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ERNEST HEMINGWAY

A História de uma Vida

CARLOS BAKER

Título Original: Ernest Hemingway – A Life Story

Edição em Pt-Pt (Português Europeu)


INTRODUÇÃO

Hemingway disse uma vez que a sua primeira biografia só haveria de

surgir cem anos após a sua morte e, em 1958, deixou instruções claras ao

executor do seu testamento para que «não se publique qualquer carta escrita

por mim ao longo de toda a minha vida». Na verdade, se pudesse,

Hemingway teria protegido a sua vida privada com um véu intransponível,

o que é quase um paradoxo se considerarmos que foi um homem que

sempre procurou publicidade e que nunca se teria tornado quem foi sem o

seu mediatismo. A crítica amou-o e enalteceu-o, mas foi também

impiedosamente implacável: afinal, estávamos finalmente perante um

escritor que não se deixava afetar pelas inquietações do pensamento.

Hemingway foi aventureiro, praticou caça grossa, pesca em alto mar, foi

aficionado da tourada e bon vivant, fez sucesso junto das mulheres, casou

quatro vezes e, em 1954, foi agraciado com o Prémio Nobel da Literatura.

Um autor cuja vida assumiu matizes tão diversificados como os dos seus

próprios romances e contos. Onde quer que Hemingway estivesse, havia

sempre uma câmara por perto e um flash a disparar e, no dia seguinte, já os

jornais relatavam o que «Papa» tinha andado a fazer de interessante na

véspera. E este, que queria tudo menos ser tido como um intelectual
efeminado, aproveitava-se claramente disso e contribuía fervorosamente

para ajudar a criar a imagem do «macho» Hemingway.

No entanto, esta relação entre Hemingway e os media acabou por

assumir também uma faceta traiçoeira. Após a sua morte, o filho viria a

afirmar: «Houve um momento na sua vida em que a sua imagem, o estilo

de vida, a personalidade, a ilusão da fama recebiam mais atenção do que a

sua obra.» Na fase final da sua vida, em especial, a imagem de rufia que o

próprio ajudou a criar começou gradualmente a virar-se contra si. A

imprensa começou a dar preferência a histórias sobre as suas fraquezas

enquanto ser humano, sobre a sua suscetibilidade à fama, que colocavam

em causa as suas qualidades enquanto artista, e sobre o seu problema de

alcoolismo, responsável por acidentes e atos inconsequentes. A impressão

sobre Hemingway que acabou por se sedimentar junto da opinião pública

foi a de um fanfarrão pretensioso que estava quase sempre bêbado e que

agredia as pessoas. Pelo caminho ficou o outro Hemingway, o escritor

sensível, para quem o álcool era apenas uma forma de atenuar as dúvidas

existenciais e inseguranças. Este Hemingway era praticamente o oposto da

pessoa que deixava transparecer para o exterior, era o homem descrito

pelos amigos como sendo quase tímido, que necessitava do apoio das

mulheres com quem foi casado, mesmo que tivesse recorrentemente ideias
opostas às suas, o Hemingway doce que adorava gatos e que não suportava

o facto de não ser tão forte como o exigia a imagem que criou de si próprio.

A tragédia da vida de Hemingway passa pelo facto de ele próprio ter

tomado gradualmente consciência de que o seu verdadeiro Eu se estava a

desvanecer sob a imagem da lenda que havia criado perante o mundo. Esta

será talvez a única forma de explicar as suas sucessivas crises criativas,

assim como a própria crise pessoal que acabaria por levá-lo ao suicídio a 2

de julho de 1961. A vida de Hemingway é a vida de um homem que

sempre se escondeu por detrás da sua imagem pública, que rebaixava as

mulheres, embora, na esfera privada, tivesse todo o gosto em desempenhar

o papel a elas atribuído, alguém que se apresentava perante os media como

um homem determinado, embora, no seu âmago, estivesse imerso em

dúvidas. Hemingway tanto foi vítima como culpado numa época que

necessitava claramente de um herói masculino que ocultasse o clima de

incerteza trazido pelas alterações radicais verificadas durante o século XX.


«ONDE OS BARES TERMINAM E AS IGREJAS COMEÇAM»

Quando, a 21 de julho de 1899, nasceu Ernest Miller Hemingway, o

segundo filho do Dr. Clarence Edmonds Hemingway e da sua esposa Grace

Hall Hemingway, em Oak Park, Illinois, ainda mal eram percetíveis as

mudanças radicais que viriam a marcar o século XX. Oak Park, um dos

subúrbios de Chicago, era habitado pela classe média burguesa, respeitável,

conceituada e ligeiramente enfadonha. Um dos poucos focos de agitação da

comunidade seria o arquiteto Frank Lloyd Wright, os seus projetos

modernistas de habitações ao estilo de casas da pradaria e, acima de tudo, a

sua fuga com uma mulher casada em 1909. De resto, reinava ainda a

tranquilidade no mundo simples do Midwest norte-americano. As pessoas

cumprimentavam-se com palmadinhas nas costas e conversavam sobre a

evolução do mundo, cheias de otimismo. Em 1901, Theodore Roosevelt

chegou à Casa Branca e por lá viria a ficar ao longo dos oito anos que se

seguiram e o mundo por ali resumia-se à América, o melhor país de todos.

Sem qualquer tipo de embaraço, aqui era-se WASP, ou seja, Branco,

Anglo-Saxão e Protestante (White, Anglo-Saxon and Protestant), e só se

queria conviver com os pares. O que era realmente importante era «ser

alguém», ter uma grande casa para exibir e pertencer ao clube certo.

Olhava-se com uma certa dose de arrogância para a «proletária», imoral e


corrupta cidade vizinha de Chicago. Por seu lado, os habitantes de Chicago

troçavam de Oak Park, dizendo que era ali que terminavam os bares e

começavam as igrejas. A atmosfera era de conformismo cauteloso,

respeitabilidade moral e de vigilância mútua, mas ao mesmo tempo reinava

também um clima em que as crianças podiam crescer seguras e protegidas.

Os Hemingway pertenciam ao grupo dos notáveis da região. O pai de

Ernest Hemingway, filho de um veterano da Guerra Civil que fez fortuna

em Chicago no mercado imobiliário e entretanto se mudou para Oak Park,

estudou em Oberlin e no Rush Medicai College, e era obstetra e o médico à

frente de um conceituado consultório em Oak Park. Com 1,83 m, o Dr.

Clarence Edmonds Hemingway, a quem normalmente tratavam apenas por

Ed, tinha uma aparência imponente e robusta em que sobressaíam os seus

ombros largos e a barba escura. Era um médico de família diligente, que

estava sempre disponível para os seus pacientes e que, em 1911, acabou

por ser nomeado presidente da Associação Médica de Oak Park. Sendo

proveniente de uma família com padrões morais rígidos Anson, o seu pai,

deixou o exército para ir trabalhar para uma organização religiosa -, Ed

Hemingway não tinha dúvidas de que o Bem e o Mal eram características

bem definidas, claramente identificáveis e sem qualquer imiscuição entre

si. Lúcifer estava sempre à espreita em todo o lado: se algum dos seus seis

filhos se comportava de forma insolente, tinha de se ajoelhar de imediato e


pedir perdão a Deus. Uma vez, o jovem Ernest não se conteve e deixou

escapar um palavrão, o que lhe valeu a sentença mínima esperada por esta

fraqueza moral imperdoável: lavar os dentes com sabonete. No número 600

da North Kenilworth Avenue, a residência ocupada pelos Hemingway em

1906, depois de terem deixado a casa dos avós matemos de Hemingway,

jogar às cartas e dançar não eram passatempos tolerados. Aos olhos do Dr.

Hemingway, o álcool e o tabaco eram armas do demónio e ir à missa e à

catequese fazia parte dos deveres da família. Tratava-se de uma

mentalidade típica da classe média norte-americana, desfasada da realidade

pela sua rigidez puritana, contra a qual Hemingway viria a rebelar-se ao

longo da sua vida através da negação exterior da religiosidade e da

conversão ao catolicismo, assim como da incursão em excessos de álcool e

da sua ênfase existencialista sobre o mundo terreno, sobretudo, porque isto,

no seu pai, vinha acompanhado de acessos de raiva e de pudor sexual. No

entanto, Hemingway nutria pelo pai um sentimento fruto de uma mistura

ambivalente entre admiração, aversão e carinho. Anos mais tarde,

Hemingway viria a escrever o seguinte em Pais e Filhos, o seu conto com

matizes acentuadamente autobiográficos: «O seu pai era extremamente

nervoso como qualquer pessoa com uma capacidade que transcende as

necessidades humanas. Era também sentimental el como quase todas as

pessoas sentimentais, tanto era cruel como tantas outras vezes se deixava

enganar. Além disso, também tinha muito azar e nem sempre por sua culpa.
Tinha caído numa armadilha na qual mal se tinha envolvido e todos eles o

atraiçoaram de várias maneiras antes de ele morrer. Todas as pessoas

sentimentais acabam por ser atraiçoadas de forma recorrente. Nick ainda

não conseguia escrever sobre ele. Viria a fazê-lo uma vez, mais tarde, mas

o território das codornizes evocou na sua mente a memória do pai tal como

era quando Nick era pequeno e, nesse momento, soube que lhe estava

muito grato por duas coisas: a pesca e a caça. O seu pai era tanto melhor

nesses dois domínios como era desconhecedor noutros como, por exemplo,

tudo o que fosse de cariz sexual, e Nick estava feliz por ele ter sido assim,

já que é preciso que haja alguém para passar a espingarda a outro ou que

surja a oportunidade de receber uma e de lhe dar uso, assim como é

igualmente preciso viver onde haja animais selvagens e peixes, se

realmente se quiser aprender alguma coisa sobre o assunto. E neste

momento, com 38 anos, continuava a caçar e a pescar com tanto prazer

como naquela época em que o fez pela primeira vez com o pai. Era uma

paixão que nunca tinha abrandado e Nick estava muito grato ao seu pai por

lha ter despertado» (Winner Take Nothing).

Em 1898, o Dr. Hemingway comprou uma pequena propriedade em

Walloon Lake, na qual construiu uma residência de verão. Posteriormente,

adquiriu também uma quinta com 16 hectares que se situava nas

proximidades. Apenas sete semanas após o seu nascimento, Ernest foi


levado para lá. Em Walloon Lake, Ed Hemingway ensinou o filho a mexer

em ferramentas e em armas. Foi ali que ensinou Ernest a estripar as peças

de caça e a prepará-las para serem cozinhadas e, ainda, a amanhar os peixes

do lago. Era um mundo masculino em que as coisas pareciam simples e

descomplicadas, aquele mundo «sem mulheres» ao qual o seu filho Ernest

regressaria recorrentemente, para o qual fugiria tantas vezes quando se

sentisse sob pressão. Atualmente, dever-se-á concordar com o biógrafo de

Hemingway quando este declara que o Dr. Hemingway, a par de toda a sua

energia, seria provavelmente um homem muito infeliz, sendo que as suas

reações repentinas e cruéis perante os mais pequenos deslizes dos filhos,

que camuflava com ares de disciplina religiosa, o seu fervoroso empenho

pela comunidade e os seus esporádicos esgotamentos nervosos constituíam,

em conjunto, o padrão típico de um distúrbio maníaco-depressivo. A 6 de

dezembro de 1928, encostou à cabeça o cano da velha Smith a Wesson do

pai e puxou o gatilho. Com a sua esposa era muito mais terno e flexível.

Alegadamente, atormentava-o um sentimento de fracasso enquanto marido

e pai. Ainda que Ernest Hemingway fosse muito próximo do pai, nunca lhe

perdoou este aspeto do seu comportamento contraditório, de se considerar

um fracasso. «Nunca esquecerei o sentimento de repugnância que ele

despertou em mim quando percebi pela primeira vez que ele era um

cobarde», pensou Robert Jordan, o herói de Hemingway em Por Quem os

Sinos Dobram, a respeito do pai quando este pôs fim à própria vida: «E
assim que se diz na tua língua. Cobarde! Sentimo-nos aliviados depois de o

pronunciar. E que sentido faria não chamar patife a um patife e atribuir-lhe

antes uma palavra estrangeira?(*)

[(*) Por «palavra estrangeira» entenda-se aqui a palavra espanhola

cobarde, que, por coincidência, tem a mesma grafia em português.]

No entanto, ele não era um patife. Era apenas um cobarde e isso é o pior

que pode acontecer a uma pessoa. Se ele não fosse cobarde, teria

enfrentado a mulher e não se teria deixado tiranizar por ela. [...] Ele

compreendia o pai e perdoava-lhe tudo e tinha pena dele, mas também

tinha vergonha» (Por Quem os Sinos Dobram). Hemingway atribuía

inequivocamente à mãe a culpa pelo comportamento do pai. Numa versão

anterior de Pais e Filhos, escreveu: «Ele estava casado com uma mulher

com quem tinha menos em comum do que tem um coiote com uma cadela

caniche. Ele não era nenhum lobo, o meu pai. [...] Quando um homem é

casado com uma mulher com quem não tem nada em comum, quando já

não se trata de equidade, mas sim de egoísmo e de ondas de emoções

histéricas, então só há uma coisa a fazer: livrar-se dela. [...] Num

casamento assim, quem vence o primeiro conflito assume o controlo, e o

vencido bem pode tentar apelar ao bom senso, escrever cartas com

explicações, tentar resolver tudo novamente diante das crianças e então

chega o inevitável despertar, o vencedor recebe o vencido com


generosidade, retira-se tudo o que foi dito às crianças, volta-se a ter um lar

pleno de amor, o coração da mãe bate por ti, mas então e o coração dele,

onde estava ele a bater, onde bate ele agora e como é o seu som oco?».

Grace Hall Hemingway era efetivamente feita de uma fibra muito

diferente da do marido. Se Ed Hemingway era uma pessoa com um carácter

obsessivo e depressivo que se escondia por detrás de uma pose patriarcal, já

ela era o protótipo da mulher dominante e histérica. Com olhos azuis,

robusta e apresentando desde cedo um peito impressionante, a sua

aparência causava sensação e admiração. Criada em Chicago, era a filha

mimada de Ernest Hall, um bem-sucedido comerciante de cutelaria

proveniente de Sheffield em Inglaterra, e da sua obstinada esposa, Caroline

Hancock Hall, que recusou terminantemente sujeitar a filha às restrições

que eram impostas às mulheres naquela época. Desde cedo assumiu a

convicção de que o seu talento musical herdado e a sua bonita voz fariam

dela uma cantora de ópera de renome. Durante o seu tempo de juventude,

dedicou-se à carreira musical que, no entanto, teve um fim abrupto quando

foi acometida por umas inexplicáveis dores de cabeça na noite da sua

estreia no Madison Square Garden em Nova Iorque. Desde então nunca

mais se quis submeter a tais tormentos e, assim, a jovem de 24 anos de

brilhantes cabelos vermelhos acastanhados consentiu que o Dr.

Hemingway, apenas nove meses mais velho do que ela, lhe fizesse a corte
e, em outubro de 1896, viria a casar com ele na primeira igreja

congregacionista de Oak Park.

O primeiro filho do casal foi uma menina, para as delícias da jovem mãe.

Reduziu o número de aulas de música que dava até então, dedicou-se

totalmente às suas aptidões musicais e à família que, num espaço de 17

anos, cresceria até chegar a seis filhos: Marcelline (n. 1898), Ernest, Ursula

(n. 1902), Madeleine «Sunny» (n. 1904), Carol (n. 1911) e o benjamim

Leicester (n. 1915). Precisamente porque, em pouco tempo, começou a

nutrir sentimentos ambivalentes relativamente ao marido por um lado

precisava dele e da sua complacência, mas, por outro, desprezava-o pela

sua fraqueza começou a empenhar-se na organização da sua vida social e

artística. Uma vez que se recusava muitas vezes a cumprir os seus deveres

domésticos (era frequente as despesas com empregados e com o estilo de

vida que ela considerava ser o adequado para si esgotarem seriamente o

orçamento de Hemingway), sobrava-lhe tempo mais do que suficiente para

se concentrar nas suas aptidões musicais. E a sua dedicação era fervorosa.

Não raras vezes, Ed tinha de interromper uma visita a um paciente e

telefonar para casa para pedir à criada que retirasse a comida do forno. Para

além dos seus talentos musicais, a mulher de Hemingway também era

dotada para as artes plásticas e, no auge da sua meia-idade, viria a tomar-se

uma pintora de renome na região.


Algumas das ideias que Grace defendia poder-se-iam descrever, no

mínimo, como insólitas. Quando Ernest tinha 9 meses, vestiu-lhe um

vestidinho de algodão cor-de-rosa e colocou-lhe na cabeça uma touca às

flores, tal como fez com a filha Marcelline, 18 meses mais velha. Na

viragem do século era comum vestir os bebés pequenos com vestidos,

independentemente do seu sexo, no entanto, com Ernest, este hábito

prolongou-se até aos 2 anos de idade. Com o cabelo sucedeu o mesmo e

Ernest manteve um corte de menina muito para além da idade em que era

habitual. Grace convenceu-se de que haveria de criar Marcelline e Ernest

como se fossem gémeos do mesmo sexo. Colocou Marcelline na escola

com um ano de atraso precisamente para que pudessem andar ambos na

mesma turma. Leicester, o irmão de Hemingway, só viria a nascer quando

este já tinha quase 17, demasiado tarde para trazer equilíbrio para a balança

e tomar-se um aliado. Boa parte das angústias que atormentavam

Hemingway durante a noite, mesmo que ele próprio as atribuísse às suas

experiências de guerra, terão possivelmente aqui a sua origem e podem ser

interpretadas como uma espécie de asfixia psíquica. Sujeito à omnipotência

opressiva da mãe que, por um lado, o mimava como a uma menina, mas,

por outro, exigia que se tomasse um rapaz a sério, e rodeado de irmãs, o

jovem Ernest teve alguma dificuldade em desenvolver uma identidade

masculina normal. A este respeito, o escritor Anthony Burgess notou com

enorme perspicácia: «Até ao fim foi possível observar que, quando


Hemingway se encontrava na companhia de mulheres da sua própria

geração, encarnava instintivamente o papel do irmão provocador e mandão,

mas facilmente intimidável. Nas suas mulheres procurava igualmente as

características de camaradagem de uma irmã. Desejou muito ter uma filha,

mas tal não aconteceu, e acabou por preencher essa lacuna com a

companhia de mulheres bonitas como Ava Gardner e Ingrid Bergman». O

domínio feminino no lar do Dr. Hemingway pesava ainda mais quando o

pai praticamente se mudava para Wallon Lake durante os períodos de

férias. E também isso só durou até aos 11 anos de Ernest, após o que o Dr.

Hemingway se viu forçado a dedicar-se ainda mais à sua profissão para

conseguir um nível financeiro que permitisse manter o exigente estilo de

vida da sua esposa.

De uma forma geral, e apesar dos ressentimentos que Ernest viria a

desenvolver posteriormente e que o levariam mesmo a descrever a sua

infância como infeliz, há que admitir que Grace Hall Hemingway foi uma

mãe extremamente dominadora, mas também estimulante para os filhos.

Compôs muitas melodias no seu piano de madeira pau-rosa que se ouviam

cantar na residência dos Hemingway. A sua necessidade de ostentação

levou-a a abrir as portas de casa para a realização de eventos sociais,

contrabalançando assim a seriedade puritana do pai. Foi ela que conseguiu

que prazeres como a dança não fossem totalmente banidos. Apesar de todo
o rigor e do sentimentalismo devoto, Grace apoiou fervorosamente as

aptidões dos filhos e encorajou-os a seguir os seus sentimentos e desejos.

Sem qualquer sombra de dúvida, foi ao talento musical da mãe que

Hemingway foi buscar a sua sensibilidade ao ritmo, à melodia e ao som do

discurso, que viria mais tarde a encontrar perfeita expressão no seu estilo

conciso e reduzido ao essencial.


O ÚLTIMO BOM LUGAR

Na escola, Hemingway foi um estudante dotado e ambicioso, mas

perfeitamente normal, exceto no que tocava à sua prestação na disciplina de

Inglês. Gostava de desporto e era extremamente popular e estimado pelos

colegas. Como era demasiado pequeno para jogar futebol, o desporto mais

popular, acabou por se dedicar com grande sucesso ao tiro, apesar da sua

ametropia no olho esquerdo, uma deficiência física que herdou da mãe, mas

que viria mais tarde a atribuir a um ferimento durante um combate de boxe.

Aos 15 anos, o seu crescimento disparou repentinamente e Hemingway

alcançou a altura e o peso do pai. Dele herdou também a tendência para

engordar e transpirar abundantemente. Como modelo literário, o jovem

Ernest escolheu Ring Lardner, um jornalista muito admirado na época. No

entanto, seria exagerado cingir aos seus contributos para o jornal da escola

a sua posterior propensão para a literatura. Este tipo de contributos dos

alunos evidencia frequentemente uma tendência acentuada para fazer jogos

de palavras que demonstram, quanto muito, segurança no uso do discurso.

Para além da situação problemática entre os pais e das tensões edipianas

daí decorrentes, Hemingway e os irmãos desfrutaram de uma juventude

calma e sem dificuldades materiais. Todos os verões os Hemingway

viajavam para a sua casinha em Walloon Lake, que a mãe havia batizado
de «Windemere» por alusão incorreta ao lago inglês. Uma vez que não

havia fundões inesperados na enseada junto à qual a casa dos Hemingway

havia sido construída, as crianças podiam nadar e tomar banho em

segurança, tomando-se assim nadadores excecionais. Os pais de

Hemingway eram da opinião de que era mais importante passar longos

períodos de tempo em contacto com a Natureza do que passar o dia na

escola. Por isso, era frequente a família partir de férias antes de o ano letivo

terminar e só regressar a Oak Park em meados de setembro. As crianças

podiam levar consigo livros da biblioteca de casa e também tirar partido de

uma vida livre, que podiam moldar em regime de autonomia quase total.

Em muitos dos seus Contos de Nick Adams são recordadas as experiências

ali vividas por Hemingway, sozinho ou na companhia das irmãs, os

momentos de proximidade, de camaradagem, dos primeiros contactos com

os problemas da vida real.

«Nickie, acreditas em Deus? Não precisas de responder, se não

quiseres.»

«Não sei.»

«Oh, deixa lá. Não precisas de dizer. Mas não te importas que eu faça as

minhas orações à noite?»

«Eu até te vou lembrar de as fazeres, se por acaso te esqueceres.»


«Obrigado. E só que... este tipo de floresta toma-me horrivelmente

religioso.»

«E por isso que se constroem as catedrais como isto aqui.»

«Achas que podemos viajar para a Europa um dia e ir visitar catedrais?»

«Oh, claro que sim. Mas antes disso tenho de sair inteiro disto. E

aprender como é que se ganha dinheiro.»

«Queres dizer que queres ganhar dinheiro a escrever?»

«Se eu conseguir escrever o suficiente.»

(O Ultimo Bom Lugar, Contos de Nick Adams)

Sendo médico, mesmo em férias, o pai de Hemingway era

frequentemente chamado a visitar doentes. Era ele que cuidava, em

particular, dos lenhadores que trabalhavam no campo de lenhadores nas

proximidades da sua casa. As crianças designavam aquele espaço

simplesmente como acampamento índio, porque boa parte dos empregados

que ali trabalhavam a derrubar árvores e a remover a sua casca eram índios

pertencentes ao povo ojíbua. Foi aqui que Hemingway tomou contacto, de

uma forma subtil e quase banal, com a vida e a morte, a alegria e a dor lado

a lado, tal como se pode ler num dos seus contos mais famosos,

Acampamento índio, uma parábola magistral da passagem para a vida

adulta.
«O pai de Nick colocou a água no fogão e, enquanto esperava que

aquecesse, foi falando com o filho.

“Nick”, disse, “aquela mulher vai ter um filho.”

“Eu sei”, respondeu Nick.

“Tu não sabes nada”, disse o pai.

“Ai não?”, replicou Nick.

E nesse preciso momento a mulher soltou um grito.

“Oh papá, não lhe podes dar nada para que ela pare de gritar?”,

perguntou Nick.

“Não,” disse o pai, “não tenho nenhum anestésico para lhe dar. Mas os

gritos dela não são importantes. Nem sequer os ouço, porque não são

importantes.”

O marido, deitado no beliche de cima, virou-se para a parede. [...]

“Isto vai para o jornal de medicina, George”, disse, “uma cesariana com

uma faca de mato e uma sutura sobre quase três metros de intestino

revolvido.”

O tio George estava encostado à parede e fitava o seu braço. “Tu és um

grande homem, disso não há dúvidas”, disse. “Tenho de ir dar uma

olhadela ao pai orgulhoso. Normalmente são eles que sofrem mais nestas
ocasiõezitas”, disse o doutor. “E temos de admitir que este aqui não ajudou

grande coisa.”

Puxou a manta de cima da cabeça do índio. Sentiu a mão molhada. Subiu

para o canto da cama inferior do beliche com o candeeiro na mão e

espreitou. O índio ali estava com a cara virada para a parede. Tinha um

corte na garganta, de orelha a orelha. Tinha-se formado uma poça de

sangue no local onde o corpo estava pressionado contra a cama. A cabeça

descansava sobre o braço esquerdo. A navalha de barbear aberta repousava

entre as mantas com a lâmina virada para cima.»

[No Nosso Tempo, Contos de Nick Adams)

Os índios viviam com as suas famílias no campo de lenhadores e

algumas das mulheres trabalhavam para quem quer que lhes oferecesse

trabalho, davam assistência e tratavam da roupa. Nas obras de Hemingway,

as pessoas simples, em harmonia com a Natureza, ainda intocadas pelas

complexidades sociais da vida civilizada das cidades, viriam a ser

recorrentemente evocadas para representar a Humanidade mais direta e um

estilo de vida honesto e tangível. Ernest e as suas irmãs travaram muitas

amizades com os jovens índios. Ainda que os dados biográficos apontem

para o contrário, uma vez que alegadamente seria demasiado tímido para

tal, Hemingway viria a sugerir mais tarde que as suas primeiras

experiências sexuais tinham acontecido com raparigas ojíbuas. «Poder-se-


ia dizer que ela, sendo a primeira, fez o que nenhuma outra fez depois de si,

e poder-se-ia mencionar umas pernas morenas e robustas, um ventre liso,

pequenos seios firmes, um abraço forte, uma língua curiosa, os olhos

lânguidos, o delicioso sabor da sua boca, depois inquieto, apertado, doce,

húmido, maravilhoso, apertado, doloroso, pleno, definitivo, interminável,

que nunca termina, que nunca deveria terminar e subitamente terminou e o

grande pássaro voou para longe como uma coruja no crepúsculo, com a

diferença de que já tinha amanhecido nos bosques e havia uma agulha de

pinheiro colada à barriga. E é por isso que, quando se chega a um local

onde viveram índios, se consegue sentir o seu cheiro, mesmo que já lá não

esteja ninguém, e todas as garrafas vazias e imóveis e todas as moscas que

ali se reuniram não abafam o cheiro a junco e a fumo e a tantas outras

coisas, como a pele de uma marta acabada de tirar.» (Pais e Filhos, Winner

Takes Nothing) Aparte estes episódios, o jovem Hemingway mostrava-se

retraído em relação às raparigas. As colegas de escola recordam que era

extremamente simpático com elas, mas nenhuma recebeu dele qualquer

convite para sair durante os tempos de escola. Hemingway não saía para

dançar. Os pés grandes e os movimentos desajeitados toda a vida fizeram

dele o terror de qualquer senhora mais inclinada para a dança. Foi ao baile

de finalistas da escola secundária apenas porque a mãe insistiu e o seu par

foi a sua irmã Marcelline.


A GUERRA, O FERIMENTO E O PRIMEIRO AMOR

A 6 de abril de 1917, os EUA uniram-se aos Aliados e entraram na

guerra contra a Alemanha e as restantes forças da Tríplice Aliança. Ansioso

por escapar à monotonia de Oak Park, Hemingway, com 17 anos, decidiu

imediatamente alistar-se como voluntário. No entanto, com toda a sua

autoridade, o pai disse-lhe que ainda era muito novo e que, além disso, a

sua deficiência visual limitava a sua aptidão para o serviço militar. No

entanto, assim que concluiu os estudos na Oak Park and River Forest High

School, insistiu em levar a sua avante. A salvação foi Tyler Hemingway,

seu tio, que era amigo do editor-chefe do Kansas City Star, na época, um

dos seis jornais mais conceituados dos Estados Unidos. Em 1917, Kansas

City era uma cidade emergente, onde ainda pulsava o espirito do tempo dos

Pioneiros, onde a lei ainda se debatia para combater o crime, a prostituição

e a corrupção. Um terreno excitante para um jovem provinciano, portanto.

Os locais por onde Hemingway se movimentava eram a esquadra da

polícia, o hospital da cidade e a área em torno da estação ferroviária. Por 15

dólares por semana, tinha de escrever sobre tudo o que fosse digno de

menção. Para alinhar a sua escrita com o estilo daquele periódico, foi-lhe

entregue o guia de estilo Kansas Star: «Use frases curtas e faça introduções

breves, use uma linguagem forte, sem nunca se esquecer de manter a


fluidez da escrita. Seja positivo e não negativo.» Hemingway salientou

muitas vezes os sete meses em que trabalhou para o Star como tendo sido o

tempo em que efetivamente aprendeu o que precisava para a sua posterior

atividade enquanto escritor.

Para o jovem Hemingway, Kansas City representou o primeiro encontro

com a vida real tal como ela era para além do silêncio dos bosques do

Michigan, fora do ambiente controlado e excessivamente protetor da casa

paterna. Cheio de entusiasmo, escreveu à família: «As últimas duas

semanas têm sido de loucos. Não tenho parado um minuto. [...] Houve um

incêndio num grande celeiro e eu cheguei ao local ao mesmo tempo que os

bombeiros e ajudei a arrombar a porta e a levar as mangueiras para o

telhado. Foi fantástico. [...] Nesta última semana tenho andado a trabalhar

num artigo sobre um homicídio.» O chefe do departamento local em

exercício, C.G. Wellington, o superior direto de Hemingway, notou a sua

ambição no facto de preferir trabalhar com pessoas jovens e ainda

inexperientes e propagar o famoso estilo daquele periódico por todo o

território dos EUA do que trabalhar com repórteres já experientes. Nesta

fase, Hemingway aprendeu a usar um estilo simples e claro, onde a língua

funcionava como um instrumento técnico, mas, mais importante do que

isso, enquanto repórter local, esteve em contacto direto com a realidade.

Tinha de estar presente nos locais, ouvir como as pessoas falavam


realmente, confiar nas suas observações e registar a sua experiência

pessoal, traços esses que viriam a refletir-se nos seus diálogos e na sua

prosa. Além disso, Hemingway aprendeu a lidar com a própria imprensa,

com a sua dependência de notícias, bisbilhotices e escândalos. Sem estas

experiências em Kansas City e sem a sua atividade enquanto

correspondente de diversos jornais, seria praticamente impensável que

Hemingway conseguisse tão facilmente jogar com os media no sentido de

estilizar em torno de si o mito de homem de ação e de aventureiro.

