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Esboço de Uma Teoria Da Prática Obra
Esboço de Uma Teoria Da Prática Obra
CELTA EDITORA
OEIRAS / 2002
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SHOMí nt íiwéàüin
© Éditions du Seuil, 2000
ISBN: 972-774-142-8
ISBN da edição original: 2-02-039266-6, Seuil, Paris
Depósito legal: 178921/02
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ÍNDICE
Prólogo.............................................. 3
1 O sentido da honra ...................... ..... 5
A dialéctica do desafio e da resposta (9)
0
Ponto de honra e honra: níf e hurma (23)
O ethos da honra (33) O
0 .0*
2 A casa ou o mundo ao contrário ..... ..K... 37
3 O parentesco como representação e como vontade ................... .. 57
Representação de parentesco e parentesco de representação (60)
Utilidade, conformidade e utilidade da conformidade (70) ç>,
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Parte II | ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
Prólogo........................................................................................................ 135
1 O observador observado ............................................................................... 137
2 Os três modos de conhecimento teórico........................................................ 145
3 Estruturas, habitus e práticas ....................................................................... 163
4 A incorporação das estruturas...................................................................... 185
5 A ilusão da regra ........................................................................................... 197
6 O corpo geómetra ......................................................................................... 213
7 A acção do tempo e o tempo da acção .................................................. 227
8 O capital simbólico......................................................................................... 237
Anexo: práticas econômicas e disposições temporais ................................... 257
V
NOTA INTRODUTÓRIA
O Pierre Bourdieu que publica, em 1972, o Esboço de Uma Teoria da Prática não
se estreia com esse livro. Já antes tinham sido editados trabalhos seus que se
tornaram clássicos, nomeadamente Os Herdeiros (Les Héritiers, escrito de cola
boração com Jean-Claude Passeron), em 1964. Mas continua a ser verdade
que a Argélia dos anos de 1960 — a da Sociologie de 1'Algérie, de Travail et Tra-
vailleurs ou ainda de Déracinement — foi, para Pierre Bourdieu, muito mais
que um solo de aprendizagem; foi o solo de experimentação e de maturação
do seu pensamento. Basta, para tomarmos consciência disso, a releitura hoje
do Esboço..., cuja primeira parte, os "Três estudos de etnologia cabila", foi re
digida em meados dos anos 60 e que, com toda a liberdade e audácia que a
ruptura com a instituição etnológica permite, submete a uma crítica metódica
e empiricamente armada um estruturalismo ao tempo instalado no coração
da cena intelectual parisiense.
Um jovem que marcou as suas distâncias frente à "disciplina de cú
pula", a filosofia, vê-se lançado em pleno conflito argelino. É aí que se en
raiza uma "vocação de etnólogo" e, depois, de sociólogo. É preciso, ao
mesmo tempo que se apoia a causa da independência, compreender a todo
o preço e, tanto quanto possível, fazer compreender, o drama de uma socie
dade dilacerada, que merece mais do que a adesão exaltada de um apoio
político incondicional. Se, em política, se ouvem ainda os gritos da contes
tação, o debate intelectual, pelo seu lado, encerra-se entre marxismo, feno-
menologia e estruturalismo, em exclusivismos infrutíferos. É portanto
numa terra perturbada e num clima intelectual polêmico que Pierre Bour
dieu vai forjar os principais conceitos do mundo social por ocasião de um
trabalho sobre o parentesco, a economia e os rituais cabilos. Progressiva
mente irá assim tomando forma esse primeiro balanço metodológico e pro
blemático, ainda marcado pelo esforço de arrancamento aos pensamentos
estabelecidos, que é o Esboço, sistematizado oito anos mais tarde em O Sen
tido Prático (Le Sens Pratique).
vii
viii ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
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SENS (sanss';san jusqu'au XIXe s.). n. m. (XIe s. ROL.; empr. lat. sensus, "action
manière de sentir; sentiment; pensée; signification").
3.° Par anal. "Faculté de connaitre dune manière immédiate et intuitive (comme
celle que paraissent manifester les sensations proprement dites)” Lalande. Le
sens de I 'orientation, de l 'equilibre (cf. Raccrocher, cit. 7). Legoüt (bon goút), le plus
subtil des sens (cf. Malpropre, cit. 3). Lesens de Dieu (cf. Concept, cit. 2), du sacré,
du merveilleux (cf. Garder, cit. 47). Le sens des réalités, de la réalité (cf. Enfoncer, cit.
41), de 1’efficacité (cf. Discipliner, cit. 3), le sens pratique, le sens politique (cit. 16),
national (cf. Aliénation, cit. 1). Sens des responsabilités (cf. aussi Fuite, cit. 7), des
hiérarchies (cf. Heurter, cit. 18), des affaires. V. Instinct, notion. Sens artistique (cf.
Amenuisement, cit.), esthétique (cit. 10); sens du beau (cf. Prosaique, cit. 3), Avoir
le sens du comique (cit. 7), du ridicule (cf. Humour, cit. 5), de I 'humor. Perdre le sens
de la mesure (cf. Hyperbole, cit. 2). — Sens interne ou intime. V. Conscience (I).
Sens moral* (cit. 1). V. Conscience (II). O O*'
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PRÓLOGO
Ao publicar textos tão antigos como os estudos sobre o sentido da honra e so
bre a casa cabila, não esperamos sacrificá-los apenas a essa forma de compla
cência que consiste em medir o valor de uma obra pelos esforços e pelos riscos
(não só intelectuais) que ela custou. A solicitude do autor mistura-se com a ir
ritação do leitor perante certa análise que alguns diriam "funcionalista" ou
perante certo jeito de estilo ou certo cambiante de tom a que outros chama
riam hoje "humanista" e que têm em comum o facto de traírem a intenção
mais ou menos consciente de reabilitarem contra uma ideologia e uma políti
ca inumanas um povo capaz de produzir um modelo das relações do homem
com o homem tão conseguido como o da competição de honra. A análise, aqui
isolada, das estratégias por meio das quais os camponeses cabilas se esforçam
por manter ou aumentar o seu capital de honra fora primitivamente concebi
da como indissociável de uma restituição do sistema das regras objectivas e
das paradas materiais e simbólicas do jogo político e econômico: recolocadas
nesse contexto, e, mais precisamente, no sistema das estratégias que visam a
reprodução do capital simbólico que os comportamentos de honra represen
tam, essas estratégias revelam a função que lhes é atribuída na reprodução de
uma ordem econômica e política da qual o próprio ethos da honra, princípio
gerador das mesmas estratégias, é produto.
O texto sobre a casa cabila, que, por um efeito de aproximação, talvez
contribua para reforçar a aparência de uma autonomização indevida da or
dem simbólica, não é mais do que um fragmento (ainda que a homologia en
tre a casa e o cosmo lhe confira uma posição central) de uma análise da estru
tura do sistema mítico-ritual: a relação de duplo sentido que liga esse sistema
às estruturas econômicas nunca se revela melhor que no calendário agrícola;
este reproduz, sob a forma transfigurada de um sistema simbólico coerente,
os ritmos do ano agrícola e em particular a oposição entre o período de traba
lho, quer dizer, principalmente as lavras e a colheita, acompanhadas de uma
intensa actividade ritual com funções sobretudo profilácticas, e o período da
3
4 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
simples produção, muito mais longo, durante o qual o grão semeado se en_
contra submetido a processos naturais de transformação (como, numa op^a
ordem, a olaria posta a secar), sendo então o sistema de trabalho quase totaj_
mente parado ou reduzido a actividades técnico-rituais e a ritos propiciatórj_
os, menos solenes porque menos dramaticamente exigidos pela represent
ção mítica da actividade agrária enquanto afrontamento perigoso de pripcp
pios antagônicos.
Em suma, a imagem da sociedade cabila proposta por estes fragmentos
de uma obra interrompida (pelo menos provisoriamente) é ainda mais abs-
tracta, neste caso mais do que em qualquer outro lado, pelo facto de ser ape
nas ao nível das relações objectivas que se revelam a significação e a função c|e
cada uma das instâncias. Se o princípio último de qualquer sistema reside evj_
dentemente num modo de produção que, em razão da distribuição aproxi-
mativamente igual da terra (sob a forma de pequenas propriedades parcela
das e dispersas) e dos instrumentos de produção, de resto fracos e estáveis,
exclui pela sua própria lógica o desenvolvimento das forças produtivas e a
concentração do capital — entrando a quase-totalidade do produto agrícola
directamente no consumo do seu produtor —, não é menos verdade que a
transfiguração ideológica das estruturas econômicas nas taxinomias do dis
curso mítico ou da prática ritual contribui para a reprodução das estruturas
assim consagradas e santificadas. E do mesmo modo, se a forma de transmis
são do patrimônio (material e simbólico) está no princípio da concorrência e
por vezes do conflito entre os irmãos e, mais largamente, entre os agnatos,
não há dúvida de que as pressões econômicas e simbólicas que se exercem no
sentido da indivisão do patrimônio familiar contribuem para a perpetuação
da ordem econômica e, por isso, da ordem política que funda e que descobre a
sua forma própria de equilíbrio na tensão, observável a todos os níveis da es
trutura social, da linhagem à tribo, entre a tendência para a sociação e a ten
dência para a dissociação: quando, para darmos conta do facto de uma forma
ção social se encerrar no ciclo perfeito da simples reprodução, nos contenta
mos com invocar as explicações negativas de um materialismo empobrecido,
como a precariedade e a estabilidade das técnicas de produção, e nos proibi
mos de compreender a contribuição determinante que as representações éti
cas e míticas podem trazer à reprodução da ordem econômica das quais são
produto, favorecendo o desconhecimento do fundamento real da existência
social, quer dizer, muito concretamente, proibindo que os interesses que
guiam sempre objectivamente as trocas econômicas ou mesmo simbólicas,
ainda que entre irmãos, possam alguma vez de modo aberto confessarem-se
como tais e tomarem-se o princípio explícito das transacções econômicas e,
de uma etapa a outra, de todas as trocas entre os homens.
1 Este texto foi publicado com o título "The sentiment of honour in Kabyle Society", em Ho
nour and Shame, J. Peristiany (org.), Chicago, The University of Chicago Press, Londres,
Weidenfeld and Nicholson, 1966.
5
6 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
levou para sua casa as pedras. Este acto arbitrário não foi exercido, desta vezz
contra uma pessoa mais fraca: a "vítima" tinha meios suficientes para se de
fender. Era um homem jovem, forte, que contava com muitos irmãos e paren
tes, pois pertencia a uma família numerosa e influente. Era então evidente
que, se ele não respondera ao desafio, não havia sido por medo. Por conse
guinte, a opinião pública não pôde ver nesse acto abusivo um verdadeiro de
safio, ferindo a honra. Muito pelo contrário, a opinião e a vítima aparentaram
ignorá-lo: com efeito, é absurdo entrar em querela com um amahbul; ou não é
verdade que se diz: "Um amahbul, foge dele?"
Apesar de tudo, a vítima foi ter com o irmão do culpado. Este último
dava razão ao queixoso, mas interrogava-se sobre os meios a usar para recon
duzir o amahbul à razão. Deu a entender ao seu interlocutor que fizera mal em
não reagir com a mesma violência, no momento do incidente, mas acrescen
tando: "Por quem se toma, esse patife?" Então, o visitante, mudando brusca
mente de atitude, indignou-se: "Oh, Si M., por quem me estás a tomar? Pen
sas que eu aceitaria ter uma discussão com Si N. por causa de meia dúzia de
pedras? Vim ver-te porque sei que és avisado e que contigo posso falar, por
que me vais compreender, e não vim pedir que as pedras me sejam pagas
(neste passo, multiplicou os juramentos por todos os santos, asseverando que
nunca aceitaria qualquer indemnização). Porque aquilo que Si N. tinha feito,
era preciso ser-se amahbul para o fazer, e eu, eu não me vou mergulhar a mim
próprio na vergonha (adhbahadlagh ruiwh)2 com um amahbul. Limito-me a fazer
notar que não é procedendo assim que se constrói uma casa lícita, justa (akham
nasah)". E acrescentou, precisamente no remate da conversa: "Aquele que
conta com um amahbul do seu làclo deve chamá-lo à razão ele próprio antes
que sejam outros a fazê-lo"; ou, por outras palavras: "Fazes mal em não te so
lidarizares com o teu irmão diante de mim, embora o devesses depois acusar
ou corrigir na minha ausência, como de resto te estou a pedir que faças"
(Aghbala)? Para compreendermos toda a subtileza deste debate, precisamos
de saber que opunha um homem perfeitamente senhor da dialéctica do desa
fio e da réplica a um outro que, por ter vivido muito tempo afastado da Cabí-
lia, esquecera o espírito da tradição, não vendo no incidente mais do que um
-----------------
2 Para o vocabulário cabila da honra, ver adiante [p. 62 #da edição francesa], Bahdel é preci
pitar na vergonha, desonrar, dominar por completo alguém, espancá-lo à vontade, ridi
cularizá-lo, em suma: levar a vitória para além dos seus limites razoáveis. Bahdel é mais
ou menos censurável segundo o adversário que atinge e sobretudo segundo o que lhe é
censurado. A propósito de amahbul, não se diz:" Tenho medo de que ele me ponha a ridí
culo (bahdel) (verbo)’’, mas "não vou pôr-me a ridículo (ao meu espírito, a mim próprio)
com ele." Chemmeth tem aproximadamente o mesmo sentido e os mesmos empregos
(ichemmeth iman-is: ele desonra-se).
3 ’’Aquele que desnuda o seu irmão, desnuda-se a si próprio", diz o provérbio, "Injuria-se a
si próprio (quer dizer: ao irmão e à família); o burro vale mais que ele" (Its' ayar ímanis,
daghuyl akhiris).
O SENTIDO DA HONRA 7
Poderíam descrever-se múltiplos factos análogos, mas a análise destas três nar
rativas permite destacar as regras do jogo da resposta e do desafio. Para que
haja desafio, é necessário que aquele que o lança considere que aquele que o re
cebe deve ser desafiado, quer dizer, capaz de aceitar o repto, em suma, que o te
nha por seu igual em matéria de honra. Lançar a alguém um desafio é reconhe-
cer-lhe a qualidade de homem, reconhecimento que é a condição de qualquer
troca e do desafio de honra enquanto primeiro momento de uma troca, é reco-
nhecer-lhe também a dignidade de homem de honra, uma vez que o desafio,
enquanto tal, requer a resposta e, por conseguinte, endereça-se a um homem
considerado capaz de jogar o jogo da honra e de o jogar bem, o que supõe, antes
do mais, que conheça as suas regras e, em seguida, que seja detentor das virtu
des indispensáveis para as respeitar. O sentimento da igualdade em honra, que
pode coexistir com desigualdades de facto, inspira um grande número de com
portamentos e de costumes e manifesta-se em particular na resistência oposta a
toda a pretensão de superioridade: "Eu também tenho bigode", costuma di
zer-se.4 O fanfarrão é imediatamente chamado à ordem: "E só, como se diz, o
monte de lixo que incha"; "a cabeça dele chega-lhe à chéchia"; “o negro é negro,
acrescentaram-lhe tatuagens!"; "ele quer andar com o passo da perdiz quando
esqueceu o da galinha!" Na aldeia de Tizi Hibel, na Grande Cabília, uma famí
lia rica fizera construir para os seus um túmulo de estilo europeu, com gradea
mento, pedra tumular e inscrição, transgredindo a regra que impõe o anonima
to e a uniformidade das sepulturas. No dia seguinte, os gradeamentos e a pe
dra tinham desaparecido.
Do princípio do reconhecimento mútuo da igualdade em honra decorre
um primeiro corolário: o desafio faz honra. "O homem que não tem inimigos,
dizem os Cabilas, é um burrico", sendo a tônica posta aqui não na estupidez do
burro, mas na sua passividade. O que há de pior é passar-se despercebido, as
sim, não saudar alguém é tratá-lo como uma coisa, um animal ou uma mulher.
O desafio é, pelo contrário, "um cimo da vida para quem o recebe (El Kalaa). E,
com efeito, a ocasião para alguém existir plenamente enquanto homem, de
provar aos outros e a si próprio a sua qualidade de homem (thirugza). O ho
mem completo" (argaz alkamel) deve estar sem interrupção em estado de alerta,
pronto a aceitar o mais pequeno desafio. É o guardião da honra (amhajar), a -
guém que vela pela sua própria honra e pela honra do seu grupo.
Segundo corolário: quem desafia um homem incapaz de ripostar ao
desafio, quer dizer, incapaz de continuar a troca iniciada, desonra-se a si
4 O bigode, usado aqui como termo descritivo para situar a idade ("a barba dele despon
ta", "o bigode dele desponta"), é um símbolo de virilidade, componente essencial do nif;
e o mesmo se passa com a barba, ou passava sobretudo outrora. Para se falar de um ultraje
profundo, dizia-se: "Fulano cortou-me a barba (ou o bigode)."
10 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
5 De um homem pouco preocupado com a sua honra, diz-se: "É um negro." Os negros não
têm nem devem ter honra. Eram mantidos distantes dos assuntos públicos e, se podiam
participar em certos trabalhos colectivos, não tinham o direito de tornar a palavra nas re
uniões da assembléia; em certos locais, era-lhes até proibido assistir às suas sessões. Seria
vergonhoso perante as outras tribos dar ouvidos às opiniões de um "negro". Os negros,
mantidos à margem da comunidade ou clientes das grandes famílias, exerciam profis
sões consideradas vis, como talhante, vendedor de peles ou músico ambulante (ait In
chem).
O SENTIDO DA HONRA 11
aconteceu um dia que, durante uma guerra entre duas tribos, uma delas opôs
combatentes negros aos seus adversários, que baixaram as armas. Mas os
vencidos conservaram a salvo a sua honra ao passo que os vencedores fica
ram desonrados com a sua vitória. Por vezes diz-se também que, para evitar a
vingança do sangue (thamgart, plural thimagart), bastava outrora a união com
uma família de negros. Mas tratava-se de um comportamento tão infamante
que ninguém aceitaria pagar tal preço para salvar a vida. Tal seria, no entanto,
o caso, segundo uma tradição local, dos talhantes de Ighil ou Mechedal, os
Ath Chabane, negros que tinham por antepassado um cabila que, a fim de es
capar à vingança, se teria feito talhante e a cujos descendentes, em seguida, só
seriam permitidas alianças com negros (ait hichem).
As regras da honra regiam também os combates. A solidariedade impu
nha a qualquer indivíduo que protegesse um parente contra um não parente,
um aliado contra um homem de outro "partido" (suf), um habitante de aldeia,
ainda que de um partido contrário, contra um estranho à aldeia, um membro
da tribo contra um membro de outra tribo. Mas a honra proíbe, sob pena de in
fâmia, que vários combatam contra um só; por isso, os interessados esforça
vam-se, através de mil artifícios e pretextos, por renovar a querela a fim de a po
derem retomar por sua conta. Assim, as mais pequenas querelas ameaçavam
sempre alargar-se. As guerras entre os "partidos", essas ligas políticas e guerrei
ras que se mobilizavam a partir do momento em que um incidente surgia e em
que a honra de todos era atingida na honra de um só, tomavam a forma de uma
competição ordenada, que, longe de pôr em perigo a ordem social, tendia pelo
contrário a salvaguardá-la, permitindo ao espírito de competição, ao ponto de
honra, ao nif,6 exprimir-se, mas no interior das formas prescritas e instituciona
lizadas. O mesmo se passava com as guerras entre tribos. O combate tomava
por vezes a forma de um verdadeiro ritual: trocavam-se injúrias, depois golpes
e o combate cessava com a chegada dos mediadores. Durante o combate, as
mulheres encorajavam os homens com os seus gritos e os seus cantos que exal
tavam a honra e a força da família. Não se procurava matar ou esmagar o ad
versário. Tratava-se de manifestar a superioridade, as mais das vezes por meio
de um acto simbólico: na Grande Cabília o combate cessava, diz-se, quando um
dos dois campos se apoderara da trave mestra (thigejdith) e de uma laje tomada
da thajma 'th do adversário. Por vezes as coisas corriam mal, ou porque um gol
pe infeliz causava a morte de um combatente ou porque o "partido" mais forte
ameaçava penetrar nas habitações, último refúgio da honra. Só então os sitia
dos pegavam nas suas armas de fogo, o que a maior parte das vezes bastava
para pôr termo ao combate. Os mediadores, marabus e sábios da tribo, pediam
aos agressores que se retirassem e estes iam-se sob a protecção da palavra dada,
la'naya? Ninguém pensaria em causar-lhes dano; isso seria quebrar la'naya, fal
ta supremamente desonrosa (djemaa-saharidj). Segundo um velho dos Ath
Mangellat (Grande Cabília), nas guerras de tribos as grandes batalhas eram ra
ras e só ocorriam após um conselho realizado pelos anciãos, que fixavam o dia
da acção e o objectivo atribuído a cada aldeia. Cada um lutava por si, mas eram
gritados conselhos e encorajamentos. De todas as aldeias em redor, as pessoas
olhavam e davam a sua opinião sobre a audácia e a habilidade dos combaten
tes. Quando o partido mais forte ocupava posições a partir das quais podia es
magar o adversário ou quando se apoderava de um símbolo manifesto de vitó
ria, o combate parava e cada tribo voltava para a sua terra. Podia acontecer que
se fizessem prisioneiros: colocados sob a protecção (la'naya) daquele que os cap
turara, eram em geral bem tratados. Permitia-se-lhes que partissem no final do
conflito, com uma gandura nova, o que significava que o liberto era um morto
que voltava à sua aldeia com a sua mortalha. O estado de guerra (elfetna) podia
durar anos. De certa maneira, a hostilidade era permanente; a tribo vencida fica
va à espera da desforra e, na primeira ocasião, apoderava-se dos rebanhos e dos
pastores dos seus inimigos; a pretexto do mais pequeno incidente, por altura do
mercado semanal, por exemplo, o combate recomeçava.7 8 Em suma, nada mais
difícil do que distinguir, em semelhante universo, o estado de paz e o estado de
guerra. Seladas e garantidas pela honra, as tréguas entre aldeias e tribos, como os
pactos de protecção entre as famílias, vinham apenas pôr um termo provisório à
guerra, o mais sério dos jogos inventado pela honra. Se o interesse econômico
podia fornecer o ensejo da guerra e satisfazer-se com ela, o combate aparenta
va-se mais a uma competição institucionalizada e regulamentada que a uma
guerra pondo em jogo todos os meios disponíveis em vista de uma vitória total,
conforme o documenta o seguinte diálogo, narrado por um velho cabila:
O £
.
"Um dia alguém disse a Mohand Ouqasi:
— Vens à guerra? O
— O que é que lá se faz? '
— Pois bem, assim que se vê um Rumi, dispara-se sobre ele.
— Como é que isso é?
— E como querias que fosse?
— Julgava que devia haver uma disputa, depois injúrias e, por fim, o
combate!
7 Vemos aqui a função social dos marabus. Proporcionam a saída, a "porta" (thnbbwth)
como dizem os Cabilas, e autorizam a pôr fim ao combate sem que a desonra e a vergonha
recaiam sobre um ou outro dos dois partidos. A sociedade, por uma espécie de má-fé in
dispensável para assegurar a sua própria existência, fornece ao mesmo tempo os impera
tivos da honra e das vias oblíquas que permitem contorná-los sem os violar, pelo menos
aparentemente.
8 Um velho da aldeia de Ain Aghbel, na região de Collo, fornecia-nos no Verão de 1959 uma
descrição ponto por ponto semelhante.
O SENTIDO DA HONRA 13
— Nada disso; ele atira sobre nós e nós atiramos sobre ele. É assim...
— Então, vens?
— Não, eu quando não estou furioso, não sou capaz de disparar sobre as
pessoas//. 9
outro num combate de homem a homem. Segundo a teoria dos jogos, o bom
jogador é aquele que supõe sempre que o seu adversário saberá descobrir a
melhor estratégia e que regula por essa ideia o seu jogo; do mesmo modo, no
jogo da honra, tanto o desafio como a resposta implicam que cada antagonista
escolha participar no jogo e respeitar as suas regras, ao mesmo tempo que
postula que o seu adversário é capaz da mesma escolha.
O desafio propriamente dito, e também a ofensa, supõe, como o dom, a
escolha de disputar um jogo determinado conforme certas regras. O dom é um
desafio que honra aquele a quem se endereça, ao mesmo tempo que põe à pro
va o seu ponto de honra (nif); consequentemente, do mesmo modo que aquele
que ofende um homem incapaz de ripostar se desonra a si próprio, também
ofende aquele que faz um dom excessivo, excluindo a possibilidade de um
contradom. O respeito da regra exige, nos dois casos, que seja deixada uma
possibilidade de resposta, em suma, que o desafio seja razoável. Mas, no mes
mo acto, dom ou desafio constituem uma provocação e uma provocação a ri
postar: "Ele fez-lhe vergonha", diziam, segundo Marcy, os Berberes de Marro
cos a propósito do dom em forma de desafio (tawsa) que marcava as grandes
ocasiões. Aquele que recebeu o dom ou sofreu a ofensa é apanhado na engrena
gem da troca e deve adoptar um comportamento que, faça o que fizer, será uma
resposta (ainda que por defeito) à provocação constituída pelo acto inicial.11
Pode escolher prolongar a troca ou rompê-la (cf. o esquema da página
seguinte). Se, obedecendo ao ponto de honra, optar pela troca, a sua escolha é
idêntica à escolha inicial do adversário;'aceita entrar no jogo, que pode conti
nuar até ao infinito: ripostar é, pelo seu efeito, um novo desafio. Conta-se que
outrora, assim que a vingança se consumava, toda a família saudava por meio
de manifestações de regozijo o fim da desonra, thuqdha an-tsasa, quer dizer, ao
mesmo tempo o alívio do mal-estar que se tinha no "fígado" devido à ofensa e
também a satisfação de se estar vingado: os homens disparavam tiros, as mu
lheres soltavam "iu-iu", proclamando assim que a vingança fora cumprida, a
fim de todos verem como uma família de honra sabe restaurar com prontidão o
seu prestígio e a fim de a família inimiga não poder alimentar quaisquer
um matador a soldo, fá-la recair sobre o seu autor, que se vê assim desonrado.12
Da mesma maneira, no caso do dom, aquele que recebe pode significar que
escolhe recusar a troca, ou repudiando o dom ou entregando de imediato ou a
prazo um contradom exactamente idêntico ao dom. Também neste caso a tro
ca é interrompida. Em suma, nesta lógica, só o subir da parada, com o desafio
a responder ao desafio, pode significar a escolha de jogar o jogo, segundo a re
gra do desafio e da resposta sempre renovados.
Seja agora o caso em que o ofensor prevalece indiscutivelmente sobre o
ofendido. O código de honra e a opinião encarregada de o fazer respeitar exi
gem apenas do ofendido que este aceite entrar no jogo: subtrair-se ao desafio é
a única atitude condenável. De resto, não é necessário que o ofendido triunfe
sobre o ofensor para ser reabilitado aos olhos da opinião: não se censura o ven
cido que fez o seu dever; com efeito, se foi vencido segundo a lei do combate, é
vencedor segundo a lei da honra. Mais ainda, a elbahadla recai sobre o ofensor
que, além disso, saiu vencedor do confronto, assim abusando duplamente da
sua superioridade. O ofendido pode também rejeitar a elbahadla sobre o seu
ofensor sem recorrer à resposta. Basta-lhe para isso adoptar uma atitude de hu
mildade que, pondo a tônica na sua fraqueza, faça ressaltar o carácter arbitrá
rio, abusivo e desmesurado da ofensa. Evoca assim, mais inconsciente que
conscientemente, o segundo corolário do princípio da igualdade em honra que
quer que aquele que ofende um indivíduo incapaz de ripostar ao desafio se de
sonra a si próprio.13 Esta estratégia não é admissível, evidentemente, a não ser
na condição de que não haja qualquer equívoco aos olhos do grupo sobre a dis
paridade entre os antagonistas; é normal entre indivíduos que são reconheci
dos pela sociedade como fracos, os clientes (yadh itsumuthen, os que se apoiam
sobre) ou os membros de uma pequena família (ita 'fanen, os magros, os fracos).
Seja enfim o caso em que o ofensor é inferior ao ofendido. Este último
pode ripostar, transgredindo o terceiro corolário do princípio da igualdade
em honra; mas, se abusa da sua vantagem, arrisca-se a recolher para si pró
prio a desonra que recairia normalmente sobre o ofensor inconsiderado e in
consciente, sobre o indivíduo desprezado (amah qur) e presunçoso. A sabedo
ria aconselha-lhe antes o "golpe do desprezo".14 Deve, como se diz, "deixá-lo
ladrar até estar cansado" e "recusar-se a entrar em rivalidade com ele". Não
12 Cf., atrás a primeira narrativa. "Uma família que não conta pelo menos com um malan
dro está perdida." Não podendo o homem de honra condescender em reconhecer as injú
rias de um indivíduo indigno mas nem por isso passando a estar ao abrigo das suas ofen
sas, sobretudo na cidade, precisa de poder lançar um malandro contra outro malandro.
13 Cf., atrás, a segunda narrativa.
14 Se o conjunto das análises propostas neste estudo remetem a todo o instante o leitor oci
dental para a sua tradição cultural, não devemos, no entanto, minimizar as diferenças. E
por isso que, excepto nos casos em que se impunham, como aqui, nos demos por regra
evitar sugerir aproximações, receando incitar a identificações etnocêntricas, baseadas
em analogias superficiais.
18 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
destinada aos outros. O "homem de bem" (argaz el 'ali) deve estar permanen
temente alerta deve vigiar as suas palavras que, "semelhantes à bala que sai
da espingarda, não regressam" e isso tanto mais que cada um dos seus actos e
cada uma das suas palavras comprometem todo o seu grupo. "Se os animais
se agarram à pata, os homens ligam-se pela língua." O homem de mal é pelo
contrário aquele que é dito ithatsu, "tem o costume de esquecer". Esquece a
sua palavra (awal), quer dizer, os seus compromissos, as suas dívidas de hon
ra, os seus deveres. "Um homem dos Ilmayen dizia uma vez que gostaria de
ter um pescoço tão comprido como o do camelo; assim, as suas palavras, par
tindo do coração, teriam um longo caminho a percorrer antes de chegar à lín
gua, o que lhe deixaria o tempo necessário à reflexão" e isto revela toda a im
portância concedida à palavra dada e à fé jurada. "O homem de esquecimen
to", diz o provérbio," não é um homem." Esquece e esquece-se a si próprio (it
hatsu imams'); diz-se ainda: "Ele come o seu bigode"; esquece os seus antepas
sados e o respeito que lhes deve e o que se deve a fim de ser digno deles (Les
Issers). O homem desprovido de respeito de si (mabla eíardh, mabla lahay, ma-
bla erya, mabla elhachma) é aquele que deixa transparecer o seu eu íntimo, com
as suas afeições e as suas fraquezas. O homem sábio, pelo contrário, é aquele
que sabe guardar o segredo, que dá a cada instante provas de prudência e de
discrição (amesrur, amaharuz nessar que guarda ciosamente o segredo. A vigi
lância perpétua de si é indispensável para se obedecer a esse preceito funda
mental da moral social que proíbe alguém singularizar-se, que peça que seja
abolida, tanto quanto possível, a personalidade profunda, na sua unicidade e
na sua particularidade, sob um véu de pudor e de discrição. "Só o diabo (Chi
ton) é que diz eu"; "só o diabo começa por si próprio"; "a assembléia (thajma
'th) é a assembléia; só o judeu está sozinho". Em todos estes ditados se expri
me o mesmo imperativo, aquele que impõe a negação do eu íntimo e que se
realiza tanto na abnegação da solidariedade e da entreajuda como na discri
ção e no pudor dos modos devidos. Por oposição ao que, incapaz de se mos
trar à altura de si próprio, manifesta impaciência ou cólera, fala a torto e a di
reito ou ri de maneira inconsiderada, cai na precipitação ou na agitação desor
denada, se apressa sem reflectir, se excede, grita, vocifera (elhamaq), em suma,
15 O primo de um marido complacente (chamado radhi, o que consente, ou multa ‘lem, aque
le que sabe) dizia um dia a um terceiro: "Que queres? Quando tens um irmão que não tem
nif, não podes pôr-lhe um nif de terra!". E continuava: "Se o meu primo fosse inválido, se
ria normal que eu o vingasse; se não tivesse dinheiro, que eu pagasse para o vingar. Mas
ele vai-o juntando e não se importa. Não sou eu quem irá para a Caiena ou se arruinará
por ele!" (El Kalaa). O medo da justiça francesa, o enfraquecimento do sentimento de soli
dariedade familiar e o contágio de um outro sistema de valores levaram os Cabilas a re
nunciar muitas vezes ao antigo código de honra. Na antiga sociedade, a honra era indivi-
sa, como a terra familiar. Paralelamente à tendência para romper a indivisão da proprie
dade familiar que se manifestou cada vez com mais força, desenvolveu-se o sentimento
de que a defesa da honra é um assunto propriamente individual.
