; são as comutações lexi­
cais e gramaticais (podendo o eu e o tu designar a mesma pessoa segundo a re­
lação com o locutor) através das quais se adquire o sentido da

6 Ibid., p. 24. k

7 De facto, aqui como noutros lugares, os diferentes tipos de acção pedagógica que pode­
mos distinguir em função do grau em que são explícita e expressamente organizados em
vista da inculcação são complementares e praticamente indissociáveis. Nada seria mais
falso que imaginar alguma coisa como uma educação natural numa sociedade que tende
tanto mais a substituir à experiência directa do mundo das experiências socialmente or­
denadas quanto mais se representa toda a educação (e em particular a das raparigas e das
mulheres) como adestramento ou melhor correcção de uma natureza canhota e distorci­
da: "endireita o tronco enquanto está verde, pois uma vez seco, ninguém pode cortá-lo";
"como se diz de uma madeira torcida, se não consegues endireitá-la, corta-a"; "a árvore
que não podaste no começo, vai trair-te no fim"; "educa a rapariga, senão terás de a
aguentar".
8 Os rapazinhos estão, além disso, predispostos a desempenhar o papel de intermediários
entre o mundo masculino e o mundo feminino, ou por relatarem às mulheres o que se
passa na assembléia dos homens, ou por porem o seu orgulho em surpreender algum se­
gredo feminino para o contarem aos homens.
188 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

intercambiabilidade das posições e da reciprocidade, bem como os limites de


uma e outra; e são, mais profundamente, as relações com o pai e com a mãe
que, pela sua dissimetria na complementaridade antagônica, constituem
uma das ocasiões de interiorizar inseparavelmente os esquemas da divisão se­
xual do trabalho e da divisão do trabalho sexual.
Uma das funções da primeira educação e, em particular, do rito e do
jogo, que se organizam muitas vezes segundo as mesmas estruturas, poderia
ser instaurar a relação dialéctica que conduz à incorporação de um espaço es­
truturado segundo as oposições mítico-rituais. A relação com o próprio corpo
é sempre mediatizada pelo mito e as experiências corporais mais fundamen­
tais, portanto, as mais universais no sentido e apenas no sentido em que não
há sociedade que não tenha de tomar partido a seu propósito, são socialmente
qualificadas e assim modificadas. O mesmo é dizer que os invariantes que po­
dem ser registados nas tomadas de posição das diferentes formações sociais
sobre as correspondências entre a simbólica espacial e a simbólica corporal
incidem exclusivamente nos terrenos universalmente impostos a essas tomadas
de posição, a saber, o pequeno número de sensações fundamentais ligadas às
grandes funções corporais. Assim, observa-se mais ou menos universalmen­
te que a maior parte das distinções espaciais são estabelecidas por analogia
com o corpo humano que constitui esquema de referência em articulação com
o qual o mundo pode ordenar-se, ao mesmo tempo que as estruturas elemen­
tares da experiência corporal coincidem com os princípios de estruturação do
espaço objective: o dentro e o fora, o em cima e o em baixo, o adiante e o atrás,
o alto e o baixo, o direito e o esquerdo, podem ser designados por expressões
valendo para partes do corpo humano (como testemunha o facto de muitas
línguas irem buscar as suas preposições espaciais a substantivos como as cos­
tas por atrás, o olho por diante, o estômago por dentro, etc.) ou por movimen­
tos corporais socialmente qualificados, como eliminar ou ingerir, entrar ou
sair, etc.9 Assim, a menos que atribuamos ao senso comum uma ciência infusa
das reacções somáticas mais escondidas (por exemplo, das secreções inter­
nas), não podemos dar razão da correspondência que parece estabelecer-se,

----------------------- A

9 Embora os princípios elementares de estruturação da experiência espacial talvez não se­


jam acessíveis a não ser a uma análise de tipo fenomenológico, o que deles podemos apre­
ender através da observação e da conversação permite-nos ver que as relações que a ex­
periência espacial mantém, na Cabília, com uma experiência quinestésica ou cenestésica
concordam com as que se observam na tradição europeia e talvez mais universalmente.
Assim a grandeza exprime-se afastando largamente o braço, a pequenez mantendo-se o
punho fechado; pouco diz-se pondo o polegar no auricular, nada por meio do toque com
a unha num dente; o liso é como a palma da mão; o difícil como uma subida; o fácil como a
água que se entorna. É mais complicado estabelecer a relação que, segundo alguns, se es­
tabelecería pela mediação das sensações quinestésicas nascendo na cavidade bucal, entre
o simbolismo fonético e representações espaciais como as oposições do perto e do longe,
do eu e do tu, do aqui e do ali, do pequeno e do grande, etc.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 189

em muitas sociedades, entre a linguagem na qual se exprimem as emoções e


as manifestações somáticas correspondentes a não ser na condição de admi­
tirmos a hipótese de que, enquanto antecipação pré-perceptiva da dor ou do
prazer objectivamente inscrito numa situação socialmente definida como im­
plicando essas sensações ou esses sentimentos, toda a emoção, à maneira da
histeria segundo Freud, "toma à letra a expressão falada, sentindo como real a
dilaceração do coração ou a bofetada das quais um interlocutor fala metafori­
camente".10 Tudo se passa como se "a linguagem dos órgãos", à qual a emo­
ção e a doença psicossomática recorreriam no caso de as expressões activas ou
verbais se encontrarem inibidas, fosse comandada pelas estruturas míticas
inscritas na língua social. Assim, às perturbações internas e externas do siste­
ma cardíaco correntemente associadas à emoção ou à dor, como, por exem­
plo, o aperto retrosternal de coração, a hipotensão ou a hipertensão (a palidez
ou o rubor), a taquicardia ou a bradicardia, o aumento da taxa de açúcar no
sangue, etc., é fácil fazermos corresponder toda uma série de expressões tais
como "ter o coração apertado, inchado, pesado", "ter um peso no coração",
"receber um golpe no coração", "ter o coração na boca", "subir o sangue à ca­
beça", "sentir o sangue a ferver", "tenho o coração a bater tanto que se parte,
tenho o coração a galope", "fazer o sangue ferver ou gelar nas veias", "agitar
o sangue", "irritar o sangue", "ficar sem pinta de sangue", etc. Podemos até
mesmo pôr em relação as manifestações do sistema vegetativo como a inibi­
ção da actividade do estômago e do intestino (dispepsia, vômitos), a diarréia,
a poliúria ou a prisão de ventre, os espasmos dos músculos lisos, a inibição
das funções sexuais, com as expressões correntes do tipo "não poder engolir
ou digerir alguém", "vomitar alguém ou alguma coisa", "apanhar uma indi­
gestão de alguém", "ter a garganta, o peito e o estômago apertados", "perder
a voz", "ter o coração apertado", "ter um nó na garganta", etc. Alíngua berbe-
re propõe um arsenal de expressões de uma lógica muito análoga, mas sim­
plesmente mais difuso, menos diferenciado, como, a darmos crédito a nume­
rosas observações, a sensação da dor física ou moral (grande sofrimento,
grande medo), muitas vezes mal localizada: "tenho uma carne de galinha";
"o meu fígado treme ou sangra", "há um incêndio a arder em mim"; "tenho o
coração abalado como uma batedeira"; "estou com um novelo na barriga";
"nem uma tripa me ficou no ventre, tenho os intestinos num nó, torcidos";
"treme-me o coração"; "o meu coração está pálido, sem cor"; "o meu coração
ou o meu fígado está cortado, esvazia-se"; "tenho o estômago apertado";
"sinto um nó no estômago". Do mesmo modo que o ethos e o gosto (ou, se se
quiser, a aisthesis) são a ética e a estética realizadas, assim também a hexis é o
mito concretizado, incorporado, tornado disposição permanente, maneira

10 S. Freud, I, "Studien über Histerie, d. Fraulein Elisabeth V. R...", Samtliche Werke,


p. 196 sq.
190 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

duradoura de estar, de falar, de andar, e, por isso, de sentir e de pensar, sendo


deste modo que toda a moral da honra se encontra ao mesmo tempo simboli­
zada e realizada na hexis corporal.
As oposições que a lógica mítico-ritual estabelece entre o masculino e o
feminino e que organizam todo o sistema de valores reaparecem, como já vi­
mos, nos gestos e nos movimentos do corpo sob a forma da oposição entre o
direito e o curvo (ou curvado), a segurança e a retenção. "O cabila é como a
urze, prefere partir a dobrar". O passo do homem de honra é decidido e reso­
luto, por oposição ao andar hesitante (tikli thamahmahth) que anuncia a irreso-
lução, a promessa hesitante (awal amahmah), o medo que alguém tem de se
comprometer e a impotência de manter os compromissos. Ao mesmo tempo é
um passo medido, opõe-se tanto à precipitação daquele que "levanta os pés
até acima", "dá grandes passadas", "dança" — sendo correr um comporta­
mento inconsistente e frívolo —, como à lentidão excessiva do que se "arras­
ta", só as mulheres tendo "caudas" e não podendo os homens, em caso al­
gum, "deixarem cair as suas fraldas". O seu andar é o de alguém que sabe
para onde vai e que chegará a tempo, sejam quais forem os obstáculos, expri­
me a força, a resolução, a determinação. O homem viril faz frente e olha no
rosto, honrando aquele que quer acolher ou para quem se dirige está sempre
alerta, porque sempre ameaçado, nada deixa escapar do que se passa à sua
volta, sendo um olhar perdido no ar ou preso ao chão o de um homem irres­
ponsável, que nada tem a temer por ser desprovido de responsabilidades no
seu grupo. Pelo contrário, espera-se da mulher que caminhe levemente cur­
vada, com os olhos baixos, evitando fitar outra coisa além do sítio onde vai
pôr o pé, sobretudo se acontecer que tenha de passar diante da thajma'th, e o
seu andar deve evitar o dar de ancas excessivo que se obtém pelo apoio forte
no pé; deve também mostrar-se sempre cingida pela thimehremth, peça de te­
cido rectangular com riscas amarelas, vermelhas e negras que se usa por cima
do vestido, e fazer com que o seu lenço não se desate, deixando ver a cabelei­
ra. Em suma, a virtude propriamente feminina, lahia (pudor, retenção, reser­
va), orienta todo o corpo feminino para baixo, para a terra, para o interior,
para a casa, enquanto a excelência masculina, o nif, se afirma no movimento
para cima, para o exterior, para os outros homens.
A oposição entre a orientação centrífuga, masculina, e a orientação cen-
trípeta, feminina, está, sem dúvida, no princípio das relações que os dois sexos
mantêm com o seu "psiquismo" (para não dizermos a sua "alma"), quer di­
zer, com o seu corpo e, mais precisamente, com a sua sexualidade. Como em
todas as sociedades dominadas pelos valores masculinos — não constituindo
excepção as europeias, que votam o homem à política, à história ou à guerra e
as mulheres ao lar, ao romance e à psicologia —, a relação propriamente mas­
culina com a sexualidade é a da sublimação, tendendo a simbólica do ritual e
da honra para recusar ao mesmo tempo toda a expressão directa à sexualida­
de e para encorajar a sua manifestação transfigurada sob a forma da proeza
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 191

viril, ou seja, todos os testemunhos directos ou indirectos tendem a atestar


que no próprio acto sexual o homem não tem nem consciência nem preocupa­
ção com o orgasmo feminino e que procura na repetição mais que no prolon­
gamento a afirmação da sua potência viril. Não podemos compreender a busca
da proeza sexual e a vergonha suscitada pela impotência sem supormos que
os homens não ignoram que, através da tagarelice feminina, ao mesmo tempo
temida e desprezada, a sua intimidade é penetrada pelo olhar do grupo e que
a avaliação global que a comunidade faz do seu nif não leva apenas em conta
as afirmações públicas de virilidade. E, de facto, podemos dizer, com Erikson,
que a dominação masculina tende a "restringir a consciência verbal das mu­
lheres",11 na condição de entendermos por isso não que todo o discurso se­
xual é proibido às mulheres — que de facto falam mais e mais livremente das
coisas sexuais —, mas que, como documenta a análise de gravações de con­
versas entre mulheres, o discurso feminino é estruturado segundo as catego­
rias masculinas da virilidade e da proeza, de modo que qualquer referência
aos "interesses" sexuais propriamente femininos se vê excluída desta espécie
de culto agressivo e envergonhado da virilidade masculina. Assim, a oposi­
ção entre a sexualidade masculina, pública e sublimada, e a sexualidade femi­
nina, secreta e, se se quiser, "alienada" (por referência à "utopia da genitalida-
de universal", como diz Erikson, quer dizer, da "plena reciprocidade orgas-
mática"), recobre a oposição entre a extroversão'àa política ou da religião pú­
blica e a introversão da psicologia (aqui sob a forma do mexerico sexual) e da
magia privada, formada, no essencial, por ritos que visam domesticar a
"alma" e o corpo dos parceiros masculinos.
A psicanálise, produto desencantador do desencantamento do mundo
que leva a constituir enquanto tal um domínio de significação sobredetermi-
nado miticamente, esquece e leva a esquecer que o próprio corpo e o corpo de
outrem nunca são percebidos senão através de categorias de percepção que
seria ingênuo considerar sexuais, embora, como documentam os risos conti­
dos das mulheres no decorrer das entrevistas e as interpretações dos símbolos
gráficos, pinturas murais, ornamentos da cerâmica ou dos tapetes, etc., reme­
tam sempre, por vezes muito concreta e claramente, para a oposição entre as
propriedades biologicamente definidas dos dois sexos. Igualmente ingênuo
seria chamarmos "educação sexual" às mil e uma acções de inculcação difusa
através das quais se tende a introduzir ordem no corpo e no mundo por meio
de uma manipulação simbólica da relação com o corpo e com o mundo que
visa impor aquilo a que devemos chamar, com Melanie Klein, uma "geografia
corporal", caso particular da geografia, ou melhor, da cosmologia.12 A relação
originária com o pai e com a mãe ou, se se preferir, com o corpo paterno e com

11 Nesta passagem, foram eliminadas algumas expressões francesas que não têm equiva­
lente em termos de "linguagem de órgãos" na língua portuguesa e que, de resto, são mui­
to próximas das traduzidas. (N. do T.)
192 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

o corpo materno, que proporciona a ocasião mais dramática da experiência


de todas as oposições fundamentais da prática mito-poética, simbolicamente,
encarnadas na oposição entre o pênis e a vagina, não pode encontrar-se na
base da aquisição dos princípios da estruturação do eu e do mundo, e em par­
ticular, de toda a relação homossexual e heterossexual, a não ser na medida
em que se instaura com objectos que são mitológica e não biologicamente
sexuados.
A aceleração ou o afrouxamento da "maturação" sexual dos orifícios ou
das superfícies corporais em que se empenha particularmente a psicanálise
não é senão um dos efeitos, entre outros, da diakrisis cultural que, aplican­
do-se ao corpo, opõe zonas visíveis e zonas escondidas ou vergonhosas, uma
face apresentável e propícia e uma face hostil e funesta, ou seja, de um lado o
rosto e, mais particularmente, a fronte, os olhos, o bigode e a barba, e, do
oposto, as costas, as orelhas, exprime-se o respeito fazendo frente e o despre­
zo voltando as costas ou, sob uma forma abreviada, encolhendo os ombros
("as tuas palavras ficam nas minhas costas") e a alegria batendo as mãos uma
na outra, enquanto os homens que acompanham um morto ao cemitério as
mantêm atrás das costas. É o mesmo recorte arbitrário que opõe zonas neu­
tras, quer dizer, grosso modo, as que podem ser mostradas e tocadas com a mão
ou os lábios (como o beijo na fronte, o maior dos sinais de respeito, no ombro
— recíproco e praticado entre iguais —, na palma da mão — recíproco entre
homens, unilateral da mulher para o homem), e zonas sexualmente marcadas
e, portanto, submetidas ao tabu da nudez, isto é, todo o resto do corpo e mais
particularmente as partes sexuais, e os seios, thibbech, muito fortemente carre­
gadas de conotações eróticas (enquanto o seio, thabbuchth, embora seja o di­
minutive feminino de abbuch, o pênis, é um termo neutro, evocando a mater­
nidade e o aleitamento da criança, e sendo, portanto, uma palavra livremente
pronunciável pelos homens ou diante dos homens), q
Todas as manipulações simbólicas da experiência corporal, a começar
pela que exercem os ^deslocamentos num espaço miticamente estruturado,
por exemplo, os movimentos de entrada e de saída, tendem a impor a integra­
ção do espaço corporal e do espaço cósmico, subsumindo sob os mesmos con­
ceitos, ao preço, evidentemente, de um grande laxismo lógico, os estados e as
acções complementares e opostos dos dois sexos na divisão sexual do traba­
lho. Assim, a oposição entre o movimento para fora, para o campo ou o mer­
cado, para a produção e a circulação de bens, e o movimento para dentro e
para a acumulação e o consumo dos produtos do trabalho, simboliza, com os
estados e as acções complementares e opostos dos dois sexos na divisão do
trabalho sexual, quer dizer, no acto sexual, mas também no trabalho de

12 M. Klein, Essais depsychanalyse (trad, de M. Derrida), Paris, Payot, 1967, p. 133 n.° 1 ("géo-
graphie du corps maternel"), p. 290, n.° 1.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 193

reprodução biológica e social, o contraste entre o corpo masculino, fechado


sobre si e orientado para fora, e o corpo feminino, semelhante à casa, sombrio,
húmido, cheio de alimento, de ferramentas e de filhos, no qual se entra e sai
pela mesma abertura, inevitavelmente maculado.13
A primeira educação trata o corpo como uma agenda, "entorpece", no
sentido de Pascal, os valores, as representações os símbolos, para os fazer ace­
der à ordem da "arte", pura prática que dispensa a reflexão e a teoria, tirando
todo o partido possível da "condicionalidade", essa propriedade da natureza
humana que é a condição da cultura no sentido inglês de cultivo, quer dizer,
de incorporação da cultura. O corpo pensa sempre: e o facto de se conceder
uma liberdade imaginária, com o sonho, não deve fazer esquecer todos os
controlos que continua a exercer, durante o próprio sono, e que tendem a as­
segurar o adiamento da satisfação. O trabalho pedagógico tem por função
substituir ao corpo selvagem, e em particular ao eros associai que reclama sa­
tisfação a qualquer momento e imediatamente, um corpo "habituado", quer
dizer, temporalmente estruturado. Assim, oferecendo a promessa de praze­
res diferidos e diferentes em troca da renúncia imediata a prazeres directa e
imediatamente sensíveis e pagando por meio da moeda do prestígio todas as
restrições e repressões impostas, a acção e a autoridade pedagógicas necessá­
rias para fazer aceitar essa moeda de imitação inculcam duradouramente, in­
dependentemente dos conteúdos particulares dessa inculcação, as estruturas
temporais que iniciam o habitus na lógica do rodeio e do adiamento e, portan­
to, do cálculo, resultando deste prazer cultivado uma economia que os utilita-
ristas põem em fórmulas morais e os económetros em fórmulas matemáticas.
Socializar a fisiologia transformando os acontecimentos fisiológicos em sim­
bólicos, desencadeados tanto por estimulações condicionais como por neces­
sidades funcionais intra-orgânicas, mudar a fome em apetite, que escolhe a
sua hora e os seus objectos em função das necessidades diferenciadas do gos­
to, ou o desgosto espontâneo, sem lugar nem hora, sem freio nem limites,
num trabalho colectivo de luto, que, como diz Granet, se desencadeia por or­
dem e em ordem "cada vez que chega a hora ritual"u são outras tantas manei­
ras de inculcar as estruturas de um arbitrário cultural por uma espécie de me-
tonímia originária, autorizada pela coerência dessas estruturas e que fornece
possibilidades de condensação extraordinárias—pars totalis, cada técnica do
corpo está predisposta a funcionar segundo o paralogismo pars pro toto e, por­
tanto a evocar (como se evocam as recordações e também os espíritos) todo o
sistema do qual faz parte. Se todas as sociedades (e, coisa significativa, todas
as "instituições totalitárias", como diz Goffman, que entendem realizar um
trabalho de "desculturação" e de "reculturação") concedem um tal preço aos

13 Cf. E. H. Erikson, "Observations on the Yurok: Childhood and World Image", University
of California Publications in American Archaelogy and Ethnology, University of California
Press, Vol. 35, n.° 10,1943, pp. 257-302.
194 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

pormenores na aparência mais insignificantes da postura, da apresentação, das


maneiras corporais e verbais, é porque, tratando o corpo como uma memória,
lhe confiam sob uma forma resumida e prática, quer dizer, mnemotécnica, os
princípios fundamentais do arbitrário cultural. O que é assim incorporado
encontra-se colocado fora do alcance da consciência e, portanto, ao abrigo da
transformação voluntária e deliberada, ao abrigo até da explicitação, pois
nada parece mais inefável, mais incomunicável, mais insubstituível, mais ini­
mitável ou, por isso mesmo, mais precioso do que os valores incorporados,
feitos corpo, pela transubstanciação operada pela persuasão clandestina de
uma pedagogia implícita, capaz de inculcar toda uma cosmologia, uma ética,
uma metafísica e uma política por meio de injunções tão insignificantes como
"põe-te direito" ou "não pegues na faca com a mão esquerda". Toda a astúcia
da razão pedagógica reside precisamente no facto de extorquir o essencial
aparentando exigir o insignificante, já que, obtendo o respeito das formas e as
formas de respeito que constituem a manifestação mais visível e ao mesmo
tempo mais escondida porque mais "natural" da submissão à ordem estabe­
lecida, a incorporação do arbitrário aniquila aquilo a que Raymond Ruyer
chama os "possíveis laterais", ou seja, todos esses actos a que a linguagem co­
mum chama "loucuras" e que não são mais do que a face quotidiana da loucu­
ra. As instituições e os grupos atribuir-lhes-iam tanto valor, se as concessões
da cortesia não contivessem sempre concessões políticas? O termo obsequium,
que Espinosa empregava para designar essa "vontade constante" produzida
pelo condicionamento por meio do qual "o estado nos molda para seu uso e
que lhe permite conservar-se",14 15 poderia ser reservado para definir os teste­
munhos públicos de reconhecimento que todo o grupo espera dos seus mem­
bros (particularmente nas operações de cooptação), quer dizer, as contribui­
ções simbólicas que os indivíduos devem trazer para as trocas que se estabe­
lecem, em todo o grupo, entre os indivíduos e o grupo, porque, como na troca
de dons, a troca é o seu próprio fim, o tributo reclamado pelo grupo reduz-se
geralmente a nadas, isto é a rituais simbólicos (ritos de passagem, cerimoniais

14 "Os parentes gritam e batem com os pés em ordem e por ordem, cada vez que chega a hora
ritual de exprimir o desgosto familiar e em resposta ao sinal dado pelo chefe do coro. To­
dos 'põem então os seus membros em movimento', todos oferecem a sua voz "a fim de
acalmar a dor e diminuir a angústia'. Saltam e gritam um número de vezes determinado e
segundo um ritmo significativo da sua proximidade em relação ao defunto — os homens
descobrem o braço direito e saltam abertamente, as mulheres não se descobrem e não le­
vantam os bicos dos pés do o chão, mas batem no peito e o filho emite vagidos à maneira
dos recém-nascidos, sem que o som da sua voz jamais pare, enquanto os parentes mais
afastados, que, depois de três modulações, deixam o som prolongar-se e morrer, são ape­
nas autorizados a adoptar um tom de queixume" (M. Granet, La Civilisation chinoise, Pa­
ris, Albin Michel, 1929, p. 392, sublinhado por mim). Cf. também "Le Langage de la dou-
leur d'après le rituel funéraire de la Chine classique", Journal de psychologie, Fevereiro de
1922, pp. 97-118.
15 A. Matheron, Individu et société chez Spinoza, Paris, Éditions de Minuit, 1969, p. 349.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 195

de cortesia, etc.) cuja execução "não custa" e que parecem tão "naturalmente"
exigíveis ("é o mínimo dos mínimos.."ele podia pelo menos...", "não lhe
saía caro fazer...") que a abstenção equivale a uma recusa ou a um desafio e
que a escolha de se submeter sem discussão aos formalismos e às formalida­
des mais de molde a traírem o arbitrário da ordem que as impõe só pode apa­
recer como uma declaração incondicional de reconhecimento, apenas tocada
pela suspeita, de resto improvável, da restrição mental e do desdobramento
irônico. O domínio prático daquilo a que se chamam as regras de cortesia, e,
em particular, a arte de ajustar cada uma das fórmulas disponíveis (por exem­
plo, no final de uma carta) às diferentes classes de destinatários possíveis, su­
põe o domínio implícito e, portanto, o reconhecimento-desconhecimento de
um conjunto de oposições constitutivas da axiomática implícita de uma or­
dem política determinada (tais como, no exemplo considerado, a oposição
entre os homens e as mulheres, uns reclamando homenagens, as outras sau­
dações ou sentimentos, a oposição entre os mais jovens e os mais velhos, a
oposição entre o pessoal, ou o privado, e o impessoal — com as cartas admi­
nistrativas ou de negócios — e por fim, a oposição hierárquica entre os supe­
riores, os iguais e os inferiores, que governa a gradação dos sinais de respei­
to). O mesmo é dizer como é ingênuo e falacioso reduzir o campo daquilo que
é "considerado como óbvio" (taken for granted), à maneira de Schütz e, na sua
esteira, dos etnometodólogos, a um conjunto de pressuposições formais e uni­
versais: "Considero óbvio que os outros existem, que agem sobre mim como
eu sobre eles e que a comunicação e a compreensão mútuas podem estabele-
cer-se entre nós — pelo menos em certa medida —, tudo isto graças a um sis­
tema de signos e de símbolos e no quadro de uma organização e de institui­
ções sociais que não são obra minha".16 De facto, através da influência que a
cortesia exerce sobre os actos na aparência mais insignificantes da vida de to­
dos os dias, aqueles que a educação permite reduzir ao estado de automatis-
mos são os princípios mais fundamentais de um arbitrário cultural e de uma
ordem política que se impõem segundo o modo da evidência ofuscante e
desapercebida. q
c-

CZ

\O

16 A. Schutz, Collected Papers. I, The Problem of Social Reality, op. cit., p. 145.
Capítulo 5
A ILUSÃO DA REGRA

A norma abstracta e transcendente da moral e do direito só se afirma expres­


samente quando deixou já de assombrar as práticas no estado prático e o apa­
recimento da ética como sistematização explícita dos princípios da prática co­
incide com a crise do ethos, que é correlativa da confrontação objectiva de ma­
neiras de ser ou de fazer objectivamente sistemáticas. Os princípios mais fun­
damentais não podem permanecer no estado implícito a não ser enquanto são
óbvios: a excelência deixa de existir quando nos perguntamos se se pode ensi­
nar, ou seja, quando o confronto das maneiras diferentes de excelência obriga
a dizer o que não é preciso, a justificar o que é óbvio e a constituir em dever-ser
e em dever-fazer aquilo que era vivido como a única maneira de ser e de fazer
e, portanto, de apreender como fundado sobre a instituição arbitrária da lei,
nomô, o que aparecia como inscrito na natureza das coisas, phusei. E não é por
acaso que a questão das relações entre o habitus e a "regra" emerge à luz do
dia a partir do momento em que historicamente uma acção de inculcação ex­
pressa e explícita, obrigada, para se efectuar, a produzir normas explícitas,
tais como as da gramática ou da retórica, que, ao contrário do que sugerem a
reabilitação chomskyana dos gramáticos e o uso, teoricamente ambíguo, do
conceito de gramática generativa, estão tão distantes dos esquemas imanen-
tes à prática como dos modelos construídos para dar razão das práticas. Na
verdade, é significativo que qualquer tentativa de fundar uma prática na obe­
diência a uma regra explicitamente formulada, seja no domínio da arte, da
moral, da política, da medicina ou até mesmo da ciência (pense-se nas regras
do método), esbarra na questão das regras que definem a maneira e o momen­
to oportuno — kairos, como diziam os sofistas — de aplicar as regras ou, como
tão bem se diz, de pôr em prática um repertório de receitas ou de técnicas, em
suma, da arte da execução pela qual inevitavelmente o habitus se reintroduz.
Seria fácil pôr em evidência a estratégia que se dissimula sempre por
trás das aparências da estereotipização ritual ou da regulamentação jurídica
ou consuetudinária. Seja o caso mais desfavorável, o do direito