No entanto, o trabalho de jornalista não era suficiente para o enérgico e

infatigável Hemingway. Estava feliz por ter escapado dos limites da

província e agora ansiava pelo mundo. Quando Ted Brumback, um dos

seus amigos, também jornalista e com problemas de visão ainda mais

graves do que os seus, regressou ao fim de quatro meses de serviço para o

American Field Service como condutor de ambulâncias, Hemingway viu aí

a sua oportunidade e apresentou-se voluntariamente como segundo tenente

honorário para a corporação de assistência médica da Cruz Vermelha norte-

americana. Para ocultar que não lhe era permitido combater com armas,

contou uma série de mentiras aos seus amigos no Kansas, entre as quais

ade que estaria comprometido com Mae Marsh, a estrela do filme O

Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith. Em maio de 1918, escreveu

com grande pompa aos pais: «Os nossos uniformes são iguais aos dos
oficiais do exército norte-americano e são fabulosos. Os recrutas e os

sargentos têm de nos fazer continência.»

A 21 de maio de 1918, Hemingway embarcou a bordo do Chicago em

direção a Bordéus e foi depois transferido para Milão, passando por Paris e

pelo Túnel de Mont-Cenis, com destino à frente austro-italiana.

Hemingway e os companheiros depararam-se com os horrores da guerra

logo desde o primeiro dia, quando uma fábrica de munições foi pelos ares e

tiveram de recolher os cadáveres dilacerados, na sua maioria mulheres.

Dois dias depois, foi levado juntamente com um grupo de 25 homens para

a frente em Schio, na região sul dos Alpes Dolomíticos, para transportar os

feridos italianos para fora da zona de combate. Quando vieram solicitar

voluntários para as cantinas por trás da frente de combate, Hemingway

apresentou-se e foi enviado para Fossalta di Piave. Foi aqui que

Hemingway viveu a experiência de guerra que passaria a ocupar

recorrentemente os seus pensamentos: o ferimento que quase lhe custou a

vida.

A tarefa de Hemingway era levar chocolate e cigarros aos atiradores nas

trincheiras. Pouco depois da meia-noite de 8 de julho, um projétil austríaco

rebentou junto de si e deixou muitos italianos feridos. No seu romance

Noutro País, Hemingway descreveu da seguinte forma o ocorrido: «Por

cima de todo aquele barulho, ouvi tossir e depois um tshu tshu tshu depois
as chamas irromperam como se a porta de uma fornalha tivessem

rebentado, e então ouviu-se um grito que começou por ser branco e depois

se tornou vermelho e que cresceu e cresceu até se transformar numa

tempestade violenta. Tentei respirar mas não consegui e senti que estava a

abandonar o meu corpo rapidamente, cada vez mais e mais longe do meu

corpo, e enquanto isso sentia o vento no meu corpo. Estava a fugir de mim

mesmo a toda a velocidade, todo o meu Eu, e sabia que estava morto e que

era errado pensar que se pode simplesmente morrer. Depois deixei-me

flutuar e, em vez de continuar aquela sensação, senti-me a regressar a mim.

Respirei fundo e ali estava eu outra vez. O chão estava completamente

devastado e diante da minha cabeça estava um pedaço de madeira

estilhaçado. Apesar de ter a cabeça a latejar, ouvi alguém chorar. Pensei

que estava alguém a gritar. Tentei mexer-me mas não consegui. Ouvia os

disparos das metralhadoras e das espingardas ao longo de todo o rio. Tudo

fervilhava. Vi chamas a deflagrar e bombas a rebentar. Tudo isso num

único instante e então ouvi alguém ao pé de mim dizer com uma voz

abafada: “Mamma mia! O mamma mia!” [...] Ergui o corpo para me sentar

e, nesse momento, senti qualquer coisa a mexer-se na minha cabeça, como

as pálpebras pesadas da cabeça de uma boneca, e então senti um golpe por

trás dos globos oculares. As minhas pernas e os meus pés estavam quentes

e molhados. Sabia que estava ferido. Inclinei-me para a frente e procurei o

joelho com a mão. O joelho não estava lá. A minha mão passou pelo
espaço vazio e encontrou o joelho mais abaixo, junto à canela. Limpei a

mão à camisa e entretanto uma nova onda de chamas começou a descer

lentamente sobre nós. Sob aquela luz, olhei para a minha perna e invadiu-

me um pânico atroz. Meu Deus, disse, ajuda-me!» (Noutro País)

Este grave ferimento teve consequências dramáticas para Ernest

Hemingway. Tal como muitos outros jovens, Hemingway tinha vivido até

então na ilusão da imortalidade. Este incidente fê-lo experimentar a

sensação da morte, ainda que apenas no seu subconsciente, e, depois disso,

entrou numa espécie de choque, do qual só viria a recuperar muito

lentamente, mesmo que não fizesse qualquer menção ao facto nas suas

cartas, que, pelo contrário, chegavam mesmo a assumir um tom

pretensioso: «O meu ferimento é bem capaz de ter causado uma pequena

revolução! Hoje recebi uma condecoração e isso levou-me a pensar que

talvez vocês não me tivessem dado o devido valor quando estava ai

convosco. Isto é quase tão bom como ser morto e ler o próprio elogio

fúnebre. Vocês já sabiam que se diz que esta guerra não tem nada para rir.

E é verdade. [...] de um só golpe, um dos meus camaradas ficou totalmente

estilhaçado até às orelhas. Literalmente.» O efeito de tudo isto acabou por

demorar ainda algum tempo a fazer-se sentir. Depois do terror da infância,

da opressão de uma mãe autoritária, surgia agora a consciência da

fragilidade e vulnerabilidade da existência humana, despertada pelo trauma


do seu ferimento e pelo reconhecimento de que escapou à morte por um

triz. Hemingway começou entretanto a ser atormentado por distúrbios de

sono.

Em Now I Lay Me, um conto escrito em 1927, Hemingway deu forma

aos medos que o afligiam durante a noite no corpo do seu alter ego Nick.

«Naquela noite estávamos deitados no chão do quarto e eu ouvia o barulho

dos bichos-da-seda a comer. Os bichos-da-seda comiam folhas de amoreira

nas cercas e, durante toda a noite, ouvia o seu som a comer e o som de algo

a cair nas folhas. Pela parte que me tocava, também não queria adormecer,

porque já há muito que vivia com a clara noção de que, se fechasse os

olhos no escuro e me deixasse ir, a minha alma abandonaria o meu corpo.

Já há muito que me sentia assim, desde a explosão naquela noite em que

me senti a abandonar o corpo e depois a regressar. (Meu Without Women)

E tal como Hemingway se afastava da sociedade humana, tida como

opressora, e se refugiava no seio da Natureza, também o seu herói Nick

encontra a paz na recordação do refugio e nas atividades que também o pai

de Hemingway usava para se refugiar da sua mulher: a pesca e a caça no

seio da Natureza selvagem dos lagos, riachos e das florestas do Michigan.

Hemingway passou cinco dias a recuperar do ferimento no hospital de

campanha, período durante o qual lhe retiraram 28 estilhaços da perna.

Depois disso, foi-lhe dada autorização de transferência e levaram-no para o


Ospedale Croce Rossa Americana na Via Alessandra Manzoni, em Milão.

Esteve ali internado por mais três meses, onde foi submetido a 12

operações e se apaixonou perdidamente pela enfermeira Agnes von

Kurowsky, uma beleza americana de cabelos negros, de Washington D.C.,

que também se tinha alistado como voluntária para prestar serviço na

Europa. Hemingway viria a explorar este amor, assim como as experiências

na frente de combate, uma década mais tarde em Noutro País, o seu

romance publicado em 1929, em que descreve o amor entre o jovem

soldado norte-americano Frederic Herny e a bela enfermeira Catherine

Barkley com frontalidade e, simultaneamente, com uma delicadeza poética,

características pouco comuns para a época. Estes contrariam efetivamente a

imagem que ele viria mais tarde a desenvolver de si próprio. «Quando ela

chegava, era como se tivesse regressado de uma viagem muito longa. De

muletas, percorria o caminho com ela e segurava-lhe as bacias e esperava à

porta ou então entrava com ela, o que dependia de quem se tratava, se eram

ou não nossos amigos, e depois de ela ter despachado o que tinha a fazer,

sentávamo-nos na varanda do meu quarto. Mais tarde, eu ia para a cama e,

depois de todos terem adormecido, quando ela tinha a certeza de que mais

ninguém a chamaria, vinha ter comigo. Adorava soltar-lhe o cabelo. Ela

sentava-se na cama e ficava sempre muito quieta, exceto quando se

inclinava subitamente para me beijar enquanto eu o fazia. E eu tirava-lhe os

ganchos e colocava-os sobre o lençol e o seu cabelo ia caindo e eu ficava a


observar como ela se mantinha muito quieta. Depois tirava-lhe os dois

últimos ganchos e todo o cabelo se soltava e então ela baixava a cabeça e

ficávamos ambos envolvidos nos seus cabelos, como se estivéssemos numa

tenda ou sob uma cascata.

Ela tinha um cabelo magnífico, maravilhoso e, por vezes, deixava-me

ficar deitado apenas a observá-la a prender o cabelo à luz que irrompia pela

porta aberta e ele brilhava na noite, tal como brilha a água às vezes antes de

chegar realmente a luz do dia. Tinha um rosto maravilhoso e um corpo

maravilhoso e uma pele suave e igualmente maravilhosa. Ficávamos

deitados lado a lado e eu ia-lhe acariciando o rosto, a testa, o contorno dos

olhos, o queixo e o pescoço com as pontas dos dedos. (Noutro País)

Agnes von Kurowsky reagiu com uma afeição reservada à adoração

deste homem belo e impetuoso, quase 10 anos mais novo, que tinha sido

promovido a primeiro-tenente e a quem tinha sido atribuída a Medaglia

d’Argento di Valore Militare (Medalha de Prata de Valor Militar) e a Croce

al Mérito di Guerra (Cruz de Mérito de Guerra). Certo é que ela o

considerava atraente, mas que, devido à diferença de idades, não queria

envolver-se mais intimamente com ele. Mesmo tendo Hemingway

regressado à América sem uma mulher a seu lado, tinha acabado por

descobrir algo bem diferente, ainda que nessa altura não lhe soubesse dar o

devido valor. A experiência da guerra em Itália, a paixão por Agnes e o


encontro com a cultura da velha Europa, que exercia sobre si um fascínio

maior do que a americana, foram os embriões dos grandes temas em tomo

dos quais viria a debruçar o seu pensamento literário no futuro o papel do

ser humano perante a crueldade e a falta de sentido da morte, assim como o

perigo e as complexidades do amor, de um tipo de amor em especial, cuja

impossibilidade e cujo fracasso viriam a surgir recorrentemente nos seus

romances e contos.

Em janeiro de 1919, regressou à pátria, a Oak Park, e foi recebido com

honras de herói e idolatrado pelas jovens. Durante algum tempo, viveu um

estado de entusiasmo e tirou partido de todas as atenções que lhe foram

dispensadas. No pátio das traseiras, encenou pequenas paradas e

impressionou os amigos com as suas granadas e armas. No entanto, por

detrás deste pathos teatral e de todos os exageros com que ia contando as

suas experiências, Hemingway estava insatisfeito. Depois da passagem pela

Europa, a América parecia-lhe um território ermo e aborrecido. Além disso,

não conseguia libertar-se das garras das fúrias da guerra. Durante meses só

conseguia dormir com a luz acesa. Vagueava errante com a sua pitoresca

capa de militar italiana e o seu uniforme feito por medida em Milão,

embebedava-se e não mostrava quaisquer sinais de querer procurar

emprego. «Nesta guerra não há heróis. Todos os heróis estão mortos»,

escreveu Hemingway em outubro a partir de Itália. «Morrer é muito fácil.


Estive frente a frente com a morte, por isso sei-o bem. Teria sido muito

fácil morrer. Na verdade, teria sido a coisa mais fácil que alguma vez teria

feito. [...] E teria sido tão melhor morrer naqueles tempos felizes enquanto

jovem ainda não desiludido, desaparecer num clarão de luz, do que velho,

fisicamente exausto e com as ilusões destruídas.» Sonhava com Agnes von

Kurowsky e escrevia-lhe todos os dias, mas ela tinha-se apaixonado

entretanto por um jovem aristocrata napolitano. Hemingway ficou

transtornado e amargurado. Num tom totalmente desesperado, escreveu em

março de 1919 ao seu camarada de guerra e amigo íntimo Bill Home: «Já

há algum tempo que desconfiava, desde que regressei, e esta manhã a carta

da Ag confirmou as minhas suspeitas. Ela não me ama, Bill. Ela voltou

atrás com tudo. Um “erro”. Um daqueles pequenos erros, sabes. [...]

Dormes com uma rapariga e depois vais-te embora. Ela precisa de alguém

com quem partilhar a cama. E quando aparece a pessoa certa, ficas a ver

navios. É assim que as coisas acontecem. [...] Eu amei a Ag, ela tornou-se o

meu ideal; e, Bill, eu deixei de lado a religião e tantas outras coisas porque

adorava a Ag. [...] Mas ela já não me ama, Bill, e vai casar em breve com

um homem cujo nome não conheço.»

Depois do choque que o fez tomar consciência da sua vulnerabilidade,

foi confrontado com a rejeição da mulher que amava.


Esta ferida assumiu uma proporção ainda maior porque Agnes von

Kurowsky foi o seu primeiro grande amor. À distância, fica-se com a ideia

de que esta rejeição deixou uma ferida mais profunda do que seria de

esperar num jovem em delírio apaixonado. O caso parecia ter atingido a sua

própria masculinidade. Nos seus posteriores casamentos, Hemingway

tentou evitar a humilhação do abandono quase em jeito de repetição

compulsiva, sendo que ele próprio se antecipava e tinha já uma nova

mulher debaixo de olho, mesmo estando ainda casado com outra. Era

frequente essa nova mulher ser amiga da anterior. Era como se Hemingway

sentisse necessidade de magoar as suas mulheres com uma regularidade

compulsiva, para que ele próprio não fosse magoado. A sua reação à

rejeição de Agnes von Kurowsky foi de uma fúria sombria e de fuga para

as florestas remotas do Michigan. Escreveu a um amigo o seguinte: «Ainda

não faço ideia do que vou fazer no próximo outono. Gostava que houvesse

uma guerra que resolvesse os meus problemas. Uma vez que não tenho de

trabalhar, não consigo decidir que diabo hei de fazer. A família quer

convencer-me a ir para a universidade, mas eu quero é regressar a Itália e ir

ao Japão e viver um ano em Paris e tantas outras coisas que não faço a

mínima ideia do que hei de fazer neste momento. [...] Durante a guerra era

tudo tão fácil porque só havia uma coisa para fazer. [...] Não podes vir

primeiro ao Norte [ao Michigan]? Em meados de junho já se consegue

fazer uma boa pescaria e nessa altura já temos bom tempo.»10


Embora com algumas interrupções, Hemingway permaneceu no

Michigan de julho a dezembro de 1919, onde ocupou o seu tempo com a

pesca, a leitura e a escrita. No entanto, ainda que tenha escrito dezenas de

contos e os tenha enviado para diversos jornais, estes eram-lhe devolvidos

com uma regularidade frustrante. A salvação chegou sob a forma de um

trabalho em Toronto, mais ou menos em regime de voluntariado.

Hemingway teria de ser uma espécie de babysitter do filho de uma família

abastada, portador de um ligeiro atraso mental e da sua idade. O que

efetivamente o atraiu para este emprego foi, contudo, a promessa de um

lugar no Toronto Star Weekly. Se em Kansas City, Hemingway tinha

aprendido o ofício de repórter, aqui tornar-se-ia um feature writer. Escrevia

sobre tudo: pesca da truta, as mulheres e o boxe, acampar, sobre como os

restos de coleções da moda seguiam para a província e sobre os níveis

crescentes de criminalidade em Chicago. Os seus artigos assumiam

frequentemente um tom satírico, independentemente de estar a denunciar

os oportunistas disfarçados de patriotas que lucravam com a guerra, a

ridicularizar o snobismo de determinados círculos sociais de Toronto ou a

contar que lhe tinham feito a barba gratuitamente numa escola de

cabeleireiros. «Alguns cidadãos da república nossa vizinha a sul costumam

referir-se modestamente ao seu Estado como “a terra da liberdade e a pátria

dos corajosos”. Até pode ser que sejam corajosos, mas ali nada é livre. [...]
A única pátria dos livres e dos corajosos é a escola de cabeleireiros. Ali

tudo é livre. E também é preciso ter coragem Se quiser poupar 5 dólares e

60 por mês no barbeiro e no cabeleireiro, então vá à escola de cabeleireiros.

No entanto, cerre bem os dentes, que uma visita àquela empresa exige todo

o sangue-frio de um homem que se encaminha para a morte de olhos bem

abertos. Se não acredita, vá agora ao departamento de iniciação e

voluntarie-se para que lhe façam a barba gratuitamente. Eu já o fiz.»

(Taking a Chance for a Free Shave) E os exercícios de estilo de

Hemingway agradaram. Pela primeira vez, o seu nome aparecia impresso à

cabeça de um artigo, o que o fez sentir-se um escritor profissional, ainda

que o salário fosse uma miséria.

Os pais de Ernest Hemingway, contudo, estavam tudo menos encantados

com um filho que, do seu ponto de vista, vadiava e continuava a depender

financeiramente deles em vez de tirar um curso. A sua relação com Grace,

em especial, estava a deteriorar-se rapidamente. O conflito, apenas latente

na fase da sua infância, com a mulher que violentou psicologicamente o

pai, chegava agora a um ponto de rutura, sendo que se recusava

simplesmente a respeitá-la e a provocava com desprezo, a tal ponto que ela

quase acabou por expulsá-lo de casa. «Meu filho Ernest, volta a ser o que

eras, acaba com essa vida de vadiagem e de hedonismo. Quando pedes

alguma coisa emprestada, não perdes tempo sequer a pensar que tens de o
devolver. Acaba com isso de andares a depender de toda a gente, acaba

com isso de fazer uso da tua cara bonita para impressionar jovens crédulas

e para de descurar os teus deveres para com Deus e o teu salvador Jesus

Cristo. Por outras palavras, faz-te homem, caso contrário, a única coisa que

te espera é a bancarrota. A tua conta está a descoberto, precisa de depósitos

novos e, entretanto, de um interesse genuíno, sob a forma de gratidão e

reconhecimento, nas ideias e nos assuntos da tua mãe, pequenas compras

para a casa, a ânsia de que aceites os pequenos preconceitos maternos, que

não lhe perturbes a paz, que lhe ofereças flores, bombons ou alguma peça

de roupa, alguma coisa que chegue a casa acompanhada de um beijo e um

abraço, um interesse genuíno por ouvi-la cantar ou tocar piano ou ouvir

contar as suas histórias preferidas o pagamento das contas em segredo,

apenas para não sobrecarregar a mãe. Este mundo, que é o teu, clama por

homens, homens de verdade, com fibra tanto moral como psicológica, cujas

mães possam olhá-los com orgulho, em vez de baixar a cabeça com

vergonha de os terem dado à luz. A pureza no discurso e na vida são

valores que te foram ensinados em criança. Tu pertences a uma linha de

cavalheiros, de homens que desprezam a ideia de retirar o que quer que seja

a alguém sem retribuir algo de igual valor. Homens que se exprimem com

cuidado e são cavalheiros, gratos e generosos para com as mulheres. Tu

recebeste os nomes dos dois homens mais nobres e requintados que eu

alguma vez conheci. Vê se não desonras a sua memória. Não voltes


enquanto não tiveres aprendido a não ofender e envergonhar a tua mãe.

Quando tiveres alterado as tuas perspetivas e os teus objetivos de vida, lá

estará para te receber de braços abertos, seja neste mundo ou no outro, esta

tua mãe que te ama e que procura o teu amor. Que o Senhor olhe por mim e

por ti enquanto estivermos afastados um do outro. Da tua mãe, que nunca

deixa de esperar nem de orar, Grace Hall». A relação de Hemingway com a

mãe estaria sempre repleta de tensão, ainda que ele lhe tenha continuado a

escrever com regularidade e que ela mais tarde também o tenha ajudado

financeiramente. Quando uma vez lhe perguntaram porque é que escreveu

tão pouco sobre a América,


«CONHECES-ME BEM DE MAIS»: HADLEY RICHARDSON

No outono de 1920, Hemingway despediu-se de Toronto e seguiu

caminho para Chicago. Depois de algumas dificuldades iniciais, conseguiu

uma vaga como repórter de investigação criminal no Chicago Tribune, até

que finalmente surgiu um cargo na redação de uma publicação mensal

pertencente a um especulador financeiro. Na verdade, Hemingway tinha de

escrever grande parte dos artigos totalmente sozinho, mas aquele emprego

deixava-lhe, ainda assim, tempo suficiente para os seus trabalhos literários

e, mais importante do que isso, começou a ter contacto com pessoas que

partilhavam as suas ideias literárias. Naquela época, Chicago era o núcleo

de um novo realismo literário que estava associado a nomes como

Theodore Dreiser, Sinclair Lewis, Vachel Lindsay e Cari Sandburg. Um

amigo de Hemingway havia alugado um apartamento na 63 East Division

Street, pertencente a uma mecenas de arte que estava na Europa há bastante

tempo, e colocou os quartos não utilizados à disposição dos amigos, entre

os quais o próprio Hemingway. Em The Club, o termo que usavam para

referir-se ao apartamento, discutia-se com entusiasmo sobre as mais

recentes teorias artísticas e conversava-se sobre a natureza e os objetivos da

literatura moderna. «O leitor tem de conseguir ver, sentir, cheirar e ouvir o

que um escritor pretende publicar», declarava Hemingway13, opinião


apoiada por Sherwood Anderson quando este se juntou ao grupo.

Anderson, cuja coletânea de contos Winesburg, Okio tinha acabado de ser

publicada e que era considerado fundador da Escola de Chicago, com o seu

estilo de escrita claro e quase puramente realista, tomou-se impulsionador e

amigo de Hemingway e viria a exercer uma influência profunda sobre o seu

estilo de escrita. Em Oak Park, Hemingway tinha lido sobretudo literatura

britânica Scott, Dickens, Defoe, Kipling. Anderson despertou a sua atenção

para a existência de escritores americanos como Walt Whitman, Mark

Twain, assim como de autores contemporâneos como Dreiser, Floyd Dell

ou H.L. Mencken, que se podiam equiparar aos heróis britânicos de Grace

Hall Hemingway.

Na esfera privada também estava prestes a acontecer algo decisivo. No

outono de 1920, uma jovem de St. Louis, Missouri, chegava a Chicago para

visitar uma amiga. O seu nome era Hadley Richardson, tinha 29 anos,

cabelos castanhos e um porte alto e gracioso. Os seus bens valiam-lhe um

rendimento de 3mil dólares por ano. Hadley e Hemingway conheceram-se

numa festa e apaixonaram-se um pelo outro, ainda que inicialmente

nenhum dos dois o tenha demonstrado. Quando Hadley, ao despedir-se, se

atreveu a segredar a Hemingway que tinha a sensação de o conhecer desde

sempre, Hemingway replicou com a seguinte observação cortante:

«Conheces-me bem de mais», e deixou que ela regressasse a St. Louis. No


entanto, em dezembro o seu discurso já era outro: «Amo-te para sempre.

Quando tenho de acordar e de me levantar de manhã e o sol me tolda a

vista, olho para a tua fotografia e penso em ti. E essa é uma hora do dia em

que sentimos tudo com maior intensidade, funcionando portanto como um

bom teste para saber se se ama alguém. A noite então é quase

insuportável.» A 3 de setembro de 1921, Elizabeth Hadley Richardson e

Ernest Miller Hemingway, oito anos mais novo, casavam-se na igreja da

aldeia de Horton Bay no Michigan, ao que se seguiu a lua de mel na

residência de verão da família.

A 16 de janeiro de 1919, o Congresso norte-americano aprovou uma lei

que proibia a produção, o armazenamento e a comercialização de álcool.

Um ano mais tarde, a Lei Seca entrava em vigor, surtindo um efeito

totalmente oposto ao pretendido. As grandes cidades do leste norte-

americano, Nova Iorque, Chicago, Boston, Filadélfia foram assoladas por

uma vaga nunca antes vista de atividades ilegais. Era um segredo às claras

que os gangsters estavam a fazer fortuna com negócios de tabernas ilegais,

jogos de azar e prostituição. Independentemente de terem sido ou não

subornadas, as autoridades estatais mostraram-se incapazes de fazer frente

ao crime organizado. Já em 1906, Upton Sinclair havia denunciado as

gratificações recebidas pelas autoridades corruptas e pela sociedade

alegadamente decente no seu romance A Selva, em que eram descritas as


condições desumanas e a exploração por parte de empregadores sem

escrúpulos nos matadouros de Chicago. Meia década mais tarde,

continuava tudo praticamente na mesma. Vivia-se uma era de materialismo

extremo e de hipocrisia puritana que se recusava a admitir a realidade. Os

heróis daquela época eram os maratonistas de dança e os gangsters. Em

pouco tempo, criminosos sem escrúpulos como Al Capone começaram a

assumir o controlo da cidade. Chicago não era definitivamente o local que

Hadley havia imaginado para constituir família. De qualquer forma,

Hemingway também não estava feliz com a sua vida na cidade.

Comprovou que a publicação para a qual trabalhava era dirigida por um

impostor e explorador sem escrúpulos, além do que, após o seu contacto

com a Europa, incomodava-o a atmosfera de Chicago, que lhe parecia

provinciana e pouco artística.

Quando Sherwood Anderson regressou em novembro da sua primeira

visita a Paris e partilhou cheio de entusiasmo as suas impressões sobre a

liberdade e a atmosfera artisticamente estimulante daquela metrópole

europeia, a decisão de Hadley e Ernest tomou-se definitiva: iriam para a

Europa. Em Toronto, Hemingway convenceu o editor responsável do

Toronto Star a atribuir-lhe a cobertura das reportagens europeias.

Trabalharia como correspondente freelance sem um salário fixo, mas com

uma remuneração regular por cada contribuição publicada e mediante a


cobertura das suas despesas. Os temas de escrita e o local onde viveria

ficavam por sua conta. Graças à desvalorização do franco em relação ao

dólar, de acordo com os cálculos de Hemingway, Hadley e ele

conseguiriam fazer uma vida francamente confortável, mesmo com um

rendimento modesto.
PARIS É UMA FESTA

Em dezembro de 1921, Ernest e Hadley embarcaram no Leopoldina com

destino a França. Na bagagem, Hemingway levava uma série de cartas de

recomendação, entre as quais estavam algumas endereçadas a Gertrude

Stein, Ezra Pound e Lewis Galantière, da Câmara de Comércio

Internacional de Paris. Stein, uma americana abastada de origem judaico-

alemã também com aspirações literárias, vivia na capital francesa desde

1903. No entanto, a sua relevância para a história da literatura passou

sobretudo pelo seu papel de apoio aos jovens aspirantes a artistas e poetas

que se encontravam no seu salão do número 27 da rue des Fleuras. Foi por

intermédio de Stein que Hemingway conheceu a vanguarda do modernismo

europeu e americano: Jean Cocteau, James Joyce, Janet Flanner, Ezra

Pound, Malcolm Cowley, Archibald McLeish, John Dos Passos, F. Scott

Fitzgerald, os pintores Pablo Picasso, Juan Gris, André Masson e Joan

Miró. Foi também Gertrude Stein que cunhou a expressão «geração

perdida» para referir os jovens artistas que participavam nesses encontros

que ela organizava. Tal como Hemingway viria a relatar em Paris É Uma

Festa, Stein esbarrou com a dita expressão na oficina onde havia deixado o

seu Ford T a arranjar, quando o chefe da oficina se exaltou com um dos

seus mecânicos e, furioso, o designou a ele e aos seus joviais amigos como
sendo uma génération perdue. No entanto, Stein usava a referida expressão

para se referir aos boémios hedonistas que se reuniam nos cafés de

Montparnasse, como o Rotonde, o Deux Magots, entre outros, e que se

deixavam vaguear sem ramo nos tempos do pós-guerra.

No caso de Hemingway, contudo, numa fase inicial, não se notaram

vestígios dessa sensação de perdição. Pelo contrário, os relatos enviados

para Toronto eram marcados por um pretensiosismo mundano: «Decantou-

se Greenwich Village em Nova Iorque e a parcela mais espessa foi

despejada em Paris, nos arredores do café Rotonde. [...] Aqui é possível

encontrar tudo o que se possa imaginar, menos artistas verdadeiros»

(American Bohemians in Paris, The First Forty Nine Stories). Hemingway

tinha um único objetivo em mente: escrever, escrever e escrever.

No grupo de Stein, tomou contacto com a pintura impressionista e

cubista, já que Leo Stein, irmão de Gertrude, era um colecionador de arte

bastante entendido na matéria. Nas paredes do seu apartamento e no da

irmã encontravam-se obras de Picasso, Matisse, Cézanne, Braque.

Hemingway ficou impressionado. Afirmava que queria escrever tal como

Cézanne pintava, de modo tão minimalista, lúcido e, no entanto, captando o

essencial.

Gertrude Stein e Ezra Pound, que viria a ser outro mentor e amigo íntimo

de Hemingway, até que as suas tendências fascistas e antissemitas tomaram


a sua amizade impossível, ensinaram-lhe a arte da omissão. «Emest, este

conto tem demasiadas observações, e observações não são literatura»,

foram estas as palavras que Gertrude proferiu quando lhe devolveu um dos

seus trabalhos. De uma forma geral, as suas críticas eram genéricas, mas

construtivas e frequentemente pungentes. Ezra Pound, pelo contrário, lia

todos os contos de Hemingway e devolvia-os acompanhados de anotações

pormenorizadas e propostas práticas para melhorias. Como forma de

agradecimento, recebeu aulas de boxe. Na verdade, parece que

praticamente todos os amigos de Hemingway viriam, mais cedo ou mais

tarde, a ser convidados para o boxe durante a sua estada em Paris, à

exceção das mulheres, dos amigos menos desportistas, como Ford Madox

Ford, e daqueles que tinham problemas graves de visão, como James Joyce.

O trauma da infância não dava tréguas a Hemingway: queria, tinha de ser,

um homem a sério e não um intelectual efeminado. Adotou uma aparência

exterior proletária, usava boinas e roupa grosseira, tudo para se destacar da

postura chique que vigorava no ambiente dos cafés e dos boémios literatos

americanos. A escrita era trabalho e não provocação, como a encaravam os

dadaístas ou os surrealistas. «Tudo o que tens de fazer é escrever uma frase

verdadeira», seria o seu posterior julgamento a respeito destes tempos.