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
20
16 De um homem que tarda em cumprir um dever, diz-se no Béarn: ele terá de o fazer "por
vergonha ou por honra"; por outras palavras, o medo da vergonha impor-lhe-á o que o
sentido da honra não pode inspirar-lhe.
O SENTIDO DA HONRA 21
17 Reduzir à sua função de comunicação — que mais não seja pela transposição de esque
mas e de conceitos tomados de empréstimo à linguística ou à teoria da comunicação—fe
nômenos como a dialéctica do desafio e da resposta e, mais geralmente, a troca de dons,
de palavras ou de mulheres, seria ignorar ambivalência estrutural que os predispõe a
preencherem uma função política de dominação na e pela realização da função de comu
nicação.
22 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
da qual não possa dar-se conta pelo menos retrospectivamente, isso não sig
nifica que cada comportamento seja perfeitamente previsível, à maneira dos
actos inseridos nas sequências rigorosamente estereotipadas de um rito. O
que vale não só para o observador mas também para os agentes que desco
brem na imprevisibilidade relativa das respostas possíveis a ocasião de por
em prática as suas estratégias. Mas as próprias trocas mais ritualizadas, nas
quais todos os momentos da acção e do seu desenvolvimento estão rigorosa
mente previstos, continuam a poder autorizar um afrontamento entre estra
tégias, na medida em que os agentes permanecem senhores do intervalo entre
os momentos obrigatórios e podem, portanto, agir sobre o adversário jogan
do com o tempo da troca. Sabemos que o facto de retribuir um dom no mesmo
instante, quer dizei, abolir o intervalo, equivale a romper a troca. Do mesmo
modo deve levar-se a sério a lição contida nas palavras do leão e de Djeha: o
controlo perfeito dos modelos da maneira de obedecer a esses modelos que define a
excelência exprime-se no jogo com o tempo, que transforma a troca ritualiza-
da em afrontamento de estratégias. Assim, sabemos que, por ocasião do casa
mento, o chefe da família à qual é pedida uma jovem deverá responder imedi
atamente no caso de recusa, mas que diferirá quase sempre a resposta quando
tiver a intenção de aceitar: fazendo-o, atribui-se os meios de perpetuar tanto
quanto possível no tempo a vantagem conjuntural (ligada à sua posição de
solicitado) que pode coexistir com uma inferioridade estrutural (sendo a fa
mília solicitada muitas vezes de uma condição inferior à da que pede) e que se
traduz concretamente pelo desequilíbrio inicial, progressivamente invertido,
entre os dons trocados pelas duas famílias. Da mesma maneira, o estrategista
hábil pode fazer de um capital de provocações recebidas ou de conflitos sus
pensos, e da virtualidade de vingança, de respostas ou de conflitos, que esse
capital contém um instrumento de poder, reservando-se a iniciativa do reto
mar e até mesmo da interrupção das hostilidades, p
A ç. •
Sendo, sob certo aspecto, a hurma identificável com o haram, com o sagrado objecti
ve, pode ser violada por descuido. Vimos, por exemplo, que o roubo numa casa habi
tada era particularmente grave e exigia vingança por constituir um atentado contra
a hurma; o roubo ou a fraude no mercado constituem apenas um desafio e um atenta
do contra o amor-próprio daquele que é sua vítima. A aldeia tem também a sua hur
ma, que pode ser violada quando, por exemplo, um estrangeiro nela vem causar es
cândalo.
O SENTIDO DA HONRA 25
como desonra virtual, o nif, sem pôr por completo a hurma ao abrigo de aten
tados, permite restaurá-la na sua integridade. Assim, a integridade da hurma
é função da integridade do nif; só a vingança escrupulosa e activa do ponto de
honra (nif) é capaz de garantir a integridade da honra (hurma) — exposta por
natureza, enquanto sagrada, ao ultraje sacrílego — e de proporcionar a consi
deração e a respeitabilidade conferidas pela sociedade àquele que tem suficiente
ponto de honra para manter a sua honra ao abrigo da ofensa.
A honra no sentido de consideração diz-se sar; essar é o segredo, o prestí
gio, o brilho, a "glória", a "presença". Diz-se de alguém que "essar segue-o e
brilha à sua volta" ou ainda que o protege "a barreira de essar" (zarb nessar): es
sar põe aquele que o detém ao abrigo do desafio e paralisa o ofensor eventual
através da sua influência misteriosa, através do medo (alhiba) que inspira. Ca
usar vergonha a alguém é "retirar-lhe essar" (diz-se também "retirar-lhe lah-
ya, o respeito): essar, esse não-sei-quê que faz o homem de honra, é tão frágil e
vulnerável como imponderável. "O albornoz de essar, dizem os Cabilas, "não
está atado, só pousado"(ÁzeroM n-chmini)™
Ahurma no sentido de sagrado (haram), o nife a hurma no sentido de res
peitabilidade são inseparáveis. É assim que quanto mais vulnerável é uma fa
mília, mais nif deverá ter para defender os seus valores sagrados, e maiores
serão assim o mérito e a consideração que a opinião lhe atribui. Compreen
de-se deste modo que, longe de contradizer ou de proibir a respeitabilidade, a
pobreza só possa redobrar o mérito daquele, que apesar de se encontrar parti
cularmente exposto ao ultraje, consegue impor o respeito^ Reciprocamente,
o ponto de honra só tem significação e função para um homem para o qual
existem coisas sagradas, coisas que merecem ser defendidas. Um ser
X O ' -<=>■
O
19 Ou ainda: "Essar é uma semente de nabo." Asemente de nabo, minúscula e redonda, é ex
tremamente lábil. Essar designa também a graça de uma mulher ou de uma rapariga.
20 Eis, segundo um velho cabila dos Alt 'idel que o recolhera do seu pai, o retrato do homem
de honra, retrato em todos os pontos idêntico ao que me forneceu um membro da tribo
dos Issers, o que faz pensar que estejamos diante de um personagem mítico e exemplar
cuja aventura é, em cada caso, situada num meio circundante familiar: "Era uma vez um
homem que se chamava Belkacem ou Aíssa e que, apesar da sua pobreza, era respeitado
pela sua sabedoria e a sua virtude. O seu prestígio exercia-se sobre várias tribos. De todas
as vezes que sobrevinha um diferendo ou um combate, ele servia de mediador e apazi
guava o conflito. Os Ben Ali Chérif, grande família da região, tinham inveja da sua in
fluência e do seu prestígio, tanto mais que ele se recusava a prestar-lhes homenagem. Um
dia, os membros da tribo decidem tentar reconciliá-los. Convidam o mais velho dos Ben
Ali Chérif ao mesmo tempo que Belkacem ou Aíssa. Quando este último entrou, o velho,
já sentado, disse-lhe com ironia: 'Que belos arkasen (plural de arkas, calçado rústico de
cultivador) tens!' Belkacem respondeu: 'O costume quer que os homens olhem os ho
mens na cara, de frente, e não nos pés. É o rosto, a honra do homem, que conta.' A estran
geiros que lhe perguntavam como adquirira ele a sua influência na região, Belkacem res
pondeu: 'Primeiro conquistei o respeito da minha mulher, depois dos meus filhos, depois
dos meus irmãos e dos meus parentes, depois do meu bairro, depois da minha aldeia; o
resto veio por si."'
MfUtlí.CA &I.
26 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
-----------------
21 É nesta lógica que se compreende a reprovação que rodeia o celibatário. Assim, à igualda
de em honra corresponde uma espécie de igualdade em vulnerabilidade que se exprime
por exemplo, na expressão muitas vezes usada para chamar à ordem o pretensioso: "A
tua mãe não vale mais que a minha mãe" (não devendo esta fórmula irônica ser confundi
da com a injúria "a minha mãe vale mais que a tua mãe": ultrapasso-te em todas as coisas
uma vez que até nisto te ultrapasso, quando a verdade é que todas as mulheres se equiva
lem).
22 Outrora, em certas regiões da Grande Cabilia, a thajma 'th (assembléia) obrigava os ho
mens da tribo, sob pena de multa, a comprarem uma espingarda a fim de poderem defen
der a sua honra e a do grupo. O que não o fazia, apesar da multa, era posto no index, des
prezado por todos e considerado "uma mulher".
O SENTIDO DA HONRA 27
23 O laço que une o nife a virilidade é particularmente evidente nos jogos rituais como o tiro
ao alvo, que é praticado por ocasião do nascimento de um rapaz, da circuncisão e do casa
mento (cf. nota 10).
24 O limiar, ponto de encontro entre dois mundos antagônicos, é lugar de uma multiplicida
de de ritos, um lugar rodeado de interditos por todos os lados. Em certas regiões da Cabí-
lia, só os parentes o podem transpor. Em todo o caso, não se pode transpô-lo sem se ser ro
gado a fazê-lo. O visitante anuncia-se por meio de um grito (como no Sul de França) ou
então tossindo e batendo com os pés no chão. O costume em certas regiões (El Kseur, Sidi
Aích), estabelece que o parente afastado ou o parente pelo lado das mulheres (por exem
plo, o irmão da esposa) que é introduzido pela primeira vez na casa entregue uma oferen
da simbólica chamada "a visão" (thizri). A aldeia também é um espaço sagrado; nela não
se entra senão a pé.
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
28
---------- ,
25 Conta-se que outrora as mulheres iam sozinhas ao mercado: mas eram tão tagarelas que o
mercado se prolongava até ao da semana seguinte. Então os homens apareceram um dia
com os seus paus e puseram fim às conversas das mulheres... Vemos aqui que o "mito"
"explica" a divisão actual do espaço invocando a "má natureza das mulheres". Quando
se quer dizer que o mundo está de pernas para o ar, diz-se que "as mulheres vão ao merca
do".
26 Tradicionalmente, o porte do véu e a clausura (lahdjubia) não se impunham a não ser no
caso do xeque da mesquita da aldeia (ao qual esta garantia, entre outras coisas, o abasteci
mento de lenha e a manutenção de thayamants, encarregadas do fornecimento de água),
de algumas famílias marabúticas que não moram num azib (isto é, numa espécie de lugar
isolado) e de certos chefes de famílias importantes, que distinguem uma das mulheres da
casa (geralmente a mais jovem das esposas) fazendo dela thanahdjabth.
O SENTIDO DA HONRA 29
27 Tudo se passa como se a mulher não pudesse realmente aumentar a honra dos agnatos,
mas apenas conservá-la intacta por meio do seu comportamento e da respeitabilidade ou
perdê-la (ekkes el’ardh: tirar a reputação). O que pode aumentar a honra do grupo é apenas
a aliança, por meio do casamento, com os parentes do sexo masculino da mulher.
30 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
HURMA-HARAM NIF
28 O tabu da nudez é absoluto, mesmo nas relações sexuais. Sabe-se, por outro lado, que a
desonra é descrita como um pôr em estado de nudez ("ele despiu-me, tirou-me a roupa,
despojou-me").
O SENTIDO DA HONRA 31
29 Cf. É. Laoust, Étude sur le dialecte berbère du Chenoua comparé avec celuí des Beni Menacer et
des Beni Salah, Paris, Leroux, 1912, p. 15.
32 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
aldeia da Grande Cabília, um rapaz com cerca de dez anos, último membro
do sexo masculino da sua família, ia aos enterros até mesmo nas aldeias mais
afastadas e assistia às cerimônias no meio dos adultos (Tizi Hibel). Todo o
comportamento destes, todas as cerimônias e todos os ritos de iniciação ou de
passagem tendem a indicar ao rapaz a sua qualidade de homem ao mesmo
tempo que as responsabilidades e os deveres correlatives. As acções pueris
são desde muito cedo avaliadas em função dos ideais de honra. A educação
conferida pelo pai ou pelo tio paterno tende a desenvolver na criança o nif e
todas as virtudes viris que dele são solidárias: espírito batalhador, audácia,
vigor, resistência. Nesta educação dada pelos homens e destinada a fazer ho
mens, a tônica é posta na linhagem paterna, nos valores que foram legados
pelos antepassados varões e dos quais cada membro varão do grupo deve ser
garante e defensor.
Descobrir-se-iam sem dúvida as mesmas categorias mítico-rituais na
base, senão da lógica das trocas matrimoniais, pelo menos da representação
ideal que os agentes fazem delas. Aprecocidade do casamento compreende-se
se pensarmos que a mulher, da natureza má, deve ser colocada o mais cedo
possível sob a protecção benéfica do homem. "A vergonha, diz-se, é a rapariga"
(fll'ar thaqchichth), o genro é designado settar la'yub, "o véu das vergonhas". Os
Árabes da Argélia chamam por vezes às mulheres "as vacas de Satã" ou "as re
des do demônio", o que significa que a elas pertence a iniciativa do mal: "A
mais recta [das mulheres]", diz um provérbio, "é retorcida como uma foice".
Semelhante a um rebento que tende para a esquerda, a mulher não pode ser di
reita, mas, quanto muito, corrigida pela protecção benéfica do homem.30 Sem
pretendermos apreender aqui a lógica objectiva das trocas matrimoniais, po
demos, todavia, observar que as normas que as regem e as racionalizações que
a maior parte das vezes são usadas para justificar a sua forma "ideal", o casa
mento com a prima paralela, são formuladas numa linguagem estruturada se
gundo as categorias mítico-rituais^A preocupação de salvaguardar a pureza
do sangue e de conservar inalterada a honra familiar é a razão mais frequente
mente invocada para justificar o casamento com a prima paralela. De um jo
vem que desposou a sua prima paralela diz-se que "a protegeu", que agiu de
maneira a salvar o segredo da intimidade familiar (cf. capítulo III). Aquele que
se casa no interior da sua própria família fica certo, ouvimos dizer muitas ve
zes, de que a sua esposa se esforçará por salvaguardar a honra do marido, man
terá o segredo dos conflitos familiares e não se irá queixar aos seus pais. O casa
mento com uma estrangeira é temido como se teme uma intrusão; cria uma
brecha na barreira de protecções que rodeia a intimidade familiar: "Mais vale",
diz-se, "proteger o seu nif do que entregá-lo nas mãos dos outros."
30 "A dignidade da rapariga", diz um provérbio árabe, "só existe quando ela está com o seu
pai."
O SENTIDO DA HONRA 33
O ethos da honra
Cf. A. Picard, Textes berbères dans leparlerdes Irjen (Cabília, Argélia, Typo-litho, 1961), que
faz sua esta etimologia.
34 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
32 Poderá encontrar-se uma verificação destas análises no facto de a generalização das tro
cas monetárias e da atitude calculista que dela é correlativa fazer aparecer a "negocia-
ção-duelo de honra" em torno do dote da viúva como vergonhosa e ridícula, constituin
do uma troca interessada enquanto tal e destruindo a ambiguidade estrutural da troca se
gundo a tradição.
Capítulo 2
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO
37
38 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
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3 Todas as descrições da casa berbere, até mesmo as mais precisas e mais metódicas (como
a de R. Maunier, "Le Culte domestique en Kabylie" e "Les Rites de la construction en
Kabylie", em Mélanges de sociologie nord-africaine, Paris, Alcan, 1930, pp. 120-177) ou as
mais ricas em notações (como as de É. Laoust: Mots et Choses berbères, Paris, 1920,
pp. 50-53, e Étude sur le dialecte berbère di Chenoua, op. cit.,pp. 12-15, ou as de H. Genevoix,
L'Habitation kabyle, Fort-National, Fichier de communication berbère, n.° 46,1955), apre
sentam, na sua extrema minúcia, lacunas sistemáticas, sobretudo no que se refere à locali
zação e à orientação das coisas e das actividades, pois nunca chegam a apreender os ob-
jectos e as acções como partes de um sistema simbólico. S6 o postulado de que cada um
dos fenômenos observados extrai a sua necessidade e o seu sentido da sua relação com to
dos os outros podería conduzir a uma observação e a uma interrogação capazes de susci
tarem, pela sua intenção sistemática, os factos que escapam à observação desarmada e
que os observadores não podem referir espontaneamente pois lhes parecem óbvios. Este
postulado encontra a sua validação nos próprios resultados da investigação que alicerça:
a posição particular da casa no interior das representações mágicas e das práticas rituais
justifica a abstracção inicial por meio da qual foi arrancada ao sistema mais vasto para ser
tratado como sistema.
4 Com esta excepção, as paredes são designadas por dois nomes diferentes, conforme se
jam consideradas do exterior ou do interior. O exterior é estucado pelos homens, enquan
to o interior é pintado de branco e enfeitado pelas mulheres. Esta oposição entre os dois
pontos de vista é, como veremos, fundamental.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 39
transportar os mortos. Por isso se compreende que não se possa, sem o ofen
der, convidar um hóspede a dormir no sótão, que mantém com a parede do
tear a mesma oposição que a parede da sepultura.
É também diante da parede do tear, frente à porta, em plena luz, que se
põe sentada, ou melhor, se expõe, à maneira das travessas com motivos deco
rativos que nele estão penduradas, a recém-casada, no dia do casamento.
Quando temos presente que o cordão umbilical da rapariguinha é enterrado
atrás do tear e que, para proteger a virgindade de uma jovem, a fazem passar
por entre os fios, da porta até à parede do tear, vemos a função de protecção
mágica que é atribuída ao tear.8 E de facto, do ponto de vista dos seus parentes
masculinos, toda a vida da rapariga se resume de certo modo nas posições su
cessivas que ela ocupa simbolicamente em relação ao tear, símbolo da protec
ção viril:9 antes do casamento, está atrás do tear, na sua sombra, sob a sua pro
tecção, do mesmo modo que se encontra sob a vigilância do pai e dos irmãos;
no dia do casamento, está sentada diante do tear, virando-lhe costas, em ple
na luz, e, mais tarde, sentar-se-á para tecer, com as costas para a parede da luz
atrás do tear: o genro é chamado "o véu das vergonhas", sendo o ponto de
honra do homem a única protecção da honra feminina, ou melhor, a única
"barreira" contra a vergonha cuja ameaça toda a mulher contém ("a vergonha
é a rapariga").10 P
Aparte baixa e escura opõe-se também à parte alta como o feminino e o
masculino: além de a divisão do trabalho entre os sexos (baseada no mesmo
princípio de separação que a organização do espaço) confiar à mulher o en
cargo da maior parte dos objectos pertencentes à parte escura da casa, o trans
porte da água, da lenha e do estrume, por exemplo, a oposição entre a parte
alta e a parte baixa reproduz no interior do espaço da casa a que se estabelece
entre o dentro e o fora, entre o espaço feminino, a casa e o seu jardim, lugar por
excelência do haram, quer dizer do sagrado e do interdito, e o espaço masculi
no.11 A parte baixa da casa é o lugar do segredo mais íntimo no interior do
mundo da intimidade, quer dizer, de tudo o que se refere à sexualidade e à
procriação. Quase vazia durante o dia, quando toda a actividade — exclusi
vamente feminina — se concentra à volta do lar, a parte escura enche-se com a
8 Entre os Árabes, para operar o rito mágico da ferragem destinado a tornar as mulheres
inaptas para as relações sexuais, faz-se passar a noiva pelo tear, de fora para dentro, quer
dizer do centro da divisão até à parede contra a qual as tecelãs trabalham; a mesma mano
bra executada no sentido inverso destrói a ferragem (cf. W. Marçais e A. Guiga, Textes ara-
bes de Takrouna, Paris, Leroux, 1925, p. 395).
9 É. Laoust associa à raiz zett (tecer) a palavra tazettat, que, entre os Berberes de Marrocos,
designa a protecção concedida a qualquer indivíduo que viaje em território estrangeiro
ou a retribuição recebida pelo protector em troca da sua protecção (op. cit., p. 126).
10 Cf. adiante.
11 Quando entra pela primeira vez no estábulo, a nova junta de bois é recebida e conduzida
pela dona da casa.
42 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
----------------- .0
12 A construção da casa, que ocorre sempre por ocasião do casamento d e um filho e que sim
boliza o nascimento de uma nova família, é interdita em Maio, como o próprio casamen
to. O transporte das traves, identificadas, como veremos, com o dono da casa, chama-se
tha'richth, como o sótão e como a padiola onde se transporta o morto ou um animal ferido que
será abatido longe de casa, e dá lugar a uma cerimônia social cuja significação é por inteiro
semelhante à do enterro. Pelo seu carácter imperioso, pela forma cerimonial de que se reves
te e pela extensão do grupo que mobiliza, este trabalho colectivo (thiwizi) só tem equivalente
no enterro: os homens dirigem-se ao lugar onde a madeira foi cortada, depois de terem sido
convocados do alto da mesquita como para um enterro. Espera-se da participação no trans
porte das traves, acto piedoso sempre efectuado sem contrapartida, tanto hassana (mérito)
como da participação nas actividades colectivas ligadas ao funeral (cavar a sepultura, extrair
as lajes de pedra ou transportá-las, ajudar a carregar o caixão ou assistir ao enterro).
13 M. Dewulder, "Peintures murales et pratiques magiques dans la tribu des Ouadhias", Re
vue africaine, 1954, pp. 14-15.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 43
O’ .o
14 No dia de tharurith wazal (8 de Abril do calendário juliano), momento decisivo de vira
gem do ano agrícola, entre a estação húmida e a estação seca, o pastor vai muito cedo, de
manhã, buscar água ao poço e aspergir com ela a trave central; por ocasião das colheitas, o
último molho de espigas, cortado segundo um ritual especial (ou uma espiga dupla), é
pendurado na trave central, onde ficará durante o ano todo.
15 Da recém-casada que se adapta bem à nova casa, diz-se tha'mmar, quer dizer, entre outros
sentidos (cf. nota 29), "ela está cheia" e "ela enche".
16 Entre os Berberes do Aurès, a consumação do casamento decorre na segunda-feira, na
quinta-feira ou no sábado, dias fastos. Na véspera, as jovens da família do noivo empi
lham contra o pilar central, hiji, seis odres pintados de vermelho, verde, amarelo e violeta
(representando a noiva) e um sétimo branco (o noivo), cheios de grãos de cereal. Na base
do hiji, uma velha deita sal no chão para aumentar a virilidade do marido e abre uma este
ira orientada para leste, que será o leito dos recém-casados durante uma semana. As mu
lheres da parentela do noivo perfumam o hiji, enquanto a sua mãe lança, como no mo
mento de lavrar os campos, punhados de tâmaras que as crianças disputam. No dia se
guinte, a esposa é levada por um parente próximo do marido até ao hiji, onde a mãe volta
a deitar no chão farinha, tâmaras, trigo germinado, açúcar e mel.
44 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
mestra", diz outro provérbio. Asalas, que uma adivinha define como "nascido na
terra e enterrado no céu", fecunda thigejdith, implantada na terra, lugar dos ante
passados, senhores de toda a fecundidade, e aberta para o céu.17 *
A casa organiza-se segundo um conjunto de oposições homólogas:
fogo / água, cozido / cru, alto /baixo, luz / sombra, dia / noite, masculino / fe
minino, nif/hurma, fecundante/fecundável, cultura/natureza. Mas de fac
to as mesmas oposições existem entre a casa no seu conjunto e o resto do uni
verso. Considerada na sua relação com o mundo exterior, propriamente
masculino da vida pública e do trabalho agrícola, a casa, universo das mu
lheres, inundo da intimidade e do segredo, é haram, quer dizer, ao mesmo
tempo sagrada e ilícita para todo o homem que dela não faça parte (daí a ex
pressão usual nas prestações de juramento: "Que a minha mulher — ou a
minha casa—se torne para mim ilícita — haram — se..."'), cf. cap. I, p. 52, da
edição francesa. Lugar do sagrado esquerdo, da hurma, a que se ligam todas
as propriedades associadas à parte escura da casa, é posta sob a protecção
do ponto de honra masculino (nif), como a parte escura da casa fica a cargo
da trave mestra. Toda a violação do espaço sagrado toma a partir desse mo
mento a significação social de um sacrilégio: assim, o roubo numa casa habi
tada é tratado consuetudinariamente como uma falta gravíssima, a título de
ofensa ao nif do chefe de família e de ultraje à hurma da casa e, por isso, de
toda a comunidade.16 O
Não podemos justificadamente dizer, portanto, que a mulher está en
cerrada na casa a não ser que observemos ao mesmo tempo que o homem é
excluído dela, pelo menos durante o dia. Mal o Sol nasce, o homem deve, no
Verão, estar no campo ou na assembléia; no Inverno, se não for ao campo,
deve ir para o local da assembléia ou sentar-se nos bancos abrigados pelo al
pendre que encima a porta de entrada do pátio. Até durante a noite, pelo me
nos na estação seca, os homens e os rapazes, depois de circuncidados, dor
mem fora de casa, ou junto das medas, na eira, ao lado do burro e da mula pe-
ados, ou no passai dos figos, ou ainda em pleno campo, e até, o que acontece
mais raramente, na thajma'th.19
O homem que está demasiado em casa durante o dia torna-se suspeito
Coloca-se em certas regiões o relho do arado na forquilha do pilar central, com a ponta vi
rada para a porta.
Sabe-se que o hóspede entrega à dona da casa uma soma de dinheiro a que se chama "a
vista", o que acontece não só quando se é convidado pela primeira vez para uma casa,
mas também quando, no terceiro dia do casamento, se visita a família da esposa.
Manifestando-se a dualidade de ritmo ligada à divisão entre estação seca e estação húmi
da, entre outras coisas, na ordem doméstica, a oposição entre a parte baixa e a parte alta
da casa assume, no Verão, a forma da oposição entre a casa propriamente dita, para onde
as mulheres e as crianças se retiram para dormir e onde se armazenam as reservas, e o pá
tio onde é instalada a lareira e o moinho de braços, onde se tomam as refeições e onde as
pessoas se reúnem por altura das festas e das cerimônias.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 45
ou ridículo: é "o homem da casa", como se diz do estorvo que fica no meio das
mulheres e "no choco em casa como uma galinha no seu ninho". O homem
que se respeita deve fazer-se ver, pôr-se a todo instante frente ao olhar dos ou
tros, enfrentá-los, fazer frente (gabei). É o homem entre os homens (argaz yer ir-
gazerí);20 Daí a importância que assumem os jogos de honra, espécie de acção
teatral realizada diante dos outros, espectadores avisados que conhecem o
texto e todos os jogos de cena e são capazes de apreciar as suas mais pequenas
variantes. Compreende-se que todas as actividades biológicas — comer, dor
mir, procriar — sejam banidas do universo propriamente cultural e relegadas
para esse asilo da intimidade e dos segredos da natureza que é a casa,21 mun
do da mulher, votado à gestão da natureza e excluído da vida pública. Por
oposição ao trabalho do homem, realizado no exterior, o da mulher está vota
do a permanecer obscuro e escondido ("Deus esconde-o", diz-se): "Lá dentro,
ela não tem descanso, debate-se como uma mosca no coalho; lá fora (acima),
nada se vê do seu trabalho." Dois ditados muito semelhantes definem a con
dição da mulher que não pode conhecer outro lugar próprio a não ser a sepul
tura supraterrestre que é a casa e a casa subterrânea que é a sepultura: "A tua
casa é a tua sepultura" e "A mulher tem só duas moradas, a casa e a
sepultura."
Assim, a oposição entre a casa e a assembléia dos homens, entre a vida
privada e a vida pública, ou, se se quiser, entre a plena luz do dia e o segredo
da noite, recobre muito exactamente a oposição entre a parte baixa, escura e
nocturna da casa e a sua parte alta, nobre e luminosa.22 A oposição que se esta
belece entre o mundo exterior e a casa só assume o seu sentido completo
quando nos damos conta de que um dos termos desta relação, quer dizer, a
casa, se divide ele próprio segundo os mesmos princípios que o opõem ao ou
tro termo. É, portanto, ao mesmo tempo verdadeiro e falso dizer que o mundo
exterior se opõe à casa como o masculino ao feminino, o dia à noite, o fogo à
água, etc., uma vez que o segundo termo destas oposições se divide a cada
vez em si próprio e no seu oposto.23
Em suma, a oposição mais aparente masculino (ou dia, fogo, etc.)/femi
nino (ou noite, água, etc.) tem o risco de dissimular a oposição masculino /
[feminino-masculino/feminino-feminino], e no mesmo acto a homologia
masculino/feminino: feminino-masculino/feminino-feminino. Vemos aqui
20 As relações entre os homens devem entabular-se no exterior: "Os amigos são os amigos
do exterior e não os do kanun."
21 "A galinha", costuma dizer-se, "não põe no mercado."
22 A oposição entre a casa e a thajma'th lê-se claramente na diferença entre os planos das
duas construções: enquanto a casa se abre pela porta da fachada, a da assembléia apre
senta-se como uma longa passagem coberta, inteiramente aberta nas duas empenas, po
dendo ser atravessada de um lado a outro.
23 Esta estrutura reaparece noutros domínios do sistema mítico-ritual, por exemplo na es
trutura do dia e do ano.
46 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
que a primeira oposição não é mais que uma transformação da segunda, que
supõe a mudança de sistema de referência no termo do qual se deixa de opor o
feminino-feminino ao feminino-masculino para opor o conjunto que consti
tuem a um terceiro termo: feminino-masculino/feminino-feminino / (=femi-
nino-masculino + feminino-feminino)/masculino.
Microcosmo organizado segundo as mesmas oposições e as mesmas ho-
mologias que ordenam todo o universo, a casa mantém uma relação de homo-
logia com o resto do universo, mas, de um outro ponto de vista, o mundo da
casa tomado no seu conjunto está com o resto do mundo numa relação de
oposição cujos princípios não são outros senão os que organizam tanto o es
paço interior da casa como o resto do mundo e, mais geralmente, todos os do
mínios da existência. Assim, a oposição entre o mundo da vida feminina e o
mundo da cidade dos homens assenta nos mesmos princípios que os dois sis
tema de oposições que opõe. Decorre daqui que a aplicação a domínios opos
tos do principium divisions que constitui a sua própria oposição garante uma
economia e um acréscimo de coerência, sem acarretar em contrapartida a con
fusão entre estes domínios. A estrutura do tipo a: bl: b2 é sem dúvida uma das
mais simples e mais poderosas que pode utilizar um sistema mítico-ritual,
uma vez que não pode opor sem unir simultaneamente, sendo, por outro
lado, capaz de integrar numa ordem única um número infinito de dados,
através da simples aplicação indefinidamente reiterada do mesmo princípio
de divisão. Segue-se ainda que cada uma das duas partes da casa (e, no mes
mo acto, cada um dos objectos que nela são depostos e cada uma das activida-
des que nela se realizam) é de certo modo qualificada em dois graus, ou seja,
em primeiro lugar como feminina (nocturna, escura, etc.) na medida em que
participa do universo da casa, e secundariamente como masculina ou femini
na na medida em que pertence a uma ou outra das divisões desse universo.
Assim, por exemplo, quando o provérbio diz "o homem é a lâmpada de fora,
a mulher é a lâmpada de dentro", devemos entender que o homem é a verda
deira luz, a do dia, e a mulher a luz da obscuridade, a obscura claridade; e sa
bemos que, por outro lado, a mulher está para a Lua como o homem para o
Sol. Do mesmo modo, pelo trabalho da lã, a mulher produz a protecção bené
fica da tecelagem, simbolizando a brancura da peça tecida a felicidade;24 o
tear, instrumento por excelência da actividade feminina, erguendo-se frente
ao leste como o arado, seu homólogo, é ao mesmo tempo o leste do espaço in
terior de tal maneira que tem, no interior do sistema da casa, um valor mascu
lino enquanto símbolo de protecção. Do mesmo modo ainda, o lar, umbigo da
casa (ela própria identificada com o ventre de uma mãe), onde se conservam
as brasas, fogo secreto, dissimulado, feminino, é o domínio da mulher,
24 "Os dias brancos" designam os dias felizes. Uma das funções dos ritos de casamento é tor
nar a mulher "branca" (aspersão de leite, etc.).
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 47
25 O ferreiro é o homem que, como a mulher, passa o dia inteiro no interior, perto do fogo.
26 O lar é lugar de um certo número de ritos e objecto de interditos que o tornam o oposto
da parte obscura. Por exemplo, é interdito tocar nas cinzas durante a noite; cuspir na la
reira, deixar lá cair água ou nela derramar lágrimas (Maunier). Do mesmo modo os ritos
destinados a obter uma mudança de tempo e baseados numa inversão utilizam a oposi
ção entre a parte seca e a parte húmida da casa: por exemplo, para passar do húmido ao
seco, coloca-se um pente de cardar (objecto fabricado ao fogo e associado à tecelagem) e
uma brasa ardente no limiar da casa durante a noite; inversamente, para passar do seco
ao húmido, aspergem-se de água os pentes de cardar, deixados no limiar também, du
rante a noite.