197
198 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

consuetudinário, que, à maneira da Kadijustiz de Weber, vai sempre directa-


mente do particular ao particular, da infracção singular à sanção singular,
sem nunca fazer o rodeio que passa pelos princípios essencialmente não no­
meados a partir dos quais as proposições foram produzidas. De facto, en­
quanto actos de jurisprudência conservados e consignados pelo seu valor
exemplar, e portanto válidos por antecipação, os costumes aparecem como
um dos produtos mais exemplares do habitus onde nos podemos aperceber
da pequena quantidade de esquemas que permitem engendrar uma infinida­
de de práticas adaptadas a situações sempre renovadas, sem nunca se consti­
tuírem em princípios explícitos. Os actos de jurisprudência conformes a uma
falta determinada podem ser produzidos na sua totalidade a partir de um pe­
queno número de princípios simples e tanto mais profundamente dominados
quanto mais se aplicam continuamente a todos os domínios da prática, tais
como os que permitem avaliar a gravidade de um roubo segundo as circuns­
tâncias em que se efectou, como as oposições entre a casa (ou a mesquita) e os
outros lugares, entre a noite e o dia, entre os dias de festa e os dias correntes,
correspondendo sempre o primeiro ramo da alternativa à sanção mais severa.
Basta, como vemos, combinar esses princípios para produzir de imediato a
sanção adaptada a todos os casos, reais ou imaginários — desde, por exem­
plo, o roubo cometido de noite numa casa de habitação, o mais grave, ao pra­
ticado de dia num campo afastado, o menos grave —, mantendo-se evidente­
mente iguais todas as outras circunstâncias.1 Estes princípios, tão unanime­
mente reconhecidos e de aplicação tão geral e tão automática, não são explici­
tamente mencionados a não ser no caso precisamente em que a importância
do objecto roubado é tal que leva a ignorar as circunstâncias atenuantes ou
agravantes. Assim, por exemplo, o qanun de Ighil Imoula, referido por Hano-
teau e Letourneux, prevê que "aquele que roubar, por astúcia ou força, uma
mula, um boi ou uma vaca pagará 50 reais à djemaa e ao proprietário o valor do
animal roubado, quer o furto tenha sido cometido de noite ou de dia, numa
casa ou no exterior, e quer os animais pertençam ao dono da casa ou a ou­
trem".2 Os mesmos princípios fundamentais reaparecem nos casos de rixas,
que ocupam, com os roubos, um lugar considerável nas compilações de

1 Os enunciados contidos no costume de um grupo representam apenas uma parte muito


fraca do universo dos actos de jurisprudência possíveis (da qual a adição dos enunciados
produzidos a partir dos mesmos princípios e consignados nas recolhas de costumes de
diferentes grupos não dá mais que uma fraca ideia). A comparação das recolhas de costu­
mes de diferentes grupos (aldeias ou tribos) apreende variações na importância da san­
ção infligida pela mesma infracção, que, compreensíveis tratando-se de aplicações práti­
cas de um mesmo princípio implícito, não se observariam se estivéssemos perante outras
tantas aplicações de uma mesma norma explícita, expressamente produzida para servir
de base a actos de jurisprudência homogêneos e constantes, quer dizer, previsíveis e cal­
culáveis.
2 A. Hanoteau e A. Letourneux, op. cit., T. Ill, p. 338.
A ILUSÃO DA REGRA 199

costumes, com as oposições, que podem revestir-se de novas significações,


entre a casa e os outros lugares (não sendo, por exemplo, o homicídio de uma
pessoa surpreendida no interior de uma casa punido por qualquer sanção co-
lectiva), entre a noite e o dia, entre as festas e os dias correntes, às quais vêm
somar-se as variações segundo o estatuto social do agressor e da vítima (ho­
mem/ mulher, adulto / criança) e segundo os instrumentos e os processos usa­
dos (por traição, estando a vítima por exemplo adormecida, ou de homem a
homem) e o grau de consumação da agressão (simples ameaça ou passagem
ao acto). Tudo leva a crer que bastaria explicitar mais completamente do que é
possível fazer aqui as proposições fundamentais desta axiomática implícita
(e. g. um delito é sempre mais grave quando é cometido de noite do que quan­
do é praticado de dia) e as leis da sua combinação (podendo, segundo os ca­
sos, duas proposições adicionarem-se ou pelo contrário anularem-se, o que,
na lógica da regra, só pode ser descrito como uma excepção) para nos darmos
os meios de reproduzirmos todos os artigos de todos os livros de costumes re­
colhidos ou até mesmo de produzirmos o universo completo dos actos de ju­
risprudência em conformidade com o "sentido da equidade" sob a sua forma
cabila. O'
"Um indígena australiano", dizia Sapir, "sabe perfeitamente por que
termo de parentesco deve designar este ou aquele e em que pé manter rela­
ções com ele, mas é-lhe difícil formular a lei geral que rege os seus comporta­
mentos enquanto não pára de agir como se a conhecesse — e, em certo senti­
do, conhece-a, sendo uma maneira muito delicada, muito matizada, de sentir
as relações, experienciadas e experienciáveis".3 E é uma descrição perfeita do
modo de funcionamento do domínio prático a proposta por Durkheim ao
analisar a "arte", quer dizer, "aquilo que é prática pura sem teoria": "Uma
arte é um sistema de maneiras de fazer que são ajustadas a fins especiais e que
são o produto ou de uma experiência tradicional comunicada pela educação
ou da experiência pessoal do indivíduo e só podemos adquiri-la entrando em
relação com as coisas sobre as quais a acção deve exercer-se e exercendo-a nós
próprios. Sem dúvida, pode acontecer que a arte seja esclarecida pela refle­
xão, mas esta não é o seu elemento essencial, uma vez que a arte pode existir
sem ela, embora não exista uma única arte na qual tudo seja reflectido".4 Não
se poderia dizer melhor que a douta ignorância que está no princípio das es­
tratégias quotidianas não deve exprimir-se no léxico da regra, mas no que
empregam todas as sociedades para descrever a excelência, ou seja, a maneira
e as maneiras do homem consumado, pelo que esta "arte sem arte", como se
diz do zen, nunca se realiza tão completamente como nas ocasiões socialmen­
te ordenadas em que, como nas justas de honra, o jogo com a regra faz parte

3 E. Sapir, "L'influence des modèles inconscients sur le comportement social", Anthropolo-


gie, Paris, Éditions de Minuit, 1967,1, p. 41.
4 É. Durkheim, Éducation et sociologie, Paris, PUF, 1968 (l.“ ed, 1922), pp. 68-69.
200 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

da regra do jogo. Se essa encarnação particularmente conseguida da maneira


particular de ser homem que um grupo determinado reconhece é quase sem­
pre definida como indefinível, porque qualquer formulação sua a reduziria à
condição de simples processo ou de truque mecânico, é porque o virtuosismo
não tem a ver com a regra, gradeamento de protecção ou agenda, só deficien­
temente capaz de suprir as falhas do habitus; se o virtuosismo se reconhece
pela sua "naturalidade", é porque instaura esse domínio mágico do próprio
corpo que, como observa Hegel, caracteriza a destreza ou, na língua da honra
cabila, a "graça" do sarr, e que, enquanto "segunda natureza", quer dizer, en­
quanto realização conseguida da estrutura, não pode deixar de aparecer
como a forma mais natural da natureza a todos os que são os produtos da
mesma estrutura.
A teoria do habitus faz surgir todo um conjunto de questões que a noção
de inconsciente tem por efeito ocultar e que remetem, todas elas, para a ques­
tão do domínio prático e dos efeitos do domínio simbólico desse domínio, da
qual a questão dos efeitos da institucionalização e da explicitação correlativa
é um caso particular. Areacção contra o juridicismo sob a sua forma aberta ou
mascarada não deve levar-nos a fazer do habitus o princípio exclusivo de
toda a prática, embora não haja prática que não tenha o habitus no seu princí­
pio. À questão das relações entre as "estratégias objectivas" e as estratégias
propriamente ditas que era implicitamente posta pela oposição entre uma
descrição teleológica da interacção entre dois agentes e um modelo que invo­
ca apenas a orquestração dos habitus é óbvio que não podemos responder
opondo, segundo a alternativa do tudo ou nada, a consciência perfeitamente
transparente ao inconsciente totalmente opaco, a presença contínua à ausên­
cia não menos contínua da consciência. De facto, se é certo que as práticas pro­
duzidas pelos habitus, as maneiras de andar, de falar, de comer, os gostos e as
repulsas, etc., apresentam todas as propriedades dos comportamentos instin­
tivos, e em particular o automatismo, continua a ser verdade que uma forma
de consciência parcial, lacunar, descontínua, acompanha sempre as práticas
seja sob a forma desse mínimo de vigilância que é indispensável para contro­
lar o funcionamento dos automatismos, quer sob a forma de discursos desti­
nados a racionalizá-los (no duplo sentido do termo).
A maneira do especialista prático que só consegue apreender analitica-
mente este ou aquele momento comum a movimentos ou jeitos de mão dife­
rentes recortando várias estruturas motrizes agidas como indecomponíveis,
os agentes não podem dar-se um domínio simbólico da sua prática a não ser
por uma "operação elevada à segunda potência" que, como observa Merle-
au-Ponty, "pressupõe as estruturas que analisa".5 As narrativas ou os comen­
tários daquele a quem Hegel chama o "historiador original" (Heródoto,

5 M. Merleau-Ponty, op. cit., pp. 131-135.


A ILUSÃO DA REGRA 201

Tucídides, Xenofonte ou César, e, mais geralmente, o informador sob todas as


suas formas) e que, "vivendo no próprio espírito do acontecimento",6 assume
como óbvios os pressupostos implicitamente dessa forma assumidos pelos
agentes históricos, estão inevitavelmente submetidos às mesmas condições
de existência e a idênticas limitações tácitas que o seu objecto, pois todo o sis­
tema de esquemas de percepção e de pensamento exerce uma censura pri­
mordial na medida em que não pode dar a pensar e a perceber aquilo que dá a
pensar e a perceber sem produzir eo ipso um impensável e um inominável;
quando se quiseram construir máquinas capazes de jogar xadrez, foi preciso
ensinar-lhes expressamente "regras" que são a tal ponto óbvias que os joga­
dores mais experimentados não têm qualquer consciência delas, como as que
proíbem, por exemplo, pôr duas peças na mesma casa ou uma mesma peça
em várias casas. Tudo se passa, com efeito, como se os agentes tivessem tanto
menos necessidade de dominar de modo consciente os princípios que os dis­
põem a perceber, a conceber ou a agir segundo uma lógica determinada (e,
portanto, a compreender de maneira na aparência imediata os produtos,
obras ou práticas de princípios semelhantes àqueles que aplicam nas suas
práticas) quanto mais completamente dominam esses princípios de modo
prático. 0

As racionalizações que os agentes inevitavelmente produzem quando


são convidados a expressar sobre a sua prática um ponto de vista que já não é
o da acção sem ser o da interpretação científica caminham de algum modo ao
encontro do legalismo jurídico, ético ou gramatical ao qual a situação de ob­
servador inclina. A relação entre o informador e o etnólogo não deixa de ter
analogias com uma relação pedagógica na qual 0 professor deve trazer ao es­
tado explícito, dadas as exigências da transmissão, os esquemas inconscien­
tes da sua prática. Assim, do mesmo modo que o ensino do ténis^do violino,
do xadrez, da dança ou do boxe decompõe em posições, em passos ou em gol­
pes práticas que integram todas essas unidades de comportamento, artificial­
mente isoláveis, na unidade de um comportamento organizado, do mesmo
modo o discurso por meio do qual o informador se esforça por assumir as
aparências do domínio simbólico da sua prática tende a chamar a atenção
para os "golpes" mais notáveis, quer dizer, mais recomendados ou mais re­
provados, de diferentes jogos sociais (como o bahadla no jogo da honra ou do
casamento com a prima paralela nas estratégias matrimoniais), mais do que
para os princípios a partir dos quais esses golpes e todos os seus compossíve-
is, equivalentes ou diferentes, podem ser engendrados e que, pertencendo ao
universo do indiscutido, permanecem a maioria das vezes no estado
implícito.

Hegel, La Raison dans I'histoire. Introduction à la philosophic de I'histoire (trad., introd, e no­
tas de K. Papaioannou), Paris, Pion, 1965, p. 26.

ai'Oil ílf Í0ÜC.ÍC13


202 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

Contudo, a armadilha mais subtil reside, sem dúvida, no facto de um tal


discurso recorrer de bom grado ao vocabulário muito ambíguo da regra, o da
gramática, da moral e do direito, para exprimir uma prática social que obede­
ce a princípios completamente diferentes, e essa espécie de maldição especial
que quer que as ciências do homem tenham a ver com um objecto que fala
vota-as a oscilar entre um excesso de confiança no objecto quando tomam à
letra o seu discurso e um excesso de desconfiança quando esquecem que a sua
prática contém mais verdade, que aquela que o seu discurso pode dar acerca
dela. É no opus operatum, e só aí, que se revela o modus operandi, disposição cul­
tivada que não pode ser dominada por meio de um simples retorno reflexivo
(reflexive consciousness), pois, se os agentes são possuídos pelo seu habitus
mais que o possuem, é em primeiro lugar porque só o possuem enquanto ele
age neles como princípio de organização das suas acções, quer dizer, segundo
um modo tal que eles são no mesmo acto desapossados dele de modo simbó­
lico — o que significa que o privilégio tradicionalmente conferido à consciên­
cia e ao conhecimento reflexivos não tem fundamento e que nada autoriza a
estabelecer uma diferença de natureza entre o conhecimento de si e o conheci­
mento de outrem.
A explicação que os agentes podem fornecer da sua prática, ao preço de
um retorno quase teórico, dissimula, aos seus próprios olhos, a verdade do
seu domínio prático como douta ignorância, isto é, como modo de conheci­
mento prático que não abarca o conhecimento dos seus próprios princípios.
Como indica Heidegger, a acção de martelar é ao mesmo tempo mais e me­
nos, em todo o caso uma coisa completamente diferente do conhecimento
consciente da instrumentalidade do martelo, uma vez que domina esse ins­
trumento de uma maneira inteiramente adequada, submetendo-se à sua fun­
ção específica sem por isso implicar o conhecimento teórico da estrutura do
instrumento enquanto tal ou da sua função de ferramenta definido pelo facto
de estar disponível para o manuseamento.7 Segue-se que esta douta ignorân­
cia não pode dar lugar senão a um discurso de enganador enganado, ignoran­
do quer a verdade objectiva do seu domínio prático como ignorância da sua
própria verdade, quer o verdadeiro princípio de conhecimento que contém. É
por isso que as teorias indígenas são menos de recear por orientarem a inves­
tigação no sentido das explicações ilusórias das racionalizações e das ideolo­
gias do que por adoptarem a teoria implícita da prática propostas pelas obras
apreendidas como facto consumado, concedendo assim à inclinação intelec-
tualista que é inerente à abordagem objectivista um reforço do qual ela não
tem necessidade. Assim, por exemplo, o uso ideológico que numerosas socie­
dades fazem do modelo da linhagem, e mais geralmente das representações
genealógicas,8 para justificarem e legitimarem a ordem estabelecida (por

7 M. Heidegger, L'Être et le Temps, Paris, Gallimard, 1965, p. 93.


A ILUSÃO DA REGRA 203

exemplo, escolhendo, entre duas maneiras de classificar um casamento, a


mais ortodoxa) ter-se-ia, sem dúvida, revelado mais cedo aos olhos dos etnólo­
gos, se estes tivessem trazido à ordem do discurso explícito os princípios da
habilidade que por vezes manifestam as suas relações com os "pais fundado­
res" da disciplina, antepassados epónimos utilizados como bandeiras nas lu­
tas presentes. Contudo, falando mais seriamente, o uso teórico que eles pró­
prios fazem dessa construção teórica impede-os de se interrogarem sobre as
funções das genealogias e dos genealogistas e, no mesmo acto, de apreenderem
a genealogia que cons troem como o recenseamento teórico do universo das
relações teóricas no interior do qual os indivíduos ou os grupos definem o es­
paço real das relações úteis em função dos seus interesses conjunturais.
A gramática semientendida das práticas que é o legado do senso co­
mum — ditados, provérbios, enigmas, segredos de especialistas,8 9 poemas
gnómicos — e sobre a qual se apoiam os improvisos individuais tem um esta­
tuto ambíguo, bem evocado pela palavra "regra", ao mesmo tempo princípio
que explica a acção e norma que a rege. Esta "sabedoria" esquiva a intelecção
exacta da lógica do sistema no próprio movimento de a indicar: assim, as ex­
plicações parciais de certo ditado ("a rapariga é a sepultura") ou certo precei­
to ("pega na terra e amassa-a"—convite ao casamento com a prima paralela)
são mais de natureza a afastar uma explicação sistemática do que a introdu-
zi-la, reforçando a inclinação para considerar cada símbolo em si próprio, em
estado separado, como se estivesse investido de uma significação que se lhe
associasse intrinsecamente segundo a lógica das chaves dos sonhos. As "teo­
rias" espontâneas devem a sua estrutura aberta, as suas incertezas, as suas
imprecisões ou até as suas incoerências ao facto de permanecerem subordina­
das a funções práticas, mas ainda quando dêem apenas uma representação
falsa da prática e dos princípios aos quais ela realmente obedece podem
orientar e modificar a prática, embora dentro de limites muito estreitos, sen­
do as "explicações secundárias", por exemplo, a significação que os agentes
atribuem a ritos, mitos ou temas decorativos, muito menos estáveis no espaço
e, sem qualquer dúvida, no tempo do que a estrutura das práticas correspon­
dentes.10 Podemos encontrar em Pareto uma espécie de modelo simplificado
da dialéctica entre o esquema imanente à prática que ele engendra e organiza e
a norma capaz de contrariar ou'de reforçar a eficácia do princípio cuja eficácia
imputa a si própria embora que seja seu produto: "Sob a influência das

8 Sobre o modelo da linhagem como quadro ideológico utilizado pelos indígenas "para se
darem uma compreensão de senso comum das suas relações sociais", poderá ler-se o be­
líssimo artigo de E. L. Peters, "Some Structural Aspect of the Feud Among the Ca­
mel-Herding Bedouin of Cyrenaica", Africa, Vol. XXXVII, n.° 3, Julho de 1967, p. 261-282.
9 Assim, segundo M. Dewulder (Joe. cit.), as mulheres dos Ouadhias podiam explicar a
significação de certos símbolos que utilizavam nas pinturas murais.
10 F. Boas, Anthropology and Modem Life, Nova Iorque, W. W. Norton and Co, 1962 (l.a ed.
1928), pp. 164-166.
204 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

condições da vida, fazem-se certas acções P...Q, depois, raciocinando-se so­


bre elas, descobre-se ou julga-se descobrir, um princípio comum aP e Q, e en­
tão imagina-se que se fez P.. .Q como consequência da lógica desse princípio,
mas é o princípio que é a consequência de P...Q. É verdade que, quando o
princípio é estabelecido, seguem-se acções R...S que se deduzem dele e, as­
sim, a proposição contestada só em parte é falsa. As leis da linguagem são
aqui um bom exemplo. A gramática não precedeu, mas seguiu, a formação
das palavras; no entanto, uma vez estabelecidas, as regras gramaticais deram
origem a certas formas, que vieram acrescentar-se às existentes. Em resumo,
façamos dois grupos das acções P...QeR...S:o primeiro P.. .Q, que é o mais
numeroso e o mais importante, preexiste ao princípio que parece reger essas
acções; o segundo R.. .S, que é acessório e muitas vezes de fraca importância,
é a consequência do princípio, ou, noutros termos, é a consequência indirecta
das mesmas causas que deram directamente P.. .Q".11
De facto, do mesmo modo que a questão das relações entre a consciência
e a inconsciência se arriscava a ocultar a questão, mais importante, das rela­
ções entre os esquemas geradores das práticas e as representações que os
agentes dão ou se dão da sua prática, assim também esta se arrisca, por sua
vez, a dissimular a questão mais fundamental posta pela existência, em toda a
sociedade, de uma diferenciação em domínios da prática mais ou menos ex­
plicitamente regulados, sendo um dos pólos do continuum constituído pelos
domínios aparentemente "livres", porque abandonados de facto ao habitus e
às suas estratégias automáticas, e o outro representado pelos domínios ex­
pressamente regulados por normas éticas e sobretudo jurídicas, explicita­
mente constituídas e sustentadas por sanções sociais. É assim que o debate so­
bre as "regras" das trocas matrimoniais ganharia grandemente em clareza se
se precisasse em cada caso a modalidade da prescrição — que não se reduz à pro­
babilidade, estatisticamente estabelecida ou não, da prática correspondente,
ainda que não seja mais que a sua forma'transfigurada —, a natureza das san­
ções ligadas à transgressão e as instâncias encarregadas de as infligir. É óbvio
que se podem encontrar todos os graus intermédios entre as "racionaliza­
ções" — "teorias práticas" que os agentes produzem, ou espontaneamente ou
em resposta à interrogação científica do etnólogo, para racionalizarem a sua
prática, para lhe conferirem mais racionalidade e dela darem razão, e que,
ainda quando totalmente estranhas à verdade da prática — podem continuar
a ser estruturadas segundo os esquemas organizando a prática, e, no outro
extremo, um corpus de normas jurídicas, produto acumulado do trabalho de
um grupo de especialistas expressamente mandatado para as submeter a
uma sistematização explícita e para fazer respeitar a sua aplicação, se neces­
sário recorrendo à força. À falta de submeter os documentos que regista —

11 W. Pareto, Manuel d'Économie Politique, Genebra, Droz, 1966, p. 45.


A ILUSÃO DA REGRA 205

discursos, narrativas, códigos jurídicos—a uma crítica que visa determinar o


estatuto do discurso considerado, quer dizer, as condições sociais da sua pro­
dução e da sua utilização (e. g. discurso oficial e autorizado ou privado e pes­
soal; legítimo ou ilegítimo; improvisado ou rotinizado, etc.), o etnólogo ex­
põe-se a nunca ouvir o bastante os seus informadores ou a ouvi-los sempre de
mais, porque toda a tradição da profissão lhe recomenda ou ordena que po­
nha em dúvida o discurso que o indígena produz a propósito das suas práti­
cas, suspeite de todas as explicações espontâneas, e em particular das que in­
vocam funções, e tanto mais quanto mais as mais das vezes elas parecem con­
traditórias — o que não o impedirá de registar com solicitude todos os discur­
sos oficiais que lhe são espontaneamente oferecidos pelos seus informadores e
que, mais em conformidade com a sua representação da objectividade, são
para ele também mais fáceis de recolher e descodificar, porque mais formali­
zados. De facto, é conhecida a predilecção dos etnólogos por todas as quase
teorizações e todas as codificações que, como mostrou a discussão a propósi­
to do modo de composição dos poemas homéricos, se encontram já fixadas e
como que predispostas para a escrita antes ainda de a técnica da escrita estar
disponível, como os cantos, as narrativas míticas, as encantações ou as alocu-
ções cerimoniais, os catálogos de ditados, de provérbios ou de enigmas e, so­
bretudo, as recolhas de costumes caras a todos os juridicismos, a começar
pelo das profissões de direito, dos administradores ou dos militares que, na
maior parte dos países colonizados e nas províncias, recolheram e codifica­
ram os costumes muitas vezes em vista de fins de administração e de gover­
no. Observar-se-iam, sem dúvida, nas próprias sociedades sem escrita todas
as passagens entre o corpus a que poderiamos chamar pré-escrito e os improvi­
sos pontuais e circunstanciais dos sujeitos (que nunca são, neste contexto,
"opiniões" no sentido ingênuo). Deveríam então pôr-se em relação os dife­
rentes tipos de saber com os diferentes modos do seu entesouramento e de
transmissão desse saber entesourado que governam a própria estrutura do
saber. A indiferença à gênese e à função, quer dizer, às condições sociais nas
quais se efectuam a produção, a reprodução (por exemplo, o uso de meios
mnemotécnicos, internos ao acto de composição, como as "fórmulas", ou ex­
ternos, como a pictografia destinada a sustentar a recitação das fórmulas má­
gicas), a circulação e o consumo dos bens simbólicos está no princípio de erros
sistemáticos.12 Assim, os etnólogos não parecem interrogar-se muito sobre o
modo de fabrico dos textos que submetem à análise nem também sobre o
modo de formação daqueles que os produzem e os reproduzem (sabe-se que,
no reino de Irlanda, os colégios de druidas, de poetas e de pregões da lei pas­
savam vinte anos a memorizar o direito irlandês e a literatura gaélica e

12 Cf., sobre este ponto, P. Bourdieu, "Le Marché des biens symboliques", L'Année sociologi-
que, Vol. 22, 1971, pp. 49-126.
206 esboço de uma teoria da prática

também que, em numerosas sociedades, as cerimônias, acompanhavam os ri­


tos de passagem davam lugar a recitações metódicas de textos jurídicos e mí­
ticos). Entre todas as oposições, a mais importante é, sem dúvida, a que se es­
tabelece entre o escrito e o oral, ou melhor, entre a forma de transmissão escri­
ta e o modo de transmissão oral. O texto escrito, que se utiliza como documen­
to (à maneira dos historiadores do costume ou do direito) ou que se toma
como objecto (à maneira dos hermeneutas estruturalistas), detém proprieda­
des postas em evidência por uma análise mesmo sumária dos efeitos da pas­
sagem da tradição cultural fundada num modo de transmissão oral a uma tradi­
ção entesourada graças à escrita e, portanto, disponível para todas as reinter-
pretações e as compilações que amalgamam estilos, temas e objectos de épo­
cas e de culturas diferentes.13 A escrita fixa, estabiliza, em suma, eterniza, e
permite economizar toda a mnemotécnica que está no próprio princípio da
composição do texto oral, ao mesmo tempo que torna possível a manipulação
letrada, quer dizer, todo o trabalho de reinterpretação e de afinação, e, se me
permitem a expressão, a acumulação primitiva do capital simbólico (marcada por
técnicas como a criptografia, o hermetismo, etc.). Segue-se que a aplicação
das técnicas clássicas da análise estrutural a textos que integram significações
de idades diferentes não pode deixar de falhar o essencial, ou seja, o jogo poli-
fónico entre as diferentes linhas semânticas.
Nas sociedades onde, como na Cabília, não existe aparelho jurídico do­
tado do monopólio da violência física ou mesmo simbólica e onde as assem­
bléias de clã, de aldeia ou de tribo funcionam como instâncias de arbitragem,
quer dizer, como conselhos de família mais ou menos alargados, as regras de
direito consuetudinário não têm uma eficácia prática a não ser na medida em
que, habilmente manipuladas pelos detentores da autoridade no clã ("os ga­
rantes"), vêm redobrar e reforçar as disposições colectivas do habitus, não es­
tando, portanto, separadas, a não ser por diferenças de grau das explicações
parciais e muitas vezes fictícias dos princípios da prática que se limitam a su­
prir as deficiências ou as incertezasido habitus enunciando soluções apro­
priadas para as situações difíceis.14 O juridicismo nunca é tão falacioso como
quando se aplica às sociedades mais homogêneas e aos sectores menos dife­
renciados das sociedades diferenciadas, onde a maior parte das práticas, in­
cluindo as aparentemente mais ritualizadas, pode ser abandonada ao impro­
viso orquestrado das disposições comuns, pelo que a regra nunca é mais que
um mal menor destinado a regular as falhas do habitus, quer dizer, a reparar
as falhas do empreendimento de inculcação cujo fim é produzir habitus capa­
zes de engendrarem práticas reguladas fora de qualquer regulamentação ex­
pressa e de qualquer invocação institucionalizada da regra.

