Mi Menor

Você também pode gostar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 2

Mi Menor

Padre Rafael era de um humor sagaz, de uma paciência rara, discreto como feriado em fim
de semana.

Teve uma vez, quando ele ainda usava bigode, que foi atender uma família atormentada.
Carolino era o pai. Amelinha era a mãe. Catarina era a filha. Angustiosa, Amelinha já tinha
debulhado não sei quantos terços, acendido velas pra mártir e pra anjo porque, naquele dia
alvoraçado de setembro, Catarina tinha dados sinais de sobrenatural. Uns suores, umas viradas
de olho, uns berros. Fazia uns dias, na verdade, que a menina andava amolecida, amarelada,
mas naquela manhã tinha acordado pior, febril e violenta, cuspia e vociferava insultos. Amelinha
não vacilou. Mandou chamar o padre.

Quando ele chegou, desceu de Absalão, o jegue; acarinhou Pirilampo, o vira-lata,


cumprimentou Carolino com a outra mão e saudou a mãe lacrimosa, aconselhando-a a rezar.
Largou o taburno e as enxergas sobre a estante e tratou de entender o moído. A mãe não
conseguiu explicar. O pai contou toda a história, a história dos dias de doença da menina,
fastiosa, carrancuda, não corria, não sorria, sem brilho, sem brio. O pior, que começou no
amanhecer daquele dia, encheu de pavor o pai e a mãe. ‘’Nunca vi Catarina assim, padre. Será
o Cramulhão?’’ Amelinha desabou no chão, gemendo doída, clamando a intervenção dos céus.
O marido recolocou-a na cadeira. O padre cheio de compaixão, suspirou.

Foi ao quarto da menina, mas não entrou. Com um palmo de porta aberta, jogou os olhos
para o interior, mas estava escuro. A menina urrou estranhamente como um porco, depois riu
escandalosa. O quarto cheirava mal e de dentro dele saía um vento gelado e medonho e olhe
que era setembro.

O padre voltou para a sala, reparou nas fotografias na parede. Encaminhou-se pelo interior
da casa. Corredor, cozinha, quintal. Carolino acompanhava-o atento. Amelinha ficou afundada
no sofá da sala, desolada, como a Virgem das Dores. O padre viu o cajueiro caduco que há eras
não dava frutos, mas dava sombra. Viu o defeito na pia da cozinha, a louça por lavar. Pirilampo,
com o rabo entre os cambitos farejava restos. Absalão vivia por conta própria, podia o mundo
acabar ali. Padre Rafael encontrou o velho aparelho de rádio, levou-o à sala, botou-o pra tocar.
A casa encheu-se de uma melodia cristalina. Um violão dedilhado, sossegado, desaperreado.
Amelinha, que de tanto chorar parecia um sapo-cururu, admirou-se que o rádio ainda
funcionasse. Padre Rafael lembrou-se de si, menino velho, um pedaço de pau. E compartilhou
as lembranças. Contou de quando ganhou um violão do irmão mais velho e como passava horas
a dedilhar toadas bonitas e jovens. Do braço direito fez um braço de violão, lembrou-se do Ré,
do Sol e do Mi Menor. Sentado a balançar os pés pra frente e pra trás, contou também outras
histórias, uma emendada na outra, como se tivesse a tarde inteira. Pediu café. Não havia. Fez
questão. Inconcebível receber o padre e não preparar um pretinho. Amélia distraiu-se um tanto.
No quarto a menina xingava, quebrava coisas, rugia feroz. Mas o padre permanecia concentrado
em narrar suas doces lembranças solenes e foi assim até o último gole de café. Depois, de um
pulo pôs-se de pé, propôs uma ave-maria. Todos rezaram baixinho e no amém final não se
escutou mais nem urro, nem choro, nem ranger de dentes.

A porta do quarto rangeu por trás deles e do meio da escureza apareceu Catarina. Ela correu
carinhosa pros braços da mãe. Molhada em suor, sorriu sossegada. Amelinha beijou-a toda. E
assim ficaram as duas, enquanto o padre recolheu o taburno e as enxergas e foi se dirigindo a
saída. Pirilampo mendigou atenção, fungou os pés do padre. Absalão distraído como sempre,
devorava um matinho qualquer. Carolino correu em abordar o religioso e perguntou: “E agora,
padre? O que a gente faz?’’

‘’Reze só, vá confessar os pecados, leve a menina pra passear, tomem um sorvete, sentem-se
à sombra do cajueiro (não dá frutos, mas dá sombra), ouçam música, consertem a pia da
cozinha, abram as janelas do quarto, limpem os retratos.’’

‘’Só isso, padre?’’

‘’Só, isso, meu querido Naamã”

E sussurrando no ouvido de Carolino, enquanto a tarde trajada de rosa ia embora tranquila,


padre Rafael finalizou: ‘’Deus é simples, meu filho. O diabo é quem complica as coisas.”

Você também pode gostar