27 Aaldeia tem também a sua hurma, que deve ser respeitada por todos os que a visitam. Do
mesmo modo que nos devemos descalçar para entrar numa casa, uma mesquita ou uma
eira, também assim devemos apear-nos quando entramos numa aldeia.
48 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
28 'Ammar é, tratando-se de uma mulher, ser poupada e boa dona de casa e também fundar
um lar e estar repleto. À 'ammar opõe-se aquele do qual se diz ikhla, homem gastador, mas
também estéril e isolado, ou ainda enger, celibatário e estéril, quer dizer, em certo sentido,
selvagem, incapaz, como o chacal, de fundar uma casa.
29 Pelo contrário, a entrada em casa das novas pedras do lar, em datas inaugurais, é preen
chimento, introdução do bom e do bem; por isso, as previsões feitas nestas circunstâncias
incidem sobre a prosperidade e a fecundidade: se se encontrar um verme branco de baixo
de uma das pedras, haverá um nascimento no ano; uma erva verde, uma boa colheita; for
migas, um rebanho aumentado; um bicho-de-conta, novas cabeças de gado.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 49
casa; a noiva não pode transpor o limiar antes do sétimo dia que se segue ao
seu casamento; a mãe que deu à luz não deve sair de casa antes do quadragé
simo dia; o lactante não deve sair antes do Aid Seghir; o moinho de braços não
deve ser emprestado e deixá-lo vazio é atrair a fome sobre a casa; não se deve
sair de casa antes de a tecelagem ter sido terminada; tal como os empréstimos
de lume, o varrer, acto de expulsão, é interdito durante os primeiros quatro
dias da lavra; a saída do morto é "facilitada" para que ele não leve consigo a
prosperidade;30 as "primeiras saídas", por exemplo, a da vaca, no quarto dia
após o parto, ou a do coalho são assinaladas por sacrifícios.310 "vazio" pode
resultar de um acto de expulsão e pode também introduzir-se com certos
objectos, como o arado, que não pode entrar em casa entre dois dias de traba
lho, ou o calçado do agricultor (arkasserí), o qual se associa à lakhla, ao espaço
vazio, ou com certas pessoas, como as velhas, porque trazem consigo a esteri
lidade (lakhla) e porque são numerosas as casas que fizeram vender ou aque
las onde introduziram ladrões. Pelo contrário, uma grande quantidade de ac-
tos rituais visam garantir o "preenchimento" da casa, como os que consistem
em lançar nos alicerces, sobre a primeira pedra, depois de derramado o san
gue de um animal, os fragmentos de uma lâmpada de casamento (cuja forma
representa um acasalamento e que desempenha um certo papel na maior par
te dos ritos de fecundidade), ou em fazer sentar a recém-casada, por ocasião
da sua entrada na casa, num odre cheio de grãos. Qualquer primeira entrada
na casa é uma ameaça para a plenitude do mundo interior que os ritos do li
miar, ao mesmo tempo propiciatórios e profilácticos, devem esconjurar: a
nova junta de bois é recebida pela dona de casa — tamgharth ukham —, quer
dizer, como vimos, "a plenitude da casa", la'mmara ukham —, que coloca no li
miar a pele de carneiro onde se depõe o moinho de braços e que recebe a fari
nha (alamsir, chamado também a "porta dos gêneros", bab errazq). A maior
parte dos ritos destinados a trazer a fecundidade ao estábulo e, por isso, à casa
("uma casa sem vaca é", segundo se diz, "uma casa vazia") tendem a reforçar
magicamente a relação estrutural que une o leite, o verde-azul (azegzaw, que é
também o cru, thizegzawth), a erva na Primavera, a infância do mundo natural
e do homem: no equinócio da Primavera, por altura do regresso de azai, o jo
vem pastor que participa duplamente no crescimento do campo e do gado,
através da sua idade e da sua função, colhe, para o pendurar no lintel da por
ta, um ramo de "tudo o que o vento agita no campo" (à excepção do
30 Para consolar alguém, diz-se "ele vai deixar-te a baraka", se se tratar de uma pessoa gran
de, ou "a baraka não saiu de casa", se se tratar de um bebé. O morto é colocado junto à por
ta, com a cabeça virada para a porta; a água é aquecida do lado do estábulo e a lavagem é
feita à entrada do estábulo; as brasas e as cinzas do fogo são espalhadas fora de casa; a tá
bua que serviu para lavar o morto fica três dias diante da porta; depois do enterro, pre-
gam-se três pregos na porta da sexta-feira até ao sábado seguinte.
31 A vaca deverá passar por cima de uma faca e das favas depostas no limiar; gotas de leite
são derramadas na lareira e no limiar.
50 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
loureiro-rosa, utilizado as mais das vezes com fins profilácticos e nos ritos de
expulsão, e de uma liliácea, que marca a separação entre os campos); enter-
ra-se também um saquinho contendo cominho, benjoim e anil no limiar do es
tábulo, enquanto se diz: "Ó verde-azul (azegzaw) faz com que a manteiga não
caia!" Penduram-se no recipiente de bater a manteiga plantas colhidas de
fresco e esfregam-se com elas os utensílios destinados a receber o leite ,32 A en
trada da recém-casada é, entre todas, cheia de consequências para a fecundi
dade e a plenitude da casa: quando está ainda sentada em cima da mula que a
transportou da casa do seu pai, apresentam-lhe água, grãos de trigo, figos,
nozes, ovos cozidos ou pastéis, outras tantas coisas (sejam quais forem as va
riantes locais) associadas à fecundidade da mulher e da terra, e ela lança-as
em direcção à casa, fazendo-se assim, de algum modo, preceder pela fecundi
dade e pela plenitude que deve introduzir na casa.33 Transpõe o limiar às cos
tas de um parente do esposo ou por vezes, segundo Maunier, às costas de um
negro (mas nunca, seja como for, às costas do esposo), que, interpondo-se, in
tercepta as forças más capazes de afectarem a sua fecundidade, cuja sede é o
limiar, ponto de encontro entre mundos opostos: uma mulher nunca deve
sentar-se junto ao limiar com o filho ao colo; a criança pequena e a esposa re
cente não devem pisá-lo com demasiada frequência.
Assim, a mulher, através da qual a fecundidade chega à casa, contri
bui, pelo seu lado, para fecundidade do mundo agrário: votada ao mundo
do interior, age sobre o exterior garantindo a plenitude do interior e contro
lando, na sua qualidade de guardiã do limiar, essas trocas sem contraparti
da que só a lógica da magia pode conceber e através das quais cada uma das
partes do universo entende só receber da outra o cheio, não lhe oferecendo
senão o vazio.34 ÍÀ A
Mas um ou outro dos dois sistemas de oposições que definem a casa
quer na sua organização interna, quer na sua relação com o mundo exterior
acaba por ser trazido para primeiro plano conforme consideremos a casa do
ponto de vista masculino ou do ponto de vista feminino: enquanto, para o ho
mem, ela é menos um lugar onde se entra que um lugar donde se sai, a mulher
não pode senão conferir a estes dois deslocamentos, e às definições diferentes
da casa que deles são solidárias, uma importância e uma significação inver
sas, uma vez que o movimento para fora consiste antes do mais, para elas, em
Põe-se também algumas vezes no vaso que receberá o leite uma pedra que o jovem pastor
apanhou ao ouvir o cuco pela primeira vez e que colocou então em cima da sua cabeça.
Do mesmo modo acontece que se ordenhe o leite fazendo-o passar pelo anel da enxada ou
que se atire uma pitada de terra para dentro do recipiente.
A recém-casada pode também ser aspergida com água ou levada a beber água e leite.
Na porta são pendurados diferentes objectos que têm em comum manifestar a dupla fun
ção do limiar, barreira selectiva, encarregada de deter o vazio e o mal, e de, ao mesmo
tempo, deixar entre o cheio e o bem, predispondo para fecundidade e para a prosperida
de tudo o que transpõe o limiar na direcção do exterior.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 51
actos de expulsão e uma vez que o movimento para dentro, quer dizer, do li
miar para o lar, lhe compete como o seu próprio movimento. A significação
do movimento para fora nunca se mostra tão bem como no rito realizado pela
mãe, no sétimo dia do nascimento da criança, "para que o filho seja corajoso":
transpondo o limiar, pousa o pé direito no pente de cardar e simula um com
bate com o primeiro rapaz que encontra. A saída é o movimento propriamen
te masculino, que conduz para os outros homens e também para os perigos e
provações a que importa fazer frente, como um homem tão áspero, em ques
tões de honra, como as pontas do pente de cardar.35 Sair ou, mais exactamen-
te, abrir (fatah) é o equivalente de "estar na manhã" (sebah). O homem que se
respeita deve sair de casa ao nascer do dia, sendo essa saída um nascimento:
dai, a importância das coisas que então se encontram e que pressagiam o dia
inteiro, de tal maneira que mais vale, em caso de mau encontro (ferreiro, mu
lher portadora de um odre vazio, gritos ou disputas, seres disformes), "refa
zer a manhã" ou a "saída". Por exemplo, um homem digno, consciente das
suas responsabilidades, deve levantar-se cedo: "Quem não conclui os seus as
suntos de manhã cedo nunca os concluirá", ou "o suq é a manhã", ou ainda
"quem dorme até ao meio de azai (momento mais quente, a meio do dia) dá
com o mercado deserto." Em todas as coisas, a manhã é o momento da deci
são, a seguir à noite consagrada ao repouso. Amanhã tem uma relação de ho-
mologia com a sorte, o bem, a luz. "A manhã", costuma dizer-se, "é a facilida
de." Levantar-se cedo é ter presságios favoráveis (laftah, a abertura de bom
agoiro). Aquele que se levanta cedo está ao abrigo dos encontros portadores
de desgraça; o último a pôr-se a caminho, pelo contrário, só pode ter por com
panheiro o zarolho que espera pela plena luz do dia para partir ou o coxo que
se arrasta. Quem se levanta ao cantar do galo coloca o seu dia sob a protecção
dos anjos da manhã e dá-lhes graças; põe-se, por assim dizer, em estado de
graça, fazer com que os "anjos decidam em seu lugar e sua vez".
Compreende-se a partir daqui a importância que é concedida à orienta
ção da fachada da casa principal, a que alberga o chefe de família e que com
porta um estábulo, a qual está quase sempre orientada para leste, sendo a por
ta principal — por oposição à porta estreita e baixa, reservada às mulheres,
que abre para o jardim, nas traseiras da casa—correntemente chamada a por
ta de leste (thabburth thacherqitti) ou ainda da porta da rua, de cima, ou a porta
grande.36 Dada a exposição das aldeias e a posição inferior do estábulo, a par
te alta da casa, com o lar, encontra-se a norte, o estábulo ao sul e a parede do
tear a oeste. Segue-se que o deslocamento em direcção à casa para entrar nela
se orienta de leste para oeste, ao contrário do movimento pelo qual dela se sai,
de acordo com a orientação por excelência, para leste, ou seja, para cima, para
35 Enquanto ao nascer a rapariga é embrulhada num lenço de seda, macio e flexível, o rapaz
é enfaixado com os laços secos e rugosos que servem também para atar os molhos de espi
gas da colheita.
52 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
a luz, para o bem e o bom: o lavrador orienta os seus bois para Leste no mo
mento de os atrelar e de os desatrelar e começa a lavrar de oeste para leste; do
mesmo modo, os ceifeiros dispõem-se frente à qibla, e é virado também para
leste que é degolado o boi do sacrifício. Não acabaríamos de enumerar as ac
ções que são realizadas em conformidade com a orientação fundamental,
quer dizer, todas as acções de importância que se ligam à fecundidade e à
prosperidade do grupo.37 Se voltarmos a considerar agora a organização inte
rior da casa, observamos que a sua orientação é exactamente a inversa da do
espaço exterior, como se tivesse sido obtida por meio de uma meia rotação em
torno da parede de fachada ou do limiar tomados como eixo. A parede do
tear, que fica pela frente assim que é transposto o limiar, e que é directamente
iluminada pelo sol da manhã, é a luz do interior (como a mulher é a lâmpada
do interior), quer dizer o leste do interior, simétrico do leste exterior, ao qual
toma de empréstimo a sua luz.38 A face interna e escura da parede de fachada
representa o oeste da casa, lugar do sono, que fica para trás quando se avança
da porta para o kamin, a porta correspondente simbolicamente à "porta do
ano", princípio da estação húmida e do ano agrário. E do mesmo modo, as
duas paredes de empena, a parede do estábulo e a parede do lar, recebem dois
sentidos opostos conforme consideremos uma ou outra das suas faces: ao
norte exterior corresponde o sul (e o Verão) do interior, isto é, o lado da casa
que se tem pela frente e à direita quando se entra na direcção do tear; ao sul ex
terior corresponde o norte (e o Inverno) interior, quer dizer, o estábulo, situa
do atrás e à esquerda quando se avança da porta para a lareira.39 A divisão da
É óbvio que uma orientação inversa (a que vemos olhando à transparência o plano da
casa) é possível, ainda que rara. Diz-se explicitamente que tudo o que vem do oeste é por
tador de desgraça e que uma porta virada nessa direcção não pode receber senão obscuri
dade e esterilidade. De facto, se o plano oposto ao plano "ideal" é raro, é em primeiro lu
gar porque as casas secundárias, quando se dispõe do canto direito do pátio, são muitas
vezes simples salas de estar, desprovidas de cozinha e de estábulo, e porque o pátio é mu
itas vezes fechado, do lado oposto à fachada casa principal, pelas traseiras da casa vizi
nha, ela própria virada para leste.
Sabe-se que os dois suf, ligas políticas e guerreiras que se mobilizavam quando se decla
rava um incidente (e que mantinham relações variáveis, indo da sobreposição à dissocia
ção completa, com as unidades sociais baseadas no parentesco), se chamavam suf do alto
(ufella) e suf do baixo (buadda), ou suf de direita (ayafus) e suf de esquerda (azelmndh), ou
ainda suf de leste (acherqi) e suf de oeste (aghurbi), tendo sido conservada esta última de
signação, menos usual, mas que ainda hoje sobrevive, no vocabulário dos jogos infantis,
para designar os campos dos jogos rituais (donde os combates tradicionais entre os suf
extraíam a sua lógica).
Recorde-se que é do lado do tear, parte nobre da casa, que o dono da casa recebe (qribel') o
seu hóspede.
É, portanto, necessário acrescentar os quatro pontos cardeais e as quatro estações à série
das oposições e das homologias acima apresentadas (sendo, sob outros aspectos, de-
monstráveis também a pertença e a adequação destas significações ao sistema mítico-ri-
tual no seu conjunto); ...cultura, natureza, Verão, Inverno.
A CASA OU O MUNDO AO CONTRÁRIO 53
casa numa parte escura (lados oeste e norte) e uma parte luminosa (lados
leste e sul) corresponde à divisão do ano numa estação húmida e numa es
tação seca. Em suma, a cada face externa da parede (essur) corresponde
uma região do espaço interior (aquilo que os Cabilas designam por thar-
kunt, quer dizer, aproximadamente, o lado) que detém um sentido simétri
co e inverso no sistema das oposições internas; cada um dos dois espaços
pode, pois, ser definido como a classe dos movimentos efectuando um
mesmo deslocamento, quer dizer, uma meia rotação, por referência ao ou
tro, constituindo o limiar o eixo da rotação. Não se compreenderiam bem o
peso e o valor simbólico que são atribuídos ao limiar no interior do sistema
se não nos déssemos conta de que o limiar deve a sua função mágica ao fac
to de ser lugar de uma inversão lógica e de, como lugar de passagem e de
encontro obrigatórios entre os dois espaços, definidos por referência a mo
vimentos do corpo e a trajectos socialmente qualificados,40 ser logicamente
o local onde o mundo se inverte.41
Deste modo, cada um dos universos tem o seu oriente e os dois desloca
mentos mais carregados de significações e de consequências mágicas, o do li
miar para o lar, que deve trazer a plenitude e cuja efectuação ou o controlo ri
tual incumbe à mulher, e o do limiar para o mundo exterior, que, pelo seu va
lor inaugural, contém tudo o que será o porvir e em particular o porvir do tra
balho agrícola, podem realizar-se em conformidade com a orientação benéfi
ca, quer dizer, de oeste para leste.42 A dupla orientação do espaço da casa faz
com que se possa ao mesmo tempo entrar e sair com o pé direito, tanto no sen
tido próprio como no figurado, com todos os benefícios mágicos ligados à ob
servância desse gesto e sem que seja rompida, em caso algum, a relação que
une a direita ao alto, à luz e ao bem. Ameia rotação do espaço em torno do li
miar assegura, portanto, se é lícita a expressão, a maximização do benefício
mágico, uma vez que o movimento centrípeto e o centrifugo se efectuam num
espaço organizado de tal maneira que nele se entre de frente para luz como
dele se sai também de frente para ela.43 Z-
Paris, 1963-1964
46 No espaço interior também as duas partes opostas são hierarquizadas. Veja-se, a par de
outros índices já referidos, o ditado: "Mais vale uma casa cheia de homens que uma casa
cheia de bens (el mal)", quer dizer, de gado.
Capítulo 3
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE
57
58 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
1 Este estudo é o resultado de uma investigação que, entrecortada por outros trabalhos, se
prolongou de 1960 a 1970. No quadro de uma análise das estruturas econômicas e sociais
conduzida de início em diferentes aldeias da Cabília, depois na região de Collo e, por fim,
no vale do Chélif e no Ouarsenis, tinham sido recolhidas genealogias que tentavam situar
grosseiramente aposição econômica relativa dos grupos unidos pelo casamento. A análi
se estatística destas genealogias, levada a cabo entre 1962 e 1964, permitiu estabelecer al
gumas relações extremamente grosseiras, como a endogamia mais elevada das famílias
marabúticas ou a dissimetria das trocas matrimoniais entre os grupos separados por de
sigualdades econômicas. Mas era impossível deixar de sentirmos como eram artificiais e
abstractos os recortes ou os agrupamentos que se tornava forçoso operar a partir do mo
mento em que se queriam calcular as taxas de casamento com a prima paralela. Tendo en
tão abandonado os estudos das genealogias que fornecia apenas ensinamentos negativos
no que se referia à análise do ritual, depressa nos demos conta de que as variações observa
das no desenrolar dos ritos que tendêramos de início a tratar como simples "variantes"
correspondiam, no caso do casamento, a uniões estrutural e funcionalmente diferentes,
vendo-se reduzido o ritual, que se desenvolve completamente no caso dos casamentos
entre grandes famílias de tribos diferentes, à sua expressão mais simples no caso do casa
mento entre primos paralelos: assim cada casamento (portanto, cada uma das formas que
o rito pode tomar) surgia como um momento de uma estratégia cujo princípio reside num
tipo determinado de condições objectives e não numa norma explicitamente expressa e
obedecida, ou num "modelo" inconsciente. Não era possível por isso dar razão das trocas
matrimoniais a não ser na condição de se estabelecer, além da relação puramente genea
lógica entre os cônjuges, a relação objectiva entre as posições na estrutura social dos gru
pos unidos pelo casamento, a história das trocas econômicas e simbólicas sobrevindas
entre eles e o estado dessas transacções no momento em que se estabelece a negociação
matrimonial, a história dessa negociação, o seu momento na vida dos cônjuges (infância
ou adolescência), a sua duração, os agentes responsáveis por ela, as trocas a que dá lugar,
e, em particular, o montante do dote, etc. O mesmo é dizer que o estudo das trocas matri
moniais se confunde com a história econômica e social das famílias das quais o esquema
genealógico apenas reproduz, o esqueleto. Foi por isso que se decidiu recolher a história
social de uma família sem que fosse possível levar realmente até ao fim essa tarefa, que,
ainda que nos atenhamos à informação pertinente do ponto de vista dos casamentos, é de
facto interminável: este trabalho, que permitiu medir concretamente tudo aquilo que o
genealogista comum deixava de parte, forneceu além disso a maior parte das ilustrações
das análises teóricas aqui propostas.
2 Cf. C. Lévi-Strauss, "Le Problème des relations de parenté", em Systèmes de parenté (inter
venção nos colóquios interdisciplinares acerca das sociedades muçulmanas), Paris, École
Pratique des Hautes Études, J. Mergue ed., 1959, pp. 13-14.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 59
3 "A antropologia apercebe-se cada vez mais claramente da dificuldade de passar de teo
rias semiabstractas, correspondendo muitas vezes a culturas regionais particulares, a
uma teoria global que as englobe. Demo-nos conta da relação bastante estrita que existe
entre a teoria dos grupos de unificação e as sociedades africanas ou, no mínimo, algumas
dentre elas. Da mesma maneira, a teoria da aliança de casamento é sem dúvida indispen
sável para as sociedades do Sudeste asiático. Em contrapartida, é inaplicável às socieda
des árabes que praticam o casamento da prima paralela patrilinear. As duas teorias ficam
desarmadas frente aos sistemas ditos cognáticos ou indiferenciados, caso em que se pode
dizer, parafraseando o próprio Lévi-Strauss, que o parentesco não se deixa separar da re
lação com a terra e nos quais se entrevê que é preciso reunir os diferentes aspectos para
isolarmos um verdadeiro "sistema". Em suma, estamos ainda, como costuma dizer-se,
num nível de abstracção muito baixo e as teorias mais interessantes de que dispomos
aplicam-se apenas, cada uma delas, a um tipo de sociedade ou de sistema particular"
(L. Dumont, Introduction it deux théoriesd'anthropologie sociale, Paris, Mouton, 1971, p. 119).
60 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
validade, talvez nunca preenchidas, de uma tal linguagem, que não é outra
senão a do direito.4 Mas esta interrogação sobre o estatuto epistemológico de
conceitos de uso tão corrente e universal como os de regra, de prescrição ou
de preferência, não pode deixar de afectar a teoria da prática que implicitamen
te eles pressupõem: poderá dar-se, ainda que de modo implícito, a "álgebra
do parentesco", como dizia Malinowski, para uma teoria das práticas de pa
rentesco e do parentesco "prático" sem se postular tacitamente a existência de
uma relação dedutiva entre os nomes de parentesco e as "atitudes de paren
tesco"? E poderá dar-se uma significação antropológica a essa relação sem se
postular que as relações reguladas e regulares entre os parentes são produto
da obediência a regras que, embora um último escrúpulo durkheimiano leve
a designar como "jurais" (jurai) em vez de legais ou jurídicas, são considera
das como governando a prática à maneira das regras do direito?5 Poderá por
fim fazer da definição genealógica dos grupos o único princípio de recorte
das unidades sociais e da atribuição dos agentes a esses grupos sem se postu
lar de modo implícito que os agentes são definidos sob todos os aspectos e de
uma vez por todas pela sua pertença ao grupo e que, para encurtar caminho, o
grupo define os agentes e os seus interesses mais que os agentes definem gru
pos em função dos seus interesses?
O
----------------- yV
4 R. Needham, "The Formal Analysis of Prescriptive Patrilateral Cross-Cousin Marriage",
Southwestern Journal of Anthropology, 14,1958, pp. 199-219.
5 Sobre a relação dedutiva que une os nomes de parentesco ou sistema das apelações às ati
tudes de parentesco, ver Â. R. Radcliffe-Brown, Structure anã Function in Primitive Society,
Londres, 1952, p. 62; African Systems of Kinship and Marriage, 1960, introdução, p. 25; C.
Lévi-Strauss, Anthropologic structurale, Paris, Pion, 1958, p. 46. Sobre o termo jural e o uso
que lhe dá Radcliffe-Brown, cf. L. Dumont (op. cit., p. 41): as relações "jurais" são as "que
são objecto de prescrições precisas, formais, quer se trate de pessoas, quer de coisas".
6 F. Barth, "Principles of Social Organization in Southern Kurdistana", Universitetets
Ethnografiske Museum Bulletin, n.° 7, Oslo, 1953.
7 R. F. Murphy e L. Kasdan, "The Structure of Parallel Cousin Marriage", American Anthro
pologist, Vol. 61, Fevereiro de 1959, pp. 17-29.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 61
10
J. Cuisenier, "Endogamie et exogamie dans le manage arabe", L'Homme, II, 2, Maio-Agos
to de 1962, pp. 80-105.
11 "Sabe-se de há muito, e as simulações em computador empreendidas por K. Kundstadter
e a sua equipa acabaram de o demonstrar, que as sociedades que preconizam o casamen
to entre certos tipos de parentes só num pequeno número de casos conseguem agir em
conformidade com a norma. As taxas de fecundidade e de reprodução, o equilíbrio de
mográfico dos sexos, a pirâmide das idades, nunca oferecem a bela harmonia e a regulari
dade requeridas para que, no grau prescrito, cada indivíduo tenha a garantia de encon
trar no momento do casamento um cônjuge apropriado, ainda que a nomenclatura de pa
rentesco seja suficientemente extensiva para confundir graus do mesmo tipo, mas desi
gualmente afastados e que o são muitas vezes a tal ponto que a noção de uma descendên
cia comum passa a ser inteiramente teórica", C. Lévi-Strauss, Les Structures élémen taires de
la parenté, prefácio da 2.“ edição, Paris, Mouton, 1968, p. XVII.
12 Jean Cuisenier — que aqui segue Claude Lévi-Strauss fazendo notar que "do ponto de
vista estrutural, podemos tratar como equivalentes o casamento com a filha do irmão do
pai e o casamento com a filha do filho do irmão do pai” (C. Lévi-Strauss, "Le Problème
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 63
des relations de parenté", loc. cit., p. 55)—escreve:"[...] acontece, pelo contrário, que Ego
se case com a neta do seu tio paterno ou com a filha do tio-avô paterno. Do ponto de vista
estrutural, estas uniões são assimiláveis, uma, ao casamento com a filha do tio paterno, a
outra, ao matrimônio com a neta do tio-avô paterno" (cf. J. Cuisenier, loc. cit., p. 84).
Quando combina o nominalismo do genealogismo que toma a coerência do sistema das
apelações pela lógica prática das disposições e das práticas com o formalismo de uma es
tatística baseada em traços abstractos, o etnólogo é levado a operar manipulações genea
lógicas que têm o seu equivalente prático nos procedimentos que os agentes empregam
para mascarar as discordâncias entre as suas práticas matrimoniais e a representação ide
al que delas fazem ou a imagem oficial que entendem delas apresentar: podem assim, se
gundo as necessidades do momento, subsumir sob o nome de prima paralela não só a fi
lha do tio paterno, mas também as primas patrilineares no segundo ou mesmo no terceiro
grau, casos, por exemplo, da filha do filho do irmão do pai ou da filha do irmão do pai do
pai ou ainda da filha do filho do irmão do pai do pai, e assim por diante (cf. também as
manipulações que se fazem sofrer ao vocabulário do parentesco quando se utiliza, por
exemplo, o conceito de 'antm como termo de cortesia susceptível de ser dirigido a qual
quer parente patrilinear mais velho).
13 Sobre a distinção entre modelos miméticos e modelos analógicos, ver P. Bourdieu, J. C.
Chamboredon e J. C. Passeron, Le Métier de sociologue, Paris, Mouton, 1968, pp. 82-83.
14 O cálculo das "taxas de endogamia" por nível genealógico, intersecção irreal de "catego
rias" abstractas, leva a tratar como idênticos por meio de uma abstracção de segunda or
dem indivíduos que, embora se situem no mesmo nível da árvore genealógica, podem
ser de idades muito diferentes e cujos casamentos, por essa mesma razão, puderam ser
concluídos em conjunturas diferentes que correspondem a estados diferentes do merca
do matrimonial; ou, pelo contrário, a tratar como diferentes casamentos genealogica-
mente separados, mas cronologicamente simultâneos — podendo, por exemplo, um ho
mem casar ao mesmo tempo que um dos seus tios.
64 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
função na sua estrutura e na sua extensão das funções conferidas pelo grupo
aos que memoriza e esquece? Vendo no esquema da linhagem uma represen
tação ideológica a que os Beduínos recorrem para conseguir uma "compreen
são primeira" das suas relações presentes, E. L. Peters observa que esse esque
ma ignora as relações de força reais entre os segmentos genealogicamente
equivalentes,15 que esquece as mulheres e trata como simples "acidentes con
tingentes" os factores ecológicos, demográficos e políticos mais fundamenta
is. E, de facto, as genealogias mais rigorosamente controladas apresentam as
lacunas sistemáticas que caracterizam a memória colectiva.
Sendo a força da recordação proporcional ao valor que o grupo concede
a cada indivíduo no momento da recolecção, as genealogias registam melhor
os homens (e, por conseguinte, os seus casamentos), sobretudo quando pro
duziram uma numerosa descendência masculina, que as mulheres (excepto,
evidentemente, quando estas se casaram no interior da linhagem); registam
os casamentos próximos melhor que os longínquos, os casamentos únicos
melhor que a série completa de todos aqueles contraídos pelo mesmo indiví
duo (poligamia, matrimônios múltiplos na sequência de divórcio ou viuvez).
E tudo incita a supor que podem ser passadas em silêncio linhas inteiras, por
parte dos informantes, quando o último representante morreu sem descen
dência ou, o que vem a ser o mesmo, sem descendência masculina. A todos os
níveis genealógicos, mas sobretudo aos mais elevados, os casamentos femini
nos são sempre nitidamente menos numerosos que os masculinos, diferença
que não se pode explicar nem pela liberdade que é teoricamente concedida ao
homem de ter várias esposas, de repudiar a mulher sem incorrer em desonra
— enquanto a mulher encontra o seu interesse material e simbólico, a sua
"realização" (thachbahth, a beleza) num casamento estável, de molde a satisfa
zer tanto os seus parentes como a sua família de adopção —, nem pela obriga
ção imposta ao viúvo de voltar a casar — ao passo que a viúva, ainda quando
muito jovem, é excluída do mercado matrimonial pelo seu estatuto de mãe in
cumbida de criar o filho do seu marido, sobretudo tratando-se de um rapaz:
"Uma mulher não pode ficar — viúva — por uma outra mulher", diz-se da
viúva que tendo apenas filhas é encorajada a voltar a casar, enquanto a que é
mãe de rapazes é louvada pelo seu sacrifício, o que acontece ainda mais quan
do é jovem e se expõe assim a suportar a condição penosa de estrangeira entre
as irmãs do seu marido e as esposas dos irmãos do seu marido. Sem produzir
aqui a totalidade do material genealógico recolhido (mais de 30 genealogias
15 E. L. Peters, "Some Structural Aspects of the Feud among the Camel-herding Bedouin of
Cyrenaica", Africa, Vol. XXXVII, n.° 3, Julho de 1967, pp. 261-282. Murphy não dizia outra
coisa, mas sem extrair dela as respectivas consequências, quando observava que as ge
nealogias e a sua manipulação têm por função principal favorecer a integração vertical de
unidades sociais que o casamento com a prima paralela tende a dividir e a fechar sobre si
próprias.
Quadro 3.1 Genealogias
o„
66 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
16 O autor alude aqui a uma proposição de Mallarmé, sustentando que o papel do poeta é
dar um sentido mais puro às palavras da tribo. (N. do T.)
68 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
É evidente que o conhecimento teórico da prática enquanto prática nada tem a ver com o co
nhecimento prático sobretudo tal como o concebem todas as ideologias espontaneístas e
populistas quando a creditam das virtudes mágicas de uma experiência iniciática ou ain
da as ideologias da observação participante e até mesmo certas formas da exaltação mís
tica do "terreno". A teoria da prática enquanto prática é o único meio de escapar à alterna
tiva entre o materialismo e o idealismo recordando, contra o materialismos positivista,
que os objectos do conhecimento são construídos, e, contra o idealismo intelectualista,
que o princípio de tal construção é a actividade prática orientada para funções práticas.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 71
postfestum, à maneira do etnólogo que regista uma genealogia, que se pode es
quecer que são o produto de estratégias (conscientes ou inconscientes) orienta
das em vista da satisfação de interesses materiais e simbólicos e organizados
por referência a um tipo determinado de condições econômicas e sociais. Qu
ando se consideram apenas os lances já jogados (mas só aqueles que a ideologia
indígena designa como mais dignos de nota, por exemplo, o casamento com a
prima paralela patrilinear) e quando se possuem a seu propósito apenas in
formações genealógicas (quer dizer, a relação de parentesco entre os cônju
ges), fica-se condenado a retomar inconscientemente a teoria da prática que
se impõe todas as vezes que há um esforço no sentido de extrair do produto os
princípios da sua produção, do opus operatum o modus operandi. Por um para-
lo gismo que está no princípio de todos os discursos do método, faz-se como
se o caminho percorrido tivesse produzido segundo as regras (limitando-se o
academismo e a metodologia a tirar as consequências desta inconsequência
quando querem submeter a produção às regras que retrospectivamente ex
traíram do produto).