«Escreve a frase mais verdadeira que souberes. E por fim escrevi uma frase

verdadeira e a partir daí continuei. Naquela altura era fácil, porque havia

sempre uma frase verdadeira que eu já sabia ou que tinha lido ou ouvido
alguém proferir. [...] Se eu tivesse trabalhado bem e para isso era preciso

sorte e disciplina a sensação era incrível: era só descer as escadas e estava

livre e podia ir vaguear por onde me apetecesse em Paris.» (Paris É Uma

Festa)

Em Chicago, Anderson havia aproximado Hemingway da literatura

americana. Agora, Hemingway começava a descobrir a literatura europeia:

«Pedia emprestados livros da Shakespeare and Company, que era a

biblioteca e livraria de Sylvia Beach na rue de L’Odeon 12. Numa rua fria e

fustigada pelas tempestades, aquele era um lugar quente e aconchegado no

inverno, com um grande fogão de sala, mesas e estantes cheias de livros,

com novidades na montra e fotografias de escritores famosos, mortos e

vivos, penduradas na parede. [...] Comecei com Turgueniev e peguei nos

dois volumes de Cadernos de Um Caçador e um dos primeiros livros de

D.H. Lawrence creio que era o Filhos e Amantes -, e a Sylvia disse-me que

podia levar mais livros se quisesse. Escolhi a edição de Constance

Gamettsche de Guerra e Paz e O Jogador e Outros Contos de Dostoievski.»

(Paris É Uma Festa) Foi também Anderson que ajudou Hemingway a

conseguir a sua primeira publicação literária, uma fábula satírica e quatro

versos na revista literária Double Dealer editada em Nova Orleães. Mais

tarde, em 1923, surgiria o seu primeiro sucesso: apareceram trabalhos de

Hemingway na revista Little Review, cuja editora era a mulher de


Anderson, Margaret, em parceria como Jane Heap, assim como na revista

Poetry, de Harriet Monroe. A revista vanguardista de Berlim, Der

Querschnitt, aceitou também trabalhos seus. Para além disso, Hemingway

entrou em contacto com cavalheiros editores e mecenas como Harry

Crosby, Robert McAlmon ou William Bird, que publicavam edições de

qualidade com tiragens reduzidas. Em agosto de 1923, pouco depois do 24°

aniversário de Hemingway, McAlmon publicou Três Histórias e Dez

Poemas, com uma tiragem de 300 exemplares. Quatro meses mais tarde,

Bird colocou no prelo no nosso tempo (in our time, com o titulo em

minúsculas), a primeira coletânea de contos e estudos de Hemingway,

numa edição de 170 exemplares que viria a ser depois ampliada e publicada

pela Boni & Liveright em 1925, com o título já em maiúsculas.

No entanto, as primeiras publicações valeram a Hemingway mais fama

do que fortuna. Na verdade, Gertrude Stein chegou a aconselhá-lo a

abandonar o jornalismo, mas a Europa encontrava-se em tumulto e os

editores do Toronto Star relembraram a Hemingway o motivo pelo qual

estava naquele continente. Em Itália, Mussolini marchava em direção a

Roma, Kemal Atatürk estava a expulsar os gregos da Ásia Menor e, em

janeiro de 1923, a França invadiu as manchetes dos jornais com a ocupação

da região do Ruhr. Hemingway esteve presente em praticamente todos os

grandes acontecimentos da política europeia, mesmo que com uma dose


generosa de ingenuidade política foi assim que, enquanto cobria a

Conferência Económica de Génova, lhe escapou a relevância do encontro

entre a Alemanha e a União Soviética, substancialmente mais importante,

que estava a decorrer em simultâneo em Rapallo, apenas a 25 quilómetros

de distância. Ainda assim, com uma elegância sagaz, Hemingway ia

expondo o «namoro» dos políticos e estadistas daquele tempo nos seus

artigos para o Star. Eis o seu comentário pleno de humor cáustico

relativamente à Conferência de Génova: «No átrio está tanto barulho que

parece que estamos numa festa. A galeria para a imprensa está cheia. Só há

200 lugares aqui. Sendo que há 750 pedidos de acreditação, alguns dos que

chegaram mais tarde estão sentados no chão. Já o átrio estava quase cheio

quando apareceram os ingleses. Vieram de carro, passaram pelas formações

de soldados e irromperam agora cheios de energia. São a delegação mais

bem vestida. Sir Charles Blair Gordon, o chefe da delegação canadiana,

tem a cara vermelha, é loiro e não se está a sentir muito bem. O seu lugar

fica quatro cadeiras à esquerda do de Lloyd George. Walter Rathenau tem

cara de cientista e a cabeça mais calva de toda a conferência. Apareceu

juntamente com o Dr. Wirth, o chanceler alemão, que tem ar de quem

tocou tuba numa banda militar alemã.» (Geneva Conference, The First

Forty Nine Stories)


Hemingway troçou de Mussolini com prazer, dizendo cinicamente que

este era o maior bluff da Europa, mas, ao mesmo tempo, alertou para o

surgimento do fascismo em Itália numa época em que as potências

europeias ainda o ignoravam, considerando-o um movimento inofensivo.

Dirigiu-se a seguir para a Macedónia, onde a população civil grega tentava

escapar dos turcos e aí presenciou episódios como nunca tinha visto, nem

mesmo na frente italiana na Primeira Guerra Mundial. Do ponto de vista

jornalístico, a concisão e a clareza realista dessas primeiras reportagens de

Hemingway continuaram inigualáveis. «ADRIANÓPOLIS As ruas da

Macedónia estão bloqueadas por procissões intermináveis e confusas de

cidadãos cristãos do leste da Trácia. O grupo principal, que passa sobre o

Maritsa em Adrianópolis, tem 35 quilómetros de comprimento. Trinta e

cinco quilómetros de carroças, puxadas por vacas, bois, búfalos de água

cobertos de lama, e homens, mulheres e crianças vão caminhando

vacilantes com os seus pertences sob a chuva, com mantas sobre as

cabeças, cegos, esgotados. O terreno plano permite que a coluna principal

se tome ainda mais longa. Não sabem para onde vão. Deixaram as suas

quintas e aldeias e os seus campos maduros quando ouviram dizer que os

turcos estavam a caminho e juntaram-se a esta grande diáspora. Agora, a

única coisa que lhes resta fazer é acompanhar o ritmo desta procissão

horrenda que será vergastada pela cavalaria grega como uma manada pelos

batedores que a perseguem.


É uma procissão silenciosa. Não se ouve um único queixume. Tudo o

que podem fazer é continuar em marcha. As suas roupas de camponeses

estão molhadas e imundas de lama. Veem-se galinhas penduradas pelas

patas nas carroças. Os vitelos cheiram os bois de carga sempre que a

marcha para. Um velho inclina-se sob o peso de um leitão, uma espingarda

e uma foice com uma galinha pendurada. Um homem estende uma manta

sobre a sua mulher, deitada na carroça, em trabalho de parto, para a

proteger da chuva. Ela é a única pessoa que emite algum som. A sua filha

pequena observa-a horrorizada e começa a chorar. E a procissão avança.»

(A Silent, Ghastly Procession, The First Forty Nine Stories) Em

reportagens como esta, cujo modelo óbvio eram os Desastres da Guerra, de

Goya, Hemingway encontrou um campo de experimentação para

aperfeiçoar a sua dição especial, o discurso indireto, os cortes repentinos,

que, apenas quatro anos mais tarde, viriam a refletir-se de modo

inconfundível e determinado no seu romance Fiesta.

Igualmente interessante é o modo como Hemingway abreviou boa parte

das suas reportagens daquele tempo para o Toronto Star para as publicar

enquanto esboços nos volumes de No Nosso Tempo. Ai, a tragédia dos

fugitivos da Trácia é descrita da seguinte forma: «No caminho, ao longo

dos terrenos lamacentos, os minaretes de Adrianópolis sobressaíam por

entre a chuva. A 30 milhas de distância, as carroças ficavam atoladas na


estrada para Karagatsch. Búfalos de água e bois puxavam carroças pela

lama, sem princípio nem fim. Nada mais do que carroças com tudo o que

possuíam. Mulheres e velhos ensopados andavam errantes e iam tocando o

gado. As águas amarelas do Maritsa chegavam quase à altura da ponte. As

carroças ficavam presas na ponte e os camelos tinham de ir passando nos

espaços entre elas. A cavalaria grega impelia a procissão a avançar. Nas

carroças, mulheres e crianças misturavam-se com colchões, espelhos,

máquinas de costura e trouxas. Uma mulher dava à luz enquanto uma

menina estendia uma manta sobre ela e chorava. Horrorizada com pavor de

olhar. Choveu sempre enquanto durou a fuga. («II», No Nosso Tempo)

Nesta versão, a maior parte dos adjetivos do texto original foi eliminada e

os eventos foram comprimidos e reduzidos ao essencial. O apelo direto aos

sentimentos do leitor na versão para o jornal deu lugar à descrição objetiva

das impressões transmitidas pelos sentidos, que revelam ainda de forma

mais acentuada ao leitor os sentimentos do próprio Hemingway. Aqui

também se destaca claramente o minimalismo discursivo que viria a marcar

inconfundivelmente a forma e o estilo dos contos de Hemingway, aquela

economia discursiva que se assemelha ao estilo telegráfico típico dos

correspondentes, em que eram eliminadas todas as palavras supérfluas para

poupar no preço do telegrama.


Ao mesmo tempo, esta é uma advertência para o cuidado que os

biógrafos devem ter para não misturarem as reportagens de Hemingway e a

sua vida. Efetivamente, desde os estudos de Sigmund Freud que não restam

dúvidas de que qualquer obra literária é uma forma de autoterapia que

reflete sempre conflitos, desejos e medos inconscientes do autor, remetendo

portanto diretamente para o mesmo. O modo como isso acontece, no

entanto, faz parte de um processo altamente complexo, no qual o trabalho

consciente se coloca recorrentemente diante do material biográfico

inconsciente. O próprio Hemingway salientou repetidas vezes que a sua

obra era biográfica. Assim, sublinhou o papel do inconsciente na escrita,

comparando a obra literária com a ponta de um icebergue, que apenas tem

1/8 do seu volume total acima do nível da água. Em 1934, comentou com o

escritor Irving Stone que nos seus trabalhos não havia nada de imaginação

livre, que os seus romances deveriam ser designados muito mais como

«romances biográficos» do que como romances ficcionais, uma vez que

tinham sido criados a partir de «experiências vividas». No entanto, tal deve

ser também encarado como parte da criação da lenda e automitificação

fervorosamente alimentadas por Hemingway em relação a si próprio, da

mesma forma que se deve ter em conta que, na sua obra, se nota uma

tendência para o desdobramento em «eus» parciais, cada um deles

evidenciando diferentes aspetos de um problema ou comportamento.


O desejo de Ernest Hemingway de conseguir conjugar, de forma

produtiva, o jornalismo e a escrita literária em Paris acabou por não se

concretizar. Aquilo que recebia pelos seus relatos permitia cobrir ajusta os

custos de vida mais essenciais para si e Hadley. Entretanto ocorreu um

novo contratempo. Quando Hadley tentava ir para Lausana, onde

Hemingway estava a fazer a cobertura da conferência internacional que

deveria pôr fim ao conflito entre turcos e gregos, foi-lhe roubada uma mala

na Gare de Lyon, onde se encontrava um romance começado e os

manuscritos de quase todos os contos escritos por Hemingway nos últimos

anos. No verão de 1923, Hadley deu-lhe uma boa nova: estava grávida.

Hemingway, no entanto, achava que ainda era muito novo para ser pai e

incapaz de sustentar devidamente uma família. O casal decidiu regressar à

América, onde Hemingway esperava encontrar melhores condições

salariais. O seu plano era trabalhar intensivamente para diversos jornais

durante um ano e ganhar dinheiro suficiente para poder abandonar o

jornalismo e fixar-se em Paris como escritor independente. Além disso, o

seu filho deveria nascer em território americano.

O plano foi bem-sucedido, embora não nos EUA e sim na cidade

canadiana de Toronto. O que é certo é que ao fim de cinco meses, a 29 de

janeiro de 1924, Hadley e Ernest estavam de regresso a Paris e, com eles,

estava agora John Hadley Nicanor Hemingway, com apenas 12 semanas de


vida, que mais tarde viria a ser conhecido como «Bumby». O nome

Nicanor foi escolhido na sequência de uma estada de Hemingway em

Espanha no verão, mais propriamente em Madrid, onde assistiu à sua

primeira corrida de touros com o famoso matador Nicanor Villalta. Em

julho, por recomendação de Gertrude Stein, rumou novamente a Pamplona

para a Fiesta de San Fermín. irrompia assim o fascínio de Hemingway pela

tourada. A jovem família encontrou um apartamento no número 113 da rue

Notre-Dame-des-Champs, por cima de um armazém de madeira e de uma

serração. No entanto, a sua situação financeira continuava a ser pouco

confortável e Hemingway tinha de continuar a trabalhar intensamente. Nem

mesmo a oferta do cargo de editor-adjunto da transatlantic review, fundada

em 1923 pelo reputado poeta e romancista britânico Ford Madox Ford, lhe

trouxe o alívio necessário. De qualquer forma, Hemingway tinha

conseguido o que pretendia: pertencia agora à vanguarda literária do seu

tempo. Pôde retribuir a Gertrude Stein parte do favor que lhe devia,

nomeadamente publicando por episódios a sua obra The Making of

Americans na transatlantic review. Embora esta revista tivesse por objetivo

espelhar a vanguarda internacional, Hemingway acabou por torná-la porta-

voz dos modernistas americanos. Nesta publicou também trabalhos da sua

autoria. Na rubrica Work in Progress publicou o romance que James Joyce

escreveu por etapas, Finnegans Wake, assim como o seu próprio conto,

Acampamento índio.
Hemingway ainda mal tinha subido o primeiro degrau da escada para o

sucesso quando se começou a aperceber nele um revés, sobre o qual amigos

e benfeitores o viriam a questionar recorrentemente ao longo de toda a

vida, além do facto de que acabaria por levar ao seu afastamento da

transatlantic review e de Ford Madox Ford. Hemingway começou a mostrar

uma tendência para se afastar feroz e abruptamente de todos, para deixar

que amizades se tornassem inimizades. Sherwood Anderson foi o primeiro

a notar esse carácter malicioso do seu protegido, que remete para a elevada

vulnerabilidade narcisista de Hemingway, o seu medo de se tornar

dependente e, consequentemente, vulnerável. Foi em 1925 que se iniciou

esta rutura já há muito prevista. Anderson tinha convencido a Boni &

Liveright, a editora que publicava os seus trabalhos, a publicar os contos de

Hemingway de in our time, juntamente com algumas miniaturas que

serviam de contraponto para ilustrar o ambiente da época dos contos, assim

como dez outros contos, entre os quais o Acampamento índio e O Grande

Rio de Dois Corações. Com isto, a editora tencionava assegurar a opção de

publicação dos próximos três livros de Hemingway. Este aceitou a proposta

de imediato. No entanto, quase em simultâneo, o crítico literário americano

Edmund Wilson mostrou a F. Scott Fitzgerald as duas edições parisienses

de Hemingway. Cheio de entusiasmo pelo que tinha visto, Fitzgerald, que

já havia chamado a si o foco das atenções graças ao romance O Grande

Gatsby, recomendou Hemingway ao seu amigo Max Perkins, editor da


prestigiada editora norte-americana Charles Scribner’s Sons. Subitamente,

Hemingway tinha despertado o interesse de duas editoras. Em vez de

entregar à Boni & Liveright o seu primeiro romance, Fiesta, que estava

praticamente concluído e que só precisava de ser revisto uma vez,

Hemingway escreveu no espaço de oito semanas uma pouco velada paródia

a Anderson, em que também troçava de Gertrude Stein e a que deu o nome

de Torrentes de Primavera, nome muito semelhante à obra de Turgueniev,

Águas de Primavera. Estava finalmente lançada a controvérsia que levou às

sucessivas comparações do seu estilo com o de Anderson. Sendo editora de

Anderson, a Boni & Liveright recusou o trabalho. A Charles Scribner’s

Sons, pelo contrário, aceitou assegurar os direitos de Fiesta. Na esfera

privada, Hemingway tinha acabado por perder a amizade de Sherwood

Anderson e de Gertrude Stein, mas havia ganho a de Scott Fitzgerald, com

quem viria em breve a encetar uma amizade complicada, mas duradoura:

«Vi-o poucas vezes sóbrio, mas quando o estava, era agradável, estava

sempre a dizer piadas e por vezes até gozava consigo próprio. Mas, quando

estava bêbado, quase parecia que lhe dava prazer perturbar o meu trabalho,

tal como Zelda perturbava o dele. Isto durou anos e anos, mas durante anos

e anos também não tive outro amigo mais leal do que o Scott, quando

estava sóbrio.» (Paris É Uma Festa)


«O TRUQUE MAIS ANTIGO DO MUNDO»: PAULINE PFEIFFER

O casamento dos Fitzgerald ficou marcado por traições e por consumo

excessivo de álcool, mas ainda assim subsistiu. No caso de Hemingway,

pelo contrário, começaram a formar-se nuvens a ensombrar a sua relação.

Em março de 1924, Hemingway escreveu a Ezra Pound, resignado:

«Pusemos a nossa vida à prova com um bebé etc. Hadley está de cama há

já algum tempo, eu por uns dias, o bebé chora etc. Tentei escrever mas não

consigo. Tenho escrito uns contos, aqui e ali, em cafés.» A relativa pobreza

em que viviam começou a pesar na relação de Hadley e Emest. A pequena

herança de Hadley, gerida e dizimada por um amigo, ia-se esfumando a

olhos vistos e Hemingway tinha os nervos à flor da pele. De tempos a

tempos, uma conhecida de Hadley, que também tinha andado na escola em

St. Louis, vinha visitar os Hemingway. Chamava-se Pauline Pfeiffer, tinha

estudado jornalismo e vinha de uma família abastada. Com o seu apurado

instinto feminino, Pauline percebeu de imediato que Hemingway estava

suscetível a ser conquistado. E, na verdade, Hemingway sentiu-se desejado

e lisonjeado por esta mulher quatro anos mais velha, que trabalhava como

correspondente de moda para a redação parisiense da Vogue, que tinha

dinheiro e que não só tinha uma aparência de manequim como também

trabalhava ocasionalmente como modelo. Além disso, Pauline costumava


aparecer na companhia da sua irmã Jinny, que era lésbica. Hemingway

sentia uma tremenda aversão por homens homossexuais, tão grande como o

seu fascínio por mulheres lésbicas Gertrude Stein, Janet Flanner, Sylvia

Beach, Djuna Bames, Margaret Anderson.

Em pouco tempo, Hemingway envolveu-se com Pauline. Hadley sofria

com isso, mas mantinha a esperança de que se tratasse de um caso

passageiro. Hemingway tinha a consciência pesada, mas procurava pensar

em si mais como vítima do que como culpado pelo sucedido, o que, no

entanto, não o impediu de, no verão em Antibes, se ver envolvido numa

espécie de ménage à trois, tomando o pequeno-almoço numa cama com

ambas as mulheres seminuas e de nadar nu com Pauline diante de Hadley.

Três décadas mais tarde, Hemingway viria a afirmar relativamente àquela

singular circunstância, que causou muito sofrimento a Hadley e que

resultou no seu gradual afastamento: «Antes destes ricos, já se tinha

instalado na nossa vida uma outra rica que usou o truque mais antigo do

mundo, ou seja, uma jovem solteira que se toma amiga de uma jovem

casada e vive com o casal e que depois, inconsciente, inocente e

impiedosamente, se prepara para casar com o marido da amiga. Se esse

homem for escritor e estiver a fazer um trabalho complicado que lhe ocupa

a maior parte do tempo e que não lhe permite ser um bom companheiro ou

parceiro para a sua mulher ao longo de grande parte dos dias, esse caso tem
as suas vantagens, até entretanto se começarem a evidenciar os efeitos. O

homem tem duas mulheres atraentes junto a si quando o trabalho chega ao

fim. Uma delas é nova e desconhecida e, com um bocadinho de azar, de

repente, está apaixonado pelas duas.» (Paris É Uma Festa) Em outubro,

Hemingway confessou a Hadley o seu amor por Pauline Pfeiffer. Ainda

sem acreditar bem na seriedade da relação, ela propôs-lhe o divórcio se ele

e Pauline estivessem dispostos a separar-se um do outro por cem dias a fim

de pôr à prova o seu amor. Na sequência disso, Hemingway mudou-se para

o apartamento de Gerald e Sarah Murphy, um casal amigo abastado que

viva boa parte do ano no sul de França, e Pauline regressou aos Estados

Unidos. Deve atribuir-se à consciência pesada de Hemingway o facto de

que este, em retrospetiva, tenha transfigurado os anos passados com Hadley

em Paris a ponto de os descrever como uma fase idílica de felicidade. Tal

como no ano anterior, Hadley, Bumby e Ernest estiveram entre dezembro

de 1924 e março de 1925 em Schruns na Áustria, período durante o qual

foram visitados pelos Murphy, por Pauline Pfeiffer e por John Dos Passos,

com quem Hemingway tinha travado conhecimento no verão. Depois,

Hemingway viajou para Nova Iorque por algumas semanas para resolver

questões contratuais, mas, no regresso, fez um desvio até Paris para se

encontrar com Pauline, antes de voltar para a Áustria, para junto do filho e

de Hadley. «Quando voltei a ver a minha mulher, que esperava junto às

linhas enquanto o comboio passava por troncos de árvores amontoados


para depois entrar na estação, desejei ter morrido em vez de amar outra

mulher que não ela. Ela sorria, com o sol a bater no seu rosto lindo e

perfeitamente delineado, bronzeado pelo sol e pela neve, e o seu cabelo de

um vermelho dourado, que tinha crescido perfeita e livremente durante o

inverno, estava iluminado pelos raios de sol. Ao seu lado estava o Sr.

Bumby, loiro e entroncado e com o ar de um bom rapazinho de Vorarlberg

com as faces rosadas pelo inverno. [...] Este foi o fim da minha primeira

fase em Paris. Paris nunca mais seria a mesma, embora sempre tenha sido

Paris, e as pessoas iam mudando acompanhando a mudança da própria

cidade. Nunca mais voltámos a Vorarlberg, e os ricos também não.» (Paris

É Uma Festa)
«VOCÊS TODOS SÃO UMA GERAÇÃO PERDIDA»

Mesmo que, na esfera privada, nunca deixasse de salientar que era um

patife, profissionalmente, Hemingway estava no bom caminho. Em outubro

de 1926 foi publicado o seu primeiro romance, Fiesta, sob o título O Sol

Nasce Sempre, com uma tiragem de 6 mil exemplares. Do ponto de vista

biográfico, este romance retrata as várias estadas de Hemingway em

Espanha entre 1923 e 1925. Depois da sua primeira passagem por

Pamplona, entusiasmado, escreveu ao amigo Bill Home o seguinte: «Caro

Bill, acabo de regressar da minha melhor semana desde a separação. Estive

na imponente festa de Pamplona cinco dias de tourada e dança noite e dia

fantásticos tambores, flautas, gaitas. [...] Éramos os únicos estrangeiros

naquela incrível feira anual. Todas as manhãs, os touros que vão ser lidados

de tarde são soltos do cercado que fica na outra ponta da cidade e correm

pela ma principal da cidade até à arena da praça de touros e todos os

rapazes de Pamplona correm com eles! O percurso é de dois quilómetros e

meio. Todas as mas laterais estão fechadas com vedações de madeira e todo

o grupo corre como louco e os cabrestos vão atrás para os colher. [...]

Ainda te lembras de eu te ter falado uma vez da necessidade de encontrar

pessoas que provoquem uma sensação de admiração pelo seu


comportamento a nível físico? Acabo de as encontrar na tourada. Jesus

Cristo, e como encontrei!»

Em julho de 1925, Hemingway voltou pela terceira vez à Fiesta de San

Fermín, desta vez com Hadley e alguns amigos, entre os quais Harold

Loeb, Lady Duff Twysden e o seu noivo Pat Guthrie, Don Steward e Bill

Smith, o seu velho amigo dos tempos de Oak Park. Esta viagem foi

problemática desde o início, primeiro em Burguete, nos Pirenéus, onde o

grupo queria pescar à linha, mas acabou por ser perturbado por lenhadores.

Depois durante a própria fiesta, que dessa vez esteve repleta de tensão e em

que já se começavam a notar indícios da sua comercialização. Lady Duff,

uma personificação viva da decadente sociedade chique britânica com uma

tendência desenfreada para a bebida, com os seus cabelos loiros e curtos e

os olhos cinzentos cheios de vida, provocou um clima de rivalidade entre

Loeb, seu noivo na altura, e Hemingway, que se sentia igualmente atraído

por ela, o que era um sintoma claro da gradual degradação da sua relação

com Hadley.

Todas estas tensões se refletem claramente nas personagens principais de

Fiesta. Lady Duff serviu de inspiração para a bela e sensual Lady Ashley

Brett. Harold Loeb metamorfoseou-se em Robert Cohn, o companheiro de

ténis do herói do romance. O próprio Hemingway foi encarnado por Jake

Barnes (nas primeiras versões do romance, era designado mesmo por


«Hem» ou «Ernie»21), um jornalista perdidamente apaixonado por Lady

Brett, mas que havia ficado impotente na sequência de um ferimento de

guerra. (Este último fator, associado à permissividade sexual de Brett,

poderia ter dado azo a dificuldades junto da Scribner’s. No entanto, uma

vez que esta editora, conhecida pela sua reputação ultraconservadora,

dependia da angariação de novos talentos, Max Perkins, o editor de

Hemingway, limitou-se a retirar do romance as expressões obscenas. Este

foi o início dos recorrentes problemas entre Hemingway e a sua editora,

nomeadamente quando se tratavam de expressões mais radicais que o autor

considerava autênticas.) Em Paris, os heróis de Fiesta e os seus amigos

levam uma vida temperada por álcool e prazeres efémeros. Saturados da

rotina, decidem partir em excursão para Pamplona para assistir à Fiesta de

San Fermín. No entanto, em vez do entretenimento tão ansiado, o que ali

encontram é uma forma de consciencialização, quando o seu hedonismo

desenraizado é confrontado com os valores tradicionais de Espanha,

simbolizados pelo ritual ancestral da luta entre homem e animal na arena da

praça de touros. No centro deste ritual, em que está em jogo a vida e a

morte e que, para todos os participantes, se torna o momento catártico do

próprio autoconhecimento, está o jovem Pedro Romero, uma personagem

inspirada no toureiro Cayetano Ordónez, chamado Nino de la Palma, que

Hemingway tinha conhecido no ano anterior. Lady Brett quer afastar

Romero, com quem tinha iniciado uma relação, reconhecendo que, mais
tarde ou mais cedo, acabaria por destruí-lo. Cohn é confrontado com a sua

cobardia e o seu medo de viver e Barnes reconhece a impossibilidade do

seu amor por Brett, ainda mais porque quase se tomou um traidor da sua

afición ao juntar Romero e Brett. Em todo o caso, quando o grupo deixa

Espanha depois da jiesta, quase todos regressam à sua antiga vida, mas, por

um momento, estiveram conscientes das suas mais profundas ansiedades,

ocultas por detrás da fachada descontraída da sua vida hedonista. O título

americano do romance foi retirado da Bíblia: «Uma geração passa, outra

vem; e a terra permanece sempre. O Sol nasce e o Sol põe-se e visa o ponto

donde volta a despontar» (Eclesiastes, 1, 5). Além disso, Hemingway usou

como epígrafe para o romance a frase de Gertrude Stein: «Vocês todos são

uma geração perdida». Contudo, Fiesta não era um livro deprimente.

Celebrava a vida e apelava a que se olhasse para ela tal como era, e da vida

fazia parte o confronto com a morte, pensamento este que viria a tomar-se

um lema para Hemingway.

Tal como já havia acontecido com a sua paródia Torrentes de Primavera,

também o lançamento de Fiesta acabou por ditar o fim de, pelo menos, uma

outra amizade, precisamente quando Harold Loeb se reconheceu na

personagem de Robert Cohn no romance. A única objeção de Lady Duff foi

a de nunca ter dormido com aquele «toureiro estúpido». No entanto, ainda

que o romance tenha despoletado comentários exaltados no ambiente


cultural parisiense e as pessoas retratadas se tenham afastado de

Hemingway, a crítica e os leitores estavam fascinados com o romance. O

tom de base de Fiesta tocou num ponto nevrálgico. Todos os heróis do

romance eram, de uma forma ou de outra, vítimas da guerra, vítimas do seu

tempo. A guerra tinha matado o primeiro amor de Brett e roubado a

masculinidade de Barnes. Foi também a guerra que fez de Cohn e

Campbell, o noivo de Brett, aquilo que eles eram: perdidos no turbilhão de

um tempo em que já não conseguiam encontrar orientação. Esta perdição e

este cinismo esgotado que Hemingway colocou nas palavras dos heróis do

seu romance encontraram empatia e foram partilhados por milhões de

jovens dos anos 20. Lady Brett, o protótipo de Hemingway da new woman

emancipada e dona do seu destino, foi aceite, tanto em termos de discurso

como de comportamento, como o modelo de toda uma geração de

estudantes do sexo feminino e, da mesma forma, o tipo de homem

hemingwayano, duro, desgastado pela vida, mas ainda assim capaz de

suportar estoicamente o seu destino, foi assumido como exemplo para os

seus colegas do sexo masculino.

Para além de tudo isso, Fiesta foi sobretudo o testemunho eloquente de

um fascínio do próprio Hemingway, que finalmente havia ganho forma, ao

qual viria a regressar recorrentemente e ao qual viria a dar corpo e

dinâmica de diversas formas em muitas das suas obras posteriores: o


confronto com a morte e o imperativo categórico de preservar a dignidade e

a educação, mesmo em caso de derrota. Psicologicamente, tratava-se da

luta interior do próprio Hemingway, que voltava aqui a ser encenada, a luta

que remonta à sua infância entre o desenvolvimento instintivo e livre e a

opressão da civilização em nome da decência e da moral. O autor coloca

também uma devoção quase religiosa nesta tragédia do desenvolvimento e

da renúncia ao instinto. Logo no primeiro encontro entre Jake Bames e

Pedro Romero, o objeto do desejo de Lady Brett, o toureiro encontra-se no

ascetismo solitário do seu quarto, rodeado por uma aura quase sagrada de

pureza e inocência: «Montoya bateu à porta e abriu-a. Era um quarto

escuro; entrava pouca luz pela janela que dava para a rua estreita. Tinha

duas camas que estavam separadas por uma divisória monástica. A luz

elétrica estava ligada. O rapaz ali estava sentado muito direito e sério, já

com o traje de toureiro vestido. A sua jaqueta estava pendurada nas costas

de uma cadeira. Tinham acabado de lhe colocar a faixa. O seu cabelo preto

brilhava sob a luz elétrica. Vestia uma camisa branca de linho e o ajudante

da espada prendeu a extremidade da faixa, levantou-se e recuou uns passos.

Pedro Romero acenou com a cabeça, parecendo perdido nos seus

pensamentos, e apertou-nos a mão com um ar dignificado. Montoya disse

que nós éramos aficionados fervorosos que lhe queríamos desejar boa sorte.

[...]
O rapaz tinha 19 anos, estava sozinho para além do ajudante da espada e

dos três moços, e a tourada ia começar daí a 20 minutos. Ele ficou ali,

direito e belo e inteiramente entregue a si próprio, sozinho no quarto com

os seus apoiantes, quando nós fechámos a porta.

“E um belo rapaz, não acha?”, perguntou Montoya.

“Muito bonito!”, respondi.

“Parece um torero", disse Montoya. “Tem todo o estilo.”

“Um belo rapaz.”

“Vamos ver como se porta na arena”, referiu Montoya.»

