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Dicionário Caboverdiano-Português (Introdução)

INTRODUÇÃO
1. Enquadramento

1.1 - O Contributo pretendido: Sempre pensei que o meu contributo para o
desenvolvimento do crioulo caboverdiano (CCV) deveria situar-se na área da escrita e
da gramática. Por isso, tomei parte no Colóquio Linguístico de 1979, onde surgiu uma
proposta de escrita fonético-fonológica; escrevi o ensaio Diskrison Strutural di Língua
Kabuverdianu, 1982, o romance Odju d’Agu, 1987 e O Crioulo de Cabo Verde -
Introdução à Gramática, 1995; tomei ainda parte no Fórum de Alfabetização Bilingue,
1989, onde começou a ganhar consistência uma nova perspectiva para o alfabeto do
CCV, a de harmonização do modelo fonológico com o etimológico; presidi a Comissão
Consultiva criada no Fórum acima aludido, para aprofundar a problemática da
mudança afabética que se impunha; presidi o Grupo de Padronização do Alfabeto e
que deu corpo à harmonização acima referida, com a proposta do ALUPEC (Alfabeto
Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano), proposta esta avançada em 1994 e
aprovada, a título experimental, em Dezembro de 1998 (ver Boletim Oficial n.º 48,
suplemento); preparei e defendi uma tese de doutoramento sobre Le Créole du Cap-
Vert, étude grammaticale descriptive et contrastive, 1998.
Porém, a patir dos anos 90, após dez anos de algum labor linguístico, dei-me
conta de que o meu contributo para o desenvolvimento do CCV deveria ser um
triângulo linguístico, abarcando a escrita, a gramática, mas também o dicionário.
Foi assim que, em 1995, após o estudo gramatical que culminou com a
publicação acima referida, dei início a um novo projecto, o do Dicionário Elementar
Crioulo de Cabo Verde-Português.
A área da lexicografia não é um terreno onde eu me sinto à-vontade. Porém, a
carência de estudos nesse domínio, o perigo de descrioulização lexical que ameaça o
CCV e ainda a necessidade de fixar a escrita das palavras, de acordo com o ALUPEC,
convenceram-me a assumir um tal estudo. Tenho a consciência das limitações deste
projecto que levou cinco anos a ganhar forma e conteúdo - a incompletude é a
característica de todos os dicionários -, mas também tenho a consciência que o
mesmo representa um contributo significativo para a afirmação de uma língua que,
com tenacidade, tem resistido, e resistirá sempre, às ameaças da glotofagia.

1.2 - O estado em que se encontra a lexicografia do CCV: Os estudos


linguísticos não abundam. E isto tanto na área da gramática como na da lexicografia.
Quanto a este último aspecto, até ao século XIX, não conheço nenhuma referência
significativa. A partir daí, e no decorrer do século XX, há algumas referências que,
embora importantes, são ainda pouco expressivas. Pode-se referir aos seguintes
trabalhos:  o vocabulário de A. de Paula Brito (4 páginas, modalidade crioulo-
português) e que faz parte de «Apo ntamentos para a Gramática do Crioulo que se
Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde», 1888; o Léxico do Dialecto Crioulo de Cabo
Verde, de Armando Napoleão Fernandes, iniciado em 1920, cuja elaboração levou
mais de 20 anos, com publicação póstuma, em 1991, e cujo conteúdo (179 páginas,
crioulo-português), apesar de significativo, está ainda longe de cobrir o universo lexical
do CCV; o léxico de Baltasar Lopes, português-crioulo, que integra o seu livro O
Dialecto Crioulo de Cabo Verde, 1957, num total de 196 páginas, o qual apresenta
apenas uma amostra do conjunto lexical caboverdiano; o glossário de Luís Romano,
na variante de Santo Antão/português, com 43 páginas, integrado na sua obra Cabo
Verde – renascença de uma civilização no Atlântico médio, 1970.
Mais recentemente, João Pires e John Hutchinson publicaram um trabalho
intitulado Disionariu Preliminariu Kriolu, 1983, edição bilingue, crioulo-inglês, com um
total de 85 páginas, o qual, como as outras, é também uma amostra daquilo que
constitui o manancial lexical do CCV. Ainda mais recentemente, o francês Nicolas
Abrial Quint publicou os seguintes trabalhos: Lexique Créole de Santiago-Français,
1996, com cerca de 1800 entradas; Dictionnaire Français-Capverdien,
1997; Dicionário Cabo-verdiano-Português, 1998 e Dictionnaire Capverdien-Français,
1999, o qual constitui um alargamento dos trabalhos anteriores, num total de mais de
4000 palavras. O mesmo, apesar de constituir o mais volumoso trabalho lexicográfico
publicado em 1999[*], regista sobretudo as realizações do mundo rural da ilha de
Santiago e, mesmo a este nível, não abarca toda a riqueza vocabular dos
camponeses.
Face a esta situação, era necessário um trabalho lexicográfico mais
abrangente, embora sem a pretensão de cobrir todo o universo lexicográfico do CCV.
Este Dicionário Elementar Crioulo de Cabo Verde - Português — num total de
mais de 16 500 entradas (podendo estas ser uma palavra, os seus campos
semânticos ou expressões gramaticais) — é uma tentativa de tornar a lexicografia do
CCV um pouco mais abrangente, embora o mesmo se encontre ainda longe de cobrir
o universo lexical da língua em questão. Seja como for, o trabalho abarca, de forma
não exaustiva, as variedades de Santiago e de S. Vicente, com algumas incursões nas
variedades do Fogo, Boavista e Santo Antão.
Quem vier a empreender um novo trabalho lexicográfico disporá já de um
número significativo de referências, importando apenas aperfeiçoá-las, alargá-las e
enriquecê-las.