13 Cf., por exemplo, A. B. Lord (op. cit., pp. 20,124-125,129,221), e G. S. Kirk, The Songs of Ho­
mer (Cambridge University Press, 1962, pp. 86-87).
A ILUSÃO DA REGRA 207

De uma maneira mais geral, as práticas não atingem, a não ser por ex-
cepção, nem um nem outro desses limites que são a pura estratégia ou o sim­
ples ritual, quer dizer, para retomarmos o exemplo já citado, o pólo definido
pelo modelo teleológico segundo o qual o indivíduo A produz uma acção al
para determinar B a produzir bl e poder fazer a2 (ou, progressivamente, an),
e o pólo representado pelo modelo típico do juridicismo segundo o qual a re­
gra quer que A produza al e que B responda bl e que A contraponha al e as­
sim por diante. O juridicismo, que faz da regra o princípio de todas as práti­
cas, e o interaccionismo, que descreve as práticas como estratégias explicita­
mente orientadas por referência aos índices antecipados da reacção às práti­
cas, têm em comum o facto de ignorarem a harmonização dos habitus que,
fora de qualquer cálculo intencional e de qualquer referência consciente à
norma, produzem práticas mutuamente ajustadas e nunca excluem as toma­
das de consciência parciais, facilitadas pelos preceitos e pelas receitas do sen­
tido comum. Para economizar o recurso a "regras" como as que supostamen­
te regem as trocas matrimoniais, seria necessário estabelecer em cada caso
uma descrição completa (que a invocação da regra permite economizar) da
relação entre as disposições socialmente constituídas e a situação na qual se
definem os interesses objectives e subjectivos dos agentes e, no mesmo acto,
as motivações precisamente especificadas das suas práticas particulares, não
devendo ser necessário lembrar, com Weber, que a regra jurídica ou consuetu-
dinária nunca é mais do que um princípio secundário de determinação das prá­
ticas que não intervém, a título de substituto, a não ser quando o princípio
primário, a saber, o interesse (subjectivo ou objectivo), falta.14 15 Assim, é na re­
lação entre as disposições e a situação que se definem os interesses, ou

14 É assim que A. Hanoteau (general brigadeiro) e A. Letourneux (conselheiro do tribunal


de recurso), que apresentam a sua análise das recolhas de costumes cabilas segundo o
plano do Código Civil, concedem à assembléia de aldeia o papel de juiz (cf. A. Hanoteau e
A. Letourneux, La Kabylie et les Coutumes Kabyles, Paris, 1873, T. III, p. 2), enquanto o deão
M. Morand (cf. M. Morand, Étude de Droit Musulman Algérien, 1910; "Lestatut dela fem­
me kabyle et la réforme des coutumes berbères", Revue des Études Islamiques, 1927, cader­
no I, pp. 47-94) considera o qanun como um conjunto de disposições regulamentares que
têm o seu fundamento em convenções e acordos contratuais. Na realidade, a assembléia
não funciona como um tribunal que enuncia veredictos referindo-se a um código preexis­
tente, mas como um conselho de arbitragem ou de família que se esforça por conciliar os
pontos de vista dos adversários e de os fazer aceitar um arranjo, ou o mesmo é dizer que o
funcionamento do sistema supõe a orquestração dos habitus, uma vez que a decisão do ár­
bitro não pode ser executada a não ser com o consentimento da parte "condenada" (à fal­
ta do qual o queixoso não tem outro recurso senão o uso da força) e só tem hipóteses de ser
aceite se estiver em conformidade com o "sentido da equidade" e for imposta segundo as
formas reconhecidas pelo "sentido da honra".
15 Deve ler-se todo o capítulo intitulado "Rechtsordnung, Konvention und Sitte", onde
Max Weber analisa as diferenças e as passagens entre o costume, a convenção e o direito
(M. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Colônia, Berlim, Kiepenhauer und Witsch, 1964,1,
pp. 240-250, especialmente pp. 246-249).
208 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

melhor, as funções, não só as subjectivamente postas e apreendidas quer dizer,


os fins explicitamente calculados (os únicos que o modelo teleológico do cál­
culo estratégico conhece e reconhece), mas também as objectivas (ou os inte­
resses objectives, mais ou menos claramente apercebidos) que o juridicismo
exclui para as reintroduzir dissimuladamente sob a forma das funções que a
comunicação ou a troca (e. g. de mulheres) preenche para o gr tipo no seu con­
junto.16 De facto, é na relação entre o habitus como sistema de estruturas cog­
nitivas e motivadoras e a situação (ou o objecto) que se definem os interesses
que estão no princípio da passagem ao acto através da qual as disposições se
realizam e se determinam — e a orquestração das disposições está na base da
convergência objectiva dos interesses ou da concertação intencional das aspi­
rações que fundam as alianças e as clivagens entre os grupos em concorrência
e em conflito.
Para trazer à luz do dia a lógica do juridicismo — essa espécie de acade-
mismo das práticas sociais que, tendo extraído do opus operation os princípios
calculados da sua produção, os torna a norma que rege explicitamente as prá­
ticas (com frases tais como: "as boas maneiras exigem que...", "a regra quer
que...") — um exemplo bastará. Não há informador nem etnólogo que não
professe que, nos países árabes e berberes, cada rapaz tem um "direito" sobre
a sua prima paralela (filha da irmã do pai): "Se o rapaz quer a filha do irmão
do seu pai, tem um direito sobre ela, mas se a não quiser, não é consultado. É
como a terra." Estas declarações de um informador estão infinitamente mais
próximas da realidade das práticas do que o discurso do juridicismo etnológi­
co, que não suspeita sequer da existência da homologia entre a relação com as

___________ O

16 Assim os dois artigos clássicos sobre o casamento entre primos paralelos, o de F. Barth e o
de F. Murphy e L. Kasdan, propõem teses diametralmente opostas: segundo o primeiro,
esse tipo de casamento reforça a integração da linhagem por oposição às outras, de acor­
do com o segundo tende a isolar e fechar as linhagens em si mesmas (cf. F. Barth, "Princi­
ples of Social Organization in Southern Kurdistan", Universitets Etnografiske Museum Bul­
letin, n.° 7, Oslo, e F. Murphy e L. Kasdan, "The Structure of Parallel Cousin Marriage",
The American Anthropologist, Vol. 61, n.° 1, Fevereiro de 1959,p p. 17-29). Não basta obser­
var, com C. Lévi-Strauss, que estas duas interpretações, que acentuam uma a tendência
para a fusão, a outra para a cisão, "por opostas que sejam na aparência, são exactamente
equivalentes" (C. Lévi-Strauss, "Intervention aux entretiens interdisciplinaires sur les
sociétés musulmanes", Systèmes de Parenté, Paris, École Pratique des Hautes Études,
1959, p. 19), pois têm em comum o facto de aceitarem uma definição indiferenciada da
função assim reduzida à função para o grupo. Assim, por exemplo, F. Murphy e L. Kasdan
escrevem: "A maior parte das explicações do casamento entre primos paralelos são justi­
ficações pelas causas e as motivações segundo as quais a instituição deve ser compreen­
dida por referência aos fins conscientes dos protagonistas individuais. Não procurámos
explicar a origem do costume, mas, tendo-a tomado como um dado de facto, esforçá-
mo-nos por analisar a sua função, isto é, o seu papel no interior da estrutura social beduí-
na, e deparou-se-nos que o casamento dos primos paralelos contribui para a extrema ci­
são das linhagens agnáticas na sociedade árabe e, através da endogamia, enquista os seg­
mentos patrilineares" (F. Murphy e L. Kasdan, loc. cit., p. 27).
A ILUSÃO DA REGRA 209

mulheres da linhagem e a relação com a terra, aqui directamente evocada,


mas, adoptando a linguagem oficial do direito, mascara a realidade real, infi­
nitamente mais complexa, que une um indivíduo à sua prima paralela. Se re­
tomarmos o problema pela raiz, vemos imediatamente que o pretenso direito
de um indivíduo sobre a bent'amm, a filha do irmão do pai, pode ser um dever,
uma obrigação que obedece aos mesmos princípios que a obrigação de vingar
um parente ou de resgatar uma terra familiar cobiçada por estrangeiros e que,
eo ipso, não se impõe com todo o rigor a não ser em circunstâncias muito parti­
culares e até mesmo bastante excepcionais. O facto de, no caso da terra, o di­
reito de preferência (achfa') ser formulado e codificado pela tradição jurídica
erudita (dotada de uma autoridade institucionalizada e garantida pelos tri­
bunais), bem como pelo "costume" (qanun), não implica de maneira alguma
que se possa fazer da regra jurídica ou consuetudinária o princípio das práti­
cas efectivamente observadas em matéria de circulação das terras. Na reali­
dade, porque a venda de uma terra do patrimônio é antes do mais uma ques­
tão interna à linhagem, o recurso às autoridades que transmutam a obrigação
de honra em direito (ainda que se trate da assembléia do clã ou da aldeia) é in­
teiramente excepcional e a invocação do direito ou do costume de chafa (ou
achfa') inspira-se quase sempre em princípios que nada têm a ver com os do
direito, como a intenção de desafiar o aquisidor pedindo a anulação da venda
de uma terra tida por ilegítima, e que governam a maior parte das práticas de
compra e venda de terras. A obrigação de desposar uma mulher que não está
"protegida contra a vergonha" ("ele protegeu-a", diz-se muitas vezes do ma­
rido) e que é semelhante a uma terra em pousio, abandonada pelos seus se­
nhores {athbur, a rapariga, el bur, o pousio), impõe-se simplesmente com me­
nos urgência que a obrigação de comprar uma terra posta à venda por um dos
membros do grupo ou de resgatar uma outra caída em mãos estrangeiras, ter­
ra mal defendida e mal possuída, e com infinitamente menos força do que o
dever de não deixar sem vingança o assassínio de um membro do grupo. Em
todos os casos, a imperatividade do dever é função da posição na genealogia e
também, evidentemente, das disposições dos agentes. Assim, no caso da vin­
gança, a obrigação de honra pode tomar-se um direito à honra para alguns
(sendo por vezes o mesmo assassínio vingado duas vezes, quando o segundo
dos "vingadores" se considera mais "autorizado" genealogicamente do que o
primeiro), ao passo que outros se esquivam ou só agem sob coacção moral ou
física; no caso da terra, sendo o interesse material em resgatá-la evidente, a
hierarquia dos direitos à honra e às obrigações de compra é ao mesmo tempo
mais visível e mais frequentemente transgredida, não sem conflitos e transac-
ções muito complexas entre os membro da família que se sentem obrigados a
comprar, mas não o podem fazer, e aqueles que têm menos direitos-deveres
de compra, mas possuem meios. A obrigação de desposar a prima paralela
não se impõe a não ser no caso em que uma rapariga não tenha encontrado
marido ou, pelo menos, um que seja digno da família e, dado que todos os
210 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

filhos do grupo e nomeadamente as raparigas devem encontrar um partido, a


despeito de todas deficiências (pobreza, enfermidade física, etc.), a honra
manda que se faça desaparecer essa ocasião de vulnerabilidade representada
pela mulher que casa tarde "cobrindo a vergonha antes que ela se mostre" ou,
na linguagem do interesse simbólico, antes que se desvalorize o capital sim­
bólico de uma família incapaz de colocar as suas filhas no mercado matrimo­
nial. Mas, aqui de novo, descobrem-se os arranjos de toda a sorte, e, evidente­
mente, toda a espécie de estratégias: se, no caso das terras, o parente mais bem
colocado pode sentir-se pressionado por parentes menos próximos, desejo­
sos de obterem o lucro material e simbólico associado a uma compra tão meri­
tória, ou, no caso da vingança de honra, por aquele que está disposto a substi­
tuí-lo e a assumir a vingança e a honra que ela proporciona, nada de seme­
lhante se observa no caso do casamento, e os meios de esquiva usados são
múltiplos: pode acontecer que o filho fuja, com a cumplicidade dos pais, for­
necendo-lhes assim a única desculpa aceitável perante o pedido de um irmão,
ou, sem que se chegue a este meio extremo, não é raro que a obrigação de des­
posar as raparigas sem partido seja imposta aos membros mais pobres da fa­
mília, ligados por "obrigações" de toda a espécie aos mais ricos do grupo. E
não há melhor prova da função ideológica do casamento corn a prima paralela
que o uso que o grupo pode fazer, em semelhantes casos, da representação
exaltada desse casamento ideal, pois é fácil, com efeito, assimilar qualquer ca­
samento com uma prima da linhagem paterna, por afastada que seja, a um
matrimônio com a prima paralela, sendo que os etnólogos também não pro­
cedem de outro modo em nome das "equivalências estruturais". O grupo
sabe mobilizar todos os recursos do seu aparelho de representações míticas
para justificar esses casamentos forçados que são também os "belos casamen­
tos", aqueles que é obrigatório impor porque são sociologicamente necessári­
os, como quando destinam um ao outro desde a infância dois primos pobres,
na ausência de meios que permitam pagar o preço (material e simbólico) de
uma aliança contraída no exterior. E podemos agora, sem risco de voltarmos a
cair no juridicismo, observar que a relação entre irmãos proíbe que um deles
recuse a filha quando ela é pedida por um irmão para o filho, sobretudo se se
tratar de um irmão mais velho, e neste caso-limite em que o aquisidor é ao
mesmo tempo doador, enquanto equivalente e substituto do pai, toda a es­
quiva, e até mesmo toda a hesitação, é impensável, tal como no caso em que o
tio pede a sobrinha para um outro junto do qual se comprometeu; mais ainda,
um homem ofendería gravemente os seus irmãos se casasse a filha sem os in­
formar e os consultar, e o desacordo de um deles, muitas vezes invocado para
justificar uma recusa, nem sempre é um pretexto ritual. Os imperativos de so­
lidariedade são mais rigorosos ainda, e a recusa torna-se impensável quando
é o pai da rapariga que, infringindo todos os usos (é sempre o homem que
"pede" em casamento), a propõe para o sobrinho, por uma alusão tão discreta
quanto possível, ainda que, para se ousar uma tal transgressão, seja preciso
A ILUSÃO DA REGRA 211

estar-se autorizado por uma relação tão forte como a que existe entre dois ir­
mãos muito unidos. Assim, aquilo que o juridicismo descreve como um ver­
dadeiro direito de opção, semelhante ao que vale para a terra, não é outra coi­
sa que uma sobreposição de estratégias muito mais complexas ainda do que
esta evocação rápida poderá fazer crer, além de que temos o direito de supor
que é a representação, miticamente fundada, da hierarquia entre os sexos
que, nesta rede de obrigações de duplo sentido — não sendo a obrigação de
desposar do rapaz menos forte ou menos frequentemente imposta que o im­
perativo inverso —, leva a seleccionar a que afirma os privilégios da masculi­
nidade.17 18
Como neste caso claramente se vê, não se trata apenas de substituir a
uma explicação pela regra uma pelo interesse, nem basta sequer dizer que a
regra determina a prática quando a conveniência em obedecer-lhe leva a me­
lhor sobre o interesse em desobedecer-lhe. A última astúcia da regra consiste
em fazer esquecer que há um interesse em obedecer à regra, ou, mais exacta-
mente, em estar em regra. A redução brutalmente materialista que o axioma
antropológico convida a operar permite romper com as ingenuidades da teo­
ria espontânea das práticas, mas arrisca-se a fazer esquecer o interesse que há
em estar-se em regra e que se encontra no princípio das estratégias de segun­
da ordem que visam, como costuma dizer-se, pôr-se em regra ou pôr o direito do
seu lado.w E assim que a conformidade perfeita com a regra pode dar lugar,
além do conflito directo assegurado pela prática prescrita, a um lucro secun­
dário, tal como o prestígio e o respeito que são mais ou menos universalmente
prometidos a uma acção sem outra determinação aparente que o respeito puro
e desinteressado pela regra. O mesmo é dizer que as estratégias directamente
orientadas para o lucro primário da prática (por exemplo, o prestígio propor­
cionado por um casamento) implicam quase sempre outras do segundo grau
que visam dar uma satisfação aparente às exigências da regra oficial e acumu­
lar assim as satisfações do interesse bem compreendido e os lucros da impe-
cabilidade. E a ilusão da regra não teria uma tal força nos escritos dos antro­
pólogos, apesar das denúncias sem conto,, se não fosse confortada pela

17 Para corrigir o que pode haver de um pouco simplificador nesta análise, a qual, visando
desmentir o modelo jurídico, por momentos o inverte simetricamente, deverá voltar-se à
análise das estratégias matrimoniais acima imposta acima (cf. o capítulo "O parentesco
como representação e como vontade", subcapítulo "Estratégias matrimoniais e reprodu­
ção social").
18 A denúncia ritual do legalism, meia verdade tranquilizadora, à qual talvez haja quem ten­
te reduzir numerosas análises aqui apresentadas, contribuiu, sem dúvida, para desenco­
rajar todas as interrogações verdadeiras sobre as relações entre a regra e a prática e, mais
precisamente, sobre as estratégias de jogo ou de duplo jogo com a regra do jogo que con­
ferem à regra uma real eficácia prática, mas de uma natureza muito diferente da que lhe
atribuía ingenuamente a legalistic approach, como dizia Malinowski (B. Malinowski, Coral
Gardensand their Magic, Vol. I, Londres, George Allen and Unwin, Ltd, 1966 [l.a ed. 1935],
p. 379).
212 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

cumplicidade do "ponto de honra espiritualista", que prefere à determinação


pelo interesse a livre submissão à regra. Em formações sociais em que a ex­
pressão dos interesses é muito fortemente censurada e em que a autoridade
política é muito pouco institucionalizada, as estratégias políticas de mobili­
zação não podem ter qualquer eficácia a não ser que os interesses que visam e
que propõem apresentem sob aparências irreconhecíveis valores que o grupo
honra. Assim, quem observa as formas, quem age segundo as regras, não põe
o direito do seu lado, põe o grupo do seu lado, dando aos próprios interesses a
única forma sob a qual o grupo pode reconhecê-los, e honrando ostensiva­
mente os valores que o grupo considera um ponto de honra honrar.
Capítulo 6
O CORPO GEÓMETRA

O logicismo inerente ao ponto de vista objectivista inclina a ignorar que a cons­


trução científica não pode apreender os princípios da lógica de que os agentes se
apropriam sob a forma de uma "arte" a não ser fazendo-os sofrer uma mudança
de natureza—a explicação reflexiva converte uma sucessão prática em sucessão
representada, uma acção orientada por referência a um espaço e objectivamente
constituída como estrutura de exigências, de chamadas, de interditos ou de
ameaças (as coisas "a fazer" ou "a não fazer"), em operação reversível, efectuada
num espaço contínuo e homogêneo. Assim, por exemplo, enquanto o espaço mí-
tico-ritual continua a ser apreendido como opus operatum, quer dizer, como espa­
ço geográfico ou geométrico susceptível de ser representado sob a forma de ma­
pas ou de esquemas que permitem apreender uno intuitu enquanto ordem das coi­
sas coexistentes, aquilo que não pode ser percorrido senão sucessivamente e,
portanto, no tempo, nunca é mais que um espaço teórico, balizado pelos pontos
de referência que são os termos das relações de oposição (alto/baixo, leste/oeste,
etc.) e onde só se podem efectuar operações teóricas, ou seja, movimentos e
transformações lógicas dos quais ninguém contestará que estão para os movi­
mentos e transformações realmente efectuados, como uma queda ou uma ascen­
são, como o cão animal celeste está para o cão que ladra. Tendo estabelecido que
cada uma das regiões do espaço interior da casa cabila recebe uma significação
simétrica e inversa quando é recolocada no espaço total, temos justificação para
dizer, como fizemos acima, que cada um dos dois espaços pode ser definido
como a classe dos movimentos que se deslocam do mesmo modo, quer dizer,
uma semi-rotação, por referência ao outro, que tem a condição de repatriar a lin­
guagem na qual a matemática exprime as suas operações para o solo originário
da prática, dando a termos como movimento, deslocamento e rotação o seu sen­
tido prático de movimentos do corpo, tais como ir para diante ou para trás, ou
dar meia volta.1 Aqui de novo, muitos erros teóricos teriam sido evitados se, por
uma espécie de etnocentrismo invertido, não se tivesse inconscientemente atri­
buído aos "selvagens" a relação com o mundo que o intelectualismo atribui a

213
214 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

toda a "consciência". Do mesmo modo que, com efeito, teria sido menor o espan­
to, no tempo de Lévy-Bruhl, perante os traços bizarros da "mentalidade primiti­
va" se se tivesse sabido romper com a teoria intelectualista das paixões que não
podia conceber que o universo da emoção tenha qualquer relação com a lógica
da magia e da "participação", hoje o assombro seria também menor perante as
proezas "lógicas" dos indígenas australianos se não se silenciasse a transforma­
ção que leva das operações dominadas no estado prático às operações formais
que lhes são isomorfas e se não se omitisse no mesmo acto a interrogação sobre as
condições sociais dessa transformação.
Aciência do mito tem o direito de tomar de empréstimo à teoria dos gru­
pos a linguagem na qual descreve a sintaxe do mito, mas na condição de não
esquecer (ou deixar esquecer) que essa linguagem destrói a verdade que per­
mite apreender porque foi conquistada e construída contra a própria expe­
riência que permite nomear, e nem vale a pena lembrar, depois de todas as
análises dos fenomenólogos, que não agimos num espaço geométrico e, de­
pois de Bachelard, que não podemos apresentar a ciência da oxidação como a
verdade antropológica da experiência do fogo contra a qual ela foi construí­
da, do mesmo modo que também nos é vedado mostrar o espaço contínuo e
homogêneo da geometria como o espaço prático, com as suas dissimetrias,
descontinuidades e direcções concebidas como propriedades substanciais,
direita e esquerda, leste e oeste. "Denken ist Handwerk", afirma Heideggeer, e
poderiamos dizer do mesmo modo que a ginástica ou a dança é geometria, na
condição de não entendermos por isso que o ginasta e o bailarino são geóme-
tras. Talvez nos sentíssemos menos tentados a tratar implícita ou explicita­
mente o agente como um operador lógico se (sem tomarmos partido sobre a
questão da anterioridade cronológica) remontássemos do logos mítico à praxis
ritual que põe em cena, sob a forma de acções realmente efectuadas, quer di­
zer, de movimentos corporais, as operações que a análise científica descobre
no discurso mítico, opus operatum que mascara sob as suas significações reifi-
cadas o momento constituinte da prática "mitopoiètica". À maneira dos actos
de jurisprudência, a prática ritual deve a sua coerência prática (que pode ser
restituída sob a forma de um esquema objectivado de operações) ao facto de
ser o produto de um único e mesmo mistério de esquemas imanentes à prática
que organizam não só a percepção dos objectos (e, no caso particular, a classi­
ficação dos instrumentos, das circunstâncias — lugar e momento — e dos
agentes possíveis da acção ritual), mas também a produção das práticas (ou
seja, aqui, os movimentos e deslocamentos constitutivos da acção ritual). O

1 Com efeito, como Sartre mostra numa belíssima análise da "aventura da mão direita", a
demonstração geométrica, para existir, tem de destruir a unidade sensível da figura
como gestalt e de "a recalcar no saber implícito". Mais profundamente, "o geómetra não
se interessa pelos actos, mas pelos seus traços" (J. P. Sartre, Critique de la raison dialectique,
op. cit., pp. 151-152 n.)
O CORPO GEÓMETRA 215

cumprimento de um rito supõe, com efeito, qualquer coisa completamente


diferente do domínio consciente dessa espécie de catálogos de oposições esta­
belecidos pelos comentadores letrados quando se esforçam por dominar sim­
bolicamente uma tradição moribunda ou morta (pensemos nos "quadros de
correspondências"-dos mandarins chineses) e também os etnólogos na pri­
meira fase do seu trabalho. O domínio prático de princípios que não são, bem
vistas as coisas, nem mais complexos nem mais numerosos que os princípios
da estática dos sólidos aplicados na utilização de um carro de mão, de uma
alavanca ou de um quebra-nozes permite produzir acções rituais,2 compatíveis
com os fins buscados (e. g. obter a chuva ou a fecundidade dos animais) e in-
trinsecamente coerentes (pelo menos relativamente), quer dizer, combinações
de um tipo determinado de circunstâncias (lugares e momentos), de instru­
mentos e de agentes (que as taxinomias interiorizadas distribuem segundo as
grandes oposições fundamentais), enfim e sobretudo de deslocamentos e de
movimentos ritualmente qualificados como propícios e nefastos, como ir (ou
lançar) para cima ou para leste, para baixo ou para oeste, com todas as acções
equivalentes — colocar no telhado da casa, ou na direcção do kamin, enterrar
no limiar ou do lado do estábulo, ir ou lançar para a esquerda ou com a mão
esquerda —, e ir ou lançar para a direita ou com a mão direita, fazer virar da
esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda, fechar (ou prender) e
abrir (ou desprender), etc. De facto, uma análise do universo dos objectos mí­
tica ou ritualmente qualificados, a começar pelas circunstâncias, os instru­
mentos e os agentes da acção ritual, estabelece que as inúmeras oposições que
podem ser registadas em todos os domínios da existência se deixam reduzir a
um pequeno número de pares que aparecem como fundamentais — uma vez
que, não estando ligados entre si senão por analogias fracas, não podem ser
reduzidos uns aos outros a não ser de maneira forçada ou artificial —, e que
quase todos têm por princípio movimentos ou estados do corpo humano,
como subir e descer (ou ir para diante e ir para trás), ir para a direita e ir para a
esquerda, entrar e sair (ou encher e esvaziar), estar deitado e estar de pé, etc. E
se esta "geometria no mundo sensível", como diz Jean Nicod, a quem estas
____________ A

2 Que os operários que utilizam uma peça de madeira e uma barra de ferro para levantar
uma pedra estejam a aplicar a regra de composição das forças paralelas e do mesmo senti­
do, que saibam fazer variar a posição do ponto fixo em função dos fins visados e do peso
do volume da carga, como se não ignorassem a regra que não estão em condições de formu­
lar expressamente e segundo a qual se pode equilibrar uma resistência tanto mais peque­
na quanto mais pequena for a relação entre os dois braços da alavanca, ou, de um modo
mais geral, a regra que quer que se ganhe em força o que se perde em deslocamento, nada
disto incita a que invoquemos os mistérios de um inconsciente físico ou os arcanos de
uma filosofia da natureza, postulando uma harmonia misteriosa entre a estrutura do cé­
rebro humano e a do mundo físico. Seria sem dúvida interessante sabermos porque é que
o facto de a manipulação da linguagem pressupor a aquisição de estruturas abstractas e
de regras de efectuação dessas operações (como, segundo Chomsky, a não iterabilidade
da inversão) suscita tanto assombro.
216 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

reflexões devem muito/ geometria prática, ou melhor, prática geométrica


faz um tal uso da inversão é sem dúvida porque, à maneira do espelho
traz à luz do dia os paradoxos da simetria bilateral, o corpo humano funcioh^
como um operador prático que procura à esquerda a mão direita que devt>
apertar, enfia o braço esquerdo na manga que estava do lado direito quando a
peça de roupa estava poisado ou inverte a direita e a esquerda, o leste eooe«.
te, pelo simples facto de efectuar uma meia volta, de "enfrentar" ou de "virar
as costas" ou ainda "põe do avesso" o que estava "do direito" ou do direito o
que estava do avesso, outros tantos movimentos que a visão mítica do mundo
carrega de significações sociais e dos quais o rito faz um uso intensivo.