(Fiesta)

A tourada surge aqui como um rito em que a masculinidade pura e

inocente em renúncia ascética ao instinto possibilita o encontro com a

morte e a vitória sobre o animal. (Inicialmente, Hemingway iniciara o

romance precisamente com esta cena.23) Não é coincidência que haja uma

certa aura de celibato no quarto de Romero. A masculinidade é aqui

assexuada, transformada num estado ascético e puro que se alia numa

estranha dialética ao seu contraponto, a incapacidade de Barnes, o alter ego

de Ernest Hemingway, de amar fisicamente. Durante a corrida que se segue

à visita a Romero, Bames observa: «O toureio de Romero proporcionava

pura emoção porque ele preservava a pureza absoluta das linhas dos seus
movimentos e deixava que os cornos passassem junto de si, mantendo-se

sempre calmo e sossegado. [...] Romero tinha a maneira antiga, mantinha a

pureza da linha expondo-se ao perigo ao máximo enquanto dominava o

touro, fazendo-o perceber que o toureiro era inatingível enquanto o ia

preparando para a morte.» (Fiesta)

Mais adiante em Fiesta, Hemingway descreveu a função social da

tourada. Durante a corrida matinal dos touros pelas ruas de Pamplona, um

jovem pai de dois filhos foi colhido e acabou por morrer. Quando

Hemingway colocou o mesmo touro a ser morto na arena por Romero

naquela mesma tarde, o matador não só vingou a morte do jovem em nome

da sociedade como também renovou o ritual arcaico da vitória da cultura

sobre a natureza indomada, o triunfo da civilização sobre a anarquia dos

instintos. O carácter sexual desta luta entre homem e animal é óbvio.

Durante as verónicas, a condução do touro por intermédio das manobras

com a muleta, o toureiro, em atitude provocadora, alonga o seu corpo

acompanhando os cornos do touro, expondo-o sem qualquer tipo de

proteção enquanto se inclina para o ato da estocada final, de frente, sobre a

cabeça do touro, para lhe cravar a espada entre as omoplatas, de modo que

a lâmina corte a aorta. Este é o clímax da prova da masculinidade, o

«momento da verdade», tal como Hemingway viria a escrever

posteriormente em Morte ao Entardecer.


Hemingway havia assim encontrado o seu tema de eleição, tanto

psicológica como literariamente. Na tourada e, mais tarde, também na caça

maior e na pesca desportiva em alto-mar, podia explorar o choque

despoletado pelo reconhecimento impotente da sua vulnerabilidade na

Primeira Guerra Mundial, que retomava o cenário original da sua infância,

o hiato entre adaptação e afirmação da identidade em desenvolvimento.

Tendo sido recorrentemente confrontado com a morte de modo quase

monomaníaco e sobrevivido, conseguiu convencer-se de que ele próprio

ainda não tinha sido abafado pelas exigências morais rígidas e

contraditórias da casa paterna e pela omnipresença esmagadora da mãe.

«Na altura tentei escrever e percebi que a maior dificuldade para além de

saber o que realmente se sente e não apenas aquilo que se deveria sentir ou

o que se tinha aprendido a sentir estava em passar para o papel o que

acontecia realmente; o que provocavam efetivamente as emoções sentidas.

[...] Procurei aprender a escrever começando pelas coisas mais simples e a

coisa mais simples e fundamental é a morte violenta. Não tem quaisquer

das complicações de uma morte por doença ou da chamada morte natural,

nem da morte de um amigo ou de alguém que se tenha amado ou odiado,

não deixando porém de ser morte, e esse é um dos temas sobre os quais um

homem consegue escrever.» (Morte ao Entardecer)


O INÍCIO DO MITO DE HEMINGWAY

A 10 de maio de 1927, Ernest Hemingway e Pauline Pfeiffer casaram-se

numa cerimónia religiosa na igreja de Saint-Honoré d’Eylau, em Paris.

Hemingway tinha-se convertido ao catolicismo em 1918 em Itália.

Entretanto, tinha revisto uma série de contos que havia escrito nos anos

anteriores (entre os quais Os Assassinos e Dez índios) para que fossem

publicados numa coletânea com o título Homens Sem Mulheres. Quando

foi lançada em outubro de 1927, a reação do público não foi homogénea. O

estilo de Hemingway era elogiado, no entanto, o cosmos dos seus contos, o

mundo da tourada, da prostituição, do álcool, dos assassinos, rufias e

soldados, era considerado demasiado limitado e, no fundo, vulgar. No final

desse ano tinham sido vendidos 15 mil exemplares. Já há muito que

Hemingway havia considerado regressar à América. Estava cansado da

vida na cidade, queria voltar a estar rodeado pela Natureza. Quando John

Dos Passos lhe contou maravilhas sobre Florida Keys, a sua decisão ficou

tomada. Em abril de 1928, mudou-se com Pauline para Key West. O mar

fascinava-o, a tal ponto que viria a tornar-se um apaixonado pela pesca.

Uma vez que os rendimentos da sua atividade literária ainda não eram

suficientes para o seu estilo de vida, passou a vender o que pescava por
intermédio de um amigo para poder ir sustentando o seu novo hobby. Em

junho viria a nascer Patrick, o seu segundo filho.

Hemingway já havia começado a trabalhar num novo romance no ano

anterior. Pretendia explorar as suas experiências de guerra em Itália e o

tema do amor. À semelhança do próprio Hemingway, o protagonista deste

romance, Frederic Henry, alistou-se voluntariamente como tenente numa

corporação de assistência médica do exército italiano. Após um ferimento

na perna e um período de internamento num hospital militar, onde se

apaixona por Catherine Barkley, uma enfermeira inglesa, Hemy regressa à

sua unidade e, em 1917, vive na pele a investida das tropas da Tríplice

Aliança em Caporetto. Por um equívoco, levanta suspeitas de ser um

desertor, mas consegue fugir e escapar com Catherine para a Suíça. No

entanto, a maré de sorte é de pouca dura e Catherine acaba por morrer

depois de dar à luz. Indubitavelmente, o amor entre Frederic Hemy e a

enfermeira Catherine assume traços do amor de juventude de Hemingway e

Agnes von Kurowsky. No entanto, paralelamente a esta ação, Hemingway

explorou um tema ainda maior, transposto para o papel com o estilo que

entretanto se tomou uma característica sua: frases breves e compactas em

sucessão simples e isenta de comentários, diálogos lacónicos, mas plenos

de nuances, e um equilíbrio perfeitamente sincronizado entre ação e

diálogo. A paz desiludida na esfera privada, que Henry alcança depois da


guerra, remete para o afastamento de uma sociedade e de uma atitude

perante a vida que só a própria guerra tornou possível, pelas mortes sem

sentido que provocou. O dever de defender a pátria, a luta em nome da

liberdade, toda a retórica rebuscada da era Wilson, foi aqui levada ao

absurdo, na medida em que demonstrou ser inimiga da verdade. Mais do

que física, a ferida que afeta Henry está na alma, a consciência da

arbitrariedade e da falta de sentido do destino, que coloca Frederic, quase

em desespero, contra o seu amor por Catherine. «Os homens, assim como

as mulheres, desejam muitas vezes estar sozinhos e, quando um homem e

uma mulher se amam, têm ciúmes dessa faceta um do outro; no entanto,

tenho de admitir com toda a honestidade que nós nunca o sentimos.

Podíamos estar sozinhos quando estávamos juntos, sozinhos perante todos

os restantes. Isso só me aconteceu uma vez na vida. Senti-me sozinho

quando estive com várias mulheres e é em momentos como esses que a

solidão se sente com mais força. No entanto, nunca nos sentimos solitários

e nunca tivemos medo enquanto estávamos juntos. Eu sei que o dia e a

noite não são uma mesma coisa; sei que tudo é diferente, que as coisas que

acontecem de noite não podem ser explicadas à luz do dia, porque deixam

de existir, e que a noite pode ser terrível para os solitários depois que a sua

solidão tenha começado a fazer-se sentir. No entanto, com a Catherine,

praticamente não havia diferença, à exceção de que a noite era mais bela.

Quando as pessoas trazem tanta coragem ao mundo, o mundo tem de as


matar para as destruir e é isso que naturalmente faz. O mundo tenta destruí-

los e muitos deles acabam por ficar mais fortes nos pontos onde sofreram o

golpe. Mas aqueles que se recusam a ser destruídos são mortos. O mundo

mata indistintamente os bons, os amáveis e os corajosos. Se não

pertenceres a nenhuma destas categorias, podes ter a certeza de que ele te

vai matar também, mas sem pressa.» (O Adeus às Armas) Quando

Catherine morre, Frederic fica devastado. Resta-lhe apenas aceitar a derrota

com dignidade. É aqui retomado um motivo ao qual já tinha sido feita

alusão em Fiesta, primeiro romance de Hemingway, nomeadamente a

aceitação do destino, por muito duro que seja. Esta questão é novamente

retomada mais tarde, em O Velho e o Mar, ganhado expressão na

declaração de Santiago: «Um homem pode ser destruído, mas não

derrotado» (O Velho e o Mar).

Hemingway foi buscar o título inglês da sua nova obra, O Adeus às

Armas (A Farewell to Arms), ao Oxford Book of English Verse, que

continha um poema com o mesmo nome, da autoria de George Peek, um

contemporâneo de Shakespeare, em que também estava implícita a

duplicidade da palavra inglesa arms, que tanto pode remeter para braços

como para armas. Noutro País surgiu a 27 de setembro de 1928, depois de

Max Perkins ter reduzido ao mínimo a generosa quantidade de palavrões e

obscenidades usadas por Hemingway. A Scribner’s já havia pago 15 mil


dólares a Hemingway pelos direitos de publicação do romance por

fascículos na Scribner’s Magazine. Este foi o valor mais avultado alguma

vez pago por aquela editora por um romance em episódios. Noutro País foi

recebido pela crítica e pelo público com ainda mais entusiasmo do que

Fiesta. Uma vez mais, os contemporâneos de Hemingway reconheceram-se

no romance, naquele estado de consciência suspensa em que muitas

pessoas tinham ficado com o choque da catástrofe da Primeira Guerra

Mundial. Noutro País alcançou logo o top dos bestsellers, ao lado de A

Oeste Nada de Novo, o romance antiguerra de Erich Maria Remarque. Aos

30 anos, Hemingway encontrava-se entre os escritores mais bem-sucedidos

do seu tempo, tendo-se mesmo tornado famoso. Hollywood começou a

interessar-se por ele e a Paramount Pictures comprou-lhe os direitos

cinematográficos por 24 mil dólares. No entanto, a alegria de Hemingway

pelo sucesso de Noutro País acabou por ser ensombrada pelo suicídio do

pai, em dezembro de 1928. A notícia foi-lhe dada quando foi buscar o filho

Bumby. Hemingway ficou profundamente abalado.

Apesar do clima de tensão entre ele e a sua família e da imagem negativa

que tinha do pai, sentiu-se sempre próximo do pai. Ernest considerou que o

suicídio tinha sido uma demonstração de cobardia e de fuga à

responsabilidade que cabia ao pai, que, nos últimos tempos, andava doente

e tinha deixado de conseguir fugir aos seus problemas financeiros.


Financeiramente independente graças ao sucesso do romance,

Hemingway mergulhou então no trabalho. Escreveu um artigo sobre a

tourada para a revista económica americana Fortune, viajou até Nordquist

Ranch, no Wyoming, para caçar, e começou a trabalhar num grande livro

sobre tourada que viria a ser publicado dois anos mais tarde sob o título

Morte ao Entardeeer. Este livro, em que Hemingway explora em pormenor

a técnica e a história da tourada sob a forma de reflexões e de um diálogo

com uma senhora fictícia que vai assistir a uma corrida, continua a ser hoje

o trabalho mais significativo sobre a tauromaquia espanhola escrito por um

não espanhol. Quase mais importante do que isso é uma observação feita

por Hemingway a esse respeito nesse mesmo livro: «Um bom escritor

deveria saber tudo, tanto quanto possível. Como é natural, isso é

impossível. [...] Ele nasceu apenas com a capacidade de aprender mais

rapidamente, proporcionalmente à passagem do tempo, do que as outras

pessoas, sem um esforço consciente e com aptidão para aceitar ou rejeitar

aquilo que já é considerado conhecimento. [...] Se um escritor de prosa tem

conhecimentos suficientes sobre o que escreve, pode omitir coisas que já

sabe e, se o escritor souber efetivamente escrever, o leitor terá uma

perceção tal das coisas, como se o escritor lhas tivesse contado. A

dignidade de movimento de um icebergue deve-se ao facto de este ter

apenas 1/8 do seu volume acima do nível da água.» (Morte ao Entardecer)

Neste excerto, toma-se evidente a simplicidade do discurso de Hemingway


enquanto técnica complexa que, por intermédio da omissão, tanto permite

dar voz ao inconsciente do autor como também inclui os sentimentos

inconscientes do leitor, reforçando assim o impacto sobre este.

Na primavera de 1931, com a ajuda de Gus, tio de Pauline, Hemingway

adquiriu por 8 mil dólares o número 907 de Whitehead Street em Key

West, que se viria a tornar a sua residência fixa durante o período em que

esteve casado com Pauline. No verão de 1932, na sequência de uma viagem

a Cuba, Hemingway descobriu a pesca em alto-mar, que se tomou a sua

nova paixão, ajuntar-se à tourada. «Pobre Hem, velho e frágil. Noventa e

nove dias ao sol na corrente do Golfo. Cinquenta e quatro espadartes. Sete

num dia. Um de 212 quilos em 65 minutos, sozinho, sem outra ajuda senão

a deles a segurarem-me pela cintura e a atirar-me baldes de água sobre a

cabeça. Duas horas e vinte minutos de um verdadeiro inferno entre nós.

Um outro de 155 quilos que saltou 44 vezes preso ao anzol. Matei-o ao fim

de uma hora e 45 minutos. Pobre, velho e frágil Hem, outra vez a armar-se

em pescador. Oitenta e quatro quilos de peso. Abaixo dos 96.

Vou ter umas memórias dos diabos para escrever quando um dia o fizer,

porque não tenho inveja de nada nem de ninguém, tenho uma excelente

memória e todos os documentos comprovativos.» Estas viagens

proporcionaram o desenvolvimento daquele ritmo que viria a ser típico ao

longo de toda a vida de Hemingway e que este apenas abandonaria por


breves períodos: o inverno quente e ameno do clima tropical em Key West,

a primavera e o início do verão em Havana ou Bimini, o verão e o início do

outono no Wyoming para caçar e, mais tarde, em Ketchum, Idaho.

Entretanto fez também viagens a Nova Iorque, à Europa e a África.

Hemingway estava cheio de sede de viver, quase obcecado pela

necessidade de não deixar escapar nada. Escreveu o seguinte ao seu amigo

pintor Waldo Pierce: «Pensa, para rapazes como nós, a própria casa é um

lugar de onde se tem de sair para poder regressar, e todos nós estamos a

envelhecer rapidamente e os peixes enormes não estão a ficar mais fracos.»

Este era um estilo de vida que necessariamente acarretaria

consequências. Hemingway foi elogiado pelos media e tema de artigos das

colunas sociais, e era evidente que gostava de estar do outro lado, de ser

entrevistado em vez de entrevistar. Tornou-se o favorito dos publicitários

com as suas máximas descontraídas e arrebatadoras, o caçador de caça

grossa e soldado destemido que se sentava confortavelmente na poltrona

das suas agências de publicidade. Confundiram a sua luta com

autenticidade e veracidade, e tomaram como real a ficção que Hemingway

lhes ofereceu. Muitos dos que nunca tinham assistido a um combate de

boxe julgavam ingenuamente que Hemingway era o herói grandioso dos

ringues de boxe ou um soldado valoroso. Este, sentindo-se lisonjeado, não

os corrigiu e, pelo contrário, foi confirmando tudo. Encontrava-se em plena


rota de ascensão narcisista. Alcançou finalmente o sucesso que serviria de

compensação por tudo o que teve de suportar ao longo da infância, pela

ameaça à sua masculinidade. Se era admirado por muitas pessoas daquela

forma, então as suas inseguranças e o medo de falhar teriam de ser

irrelevantes. Cometeu um erro que, na verdade, deveria ter conseguido

evitar, tendo em conta a sua própria experiência no mundo do jornalismo:

deitou mais lenha na fogueira, vangloriou-se, tomou-se pretensioso,

confundiu ele próprio a ficção com a realidade. Escreveu as seguintes

palavras a Amold Gingrinch, o editor do Esquire: «Apanhei 29 espadartes,

7 no último sábado acho que é um recorde de pesca com cana. Tivemos

uma boa oportunidade de apanhar um peixe que seria um recorde mundial.

Que se dane o recorde, mas uma pessoa fica curiosa para saber qual seria o

aspeto de um peixe com estas dimensões suspenso no ar. Eles deslocam-se

na água como máquinas de destruição.»

Contudo, a verdade é que Hemingway não se encontrava nas melhores

condições. A sua saúde causava-lhe dissabores. Era desajeitado devido ao

seu tamanho e, como tal, tinha uma propensão para acidentes, como se diz

tão adequadamente em inglês, era accident prone. «Tenho uma fratura

complicada no dedo indicador por causa de uma pancada durante uma

caçada ao urso 14 pontos na cara, por dentro e por fora um buraco na perna.

Depois o braço direito paralisia espiral [sic] muscular 3 dedos partidos na


mão direita 16 pontos no pulso e na mão esquerda, os olhos foram à vida

em Espanha agora tenho óculos. Não posso esforçar a vista por mais de

quatro horas, depois começa a falhar-me, a segunda cesariana da Pauline,

etc. etc. etc. [...] E depois vem um critico idiota qualquer escrever que o Sr.

Hemingway se recolhe à sua biblioteca para escrever sobre desespero. E

sobre isso que eu escrevo? Pergunto-me a mim mesmo se é isso que eu

faço.» A pressão do sucesso começou a fazer-se sentir. A arrogância e o

exibicionismo começam a sobressair, assumindo expressão na glorificação

da sua própria pose de virilidade. Agradava-lhe assumir o papel de

arruaceiro em bares, provocava cenas de pancadaria quando estava bêbado,

sendo que os seus deslizes espetaculares despertavam tanto interesse como

pena junto da opinião pública. Onde quer que ele fosse, a imprensa

aparecia também. Todo e qualquer incidente era digno de se tomar notícia e

surgir nas colunas sociais, para alimentar um público internacional sedento

de sensacionalismo. Em 1943, numa carta a Archibald McLeish, o próprio

Hemingway viria a desculpar-se por esta fase da sua vida, descrevendo-a

como o seu período son of a bitching, Quanto aos erros cometidos na sua

forma de lidar com a imprensa, só mais tarde é que os viria a reconhecer.

Em 1950, escreveu, desanimado, ao escritor Robert Cantwell as seguintes

palavras: «Não fales nisso, peço-te mais uma vez, não fales das vezes em

que levei pancada e das vezes que atiraram contra mim. Pedi tanto ao Cape

como ao Scribner para não usarem o meu serviço militar para fazer
publicidade; causa-me repugnância falar no assunto e fere-me o orgulho

que eu, apesar de tudo, sinto. Eu quero valer enquanto escritor e não

enquanto um homem que esteve na guerra; ou um homem que anda à

pancada em tabernas; ou um atirador; ou um apostador em corridas de

cavalos; ou um bêbado. Não quero outra coisa senão ser escritor e ser

julgado como tal.»

Por esta altura, começou também a aumentar progressivamente a tensão

nas relações com os seus amigos. Ao fim de dez anos de amizade,

Hemingway discutiu com Archibald McLeish na sequência de um passeio

de barco em Key West, em abril de 1934. Em novembro do mesmo ano,

depois de uma visita a Hemingway, John Dos Passos notou igualmente que

o seu amigo se tinha tornado demasiadamente «o autor famoso, o grande

pescador desportivo, o prodigioso caçador de caça grossa».

Embora Hemingway tivesse elogiado Scott Fitzgerald, em maio de 1934,

pelo seu romance Tema É a Noite, que tinha anteriormente posto de parte

por ser «lamechas»31, a discórdia acabaria por surgir em agosto de 1936,

quando Hemingway qualificou The Crack-Up, o livro de tom confessional

de Fitzgerald, de piegas e pouco masculino. Somente o tom sarcástico e

niilista dos seus contos no livro Winner Take Nothing, publicado no outono

de 1933, revela o grau de solidão e desespero que efetivamente se escondia

por detrás da fachada de brutamontes, mesmo quando a sua capacidade de


escrever era interrompida. «O que receava ele? Não era medo nem terror.

Era um nada que ele conhecia bem. Tudo era nada e o ser humano era

também nada. Era apenas isso e tudo o que era necessário era luz e uma

certa dose de limpeza e de ordem. Alguns viveram assim e nunca se deram

conta, mas ele sabia que tudo era nada y pues nada y nada y pues nada.

Nada nosso, que estais no nada, nada seja o vosso nome, nada o vosso

reino, nada a vossa vontade, assim no nada como no nada. O nada nosso de

cada dia nos dai nada e nada-nos os nossos nadas, assim como nós

nadamos quem nos tem nada e não nos deixeis cair no nada, mas livrai-nos

do nada; pues nada. Ave nada, cheia de nada, nada é convosco.» (Um

Lugar Limpo e Bem Iluminado, Winner Take Nothing)


«AS VERDES COLINAS DE ÁFRICA»

Em abril de 1934, enquanto a sociedade americana e, com ela, milhões

de americanos ainda estavam a sofrer as consequências da Grande

Depressão, Hemingway comprou um iate a motor para navegar em alto-

mar por 7500 dólares, quase tanto quanto lhe tinha custado a casa em Key

West três anos antes. Batizou-o de Pilar, o nome de código usado por

Pauline na altura dos seus primeiros encontros secretos. A vida corria-lhe

bem e Hemingway desfrutava às claras da fama e fortuna que lhe valeram

Noutro País e os seus contos. Tinha regressado com Pauline no mês

anterior do seu primeiro safari em África. Acompanhado pelo caçador

Philip Percival e por Charles Thompson, um amigo abastado de Key West,

Hemingway andou à caça de leões, búfalos, antílopes e rinocerontes na

região em torno do Kilimanjaro durante três meses. Logo na fase de

planeamento da viagem, escreveu a um amigo, exprimindo a sua

impaciência: «Quero ver elefantes, independentemente de os abatermos ou

não em todo o caso, gostaria de atirar a búfalos e leões. [...] Levo a 30.06

10.75 Mauser a espingarda de calibre .12 e uma Mannlicher 6.5. Levo

ainda a minha Woodsman Colt .22 e se calhar também uma espada e uma

muleta para os búfalos e tu levas um papagaio para que possamos descer

pelo fio até aos elefantes.»


Na savana africana, acompanhado apenas pela sua mulher, por um amigo

e um guia de caçadores, Hemingway voltou a encontrar uma paisagem que

o preenchia e que despertava memórias dos dias felizes nas florestas do

Michigan. «Agora, enquanto olhava para o céu com as nuvens brancas a

deslocar-se ao sabor do vento, por entre o túnel de árvores sobre a ravina, o

meu amor pelo campo era tanto que me sentia feliz como se sente um

homem depois de ter estado com a mulher que ama realmente, quando,

vazio, sente tudo a efervescer novamente e ali está e nunca poderá ter tudo

e, no entanto, ali está, agora, pode-se ter e querer ter e ser mais e mais, e

viver ali e voltar a possuir para sempre, nessa eternidade que termina

subitamente; fazer com que o tempo pare, que às vezes fique tão imóvel

que depois se fica à espera de o ouvir a mexer-se e a demorar-se até voltar

a arrancar. No entanto, não estás sozinho, porque se alguma vez a amaste

realmente, com toda a felicidade e sem tragédias, ela amar-te-á sempre; não

importa quem ela ama ou para onde vai, ela vai amar-te sempre mais.

Portanto, se alguma vez tiveres amado alguma mulher e algum país serás

um homem de sorte e, se morreres depois disso, não fará diferença. Agora,

depois de ter estado em África, queria mais, queria a mudança das estações,

ver as chuvas sem necessidade de viajar, os desconfortos a que te sujeitaste

para concretizar tudo isto, os nomes das árvores, dos animais pequenos e de

todas as aves, aprender a língua e ter tempo para estar lá e percorrer tudo

com calma. Toda a minha vida amei o campo; o campo sempre foi melhor
do que as pessoas. Nunca consegui gostar de muitas pessoas ao mesmo

tempo.» (As Verdes Colinas de África) Para além disso, Hemingway

descobriu na caça grossa a sua versão privada da tourada: na caça, ele

próprio podia celebrar o ritual do combate entre o ser humano e o animal

selvagem e, ao mesmo tempo, levar para casa a prova palpável da sua

vitória sobre a morte, para demonstrar aos seus amigos e ao mundo a sua

virilidade. Nas suas cartas, Hemingway não se cansava de referir os

esforços associados a essas aventuras. «Adoeci gravemente fui deixando

para trás cerca de um litro de sangue cada dia cacei todos os dias, à exceção

de dois. [...] Um dos amigos emplumados de Gertrude disse-lhe que o Papa

estava sempre a partir qualquer coisa, a ficar doente, etc., mas eu pergunto-

me o que seria da G. e dos amigos se fossem onde o Papa vai e fizessem o

que o Papa faz. [...] Abati os meus dois búfalos com uma Springfield 30.06,

assim como os leões tenho algumas belas peças e cabeças fantásticas.»

Imediatamente após o seu regresso, Hemingway começou a trabalhar

num romance acerca das suas experiências no continente africano. Embora

nos seus dois primeiros romances tivesse recorrido a material

autobiográfico, sobretudo para a seleção dos motivos e das referências

psicológicas, e só raramente tivesse feito referência direta a vivências

pessoais, como foi o caso do seu ferimento, neste último procurou levar ao

extremo o seu método das «frases verdadeiras», «para constatar se a


representação fidedigna das peculiaridades de um país e as impressões de

um grupo de caça ao longo de quatro semanas conseguem competir com

uma obra da imaginação» (As Verdes Colinas de África). No entanto, a

tentativa de escrever «fação»(*) falhou, método esse que o seu conterrâneo

Norman Mailer viria a recuperar com grande sucesso no final dos anos 60.

[(*) «faction» é um neologismo formado a partir dos vocábulos «factos»

e «ficção».]

Do ponto de vista biográfico, As Verdes Colinas de África é

extremamente interessante, uma vez que muitos dos temas que moviam

Hemingway foram ali transpostos para o quotidiano. No entanto, do ponto

de vista literário, o romance foi considerado insuficiente, um híbrido, que

nem era jornalismo nem literatura. Por exemplo, as reflexões acerca dos

livros e dos autores que interrompem, no início, a descrição da viagem e a

caçada, soam descontextualizadas e ingénuas. O pioneiro estilo conciso de

Hemingway que tinha dotado os seus dois primeiros romances de uma

particular intensidade emocional, precisamente graças à aparente omissão

de sentimentos, jogava contra si mesmo neste último romance. A aridez

lacónica do discurso tinha um efeito anti-intelectual forçado e deixava

transparecer a tentativa de usar e reforçar a imagem criada para a opinião

pública de durão, grande consumidor de álcool, desportista, caçador e

pescador.
Para além de tudo isso, o livro inclui igualmente passagens de uma

grande intensidade emocional que arrebatam até os leitores que não

partilham necessariamente do fascínio de Hemingway pela caça. «E

corremos que nem loucos, como cães de caça, atravessámos o rio, trepámos

a ribanceira da margem, o romano na dianteira, despido pelos arbustos fora,

e depois baixou-se e pegou numa folha com sangue a brilhar, ao mesmo

tempo que me bateu nas costas, enquanto M’Cola dizia “Damu, damu”,

“Sangue, sangue”. [...] E quando recomeçámos a correr atrás dele como

cães de caça, quase caímos sobre qualquer coisa. Era um incrível cudo,

morto, deitado de lado, com os seus grandes cornos negros em espiral, e era

incrível como jazia ali sem vida. [...] Olhei para ele. Grande, as pernas

longas, o pelo cinzento perfeito com listas brancas e os seus arrebatadores

cornos enrolados, castanhos cor de noz e afiados como marfim, as orelhas

grandes e o pescoço longo com uma pelagem densa, o triângulo branco

entre os olhos e o branco do focinho. Inclinei-me e toquei-lhe para ter a

certeza de que era real. Estava deitado sobre o lado por onde tinha entrado

a bala, pelo que não se via qualquer marca nele, e o seu cheiro era limpo e

fantástico como o respirar do gado e o odor do tomilho depois da chuva.»

(As Verdes Colinas de África) É de forma verdadeiramente profética que

surgem os pensamentos sombrios de Hemingway acerca da destruição da

natureza em África, que ele considerava acarretar uma perda de qualidade

de vida: «Um continente envelhece depressa, a partir do momento em que


lá chegamos. Os nativos convivem com ele em harmonia. Mas o

estrangeiro destrói, derruba árvores, drena a água de modo que o seu

abastecimento sofre alterações e, em pouco tempo, o solo, depois de

revirado, é explorado até à exaustão e acaba por esgotar-se tal como

aconteceu já nos países mais antigos e tal como já vi começar a acontecer

no Canadá. A terra esgota-se rapidamente a não ser que o ser humano lhe

dê todos os resíduos e os dos seus animais. Quando este deixa de usar

animais e passa a recorrer a máquinas, a terra é rapidamente vencida. A

máquina não consegue produzir nada nem fertilizar o solo e consome

aquilo que não consegue produzir.» (As Verdes Colinas de África) Este

romance foi tão contraditório quanto o próprio Hemingway, cheio de força

e amor pelo cosmos africano, mas também cheio de afetação.

Quando o romance foi publicado, em outubro de 1935, a crítica também

reagiu de modo discreto. Edmund Wilson, que havia dado um impulso

decisivo aos primeiros trabalhos de Hemingway graças às suas críticas

positivas, viria a referir posteriormente com alguma secura: «Assim que

Hemingway começa a escrever na primeira pessoa, parece que lhe foge o

chão debaixo dos pés, não só enquanto crítico da vida, mas também como

artista.» Como sempre, Hemingway reagiu à crítica negativa com fúria e,

pouco depois, com uma depressão. «Sinto-me imensamente vazio e oco,


como se nunca mais pudesse fazer amor, lutar ou escrever e já estivesse

praticamente morto.»

Quase paralelamente, Hemingway havia começado a trabalhar em dois

contos mais extensos, que viriam a ser publicados no Esquire em 1936,

com um período de intervalo de dois meses. Em As Neves do Kilimanjaro,

o escritor Harry, às portas da morte devido à gangrena na perna, observa o

manto de neve no topo do Kilimanjaro a partir de uma planície quente de

África e reflete sobre a sua vida. «Ele tinha destruído o seu próprio talento.