A concorrência e os conflitos aos quais dá lugar a transmissão dos no
mes próprios são uma ocasião que permite observar as funções práticas e po
líticas destes marcadores genealógicos: quem se apropria desses índices da
posição genealógica (fulano, filho de fulano, filho de fulano, etc.) que são ao
mesmo tempo emblemas, representando todo o capital simbólico acumulado
por uma linhagem, apodera-se de certo modo de um título que confere direi
tos privilegiados sobre o patrimônio do grupo. Thaymats, quer dizer, o estado
das relações de força e de autoridade entre os parentes contemporâneos, co
manda o que será thadjadith, quer dizer, a história colectiva, mas esta projec-
ção simbólica das relações de força entre indivíduos e grupos em concorrên
cia contribui ainda para reforçar essas relações, concedendo aos dominantes
o direito de professarem a memória interessada do passado mais de molde a
legitimar os seus interesses presentes. Dar a um recém-nascido o nome de um
grande antepassado não é apenas cumprir um acto de piedade filial, mas pre
destinar de algum modo o filho assim designado a "ressuscitar" o antepassa
do epónimo (isakrad djedi-s, "ressuscitou" o seu avô), ou seja, suceder-lhe nos
seus cargos e nos seus poderes. Compreende-se que se prefira evitar dar a um
recém-nascido o nome de um parente ainda vivo: seria "ressuscitá-lo" antes
da sua morte, lançar-lhe um desafio injurioso e, coisa mais grave, uma maldi
ção (a presença das considerações mágicas na atribuição dos nomes vê-se
também por muitos outros traços, como o facto de, para se exorcizar a ameaça
de esterilidade associada a certos nomes próprios, se lhes impor uma ligeira
deformação), o que se verifica até mesmo quando a ruptura da indivisão é
consagrada pela partilha solene do patrimônio ou na sequência da fragmen
tação da família decorrente da emigração para a cidade ou para França. Com-
preende-se que, segundo a mesma lógica, um pai não possa dar o seu nome
próprio a um filho e que, quando um filho é portador do nome do seu pai, isso
72 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
significa que nasceu pouco tempo depois da morte do pai que "o deixou no
ventre da mãe". Mas, neste domínio como noutros, as escapatórias e os sub
terfúgios não faltam. Acontece que se mude o nome próprio inicialmente atri
buído à criança, a fim de se lhe dar um nome tornado disponível pela morte
do pai ou do avô (vendo-se então o primeiro nome, que a mãe e as mulheres
da família continuam a utilizar, reservado aos usos privados). Pode acontecer
também que o mesmo nome próprio seja dado sob formas ligeiramente dife
rentes a vários filhos mediante uma adição ou uma supressão (e. g. Mohand
Ourabah em vez de Rabah ou o contrário; Akli em vez de Mohand Akli ou o
contrário) ou de uma alteração ligeira (Beza em vez de Mohand Ameziane,
Hamini ou Dahmane em vez de Ahmed, Ouali ou Alilou em vez de Ali, ou
ainda Seghir ou Mohand Seghir, formas arabizadas, em vez de Meziane ou
Mohand Ameziane). Do mesmo modo, se se evita designar um filho pelo
mesmo nome que o do seu irmão mais velho, certas associações de nomes
muito próximos uns dos outros ou derivados do mesmo são muito prezadas
(Ahcène e Elhochine, Ahmed ou Mohamed, Seghir ou então Meziane e
Moqrane, etc.), sobretudo se um desses nomes é o de um antepassado.
Mohand Said (Illa) (cf. árvore genealógica da página seguinte) retomou o
nome do seu avô Ia e deu como primeiro nome ao primeiro filho o nome novo
Arezqi e ao segundo filho o do seu pai Amar (IVb). Querendo Arezqi pôr ao
seu filho mais velho o nome do seu avô (Amar) quando ainda continua a ser
usado pelo seu irmão, não pode retomá-lo tal e qual sem risco de confusão e
sobretudo sem que isso parecesse descortês e, bem mais grave, um sinal de
hostilidade para com o irmão, por pouco que ao facto se associassem reinter-
pretações mágico-rituais. Resta-lhe apenas recorrer a uma das variantes de
Amar (IVb): Amara (Vb). Do mesmo modo, no caso do seu segundo filho, ten
do o nome de Mohand Said, disponível por um momento após a morte do pai
(Ilia), sido retomado por Amar (IVb), que o deu ao seu filho (Va), teve de re
correr a uma variante Saâd (Va).
A descendência de Mouloud (IIIc) (cf. 'árvore genealógica da página
seguinte) conservou o nome de Arab usado pelo antepassado Ilb para o atri
buir a IVb e a VIb e recorreu a uma variante, Mohand Amoqrane (Va), do
nome do primeiro antepassado Ia; a descendência de Moqrane (Illa) fez a es
colha simétrica e complementar, retomando o nome próprio Moqrane tal e
qual (Ia — Ilia — Va e Via) e recorrendo ao nome próprio Larbi, variante de
Arab (IVb e VIb). Dado que o campo dos nomes próprios excluídos é tanto
maior quanto mais integrada é a família, podemos descobrir na distribuição
dos primeiros nomes um índice do "sentimento" da linhagem. O mesmo
nome ou séries inteiras constituídas pelos mesmos nomes podem coexistir
numa mesma genealogia seguindo linhas paralelas: quanto mais afastada é a
origem comum (ou mais enfraquecida está a unidade entre os subgrupos),
mais legítimo parece utilizarem-se esses nomes, perpetuando a memória das
mesmas pessoas em linhagens cada vez mais autônomas.
A descendência de Abdallah (Ilb) (cf. árvore genealógica da página
seguinte), filho de Ahmed (Ia), subdividiu-se em três ramos, um a partir de
Salah (IIIc), um outro de Said (IIIc) e o terceiro de Ahmd (Ilia). Cada um des
tes três ramos retoma evidentemente o nome do seu fundador, de modo que
temos para Salah: IIIc—Vc—Vic, etc.; para Said: IIIc — Vc — VIc, etc.; e para
Ahmed: Illa — Va — Vila, etc.
Além destes nomes, que poderíam constituir o "capital" próprio de
cada uma das três linhagens, todas elas retomam um certo número de nomes
que parecem pertencer ao patrimônio comum ao conjunto da descendência,
quer dizer, ou os nomes dos dois antepassados Ahmed e Abdallah ou os dos
homens que não tiveram uma descendência masculina capaz de perpetuar a
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 75
estão definidos: todas as soluções para o problema que se põe serão admiti
das, contanto que se exprimam na língua da genealogia... O etnólogo não po
dería romper a relação de conivência que o une à ideologia oficial dos seus in
formadores (eles próprios as mais das vezes porta-vozes "autorizados", de
signados pelo grupo pela sua "competência", quer dizer, no caso particular,
homens e idosos e influentes) e afastar-se dos pressupostos implicados pelo sim
ples facto de construir o diagrama das relações de filiação, de aliança e de ger-
manidade a que se chama genealogia, a não ser na condição de situar essa es
pécie muito particular de utilização do parentesco por referência às diferen
tes espécies de usos que os agentes dele podem fazer: quando trata a termino
logia indígena do parentesco como um sistema fechado e coerente de relações
puramente lógicas, de uma vez por todas definidas como por construção na e
pela axiomática implícita de uma tradição cultural, proíbe-se de apreender as
diferentes funções práticas dos termos e das relações de parentesco, que põe
entre parênteses sem saber, e proíbe-se, no mesmo acto, de captar o estatuto
epistemológico de uma prática que, como a sua, supõe e consagra a neutrali
zação das funções práticas desses termos e dessas relações.
À falta de sabermos o que faz o etnólogo quando constrói uma árvore
genealógica, esquema espacial susceptível de ser apreendido uno intuitu e de
ser percorrido indiferentemente em qualquer sentido a partir de qualquer
ponto e capaz de fazer existir segundo esse modo de existência particular que
é o dos objectos teóricos, quer dizer, tota simul, em totalidade na simultanei-
dade, a rede completa das relações de parentesco em várias gerações, não po
demos dar-nos o conhecimento da prática enquanto prática, ou seja, no caso
particular, o conhecimento dos usos sociais que praticamente os agentes fa
zem das suas relações de parentesco.
Assim, o cálculo genealógico a que os agentes (assistidos ou não por es
pecialistas) podem ter recurso nas ocasiões oficiais para medirem o "grau" de
parentesco entre dois indivíduos até ao seu antepassado comum, ou para es
tabelecerem as precedências, preenche funções directamente práticas, para
não falarmos da função ideológica implicada pelo simples facto de se apre
sentarem como relações exclusivamente genealógicas de filiação ou de alian
ça, relações essas que podem também ser lidas diferentemente (por exemplo
relações de germanidade) e que se baseiam sempre também sobre outros prin
cípios, por exemplo, econômicos ou políticos, segundo um procedimento que
é aplicado todas as vezes que se procura nas relações passadas, retrospectiva
mente reconstruídas em função das necessidades da causa, a razão de ser de
relações presentes que obedecem na realidade a princípios completamente
diferentes. Por outro lado, as relações lógicas que o etnólogo constrói estão
para as relações usuais, quer dizer, "práticas" (no duplo sentido do termo)
porque continuamente praticadas e, como costuma dizer-se, mantidas e culti
vadas, como o espaço geométrico de um mapa enquanto representação ima
ginária de todos os caminhos e de todos os itinerários teoricamente possíveis
78 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
Q' *
está para a rede dos caminhos realmente mantidos, frequentados, abertos e,
portanto, fáceis de seguir. As relações oficiais, que não são objecto de manu
tenção contínua, ainda quando são utilizadas apenas de maneira descontí
nua, tendem a tornar-se aquilo que são para o genealogista, quer dizer, rela
ções teóricas, semelhantes a estradas abandonadas num mapa antigo: nesta
lógica, as trocas mais importantes não são as que retiveram a atenção dos
etnólogos pelo seu aspecto fora do comum e ostentatório e que, relevando da
lógica do desafio, comportam a ameaça da ruptura, mas as que passam
despercebidas, os pequenos presentes que marcam as mais pequenas oca
siões da existência comum e asseguram a continuidade das relações usuais. Em
suma, as relações lógicas de parentesco a que a tradição estruturalista conce
de uma autonomia mais ou menos completa relativamente às determinações
econômicas, e correlativamente uma coerência interna quase perfeita, só exis
tem segundo o modo prático por e para os usos oficiais e oficiosos que delas
fazem os agentes ainda mais interessados em mantê-las em estado de funcio
namento e em fazê-las funcionar com intensidade — portanto, em razão do
efeito de abertura de caminho, cada vez mais facilmente—por elas preenche
rem actual ou virtualmente funções mais indispensáveis para eles ou, numa
linguagem menos equívoca, satisfazerem ou poderem satisfazer interesses
(materiais ou simbólicos) mais vitais.
Por oposição às relações sem história que os genealogistas instruídos ou
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 79
de, os de...) obedece a uma lógica relativista, ou melhor, posicionai por intei
ro semelhante à que caracteriza os usos da palavra cieng segundo Evans-Prit-
chard, podendo o mesmo indivíduo, segundo a circunstância, a situação, o
interlocutor e, portanto, a função assimiladora e distintiva da apelação, di
zer-se membro dos Ath Abba (a casa, akham) ou dos Ath Yahia ('arch). O relati-
vismo absoluto que conferiría aos agentes o poder de manipularem sem qua
isquer limites a sua própria identidade social ou a dos adversários, ou dos
parceiros que pretendem assimilar ou excluir manipulando os limites da clas
se da qual uns e outros fazem parte, teria pelo menos o mérito de romper com
o realismo ingênuo daqueles que não sabem caracterizar um grupo a não ser
como uma população definida por fronteiras directamente visíveis. Todavia,
quem fica prisioneiro da lógica genealógica expõe-se a ignorar que a estrutu
ra de um grupo (e por isso a identidade social dos indivíduos que o com
põem) depende da função que está no princípio da sua constituição e da sua
organização. É o que esquecem também os que se esforçam por escapar à abs-
tracção genealógica opondo a linha de unifiliação (descent line), a que é me
lhor chamar "linha diagramática" como Louis Dumont, para acentuar que só
existe nos diagramas, à linha local (local Une) ou à linha diagramática local (lo
cal descent group), porção de um conjunto de unifiliação que a unidade de resi
dência autoriza a agir colectivamente enquanto grupo.18
É ainda sucumbir ao realismo ignorar que os efeitos da distância espa
cial dependem da função em vista da qual se instaura a relação social: se po
demos admitir, por exemplo, que a utilidade potencial de um parceiro tende a
decrescer com a distância, deixa de ser assim todas as vezes que, como no caso
do casamento de prestígio, o lucro simbólico é tanto maior quanto mais a rela
ção se estabelece entre pessoas afastadas; do mesmo modo, se a unidade de
residência contribui para a integração do grupo' a unidade que confere ao
grupo a sua mobilização em vista de uma função comum contribui para mini
mizar o efeito da distância. Em suma, embora se possa teoricamente conside
rar que existem tantos grupos possíveis como funções, continua a ser verdade
que, como vimos no caso do casamento, não se pode recorrer a uma pessoa
qualquer a qualquer momento, do mesmo modo que um indivíduo não pode
oferecer os seus serviços a outra pessoa qualquer para qualquer fim que seja. Por
isso, para escapar ao relativismo sem se cair no realismo, podemos estabelecer que
as constantes do campo dos parceiros potencialmente úteis também, quer dizer
utilizáveis de facto, porque espacialmente próximos, e úteis, porque socialmente
influentes, fazem com que cada grupo de agentes tenda a manter em existência
por meio de um trabalho contínuo de manutenção uma rede privilegiada de rela
ções usuais que compreende não só o conjunto das relações genealógicas manti
das em estado de andamento (chamadas aqui parentesco usual), mas igualmente
o conjunto das relações não genealógicas que podem ser mobilizadas em vista das
necessidades comuns da existência (aqui chamadas relações usuais).19
Se pode acontecer que o conjunto oficial dos indivíduos susceptíveis de
serem definidos pela mesma relação com o mesmo ascendente situado ao
mesmo nível (qualquer que seja) da árvore genealógica constitua um grupo
usual, é porque nesse caso as repartições de base genealógica recobrem no
duplo sentido do termo unidades fundadas noutros princípios, ecológicos
(vizinhança), econômicos (indivisão) e políticos. O facto de o valor descritivo
do critério genealógico ser tanto maior quanto mais próxima é a origem co
mum e mais restrita a unidade social não significa que a sua eficácia unificadora
aumente correlativamente. Com efeito, como veremos, a relação mais estreita
em termos genealógicos, a que une os irmãos, é também o lugar da tensão
mais forte, e só um trabalho de todos os instantes pode manter a comunidade
de interesses. Em suma, a simples relação genealógica nunca basta para ga
rantir por si só a determinação completa da relação entre os indivíduos que
une e não assume esse valor preditivo a não ser associada à comunidade de
interesses produzida pela possessão em comum de um patrimônio material e
simbólico, tanto enquanto vulnerabilidade como enquanto propriedade par
tilhada. A extensão do parentesco usual, intersecção do conjunto das relações
de parentesco oficiais e das relações usuais, depende da aptidão dos mem
bros da unidade oficial para superarem as tensões engendradas pela concor
rência dos interesses no interior da actividade indivisa de produção e de con
sumo e para manterem relações práticas em conformidade com a representa
ção oficial que delas dá todo o grupo que se pense enquanto grupo integrado
(í. e. para "fazer do irmão um amigo", para retomarmos os termos de uma
oposição muito presente na consciência comum), e, portanto, para somarem
os benefícios proporcionados por toda a relação prática e os lucros simbólicos
garantidos pela aprovação socialmente concedida às práticas em conformi
dade com a representação oficial destas.
Vemos aqui uma das manifestações da dialéctica do usual e do oficial
que é, sem dúvida, o princípio último de todas as interacções sociais. A
O
------------ y-
19 Embora se exprima ainda numa linguagem genealógica, é no fundo a oposição entre as
relações de parentesco oficiais e as de parentesco usuais a recoberta pela oposição entre
thaymats (de ayma irmão), o conjunto dos germanos, e thadjadith (de djedd, avô), o conjun
to dos ascendentes comuns aos que se reclamam de um mesmo antepassado, real ou míti
co: "Thaymats, costuma dizer-se, é de hoje, thadjadith é de ontem". Invoca-se thaymats, so
lidariedade actual e activa baseada em laços de parentesco realmente experimentados e
actualmente reconhecidos porque continuamente reactivados, quando está em causa a
oposição a outro grupo, no caso, por exemplo, de o clã ser atacado: decorre daqui que o
grupo unido por thaymats representa apenas uma secção (cuja extensão depende de todo
um conjunto de factores que se ligam, por um lado, à estrutura do grupo e por outro à oca
sião mobilizadora) da unidade baseada em thadjadith, quer dizer, na origem comum, in
vocada para justificar ideologicamente uma unidade oficial.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 83
À falta de podermos proceder a uma verdadeira análise lógica das operações da lingua
gem etnológica, que constituiría na circunstância a forma mais radical da crítica episte-
mológica, contentar-nos-emos com citar um texto descoberto durante a preparação deste
trabalho e que, embora não mais saturado que outros, sem dúvida, de traços típicos do ju-
ridicismo, apresenta tão francamente a norma oficial como princípio das práticas que
tem de fazer do interesse — reintroduzido no final — o princípio das excepções à regra:
"Aos olhos dos Tiyãha, a união com a prima paralela é ao mesmo tempo um direito e um de
ver, e é direito precisamente por ser dever. Incumbe com efeito ao 'ibn'amm defender a sua
prima, acorrer em seu auxílio, como se se tratasse de uma irmã, velar pelo seu sustento
em caso de viuvez ou de divórcio e ocupar-se dos filhos dela. É o meu ‘ar, dizia-me um in
formador, termo que significa textualmente 'vergonha', 'opróbrio', mas que é na realida
de uma espada de dois gumes, porque o mesmo ‘ar, aos olhos dos nômadas, poderá ser ao
mesmo tempo um objecto de desonra ou de honra, segundo o comportamento da prima.
Quando as suas acções não estão em conformidade com o costume, cabe ao filho do irmão
do pai aconselhá-la e até mesmo usar de coacção para melhor a persuadir. Se, apesar de
tudo, ela persistir na sua atitude e a irregularidades do seu comportamento atentarem
contra a honra da família, incumbir-lhe-d muitas vezes vingar essa honra por meio do san
gue. Se a prima for casada com um estrangeiro, deverá socorrê-la caso ela seja oprimida.
De tal maneira que aquilo que pode fazer de melhor para a tranquilidade do seu espírito é
tomá-la por esposa. Pelo seu lado, a bint'amm mostra-se menos exigente para com o seu
primo do que para com um estranho, e contenta-se, se necessário for, apenas com o neces
sário. Resumindo tudo o que foi dito até aqui, um nômada de sessenta anos exclama: 'Se
ria possível que um homem se case com uma estrangeira quando tem uma prima da sua
carne e do seu sangue, que guarda o seu segredo e protege a sua honra?' Mas significarão
estas palavras que o comportamento do homem seja sempre movido por sentimentos tão
nobres? O procedimento do ibn'amm parece provar que o homem considera um pouco
mais o aspecto mais favorável aos seus interesses" (J. Chelhod, "Le Mariage avec la cousi-
ne parallèle dans le système arabe", L'Homme, Julho-Dezembro de 1965, n.os 3 e 4,
pp. 113-173).
84 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
Caso1 pA
\ °'°
sistemática votando as práticas femininas e tudo o que delas decorre a uma
existência envergonhada, clandestina ou, no melhor dos casos, oficiosa: ain
da quando detêm o poder real, e é esse muitas vezes o caso em matéria de ca
samento, pelo menos, as mulheres não podem exercê-lo por completo a não
ser na condição de deixarem aos homens todas as suas aparências, quer dizer,
a manifestação oficial, e de se contentarem com o poder oficioso da eminência
parda, poder dominado que se opõe ao poder oficial, na medida em que só pode
exercer-se por procuração, a coberto de uma autoridade oficial bem como ao
poder subversivo do destruidor do jogo na medida em que continua ainda a
servir a autoridade da qual se serve.
O verdadeiro estatuto das relações de parentesco, princípios de estrutu
ração do mundo social que, enquanto tais, preenchem sempre uma função
política, nunca se vê tão bem como nos usos diferentes que os homens e as
mulheres podem fazer do mesmo campo de relações genealógicas, e em parti
cular nas suas "leituras" diferentes das relações de parentesco genealogica-
mente equívocas (relativamente frequentes dada a estreiteza da área matri
monial). Daqui decorre que em todos os casos de relação genealogicamente
equívoca é sempre possível aproximar o parente mais afastado ou aproxi
mar-se dele pondo a tônica naquilo que une, ou seja, na relação através dos
homens (é o papel da forma de tratamento 'amm) enquanto se pode manter à
distância o parente mais próximo trazendo para primeiro plano aquilo que
separa, quer dizer a relação secundária através das mulheres. A parada em
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 87
jogo nestas manipulações, que seria ingênuo considerar fictícias sob o pretex
to de que não enganam ninguém, não é outra coisa, em todos os casos, senão a
definição dos limites práticos do grupo que podem ser assim levados, segun
do as necessidades, a passar além ou aquém daquele que se entende anexar
ou excluir. Podemos ter uma ideia destas manipulações hábeis considerando
os usos do termo khal (em sentido estrito, irmão da mãe): pronunciado por um
marabu em intenção de um camponês plebeu e leigo exprime a vontade do
marabu de se distinguir, acentuando, dentro dos limites da cortesia, a ausên
cia de qualquer relação de parentesco legítima; entre camponeses, esta forma
de tratamento manifesta a intenção de instaurar uma relação minimal de fa
miliaridade por meio da invocação de uma remota e hipotética relação de
aliança. É a leitura oficial que se impõe ao etnólogo quando, encorajado pelos
seus informadores, assimila a um casamento entre primos paralelos a relação
que une, por exemplo, os primos paralelos patrilineares no segundo grau
quando um deles provém, por seu lado, de um casamento com o primo para
lelo e a fortiori quando os dois são o produto de uniões desse tipo (como acon
tece em caso de trocas de mulheres — labdil ou, em árabe, ras-b-ras, cabeça por
cabeça — entre os filhos de dois irmãos, cada um dos quais desposa a irmã do
outro). A leitura masculina, quer dizer, dominante, que se impõe com uma ur
gência particular em todas as situações públicas, oficiais, de homem a ho
mem, em suma, em todas as relações de honra em que um homem de honra
fala a outro também de honra, privilegia o aspecto mais nobre, mais digno de
ser publicamente proclamado, de uma relação de várias faces, ligando cada
um dos indivíduos que se trata de situar aos seus ascendentes patrilineares e,
por intermédio destes, aos ascendentes patrilineares que lhes são comuns.
Deixa no impensado, recalca no impensável, quer dizer, no inominável, o ou
tro caminho possível, por vezes mais directo, muitas vezes praticamente mais
fácil, e que consistiría em passar pelas mulheres: assim, a conveniência genea
lógica exige que se considere que Zoubir desposou em Aldja a filha do filho
do irmão do pai do seu pai ou a filha da filha do irmão do seu pai, e não a filha
do irmão da sua mãe, ainda que, como é o caso, tenha sido esta última relação
a encontrar-se na origem do casamento (ver o esquema "caso 1", na página
anterior); ou ainda, para citarmos outro caso extraído da mesma genealogia,
quer que se veja em Khedoudja a filha do filho do irmão do pai do pai do seu
marido Ahmed, em vez de a tratar como uma prima cruzada (filha da irmã do
pai), o que ela também é (ver o esquema "caso 2", na página seguinte). Aleitu-
ra herética, que privilegia as relações através das mulheres, excluídas do dis
curso oficial, é reservada às situações privadas, quando não à magia que,
como a injúria, designa o homem votado aos seus malefícios como "filho da
sua mãe" e não como "filho do seu pai". O parentesco pelas mulheres pode
ser percebido e professado, até mesmo por homens ou diante dos homens,
mas fora das ocasiões públicas, na intimidade doméstica; exceptuados os ca
sos em que mulheres falam de relações de parentesco de uma mulher com
88 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
Nada é mais difícil de definir que o estatuto do casamento com a prima para
lela e os etnólogos teriam todas as justificações para jogar com os diferentes
sentidos da palavra "regra", se soubessem que, aparentando produzir a teo
ria da prática indígena, se limitam a reproduzir um dos produtos mais acaba
dos da dialéctica do usual e do oficial: o casamento com a prima paralela re
presentará o ideal, quase nunca realizado na prática, do casamento consegui
do ou uma norma ética (neste caso, dever de honra) que se impõe a todo o in
divíduo em condições de casar, mas cuja transgressão é concebível (em caso
de força maior, por exemplo), ou ainda uma norma que se aplica de maneira
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 89
absoluta mas apenas em certas condições, ou, por fim, um simples "golpe" re
comendado em certas situações? De facto, é tudo isto ao mesmo tempo, o que
o torna um objecto privilegiado de manipulação. No caso do casamento, as
estratégias de segunda ordem, que visem dissimular as estratégias e interes
ses que procuram sob as aparências da obediência à regra, encontram o seu
princípio na ambiguidade de uma prática que é objectivamente passível de
uma dupla leitura, a leitura genealógica, que tudo encoraja, e a econômica e
política, que não se torna necessário sequer desencorajar, pelo menos no etnó
logo, uma vez que suporia estabelecido o conhecimento completo das trocas
entre os grupos considerados. Mas a armadilha ideológica tem um fundo du
plo e, aqui como noutros lugares, o ardor desmistificador mistifica-se a si pró
prio quando se deixa arrastar pelo seu ímpeto: se tomarmos demasiado a sé
rio os discursos indígenas, arriscamo-nos a apresentar um simples ecrã ideo
lógico como norma ou regra da prática; se desconfiarmos excessivamente de
les, arriscamo-nos a ignorar a função social da mentira socialmente ordenada
e encorajada, um dos meios de que os agentes dispõem para corrigir, por meio
apenas da sua habilidade, a qual lhes dá um domínio perfeito das estratégias
simbólicas, os efeitos das estratégias impostas.
É assim que os actos mais ritualizados na aparência da negociação ma
trimonial e as manifestações cerimoniais que acompanham a celebração do
casamento e que, pela sua maior ou menor solenidade, têm por função secun
dária declarar a significação social do casamento (sendo a cerimônia, a traços
largos, tanto mais solene quanto mais o casamento une famílias mais eleva
das na hierarquia social e mais afastadas no espaço genealógico) representam
outras tantas ocasiões de desenvolver estratégias com vista a manipular o
sentido objectivo de uma relação nunca completamente unívoca, ou esco
lhendo o inevitável e, fazendo da necessidade virtude, conformando-se es-
crupulosamente segundo as conveniências, ou mascarando a significação ob-
jectiva do casamento sob o ritual destinado a celebrá-lo.
Não há dúvida de que o casamento com a prima paralela deve a posição
eminente que ocupa no discurso indígena, e por consequência no discurso
etnológico, ao facto de ser o mais perfeitamente em conformidade com a re
presentação mítico-ritual da divisão do trabalho entre os sexos, e, em particu
lar, da função atribuída ao homem e à mulher nas relações entre os grupos.
Em primeiro lugar, porque constitui a afirmação mais radical da recusa de re
conhecer a relação de afinidade enquanto tal, quer dizer, quando esta não se
apresenta como um simples redobrar da relação de filiação: gosta-se de elogiar
o efeito próprio do casamento entre primos paralelos, a saber, o facto de as
crianças dele provindas ("aqueles cuja extracção é sem mistura, cujo sangue é
puro" — mahd) poderem ser ligados à mesma linhagem passando pelo pai ou
pela mãe ("foi onde tinha a sua raiz que tomou os seus tios maternos" — ichat-
hel, ikhawel — ou ainda, em árabe, "o seu tio materno é o seu tio paterno" —
khalu 'ammií). Conhecemos, por outro lado, a liberdade que é (teoricamente)
90 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
21 J. Chelhod, que refere que, "na linguagem corrente de Alep, se chama às prostitutas 'fi
lhas da tia materna"', cita também um provérbio sírio em que se manifesta a mesma desa
provação perante o casamento com a filha da irmã da mãe: "Devido ao seu carácter impu
ro, ele desposou a filha da sua tia materna" ("Le Mariage avec la cousine parallèle dans le
système arabe", loc. cit., pp. 113-173).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 91
22 Cf. É. Laoust, Mots et choses berbères. Notes de linguistique et d'ethnographie, Paris, Challa-
mel, 1920.
92 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
dominante (pela sua idade ou pelo seu prestígio) para aceitar a sua filha (pri
ma paralela patrilinear).
O casamento com a prima paralela pode, em certos casos, impor-se
como uma necessidade que não seja a da regra genealógica. Com efeito, na
prática esse casamento ideal é muitas vezes uma escolha forçada que tenta
mos apresentar como a escolha ideal, fazendo assim da necessidade virtude.
A "teoria" indígena, retomada com prontidão pelo direito, de que todo o indi
víduo dispõe de uma espécie de "direito de preferência" sobre a sua prima pa
ralela, não é senão uma outra expressão da ideologia da masculinidade que
concede ao homem a superioridade e, portanto a iniciativa, em todas as rela
ções entre os sexos e em particular no casamento. Basta, com efeito, aproxi-
marmo-nos das situações reais da prática para nos darmos conta de que o ca
samento com a prima paralela é apreendido como uma obrigação mais que
como um direito: "Não é de uso recusar a filha de ‘mm àquele que a pede em
casamento, mas é inconveniente para a honra de uma família que uma jovem
tarde a arranjar marido. Se esperar tempo de mais, o seu primo deve encarre-
gar-se dela, de acordo com o que dizem os provérbios" (Aít Hichem). "Deve
desposar-se a filha do tio paterno, ainda que ela tenha caído no abandono"
(Am Aghbel). E são numerosos os provérbios que apontam na mesma direc
ção: "Vira com o caminho, se o caminho virar. Desposa a filha do teu 'mm, se
ela se vir abandonada (em pousio)." Variantes: "Toma o caminho, ainda que
com desvios; toma a filha do teu “amm ainda que abandonada", e "A filha de
‘amm, ainda que abandonada, o caminho da paz (seguro), ainda que desvia
do." Como mostra a metáfora (o caminho torto que se opõe à estrada recta), o
casamento com a prima paralela é compreendido as mais das vezes como um
sacrifício imposto (à maneira do casamento com a viúva do irmão) que há in
teresse em transformar em submissão electiva a um dever de honra: "Se não
desposares a filha do teu ‘amm, quem a tomará? Serás tu a tomá-la, queira-lo
ou não". "Ainda que seja feia e sem nada, o seu tio paterno deverá tomá-la
para o filho, forçosamente; se for procurar uma estranha para o seu filho e dei
xar a filha do irmão, as pessoas rir-se-ão dele dizendo: 'Foi à procura de uma
estranha e abandonou a filha do irmão'. E, de facto, na prática, o casamento
com a prima paralela só assume a significação e a função ideais que lhe confe
re o discurso oficial nas famílias integradas de modo suficientemente forte
para desejarem um tal reforço da integração, e só se impõe, em todo o caso, de
maneira absoluta em situações de força maior, como os da filha do amengur,
aquele que "falhou", que não teve herdeiro do sexo masculino. Em tal
eventualidade, o interesse e o dever conjugam-se para imporem o casamento
entre os primos paralelos, uma vez que o irmão do amengur e os seus filhos
herdarão em todo o caso não só a terra e a casa daquele que "falhou", mas
também as obrigações relativas às suas filhas (em particular em caso de viu
vez ou de repúdio) e uma vez que, por outro lado, esse casamento é a única
maneira de afastar a ameaça à honra do grupo e talvez ao patrimônio que
94 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
deixar de nos dar conta de que dois casamentos entre primos paralelos po
dem nada ter de comum segundo tenham sido concluídos em vida do avô pa
terno, comum, e, eventualmente, através dele (com o acordo dos dois pais ou
"passando por cima deles"), ou, pelo contrário, através de um acordo directo
entre os dois irmãos e, neste último caso, segundo tenham sido concluídos
quando os futuros esposos eram ainda crianças ou, pelo contrário, estavam já
em idade de casar (para não falarmos da situação em que a filha ultrapassou
já essa idade); segundo os dois irmãos trabalhem e vivam separadamente ou
tenham mantido a indivisão total da exploração (terra, rebanhos e outros
bens) e da economia doméstica ("panela comum"), sem falarmos já do caso
em que mantêm apenas a aparência da indivisão; segundo seja o mais velho
(daddd) a dar a sua filha ao irmão mais novo ou, pelo contrário, a tomar a filha
deste, podendo a diferença de idade e sobretudo a condição resultante do
nascimento associar-se a desigualdades de condição social e de prestígio; se
gundo o irmão que dá a sua filha tenha um herdeiro masculino, ou seja, amen-
gur; segundo os dois irmãos estejam vivos no momento da conclusão do casa
mento ou apenas um deles e, mais precisamente, segundo o sobrevivente seja
o pai do jovem, protector designado da jovem que toma para o filho (sobretu
do se a rapariga não tiver um irmão adulto), ou, pelo contrário, o pai da jovem
que pode usar a sua posição dominante para proceder desse modo à captação
de um genro. E como que para aumentar a ambiguidade deste casamento,
que só a cegueira satisfeita com os imponderáveis da arte de viver estrangeira
apreende como unívoco, não é raro, como vimos, que a obrigação de se sacri
ficar na qualidade de "véu das vergonhas" e para proteger uma mulher sus
peita ou caída em desgraça incumba a um homem do ramo mais pobre da li
nhagem, cuja solicitude em cumprir um dever de honra relativo à filha do seu
'amm, ou até em exercer o seu direito de membro varão da linhagem, é fácil,
útil e honroso elogiar.23
Os informadores não param de recordar, pelas suas próprias incoerênci
as e contradições, que um casamento nunca se deixa definir completamente
em termos genealógicos e que pode assumir significações e funções diferen
tes e até mesmo opostas, segundo as condições que o determinam; que o casa
mento com a prima paralela pode ser o pior ou o melhor dos matrimônios se
gundo seja percebido como elective ou forçado, quer dizer, em primeiro lugar
segundo a posição respectiva das famílias na estrutura social. Pode ser o me
lhor ("desposar a filha de 'amm é ter a boca cheia de mel"), e não só do ponto de
vista mítico mas também no plano das satisfações práticas, uma vez que é eco
nômica e socialmente o menos oneroso — achando-se as negociações, as tran-
sacções e os custos materiais e simbólicos reduzidos ao mínimo —, ao mesmo
tempo que o mais seguro; usa-se, para opor o casamento próximo ao casamen
to distante, a mesma linguagem por meio da qual se opõe a troca entre campo
neses às transacções do mercado;24 pode ser também a pior das uniões ("O ca
samento dos 'tios paternos'—azwaj el la'mum — azeda o meu coração; peço-te,
ó meu Deus, que me protejas dessa desgraça")25 e também a menos prestigiosa
quando se mostra como um mal menor ("Chegaram amigos que te ultrapas
sam, e tu ficas, tu que és negro"), quer dizer, todas as vezes que se impõe como
o único meio de evitar a extinção de uma linhagem ou de salvaguardar os laços
familiares ameaçados, ou ainda quando é praticado por famílias pobres em ho
mens e em terras. Em suma, a incoerência aparente do discurso dos informado
res, na qual um objectivismo desdenhoso veria apenas uma propriedade cons
titutiva da representação que qualquer agente forma da sua própria prática,
chama de facto a atenção para a ambiguidade fundamental de um casamento
unívoco genealogícamente (quer dizer, ideologicamente) e, no mesmo acto, para
as manipulações do sentido objectivo da prática è do seu produto que uma tal
combinação da ambiguidade e da univocidade autoriza.