Surpreendo-me a definir o limiar


Como se fosse o lugar geométrico
Das chegadas e das partidas
Que há na Casa do Pai.3 4

Se o poeta descobre de imediato o princípio das relações entre o espaço da


casa e o mundo exterior nos movimentos de sentido inverso (no duplo senti­
do do termo "sentido") que são o entrar e o sair, é talvez porque, pequeno pro­
dutor retardatário de mitologias privadas, tem menos dificuldade em afastar
as metáforas mortas para chegar ao princípio da prática mitopoiética, quer
dizer aos movimentos e gestos que, como em certa frase de Alberto Magno re­
tomada por René Char, são capazes de discernir a dualidade sob a unidade
aparente do objecto: "Flavia, na Alemanha, duas crianças gêmeas das quais
uma abria as portas tocando-as com o braço direito, e outra as fechava tocan­
do-as com o braço esquerdo".5
Basta com efeito, para retomarmos a oposição de Wilhelm von Hum­
boldt, passarmos do ergon à energeia, quer dizer, dos objectos ou dos actos aos
princípios da sua produção, para vermos dissiparem-se os prestígios do pan-
logismo encorajado pela versão exotérica do estruturalismo, inclinado a ba­
sear no desvelamento de uma coerência não querida, muitas vezes descrita
pelos linguistas (Sapir ou Troubetzkoy, por exemplo) e até mesmo pelos an­
tropólogos como "finalidade inconsciente", uma metafísica da natureza que
veste a linguagem da ciência natural, e para pormos em questão a coerência
perfeita que a conversão em tese ontológica do postulado metodológico da
inteligibilidade leva a conceder aos sistemas históricos. O paralogismo que
consiste, como mostra Ziff, em converter a regularidade em regra, que supõe

3 J. Nicod, La Géometrie dans le monde sensible, préface de B. Russell, Paris, PUF, 1962.
4 Citado por G. Bachelard, La Poétique de 1'espace, Paris, PUF, 1961, p. 201. [Reproduz-se
aqui o texto francês dos versos acima traduzidos: Je me surprends à définir le senil/Comme
étant le lieu géométrique /Des arrivées et des départs /Dans la Maison du Père. (N. do T.) ]
5 Ibid.
O CORPO GEÓMETRA 217

o plano, só aparentemente é corrigido pela hipótese do inconsciente tido por


único meio de explicar, sem recorrer à hipótese das causas finais, que os fenô­
menos culturais se apresentem como totalidades dotadas de estrutura e de
sentido.6 De facto, este plano sem planificador não é menos misterioso que o
de um planificador supremo, e compreende-se que a vulgata estruturalista
tenha podido desempenhar o papel de um teilhardismo intelectualmente
aceitável, quer dizer, aceitável nos meios intelectuais.
O preconceito antigenético, que inclina à recusa inconsciente ou afirma­
da de buscar na história individual ou colectiva a gênese das estruturas objec­
tivas e das estruturas interiorizadas, conjuga-se com o preconceito antifun-
cionalista, que leva à recusa de entrar em conta com as funções práticas que os
sistema simbólicos podem preencher para reforçar a inclinação a conceder
mais coerência que aquela que têm e que aquela que lhes faz falta a sistemas
históricos que, como a cultura segundo Lowie, continuam a ser "feitos de pe­
ças e de pedaços" (things of shreds and patches), ainda que esses pedaços sejam
continuamente submetidos a reestruturações e rearranjos inconscientes e in­
tencionais tendentes a integrá-los no sistema,
Os sistemas simbólicos devem a sua coefència prática, ou seja, as suas re­
gularidades e também as suas irregularidades, ou até mesmo as suas incoe­
rências, umas e outras igualmente necessárias porque inscritas na lógica da
sua gênese e do seu funcionamento, ao facto.deserem o produto de práticas
que não podem preencher às suas funções práticas a não ser na medida em
que envolvem, no estado prático, princípios’ cjue são não só coerentes—quer
dizer capazes de engendrar práticas in.trihsecam.ente coerentes ao mesmo
tempo que compatíveis com as condições objectivas—, mas também práticos
no sentido de cômodos, isto é, imediatamente dominados e manejáveis por­
que obedecendo a uma lógica pobre e econômica.'Não há, sem dúvida, nin­
guém que tenha sido mais sensível que Leach à "diferença essencial entre a
descrição ritual das relações estruturais e à descrição científica do antropólo­
go", e, em particular, à oposição entre a terminologia "sem ambiguidade" do
etnólogo, que utiliza conceitos arbitrariamente forjados, e os conceitos que os
agentes empregam, em acções rituais, para exprimir as relações estruturais.
Nada é com efeito mais suspeito do quê o rigor ostentatório de esquemas da

----------------------- xj

6 "Os sociólogos e os psicólogos modernos resolvem tais problemas invocando a activida­


de inconsciente do espírito, mas, na época em que Durkheim escrevia, a psicologia e a lin­
guística moderna não tinham ainda alcançado os seus principais resultados, o que expli­
ca a razão por que ele se debatia naquilo que v ia como uma antinomia irredutível [...]: 'o
carácter cego da história e o finalismo da consciência. Entre as duas coisas encontra-se
evidentemente a finalidade inconsciente do espírito [...]. É [... ] nestes níveis intermédios
ou inferiores — como o do pensamento inconsciente — que desaparece a oposição apa­
rente entre indivíduos e sociedade e que se torna possível passar de um ponto de vista a
outro" (C. Lévi-Strauss, "La Sociologie française", em La Sociologie au XXe siècle, Paris,
PUF, 1947, T. II, p. 527).
218 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

organização social das sociedades berberes propostos pelos etnólogos e dos


quais Jeanne Favret dá um exemplo quando segue Hanoteau num "terreno"
onde as suas idéias gerais parecem mais idéias de general, como teria dito Vir­
ginia Woolf. Se o gosto pela provocação paradoxal não a tivesse levado a rea­
bilitar "a etnologia selvagem" do bom general de brigada contra a etnologia
profissional (de resto, muito pouco profissionalizada neste sector), Jeanne Fa­
vret não teria procurado na "etnologia inocente e minuciosa de Hanoteau e
Letourneux" o fundamento da taxinomia pura e perfeita da organização polí­
tica que opõe à tradição etnológica, acusando-a ao mesmo tempo de ser "sim­
plesmente mais sofisticada e mais ignorante dos seus limites" que a etnologia
militar do general e de ignorar distinções que esta última permite estabele­
cer.7 8 Uma leitura mais compreensiva desta literatura, que é de resto produzi­
da no essencial por administradores e militares (ou professores de direito), fa­
ria ver que a imprecisão das terminologias sociais que propõe poderia ser
apenas a resultante de uma certa familiaridade com as realidades cabilas e de
uma ignorância das tradições teóricas e das pretensões correlativas à sistema-
ticidade teórica. Sem entrar numa discussão aprofundada da apresentação
esquemática que Jeanne Favret dá da terminologia recolhida por Hanoteau/
não podemos deixar de lembrar alguns pontos fundamentais da descrição da
estrutura da aldeia de Alt Hichem, que talvez pecasse apenas e simplesmente
por uma excessiva "racionalização" das categorias indígenas.9 Se o léxico das
divisões sociais varia segundo os lugares, resta que a hierarquia das unidades
sociais fundamentais, as designadas pelas palavras thakharubth e adruin, é
quase sempre a inversa daquela que Jeanne Favret, na esteira de Hanoteau,
propõe. Podem descobrir-se alguns casos em que, como quer Hanoteau, thak­
harubth engloba adrum, sem dúvida porque as terminologias recolhidas em
tempos e lugares determinados designam o resultado de histórias diferentes,
marcadas por cisões, desaparecimentos—sem dúvida bastante frequentes —
ou anexações de linhagens. Acontece também que tais palavras sejam usadas
indiferentemente para designar uma divisão social do mesmo nível, e é esse o
caso da região de Sidi Aich, onde se distinguem, a partir das unidades mais
restritas e, portanto, mais reais: (a) el hara, a família indivisa (designada em
Aít Hichem pelo nome de akham, a casa, akham n'Ait Ali); (b) akham, a família
alargada, agrupando as pessoas que são designadas pelo nome do mesmo an­
tepassado (na terceira ou quarta geração) —Ali ou X, por vezes referida tam­
bém por um termo sem dúvida sugerido pela topografia, o caminho

7 Cf. J. Favret, "La Segmentarité au Maghreb", L'Homme, VI, 2,1966, pp. 105-111, ej. Favret,
"Relations de dépendance et manipulation de la violence en Kabylie", L'Homme, VIII, 1
1968, pp. 18-44.
8 Ibid., p. 21.
9 Exposição mais detalhada em P. Bourdieu, The Algerians, Boston, Beacon Press, 1962,
pp. 14-20.
O CORPO GEÓMETRA 219

desenhando um cotovelo thaghamurth, quando se passa de um akham para


outro; (c) adrum, akharub (ou thakharubth) ou aharum que reúne as pessoas cuja
origem comum remonta para lá da quarta geração; (d) o sw/ou mais simples­
mente "os de cima" ou "os de baixo"; (e) a aldeia, unidade puramente local,
agrupando aqui as duas ligas. Os sinônimos aos quais é preciso acrescentar
tha'rifth (de 'arf, conhecer-se), reunião de pessoas que se conhecem, equiva­
lente de akham ou de adrum (noutros lugares de thakharubth), poderiam não
ser usados estritamente ao acaso, pondo uns a tônica na integração e na coe­
são interna (akham ou adrum) e os restantes na oposição aos outros grupos
(taghamurth, aharum). O suf, que se usa para evocar uma unidade "arbitrária",
uma aliança convencional, por oposição aos outros termos que designam in­
divíduos dotados de uma designação comum (Ait...), distingue-se aqui de
adrum, com o qual coincide em Aít Hichem, enquanto noutros casos pode
ajustar-se a unidades mais pequenas. Tudo sucede como se se passasse por
gradações insensíveis da família patriarcal ao clã (adrum ou thakharubth), a
unidade social fundamental, correspondendo as unidades intermédias a
pontos de segmentação mais ou menos arbitrários (o que explica a incerteza
da terminologia, muitas vezes mal dominada pelos informadores), que se re­
velam sobretudo em caso de conflito (pelo facto de essas unidades serem se­
paradas apenas por diferenças de grau, como se vê, por exemplo, no decrésci­
mo gradual das obrigações em caso de luto, oferecendo os parentes mais pró­
ximos a refeição, contribuindo os outros com uma parte pequena, ou ajudan­
do a preparar a refeição, dando, enfim, os mais afastados — ou os amigos de
um outro clã—uma refeição, depois do termo do luto, em intenção da família
do morto) e que são afectados de transformações incessantes, podendo os li­
mites virtuais tornarem-se reais quando o grupo se alarga (assim, em Aít Hi­
chem, os Aít Mendil, unidos na origem, constituem duas thakharubth) e os li­
mites reais desaparecerem (agrupando os Aít Isaad numa só thakharubth vári­
as thakharubth diminuídas). Em suma, só podemos apresentar a imagem siste­
mática das unidades encaixadas que, de Hanoteau a Jeanne Favret e passan­
do por Durkheim, os etnólogos "selvagens" ou civilizados têm proposto na
condição de ignorarmos a dinâmica incessante de unidades que se fazem e
desfazem continuamente e o fluido que é consubstanciai às noções indígenas,
porque é ao mesmo tempo a condição e o produto do seu funcionamento; pas­
sa-se com as taxinomias políticas e genealógicas a mesma coisa que com as ta-
xinomias temporais do calendário agrário, pois o nível onde se situam as opo-
sições efectivamente mobilizadas depende fundamentalmente da situação,
quer dizer, da relação entre os grupos ou os indivíduos que se trata de demar­
car recorrendo às taxinomias políticas ou genealógicas.
Assim, as propriedades mais específicas de um corpus ritual, isto é, as
que o definem enquanto sistema praticamente coerente, não podem ser apre­
endidas nem adequadamente compreendidas a não ser que nos demos conta
de que ele é o produto (opus operatum) de um domínio prático (modus operandi)
220 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

que deve a sua eficácia prática apenas ao facto de operar posições em relação
fundadas sobre aquilo a que Jean Nicod chama a semelhança global}0 Nunca se
limitando expressa e sistematicamente a um dos aspectos dos termos que
liga, este modo de apreensão toma de cada vez cada um deles como um bloco,
tirando todo o partido possível do facto de dois dados nunca se assemelha­
rem sob todos os aspectos, mas se assemelharem sempre, pelo menos indirec-
tamente (quer dizer, pela mediação de algum termo comum), por algum as­
pecto. Assim, explica-se, em primeiro lugar, que, entre os diferentes aspectos
(ou "perfis") dos símbolos "impuros", ou seja, ao mesmo tempo indetermina­
dos e sobredeterminados que manipula, a prática ritual nunca oponha clara­
mente aspectos que simbolizam alguma coisa e que nada simbolizam e dos
quais ela poderia abstrair (como, no caso das letras do alfabeto, a cor dos tra­
ços ou a sua dimensão e, numa página escrita, a ordem das palavras em colu­
na). Se, por exemplo, um dos três aspectos diferentes pelos quais um "dado"
como o fel pode ser posto em relação com outros "dados" (eles próprios igua 1-
mente "equívocos"), por exemplo, a amargura (tem por equivalente o lourei-
ro-rosa, o absinto ou o alcatrão e opõe-se ao mel), a verdura (associa-se ao la­
garto e à cor verde) e a hostilidade (inerente às duas qualidades precedentes),
vem necessariamente para o primeiro plano, os outros aspectos nem por isso
deixam de ser percebidos simultaneamente, podendo o acordo simbólico en­
contrar-se no estado fundamental quando a tônica é posta sobre a qualidade
fundamental, ou no estado de inversão. Sem querermos levar demasiado lon­
ge a metáfora musical, podemos todavia sugerir que numerosos encadea-
mentos rituais podem ser compreendidos como modulações, particularmente
frequentes porque a preocupação de ter todas as probabilidades a seu favor,
princípio específico da acção ritual, leva à lógica do desenvolvimento, com as
suas variações sobre um fundo de redundância. Estas modulações jogam com
as propriedades harmônicas dos símbolos rituais, ou porque um dos temas é
redobrado por um estrito equivalente sob todos os aspectos (invocando o fel o
absinto que une como ele o amargor e a verdura), ou porque a modulação se
faz segundo tonalidades mais afastadas através do jogo com as associações
de uma das harmônicas secundárias (lagarto-sapo).10 11

10 J. Nicod, op. cit., pp. 43-44.


11 Cf., para observações análogas, M. Granet, La Civilisation chinoise, Paris, op. cit., passim, e
em particular p. 332. A associação por assonância, que pode conduzir a aproximações
sem significação mítico-ritual (Aman d laman, a água é a confiança) ou, pelo contrário, so-
bredeterminadas simbolicamente (azka d aza a, amanhã é a sepultura), é uma outra técnica
de modulação. Vemos, nesta circunstância, como a lógica prática do rito joga, à maneira
da poesia, com a dualidade do som e do sentido (como, noutros casos, com a pluralidade
dos sentidos do mesmo som), constituindo a concorrência da relação segundo a assonân­
cia e da relação segundo o sentido uma alternativa, uma encruzilhada entre duas vias
concorrenciais que poderão ser tomadas, sem contradição de momentos diferentes, em
contextos diferenciados.
O CORPO GEÓMETRA 221

A prática ritual opera uma abstracção incerta que faz entrar o mesmo símbo­
lo em relações diferentes através de aspectos diferenciados ou que faz entrar as­
pectos diferenciados do mesmo referente em idêntica relação de oposição; nou­
tros termos, exclui a questão socrática da relação sob a qual o referente é apreendi­
do (forma, cor, função, etc.), dispensando-se assim de definir em cada caso o
princípio de selecção do aspecto retido e, a fortiori, de se obrigar a ater-se continu­
amente a tal princípio. No entanto, os princípios diferentes que envolve sucessi­
va ou simultaneamente na posição em relação dos objectos e na selecção dos as­
pectos retidos são indirectamente redutíveis uns aos outros, de tal maneira que
esta taxinomia prática pode classificar os mesmos "dados" de vários pontos de
vista sem os identificar de maneiras diferentes (ao contrário de um sistema mais
rigoroso que operasse tantas classificações quantas as propriedades que distin-
guisse) e o universo vê-se assim submetido a uma divisão que podemos dizer ló­
gica, embora viole na aparência todas as regras da divisão lógica—por exemplo,
procedendo a divisões que não são nem exclusivas nem exaustivas —, porque
todas as dicotomias são indefinidamente redundantes, sendo, em última análise,
o produto de um mesmo e único principiam divisionis. Pelo facto de o princípio
segundo o qual se opõem os termos postos em relação (por exemplo, o Sol e a
Lua) não ser definido e se reduzir as mais das vezes a uma simples contrariedade
(supondo a relação de contradição uma análise prévia), a analogia (sempre ex­
pressa de maneira elíptica, "a mulher é a Lua") estabelece uma relação de homo­
logia entre relações de oposição (homem: mulher; Sol: Lua) segundo dois princí­
pios indeterminados e sobredeterminados (quente: frio; masculino: feminino;
dia: noite, etc.) que diferem, sem qualquer dúvida, daqueles segundo os quais
seriam estabelecidas outras homologias em que um ou outro dos termos impli­
cados poderia vir a entrar (homem: mulher; leste: oeste ou Sol: Lua; seco: húmi­
do). O mesmo é dizer que a abstracção incerta é também uma falsa abstracção,
uma vez que as propriedades pelas quais tal "dado" se distingue de outro per­
manecem ligadas às propriedades não pertinentes, de tal modo que, ainda quan­
do é motivada fundamentalmente por um só dos seus aspectos, a assimilação é
total e global e o aspecto de cada um dos termos, que é (implicitamente) seleccio-
nado de um ponto de vista único numa posição em relação particular, continua
ligado aos outros aspectos através dos quais poderá ser oposto a ainda outros de
um referente diferente e noutras posições. O mesmo termo poderia, portanto,
entrar numa infinidade de relações se o número de maneiras de se relacionar
com o que não é ele próprio não se limitasse a algumas oposições fundamentais
que apresentam entre elas encadeamentos bastantes (e. g. quente: frio; masculi­
no: feminino; leste: oeste) para funcionar como um princípio de divisão único. A
prática ritual não procede de modo diferente dessa criança que desesperava
André Gide, querendo que o contrário de branco fosse branca e que o feminino
de grande fosse pequeno.12 Em suma, o "sentido analógico" inculcado pela
primeira educação é, como diz Wallon do pensamento por pares de opostos,
uma espécie de "sentimento do contrário", que engendra as inumeráveis
222 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

aplicações de quaisquer contrariedades fundamentais capazes de assegurar


o mínimo de determinação (o homem não é a mulher — o sapo não é a rã) e
que nada pode ensinar sobre as relações (a: b e b: c) que estabelece, uma vez
que só pode funcionar graças à indeterminação de uns e de outros.13 As incer­
tezas e os mal-entendidos inerentes a esta lógica do duplo entendimento e do
subentendido são, portanto, a contrapartida inevitável da economia que ela
proporciona ao permitir reduzir o universo das relações entre contrários e as
relações entre essas relações a algumas relações fundamentais a partir das
quais todas as outras podem ser engendradas.
Ir da analogia efectuada, facto consumado e letra morta (a: b; c: d), consi­
derada pela hermenêutica objectivista, à prática analógica como transferên­
cia de esquemas que o habitus opera na base de equivalências adquiridas, fa­
cilitando a substituabilidade de uma reacção por uma outra14 e permitindo
dominar, através de uma espécie de generalização prática, todos os proble­
mas que da mesma forma podem surgir em situações novas, permitirá esta­
belecer os limites que deve impor-se qualquer reconstrução lógica sob pena
de se condenar à sobreinterpretação por ignorância do princípio específico de
uma lógica que visa assegurar um mínimo de ordem pelo menor preço, ainda
que em detrimento do rigor e da fecundidade. A construção de esquemas que
permitem apreender na simultaneidade de um olhar totalizante um corpus de
enunciados e de práticas produzidos, com fins práticos, pela aplicação suces­
siva dos mesmos princípios práticos constitui, por si, uma verdadeira trans­
mutação ontológica, que, se não for percebida como tal, condena o analista a
reatar os jogos inesgotáveis e estéreis da exegese letrada.15

____________ O
12 Pode notar-se, de passagem, que a língua berbere exprime o feminino por um diminuti­
ve.
13 Este "sentido analógico" pode manifestar-se na própria relação de inquérito, quando o
informador associa temas aparentemente desprovidos de ligações e sustentados pelo
mesmo esquema inconsciente. Por exemplo, em tal caso concreto, o esquema do "inchar "
que está na base da maior parte dos ritos de fecundidade, sustenta a associação entre os
pastéis que se confeccionam em certas ocasiões e certa planta saponária utilizada pelos
negociantes de gado para fazer inchar os bois para venda. Tudo parece indicar que este
"sentido analógico" funciona à maneira daquilo a que os linguistas chamam por vezes o
sentido da raiz, a saber, como o princípio inconsciente das posições em relação que a
apreensão científica não pode operar a não ser dando-se um construction desprovido de
qualquer existência na consciência dos sujeitos falantes. Mais geralmente, seria necessário
evocar aqui aquilo a que os linguistas chomskyanos chamam a "gramaticalidade" ou a
"aceitabilidade", reconhecendo que tal noção não se pode definir por critérios simples,
semânticos ou estatísticos, por exemplo, e que o único critério é assim o da intuição.
14 Cf. J. F. Le Ny, Apprentissage et activités psychologiques, Paris, PUF, 1967, p. 137.
15 Granet dá belíssimos exemplos dessas construções fantásticas, à força de quererem ser
impecáveis, engendradas pelo esforço para resolver as contradições nascidas da ambição
desesperada de dar uma força intencionalmente sistemática aos produtos objectivamen­
te sistemáticos da razão analógica, como, por exemplo, a teoria dos cinco elementos, ela­
boração erudita (III-II séculos a. C.) do sistema mítico, que descreve a sucessão de cinco
O CORPO GEÓMETRA 223

Distribuindo segundo as leis da sucessão (ou seja, primeiro, Y segue


X, exclui X e segue Y; segundo, Y segue X e Z segue Y, implicando que, Z se­
gue X; terceiro, ou Y segue X, ou X segue Y) todas as oposições temporais
susceptíveis de serem metodicamente recolhidas e reunidas, o esquema si-
nóptico permite apreender num só relance, uno intuitu, como dizia Descar­
tes, monoteticamente como diz Husserl,16 significações que são produzidas
e utilizadas politeticament e que,17 como mostram as contradições nascidas
da conversão do politético em monotético, não podem ser praticamente
produzidas e utilizadas a não ser sucessivamente, quer dizer, não só uma a
seguir à outra, mas uma a uma, passo a passo. O que é próprio da série com­
pleta das oposições temporais produzida pelo trabalho do intérprete é não
ser mobilizada e mobilizável enquanto tal, por inteiro e em todos os seus
pontos, nunca exigindo as necessidades da existência uma apreensão si-
nóptica semelhante, quando não a desencorajam pelas suas urgências; em
suma, aquilo a que se chamará a politetia constitui, com a polissemia, a con­
dição de funcionamento de uma lógica prática, que não pode organizar to­
dos os pensamentos, percepções e acções por meio de alguns princípios
eles próprios no limite redutíveis a uma dicotomia fundamental senão
pelo facto de toda a sua economia supor o sacrifício da clareza e da distinção
em benefício da simplicidade e da generalidade. Acumulando informa­
ções que nem sempre são dominadas ou domináveis por um só informa­
dor e que, em todo o caso, nunca o são no próprio instante, o analista ga­
rante-se o privilégio da totalização (graças aos instrumentos de eternização
que são a escrita e todas as técnicas de registo e graças também ao tempo li­
vre de que dispõe para as analisar) e dá-se assim o meio de apreender a ló­
gica do sistema que escaparia a uma visão parcial e discreta. Contudo, na
mesma medida) tem todas as probabilidades de ignorar a mudança de es­
tatuto epistemológico que faz a prática e os seus produtos sofrerem e, no
mesmo acto, de se empenhar na busca de soluções para questões que a

--------------- — A} ~ 0

elementos por produção e põe em correspondência os pontos cardieais (aos quais é acres­
centado o centro), as estações, as matérias (água, fogo, madeira, metal) e as notas (M. Gra-
net, op. cit., pp. 304-309).
16 E. Husserl, Idees directives pour une phénoménologie, Paris, Gallimard, 1950, pp. 402-407.
17 Numa espécie de comentário do segundo princípio saussuriano ("o significante desenro­
la-se no tempo e tem os caracteres que toma do tempo", F. de Saussure, op. cit., p. 103),
Coumot opõe as propriedades do discurso falado ou escrito, "série essencialmente line­
ar" que, em razão do seu "modo de construção, nos obriga a exprimir sucessivamente,
por uma série linear de signos, relações que o espírito percebe ou que deveria perceber si­
multaneamente e numa outra ordem", aos "quadros sinópticos, árvores, atlas históricos,
espécies de tábuas com dupla entrada, no traçado dos quais se tira um partido mais ou
menos feliz da extensão em superfície, para figurar relações e ligações sistemáticas difí­
ceis de destrinçar no encadeamento dos discursos" (Coumot, op. cit., p. 364). Jacques Ber­
lin formulou sistematicamente esta oposição, da qual fez a base da sua semiologia gráfica
(cf. J. Bertin, Sémiologie graphique, Paris, Haia, Gauthier, Villars et Mouton ed., 1967).
224 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

prática não põe nem pode pôr-se, em vez de se perguntar se o que é próprio
da prática indígena não será o facto de ela excluir tais questões.18
É preciso, portanto, reconhecer à prática uma lógica que não é a desta
para evitarmos reclamar dela mais lógica do que a que ela pode dar, conde­
nando-nos assim a extorquir-lhe incoerências ininteligíveis, ou antes, incom­
preendidas no seu princípio, ou a impor-lhe uma coerência forçada.19 A con­
versão do politético em monotético, a sobreposição na simultaneidade de to­
das as oposições susceptíveis de serem aplicadas sucessivamente por agentes
diferentes em situações diferentes, em suma, o estabelecimento de uma série
única cria por inteiro uma multiplicidade de relações que não podem deixar
de se revelar problemáticas, uma vez que são excluídas da lógica da prática. O
esforço para fixar num sistema coerente todas as relações entre traços cultu­
rais semelhantes mas dispersos na ordem do tempo (podendo dois momen­
tos ser definidos pela sua posição relativa—antes / depois — e pela sua seme­
lhança) e as relações entre traços que ocupam posições homólogas na série
temporal esbarra em contradições porque a homogeneidade do espaço geo­
métrico e a totalização sinóptica levam a pôr no mesmo plano oposições de
grau diferente, portanto praticamente exclusivas. Assim, por exemplo, se po­
demos opor en-nissan, período abençoado, que engloba os últimos dias da
Primavera e os primeiros calores do Verão, o último período do "verde", do
cru e do jovem, e o primeiro período do seco, do maduro e do cozido, a el hu-
sum, período nefasto, situado no final de En-nayer (Janeiro) e no começo de
Furar (Fevereiro), é possível, no interior de en-nissan, opor "os verdes" e "os
amarelos", ou no interior de el husum, uma primeira parte, situada no fim do
Inverno e mais desfavorável, ela própria dividida em dias "queimados" e em
dias "salgados" ou "picantes", e uma segunda situada no começo da

O .V
------------------ Q
18 Esta análise do efeito produzido pelo registo conduz ao princípio dos efeitos que a inven
ção das técnicas de conservação da palavra (a escrita) terá podido determinar (cf. W. C. Gre
ene, "The Spoken and the Written Word^, Harvard Studies in Classical Philology, IX, 1951
pp. 24-59; J. Goody & I. Watt, "The Consequences of Literacy", Comparative Studies in So
ciety and History, V, 1962-63, pp. 304-311). A politetia que permite escapar à contradição
tem ela própria por condição a ausência de registo (record) do passado, quer dizer, a illite
racy, que, deixando a memória individual e colectiva livre de qualquer traço fixado, auto
riza as correcções permanentes necessárias para escapar à incoerência. A sincronização
do passado e do presente (por exemplo, das versões sucessivas de um mito ou de um ritu
al) autorizada pela escrita torna possível a apreensão sinóptica e no mesmo acto a a per
cepção das contradições que dão à reflexão letrada o seu ponto de partida.
19 A lógica do rito ou do mito pertence à classe das lógicas naturais que a filosofia da lingua
gem, a lógica e a linguística começam a explorar, com pressupostos e métodos muito dife
rentes. Foi assim, por exemplo, que George Lakoff, um dos fundadores da generative se
mantics, teve de construir uma fuzzy logic para dar razão da linguagem comum, com o.
seus fuzzy concepts e os seus hedges tais como par excellence, sor of, pretty, much, rather, loo
sely speaking, etc., que modificam (affect) os valores de verdade (truth values) "de uma ma
neira que não pode ser descrita adequadamente" dentro dos limites da lógica clássica.
O CORPO GEÓMETRA 225

primavera e menos desfavorável, como indicam os nomes das suas subdivi­


sões, "os benéficos" e "os abertos". Dado que estas subdivisões são produzi­
das e utilizadas em situações diferentes, nunca tem de se pôr praticamente a
questão teórica da relação que cada uma dentre elas mantém com a unidade
superior ou, a fortiori, com as subdivisões do seu oposto. Do mesmo modo, se­
ria vão tentarmos estabelecer uma posição em relação sistemática de duas sé­
ries, como o ciclo da vida humana e o ciclo do ano agrário, ou entre uma ou
<?utra destas duas séries e a dos momentos do dia, apesar de serem expressa-
tíiente sugeridas por uma ou várias relações parciais (e. g. tarde: Outono; ma­
nhã: Primavera).
Se é permitida, aqui de novo, uma analogia na aparência etnocêntrica,
poderemos sugerir que a relação entre a série construída dos momentos que
obedecem às leis da sucessão e as oposições temporais postas em prática su­
cessivamente, de tal maneira que não possam interpenetrar-se no mesmo lu­
gar, é homóloga da relação entre o espaço político contínuo e homogêneo dos
níveis de opinião e das tomadas de posição políticas, práticas que, sempre
efectuadas em função de uma situação particular e de interlocutores ou ad­
versários particulares, mobilizam oposições de grau diferente segundo a dis­
tância política entre os interlocutores (esquerda; direita ou esquerda da es­
querda; direita da esquerda; esquerda da esquerda da esquerda; direita da es­
querda da esquerda; etc.) (de tal modo que o mesmo agente pode encon­
trar-se sucessivamente à sua própria direita e à sua própria esquerda no espa­
ço "absoluto" da geometria, contradizendo a terceira das leis da sucessão. Em
suma, pelo facto de as oposições fundamentais (ou as oposições secundárias
que delas são derivadas) nunca poderem sem mobilizadas simultaneamente,
a lógica prática jamais pode confrontar-se com as incoerências que faria sur­
gir a sobreposição de oposições construídas sob outros aspectos e, em última
análise, a "politetia" é a condição de funcionamento de um sistema lógico as­
sente no bom uso da polissemia. V' -ql-
Capítulo 7
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO

O efeito de reificação da teoria produzida pela conversão do politético em


monotético nunca se exerce tão intensamente como quando se aplica a práti­
cas que se definem pelo facto de a sua estrutura temporal, quer dizer a sua ori­
entação e o seu ritmo, ser constitutiva do seu sentido e qualquer manipulação
desta estrutura, inversão, aceleração ou afrouxamento, faz com que sofram
uma desestruturação irredutível ao efeito de uma simples mudança de eixo
de referência. Assim, lembrar-se-á que Lévi-Strauss, acusando Mauss de se
ter situado ao nível de uma "fenomenologia" da troca de dons, opera uma
ruptura marcada com a experiência indígena e a teoria indígena dessa expe­
riência para estabelecer que a troca, enquanto objecto construído, "constitui o
fenômenos primitivo, e não as operações discretas nas quais a vida social a
decompõe",1 2 ou, por outras palavras, que as "leis mecânicas" do ciclo de reci­
procidade são o princípio inconsciente da obrigação de dar, da obrigação de
devolver e da obrigação de receber.2 As análises "fenomenológica" e objecti-
vista trazem à luz do dia dois aspectos antagônicos da troca, o dom tal como é
vivido, ou, pelo menos, tal como se "quer viver, e o dom tal como aparece do
exterior. Determo-nos na verdade "pbjectiva" do dom, quer dizer, do modelo,
é afastar a questão da relação entre a verdade a que mal se pode chamar sub­
jectiva, porque representa a definição oficial da troca, e a verdade a que se
chama objectiva. Devemos levar a sério o facto de os agentes viverem como ir­
reversível uma sequência de acções que o observador apreende como reversí­
vel, e de a irreversibilidade e a reversibilidade estarem igualmente inscritas
na verdade objectiva dessa prática. A apreensão totalizante ou, se quisermos,
monotética substitui uma estrutura objectiva fundamentalmente definida
pela sua reversibilidade a uma sucessão de igual modo objectivamente

1 C. Lévi-Strauss, "Introduction à 1'oeuvre de Marcei Mauss", em Sociologie et Anthropolo­


gic, Paris, PUF, 1950, p. XXXVIII.
2 Ibid., p. XXXVI.