2. Estrutura

2.1 - Estrutura de apresentação: A obra possui uma estrutura simples para


poder facilitar a captação da forma das palavras, de acordo com o modelo de alfabeto
propugnado pelo ALUPEC. Sendo este modelo de base fonético-fonológica (em regra,
um só som para uma só letra ou dígrafo e vice-versa), entendi que era dispensável a
transcrição fonética das palavras.
Organizei as “entradas” em colunas. Na primeira surge a matriz de Santiago,
com a sigla ST. Segue-se a coluna destinada à variante de S. Vicente e a outras
variantes do CCV.  coluna SV/OV, em primeiro lugar surgem as palavras de S.
Vicente; as que não são de S. Vicente surgem em último lugar seguidas de siglas que
as identificam: SA, F, Bv, Br, SN, simbolizando, respectivamente, Santo Antão, Fogo,
Boavista, Brava e S. Nicolau. Na terceira coluna figura Obs, isto é: observação. Nela
aparece a classe gramatical a que a entrada pertence ou então se diz que a entrada é
uma expressão (idiomática ou gramatical). Finalmente, na quarta coluna vem o
símbolo Port, que significa português.
Tudo isto significa que as “entradas” na matriz de Santiago têm sempre
correspondência semântica na  variante de S. Vicente e no português. A
correspondência relativamente às outras variantes do CCV é extremamente limitada.
Ela surge quando o autor (que é nativo de Santiago) tem conhecimento da
correspondência existente nessas outras variantes. Fundamentalmente, o estudo
contrastivo diz respeito a Santiago, a S. Vicente e ao português.

2.2 - Estrutura científica: O projecto contou com um director-executivo, três


assistentes e dois conselheiros.
A realização é da inteira responsabilidade do director-executivo, que, aliás, é
quem figura como autor da obra. Os assistentes, dois de S. Vicente e um do Fogo, são
pessoas muito próximas do autor e que à medida que o projecto avançava iam
acompanhando o trabalho feito, dando sugestões ou respondendo às interrogações do
director-executivo. Em alguns casos, houve apoio no levantamento terminológico junto
dos dados existentes no INAC/INIC. Os conselheiros, sendo um de S. Vicente e outro
de Santiago, tiveram por tarefa apurar, após a primeira versão do trabalho, se as
correspondências semânticas eram adequadas e se as classes gramaticais atribuídas
eram correctas. Podiam ainda, sem carácter vinculativo, dar sugestões para completar
ou para melhorar o trabalho.