A genealogia que aqui se apresenta sob uma forma simplificada (uma
vez que se suprimiram os casamentos, excepto entre VII5 e a filha de VII5) re
presenta a estrutura do parentesco no momento do casamento considerado e
não inclui por isso os varões nascidos mais tarde.
A única vítima destas manipulações é, sem dúvida, o etnólogo, que, ar
rumando na mesma classe todos os casamentos com a prima paralela patrili
near (e assimilados), seja qual for a função que possa ter para os indivíduos e
grupos que os contraem, adopta práticas que podem diferir em muitos aspec
tos dos quais o modelo genealógico abstrai (cf. árvore genealógica, supra).
24 "Dá-se trigo e traz-se aveia". "Dá-se o trigo a quem tem maus dentes". "Molda na tua argila a
tua progenitura, se não te vier ter às mãos uma panela, virá um tacho de cozer cuscuz". Entre
os elogios do casamento com a prima paralela que podemos recolher, chamaremos a atenção
para estes, particularmente típicos: "Não te pedirá muita coisa para ela e não terás de fazer
grandes gastos com o casamento". "Ele fará o que quiser com a filha do irmão e dela não lhe
virá mal algum. Depois, a unidade ficará mais forte com o irmão, de acordo com a recomen
dação que o pai de ambos lhes fazia quanto à fraternidade (thaymats): 'Não deis ouvidos às
vossas mulheres!'". "A estranha desprezar-te-á, será um insulto para os teus antepassados,
considerando que os dela são mais nobres que os teus. Enquanto a filha de teu 'amm, o teu
avô e o dela são o mesmo e ela nunca dirá 'maldito seja o pai do teu pai'. A filha do teu 'amm
não te abandonará. Se não tiveres chá, não virá reclamar-to e ainda que morresse de fome em
tua casa, suportá-lo-ia e nunca se queixaria de ti."
25 A, Hanoteau, Poésies populaires de la Kabilie du Djurdjura, Paris, Imprimerie Impériale,
1867, p. 475.
98 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
moderna (um tractor, em comum com outros associados), e por fim um esta
belecimento comercial e uma grande casa de habitação de construção recente.
Dado que a indivisão nunca é mais que a divisão negada, recusada, as desi
gualdades que separam as "partes" virtuais e os contributos respectivos das
diferentes linhas são intensamente sentidas: é assim que a linha de descen
dentes de Ahmed, donde proveio o filho varão, é infinitamente mais rica em
homens que a linha de Youcef, donde proveio a descendente do sexo femini
no e que, correlativamente, é mais rica em terras, uma vez que, por exemplo,
os três filhos de Amar (VII2) receberiam, em caso de partilhas, 1/12 do patri
mônio comum (ou seja teoricamente 1 /36 para cada um dentre eles), ao passo
que, no mesmo nível genealógico, o único descendente de Youcef (VIUó) rece
bería 1 /3. Da riqueza em homens, considerados como força de reprodução e,
portanto, como promessa de uma riqueza em homens maior ainda, é correla
tive, na condição de se saber valorizar esse capital, todo um conjunto de van
tagens das quais a mais importante é a autoridade na condução dos assuntos
internos e externos da casa: "A casa dos homens", costuma dizer-se, "ultra
passa a casa dos bois" (adham irgazen ifakham izgaren). Aposição eminente
desta linha é designada pelo facto de ela ter sabido e podido retomar os pri
meiros nomes dos antepassados da família, quer dizer, além dos Ahmed e do
Belaid, que alternam de geração em geração, o nome do mais remoto antepas
sado, Amar, apesar de um pouco esquecido (VII2). O poder político pode as
sentar, como se vê, sobre princípios diferentes da riqueza econômica, quer se
trate da riqueza em homens ou dessa forma particular de capital constituída
pelo perfeito domínio das estratégias políticas. Assim, na mesma linhagem, é
o terceiro irmão (VI3) quem representa o grupo em todos os grandes encon
tros exteriores, conflitos ou solenidades, ao passo que o mais velho (Vii) é o
"sábio", aquele que, pelas suas mediações e os seus conselhos, garante a uni
dade interna do grupo. O chefe da terceira linha (VII5) encontra-se totalmente
excluído do poder não tanto por causa da diferença de idade que o separa dos
seus tios (uma vez que os filhos de Ahmed—Vh —, apesar de muito mais no
vos do que ele, são associados às decisões), mas sobretudo porque se excluiu a
si próprio da competição entre os homens, de todas as contribuições excepci
onais e até mesmo, em certa medida, do trabalho da terra; tudo se passa como
se a sua condição de filho varão único e, além disso, privado de pai (tendo este
falecido pouco antes do seu nascimento) ou, como se diz, de "filho da viúva",
rodeado e acarinhado como única esperança da linhagem por toda uma comi
tiva de mulheres (mãe, tias, etc.)e afastado devido à escola aos jogos e aos tra
balhos das outras crianças, o predispusera e o dispusera a manter-se ao longo
de toda a sua vida numa posição marginal: de início alistado no exército, mais
tarde operário agrícola no estrangeiro, vale-se da posição favorável que lhe
garante a posse de uma parte importante do patrimônio contra um fraco nú
mero de bocas a alimentar para se entrincheirar, desde o seu regresso à aldeia,
nos trabalhos de vigilância, de jardinagem e de manutenção (dos moinhos,
100 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
dos jardins e dos secadores de figos), trabalhos que exigem menos iniciativa e
envolvem menos responsabilidade, em suma, os menos masculinos dos tra
balhos masculinos. Eis alguns dos elementos que devemos ter em conta para
compreendermos a função política, interna e externa, do casamento dos dois
primos, Belaid (VIII5), último filho de Amar (VII2), e Yamina, filha de Youcef
(VII5): através deste matrimônio, que os detentores do poder, Ahmed e
Ahcène, concluíram, como de costume, sem consultarem Youcef, deixando a
sua mulher protestar em vão contra uma união pouco lucrativa, a linha domi
nante reforça a sua posição, estreitando os seus laços com a linha rica em ter
ras e isso sem comprometer em nada o seu prestígio frente ao exterior, uma
vez que a estrutura do poder doméstico nunca é declarada lá fora e uma vez
que até mesmo o mais desprovido de bens dos membros da linhagem partici
pa ainda da sua irradiação. Assim, a verdade completa de uma tal união resi
de na sua dupla verdade, que supõe essa espécie de consciência ambivalente
por meio da qual um grupo pode satisfazer-se com a verdade oficial que pro
põe a si próprio: a imagem oficial, a de um casamento entre primos paralelos
de uma grande família preocupada em manifestar a sua unidade através de
uma união bem de molde a reforçá-la, ao mesmo tempo que é capaz de teste
munhar o seu apego à mais sagrada das tradições ancestrais e coexiste sem
contradição — e isso até mesmo entre os estranhos ao grupo, sempre dema
siado informados, no seu universo de interconhecimento, para se deixarem
iludir pelas representações que se lhes oferecem — com o conhecimento da
verdade objectiva de uma união que sanciona a aliança forçada entre duas
unidades sociais ligadas quanto baste uma à outra negativamente, para o me
lhor como para o pior, quer dizer, em termos genealógicos, para serem obriga
das a juntar as suas riquezas complementares.
Poderiamos multiplicar até ao infinito os exemplos deste jogo duplo da
má-fé colectiva. Assim, num outro caso (cf. página anterior), é apresentado
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 101
____________
mas tu virás para minha casa"), mas pode com igual legitimidade sustentar
que não há família alguma que não conte pelo menos com um awrith, mas um
awrith mascarado pela imagem oficial do "associado" ou do "filho adoptivo":
o termo awrith, o "herdeiro", não será um eufemismo oficial que permite no
mear decentemente o inominável, quer dizer, aquele que não poderia ser de
finido, no interior da casa, a não ser como o marido da sua mulher? E óbvio
que ao homem de honra, informado dos usos, se deparará a cumplicidade vi
gilante do seu próprio grupo, se se esforçar por apresentar como adopção
uma união que, sob a forma cínica do contrato, representa a inversão de todas
as formas honrosas de casamento e que, a esse título, não é menos desonrosa
para o awrith ("é ele quem faz a desposada", como se costuma dizer) do que
para a família interessada a ponto de dar uma filha a uma espécie de criado
sem salário. E como não se apressaria o grupo a entrar no jogo das mentiras
interessadas que tendem a dissimular que não soube descobrir um meio hon
roso de evitar ao amengur recorrer a tais extremos para evitar a "falência"
(lakhld) da sua família?
Mas as genealogias comportam também casos a propósito dos quais é
difícil compreender que beneficiem de uma cumplicidade semelhante. É as
sim que se encontra na história social de uma linhagem prestigiada uma série
de captações de genros que não são percebidos nem declarados como mech-
rut, embora a sua anexação não seja imposta pela necessidade, mas, facto que
deveria redobrar o sentimento de escândalo, por um esforço quase metódico
visando aumentar o capital de homens. Sem dúvida, no caso do primeiro gen
ro, a sua qualidade de marabu terá contribuído para fazer admitir o estatuto
de "filho adoptivo" que se entendia conceder-lhe, embora ele se tivesse posto
em situação de awrith ao vir morar com a família da mulher (sinal do ascen
dente tomado por esta) depois de uma estada de alguns meses junto da sua
própria família (que lhe fora imposta a fim de se salvarem as aparências). Mas
nem por isso houve menos recurso a diferentes subterfúgios destinados a re
solverem o problema da sua presença em casa: confiou-se-lhe a tarefa de mo
leiro, o que permitia mantê-lo afastado e, como o que se faz em casos seme
lhantes, a comida era-lhe levada ao moinho (de Verão ou de Inverno) de ma
neira a que ele só se dirigisse a casa como um estranho. Depois foi discreta
mente convidado pelos responsáveis da linhagem a trabalhar fora, solução
engenhosa que permitia guardar os ganhos ligados ao seu trabalho, fazendo
desaparecer a situação embaraçosa criada pela sua presença junto da família
da mulher. E se o filho que a mesma mulher, depois de enviuvar e de voltar a
casar, tinha tido do seu segundo marido e fizera voltar à sua própria linhagem
depois da morte daquele não se apresenta também como um awrith quando,
para o ligarem a si, os seus tios maternos o casam com uma órfã colocada sob a
sua protecção, é porque, criando "como filho deles" este quase filho (que con
tinua a chamar-lhes khal e não dadda e que continua ainda a chamar-se Ahmed
u Agouni, do nome da aldeia do seu pai) e casando-o com uma das suas quase
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 103
os casamentos comuns que o parentesco usual proporciona aos que são po
bres em parentes oficiais.
Por entre as distorções inerentes à etnologia espontânea dos informadores,
a mais insidiosa reside, sem dúvida, no facto de essa etnologia conceder um lu
gar desproporcionado aos casamentos fora do comum, que se distinguem dos
comuns por uma marca positiva ou negativa. Além dessas formas "curiosas"
que o etnólogo vê serem-lhe oferecidas com frequência pelo informador de boa
vontade, como o casamento por troca (abdal, dois homens "trocam" entre si as
suas irmãs), por "acrescento" (thirni, dois irmãos desposam duas irmãs, "acres
centando-se" a segunda à primeira, ou o filho desposa a irmã ou até mesmo a fi
lha da segunda mulher do seu pai), ou ainda por levirato, caso particular dos ca
samentos por "reparação" (thiririth, de err, entregar ou retomar), o discurso indí
gena designa os casos extremos: o casamento entre primos paralelos, que é o
mais conseguido em termos míticos, e aquele que une os grandes de duas tribos
ou de dois clãs diferentes, o qual é o mais conseguido em termos políticos.
É assim que o conto, discurso semi-ritualizado de função didáctica, sim
ples paráfrase em forma de parábola do provérbio ou do ditado que lhe serve
de moral, retém exclusivamente os casamentos marcados e marcantes, ou
seja, em primeiro lugar os diferentes tipos de casamento com a prima parale
la, quer tenham por fim preservar uma herança política ou evitar a extinção
de uma linhagem (no caso da filha única), e em seguida as más alianças mais
flagrantes, como o casamento do mocho e da filha da águia, modelo puro do
casamento de baixo para cima (no sentido social, mas também no sentido mí
tico, opondo-se o alto ao baixo como o dia, a luz, a felicidade, a pureza, a hon
ra se opõem à noite, à escuridão, à desgraça, à impureza e à desonra) entre um
homem situado na base da escala social, um awrith, e uma mulher oriunda de
uma família superior, e no qual a relação de assistência tradicional se acha in
vertida devido à discordância entre as posições dos cônjuges nas hierarquias
social e sexual. É aquele que dá, neste caso o superior, que deve acudir em so
corro daquele que tomou, neste caso o mais baixo — é a águia que deve assu
mir o dever de cuidar do seu genro, o mocho, para lhe evitar uma derrota hu
milhante na competição com as crias da águia, situação escandalosa denun
ciada pelo provérbio: "Dar-lhe a filha e acrescentar-se trigo."
Contra estas representações oficiais, para as quais a própria tradição
etnográfica contribui ao consagrar as suas descrições apenas aos casos notá
veis, esses que dão lugar ao desenrolar do cerimonial mais fora do comum,
como diz Weber, a observação e a estatística estabelecem que a grande maio
ria dos casamentos, em todos os grupos observados, pertence à classe dos co
muns, feitos as mais das vezes por iniciativa das mulheres, na área do paren
tesco usual ou das relações usuais que os tomam possíveis e que eles contri
buem para reforçar.27 Os casamentos concluídos dentro desta área, entre fa
mílias unidas por trocas frequentes e antigas, segundo vias abertas há muito e
continuamente mantidas ao longo de gerações, são aqueles dos quais nada há
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 105
a dizer, como acontece com todas as coisas que foram sempre assim, aqueles
que não parecem ter outra função, exceptuada a reprodução biológica, além
da reprodução das relações sociais que os tomam possíveis.27 28 Tais casamen
tos, que são geralmente celebrados sem cerimônia, estão para os casamentos
fora do comum—concluídos pelos homens entre tribos ou aldeias diferentes,
ou, mais simplesmente, fora do quadro do parentesco usual, e sempre selados
por isso mesmo com cerimônias solenes — como as permutas da vida co
mum, os pequenos presentes (thuntichin) trocados pelas mulheres e que "te
cem a amizade", estão para as trocas fora do comum das ocasiões também
fora do comum, dons solenes e solenemente proclamados (Ikhir), que incum
bem ao parentesco de representação. Os casamentos fora do comum têm em
comum com o matrimônio entre primos paralelos (que se distingue sob esse
aspecto, e só sob esse aspecto dos casamentos comuns)29 o facto de excluírem
as mulheres, ao contrário do que se passa com os comuns que, incluem prati
camente sempre a sua intervenção. Por oposição ao casamento concluído en
tre os irmãos ou, em todo o caso, entre os homens da linhagem, com a bênção
27 A estatística dos casamentos contados numa grande família da aldeia de Aghbala (2.000
habitantes), na Pequena Cabília, revela que em 218 casamentos masculinos (o primeiro
para cada indivíduo) 34% foram contraídos com famílias situadas fora dos limites da tri
bo e que apenas 8% destes casamentos, estabelecidos com os grupos mais afastados ao
mesmo tempo espacial e socialmente, apresentam todos os traços dos casamentos de
prestígio: são obra de uma só família que entende distinguir-se das outras linhas por
meio de práticas matrimoniais originais. Os outros casamentos longínquos limitam-se a
renovar relações já estabelecidas (relações "pelas mulheres" ou pelos "tios matemos ,
continuamente alimentadas por ocasião dos casamentos, das partidas e dos regressos de
viagem, dos lutos e por vezes até dos grandes trabalhos empreendidos). Dois terços dos
casamentos são concluídos na área da tribo (composta de nove aldeias) e, se exceptuar-
mos as alianças com o clã oposto, muito raras (4%), que têm sempre uma significação po
lítica (sobretudo para as gerações antigas), em razão do antagonismo tradicional que
opõe os dois grupos, as outras uniões entram na classe dos casamentos comuns.
28 Eis um testemunho particularmente significativo: "Assim que teve o primeiro filho, Fati
ma começou, portanto, a esforçar-se por lhe encontrar uma futura esposa, tentando di
versas escolhas, sempre de olhos abertos, junto das vizinhas, junto da sua própria cepa,
na aldeia, junto dos amigos, nas bodas, nas peregrinações, na fonte, no estrangeiro e mes
mo nas ocasiões de apresentação de pêsames em que era seu dever estar presente: foi as
sim que casou todos os seus filhos sem problemas e como que sem dar por isso" (Yamina
Ait Amar Ou Said, Le Mariage en Kabylie, Ficha de documentação berbere, 1960, p. 10).
29 Se deixarmos de lado a idealização mítica (o sangue, a pureza, o interior, etc.) e a exalta
ção ética (honra, virtude, etc.) que rodeiam o casamento puramente agnático, não se diz
destes casamentos comuns coisa diferente do que se afirma do matrimônio com a prima
paralela. Assim, a união com a filha da irmã do pai é considerada capaz de garantir, ao
mesmo título que o casamento com a prima paralela, a concórdia entre as mulheres e o
respeito da esposa pelos parentes do marido (o seu khal e a sua khalt), e isso pelo preço
mais baixo, uma vez que a tensão criada pela rivalidade implicitamente desencadeada
por qualquer casamento entre grupos estranhos a propósito do estatuto e das condições
de existência oferecidas à jovem esposa não surge onde se instaure nesse grau de familia
ridade.
106 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
terra natal. A terra estrangeira é irmã de morte, para o homem como para a
mulher." Na medida em que põe em relação, por intermédio das famílias e
das linhagens directamente implicadas, vastos grupos, clãs ou tribos, é por
inteiro oficial e nada há na sua celebração que não seja estritamente ritualiza-
do e magicamente estereotipado: isto sem dúvida porque a parada é tão gra
ve, os riscos de ruptura tão numerosos e tão grandes, que os implicados não
se podem fiar no improviso regulado dos habitus orquestrados e devem tor
nar cada acção um acto de obediência a uma partitura.
Os casamentos concluídos nessa espécie de submercado privilegiado (o
do akkam), que a autoridade do antigo e a solidariedade dos agnatos constitu
em em zona franca na qual toda a subida de lances e toda a concorrência se en
contram excluídas à partida, distinguem-se, sem qualquer dúvida, por um
custo material e simbólico incomparavelmente mais fraco do que o dos casa
mentos fora do comum. Durante a maior parte do tempo, a união impõe-se
como evidente e, quando assim não é, a intercessão discreta das mulheres da
família basta para a realizar. A celebração do casamento é reduzida ao estrita
mente necessário: as despesas (thaqufats) acarretadas pela recepção do corte
jo nupcial na família da jovem são muito pequenas (ou seja, a traço grosso,
dois decalitros de sêmola de trigo, meio litro de manteiga, café e açúcar, dez
quilos de carne comprada no mercado ou fornecida pelo animal sacrificado);
a cerimônia de imensi, durante a qual será prestado o dote de viuvez, agrupa
apenas (pelo menos para os casamentos concluídos no interior do parentesco
prático) os representantes mais importantes das suas famílias que se aliam
(ou seja, uma vintena de homens); o enxoval da noiva (ladjaz) reduz-se a três
vestidos, dois lenços e alguns outros objectos de empréstimo (um par de pe
ças de calçado, um haik); o montante do dote de viuvez garantido pelo marido
— negociado antecipadamente em função daquilo que os parentes da noiva
deverão comprar no mercado a fim de dotarem a sua filha (um colchão, um
travesseiro, uma mala, a que se acrescentam as mantas, os produtos do artesa
nato familiar, que se transmitem de mãe para filha)—é entregue sem grandes
cerimônias e sem bluff nem camuflagem (entre 15.000 e 20.000 francos anti
gos); e, quanto às despesas da boda, são reduzidas ao mínimo, fazendo coin
cidir a festa com o Aid: o carneiro tradicionalmente sacrificado nessa ocasião
cobre as necessidades da festa e muitos convidados, por essa altura retidos
nas suas próprias casas, comparecem. A estes casamentos comuns, que a ve
lha moral camponesa rodeia de elogios (por contraste com aqueles que, como
"o das filhas de viúvas — thudjal —, ultrapassam os limites socialmente reco
nhecidos a cada família), opõem-se os fora do comum, sob todos os aspectos.
Para se conceber a ambição de procurar longe uma esposa, é preciso estar-se
predisposto a fazê-lo pelo hábito de alimentar relações fora do comum e, por
tanto, pela posse das aptidões, em particular linguísticas, que em tais oca
siões são indispensáveis: é preciso dispor-se de um forte capital de relações
distantes, particularmente dispendiosas, que só elas podem fornecer as
108 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
dos casamentos comuns, cerimônias femininas e ritos propiciatórios (como para a primeira lavra: prato
de favas e trigo cozidos; festa da chegada da noiva e do animal a imolar); primeiras manifestações
solenes anunciando oficialmente o casamento no interior da “casa” ou da parentela próxima (11)
Aghrum: o “biscoito", refeição que o grupo dos parentes oferece à família do jovem (e por vezes também
da jovem) com todos os indivíduos designados para fazerem parte do cortejo (iqafafen)-, (12) Aquffi:
o cortejo, a escolta que vai buscar a noiva é tanto mais importante e é integrada por homens tanto mais
prestigiados quanto mais fora do comum é o casamento, (13) Awran: os presentes (“a farinha”), nos
grandes casamentos, a delegação dos velhos da farinha (imgharen wureri), cujos membros são
escolhidos (em particular as mulheres) com escrúpulo, parte com grande pompa, com uma mula que
carrega, bem à vista de todos, os presentes; (14) Imensr. a ceia, refeição durante a qual os dois grupos
se encontram na sua totalidade e procedem à entrega do dote da viúva. Simples encontro entre parentes
e “íntimos" nos casamentos comuns, que dão lugar ao pagamento de um dote da viúva relativamente
fraco, ou apenas simbólico (em caso de casamento no interior da família indivisa), o imensi é um
afrontamento de honra, marcado por torneios oratórios nos casamentos de prestígio, em que o dote
da viúva pode atingir somas muito elevadas; (15) Atbah os músicos profissionais, trata-se da maior
celebração que se pode fazer de um casamento: incompatível com um casamento que una duas famílias
aparentadas, torna-se nesse caso objecto de reprovação; (16) El barudh: a “pólvora", os tiros de
espingarda, prática generalizada até mesmo quando não há cortejo nupcial; (17) El ghart o tiro ao alvo,
nos encontros com grupos estrangeiros, é uma questão de honra “fazer tocar” o alvo, pousado, como um
desafio, no caminho dos homens do cortejo. Nos casamentos comuns, tudo se torna um simples jogo
entre parentes e íntimos; (18) A'arut. os convites; (19) Achachchr. a distribuição dos “pratos”, limita-se
ao conjunto dos parentes nos casamentos comuns.
20 El khir. os dons em dinheiro (oferecidos à noiva e ao noivo); (21) Lahdhiyath: os presentes
(oferecidos às mulheres da família da desposada), a participação das mulheres nas cerimônias (urar,
cantos e danças com as quais festejam a noiva, aplicação da alfena e preparativos da noiva em sua
casa, aplicação da alfena em casa do noivo, etc.) é quase invariável seja qual for o grau de solenidade
do casamento.
O
estratégia colectiva que levou a este ou àquele "golpe" (no caso do casamento
ou em qualquer outro domínio da prática) não é mais que o produto de uma
combinação das estratégias dos agentes interessados, que tendem a conceder
aos respectivos interesses o peso correspondente à sua posição no momento
considerado na estrutura das relações de poder doméstico. E notável, com
efeito, que as negociações matrimoniais sejam realmente um assunto que en
volve a totalidade do grupo, jogando cada um o seu jogo no momento próprio
e podendo por isso contribuir para o êxito ou o fracasso do projecto: são de
início as mulheres, encarregadas de contactos oficiosos e revogáveis, que per
mitem encetar as negociações semioficiais, conduzidas pelos homens, sem
que haja o risco de uma rejeição humilhante; são os notáveis mais representa
tivos do parentesco de representação que, agindo enquanto garantes expres
samente mandatados da vontade do seu grupo e enquanto porta-vozes explici
tamente autorizados, contribuem com a sua mediação e a sua intercessão ao
mesmo tempo que com um testemunho evidente do capital simbólico de uma
família capaz de mobilizar homens de tanto prestígio; são em última análise
os dois grupos na sua totalidade que intervém na decisão submetendo a uma
discussão apaixonada os projectos matrimoniais, os relatos do acolhimento
concedido às propostas dos delegados e a orientação a dar às negociações ul-
teriores. O mesmo é dizer de passagem e em intenção dos etnólogos — sen
tem satisfeitos depois de terem caracterizado um casamento apenas pela sua
determinação genealógica — que, através da representação quase teatral que
o parentesco de representação oferece por ocasião do casamento, os dois gru
pos procedem a um inquérito sistemático visando estabelecer o universo
completo das variáveis características não só dos dois cônjuges (idade e so
bretudo diferença de idade, história matrimonial anterior, condição de nasci
mento, relações de parentesco teórico e prático com o detentor da autoridade
na família, etc.), mas também do seu grupo, a saber, a história econômica e so
cial das famílias que se aliam e dos grupos mais amplos a que elas pertencem,
o patrimônio simbólico e nomeadamente o capital de honra e de homens de
honra de que dispõem, a qualidade da rede de alianças com a qual podem
contar e dos grupos aos quais tradicionalmente se opõem, a posição da famí
lia no seu grupo—particularmente importante porque a exibição de parentes
de prestígio pode dissimular uma posição dominada por um grupo eminente
—, o estado das relações que mantém com os outros membros do seu grupo,
quer dizer, o grau de integração da família (indivisão, etc.) e a estrutura das
relações de força e de autoridade na unidade doméstica (e em particular,
quando se trata de casar uma filha, no universo feminino), etc.
As práticas observadas numa formação social orientada para a reprodu
ção simples dos seus próprios fundamentos — quer dizer, para a reprodução
biológica do grupo, a produção da quantidade de bens necessários à sua sub
sistência e, indissociavehnente, a preservação da estrutura das relações sociais
e ideológicas nas quais e pelas quais se efectua e se legitima a actividade de
parentesco como representação e como vontade 115
das mós do moinho que mobilizava cerca de quarenta homens que se reve
zavam sem parar durante vários dias); além disso, nesta economia da inse
gurança, um capital de serviços prestados e de dons outorgados constitui a
melhor e a única garantia contra as "mil contingências" das quais depen
de, como Marx faz notar, a conservação ou a perda das condições de traba
lho, desde o acidente sofrido por um animal às tempestades brutais que
destroem a colheita. Em tais condições, a abundância de homens constitui
ría, sem dúvida, uma sobrecarga se, adoptando um ponto de vista estrita
mente econômico, neles víssemos apenas "braços" e, ao mesmo tempo,
"ventres" (e isto tanto mais que a Cabília conheceu desde sempre uma
mão-de-obra flutuante de pobres que, na época de mais trabalho, se consti
tuía em equipas que iam de aldeia em aldeia). De facto, a insegurança polí
tica que se alimenta a si própria engendrando as disposições exigidas pelo
ripostar na guerra, na rixa, no roubo ou na vingança (reqba) encontra-se in
dubitavelmente no princípio da valorização dos homens como "espingar
das", quer dizer, não só como força de trabalho mas também como poderio
bélico e a terra vale apenas devido aos homens que a cultivam, mas tam
bém a defendem. Se o patrimônio da linhagem, que o nome simboliza, se
define não só pela fruição da terra e da casa, bens preciosos e, portanto,
vulneráveis, mas pela posse de meios que garantam a sua protecção, quer
dizer, os homens, é porque a terra e as mulheres nunca são reduzidas ao es
tatuto de simples instrumento de produção ou de reprodução e, menos
ainda, de mercadorias ou mesmo de "propriedades": as agressões contra a
terra, contra a casa ou contra as mulheres são actos contra o seu senhor,
contra o seu nif, isto é, o seu ser, tal como o grupo o define, e não apenas
contra o seu ter. Aterra alienada, como a violação ou o assassínio não vin
gados, representa formas diferentes da mesma ofensa, reclamando em to
dos os casos a mesma resposta do ponto de honra, do mesmo modo que se
"resgata" o homicídio. Contudo, na lógica da subida simbólica de lances ,
atingindo se possível a pessoa mais próxima do assassino ou o notável
mais destacado do seu grupo, também assim se "resgata" a todo o preço uma
terra ancestral, ainda que pouco fértil, para apagar esse desafio permanen
te lançado ao ponto de honra do grupo.32 Do mesmo modo que, na lógica
do desafio lançado ou recebido, a melhor terra, simultaneamente do ponto
de vista técnico e simbólico, é a mais integrada no patrimônio, assim tam
bém o homem no qual se pode ferir mais solene e, portanto, mais cruel
mente o grupo é o mais representativo desse mesmo grupo.
Porque os homens constituem uma força política e simbólica que é a
32 As inumeráveis chikayat, algumas das quais chegam ao tribunal, inspiram-se não num es
pírito de "chicana", mas na intenção de lançar ou ripostar a um desafio: existem assim ac
ções (muito raras) intentadas com vista a obter a anulação de uma venda de terras em
nome do direito de preferência.
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 117
34 Sem tomarmos partido sobre o sentido da relação entre estes factos, podemos notar que
as "doenças de ciúme agudo" (atan an-tsismin thissamamin, o mal do ciúme azedo) são ob-
jecto de uma atenção extrema por parte dos pais e em particular das mães, que dispõem
de um arsenal completo de ritos curativos e profilácticos. E, para se exprimir um ódio ir
redutível, evoca-se o sentimento do rapazinho que, brutalmente privado do afecto da
mãe pela chegada ao mundo de um recém-nascido, se torna magro e pálido como o mori
bundo (am'ut) ou "o que tem prisão de ventre" (bubran).