227
228 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

e irreversível (e não apenas vivida como tal) de dons que, como o desafio no
modelo da honra, não estão mecanicamente ligados à resposta que reclamam
com insistência. Assim, qualquer análise objectiva da troca de dons, de pala'
vras, de desafios ou mesmo de mulheres deve, com efeito, ter em conta o facto
de cada um desses actos inaugurais poder dar em falso e de, seja como for, re­
ceber o seu sentido da réplica que desencadeia, ainda que se trate de uma au­
sência de réplica de molde a retirar-lhe retrospectivamente o seu sentido in­
tencional. Dizer que o dom não vê reconhecido e consagrado o sentido que
lhe dava o seu autor a não ser quando o contradom é conseguido não equivale
a restaurar a coberto de outras palavras a estrutura do ciclo de reciprocidade.
Significa antes que, ainda que a reversibilidade seja a verdade objectiva dos
actos discretos e vividos como tais que a experiência comum põe sob o nome
de trocas de dons, não é a verdade completa de uma prática que não poderia
existir se se percebesse em conformidade com o modelo. A estrutura tempo­
ral da troca de dons, que o objectivismo ignora e abole, é o que torna possível a
coexistência de duas verdades opostas que define o dom na sua plena verda­
de: observa-se com efeito, em toda a sociedade, que, sob pena de constituir
uma ofensa, o contradom deve ser diferido e diferente, equivalendo com toda a
evidência a restituição imediata de um objecto, exactamente idêntico a uma
recusa (isto é, à restituição do objecto); o mesmo é dizer que a troca de dons se
opõe, por um lado, à troca imediata que,'como o modelo teórico da estrutura do
ciclo de reciprocidade, sobrepõe no mesmo instante o dom e oebntradom, e, por
outro lado, ao empréstimo, cuja restituição explicitamente garantida por um
acto jurídico está como que já efectuada no próprio instante do estabelecimen­
to de um contrato capaz, enquanto tal, de assegurar a previsibilidade e a cal-
culabilidade dos actos prescritos. Se é necessário introduzir no modelo a du­
pla diferença, e muito particularmente o adiamento., abolido pelo modelo mo-
notético, não é, como sugere Lévi-Strauss, para obedecer a uma preocupação
"fenomenológica" de restituir a experiência vivida da prática da troca; é que o
funcionamento da troca de dons supõe p desconhecimento da verdade do
"mecanismo" objectivo da troca, essa mesma verdade que a restituição ime­
diata revela brutalmente: O intervalo de tempo que separa o dom e o contra­
dom é o que permite perceber como irreversível uma estrutura de troca sem­
pre ameaçada de aparecer e se mostrar como reversível, quer dizer, como ao
mesmo tempo obrigatória e interessada. "A impaciência excessiva que se põe
em resgatar uma dívida", diz La Rochefoucauld, "é uma espécie de ingrati­
dão." Trair a pressa que se experimenta em nos vermos livres da obrigação
contraída e manifestar assim demasiado ostensivamente a vontade de pagar
os serviços prestados ou os dons recebidos, de nada dever, de ficarmos quites,
é denunciar retrospectivamente o dom inicial como inspirado pela intenção
de obrigar. Se tudo aqui é uma questão de maneira, quer dizer, neste caso, de
oportunidade e de a propósito, se o mesmo acto (fazer um dom ou devolvê-lo,
oferecer serviços, fazer uma visita, etc.) muda por completo de sentido
229
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO

POz a propósito ou fnm qUer dlZer se8undo chega a tempo ou a contratem-


Wturiente ou nreson+A & f^P05110-se não há troca importante (oferendas à
txado, é porque o temr>S^°r ocas*ao do casamento) à qualosew momento seja
Za ° engâno deliberada qUe' C°m° Se diz'se?ara ° dom do contradom autorí-
aprovada que constinu ° 3 ir‘ endra a si próprio colectivamente sustentada e
j
falsa circulação de mood C°I?dlçao do funcionamento da troca simbólica, essa
°s agentes não ismororr, 3 3 Sa’ Pfra Ue ° s’stema funcione, é necessário que
cas cuja lóeica o P rCOmp^etooses<luemasqueorganizamassuastro-
e rnnj ?
tempo que Se recusp e ° umcanico do antropólogo explicita e ao mesmo
Se passa como se a nráv O1j eC&T recordiecer essa lógica.3 Em suma, tudo
e ã

elesfazem sofrer à durm/fa agentes e' em


particular, a manipulação que
cada um deles e aos out or8ardzasse Por inteiro com vista a dissimular, a

delos trazem à luz dn rJ°S' âde da Pradca que o etnólogo e os seus mo-

P°ral ao esquema 3/SU sptuindoPura e simplesmente o modelo intem-


Mas, além dVso flba°rSe no Seu temP° e ™ ^mpo.
tercalar, que não d ' ° ° lntervalo é abolir a estratégia. Este período in-
»°ns),mJ dem.?8,ado breve (como vemos bem na troca de
°s da vingança) é o mudo f°nS° (em particular na troca de homicídí-
em que o modelo ohLi--61- contrario do tempo morto, do tempo para nada,
sua parte, aquele dòe rer«kS transf°rma-
Enquanto não tiver devolvido a
sua gratidão oara mm U?1 °^r^a^visto como devendo manifestar a

c°ui
ele, de o Lunar d° ,TfeÍtOr °U'.em todo o caso, a ter atenções para
Sob
pena de ser aL ^°!?a ek de todas as armas de que dispõe,
Pessoas", que decid/JLe de se ver condenado pela "fala das
° assassínio, não reseat^^ ° °bÍectlvo das acções. Aquele que não vingou
sou as suas filhas a tfmno. Por uma família rival, não ca-

dias,pelo temoo ou a r-, P°z Ve ° SeU caPda^ afectado, um pouco mais todos os
adiamento estraãmJ’^^'3 menos que seía capaz de transformar o atraso em
P°de ser uma “ resfih>^<> dom ou da vingança
Prias intenções send^ 6 manfer ° Parceiro-adversário na incerteza das pró-
te maléfico nos nprír.^ ° ^?nto imPossível de fixar como o momento realmen-
verte, derxando a nL d° calendário ritual, em que a curva se in-

denhosa; é também unT^^^Tr H^S^cía para se tornar rejeição des-


que se impõem enauam^11^ lhe °P°r °S comPortamentos
deferentes
poem enquanto as relações não se rompem; é por fim, no caso da

. ' ' 3 °x exa t3ln a generosidade,-virtudesuprema do homemhonrado, coexistem


„ ^r°V r !os ctue traem a tentação do espírito de cálculo: "O presenta é uma desgra-

fím' ■ iZ e eS'e oulTO: O presente é uma galinha e a recompensa um camelo"; por


d°8an o com a palavra lahna, que significa ao mesmo tempo o presente e a paz e com
pa avra n i ia que significa presente, diz-se: "Ó vós que nos trazeis a paz (o presente),
ratin'1 n°S em PaZ ' °U deixai-nos em paz (lahna) com o vosso presente (lahdia)", ou "o
melhor presente é a paz".
230 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

vingança, usar a própria paciência como uma ameaça sempre suspensa e con­
servar a vantagem da iniciativa. Compreende-se nesta lógica que aquele cuja
filha é pedida tenha o dever de responder o mais rapidamente possível, se a
resposta for negativa, sob pena de parecer abusar da sua vantagem e de ofen­
der o que solicita, ao passo que é livre, pelo contrário, de diferir tanto quanto
pode a resposta positiva, para manter a vantagem conjuntural que lhe dá a
sua posição de solicitado e que perderá de uma vez só no momento em que
der o seu acordo definitivo. Tudo se passa como se a ritualização das interac-
ções tivesse por efeito dar toda a sua eficácia social ao tempo, nunca tão
actuante como nesses momentos em que nada se passa a não ser o tempo: o
tempo, como se diz, trabalha a favor dele e a inversa pode também ser verda­
de. O mesmo é dizer que o tempo tira a sua eficácia do estado da estrutura das
relações na qual intervém, o que não significa que o modelo dessa estrutura
possa abstrair dele. Quando o desenrolar da acção é muito fortemente rituali-
zado, como na dialéctica da ofensa e da vingança, há ainda lugar para as es­
tratégias que consistem em jogar com o tempo ou, melhor, com o tempoi da ac­
ção, deixando esperar a vingança e perpetuando assim a ameaça; e é deste
modo, por maioria de razão, em toda$ as acções menos estritamente regula­
das que proporcionam caminho livre às estratégias que visam tirar partido
das possibilidades oferecidas pela manipulação do tempo da acção, ou seja
contemporizar ou adiar, aprazar ou diferir, fazer esperar e fazer ficar à espera,
ou, pelo contrário, forçar, precipitar, antecipar, apanhar de surpresa, surpre­
ender, ultrapassar, para já não falarmos da arte da oferta ostentatória de tem­
po ("consagrar o seu tempo a alguém") ou, pelo contrário, da sua recusa (ma­
neira de fazer sentir que se reserva um "tempo precioso"),. .0
Vejamos um exemplo da estratégia muito geralmente usada para ence­
tar uma discussão de negócios com uma pessoa familiar ou lhe apresentar um
pedido interessado. A vem ver B (garagista) no seu local de trabalho para o
consultar a propósito da venda de um carro em segunda mão: o primeiro tem­
po é consagrado a gracejos, à evocação de recordações comuns (cogumelos
que A ofereceu a B), que dão matéria a novos gracejos quase rituais (sobre a
gulodice de B); o segundojtempo, directamente consagrado ao negócio, é
marcado por uma mudança de tom destinada a manifestar o interesse e a seri­
edade que o solicitador e o solicitado concedem à questão debatida, reapare­
cendo o tom de gracejo de longe em longe, mas apenas por breves interrup­
ções, destinadas a assegurar a transição; concluída a questão ("vou fazer o
melhor possível", "de acordo, tu vês isso"), a conversa continua num tom jo­
coso, entrecortada de regressos ao problema, que se tornam cada vez mais ra­
ros enquanto os gracejos se multiplicam a propósito de diferentes temas (B
emprestou a A a sua espingarda e também a licença dela...), entre os quais se

4 No sentido musical. (N. do T.)


AACÇÃODOTEMPOE TEMPO DA ACÇÃO
O 231

contaagulodicedeB-ai * j
te, e A pergunta a B- ''F f xVeS des^a transição, a despedida faz-se naturalmen-
sões, uma vez que só °S e^onv^a^° Para ° casamento?" (sem outras preci-
que a pergunta é esi P°, e tratar de um casamento e de um só; a tal ponto
"E conheces a ement?"™ ~ritua1"' sabendo B a resposta). "Sim". —
tipo!". a‘ 'Não, é isso que me chateia!" — "Ah, aquele

O objectivismo d
pelo menos capaz d UZlda de *mediato esta sequência de acções, se fosse
evita abordar directa & apreenc^er' regra segundo a qual aquele que solicita
certado de acções qu”1611^ ^uestões- realidade, um tal conjunto con-
contro do mesmo hr>3Se ntua?s observar-se-ia sem dúvida em qualquer en-
mente alimentada com ^UeT d^Zerf todas as vezes que uma relação continua-
sentes, de serviços e d ° ^Ue
e Por si própria (pela troca de pre- em SÍ própda

e todas as vezes que e visitas) é posta ao serviço de uma função interessada,


toda a série das eSSa ub I:^a^ao P011^^ — que ameaça transbordar sobre
t
fazê-las aparecer cn™ § a[*teriores' assim retrospectivamente finalizadas, e
sentido do termo)______ d° ° ^ecbvamenteorientadas para esse fim (no duplo
cas passadas (aoni seJ reinserida, e assim camuflada, na série das tro-

numa interacçãoqup 2^ evocações explícitas), ao mesmo tempo que


interacções anterior^ pr°duz'no seu próprio desenrolar, toda a história das
mentos de pura vrafiiítm ?ando ° temP° da troca interessada de dois mo-
Sab r graruitiaaae.

missível pode tíar ° partido clue ° detentor de um poder trans-


minação e a incerteza nn 6 dlfer!E a sua transmissão e de manter a indeter-
auecertoda<5A=o ? ^ue se refere às suas intenções últimas. Isto sem es-
acção do tem S 3 &laS ^ue/ nao tendo outra função a não ser neutralizar a
zir contínuo ™ e asseSurar a continuidade das relações sociais, visam produ-
ao infinito o irír escontínuo,à maneira dos matemáticos, multiplicando até
quenos orespnt amente Pequeno, sob a forma, por exemplo, desses "pe-
— thunticht nl 68 i S qUa,1S Se dÍZ que "alimentam a amizade" ("ó presente
Os peauenoJr>Ura x. UntJc^n nao me enriqueces mas teces a amizade"),
e feitos nara pr^.Sen es devem ser de fraco valor, portanto fáceis de retribuir,
modo ronií 61 aC1 mente atribuídos, mas devem ser frequentes e de algum
ou da "aiPnr~U°" / ° qua imPbca 9ue funcionem mais na lógica da "surpresa"
do ríf nal PcE° C}Ue Sa° também presentes) do que segundo os mecanismos
famili-irpc es Presentes destinados a manter a ordem comum das relações
zinhadoQ 'j°riS1S emma’s ou menos sempre numa travessa de alimentos co-
1 im o ori™ 6 C^scyzJacomPanbado de um pedaço de queijo, quando assina-
teiosfamil eir° 61 ti euma vaca)eseguem o curso comum dos pequenos fes-
ro d pn m rJaLeS/ °S
° terceiro ou
do sétimo dia após o nascimento, do primei-
• j ■ , ° Pnreeiro passo do bebé, do primeiro corte de cabelo, do pri-
□ Hcln'd ^T^3 OU d° Pr’meboÍejum do rapaz; associados a momentos
„rirl.orj & 3 -°S omens ou da terra, envolvem aqueles que entendem dar

a sua a egna e os que, em contrapartida, tomam parte nessa alegria, num


232 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

verdadeiro rito de fecundidade. Contudo, nunca se devolve o recipiente no


qual vinha contido o presente sem lá pôr, "como bom agoiro" (elfal), um pou­
co de trigo, de sêmola (nunca cevada, planta feminina, símbolo de fragilida­
de) ou, melhor, legumes secos, ervilhas, lentilhas, etc., chamados ajedjig, flor,
oferecidos a fim de que "o rapaz (que é o motivo da troca) floresça", de que
cresça forte e produza frutos. Os Cabilas opõem claramente estes presentes
comuns (aos quais é preciso acrescentar alguns dos designados pelo nome de
tharzefth e que são feitos por ocasião das visitas) aos presentes fora do comum,
Ikhir ou lehna, oferecidos por altura das grandes festas chamadas thimeghriwin
(singular, thameghra), casamentos, nascimentos, circuncisões. E, de facto, os
pequenos presentes entre parentes e vizinhos estão para o presente em di­
nheiro e em ovos oferecidos pelos aliados distantes tanto no espaço como na
genealogia, e também no tempo — uma vez que só são vistos de longe em lon­
ge, de maneira descontínua, nas "grandes ocasiões" e que, pela sua importân­
cia e a sua solenidade, são sempre uma espécie de desafio controlado —,
como os casamentos sem história da endogamia de linhagem-vizinhança, tão
frequentes e tão estreitamente inseridos na trama das trocas comuns entre
primos-vizinhos que passam por completo desapercebidos, estão para os ca­
samentos fora do comum, entre aldeias ou tribos diferentes, destinados por
vezes a selar alianças ou reconciliações, e marcados sempre por cerimônias
solenes, mais prestigiados mas também infinitamente mais perigosos.
Vê-se como estamos longe do encadeamento mecânico de acções anteci­
padamente reguladas que são comummente associadas à noção de ritual: só o
virtuoso perfeitamente senhor da sua "arte de viver" pode jogar com todos os
recursos que lhe oferecem as ambiguidades e as indeterminações dos com­
portamentos e das situações a fim de produzir as acções que convêm em cada
caso, e de fazer "o que devia ser feito", aquilo de que se dirá que "não havia ou­
tra coisa a fazer", e executá-lo como deve ser. Longe também das normas e das
regras. Sem dúvida, conhecem-se, aqui como noutros lugares, os erros de lin­
guagem, os gestos desastrados e os lapsos e também os gramáticos das conve­
niências que sabem dizer, e muito bem, o que é bom fazer e dizer, mas que, ao
contrário dos etnólogos, não pretendem encerrar num catálogo situações re­
correntes e estratégias de resposta correspondentes à "arte" da improvisação
necessária que define a excelência.
Para restituir à prática a sua verdade de improvisação regulada e a sua
função, que, na sua definição completa, pode englobar, como no caso da troca,
a dissimulação das funções objectivas,5 devemos reintroduzir o tempo na re­
presentação teórica de uma prática temporalmente estruturada e, portanto,
intrinsecamente definida pelo seu tempo. O esquema gerador e organizador,
aquele que dá a sua unidade a uma discussão ou o seu "fio" a um discurso im­
provisado e que não precisa de aceder à expressão consciente para se efectuar
nem mesmo para se comunicar, é um princípio de selecção e de efectuação
muitas vezes impreciso, mas sistemático, que, por retoques e correcções
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO 233

descontínuas e contudo orientadas, tende a eliminar os acidentes quando é


impossível deles tirar partido, conservando os seus sucessos, ainda que for­
tuitos — do mesmo modo que o jogador de xadrez "vê" toda uma série de jo­
gadas por vir na configuração do jogo, assim se "vê" aquilo que alguém "quer
dizer" ou "quer fazer" no que diz e no que faz e até apesar daquilo que diz e
daquilo que faz, como no caso do lapso. É, portanto, a prática, no que ela tem
de mais específico, que se aniquila, identificando o esquema com o modelo,
ao mesmo tempo que nos condenamos assim a mudar a necessidade retros­
pectiva em necessidade prospectiva, ou, mais simplesmente, o produto em
projecto, o advindo, que já não pode deixar de acontecer, em porvir da acção
que o faz advir; é estabelecer implicitamente, como Diodoro, que aquilo de
que é verdade di zer que será terá mesmo de ser verdade um dia,6 ou ainda, se­
gundo um outro paradoxo, que "hoje é amanhã uma vez que ontem era hoje".
Ioda a experiência da prática contradiz estes paradoxos e lembra que os ci­
clos de reciprocidade não são essas engrenagens mecânicas de práticas obri­
gatórias que só existem na tragédia antiga: o dom pode ficar sem contraparti­
da, quando o obrigado é um ingrato; pode ser também repudiado como uma

5 A linguagem da forma, entendida como estrutura de i. m devir, no sentido da teoria musical


(e. g. forma suite ou forma sonata), conviría, sem dúvida, melhor que a linguagem da es­
trutura lógica, para exprimir as sequências logicamente articuladas, mas articuladas
também cronologicamente, de uma obra musical, de uma dança ou de qualquer prática
temporalmente estruturada. É significativo que R. Jackobson e C. Lévi-Strauss (VHomme,
T. II, n. 1, Janeiro-Abril de 1962, pp. 5-21) não possam estabelecer a passgem da estrutura
à forma e à experiência da forma, quer dizer, at, prazer poético e musical, a não ser invo­
cando a função de desorientação (frustrated expectation), da qual a análise objectivista não
pode dar razão na medida em que reúne no instante sob a forma de um conjunto de temas
ligados por relações de transformação lógica (a. g. a passagem da forma metafórica, o ci­
entista, o apaixonado, o gato, à forma metonímica, o gato) a estrutura essencialmente po-
litética do discurso poético que não se dá praticamente senáo no tempo. De facto, as for­
mas musicais (ou poéticas) como estruturas temporais não podem ser compreendidas a
não ser na medida em que preenchem/wnçife expressions de tipos diferentes, quer se trate
das "formas insistentes", como a forma rondei, fundadas na reexposição do tema e orga­
nizadas em estrita simetria, quer de formas mais complexas, concedendo um lugar maior
às "relações" como a forma suite e a forma sonata.
6 Eis o paradoxo sobre o possível de Diodoro Cronos (da Escola de Mégara), tal como o po­
demos ler no comentário de Ammonius do De Interpretations de Aristóteles (pp. 131,1,25
ss): "Se vais ceifar, não é verdade que talvez ceifes e que talvez não ceifes, mas de qual­
quer modo ceifarás; e se não vais ceifar, da niesma maneira não é verdade que talvez cei­
fes e talvez não ceifes, mas de qual quer modo náo ceifarás. Decorre daqui com toda a cer­
teza, e segundo toda a necessidade, que ou ceifarás ou não ceifarás. O "talvez" fica assim
suprimido, se não encontra lugar nem na oposição de ceifar e de não ceifar, produzin­
do-se um dos dois casos necessariamente, nem segundo a consequência de uma destas
duas suposições. Ora o "talvez" era de facto o elemento que introduzia o possível sendo
portanto possível que desaparece". Cícero, no De Fato, VI, 12, escreve: "Diodoro [...] diz
que só é possível o que é verdadeiro ou o que o será; e tudo o que acontecer declara-o ne­
cessário, e tudo o que não acontecer declara-o impossível"; IX, 17:".. .nada acontece que
não tenha sido necessário; e tudo o que é possível ou o é já ou o será".
234 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

ofensa.7 Basta que exista a possibilidade de as coisas se passarem de modo di­


ferente do pretendido pela "lei mecânica" do "ciclo de reciprocidade", para
que toda a lógica da prática fique mudada. Mesmo no caso em que os habitus
dos agentes se encontram perfeitamente harmonizados e em que o encadea-
mento das acções e das reacções é inteiramente previsível do exterior, a incerte­
za sobre o desfecho da interacção permanece enquanto a sequência não está
terminada. Esta incerteza — que encontra o seu fundamento objective na ló­
gica probabilística das leis sociais — basta para modificar não só a experiên­
cia da prática (descrita pela análise fenomenológica, mais atenta que o objec-
tivismo à temporalidade da acção), mas a própria prática, dando uma razão
de ser a estratégias que podem ter por objectivo evitar o desfecho mais prová­
vel. A passagem da probabilidade mais elevada à certeza absoluta é um salto
qualitativo sem proporção com o intervalo numérico.
Substituir a estratégia à regra é reintroduzir o tempo, com o seu ritmo, a
sua orientação, a sua irreversibilidade. Há um tempo da ciência que não é o
tempo da prática. Para o analista, o tempo já não conta: não só porque, como
tem sido muitas vezes repetido na esteira de Max Weber, tendo já tudo advin­
do não pode haver incerteza sobre o que pode advir, mas também porque tem
tempo para totalizar, quer dizer, superar os efeitos do tempo, ao passo que o
agente se encontra tomado pela urgência. A prática científica é tão "destem-
poralizada" que tende a excluir até a ideiáclaquilo que exclui, porque a ciên­
cia, como só é possível numa relação com o tempo que se opõe ao da prática,
tende a ignorar o tempo e, assim, a reificar as práticas (o mesmo é dizer, uma
vez mais, que a reflexão epistemológica é constitutiva da própria prática cien­
tífica. Assim, para compreendermos o que é a prática — e em particular as
propriedades que deve ao facto de se desenrolar no tempo —, devemos, por­
tanto, saber o que é a ciência — e em particular o que está implicado na tem­
poralidade específica da prática científica). A posição entre parênteses do
tempo é um dos efeitos que a ciência produz quando esquece o que faz a práti­
cas inscritas na duração, quer dizer, destotalizadas, pelo simples facto de as
totalizar (por exemplo, com a apreensão sinóptica autorizada pelo esquema).
Em suma, a ilusão retrospectiva que está implicada na confusão do es­
quema e do modelo não deixa outra escolha que não seja a de fazermos como
se a representação da prática tivesse coincidido com a verdade objectiva des­
sa prática, identificando-se então o modelo teórico com o plano explícito da
acção em vias de se efectuar, ou como se a prática fosse regulada de maneira
inteiramente inconsciente segundo o modelo teórico da acção em vias de rea­
lizar-se. De facto, o esquema que "importa ordem para a acção" não é nem um

7 "Não se ofenda com esta oferta [...]. Tenho de tal modo consciência de ser um zero aos
seus olhos que, da minha parte, até mesmo dinheiro pode aceitar. Uma prenda vinda de
mim não tem consequências", F. Dostoiewski, Unjoueur, Paris, Gallimard, col. "Les clas-
siques russes", 1958, p. 47.
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO 235

"plano" conscientemente estabelecido de antemão que bastaria executar ("o


que se concebe bem enuncia-se claramente"), nem um "inconsciente" que
orientaria mecanicamente a acção. À falta da teoria adequada da prática que
conduz à construção do conceito de habitus, condenamo-nos a reduzir o siste­
ma das proposições teóricas que a ciência constrói para dar razão das práticas ou
ao programa predeterminado de um mecanismo simples, funcionando se­
gundo um esquema probabilístico de tipo markoviano, ou a um repertório de
soluções típicas onde os agentes iriam buscar, como ao pombal de que fala
Platão, os "golpes" indispensáveis à sua prática, ou ainda ao corpus de nor­
mas às quais os agentes obedeceríam conscientemente. A menos que se po­
nham, à maneira de Chomsky, as regras no interior do cérebro, "incorporan­
do" de certo modo o modelo construído: "Uma pessoa que conhece uma lín­
gua possui no seu cérebro um sistema muito abstracto de estruturas ao mes­
mo tempo que um sistema abstracto de regras que determinam, por livre ite­
ração, uma infinidade de correspondências som-sentido".8

8 Cf. N. Chomsky, "General Properties of Language", em Brain Mechanism Underlying Spe­


ech and Language, 1, L. Darley (org.), Nova Iorque e Londres, Grune and Straton, 1967,
pp. 73-88.
Capítulo 8
O CAPITAL SIMBÓLICO

A construção teórica que projecta retrospectivamente o contra dom no projec­


to do dom não tem apenas por efeito transformar em encadeamentos mecâni­
cos de actos obrigatórios as improvisações ao mesmo tempo automáticas e
controladas, aventurosas e necessárias, das estratégias quotidianas que de­
vem a sua infinita complexidade ao facto de o cálculo inconfessado do doador
dever contar com o cálculo inconfessado do donatário e, portanto, satisfazer
as suas exigências com o ar de quem as ignora. Faz também desaparecer, na
mesma operação, as condições de possibilidade do desconhecimento institucio­
nalmente organizado egarantido que está no princípio da troca de dons, e talvez
de todo o trabalho simbólico que visa transmutar, pela comunicação e a coo­
peração, as relações inevitáveislmpostas pelo parentesco, a vizinhança ou o
trabalho, em relações electivas de reciprocidade. No trabalho de reprodução
das relações estabelecidas — festas, cerimônias, trocas de dons, de visitas ou de
cortesias e sobretudo casamentos —-, que não é menos indispensável à exis­
tência do grupo que a reprodução dos fundamentos econômicos da sua exis­
tência, o trabalho necessário para dissimular a função das trocas entra numa
medida que não é menos importante que o trabalho exigido pelo preenchi­
mento da função.2 Se é verdade que o intervalo de tempo interposto é o que
permite ao dom ou ao contra dom aparecer como um acto inaugural de generosi­
dade, sem passado nem porvir, quer dizer, sem cálculo, vemos que, reduzindo o

1 Sobre a crença como má-fé individual alimentada e sustentada pela má-fé colectiva, ver
P. Bourdieu, "Genèse et structure du champ religieux", loc. cit., p. 318.
- Para nos convencermos de que assim é basta que evoquemos a tradição graças à qual a
profissão médica alimenta a relação de "confratemidade" e que, excluindo o pagamento
de honorários entre médicos, obriga a procurar, em cada caso, em intenção de um confra­
de cujos gostos e necessidades não se conhecem um presente que, além disso, não fique
nem muito acima nem muito abaixo do preço da consulta, mas sem excessiva precisão,
evidentemente, porque isso equivalería a declarar o preço da consulta e a denunciar no
mesmo acto a ficção interessada da gratuitídade.