Porque é que haveria de atirar as culpas a esta mulher, porque ela o tratava

tão bem? Ele tinha destruído o seu talento não lhe dando uso, traindo-se a si

próprio e àquilo em que acreditava, bebendo até perder a acuidade das suas

perceções, traindo-se com preguiça, indolência, snobismo, orgulho e

preconceito, fizesse chuva ou fizesse sol. O que era aquilo? Um catálogo de

livros antigos? Então mas o seu talento já era grande? Era com certeza um

talento mas, em vez de o usar, tinha-o negociado. O problema nunca foi o

que ele fez, mas sim o que poderia fazer. E ele tinha preferido ganhar a

vida de outra forma que não com a sua caneta.» (As Neves do

Kilimanjaro). Se, por um lado, algumas partes de As Verdes Colinas de

África podem ser interpretadas como uma caricatura do relato de uma

aventura em que a virilidade é evidente, por outro, encontramos aqui uma

referência ao outro lado de Hemingway, à sua insegurança, à ideia de que


este poderia ser corrompido pela sua fama e imagem pública. O guia de

caça tinha contado a Hemingway que, inacreditavelmente, tinham

encontrado a carcaça de um leopardo no cume. No conto, a morte «pura»

do predador que tinha subido para além dos seus limites e a morte impura e

sem dor de Hany por envenenamento do sangue simbolizam o artista que

aspira à clarividência máxima e a corrupção de um homem que se

prostituiu em prol de uma vida fácil.

Em A Curta e Feliz Existência de Francis Macomber, o segundo conto

de Hemingway sobre África, que o próprio considerou ser um dos seus

melhores trabalhos, mas que no entanto não alcança um nível de impacto

simbólico tão grande como o de As Neves do Kilimanjaro, a temática

abordada gira em torno da interdependência volátil entre o americano rico

Francis Macomber e Margot, a sua bela esposa. Macomber fugiu de um

leão ferido, revelando-se assim um cobarde. A sua falha enquanto homem

sofre um agravamento na sequência do envolvimento de Margot com o

líder do safari, o caçador britânico Wilson, o que faz transparecer não só as

fraquezas do marido como também as forças dela.

O final do conto Margot mata o marido quando este, num acesso

repentino de sangue-frio, investe sobre um búfalo ferido que vem na sua

direção foi inspirado num incidente a que Hemingway assistiu durante a

sua viagem a África. Segundo o ajudante de caça Dennis Shapiro, o


incidente teve lugar quando Hemingway e Charles Thompson quiseram

apanhar um búfalo cuja progenitora se encontrava nas proximidades. Philip

Percival juntou-se-lhes para lhes dar apoio enquanto Pauline ficou no carro.

De repente, o búfalo atacou e todos atiraram ao mesmo tempo. Pauline

Pfeiffer também tinha levado uma arma e ou atirou ou estava prestes a

fazê-lo. Depois disso, todos brincaram com ela, dizendo que ela estava, na

verdade, apaixonada por Philip Percival e que tinha tentado matar o

marido, aparentemente por engano, e fazer com que tudo parecesse um

acidente. Hemingway converteu este incidente na parábola de um ato de

veleidade existencialmente bem-sucedido. Depois da demonstração de

cobardia que foi a sua fuga, Francis Macomber já não tem como descer

mais. Depois da sua dignidade, já não tem nada a perder, e é precisamente a

partir desta sensação de vazio que reúne todas as suas energias para

ascender a uma espécie de autodomínio frio por si nunca antes

experimentado, que a sua mulher não consegue suportar, pois sente-se

intimidada por tamanha determinação. Macomber morre depois de superar

os seus medos. A sua nova vida foi demasiado curta, mas, ao mesmo

tempo, feliz, graças à consciência da decisão tomada. Desta forma,

Hemingway alargou a sua obsessão pessoal de uma experiência

existencialista: quando os seus heróis, confrontados com a morte, percebem

que não existe outra possibilidade senão render-se ao inevitável, vencem a

morte, tomam as suas forças e acabam por transcendê-la.


A musa inspiradora da personagem de Margot Macomber terá sido

provavelmente Jane Mason, uma rica e deslumbrante conhecida de

Hemingway dos tempos de Cuba e de Key West, com quem este terá

alegadamente mantido uma relação ao longo de cinco anos. Para além

disso, a relação tensa entre Macomber e a sua mulher pode, de certa forma,

ser lida como um reflexo da atmosfera do segundo casamento de

Hemingway. O seu filho havia nascido em novembro de 1931, mas

Hemingway continuava a sentir-se incapaz no papel de pai de família. Não

foi preciso muito tempo para que a sua relação com Pauline começasse a

degradar-se gradualmente, sendo que a relação de Hemingway com Jane

Mason foi apenas um dos insultos que esta teve de suportar. As discussões

eram cada vez mais frequentes. De qualquer forma, num dos seus gestos

fanfarrões, Hemingway ameaçou dar uma sova a McAlmon, seu anterior

amigo e editor, quando este se referiu publicamente a Pauline como lésbica.

Além disso, reclamava a viva voz contra a negação «católica» de Pauline

em recorrer a métodos contracetivos, depois de os médicos lhe terem

sugerido não ter mais filhos após o nascimento de Gregory. O casal viria a

separar-se definitivamente durante o período da Guerra Civil espanhola, em

que Hemingway passou mais tempo longe de Pauline do que junto dela.

Em novembro de 1940, estava oficializado o segundo divórcio de

Hemingway.
TERRA DE ESPANHA

Enquanto Hemingway trabalhava no seu livro sobre touradas, Morte ao

Entardecer, a situação em Espanha complicava-se. A Espanha do século

XX havia herdado as graves tensões político-sociais deixadas pelo século

anterior, que agora começavam gradualmente a agudizar-se. No setor da

agricultura, dominavam ainda os grandes latifúndios ao estilo do Ancien

Régime, ao passo que a esmagadora maioria da população rural permanecia

condenada a um estado de quase servidão ou tinha de se contentar com

pequenas parcelas de terreno que mal chegavam para sustentar os seus

detentores. A industrialização tinha-se implantado em Espanha de uma

forma muito irregular. Em termos regionais, as desigualdades ao nível do

desenvolvimento material e cultural tinham levado ao confronto entre

províncias com uma situação económica proporcionalmente mais

favorecida e regiões pobres com estruturas quase medievais. Além disso,

por oposição às tendências secularizantes que se faziam sentir pela restante

Europa, aqui a Igreja Católica continuava a manter as suas pretensões de

poder por intermédio da ligação política com a nobreza, pretensões essas a

que a burguesia respondeu com um anticlericalismo beligerante e as classes

mais baixas com uma anarquia emotiva e entusiasta. A 14 de abril de 1931

decretava-se o fim da ditadura de Primo de Rivera e a implantação da


República. Os primeiros passos do novo governo foram a expropriação dos

«grandes» e uma reforma agrária que, no entanto, acabou por sofrer uma

reviravolta quando a direita política chegou ao poder na sequência das

eleições de 1934 e reagiu com uma restauração brutal das condições

anteriores. O país foi abalado por greves gerais no País Basco,

manifestações nas Astúrias e sangrentas lutas de classes em Sevilha e

noutras regiões, situação agravada pela brutalidade e violência impiedosa

das tropas atacantes, maioritariamente da direita ou do lado «nacionalista».

Nas grandes cidades como Madrid, Barcelona, Bilbau, Saragoça, Málaga e

Valência, o proletariado industrial começava a radicalizar-se. A situação

complicou-se ainda mais com a emergência de diversos nacionalismos,

como o basco e o catalão. Os resultados das eleições de 1936 a favor da

Esquerda levaram a um pronunciamento, ou seja, a um golpe de Estado

contra a República por parte das forças militares. A 17 de julho, os

edifícios da administração pública e do governo espanhol em Marrocos

foram ocupados e, no dia seguinte, o general Francisco Franco proclamou o

estado de guerra a partir das ilhas Canárias, tendo sido seguido por outros

generais com tendências antirrepublicanas. Depois disso, o governo em

Madrid optou por desmobilizar os soldados e armar a população: rebentava

assim a Guerra Civil espanhola.


A 18 de julho de 1936, data do início das hostilidades em Espanha,

Hemingway estava a preparar-se para uma expedição de caça com destino

ao Wyoming. No entanto, estava a acompanhar de perto os

desenvolvimentos da situação em Espanha e acabou por decidir que

viajaria para a Europa assim que terminasse o último terço do seu novo

romance, Ter e Não Ter. Em outubro de 1936, a North American

Newspaper Alliance (NANA) perguntou-lhe se estaria disposto a trabalhar

como correspondente em Espanha. Embora Hemingway ainda não tivesse

concluído o romance, acabou por aceitar a proposta. Nessa altura, escreveu

à família Pfeiffer o seguinte: «Os Vermelhos podem ser tão maus como

dizem, mas desta vez são os inquilinos que se insurgem contra os senhorios

ausentes, os mouros, os italianos e alemães. Além disso, eu sei que os

Brancos ainda são piores, uma vez que os conheço bem, e eu gostava muito

de observar bem os outros para perceber como é que estão a lidar com as

suas reivindicações humanitárias. Este é o ensaio geral de uma inevitável

guerra na Europa.» Juntamente com outros intelectuais, Hemingway

juntou-se ao Ambulance Corps Committee da American Friends of the

Spanish Democracy e estes conseguiram efetivamente angariar dinheiro

suficiente para enviar para Espanha ambulâncias, material médico e outros

bens essenciais humanitários. Quando Hemingway ouviu dizer que o

romancista Prudencio de Pereda queria produzir um documentário em

nome da causa das forças leais, ofereceu a sua ajuda, reescreveu o


comentário e deu autorização para que fosse divulgada uma declaração

pública sobre o filme assinada por si. Por altura do seu regresso de Key

West a Nova Iorque, em fevereiro, encontrou-se com John Dos Passos

durante os preparativos para um outro filme pró-republicano, intitulado The

Spanish Earth, com fotografia de John Ferno e realização de Joris Ivens,

um comunista e realizador de documentários holandês. A fim de garantir o

financiamento do filme, Dos Passos, Archibald McLeish e outros

intelectuais da vanguarda daquele tempo, como Dorothy Parker, Lillian

Hellman e o marido Dashiel Flellman, fundaram a sua própria sociedade

produtora independente, a Contemporary Historians, Inc.

No final de fevereiro, Hemingway partiu finalmente para a Europa. Após

uma breve passagem por Paris, chegou a 20 de março à cidade ocupada de

Madrid. A cidade encontrava-se debaixo de fogo das tropas nacionalistas

nas colinas circundantes e na zona universitária havia confrontos entre as

tropas nacionalistas e republicanas. A objetividade de uma das reportagens

de Hemingway para a NANA sublinhava a arbitrariedade indiferente com

que a morte tinha irrompido pela cidade e atacado a população civil. «Era

domingo em Madrid e as ruas estavam cheias de pessoas que passeavam e

as granadas surgiram e houve um pequeno clarão, como o de um curto-

circuito, e depois ouviram-se os rugidos e estrondos do entulho a cair.

Durante a manhã, Madrid foi atacada por 22 granadas.


Estas mataram uma senhora de idade que ia do mercado para casa. O que

restou dela foi um emaranhado de roupas negras. Uma das pernas foi

projetada contra a parede da casa ao lado.

Num outro local morreram três pessoas. Aqui, a granada de 15

centímetros detonou na beira do passeio e ficaram três molhos de roupas

esfarrapadas no meio do entulho. Um carro que ia a passar na rua parou de

repente quando se aproximou do clarão acompanhado pelo estrondo, ficou

atravessado e o condutor saiu a cambalear. A testa tombava-lhe sobre os

olhos. Sentou-se no passeio com a cabeça entre as mãos enquanto o sangue

lhe escorria pela face e pelo queixo.»

Dois dias após a sua chegada, Hemingway visitou o campo de batalha de

Guadalajara juntamente com Dos Passos. Passou depois por Brihuega,

Fuenteduena de Tajo e Sierra de Guadarrama, que viria a ser

posteriormente um dos cenários de Por Quem os Sinos Dobram, o seu

romance sobre a guerra. Nas Brigadas Internacionais XI e XII conheceu

Hans Kahle, Gustav Regler, os generais Karl Walter e Lukácz e, ainda, o

médico alemão Wemer Heilbrun. Os seus testemunhos em primeira mão

serviriam de base para muitas das suas histórias sobre Espanha. Para além

disso, Hemingway tornou-se visita frequente do Batalhão Abraham Lincoln

da Brigada XV, em que combatiam os voluntários americanos.


As filmagens de The Spanish Earth começaram em abril e estenderam-se

até maio. Imediatamente após a sua conclusão, Hemingway regressou aos

Estados Unidos e empenhou-se numa campanha publicitária a favor da

causa das forças leais. A 8 de julho, o Presidente Roosevelt e a sua mulher

assistiram ao filme na Casa Branca. Seguiram-se projeções em Hollywood,

onde o filme foi recebido com entusiasmo, resultando numa angariação de

fundos suficientes para comprar mais 20 ambulâncias para a República. Já

no anterior mês de junho, Hemingway tinha proferido um discurso

inflamado no Segundo Congresso de Escritores Americanos, em Nova

Iorque, no qual atacava o fascismo, designando-o por uma «mentira

engendrada por tiranos». Hemingway salientou que era obrigação de um

escritor procurar a verdade e apresentá-la de modo a «que esta se tome

parte da experiência daquele que está a ler». Hemingway começou

entretanto a dividir-se entre Espanha e a América. Em setembro regressou a

Madrid, que estava ainda mais fustigada pelos combates, tendo então feito

a cobertura das batalhas junto a Belchite e na frente de Cuenca. Dois meses

mais tarde, juntou-se ao ataque surpresa das forças leais a Temei, que se

encontrava ocupada por rebeldes nacionalistas. Ao longo da viagem para

Espanha, Hemingway já havia começado a esboçar uma peça de teatro que

viria a ser posteriormente publicada sob o título de A Quinta Coluna. Philip

Rawlings, o protagonista da peça, trabalha para os serviços secretos das

forças leais e é acometido por conflitos morais quando se apaixona pela


bela Dorothy, que não demonstra qualquer interesse pelas suas atividades

políticas. De uma forma dolorosa, Rawlings vê-se obrigado a reconhecer

que não existe espaço para uma relação na sua vida e cabe a si o golpe

decisivo contra as forças fascistas espanholas e os seus aliados alemães,

nomeadamente através da descoberta e captura do líder civil da Quinta

Coluna dos nacionalistas em Madrid. Contudo, Hemingway não conseguiu

dar credibilidade suficiente às personagens e mesmo os diálogos, apesar da

sua intensidade, carecem de vivacidade e dinamismo, a tal ponto que esta,

que foi a única peça de teatro de Hemingway, acabou por cair,

justificadamente, no esquecimento.

Por ocasião da sua terceira viagem a Espanha em abril de 1938,

Hemingway assistiu ao maior ataque da ofensiva fascista no Mediterrâneo

e à queda de Tortosa. Tal como em 1922 na Grécia, testemunhou em

primeira mão o sofrimento a que sobretudo a população civil esteve sujeita.

Foi das impressões do fluxo interminável de refugiados em fuga da cidade

ocupada que nasceu o seu conto mais tocante, O Velho e a Ponte, que fala

de um velho que se preocupa com os animais que teve de deixar para trás,

duas cabras, um gato e um casal de pombos.

«“Mas o que poderão fazer se houver fogo da artilharia, se foi por isso

mesmo que me obrigaram a sair de lá?”

“Você deixou as portas do pombal abertas?”, perguntei.


“Sim.”

“Então eles voam para longe.”

“Sim, eles hão de voar. Mas e os outros? É melhor nem pensar nos

outros”, disse ele.

“Se você já descansou o suficiente, então se calhar vou andando”, insisti.

“Levante-se e experimente andar.”

“Obrigado”, respondeu ele e levantou-se, cambaleou para um lado e para

o outro, e acabou por cair para trás, ficando novamente sentado sobre o pó.

“Eu tomava conta de animais”, disse num tom monótono que já não era

dirigido a mim. “Tudo o que sei fazer é tomar conta de animais.”

Não havia nada a fazer por ele. Era Domingo de Páscoa e os fascistas

avançavam na direção do Ebro. O dia estava cinzento e sombrio, com

nuvens baixas no céu e, por isso, não se viam os seus aviões lá em cima.

Isso e o facto de os gatos serem capazes de cuidar de si mesmos era tudo o

que aquele velho homem poderia considerar boa sorte.» (The First and The

La st)

Por altura da última viagem de Hemingway a Espanha, em novembro, já

a República estava condenada à queda. As Brigadas Internacionais foram

retiradas da frente de combate, Heilbrun e Lukácz já tinham sucumbido

durante um ataque em Huesca em 1937. Hemingway encontrou-se junto ao


Ebro com os generais Kahle e Lister no momento da sua retirada. O

Batalhão Lincoln e os restantes voluntários americanos das Brigadas

Internacionais aguardavam a sua retirada do país a 50 quilómetros da

fronteira com França. Quando Hemingway deixou Espanha a 15 de

novembro, estava convencido de que a causa republicana estava perdida.

Desiludido, referiu-se a uma «orgia de perfídia e corrupção» que reinava

em Espanha de ambos os lados. No entanto, reclamava fervorosamente

contra o facto de, na opinião pública americana, os republicanos serem

cada vez mais responsabilizados pela derrota e caracterizados com base

numa distorção dos factos associados aos crimes de guerra. «Na guerra

importa apenas uma coisa: vencer. Quando se foi traído e vendido uma

dezena de vezes, e se perdeu, não há como evitar ser-se também

difamado.»

Em março de 1939, sensivelmente na mesma altura em que a República

desmoronava em Espanha, Hemingway começou a trabalhar na sua epopeia

sobre a Guerra Civil, Por Quem os Sinos Dobram.

A esquerda louvou unanimemente o empenho de Hemingway em nome

da causa republicana e a sua atividade literária durante essa fase, como

sendo a afirmação há muito ansiada de um autor que até então tinha evitado

incluir temas políticos e sociais nas suas obras. Pelo menos desde o

lançamento do seu romance As Verdes Colinas de África, Hemingway


esteve debaixo de fogo também por parte dos críticos bem-intencionados,

que se viam cada vez mais incapazes de acompanhar a sua paixão pela

morte e pela violência. Críticos com Max Eastman da New Republie,

antigos admiradores como Charles B. Strauss e Abner Green ou

personalidades de esquerda como Robert Forsythe da New Masses e Iwan

Kaschkin na União Soviética, para citar alguns exemplos, acusavam-no de

escapismo egocêntrico, romantismo pueril e de uma atitude de virilidade

estéril. Para estes, numa época em que todos os intelectuais e escritores

conscientes discutiam sobre a necessidade de ação social, Hemingway

estava demasiadamente concentrado na sua mitologia privada de

«graciosidade sob pressão». Agora, esta abstinência política parecia fazer

apenas parte do passado. Hemingway começou a escrever artigos para

revistas políticas de esquerda como a New Masses ou a Ken e, para além

disso, associou-se finalmente ao grande grupo de intelectuais, escritores e

artistas ocidentais que apoiavam a causa espanhola. Se observarmos com

mais atenção, porém, reparamos que os seus artigos e telegramas carecem

de uma análise política precisa. Quando Hemingway abordava

desenvolvimentos políticos, fazia-o para sublinhar a sua convicção de que a

Itália era o elo mais fraco da aliança fascista e que as democracias

ocidentais poderiam ter usado essa fraqueza para intervir em Espanha. Nos

artigos de Hemingway são poucas ou mesmo inexistentes as referências à

vida política, social e cultural na Espanha abalada pela guerra. Do ponto de


vista político, permanecia preso ao conservadorismo republicano da sua

juventude em Oak Park no qual qualquer reivindicação de autoridade

estatal era tida como profundamente suspeita. Se compararmos os seus

trabalhos com as obras de outros autores como George Orwell, Ralph

Bates, Gustav Regler ou André Malraux, é impossível resistir à impressão

de que, apesar do antifascismo fervoroso de Hemingway, a tragédia

espanhola acabava por ser mais o pano de fundo para a sede de aventura de

um autor que sentia uma necessidade recorrente de pôr à prova a sua

virilidade.

Seja como for, a partir da segunda metade da década de 30 teve início a

fase da vida de Hemingway em que se notou, pela primeira vez, uma

considerável consciência social nos seus trabalhos. Em setembro de 1935,

um furacão devastou parte da Florida nas proximidades da região onde

Hemingway residia. Foram particularmente afetados os armazéns criados

no âmbito do New Deal, o programa de medidas para a criação de postos

de trabalho para veteranos de guerra do governo do Presidente Roosevelt.

A tempestade fez cerca de 400 vítimas entre os veteranos que ali residiam,

entre os quais um grande número de pescadores e habitantes com

ocupações no setor do turismo. Hemingway resumiu o terror sentido pela

tragédia na imagem de duas jovens que exploravam um quiosque de

sanduíches e uma bomba de gasolina, e que agora jaziam mortas, «nuas,


arremessadas pela água para cima das árvores, inchadas e em putrefação, o

seu peito empolado como balões, moscas a esvoaçar entre as pernas». O

seu artigo Who Murdered the Vets? para a revista de esquerda New Masses

transformava a catástrofe num ataque pungente aos burocratas de

Washington. Da mesma forma, pela primeira vez, em Ter e Não Ter, o

romance por episódios que Hemingway havia começado em 1933 e

publicado em 1937 e que só foi bem-sucedido em parte, um herói deste

autor confessava-se dependente da sociedade. Condenado por um ferimento

mortal, Hariy Morgan, que trafica álcool e ajuda fugitivos de Cuba a entrar

nas ilhas Keys, reconhece que está sujeito a uma sociedade que trata com

desdém os seus membros mais pobres. «“Um homem?”, disse Hany

Morgan enquanto encarava ambos. “Um homem sozinho não tem

nenhuma...” Fez uma pausa. “Seja como for, um homem sozinho não tem a

mais pequena hipótese.” Fechou os olhos. Precisou de muito tempo para

compreender isso e precisou de toda a sua vida para o aprender.» (Ter e

Não Ter)

A esquerda internacional encarou tudo isto como a conversão de

Hemingway. Em todo o caso, esta avaliação aplica-se, mas com algumas

restrições. A 15 de agosto de 1935, Hemingway escreveu ao crítico e

escritor russo Iwan Kaschkin num tom provocador e de descontentamento

tipicamente americano: «Agora toda a gente tenta intimidar com a asserção


de que se uma pessoa não se tomar comunista ou adotar um ponto de vista

marxista acabará por ficar sozinho e sem amigos. Aparentemente, parece

que se está a tentar passar a ideia de que a solidão é algo mau. Por mim,

preferia ter um inimigo honesto à maioria dos amigos que tenho neste

momento. Não consigo tomar-me comunista porque só penso numa coisa:

liberdade. O que quero acima de tudo é cuidar de mim mesmo e fazer o

meu trabalho. Depois disso, quero cuidar da minha família. Depois ajudar o

meu vizinho. Agora, com o Estado não me preocupo de todo.» Hemingway

colocou um discurso semelhante nas palavras de Hany Morgan. Quando

Emilio, o revolucionário cubano, se insurge contra a tirania do capitalismo

imperialista, Hany pensa: «Para o diabo com as suas revoluções. Tudo o

que me interessa é ganhar o sustento para a minha família e não o consigo

fazer. Para o diabo com a sua revolução.» (Ter e Não Ter)

Hany Morgan não é um herói com consciência política e, na verdade,

não sequer reflete a consciência do autor. Hemingway começou lentamente

a perceber que a «paz especial» concedida a Nick Adams, em Homens Sem

Mulheres, ou a Frederic Hemy, no romance Noutro País, não podia manter-

se por mais tempo. A ambivalência de Hemingway tomou-se igual mente

evidente na sua epopeia sobre a Guerra Civil espanhola, Por Quem os Sinos

Dobram. Robert Jordan, o professor universitário americano e protagonista

do romance, que se assemelha em muitos aspetos ao major Robert


Merriman um antigo professor de Economia da Califórnia que Hemingway

conheceu na Brigada Internacional XV, mas que, de resto, assume

claramente alguns traços do seu criador -, oscila entre a abstinência política

e um idealismo desiludido. Tendo ido para Espanha com o intuito de lutar

«em nome de todos os pobres do mundo e contra a tirania» (Por Quem os

Sinos Dobram), faz-se passar inicialmente por uma pessoa pragmática que

apenas quer cumprir o seu dever perante o gmpo de guerrilhas com as quais

deveria fazer explodir uma ponte. Da mesma forma, posteriormente, as

aspirações socialistas das pessoas em torno de Jordan só lhe parecem

aceitáveis de um ponto de vista militar e pragmático. «E o que dizer da

chamada nova ordem social e de todas essas coisas? Os outros deviam era

preocupar-se com isso. Ele havia planeado as coisas de forma diferente

depois da guerra. Combate nesta guerra porque ama o país e acredita na

República e está convicto de que a sua queda tornaria insuportável a vida

de todos os seus apoiantes. Enquanto a guerra durou, submeteu-se à

disciplina comunista. Aqui em Espanha, os comunistas são as pessoas mais

disciplinadas e que encaram a guerra de forma inteligente e íntegra. E ele

submete-se à sua disciplina durante a guerra porque, no que diz respeito ao

modo de lidar com esta, este é o único partido cujas convicções e disciplina

ele consegue aceitar. [...] Que tipo de perspetiva política é a dele?

Nenhuma, diz para si. Mas não podes revelar isso a ninguém, pensa. Nunca

o admitas!» (Por Quem os Sinos Dobram)


Quando Maria, uma jovem que havia sido violada por soldados

falangistas, lhe pergunta se ele é comunista como os outros, Robert Jordan

responde-lhe que é antifascista e que já o seu pai e o seu avô eram

republicanos (o sinal da indecisão de Hemingway é o facto de, na primeira

versão do romance, Jordan responder simplesmente «Sim» a esta

pergunta43). Por outro lado, Jordan sente-se igualmente participante de

uma espécie de cruzada. «Apesar de toda a burocracia, de toda a

incapacidade e de todas as querelas partidárias, a sensação era semelhante à

de esperar a confirmação, mas depois acabar por não experimentar a

sensação de entrega a um dever sagrado para com todos os oprimidos do

mundo, sensação essa de que se fala com tanta relutância como de uma

experiência religiosa e que é tão genuína como aquela que nos invade

quando ouvimos Bach ou quando estamos na catedral de Chartres ou de

León e vemos a luz a entrar pela janela. [...]

Portanto combates, pensou. E na guerra perde-se depressa a pureza das

sensações, quando não se perde a vida e se consegue manter de boa saúde.»

(Por Quem os Sinos Dobram)

Em última análise, Por Quem os Sinos Dobram é um livro

profundamente romântico. Foram vários os críticos a notar que este

romance representa com grande mestria a atmosfera e as contradições da

Guerra Civil espanhola, embora muitos elementos, como a história de amor


central entre Jordan e Maria, a linguagem afetada mesmo das pessoas mais

simples até ao falso espanhol, ou a concentração das barbaridades

retratadas obedeciam mais a uma intensificação romântica do que a uma

descrição realista, já que a «pureza das sensações» com que Jordan tanto se

preocupa acaba por ser recuperada quando este se apaixona por Maria e

vice-versa. Quando, no final do romance, gravemente ferido, oculta a

retirada do seu grupo de resistentes e fica à espera de ser descoberto e

aniquilado pelo inimigo, é Maria que dá a Jordan a sensação de que vai

morrer por algo com sentido. Confirma-se assim, uma vez mais, que a

preocupação de Hemingway com o romance era efetivamente muito mais

humanitária do que política, a comunidade experiente de pessoas que ele

próprio tanto procurou nessa fase da sua vida, mas da qual, ao mesmo

tempo, quis fugir. A tendência de Hemingway para se relacionar com

pessoas «simples» como mecânicos, capitães de embarcações, pescadores,

cowboys, rancheiros e guias turísticos tanto pode ser interpretada como

uma necessidade de evitar os seus próprios complexos de inferioridade e

assumir-se como espiritualmente superior, como também de fugir da aura

da fama que se tinha formado em seu tomo muito por sua própria culpa.

Durante todo o inverno de 1939 e o verão de 1940, Hemingway

trabalhou obsessivamente no novo livro, oscilando entre as sensações de

dúvida e de confiança. Não podia nem queria ter de suportar novamente um


fracasso como o de As Verdes Colinas de Africa. Em fevereiro, escreveu

ao seu editor: «Charlie, já nada tem futuro. Espero que concordes comigo.

É isso que me agrada na guerra. Dia e noite, há sempre a possibilidade de

se ser morto e não poder voltar a escrever. Para ser feliz, tenho de escrever,

independentemente de ser pago para isso ou não. Mas é uma doença

diabólica nascer com essa necessidade, porque assim passa de doença a

vício. Além disso, quero fazê-lo melhor do que já alguma vez fiz e, assim,

acaba por tomar-se uma mania. Uma mania é qualquer coisa de

assustador.» Depois de ter ido buscar ao Oxford Book of English Verse o

título para Noutro País, agora, uma vez mais dando pouco azo à sua

imaginação, descobriu no Oxford Book of English Prose uma citação de

John Donne: «Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada

ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo; [...] aflige-

me a morte de qualquer ser humano porque sou parte da Humanidade. E

por isso nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti

[...].»Em outubro de 1940 era lançado Por Quem os Sinos Dobram numa

edição de 160 mil exemplares com a chancela da Scribner’s e outros 200

mil para o Book of the Month Club. A reação foi avassaladora. No espaço

de um ano foram vendidos meio milhão de exemplares. Na verdade, o

prémio Pulitzer só não foi concedido a Hemingway devido às passagens

«imorais», mas a crítica ficou mais do que extasiada. A classe média

louvou o tom idealista do romance e a competência narrativa de


Hemingway, os críticos liberais salientaram os seus traços libertários e

individualistas. Tal como era esperado, da parte da esquerda e das Brigadas

Internacionais, a crítica foi cortante, devido à descrição desfavorável do

papel dos comunistas, que foram retratados por Hemingway como

marionetas vaidosas nas mãos dos russos e indiferentes às necessidades do

povo, bem como devido à representação chocante (e historicamente

documentada) de um massacre numa pequena aldeia, cujos administradores

pró-fascistas foram barbaramente executados por soldados republicanos.

Seja como for, o livro também recebeu elogios por parte de alguns dos que

participaram na guerra, entre os quais Hans Kahle, Gustav Regler, Gustavo

Duràn e Steve Nelson.


CABELOS COMO «UM CAMPO DE TRIGO AO VENTO»:

MARTHA GELLHORN

Na esfera privada, Hemingway também tinha novamente razões para ser

feliz. As cenas com Maria, que dotavam o romance de um tom sentimental

e idealista, não figuravam neste em vão, mesmo que, do ponto de vista

narrativo, servissem de contraste com os eventos da guerra. Hemingway

havia descoberto novamente o amor. Chamava-se Martha Gellhorn, era 13

anos mais nova do que ele e trabalhava para a Collier’s Magazine.

Hemingway conheceu-a quando esta esteve em Key West para o entrevistar

para essa mesma revista. Em 1937, voltou a encontrá-la em Espanha

quando ela se encontrava a fazer a cobertura jornalística no local. Três anos

mais tarde, Martha Gellhorn e Hemingway viriam a casar em Cheyenne,

Wyoming. Martha era muito diferente das anteriores mulheres de

Hemingway. Era filha de um ginecologista austríaco que havia emigrado

para os EUA. Tinha sido educada no colégio de elite Bryn Mawr e, quando

Hemingway a viu pela primeira vez, já ela tinha publicado um romance e

um volume de contos que lhe valeram largos elogios. Quando casaram, em

novembro de 1940, já contavam com quase quatro anos de relação

assumida. Sucintamente, ela tinha interesses profissionais e literários

próprios e era, ela própria, uma jornalista ambiciosa que assumia uma
posição liberal de esquerda consciente em conversas e nas suas

reportagens. A impressão com que John Hemingway ficou quando esteve

com ela pela primeira vez deixa transparecer um pouco do seu carisma

emancipado. «Conheci-a quando o Papa me perguntou se eu me queria

encontrar com eles os dois na estreia de The Spanish Earth em Nova

Iorque. Segui da escola para o cinema e, de repente, uma loira

deslumbrante aproximou-se de mim e disse: “Tu deves ser o Bumby.”