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 121
____________ vá*
consagradas pelos homens, como os casamentos, mas também das trocas ofi
ciosas e comuns continuamente asseguradas pelas mulheres com a cumplici
dade dos homens e por vezes às escondidas deles, mediação através da qual
se preparam e se realizam as relações objectivas que predispõem os dois gru
pos a ligarem-se. Se o capital econômico é relativamente estável, o simbólico é
mais lábil: o desaparecimento de um chefe de família prestigioso, sem falar da
ruptura de indivisão, basta, em certos casos, para o afectar fortemente. Corre-
lativamente, é toda a representação que a família entende dar de si própria e
os objectives que atribui aos seus casamentos — aliança ou integração — que
seguem as flutuações da fortuna simbólica do grupo. Assim, no espaço de
duas gerações, uma grande família (cf. árvore genealógica, p. ), cuja situação
econômica estava, contudo, a melhorar, passou de casamentos de homens,
uniões no interior do parentesco próximo ou uniões fora do comum (casa
mentos ajustados pelos homens, fora da área familiar com fins de aliança) a
matrimônios comuns, as mais das vezes urdidos pelas mulheres dentro das
suas redes próprias de relações. Esta mudança de política matrimonial coinci
diu com a morte dos dois irmãos mais velhos (Hocine II2e Laid II3), a ausência
prolongada dos homens mais velhos (partidos para França) e o enfraqueci
mento da autoridade da thamgarth, que cegara, caindo o poder de facto nas
mãos de Boudjemâa (III3) e, por intermitência, de Athman (IV5). Com efeito,
não tendo a sucessão da thamgarth, aquela que faz reinar a ordem e o silêncio
(ta'a n thamgarth, da-susmi—a obediência à velha é silêncio), sido assegurada,
a estrutura das relações entre as esposas reflecte a das relações entre os espo
sos, deixando vagante a posição de senhora da casa: os casamentos, em tais
condições, tendem a orientar-se para as linhagens respectivas das diferentes
mulheres.
As características estruturais que definem genericamente o valor dos
produtos de uma linhagem no mercado das trocas matrimoniais são eviden
temente especificadas por características secundárias, como o estatuto matri
monial do indivíduo a casar, a sua idade, etc. Assim, as estratégias matrimo
niais do grupo e o casamento que delas pode resultar variam por completo
conforme o homem a casar seja um celibatário "em idade de casar" ou, pelo
contrário, tenha já "ultrapassado essa idade", ou um homem já casado que
procura uma co-esposa, ou ainda um viúvo ou um divorciado que pretende
voltar a casar (variando a situação conforme tenha ou não filhos do seu pri
meiro casamento). Para o sexo feminino, os princípios de variação são os mes
mos, com a diferença de a desvalorização acarretada pelos casamentos anterio
res ser infinitamente maior (em razão do preço atribuído à virgindade e em
bora uma reputação de "homem que repudia" seja pelo menos tão prejudicial
como uma fama de "mulher a repudiar"). Tal é apenas um dos aspectos da
dissimetria entre a situação da mulher e a do homem perante o casamento: "O
homem", diz-se, "continua sempre a ser um homem seja qual for o seu estado
(ao contrário da mulher, que pode desqualificar-se e precipitar-se na
O PARENTESCO COMO REPRESENTAÇÃO E COMO VONTADE 127
1 Os termos "à margem e em marcha" não restituem o jogo de som e de sentido presente no
original francês: en marge et en marche. (N. do T.)
135
136 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
-
Capítulo 1
O OBSERVADOR OBSERVADO
137
138 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
O
1 A. Comte, Discours sur I 'Esprit Positif, Paris, Cariliãn-Goeury e Victor Dalmont, Fevereiro
de 1984, reeditado em Oeuvres Choisses d’August Comte, com uma introdução de henri
Gouhier, Paris, Aubier, 1943. V-
2 Se não receássemos prestar-nos a leituras ingenuamente populistas, proporíamos uma
análise mais sistemática da situação de estrangeiro que é a do etnólogo, excluído do jogo
real das actividades sociais pelo facto de não ter lugar seu (a não ser por opção ou como
por jogo) no sistema observado e por não lhe competir ocupar dentro desse sistema um
seu lugar. Limitaremos a recordar certa análise de Sartre, que esclarece um dos aspectos
melhor escondidos da verdade objectiva da situação do "explorador", quer dizer, num
sentido arcaizante, de espião, embora essa análise seja extremada um pouco depressa de
mais e, através da metáfora, evoque certos discursos do radicalismo pueril: "O sociólogo
não está situado [...]; é possível que tente integrar-se no grupo mas trata-se de uma inte
gração provisória, sabe que se desligará de tudo isso, que registará as suas notas de obser
vação num registo de objectividade; em suma, assemelha-se a um desses polícias que o
cinema nos propõe muitas vezes como modelos e que conquistam a confiança de um gang
para melhor o poderem denunciar" (J. -P. Sartre, Critique de la raison dialectique, antecedi
da de Questions de méthode, Paris, Gallimard, 1960, p. 51). Vemos, à luz deste texto, que não
é indiferente por exemplo tomarem-se por objecto as classes dominadas (na medida pelo
menos em que uma investigação se possa definir por meio de tais objectos pré-construí-
dos).
O OBSERVADOR OBSERVADO 139
3 C. Bally, Le Langage et la Vie, Genebra, Droz, 1965, pp. 58,72 e 102. Também não é por acaso
que à história da arte (e, em menor grau, a da literatura) nascida da tradição do amador,
com a qual só muito raramente rompeu e que lhe legou uma tradição de exaltação con
templativa da obra, se coloca primordialmente o problema da decifração, aproximando-se
muito nisso da linguística saussuriana e só de modo secundário se interessando pelas
condições sociais da produção, da reprodução e da circulação das obras; é por excepção e
como que por acidente que o próprio Panofsky se atem (a propósito do abade Suger e da
evolução da arquitectura gótica) ao ponto de vista do intérprete que, atendendo ao opus
operatum mais que ao modus operandi, faz da teoria da produção artística, reduzida ao con
ceito de intenção objectiva da obra, um simples aspecto de uma teoria da decifração e da
compreensão imediata como decifração que se ignora.
4 Pense-se, em domínios muito diferentes, na pequena burguesia, grande consumidora de
livros de boas maneiras, e em todos os academismos, com os seus tratados de estilo.
140 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
que constitui a prática enquanto prática (por oposição quer às teorias implíci
tas ou explícitas que a tratam como objecto, quer às que a reduzem a uma ex
periência vivida susceptível de ser apreendida por um retorno reflexivo): a vi
gilância incessante que é indispensável para alguém se deixar "levar" pelo
jogo sem se deixar "arrebatar" poe ele, para além dele, como acontece quan
do o combate simulado domina os combatentes, testemunha de que compor
tamentos tão visivelmente impostos e forçados assentam no mesmo princípio
que comportamentos mais de molde a darem a aparência igualmente engana
dora do improviso livre, como o bluff ou a sedução, que jogam com todos os
equívocos, todos os duplos sentidos e todos os subentendidos da simbólica
corporal e verbal, para produzirem comportamentos ambíguos e, portanto,
revogáveis ao mais pequeno indício de recuo ou de recusa, e para manterem a
incerteza sobre intenções sem parar oscilantes entre o jogo e o a-sério, o aban
dono e a distância, a solicitude e a indiferença. Basta operarmos uma tal in
versão de perspectiva para nos apercebermos de que é possível dar conta de
todos os comportamentos de honra realmente observados (ou potencialmen
te observáveis) que impressionam ao mesmo tempo pela sua diversidade
inesgotável e pela sua necessidade quase mecânica, e isto sem necessidade de
construir dispendiosamente modelos "mecânicos" que, no melhor dos casos,
estariam para o improviso regulado do homem de honra como um manual de
saber-viver está para a arte de viver ou um tratado de harmonia para a inven
ção musical. Para a produção de todos os comportamentos de honra que po
dem ser reclamados pelos desafios da existência, não é necessário possuir-se
essa espécie de "ficheiro de representações prefabricadas", como diz Jakob-
son,5 que permitiría "escolher" o comportamento conveniente em cada situa
ção, basta ser-se detentor do domínio prático do princípio de isotimia, que quer
que todo o homem, na medida em que se situe na classe dos homens de honra
e se comporte como tal, por exemplo lançando um desafio, exige implicita
mente ser tratado como tal e, portanto, receber uma resposta: decorre, com
efeito, deste princípio que a ausência de resposta atenta ou contra a honra da
quele que desafia, no caso em que se afirme sem equívoco como recusa desde
nhosa de ripostar, ou contra a honra daquele que é desafiado, uma vez que
pela sua impotência para ripostar se exclui da classe dos homens de honra na
qual fora implicitamente situado através do desafio recebido.
A linguagem da regra e do modelo, que pode parecer tolerável quando
se aplica a práticas estrangeiras, não resiste à simples evocação concreta do
domínio prático da simbólica das interacções sociais, tacto, sentido das opor
tunidades, saber-fazer ou sentido da honra, pressupostos pelos jogos de so
ciabilidade mais quotidianos, e que pode ser redobrado pela aplicação de
uma semiologia espontânea, quer dizer, de um corpo de preceitos, de
145
146 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
1 Poderão ler-se mais adiante as análises da troca de dons apresentadas como uma ilustra
ção paradigmática da teoria das relações entre os três modos de conhecimento teórico (ou
seja o modo de conhecimento fenomenológico, com a análise de Mauss, o modo de co
nhecimento objectivista, com a análise de Lévi-Strauss, e a análise praxeológica).
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 147
2 Cf. A. Schutz, Collected Papers. I. The Problems of Social Reality, editado por e com uma in
trodução de Maurice Nathanson, Haia, Martinus Nijhff, 1962, p. 59. Schutz entende mos
trar que a contradição que ele próprio comprova entre aquilo a que chama o postulado da
interpretação subjectiva e o método das ciências mais avançadas, como a economia, é
apenas aparente (cf. pp. 34-35).
3 H. Garfinkel, Studies in Ethnomethodology, Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall, 1967;
P. Attewell, "Ethnomethodology since Garfinkel", Theory and Society, Vol. 1, n.° 2, Verão
de 1974, pp. 179-210.
4 Assim, como tentaremos mostrar mais adiante, é a construção objectivista da estrutura
das probabilidades estatísticas objectivamente ligadas a uma condição econômica e so
cial (a de uma economia de reprodução simples ou de um subproletariado, por exemplo)
que permite dar totalmente conta da forma da experiência temporal que a análise feno
menológica traz à luz do dia.
148
do soe' ^ÍStanatural"
n
6 tOda a análi
SP ,
meníe' aquilo que se acha funda-
te em 4 a ea<ÍUesta odas^ UeéCOrisíi tutivari e,?°menológica da "tese geral do
denm?mara^ exPeriência originária" do muu'
ePokhe aPàTí‘&ir como um como &i SOciais dessa crença que consis-
que o mUer dizer' como a tese>? °u, mais 6 ãsedá"' sequea "redução" f^a
questão rind° da atitude Uma SUsPensão d e^actamente, como uma epokhe da
W con faS C0^ões Inatural 4 de dÚVÍda sob« a possibilidade de
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5 F j, 1P° determinado de condiÇôeS
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forque, Collin-Macrnillan, 1962, p-
149
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO
6 A ciência social não pode separar das suas cond Ç ) descreve como operações
ral standpoint ou operações como a epokhe, que a eno egtruturas objectivas e su-
puras da consciência: a crítica da doxa é insepar v & experiência correlativa.
Põe a existência da linguagem crítica que permi e nto sentido último e defini-
7 Aquilo que se 'dá' não para nós, mas objecti ' KunstWollens", Zeitschriftfilr
tivo do fenômeno artístico" (E.Panofsky, g pp. 321-339.
Aesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft, X , /r
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
150
urns
iií
152 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
19 "Dizer dos modelos que agem sobre um indivíduo não é menos absurdo que considerar
uma equação do segundo grau capaz de cometer um homicídio" (A. R. Radcliffe-Brown,
Structure and Function in Primitive Society, Londres, Oxford University Press, 1952, p. 190).
"Examinemos em que consistem os factos concretos, observáveis, dos quais o antropólo
go social se ocupa. Se começamos a estudar, por exemplo, os indígenas de uma região da
Austrália, depara-se-nos com um certo número de indivíduos humanos num meio ambi
ente determinado. Podemos observar os seus comportamentos, incluindo naturalmente
a sua fala, e os produtos materiais das suas acções passadas. Não observamos uma "cul
tura", uma vez que esse termo designa não uma realidade concreta, mas uma abstracção
e, no seu uso mais corrente, muito vaga. Contudo, é a observação directa que nos revela
que os seres humanos em causa estão ligados por uma rede complexa de relações sociais
a que chamo "estrutura social" as quais são dotadas de uma existência efectiva (this net
work of actually existing relations') (A. R. Radcliffe-Brown, "On Social Structure", Journal of
the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, Vol. 70,1940, pp. 1-12). Não é,
156 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
sem dúvida, excessivo vermos o princípio da confusão extrema dos debates sobre a no
ção de cultura no facto de a maior parte dos autores porem no mesmo plano, pelo menos
para os oporem, conceitos de estatutos epistemológicos muito diferentes, como a cultura
e a sociedade ou o indivíduo ou o comportamento, etc. O diálogo imaginário sobre a no
ção de cultura apresentado por Clyde Kluckhohn e William H. Kelly (cf. C. Kluckhohn
and W. H. Kelly, "The Concept of Culture", em The Science of Man in the World Crisis, R.
Linton (org.), Nova Iorque, Columbia University Press, 1945, pp. 78-105) dá deste debate
uma imagem talvez mais sumária, mas mais vivas que a obra de A. L. Kroeber e C. Kluck
hohn, Culture. A Critical Review of Concepts and Definitions (Papers of the Peabody Museum of
American Archaelogyand Ethnology, Vol. XLVII, n.° 1, Harvard University Press, 1952). Não
escapou a Leach que, a despeito da sua oposição aparente, Malinowski e Radcliffe-Brown
estão pelo menos de acordo ao considerarem cada "sociedade" ou cada "cultura" (segun
do o vocabulário de cada um deles) como uma "totalidade feita de um certo número de
'coisas' empíricas e discretas, de espécies muito diversas, grupos de indivíduos, 'institui
ções', costumes", ou ainda "como um todo empírico feito de um número limitado de par
tes imediatamente identificáveis", consistindo a comparação entre sociedades diferentes
em examinar se se encontram em todos os casos "partes do mesmo tipo" (E. R. Leach, Ret
hinking Anthropology, Londres, The Athlone Press, 1961, p. 6).
20 Com efeito, se exceptuarmos os raros autores que conferem à noção de comportamento
uma acepção rigorosamente definida pela operação que a constitui por oposição à "cul
tura" (por exemplo, H. D. Lasswell, que estabelece que, "se um acto está em conformida
de com a cultura, é um comportamento, caso contrário é uma conduta", em "Collective
Autism as a Consequence of Culture Contact", Zeitschriftfilr Socialforschung, 1935, Vol. 4,
pp. 232-247) sem disso tirarem qualquer consequência, a maior parte dos utilizadores da
oposição propõe definições da cultura ou do comportamento epistemologicamente dis
cordantes, as quais opõem um objecto construído a um dado preconstruído, deixando
vazio o lugar do segundo objecto construído, a saber, a prática como execução: assim, e
este está longe de ser o exemplo pior, Harris opõe os "modelos culturais" (cultural pat
terns) aos "comportamentos culturalmente modelados" (culturally patterned behaviors),
como "aquilo que o antropólogo constrói" e "aquilo que os membros da sociedade obser
vam ou impõem aos outros" (M. Harris, "Review of Selected Writings of Edward Sapir",
Language, Culture and Personality, Language, 1951, Vol. 27, n.° 3, pp. 288-333).
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 157
21 É. Durkheim, Les Règles de la méthode sociologique, Paris, PUF, 13.° edição, 1956 (l.“ edição,
Alcan, 1895), p. 11.
158 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
22 C. Lévi-Strauss, Les Structures Élémentaires de la Parenté, Paris, Mouton, 1967, pp. XX-XXI
(sublinhados meus).
23 Ibid., p. XX, cf. também a p. XXII.
24 C. Lévi-Strauss, L'Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 41.
25 C. Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la parenté, op. cit., p. XIX.
26 Ibid.
OS TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO 159
verdade objectiva estabelecida pela ciência para uma prática que exclui a pos
tura de molde a tornar possível o estabelecimento dessa verdade:27 "A que é
que eu chamo 'a regra segundo a qual ele procede'? A hipótese que descreve
de modo satisfatório o seu uso das palavras observado por nós, ou a regra à
qual ele se refere no momento de se servir dos signos ou a que nos dá em res
posta à nossa pergunta quando lhe perguntamos que regra é a sua? Mas e se a
nossa observação não permite reconhecer claramente qualquer regra e a
questão nada determinar a esse respeito? De facto à minha questão que
visava saber o que ele entende por 'N', respondeu dando-me, com efeito, uma
explicação, mas estando disposto a retomá-la e a modificá-la. Como deverei
eu então determinar a regra segundo a qual ele joga? Ele próprio a ignora. —
Ou, mais exactamente, que poderia aqui significar ao certo a expressão: 'A re
gra segundo a qual ele procede'?28" Fazer da regularidade, quer dizer, do que
se produz com uma certa frequência, estatisticamente mensurável, o produto
do regulamento conscientemente editado e conscientemente respeitado (o que
suporia que se explicasse a sua gênese e a sua eficácia) ou da regulação incons
ciente de uma misteriosa mecânica cerebral e/ou social é passar do modelo
da realidade à realidade do modelo. "Consideremos a diferença entre 'o com
boio tem regularmente dois minutos de atraso' e "a regra quer que o comboio te
nha dois minutos de atraso': [...] neste último caso sugere-se que o facto de o
comboio estar atrasado dois minutos se verifica em conformidade com uma
política ou um plano [...]. As regras remetem para planos e para políticas, o
que as regularidades não fazem [...]. Pretender que deve haver regras na lín
gua natural equivale a pretender que as estradas devem ser vermelhas por
que correspondem às linhas vermelhas de um mapa".29 E Quine fornece-nos
o meio de explicitarmos a distinção contida neste texto:
o
Imagine two systems of English grammar: one an old-fashioned system that
draws heavily on the Latin grammarians, and the other a streamlined formula
tion due to Jespersen. Imagine that the two systems are extensionally equivalent,
in this sense: they determine, recursively, the same infinite set of well-formed
English sentences. In Denmark the boys in one school learn English by the one
system, and those in another school learn it by the other. In the end the boys all
sound alike. Both systems of rules fit the behaviour of only half the boys. Both
systems fit the behaviour also of all us native speakers of English, this is what
makes both systems correct. But neither system guides us native speaker of
English, no rules do, except for some intrusions of inessential schoolwork.
My distinction between fitting and guiding is, you see, the obvious and
flat-footed ones. Fitting is a matter of true description, guiding is a matter of cam
se and effect. Behaviour fits a rule whenever it conforms to it, whenever the rule
truly describes the behaviour. But the behaviour is not guided by the rule unless
the behaver knows the rule and can state it. The behaver observes the rule.30
1 O termo "disposição" parece particularmente ajustado para exprimir aquilo que o con
ceito de habitus recobre (definido como sistemas de disposições): com efeito, exprime,
em primeiro lugar, o resultado de uma acção organizadora apresentando então um sentido
muito próximo de termos como o de estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de
ser, um estado habitual (em especial do corpo) e, em particular, uma predisposição, uma
tendência, uma propensão ou uma inclinação.
163
164 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
------------------ O
2 "Esta probabilidade subjectiva, variável, que por vezes exclui a dúvida e engendra uma
certeza sui generis e que outras vezes aparece apenas como uma luz vacilante, é aquilo a
que chamamos a probabilidade filosófica porque se liga ao exercício dessa faculdade superi
or por meio da qual damos conta da ordem e da razão das coisas. O sentimento confuso
de semelhantes probabilidades que existe em todos os homens razoáveis determina en
tão, ou pelo menos justifica, as crenças inabaláveis do chamado senso comum" (Cournot,
Essai sur lesfondements de la connaissance et sur les caractères de la critique philosophique, Pa
ris, Hachette, 1922 (l.a ed„ 1851), p. 70).
3 " We are no sooner acquainted with the impossibility of satisfying any desire, than the de
sire itself vanishes", D. Hume, A Treatise of Human Nature, L. A. Selby-Bigge M. A. (org.),
Oxford, Clarendon Press, p. XXII.
166 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
4 "Here we confront the distressing fact that the sample episode chain under analysis is a
fragment of a larger segment of behavior which in the complete record contains some 480
separate episodes. Moreover, it took onky twenty minutes for these 480 behavior stream
evens to occur. If my wife's rate of behavior is roughly representative of that of others ac-
tores, we must be prepared to deal with an inventory of episodes produced at the rate of
some 20.000 per sixteen-hour day, per actor [...]. In a population consisting of several
hundred actor-types, the number of different episodes in the total repertory must au-
round to many millions during the course of an annual cycle", M. Harris, The Nature of
Cultural Things, Nova Iorque, Randon House, 1964, pp. 74-75.
168 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
O que quer dizer que "a hipótese, associada ao nome de Arrow, do learning by doing" (cf.
K. J. Arrow, "The Economic Implications of Learning by Doing", The Review of Economic
Studies, Vol. XXIX (3), n.° 80, Junho, 1962, pp. 173-175) é um caso particular (cuja particu
laridade é necessário precisar) de uma lei muito geral: qualquer produto fabricado — in
cluindo os produtos simbólicos, como as obras de arte, os jogos, os mitos, etc. — exerce
pelo seu próprio funcionamento, e em particular pela utilização que dele é feita, um efei
to educativo que contribui para tornar mais fácil a aquisição das disposições necessárias
à sua utilização adequada.
ESTRUTURAS, HABITUS E PRÁTICAS 169
10 lWd.,p.521.
11 É. Durkheim, Les Règles de la Méthode Sociologique, op. cit., p. 18.
12 L'Être et le Néant, op. cit., p. 543.
13 op. cit., p. 161.
14 J. P. Sartre, Critique de la Raison Dialectique, op. cit., p. 305.
15 Ibid., p. 357.
172 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
criação é contínua, como diz Jean Wahl, porque a duração não o é" e porque a
substância extensa não contém em si própria o poder de subsistir, estando Deus
investido da tarefa a cada instante recomeçada de criar o mundo ex nihilo, por
um livre decreto da sua vontade, assim também a recusa tipicamente carte-
siana da opacidade viscosa das "potencialidades objectivas" e do sentido ob
jective conduz Sartre a confiar à iniciativa absoluta dos "agentes históricos",
indivíduos ou colectivos, como "o partido", hipóstase do sujeito sartriano, a
tarefa indefinida de arrancar o todo social, ou a classe, à inércia do "práti-
co-inerte". No final do imenso romance imaginário da morte e da ressurrei
ção da liberdade, com o seu duplo movimento — a "exteriorização da inferio
ridade" que conduz da liberdade à alienação, da consciência à materialização
da consciência, ou, como o título diz, "da praxis ao prático-inerte", e a "inte-
riorização da exterioridade" que, pelos atalhos abruptos da tomada de cons
ciência e da "fusão de consciências", leva "do grupo à História", do estado
reificado do grupo alienado à existência autêntica do agente histórico a cons
ciência e a coisa ficam tão irremediavelmente separadas como no começo,
sem que nada que se pareça com uma instituição ou um sistema simbólico
como universo autônomo (a própria escolha dos exemplos 0 testemunha) al
guma vez possa ser constatado ou construído. As aparências de um discurso
dialéctico (que não são mais que as aparências dialécticas do discurso) não
podem mascarar a oscilação indefinida entre o em-si e o para-si, ou, na nova
linguagem, entre a materialidade e a praxis, entre a inércia do grupo reduzido
à sua "essência", quer dizer ao seu passado superado e à sua necessidade
(abandonados aos sociólogos), e a criação continuada do livre projecto colec-
tivo como série de actos decisórios indispensáveis para salvar o grupo do ani
quilamento na pura materialidade. E perguntamo-nos como se poder ia não
atribuir à permanência de um habitus a constância com a qual a intenção ob-
jectiva da filosofia sartriana se afirma, apesar das diferenças de linguagem in
troduzidas, contra as intenções subjectivas do seu autor, quer dizer, contra
um projecto permanente de "conversão" nunca tão manifesto e tão manifes
tamente sincero como em certos anátemas que não assumiríam sem dúvida
tanta violência se não tivessem um sabor de autocrítica consciente ou incons
ciente. Por exemplo, é preciso ter-se na memória a célebre análise do empre
gado de café para se apreciar plenamente uma frase como a seguinte: "A to
dos os que se tomam por anjos, as actividades do próximo parecem absurdas
porque pretendem transcender o empreendimento humano recusando-se a
participar nele."20 21 A teoria sartriana das relações entre Flaubert e a burguesia
é, sem dúvida, a expressão mais manifesta e mais directa da relação burguesa
com a existência e com as condições materiais de existência, a qual, pondo a
20 Ibid., p. 179.
21 Ibid., pp. 182-193.
174 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
30 A ilusão da criação livre encontra certamente algumas das suas justificações no círculo
característico de toda a estimulação condicional que crê que o habitus não pode engen
drar o tipo de resposta objectivamente inscrito na sua lógica a não ser na medida em que
confira à conjuntura a sua eficácia de detonador, constituindo-a segundo os seus princí
pios, quer dizer, fazendo-a existir como questão por referência a uma certa maneira de in
terrogar a realidade.
31 O habitus é o princípio unificador de práticas que relevam de domínios diferentes e que a
análise objectivista situaria em "subsistemas" separados, como as estratégias matrimo
niais, as estratégias de fecundidade ou as escolhas econômicas; é, se se quiser, o ponto
onde se realiza praticamente "a articulação" dos campos que o objectivismo (de Parsons
aos leitores estruturalistas de Marx) dispõe lado a lado sem procurar os meios de desco
brir o princípio real das homologias estruturais ou das relações de transformação que se
estabelecem objectivamente entre eles (o que não significa negar que as estruturas sejam
objectividades irredutíveis à sua manifestação nos habitus que produzem e que tendem a
reproduzi-las).
180 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
33 Cf. C. Du Bois, The People of Alor, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1944.
34 A. F. Wallace, Culture and Personality, Nova Iorque, Random House, 1965, p. 86.
182 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
185
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
184
185
ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
186
todas as séries sensíveis que pode ser apropriada sob a forma de um princípio
gerador de práticas organizadas segundo a mesma razão.2
As análises experimentais da aprendizagem que estabelecem que "a
formação ou a aplicação de um conceito não requer a apreensão consciente
dos elementos ou das relações comuns implicados nos exemplos particula
res"3 permitem compreender os processos pelos quais os produtos sistemáti
cos de disposições sistemáticas, a saber, as práticas e as obras, tendem a en
gendrar por sua vez disposições sistemáticas. Assim, na presença de séries de
símbolos — caracteres chineses (Hull) ou desenhos fazendo variar simulta
neamente a cor, a natureza e o número dos objectos representados (Heidbre-
der) —, distribuídos em classes afectadas de nomes arbitrários mas objectiva
mente fundados, os sujeitos que não conseguem exprimir o princípio de clas
sificação atingem, no entanto, marcas superiores às que obteriam se adivinhas
sem ao acaso: "Certos sujeitos [...] adquirem a aptidão para nomear novos ca
sos sem que por isso sejam capazes de dizer como procedem, ainda quando as
formulações necessárias se situam dentro dos limites das suas possibilidades
de expressão [...]. Estes estudos indicam [...] que há princípios complexos de
orientação (guiding) que podem ser constituídos, fixados e utilizados sem que
os agentes cheguem a ter consciência do processo. O sujeito tem noção, decer
to, dos materiais concretos e dos seus esforços em vista de associar nomes a
configurações concretas, mas elabora modos mais gerais de designação das
figuras sem disso ter consciência".4 A análise da aquisição em meio natural de
um material estruturado proposta por Albert B. Lord a partir do estudo da
formação do guslar, bardo jugoslavo, concorda perfeitamente com os resulta
dos da experimentação: a "arte" do bardo, domínio prático daquilo a que se
chamou o "método formulário", quer dizer, da aptidão para improvisar com
binando "fórmulas", sequências de palavras "regularmente usadas nas mes
mas condições métricas a fim de exprimir uma ideia determinada" (por
exemplo, o adjective homérico),5 e temas, lugares-comuns da narração épica,
adquire-se por familiarização simples, "à força de ouvir poemas"6 e sem que
os aprendizes tenham alguma vez consciência de adquirir e posteriormente
xçCX .0 °
2 Se as sociedades sem escrita parecem ter uma inclinação particular para os jogos estrutu
rais que fascinam o etnólogo, é por vezes, muito simplesmente, como me fez ver Marcei
Maget, com fins mnemotécnicos: a homologia notável entre a estrutura da distribuição
das famílias na aldeia e a estrutura da distribuição das sepulturas no cemitério que se ob
serva na Cabília (Alt Hichem, Tizi Hibel) contribui evidentemente para facilitar a identi
ficação das sepulturas tradicionalmente anônimas (acrescentando-se aos princípios es
truturais as orientações expressamente transmitidas).
3 B. Berelson and G. A. Steiner, Human Behavior, Nova lorque, Harcourt, Barce and World,
1964, p. 193.
4 Leeper, citado por B. Berelson and G. A. Steiner, ibid.
5 A. B. Lord, The Singer of the Tales, Cambridge, Harvard University Press, 1960, p. 30.
6 Ibid., p. 32.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 187
6 Ibid., p. 24. k
7 De facto, aqui como noutros lugares, os diferentes tipos de acção pedagógica que pode
mos distinguir em função do grau em que são explícita e expressamente organizados em
vista da inculcação são complementares e praticamente indissociáveis. Nada seria mais
falso que imaginar alguma coisa como uma educação natural numa sociedade que tende
tanto mais a substituir à experiência directa do mundo das experiências socialmente or
denadas quanto mais se representa toda a educação (e em particular a das raparigas e das
mulheres) como adestramento ou melhor correcção de uma natureza canhota e distorci
da: "endireita o tronco enquanto está verde, pois uma vez seco, ninguém pode cortá-lo";
"como se diz de uma madeira torcida, se não consegues endireitá-la, corta-a"; "a árvore
que não podaste no começo, vai trair-te no fim"; "educa a rapariga, senão terás de a
aguentar".
8 Os rapazinhos estão, além disso, predispostos a desempenhar o papel de intermediários
entre o mundo masculino e o mundo feminino, ou por relatarem às mulheres o que se
passa na assembléia dos homens, ou por porem o seu orgulho em surpreender algum se
gredo feminino para o contarem aos homens.
188 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
----------------------- A
11 Nesta passagem, foram eliminadas algumas expressões francesas que não têm equiva
lente em termos de "linguagem de órgãos" na língua portuguesa e que, de resto, são mui
to próximas das traduzidas. (N. do T.)
192 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
12 M. Klein, Essais depsychanalyse (trad, de M. Derrida), Paris, Payot, 1967, p. 133 n.° 1 ("géo-
graphie du corps maternel"), p. 290, n.° 1.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 193
13 Cf. E. H. Erikson, "Observations on the Yurok: Childhood and World Image", University
of California Publications in American Archaelogy and Ethnology, University of California
Press, Vol. 35, n.° 10,1943, pp. 257-302.
194 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
14 "Os parentes gritam e batem com os pés em ordem e por ordem, cada vez que chega a hora
ritual de exprimir o desgosto familiar e em resposta ao sinal dado pelo chefe do coro. To
dos 'põem então os seus membros em movimento', todos oferecem a sua voz "a fim de
acalmar a dor e diminuir a angústia'. Saltam e gritam um número de vezes determinado e
segundo um ritmo significativo da sua proximidade em relação ao defunto — os homens
descobrem o braço direito e saltam abertamente, as mulheres não se descobrem e não le
vantam os bicos dos pés do o chão, mas batem no peito e o filho emite vagidos à maneira
dos recém-nascidos, sem que o som da sua voz jamais pare, enquanto os parentes mais
afastados, que, depois de três modulações, deixam o som prolongar-se e morrer, são ape
nas autorizados a adoptar um tom de queixume" (M. Granet, La Civilisation chinoise, Pa
ris, Albin Michel, 1929, p. 392, sublinhado por mim). Cf. também "Le Langage de la dou-
leur d'après le rituel funéraire de la Chine classique", Journal de psychologie, Fevereiro de
1922, pp. 97-118.