237
238 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

politético ao monotético, o objectivismo aniquila a verdade de todas as práti­


cas que, como a troca de dons, tendem a ou pretendem suspender por um
tempo o exercício da lei do interesse. Porque dissimula, desdobrando-a no
tempo, a transacção que o contrato racional encerra no instante, a troca de
dons é o único modo de circulação dos bens a ser, senão praticado, pelo me­
nos plenamente reconhecido em sociedades que, nos termos de Lukács, ne­
gam "o verdadeiro solo da sua vida" e que, como se não quisessem e não pu­
dessem conferir às realidades econômicas o seu sentido puramente econômi­
co, têm uma economia em si e não para si. Tudo se passa, com efeito, como se o
que é próprio da economia "arcaica" residisse no facto de a acção econômica
não poder reconhecer explicitamente os fins econômicos por referência aos
quais é objectivamente orientada. Assim, "a idolatria da natureza" que proí­
be a constituição da natureza como matéria-prima e no mesmo acto a consti­
tuição da acção humana como trabalho, quer dizer como luta agressiva do ho­
mem contra a natureza exterior, e a acentuação sistemática do aspecto simbó­
lico dos actos e das relações de produção tendem a impedir a constituição da
economia enquanto tal, ou seja, enquanto sistema regido pelas leis do cálculo
interessado, da concorrência ou da exploração.
O efeito de reificação da teoria que estava na raiz do juridicismo encon­
tra-se também no princípio do economicismo, pois, na medida em que reduz
a economia à sua verdade objectiva, não pode deixar de aniquilar a sua espe­
cificidade, que reside precisamente no desfasamento socialmente alimentado
entre a verdade objectiva conhecida-desconhecida ou, se se quiser, social­
mente recalcada, da actividade econômica e a representação social da produ­
ção e da troca. Não é por acaso que o léxico da economia arcaica é inteiramen­
te feito dessas noções de dupla face que a própria história da economia vota à
dissociação porque, em razão da sua dualidade, as relações sociais que desig­
na representam outras tantas estruturas instáveis, condenadas a desdobra­
rem-se a partir do momento em que os mecanismos que visam sustentá-las se
tornam mais fracos. Assim, para tomarmos um exemplo extremo, a rahnia, —
contrato de anticrese por meio do qual o que contrai o empréstimo cede ao
que o concede o usufruto de uma terra até à data do reembolso e que é consi­
derada a forma mais odiosa da usura quando conduz ao desapossamento —
não é separada senão pela qualidade social das relação entre as partes, e no
mesmo acto pelas modalidades da convenção, da assistência concedida a um
parente em aflição para evitar que ele tenha de vender uma terra que, ainda
quando o uso é deixado ao seu proprietário, constitui uma espécie de penhor?
"Foram justamente os Romanos e os Gregos, escreve Mauss, que, talvez na es­
teira dos Semitas do Norte e do Oeste, inventaram a distinção entre os direitos

3 "Salvaste-me da venda", diz-se em semelhante caso ao provisor de fundos que, por uma
espécie de venda fictícia (dá o dinheiro ao mesmo tempo que deixa ao proprietário o gozo
do seu bem), evita que a terra caia em mãos estranhas.
O CAPITAL SIMBÓLICO 239

pessoais e os direitos reais, separaram a venda do dom e da troca, isolaram a


obrigação moral e o contrato, e sobretudo conceberam a diferença que há en­
tre ritos, direitos e interesses. Foram também eles que, através de uma verda­
deira, grande e venerável revolução, deixaram para trás essa moralidade en­
velhecida e essa economia do dom demasiado aventurosa, demasiado dis­
pendiosa e demasiado sumptuária, tolhida por considerações relativas às
pessoas, incompatível com um desenvolvimento do mercado, do comércio e
da produção, e no fundo, na época, anti econômica".4 As situações históricas
nas quais se opera a dissociação que conduz das estruturas instáveis, artifi­
cialmente mantidas, da economia da boa-fé às estruturas claras e econômicas
(por oposição a dispendiosas) da economia do interesse sem máscara
permitem ver o que custa fazer funcionar uma economia que, recusando reco-
nhecer-se e a declarar-se como tal, se condena a despender mais ou menos
tanto engenho e energia para dissimular a verdade dos actos econômicos
como para os realizar: a generalização das trocas monetárias que desvela os
mecanismos objectives da economia traz no mesmo acto à luz do dia os meca­
nismos institucionais, próprios da economia arcaica, que têm por função li­
mitar e dissimular o jogo do interesse e do cálculo econômicos (no sentido res­
trito). Assim, por exemplo, um pedreiro reputado, que aprendera o seu ofício
em França, deu escândalo, por volta de 1955, ao voltar para casa, terminado o
trabalho, sem tomar a refeição tradicional oferecida em sua honra por altura
da construção das casas, e*pedindo, além do preço da sua jornada de trabalho
(1.000 francos), uma compensação de 200 francos, equivalente ao preço da re­
feição. De facto, reclamar em nwêda esse equivalente era operar uma inver­
são sacrílega da fórmula através da qual a alquimia simbólica visava transfi­
gurar o preço do trabalho em dom gracioso, desvelando assim o procedimen­
to mais constantemente usado para salvar as aparências por meio de um fa-
zer-de-conta colectivamente concertado. Enquanto acto de troca por meio do
qual se selam as alianças ("ponho entre nós o pão e o sal"), a refeição final, por
altura da thiwizi da colheita ou da construção de uma casa, estava predisposta
a desempenhar o papel de um rito de encerramento destinado a transfigurar re­
trospectivamente uma transacção interessada em troca generosa (à maneira
dos dons que vêm coroar o desfecho das negociações).5 Ao mesmo tempo que
se concedia a maior indulgência aos subterfúgios que alguns usavam para
minimizar as despesas acarretadas pela refeição que assinala o fim da thiwizi
(ou seja, por exemplo, o convite limitado apenas aos "notáveis" de cada

4 M. Mauss, "Essai sur le don", em Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1950, p. 239. Ahis-
tória do vocabulário indo-europeu tal como a restitui Émile Benvenisteé, eo ipso, uma his­
tória do processo de divisão e de separação, em suma, do trabalho histórico de abstracção
por meio do qual se constituem as noções fundamentais da economia e do direito dos in­
teresses (cf. É. Benveniste, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes, Paris, Éditions
de Minuit, 1969).
240 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

grupo, ou a um homem por família), o que constitui uma infracção desses


princípios em que se exprimia ainda o reconhecimento da legitimidade dos
princípios, não podia deixar de se sentir como um escândalo ou uma provo­
cação a pretensão daquele que, proclamando a convertibilidade da refeição
em moeda, traía o melhor e o mais mal guardado dos segredos, uma vez que
toda a gente deve guardá-lo, e que violava a lei do silêncio assegurando à eco­
nomia da boa-fé a cumplicidade da má-fé colectiva.
Aeconomia da boa-fé traduz essa estranha encarnação do homo economicus
que é o bu niya (ou bab niya), o homem da boa-fé (niya ou thi'ugganth, de
a'ggun, a criança que ainda não fala, por oposição a thahraymith, a inteligência
calculadora e técnica), que não pensaria sequer em vender a outro camponês
certos produtos de consumo imediato (leite, manteiga e queijo, legumes e fru­
tos), sempre distribuídos pelos amigos e pelos vizinhos, que não pratica qual­
quer troca fazendo intervir a moeda e que só estabelece relações assentes na
confiança inteira e, ao contrário do negociante de gado, ignora as garantias
que acompanham as transacções mercantis, testemunhos, sinais, documen­
tos escritos. A lei geral das trocas faz com que as convenções sejam tanto mais
fáceis de instaurar (e, portanto, tanto mais frequentes) e mais completamente
abandonadas à boa-fé quanto mais próximos em termos genealógicos são os
indivíduos ou os grupos que unem; inversamente, à medida que a relação se
torna mais impessoal, quer dizer, passa da relação entre irmãos à relação en­
tre esses quase estrangeiros que são os habitantes de duas aldeias, ou mesmo
entre estrangeiros, a transacção tem menos probabilidades de se estabelecer,
mas pode tomar-se e torna-se cada vez mais puramente "econômica", ou seja,
cada vez mais em conformidade com a sua verdade econômica, e o cálculo in­
teressado que nunca está ausente nem sequer da troca mais generosa, transac­
ção em que as duas partes obtêm a sua conta, e, portanto, contam, pode reve­
lar-se cada vez mais abertamente. Assim se explica, por exemplo, que a reti­
cência suscitada pelo recurso a garantias formais cresça à medida que decres-
ce a distância social entre as partes e à medida que as garantias invocadas são
mais solenes, porque as autoridades encarregadas de as autenticarem e de as
imporem são mais distantes e mais influentes, do simples papel de letrado
não especializado na produção de documentos escritos ao contrato feito
Ov

5 O carácter sagrado da refeição exprime-se nas fórmulas usadas para a prestação de jura­
mento: "Pelo alimento e pelo sal que aqui estão" ou "pelo alimento e pelo sal que parti­
lhámos". O pacto selado pela comensalidade tornar-se-ia maldição para quem o traísse:
"Não o amaldiçoo, amaldiçoam-no o cozido e o sal." Para convidar um hóspede a ser­
vir-se de novo, diz-se: "É inútil jurares, é este alimento que o faz (por ti)"; " [o alimento]
pedir-te-á contas, compensações (se o deixares)". A refeição comum é também uma ceri­
mônia de reconciliação que acarreta o abandono da vingança. Do mesmo modo, a oferen­
da de alimentos a um santo protector ou ao antepassado do grupo reveste o sentido de
um contrato de aliança. A thiwizi não se concebe sem a refeição final e, por isso, as mais
das vezes só reúne de facto as pessoas do mesmo adrum ou da mesma thakharubth.
O CAPITAL SIMBÓLICO 241

diante de um taleb, fornecendo uma garantia religiosa mas não jurídica (dele
se diz que não pode ser "registado") e menos solene quando é estabelecido
pelo taleb da aldeia do que quando o é por um taleb reputado, ao escrito do cadi
e por fim ao documento redigido por um notário): não se pode sem ofensa
pretender autenticar uma transacção entre pessoas de confiança e a fortiori en­
tre parentes perante um notário, um cadi ou até mesmo testemunhas. Do mes­
mo modo, a parte do prejuízo que os parceiros aceitam assumir quando acon­
tece um acidente a um animal pode variar de todo em todo segundo a aprecia­
ção das responsabilidades que são levados a fazer em função da relação que
os une, devendo aquele que confiou um animal a um parente muito próximo
minimizar a responsabilidade do seu parceiro. Era por meio de um contrato
em boa e devida forma celebrado diante do cadi ou perante testemunhas que
os Cabilas confiavam os seus bois à guarda dos nômadas do Sul, para uma,
duas ou três épocas de trabalho (de Outono a Outono) contra vinte e dois du­
plos decalitres de cevada por boi e por ano, com partilha dos prejuízos em
caso de perda e dos lucros em caso de venda. As transacções amigáveis entre
parentes e aliados estão para as transacções do mercado como a guerra ritual
para a guerra total. Opõem-se tradicionalmente "os gêneros ou os animais de
fellá" e "os gêneros ou os animais do mercado" e todos os velhos informado­
res falam interminavelmente quando se evocam as astúcias e ardis que são re­
comendáveis na guerra dos "grandes mercados" (sendo os mais frequente­
mente citados pelos informadores cabilas os de Bordj bou Arrirdj, Akbou,
Sidi Aích, Bouira e Casa Quadrada e, para os animais de carga em particular,
Kroubs e Souk Aras), quer dizer, nas trocas com desconhecidos. São sempre
histórias de muares que fogem assim que chegam a casa do novo comprador,
de bois esfregados com uma planta que os faz inchar (adriis)—e que, a esse tí­
tulo, intervém muitas vezes nos ritos de fecundidade — a fim de os fazer pa­
recer mais gordos, de compradores que se concertam para propor um preço
muito baixo e obrigarem assim a vender. Àxmcarnação da guerra econômica é
o alquilador, o homem sem fé nem lei e evita-se comprar-lhe animais do mes­
mo modo que a qualquer outra pessoa totalmente desconhecida. Como indi­
cava um informador, para bens sem equívoco, como as terras, é a escolha da
coisa comprada que governa a do comprador; para bens equívocos, como os
animais de carga, sobretudo muares, é a escolha do vendedor que decide e as
pessoas esforçam-se pelo menos por substituir uma relação personalizada
("da parte de") por uma outra completamente impessoal e anônima. Podem
encontrar-se toda a espécie de passagens: desde a transacção baseada na des­
confiança total, tal como a que se estabelece entre o camponês e o alquilador,
incapaz de exigir e de obter garantias porque incapaz de garantir a qualidade
do seu produto e de encontrar garantes, à troca de honra que pode ignorar as
condições e assentar apenas na boa-fé dos "contraentes". Mas, na grande ma­
ioria das transacções, as noções de comprador e de vendedor tendem a dissol­
ver-se na rede dos intermediários e dos garantes que visam transformar a
242 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

relação puramente econômica entre a oferta e a procura numa outra genealo-


gicamente fundada e garantida. O próprio casamento não constitui excepção,
estabelecendo-se, para não falarmos já do casamento com a prima paralela,
quase sempre entre famílias já unidas por toda uma rede de trocas anteriores,
verdadeira caução da convenção particular. É significativo que, na primeira
fase das negociações muito complexas que conduzem à conclusão do casa­
mento, as duas famílias façam intervir, a título de "garantes", parentes ou ali­
ados de grande prestígio, constituindo o capital simbólico assim exibido, ao
mesmo tempo, uma arma na negociação e uma garantia do acordo concluído.
Da mesma maneira, os discursos indignados suscitados pelos compor­
tamentos heréticos dos camponeses desruralizados chamam a atenção para
os mecanismos que inclinavam o camponês a manter uma relação encantada
com a terra e o proibiam de descobrir a sua pena como um trabalho: "E um sa­
crilégio, profanaram a terra; aboliram o medo (elhiba). Nada os assusta, nada
os detém, conduzem tudo mal. Tenho a certeza de que acabarão por lavrar
durante lakhrif(a estação dos figos, transição entre o Verão e o Outono), se es­
tiverem demasiado apressados e contarem consagrar o lahal (período lícito
das lavras, no começo do Outono) a outras ocupações ou durante a rbi' (a Pri­
mavera), se tiverem sido demasiado preguiçosos durante o lahal. Tudo lhes é
indiferente."
Os ritos profilácticos a que dão lugar as lavras (ou a tecelagem, seu ho­
mólogo feminino) e a colheita preenchem, com efeito, uma função de dissi­
mulação da verdade objectiva da prática e estão para a produção, pelo menos
sob este aspecto, como as subtilezas da troca de dons para à tirculação. Tudo
se passa, na verdade, como se os ritos colectivos mais solenes (sacrifício colec-
tivo do início das lavras, ritos da colheita) tivessem por função mascarar a
contradição que a divisão operada pelos esquemas da visão mítico-ritual do
mundo faz surgir e autorizar a comcidentia oppositorum, o encontro das coac-
ções que a diacrisis originária separou: numa palavra, o rito deve reunir aquilo
que o mito dividiu. Os grandes momentos do ano agrícola, esses que Marx
designa como períodos de trabalho, são marcados por ritos profilácticos, que
se opõem pela sua gravidade,Ja sua solenidade, a sua imperatividade, aos ri­
tos propiciatórios dos períodos de produção (isto é, do Inverno e da Primave­
ra), cuja única função é de certo modo assistir magicamente a natureza em tra­
balho.6 Deixada a si própria, a natureza vai para a esquerda, no sentido do
pousio e da esterilidade, e, à maneira da mulher, retorcida e maligna, só pode
produzir as suas coisas boas se for submetida à violência fecundadora do ho­
mem, aberta, forçada, domada, corrigida, emendada, podada. A lavra e a co­
lheita, na medida em que pertencem à classe das operações de acoplamento

6 K. Marx, Le Capital, II, segunda secção, Cap. VII, "Temps de travail et temps de producti­
on", Paris, Gallimard, "Bibliothèque de la Pléiade", T. II, p. 655.
O CAPITAL SIMBÓLICO 243

(da relha e da terra — lavra —, do fogo e da água—têmpera do ferro — e dos


sexos — casamento) e de corte (do trigo, da tecelagem, da goela do boi sacrifi­
cado), são actos objectivamente rituais que devem ser transfigurados por
operações rituais, mas intencionais e controladas: os ritos que acompanham
as lavras ou o casamento têm por função dissimular e tornar lícita a colisão
inevitável dos dois princípios opostos operada pela acção do camponês, coa­
gido a forçar a natureza, a violá-la e a violentá-la, pondo em acção instrumen­
tos temíveis em si próprios, porque produzidos pelo ferreiro, senhor do fogo,
a relha, a faca, a foice e o tear; quanto ao rito por meio do qual o dono do cam­
po simula a degolação do último molho de espigas, só pode compreender-se
como a transfiguração do assassínio inevitável em sacrifício inscrito no ciclo
das estações e, portanto, abolido pela certeza do eterno renascer. E toda a prá­
tica do camponês actualiza, de um outro modo, a intenção objectiva revelada
pela análise do ritual. Nunca tratada como matéria-prima que se procuraria
explorar, a terra é objecto de um respeito mesclado de temor (elhiba): saberá,
diz-se, "exigir contas" e obter reparação dos maus tratos que lhe inflige o
camponês precipitado ou desastrado. O agricultor consumado "apresen­
ta-se" à terra com a atitude que convém assumir perante um parente respeita­
do. Não poderá delegar o cuidado de conduzir a junta de bois durante a lavra
e apenas deixa aos "clientes" (ichikrari) o cuidado de sachar a terra depois da
passagem do arado: "Os velhos diziam que era preciso ser senhor da terra
para lavrar como deve ser. Os jovens eram excluídos: seria injuriar a terra
'apresentar-lhe' (qabel) homens que não nos atreveriamos a apresentar a ou­
tros homens." "É aquele que enfrenta (recebe) os homens, diz o provérbio,
que deve enfrentar a terra." O camponês não faz um trabalho propriamente
dito, esforça-se, segundo a oposição estabelecida por Hesíodo entre ponos e
ergon. "Dá à terra e ela te dará a ti", diz o provérbio. Podemos entender assim
que a natureza, obedecendo à lógica da troca de dons, só concede os seus be­
nefícios (a que poderiamos chamar as suas boas obras) àqueles que lhe dão o
seu esforço como tributo. E o comportamento desses heréticos que deixam a
jovens o cuidado "de abrir a terra e de nela enterrarem a riqueza do novo ano"
leva os anciãos a exprimirem o princípio da relação entre o homem e a terra
que podia permanecer informulado enquanto era óbvio: "A terra já não dá
porque não lhe damos nada. Faz-se abertamente pouco da terra e é justo que
ela em contrapartida nos pague também com mentiras." O homem que se res­
peita deve estar sempre ocupado com alguma coisa e, se não descobre nada
que fazer, "talhe pelo menos a sua colher". Tanto como um imperativo econô­
mico, a actividade é um dever da vida colectiva. O que é valorizado é a activi-
dade em si própria, independentemente da sua função propriamente econô­
mica, na medida em que aparece como em conformidade com a função pró­
pria daquele que a efectua.7 Só a aplicação de categorias estranhas à experiên­
cia do camponês (as que a dominação econômica e a generalização das trocas
monetárias impuseram) faz surgir a distinção entre o aspecto técnico e o
244 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

aspecto simbólico ou ritual da actividade agrícola, ou ainda entre o trabalho


produtivo e o não produtivo. Realizadas no interior de um ciclo cósmico que
escandem, as tarefas agrícolas, horia érga, como diziam os Gregos, impõem-se
com o rigor dos deveres tradicionais, ao mesmo título que as acções rituais
que delas são inseparáveis. Preencher a sua tarefa de homem é para cada um
conformar-se com a ordem social, quer dizer, fundamentalmente respeitar os
seus ritmos, seguir a medida, não andar a contra tempo. "Não nos alimenta­
mos todos à mesma hora?" "Não fazemos os mesmos actos às mesmas horas e
os mesmos trabalhos nas mesmas épocas?" Estas diferentes maneiras de rea­
firmar a solidariedade contêm uma definição implícita da virtude fundamen­
tal, a saber, a conformidade cujo reverso é a vontade de singularização. Traba­
lhar quando os outros descansam, ficar em casa quando os outros estão a tra­
balhar nos campos, ir pelas estradas quando estão desertas, vaguear pelas
ruas da aldeia quando todos dormem ou estão no mercado, eis outros tantos
comportamentos suspeitos. Chama-se amkhalef (de khalef, singularizar-se,
contrariar) ao original que não faz coisa alguma como os outros, e faz-se no­
tar, jogando com as raízes das palavras, que amkhalef é também aquele que se
atrasa (de khelef, deixar para trás). Observar os ritmos colectivos é estar em
conformidade com a ordem do mundo, "Zên katà phüsin, viver em conformi­
dade com a natureza", quer dizer, a natureza ritmada pelo costume, com a sua
alternância de tempos fracos e de tempos fortes, de trabalhos quotidianos e
de festas.
Sendo ignorada a distinção entre o trabalho produtivo e o improdutivo
ou entre o rentável e o não rentável, a economia arcaica não conhece senão a
oposição entre o preguiçoso que falta ao seu dever social e o trabalhador que
efectua a sua função própria, socialmente definida, seja qual for o produto do
seu esforço. Tudo concorre para mascarar a relação entre o trabalho e o seu
produto. Assim a oposição estabelecida por Marx entre o tempo de trabalho
propriamente dito — isto é, o período consagrado às lavras e à colheita — e o
tempo de produção — ou seja, os cerca de nove meses que separam as sementei­
ras da colheita e durante os quais o trabalho realmente produtivo é mais ou

7 Condenam-se os indivíduos desprovidos de utilidade para a sua família e para o grupo,


esses "mortos que Deus tirou dos vivos", como diz um versículo do Corão muitas vezes
citado a seu propósito, e que são também incapazes de "provocar a chuva ou o bom tem­
po". Permanecer ocioso, sobretudo para quem pertence a uma grande família, é esqui-
var-se aos deveres e às tarefas que são inseparáveis da pertença ao grupo. Assim, põe-se
pressa em reintroduzir no ciclo dos trabalhos e no circuito das trocas de serviços aquele
que permaneceu durante um certo tempo à margem da actividade agrícola, caso do
ex-emigrado ou do convalescente. Tendo o direito de exigir de cada um que se ocupe, por
improdutiva que a ocupação seja, o grupo tem o dever de assegurar a todos uma ocupa­
ção, ainda que puramente simbólica: o camponês que proporciona aos ociosos ocasião de
trabalhar nas suas terras recebe a aprovação de todos porque oferece a esses indivíduos
marginais a possibilidade de se integrarem no grupo preenchendo a sua tarefa de ho­
mens.
O CAPITAL SIMBÓLICO 245

menos inexistente — encontra-se praticamente dissimulada pela continuida­


de aparente conferida à actividade agrícola pelos inumeráveis pequenos tra­
balhos destinados a assistir a natureza, actos indissociavelmente técnicos e ri­
tuais, dos quais ninguém pensaria em avaliar a eficácia técnica ou o rendi­
mento econômico, e que eram como que a arte pela arte do camponês: veda­
ção dos campos, limpeza das árvores, protecção dos rebentos novos contra os
animais ou "visita" (asafqadh) e vigilância dos campos, sem falarmos já das
práticas consideradas habitualmente na ordem dos ritos, como os actos de ex­
pulsão ou de transferência do mal (assifedti) ou os de inauguração da Prima­
vera. Do mesmo modo, ninguém pensaria em interrogar-se sobre a rentabili­
dade de todas as actividades que a aplicação de categorias estranhas levaria a
considerar improdutivas, como as funções que o chefe de família preenche
enquanto representante e responsável do grupo. "Se o camponês contasse",
diz o provérbio, "não semearia." Talvez devamos por isto entender que a rela­
ção entre o trabalho e o seu produto não é verdadeiramente ignorada mas so­
cialmente recalcada, que a produtividade do trabalho é tão fraca que o campo­
nês deve evitar contar o seu tempo para conservar um sentido para o seu tra­
balho, ou, o que só na aparência é contraditório, que nada pode fazer de me­
lhor ou de diferente num universo em que a raridade do tempo é tão fraca e
tão grande a raridade dos bens despender o seu tempo sem contar, desperdi­
çar tempo, a única coisa que existe com abundância.8
Assim, do mesmo modo que a oposição entre o tempo de trabalho pro­
priamente dito e o tempo de produção, princípio de estruturação de toda a ac­
tividade técnica e ritual (e, por isso, de toda a visão do mundo), se achava de
certo modo socialmente recalcada, assim também ninguém pensaria em distin­
guir entre as actividades "técnicas", economicamente rentáveis, e as pura­
mente "simbólicas" que o chefe de família efectuava, enquanto representante
do grupo: organização dos trabalhos, deliberação na assembléia dos homens,
discussões no mercado, leituras na mesquita.
Em suma, a verdade da produção não parece menos recalcada que a da
circulação e o "esforço" está para o trabalho como o dom para o comércio, essa
actividade para a qual, como observa Émile Benveniste, as línguas indo-euro-
peias não tinham nome. Assim, a descoberta do trabalho supõe a constituição
do solo comum da produção, quer dizer, o desencantamento de um mundo