Respondi “Sim, claro” e recebi um abraço, tanto quanto me recordo. Acho

que ela foi também a primeira senhora atraente a quem ouvi dizer a palavra

“foder”, ainda que, vindo da sua boca, não soasse nada chocante. Ela

usava-a de um modo tão simpático que eu, pensando nas suas origens,

continuo sem conseguir perceber, já que ela vinha de uma família decente

de St. Louis, tal como todas as mulheres do meu pai à exceção da Maiy.»

Para desgosto de Hemingway, Martha nunca se resignou por muito tempo

ao ritmo de vida descontraído e improvisado de Finca Vigia, a casa que

alugaram em Cuba em março de 1940 e que Hemingway viria a comprar

em dezembro seguinte com as primeiras receitas de Por Quem os Sinos

Dobram, para lá passarem os verões daí em diante. Por vezes, Martha fugia

mesmo do constante entra e sai das visitas e dos amigos, das festas regadas

a álcool e dos encontros dos grupos dos barcos, da pesca e da caça. Martha

estava disposta a construir algo, mas não pelo preço de estar sempre com

preocupações e sobretudo não às custas de abdicar da sua profissão. Além


disso, não lidava bem como os crescentes hábitos e tiques pouco

civilizados de Hemingway como, por exemplo, os 30 gatos que ele foi

reunindo à sua volta em Finca Vigia.

Em outubro de 1940, Hemingway escreveu a Marx Perkins de Sun

Valley, Idaho, dizendo o seguinte: «A Dorothy Parker e o marido vieram; o

Gary Cooper e a mulher também cá estão, portanto temos por cá muita

companhia; por isso, amanhã vamos até à região virgem onde bifurca o

Salmon River.» Sun Valley veio substituir o Nordquist Ranch, no

Wyoming, onde Hemingway e Pauline eram convidados frequentes.

Martha e Hemingway tinham participado numa expedição de caça ao pato

no outono. Foi nessa ocasião que conheceram por acaso Gary Cooper e a

mulher, que também iam caçar para Sun Valley. Os dois casais tomaram-se

amigos. Martha ficou particularmente agradada com a atitude elegante e

cosmopolita dos Cooper. «Desde que a Marty vem para aqui com os

Cooper passou a querer que eu vista roupa da moda e coisas do género mas

só se tivesse tuberculose é que conseguiria vestir o tamanho do Cooper e,

de qualquer forma, ficaria sempre com esta maldita cara. [...] A caçada aos

patos está a correr bem», afirmou Hemingway em tom exasperado. Pouco

depois do lançamento de Por Quem os Sinos Dobram, a Paramount

comprou os direitos cinematográficos do romance por 136 mil dólares. Em

Cooper, um homem grande, reservado e com uma aparência viril,


Hemingway encontrou finalmente o ator certo para representar o seu

Robert Jordan, pelo que o recomendou à Paramount. Para o papel de Maria

queria Ingrid Bergman, uma estrela que estava nessa altura a entrar em rota

de ascensão. Dois anos mais tarde teriam início as gravações sob a direção

de Sam Wood. Antes disso, no entanto, Martha Hemingway admitiu ter

aceite uma proposta da Collier’s. A Europa e a Ásia estavam em guerra e

ela já era suficientemente credenciada enquanto correspondente de guerra.

Um mês depois, encontrava-se a caminho da Europa, mais propriamente do

teatro de guerra russo-finlandês, onde permaneceria até janeiro de 1941,

muito contra a vontade do marido.

Ainda que Hemingway gostasse de descrever homens sem mulheres nos

seus romances e contos, na sua vida privada, a tendência era precisamente a

oposta: Hemingway sentia-se desamparado se não tivesse uma mulher

junto de si. Após a partida de Martha, passou a comportar-se como uma

criança a quem a mãe não dedica atenção suficiente, desenvolveu

sentimentos de isolamento, afundou-se em autocompaixão e refugiou-se no

álcool. Exteriormente, também regrediu e foi-se deixando decair. Quando

regressou, Martha reagiu com humor e ironia, numa fase inicial, mas não se

deixou intimidar pelo seu jogo infantil e aceitou outras propostas. Em vez

de atenção, Hemingway recebeu o oposto. O seu primitivismo despertou

aversão em Martha e, não raras vezes, esta sentiu-se impotente perante o


seu declínio gradual e as maneiras grosseiras e muitas vezes fisicamente

agressivas.

Em fevereiro de 1941, Martha conseguiu convencer Hemingway a fazer

uma viagem consigo até à frente sino-japonesa como correspondentes de

guerra. Com um vigor recém-adquirido, Hemingway reavivou as suas

faculdades jornalísticas e escreveu seis artigos para o tabloide liberal PM

com uma avaliação perfeitamente realista da situação político-militar.

Percorreram os dois todo o teatro de guerra do leste asiático, fizeram

entrevistas e tiveram conversas com militares britânicos de alta patente,

com o general Chiang Kai-shek, oficiais chineses do Kuomintang e com o

embaixador norte-americano. Hemingway recuperou a sua euforia, fez

experiências com a forma jornalística, como, por exemplo, na reportagem

sobre a construção de um aeroporto no norte da província de Sichuan, em

que, para além de uma série de números, faz uma descrição dos

trabalhadores chineses semelhante a uma pintura de guerra numa pequena

aldeia anciã, a fim de ilustrar o tremendo potencial humano da China. «No

início dos trabalhos, 60 mil trabalhadores retiraram 220 mil metros cúbicos

de cascalho de uma seção do rio com oito quilómetros de comprimento.

Trinta e cinco mil pessoas a extrair o cascalho. Foram usados cinco mil

carrinhos de mão e 200 mil cestos carregados em barras de suporte. Estas


barras dobravam com o peso da carga até partirem. Os homens trabalhavam

em turnos de 12 horas. [...]

A primeira coisa que vi foi uma nuvem de pó que vinha pela estrada

fora, juntamente com um exército de farrapos de roupas, pés cheios de

calosidades e rostos sulcados. Marchavam na nuvem de pó e cantavam, e

os seus estandartes esfarrapados esvoaçavam ao sabor do vento.» (Chinese

Build Air Feld, The First Forty Nine Stories) O regresso aos Estados

Unidos foi uma desilusão. Hemingway descobriu que o imposto sobre os

seus rendimentos de 1940 era de 75°/o e, como tal, para 1941 restavam

137.367,01 dólares, que mal chegavam para cobrir as suas despesas fixas.

A única saída possível para Hemingway era permanecer três meses

seguidos fora dos EUA para obter o estatuto de residente no estrangeiro.


A TOMADA DO RITZ

Em dezembro de 1941, as forças aéreas e navais japonesas atacaram de

surpresa a frota americana do Pacífico em Pearl Harbour, afundando 19 dos

navios de guerra aí ancorados. No dia seguinte, os EUA declararam guerra

ao Japão e, poucos dias mais tarde, estavam também em guerra com a

Alemanha e as Potências do Eixo enquanto aliados do Japão. A guerra de

Hitler na Europa assumia assim uma dimensão mundial.

Com o argumento de que o raio de alcance dos submarinos alemães

chegava à costa americana, Hemingway conseguiu que o Pilar fosse

oficialmente reconhecido como uma espécie de barco chamariz para atrair

submarinos. Com os seus motores Universal e Chrysler Marine de 45 e 90

cavalos, o barco tinha um raio de ação de 500 milhas náuticas e conseguia

chegar aos 8 nós. O Pilar foi apetrechado com equipamento de rádio, um

canhão e ainda metralhadoras e cargas de profundidade. Caso surgisse um

submarino, anunciava Hemingway entusiasmado, queria ser visto e depois

fazê-lo ir pelos ares. Do ponto de vista de Martha, no entanto, o fervor

militar de Hemingway era apenas um subterfúgio para conseguir obter

gasóleo, que era racionado naquela altura, para assim poder ir à pesca e

embebedar-se generosamente. Durante um período de dois anos,

Hemingway cruzou regularmente e em vão as águas cubanas com o Pilar e


a sua tripulação de nove homens, até que Washington dispensou os

préstimos da «fábrica do crime» (crime shop), como Hemingway designava

orgulhosamente o seu barco, e transferiu os serviços de espionagem para o

FBI, cujos agentes troçaram das amadoras forças bélicas de Hemingway.

Sendo que Hemingway se recusava terminantemente a abandonar Cuba

mais uma vez, Martha teve de inventar uma desculpa para regressar à

Europa, até porque o ambiente também fervilhava por lá. Sem cerimónias,

pediu ajuda a Roald Dahl, que viria mais tarde a ser escritor e que, na

altura, era o representante da Força Aérea na embaixada britânica em

Washington. Na sequência disso, Dahl fez chegar a Hemingway a

informação de que a Royal Air Force se sentiria lisonjeada se um escritor

da sua estirpe fizesse a cobertura das suas atividades para um periódico

americano. Caso Hemingway ponderasse aceitar uma proposta desse tipo,

passaria a ser considerado na Grã-Bretanha como uma pessoa interessada

nos «assuntos estratégicos» e seria oficialmente transportado para Londres

de avião. Lisonjeado, Hemingway aceitou e, em março de 1944, recebia

juntamente com Martha as suas acreditações enquanto correspondentes de

guerra para a Collier’s, seguindo caminho em direção a Inglaterra.

No caso de Hemingway, estar na guerra significava basicamente estar

aquartelado em Park Lane, Dorchester. Tal como acontecera em Paris 20

anos antes, convidava toda a gente para combates de boxe, fazia-se passar
por perito em touradas, relatava as suas aventuras enquanto caçador de

submarinos, vagueava e era tido como o grande escritor americano. Em

breve, o correspondente de guerra teria a imprensa atrás de si. O castigo

chegou numa noite em que o fotógrafo da LIFE, Robert Capa, um velho

amigo dos dias da Guerra Civil espanhola, organizou uma festa. Na viagem

de regresso, o carro onde Hemingway seguia foi de encontro a um tanque

de água e este sofreu um grande ferimento na cabeça e um traumatismo

craniano. Martha, que tinha chegado a Londres como única passageira a

bordo de um cargueiro com uma carga altamente explosiva e em

permanente risco de ataque por parte dos submarinos alemães, encontrou-o,

sedento de compaixão e do seu amor, deitado numa cama da London Clinic

com uma ligadura na cabeça. Ela, ao contrário dos anseios dele, troçou do

grande guerrilheiro e repreendeu-o por ser um bêbado irresponsável e

delinquente. Hemingway nunca lhe perdoaria aquela reação.

Hemingway havia chegado à Europa mesmo a tempo de participar no

Dia D, a invasão da Normandia pelas Tropas Aliadas a 6 de junho de 1944.

No entanto, só lá chegou após o primeiro desembarque efetivo e Martha

antecipou-se-lhe com um relato, mas os leitores da Collier’s não tinham de

o saber: «Quando o barco era elevado por uma onda, a chuva passava de

verde para branco e um manto de espuma caía sobre os soldados, as armas

e as caixas de munições. Ao fundo avistava-se a costa francesa. A frota de


transporte cora os seus mastros, guindastes e gruas estava agora por trás de

nós e, um pouco por todo o lado no mar, viam-se lanchas de desembarque a

avançar em direção a França. Do topo da vaga viam-se também as silhuetas

encobertas dos cruzadores e os dois grandes couraçados que aguardavam

transversalmente à costa. Podia ver-se o brilho claro dos disparos dos seus

canhões e o fumo acastanhado que expeliam contra o vento que o varria

para um dos lados.

“O que falta, homem do leme?”, gritou o tenente Robert Anderson de

Roanoke, Virgínia, a partir da popa.

“Dois e vinte, Sir”, respondeu o homem do leme, Frank Currier de

Saugus, Massachusetts. Os seus olhos olhavam fixamente para a bússola. O

seu rosto era pequeno, jovem e sardento.» (Voyage to Victory, The First

Forty Nine Stories) De regresso a Inglaterra, Hemingway voou em aviões

da Royal Air Force para ver como estes intercetavam os mísseis V1 com os

quais o exército alemão bombardeou o sul de Londres. A 18 de julho,

Hemingway juntou-se a uma das divisões de tanques blindados do general

Patton, mas passou rapidamente para a quarta divisão de infantaria do

general Barton, onde travou amizade com o coronel (posterior major-

general) Charles «Buck» T. Lanham. Hemingway estava no seu habitat,

contudo, com a sua petulância, intervinha mais ativamente nos eventos do

que o permitido a um correspondente de guerra nos termos da Convenção


de Genebra. Numa posterior audiência do Tribunal Militar, na qual

deveriam ser clarificadas algumas acusações contra si, conseguiu, no

entanto, negar todas as infrações ao seu estatuto de correspondente de

guerra e ser absolvido.

Entretanto, veio a libertação de Paris, segundo Hemingway: «Setembro

de 1944. Entrámos em Paris totalmente equipados, libertámos o Traveller’s

Club, o Ritz, etc. e passámos uns tempos fantásticos. Tive de escrever

alguns artigos. Tentei despachá-los para me juntar novamente à divisão.» A

verdade é que, a 2 de agosto, Hemingway estava em Rambouillet, dois dias

antes da libertação da cidade e três semanas antes de o general Leclerc lá

chegar. Graças aos seus conhecimentos de francês, Hemingway pôde

ajudar como oficial de ligação entre as patrulhas da resistência francesa e

as tropas americanas, reunindo assim um pequeno grupo de homens à sua

volta. Foi com esse grupo que, a 25 de agosto, marchou pelo Bois de

Boulogne, passando por desvios até ao Traveller’s Club nos Champs-

Élysées e ao Ritz na place de Vendôme, alojando-se no quarto 31 e ai se

fixando, bebendo champanhe e conhaque. Entre as suas visitas ao longo das

semanas que se seguiram contaram-se André Malraux, Jean-Paul Sartre,

Simone de Beauvoir, George Orwell e Jerome D. Salinger. Excetuando

algumas breves interrupções, o Ritz viria a ser o local de residência de

Hemingway durante o restante período em que esteve na Europa até ao seu


regresso aos EUA. Em setembro de 1944, saiu de lá na sequência de uma

carta pouco séria e sarcástica remetida por Lanham, ficando uma vez mais

por três semanas na frente e tendo estado presente nos violentos combates

ao longo da Linha Siegfried, nomeadamente em Hürtgenwald. Hemingway

encontrava-se em pleno palco de guerra, cheio de coragem e de boa

disposição. Em outubro, testemunhou o último ataque desesperado dos

tanques do marechal de campo Von Rundstedt na ofensiva alemã das

Ardenas. Hemingway escreveu as seguintes palavras a Max Perkins:

«Tenho material para um livro fantástico. Participei em todas as ações da

divisão até pouco antes do ataque. Se continuar com sorte, quero parar para

trabalhar num livro sobre isto. Quero escrever um romance não um livro de

guerra. Um romance que inclua mar, céu e terra.»

As reportagens dessa fase vivem muito da propensão de Hemingway

para a observação e para as fontes pessoais. Não ambiciona a fidelidade aos

factos, mas sim o tom e a atmosfera produzidos por intermédio de

estratégias narrativas como diálogos inventados e cenas dramáticas. Apesar

da sua preferência por ações militares, nos contos enviados para a Collier’s

são abordados sobretudo temas como a crueldade da guerra e a ausência de

sentido da morte no campo de batalha. «Se realmente quiser, e eu ainda sei

de algumas coisas, ficarei feliz se lhe puder contar o que se passou nestes

bosques nos dez dias seguintes, tudo, até mesmo sobre os contra-ataques e
sobre a artilharia alemã. É uma história muito, muito interessante, desde

que seja conhecida. Provavelmente terá também qualquer coisa de épico.

Sem dúvida que chegará aos cinemas.

Na verdade, poder-se-ia mesmo fazer dela um guião para um filme, e

ainda oiço o coronel dizer:

A única coisa que o pessoal dos filmes mal conseguirá representar serão

os membros da SS depois das explosões, os rostos negros, o sangue a jorrar

pelo nariz e pela boca e como se ajoelhavam e se agarravam ao estômago e

como mal conseguiam sair dos caminhos dos tanques. Ou então tudo isso é

capaz de até parecer mais real no cinema.» (War in the Siegfried Line, The

First Forty Nine Stories). O Natal seguinte foi passado no Luxemburgo,

onde Hemingway se reencontrou com Martha. Esse encontro revelou-se

catastrófico e ambos acabaram por decidir separar-se. Três meses mais

tarde, Hemingway estava de regresso aos EUA.


SRA. HEMINGWAY N.° 4: MARY WELSH

Pouco depois da sua chegada a Londres, Hemingway conheceu uma loira

do Minnesota extremamente atraente e que trabalhava para o Daily

Express. Chamava-se Mary Welsh e era casada com um repórter do Daily

Mail. Depois de Martha ter demonstrado uma tão evidente falta de amor

por ele na London Clinic, Hemingway, magoado, começou abertamente a

fazer a corte a Maiy com versos tão apaixonados que, em comparação com

a sua prosa retraída, pareciam quase desajeitados. «Porque agora, ao

anoitecer, intencionalmente observo o relógio, o seu tiquetaque elétrico e

como vai saltando de hora em hora, quando ela chega e abre a porta

silenciosamente rodando a chave na fechadura. Diz: “Posso entrar?” Suave

e encantadora no olhar e no toque, vem para devolver o teu coração que

tinha ido embora; para curar toda a solidão e trazer o que tivemos de deixar

no barco.»

E ela veio. Quando Hemingway fez do Ritz em Paris a sua residência,

Mary acompanhou-o. Hemingway chamava-a carinhosamente de «Pickle»

devido à sua estatura pequena, apesar de extremamente proporcional. Em

pouco tempo, Maiy conheceu também o outro lado do Papa, alcunha por

que Hemingway tinha ficado entretanto conhecido. No Ritz, Hemingway

transferiu a sua sede de vingança contra Martha e também contra o marido


de Maiy, que estava a levantar obstáculos relativamente ao divórcio, e

disparou com uma arma automática contra a sua fotografia, que tinha

colocado sobre a retrete. No entanto, Maiy admirava Hemingway, tinha

uma boa capacidade de adaptação e estava apaixonada por ele a receita

certa para restabelecer o orgulho masculino ferido de Hemingway.

Quando Hemingway regressou a Cuba, Mary adaptou-se às novas

condições de vida, ainda que lhe custasse limitar a sua atividade jornalística

e passar a viver em estado de dependência financeira. Ao contrário de

Martha, entendia o seu papel ao lado de Hemingway. Aquele era um

mundo totalmente desconhecido para ela: enquanto as duas primeiras

mulheres de Hemingway provinham de famílias burguesas abastadas, Mary

Welsh vinha de um meio modesto. De repente, em Finca Vigia, viu-se

perante uma casa com quatro jardineiros, cozinheira, mordomo, criadas de

quarto, dois jovens ajudantes e motorista. No entanto, Maiy soube dar a

volta à situação, aprendeu espanhol e depois começou a dominar

relativamente bem o dialeto cubano. Com o passar dos anos, mandou

construir um campanário na finca, renovou o jardim e transformou o

interior e o exterior da propriedade no espaço idílico que ainda hoje está à

vista dos visitantes. O filho mais velho de Hemingway recorda: «Encontrei-

a pela primeira vez em Havana, em La Finca. O Papa disse: “Vais gostar da

Mary, ela está lá em baixo junto à piscina. Vai lá e apresenta-te!” E eu


desci até à piscina e da água saiu uma ninfa completamente nua. Pegou na

toalha sem pressas. Portanto, a minha primeira impressão da Maiy foi

estupenda.» Seja como for, Mary também sabia bem o que queria. A 21 de

dezembro de 1945 saía o divórcio de Hemingway e Martha Gellhom e, a 14

de março de 1946, este e Maiy casavam-se em Havana. Nessa mesma noite

tiveram a primeira discussão conjugal, despoletada por Hemingway por

causa de uma insignificância, e que só não terminou com Mary a fazer as

malas e ir embora porque estava demasiado cansada e entorpecida pelo

champanhe do copo-d’água mais tarde, viria a partilhar com Hemingway o

gosto pelo consumo de álcool. Na manhã seguinte estava restituída a paz e

dava-se início ao quarto casamento de Hemingway.

Contrariamente aos seus anteriores hábitos, desta vez também

Hemingway se esforçou. «Caro Buck, escrevi-te a dizer que não queria

voltar a beber nem quando estivesse acordado durante a noite, nem de dia.

Consegui uma redução de 90°/o. Além disso, mantenho-me absolutamente

fiel. Acaba por ser mais fácil quando se ama realmente alguém. Agora não

beber nada é que é um maldito aborrecimento. Mas se isso for a única coisa

que posso fazer por ela neste momento, então vou fazê-lo. Amo-a muito e

quero ser um bom marido.» A prova de fogo aconteceu no outono, por

ocasião de uma viagem a Sun Valley para a habitual temporada de caça de

Hemingway. Em julho, Mary havia descoberto que estava grávida, mas


ainda não suspeitava de que se tratava de uma gravidez etópica. Em

Casper, Wyoming, sofreu uma rutura de uma das trompas de Falópio.

Hemingway levou-a imediatamente para o hospital mais próximo, mas o

cirurgião responsável estava fora numa pescaria, e só estava de serviço um

jovem médico pouco experiente, que despachou Mary depois de a examinar

com relativa indiferença. Quando a pulsação de Mary começou a ficar mais

fraca e esta perdeu os sentidos, Hemingway enfiou-se impulsivamente

numa bata, colocou uma máscara, mandou o jovem médico acobardado

procurar uma veia e deu a Mary uma injeção de plasma. Quando o

cirurgião regressou, a pulsação e a respiração de Maiy já tinham voltado ao

normal. Ao fim de outras quatro injeções de plasma, duas transfusões de

sangue e uma semana numa tenda de oxigénio, Mary já não corria risco de

vida, mas havia perdido o bebé. Semanas mais tarde, Hemingway

continuava ainda fascinado, à sua maneira, por esta demonstração de que

«se podia mandar foder o destino» em vez de se subjugar ao mesmo. Para

além disso, a coragem e perseverança da mulher delicada que tinha ao seu

lado deixaram-no impressionado.

Mary viria a ser um pilar na vida de Hemingway, ainda que, mais tarde,

chegassem a ser mais frequentes as discussões do que os momentos de

harmonia. Em 1956, Hemingway viria a salientar quase em jeito de louvor:

«Miss Mary é persistente. Também é corajosa, charmosa, engraçada,


adorável e uma boa mulher. E maravilhoso viver com ela. [...] Quando ela

está fora, a finca fica tão vazia como a garrafa mais vazia que ela já alguma

vez deitou fora, e a minha vida torna-se um vácuo tão isolada como uma

válvula de rádio quando a bateria está vazia e não há nenhuma tomada por

perto.» (A Situation Report, The First Forty Nine Stories) Coube a Mary o

mérito de o quarto casamento de Hemingway ter perdurado até à sua morte.

Em todo o caso, esta perseverança exigiu da sua parte um esforço frequente

para fechar os olhos quando Hemingway ignorava as suas necessidades

com uma hostilidade provocatória, porque precisava recorrentemente de

alimentar o seu frágil ego com a admiração de alguma jovem mulher desde

a sua paixoneta por Adriana Ivancich, passando pela jovem Irin Valerie

Danby-Smith, que contratou para sua secretária particular e que viria mais

tarde a casar com o filho Gregory, até Debba, uma jovem de Makamba que

conheceu na sua viagem a África de 1953/54. Em todo o caso, será de

duvidar que estas relações tenham sido consumadas, uma vez que

Hemingway, contrariamente ao que demonstrava, teve de se debater com

crescentes problemas de impotência devido ao alcoolismo. Seja como for,

foram várias as vezes em que Mary esteve a ponto de se separar do marido,

mudando sempre de ideias no último minuto.


«A FELICIDADE DO JARDIM QUE UM HOMEM TEM DE

PERDER»

Na primavera de 1948, Hemingway começou a trabalhar num novo

romance em tomo dos temas da sexualidade e da identidade, para o qual

recorreu à sua experiência de vida conjugal com Pauline e Hadley, assim

como à sua vida com Mary nesse momento. Em dezembro, Hemingway

formulava da seguinte forma a linha programática do romance:«[...] a

felicidade do jardim que um homem tem de perder». Embora escrevesse a

um ritmo obsessivo, acabaria por não concluir o romance. O Jardim do

Éden só viria a ser publicado postumamente, em 1986, numa edição tão

abreviada como altamente controversa. O romance retrata a relação entre o

jovem escritor David Bourne e a sua mulher Catherine. A ação decorre na

aldeia costeira de Le Grau-du-Roi, junto à foz do Ródano, onde

Hemingway passou a lua-de-mel com Pauline em 1927. Tal como o próprio

autor, o herói do romance está casado há três semanas e já tem escrito um

romance de sucesso. Inicialmente, Catherine partilha das ânsias e dos

desejos do marido. Passam os dias deitados nus na praia a bronzear-se e

permanecem nesse ambiente de dolce far niente sempre que David não está

ocupado com o seu novo romance. A noite, no entanto, vão

experimentando jogos sexuais em que Catherine assume o nome de Peter e


ele o papel de Catherine. Paralelamente, Hemingway desenvolveu a

história do jovem pintor Nick Sheldon e da sua mulher Barbara, que viviam

no Quartier Latin em Paris, história essa que viria a ser cortada na versão

publicada. O minúsculo apartamento de Nick e Barbara assemelha-se

claramente àquele que era habitado por Hemingway e Hadley na rae du

Cardinal-Lemoine em 1922. Barbara, tal como Hadley, também tem fartos

cabelos ruivos e, tal como Catherine Bourne, está tão obcecada pela ideia

da fusão absoluta do casal que quer ser tão parecida com o marido quanto

possível. Quando Nick, que tinha deixado crescer os seus cabelos negros ao

longo de cinco meses, a leva a almoçar fora para festejar o dia em que

Barbara lhe tinha cortado o cabelo como o dela pela primeira vez, ambos

não conseguem parar de se admirar ao espelho da confeitaria 103 e, mais

tarde, fazem amor apaixonadamente em casa. Entretanto, em Le Grau-du-

Roi, também Catherine havia surpreendido o marido com um corte e um

tom de cabelo semelhante ao dele. Da mesma forma, em 1929, pelo seu

trigésimo primeiro aniversário, Pauline pintou o cabelo de loiro e fez um

corte masculino como sinal da sua independência sexual e para fazer uma

surpresa a Hemingway. Em O Jardim do Éden, o clímax do jogo de

identidades sexuais acontece quando Catherine conhece a jovem Marita e

inicia com ela uma relação lésbica, na qual Catherine é o elemento

dominante. Quando David é incluído na relação, forma-se uma espécie de

ménage à trois que termina em circunstâncias totalmente diferentes. No


final do romance, a relação de Catherine e David chega ao fim e esta deixa

o local, ao passo que David e Marita ficam na aldeia, formando um novo

casal.

O Jardim do Éden lança uma nova luz sobre a relação de Hemingway

com as mulheres, assim como sobre a avaliação das personagens femininas

nos seus romances. Em fevereiro de 1927, Hemingway escreveu ao seu

editor Max Perkins sobre uma série de contos para os quais propôs o título

de Homens Sem Mulheres: «Falta em quase todos a apaziguante influência

feminina, devido ao treino, à disciplina, à morte ou a outras

circunstâncias.» Importa notar que o próprio Hemingway passou muito

pouco tempo da sua vida sem essa «apaziguante influência feminina».

Cresceu rodeado de mulheres e, desde 1921 até à sua morte, passou por

quatro casamentos com pausas mínimas entre cada um deles, sendo que

duas das suas mulheres eram mais velhas do que ele. Tal como o

demonstram as suas depressões na altura em que Martha Gellhom o deixou

sozinho em Cuba para ir para a Europa, e tal como Maiy Hemingway

também refere na sua autobiografia55, Hemingway sempre esteve

dependente da presença de uma mulher ao seu lado. Quando vivia

aventuras mais longas e sérias, Hemingway parecia sentir-se obrigado a

separar-se da atual mulher para oficializar o caso com a nova mulher.

Quando terminou a relação com a sua primeira mulher, Hadley, aos seus
próprios olhos, considerou que estava a cometer um pecado imperdoável e

essa foi uma culpa que toda a vida o iria atormentar. Thomas Hudson, o

protagonista de Tis Ilhas da Corrente, deseja que ainda estivesse casado

com a primeira mulher, a mãe do seu filho Tom, com quem viveu dias de

felicidade em Paris. De acordo com o relato de Hemingway sobre a sua

segunda viagem a África com Maiy em 1953, escrito entre 1954 e 1956 e

do qual foram publicados excertos em 1971 e 1972 na revista Sports

Illustrated, enquanto Hemingway estava com Maiy num safari, sonhou com

uma remota viagem à Suíça com Hadley. «A mulher que amei primeiro e

com mais intensidade, a mãe do meu filho mais velho, estava ao meu lado e

dormíamos aninhados um no outro para nos aquecermos e porque essa é a

melhor forma de dormir quando duas pessoas se amam e a noite está

gelada. [...] Como consequência ou herança de uma guerra mal gerida,

dormia mal, e o sono ou a sua irmã, a morte, eram a única coisa em que

pensava durante a noite. [...] No entanto, esta noite, no meu sonho, dormia

feliz com o meu verdadeiro amor nos braços e a sua cabeça encostada ao

meu queixo e, quando acordei, perguntei-me quantos verdadeiros amores

poderá um homem ter, ser-lhes fiel até ao dia em que se comete uma

infidelidade, e refleti também sobre os estranhos princípios morais de cada

país e a quem caberá decidir o que é ou não pecado.»


A correspondência e os trabalhos de Hemingway demonstram que este

sentia a falta do amor devotado de uma mulher, um tipo de amor que ele

próprio era incapaz de dar a alguém. A sua necessidade de amor opunha-se

ao medo de desaparecer, de ser dominado e, paradoxalmente, de perder a

sua virilidade perante a mulher, ou seja, no momento da experiência

existencial da masculinidade, tal como ele experimentou com o amor

castrador e possessivo da mãe. As descrições de Hemingway de uma vida

entre homens podem igualmente ser vistas como uma tentativa de viver a

masculinidade sem a presença das mulheres, cujas diferenças, no entanto,

são essenciais para definir a própria masculinidade. Surgiu então um

impulso puritano, uma espécie de desconfiança inconsciente em relação à

ideia da libertação sexual, aliada a um ligeiro sentimento de culpa. Nos

contos de Hemingway, este medo da fusão encontra-se no prazer sexual

sob a forma de um corte abrupto, quase dececionante da intimidade,

culminando na desvalorização da mulher. «Ele sentiu a sensação a voltar

novamente e desceu as mãos para afastar Kate. Ele desceu e ela aninhou-se

nele, pressionando o seu corpo contra a curva do seu abdómen. Sentia-se

maravilhosamente naquela posição. Ele procurou, de forma um pouco

estranha, e encontrou. Colocou as mãos sobre os seus seios e puxou-a para

si. Nick beijou-lhe as costas intensamente. A cabeça de Kate inclinou-se

para a frente.
“E bom assim?”, perguntou.