15 A. Matheron, Individu et société chez Spinoza, Paris, Éditions de Minuit, 1969, p. 349.
A INCORPORAÇÃO DAS ESTRUTURAS 195
de cortesia, etc.) cuja execução "não custa" e que parecem tão "naturalmente"
exigíveis ("é o mínimo dos mínimos.."ele podia pelo menos...", "não lhe
saía caro fazer...") que a abstenção equivale a uma recusa ou a um desafio e
que a escolha de se submeter sem discussão aos formalismos e às formalida
des mais de molde a traírem o arbitrário da ordem que as impõe só pode apa
recer como uma declaração incondicional de reconhecimento, apenas tocada
pela suspeita, de resto improvável, da restrição mental e do desdobramento
irônico. O domínio prático daquilo a que se chamam as regras de cortesia, e,
em particular, a arte de ajustar cada uma das fórmulas disponíveis (por exem
plo, no final de uma carta) às diferentes classes de destinatários possíveis, su
põe o domínio implícito e, portanto, o reconhecimento-desconhecimento de
um conjunto de oposições constitutivas da axiomática implícita de uma or
dem política determinada (tais como, no exemplo considerado, a oposição
entre os homens e as mulheres, uns reclamando homenagens, as outras sau
dações ou sentimentos, a oposição entre os mais jovens e os mais velhos, a
oposição entre o pessoal, ou o privado, e o impessoal — com as cartas admi
nistrativas ou de negócios — e por fim, a oposição hierárquica entre os supe
riores, os iguais e os inferiores, que governa a gradação dos sinais de respei
to). O mesmo é dizer como é ingênuo e falacioso reduzir o campo daquilo que
é "considerado como óbvio" (taken for granted), à maneira de Schütz e, na sua
esteira, dos etnometodólogos, a um conjunto de pressuposições formais e uni
versais: "Considero óbvio que os outros existem, que agem sobre mim como
eu sobre eles e que a comunicação e a compreensão mútuas podem estabele-
cer-se entre nós — pelo menos em certa medida —, tudo isto graças a um sis
tema de signos e de símbolos e no quadro de uma organização e de institui
ções sociais que não são obra minha".16 De facto, através da influência que a
cortesia exerce sobre os actos na aparência mais insignificantes da vida de to
dos os dias, aqueles que a educação permite reduzir ao estado de automatis-
mos são os princípios mais fundamentais de um arbitrário cultural e de uma
ordem política que se impõem segundo o modo da evidência ofuscante e
desapercebida. q
c-
CZ
\O
16 A. Schutz, Collected Papers. I, The Problem of Social Reality, op. cit., p. 145.
Capítulo 5
A ILUSÃO DA REGRA
197
198 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
Hegel, La Raison dans I'histoire. Introduction à la philosophic de I'histoire (trad., introd, e no
tas de K. Papaioannou), Paris, Pion, 1965, p. 26.
8 Sobre o modelo da linhagem como quadro ideológico utilizado pelos indígenas "para se
darem uma compreensão de senso comum das suas relações sociais", poderá ler-se o be
líssimo artigo de E. L. Peters, "Some Structural Aspect of the Feud Among the Ca
mel-Herding Bedouin of Cyrenaica", Africa, Vol. XXXVII, n.° 3, Julho de 1967, p. 261-282.
9 Assim, segundo M. Dewulder (Joe. cit.), as mulheres dos Ouadhias podiam explicar a
significação de certos símbolos que utilizavam nas pinturas murais.
10 F. Boas, Anthropology and Modem Life, Nova Iorque, W. W. Norton and Co, 1962 (l.a ed.
1928), pp. 164-166.
204 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
12 Cf., sobre este ponto, P. Bourdieu, "Le Marché des biens symboliques", L'Année sociologi-
que, Vol. 22, 1971, pp. 49-126.
206 esboço de uma teoria da prática
13 Cf., por exemplo, A. B. Lord (op. cit., pp. 20,124-125,129,221), e G. S. Kirk, The Songs of Ho
mer (Cambridge University Press, 1962, pp. 86-87).
A ILUSÃO DA REGRA 207
De uma maneira mais geral, as práticas não atingem, a não ser por ex-
cepção, nem um nem outro desses limites que são a pura estratégia ou o sim
ples ritual, quer dizer, para retomarmos o exemplo já citado, o pólo definido
pelo modelo teleológico segundo o qual o indivíduo A produz uma acção al
para determinar B a produzir bl e poder fazer a2 (ou, progressivamente, an),
e o pólo representado pelo modelo típico do juridicismo segundo o qual a re
gra quer que A produza al e que B responda bl e que A contraponha al e as
sim por diante. O juridicismo, que faz da regra o princípio de todas as práti
cas, e o interaccionismo, que descreve as práticas como estratégias explicita
mente orientadas por referência aos índices antecipados da reacção às práti
cas, têm em comum o facto de ignorarem a harmonização dos habitus que,
fora de qualquer cálculo intencional e de qualquer referência consciente à
norma, produzem práticas mutuamente ajustadas e nunca excluem as toma
das de consciência parciais, facilitadas pelos preceitos e pelas receitas do sen
tido comum. Para economizar o recurso a "regras" como as que supostamen
te regem as trocas matrimoniais, seria necessário estabelecer em cada caso
uma descrição completa (que a invocação da regra permite economizar) da
relação entre as disposições socialmente constituídas e a situação na qual se
definem os interesses objectives e subjectivos dos agentes e, no mesmo acto,
as motivações precisamente especificadas das suas práticas particulares, não
devendo ser necessário lembrar, com Weber, que a regra jurídica ou consuetu-
dinária nunca é mais do que um princípio secundário de determinação das prá
ticas que não intervém, a título de substituto, a não ser quando o princípio
primário, a saber, o interesse (subjectivo ou objectivo), falta.14 15 Assim, é na re
lação entre as disposições e a situação que se definem os interesses, ou
___________ O
16 Assim os dois artigos clássicos sobre o casamento entre primos paralelos, o de F. Barth e o
de F. Murphy e L. Kasdan, propõem teses diametralmente opostas: segundo o primeiro,
esse tipo de casamento reforça a integração da linhagem por oposição às outras, de acor
do com o segundo tende a isolar e fechar as linhagens em si mesmas (cf. F. Barth, "Princi
ples of Social Organization in Southern Kurdistan", Universitets Etnografiske Museum Bul
letin, n.° 7, Oslo, e F. Murphy e L. Kasdan, "The Structure of Parallel Cousin Marriage",
The American Anthropologist, Vol. 61, n.° 1, Fevereiro de 1959,p p. 17-29). Não basta obser
var, com C. Lévi-Strauss, que estas duas interpretações, que acentuam uma a tendência
para a fusão, a outra para a cisão, "por opostas que sejam na aparência, são exactamente
equivalentes" (C. Lévi-Strauss, "Intervention aux entretiens interdisciplinaires sur les
sociétés musulmanes", Systèmes de Parenté, Paris, École Pratique des Hautes Études,
1959, p. 19), pois têm em comum o facto de aceitarem uma definição indiferenciada da
função assim reduzida à função para o grupo. Assim, por exemplo, F. Murphy e L. Kasdan
escrevem: "A maior parte das explicações do casamento entre primos paralelos são justi
ficações pelas causas e as motivações segundo as quais a instituição deve ser compreen
dida por referência aos fins conscientes dos protagonistas individuais. Não procurámos
explicar a origem do costume, mas, tendo-a tomado como um dado de facto, esforçá-
mo-nos por analisar a sua função, isto é, o seu papel no interior da estrutura social beduí-
na, e deparou-se-nos que o casamento dos primos paralelos contribui para a extrema ci
são das linhagens agnáticas na sociedade árabe e, através da endogamia, enquista os seg
mentos patrilineares" (F. Murphy e L. Kasdan, loc. cit., p. 27).
A ILUSÃO DA REGRA 209
estar-se autorizado por uma relação tão forte como a que existe entre dois ir
mãos muito unidos. Assim, aquilo que o juridicismo descreve como um ver
dadeiro direito de opção, semelhante ao que vale para a terra, não é outra coi
sa que uma sobreposição de estratégias muito mais complexas ainda do que
esta evocação rápida poderá fazer crer, além de que temos o direito de supor
que é a representação, miticamente fundada, da hierarquia entre os sexos
que, nesta rede de obrigações de duplo sentido — não sendo a obrigação de
desposar do rapaz menos forte ou menos frequentemente imposta que o im
perativo inverso —, leva a seleccionar a que afirma os privilégios da masculi
nidade.17 18
Como neste caso claramente se vê, não se trata apenas de substituir a
uma explicação pela regra uma pelo interesse, nem basta sequer dizer que a
regra determina a prática quando a conveniência em obedecer-lhe leva a me
lhor sobre o interesse em desobedecer-lhe. A última astúcia da regra consiste
em fazer esquecer que há um interesse em obedecer à regra, ou, mais exacta-
mente, em estar em regra. A redução brutalmente materialista que o axioma
antropológico convida a operar permite romper com as ingenuidades da teo
ria espontânea das práticas, mas arrisca-se a fazer esquecer o interesse que há
em estar-se em regra e que se encontra no princípio das estratégias de segun
da ordem que visam, como costuma dizer-se, pôr-se em regra ou pôr o direito do
seu lado.w E assim que a conformidade perfeita com a regra pode dar lugar,
além do conflito directo assegurado pela prática prescrita, a um lucro secun
dário, tal como o prestígio e o respeito que são mais ou menos universalmente
prometidos a uma acção sem outra determinação aparente que o respeito puro
e desinteressado pela regra. O mesmo é dizer que as estratégias directamente
orientadas para o lucro primário da prática (por exemplo, o prestígio propor
cionado por um casamento) implicam quase sempre outras do segundo grau
que visam dar uma satisfação aparente às exigências da regra oficial e acumu
lar assim as satisfações do interesse bem compreendido e os lucros da impe-
cabilidade. E a ilusão da regra não teria uma tal força nos escritos dos antro
pólogos, apesar das denúncias sem conto,, se não fosse confortada pela
17 Para corrigir o que pode haver de um pouco simplificador nesta análise, a qual, visando
desmentir o modelo jurídico, por momentos o inverte simetricamente, deverá voltar-se à
análise das estratégias matrimoniais acima imposta acima (cf. o capítulo "O parentesco
como representação e como vontade", subcapítulo "Estratégias matrimoniais e reprodu
ção social").
18 A denúncia ritual do legalism, meia verdade tranquilizadora, à qual talvez haja quem ten
te reduzir numerosas análises aqui apresentadas, contribuiu, sem dúvida, para desenco
rajar todas as interrogações verdadeiras sobre as relações entre a regra e a prática e, mais
precisamente, sobre as estratégias de jogo ou de duplo jogo com a regra do jogo que con
ferem à regra uma real eficácia prática, mas de uma natureza muito diferente da que lhe
atribuía ingenuamente a legalistic approach, como dizia Malinowski (B. Malinowski, Coral
Gardensand their Magic, Vol. I, Londres, George Allen and Unwin, Ltd, 1966 [l.a ed. 1935],
p. 379).
212 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
213
214 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
toda a "consciência". Do mesmo modo que, com efeito, teria sido menor o espan
to, no tempo de Lévy-Bruhl, perante os traços bizarros da "mentalidade primiti
va" se se tivesse sabido romper com a teoria intelectualista das paixões que não
podia conceber que o universo da emoção tenha qualquer relação com a lógica
da magia e da "participação", hoje o assombro seria também menor perante as
proezas "lógicas" dos indígenas australianos se não se silenciasse a transforma
ção que leva das operações dominadas no estado prático às operações formais
que lhes são isomorfas e se não se omitisse no mesmo acto a interrogação sobre as
condições sociais dessa transformação.
Aciência do mito tem o direito de tomar de empréstimo à teoria dos gru
pos a linguagem na qual descreve a sintaxe do mito, mas na condição de não
esquecer (ou deixar esquecer) que essa linguagem destrói a verdade que per
mite apreender porque foi conquistada e construída contra a própria expe
riência que permite nomear, e nem vale a pena lembrar, depois de todas as
análises dos fenomenólogos, que não agimos num espaço geométrico e, de
pois de Bachelard, que não podemos apresentar a ciência da oxidação como a
verdade antropológica da experiência do fogo contra a qual ela foi construí
da, do mesmo modo que também nos é vedado mostrar o espaço contínuo e
homogêneo da geometria como o espaço prático, com as suas dissimetrias,
descontinuidades e direcções concebidas como propriedades substanciais,
direita e esquerda, leste e oeste. "Denken ist Handwerk", afirma Heideggeer, e
poderiamos dizer do mesmo modo que a ginástica ou a dança é geometria, na
condição de não entendermos por isso que o ginasta e o bailarino são geóme-
tras. Talvez nos sentíssemos menos tentados a tratar implícita ou explicita
mente o agente como um operador lógico se (sem tomarmos partido sobre a
questão da anterioridade cronológica) remontássemos do logos mítico à praxis
ritual que põe em cena, sob a forma de acções realmente efectuadas, quer di
zer, de movimentos corporais, as operações que a análise científica descobre
no discurso mítico, opus operatum que mascara sob as suas significações reifi-
cadas o momento constituinte da prática "mitopoiètica". À maneira dos actos
de jurisprudência, a prática ritual deve a sua coerência prática (que pode ser
restituída sob a forma de um esquema objectivado de operações) ao facto de
ser o produto de um único e mesmo mistério de esquemas imanentes à prática
que organizam não só a percepção dos objectos (e, no caso particular, a classi
ficação dos instrumentos, das circunstâncias — lugar e momento — e dos
agentes possíveis da acção ritual), mas também a produção das práticas (ou
seja, aqui, os movimentos e deslocamentos constitutivos da acção ritual). O
1 Com efeito, como Sartre mostra numa belíssima análise da "aventura da mão direita", a
demonstração geométrica, para existir, tem de destruir a unidade sensível da figura
como gestalt e de "a recalcar no saber implícito". Mais profundamente, "o geómetra não
se interessa pelos actos, mas pelos seus traços" (J. P. Sartre, Critique de la raison dialectique,
op. cit., pp. 151-152 n.)
O CORPO GEÓMETRA 215
2 Que os operários que utilizam uma peça de madeira e uma barra de ferro para levantar
uma pedra estejam a aplicar a regra de composição das forças paralelas e do mesmo senti
do, que saibam fazer variar a posição do ponto fixo em função dos fins visados e do peso
do volume da carga, como se não ignorassem a regra que não estão em condições de formu
lar expressamente e segundo a qual se pode equilibrar uma resistência tanto mais peque
na quanto mais pequena for a relação entre os dois braços da alavanca, ou, de um modo
mais geral, a regra que quer que se ganhe em força o que se perde em deslocamento, nada
disto incita a que invoquemos os mistérios de um inconsciente físico ou os arcanos de
uma filosofia da natureza, postulando uma harmonia misteriosa entre a estrutura do cé
rebro humano e a do mundo físico. Seria sem dúvida interessante sabermos porque é que
o facto de a manipulação da linguagem pressupor a aquisição de estruturas abstractas e
de regras de efectuação dessas operações (como, segundo Chomsky, a não iterabilidade
da inversão) suscita tanto assombro.
216 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
3 J. Nicod, La Géometrie dans le monde sensible, préface de B. Russell, Paris, PUF, 1962.
4 Citado por G. Bachelard, La Poétique de 1'espace, Paris, PUF, 1961, p. 201. [Reproduz-se
aqui o texto francês dos versos acima traduzidos: Je me surprends à définir le senil/Comme
étant le lieu géométrique /Des arrivées et des départs /Dans la Maison du Père. (N. do T.) ]
5 Ibid.
O CORPO GEÓMETRA 217
----------------------- xj
7 Cf. J. Favret, "La Segmentarité au Maghreb", L'Homme, VI, 2,1966, pp. 105-111, ej. Favret,
"Relations de dépendance et manipulation de la violence en Kabylie", L'Homme, VIII, 1
1968, pp. 18-44.
8 Ibid., p. 21.
9 Exposição mais detalhada em P. Bourdieu, The Algerians, Boston, Beacon Press, 1962,
pp. 14-20.
O CORPO GEÓMETRA 219
que deve a sua eficácia prática apenas ao facto de operar posições em relação
fundadas sobre aquilo a que Jean Nicod chama a semelhança global}0 Nunca se
limitando expressa e sistematicamente a um dos aspectos dos termos que
liga, este modo de apreensão toma de cada vez cada um deles como um bloco,
tirando todo o partido possível do facto de dois dados nunca se assemelha
rem sob todos os aspectos, mas se assemelharem sempre, pelo menos indirec-
tamente (quer dizer, pela mediação de algum termo comum), por algum as
pecto. Assim, explica-se, em primeiro lugar, que, entre os diferentes aspectos
(ou "perfis") dos símbolos "impuros", ou seja, ao mesmo tempo indetermina
dos e sobredeterminados que manipula, a prática ritual nunca oponha clara
mente aspectos que simbolizam alguma coisa e que nada simbolizam e dos
quais ela poderia abstrair (como, no caso das letras do alfabeto, a cor dos tra
ços ou a sua dimensão e, numa página escrita, a ordem das palavras em colu
na). Se, por exemplo, um dos três aspectos diferentes pelos quais um "dado"
como o fel pode ser posto em relação com outros "dados" (eles próprios igua 1-
mente "equívocos"), por exemplo, a amargura (tem por equivalente o lourei-
ro-rosa, o absinto ou o alcatrão e opõe-se ao mel), a verdura (associa-se ao la
garto e à cor verde) e a hostilidade (inerente às duas qualidades precedentes),
vem necessariamente para o primeiro plano, os outros aspectos nem por isso
deixam de ser percebidos simultaneamente, podendo o acordo simbólico en
contrar-se no estado fundamental quando a tônica é posta sobre a qualidade
fundamental, ou no estado de inversão. Sem querermos levar demasiado lon
ge a metáfora musical, podemos todavia sugerir que numerosos encadea-
mentos rituais podem ser compreendidos como modulações, particularmente
frequentes porque a preocupação de ter todas as probabilidades a seu favor,
princípio específico da acção ritual, leva à lógica do desenvolvimento, com as
suas variações sobre um fundo de redundância. Estas modulações jogam com
as propriedades harmônicas dos símbolos rituais, ou porque um dos temas é
redobrado por um estrito equivalente sob todos os aspectos (invocando o fel o
absinto que une como ele o amargor e a verdura), ou porque a modulação se
faz segundo tonalidades mais afastadas através do jogo com as associações
de uma das harmônicas secundárias (lagarto-sapo).10 11
A prática ritual opera uma abstracção incerta que faz entrar o mesmo símbo
lo em relações diferentes através de aspectos diferenciados ou que faz entrar as
pectos diferenciados do mesmo referente em idêntica relação de oposição; nou
tros termos, exclui a questão socrática da relação sob a qual o referente é apreendi
do (forma, cor, função, etc.), dispensando-se assim de definir em cada caso o
princípio de selecção do aspecto retido e, a fortiori, de se obrigar a ater-se continu
amente a tal princípio. No entanto, os princípios diferentes que envolve sucessi
va ou simultaneamente na posição em relação dos objectos e na selecção dos as
pectos retidos são indirectamente redutíveis uns aos outros, de tal maneira que
esta taxinomia prática pode classificar os mesmos "dados" de vários pontos de
vista sem os identificar de maneiras diferentes (ao contrário de um sistema mais
rigoroso que operasse tantas classificações quantas as propriedades que distin-
guisse) e o universo vê-se assim submetido a uma divisão que podemos dizer ló
gica, embora viole na aparência todas as regras da divisão lógica—por exemplo,
procedendo a divisões que não são nem exclusivas nem exaustivas —, porque
todas as dicotomias são indefinidamente redundantes, sendo, em última análise,
o produto de um mesmo e único principiam divisionis. Pelo facto de o princípio
segundo o qual se opõem os termos postos em relação (por exemplo, o Sol e a
Lua) não ser definido e se reduzir as mais das vezes a uma simples contrariedade
(supondo a relação de contradição uma análise prévia), a analogia (sempre ex
pressa de maneira elíptica, "a mulher é a Lua") estabelece uma relação de homo
logia entre relações de oposição (homem: mulher; Sol: Lua) segundo dois princí
pios indeterminados e sobredeterminados (quente: frio; masculino: feminino;
dia: noite, etc.) que diferem, sem qualquer dúvida, daqueles segundo os quais
seriam estabelecidas outras homologias em que um ou outro dos termos impli
cados poderia vir a entrar (homem: mulher; leste: oeste ou Sol: Lua; seco: húmi
do). O mesmo é dizer que a abstracção incerta é também uma falsa abstracção,
uma vez que as propriedades pelas quais tal "dado" se distingue de outro per
manecem ligadas às propriedades não pertinentes, de tal modo que, ainda quan
do é motivada fundamentalmente por um só dos seus aspectos, a assimilação é
total e global e o aspecto de cada um dos termos, que é (implicitamente) seleccio-
nado de um ponto de vista único numa posição em relação particular, continua
ligado aos outros aspectos através dos quais poderá ser oposto a ainda outros de
um referente diferente e noutras posições. O mesmo termo poderia, portanto,
entrar numa infinidade de relações se o número de maneiras de se relacionar
com o que não é ele próprio não se limitasse a algumas oposições fundamentais
que apresentam entre elas encadeamentos bastantes (e. g. quente: frio; masculi
no: feminino; leste: oeste) para funcionar como um princípio de divisão único. A
prática ritual não procede de modo diferente dessa criança que desesperava
André Gide, querendo que o contrário de branco fosse branca e que o feminino
de grande fosse pequeno.12 Em suma, o "sentido analógico" inculcado pela
primeira educação é, como diz Wallon do pensamento por pares de opostos,
uma espécie de "sentimento do contrário", que engendra as inumeráveis
222 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
____________ O
12 Pode notar-se, de passagem, que a língua berbere exprime o feminino por um diminuti
ve.
13 Este "sentido analógico" pode manifestar-se na própria relação de inquérito, quando o
informador associa temas aparentemente desprovidos de ligações e sustentados pelo
mesmo esquema inconsciente. Por exemplo, em tal caso concreto, o esquema do "inchar "
que está na base da maior parte dos ritos de fecundidade, sustenta a associação entre os
pastéis que se confeccionam em certas ocasiões e certa planta saponária utilizada pelos
negociantes de gado para fazer inchar os bois para venda. Tudo parece indicar que este
"sentido analógico" funciona à maneira daquilo a que os linguistas chamam por vezes o
sentido da raiz, a saber, como o princípio inconsciente das posições em relação que a
apreensão científica não pode operar a não ser dando-se um construction desprovido de
qualquer existência na consciência dos sujeitos falantes. Mais geralmente, seria necessário
evocar aqui aquilo a que os linguistas chomskyanos chamam a "gramaticalidade" ou a
"aceitabilidade", reconhecendo que tal noção não se pode definir por critérios simples,
semânticos ou estatísticos, por exemplo, e que o único critério é assim o da intuição.
14 Cf. J. F. Le Ny, Apprentissage et activités psychologiques, Paris, PUF, 1967, p. 137.
15 Granet dá belíssimos exemplos dessas construções fantásticas, à força de quererem ser
impecáveis, engendradas pelo esforço para resolver as contradições nascidas da ambição
desesperada de dar uma força intencionalmente sistemática aos produtos objectivamen
te sistemáticos da razão analógica, como, por exemplo, a teoria dos cinco elementos, ela
boração erudita (III-II séculos a. C.) do sistema mítico, que descreve a sucessão de cinco
O CORPO GEÓMETRA 223
--------------- — A} ~ 0
elementos por produção e põe em correspondência os pontos cardieais (aos quais é acres
centado o centro), as estações, as matérias (água, fogo, madeira, metal) e as notas (M. Gra-
net, op. cit., pp. 304-309).
16 E. Husserl, Idees directives pour une phénoménologie, Paris, Gallimard, 1950, pp. 402-407.
17 Numa espécie de comentário do segundo princípio saussuriano ("o significante desenro
la-se no tempo e tem os caracteres que toma do tempo", F. de Saussure, op. cit., p. 103),
Coumot opõe as propriedades do discurso falado ou escrito, "série essencialmente line
ar" que, em razão do seu "modo de construção, nos obriga a exprimir sucessivamente,
por uma série linear de signos, relações que o espírito percebe ou que deveria perceber si
multaneamente e numa outra ordem", aos "quadros sinópticos, árvores, atlas históricos,
espécies de tábuas com dupla entrada, no traçado dos quais se tira um partido mais ou
menos feliz da extensão em superfície, para figurar relações e ligações sistemáticas difí
ceis de destrinçar no encadeamento dos discursos" (Coumot, op. cit., p. 364). Jacques Ber
lin formulou sistematicamente esta oposição, da qual fez a base da sua semiologia gráfica
(cf. J. Bertin, Sémiologie graphique, Paris, Haia, Gauthier, Villars et Mouton ed., 1967).
224 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
prática não põe nem pode pôr-se, em vez de se perguntar se o que é próprio
da prática indígena não será o facto de ela excluir tais questões.18
É preciso, portanto, reconhecer à prática uma lógica que não é a desta
para evitarmos reclamar dela mais lógica do que a que ela pode dar, conde
nando-nos assim a extorquir-lhe incoerências ininteligíveis, ou antes, incom
preendidas no seu princípio, ou a impor-lhe uma coerência forçada.19 A con
versão do politético em monotético, a sobreposição na simultaneidade de to
das as oposições susceptíveis de serem aplicadas sucessivamente por agentes
diferentes em situações diferentes, em suma, o estabelecimento de uma série
única cria por inteiro uma multiplicidade de relações que não podem deixar
de se revelar problemáticas, uma vez que são excluídas da lógica da prática. O
esforço para fixar num sistema coerente todas as relações entre traços cultu
rais semelhantes mas dispersos na ordem do tempo (podendo dois momen
tos ser definidos pela sua posição relativa—antes / depois — e pela sua seme
lhança) e as relações entre traços que ocupam posições homólogas na série
temporal esbarra em contradições porque a homogeneidade do espaço geo
métrico e a totalização sinóptica levam a pôr no mesmo plano oposições de
grau diferente, portanto praticamente exclusivas. Assim, por exemplo, se po
demos opor en-nissan, período abençoado, que engloba os últimos dias da
Primavera e os primeiros calores do Verão, o último período do "verde", do
cru e do jovem, e o primeiro período do seco, do maduro e do cozido, a el hu-
sum, período nefasto, situado no final de En-nayer (Janeiro) e no começo de
Furar (Fevereiro), é possível, no interior de en-nissan, opor "os verdes" e "os
amarelos", ou no interior de el husum, uma primeira parte, situada no fim do
Inverno e mais desfavorável, ela própria dividida em dias "queimados" e em
dias "salgados" ou "picantes", e uma segunda situada no começo da
O .V
------------------ Q
18 Esta análise do efeito produzido pelo registo conduz ao princípio dos efeitos que a inven
ção das técnicas de conservação da palavra (a escrita) terá podido determinar (cf. W. C. Gre
ene, "The Spoken and the Written Word^, Harvard Studies in Classical Philology, IX, 1951
pp. 24-59; J. Goody & I. Watt, "The Consequences of Literacy", Comparative Studies in So
ciety and History, V, 1962-63, pp. 304-311). A politetia que permite escapar à contradição
tem ela própria por condição a ausência de registo (record) do passado, quer dizer, a illite
racy, que, deixando a memória individual e colectiva livre de qualquer traço fixado, auto
riza as correcções permanentes necessárias para escapar à incoerência. A sincronização
do passado e do presente (por exemplo, das versões sucessivas de um mito ou de um ritu
al) autorizada pela escrita torna possível a apreensão sinóptica e no mesmo acto a a per
cepção das contradições que dão à reflexão letrada o seu ponto de partida.
19 A lógica do rito ou do mito pertence à classe das lógicas naturais que a filosofia da lingua
gem, a lógica e a linguística começam a explorar, com pressupostos e métodos muito dife
rentes. Foi assim, por exemplo, que George Lakoff, um dos fundadores da generative se
mantics, teve de construir uma fuzzy logic para dar razão da linguagem comum, com o.
seus fuzzy concepts e os seus hedges tais como par excellence, sor of, pretty, much, rather, loo
sely speaking, etc., que modificam (affect) os valores de verdade (truth values) "de uma ma
neira que não pode ser descrita adequadamente" dentro dos limites da lógica clássica.
O CORPO GEÓMETRA 225
227
228 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
e irreversível (e não apenas vivida como tal) de dons que, como o desafio no
modelo da honra, não estão mecanicamente ligados à resposta que reclamam
com insistência. Assim, qualquer análise objectiva da troca de dons, de pala'
vras, de desafios ou mesmo de mulheres deve, com efeito, ter em conta o facto
de cada um desses actos inaugurais poder dar em falso e de, seja como for, re
ceber o seu sentido da réplica que desencadeia, ainda que se trate de uma au
sência de réplica de molde a retirar-lhe retrospectivamente o seu sentido in
tencional. Dizer que o dom não vê reconhecido e consagrado o sentido que
lhe dava o seu autor a não ser quando o contradom é conseguido não equivale
a restaurar a coberto de outras palavras a estrutura do ciclo de reciprocidade.
Significa antes que, ainda que a reversibilidade seja a verdade objectiva dos
actos discretos e vividos como tais que a experiência comum põe sob o nome
de trocas de dons, não é a verdade completa de uma prática que não poderia
existir se se percebesse em conformidade com o modelo. A estrutura tempo
ral da troca de dons, que o objectivismo ignora e abole, é o que torna possível a
coexistência de duas verdades opostas que define o dom na sua plena verda
de: observa-se com efeito, em toda a sociedade, que, sob pena de constituir
uma ofensa, o contradom deve ser diferido e diferente, equivalendo com toda a
evidência a restituição imediata de um objecto, exactamente idêntico a uma
recusa (isto é, à restituição do objecto); o mesmo é dizer que a troca de dons se
opõe, por um lado, à troca imediata que,'como o modelo teórico da estrutura do
ciclo de reciprocidade, sobrepõe no mesmo instante o dom e oebntradom, e, por
outro lado, ao empréstimo, cuja restituição explicitamente garantida por um
acto jurídico está como que já efectuada no próprio instante do estabelecimen
to de um contrato capaz, enquanto tal, de assegurar a previsibilidade e a cal-
culabilidade dos actos prescritos. Se é necessário introduzir no modelo a du
pla diferença, e muito particularmente o adiamento., abolido pelo modelo mo-
notético, não é, como sugere Lévi-Strauss, para obedecer a uma preocupação
"fenomenológica" de restituir a experiência vivida da prática da troca; é que o
funcionamento da troca de dons supõe p desconhecimento da verdade do
"mecanismo" objectivo da troca, essa mesma verdade que a restituição ime
diata revela brutalmente: O intervalo de tempo que separa o dom e o contra
dom é o que permite perceber como irreversível uma estrutura de troca sem
pre ameaçada de aparecer e se mostrar como reversível, quer dizer, como ao
mesmo tempo obrigatória e interessada. "A impaciência excessiva que se põe
em resgatar uma dívida", diz La Rochefoucauld, "é uma espécie de ingrati
dão." Trair a pressa que se experimenta em nos vermos livres da obrigação
contraída e manifestar assim demasiado ostensivamente a vontade de pagar
os serviços prestados ou os dons recebidos, de nada dever, de ficarmos quites,
é denunciar retrospectivamente o dom inicial como inspirado pela intenção
de obrigar. Se tudo aqui é uma questão de maneira, quer dizer, neste caso, de
oportunidade e de a propósito, se o mesmo acto (fazer um dom ou devolvê-lo,
oferecer serviços, fazer uma visita, etc.) muda por completo de sentido
229
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO
delos trazem à luz dn rJ°S' âde da Pradca que o etnólogo e os seus mo-
c°ui
ele, de o Lunar d° ,TfeÍtOr °U'.em todo o caso, a ter atenções para
Sob
pena de ser aL ^°!?a ek de todas as armas de que dispõe,
Pessoas", que decid/JLe de se ver condenado pela "fala das
° assassínio, não reseat^^ ° °bÍectlvo das acções. Aquele que não vingou
sou as suas filhas a tfmno. Por uma família rival, não ca-
dias,pelo temoo ou a r-, P°z Ve ° SeU caPda^ afectado, um pouco mais todos os
adiamento estraãmJ’^^'3 menos que seía capaz de transformar o atraso em
P°de ser uma “ resfih>^<> dom ou da vingança
Prias intenções send^ 6 manfer ° Parceiro-adversário na incerteza das pró-
te maléfico nos nprír.^ ° ^?nto imPossível de fixar como o momento realmen-
verte, derxando a nL d° calendário ritual, em que a curva se in-
vingança, usar a própria paciência como uma ameaça sempre suspensa e con
servar a vantagem da iniciativa. Compreende-se nesta lógica que aquele cuja
filha é pedida tenha o dever de responder o mais rapidamente possível, se a
resposta for negativa, sob pena de parecer abusar da sua vantagem e de ofen
der o que solicita, ao passo que é livre, pelo contrário, de diferir tanto quanto
pode a resposta positiva, para manter a vantagem conjuntural que lhe dá a
sua posição de solicitado e que perderá de uma vez só no momento em que
der o seu acordo definitivo. Tudo se passa como se a ritualização das interac-
ções tivesse por efeito dar toda a sua eficácia social ao tempo, nunca tão
actuante como nesses momentos em que nada se passa a não ser o tempo: o
tempo, como se diz, trabalha a favor dele e a inversa pode também ser verda
de. O mesmo é dizer que o tempo tira a sua eficácia do estado da estrutura das
relações na qual intervém, o que não significa que o modelo dessa estrutura
possa abstrair dele. Quando o desenrolar da acção é muito fortemente rituali-
zado, como na dialéctica da ofensa e da vingança, há ainda lugar para as es
tratégias que consistem em jogar com o tempo ou, melhor, com o tempoi da ac
ção, deixando esperar a vingança e perpetuando assim a ameaça; e é deste
modo, por maioria de razão, em toda$ as acções menos estritamente regula
das que proporcionam caminho livre às estratégias que visam tirar partido
das possibilidades oferecidas pela manipulação do tempo da acção, ou seja
contemporizar ou adiar, aprazar ou diferir, fazer esperar e fazer ficar à espera,
ou, pelo contrário, forçar, precipitar, antecipar, apanhar de surpresa, surpre
ender, ultrapassar, para já não falarmos da arte da oferta ostentatória de tem
po ("consagrar o seu tempo a alguém") ou, pelo contrário, da sua recusa (ma
neira de fazer sentir que se reserva um "tempo precioso"),. .0
Vejamos um exemplo da estratégia muito geralmente usada para ence
tar uma discussão de negócios com uma pessoa familiar ou lhe apresentar um
pedido interessado. A vem ver B (garagista) no seu local de trabalho para o
consultar a propósito da venda de um carro em segunda mão: o primeiro tem
po é consagrado a gracejos, à evocação de recordações comuns (cogumelos
que A ofereceu a B), que dão matéria a novos gracejos quase rituais (sobre a
gulodice de B); o segundojtempo, directamente consagrado ao negócio, é
marcado por uma mudança de tom destinada a manifestar o interesse e a seri
edade que o solicitador e o solicitado concedem à questão debatida, reapare
cendo o tom de gracejo de longe em longe, mas apenas por breves interrup
ções, destinadas a assegurar a transição; concluída a questão ("vou fazer o
melhor possível", "de acordo, tu vês isso"), a conversa continua num tom jo
coso, entrecortada de regressos ao problema, que se tornam cada vez mais ra
ros enquanto os gracejos se multiplicam a propósito de diferentes temas (B
emprestou a A a sua espingarda e também a licença dela...), entre os quais se
contaagulodicedeB-ai * j
te, e A pergunta a B- ''F f xVeS des^a transição, a despedida faz-se naturalmen-
sões, uma vez que só °S e^onv^a^° Para ° casamento?" (sem outras preci-
que a pergunta é esi P°, e tratar de um casamento e de um só; a tal ponto
"E conheces a ement?"™ ~ritua1"' sabendo B a resposta). "Sim". —
tipo!". a‘ 'Não, é isso que me chateia!" — "Ah, aquele
O objectivismo d
pelo menos capaz d UZlda de *mediato esta sequência de acções, se fosse
evita abordar directa & apreenc^er' regra segundo a qual aquele que solicita
certado de acções qu”1611^ ^uestões- realidade, um tal conjunto con-
contro do mesmo hr>3Se ntua?s observar-se-ia sem dúvida em qualquer en-
mente alimentada com ^UeT d^Zerf todas as vezes que uma relação continua-
sentes, de serviços e d ° ^Ue
e Por si própria (pela troca de pre- em SÍ própda
7 "Não se ofenda com esta oferta [...]. Tenho de tal modo consciência de ser um zero aos
seus olhos que, da minha parte, até mesmo dinheiro pode aceitar. Uma prenda vinda de
mim não tem consequências", F. Dostoiewski, Unjoueur, Paris, Gallimard, col. "Les clas-
siques russes", 1958, p. 47.