8 Não deixando o preço do tempo de crescer à medida que aumenta a produtividade (quer
dizer, ao mesmo tempo, a abundância dos bens oferecidos ao consumo e o poder de com­
pra, e, portanto, o consumo, que também toma tempo), ele torna-se o gênero mais raro, ao
passo que diminui a raridade dos bens, podendo até acontecer que o desperdício dos
bens seja a única maneira de economizar um tempo mais precioso que os produtos que
permitiría economizar — através do trabalho de manutenção, de reparação, etc. (cf. G. S.
Becker, "A Theory of the Allocation of Time", The Economic Journal, n.° 299, Vol. LXXV, Se­
tembro de 1965, pp. 493-517). Tal é sem dúvida o fundamento objective da oposição, mui­
tas vezes descrita, que se observa nas atitudes a respeito do tempo (cf. Anexos).
246 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

natural doravante reduzido à sua simples dimensão econômica, e, deixando


de ser o tributo pago a uma ordem necessária, a actividade pode orientar-se
para um fim exclusivamente econômico, esse mesmo que a moeda, doravan­
te medida de todas as coisas, designa com toda a clareza. Acaba-se a partir de
então a indiferenciação original, que permitia os jogos da fé, da boa-fé e da
má-fé individuais e colectivas, e, avaliadas pela medida sem ambiguidade do
lucro monetário, as actividades mais sagradas passam a ser negativamente
constituídas como simbólicas, ou seja, num dos sentidos que o termo assume
por vezes, como desprovidas de efeito concreto e material, em suma, gratui­
tas, isto é, desinteressadas mas também inúteis.
Os que aplicam as categorias e os métodos da contabilidade econômica
a economias arcaicas sem levarem em conta a transmutação ontológica que
assim fazem sofrer o seu objecto não são sem dúvida hoje os únicos a tratar tal
tipo de economia "como os padres da Igreja tratavam as religiões que tinham
precedido o cristianismo". Na verdade, as palavras de Marx aplicam-se tam­
bém àqueles dentre os marxistas que tendem a encerrar a investigação sobre
as formações a que chamam "pré-capitalistas" numa discussão escolástica
sobre a tipologia dos modos de produção. A raiz comum de semelhante etno-
centrismo não é mais que a tomada de empréstimo inconsciente de uma defi­
nição restrita do interesse econômico, a qual, na sua forma acabada, é produto
histórico do capitalismo: a constituição de domínios relativamente autôno­
mos da prática é acompanhada, com efeito, por um processo no termo do qual
os interesses simbólicos (muitas vezes descritos como "espirituais" ou "cul­
turais") se constituem contra os interesses propriamente econômicos tal
como se definem no terreno das transacções econômicas pela tautologia ori­
ginária "negócios são negócios"; o interesse propriamente "cultural" ou "es­
tético" é, como interesse desinteressado, o produto paradoxal do trabalho
ideológico no qual os escritores e os artistas, primeiros interessados, toma­
ram uma parte importante e em cujo termo os interesses simbólicos se auto-
nomizam opondo-se aos materiais, quer dizer, anulando-se simbolicamente
como interesses. Porque não conhece outro interesse senão o que o capitalis­
mo produziu por meio de uma espécie de operação real de abstracção, instau­
rando um universo de relações entre o homem e o homem baseadas, como diz
Marx, no "frio pagamento em dinheiro", o economicismo não pode integrar
nas suas análises, e menos ainda nos seus cálculos, o interesse propriamente
simbólico que por vezes alguns só reconhecem (quando entra demasiado ma­
nifestamente em conflito, como em certas formas de nacionalismo ou de regio­
nalismo, com o "interesse" no sentido restrito) para o reduzirem à irracionali­
dade do sentimento ou da paixão. De facto, num universo que se caracteriza
pela convertibilidade mais ou menos perfeita do capital econômico (em senti­
do restrito) e do capital simbólico, o cálculo econômico que orienta as estratégias
dos agentes leva indissociavelmente em conta os ganhos e as perdas que a defi-
i nição restrita da economia repele inconscientemente para o impensável e para o
O CAPITAL SIMBÓLICO 247

inominável, quer dizer, para a irracionalidade econômica. Em suma, contraria­


mente às representações ingenuamente idílicas das sociedades "pré-capita-
listas" (ou da esfera "cultural" das sociedades capitalistas), as práticas não
param de obedecer ao cálculo econômico, ainda quando dão todas as aparên­
cias do desinteresse, porque escapam à lógica do cálculo interessado (no sen­
tido restrito) e porque se orientam em função de paradas-em-jogo não materi­
ais e dificilmente quantificáveis.
O mesmo é dizer que a teoria das práticas propriamente econômicas
não é mais do que um caso particular de uma teoria geral da economia das
práticas. Não podemos escapar, com efeito, às ingenuidades etnocêntricas do
economicismo sem cairmos na exaltação populista da ingenuidade generosa
das origens a não ser na condição de fazermos até ao fim o que ele só faz até
meio, alargando a todos os bens, materiais ou simbólicos, sem distinção, que
se apresentam como raros e dignos de serem procurados numa formação so­
cial determinada — ainda que tais bens sejam "boas palavras" ou sorrisos,
apertos de mão ou dares de ombros, cumprimentos ou atenções, desafios ou
injúrias, honra ou honras, poderes ou prazeres, "rumores" ou informações ci­
entíficas, distinção ou distinções, etc. —, o cálculo econômico que só pôde
apropriar-se do terreno objectivamente entregue à lógica implacável do "in­
teresse completamente nu", como diz Marx, abandonando uma ilhota sagra­
da, miraculosamente poupada pela "água gelada do cálculo egoísta", asilo do
que não tem preço, por excesso ou por defeito. Contudo, a contabilidade das
trocas simbólicas arriscar-se-ia ela própria a conduzir a uma representação
distorcida da economia arcaica se esquecéssemos que, sendo produto da apli­
cação de um princípio de diferenciação estranho ao universo a íjue se aplica, a
saber, a distinção entre o capital econômico e o capital simbólico, não pode
apreender a indiferenciação entre um e outro a não ser sob a forma da sua con-
vertibilidade perfeita. Do mesmo modo que a constituição da arte enquanto
arte, que é correlativa do desenvolvimento de um campo artístico relativa­
mente autônomo, não autoriza a pensar como estéticas certas práticas primi­
tivas ou populares excepto expondo-as a todos os erros etnocêntricos aos
quais nos condenamos quando esquecemos que elas não podem pensar-se
enquanto tais, assim também toda a objectivação parcial ou total da economia
arcaica que não inclua uma teoria do efeito de reificação da teoria e das condições
sociais de possibilidade da apreensão objectiva e, correlativamente, uma teo­
ria da relação dessa economia com a sua verdade objectiva, como relação de
conhecimento-desconhecimento, sucumbe à forma mais subtil e mais impe­
cável do etnocentrismo.
Na sua definição completa, o patrimônio da família ou da linhagem
compreende não só a terra e os instrumentos de produção, mas também a pa-
rentela e a clientela, a nasba, rede de alianças ou, mais amplamente, de rela­
ções, que se trata de conservar intactas e de alimentar regularmente, herança
de compromissos e de dívidas de honra, capital social de relações, implicando
248 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

direitos e deveres, que, acumulado ao longo das gerações sucessivas, é uma


força de apoio susceptível de ser mobilizada quando situações fora do co­
mum vêm interromper a rotina quotidiana. De facto, por grande que seja o
seu poder de regular a rotina da ordem comum pela estereotipização ritual e
de reduzir a crise, produzindo-a simbolicamente ou ritualizando-a, assim
que sobrevêm, a economia arcaica não ignora a oposição entre as ocasiões co­
muns e as fora do comum, entre as necessidades regulares, susceptíveis de se­
rem satisfeitas pela comunidade doméstica, e as excepcionais, tanto materiais
como simbólicas, de bens e de serviços, suscitadas pelas circunstâncias de ex-
cepção, crise econômica ou conflito político ou, mais simplesmente, urgência
do trabalho agrícola, e que exigem a assistência benévola de um grupo mais
alargado. Se assim é, é porque, com efeito, ao contrário do que sugere Max
Weber quando opõe grosseiramente o tipo tradicionalista ao tipo carismático,
a economia arcaica comporta a descontinuidade não só na ordem política,
com os conflitos que, a partir de um incidente, podem dilatar-se em guerra de
tribos através do jogo das "ligas", mas também, de outro modo, no domínio
econômico, com a oposição entre tempo de trabalho, particularmente breve na
cerealicultura tradicional, e o tempo de produção, princípio de uma das contra­
dições fundamentais dessa formação social e, por consequência, das estraté­
gias com vista à sua resolução.
É uma variante desta contradição a que exprime o ditado: "Quando o
ano é mau, há sempre barrigas de mais, quando é bom, há sempre braços de
menos." A análise do calendário dos trabalhos agrícolas, do dos afolhamen-
tos e do calendário de presença do pessoal de uma exploração média da Cabí-
lia põe em evidência a existência dos tempos fortes e dos tempos fracos do
ano agrário. Durante os dois grandes períodos de trabalho, a colheita de Ju-
nho-Julho e as lavras de Novembro-Dezembro, todo o pessoal masculino é
mobilizado; as lavras ocupam os dois homens da família durante uma vinte­
na de dias, oito dias nas suas próprias terras com a ajuda do seu "associado
das lavras" (quando a exploração não comporta senão um boi, constitui-se
uma junta com o do sócio), oito dias nas do sócio e, durante três ou quatro
dias, enfim, a exploração recebe os serviços de um vizinho em troca de uma
prestação equivalente nas terras deste último. Para a colheita, as mulheres e
as crianças juntam-se—mas apenas para o transporte das espigas, movimen­
to dos campos em direcção a casa — aos homens. Durante um mês inteiro, é
toda a aldeia que, através da troca ou do dom de serviços, participa num tra­
balho intensivo, e a debulha que se segue é feita com o concurso de um paren­
te, possuidor de um boi (e nunca com o associado da lavra). Depois da colhei­
ta e da debulha, a actividade afrouxa e um dos homens emigra até ao momen­
to das lavras. Observa-se uma quebra muito acentuada em Fevereiro-Março,
durante a qual os dois homens vão trabalhar para a cidade, pelo que o mais
novo, que partiu em Janeiro só regressa no começo de Maio — a emigração li­
mita-se a revelar os tempos mortos da actividade masculina, durante os
O CAPITAL SIMBÓLICO 249

quais, numa época mais antiga ou ainda na época da observação (isto é, 1960,
quer dizer, antes da descoberta da rentabilidade do trabalho), em certas famí­
lias particularmente apegadas às tradições, os homens ocupavam-se. Durante
todo o Inverno e a Primavera, os trabalhos de recolecção, de manutenção de
jardinagem são assegurados em grande parte pela mulher e pelos filhos e as
actividades propriamente masculinas, como os transportes de estrume, o sa­
char dos pomares, a poda das árvores, as lavras da Primavera, o corte do feno,
exigem um trabalho menos intensivo (ainda que constante) que a lavra ou a
colheita, e sobretudo não têm o mesmo carácter de urgência e o mesmo valor
social: prova-o o facto de as mulheres e as crianças a ele serem associadas se­
gundo as suas capacidades.
A estratégia que consiste em acumular o capital de honra e de prestígio
que produz a clientela tanto como é seu produto fornece a solução do proble­
ma que se poria ao grupo se este tivesse de alimentar continuamente (tempo
de produção incluído) toda a força de trabalho (humana e animal) de que ne­
cessita durante o tempo de trabalho, permitindo, com efeito, às grandes famí­
lias disporem de um máximo de força de trabalho durante o período de traba­
lho e reduzirem ao mínimo o consumo durante o tempo, incompressível, de
produção, quer se trate do consumo humano (achando-se o grupo reduzido à
unidade mínima, ou seja, à família) ou do consumo animal (é a função dos
contratos de aluguer, como a charka do boi, por meio da qual o proprietário
deixa de ter o animal a seu cargo, confiando-a a outrem sem outra condição
além de uma compensação em dinheiro ou em gêneros pela "usura do capi­
tal"); a contrapartida destas prestações pontuais e limitadas aos períodos de
urgência, como a colheita, torna-se menos pesada por ser fornecida sob a for­
ma de trabalho, mas fora do período de plena actividade, ou sob outras for­
mas (protecção, empréstimo de animais, etc.). Q
De um modo geral, tudo se passa como se o capital nunca fosse percebi­
do e tratado como tal e isso até no caso de uma transacção que, como a charka
do boi, não é concebível senão entre os mais estranhos entre si a quem cabe o
direito de celebrar contratos. No acima citado, que se estabelece sobretudo
entre membros de aldeias diferentes e que as duas partes tendem de comum
acordo a dissimular (preferindo o que contrai o empréstimo esconder a sua
falta de recursos e deixar crer que o boi é propriedade sua mediante a cumpli­
cidade daquele que o empresta, igualmente disposto a ocultar uma transac­
ção suspeita de não obedecer a um sentimento estrito de equidade), um boi é
confiado pelo seu proprietário, contra um certo número de medidas de ceva­
da ou de trigo, a um camponês demasiado pobre para o comprar; ou então um
nestas condições entende-se com outro mais endinheirado a fim de que este
compre uma junta de bois e Ihos confie por um, dois ou três anos segundo os
casos, sendo os lucros partilhados em partes iguais caso os bois sejam vendi­
dos. Onde nos sentiriamos tentados a ver um simples empréstimo, confiando
o detentor de fundos um boi mediante o pagamento de algumas medidas de
250 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

trigo, os agentes vêem uma transacção equitativa, que excluí qualquer apro­
priação de mais-valia: aquele que empresta dá a força de trabalho do animal,
mas a equidade é observada uma vez que aquele que o toma emprestado ali­
menta-o e cuida dele, como o primeiro seria obrigado a fazer, não sendo as
medidas de trigo mais que uma compensação da desvalorização acarretada
pelo envelhecimento do boi. As diferentes variantes da associação respeitan-
tes às cabras têm em comum o facto de fazerem suportar às duas partes a des­
valorização do capital inicial em função do envelhecimento. O proprietário,
uma mulher que coloca assim o seu pecúlio, confia as suas cabras por três
anos a um primo afastado, relativamente pobre, que ela sabe que alimentará e
cuidará bem dos animais. Avaliam-se as cabras e estabelece-se que o produto
(leite, lã, manteiga) será partilhado. Todas as semanas, aquele a quem as ca­
bras foram emprestadas envia por uma criança à outra parte uma cabaça de
leite. A criança não pode voltar de mãos vazias (elfal, aquilo que dá sorte ou o
esconjuro da desgraça, tem uma significação mágica pelo facto de que entre­
gar um objecto vazio, entregar o vazio, seria ameaçar a prosperidade da casa):
assim recebe fruta, azeite, azeitonas, ovos, segundo o momento. No termo do
contrato, aquele que contraiu o empréstimo entrega os animais e os produtos
obtidos são partilhados. Variante: tendo o rebanho de seis cabras sido avalia­
do em 30.000 francos, o guardador entrega 15.000, francos e metade do reba­
nho inicial, quer dizer, três cabras velhas; ou o guardador devolve a totalida­
de do rebanho, mas fica com toda a lã da tosquia. o
Assim, como vemos, um capital simbólico, queAcomo o prestígio e o re­
nome ligados a uma família e a um nome, se reconverte facilmente em capital
econômico, constitui talvez a forma mais preciosa de acumulação numa socieda­
de em que o rigor do clima (concentrando-se os grandes trabalhos, lavras e
colheita, num tempo muito breve) e, fraqueza dos meios técnicos (sendo a co­
lheita feita à foice) exigem o trabalho colectivo. Deveremos ver aqui uma for­
ma disfarçada de compra da força de trabalho ou uma extorsão clandestina
de corveias? Sem dúvida, mas na condição de mantermos conjunto na análise
aquilo que permanece conjunto no objecto, a saber, a dupla verdade de práticas
intrinsecamente equívocas e ambíguas, armadilha estendida a todos aqueles
que uma representação ingenuamente dualista das relações entre as práticas
e as ideologias, entre a economia "indígena" e a representação "indígena" da
economia, vota a desmistificações automistificadoras.9 De facto, a verdade

9 Não seria difícil mostrarmos que os debates sobre a "democracia" berbere (e, mais geral­
mente, arcaica) opõem, da mesma maneira, a ingenuidade do primeiro grau à ingenuida­
de do segundo grau, a mais perniciosa, sem dúvida, porque a satisfação inspirada pela
falsa lucidez proíbe o acesso ao conhecimento adequado que supera, conservando-as, as
duas formas de ingenuidade; a "democracia gentílica" deve a sua especificidade ao facto
de deixar no estado implícito e indiscutido (doxã) os princípios que a "democracia" libe­
ral pode e deve professar (ortodoxia) porque cessaram de governar, no estado prático, os
comportamentos.
O CAPITAL SIMBÓLICO 251

completa desta apropriação de prestações reside no facto de ela não poder efec-
tuar-se a não ser sob o disfarce da thiwizi, auxílio benévolo que é também cor-
veia, corveia benévola e auxílio forçado, e de supor, se é lícita esta metáfora
geométrica, reconduzindo uma dupla semi-rotação ao ponto de partida, ou
seja, uma conversão de capital material em capital simbólico, ele próprio re-
convertível em capital material.
A apropriação de uma clientela, mesmo herdada, supõe todo um traba­
lho, indispensável para estabelecer e alimentar as relações e também investi­
mentos importantes, tanto materiais como simbólicos — quer se trate da assis­
tência política contra as agressões, roubos, ofensas ou injúrias, quer da assis­
tência econômica, com frequência muito dispendiosa, em particular em caso
de escassez das colheitas. Investimentos em riquezas materiais, mas também
em tempo, na medida em que o valor do trabalho simbólico não pode ser defi­
nido independentemente do tempo que lhe é consagrado, constituindo o dom
do tempo ou o desperdício de tempo um dos mais preciosos.10 É claro que, nestas
condições, a acumulação de capital simbólico só pode fazer-se em detrimento
da acumulação de capital econômico. Na medida em que se acrescentava aos
obstáculos objectivos ligados à fraqueza dos meios de produção a acção dos
mecanismos sociais — que, impondo a dissimulação ou o recalcamento do
interesse econômico, tendem a fazer da acumulação de capital simbólico a
única forma reconhecida e legítima de acumulação—bastava para travar, se­
não proibir, a concentração do capital material e era sem dúvida raro que a as­
sembléia fosse obrigada a intervir expressamente para intimar alguém a "pa­
rar de enriquecer".11 Sabe-se com efeito, que a pressão colectiva— com a qual
os mais abastados devem contar porque recebem dela não só a sua autoridade
mas também, sendo esse o caso, um poder político que é função, em última
análise, da sua aptidão para mobilizar o grupo a favor ou contra indivíduos
ou grupos—impõe aos ricos não só as participações mais fortes nas trocas ce­
rimoniais (tawsa), "mas também as mais pesadas contribuições para o susten­
to dos pobres, o alojamento dos estrangeiros ou a organização das festas. A ri­
queza implica sobretudo deveres: "O generoso", diz-se, "é amigo de Deus."
Sem dúvida, a crença na justiça imanente, que governa numerosas práticas
(como o juramento colectivo), contribui para fazer da generosidade um sacri­
fício destinado a merecer em contrapartida essa bênção que é a prosperidade:
"Tem que coma aquele que usa por costume dar de comer." "Oh, meu Deus",

10 Aquele que "não sabe consagrar a outrem o tempo que lhe deve" é objecto de reprovação:
"Mal chegaste e vais-te já embora"; "Vais deixar-nos? Ainda mal nos sentámos... Não fa­
lámos sequer." E a analogia entre a relação de homem a homem e a do homem com a terra
leva a condenar aquele que se apressa inconsideradamente no seu trabalho e que, seme­
lhante ao hóspede que parte logo a seguir a ter chegado, não sabe consagrar à terra o es­
forço e o tempo, quer dizer, o respeito que lhe deve.
11 R. Maunier, Mélange de sociologie nord-africaine, Paris, Alcan, 1930, p. 68.

>!' fü G 5
252 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

diz-se também, "dá-me para que eu possa dar!". Todavia, as duas formas de
capital estão tão inextrincavelmente misturadas que a exibição da força mate­
rial e simbólica representada por aliados de prestígio é de molde a trazer por
si própria ganhos materiais numa economia da boa-fé em que uma boa repu­
tação constitui a melhor senão a única garantia econômica. Assim, compreen-
de-se que as grandes famílias não percam uma ocasião (tal é uma das razões
da sua predilecção pelos casamentos distantes e os seus vastos cortejos) de or­
ganizar essas exibições de capital simbólico (das quais o consumo ostentató-
rio é apenas o aspecto mais visível), cortejos de parentes e de aliados que sole-
nizam a partida ou o regresso do peregrino, escolta da noiva cujo valor é apre­
ciado pelo número de "espingardas" e pela intensidade das salvas dispara­
das em honra dos noivos, presentes prestigiosos, entre os quais os carneiros,
oferecidos por altura do casamento, testemunhas e garantes que podem ser
mobilizados em todos os lugares e ensejos, seja para atestar a boa-fé de uma
transacção de mercado, seja para reforçar a posição da linhagem numa nego­
ciação matrimonial e para solenizar a conclusão do contrato. Quando sabe­
mos que o capital simbólico é um crédito, mas no sentido mais amplo do ter­
mo, quer dizer, uma espécie de adiantamento que o grupo e só ele pode con­
ceder aos que lhe dêem mais garantias materiais e simbólicas, vemos que a exi­
bição desse capital (sempre muito dispendiosa no plano econômico) é um dos
mecanismos que fazem com que (sem dúvida universalmente) o capital vá
para o capital.
É, portanto, na condição de estabelecer uma contabilidade total dos lu­
cros simbólicos, tendo ao mesmo tempo no espírito a indiferenciação das
componentes simbólicas e das componentes materiais do patrimônio, que
podemos apreender a racionalidade econômica de comportamentos que o
economismo rejeita para o absurdo: por exemplo, o acto de comprar uma se­
gunda junta de bois depois da colheita, sob o pretexto de que são necessários
para a debulha—maneira de dar a entender que a ceifa foi abundante —, em­
bora se seja depois obrigado a revendê-la, à falta de forragem, antes das la­
vras de Outono, momento em que seria tecnicamente necessária, só parece
economicamente aberrante se esquecermos todos os ganhos materiais e sim­
bólicos que pode acarretar um tal aumento, ainda que tenha sido fictício e vi­
ciado, do capital simbólico da família num período, o fim do Verão, em que
são negociados os casamentos. Se tal estratégia de bluff é perfeitamente racio­
nal, é porque o casamento é ocasião de uma circulação econômica (no sentido
amplo), da qual só podemos ter uma ideia muito imperfeita quando levamos
apenas em conta os bens materiais; e é também porque os lucros que um gru­
po tem probabilidades de extrair de semelhante transacção são tanto maiores
quanto mais importante é o seu patrimônio material e sobretudo simbólico
ou, se é lícito este empréstimo contraído junto da linguagem bancária, "o cré­
dito de notoriedade" com o qual o grupo pode contar. Este crédito, que de­
pende da aptidão do ponto de honra para garantir a invulnerabilidade desta e
O CAPITAL SIMBÓLICO 253

que constitui um todo indiviso em que entram indissociavelmente a quanti­


dade e a qualidade dos bens e a quantidade e a qualidade dos homens capa­
zes de as fazer valer, é o que permite adquirir, principalmente por meio do ca­
samento, os aliados de prestígio e, portanto, a riqueza em "espingardas", que
se mede não só pelo número dos homens, mas também pela sua qualidade,
pelo seu ponto de honra, e que define a aptidão do grupo para salvaguardar a
sua terra e a sua honra, em particular, a das mulheres, quer dizer o capital de
força material e simbólica susceptível de ser efectivamente mobilizado para
as transacções do mercado, para os combates ou para o trabalho da terra.
Assim, os comportamentos de honra têm por princípio um interesse para o
qual o economicismo não tem nome e a que é de facto preciso chamar simbóli­
co, embora seja de molde a determinar acções muito directamente materiais;
do mesmo modo que noutros lugares há profissões, como a de notário ou de
médico, cujos titulares devem estar, como costuma dizer-se, "acima de toda a
suspeita", assim também aqui uma família tem um interesse vital em manter
o seu capital de honra, ou seja, o seu crédito de honorabilidade, ao abrigo das
desconfianças. E a sensibilidade exacerbada perante as mais pequenas ofen­
sas, as mais pequenas alusões (thasalqubth), explica-se, como a profusão das
estratégias destinadas a desmenti-las ou a afastá-las, pelo facto de o capital
simbólico não se deixar medir e reduzir a números tão facilmente como a ter­
ra ou o gado e de o grupo — só ele pode, em última instância, conceder o cré­
dito correspondente — ser sempre levado a retirá-lo, portanto a orientar as
suas suspeitas para os maiores, como se, em matéria de honra como em maté­
ria de terra, o enriquecimento de um só fosse possível em detrimento dos ou­
tros.12
Só um materialismo inconsequente, porque parcial, portanto incapaz
de pensar as estruturas da economia arcaica e sobretudo a complexidade pro­
digiosa das práticas econômicas características de um sistema baseado numa
ambiguidade estrutural, pode ignorar que estratégias que têm por alvo a con­
servação ou o aumento da honra do grupo, e entre as quais é preciso situar, em
primeiro lugar, a vingança de sangue e o casamento, obedecem a interesses
não menos vitais que as estratégias sucessórias ou as de fecundidade. A arma­
dilha estendida ao materialismo parcial do economicismo é ainda mais infalí­
vel quando, como no caso do casamento, a circulação dos bens materiais ime­
diatamente perceptíveis, como o dote da viúva, objective aparente das nego­
ciações matrimoniais, dissimula a circulação total, actual e potencial, de bens
indissociavelmente materiais e simbólicos, dos quais são apenas o aspecto
mais visível aos olhos do homo economicus capitalista. O montante do dote da
viúva, sempre muito fraco em valor relativo e absoluto, não justificaria as

12 Conta-se que, por ocasião dos combates, as mulheres (e os homens idosos) da família en­
corajavam os homens a "ir em frente" nos seguintes termos: "Mata ou morre, mas não de­
ixes alusões atrás de ti" (thasalqubth).
254 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

negociações obstinadas das quais se torna objecto se não assumisse um valor


simbólico da mais alta importância, manifestando sem equívoco o valor dos
produtos de uma família no mercado das trocas matrimoniais, ao mesmo
tempo que a aptidão dos responsáveis dessa família para obter o melhor pre­
ço dos seus produtos através das suas qualidades de negociação. A melhor
prova da irredutibilidade das paradas em jogo nas estratégias matrimoniais
que visam apenas o dote da viúva é fornecida pela história, a qual, aqui uma
vez mais, dissociou os aspectos simbólicos e os aspectos materiais das tran-
sacções. De facto, se reduzido ao seu puro valor monetário, o dote da viúva
fica despojado, aos olhos dos próprios agentes, da sua significação de quota
simbólica, vendo-se as discussões de honra assim rebaixadas para o plano de
simples negociações doravante tidas por vergonhosas.
Como mostra o facto de, em caso da ofensa, a própria possibilidade de
se recusar o jogo (não ripostando ou oferecendo a outra face, por exemplo) ser
excluída como impensável e inominável, o interesse que determina um agen­
te a defender o seu capital simbólico é inseparável da adesão tácita, inculcada
pela primeira educação e reforçada por todas as experiências posteriores, à
axiomática objectivamente inscrita nas regularidades de um sistema que faz
existir como digno de ser buscado e conservado um tipo determinado de ca­
pital simbólico. Assim, a harmonia objectiva entre as disposições dos agentes
(aqui a sua propensão e a sua aptidão para jogarem o jogo da honra) e as regu­
laridades objectivas das quais são produto fazem com que a pertença a este
cosmo econômico (em sentido amplo) implique o reconhecimento incondici­
onal das paradas em jogo que ele propõe pela sua própria existência como ób­
vias, quer dizer, o desconhecimento da natureza arbitrária do valor que lhes
confere e que é de molde a determinar investimentos e sobreinvestimentos
(no duplo sentido econômico e psicanalítico) capazes de reforçar, pelo efeito
da concorrência e da raridade assim criadas, a ilusão bem fundada de que o
valor dos bens simbólicos se encontra inscrito na natureza das coisas, como o
interesse por esses bens na natureza dos homens.
Para evitarmos um retomo ofensivo do materialismo reduzido e redu-
tor, seria necessário analisar em pormenor os mecanismos que conferem, por
vezes, a um pedaço de terra um valor que nem sempre corresponde às suas
qualidades propriamente técnicas e econômicas (em sentido estrito). Se as
terras mais próximas, as mais bem cuidadas e tratadas (vedadas, incluindo
edifícios, regularmente trabalhadas e exploradas de modo contínuo, etc.) e
mais acessíveis às mulheres (graças a caminhos privados, thikhuradjiyin) es­
tão predispostas a verem ser-lhes concedido um valor mais forte por um qual­
quer comprador, há qualidades que só adquirem na relação que mantêm com
uma família determinada e que são função de um tipo particular de disposi­
ções econômicas (em sentido amplo) — e é isto que se passa com aquilo a que
poderiamos chamar o grau de integração da terra no patrimônio familiar, o
qual depende da sua história (as mais das vezes indicada pelo nome, mais ou
O CAPITAL SIMBÓLICO 255

menos nobre e antigo) e da sua posição mais ou menos central entre as terras
tradicionalmente possuídas pelo grupo. Se o valor simbólico e o valor econô­
mico as mais das vezes coincidem, sendo as terras mais próximas e mais aces­
síveis também as mais bem exploradas, segundo modos de valorização mais
intensos e mais diversificados, e por isso as mais "produtivas", pode aconte­
cer que uma terra ganhe um valor simbólico desproporcionado em relação ao
seu valor econômico em função da definição socialmente aceite do patrimô­
nio simbólico, daí resultando que a primeira terra a cuja posse se renuncia
será a menos integrada no patrimônio, a menos associada ao nome dos seus
proprietários actuais, a que foi adquirida, e recentemente, em vez de herdada,
a que foi comprada a estrangeiros em vez de o ter sido a parentes. Contudo,
nada ainda é assim tão simples, sendo o valor simbólico da terra definido pela
relação histórica que os proprietários e os compradores mantêm com ela,
quer dizer, entre si por intermédio dela e a seu propósito. É assim que uma
terra é evidentemente mais preciosa quando, dotada de todas as proprieda­
des que definem uma forte integração no patrimônio, é possuída por estran­
geiros: nesse caso, resgatá-la torna-se uma questão de honra, análoga à vin­
gança de uma ofensa, e a terra pode atingir preços exorbitantes. Os vendedo­
res podem jogar cinicamente com a relação entre os compradores e a terra —
dentro de certos limites apenas, porque, caso contrário, seria a sua reputação
a sofrer, mas o mais frequente é que ponham tanto ponto de honra em defen­
der a terra, sobretudo se a sua apropriação for sificientemente recente para
conservar o seu valor de desafio lançado ao grupo estrangeiro, como os ou­
tros obstinação em resgatá-la e conseguir vingança do atentado cometido
contra a hurma da sua terra. Pode acontecer que um terceiro grupo venha ofe­
recer um preço maior, lançando assim um desafio não ao vendedor, que bene­
ficia com isso, mas aos proprietários "legítimos". Em suma, basta termos no
espírito a homologia da relação que o grupo sustenta com a sua terra e da rela­
ção que mantém com as mulheres para compreendermos que a preocupação
de salvaguardar o capital simbólico da família, componente fundamental do
patrimônio, leve a aceitar que se pague para além do seu valor "mercantil"
uma terra ancestral em risco de sair das mãos do grupo, ou que está já nas
mãos de estranhos, ou ainda, em sentido inverso, uma das terras ancestrais
de um grupo rival, assumindo então a compra o valor de um desafio. Inversa­
mente, semelhantes escaladas são, na medida do possível, excluídas das tran-
sacções entre parentes, proibindo a honra que se tire partido do estado de ne­
cessidade daquele que é forçado a vender.
Assim, as correspondências que se estabelecem entre a circulação das
terras vendidas e resgatadas, as das terras "emprestadas" e "restituídas" ou
as das mulheres concedidas ou recebidas (isto é, entre as espécies diferentes
do capital e os modos de circulação correspondentes) obrigam a abandonar a
dicotomia do econômico e do não econômico, a qual impede de apreender a
ciência das práticas econômicas como um caso particular de uma ciência geral
256 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

da economia das práticas capaz de as tratar a todas, incluindo as que se querem


desinteressadas ou gratuitas e, portanto, desembaraçadas da economia, ou
seja, sem estarem orientadas para a maximização do lucro, material ou sim­
bólico. O capital acumulado pelos grupos, essa energia da física social — ou
seja, o capital de força física (ligado à capacidade de mobilização, e, portanto,
ao número e à combatividade), o capital "econômico" (a terra e o gado), o ca­
pital social e o capital simbólico, sempre associado suplementarmente à pos­
se de outras espécies de capital, mas susceptível de ser aumentado ou dimi­
nuído segundo a maneira como dele se usa —, pode existir sob diferentes espé­
cies, que, embora submetidas a estritas leis de equivalência e desse modo mu­
tuamente convertíveis, produzem efeitos específicos. Forma transformada e
por isso dissimulada do capital "econômico" e físico, o capital simbólico pro­
duz, aqui como noutros lados, o seu efeito próprio na medida, e apenas nessa
medida, em que dissimula que essas espécies "materiais" do capital estão no
seu princípio e, em última análise, no princípio dos seus efeitos.
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS
E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS

É verdade que nada é mais estranho à economia pré-capitalista que a re­


presentação do futuro como campo de possibilidades que incumbe ao cál­
culo explorar e dominar; não podemos concluir, como muitas vezes se faz,
que o camponês tradicional seja incapaz de visar um porvir longínquo,
uma vez que a desconfiança perante qualquer tentativa de tomar posse
desse porvir coexiste nele sempre com a previdência necessária para a re­
partição de uma boa colheita no tempo, o que significa por vezes vários
anos. De facto, o pôr de reserva 'que consiste em guardar com vista ao con­
sumo futuro uma parte dos bens directos (isto é, capazes de proporciona­
rem a qualquer momento umí satisfação imediata como essesbens de con­
sumo dos quais o fellá se rodeia e que constituem a garantia palpável da
sua segurança) supõe a mira de um "por vir" virtualmente encerrado no
presente directamente percebido; pelo contrário, podendo a acumulação
capitalista de bens indirectos concorrer para a produção de bens directos
que não são em si próprios fonte de qualquer satisfação, tal atitude, só ga­
nha sentido por referência a um futuro construído pelo cálculo. "Prever"
dizia Cavaillès/^não é ver antecipadamente." A pré-vidência (como ver
antecipadamente) distingue-se da pré-visão na medida em que o porvir
que apreende está directamente inscrito na própria situação, tal como esta
pode ser percebida através dos esquemas de percepção e de apreciação téc-
nico-rituais inculcados por condições materiais de existência, elas própri­
as apreendidas através das categorias dos mesmos esquemas de pensa­
mento. Na verdade, a decisão econômica não é determinada por levar em
conta um fim explicitamente posto enquanto futuro como o estabelecido
pelo cálculo no quadro de um plano; a acção econômica orienta-se para um
"por vir" directamente captado na experiência ou estabelecido por todas
as experiências acumuladas que constituem a tradição. Assim, de um
modo geral, o camponês compromete-se com as suas despesas em função
do rendimento proporcionado pela campanha precedente e não do

257
258 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

rendimento antecipadamente calculado; além disso, em caso de colheita


excedentária, tende a tratar o trigo ou a cevada suplementares como bens
directos, preferindo acumulá-los em vista do consumo a semeá-los e a au­
mentar assim a esperança da colheita futura e sacrificando o porvir da pro­
dução ao porvir do consumo. Longe de serem ditados pela mira prospecti-
va de um futuro projectado, os comportamentos de pré-v’dência obede­
cem à preocupação de conformidade a modelos herdados, e assim o ponto
de honra exige que, ainda que se não possuam pomares de romanzeiras, se
ponham de reserva as pevides de romã que acompanham o cuscuz servido
aos khammés ou aos vizinhos por ocasião da primeira saída dos bois para as
lavras, ou que se façam provisões de carne salgada em vista das festas. A
dona da casa punha o seu orgulho em constituir uma reserva especial, cha­
mada thiji e constituída por tudo o que de melhor se produzira, os melho­
res frutos (figos, passas de uvas, romãs, azeitonas, etc.), o azeite extraído
das melhores azeitonas, a melhor manteiga, etc1. Neste domínio como
noutros, as normas éticas são indissociavelmente imperativos rituais e a
homologia que une a fecundidade da casa e a fecundidade da terra faz do
pôr de reserva, que garante a plenitude da casa (la'mmara Mam), um rito
propiciatório tanto como um acto econômico. Do mesmo modo, numero­
sos comportamentos que poderiam aparecer como investimentos obede­
cem a uma lógica que não é a do cálculo econômico racional — e foi assim
que as compras de terras que se multiplicaram à medida que as bases eco­
nômicas da antiga sociedade se desfaziam, com a generalização das trocas
monetárias e a crise correlativa do ethos camponês, foram muitas vezes de­
terminadas, até uma data recente, pela preocupação de evitar que a terra
familiar acabasse por cair nas mãos de uma família estrangeira. Do mesmo
modo, podia acontecer que se comprasse uma segunda junta de bois, na
boa estação, sob o pretexto de que os bois eram necessários para a debulha
(o que dava a entender que a colheita fora abundante), mas na realidade,
com muita frequência, para aumentar o capital simbólico da família num pe­
ríodo estratégico, no fim do Verão, época em que são negociados e celebra­
dos os casamentos, e não era raro que, tendo-se esgotado a forragem que
mal chegaria para alimentar uma junta de bois, a família da qual se pudera
dizer "é a casa das duas juntas de bois e da mula" fosse obrigada a vender a
segunda junta antes das lavras do Outono, quer dizer, no momento em que
tecnicamente ela seria mais necessária. Do mesmo modo enfim, o

1 A dominação da economia de mercado determina uma inversão do pró em contra na hie­


rarquia dos valores expressa nesta tradição, impondo, por um lado, que se reservem para
o mercado os produtos de primeira qualidade, e introduzindo, por outro hábitos de con­
sumo de molde a justificarem o abandono da thiji e a procura de rendimentos monetários:
porquê fazer reservas de figos quando já não se comem figos desde o momento em que (e
porque) se bebe café?
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS 259

sentimento da honra está ainda na origem de muitas iniciativas inovado­


ras que se observam, há uma cinquentena de anos, no domínio do equipa­
mento agrícola e doméstico, e não é raro que as competições de prestígio entre
os dois "partidos" que dividem a maior parte das aldeias ou entre duas gran­
des famílias levem as duas partes a adquirirem os mesmos equipamentos,
prensas para o azeite, moinhos a motor, camiões, etc., sem preocupações de
rentabilidade.
Numa economia agrícola em que o ciclo da produção pode ser coberto
por um só olhar, renovando-se em geral os produtos no espaço de um ano, o
camponês não dissocia o seu trabalho do produto "por vir" do qual está "pre-
nhe", tal como, no ano agrário, não distingue o tempo de trabalho do tempo
de produção, período durante o qual a sua actividade fica quase suspensa.
Pelo contrário, porque o comprimento do ciclo de produção nela é geralmen­
te muito maior, a economia capitalista supõe a constituição de um futuro me­
diate e abstracto, devendo o cálculo racional suprir a ausência da intuição do
conjunto do processo. Mas, para que tal cálculo seja possível, é preciso que se
reduza a diferença entre o tempo de trabalho e o de produção, bem como a de­
pendência correlativa no que se refere aos processos orgânicos; por outras pa­
lavras, é necessário que seja rompida a unidade orgânica que unia o presente
do trabalho ao seu "por vir", unidade que não é senão a dos ciclos insecáveis e
inanalisáveis de reprodução ou a do próprio produto, como mostra a compa­
ração de uma técnica artesanal que fabrica produtos inteiros e da técnica in­
dustrial assente na especialização e fragmentação das tarefas. Compreen-
de-se assim que a certas medidas tendentes a modificar o comprimento tradi­
cional dos ciclos agrários e que exigem o sacrifício de um interesse imediata­
mente tangível a um interesse abstracto (como a disposição que consistia em
oferecer aos agricultores a possibilidade de construção gratuita de aterros
para plantação de árvores) se tenham deparado por parte dos camponeses ar­
gelinos resistências que só cederam (e só de resto muito parcialmente) peran­
te o sucesso dos trabalhos empreendidos nas terras dos colonos europeus que
se apressaram em beneficiar das novas vantagens. De um modo mais geral, se
os planos muitas vezes não suscitaram senão incompreensão ou cepticismo
foi porque, baseados no cálculo abstracto e supondo a suspensão da adesão
ao conjunto familiar, se viam afectados pela irrealidade do imaginário, como
se a planificação racional estivesse para a pré-vidência consuetudinária como
uma demonstração racional está para uma "mostra" operada por meio de re­
cortes e dobras, não podendo um projecto conseguir adesão a não ser que pro­
ponha resultados concreta e imediatamente perceptíveis ou tenha a caução
de um "garante" reconhecido e respeitado (como o mestre-escola de outrora,
chikh el lakul).
Do mesmo modo, se os camponeses argelinos manifestaram durante
muito tempo uma viva desconfiança perante a moeda, é que, do ponto de vis­
ta da estrutura temporal que exige, a troca monetária está para a troca directa
260 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

como a acumulação capitalista para a constituição de simples reservas2 3.


Enquanto o objecto trocado revela directamente à intuição o uso que dele se
poderá fazer e que nele se encontra inscrito do mesmo modo que o peso, a cor
e o sabor, a moeda, bem indirecto por excelência, não é fonte em si própria de
qualquer satisfação (como recorda a fábula do felá que morreu em pleno de­
serto ao lado da pele de carneiro cheia de moedas de ouro que acabava de des­
cobrir) e o uso futuro que indica é distante, imaginário e indeterminado. Com
a moeda fiduciária, conforme lembra toda a sabedoria tradicional, já não se
possuem as coisas, mas os signos dos seus signos: "Um produto" diz-se, "vale
mais que o seu equivalente (em moeda), por isso adquire produtos de prefe­
rência a dinheiro". Instrumento que serve seja a quem for, seja onde for, seja
para que operação de troca for, "que não serve para mais nada senão para po­
der servir para tudo", a moeda permite em primeiro lugar a previsão de um
uso indeterminado e a quantificação da infinidade dos usos cuja virtualidade
encerra, autorizando deste modo uma verdadeira contabilidade das
esperanças .
Em segundo lugar, pelo facto de as diferentes afectações de uma soma
determinada se excluírem a partir do momento que se empreende a sua reali­
zação, a utilização racional de uma quantidade limitada de moeda supõe um

2 As trocas faziam-se outrora em gêneros segundo equivalências fixadas pela tradição.


"No Tell, o nômada trocava uma medida de tâmaras por três medidas de cevada, ou meia
medida de trigo por três medidas de tâmaras" (A. Bernard e N. Lacroix, Involution du
nomadisme en Algérie, Argel, A. Jourdan, 1906, p. 207). Em 1939, a equivalência de troca
estabelecia-se do modo seguinte, segundo Augustin Berque: um quintal de trigo = um
carneiro = 20 litros de azeite = dois quintais de uvas ou de alperces ~ um quintal de fi­
gos = 300 quilos de carvão = um quintal e um terço de cevada. Ó pagamento dos
khammès e dos associados ou dos empréstimos fazia-se em gêneros, na maior parte das
aldeias da Cabília, até à Segunda Guerra Mundial. O trabalho do ferreiro era pago em
cereais; as peças de olaria eram ainda trocadas, até uma época recente, pelo seu conte­
údo em figos ou grãos de cereal. Por vezes, a troca em gêneros manteve-se, sendo rein-
terpretada em função da lógica da troca monetária. Assim, sendo o trigo na Primavera
duas vezes mais caro que no momento da colheita, aquele que o pede emprestado
deve depois entregar o dobro do que recebeu. Por toda a parte, há uma cinquentena de
anos ainda, os mercados davam lugar a trocas directas de mercadorias mais do que a
trocas comerciais com o recurso ao crédito ou o uso da moeda. Esta, quando intervi-
nha, desempenhava sobretudo o papel de estalão das trocas, e foi assim que a cotação
dos produtos em numerário reproduziu durante muito tempo a sua equivalência de
troca nos termos em que esta se estabelecia na época em que as transacções se faziam
em gêneros.
3 "Se não sei que quantidade de trigo poderei comprar com ela, sei todavia", observa Simi-
and, "que poderei comprar trigo no futuro; ainda que não seja de trigo que tenho necessi­
dade, sei que poderei alimentar-me, vestir-me, fazer alguma coisa útil com o ouro." E
noutro lugar: "É este poder de antecipação ou de representação, ou até mesmo de realiza­
ção antecipada de um valor futuro, que é a função essencial da moeda e, nomeadamente,
nas sociedades em progressivo" (F. Simiand, "La Monnaie, réalité sociale", Annales socio-
logiques, série D, 1934, pp. 80 e 81).
EX°' PRATICAS econômicas e disposições temporais 261

dentro cíq11 pen.te'numa primeira fase, a determinar os usos futuros possíveis


c°mpatív S‘ Im^es d°s meios disponíveis e, entre eles, os que são mutuamente
estrutura }<S 6m se^u^a'
definir a escolha "razoável" por referência a uma
directam lerar9uizada de fins. No extremo oposto, as mercadorias trocadas
seu uso n 6 na base de equivalências tradicionais revelam imediatamente o
Passa corn* Gnci'a^ e ° seu val°r> que é independente, ao contrário do que se
"razoavel 3 m°^a/ condições exteriores. Por isso, é muito mais fácil gerir

um mês inT^nte reservas bens de consumo do que distribuir ao longo de


das neces Uma soma de dinheiro ou estabelecer uma hierarquia racional
mente m S1 3 eS e ^as ^esPesas: a propensão para consumir tudo é infinita-
de uma comd°da a evidência, do que a inclinação que leva a despender
em grand° VG? ° ^’n^ie'ro P°ssuído. Os Cabilas guardam o trigo ou a cevada
altura e a^ rec^P^entes de barro marcados com buracos a diferentes níveis de
guando o ^ona casa> responsável pela gestão das reservas, sabe que
importa ° ^esce a^aixo do buraco central, chamado thimith, o umbigo,
piente é c ° Grar ° consumo- Como vemos, o cálculo faz-se por si e o reci-
há o o qu°m° Uma arriPulheta gue permite saber a cada instante o que já não
Que opera6 suma, o uso da moeda exige uma conversão análoga à

cida pela •' YUrY.a °Utra ordem, a geometria analítica: à evidência clara, fome-
dos símb'1]1 U1ÇjBO/ substitui-se "a evidência cega", resultante da manipulação
modo ana ° p üravante/ Ia não se raciocina sobre objectos anunciando de
sobre sign an^’1Yele palpável o seu uso e a satisfação que prometem, mas
sujeito ec °S-due nao sao em S1 próprios fonte de qualquer satisfação. Entre o
ecrã da 01*° 6 3S rnercad°rias ou os serviços que eíe espera interpõe-se o

tra lógica ° 6 & °- coi}seguinte, os agentes econômicos formados numa ou-


r

racional ,eCOnon'aca de fazer à sua custa a aprendizagem da utilização


grande cq3 3 COmo mediação universal das relações econômicas: é
bens reais eit°z a tentação de converter o salário acabado de receber em
anos, ver-s 3 lmenlos' roupa, peças de mobiliário, e não era raro, há uns 50
mês de tralf °Perarl°s gastarem em poucos dias os rendimentos de um
gas cniana? numa data mais recente, podiam observar-se práticas análo-

géneros °S n®madas do Sul, os pastores, até então retribuídos em


' começaram a receber um salário em dinheiro.4
. _______ <*' t Ok

tação às reirra^TirO-r 3 ’naPddao dos rurais para a manipulação da moeda e a sua inadap-
possessão fundiária I<A!o°ntj UÍran? 8ra!ld°mente para acelerar o movimento de desa-
Argelinos dos seus 1ITl/ C e ter conáenado a política que levava a espoliar os
[• •.]. Em todo o casoPé npJp° á Y'° observava: "Abusa-se deveras das expropriações
o prejuízo seja reparado mm TÍ'quarido há motivos para uma expropriação, que
tração de reinstalar os wnr e5“ldade e especialmente que a obrigação para a adminis-
indemnização em dinheini nãTi °S'6 esP®clalmente os indígenas, seja respeitada [...]. A
mente, não terá a possibilidide sentld®.Para Este gastará a quantia imediata-
operação de colocacão lhe vil • ,1Zar e utl!lzar 0 Pobre rendimento que uma
colocaçao lhe valena' (M. Violette, L’Atfrie vivra-t-elle? Notes d’un ancien
262 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

De todas as instituições e técnicas econômicas introduzidas pela coloni­


zação, a mais estranha à lógica da economia pré-capitalista foi, sem dúvida, o
crédito, o qual supõe a referência a um futuro abstracto, definido por um con­
trato escrito e garantido por todo um sistema de sanções e que, com a noção
de juro, faz intervir o valor contabilizável do tempo5. Enquanto o crédito se
preocupa com garantir a sua segurança, assegurando-se da solvabilidade do
devedor, as convenções amigáveis (que são as únicas reconhecidas pela mo­
ral da honra) não conhecem outra garantia senão a boa-fé, sendo as garantias
sobre o futuro fornecidas não pela riqueza mas por aquele que dela dispõe. O
que pede emprestado vai ter com um parente ou com um amigo: "Sei que pos­
suis certa soma e que não precisas dela; podes considerá-la como estando ain­
da em tua casa." Não se fixam prazos precisos ("até ao Verão" ou "até à colhei­
ta"). Dado que estas convenções são apenas celebradas entre pessoas conhe­
cidas, parentes, amigos ou aliados, o porvir da associação vê-se garantido, no
próprio presente, não só pela experiência que cada uma das partes tem da ou­
tra, reputada por ser fiel aos seus compromissos, mas também e sobretudo
pela relação objectiva que une os parceiros e que sobreviverá à sua transac-
ção, garantindo o porvir da troca mais seguramente que todas as codificações
explícitas e formais com que o crédito se deve armar, uma vez que supõe a im­
pessoalidade total da relação entre as partes. Nada se opõe mais radicalmente
à entreajuda, que associa sempre indivíduos unidos por laços de consangui­
nidade real ou fictícia, que a cooperação que mobiliza indivíduos selecciona-
dos em função dos fins futuros e construídos pelo cálculo de um

____________ C
gouverneiir général, Paris, Alcan, 1931, pp. 83-91). Tornados detentores de um título de
propriedade autêntico e facilmente alienável na sequência de rupturas de indivisão favo­
recidas pelas leis de 26 de Julho de 1873 e de 23 de Abril de 1897, numerosos pequenos
proprietários acossados pela miséria foram tentados pelos atractivos do dinheiro e ven­
deram as suas terras; pouco familiarizados com o uso da moeda, em breve dissiparam o
seu pouco capital e foram obrigados a trabalhar como operários agrcolas ou a fugir para a
cidade.
5 Sem dúvida a usura, cujas taxas atingiam de 50 a 60% em média antes de 1830 e de 25 a
30% em 1867 (A. Hanoteau, Poésies populates de la Kabylie, Paris, Imprimerie impériale,
1867, n.“ 1, p. 193), estava normalmente inscrita numa estrutura econômica que, embora
desse tão pouco lugar quanto possível à circulação monetária, se via ainda menos livre de
crises pelo facto de a precaridade das técnicas disponíveis não permitir dominar o aleató­
rio do clima. Mas este crédito de urgência, imposto pela necessidade e exclusivamente
destinado ao consumo, nada tinha em comum com o crédito destinado ao investimento:
só se recorre ao usurário depois de esgotados todos os recursos do auxílio mútuo fami­
liar, e aquele que, tendo meios de o ajudar, entregasse um irmão ou um primo a um usurá­
rio ficaria desonrado. A interdição do empréstimo a juros não é senão o reverso do impe­
rativo de solidariedade e as regras comunitárias, por vezes codificadas nas recolhas de
costumes, impunham a assistência aos doentes, às viúvas, aos órfãos e aos pobres e que
fossem socorridas as vítimas de uma calamidade (por exemplo, quando um animal feri­
do tinha de ser abatido, a comunidade indemnizava o proprietário e a carne era partilha­
da entre as famílias).
263
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS

empreendimento específico: num caso, o grupo preexis ntrando a sua


tuação em comum de uma obra também comum; no ou i ' ' contrato, dei-
razão de ser fora de si próprio, no objective futuro e inl f
xa de existir ao mesmo tempo que o contrato que o un a Trusseri), ou-
A "antecipação pré-perceptiva" (segun o a expres tainenteperce-
seja, a antevisão de potencialidades inscritas no presen e pOSSíveis
bido, opõe-se ao projecto, entendido como projecçao imag ser concreti-
explicitamente postos como futuros, quer dizer, P° en ° distingue o futu-
zados, ao preço de uma suspensão da adesão ao da o. o q . do pOrvir
ro, lugar dos possíveis abstractos de um sujeito mjulga, a maior
prático, o possível da potencialidade objectiva, nao , c apresentar
ou menor distância em relação ao presente, uma vez que ootencjalidades
(isto é, dar a antecipar praticamente como quase presen na unidade
mais ou menos afastadas no tempo objective que se g
imediata de uma prática* 7. . _ ^vnlicitaranãoser
Aconsciência popular vive e age esta distinção sem Djeha, pes-
sob a forma da auto-ironia. "Onde vais? , perguntaram u aO merca-
soa imaginária na qual os Cabilas gostam de se recon ece . mjnho,mas
do." "Como? E não dizes 'se Deus quiser'?" Djeha segue o
ao chegar a um bosque é sovado e esbulhado por bandidos^ un "Se
ha?", perguntam-lhe de novo. "Vou voltar para casa... se raDeus
Deus quiser" quer dizer que ele não pode agradar a eu unjO/regido
ao mesmo tempo. A locução assinala a passagem para ou propriedade

por uma lógica diferente, o do futuro e dos possiv

6 O mesmo é dizer, contra todas as ilusões populistas, que organizações coopera-


agnática estão longe de preparar os camponeses a a ap de colonização, desa­
tivas ou colectivistas e que os operários agrícolas d níveis oara esse tipo de es-

possados das suas terrase das suas tradições, estão mais d^"P^padas
trutura do que os pequenos proprietários das regiões re a iv . . vez a0 cjm0 da

7 Conta-se a história de um velho cabila que, tendo c ega o pe p como é gran-


garganta que limitava o horizonte da sua aldeia, exclamou. , imaginário que
de o" teu mundo!" Para além do horizonte do
não pode ser ligado ao umverso da experience e on e r _ 4’ ge Q situatmos no

tamente diferente. Aquilo que pode parecer absur P os no espaço ou no tempo,


campo da experiência, pode acontecer noutros lugar . se pUsesse
e é isso que se passa com os milagres dos santos, de Sidi a ia qu Mouhoub,
de Pé um boi degolado, de Sidi Kali, que se metamorfoseou em leao S ,

que dividiu em duas uma fonte a fim de pôr fim a um di eren mesmos critérios
Sidi Moussa, que fez com que de um pilar jorrasse azeite, ao s horizonte fa-
que valem conforme se trate de um acontecimento ocorrido no m , mun(j0
miliar ou de um facto surgido no país das lendas, que começa nas a

quotidiano. No primeiro caso, a única garantia é a experiencia percep i ' onde


autoridade de uma pessoa conhecida e digna de fé. No outro, peran e todas
por essência tudo é possível, as exigências críticas são muito menores e admitem-se to

as afirmações veiculadas pela opinião comum.


264 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA

essencial é poder não sobrevir8. Azqa d'azqa, "amanhã é a sepultura", significa


que o futuro é um nada que seria vão tentar apreender, um nada que não nos
pertence9. Daquele que se inquieta demasiado com o porvir, esquecendo que
ele escapa às tentativas de captura, diz-se que "quer ser associado de Deus" e,
para o exortarem a ser mais comedido, dizem-lhe: "Com aquilo que te é estra­
nho, não te preocupes", ou ainda: "No dinheiro que está fora da bolsa não ve­
jas um capital"10.
A fábula de Djeha basta para nos prevenir contra o etnocentrismo que
leva tantos etnólogos a estabelecerem uma diferença de natureza entre o sis­
tema das disposições quanto ao tempo requeridas pela economia pré-capita-
lista e exigido e engendrado pela economia monetária. Na verdade, a expe­
riência temporal favorecida pela primeira é uma das modalidades que toda a
experiência da temporalidade pode assumir, incluindo a dos agentes econô­
micos mais "racionais" das sociedades que produzem os etnólogos, devendo
apenas a sua especificidade ao facto de, longe de se propor como uma possibi­
lidade entre outras, ser imposta como a única possível por uma economia in­
capaz de assegurar as condições de possibilidade da posição do possível e, o
que vem a ser a mesma coisa, por um ethos e uma ética que não são mais do
que a interiorização e a racionalização do sistema das possibilidades e das im-
possibilidades objectivamente inscritas nas condições materiais de existência
dominadas pela insegurança e o aleatório. Ou seja, tudo se passa como se,

----- — 0r-o
8 Talvez devamos ver aqui uma das raízes dos interditos referentes a todas as formas de
enumeração: não se devem contar os homens presentes numa assembléia, nem medir os
grãos destinados à sementeira; não se contam os ovos no choco, mas sim o número dos
pintos quando nascem. Será porque contar os ovos que estão a chocar ou medir os grãos
da sementeira equivale a presumir o futuro e, por isso, a comprometê-lo? Ofeld não avalia
a sua colheita a não ser mediante extremas precauções, "a fim de não pôr em causa a gene­
rosidade de Deus". Em certas regiões, é interdito pronunciar um nome de número na
eira. Noutros lugares, recorre-se a eufemísmos para calcular a colheita. Sabe-se também
que medidas administrativas como as operações de recenseamento destinadas a conferir
uma maior precisão ao registo civil, se depararam de início vivas resistências. Lê-se num
poema de Qaddoúr ben Klifa citado por J. Desparmet (in "Les Réactions nationalitaires
en Algérie", Bulletin de la Société de Géographie d'Alger, 1933; cf. também "La turcophilie en
Algérie", op. cit., 1916, p. 20): "Todos os bens foram pesados na balança. Quantos hectares
não foram medidos, marcados metro a metro! Todos os anos nos incluem nos registos de
recenseamento! Foi assim que inscreveram todos os vivos, homens e mulheres!" Esta
mesma recusa do espírito de precisão e de cálculo inspirava as alcunhas atribuídas nas re­
feridas poesias aos Franceses: "a raça industriosa", "a raça dos filósofos" (dos sábios), "o
povo da assinatura e do carimbo" (J. Desparmet, "L'GEuvre de la France jugée par les in-
digènes", op. cit., 1910).
9 "Há sete momentos no dia", "comporta-te conforme o momento", "não sei se a minha feli­
cidade está para a frente ou para trás", "conforme o dia, o pastor pastoreia" (Akken yella
wass, yeks-it umeksa).
10 Falando com propriedade, não existe termo que exprima o futuro. Recorre-se a três ex­
pressões: primeira, aka thasawanth, daqui para cima, assim como para cima; segunda, agh
rezzat, para a frente; terceira, qabel, o ano que vem.
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS 265

desencorajando expressamente todas as disposições que a economia capita­


lista exige e favorece — espírito de iniciativa, preocupação com a produtivi­
dade e o rendimento, espírito de cálculo, etc. — e denunciando o espírito de
previsão como uma ambição diabólica, em nome da ideia de que "o porvir
pertence a Deus", os agentes se contentassem, aqui como noutros casos, com
"fazer da necessidade virtude" e com ajustar as esperanças às probabilidades
objectivas.

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