3. Metodologia

3.1 - Modus faciendi: Para a concretização do projecto, privilegiei a


observação directa, nos mais diversos sectores de actividade sociocultural. Sendo
locutor nativo, preferi o registo escrito à gravação. Por isso, adoptei o hábito de ter
sempre no bolso da camisa um pedaço de lápis e uma folha de papel.
Na vida familiar e laboral, nos convívios de amigos, nas deslocações ao
campo, frente a um palco de teatro ou de qualquer outra manifestação cultural, e até
junto da diáspora caboverdiana, tinha sempre a preocupação de, discretamente,
registar as realizações pouco frequentes, tanto as que conhecia como as que
desconhecia. Tive ainda a preocupação de pedir a determinadas pessoas de
registarem para mim os termos mais típicos ou pouco frequentes que o seu trabalho
ou a sua vivência possibilitavam.
Procedi ainda a vários levantamentos a partir de: obras escritas em Crioulo,
arquivos das tradições orais do INAC e do INIC, letras de música e de canções
populares, glossários, léxicos e dicionários ligados ao CCV. Pude ainda consultar as
cerca de 5000 fichas linguístico-etnográficas do historiador António Carreira, que se
encontram depositadas no Arquivo Histórico Nacional. Tanto em casa como no
trabalho tinha um caderno de registo.
O material recolhido era armazenado num banco de dados do
programa Access, onde, periodicamente, realizava algum tratamento, sobretudo para
a eliminação de repetições. Com medo de perder os dados, os mesmo eram gravados
no computador da Instituição onde trabalho, no computador familiar e ainda numa
disquete zip que adquiri para o efeito, já que as disquetes normais eram
demasiadamente pequenas para armazenar tanto material.
A partir do registo feito, normalmente na matriz de Santiago, ia-se à procura da
correspondência semântica na variante de S. Vicente e no português. Para tal, recorria
com frequência à competência dos meus assistentes, como ainda à dos amigos ou
colegas de trabalho que são nativos de S. Vicente. Não poucas vezes, tive também a
necessidade de consultar o Léxico… de Napoleão Fernandes, alguns locutores
nativos de Santiago como também alguns dicionários portugueses, por exemplo
o Dicionário Prático Ilustrado, edição actualizada e aumentada por José Lello e Edgar
Lello, e ainda o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo.

3.2 – Escrita utilizada: Adoptei o alfabeto e a escrita das bases do ALUPEC


com algumas pequenas modificações*. Tal alfabeto é de base fonético-fonológica, na
medida em que cada letra ou dígrafo representa apenas um som (ou fonema) e cada
som é representado sempre pela mesma letra ou dígrafo.
Como se sabe, o ALUPEC é formado por vinte e três letras e quatro dígrafos,
na seguinte ordem de apresentação:

A B [C] D E F G H I J L M N Ñ O P K R S T U V X Y
Z
a b[c] d e f g h i j l m n ñ o p k r s t u v x z
y
Dígrafos: DJ, LH , NH, TX
As letras têm o mesmo valor dos símbolos do alfabeto fonético internacional
(AFI), havendo algumas excepções: j tem o valor de [ʒ]; ñ é uma semi-constritiva,
velar, nasal – [ŋ]: ñanhi (roer); x tem o valor de [ʃ].

O valor dos dígrafos, no AFI, é a seguinte:

ALUPEC AFI ex. ALUPEC ex. AFI port.


D
j = [ʤ] : djanta ['ʤãtɐ] «jantar»
L
h = [ʎ] : pilha ['piʎɐ] «pilha»
N
h = [ɲ] : nha [ɲɐ] «meu/minha»
T
x = [ʧ] : txuba ['ʧubɐ] «chuva»

A nasalização é feita por n (ponba, pónta). Porém, a nasalização do ditongo é


feita com til (pon, pãu). A conjunção copulativa e toma a forma de y («txuba txobe y
agu kóre»). O pronome pessoal sujeito da primeira pessoa é representado sempre
por N («N krê») e o mesmo pronome quando é complemento é representado por m,
em Santiago, e por me, em S. Vicente (da-m, dá-me).

Regras de acentuação: Há seis regras de acentuação (R1 – R6), as quais


retratam as cinco regras do ALUPEC, com ligeiras modificações em R2, R3, R4, R5:
R1 – A maior parte das palavras em Crioulo é paroxítona. Diz-se neste caso que a
sílaba tónica é preditível, não havendo por isso necessidade de representá-la com um
diacrítico.
Ex.: banda, fidju, povu, txuba / banda, fidje, pove, txuva.

R2 – Nas palavras paroxítonas em que a vogal tónica é um e ou um o semi-fechado


ou semi-aberto (ê/é, ô/ó), o diacrítico é usado apenas sobre as vogais semi-abertas,
cujo rendimento funcional parece ser menor. A ausência do diacrítico indicará a
natureza vocálica oposta.
Ex.: béku / beke, féra, róda, fera/feira, roda / rodá.
Do mesmo modo, quando a sílaba tónica é uma vogal precedida de uma outra com
que não forma sílaba, o diacrítico reaparece.
Ex.: saúdi / saúde, raínha, faíska, saída.