A ACÇÃO DO TEMPO E O TEMPO DA ACÇÃO 235
1 Sobre a crença como má-fé individual alimentada e sustentada pela má-fé colectiva, ver
P. Bourdieu, "Genèse et structure du champ religieux", loc. cit., p. 318.
- Para nos convencermos de que assim é basta que evoquemos a tradição graças à qual a
profissão médica alimenta a relação de "confratemidade" e que, excluindo o pagamento
de honorários entre médicos, obriga a procurar, em cada caso, em intenção de um confra
de cujos gostos e necessidades não se conhecem um presente que, além disso, não fique
nem muito acima nem muito abaixo do preço da consulta, mas sem excessiva precisão,
evidentemente, porque isso equivalería a declarar o preço da consulta e a denunciar no
mesmo acto a ficção interessada da gratuitídade.
237
238 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
3 "Salvaste-me da venda", diz-se em semelhante caso ao provisor de fundos que, por uma
espécie de venda fictícia (dá o dinheiro ao mesmo tempo que deixa ao proprietário o gozo
do seu bem), evita que a terra caia em mãos estranhas.
O CAPITAL SIMBÓLICO 239
4 M. Mauss, "Essai sur le don", em Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1950, p. 239. Ahis-
tória do vocabulário indo-europeu tal como a restitui Émile Benvenisteé, eo ipso, uma his
tória do processo de divisão e de separação, em suma, do trabalho histórico de abstracção
por meio do qual se constituem as noções fundamentais da economia e do direito dos in
teresses (cf. É. Benveniste, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes, Paris, Éditions
de Minuit, 1969).
240 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
5 O carácter sagrado da refeição exprime-se nas fórmulas usadas para a prestação de jura
mento: "Pelo alimento e pelo sal que aqui estão" ou "pelo alimento e pelo sal que parti
lhámos". O pacto selado pela comensalidade tornar-se-ia maldição para quem o traísse:
"Não o amaldiçoo, amaldiçoam-no o cozido e o sal." Para convidar um hóspede a ser
vir-se de novo, diz-se: "É inútil jurares, é este alimento que o faz (por ti)"; " [o alimento]
pedir-te-á contas, compensações (se o deixares)". A refeição comum é também uma ceri
mônia de reconciliação que acarreta o abandono da vingança. Do mesmo modo, a oferen
da de alimentos a um santo protector ou ao antepassado do grupo reveste o sentido de
um contrato de aliança. A thiwizi não se concebe sem a refeição final e, por isso, as mais
das vezes só reúne de facto as pessoas do mesmo adrum ou da mesma thakharubth.
O CAPITAL SIMBÓLICO 241
diante de um taleb, fornecendo uma garantia religiosa mas não jurídica (dele
se diz que não pode ser "registado") e menos solene quando é estabelecido
pelo taleb da aldeia do que quando o é por um taleb reputado, ao escrito do cadi
e por fim ao documento redigido por um notário): não se pode sem ofensa
pretender autenticar uma transacção entre pessoas de confiança e a fortiori en
tre parentes perante um notário, um cadi ou até mesmo testemunhas. Do mes
mo modo, a parte do prejuízo que os parceiros aceitam assumir quando acon
tece um acidente a um animal pode variar de todo em todo segundo a aprecia
ção das responsabilidades que são levados a fazer em função da relação que
os une, devendo aquele que confiou um animal a um parente muito próximo
minimizar a responsabilidade do seu parceiro. Era por meio de um contrato
em boa e devida forma celebrado diante do cadi ou perante testemunhas que
os Cabilas confiavam os seus bois à guarda dos nômadas do Sul, para uma,
duas ou três épocas de trabalho (de Outono a Outono) contra vinte e dois du
plos decalitres de cevada por boi e por ano, com partilha dos prejuízos em
caso de perda e dos lucros em caso de venda. As transacções amigáveis entre
parentes e aliados estão para as transacções do mercado como a guerra ritual
para a guerra total. Opõem-se tradicionalmente "os gêneros ou os animais de
fellá" e "os gêneros ou os animais do mercado" e todos os velhos informado
res falam interminavelmente quando se evocam as astúcias e ardis que são re
comendáveis na guerra dos "grandes mercados" (sendo os mais frequente
mente citados pelos informadores cabilas os de Bordj bou Arrirdj, Akbou,
Sidi Aích, Bouira e Casa Quadrada e, para os animais de carga em particular,
Kroubs e Souk Aras), quer dizer, nas trocas com desconhecidos. São sempre
histórias de muares que fogem assim que chegam a casa do novo comprador,
de bois esfregados com uma planta que os faz inchar (adriis)—e que, a esse tí
tulo, intervém muitas vezes nos ritos de fecundidade — a fim de os fazer pa
recer mais gordos, de compradores que se concertam para propor um preço
muito baixo e obrigarem assim a vender. Àxmcarnação da guerra econômica é
o alquilador, o homem sem fé nem lei e evita-se comprar-lhe animais do mes
mo modo que a qualquer outra pessoa totalmente desconhecida. Como indi
cava um informador, para bens sem equívoco, como as terras, é a escolha da
coisa comprada que governa a do comprador; para bens equívocos, como os
animais de carga, sobretudo muares, é a escolha do vendedor que decide e as
pessoas esforçam-se pelo menos por substituir uma relação personalizada
("da parte de") por uma outra completamente impessoal e anônima. Podem
encontrar-se toda a espécie de passagens: desde a transacção baseada na des
confiança total, tal como a que se estabelece entre o camponês e o alquilador,
incapaz de exigir e de obter garantias porque incapaz de garantir a qualidade
do seu produto e de encontrar garantes, à troca de honra que pode ignorar as
condições e assentar apenas na boa-fé dos "contraentes". Mas, na grande ma
ioria das transacções, as noções de comprador e de vendedor tendem a dissol
ver-se na rede dos intermediários e dos garantes que visam transformar a
242 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
6 K. Marx, Le Capital, II, segunda secção, Cap. VII, "Temps de travail et temps de producti
on", Paris, Gallimard, "Bibliothèque de la Pléiade", T. II, p. 655.
O CAPITAL SIMBÓLICO 243
8 Não deixando o preço do tempo de crescer à medida que aumenta a produtividade (quer
dizer, ao mesmo tempo, a abundância dos bens oferecidos ao consumo e o poder de com
pra, e, portanto, o consumo, que também toma tempo), ele torna-se o gênero mais raro, ao
passo que diminui a raridade dos bens, podendo até acontecer que o desperdício dos
bens seja a única maneira de economizar um tempo mais precioso que os produtos que
permitiría economizar — através do trabalho de manutenção, de reparação, etc. (cf. G. S.
Becker, "A Theory of the Allocation of Time", The Economic Journal, n.° 299, Vol. LXXV, Se
tembro de 1965, pp. 493-517). Tal é sem dúvida o fundamento objective da oposição, mui
tas vezes descrita, que se observa nas atitudes a respeito do tempo (cf. Anexos).
246 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
quais, numa época mais antiga ou ainda na época da observação (isto é, 1960,
quer dizer, antes da descoberta da rentabilidade do trabalho), em certas famí
lias particularmente apegadas às tradições, os homens ocupavam-se. Durante
todo o Inverno e a Primavera, os trabalhos de recolecção, de manutenção de
jardinagem são assegurados em grande parte pela mulher e pelos filhos e as
actividades propriamente masculinas, como os transportes de estrume, o sa
char dos pomares, a poda das árvores, as lavras da Primavera, o corte do feno,
exigem um trabalho menos intensivo (ainda que constante) que a lavra ou a
colheita, e sobretudo não têm o mesmo carácter de urgência e o mesmo valor
social: prova-o o facto de as mulheres e as crianças a ele serem associadas se
gundo as suas capacidades.
A estratégia que consiste em acumular o capital de honra e de prestígio
que produz a clientela tanto como é seu produto fornece a solução do proble
ma que se poria ao grupo se este tivesse de alimentar continuamente (tempo
de produção incluído) toda a força de trabalho (humana e animal) de que ne
cessita durante o tempo de trabalho, permitindo, com efeito, às grandes famí
lias disporem de um máximo de força de trabalho durante o período de traba
lho e reduzirem ao mínimo o consumo durante o tempo, incompressível, de
produção, quer se trate do consumo humano (achando-se o grupo reduzido à
unidade mínima, ou seja, à família) ou do consumo animal (é a função dos
contratos de aluguer, como a charka do boi, por meio da qual o proprietário
deixa de ter o animal a seu cargo, confiando-a a outrem sem outra condição
além de uma compensação em dinheiro ou em gêneros pela "usura do capi
tal"); a contrapartida destas prestações pontuais e limitadas aos períodos de
urgência, como a colheita, torna-se menos pesada por ser fornecida sob a for
ma de trabalho, mas fora do período de plena actividade, ou sob outras for
mas (protecção, empréstimo de animais, etc.). Q
De um modo geral, tudo se passa como se o capital nunca fosse percebi
do e tratado como tal e isso até no caso de uma transacção que, como a charka
do boi, não é concebível senão entre os mais estranhos entre si a quem cabe o
direito de celebrar contratos. No acima citado, que se estabelece sobretudo
entre membros de aldeias diferentes e que as duas partes tendem de comum
acordo a dissimular (preferindo o que contrai o empréstimo esconder a sua
falta de recursos e deixar crer que o boi é propriedade sua mediante a cumpli
cidade daquele que o empresta, igualmente disposto a ocultar uma transac
ção suspeita de não obedecer a um sentimento estrito de equidade), um boi é
confiado pelo seu proprietário, contra um certo número de medidas de ceva
da ou de trigo, a um camponês demasiado pobre para o comprar; ou então um
nestas condições entende-se com outro mais endinheirado a fim de que este
compre uma junta de bois e Ihos confie por um, dois ou três anos segundo os
casos, sendo os lucros partilhados em partes iguais caso os bois sejam vendi
dos. Onde nos sentiriamos tentados a ver um simples empréstimo, confiando
o detentor de fundos um boi mediante o pagamento de algumas medidas de
250 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
trigo, os agentes vêem uma transacção equitativa, que excluí qualquer apro
priação de mais-valia: aquele que empresta dá a força de trabalho do animal,
mas a equidade é observada uma vez que aquele que o toma emprestado ali
menta-o e cuida dele, como o primeiro seria obrigado a fazer, não sendo as
medidas de trigo mais que uma compensação da desvalorização acarretada
pelo envelhecimento do boi. As diferentes variantes da associação respeitan-
tes às cabras têm em comum o facto de fazerem suportar às duas partes a des
valorização do capital inicial em função do envelhecimento. O proprietário,
uma mulher que coloca assim o seu pecúlio, confia as suas cabras por três
anos a um primo afastado, relativamente pobre, que ela sabe que alimentará e
cuidará bem dos animais. Avaliam-se as cabras e estabelece-se que o produto
(leite, lã, manteiga) será partilhado. Todas as semanas, aquele a quem as ca
bras foram emprestadas envia por uma criança à outra parte uma cabaça de
leite. A criança não pode voltar de mãos vazias (elfal, aquilo que dá sorte ou o
esconjuro da desgraça, tem uma significação mágica pelo facto de que entre
gar um objecto vazio, entregar o vazio, seria ameaçar a prosperidade da casa):
assim recebe fruta, azeite, azeitonas, ovos, segundo o momento. No termo do
contrato, aquele que contraiu o empréstimo entrega os animais e os produtos
obtidos são partilhados. Variante: tendo o rebanho de seis cabras sido avalia
do em 30.000 francos, o guardador entrega 15.000, francos e metade do reba
nho inicial, quer dizer, três cabras velhas; ou o guardador devolve a totalida
de do rebanho, mas fica com toda a lã da tosquia. o
Assim, como vemos, um capital simbólico, queAcomo o prestígio e o re
nome ligados a uma família e a um nome, se reconverte facilmente em capital
econômico, constitui talvez a forma mais preciosa de acumulação numa socieda
de em que o rigor do clima (concentrando-se os grandes trabalhos, lavras e
colheita, num tempo muito breve) e, fraqueza dos meios técnicos (sendo a co
lheita feita à foice) exigem o trabalho colectivo. Deveremos ver aqui uma for
ma disfarçada de compra da força de trabalho ou uma extorsão clandestina
de corveias? Sem dúvida, mas na condição de mantermos conjunto na análise
aquilo que permanece conjunto no objecto, a saber, a dupla verdade de práticas
intrinsecamente equívocas e ambíguas, armadilha estendida a todos aqueles
que uma representação ingenuamente dualista das relações entre as práticas
e as ideologias, entre a economia "indígena" e a representação "indígena" da
economia, vota a desmistificações automistificadoras.9 De facto, a verdade
9 Não seria difícil mostrarmos que os debates sobre a "democracia" berbere (e, mais geral
mente, arcaica) opõem, da mesma maneira, a ingenuidade do primeiro grau à ingenuida
de do segundo grau, a mais perniciosa, sem dúvida, porque a satisfação inspirada pela
falsa lucidez proíbe o acesso ao conhecimento adequado que supera, conservando-as, as
duas formas de ingenuidade; a "democracia gentílica" deve a sua especificidade ao facto
de deixar no estado implícito e indiscutido (doxã) os princípios que a "democracia" libe
ral pode e deve professar (ortodoxia) porque cessaram de governar, no estado prático, os
comportamentos.
O CAPITAL SIMBÓLICO 251
completa desta apropriação de prestações reside no facto de ela não poder efec-
tuar-se a não ser sob o disfarce da thiwizi, auxílio benévolo que é também cor-
veia, corveia benévola e auxílio forçado, e de supor, se é lícita esta metáfora
geométrica, reconduzindo uma dupla semi-rotação ao ponto de partida, ou
seja, uma conversão de capital material em capital simbólico, ele próprio re-
convertível em capital material.
A apropriação de uma clientela, mesmo herdada, supõe todo um traba
lho, indispensável para estabelecer e alimentar as relações e também investi
mentos importantes, tanto materiais como simbólicos — quer se trate da assis
tência política contra as agressões, roubos, ofensas ou injúrias, quer da assis
tência econômica, com frequência muito dispendiosa, em particular em caso
de escassez das colheitas. Investimentos em riquezas materiais, mas também
em tempo, na medida em que o valor do trabalho simbólico não pode ser defi
nido independentemente do tempo que lhe é consagrado, constituindo o dom
do tempo ou o desperdício de tempo um dos mais preciosos.10 É claro que, nestas
condições, a acumulação de capital simbólico só pode fazer-se em detrimento
da acumulação de capital econômico. Na medida em que se acrescentava aos
obstáculos objectivos ligados à fraqueza dos meios de produção a acção dos
mecanismos sociais — que, impondo a dissimulação ou o recalcamento do
interesse econômico, tendem a fazer da acumulação de capital simbólico a
única forma reconhecida e legítima de acumulação—bastava para travar, se
não proibir, a concentração do capital material e era sem dúvida raro que a as
sembléia fosse obrigada a intervir expressamente para intimar alguém a "pa
rar de enriquecer".11 Sabe-se com efeito, que a pressão colectiva— com a qual
os mais abastados devem contar porque recebem dela não só a sua autoridade
mas também, sendo esse o caso, um poder político que é função, em última
análise, da sua aptidão para mobilizar o grupo a favor ou contra indivíduos
ou grupos—impõe aos ricos não só as participações mais fortes nas trocas ce
rimoniais (tawsa), "mas também as mais pesadas contribuições para o susten
to dos pobres, o alojamento dos estrangeiros ou a organização das festas. A ri
queza implica sobretudo deveres: "O generoso", diz-se, "é amigo de Deus."
Sem dúvida, a crença na justiça imanente, que governa numerosas práticas
(como o juramento colectivo), contribui para fazer da generosidade um sacri
fício destinado a merecer em contrapartida essa bênção que é a prosperidade:
"Tem que coma aquele que usa por costume dar de comer." "Oh, meu Deus",
10 Aquele que "não sabe consagrar a outrem o tempo que lhe deve" é objecto de reprovação:
"Mal chegaste e vais-te já embora"; "Vais deixar-nos? Ainda mal nos sentámos... Não fa
lámos sequer." E a analogia entre a relação de homem a homem e a do homem com a terra
leva a condenar aquele que se apressa inconsideradamente no seu trabalho e que, seme
lhante ao hóspede que parte logo a seguir a ter chegado, não sabe consagrar à terra o es
forço e o tempo, quer dizer, o respeito que lhe deve.
11 R. Maunier, Mélange de sociologie nord-africaine, Paris, Alcan, 1930, p. 68.
>!' fü G 5
252 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
diz-se também, "dá-me para que eu possa dar!". Todavia, as duas formas de
capital estão tão inextrincavelmente misturadas que a exibição da força mate
rial e simbólica representada por aliados de prestígio é de molde a trazer por
si própria ganhos materiais numa economia da boa-fé em que uma boa repu
tação constitui a melhor senão a única garantia econômica. Assim, compreen-
de-se que as grandes famílias não percam uma ocasião (tal é uma das razões
da sua predilecção pelos casamentos distantes e os seus vastos cortejos) de or
ganizar essas exibições de capital simbólico (das quais o consumo ostentató-
rio é apenas o aspecto mais visível), cortejos de parentes e de aliados que sole-
nizam a partida ou o regresso do peregrino, escolta da noiva cujo valor é apre
ciado pelo número de "espingardas" e pela intensidade das salvas dispara
das em honra dos noivos, presentes prestigiosos, entre os quais os carneiros,
oferecidos por altura do casamento, testemunhas e garantes que podem ser
mobilizados em todos os lugares e ensejos, seja para atestar a boa-fé de uma
transacção de mercado, seja para reforçar a posição da linhagem numa nego
ciação matrimonial e para solenizar a conclusão do contrato. Quando sabe
mos que o capital simbólico é um crédito, mas no sentido mais amplo do ter
mo, quer dizer, uma espécie de adiantamento que o grupo e só ele pode con
ceder aos que lhe dêem mais garantias materiais e simbólicas, vemos que a exi
bição desse capital (sempre muito dispendiosa no plano econômico) é um dos
mecanismos que fazem com que (sem dúvida universalmente) o capital vá
para o capital.
É, portanto, na condição de estabelecer uma contabilidade total dos lu
cros simbólicos, tendo ao mesmo tempo no espírito a indiferenciação das
componentes simbólicas e das componentes materiais do patrimônio, que
podemos apreender a racionalidade econômica de comportamentos que o
economismo rejeita para o absurdo: por exemplo, o acto de comprar uma se
gunda junta de bois depois da colheita, sob o pretexto de que são necessários
para a debulha—maneira de dar a entender que a ceifa foi abundante —, em
bora se seja depois obrigado a revendê-la, à falta de forragem, antes das la
vras de Outono, momento em que seria tecnicamente necessária, só parece
economicamente aberrante se esquecermos todos os ganhos materiais e sim
bólicos que pode acarretar um tal aumento, ainda que tenha sido fictício e vi
ciado, do capital simbólico da família num período, o fim do Verão, em que
são negociados os casamentos. Se tal estratégia de bluff é perfeitamente racio
nal, é porque o casamento é ocasião de uma circulação econômica (no sentido
amplo), da qual só podemos ter uma ideia muito imperfeita quando levamos
apenas em conta os bens materiais; e é também porque os lucros que um gru
po tem probabilidades de extrair de semelhante transacção são tanto maiores
quanto mais importante é o seu patrimônio material e sobretudo simbólico
ou, se é lícito este empréstimo contraído junto da linguagem bancária, "o cré
dito de notoriedade" com o qual o grupo pode contar. Este crédito, que de
pende da aptidão do ponto de honra para garantir a invulnerabilidade desta e
O CAPITAL SIMBÓLICO 253
12 Conta-se que, por ocasião dos combates, as mulheres (e os homens idosos) da família en
corajavam os homens a "ir em frente" nos seguintes termos: "Mata ou morre, mas não de
ixes alusões atrás de ti" (thasalqubth).
254 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
menos nobre e antigo) e da sua posição mais ou menos central entre as terras
tradicionalmente possuídas pelo grupo. Se o valor simbólico e o valor econô
mico as mais das vezes coincidem, sendo as terras mais próximas e mais aces
síveis também as mais bem exploradas, segundo modos de valorização mais
intensos e mais diversificados, e por isso as mais "produtivas", pode aconte
cer que uma terra ganhe um valor simbólico desproporcionado em relação ao
seu valor econômico em função da definição socialmente aceite do patrimô
nio simbólico, daí resultando que a primeira terra a cuja posse se renuncia
será a menos integrada no patrimônio, a menos associada ao nome dos seus
proprietários actuais, a que foi adquirida, e recentemente, em vez de herdada,
a que foi comprada a estrangeiros em vez de o ter sido a parentes. Contudo,
nada ainda é assim tão simples, sendo o valor simbólico da terra definido pela
relação histórica que os proprietários e os compradores mantêm com ela,
quer dizer, entre si por intermédio dela e a seu propósito. É assim que uma
terra é evidentemente mais preciosa quando, dotada de todas as proprieda
des que definem uma forte integração no patrimônio, é possuída por estran
geiros: nesse caso, resgatá-la torna-se uma questão de honra, análoga à vin
gança de uma ofensa, e a terra pode atingir preços exorbitantes. Os vendedo
res podem jogar cinicamente com a relação entre os compradores e a terra —
dentro de certos limites apenas, porque, caso contrário, seria a sua reputação
a sofrer, mas o mais frequente é que ponham tanto ponto de honra em defen
der a terra, sobretudo se a sua apropriação for sificientemente recente para
conservar o seu valor de desafio lançado ao grupo estrangeiro, como os ou
tros obstinação em resgatá-la e conseguir vingança do atentado cometido
contra a hurma da sua terra. Pode acontecer que um terceiro grupo venha ofe
recer um preço maior, lançando assim um desafio não ao vendedor, que bene
ficia com isso, mas aos proprietários "legítimos". Em suma, basta termos no
espírito a homologia da relação que o grupo sustenta com a sua terra e da rela
ção que mantém com as mulheres para compreendermos que a preocupação
de salvaguardar o capital simbólico da família, componente fundamental do
patrimônio, leve a aceitar que se pague para além do seu valor "mercantil"
uma terra ancestral em risco de sair das mãos do grupo, ou que está já nas
mãos de estranhos, ou ainda, em sentido inverso, uma das terras ancestrais
de um grupo rival, assumindo então a compra o valor de um desafio. Inversa
mente, semelhantes escaladas são, na medida do possível, excluídas das tran-
sacções entre parentes, proibindo a honra que se tire partido do estado de ne
cessidade daquele que é forçado a vender.
Assim, as correspondências que se estabelecem entre a circulação das
terras vendidas e resgatadas, as das terras "emprestadas" e "restituídas" ou
as das mulheres concedidas ou recebidas (isto é, entre as espécies diferentes
do capital e os modos de circulação correspondentes) obrigam a abandonar a
dicotomia do econômico e do não econômico, a qual impede de apreender a
ciência das práticas econômicas como um caso particular de uma ciência geral
256 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
257
258 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
cida pela •' YUrY.a °Utra ordem, a geometria analítica: à evidência clara, fome-
dos símb'1]1 U1ÇjBO/ substitui-se "a evidência cega", resultante da manipulação
modo ana ° p üravante/ Ia não se raciocina sobre objectos anunciando de
sobre sign an^’1Yele palpável o seu uso e a satisfação que prometem, mas
sujeito ec °S-due nao sao em S1 próprios fonte de qualquer satisfação. Entre o
ecrã da 01*° 6 3S rnercad°rias ou os serviços que eíe espera interpõe-se o
tação às reirra^TirO-r 3 ’naPddao dos rurais para a manipulação da moeda e a sua inadap-
possessão fundiária I<A!o°ntj UÍran? 8ra!ld°mente para acelerar o movimento de desa-
Argelinos dos seus 1ITl/ C e ter conáenado a política que levava a espoliar os
[• •.]. Em todo o casoPé npJp° á Y'° observava: "Abusa-se deveras das expropriações
o prejuízo seja reparado mm TÍ'quarido há motivos para uma expropriação, que
tração de reinstalar os wnr e5“ldade e especialmente que a obrigação para a adminis-
indemnização em dinheini nãTi °S'6 esP®clalmente os indígenas, seja respeitada [...]. A
mente, não terá a possibilidide sentld®.Para Este gastará a quantia imediata-
operação de colocacão lhe vil • ,1Zar e utl!lzar 0 Pobre rendimento que uma
colocaçao lhe valena' (M. Violette, L’Atfrie vivra-t-elle? Notes d’un ancien
262 ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA
____________ C
gouverneiir général, Paris, Alcan, 1931, pp. 83-91). Tornados detentores de um título de
propriedade autêntico e facilmente alienável na sequência de rupturas de indivisão favo
recidas pelas leis de 26 de Julho de 1873 e de 23 de Abril de 1897, numerosos pequenos
proprietários acossados pela miséria foram tentados pelos atractivos do dinheiro e ven
deram as suas terras; pouco familiarizados com o uso da moeda, em breve dissiparam o
seu pouco capital e foram obrigados a trabalhar como operários agrcolas ou a fugir para a
cidade.
5 Sem dúvida a usura, cujas taxas atingiam de 50 a 60% em média antes de 1830 e de 25 a
30% em 1867 (A. Hanoteau, Poésies populates de la Kabylie, Paris, Imprimerie impériale,
1867, n.“ 1, p. 193), estava normalmente inscrita numa estrutura econômica que, embora
desse tão pouco lugar quanto possível à circulação monetária, se via ainda menos livre de
crises pelo facto de a precaridade das técnicas disponíveis não permitir dominar o aleató
rio do clima. Mas este crédito de urgência, imposto pela necessidade e exclusivamente
destinado ao consumo, nada tinha em comum com o crédito destinado ao investimento:
só se recorre ao usurário depois de esgotados todos os recursos do auxílio mútuo fami
liar, e aquele que, tendo meios de o ajudar, entregasse um irmão ou um primo a um usurá
rio ficaria desonrado. A interdição do empréstimo a juros não é senão o reverso do impe
rativo de solidariedade e as regras comunitárias, por vezes codificadas nas recolhas de
costumes, impunham a assistência aos doentes, às viúvas, aos órfãos e aos pobres e que
fossem socorridas as vítimas de uma calamidade (por exemplo, quando um animal feri
do tinha de ser abatido, a comunidade indemnizava o proprietário e a carne era partilha
da entre as famílias).
263
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS
possados das suas terrase das suas tradições, estão mais d^"P^padas
trutura do que os pequenos proprietários das regiões re a iv . . vez a0 cjm0 da
que dividiu em duas uma fonte a fim de pôr fim a um di eren mesmos critérios
Sidi Moussa, que fez com que de um pilar jorrasse azeite, ao s horizonte fa-
que valem conforme se trate de um acontecimento ocorrido no m , mun(j0
miliar ou de um facto surgido no país das lendas, que começa nas a
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8 Talvez devamos ver aqui uma das raízes dos interditos referentes a todas as formas de
enumeração: não se devem contar os homens presentes numa assembléia, nem medir os
grãos destinados à sementeira; não se contam os ovos no choco, mas sim o número dos
pintos quando nascem. Será porque contar os ovos que estão a chocar ou medir os grãos
da sementeira equivale a presumir o futuro e, por isso, a comprometê-lo? Ofeld não avalia
a sua colheita a não ser mediante extremas precauções, "a fim de não pôr em causa a gene
rosidade de Deus". Em certas regiões, é interdito pronunciar um nome de número na
eira. Noutros lugares, recorre-se a eufemísmos para calcular a colheita. Sabe-se também
que medidas administrativas como as operações de recenseamento destinadas a conferir
uma maior precisão ao registo civil, se depararam de início vivas resistências. Lê-se num
poema de Qaddoúr ben Klifa citado por J. Desparmet (in "Les Réactions nationalitaires
en Algérie", Bulletin de la Société de Géographie d'Alger, 1933; cf. também "La turcophilie en
Algérie", op. cit., 1916, p. 20): "Todos os bens foram pesados na balança. Quantos hectares
não foram medidos, marcados metro a metro! Todos os anos nos incluem nos registos de
recenseamento! Foi assim que inscreveram todos os vivos, homens e mulheres!" Esta
mesma recusa do espírito de precisão e de cálculo inspirava as alcunhas atribuídas nas re
feridas poesias aos Franceses: "a raça industriosa", "a raça dos filósofos" (dos sábios), "o
povo da assinatura e do carimbo" (J. Desparmet, "L'GEuvre de la France jugée par les in-
digènes", op. cit., 1910).
9 "Há sete momentos no dia", "comporta-te conforme o momento", "não sei se a minha feli
cidade está para a frente ou para trás", "conforme o dia, o pastor pastoreia" (Akken yella
wass, yeks-it umeksa).
10 Falando com propriedade, não existe termo que exprima o futuro. Recorre-se a três ex
pressões: primeira, aka thasawanth, daqui para cima, assim como para cima; segunda, agh
rezzat, para a frente; terceira, qabel, o ano que vem.
ANEXO: PRÁTICAS ECONÔMICAS E DISPOSIÇÕES TEMPORAIS 265