“Muito bom. Muito bom. Vem-te, Wemedge. Por favor, vem-te, Vem-te.

Vem-te. Por favor, Wemedge. Por favor, por favor, Wemedge.”

“Agora”, disse Nick.

De súbito, sentiu o cobertor áspero contra o seu corpo.

“Estive mal, Wemedge?”, perguntou Kate.

“Não, estiveste bem”, respondeu Nick. A sua mente estava a trabalhar

em força e com grande lucidez. Tudo lhe parecia muito claro e nítido. [...]

Nick levantou-se. Uma brisa ligeira acariciou-lhe o corpo. Vestiu a

camisa e ficou feliz por a ter vestida. Vestiu as calças e calçou os sapatos.

“Tens de te vestir agora, galdéria”, disse ele.» (Sunimer People, Contos de

Nick Adams)

Nos contos de Hemingway, a união sexual, com a sua força de fusão

física e espiritual, tanto se assume como um momento de experiência

curativa como também como o perigo de dissolução do eu do qual o

homem tem de se proteger. Em Noutro País, Catherine envolve Frederic na

tenda formada pelos seus cabelos e depois cobre ambos com a sua capa.

Depois de terem feito amor, ela diz: «Não existe um Eu. Eu sou tu. Não

inventes um outro Eu.» (Noutro País) Mais tarde, quando ambos fogem

para a Suíça, Catherine, à semelhança da sua homónima em O Jardim do


Éden, propõe a Frederic que este deixe crescer o cabelo e que ela própria

corte o seu, para que ambos fiquem «iguais». No entanto, ao contrário de

David, Frederic recusa a proposta. E interessante a inversão da realidade no

processo de ficcionalização. Assumindo que Hemingway incorporou na

personagem de Catherine traços importantes do seu primeiro amor, Agnes

von Kurowsky, então verifica-se aqui uma inversão dos papéis. Tal como

demonstram as entradas no seu diário57, Agnes von Kurowsky estava

efetivamente apaixonada pelo jovem Hemingway. No entanto, comportou-

se sempre de modo reservado e cauteloso. Nas obras de Hemingway, a

«apaziguante influência feminina» de uma mulher afetuosa e responsável é

sempre tida como algo quase totalmente positivo e capta a simpatia do

leitor, ao passo que os homens são implicitamente desvalorizados por

serem egocêntricos e imaturos. Basta pensar no famoso conto Um Gato à

Chuva, no qual um casal americano sem filhos passa um dia chuvoso num

hotel italiano. A praça diante desse hotel, cinzenta e húmida, representa o

vazio interior e a frieza emocional da relação. Na ação, o homem está

deitado na cama a ler, totalmente alheado, enquanto a mulher anseia por

afeto e por um ser que ela possa amar, mesmo que fosse apenas o gato

perdido diante do hotel.

É incrível a franqueza com que Hemingway tematizou a própria luta

interior entre as suas vertentes masculina e feminina a favor de uma


dissolução da identidade sexual em O Jardim do Éden. No manuscrito

original surgem diversas alusões ao facto de que quanto melhor o

protagonista, David Boume, escreve, tanto mais confusa se toma a sua vida

e mais rápido o processo de dissolução da sua identidade. «Tudo o que

restou de ti foi a tua capacidade de escrever, que está cada vez melhor.

Pensaste que seria destruída. Depois de tudo o que te foi ensinado, teria de

ser assim. Quanto mais decais e mudas, tanto mais essa capacidade cresce e

ganha força. Não deveria ser assim, mas é.» Enquanto fazem amor, a

pedido de Catherine, David chega mesmo a assumir imaginariamente o

papel passivo do casal de mulheres que se amam numa escultura de Rodin

que ela vira em Paris. Assim, pela primeira vez numa obra de Hemingway,

uma mulher vai além da definição tradicional da «apaziguante influência

feminina», sem passar por isso a ser vista de forma negativa. Catherine

pede mesmo a David que descreva a vida de ambos naquele instante na

Riviera francesa. Este cria um retrato compassivo das dolorosas lutas

interiores de Catherine. Para além disso, vai trabalhando no relato da sua

juventude africana, uma juventude no mundo marcadamente masculino do

pai, no qual as mulheres não tinham lugar. Aquilo que tem para contar

acerca desse mundo e do seu pai não é positivo, suscitando, pelo contrário,

dúvidas sobre a função positiva e uma existência exclusivamente

determinada por valores masculinos. A escrita (e aqui impõe-se totalmente

o paralelo com Hemingway) torna-se a única garantia, ou a melhor forma


de certeza a que se pode aspirar, daquilo que é a masculinidade. Mesmo

quando Catherine, num acesso de ciúmes em relação ao trabalho de David,

destrói o manuscrito semiacabado, esta condição não se altera, uma vez que

David reescreve tudo de memória. Poderá assumir-se que, com isto,

Hemingway estava a descrever de modo experimental o seu próprio

conflito interior, a sua busca pela identidade masculina, que se encontrava

ameaçada pela sua vertente feminina, ameaça esta que o próprio procurou

enfrentar por intermédio da sua imagem publicamente encenada de super-

homem, assim como das temáticas abordadas na sua obra literária.

Da mesma forma, a própria escolha das companheiras de vida de

Hemingway também se encaixa neste esquema. À exceção de Hadley,

todas as suas mulheres eram jornalistas bem-sucedidas que trabalhavam

para revistas conceituadas. Hemingway preferia ter como parceiras

mulheres independentes que, desiludido, acabava por abandonar ao fim de

alguns anos. Por detrás desta tendência poder-se-ia talvez esconder o desejo

de ser ele próprio a parte passiva, mais sensível ou mesmo feminina.

Contudo, não colidiria esse desejo com as suas noções rígidas de

masculinidade? Na sua autobiografia intitulada How It Was, Mary

Hemingway fez referência a estes jogos de troca de papéis com

Hemingway. Mary usou a expressão secreta «hermafrodita» para referir os

momentos passados entre os dois a bordo do Pilar e mencionou uma


entrada de Hemingway no seu diário aquando da viagem conjunta a África

em 1953, na qual Hemingway exprimia primeiro a sua admiração por ela

ter pintado o cabelo de loiro platinado como sinal do seu amor e depois

continuava: «Ela sempre quis ser um rapaz e pensa como um rapaz, sem

que com isso seja comprometida a sua feminilidade. [...] Ela adora ver-me

como rapariga, o que faço de bom grado, porque não sou parvo. [...] Ela

recompensa-me por isso e à noite fazemos tudo o que se possa imaginar, o

que eu gosto e o que ela gosta. [...] A Mary nunca teve tendências lésbicas,

mas sempre quis ser um rapaz. Uma vez que nunca consegui fazer de mim

um homem e abomino qualquer contacto físico com homens, [...] adoro o

abraço da Mary, que sinto como algo totalmente novo e que está para além

de quaisquer leis tribais.

Na noite depois de 19 de dezembro estivemos a aperfeiçoar tudo isso e

eu nunca fui tão feliz como nesse momento. EH 20/12/53.»

No conto não publicado A Lack of Passion, escrito entre 1924 e 1927,

Hemingway foi ainda mais longe e descreveu um toureiro homossexual

com uma enorme sensibilidade. Até então, o credo de Hemingway da

«graciosidade sob pressão», como que em extensão do comportamento do

seu autor, tinha sido sempre interpretado como pose exagerada de

masculinidade. No entanto, seria de perguntar se o termo «graciosidade»,

grace no seu original inglês, poderá ser realmente considerado como uma
característica tradicionalmente masculina ou se não deverá ser antes

atribuído ao carácter feminino. No entanto, mesmo que assim não fosse,

será questionável definir, em termos de questões de género, a conceção de

vida de Hemingway como uma sequência de provas em que se é levado até

aos limites e a partir das quais se aufere a capacidade de agir com

prudência mesmo em situações de exceção. Neste aspeto, é necessário

defender Hemingway de si mesmo. As custas da sua imagem pública, era e,

com algumas restrições, continua a ser preponderante a sua reputação de

duro que, pondo de parte os antecedentes psicológicos descritos, também

será seguramente justificada. Os homens descritos por Hemingway nos

seus romances estão quase todos eles destruídos, passaram por horrores,

tiveram de suportar duras derrotas. Jake Barnes de Fiesta é um homem

impotente que não pode satisfazer fisicamente a mulher que ama e que, por

isso, vive só e arredado dos acontecimentos. Hany Morgan em Ter e Não

Ter é um pobre coitado que, no final, é aniquilado ao leme do seu barco

com um tiro. Robert Jordan aguarda a morte encostado a uma árvore. O

pobre e velho pescador Santiago de O Velho e o Mar regressa a terra

derrotado com nada mais do que o esqueleto de um peixe. Basta um olhar

mais atento e os heróis «machos» de Hemingway revelam ser pessoas em

sofrimento, cujo código de honra que lhes dita que não desistam acaba por

deixá-los ficar mal. Por contraste, nas obras de Hemingway, são as

mulheres as personagens verdadeiramente resistentes, que inspiram


continuidade e apoio, sendo que acaba por ser aqui irrelevante se elas são

descritas como fêmeas (bitches) dominantes ou como «mulherzinhas»

submissas.
O VELHO E A GUERRA

Em novembro de 1952, no Dia de Ação de Graças, Maiy Hemingway

enviou uma carta ao marido, em que lhe agradecia por se andar a comportar

tão bem e por não ceder às tentações de uma mulher mais jovem há tanto

tempo. Esta última referência era uma alusão ao envolvimento de

Hemingway com uma jovem aristocrata italiana que este havia conhecido

em dezembro de 1948 em Veneza. O seu nome era Adriana Ivancich, tinha

19 anos e emanava o tipo de feminilidade que Hemingway considerava

estar em vias de extinção na América. Ainda que, para a jovem, este autor

famoso de cabelos brancos não fosse mais do que um amigo encarado

como um pai ou mesmo um avô, Hemingway apaixonou-se por ela. E

cometeu o erro de escrever um romance sobre ambos.

O romance relata os últimos três dias da vida do antigo brigadeiro-

general Richard Cantwell, entretanto despromovido para coronel, que, às

portas da morte, segue para Veneza para realizar o desejo de rever uma

última vez o campo de batalha onde combateu na Primeira Guerra Mundial.

Acometido por recordações melancólicas, passa os dias em busca de

vestígios desse passado. O que Cantwell não suspeita é que o seu fim

acabará por chegar em Veneza, na sequência de um enfarte. Hemingway

deu ao romance o título Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores, com


base numa citação do general confederado Thomas J. «Stonewall» Jackson,

que terá morrido em 1863 depois da batalha de Chancellorsville. Durante

uma ofensiva, Jackson terá pedido que o ajudassem a atravessar o rio para

que pudesse descansar à sombra das árvores. No romance de Hemingway,

Cantwell tem ainda uma oportunidade de viver um grande amor antes de

morrer, quando a jovem condessa Renata se apaixona perdidamente por

ele, o que soa quase a um gracejo típico de uma tragédia de Shakespeare. E

mais: Hemingway estava a parodiar-se a si mesmo em Do Outro Lado do

Rio e Entre as Árvores. «Hum, pensou o coronel. Começa agora a última

ronda e eu ainda não sei que ronda é essa. Só amei três mulheres e perdi as

três. Perde-se as mulheres O velho e a guerra da mesma forma que se perde

um batalhão: por decisões erradas, por circunstâncias impossíveis e por

ordens impossíveis de cumprir. E também por falta de sensibilidade. Ao

longo da minha vida, perdi três mulheres e três batalhões e agora tenho

comigo uma quarta, que é a mais bela de todas e, que diabo, onde é que

tudo isto vai terminar?» (Do Outro Lado do Rio e Entre as Arvores) A

convicção de Hemingway de escrever uma frase verdadeira, que

anteriormente havia tomado a sua prosa lúcida e concisa, caía agora numa

espécie de pedantismo carregado de alusões militares cansativas e

embebido de cenas voluptuosas de sexo de homens velhos. Todas as

bebidas são descritas, as ações secundárias também são «bem» ou

«precisamente» descritas, as metáforas e alegorias usadas estão cheias de


falsidade sentimental. E assim o corpo do vinho branco que os amantes

bebem é «tão pleno e maravilhoso como o de Renata» e o coração do

coronel «trabalha tão perfeitamente como um Rolex Oyster Perpetuai» (Do

Outro Lado do Rio e Entre as Árvores), os amantes tomam-se filhos da Lua

e do Sol e a própria Renata é Vénus nascida da espuma do mar, a santa

padroeira de Veneza, a renascida, como o próprio nome indica, e que vem

para restituir também a juventude do velho coronel.

No inverno de 1949/50, após um desvio até ao sul de França,

Hemingway regressou a Véneto e a Veneza para caçar patos. Gianfranco, o

irmão de Adriana, tinha estado na guerra tal como Hemingway. Havia

combatido em África, do lado italiano, onde também sofrera um ferimento

grave na perna. Eram óbvias as coincidências entre o passado de ambos.

Infelizmente, ao transpor esta conversa, Hemingway não se deu por

satisfeito com a reprodução da realidade apenas com ligeiras alterações,

procurando antes desenvolver uma espécie de diálogo interior filosófico

sobre heróis derrotados. As cismas de Cantwell, que deveriam servir de

resumo da sua vida, descambavam num absurdo sentimental e alagado em

pathos bélico. «Ela beijou-o carinhosa, violenta e desesperadamente e o

coronel deixou de conseguir pensar nas suas lutas ou em eventos pitorescos

ou estranhos. Só conseguia pensar nela, no seu toque e em como a vida se


aproxima da morte num momento de êxtase. E pragueja novamente, o que

é o êxtase? E qual é a categoria e o número de série do êxtase?

E como é o toque da sua camisola preta? E quem criou toda a sua

suavidade e delicadeza e o seu estranho orgulho e a sua dedicação e a sua

sabedoria infantil? Sim, talvez pudesses ter tido êxtase mas, em vez disso, a

tua sorte é irmã do sono. A morte é uma merda, pensou. Vai chegando até

ti em pequenos fragmentos e mal se consegue perceber por onde é que ela

entrou. Por vezes chega de modo horrível. Pode vir de água não fervida ou

de uma bota mal calçada, ou pode chegar com o uivo retumbante,

monstruoso e incandescente em que vivemos. Chega sob a forma dos

ruídos frágeis e crepitantes que antecedem o barulho das armas

automáticas. Pode vir no arco de fumo das granadas ou com o

rebentamento violento de um morteiro.

Eu vi-a chegar, vi-a libertar-se do invólucro da bomba e cair com aquele

efeito de curva singular. Ela chega com a colisão sonora e explosiva entre

aviões ou com a mera falta de tração numa estrada escorregadia.

A maioria das pessoas encontra-a no leito, eu sei, como o seu adversário,

o amor. Passei quase toda a minha vida com ela e a minha profissão era

difundi-la. Mas o que posso eu dizer a esta menina nesta manhã fria e

ventosa do Gritti Palace Hotel?» (Do Outro Lado do Rio e Entre as

Árvores)
No entanto, nem tudo era mau. Quando Hemingway deixava os seus

sentidos fluir e registava aromas, imagens, sons, o seu discurso voltava a

deixar transparecer aquela precisão verbal, aquela força da simplicidade

com que se havia tomado famoso. O romance atinge os seus pontos de

maior densidade onde Hemingway invoca a experiência sensorial de

Veneza ou a paisagem de Véneto no inverno, como, por exemplo, a

frescura da manhã, as pedras, a terra e a água percecionadas na cena da

caçada aos patos que dá início ao romance.

«Observou como o céu se iluminava por detrás da ponta extensa e

pantanosa e, virando-se no barril afundado, lançou um olhar sobre a lagoa

gelada e o pântano e captou ao longe a montanha coberta de neve. Dali de

baixo, onde estava, não se avistavam quaisquer sopés e as montanhas

pareciam nascer abruptamente da planície. Quando ergueu o olhar em

direção às montanhas, sentiu o sopro do vento no rosto; agora sabia que o

vento viria de lá, subindo com o Sol, e que, seguramente, algumas aves

viriam do mar até ali assim que o vento as descobrisse.» (Do Outro Lado

do Rio e Entre as Árvores)

Em dezembro de 1949, Hemingway concluiu a primeira versão de Do

Outro Lado do Rio e Entre as Árvores. Cheio de autoconfiança, conseguiu

inicialmente vender o romance para publicação por episódios na

Cosmopolitan por 85 mil dólares. No entanto, a crítica foi negativa quando


o romance foi publicado como livro, em setembro de 1950. Ainda assim

surgiram comentários favoráveis na Times Literaty Supplement e no New

York Times, nos quais se salientava a qualidade shakespeariana do conto

do pai-amante fatigado e da filha-amada radiante, mas os restantes críticos

acenaram negativamente e, em vez de um toque clássico, viam apenas mau

gosto, imperfeição estilística, trivialidades e falsas emoções de um autor

que não conseguia admitir que estava a envelhecer. Seja como for, o livro

conseguiu alcançar a lista de bestsellers.


«O MEU ROMANCE TERÁ EM SI O MAR, O AR E A TERRA»

Após o ambivalente sucesso-de Do Outro Lado do Rio e Entre as

Árvores, julgava-se que, do ponto de vista artístico, Hemingway teria

chegado ao seu fim. Colocando de parte as maldições e ameaças

pretensiosas de esmagar o crânio de diversos críticos, Hemingway reagiu a

isto com uma dedicação ainda mais fervorosa ao trabalho. Inspirado pela

visita de Ivancich em outubro e dezembro de 1950, mostrou finalmente

vontade de escrever o seu romance sobre o mar ao qual havia feito

referência numa carta a Max Perkins durante a guerra. Perante situações

como esta, Hemingway desenvolvia um ritmo típico: levantava-se ao

romper do dia e começava imediatamente a trabalhar. Escrevia de pé, os

diálogos na máquina de escrever, as descrições quase sempre à mão. Dizia

que o ritmo da escrita à máquina era rápido como o discurso das pessoas e

que, pelo contrário, as descrições deveriam ser lentas e indolentes. Pouco

depois do meio-dia, Hemingway parava de trabalhar e bebia o seu primeiro

Martini ou ia encontrar-se com amigos para o habitual almoço prolongado

em Cuba, ao qual se seguia uma sesta. Depois ia para a piscina

«refrescante, como costumava dizer. Só quando Hemingway sabia

exatamente como continuava uma cena é que infringia este ritual para

continuar a escrever. No dia seguinte, revia o que tinha escrito. O romance


sobre o mar haveria de ter quatro seções longas, tendo já um título

provisório para três: O mar jovem, O mar ausente, A caçada no mar (estas

partes viriam a ser posteriormente renomeadas para Bimini, Cuba e Em

alto-mar).

O romance começa com Thomas Hudson, um pintor americano bem-

sucedido, cujos três filhos, Tom, David e Andrew, vão passar o verão

consigo nas Bahamas, mais propriamente na ilha de Bimini. Apesar de ter

alcançado o sucesso artístico, Hudson não tinha tido sorte com nenhum dos

seus dois casamentos. Contemplativo e cheio de amor pelos filhos, Hudson

vai observando as suas atividades. O verão torna-se uma espécie de

iniciação à vida adulta, com brincadeiras cheias de uma alegria de viver

sem preocupações, com idas a bares e viagens longas a bordo do iate de

Hudson. Estas aventuras atingem o seu clímax quando David, o filho do

meio, trava uma batalha com um espadarte gigante. «Ele via agora as mãos

ensanguentadas de David e os seus pés cheios de arranhões, como que

pintados de vermelho. Viu também os calos que os cabos tinham feito nas

suas costas e a expressão quase desesperada no seu rosto quando virava a

cabeça para o lado no último momento de cada impulso. Olhou para a

cabina e o relógio de latão indicou-lhe que já passavam dez minutos das

seis. O mar também começava a mudar nas proximidades e ele levantou-se

na sombra e observou a linha branca que começava na cana arqueada que


David segurava e seguia até à água. A cana oscilava ininterruptamente. O

Eddy estava ajoelhado na popa com o arpão nas mãos sardentas e olhava

para baixo para a água quase púrpura e procurava vislumbrar o peixe.

Thomas Hudson notou que ele tinha enrolado a linha à volta da ponta do

arpão e colocado a sua extremidade no cabeço de amarração, e voltou a

olhar para as costas de David, de pernas alongadas e os braços estendidos a

segurar a cana.» David perde o peixe precisamente no momento em que a

vitória parece estar garantida, mas suporta a derrota com compostura,

encorajado pelo pai e pelos irmãos. Aquele combate fê-lo adquirir um novo

sentimento de respeito pela criatura que viria posteriormente a constituir o

núcleo do romance de Hemingway O Velho e o Mar: «David fechou os

olhos e disse: “Quando ele já estava no seu limite e eu já mal conseguia

continuar, não teria sabido dizer quem era quem de nós os dois”.

“Acredito”, disse Roger.

“Naquele momento amei-o. Mais do que qualquer outra coisa no

mundo”» (Ilhas da Corrente)

São semanas felizes aquelas em que os irmãos se vão aproximando e, por

sua vez, Thomas se vai aproximando de todos eles. Terminadas as férias, os

três jovens regressam à Europa para junto da mãe. Algumas semanas mais

tarde, Hudson recebe um telegrama a avisar que David, Andrew e a mãe, a

sua segunda mulher, sofreram um acidente fatal.


Na segunda parte de Ilhas da Corrente deflagra, entretanto, a Segunda

Guerra Mundial. Sozinho em Cuba, apenas com os empregados e os gatos,

Hudson continua imerso nas suas lembranças dolo rosas quando lhe é dada

a notícia da morte em combate de Tom, seu filho mais velho, que era

piloto. Acometido por uma dor insuportável, procura afogar o seu

sofrimento em álcool pelos bares. Reencontra inesperadamente a mãe de

Tom, uma mistura de Marlene Dietrich e Hadley, a primeira mulher de

Hemingway, que ainda não sabe da morte de Tom. Hudson nunca deixou

de a amar. Hesitante, como se com isso estivesse a cortar o último elo de

ligação entre ambos, dá-lhe a triste notícia depois de terem feito amor uma

vez mais e de terem vindo novamente ao de cima as velhas divergências.

Finalmente, na terceira parte, que se segue cronologicamente à anterior,

Hudson parte no seu iate camuflado em busca dos sobreviventes de um

submarino alemão afundado ao largo da costa cubana. Procura não pensar

na morte do filho. Depois de ter localizado os alemães juntamente com os

seus homens, o disparo de uma metralhadora deixa-o gravemente ferido.

Hemingway fez do seu herói uma pessoa altamente sensível e torturada

pelas suas recordações e perdas e atormentada por pesadelos. Num desses

pesadelos, Hudson sonha que o seu pénis se transforma numa pistola em

pleno ato sexual e, cansado, assume o papel da mulher. Apesar de algumas

deficiências formais e dos problemas com a criação do suspense


Hemingway também não terminou este romance, que viria a ser finalmente

publicado em 1970 por Mary Hemingway e Charles Scribner, Jr. sob o

título Ilhas da Corrente -, o romance torna-se impressionante precisamente

devido ao tormento do herói e das suas mágoas interiores, o que, ao fim e

ao cabo, remete para o estado psicológico atormentado do próprio

Hemingway. Tudo isto se torna ainda mais evidente na primeira versão

manuscrita de Ilhas da Corrente. Originalmente, Hemingway havia dado

bastante mais importância a Roger Davis, o amigo escritor de Thomas

Hudson. Como tal, nessa primeira versão, os três jovens são mesmo filhos

de Roger, que tinha passado por uma fase de grande insegurança na

sequência de alguns problemas com álcool e mulheres e continuava a tentar

fazer coincidir a vida pessoal e a sua existência enquanto escritor. À

semelhança do que aconteceu com Hadley, mulher de Hemingway, também

à mulher de Roger é roubada uma mala com os manuscritos do marido,

perda que este nunca superou. «Eram as coisas que eu conhecia melhor e

que estavam mais próximas de mim. Algumas delas tinham que ver com a

Primeira Guerra Mundial. Quando as escrevi, senti tudo o que tinha de

sentir. Depositei nelas o sentimento e o saber que conseguia exprimir em

palavras, e escrevi e voltei a escrever até que passou tudo para a escrita e

não ficou nada em mim. Como trabalhei para jornais desde muito jovem,

não me conseguia recordar de nada se não escrevesse. Todos os dias

limpava a minha memória como quem apaga um quadro com uma esponja
ou um pano húmido. Sempre tive este péssimo hábito e entretanto ele

acabou por se virar contra mim.»“ A perda do que foi exteriorizado

assume-se aqui como uma metáfora da solidão existencial do escritor e do

esforço permanentemente renovado de escrever com uma distância em

relação à vida sem que, enquanto pessoa, perca o contacto com ela. Na

primeira versão da personagem de Roger Davis, Hemingway descreveu-o

como um artista sensível e profundamente inseguro, uma representação

que, tal como a experiência sexual em O Jardim do Éden, aponta para a

reflexão de Hemingway sobre a função e a essência das suas criações

enquanto escritor nesta fase da sua vida. Talvez tenha sido por isso que

Hemingway eliminou essas passagens e evitou a publicação do romance.

Tal como referiu Carlos Baker, Hemingway alegou, entre outras coisas, que

uma parte do livro era de natureza muito pessoal e que, por isso, precisava

de o rever mais uma vez.

No entanto, Hemingway considerou que a versão original da primeira

das quatro partes do romance sobre o mar, que constitui a base de Ilhas da

Corrente, estava suficientemente boa e que não necessitava de revisão e,

em 1952, viria a publicá-la enquanto unidade independente e concluída.

Falamos do romance O Velho e o Mar. O velho pescador Santiago parte

sozinho no seu barco para alto-mar ao fim de muitas semanas de regressos

a casa sem qualquer pescado. Nesse dia, contudo, avista um enorme


espadarte. Como um matador diante de um touro, sente-se atraído pela

magnificência e dignidade daquela criatura na água diante de si, ainda que

o combate que se seguirá acabe por se tornar uma questão de vida ou

morte. À semelhança de David em Ilhas da Corrente, num fervor quase

religioso, toma-se indiferente para Santiago se é ele que mata o peixe ou o

peixe que o mata a ele no decurso da luta. «Na volta seguinte, quase o

apanhou. Mas mais uma vez o peixe endireitou-se e nadou devagar para

longe.

Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito.

Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena ou mais nobre do

que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata.» (O

Velho e o Mar) Este é um combate que dura dois dias e duas noites e que

quase custa a vida ao velho. Mais uma vez, Hemingway fez desta luta uma

parábola da luta eterna entre o Homem e a Natureza, mas também da

humildade das suas criaturas. Santiago consegue enfim matar o peixe, mas

depois a sua consciência põe-no a questionar sobre se realmente o tinha

morto num ato inocente. «Tenho pena de ter morto o peixe, pensou. [...]

Talvez fosse pecado matar o peixe.

Julgo que terá sido, embora o tenha morto para viver e dar de comer a

muita gente. Mas então tudo é pecado. Não penses no pecado. É tarde de

mais para isso, e há gente paga para pensar nele. Eles que pensem.
Tu nasceste para pescador, como os peixes para ser serem peixes.» (O

Velho e o Mar). No entanto, a verdadeira prova para o velho acaba por ser

levar o troféu da luta para terra. No caminho de regresso, o peixe é atacado

por tubarões. Em vez de chegar à aldeia com um peixe que lhes serviria de

alimento durante meses, Santiago alcança a praia com nada mais do que o

esqueleto de um grande peixe preso ao barco. Apenas o jovem Manolim,

que cuida do velho pescador, reconhece a grandiosidade e a valentia estoica

do seu velho amigo, que, esgotado, adormece pouco depois do regresso.

O Velho e o Mar foi a resposta de Hemingway às críticas negativas feitas

a Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores. Este último romance foi um

sucesso retumbante. Ainda antes de ser lançado como livro, foi publicado

num único número da LIFE que vendeu mais de cinco milhões de

exemplares no espaço de 48 horas. Os críticos inundaram Hemingway de

elogios e o governo cubano concedeu-lhe a medalha de honra «em nome

dos pescadores de espadarte desde Puerto Escondido até à Bahia Honda».

A crítica atual é um pouco mais severa para com este romance de

Hemingway. Chegou a ser referido que esta obra representava uma

repetição, quase a raiar a autoparódia, do anterior estilo de Hemingway,

que a tentativa de transpor os ritmos das frases e dos diálogos em espanhol

para o inglês soava forçada e saída de um tempo diferente do romance, e

que parecia simplesmente sentimental. Na verdade, em alguns momentos, o


romance parece ser demasiadamente alegórico. Porém, a crítica sua

contemporânea considerou-o uma obra-prima e, ainda no ano do seu

lançamento, agraciou Hemingway com a atribuição do famoso prémio

literário norte-americano Pulitzer. Hemingway reagiu a esta distinção das

suas competências literárias com uma atitude reservada que ocultava os

seus verdadeiros sentimentos: «Ouvi na rádio que O Velho e o Mar foi

distinguido com o Pulitzer. Espero que isso seja vantajoso para a editora e

para o livro. Sendo que nunca recebi um prémio desse género, não faço

ideia dos efeitos que isso possa ter, mas pelo menos mal não há de fazer.»
«TODAS AS MANHÃS LEIO UNS QUANTOS ELOGIOS

FÚNEBRES»: O PREÇO DA FAMA

Nos anos 50, Hemingway era o escritor vivo mais famoso do mundo.

Mas a fama tinha o seu preço. Do Outro Lado do Rio e Entre as Árvores

tinha sido um prenúncio de que o seu talento começava a paralisar.

Hemingway sempre conseguiu fazer com que não passasse despercebido.

Já em Paris no início dos anos 20, altura em que não publicou praticamente

nada, tinha sido subitamente envolto por uma aura de talento. Em alguns

aspetos, Hemingway pode ser considerado o primeiro escritor norte-

americano a alcançar a fama. Na verdade, antes dele já outros escritores

americanos, como Walt Whitman, Henry Wadsworth Longfellow ou Mark

Twain, haviam alcançado um certo patamar de celebridade que provinha

diretamente dos seus leitores e do meio literário, mas na América nunca

tinha havido um fenómeno como Lord Byron ou Oscar Wilde. A ascensão

de Hemingway ao estatuto de figura pública, de celebridade e a atenção

constante que lhe foi concedida durante praticamente toda a segunda

metade da sua vida tomaram-se possíveis graças aos modernos meios de

comunicação em massa, aos jornais e às revistas de qualidade com a LIFE,

a Collier’s ou a New Yorker, assim como à rádio e ao cinema.