R3 – Todas as palavras proparoxítonas levam diacrítico, excepto alguns advérbios de


modo terminados em menti.
Ex.: prátiku, sílaba, inplisitamenti / prátike, sílaba, inplisitamente.

R4 – As palavras oxítonas de mais de uma sílaba e as monossilábicas terminadas


por e ou o, seguidas ou não de s, levam o diacrítico de acordo com a natureza
vocálica.
Ex.: kafé, mamá, fé, krê, dipôs, purtugês / kafê, mamâ, fê, krê, despôs, purtugês.
Esta regra não se aplica aos adjectivos possessivos e aos pronomes pessoais, que
não levam diacrítico, salvo bosê, de-bosê, nósa, de-nósa.
Ex.: bo, abo, anho, anos, ami.
Nos pares mínimos, a nível da acentuação, leva diacrítico a vogal mais aberta.
Ex.: mas/más, pa/pá.
As monossilábicas terminadas por a, i, u, seguidas ou não de s, não levam diacrítico,
salvo quando se trata de palavras homófonas.
Ex.: pas, la, li, ti, dju, ku/kú, nu/nú.
Nas variedades de Barlavento, do Fogo e da Brava todos os verbos regulares são
oxítonos e levam sempre o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: S. Vicente: falá, kemê, durmí, pô, lanbú.
       Fogo: papiâ, kumê, durmí, pô, lanbú. 
 
R5 - As palavras terminadas por l, n, r normalmente são oxítonas e, por isso, não
levam diacrítico, já que este é preditível. O mesmo só aparece quando se torna
necessário indicar a natureza vocálica da vogal semi-aberta (dór) ou então quando a
palavra não é oxítona.
Ex.: profesor, amor, baril, sentral, kanson, jóven, inposível.

R6 – As palavras terminadas por um ditongo precedido de consoante são,


normalmente, oxítonas, não precisando de diacrítico. Sempre que a regra não se
verificar reaparece o diacrítico, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: balai, sabedoria, liseu, sirkunstánsia.
Quando, nas mesmas circunstâncias, o acento tónico cai na última vogal, e não na
primeira, o diacrítico reaparece, de acordo com a natureza vocálica.
Ex.: luâ, buâ.

Obs.: Em txapéu o diacrítico indica a natureza vocálica e não a sílaba tónica que é
preditível. Em patrísiu usa-se o diacrítico porque a palavra, embora termine por um
ditongo, precedido de consoante, é paroxítona. Em praia e feiu segue-se a R1 já que
terminam por ditongo que não é precedido de consoante, como estipula a R6.

Note-se que todas e cada uma das entradas do presente dicionário


enquadram-se numa das seis regras de acentuação acima referidas.

4. Conteúdo

4.1 – Abrangência: O projecto inicial previa um total de dez mil entradas (ver o
conceito de entrada em 1.2). Porém, acabei por atingir mais de dezasseis mil e
quinhentas entradas, tendo ficado com a consciência de o trabalho ter ficado
incompleto, já que cada dia que passa dou-me conta de que há termos que não
cheguei a registar.
Também os nomes de plantas, frutas, peixes, categorias profissionais, objectos
etnográficos, práticas religiosas e filosóficas, têm uma presença pouco representativa
na obra. Do mesmo modo, as particularidades das ilhas, outras que não Santiago e S.
Vicente, são exíguas. Os cinco anos de investigação - com a preparação de uma tese
de doutoramento pelo meio e um financiamento externo que cobriu apenas um ano de
investigação – não me permitiram ir mais longe, numa altura que não me faltavam nem
forças, nem predisposição. Trata-se, pois, de um dicionário elementar, elementar
quanto ao universo lexical do CCV, mas também elementar quanto à sua
apresentação. O objectivo de fixar a palavra como conceito existente e como forma
escrita, à base do ALUPEC – um modelo ainda desconhecido do grande público –,
exigia uma apresentação simples, económica, directa e de grande expressão visual.
Por ter usado uma escrita de base fonético-fonológica, achei que a transcrição fonética
era dispensável. O dicionário é ainda elementar dado a insuficiência de descrição ou
de contextualização dos diversos sentidos que uma mesma forma semântica pode ter.
Contento-me, pois, em ver este dicionário como uma espécie de «léxico
fundamental» do CCV, isto é, um léxico reduzido, mas que satisfaz a comunicação
corrente do dia-a-dia. Um léxico reduzido, mas que comporta um número significativo
de palavras e de expressões que corriam o risco de desaparecer ou de perder a
fonética e/ou a forma que a índole do CCV lhes imprimiu através dos tempos.