A relação de Hemingway com os meios de comunicação sempre assumiu

contornos de certa forma simbióticos. Nos primeiros anos da sua carreira, a

principal ocupação profissional de Hemingway era o jornalismo, altura em

que aprendeu um estilo claro, conciso e pouco académico e, para além do

seu trabalho diário, esteve ainda em contacto com esferas da vida que não

pertenciam às esferas de experiências normais de um escritor, pelo menos

no seu tempo. Graças à sua atividade de correspondente, Hemingway foi

tendo sempre oportunidades para renovar estas relações, que lhe

proporcionavam um inestimável conhecimento da dinâmica interna do

trabalho de reportagem. Neste sentido, as suas posteriores queixas

relativamente às intrusões dos media parecerão necessariamente pouco

credíveis: o próprio Hemingway ganhou a sua fama no mundo do

sensacionalismo e dos escândalos de informação e teria de saber no que se

estava a envolver quando concedia solicitamente pretensiosas entrevistas e

se fazia valer da sua crescente fama. Trata-se da tácita lei da fama à custa

dos meios de comunicação, que dita que, em troca da publicidade que estes

fazem a alguém, lhes deveria ser concedido a eles e ao público o direito de

espreitarem a vida privada, o carácter, o gosto e o comportamento da

pessoa em questão, pessoa essa que acaba por correr o risco de perder o

controlo da imagem que passa para o público.


Ao longo da sua vida, Hemingway viu oito dos seus romances e contos

serem adaptados ao cinema, alguns deles mesmo mais do que uma vez.

Depois de Noutro País, com Gary Cooper, Helen Hayes e Adolphe Menjou

em 1932, seguiu-se em 1943 Por Quem os Sinos Dobram de Sam Wood,

com Gary Cooper e Ingrid Bergman e, em 1944, Ter e Não Ter de Howard

Hawks com Humphrey Bogart e Lauren Bacall. Em 1947, Zoltan Korda

realizou O Caso Maeomber com Gregoiy Peck e Joan Bennett e em 1952

seguiu-se As Neves do Kilimanjaro de Hemy King com a atriz preferida de

Hemingway, Ava Gardner, e Gregory Peck no papel de Harry. Por fim, em

1958, John Sturges rodou uma adaptação de O Velho e o Mar que viria a

ser galardoada com um Oscar, com Spencer Tracy no papel do velho

pescador Santiago. O próprio Hemingway só permitiu que Os Assassinos

de Robert Siodmak, de 1946, fosse rodado com Burt Lancaster como Ole

Anderson e Ava Gardner como Kitty Collins. David O. Selznick, diretor da

Paramount, constatou desde cedo que poderia lucrar com o nome de

Hemingway, já que o cativante contraste entre Hemingway, o homem de

ação, e Hemingway, o culto homem das letras, podia ser amplamente

divulgado a favor da publicidade aos filmes. Foi sobretudo explorada com

avidez a imagem do tough guy, do durão, mesmo que com isso o conteúdo

dos filmes fosse passado para segundo plano até se tornar quase

irreconhecível. Inventaram-se histórias acerca de Hemingway como a de

que num campeonato de boxe de peso médio em Paris se tinha enervado a


ponto de subir ao ringue para deixar o campeão do momento K.O. com

apenas um golpe. Na verdade, Hemingway referia secamente que, à

exceção de Gene Tunney, nenhum escritor se atreveria a fazer algo do

género, mas as anedotas acerca de si mesmo que fazia circular não se

destinavam bem a desconstruir a imagem do super-homem Hemingway.

Pelo contrário, fazia de tudo para que não desviassem de si o foco das

atenções, desde aventuras exageradas, experiências reais dos tempos da

Guerra Civil espanhola e da Segunda Guerra Mundial contadas com prazer,

até espetaculares cenas de pancadaria em público. Para isso contribuíram

também as suas amizades de longa data com musas do cinema como

Marlene Dietrich, que conheceu em 1934, depois do seu primeiro safari, na

viagem de regresso de França, e que voltaria a encontrar em 1944 em Paris,

onde esta lhe cantou sentada na borda de uma banheira.

A imprensa, sedenta de novidades, recebia com deleite tudo o que

Hemingway lhe oferecia. Logo por altura do seu regresso da Primeira

Guerra Mundial, havia desempenhado o papel de herói de guerra diante dos

repórteres. Se não antes, após ter sido colhido por um touro em Pamplona

em 1924, este jornalista em part-time tomou-se objeto de interesse

jornalístico, interesse esse que a editora de Hemingway atiçava ainda mais

através da publicação estratégica de textos de imprensa e de fotografias do

autor. Os casamentos e os divórcios de Hemingway eram noticiados nas


colunas de sociedade e os seus conselhos sobre pesca desportiva e bebidas

tropicais eram entusiasticamente publicados. Em janeiro de 1949 e maio de

1950 surgiram dois retratos de corpo inteiro que incitaram ainda mais a

curiosidade do público em relação a Hemingway. Sob o título Retrato de

Mr. Papa, Malcolm Cowley apresentava Hemingway na revista LIFE

juntamente com a sua biografia e a sua vida na luxuosa Finca Vigia, com

piscina e um iate. Na New Yorker, Lillian Ross fez uma descrição bem-

humorada dos pormenores de umas férias de Hemingway em Nova Iorque

em que o escritor, sob o efeito do álcool, narrou num inglês macarrónico

aventuras impossíveis da sua vida e como se defendeu de adversários

beligerantes do passado e do presente.

Depois, em janeiro de 1954, aquando da sua segunda viagem a África,

em que foi nomeado guarda de caça honorário para a região pantanosa de

Kimana, ocorreu um incidente que deitou ainda mais lenha para a fogueira

da imprensa sensacionalista. Como presente de Natal para Mary,

Hemingway alugou um avião para sobrevoar a cratera de Ngorongoro, em

direção ao Serengeti, na fronteira com o Congo Belga, e depois até ao

Uganda. Junto às Cataratas de Murchison, a hélice do avião roçou numa

velha linha telegráfica e despenhou-se. Para proteger o piloto, a versão

tornada oficial foi a de que este teve de dar passagem a um bando de ibis

pretos. Em todo o caso, Mary, Hemingway e o piloto conseguiram sair dos


destroços sem outros ferimentos para além de alguns arranhões e

contusões. Posteriormente, quando Hemingway embarcou numa nova

viagem de aventura com Mary de Butiaba até Entebbe, a aeronave também

teve problemas, incendiando-se no momento do arranque. Mary e os

restantes passageiros conseguiram escapar pela saída de emergência através

do assento do piloto do velho avião, mas Hemingway, de ombros largos e

corpo maciço, era demasiado grande para sair por ali. Ao fim de algumas

tentativas desesperadas, conseguiu abrir um buraco na fuselagem e viu-se

de repente rodeado pelas chamas que vinham da asa. Desceu e atirou-se

para o chão, ao que Mary reagiu comentando em tom trocista que este

parecia estar cheio de pressa para sair. Hemingway tinha uma ferida na

cabeça, um traumatismo craniano e ferimentos internos sérios, o que, no

entanto, encarou como sendo crítica e censura da sua cobardia. Um mês

depois, Hemingway bebia em demasia (segundo o guia de caça Denis

Zaphiro, duas garrafas de gin, a sua cura para todos os males) para

controlar as dores que, de resto, ia suportando com um autodomínio

estoico. Numa ocasião, enquanto Mary e Zaphiro foram à pesca, deflagrou

um incêndio na mata nas proximidades da casa e, apesar do seu estado

físico debilitado, Hemingway não permitiu que o levassem embora dali e

foi ajudar no combate ao incêndio. Quando finalmente o encontraram,

estava deitado com o rosto virado para baixo sobre a vegetação queimada e

ainda fumegante, e apresentava queimaduras graves.


Por todo o mundo, a notícia dos acidentes de Hemingway suplantou as

restantes manchetes. Despenhar-se duas vezes no espaço de 24 horas e

sobreviver era coisa que só lhe podia acontecer mesmo a ele. O próprio

Hemingway expôs-se perante a imprensa, o que desta vez não correu bem.

Em Shimoni, respondeu desta forma a um amigo que lhe tinha enviado um

telegrama preocupado: «Contamos à imprensa que as coisas nunca

estiveram melhores, para não lhes revelarmos o segredo da nossa profissão,

a necessidade de resistir a tudo. O que este teu amigo de sempre sofreu foi

uma laceração do rim (muito sangue e pedaços de rim na urina). O resto

que vá para o inferno. Está a progredir bem, mas é doloroso. Não somos

indestrutíveis, mesmo que os jornalistas achem que sim.

Tenciono ganhar esta etapa, embora fosse mais fácil se não me

levantasse. A morte é uma merda, como nós sabemos.» Hemingway

suportou a sua miséria com uma alegria secreta, senão mesmo macabra.

Quando, poucas semanas depois, A.E. Hotchner se encontrou com ele no

Hotel Gritti em Veneza, Hemingway tinha diante de si um álbum com os

seus elogios fúnebres e disse que se iria entreter à grande. Todas as manhãs

leria alguns elogios fúnebres com a companhia de um copo de champanhe,

o que lhe levantaria a moral para o resto do dia.

No entanto, Hemingway fazia sobretudo um esforço para que a sua

imagem pública influenciasse cada vez mais a apreciação da sua obra


literária. Aos poucos, começou a tomar consciência de que se tinha tomado

refém da lenda que ele próprio havia ajudado a criar. Para os meios de

comunicação, o nome Hemingway estava associado à imagem de lutador,

de desportista, e mesmo de amante, assim como, no seu papel de Papa, à

imagem de alguém que tinha uma opinião formada sobre tudo. Passava

pouco a imagem de um escritor cuja anti-intelectualidade era

conscientemente encenada, cujo estilo aparentemente simples era

conscientemente reduzido ao essencial. Não foi por acaso que Hemingway

escreveu a Robert Cantwell em 1950 pedindo expressamente que não

fizesse qualquer menção aos seus ferimentos e às suas experiências na

guerra. Um outro fator não menos importante foi a inveja por parte dos

críticos, que passava tanto por ciúmes do seu sucesso como pela cobiça

inconsciente dos intelectuais em relação àquele que não se deixava afetar

pelas inquietações do pensamento, que conseguia escrever de modo

extraordinário e que ainda conseguia viver, amar e estar em sítios onde

havia ação, sítios esse que os intelectuais apenas podiam imaginar enquanto

estavam sentados nas suas mesas de trabalho. Tanto isto como o oposto, ou

seja, uma admiração facciosa e uma identificação inconsciente, viria a

dificultar a forma de encarar a obra de Hemingway, ainda em vida,

culminando nas críticas que acabaram por cair sobre ele vindas da fação

feminista. Verificava-se assim uma transferência direta da lenda criada em

tomo de Hemingway para a interpretação do conteúdo dos seus trabalhos.


Em 1954, Hemingway escreveu ao amigo Edward Dorman-O’Gowan:

«Caro Chink, sinto-me envergonhado por ainda não ter escrito. Tenho

andado a ser perseguido por jornalistas, fotógrafos e admiradores tanto

normais como loucos. No meio disso tudo tinha um livro para escrever. E

quase como se uma pessoa tivesse sido interrompida a meio do ato sexual.»

Quanto mais famoso Hemingway se ia tornando, mais esse fator exercia

influência sobre o próprio processo de escrita. Rodeado de admiradores e

repórteres que ocupavam o seu tempo com entrevistas, tinha cada vez

menos disponibilidade para as suas reflexões, os seus retiros e a paz

criativa que a sua atividade de escrita exigia. No entanto, esta ameaça não

vinha apenas de fora. Vinha também de dentro, do próprio Hemingway. No

início dos anos 30, ainda era extremamente reservado na sua relação com a

imprensa, já que temia não conseguir parar depois de lhe ter tomado o

gosto. Porém, meia dúzia de anos mais tarde, essa timidez havia já

desaparecido por completo. Nos livros com um pendor abertamente

autobiográfico, como Morte ao Entardecer e As Verdes Colinas de África,

quem falava acerca da tourada, da caça e da pesca, filosofava sobre a sua

vida, o amor, a guerra, a arte e a política não era o eu autorial, mas sim o

autor e perito Hemingway. Pelo menos na altura do seu regresso da Guerra

Civil espanhola, Hemingway era uma lenda de quem se aceitava tudo. Em

1965, após a sua morte, foi lançado um disco com o título Ernest
Hemingway Reading, no qual era reproduzida uma das histórias fictícias

que Hemingway contava publicamente com um enorme prazer, e que

envolvia Mata Hari, a famosa espia. «Contou a um grupo já pouco sóbrio

que não a tinha conhecido muito bem, já que era apenas um tenente pouco

importante e ela só se interessava por oficiais de alta patente e ministros,

“mas numa noite saltei-lhe para cima com tudo a que se tem direito, apesar

de ter achado que ela tinha uma ancas muito pesadas e que mostrava mais

prazer com o que lhe era feito do que com o que ela fazia.”» Na verdade,

Mata Hari havia sido executada na sequência da sua condenação por

espionagem um ano antes de Hemingway ter ido para a Europa.

Em casa, em Finca Vigia, Hemingway tomou medidas para manter

afastados os visitantes mais impertinentes e proteger a sua vida privada.

Mandou colocar placas que deixavam bem claro que não eram bem-vindos

quaisquer visitantes não anunciados, e ele próprio não atendia o telefone.

Além disso, evitou conferências e convites públicos onde houvesse

câmaras. Seja como for, já não era possível afastar o monstro que havia

invocado. Pressionado pela sua imagem pública, Hemingway perdeu a

capacidade de discernir a linha ténue que separava a ficção da realidade nos

seus feitos. Chegou mesmo a escrever o seguinte: «Não é nada invulgar que

os melhores escritores sejam mentirosos. E um elemento essencial da sua

profissão que mintam sobre si próprios ou sobre outros quando estão


bêbados. Muitas vezes mentem inconscientemente e mais tarde lembram-se

das suas mentiras com um forte peso na consciência. Se tivessem

consciência de que todos os outros escritores são mentirosos, conseguiriam

voltar a endireitar-se. [...] Mentir enquanto se bebe é um bom exercício

para o vigor criativo e é de grande utilidade para o planeamento de uma

história. Com um escritor isso não é mais insidioso ou reprovável do que

com alguém que vive experiências estranhas e inacreditáveis durante os

sonhos. Mentir a si mesmo, no entanto, é mau, mas isso é algo que se

desvanece através da escrita de um livro verdadeiro que, na sua invenção, é

mais verdadeiro do que todas as coisas verdadeiras que alguma vez

aconteceram. [...] Cabe exclusivamente ao próprio autor esconder-se.»

Contudo, o problema é que Hemingway, no final, já não conseguia

distinguir a verdade da criação da verdade da realidade, acabando por

modelar os seus heróis em função da imagem pública que criou de si

próprio. A tragédia de pessoas como o escritor Hemingway passava pelo

problema de um não conseguir viver sem o outro, mas ambos não serem

suficientes juntos. Hemingway, o escritor, era obcecado pela escrita, mas

precisava do Hemingway, o celebrado homem de ação, para sentir a sua

afirmação enquanto homem. Instalou-se assim um ciclo vicioso: quanto

mais famoso se tomava, maior era a pressão do sucesso exercida sobre ele e

maior era a sua predisposição para acreditar nas ficções e não nos seus atos
reais, que ele sabia bem pouco terem que ver com a sua imagem perante a

opinião pública. Por contraste, Hemingway, o caçador, pescador e

alcoólico, precisava do escritor Hemingway, para a correção da verdade na

autoterapia da escrita, para não se perder, mas precisava também do registo

escrito para que os seus feitos não fossem esquecidos. No entanto, esses

feitos eram apenas concretizados no papel e, portanto, não tinham nada de

verdadeiro ou palpável. Uma vez mais, elevava-se a ameaça da perda da

verdade. E o ritmo desta espiral viria a sofrer uma aceleração vertiginosa,

acabando por paralisar o talento de Hemingway e sufocar a sua capacidade

de escrever.
O VENCEDOR REGRESSA DE MÃOS VAZIAS

Em 1954, Hemingway recebeu o Prémio Nobel da Literatura. No

relatório de atribuição do prémio constava que tinha aperfeiçoado a

modalidade narrativa do conto moderno com uma «mestria vigorosa que

inaugurou novas tendências». Contudo, Hemingway não estava

suficientemente bem de saúde para poder receber o prémio em pessoa. Os

ferimentos graves sofridos nos dois acidentes de avião não foram de todo

os únicos danos corporais com que Hemingway teve de lidar pela vida fora.

De acordo com um estudo estatístico, Hemingway sofreu ao longo da sua

vida diversos ferimentos de balas em ambos os pés e mãos, seis

traumatismos cranianos, três acidentes graves de automóvel, incontáveis

costelas partidas e, segundo o próprio, resistiu a dez traumatismos

cranianos graves. Os acidentes, os esforços que Hemingway se impôs a si

mesmo, em poucas palavras, os abusos exaustivos e inconsequentes à sua

saúde, agravados pelo alcoolismo desenfreado, acarretaram consequências.

Aos 50 anos, já tinha o corpo de um velho, tendo esse processo de

envelhecimento precoce sido agravado por uma doença metabólica de que

Hemingway terá padecido, segundo dados conhecidos atualmente. Para a

receção do prémio, Hemingway incumbiu o embaixador norte-americano

da leitura do discurso de agradecimento. A medalha de ouro que


Hemingway recebeu juntamente com o documento e o prémio no valor de

35 mil dólares foram doados por este à Virgem do Cobre, a padroeira

nacional de Cuba.

Depois do Prémio Nobel tornou-se extremamente difícil para

Hemingway manter-se à altura das expetativas do público. Ficou afetado

com a fundamentação do prémio, em que se fazia referência a uma

superação da sua anterior fase «brutal, cínica e dura» em benefício de uma

«paixão viril pelo perigo e pela aventura», e tinha a sensação de que cada

livro que escrevesse teria de suplantar o anterior e que havia críticos por

todo o lado a aguardar um motivo para o dilacerar. No outono de 1954,

começou a trabalhar num diário fictício da sua segunda viagem a África,

que só viria a ser publicado pelo filho Patrick em 1999, por ocasião do seu

centésimo aniversário, com o título de Verdade ao Amanhecer: Um Safari

em África. Tal como em As Verdes Colinas de África, a experiência da

paisagem e o contacto com os nativos do continente africano aqui descritos

são como que uma porta de acesso às camadas mais profundas e originais

da sua personalidade. Ao mesmo tempo, o livro está imbuído da

ambivalência de Hemingway relativamente a Maiy, sua mulher. Uma das

peças centrais do romance é a descrição que o sujeito narrador faz de

Debba, uma jovem da tribo Wakamba, que este designa por sua «noiva» e

que se encosta a ele e ao coldre da sua arma, pondo as mãos «onde bem
entendia» (Verdade ao Amanhecer). Para além da caça, a jovem toma-se ao

longo da história a epítome da liberdade sem limitações civilizacionais e da

graciosidade espontânea à qual o narrador se entrega voluntariamente

enquanto a mulher está fora. «Contemplávamos um território que nenhuma

mulher branca alguma vez havia pisado, nem mesmo Miss Maiy, a não ser

que contasse aquela vez em que, excitados como crianças, a levámos contra

a sua vontade até um território ao qual nunca pertenceu e cujos pontos

fracos enalteciam ainda mais as suas pequenas maravilhas, facto que ela

desconhecia.

Contemplávamos o nosso território e as colinas Chulu, azuis e estranhas

como sempre, e sentimo-nos felizes por Miss Maiy nunca lá ter estado;

depois regressámos ao carro e eu disse simplesmente a Debba: “Hás de ser

uma esposa inteligente” e ela, inteligente, encostou-se a mim e ao meu

adorado coldre e disse: “Já sou uma esposa tão boa agora como alguma vez

poderei vir a ser.”

Dei-lhe um beijo na cabeça crespa e continuámos pela magnífica estrada

que serpenteava pela encosta acima em curvas estranhas.»

(Verdade ao Amanhecer)

Durante o safari, Hemingway foi mesmo acometido por um estranho

acesso de atavismo e, enquanto Mary estava em Nairobi a fazer compras de

Natal, rapou o cabelo ao estilo dos Massai, pintou as suas roupas de


vermelho-ferrugem e saiu para caçar armado com uma lança.

Posteriormente, Hemingway pode bem ter tomado consciência do absurdo

desse seu comportamento, já que, em 1956, insatisfeito com o seu trabalho,

voltou a colocar de parte o manuscrito de Verdade ao Amanhecer e dirigiu-

se novamente para a Europa em busca de inspiração, primeiro para

Espanha, onde nem mesmo a administração de Franco se atreveu a recusar-

lhe a entrada e onde foi homenageado como um santo, e depois para Paris,

onde acabou por ter de passar o inverno, contra a sua vontade, devido a

problemas de saúde. Contudo, a sua disposição melhorou quando lhe

entregaram duas malas com o seu nome que encontravam esquecidas desde

1928 num canto da cave do Ritz. Quando as abriu, deparou-se com

anotações manuscritas, vários ensaios em prosa e uma reportagem dos seus

primeiros tempos na Europa. Esta descoberta, assim como as lembranças

evocadas pela mesma, viriam a constituir a base para o livro Paris É Uma

Festa, que viria a ser publicado em 1964 por Maiy Hemingway.

Aquando do seu regresso a Cuba, Hemingway deparou-se com uma

situação política tensa. Quando as tropas do governo revistaram Finca

Vigia em busca de rebeldes, Hemingway tirou as suas conclusões. Exilou-

se então em Ketchum, Idaho, e foi a partir daí que acompanhou

atentamente a tomada do poder por Fidel Castro em Havana, em janeiro de

1959. Foi-lhe entretanto transmitido que tanto ele como as suas


propriedades ficariam sob proteção expressa do governo, mas Hemingway

previa que, tendo em conta a desaprovação do derrube do regime de

Batista, os interesses capitalistas dos EUA teriam de colidir com os

objetivos do novo governo cubano e que ele, mais cedo ou mais tarde,

acabaria por se tomar persona non grata no seu país adotivo. Depois de

uma visita a Cuba, em que foi amigavelmente recebido por Castro (este

último chegou mesmo a vencer o Concurso Hemingway de pesca realizado

anualmente, tendo sido o próprio autor a entregar-lhe o troféu),

Hemingway comprou uma casa em Ketchum para sua própria segurança e

voltou a viajar para Espanha. A LIFE havia abordado o autor para lhe

perguntar se poderia escrever um artigo extenso sobre tourada, cujo ponto

central seria o concurso de toureio entre os famosos matadores Luis Miguel

Dominguín e Antonio Ordónez. O artigo de mil palavras originalmente

planeado acabou por se transformar num retrato de toda a Espanha. Este foi

o último livro de Hemingway, intitulado Um Verão Perigoso, tendo sido

publicado por partes na LIFE em 1960 e depois em 1985, já postumamente.

Ao lê-lo fica-se com a sensação de que Hemingway pressentia o seu final.

O livro, que evidenciava uma prolixidade pouco típica de Hemingway,

incluindo muitas repetições, chega a assemelhar-se a um elogio fúnebre

com alguns desvios direcionados para Espanha e para os dois matadores.

Quando Hemingway finalmente parou de escrever (entretanto já havia


regressado há muito a Cuba e daí para Ketchum), estavam já produzidas

120 mil palavras que ele não conseguiu abreviar. Por isso mesmo, acabou

por fazer algo que nunca teria feito nos seus melhores dias: Hemingway,

para quem a escrita sempre foi sagrada, pediu ajuda a uma outra pessoa,

alegando motivos de saúde. «Neste momento, não consigo dormir mais de

duas horas e meia, três horas seguidas. Durante a noite durmo quatro, no

máximo cinco horas. Esta manhã pesei-me, 81 quilos, está bem assim,

baixa a pressão arterial. [...] Na semana passada veio o Ed Hotchner para

me ajudar a abreviar o material para a LIFE para 30 a 40 mil palavras, mas

só conseguimos chegar às 70 mil. [...] Desde o início de abril que tenho

tido muitos problemas com os olhos. Não podem ser operados e o

astigmatismo só pode ser corrigido para 20/20, o que já foi feito. Estavam

bem quando regressei a Ketchum, mas entretanto esforcei-os demasiado ao

trabalhar aqui no livro sem óculos.»

Hemingway começou a decair gradualmente. Acabou por esgotar-se com

o esforço de continuar a ser a pessoa que se esperava dele. O trabalho

encomendado pela LIFE enchera-o de uma energia renovada numa

primeira fase. Acompanhou Ordónez, de quem se tornou amigo, assistiu a

todas as corridas de touros, mergulhou na fiesta de Pamplona e aguentou

todos esses esforços com uma resistência surpreendente. O seu 60º

aniversário foi festejado junto de amigos americanos abastados, em Finca


La Consulta, perto de Málaga, com uma grande festa organizada por Mary,

seguida de uma patuscada. No entanto, começaram a acumular-se sinais de

que algo não estava bem. Voltou a revelar a sua antiga aspereza e

arrogância, começou a ridicularizar Mary com referências à sua paixão por

Adriana Ivancich, não falava de nada para além do seu passado romântico e

exprimia-se com expressões coléricas. Mesmo assim, conseguiu continuar

a trabalhar de modo produtivo depois do regresso a Ketchum e a Havana.

No ano seguinte, a sua debilidade física e psíquica, da qual ele próprio

estava cada vez mais consciente, não foi suficiente para o dissuadir de

voltar a acompanhar o seu amigo Ordónez nas touradas. Contudo, a

situação mudou repentinamente após a sua chegada a Madrid em agosto de

1960. Deixou de conseguir dormir, sofria de crises de ansiedade e perdas

de consciência. A tourada parecia-lhe agora algo sem sentido e corrupto.

As fases de exuberância e de entusiasmo criativo alegres e cheias de bom

humor no início do trabalho em Um Verão Perigoso deram lugar a estados

de espírito sombrios e prolongados. Estava deprimido e deixou-se cair

numa profunda tristeza. Nas cartas de Hemingway desse tempo repete-se

recorrentemente a necessidade de descansar a cabeça para conseguir dar

forma às coisas. Na sua carta a Maiy podia ler-se: «Tenho de sair daqui e

voltar para junto de ti e para a vida saudável em Ketchum para limpar a

cabeça e conseguir escrever bem.» No entanto, o estado psíquico de

Hemingway não melhorou com o seu regresso a Ketchum. Estava cada vez
mais consciente de que já não conseguia escrever e essa constatação afetou

a sua força vital. Seguiram-se sintomas de paranoia. Achava que estava a

ser perseguido pela polícia e pelas autoridades fiscais, tinha a sensação

(justificada, tal como se viria a verificar posteriormente) de que o FBI

estava a vigiá-lo. Era inevitável o internamento numa clínica.

O internamento de Hemingway na Mayo Clinic por prescrição do Dr.

George Saviers foi inicialmente justificado pelos valores do seu fígado.

Para desviar as atenções dos repórteres, Hemingway deu entrada na clínica

com o nome do médico. Confirmou-se efetivamente um grau ligeiro de

diabetes e uma hipertrofia do fígado. Para além disso, Hemingway sofria de

hipertensão, problema que tentou controlar com medicamentos cujos

efeitos secundários foram depressões. Seja como for, quando estas eram

controladas, nada mudava. Muito pelo contrário, nas cartas de Hemingway

era evidente que começavam a acumular-se os sintomas do seu crescente

estado de perturbação. No espaço de duas semanas, encomendou 40 livros,

repetiu várias vezes a mesma morada, tomou-se estranhamente meticuloso

no que se referia aos pormenores, mas depois deixou de se lembrar de

quando tinha dado entrada no St. Maty’s Hospital. O Dr. Howard P. Rome,

um psiquiatra que no entanto não se apresentava como tal, recomendou por

fim um método de tratamento extremamente comum nos EUA naquela

época: eletrochoques. Quando Hemingway recebeu alta da clínica a 22 de


janeiro de 1961, era um homem envelhecido, debilitado, magro, pálido e de

cabelos brancos, mas o seu estado parecia ter registado melhorias. Porém, a

capacidade de escrever era irrecuperável. A esse respeito, disse ao Dr.

Saviers, entre lágrimas: «Simplesmente não vai voltar.» Em abril já estava

de volta a Rochester. Maiy encontrara-o à janela com uma espingarda na

mão e dois cartuchos diante de si. A situação era grave. Quando a pequena

aeronave que levaria Hemingway, Mary e o Dr. Saviers de Sun Valley a

Rochester aterrou no Dakota do Sul para abastecer, quase não o

conseguiram impedir de se atirar para a hélice de outro avião. Depois de

voltarem a levantar voo, ainda mal tinham subido aos cinco mil metros

quando se deu a segunda tentativa de suicídio, em que Hemingway quase

conseguiu abrir a porta para saltar. Hemingway viria a permanecer na

Mayo Clinic até junho. A 15 de junho escreveu o seguinte ao filho de 9

anos do seu médico de família, que também se encontrava hospitalizado:

«Aqui em Rochester está sempre muito quente e abafado, mas nos

últimos dias tem estado fresco e agradável e à noite tenho dormido

maravilhosamente. Esta região é bonita e eu tive a oportunidade de ver um

pouco da incrível paisagem junto ao Mississipi, onde se deitavam abaixo os

troncos de árvores nos tempos dos lenhadores, e os caminhos pelos quais os

pioneiros seguiam em direção a norte. Vi umas boas percas a saltar no rio.

Até então, eu não sabia absolutamente nada sobre o Mississipi. E uma


região realmente magnifica e no outono encontramos lá uns bons faisões e

patos.

Mas não tantos como em Idaho, e eu espero que ambos possamos

regressar lá brevemente e fazer juntos piadas sobre as experiências das

nossas doenças.

Desejo-te o melhor, velha lebre. Do teu bom amigo que nunca se

esquece de ti,

(Mister) Papa Manda cumprimentos meus a toda a família. Eu sinto-me

bem e estou bem-disposto em relação às coisas em geral e espero voltar a

ver-vos em breve. Papa*70

Esta foi a última carta de Hemingway. Na manhã de 2 de julho de 1961,

um domingo, Hemingway levantou-se pelas sete horas da manhã enquanto

a mulher ainda dormia. Foi até ao armazém onde se guardavam as armas,

carregou uma espingarda de alto calibre com cano duplo, que costumava

usar para caçar pombos, e levou-a até ao alpendre da sua casa em Ketchum.

Virou a arma na sua direção e disparou. Tratou-se de uma forma de

suicídio particularmente agressiva: o tiro rebentou com toda a parte

superior do crânio, ao ponto de não ser possível perceber se o cano havia

sido encostado à boca ou à testa.


Ernest Miller Hemingway foi sepultado a 5 de julho de 1961 no pequeno

cemitério de Ketchum, no sopé das Sawtooth Mountains, 16 dias antes do

seu 62° aniversário. O público continuou a acompanhá-lo mesmo após a

sua morte. O funeral no seio do pequeno círculo de parentes e amigos

acabou por se tornar um acontecimento mediático. O ofício fúnebre teve

lugar ao som dos cliques das máquinas fotográficas e do zumbido das

câmaras de filmar. Entre aqueles que transportaram o caixão não estava um

único escritor, apenas desportistas, cowboys e amigos ricos. Os escritores

ao lado dos quais Hemingway fez história no mundo da literatura, entre os

quais Fitzgerald, Joyce, Gertrude Stein, Virgínia Woolf, estavam já todos

mortos, e os restantes tinham-se zangado com ele nos últimos anos da sua

vida.

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