4.2 – Variedades contempladas: Em Cabo Verde, qualquer estudo linguístico


e sociolinguístico nos leva a concluir que as actualizações do Crioulo com maior
representatividade e com maior peso no processo de estandardização são a de
Santiago (St) e a de S. Vicente (Sv). A matriz de Santiago é importante, pelas
seguintes razões: é a mais antiga do Arquipélago, tendo a sua formação começado a
processar-se desde os meados do século XV; sociolinguisticamente, é aceite em todas
as ilhas do Sul, já que a sua estrutura é muito próxima da expressão linguística dessas
ilhas; ela está ainda na base da formação de todas as outras expressões linguísticas
do Arquipélago; linguisticamente, é a actualização com maior grau de autonomia
gramatical, tanto a nível fonético, morfológico como sintáctico; demograficamente,
cobre mais de metade da população residente no país; cientificamente, é a que neste
momento possui mais estudos académicos, tanto de nacionais como de estrangeiros;
literariamente, é a expressão linguística com mais trabalhos a nível de prosa,
possuindo também vários trabalhos poéticos; culturalmente, é veículo e suporte das
manifestações culturais mais típicas do Arquipélago, como o batuque, a tabanca  o
funaná...  
Por outro lado, a variedade de S. Vicente, apesar de ser das mais recentes, já
que o povoamento da ilha começou nos finais do século XVIII, mais de trezentos anos
após o de Santiago, possui, apesar de tudo, um certo prestígio. Com efeito, ela é
aceite em toda a zona Norte e isto decorre do facto de ela representar uma espécie de
unificação das expressões linguísticas de Santo Antão, S. Nicolau e Boavista. Estas
três ilhas contribuíram para a sua formação e é por isso que a variedade de S. Vicente
é aí compreendida e aceite. A ilha do Sal, que se encontra na mesma zona, possui
uma expressão mais recente que a de S. Vicente e o falar aí existente tem na sua
origem os falares de S. Nicolau e da Boavista que, por sua vez, estiveram na origem
do falar sanvicentino. Daí a razão por que também no Sal a variedade de S. Vicente é
aceite.
É tendo em conta a importância das duas expressões linguistícas  do CCV com
maior força e prestígio que, tanto no estudo gramatical como no lexical que tenho
levado a cabo, quis privilegiar  matriz de Santiago e a variante de S. Vicente. Penso,
no entanto, que essas duas expressões constituem apenas elementos de referência
fundamental na estandardização do CCV, já que as particularidades significativas de
todas as outras expressões dialectais devem ser tomadas em devida conta.
A representação Ov é pouco significativa, não porque assim deve ser, mas
porque não tive tempo suficiente, nem meios disponíveis, para fazer o levantamento
nas ilhas outras que não Santiago e S. Vicente. O projecto inicial previa esse
levantamento, mas, infelizmente, falhou o financiamento. O facto ainda de existirem
poucos trabalhos escritos nas variantes não tratadas ou deficientemente tratadas,
dificultou o levantamento desejável. A ilha da Boavista, graças ao recente
livro Perkurse de Sul d’Ilha, 1999, de Eutrópio Lima da Cruz, tem uma presença de
mais de 500 “entradas” neste dicionário, o que não aconteceria se eu não tivesse
acesso a uma tal obra, já na recta final do projecto.
Tudo isto para dizer que o meu dicionário, apesar de considerá-lo importante, e
isto tendo em conta os objectivos propostos, contudo ele não me satisfaz. Mas quem
faz o que pode,  a mais não lhe deve ser exigido.

4.3 – Procedência dos registos: Há quem pense, como por exemplo o


linguista francês Nicolas Quint, que o verdadeiro crioulo caboverdiano é tão-somente o
das zonas rurais, sobretudo o dos iletrados. Ora, eu penso que o crioulo caboverdiano
é o que é falado pelo povo de Cabo Verde, letrado e iletrado, de Santo Antão à Brava,
do campo à cidade. Este mesmo Crioulo, como é normal, tem variantes e tem
expressões dialectais. Um dicionário, minimamente representativo, deve poder dar
conta não só da prática como também do mosaico linguístico do CCV. Um dicionário
que, com a preocupação de ser genuíno, se preocupar apenas com a realização dos
camponeses iletrados não terá utilidade prática, e isto porque os iletrados não saberão
fazer uso do mesmo e os letrados não se sentirão à-vontade no meio de termos e
expressões que não conhecem ou que habitualmente não usam.
Pelo contrário, um dicionário que dá atenção ao mundo rural, sem desprezar a
vivência urbana, estimula o intercâmbio e a aprendizagem dos dois mundos.
Estou consciente de que é preciso evitar a hipercorrecção (lusitanização
abusiva do CCV) muito frequente nas zonas urbanas e junto dos letrados. Do mesmo
modo, penso que não se deve impor formas ou práticas linguísticas em desuso ou em
decadência só porque um punhado de camponeses as utiliza ou as utilizava. O
dicionário, podendo, deve registar essas práticas, com a informação de que são
arcaicas, como também deve registar as práticas de letrados e de citadinos, desde
que elas tenham já entrado no léxico, na morfologia e na sintaxe do CCV, sem
comprometer a sua autonomia.
É por isso que os registos do meu dicionário têm diversas procedências: o
campo, a cidade, os letrados, os iletrados, os arcaísmos, os neologismos.
Não fiz nenhuma inovação. Assim como o Petit Robert não é um registo
apenas do universo lexical dos camponeses franceses, assim também este meu
dicionário não poderá ser apenas o registo lexical dos camponeses de Santiago.
Alguém dirá que muitos registos são próximos do português e eu direi que isto é
normal porque o português é uma das matrizes fundamentais do CCV, assim como o
latim foi uma matriz fundamental para todas as línguas românicas e o inglês, hoje, no
domínio tecnológico, tem sido uma fonte de enriquecimento de várias línguas.

5. Visão prospectiva

 A oficialização do CCV é o objectivo maior tanto da nossa Introdução à


Gramática, como deste Dicionário. A verdadeira afirmação do CCV acontecerá no dia
em que o mesmo for introduzido no sistema de ensino. A geração que vai dominar a
ciência do CCV será aquela que vier a ter a sorte de estudá-lo formalmente nas
estruturas da educação. E isto exige recursos humanos, materiais e didácticos. O
presente dicionário é já um esforço de contribuir para a existência de algum material
didáctico. Com esta obra e com as outras que tenho publicado até agora,
nomeadamente a Diskrison Strutural di Lingua Kabuverdianu, o Odju
d’Agu, a Introdução à Gramática e O Caboverdiano em 45 Lições, penso ter honrado
o meu compromisso, isto é, o de contribuir para a afirmação de um triângulo linguístico
que tem num dos lados a escrita, noutro a gramática e no terceiro o dicionário.
Tenho consciência, no entanto, que muito caminho resta ainda para ser
andado. E o desbravar desses caminhos passa pela formação de linguistas e pela
disponibilização de recursos. Os que decidem pelo futuro deste país têm que ser
coerentes e consequentes, pelo menos com os documentos que aprovam e com as
posições que assumem publicamente. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/96,
relativamente ao Programa governamental, diz, em matéria de língua nacional:

«O Governo pretende (…) com base em estudos científicos que vêm sendo
desenvolvidos por técnicos competentes na matéria, fixar metas e determinar etapas,
para a oficialização do crioulo (…) ao lado do português…»

Uma outra Resolução, n.º 8/98, publicada no BO n.º 10, dizia que
«Será valorizado, progressivamente, o crioulo cabo-verdiano, como língua de
ensino».

Também em Julho de 1999, aquando da revisão da Constituição, frente ao


posicionamento do maior Partido da Oposição, que reclamava a «oficialização em
construção» do Crioulo, o Partido da Situação, que dispunha de uma maioria
qualificada na Assembleia Nacional, mandou consagrar um dispositivo segundo o qual
o Governo deve criar as condições necessárias para a oficialização da língua
caboverdiana em paridade com a portuguesa[†].
Será que as «Resoluções» atrás referidas e o dispositivo constitucional serão
respeitados? Espero e desejo firmemente que assim seja. Para além do meu desejo e
do meu trabalho, nada mais posso fazer. A minha geração, como a dos meus filhos,
não puderam, mesmo num Cabo Verde independente, há vinte e cinco anos, estudar o
Crioulo nos bancos da escola. Se por ventura tiver a sorte de ver as gerações mais
novas a terem este privilégio, considerarei que valeu a pena o trabalho feito e os
sacrifícios consentidos.

                                                                                              Praia, Novembro de


2000.

                                                                                                          Manuel
Veiga

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